A interpretação dos sonhos
(Primeira parte)
VOLUME IV
(1900)
DIE
TRAUMDEUTUNG
von
Dr. SIGMUND FREUD
--------------------------------
FLECTERE SI NEQUEO SUPEROS, ACHERONTA MOVEBO.
--------------------------------
LEIPZIG UND WIEN.
FRANZ DEUTICKE.
1900
---------------------------
INTRODUÇÃO
(2)
BIBLIOGRAFIA
(a)
EDIÇÕES ALEMÃS:
1900 Die Traumdeutung. Leipzig e Viena:
Franz Deuticke. Págs. iv + 375
1909 2ª ed. (Ampliada e revista.) Mesmos editores.
Págs. vii389.
1911 3ª ed. (Ampliada e revista.) Mesmos editores.
Págs. x + 418.
1914 4ª ed. (Ampliada e revista.) Mesmos editores.
Págs. x + 498.
1919 5ª ed. (Ampliada e revista.) Mesmos editores.
Págs. ix + 474.
1921 6ª ed. (Reimpressões da 5ª ed., exceto pelo
novo prefácio e 1922 7ª ed. pela bibliografia revista.) Págs. vii + 478
1925 Vol. II e parte do Vol. III de Freud, Gesammelte Schriften. (Ampliada
e revista.) Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. Pág. 543 e 1-185.
1930 8ª ed. (Ampliada e revista.) Leipzig e Viena:
Franz Deuticke. Págs. x + 435.
1942 Em volume Duplo II & III de Freud, Gesammelte
Werke. (Reimpressão da 8ª ed.)
Londes: Imago Publishing Co. Págs. xv e 1-642.
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
1913 Por A. A. Brill. London:
George Allen & Co.; Nova Ioque: The Macmillan
Co. Págs. xiii + 510.
1915 2ª ed. Londess; George Allen
& Unwin; Nova Ioque: The Macmillan
Co. Págs.
xii + 510.
1932 3ª ed. (Completamente revista e em grande
parte reescrita por vários
colaboradores não especificados.) London: George
Allen & Unwin; Nova Ioque: The
Macmillan Co. Pág. 600.
1938 Em The Basic Writings of
Sigmund Freud. Págs.
181-549. (Reimpressão da 3ª e. com a
omissão de quase todo o Capítulo
I.) Nova Ioque: Random House.
A atual tradução para o inglês, inteiramente
nova, é de James Strachey.
Na realidade, Die Traumdeutung apareceu
pela primeira vez em 1899. Esse fato é mencionado por Freud no início de seu
segundo artigo sobre Josef Popper (1932c): “Foi no inverno de 1899 que meu
livro sobre a interpretação dos sonhos (embora sua página de rosto estivesse
pós-datada com o novo século) finalmente surgiu diante de mim”. Mas agora temos
informações mais exatas por sua correspondência com Wilhelm Fliess (Freud,
1950a). Em sua carta de 5 de novembro de 1899 (Carta 123), Freud anuncia que
“ontem, finalmente, o livro apareceu”; e pela carta precedente parece que o
próprio Freud recebera de antemão dois exemplares, cerca de uma quinzena antes,
um dos quais enviara a Fliess como presente de aniversário.
A Interpretação dos Sonhos foi um dos dois livros
- Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1950d) foi o outro - que
Freud manteve mais ou menos sistematicamente “atualizados” à medida que foram
passando por suas edições sucessivas. Após a terceira edição da presente obra,
as alterações nela feitas não foram indicadas de maneira alguma, o que produziu
um efeito algo confuso sobre o leitor das edições posteriores, visto que o novo
material às vezes implicava um conhecimento de modificações dos pontos de vista
de Freud que datam de épocas muito posteriores ao período em que o livro foi
originalmente escrito. Numa tentativa de superar essa dificuldade, os editores
da primeira edição das obras completas de Freud (as Gesammelte Schriften)
reimprimiram a primeira edição de A Interpretação dos Sonhos em sua
forma original num só volume, e enfeixaram num segundo volume todo o material
que fora acrescentado depois. Infelizmente, contudo, o trabalho não foi
efetuado de modo muito sistemático, pois os próprios acréscimos não foram
datados e, com isso, grande parte da vantagem do plano foi sacrificada. Nas
edições subseqüentes, voltou-se ao antigo volume único e não diferenciado.
O maior número de acréscimos versando sobre
qualquer assunto isolado é constituído, sem dúvida, pelos que dizem respeito ao
simbolismo nos sonhos. Freud explica, em sua “História do Movimento
Psicanalítico” (1914d), bem como no início do Capítulo VI, Seção E (pág. [1])
desta obra, que chegou tardiamente a uma compreensão plena da importância dessa
faceta do assunto. Na primeira edição, o exame do simbolismo limitou-se a
algumas páginas e a um único sonho modelo (dando exemplos de simbolismo sexual)
no final da seção sobre as “Considerações sobre a Representabilidade”, no
Capítulo VI. Na segunda edição (1909), nada foi acrescentado a essa seção; mas,
por outro lado, várias páginas sobre o simbolismo sexual foram inseridas no fim
da seção sobre “Sonhos Típicos”, no Capítulo V. Estas foram consideravelmente
ampliadas na terceira edição (1911), enquanto o trecho original do Capítulo VI
continuou ainda inalterado. Eraevidente que uma reorganização há muito se fazia
necessária, e, na quarta edição (1914), uma seção inteiramente nova sobre o
Simbolismo foi introduzida no Capítulo VI, e para ela transpôs-se então o
material sobre o assunto que se acumulara no Capítulo V, junto com grande
quantidade de material inteiramente novo. Não se fizeram quaisquer modificações
na estrutura do livro nas edições posteriores, embora outro grande
volume de material tenha sido acrescido. Após a versão em dois volumes (1925) -
isto é, na oitava edição (1930) - alguns trechos da seção sobre “Sonhos
Típicos” no Capítulo V, que haviam sido totalmente abandonados numa fase
anterior, foram reinseridos.
Na quarta, na quinta, na sexta e na sétima
edições (isto é, de 1914 até 1922), dois ensaios de autoria do Otto Rank (sobre
“Os Sonhos e a Literatura Criativa” e “Sonhos e Mitos”) foram publicados no
final do Capítulo VI, mas foram posteriormente omitidos.
Restam as bibliografias. A primeira edição
continha uma lista de cerca de oitenta livros, e à grande maioria deles Freud
faz referências no texto. Esta lista permaneceu inalterada na segunda e na
terceira edições; porém, na terceira, uma segunda relação foi acrescentada,
contendo cerca de quarenta livros escritos desde 1900. Daí por diante, ambas as
listas começaram a aumentar rapidamente, até que, na oitava edição, a primeira
delas continha cerca de 260 obras, e a segunda, mais de 200. Nessa fase,
somente uns poucos títulos da primeira lista (pré-1900) eram de livros
realmente mencionados no texto de Freud, enquanto, por outro lado, a segunda
lista (pós-1900, como se pode inferir das próprias observações de Freud em seus
vários prefácios) não pôde realmente atualizar-se de acordo com a produção de
escritos analíticos ou quase-analíticos sobre o assunto. Além disso, muitas das
obras citadas por Freud no texto não eram encontradas em nenhuma das duas
listas. Parece provável que, a partir da terceira edição, Otto Rank tenha-se
tornado o principal responsável por essas bibliografias. Uma carta de Freud a
André Breton, datada de 14 de dezembro de 1932 (1933e), declara explicitamente
que, na quarta edição e nas que vieram a seguir, as bibliografias ficaram
inteiramente a cargo de Rank.
(2)
HISTÓRICO
A publicação da correspondência de Freud com
Fliess permite-nos acompanhar a redação de A Interpretação dos Sonhos
com certa riqueza dedetalhes. Na “História do Movimento Psicanalítico” (1914d),
Freud escreveu, rememorando seu lento ritmo de publicação nos primeiros tempos:
“A Interpretação dos Sonhos, por exemplo, foi concluída, em todos os
seus aspectos essenciais, no começo de 1896, mas só foi escrita no verão de
1899”. Da mesma forma, nas notas introdutórias a seu trabalho sobre as
conseqüências psicológicas da distinção anatômica entre os sexos (1925j), ele
escreveu: “Minha Interpretação dos Sonhos e meu ‘Fragmento da Análise de
um Caso de Histeria’ (1905e)… foram sustados por mim - se não durante os nove
anos impostos por Horácio, ao menos por quatro ou cinco anos, antes que eu
permitisse que fossem publicados.” Estamos agora em condições de ampliar e, sob
certos aspectos, corrigir essas rememorações, com base em provas contemporâneas
do autor.
Além de várias referências dispersas ao assunto
- que, em sua correspondência, remontam a pelo menos 1881 -, as primeiras
importantes publicadas sobre o interesse de Freud pelos sonhos aparecem no
curso de uma longa nota de rodapé ao primeiro de seus casos clínicos (o da Sra.
Emmy von N., com data de 15 de maio), nos Estudos sobre a Histeria, de
Breuer e Freud (1895). Examina ele o fato de que os pacientes neuróticos
parecem ter necessidade de associar umas com as outras quaisquer idéias que
porventura estejam simultaneamente presentes em suas mentes. Prossegue ele:
“Não faz muito tempo, pude convencer-me da intensidade de uma compulsão dessa
espécie à associação, a partir de algumas observações feitas num campo
diferente. Durante várias semanas, vi-me obrigado a trocar minha cama habitual
por uma mais dura, na qual tive sonhos numerosos ou mais nítidos, ou na qual
talvez não tenha conseguido atingir a profundidade normal do sono. No primeiro
quarto de hora depois do acordar, recordava-me de todos os sonhos que tivera
durante a noite e me dei ao trabalho de anotá-los e tentar solucioná-los.
Consegui relacionar todos esses sonhos com dois fatores: (1) com a necessidade
de elaborar quaisquer idéias de que só tivesse tratado de modo superficial
durante o dia - que tivessem sido apenas mencionados, e afinal não tivessem
sido tratados; e (2) com a compulsão de vincular quaisquer idéias que pudessem
estar presentes no mesmo estado de consciência. O caráter absurdo e
contraditório dos sonhos pode ser investigado até a ascendência não controlada
deste segundo fator.”
Infelizmente, não se pode datar esse trecho com
exatidão. O prefácio ao volume foi escrito em abril de 1895. Uma carta de 22 de
junho de 1894 (Carta 19) parece implicar que os casos clínicos já estavam
concluídos nessa ocasião, e isso certamente já havia ocorrido em 4 de março de
1895. A cartade Freud dessa data (Carta 22) é de particular interesse, por dar
o primeiro vislumbre da teoria da realização de desejo: no decorrer dessa
carta, Freud cita a história do “sonho de conveniência” do estudante de
medicina que se acha incluído nas pág. [1]-[2] deste volume. Entretanto, foi
somente em 24 de julho de 1895 que a análise de seu próprio sonho com a injeção
de Irma - o sonho modelo do Capítulo II - estabeleceu essa teoria em definitivo
na mente de Freud. (Ver Carta 137, de 12 de junho de 1900). Em setembro desse
mesmo ano (1895), Freud escreveu a pimeira parte de seu “Projeto para uma
Psicologia Científica” (publicado como apêndice à correspondência com Fliess),
e as Seções 19, 20 e 21 do “Projeto” constituem uma primeira abordagem de uma
teoria coerente dos sonhos. Ele já inclui muitos elementos importantes que
reaparecem na presente obra, tais como (1) o caráter de realização de desejos
dos sonhos, (2) seu caráter alucinatório, (3) o funcionamento regressivo da
mente nas alucinações e nos sonhos (o que já fora apontado por Breuer em sua
contribuição teórica aos Estudos sobre a Histeria), (4) o fato de o
estado do sonho envolver paralisia motora, (5) a natureza do mecanismo de
deslocamento nos sonhos, e (6) a semelhança entre os mecanismos dos sonhos e
dos sintomas neuróticos. Mais do que isso, contudo, o “Projeto” traz uma
indicação clara do que é, provavelmente, a mais crucial das descobertas dadas
ao mundo em A Interpretação dos Sonhos - a distinção entre os dois
diferentes modos de funcionamento psíquico, os Processos Primário e Secundário.
Isso, contudo, está longe de esgotar a
importância do “Projeto” e das cartas a Fliess escritas em relação a tal
“Projeto” em fins de 1895. Não é exagero afirmar que grande parte do sétimo
capítulo de A Interpretação dos Sonhos e, de fato, dos estudos
“metapsicológicos” posteriores de Freud só se tornou plenamente inteligível a
partir da publicação do “Projeto”.
Os estudiosos dos escritos teóricos de Freud
têm estado cientes de que, até mesmo em suas especulações psicológicas mais
profundas, encontra-se pouco ou nenhum debate sobre alguns dos conceitos mais
fundamentais de que ele se vale: conceitos, por exemplo, como os de “ energia
psíquica”, “somas de excitação”, “catexia”, “quantidade”, “qualidade”,
“intensidade”, e assim por diante. Praticamente, a única abordagem explícita de
uma discussão desses conceitos nas obras publicadas de Freud é a penúltima
frase de seu primeiro trabalho sobre “As Neuropsicoses de Defesa” (1894a), no
qual formula a hipótese de que “nas funções mentais, deve-se distinguir algo -
uma carga de afeto ou soma de excitação - que possui todas as características
de uma quantidade (embora não tenhamos meios de medi-la) passível de aumento,
diminuição, deslocamento e descarga, e que se espalhasobre os traços mnêmicos
das representações como uma carga elétrica espalhada pela superfície de um
corpo”. A escassez de explicação dessas idéias tão básicas nos escritos
posteriores de Freud sugere que ele presumia que elas fossem uma coisa tão
natural para seus leitores quanto eram para ele mesmo; e devemos nossa gratidão
à correspondência com Fliess, publicada postumamente, por lançar muita luz
precisamente sobre esses pontos obscuros.
Naturalmente, é impossível entrarmos aqui em
qualquer exame pormenorizado do assunto, e o leitor deve ser encaminhado ao
próprio volume (Freud, 1905a) e sua elucidativa introdução feita pelo Dr. Kris. O ponto crucial da
questão, entretanto, pode ser indicado de maneira bem simples. A essência do Projeto
de Freud estava na idéia de combinar num todo único duas teorias de origem
diferente. A primeira delas derivava, em última análise, da escola fisiológica
de Helmholtz, da qual o professor de Freud, o fisiologista Brücke, era um
membro destacado. De acordo com essa teoria, a neurofisiologia, e
conseqüentemente a psicologia, eram regidas por leis puramente físico-químicas.
Tal, por exemplo, era a “lei da constância”, freqüentemente mencionada por
Freud e por Breuer e expressa nos seguintes termos em 1892 (num rascunho
postumamente publicado, Breuer e Freud, 1940): “O sistema nervoso se esforça
por manter constante em seu estado funcional algo que pode ser descrito como a
‘soma de excitação’.” A maior parte de contribuição teórica feita por Breuer
(outro discípulo da escola de Helmholtz) aos Estudos sobre a Histeria
foi uma complexa construção elaborada em harmonia com essas linhas. A segunda
grande teoria evocada por Freud em seu Projeto foi a doutrina anatômica
do neurônio, que estava obtendo a aceitação dos neuroanatomistas no fim da
década de 1880. (O termo “neurônio” só foi introduzido por Waldeyer em 1891.)
Essa doutrina estabelecia que a unidade funcional do sistema nervoso central
era uma célula distinta, sem nenhuma continuidade anatômica direta com as
células adjacentes. As frases iniciais do Projeto mostram claramente
como sua base residia numa combinação dessas duas teorias. Seu objetivo,
escreveu Freud, era “re-presentar os processos psíquicos como estados
quantitativamente definidos de partículas materiais especificáveis”. Em
seguida, ele postulou que essas “partículas materiais” eram os neurônios, e que
a distinção entre se acharem eles num estado de atividade ou num estado de
repouso era feita por “quantidade” que estava “sujeita às leis gerais do
movimento”. Assim, um neurônio poderia estar “vazio” ou “cheio de uma certa
quantidade”, ou seja “catexizado”. A “excitação nervosa” deveria ser
interpretada como uma “quantidade” fluindo através de um sistema de neurônios,
e essa corrente poderia encontrar resistência ou ser facilitada, conforme o
estado das “barreiras de contato” entre os neurônios. (Somente depois, em 1897,
é que o termo “sinapse” foi introduzido por Foster e Sherrington.) O
funcionamento de todo o sistema nervoso estaria sujeito a um princípio geral de
“inércia”, segundo o qual os neurônios sempre tendem a se livrar de qualquer
“quantidade” de que possam estar cheios - um princípio correlato ao princípio
da “constância”. Utilizando como tijolos esses e outros conceitos semelhantes,
Freud construiu um modelo altamente complexo e extraordinariamente engenhoso da
mente como uma máquina neurológica.
Um papel preponderante foi desempenhado no
esquema de Freud por uma divisão hipotética dos neurônios em três classes ou
sistemas, diferenciados de acordo como seus modos de funcionamento. Desses, os
dois primeiros relacionavam-se, respectivamente, aos estímulos externos
e às excitações internas. Ambos funcionavam numa base apenas quantitativa,
isto é, suas ações eram inteiramente determinadas pela magnitude das excitações
nervosas que incidiam sobre eles. O terceiro sistema estava correlacionado com
as diferenças qualitativas que distinguem as sensações e sentimentos
conscientes. Essa divisão dos neurônios em três sistemas constituiu a base de
complexas explicações fisiológicas de coisas como o funcionamento da memória, a
percepção da realidade, o processo de pensamento, e também os fenômenos dos
sonhos e dos distúrbios neuróticos.
Entretanto, as obscuridades e dificuldades
começaram a se acumular, e durante os meses que se seguiram à redação do
“Projeto”, Freud revisou continuamente suas teorias. Com o passar do tempo, seu
interesse foi-se desviando gradualmente dos problemas neurológicos e teóricos
para os problemas psicológicos e clínicos, e ele acabou por abandonar todo o
esquema. E quando, alguns anos depois, no capítulo VII desta obra, Freud
retomou o problema teórico - embora por certo jamais abandonasse a crençade que
uma base física da psicologia seria finalmente estabelecida -, o fundamento
neurofisiológico foi aparentemente abandonado. Não obstante - e é por esse
motivo que o “Projeto” é importante para os leitores de A Interpretação dos
Sonhos - grande parte do modelo geral do esquema anterior, assim como
muitos de seus elementos, foram transpostos para o novo esquema. Os sistemas de
neurônios foram substituídos por sistemas ou instâncias psíquicos; uma
“catexia” hipotética da energia psíquica tomou o lugar da “quantidade” física;
o princípio da inércia tornou-se a base do princípio do prazer (ou, como Freud
o denominou aqui, do princípio do desprazer). Além disso, alguns dos relatos
pormenorizados dos processos psíquicos apresentados no Capítulo VII muito devem
a seus precursores fisiológicos e podem ser compreendidos com mais facilidade
mediante referência a eles. Isso se aplica, por exemplo, à descrição do
armazenamento dos traços de memória nos “sistemas mnêmicos”, ao exame da
natureza dos desejos e das diferentes formas de satisfazê-los, e à ênfase dada
ao papel desempenhado pelos processos verbais de pensamento na adaptação às
exigências da realidade.
Tudo isso é amplamente suficiente para
justificar a asserção de Freud que a A Interpretação dos Sonhos “estava
concluída, em todos os seus aspectos essenciais, no começo de 1896”. Não
obstante, estamos agora em condições de acrescentar algumas ressalvas. Por
exemplo, a existência do complexo de Édipo só foi estabelecida no verão e
outono de 1897 (Cartas 64 a 71); e, embora isso não constituísse por si só uma
contribuição direta à teoria dos sonhos, mesmo assim desempenhou um papel
relevante ao ressaltar as raízes infantis dos desejos inconscientes
subjacentes aos sonhos. De importância teórica mais evidente foi a descoberta
da onipresença, nos sonhos, do desejo de dormir. Isso só foi anunciado por
Freud em 9 de junho de 1899 (Carta 108). Além disso, a primeira insinuação do
processo de “elaboração secundária” parece ter-se verificado numa carta de 7 de
julho de 1897 (Carta 66). A semelhança de estrutura entre os sonhos e os
sintomas neuróticos já fora assinalada, como vimos, no “Projeto” de 1895, e
houve alusões periódicas a ela até o outono de 1897. Curiosamente, contudo, daí
por diante parece ter caído no esquecimento, pois é anunciada em 3 de janeiro
de 1899 (Carta 101) como uma nova descoberta e como uma explicação da razão por
que o livro permanecera inacabado por tanto tempo.
A correspondência com Fliess permite-nos
acompanhar com alguns detalhes o processo efetivo de composição. A idéia de
escrever o livro é mencionada por Freud pela primeira vez em maio de 1897, mas
é rapidamente posta de lado, provavelmente porque seu interesse começara a
centralizar-se, naquela época, em sua auto-análise, que iria conduzi-lo,
durante o verão, à descoberta do complexo de Édipo. No fim do ano, o livro
foi retomado e, nos primeiros meses de 1898, um primeiro esboço de toda a obra
parece ter sido concluído, com exceção do primeiro capítulo. O trabalho no
livro foi paralisado em junho daquele ano e só foi reiniciado após as férias de
verão. Em 23 de outubro de 1898 (Carta 99), Freud escreve que o livro
“permanece estacionário, inalterado; não tenho nenhum motivo para prepará-lo
para publicação, e a lacuna na psicologia |isto é, o Capítulo VII|, bem como a
lacuna deixada pela eliminação do sonho modelar completamente analisado |cf.
parág. seguinte|, são entraves a sua conclusão que ainda não superei”.
Verificou-se uma pausa de longos meses, até que de repente, e como escreve o
próprio Freud, “sem nenhum motivo particular”, o livro começou a se movimentar
de novo em fins de maio de 1899. Daí por diante, continuou com rapidez. O
primeiro capítulo, versando sobre a literatura, que sempre fora um bicho-papão
para Freud, foi concluído em junho, sendo as primeiras páginas enviadas ao
tipógrafo. A revisão dos capítulos intermediários foi completada em fins de
agosto, e o último capítulo, sobre psicologia, foi inteiramente reescrito,
sendo as páginas finais despachadas no início de setembro.
Tanto o manuscrito como as provas eram
regularmente submetidos por Freud a Fliess para receberem sua apreciação
crítica. Fliess parece ter exercido considerável influência sobre a forma final
do livro e ter sido responsável pela omissão (evidentemente, por motivo de
discrição) da análise de um importante sonho do próprio Freud (cf. parágr.
ant.). Mas as críticas mais severas provieram do próprio autor e foram
dirigidas principalmente contra o estilo e a forma literária. “Creio”, escreveu
ele em 21 de setembro de 1899 (Carta 119), depois de terminado o livro, “que
minha autocrítica não era de todo injustificada. Oculto em alguma parte de mim,
também eu tenho senso fragmentário da forma, uma apreciação da beleza como uma
espécie de perfeição; e as frases complicadas de meu livro sobre os sonhos, apoiadas
em expressões indiretas e com visões oblíquas de seu conteúdo, ofenderam
gravemente algum ideal dentro de mim. E é difícil que eu esteja errado em
considerar essa falta de forma como sinal de um domínio incompleto do
material”.
Mas, apesar dessas autocríticas, e a despeito
da depressão que se seguiu ao desprezo quase total do livro pelo mundo exterior
- apenas 351 exemplares foram vendidos nos seis primeiros anos após a
publicação - A Interpretação dos Sonhos sempre foi considerada por Freud
como sua obra mais importante: “Um discernimento claro como esse”, como
escreveu em seu prefácio à terceira edição inglesa, “só acontece uma vez na
vida.”
(3) A
ATUAL EDIÇÃO INGLESA
Esta tradução se baseia na oitava edição alemã
(1930), a última a ser publicada durante a vida do autor. Ao mesmo tempo,
difere de todas as edições anteriores (tanto alemãs como inglesas) num aspecto
importante, pois tem a natureza de uma edição “Variorum”. Envidaram-se
esforços para indicar, com datas, todas as alterações substanciais introduzidas
no livro, desde sua primeira edição. Sempre que se abandonou algum material ou
que este foi muito modificado em edições posteriores, o trecho cancelado ou a
versão mais antiga é apresentado numa nota de rodapé. A única exceção é que os
dois apêndices de Rank ao Capítulo VI foram omitidos. A questão de sua inclusão
foi seriamente considerada, mas resolveu-se não fazê-la. Os ensaios são
inteiramente autônomos e não guardam nenhuma relação direta com o livro de
Freud; teriam ocupado mais ou menos outras 50 páginas, e particularmente para
os leitores de língua inglesa, não esclareceriam nada, visto tratarem
principalmente da literatura e mitologia germânicas.
As bibliografias foram refundidas por completo.
A primeira delas contém uma lista de todas as obras realmente citadas no texto
ou nas notas de rodapé. Essa bibliografia foi também disposta para servir de
Índice de Autores. A segunda bibliografia encerra todas as obras da lista alemã
pré-1900 não efetivamente citadas por Freud. Pareceu que valia a pena
imprimi-la, visto não ser acessível com facilidade nenhuma outra bibliografia
comparavelmente completa da literatura mais antiga sobre os sonhos. Os textos posteriores
a 1900, salvo pelos realmente citados e, por conseguinte, incluídos na primeira
bibliografia, não foram levados em consideração. Deve-se, contudo, fazer uma
advertência no tocante a ambas as minhas listas. Uma pesquisa demonstrou uma
proporção muito elevada de erros nas bibliografias alemãs.
Estes foram corrigidos sempre que possível, mas
um número considerável de verbetes revelou-se impossível de localizar em
Londres, e estes (que são distinguidos por um asterisco) devem ser considerados
suspeitos.
Os acréscimos feitos pelo editor vêm entre
colchetes. Muitos leitores, sem dúvida, ficarão irritados com o número de
referências e outras notas explicativas. As referências, contudo, dizem
respeito essencialmente aos escritos do próprio Freud, encontrando-se um número
muito reduzido em relação a outros autores (afora, naturalmente, as referências
feitas pelo próprio Freud). Seja como for, deve-se encarar o fato de que A
Interpretação dos Sonhos constitui um dos grandes clássicos da literatura
científica e de que o tempo veio considerá-la como tal. O editor espera e
acredita que as referências, e mais particularmente as remissões a outras
partes da própria obra, possam realmente tornar mais fácil aos verdadeiros
estudiosos acompanhar os pontos intrincados do material. Os leitores em busca
de mero entretenimento - se é que existem - devem revestir-se da firme
determinação de desprezar esses parênteses.
Cabe acrescentar algumas palavras sobre a
própria tradução. Grande atenção teve que ser dispensada, é claro, aos
pormenores da redação do texto dos sonhos. Nos casos em que a tradução inglesa
se afigura inusitadamente rígida ao leitor, ele pode presumir que a rigidez foi
imposta por alguma exigência verbal determinada pela interpretação que virá a
seguir. Quando há incoerências entre diferentes versões do texto do mesmo
sonho, ele pode presumir que há incoerências paralelas no original. Essas
dificuldades verbais culminam nos exemplos bastante freqüentes em que uma
interpretação depende inteiramente de um trocadilho. Existem três métodos de
lidar com tais situações. O tradutor pode omitir o sonho por completo, ou
substituí-lo por outro sonho paralelo, quer derivado de sua própria
experiência, quer inventado ad hoc. Esses dois métodos foram adotados em
caráter predominante nas primeiras traduções do livro. Mas há sérias objeções
contra eles. Devemos lembrar, mais uma vez, que estamos lidando com um clássico
científico. O que queremos conhecer são os exemplos escolhidos por Freud - e
não outrem. Conseqüentemente, esta tradução adotou a pedante e cansativa
terceira alternativa de manter o trocadilho alemão original, explicando-o
trabalhosamente entre colchetes ou numa nota de rodapé. Qualquer graça que se
pudesse extrair dele se evapora por completo nesse processo. Mas esse,
infelizmente, é um sacrifício que tem de ser feito.
Na cansativa tarefa de leitura das provas
tipográficas recebeu-se a ajuda generosa (entre outros) da Sra. R. S. Partridge
e do Dr. C. F. Rycroft. A Sra.Partridge é também em grande parte responsável
pelo índice alfabético. A revisão das bibliografias esteve predominantemente a
cargo do Sr. G. Talland.
Finalmente, o editor deseja expressar seus
agradecimentos ao Dr. Ernest Jones por sua constante orientação e estímulo.
Poder-se-á constatar que o primeiro volume de sua biografia de Freud lança
inestimável luz sobre os antecedentes desta obra como um todo, bem como sobre
muitos de seus pormenores.
Prefácio
Tentei neste volume fornecer uma explicação da
interpretação dos sonhos e, ao fazê-lo, creio não ter ultrapassado a esfera de
interesse abrangida pela neuropatologia. Pois a pesquisa psicológica mostra que
o sonho é o primeiro membro de uma classe de fenômenos psíquicos anormais, da
qual outros membros, como as fobias histéricas, as obsessões e os delírios,
estão fadados, por motivos práticos, a constituir um tema de interesse para os
médicos. Como se verá a seguir, os sonhos não podem fazer nenhuma reivindicação
semelhante de importância prática, mas seu valor teórico como paradigma, é por
outro lado, proporcionalmente maior. Quem quer que tenha falhado em explicar a
origem das imagens oníricas dificilmente poderá esperar compreender as fobias,
obsessões ou delírios, ou fazer com que uma influência terapêutica se faça
sentir sobre eles.
Mas a mesma correlação que responde pela
importância do assunto deve também ser responsabilizada pelas deficiências
desta obra. Os encadeamentos rompidos que com tanta freqüência interrompem
minha apresentação nada mais são do que os numerosos pontos de contato entre o
problema da formação dos sonhos e os problemas mais abrangentes da
psicopatologia. Estes não podem ser tratados aqui, mas, se o tempo e as forças
o permitirem e houver mais material à disposição, eles serão objeto de
comunicações posteriores.
As dificuldades de apresentação foram
aumentadas ainda mais pelas peculiaridades do material que tive de utilizar
para ilustrar a interpretação de sonhos. Tornar-se-á claro, no decorrer da
própria obra, o motivo por que nenhum dos sonhos já relatados na literatura do assunto
ou coligidos de fontes desconhecidas poderia ter qualquer serventia para meus
propósitos. Os únicos sonhos dentre os quais pude escolher foram os meus e os
de meus pacientes em tratamento psicanalítico. Mas fui impedido de utilizar o
segundo material pelo fato de que, nesse caso, os processos oníricos estavam
sujeitos a uma compilação indesejável, em vista da presença adicional de
características neuróticas. Mas, se quisesse relatar meus próprios sonhos, a
conseqüência inevitável é que eu teria de revelar ao público maior número de
aspectos íntimos de minha vida mental do que gostaria, ou do que é normalmente
necessário para qualquer escritor que seja um homem de ciência e não um poeta.
Tal foi a penosa mas inevitável exigência, e me submeti a ela para não
abandonar por completo a possibilidade de fornecer a comprovação de minhas
descobertas psicológicas. Naturalmente, contudo, não pude resistir à tentação
de aparar as arestas de algumas de minhasindiscrições por meio de omissões e
substituições. Sempre que isso aconteceu, porém, o valor de meus exemplos se
viu drasticamente reduzido. Posso apenas manifestar a esperança de que os
leitores deste livro se coloquem em minha difícil posição e me tratem com
indulgência, e, além disso, que qualquer um que encontre alguma espécie de
referência a si próprio em meus sonhos se disponha a conceder-me o direito à
liberdade de pensamento - ao menos em minha vida onírica, se não em qualquer
outra área.
Capítulo I - A LITERATURA CIENTÍFICA QUE TRATA DOS PROBLEMAS DOS
SONHOS
Nas páginas que seguem, apresentarei provas de
que existe uma técnica psicológica que torna possível interpretar os sonhos, e
que, quando esse procedimento é empregado, todo sonho se revela como uma
estrutura psíquica que tem um sentido e pode ser inserida num ponto designável
nas atividades mentais da vida de vigília. Esforçar-me-ei ainda por elucidar os
processos a que se devem a estranheza e a obscuridade dos sonhos e por deduzir
desses processos a natureza das forças psíquicas por cuja ação concomitante ou
mutuamente oposta os sonhos são gerados. A essa altura, minha descrição se
interromperá, pois terá atingido um ponto em que o problema dos sonhos se funde
com problemas mais abrangentes cuja solução deve ser abordada com base num
material de outra natureza.
Apresentarei, à guisa de prefácio, uma revisão
do trabalho empreendido por autores anteriores sobre o assunto, bem como a
posição atual dos problemas dos sonhos no mundo da ciência, visto que, no curso
de meu exame, não terei muitas ocasiões de voltar a esses tópicos. Pois, apesar
de muitos milhares de anos de esforço, a compreensão científica dos sonhos
progrediu muito pouco - fato tão genericamente aceito na literatura que parece
desnecessário citar exemplos para confirmá-lo. Nesses escritos, dos quais
consta uma relação ao final de minha obra, encontram-se muitas observações
estimulantes e uma boa quantidade de material interessante relacionado com
nosso tema, porém pouco ou nada que aborde a natureza essencial dos sonhos ou
ofereça uma solução final para qualquer de seus enigmas. E menos ainda, é
claro, passou para o conhecimento dos leigos estudiosos.
Talvez se possa indagar qual terá sido o
ponto de vista adotado em relação aos sonhos pelas raças primitivas dos homens
e que efeito os sonhos teriam exercido na formação de suas concepções do mundo
e da alma; e esse é um assunto de tão grande interesse que só com extrema
relutância meabstenho de abordá-lo nesse sentido. Devo encaminhar meus leitores
às obras-padrão de Sir John Lubbock, Herbert Spencer, E. B. Tylor e
outros, e acrescentarei apenas que só poderemos apreciar a ampla gama desses
problemas e especulações quando tivermos tratado da tarefa que aqui se coloca
diante de nós - a interpretação dos sonhos.
A visão pré-histórica dos sonhos sem dúvida
ecoou na atitude adotada para com os sonhos pelos povos da Antiguidade clássica. Eles aceitavam como
axiomático que os sonhos estavam relacionados com o mundo dos seres
sobre-humanos nos quais acreditavam, e que constituíam revelações de deuses e
demônios. Não havia dúvida, além disso, de que, para aquele que sonhava, os
sonhos tinham uma finalidade importante, que era, via de regra, predizer o
futuro. A extraordinária variedade no conteúdo dos sonhos e na impressão que
produziam dificultava, todavia, ter deles qualquer visão uniforme, e tornava
necessário classificá-los em numerosos grupos e subdivisões conforme sua
importância e fidedignidade. A posição adotada perante os sonhos por filósofos
isolados na Antiguidade dependia, naturalmente, até certo ponto, da atitude
destes em relação à adivinhação em geral.
Nas duas obras de Aristóteles que versam sobre
os sonhos, ele já se tornaram objeto de estudo psicológico. Informam-nos as
referidas obras que os sonhos não são enviados pelos deuses e não são de
natureza divina, mas que são “demoníacos”, visto que a natureza é “demoníaca”,
e não divina. Os sonhos, em outras palavras, não decorrem de manifestações
sobrenaturais, mas seguem as leis do espírito humano, embora este, é verdade,
seja afim do divino. Definem-se os sonhos como a atividade mental de quem
dorme, na medida em que esteja adormecido.
Aristóteles estava ciente de algumas
características da vida onírica. Sabia, por exemplo, que os sonhos dão uma
construção ampliada aos pequenos estímulos que surgem durante o sono. “Os
homens pensam estar caminhando no meio do fogo e sentem um calor enorme, quando
há apenas um pequeno aquecimento em certas partes.” E dessa
circunstância infere ele a conclusão de que os sonhos podem muito bem revelar a
um médico os primeiros sinais de alguma alteração corporal que não tenha sido
observada na vigília.
Antes da época de Aristóteles, como sabemos, os
antigos consideravam os sonho não como um produto da mente que sonhava, mas
como algo introduzido por uma instância divina; e, já então, as duas correntes
antagônicas que iremos encontrar influenciando as opiniões sobre a vida onírica
em todos os períodos da história se faziam sentir. Traçou-se a distinção entre
os sonhos verdadeiros e válidos, enviados ao indivíduo adormecido para
adverti-lo ou predizer-lhe o futuro, e os sonhos vãos, falazes e destituídos de
valor, cuja finalidade era desorientá-lo ou destruí-lo.
Gruppe (1906, 2, 390) cita uma classificação
dos sonhos, de Macrobius e Artemidorus [de Daldil (ver em [1])],
seguindo essa orientação “Os sonhos eram divididos em duas classes. Supunha-se
que uma classe fosse influenciada pelo presente ou pelo passado, mas sem nenhum
significado futuro. Abrangia o enunia ou insomnia, que reproduzia
diretamente uma certa representação ou o seu oposto - por exemplo, de fome ou
sua saciação -, e o jantsmata, que emprestava uma extensão fantástica à
representação - por exemplo, o pesadelo ou ephialtes. A outra classe, ao
contrário, supostamente determinava o futuro. Abrangia (1) profecias diretas
recebidas num sonho (o crhmatismV ou oraculum), (2) previsões de algum
evento futuro (o rama ou visio), e (3) sonhos simbólicos, que precisavam
de interpretação (o neiroV ou somnium). Essa teoria persistiu durante
muitos séculos.”
Essa variação no valor que se deveria atribuir
aos sonhos estava intimamente relacionada com o problema de
“interpretá-los”. Em geral, esperavam-se importantes conseqüências dos sonhos.
Mas nem todos eles eram imediatamente compreensíveis, e era impossível dizer se
um sonho inteligível em particular não estaria fazendo alguma comunicação
importante. Isso proporcionou o incentivo para que se elaborasse um método
mediante o qual o conteúdo ininteligível de um sonho pudesse ser substituído
por outrocompreensível e significativo. Nos últimos anos da Antiguidade,
Artemidorus de Daldis foi considerado a maior autoridade na interpretação dos
sonhos, e a sobrevivência de sua obra exaustiva [Oneirocritica] deve
compensar-nos pela perda dos outros escritos sobre o mesmo assunto.
A visão pré-científica dos sonhos adotada pelos
povos da Antigüidade estava, por certo, em completa harmonia com sua visão do
universo em geral, que os levou a projetar no mundo exterior, como se fossem
realidades, coisas que de fato só gozavam de realidade dentro de suas próprias
mentes. Além disso, seu ponto de vista sobre os sonhos levava em conta a
principal impressão produzida na mente desperta, pela manhã, pelo que resta de
um sonho na memória: uma impressão de algo estranho, advindo de outro mundo e
contrastando com os demais conteúdos da mente. A propósito, seria um erro supor
que a teoria da origem sobrenatural dos sonhos está desprovida de defensores em
nossos próprios dias. Podemos deixar de lado os escritores carolas e místicos,
que de fato estão perfeitamente justificados em permanecerem ocupados com o que
restou do outrora amplo domínio do sobrenatural enquanto esse campo não é
conquistado pela explicação científica. Mas, além deles, depara-se com homens
de visão esclarecida, sem quaisquer idéias extravagantes, que procuram apoiar
sua fé religiosa na existência e na atividade de forças espirituais
sobre-humanas precisamente pela natureza inexplicável dos fenômenos dos sonhos.
(Cf. Haffner, 1887.) A alta estima em que é tida a vida onírica por algumas
escolas de filosofia (pelos seguidores de Schelling, por exemplo) é
nitidamente um eco da natureza divina dos sonhos que era incontestada na
Antiguidade. Tampouco chegaram ao fim os debates acerca do caráter premonitório
dos sonhos e de seu poder de predizer o futuro, pois as tentativas de dar uma
explicação psicológica têm sidoinsuficientes para cobrir o material coletado,
por mais decididamente que as simpatias dos que são dotados de espírito
científico se inclinem contra a aceitação de tais crenças.
É difícil escrever uma história do estudo
científico dos problemas dos sonhos porque, por mais valioso que tenha sido
esse estudo em alguns pontos, não se pode traçar nenhuma linha de progresso em
qualquer direção específica. Não se lançou nenhum fundamento de descobertas
seguras no qual um pesquisador posterior pudesse edificar algo; ao contrário,
cada novo autor examina os mesmos problemas de novo e recomeça, por assim
dizer, do início. Se eu tentasse relacionar em ordem cronológica aqueles que têm
escrito sobre o assunto e apresentasse um sumário de seus pontos de vista sobre
os problemas dos sonhos, teria de abandonar qualquer esperança de apresentar um
quadro geral abrangente do atual estado dos conhecimentos sobre o assunto.
Optei, portanto, por estruturar meu relato de acordo com tópicos, e não com
autores, e à medida que for levantando cada problema relacionado com o sonho,
apresentarei qualquer material que a literatura contenha para sua solução.
Visto, contudo, ter-me sido impossível englobar
toda a literatura sobre o tema, amplamente dispersa como é e invadindo muitos
outros campos, sou compelido a pedir a meus leitores que se dêem por
satisfeitos desde que nenhum fato fundamental ou ponto de vista importante seja
deixado de lado em minha descrição.
Até pouco tempo atrás, a maioria dos autores
que escreviam sobre o assunto sentia-se obrigada a tratar o sono e os sonhos
como um tópico único, e em geral abordava, além disso, condições análogas
fronteiriças à patologia e estados semelhantes aos sonhos, como as alucinações,
visões etc. As últimas obras, pelo contrário, mostram preferência por um tema
restrito e tomam por objeto, talvez, alguma questão isolada no campo da vida
onírica. Agradar-me-ia ver nessa mudança de atitude a expressão de uma convicção
de que, nessas questões obscuras, só será possível chegar a explicações e
resultados sobre os quais haja acordo mediante uma série de investigações
pormenorizadas. Uma pesquisa detalhada desse tipo, predominantemente
psicológica por natureza, é tudo o que tenho a oferecer nestas páginas. Tive
poucas oportunidades de lidar com o problema do sono, posto que esse é
essencialmente um problema da fisiologia, muito embora uma das características
do estado de sono deva ser a de promover modificações nas condições de
funcionamento do aparelho mental. A literatura sobre o tema do sono,
conseqüentemente, não é considerada adiante.
As questões levantadas por uma indagação
científica sobre os fenômenos dos sonhos como tais podem ser agrupadas sob as
epígrafes que se seguem, embora não se possa evitar certa dose de superposição.
(A) A RELAÇÃO DOS SONHOS COM A
VIDA DE VIGÍLIA
O julgamento simplista de vigília feito por
alguém que tenha acabado de acordar presume que seus sonhos, mesmo que não
tenham eles próprios vindo de outro mundo, ao menos o haviam transportado para
outro mundo. O velho fisiólogo Burdach (1838, 499), a quem devemos um relato
cuidadoso e sagaz dos fenômenos dos sonhos, expressou essa convicção num trecho
muito citado: “Nos sonhos, a vida cotidiana, com suas dores e seus prazeres,
suas alegrias e mágoas, jamais se repete. Pelo contrário, os sonhos têm como
objetivo verdadeiro libertar-nos dela. Mesmo quando toda a nossa mente está
repleta de algo, quando estamos dilacerados por alguma tristeza profunda, ou
quando todo o nosso poder intelectual se acha absorvido por algum problema, o
sonho nada mais faz do que entrar em sintonia com nosso estado de espírito e
representar a realidade em símbolos.” I. H. Fichte (1864, 1, 541), no mesmo
sentido, fala efetivamente em “sonhos complementares” e os descreve como um dos
benefícios secretos da natureza autocurativa do espírito. Strümpell (1877,
16) escreve um sentido semelhante em seu estudo sobre a natureza e origem dos
sonhos - uma obra ampla e merecidamente tida em alta estima: “O homem que sonha
fica afastado do mundo da consciência de vigília.” E também (ibid., 17): “Nos
sonhos, nossa recordação do conteúdo ordenado da consciência de vigília e de
seu comportamento normal vale tanto como se estivesse inteiramente perdido.” E
de novo (ibid., 19) escreve que “a mente é isolada, nos sonhos, quase sem
memória, do conteúdo e assuntos comuns da vida de vigília”.
A grande maioria dos autores, contudo, assume
um ponto de vista contrário quanto à relação entre os sonhos e a vida de
vigília. Assim, diz Haffner (1887, 245): “Em primeiro lugar, os sonhos dão
prosseguimento à vida de vigília. Nossos sonhos se associam regularmente às
representações que estiveram em nossa consciência pouco antes. A observação
acurada quase sempre encontra um fio que liga o sonho às experiências da
véspera.” Weygandt (1893, 6) contradiz especificamente o enunciado de Burdach
que acabo de citar: “Pois muitas vezes, e aparentemente na maioria dos sonhos,
pode-se observar que eles de fato nos levam de volta à vida comum, em vez de
libertar-nos dela.” Maury (1878, 51) apresenta uma fórmula concisa:“Nous
rêvons de ce que nous avons vu, dit, désiré ou fait”; enquanto Jessen, em
seu livro sobre psicologia (1855, 530), observa mais extensamente: “O conteúdo
de um sonho é, invariavelmente, mais ou menos determinado pela personalidade
individual daquele que sonha, por sua idade, sexo, classe, padrão de educação e
estilo de vida habitual, e pelos fatos e experiências de toda a sua vida
pregressa.”
A atitude menos comprometedora sobre esta questão
é adotada por J. G. E. Maass, o filósofo (1805, [1, 168 e 173]), citado por
Winterstein (1912): “A experiência confirma nossa visão de que sonhamos com
maior freqüência com as coisas em que se centralizam nossas mais vivas paixões.
E isso mostra que nossas paixões devem ter influência na formação de nossos
sonhos. O homem ambicioso sonha com os lauréis que conquistou (ou imagina ter
conquistado) ou com aqueles que ainda tem de conquistar: já o apaixonado se ocupa,
em seus sonhos, com o objeto de suas doces esperanças… Todos os desejos e
aversões sensuais adormecidos no coração podem, se algo os puser em movimento,
fazer com que o sonho brote das representações que estão associadas com eles,
ou fazer com que essas representações intervenham num sonho já presente.”
A mesma concepção foi adotada na Antigüidade
quanto à dependência do conteúdo dos sonhos em relação à vida de vigília.
Radestock (1879, 134) relata-nos como, antes de iniciar sua expedição contra a
Grécia, Xerxes recebeu judiciosos conselhos de natureza desencorajadora, mas
foi sempre impelido por seus sonhos a prosseguir, ao que Artabanus, o velho e
sensato intérprete persa dos sonhos, observou-lhe pertinentemente que, via de
regra, os quadros oníricos contêm aquilo que o homem em estado de vigília já
pensa.
O poema didático de Lucrécio, De rerum
natura, encerra o seguinte trecho (IV, 962):
Et quo quisque fere studio devinctus
adhaeretaut quibus in rebus multum sumus ante moratiatque in ea ratione fuit contenta
magis mens,in somnis eadem plerumque videmur obire;causidici causas agere et
componere leges,induperatores pugnare ac proelia obire…
Cícero (De divinatione, II, lxvii, 140)
escreve exatamente no mesmo sentido que Maury tantos anos depois: “Maximeque
reliquiae rerum earum moventur in animis et agitantur de quibus vigilantes aut
cogitavimus aut egimus.”
A contradição entre esses dois pontos de vista
sobre a relação entre vida onírica e vida de vigília parece de fato insolúvel.
É portanto relevante, nesta altura, relembrar o exame do assunto por
Hildebrandt (1875, 8 e segs.), que acredita ser completamente impossível
descrever as características dos sonhos, salvo por meio de “uma série de [três]
contrastes que parecem acentuar-se em contradições”. “O primeiro desses
contrastes”, escreve ele, “é proporcionado, por um lado, pela completude com
que os sonhos são isolados e separados da vida real e atual, e, por outro, por
sua constante interpretação e por sua constante dependência mútua. O sonho é
algo completamente isolado da realidade experimentada na vida de vigília, algo,
como se poderia dizer, como uma existência hermeticamente fechada e toda
própria, e separada da vida real por um abismo intransponível. Ele nos liberta
da realidade, extingue nossa lembrança normal dela, e nos situa em outro mundo
e numa história de vida inteiramente diversa, que, em essência, nada tem a ver
com a nossa história real…” Hildebrandt prossegue demonstrando como, ao
adormecermos, todo o nosso ser, com todas as suas formas de existência,
“desaparece, por assim dizer, por um alçapão invisível”. Então, talvez o
sonhador empreenda uma viagem marítima até Santa Helena para oferecer a
Napoleão, que ali se encontra prisioneiro, uma barganha primorosa em vinhos da
Mosela. É recebido com extrema afabilidade pelo ex-imperador e chega quase a
lamentar-se quando acorda e sua curiosa ilusão é destruída. Mas, comparemos a
situação do sonho, prossegue Hildebrandt, com a realidade. O sonhador nunca foi
negociante de vinhos, nem jamais desejou sê-lo. Nunca fez uma viagem marítima
e, se o fizesse, Santa Helena seria o último lugar do mundo que escolheria para
visitar. Não nutre quaisquer sentimentos de simpatia para com Napoleão, mas, ao
contrário, um violento ódio patriótico. E, além disso tudo, nem sequer era
nascido quando Napoleão morreuna ilha, de modo que ter quaisquer relações
pessoais com ele estaria além dos limites da possibilidade. Assim, a
experiência onírica parece algo estranho, inserido entre duas partes da vida
perfeitamente contínuas e compatíveis entre si.
“E contudo”, continua Hildebrandt [ibid., 10],
“o que parece ser o contrário disso é igualmente verdadeiro e correto. Apesar
de tudo, o mais íntimo dos relacionamentos caminha de mãos dadas, creio eu, com
o isolamento e a separação. Podemos mesmo chegar a dizer que o que quer que os
sonhos ofereçam, seu material é retirado da realidade e da vida intelectual que
gira em torno dessa realidade… Quaisquer que sejam os estranhos resultados que
atinjam, eles nunca podem de fato libertar-se do mundo real; e tanto suas
estruturas mais sublimes como também as mais ridículas devem sempre tomar de
empréstimo seu material básico, seja do que ocorreu perante nossos olhos no
mundo dos sentidos, seja do que já encontrou lugar em algum ponto do curso de
nossos pensamentos de vigília - em outras palavras, do que já experimentamos,
externa ou internamente.
(B) O MATERIAL DOS SONHOS - A MEMÓRIA NOS
SONHOS
Todo o material que compõe o conteúdo de um
sonho é derivado, de algum modo, da experiência, ou seja, foi reproduzido ou
lembrado no sonho - ao menos isso podemos considerar como fato indiscutível.
Mas seria um erro supor que uma ligação dessa natureza entre o conteúdo de um
sonho e a realidade esteja destinada a vir à luz facilmente, como resultado
imediato da comparação entre ambos. A ligação exige, pelo contrário, ser
diligentemente procurada, e em inúmeros casos pode permanecer oculta por muito
tempo. A razão disso está em diversas peculiaridades exibidas pela faculdade da
memória nos sonhos, e que, embora geralmente observadas, até hoje têm resistido
à explicação. Vale a pena examinar essas características mais de perto.
É possível que surja, no conteúdo de um sonho,
um material que, no estado de vigília, não reconheçamos como parte de nosso
conhecimento ou nossa experiência. Lembramo-nos, naturalmente, de ter sonhado
com a coisa em questão, mas não conseguimos lembrar se ou quando a
experimentamos na vida real. Ficamos assim em dúvida quanto à fonte a que
recorreu o sonho e sentimo-nos tentados a crer que os sonhos possuem uma
capacidade de produção independente. Então, finalmente, muitas vezes após um
longo intervalo, alguma nova experiência relembra a recordação perdida do outro
acontecimento e, ao mesmo tempo, revela a fonte de sonho. Somos assim levados a
admitir que, no sonho, sabíamos e nos recordávamos de algo que estava além do
alcance de nossa memória de vigília.
Um exemplo particularmente impressionante disso
é fornecido por Delboeuf [1885, [1]], extraído de sua própria experiência. Viu
ele num sonho o quintal de sua casa, coberto de neve, e sob ela encontrou dois
pequenos lagartos semicongelados e enterrados. Sendo muito afeiçoado aos
animais, apanhou-os, aqueceu-os e os levou de volta para o pequeno buraco que
ocupavam na alvenaria. Deu-lhes ainda algumas folhas de uma pequena samambaia
que crescia no muro, as quais, como sabia, eles muito apreciavam.No sonho, ele
conhecia o nome da planta: Asplenium ruta muralis. O sonho prosseguiu e,
após uma digressão, voltou aos lagartos. Deboeuf viu então, para sua surpresa,
dois outros lagartos que se ocupavam dos restos da samambaia. Depois, olhou ao
redor e viu um quinto e a seguir um sexto lagarto, que se dirijam para o buraco
no muro, até que toda a estrada fervilhava com uma procissão de lagartos, todos
se movimentando na mesma direção… e assim por diante.
Quando desperto, Delboeuf sabia os nomes em
latim de pouquíssimas plantas, e Asplenium não estava entre eles. Para
sua grande surpresa, pôde confirmar o fato de que realmente existe uma
samambaia com esse nome. Sua denominação correta é Asplenium ruta muraria,
que fora ligeiramente deturpada no sonho. Isso dificilmente poderia ser uma
coincidência; e, para Delboeuf, continuou a ser um mistério o modo como viera a
conhecer o nome “Asplenium” no sonho.
O sonho ocorreu em 1862. Dezesseis anos depois,
quando o filósofo visitava um de seus amigos, viu um pequeno álbum de flores
prensadas, do tipo dos que são vendidos aos estrangeiros como lembrança em
algumas partes da Suíça. Começou então a recordar-se de algo - abriu o
herbário, encontrou a Asplenium de seu sonho e viu o nome em latim,
escrito por seu próprio punho, abaixo da flor. Os fatos podiam agora ser
verificados. Em 1860 (dois anos antes do sonhos com os lagartos), uma irmã
desse mesmo amigo, em viagem de lua-de-mel, fizera uma visita a Delboeuf.
Trazia consigo o álbum, que seria um presente dela ao irmão, e Delboeuf deu-se
ao trabalho de escrever sob cada planta seca o nome em latim, ditado por um
botânico.
Um feliz acaso, que tornou esse exemplo tão
digno de ser recordado, permitiu a Delboeuf reconstruir mais uma parte do
conteúdo do sonho até sua fonte esquecida. Um belo dia, em 1877, aconteceu-lhe
pegar um velho volume de um periódico ilustrado, e nele encontrar uma
fotografia de toda a procissão de lagartos com que sonhara em 1862. O volume
trazia a data de 1861, e Delboeuf se lembrava de ter sido assinante da
publicação desde seu primeiro número.
O fato de os sonhos terem sob seu comando
lembranças que são inacessíveis na vida de vigília é tão notável, e de tal
importância teórica, que eu gostaria de chamar ainda mais atenção para ele,
relatando mais alguns sonhos “hipermnésicos”. Maury [1878, 142] conta-nos como,
por algum tempo, a palavra “Mussidan” surgia e ressurgia em sua mente durante o
dia. Nada sabia a respeito dela, a não ser que era o nome de uma pequena cidade
da França. Certa noite, sonhou que conversava com alguém que lhe dizia tervindo
de Mussidan, e que, ao lhe perguntarem onde ficava isso, respondia ser uma
pequena cidade do Departamento de Dordogne. Ao acordar, Maury não nutria
nenhuma crença na informação que lhe fora transmitida no sonho; soube por um
jornaleiro, contudo, que era perfeitamente correta. Nesse caso, a realidade do
conhecimento superior do sonho foi confirmada, mas não se descobriu a fonte
esquecida desse conhecimento.
Jessen (1855, 551) relata um fato muito
semelhante num sonho datado de época mais remota: “A essa classe pertence,
entre outros, um sonho do velho Scaliger (citado por Hennings, 1874, 300), que
escreveu um poema em louvor dos famosos homens de Verona. Um homem chamado
Brugnolus apareceu-lhe num sonho e se queixou de ter sido desprezado. Embora
Scaliger não conseguisse lembrar-se de jamais ter ouvido falar dele, escreveu
alguns versos a seu respeito. Seu filho soube posteriormente, em Verona, que
alguém chamado Brugnolus de fato fora ali famoso como crítico.”
O Marquês d’Hervey de St. Denys [1867, 305], citado por Vaschide
(1911, 23 e seg.), descreve um sonho hipermnésico que possui uma peculiaridade
especial, pois foi seguido de outro que completou o reconhecimento do que, a
princípio, foi lembrança não identificada: “Certa feita, sonhei com uma jovem
de cabelos dourados, a quem vi conversando com minha irmã enquanto lhe mostrava
um bordado. Ela me pareceu muito familiar no sonho e pensei já tê-la visto
muitas vezes. Depois que acordei, ainda tinha seu rosto muito nitidamente
diante de mim, mas era totalmente incapaz de reconhecê-lo. Voltei a dormir e o
quadro onírico se repetiu… Mas, nesse segundo sonho, falei com a dama de
cabelos louros e perguntei-lhe se já não tivera o prazer de conhecê-la antes,
em algum lugar. ‘Naturalmente’, respondeu ela, ‘não se lembra da plage
em Pornic?’ Despertei imediatamente e pude então recordar-me com clareza de
todos os pormenores associados com a atraente visão do sonho.”
O mesmo autor [ibid., 306] (também citado por
Vaschide, ibid., 233-4) conta como o músico seu conhecido ouviu num sonho,
certa vez, uma melodia que lhe pareceu inteiramente nova. Só muitos anos depois
foi que ele encontrou a mesma melodia numa velha coleção de peças musicais,
embora ainda assim não pudesse recordar-se de tê-la examinado algum dia.
Sei que Myers [1892] publicou toda uma
coletânea de sonhos hipermnésicos dessa natureza nas Atas da Sociedade de
Pesquisas Psíquicas, mas, infelizmente, não tenho acesso a elas.Ninguém que se
ocupe de sonhos pode, creio eu, deixar de descobrir que é fato muito comum um
sonho dar mostras de conhecimentos e lembranças que o sujeito, em estado de
vigília, não está ciente de possuir. Em meu trabalho psicanalítico com
pacientes nervosos, do qual falarei mais adiante, tenho condições, várias vezes
por semana, de provar aos pacientes, com base em seus sonhos, que eles de fato
estão bem familiarizados com citações, palavras obscenas etc., e que as
utilizam em seus sonhos, embora tenham-nas esquecido em sua vida de vigília.
Acrescentei mais um caso inocente de hipermnésia num sonho, em vista de grande
facilidade com que foi possível descobrir a fonte do conhecimento acessível
apenas no sonho.
Um de meus pacientes, no decurso de um sonho
bastante prolongado, sonhou que pedira um “Kontuszówka” quando se
encontrava num café. Depois de me dizer isso, perguntou-me o que era um “Kontuszówka”,
pois nunca ouvira esse nome. Pude responder-lhe que se tratava de um licor
polonês e que ele não poderia ter inventado esse nome, que há muito me era
familiar pelos anúncios afixados nos tapumes. De início, ele não me quis dar
crédito, mas, alguns dias depois, após concretizar seu sonho num café, notou o
nome num tapume na esquina de uma rua pela qual devia ter passado pelo menos
duas vezes ao dia durante vários meses.
Eu mesmo tenho observado, em relação a
meu próprio sonho, o quanto é uma questão de acaso descobrir-se ou não a fonte
dos elementos específicos de um sonho. Assim é que, durante anos, antes de
concluir este livro, fui perseguido pela imagem de uma torre de igreja de
desenho muito simples, que eu não lembrava ter visto jamais. E então, de
súbito, reconheci-a com absoluta certeza numa pequena estação da linha férrea
entre Salzburgo e Reichenhall. Isso ocorreu na segunda metade da década de
1890, e eu viajara naquela linha pela primeira vez em 1896. Em anos a freqüente
repetição, em meus sonhos, da imagem de determinado lugar de aparência
inusitada tornou-se para mim um verdadeiro incômodo. Numa relação especial
específica comigo, à minha esquerda, eu via um espaço escuro onde reluziam
diversas figuras grotescas de arenito. Uma vaga lembrança à qual eu não queria
dar crédito dizia-me tratar-se da entrada de uma cervejaria. Mas não consegui
descobrir nem o significado do quadro onírico nem sua origem. Em 1907,
ocorreu-me estar em Pádua, que, lamentavelmente, eu não pudera visitar desde
1895. Minha primeira visita àquela encantadora cidade universitária fora uma
decepção, pois eunão pudera ver os afrescos de Giotto na Madonna dell’Arena.
Voltara a meio caminho da rua que leva até lá ao ser informado de que a capela
estava fechada naquele dia. Em minha segunda visita, doze anos depois, resolvi
compensar isso, e a primeira coisa que fiz foi encaminhar-me para a capela da
Arena. Na rua que conduz a ela, à minha esquerda e, com toda probabilidade, no
ponto do qual retornara em 1895, deparei com o lugar que tantas vezes vira em
meus sonhos, com as figuras de arenito que faziam parte dele. Era, de fato, o
acesso ao jardim de um restaurante.
Uma das fontes de onde os sonhos retiram
material para reprodução - material que, em parte, não é nem recordado nem
utilizado nas atividades do pensamento de vigília - é a experiência da
infância. Citarei apenas alguns dos autores que observaram e ressaltaram esse
fato.
Hildebrandt (1875, 23): “Já admiti
expressamente que os sonhos às vezes trazem de volta a nossas mentes, com um
maravilhoso poder de reprodução, fatos muito remotos e até mesmo esquecidos de
nosso primeiros anos de vida.”
Strümpell (1877, 40): “A posição é ainda mais
notável quando observamos como os sonhos por vezes trazem à luz, por assim
dizer, das mais profundas pilhas de destroços sob as quais as primeiras
experiências da meninice são soterradas em épocas posteriores, imagens de
localidades, coisas ou pessoas específicas, inteiramente intactas e com todo o
seu viço original. Isso não se limita às experiências que criaram uma viva
impressão quando ocorreram, ou que desfrutam de alto grau de importância
psíquica e retornaram depois, num sonho, como autênticas lembranças com as
quais a consciência de vigília se regozija. Ao contrário, as profundezas da
memória, nos sonhos, também incluem imagens de pessoas, coisas, localidades e
fatos que datam dos mais remotos tempos, que nunca tiveram nenhuma importância
psíquica ou mais que um pálido grau de nitidez ou que há muito perderam o que
teriam possuído de uma coisa ou de outra, e que, por conseguinte, parecem
inteiramente estranhos e desconhecidos tanto para a mente que sonha quanto para
a mente em estado de vigília, até que sua origem mais remota tenha sido
descoberta.”
Volkelt (1875, 119): “É especialmente notável a
facilidade com que as recordações da infância e da juventude ganham acesso aos
sonhos. Os sonhos continuamente nos relembram coisas em que deixamos de pensar
e que há muito deixaram de ser importantes para nós.”
Como os sonhos têm a seu dispor material oriundo
da infância, e dado que, como todos sabemos, esse material se acha obliterado,
em sua maiorparte, por lacunas em nossa faculdade consciente da memória, essas
circunstâncias dão margem a curiosos sonhos hipermnésicos, dos quais, mais uma
vez, darei alguns exemplos.
Maury (1878, 92) relata como, quando criança,
costumava ir freqüentemente de Meaux, que era seu torrão natal, à aldeia
vizinha de Trilport, onde o pai supervisionava a construção de uma ponte. Certa
noite, num sonho, ele se viu em Trilport e, mais uma vez, brincava na rua da
aldeia. Um homem, envergando uma espécie de uniforme, dirigiu-se a ele. Maury
perguntou-lhe como se chamava e ele respondeu que seu nome era C., e que era
vigia da ponte. Maury despertou com um sentimento de ceticismo quanto à
exatidão da lembrança, e perguntou a uma velha empregada, que estivera com ele
desde sua infância, se ela conseguia recordar-se de um homem com aquele nome.
Mas é claro”, foi a resposta, “ele era o vigia da ponte quando seu pai a estava
construindo.”
Maury (ibid., 143-4) fornece outro exemplo
igualmente bem corroborado da exatidão de uma lembrança da infância, surgida
num sonho. O sonho ocorreu a um certo Monsieur F., que, quando criança,
vivera em Montbrison. Vinte e cinco anos depois de partir dali, resolveu rever
a cidade natal e alguns amigos da família que não encontrara desde então. Na
noite que precedeu sua partida, sonhou que já estava em Montbrison e que, perto
da cidade, encontrava um cavalheiro a quem não conhecia de vista, mas que lhe
dizia ser Monsieur T., um amigo de seu pai. No sonho, Monsieur F.
estava ciente de que, quando criança, conhecera alguém com aquele nome, mas, em
seu estado de vigília, não se lembrava mais da aparência dele. Passados alguns
dias, chegou realmente a Montbrison, achou o local que no sonho lhe parecera
desconhecido, e ali encontrou um cavalheiro que reconheceu imediatamente como o
Monsieur T. do sonho. A pessoa real, contudo, aparentava ser muito mais
velha do que parecera no sonho.
Nesse ponto, posso mencionar um sonho que eu
mesmo tive, no qual o que tinha de ser reconstruído não era uma impressão, mas
uma ligação. Sonhei com alguém que, no sonho, eu sabia ser o médico de minha
cidade natal. Seu rosto era indistinto, mas se confundia com a imagem de um dos
professores da minha escola secundária, com quem ainda me encontro
ocasionalmente. Quando acordei, não conseguia descobrir que ligação haveria
entre esses dois homens. Entretanto, fiz a minha mãe algumas perguntas sobre
esse médico que remontava aos primeiros anos de minha infância, e soube que ele
tinha apenas um olho. O professor cuja fisionomia se sobrepusera à do médico no
sonho também só tinha uma vista. Fazia trinta e oito anos que eu vira o
médico pela última vez e, ao que eu sabia, nunca pensara nele em minha vida de
vigília, embora uma cicatriz em meu queixo pudesse ter-me feito recordar suas
atenções para comigo.
Diversos autores, por outro lado, asseveram que
na maioria dos sonhos se encontram elementos derivados dos últimos dias antes
de sua ocorrência; e isso parece ser uma tentativa de contrabalançar a
excessiva ênfase dada ao papel desempenhado na vida onírica pelas experiências
da infância. Assim, Robert (1886, 46) realmente declara que os sonhos normais,
de modo geral, dizem respeito apenas às impressões dos últimos dias.
Verificaremos, porém, que a teoria dos sonhos elaborada por Robert torna-lhe
essencial destacar as impressões mais recentes, deixando fora de alcance as
mais antigas. Não obstante, o fato que ele afirma permanece correto, como posso
confirmar por minhas próprias pesquisas. Um autor norte-americano, Nelson
[1888, 380 e seg.], é de opinião que as impressões mais freqüentemente
empregadas num sonho decorrem do penúltimo ou do antepenúltimo dia antes que o
sonho ocorra - como se as impressões do dia imediatamente anterior ao
sonho não fossem suficientemente atenuadas ou remotas.
Vários autores, preocupados em não lançar
dúvidas sobre a íntima relação entre o conteúdo dos sonhos e a vida de vigília,
têm-se surpreendido com o fato de as impressões com que os pensamentos de
vigília se acham intensamente ocupados só aparecerem nos sonhos depois de terem
sido um tanto postas de lado pelas atividades do pensamento diurno. Assim, após
a morte de um ente querido, as pessoas em geral não sonham com ele logo de
início, enquanto se acham dominadas pela dor (Delage, 1891, [40]). Por outro
lado, uma das mais recentes observadoras, a Srta. Hallam (Hallam e Weed, 1896,
410-11), coligiu exemplos em contrário, assim afirmando o direito de cada um de
nós ao individualismo psicológico nesse aspecto.
A terceira, mais surpreendente e menos
compreensível característica da memória nos sonhos é demonstrada na escolha
do material reproduzido. Pois o que se considera digno de ser lembrado não é,
como na vida de vigília,apenas o que é mais importante, mas, pelo contrário,
também o que é mais irrelevante e insignificante. No tocante a este ponto,
citarei os autores que deram expressão mais vigorosa à sua estupefação.
Hildebrandt (1875, 11): “Pois o fato notável é
que os sonhos extraem seus elementos não dos fatos principais e excitantes, nem
dos interesses poderosos e imperiosos do dia anterior, mas dos detalhes
casuais, do fragmentos sem valor, poder-se-ia dizer, do que se vivenciou
recentemente, ou do passado mais remoto. Uma morte na família, que nos tenha
comovido profundamente e sob cuja sombra imediata tenhamos adormecido tarde da
noite, é apagada de nossa memória até que, com nosso primeiro momento de
vigília, retorna a ela novamente com perturbadora violência. Por outro lado,
uma verruga na testa de um estranho que vimos na rua, e em quem não pensamos
mais depois de passar por ele, tem um papel a desempenhar em nosso
sonho…”
Strümpell (1877, 39): “Há casos em que a
análise de um sonho demonstra que alguns de seus componentes, na realidade,
provêm de experiências do dia precedente ou do dia anterior a este, mas de
experiências tão sem importância e tão triviais, do ponto de vista da
consciência de vigília, que foram esquecidas logo após sua ocorrência. As experiências
dessa natureza incluem, por exemplo, observações acidentalmente entreouvidas,
ações desatentamente observadas de outra pessoa, vislumbres passageiros de
pessoas ou coisas, ou fragmentos isolados do que se leu, e assim por diante.”
Havelock Ellis (1899, 77); “As emoções
profundas da vida de vigília, as questões e os problemas pelos quais difundimos
nossa principal energia mental voluntária, não são os que se costumam
apresentar de imediato à consciência onírica. No que diz respeito ao passado
imediato, são basicamente as impressões corriqueiras, casuais e ‘esquecidas’ da
vida cotidiana que reaparecem em nossos sonhos. As atividades psíquicas mais
intensamente despertas são as que dormem mais profundamente.”
Binz (1878, 44-5) efetivamente faz dessa peculiaridade
específica da memória nos sonhos uma oportunidade para expressar sua satisfação
com as explicações dos sonhos que ele próprio sustentou: “E os sonhos naturais
levantam problemas semelhantes. Por que nem sempre sonhamos com as impressões
mnêmicas do dia que acabamos de viver? Por que, muitas vezes, sem nenhum motivo
aparente, mergulhamos, em vez disso, no passado remoto e quase extinto? Por que
a consciência, nos sonhos, recebe com tanta freqüência a impressão de imagens
mnêmicas indiferentes, enquanto as células cerebrais, justamente onde
trazem as marcas mais sensíveis do que se experimentou, permanecem, em sua
maioria, silenciosas e inertes, a menosque tenham sido incitadas a uma nova
atividade pouco antes, durante a vida de vigília?”
É fácil perceber como a notável preferência
demonstrada pela memória, nos sonhos, por elementos indiferentes, e
conseqüentemente despercebidos da experiência de vigília está fadada a levar as
pessoas a desprezarem, de modo geral, a dependência que os sonhos têm da vida
de vigília, e pelo menos a dificultar, em qualquer caso específico, a
comprovação dessa dependência. Assim, a Srta. Whiton Calkis (1893, 315), em seu
estudo estatístico de seus próprios sonhos e dos de seu colaborador, verificou
que em onze por cento do total não havia nenhuma conexão visível com a vida de
vigília. Hildebrandt (1875, [12 e seg.]) está indubitavelmente certo ao afirmar
que seríamos capazes de explicar a gênese de todas as imagens oníricas se
dedicássemos tempo e empenho suficientes à investigação de sua origem. Ele se
refere a isso como “uma tarefa extremamente trabalhosa e ingrata. Pois, em
geral, termina por desenterrar dos mais remotos pontos dos compartimentos da
memória toda sorte de fatos psíquicos totalmente sem valor e por arrastar à
luz, mais uma vez, do esquecimento em que fora mergulhado talvez na primeira
hora após sua ocorrência, toda sorte de momento completamente irrelevante do
passado.” Só posso lamentar que esse autor de aguda visão se tenha deixado
impedir de seguir a trilha que teve esse começo inauspicioso; se a tivesse
seguido, ela o teria levado ao próprio cerne da explicação dos sonhos.
O modo como a memória se comporta nos sonhos é,
sem sombra de dúvida, da maior importância para qualquer teoria da memória em
geral. Ele nos ensina que “nada que tenhamos possuído mentalmente uma vez pode
se perder inteiramente” (Scholz, 1893, 59); ou, como o exprime Delboeuf [1885,
115], “que toute impression, même la plus insignifiante, laisse une trace
inaltérable, indéfiniment susceptible de reparaître au jour”. Essa é uma
conclusão a que também somos levados por muitos fenômenos patológicos da vida
mental. Certas teorias sobre os sonhos, que mencionaremos adiante, procuram
explicar seu absurdo e incoerência por meio de um esquecimento parcial do que
sabemos durante o dia. Quando tivermos em mente a extraordinária eficiência que
acabamos de ver exibida pela memória nos sonhos, teremos um sentimento vivo da
contradição que essas teorias envolvem.
Talvez nos ocorra que o fenômeno do sonhar
possa ser inteiramente reduzido ao da memória: os sonhos, poder-se-ia supor,
são a manifestação de uma atividade reprodutiva que é exercida mesmo durante a
noite e que constitui um fim em si mesma. Isso se coadunaria com afirmações
como as que foram formuladas por Pilcz (1899), segundo as quais existe uma
relação fixa observável entre o momento em que um sonho ocorre e seu conteúdo,
sendo as impressões do passado mais remoto reproduzidas nos sonhos durante o
sono profundo, enquanto as impressões mais recentes surgem ao amanhecer. Mas
tais pontos de vista são intrinsecamente improváveis, em vista da maneira como
os sonhos lidam com o material a ser lembrado. Strümpell [1877, 18] frisa, com
razão, que os sonhos não reproduzem experiências. Eles dão um passo à frente,
mas o próximo passo da seqüência é omitido, ou aparece de forma alterada, ou é
substituído por algo inteiramente estranho. Os sonhos não produzem mais do que fragmentos
de reproduções; e isso constitui uma regra tão geral que nela é possível basear
conclusões teóricas. É verdade que existem casos excepcionais em que um sonho
repete uma experiência tão completamente quanto está ao alcance de nossa
memória de vigília. Delboeuf [1885, 239 e seg.] conta-nos como um de seus
colegas da universidade teve um sonho que reproduzia, em todos os
detalhes, um perigoso acidente de carruagem que ele sofrera, do qual escapou
quase por milagre. A Srta. Calkins (1893) menciona dois sonhos cujo conteúdo
foi uma reprodução exata de um acontecimento do dia anterior, e eu mesmo terei
oportunidade, mais adiante, de relatar um exemplo por mim observado de uma
experiência infantil que reapareceu num sonho sem qualquer modificação.
[Ver em [1] [2] e [3].]
(C) OS ESTÍMULOS E AS FONTES DOS SONHOS
Há um ditado popular que diz que “os sonhos
decorrem da indigestão”, e isso nos ajuda a entender o que se pretende dizer
com estímulos e fontes dos sonhos. Por trás desses conceitos há uma teoria
segundo a qual os sonhos são o resultado de uma perturbação do sono: não
teríamos um sonho a menos que algo de perturbador acontecesse durante nosso
sono, e o sonho seria uma reação a essa perturbação.
Os debates sobre as causas estimuladoras dos
sonhos ocupam um espaço muito amplo na literatura sobre o assunto. Obviamente,
esse problema só poderia surgir depois de os sonhos se terem tornado alvo de
pesquisas biológicas. Os antigos, que acreditavam que os sonhos eram inspirados
pelos deuses, não precisavam ir em busca de seu estímulo: os sonhos emanavam da
vontade de poderes divinos ou demoníacos, e seu conteúdo provinha do
conhecimento ou do objetivo desses poderes. A ciência foi imediatamente
confrontada com a questão de determinar se o estímulo ao sonho era sempre o
mesmo ou se haveria muitos desses estímulos; e isso envolvia a questão de a
explicação das causas dos sonhos se enquadrar no domínio da psicologia ou,
antes, no da fisiologia. A maioria das autoridades parece concordar na
suposição de que as causas que perturbam o sono - isto é, as fontes dos sonhos
- podem ser de muitas espécies, e que tanto os estímulos somáticos quanto as
excitações mentais podem vir a atuar como instigadores dos sonhos. As opiniões
diferem amplamente, contudo, na preferência demonstrada por uma ou outra fonte
dos sonhos e na ordem de importância atribuída a elas como fatores na produção
dos sonhos.
Qualquer enumeração completa das fontes dos
sonhos leva ao reconhecimento de quatro tipos de fonte, e estes também têm sido
utilizados para a classificação dos próprios sonhos. São eles: (1) excitação
sensoriais externas (objetivas); (2) excitações sensoriais internas
(subjetivas); (3) estímulos somáticos internos (orgânicos); e (4) fontes de
estimulação puramente psíquicas.
(C) 1. ESTÍMULOS SENSORIAIS EXTERNOS
O jovem Strümpell [1883-4; trad. ingl. (1912,
2, 160),
filho do filósofo cujo livro sobre os sonhos já nos deu várias idéias acerca
dos problemas oníricos, publicou um célebre relato de suas observações sobre um
de seus pacientes, que sofria de anestesia geral da superfície do corpo e
paralisia de vários de seus órgãos sensoriais superiores. Quando se fechava o
pequeno número de canais sensoriais desse homem que permaneciam abertos ao
mundo exterior, ele adormecia. Ora, quando nós mesmos desejamos dormir, temos o
hábito de tentar produzir uma situação semelhante à da experiência de
Strümpell. Fechamos nossos canais sensoriais mais importantes, os olhos, e
tentamos proteger os outros sentidos de todos os estímulos ou de qualquer
modificação dos estímulos que atuam sobre eles. Então adormecemos, muito embora
nosso plano jamais se concretize inteiramente. Não podemos manter os estímulos
completamente afastados de nossos órgãos sensoriais, nem podemos suspender
inteiramente a excitabilidade de nossos órgãos dos sentidos. O fato de um
estímulo razoavelmente poderoso nos despertar a qualquer momento é prova de
que, “Mesmo no sono, a alma está em constante contato com o mundo
extracorporal”. Os estímulos sensoriais que chegam até nós durante o sono
podem muito bem tornar-se fontes de sonhos.
Ora, há inúmeros desses estímulos, que vão
desde os inevitáveis, que o próprio estado de sono necessariamente envolve ou
precisa tolerar de vez em quando, até os eventuais, que despertam estímulos que
podem pôr, ou de fato põem, termo ao sono. Uma luz forte pode incidir sobre os
olhos, ou um ruído pode se fazer ouvir, ou alguma substância de odor
pronunciado poderá estimular a membrana mucosa do nariz. Por movimentos
involuntários durante o sono, podemos descobrir alguma parte do corpo e expô-lo
a sensações de frio, ou, mediante uma mudança de posição, podemos provocar
sensações de pressão ou contato. É possível que sejamos picados por um
mosquito, ou algum pequeno incidente durante a noite talvez afete vários dos
nossos sentidos ao mesmo tempo. Alguns observadores atentos coligiram toda uma
série de sonhos em que houve uma correspondência tão grande entre um estímulo
constatado ao despertar e uma parte do conteúdo do sonho que foi possível
identificar o estímulo como a fonte do sonho.
Citarei, de autoria de Jessen (1855, 527 e
seg.), uma série desses sonhos, que podem ser ligados a uma estimulação
sensorial objetiva e mais ou menos acidental.
“Todo ruído indistintamente percebido provoca
imagens oníricas correspondentes. Uma trovoada nos situa em meio a uma batalha;
o cantar de um galo pode transmudar-se no grito de terror de um homem; o ranger
de uma porta pode produzir um sonho com ladrões. Se os lençóis da cama caírem
durante a noite, talvez sonhemos que estamos andando nus de um lado para outro,
ou então caindo n’água. Se estivermos atravessados na cama e com os pés para
fora da beirada, talvez sonhemos que estamos à beira de um tremendo precipício
ou caindo de um penhasco. Se a cabeça ficar debaixo do travesseiro, sonharemos
estar debaixo de uma pedra enorme, prestes a nos soterrar sob seu peso. Os
acúmulos de sêmen provocam sonhos lascivos e as dores locais produzem idéias de
estarmos sendo maltratados, atacados ou feridos…
“Meier (1758, 33) sonhou, certa feita, que era
dominado por alguns homens que o estendiam de costas no chão e enfiavam uma
estaca na terra entre seu dedão do pé e o dedo ao lado. Enquanto imaginava essa
cena no sonho, acordou e verificou que havia um pedaço de palha entre seus
dedos. Em outra ocasião, segundo Hennings (1784, 258), quando Meier apertara
muito o colarinho da roupa de dormir no pescoço, sonhou que estava sendo
enforcado. Hoffbaeur (1796, 146) sonhou, quando jovem, que estava caindo de um
muro alto, e ao acordar, viu que a armação da cama desabara e ele realmente
caíra no chão… Gregory relata que, certa vez, quando estava com os pés num saco
de água quente, sonhou ter subido até o cume do Monte Etna, onde o chão esta
insuportavelmente quente. Outro homem, que dormia com um cataplasma quente na
cabeça, sonhou que estava sendo escalpelado por um bando de peles-vermelhas,
enquanto um terceiro, que usava uma camisa de dormir úmida, imaginou que estava
sendo arrastado por uma correnteza. Um ataque de gota repentinamente surgido
durante o sono levou um paciente a acreditar que estava nas mãos da Inquisição
e sendo torturado no cavalete (Macnisch [1835, 40]).”
O argumento baseado na semelhança entre o
estímulo e o conteúdo do sonho se fortalece quando é possível transmitir
deliberadamente um estímulo sensorial à pessoa adormecida e nela produzir um
sonho correspondente àquele estímulo. De acordo com Macnisch (loc. cit.),
citado por Jessen (1855, 529), experimentos dessa natureza já foram feitos por
Girou de Buzareingues [1848, 55]. “Ele deixara o joelho descoberto e sonhou que
estava viajando de noite numa diligência. A esse respeito, ele observa que os
viajantes porcerto estão cientes de como os joelhos ficam frios à noite num
coche. Noutra ocasião, ele deixou descoberta a parte posterior da cabeça e
sonhou que estava participando de uma cerimônia religiosa ao ar livre. Cabe
explicar que, no país onde morava, era costume manter sempre a cabeça coberta,
exceto em circunstâncias como essas.”
Maury (1878, [154-6]) apresenta algumas novas
observações sobre sonhos produzidos nele mesmo. (Diversos outros experimentos foram
mal-sucedidos.)
(1) Alguém fez cócegas em seus lábios e na
ponta do nariz com uma pena. - Ele sonhou com uma forma medonha de tortura: uma
máscara de piche ora colocada em seu rosto e depois puxada, arrancando-lhe a
pele.
(2) Alguém afiou uma tesoura num alicate. - Ele
ouviu o repicar de sinos, seguido por sinais de alarma, e se viu de volta aos
dias de junho de 1848.
(3) Deram-lhe água-de-colônia para cheirar. -
Ele se viu no Cairo, na loja de Johann Maria Farina. Seguiram-se algumas
aventuras absurdas que ele não soube reproduzir.
(4) Beliscaram-lhe levemente o pescoço. - Ele
sonhou que lhe aplicavam um emplastro de mostarda e pensou no médico que o
tratara quando criança.
(5) Aproximaram um ferro quente de seu rosto. -
Sonhou que os “chauffeurs” haviam penetrado na casa e forçavam
seus moradores a dar-lhes dinheiro, enfiando-lhes os pés em braseiros. Apareceu
então a Duquesa de Abrantes, de quem ele era secretário no sonho.
(8) Pingaram uma gota d’água em sua testa. -
Ele estava na Itália, suava violentamente e bebia vinho branco de Orvieto.
(9) Fez-se com que a luz de uma vela brilhasse
repetidamente sobre ele através de uma folha de papel vermelho. - Sonhou com o
tempo e com o calor, e se viu novamente numa tempestade que enfrentara no Canal
da Mancha.
Outras tentativas de produzir sonhos
experimentalmente foram relatadas por Hervey de Saint-Denys [1867, 268 e seg. e
376 e seg.], Weygandt (1893) e outros.
Muitos autores teceram comentários sobre “a
notável facilidade com que os sonhos conseguem enfrentar uma impressão súbita
vinda do mundo dos sentidos em sua própria estrutura, de modo que esta surge
sob a aparência de uma catástrofe previamente preparada a que se chegou
gradativamente” [(Hildebrandt, 1875, [36])]. “Em minha juventude”, prossegue esse
autor, “eu costumava usar um despertador para me levantar regularmente numa
determinada hora. Por centenas de vezes deve ter acontecido de o ruído
produzido por esse instrumento se enquadrar num sonho aparentemente único e
tivesse alcançado seu fim precípuo no que era clímax logicamente
indispensável.” [Ibid., 37.]
Citarei três desses sonhos despertadores, agora
num outro sentido. [Ver em. [1]-[2]]
Volket (1875, 108 e seg.) escreve: “Um
compositor, certa feita, sonhou que estava dando uma aula e tentando esclarecer
determinado ponto a seus alunos. Quando acabou de fazê-lo, voltou-se para um
dos meninos e perguntou-lhe se havia entendido. Este respondeu-lhe aos gritos,
como um possesso: ‘Oh ja! [Oh, sim!]’. Ele começou a repreender o
menino asperamente por estar gritando, mas toda a classe irrompeu em gritos,
primeiro de ‘Orja!‘, depois de ‘Eurjo!‘ e finalmente de ‘Feuerjo!‘Neste
ponto ele foi despertado por gritos reais de ‘Feurjo!‘ na rua.”
Garnier (1872, [1, 476]) conta como Napoleão I
foi despertado pela explosão de uma bomba enquanto dormia em sua carruagem.
Sonhou que estava novamente atravessando o Tagliamento sob o bombardeio
austríaco, e por fim, sobressaltado, acordou gritando: “Estamos perdidos!”
Um sonho de Maury (1878, 161) tornou-se famoso.
Estava doente e de cama em seu quarto, com a mãe sentada a seu lado, e sonhou
que estava no Reinado do Terror. Após testemunhar diversas cenas pavorosas de
assassinato, foi finalmente levado perante o tribunal revolucionário. Lá viu
Robespierre, Marat, Fouquier-Tinville e o resto dos soturnos heróis daqueles
dias terríveis. Foi interrogado por eles, e depois de alguns incidentes que não
guardou na memória, foi condenado e conduzido ao local de execução, cercado por
uma multidão enorme. Subiu ao cadafalso e foi amarrado à prancha pelo carrasco.
A guilhotina estava preparada e a lâmina desceu. Ele sentiu a cabeça sendo
separada do corpo, acordou em extrema angústia - eviu que a cabeceira da cama
caíra e lhe atingira as vértebras cervicais, tal como a lâmina da guilhotina as
teria realmente atingido.
Esse sonho constituiu a base de um interessante
debate entre Le Lorain (1894) e Egger (1895) na Revue philosophique. A
questão levantada foi se e como era possível que alguém, ao sonhar, condensasse
tal quantidade de material aparentemente superabundante, no curto período
transcorrido entre a percepção do estímulo emergente e o despertar.
Os exemplos dessa natureza deixam a impressão
de que, de todas as fontes dos sonhos, as mais bem confirmadas são os estímulos
sensoriais objetivos durante o sono. Além disso, eles constituem rigorosamente
as únicas fontes levadas em conta pelos leigos. Quando se pergunta a um homem
culto, que não esteja familiarizado com a literatura dos sonhos, como é que
estes surgem, ele responde infalivelmente com uma referência a algum exemplo de
seu conhecimento em que um sonho tenha sido explicado por um estímulo sensorial
objetivo descoberto após o despertar. A investigação científica, contudo, não pode
parar aí. Ela encontra uma oportunidade de formular outras perguntas no fato
observado de que o estímulo que incide sobre os sentidos durante o sono não
aparece no sonho em sua forma real, mas é substituído por outra imagem
que, de algum modo, está relacionada com ele. Todavia, a relação que liga o
estímulo do sonho ao sonho que dele resulta é, para citarmos as palavras de
Maury (1854, 72), “une affinité quelconque, mais qui n’est pas unique et
exclusive”. Consideremos, a esse respeito, três dos sonhos de Hildebrandt
com despertadores (1875, 37 e seg.). A questão que eles levantam é porque o
mesmo estímulo teria provocado três sonhos tão diferentes, e porque teria
provocado estes, e não outros.
“Sonhei, então, que, numa manhã de primavera,
eu estava passeando e caminhando pelos campos verdejantes, quando cheguei a uma
aldeia vizinha, onde vi os aldeões em seus melhores trajes, com livros de hinos
debaixo do braço, afluindo para a igreja em bandos. Claro! Era domingo, e o
serviço religioso matutino logo estaria começando. Resolvi participar dele, mas
primeiro, como estava sentindo calor por causa da caminhada, fui até o
cemitério que circundava a igreja para me refrescar. Enquanto lia algumas das
inscrições das lápides, ouvi o sineiro subindo para a torre da igreja e, no
alto da mesma, vi então o sino do vilarejo, que logo daria o sinal para o
começo das preces. Por um bom tempo, lá ficou imóvel, e depois começoua
balançar, e de repente, seu repicar passou a soar de maneira nítida e
penetrante - tão nítida e penetrante que pôs termo a meu sono. Mas o que estava
tocando era meu despertador.”
“Eis aqui outro exemplo. Fazia um dia claro de
inverno e as ruas estavam cobertas por uma espessa camada de neve. Eu havia
concordado em participar de um grupo para um passeio de trenó, mas tive de
esperar muito tempo antes de chegar a notícia de que o trenó se achava à porta.
Seguiram-se então os preparativos para entrar - o tapete de pele foi estendido,
ajeitou-se o agasalho para os pés - e finalmente ocupei meu lugar. Mas, ainda
assim, o momento da partida foi retardado, até que um puxão nas rédeas deu aos
cavalos, que esperavam, o sinal da partida. Eles partiram e, com uma violenta
sacudidela, os pequenos guizos do trenó começaram a produzir seu conhecido
tilintar - com tal violência, de fato, que num instante se rompeu a fina teia
de meu sonho. E, mais uma vez, era apenas o som estridente do despertador.”
“E agora, um terceiro exemplo. Eu olhava para
uma copeira que ia levando várias dúzias de pratos empilhados uns sobre os
outros, andando pelo corredor que dava para a sala de jantar. A pilha de louça
em seus braços me pareceu prestes a perder o equilíbrio. ‘Cuidado’, exclamei,
(‘senão você vai deixar cair tudo!’. Seguiu-se, como de praxe, a inevitável
resposta: ela estava acostumada àquele tipo de trabalho, e assim por diante.
Entrementes, meu olhar ansioso seguia a figura que avançava. E então -
justamente como eu esperava - ela tropeçou na soleira da porta e a frágil louça
escapuliu e, numa verdadeira sinfonia de ruídos, espatifou-se em mil pedaços no
chão. Mas o barulho prosseguiu sem cessar, e logo já não parecia ser estrondoso
retinir da louça se quebrando; começou a se transformar no som de uma campainha
- e essa campainha, como agora percebia meu eu desperto, era apenas o
despertador cumprindo seu dever.”
A questão de por que a mente confunde a
natureza dos estímulos sensoriais objetivos nos sonhos recebe quase a mesma
resposta de Strümpell (1877, [103]) e de Wundt (1874, 659 e seg.): a mente
recebe estímulos que a alcançam durante o sono sob condições favoráveis à
formação de ilusões. Uma impressão sensorial é reconhecida por nós e
corretamente interpretada - isto é, é situada no grupo de lembranças a que, de
acordo com todas as nossas experiências, ela pertence - contanto que a
impressão seja suficientemente forte, nítida e duradoura, e contanto que
tenhamos tempo suficiente a nosso dispor para considerar o assunto. Se essas
condições não forem satisfeitas, confundiremos o objeto que é a fonte da
impressão: formaremos uma ilusão sobre ele. “Se alguém fizer uma caminhada pelo
campo e tiver uma percepção indefinida de umobjeto distante, poderá a princípio
pensar que se trata de um cavalo.” Vendo mais de perto, poderá ser levado a
interpretá-la como uma vaca deitada, e a imagem poderá finalmente
transformar-se em definitivo num grupo de pessoas sentadas no chão. As
impressões de estímulos exteriores recebidas pela mente durante o sono são de
natureza similarmente vaga; e com base nisso, a mente cria alusões, visto que
um número maior ou menor de imagens mnêmicas é despertado pela impressão, e é
através destas que ela adquire seu valor psíquico. De qual dos numerosos
grupos de lembranças em causa as imagens correlatas serão despertadas, e qual
das possíveis conexões associativas será por conseguinte posta em ação - também
essas questões, segundo a teoria de Strümpell, são indetermináveis e ficam, por
assim dizer, abertas à decisão arbitrária da mente.
Nesta altura, defronta-se-nos uma escolha entre
duas alternativas. Podemos admitir como um fato que é impossível examinar ainda
mais as leis que regem a formação dos sonhos; e podemos, conseqüentemente,
deixar de inquirir se haverá ou não outros determinantes que regem a
interpretação atribuída por aquele que sonha à ilusão evocada pela impressão
sensorial. Ou, por outro lado, podemos suspeitar de que o estímulo sensorial
que atinge o sujeito adormecido desempenha apenas um modesto papel na geração
de seu sonho, e que outros fatores determinam a escolha das imagens mnêmicas
que nele serão despertadas. De fato, se examinarmos os sonhos experimentalmente
produzidos de Maury (que relatei com tal riqueza de detalhes exatamente por
esse motivo), seremos tentados a dizer que o experimento, de fato, explica a
origem de apenas um elemento dos sonhos; o restante de seu conteúdo parece
autônomo demais e excessivamente definido em seus detalhes para ser explicável
apenas pela necessidade de se ajustar ao elemento experimentalmente introduzido
de fora. De fato, começa-se a ter dúvidas sobre a teoria das ilusões e o poder
das impressões objetivas de darem forma aos sonhos, quando se verifica que
essas impressões, por vezes, estão sujeitas, nos sonhos, às mais peculiares e
exageradas interpretações. Assim, Simon (1888) relata-nos um sonho no qual via
algumas figuras gigantescas sentadas à mesa, e ouvia distintamente o pavoroso
som do estalido produzido pelo fechamento de suas mandíbulas ao mastigarem.
Quando despertou, ouviu o barulho dos cascos de um cavalo que passava a galope
por sua janela. O ruído feito pelos cascos do cavalo talvez tenha sugerido
idéias provenientes de um grupo de lembranças ligadas às Viagens de Gulliver
- os gigantes de Brobdingnag e o virtuoso Houyhnhnms - se é que posso arriscar
uma interpretação sem a ajuda do autor do sonho. Não será provável, portanto,
que a escolha de um grupo tão inusitado de lembranças como esse tenha sido
facilitada por motivos outros que não apenas o estímulo objetivo?
(C)
2. EXCITAÇÕES SENSORIAIS INTERNAS (SUBJETIVAS)
Apesar de quaisquer objeções em contrário, é
forçoso admitir que o papel desempenhado na causação dos sonhos pelas
excitações sensoriais objetivas durante o sono permanece indiscutível. E se,
por sua natureza e freqüência, esses estímulos parecem insuficientes para
explicar todas as imagens oníricas, somos incentivados a buscar outras
fontes de sonhos análogas a eles em seu funcionamento. Não sei dizer quando
despontou pela primeira vez a idéia de se levarem em conta as excitações internas
(subjetivas) dos órgãos dos sentidos, juntamente com os estímulos sensoriais externos.
É fato, porém, que isso é feito, mais ou menos explicitamente, em todas as
discussões mais recentes da etiologia dos sonhos. “Um papel essencial é também
desempenhado, creio eu”, escreve Wundt (1874, 657), “na produção das ilusões
que ocorrem nos sonhos, pelas sensações visuais e auditivas subjetivas que nos
são familiares, no estado de vigília, como as áreas amorfas de luminosidade que
se tornam visíveis para nós quando nosso campo visual é obscurecido, como o tinido
ou zumbido nos ouvidos, e assim por diante. Especialmente importante entre elas
são as excitações subjetivas da retina. É dessa forma que se deve explicar a
notável tendência dos sonhos a fazerem surgir diante dos olhos objetos
semelhantes ou idênticos, em grande número. Vemos diante de nós inúmeros
pássaros, borboletas, peixes, contas coloridas, flores, etc. Aqui, a poeira
luminosa no campo obscurecido da visão assume uma forma fantástica, e os
numerosos pontos de que ela se compõe são incorporados ao sonho como um número
equivalente de imagens separadas; e estas, em vista de sua mobilidade, são
consideradas como objetos móveis. - Isso também constitui, sem dúvida, a
base da grande predileção demonstrada pelos sonhos por toda sorte de figuras de
animais, pois a imensavariedade de tais formas pode se ajustar facilmente à
forma específica assumida pelas imagens luminosas subjetivas.”
Como fontes de imagens oníricas, as excitações
sensoriais subjetivas possuem a vantagem óbvia de não dependerem, como as objetivas,
de circunstâncias fortuitas externas. Estão à mão, como se poderia dizer,
sempre que delas se necessita como explicação. Mas estão em desvantagem,
comparadas aos estímulos sensoriais objetivos, no sentido de que seu papel na
instigação de um sonho é pouco ou nada acessível à confirmação e a
experimentação. A principal prova em favor do poder de instigação de sonhos das
excitações sensoriais subjetivas é fornecida pelo que se conhece como
“alucinações hipnagógicas”, ou, para empregar a expressão de Johannes Müller
(1826), “fenômenos visuais imaginativos”. Estes consistem em imagens, com
freqüência muito nítidas e rapidamente mutáveis, que tendem a surgir - de forma
bastante habitual em algumas pessoas - durante o período do adormecimento; e
também podem persistir por algum tempo depois de os olhos se abrirem. Maury,
que era altamente sujeito a elas, procedeu a seu exame exaustivo e sustenta
(como fez Müller [ibid., 49 e seg.] antes dele) a ligação e mesmo a identidade
delas com as imagens oníricas. Para produzi-las, diz ele (Maury, 1878, 59 e
seg.), faz-se necessária uma certa dose de passividade mental, um relaxamento
do esforço de atenção. No entanto, basta cair num estado letárgico desse tipo
por apenas um segundo (contanto que se tenha a necessária predisposição) para
que se experimente uma alucinação hipnagógica. Depois disso, pode-se acordar
novamente, e é possível que o processo se repita várias vezes até que afinal se
adormeça. Maury verificou que, quando lhe acontecia acordar mais uma vez após um
intervalo muito prolongado, ele conseguia detectar em seu sonho as mesmas
imagens que lhe haviam flutuado diante dos olhos como alucinações hipnagógicas
antes de adormecer. (Ibid., 134 e seg.). Foi o que ocorreu, em certa ocasião,
com diversas figuras grotescas, de feições contorcidas e estranhas coiffures,
que o importunaram com extrema persistência enquanto ele adormecia, e com as
quais se lembrou de ter sonhado depois de acordar. De outra feita, quando
sentia fome, por ter entrado num regime frugal, teve uma visão hipnagógica de
um prato e de uma mão a segurar um garfo, que se servia da comida do prato. No
sonho seguinte, estava sentado a uma mesa farta e ouvia o barulho feito com os
garfos pelas pessoas que jantavam. Ainda numa outra ocasião, quando foi dormir
com os olhos irritados e doloridos, teve uma alucinação hipnagógica com alguns
sinais microscopicamente pequenos, que só pôde decifrar um a um, com extrema
dificuldade; despertou uma hora depois e selembrou de um sonho em que havia um
livro impresso com tipos muito pequenos, que ele lia com grande esforço.
Alucinações auditivas de palavras, nomes e
assim por diante também podem ocorrer hipnagogicamente, da mesma forma que as
imagens visuais, e ser então repetidas num sonho - tal como uma ouverture
anuncia os temas principais que se irão ouvir uma ópera.
Um observador mais recente das alucinações
hipnagógicas, G. Trumbull Ladd (1892), seguiu a mesma orientação de Müller e
Maury. Depois de praticar um pouco, tornou-se capaz de se acordar
repentinamente, sem abrir os olhos, dois a cinco minutos após haver adormecido
gradualmente. Assim, teve oportunidade de comparar as sensações retinianas que
acabavam de desaparecer com as imagens oníricas que lhe persistiam na memória.
Declara ele que foi possível, em todos os casos, reconhecer uma relação interna
entre as duas, pois os pontos e as linhas luminosos da luz idiorretínica
proporcionavam, por assim dizer, um contorno ou diagrama das figuras
mentalmente percebidas no sonho. Por exemplo, uma disposição dos pontos
luminosos da retina em linhas paralelas correspondeu a um sonho em que ele
vira, claramente dispostas diante de si, algumas linhas de matéria impressa que
estava lendo. Ou, para empregar suas próprias palavras, “a página nitidamente
impressa que eu estava lendo no sonho evaneceu-se num objeto que se afigurou,
perante minha consciência de vigília, como um trecho de uma página impressa
real, vista através de um orifício oval num pedaço de papel, a uma distância
grande demais para que se pudesse distinguir mais do que um fragmento ocasional
de uma palavra, e, mesmo assim, indistintamente”. Ladd é de opinião (embora não
subestime o papel desempenhado nesse fenômeno pelos fatores centrais
[cerebrais]) que é difícil ocorrer um único sonho visual sem que haja participação
de material fornecido pela excitação retiniana intra-ocular. Isso se aplica
especialmente aos sonhos que ocorrem logo depois de alguém adormecer num quarto
escuro, ao passo que a fonte de estímulo para os sonhos que ocorrem de manhã,
pouco antes do despertar, é a luz objetiva que penetra nos olhos num quarto que
se vai clareando. A natureza mutável, e perpetuamente alternante, da excitação
da luz idiorretínica corresponde precisamente à sucessão de imagens em
constante movimento que nos é mostrada por nossos sonhos. Ninguém que dê
importância a essas observações de Ladd há de subestimar o papel desempenhado
nos sonhos por essas fontes subjetivas de estimulação, pois, como sabemos, as
imagens visuais constituem o principal componente de nossos sonhos. As
contribuições dos outros sentidos, salvo o da audição, são intermitentes e de
menor importância. lembrou de um sonho em que havia um livro impresso com tipos
muito pequenos, que ele lia com grande esforço.
Alucinações auditivas de palavras, nomes e
assim por diante também podem ocorrer hipnagogicamente, da mesma forma que as
imagens visuais, e ser então repetidas num sonho - tal como uma ouverture
anuncia os temas principais que se irão ouvir uma ópera.
Um observador mais recente das alucinações hipnagógicas,
G. Trumbull Ladd (1892), seguiu a mesma orientação de Müller e Maury. Depois de
praticar um pouco, tornou-se capaz de se acordar repentinamente, sem abrir os
olhos, dois a cinco minutos após haver adormecido gradualmente. Assim, teve
oportunidade de comparar as sensações retinianas que acabavam de desaparecer
com as imagens oníricas que lhe persistiam na memória. Declara ele que foi
possível, em todos os casos, reconhecer uma relação interna entre as duas, pois
os pontos e as linhas luminosos da luz idiorretínica proporcionavam, por assim
dizer, um contorno ou diagrama das figuras mentalmente percebidas no sonho. Por
exemplo, uma disposição dos pontos luminosos da retina em linhas paralelas
correspondeu a um sonho em que ele vira, claramente dispostas diante de si,
algumas linhas de matéria impressa que estava lendo. Ou, para empregar suas
próprias palavras, “a página nitidamente impressa que eu estava lendo no sonho
evaneceu-se num objeto que se afigurou, perante minha consciência de vigília, como
um trecho de uma página impressa real, vista através de um orifício oval num
pedaço de papel, a uma distância grande demais para que se pudesse distinguir
mais do que um fragmento ocasional de uma palavra, e, mesmo assim,
indistintamente”. Ladd é de opinião (embora não subestime o papel desempenhado
nesse fenômeno pelos fatores centrais [cerebrais]) que é difícil ocorrer um
único sonho visual sem que haja participação de material fornecido pela
excitação retiniana intra-ocular. Isso se aplica especialmente aos sonhos que
ocorrem logo depois de alguém adormecer num quarto escuro, ao passo que a fonte
de estímulo para os sonhos que ocorrem de manhã, pouco antes do despertar, é a
luz objetiva que penetra nos olhos num quarto que se vai clareando. A natureza
mutável, e perpetuamente alternante, da excitação da luz idiorretínica
corresponde precisamente à sucessão de imagens em constante movimento que nos é
mostrada por nossos sonhos. Ninguém que dê importância a essas observações de
Ladd há de subestimar o papel desempenhado nos sonhos por essas fontes
subjetivas de estimulação, pois, como sabemos, as imagens visuais constituem o
principal componente de nossos sonhos. As contribuições dos outros sentidos,
salvo o da audição, são intermitentes e de menor importância.
(C) 3. ESTÍMULOS SOMÁTICOS ORGÂNICOS
INTERNOS
Visto estarmos agora empenhados em buscar as
fontes dos sonhos dentro do organismo, e não fora dele, devemos ter em mente
que quase todos os nossos órgãos internos, embora mal nos dêem qualquer
informação sobre seu funcionamento enquanto sadios, tornam-se uma fonte de
sensações predominantemente penosas quando se acham no que descrevemos como
estados de excitação, ou durante as doenças. Essas sensações devem ser
equiparadas aos estímulos sensoriais ou penosos que nos chegam do exterior. A
experiência de séculos reflete-se - para citarmos um exemplo - nas observações
de Strümpell sobre o assunto (1877, 107): “Durante o sono, a mente atinge uma
consciência sensorial muito mais profunda e ampla dos eventos somáticos do que
durante o estado de vigília. É obrigada a receber e a ser afetada por
impressões de estímulos provenientes de partes do corpo e de modificações do
corpo das quais nada sabe enquanto desperta.” Um escritor tão remoto quanto
Aristóteles já considerava perfeitamente possível que os primórdios de uma
doença se pudessem fazer sentir nos sonhos, antes que se pudesse observar
qualquer aspecto dela na vida de vigília, graças ao efeito amplificador
produzido nas impressões pelos sonhos. (Ver em [1].) Também os autores
médicos, que certamente estavam longe de acreditar no poder profético dos
sonhos, não contestaram seu significado como pressagiadores de doenças. (Cf.
Simon, 1888, 31, e muitos outros autores mais antigos.)
Alguns exemplos do poder diagnosticador dos
sonhos parecem ser invocados em épocas mais recentes. Assim, Tissié (1898, 62 e
seg.) cita a história de Artigues (1884, 43) sobre uma mulher de quarenta e
três anos de idade que, embora aparentemente em perfeita saúde, foi durante
alguns anosatormentada por sonhos de angústia. Passando então por um exame
médico, verificou-se que estava no estágio inicial de uma afecção cardíaca, da
qual veio finalmente a falecer.
Os distúrbios pronunciados dos órgãos internos
agem, obviamente, como instigadores de sonhos em inúmeros casos. A freqüência
dos sonhos de angústia nas doenças do coração e dos pulmões é geralmente
admitida. Realmente, essa faceta da vida onírica é colocada em primeiro plano
por tantas autoridades que me contento com uma mera referência à literatura:
Radestock [1879, 70], Spitta [1882, 241 e seg.], Maury [1878, 33 e seg.], Simon
(1888), Tissié [1898, 60 e segs.]. Tissié chega a ser de opinião que o órgão
específico afetado dá um cunho característico ao conteúdo do sonho. Assim, os
sonhos dos que sofrem doenças cardíacas costumam ser curtos e têm um fim
assustador no momento do despertar; seu conteúdo quase sempre inclui uma
situação que implica uma morte horrível. Os que sofrem de doenças pulmonares
sonham com sufocação, grandes aglomerações e fugas, e estão notavelmente
sujeitos ao conhecido pesadelo. (A propósito, pode-se observar que Boerner
(1855) conseguiu provocar este último experimentalmente, deitando-se com o
rosto voltado para a cama ou cobrindo as vias respiratórias.) No caso de
distúrbios digestivos, os sonhos contêm idéias relacionadas com o prazer na
alimentação ou a repulsa. Finalmente, a influência da excitação sexual no
conteúdo dos sonhos pode ser adequadamente apreciada por todos mediante sua
própria experiência, e fornece à teoria de que os sonhos são provocados por
estímulos orgânicos seu mais poderoso apoio.
Além disso, ninguém que consulte a literatura
sobre o assunto poderá deixar de notar que alguns autores, como Maury [1878,
451 e seg.] e Weygandt (1893), foram levados ao estudo dos problemas oníricos
pelo efeito de suas próprias doenças sobre o conteúdo dos seus sonhos.
Não obstante, embora esses fatos estejam
verificados sem sombra de dúvida, sua importância para o estudo das fontes dos
sonhos não é tão grande como se poderia esperar. Os sonhos são fenômenos que
ocorrem em pessoas sadias - talvez em todos, talvez todas as noites - e é óbvio
que a doença orgânica não pode ser incluída entre suas condições
indispensáveis. E o que nos interessa não é a origem de certos sonhos
especiais, mas a fonte que provoca os sonhos comuns das pessoas normais.
Basta-nos apenas dar mais um passo à frente,
contudo, para encontrarmos uma fonte de sonhos mais copiosa do que qualquer
outra que tenhamos considerado até agora, uma fonte que, a rigor, parece nunca
poder esgotar-se. Se se verificar que o interior do corpo, quando se acha
enfermo, torna-se umafonte de estímulos para os sonhos, e se admitirmos que,
durante o sono, a mente, estando desviada do mundo exterior, pode dispensar maior
atenção ao interior do corpo, parecer-nos-à plausível supor que os órgãos
internos não precisam estar doentes para provocar excitações que atinjam a
mente adormecida - excitações que, de algum modo, transformam-se em imagens
oníricas. Enquanto despertos, estamos cônscios de uma sensibilidade geral
difusa, ou cenestesia, mas apenas como uma qualidade vaga de nosso estado de
espírito; para essa sensação, de acordo com a opinião médica, todos os sistemas
orgânicos contribuem com uma parcela. À noite, porém, parece que essa mesma
sensação, ampliada numa poderosa influência e atuando através dos seus vários
componentes, torna-se a fonte mais vigorosa e, ao mesmo tempo, a mais comum
para instigar imagens oníricas. Se assim for, resta apenas investigar as leis segundo
as quais os estímulos orgânicos se transmudam em imagens oníricas.
Chegamos aqui à teoria da origem dos sonhos
preferida por todas as autoridades médicas. A obscuridade em que o centro do
nosso ser (o “moi splanchnique”, como o chama Tissié [1898, 23]) fica
vedado a nosso conhecimento e a obscuridade que cerca a origem dos sonhos
coincidem bem demais para não serem relacionadas uma com a outra. A linha de
raciocínio que encara a sensação orgânica vegetativa como a formadora dos
sonhos tem, além disso, uma atração particular para os médicos, por permitir
uma etiologia única para os sonhos e as doenças mentais, cujas manifestações
tanto têm em comum, já que as mudanças cenestésicas e os estímulos provenientes
dos órgãos internos são também predominantemente responsabilizados pela origem
das psicoses. Não é de surpreender, portanto, que a origem da teoria da
estimulação somática remonte a mais de uma fonte independente.
A linha de argumentação desenvolvida pelo
filósofo Schopenhauer, em 1851, exerceu uma influência decisiva em diversos
autores. Nossa imagem do universo, na opinião dele, é alcançada pelo fato de
nosso intelecto tomar as impressões que o atingem de fora e remodelá-las
segundo as formas de tempo, espaço e causalidade. Durante o dia, os estímulos
vindos do interior do organismo, do sistema nervoso simpático, exercem, no
máximo, um efeito inconsciente sobre nosso estado de espírito. Mas, à noite,
quando já não somos ensurdecidos pelas impressões do dia, as que provêm de
dentro são capazes de atrair a atenção - do mesmo modo que, à noite, podemos
ouvir o murmúrio de um regato que é abafado pelos ruídos diurnos. Mas, como
pode o intelecto reagir a esses estímulos senão exercendo sobre eles sua
própria função específica? Os estímulos por conseguinte, são remodeladoscomo
formas que ocupam espaço e tempo e obedecem às regras da causalidade, e assim
surgem os sonhos [cf. Schopenhauer, 1862, 1, 249 e segs.]. Scherner (1861) e,
depois dele, Volkelt (1875) esforçaram-se em seguida por pesquisar com maior riqueza
de detalhes a relação entre os estímulos somáticos e as imagens oníricas, mas
adiarei meu exame dessas tentativas até chegarmos à seção que versa sobre as
várias teorias acerca dos sonhos. [Ver em [1]]
O psiquiatra Krauss [1859, 255], numa investigação
conduzida com notável consistência, reconstrói a origem dos sonhos e deliria,
de um lado, e dos delírios, de outro, até o mesmo fator, a saber, sensações
organicamente determinadas. É quase impossível pensar em qualquer parte do
organismo que não possa ser o ponto de partida de um sonho ou de um delírio. As
sensações organicamente determinadas “podem ser divididas em duas classes: (1)
as que constituem a disposição de ânimo geral (cenestesia) e (2) as sensações
específicas imanentes nos principais sistemas do organismo vegetativo. Dentre
estas últimas devem-se distinguir cinco grupos: (a) sensações
musculares, (b) respiratórias, (c) gástricas, (d) sexuais
e (e) periféricas.” Krauss supõe que o processo pelo qual as imagens
oníricas surgem com base nos estímulos somáticos é o seguinte: a sensação
despertada evoca uma imagem cognata, de conformidade com alguma lei de
associação. Combina-se com a imagem numa estrutura orgânica, à qual, no
entanto, a consciência reage anormalmente, pois não presta nenhuma atenção à sensação
e dirige toda ela para as imagens concomitantes - o que explica por que
os verdadeiros fatos foram mal interpretados por tanto tempo. Krauss tem um
tempo especial para descrever esse processo: a “transubstanciação” das
sensações em imagens oníricas.
A influência dos estímulos somáticos orgânicos
sobre a formação dos sonhos é quase universalmente aceita hoje em dia; mas a
questão das leis que regem a relação entre eles é respondida das mais diversas
maneiras, e muitas vezes por afirmações obscuras. Com base na teoria da
estimulação somática, a interpretação dos sonhos defronta-se assim com o
problema especial de atribuir o conteúdo de um sonho aos estímulos orgânicos
que o causaram; e, quando as normas de interpretação formuladas por Scherner (1861)
não são aceitas, muitas vezes nos vemos diante do fato desconcertante de que a
única coisa que revela a existência do estímulo orgânico é precisamente o
conteúdo do próprio sonho.
Há uma razoável dose de concordância, contudo,
quanto à interpretação de várias formas de sonhos que são descritos como
“típicos”, por ocorrerem num grande número de pessoas e com conteúdo muito
semelhante. São eles os conhecidos sonhos de cair de grandes alturas, de dentes
que caem, de voar e do embaraço de estar despido ou insuficientemente vestido.
Este último sonho é atribuído simplesmente ao fato de a pessoa adormecida
perceber que atirou longe os lençóis e está exposta ao ar. O sonho com a queda
dos dentes é atribuído a um “estímulo dental”, embora isso não implique, necessariamente,
que a excitação dos dentes é patológica. De acordo com Strümpell [1877, 119],
sonhar que se está voando é a imagem que a mente considera apropriada como
interpretação do estímulo produzido pela elevação e pelo abaixamento dos lobos
pulmonares nas ocasiões em que as sensações cutâneas no tórax deixam de ser
conscientes: é esta última circunstância que leva à sensação ligada à idéia de
flutuar. Diz-se que o sonho com as quedas de grandes alturas se deve a um braço
que passa a pender do corpo ou a um joelho flexionado que se estende de súbito,
num momento em que a sensação de pressão cutânea começa a não mais ser
consciente; os movimentos em questão fazem com que as sensações táteis voltem a
se tornar conscientes, e a transição para a consciência é psiquicamente
representada pelo sonho de estar caindo (ibid., 118). O evidente ponto fraco
dessas tentativas de explicação, por mais plausíveis que sejam, está no fato de
que, sem quaisquer outras provas, elas podem produzir hipóteses bem-sucedidas de
que este ou aquele grupo de sensações orgânicas entra ou desaparece da
percepção mental, até se obter uma configuração que proporcione uma explicação
do sonho. Mais adiante, terei oportunidade de voltar à questão dos sonhos
típicos e de sua origem. [Ver em [1]-[2] e [3]]
Simon (1888, 34 e segs.) tentou deduzir algumas
das normas que regem a forma pela qual os estímulos orgânicos determinam os
sonhos resultantes, comparando uma série de sonhos semelhantes. Afirma ele que,
quando um aparelho orgânico que normalmente desempenha um papel na expressão de
uma emoção é levado, por alguma causa estranha durante o sonho, ao estado de
excitação que geralmente se produz pela emoção, surge então um sonho que contém
imagens adequadas à emoção em causa. Outra regra estipula que, se um órgão
estiver em estado de atividade, excitação ou perturbação durante o sono,
produzirá imagens relacionadas com o desempenho da função executada pelo órgão
em questão.
Mourly Vold (1896) dispôs-se a provar
experimentalmente, num setor específico, o efeito sobre a produção dos sonhos
que é sustentado pela teoria da estimulação somática. Seus experimentos
consistiram em alterar a posição dos membros de uma pessoa adormecida e
comparar os sonhos resultantes com as alterações efetuadas. Eis como enuncia
seus resultados:
(1) A posição de um membro no sonho corresponde
aproximadamente a sua posição na realidade. Assim, sonhamos com o membro numa
posição estática quando ele se acha efetivamente imóvel.
(2) Ao sonharmos com um membro em movimento, uma
das posições experimentadas no processo de concluir o movimento corresponde,
invariavelmente, à posição real do membro.
(3) A posição do próprio membro do sonhador
pode ser atribuída, no sonho, a alguma outra pessoa.
(4) Pode-se ter um sonho de que o movimento em
questão está sendo impedido.
(5) O membro que se encontra na posição em
questão pode aparecer no sonho como um animal ou um monstro, em cujo caso se
estabelece uma certa analogia entre eles.
(6) A posição de um membro pode dar margem, no
sonho, a pensamentos que tenham alguma relação com o membro. Dessa forma, em se
tratando dos dedos, sonhamos com números.
Estou inclinado a concluir desse tipo de
resultados que nem mesmo a teoria da estimulação somática conseguiu eliminar
inteiramente a visível ausência de determinação na escolha das imagens oníricas
a serem produzidas.
(C) 3. FONTES PSÍQUICAS DE
ESTIMULAÇÃO
Enquanto abordávamos as relações dos sonhos com
a vida de vigília e o material onírico, verificamos que os mais antigos e mais
recentes estudiosos dos sonhos eram unânimes na crença de que os homens sonham
com aquilo que fazem durante o dia e com o que lhes interessa enquanto estão
acordados [em [1]]. Tal interesse, transposto da vida de vigília para o sono,
seria não somente um vínculo mental, um elo entre os sonhos e a vida, como
também nos proporcionaria uma fonte adicional de sonhos, que não seria de se
desprezar. De fato, tomado em um conjunto com os interesses que se desenvolvem
durante o sono - os estímulos que afetam a pessoa adormecida -, talvez ele
pudesse ser suficiente para explicar a origem de todas as imagens oníricas. Mas
também ouvimos a afirmação oposta, ou seja, a de que os sonhos afastam o
sujeito adormecido dos interesses diurnos e que, em regra geral, só começamos a
sonhar com as coisas que mais nos impressionaram durante o dia depois de elas
terem perdido o sabor de realidade na vida de vigília. [Ver em [1] e [2]]
Assim, a cada passo que damos em nossa análise da vida onírica, sentimos que é
impossível fazer generalizações sem nos resguardarmos por meio de ressalvas
como “freqüentemente”, “via de regra” ou “na maioria dos casos”, e sem estarmos
dispostos a admitir a validade das exceções.
Se fosse verdade que os interesses de vigília,
juntamente com os estímulos internos e externos durante o sono, bastam para
esgotar a etiologia dos sonhos, deveríamos estar em condições de dar uma
explicação satisfatória da origem de todos os elementos de um sonho: o enigma
das fontes dos sonhos estaria resolvido, e restaria apenas definir a parcela
cabível, respectivamente, aos estímulos psíquicos e somáticos em qualquer sonho
específico. Na realidade, tal explicação completa de um sonho jamais foi
obtida, e quem quer que tenha tentado consegui-la deparou com partes
(geralmente muito numerosas) do sonho sobre cuja origem nada pôde dizer. Está
claro que os interesses diurnos não são fontes psíquicas tão importantes dos
sonhos quanto se poderia esperar das asserções categóricas de que todas as
pessoas continuam a transpor seus assuntos diários para seus sonhos.
Não se conhecem quaisquer outras fontes
psíquicas dos sonhos. Assim, ocorre que todas as explicações dos sonhos
apresentadas na literatura sobre o assunto - com a possível exceção das de
Scherner, que serão abordadas posteriormente [ver em [1]] - deixam uma grande
lacuna quando se trata de atribuir uma origem às imagens de representação que
constituem o material mais característico dos sonhos. Nessa situação
embaraçosa, a maioria dos que escrevem sobre o assunto tende a reduzir ao
mínimo o papel desempenhado pelos fatores psíquicos na instigação dos sonhos,
visto ser tão difícil chegar a esses fatores. É verdade que esses autores
dividem os sonhos em duas classes principais - as “causadas pela estimulação nervosa”
e as “causadas pela associação”, das quais as últimas têm sua fonte
exclusivamente na reprodução [de material já vivenciado] (cf. Wundt, 1874,
657). Não obstante, não conseguem fugir a uma dúvida: saber “se algum sonho
pode ocorrer sem ser impulsionado por algum estímulo somático” (Volket, 1875,
127). É difícil até mesmo dar uma descrição dos sonhos puramente associativos.
“Nos sonhos associativos propriamente ditos, nãohá nenhuma possibilidade de
existir tal núcleo sólido [derivado da estimulação somática]. Até mesmo o
próprio centro do sonho está apenas frouxamente reunido. Os processos de
representação que não são regidos pela razão ou pelo bom-senso em nenhum sonho,
já nem sequer se mantêm ligados aqui por quaisquer excitações somáticas ou
mentais relativamente importantes, ficando assim entregues a suas próprias
mudanças caleidoscópicas e a sua própria confusão embaralhada.” (ibid., 118.)
Wundt (1874, 656-7) também procura minimizar o fator psíquico na provocação dos
sonhos. Declara que não parece haver justificativa para se considerarem os
fantasmas dos sonhos como puras alucinações; é provável que a maioria das
imagens oníricas consista de fato em ilusões, uma vez que surgem de tênues
impressões sensoriais que jamais cessam durante o sono. Weygandt (1893, 17)
adotou esse mesmo ponto de vista e generalizou sua aplicação. Ele afirma, no
tocante a todas as imagens oníricas, “que suas causas primárias são
estímulos sensoriais e que só depois é que as associações reprodutivas ficam
ligadas a eles”. Tissié (1898, 183) vai ainda mais longe, ao estabelecer um
limite para as fontes psíquicas de estimulação: “Les rêves d’origine
absolument psychique n’existent pas”; e (ibid., 6) “les pensées de nos rêves
nous viennent du dehors…”
Os autores que, como o eminente filósofo Wundt,
adotam uma posição intermediária, não deixam de observar que, na maioria dos
sonhos, os estímulos somáticos e os instigadores psíquicos (sejam eles
desconhecidos ou identificados como interesses diurnos) atuam em cooperação.
Verificaremos mais tarde que o enigma da
formação dos sonhos pode ser solucionado pela revelação de uma insuspeitada
fonte psíquica de estimulação. Entrementes, não teremos nenhuma surpresa ante a
superestimação do papel desempenhado na formação dos sonhos por estímulos que
não decorrem da vida mental. Não apenas eles são fáceis de descobrir e até
mesmo passíveis de confirmação experimental, como também a visão somática da
origem dos sonhos está em perfeita harmonia com a corrente de pensamento
predominante na psiquiatria de hoje. É verdade que a predominância do cérebro
sobre o organismo é sustentada com aparente confiança. Não obstante, qualquer
coisa que possa indicar que a vida mental é de algum modo independente de
alterações orgânicas demonstráveis, ou que suas manifestações são de algum modo
espontâneas, alarma o psiquiatra moderno, como se o reconhecimento dessas
coisas fosse trazer de volta, inevitavelmente, os dias da Filosofia da Natureza
[ver em [1]] e de visão
metafísica da natureza da mente. As suspeitas dos psiquiatras puseram a mente,
por assim dizer, sob tutela, e agora eles insistem em que nenhum de seus
impulsos tenha permissão de sugerir que ela dispõe de quaisquer meios próprios.
Esse comportamento apenas mostra quão pouca confiança eles realmente depositam
na validade de uma relação causal entre o somático e o psíquico. Mesmo quando
uma pesquisa mostra que a causa aprofundada tem de levar mais adiante a trilha
e descobrir uma base orgânica para o fato mental. Mas se, no momento, não
podemos enxergar além do psíquico, isso não é motivo para negar-lhe a
existência.
(D) POR QUE NOS ESQUECEMOS DOS
SONHOS APÓS O DESPERTAR
É fato proverbial que os sonhos se desvanecem
pela manhã. Naturalmente, eles podem ser lembrados, pois só tomamos
conhecimento dos sonhos por meio de nossa recordação deles depois de acordar.
Com freqüência, porém, temos a sensação de nos termos lembrado apenas
parcialmente de um sonho, e de que houve algo mais nele durante a noite;
podemos também observar como a lembrança de um sonho, que ainda era nítida pela
manhã, se dissipa, salvo por alguns pequenos fragmentos, no decorrer do dia;
muitas vezes sabemos que sonhamos, sem saber o que sonhamos; e estamos
tão familiarizados com o fato de os sonhos serem passíveis de ser esquecidos que
não vemos nenhum absurdo na possibilidade de alguém ter tido um sonho à noite
e, pela manhã, não saber o que sonhou, nem sequer o fato de ter sonhado. Por
outro lado, ocorre às vezes que os sonhos mostram extraordinária persistência
na memória. Tenho analisado sonhos de pacientes meus, ocorridos há vinte e
cinco anos ou mais, e lembro-me ainda de um sonho que eu próprio tive há mais
de trinta e sete anos e que, no entanto, está mais nítido que nunca em minha
memória. Tudo isso é muito notável e não é inteligível de imediato.
A explicação mais detalhada do esquecimento dos
sonhos é a que nos fornece Strümpell [1877, 79 e seg.]. Trata-se,
evidentemente, de um fenômeno complexo, pois Strümpell o atribuiu não a uma
causa única, mas a toda uma série delas.
Em primeiro lugar, todas as causas que conduzem
ao esquecimento na vida de vigília operam também no tocante aos sonhos. Quando
estamos acordados, normalmente nos esquecemos, de imediato, de inúmeras
sensações e percepções, seja porque foram fracas demais ou porque a excitação
mental ligada a elas foi excessivamente pequena. O mesmo se aplica a muitas
imagens oníricas: são esquecidas por serem fracas demais, enquanto outras
imagens mais fortes, adjacentes a elas, são recordadas. O fator da intensidade,
contudo, decerto não é suficiente, por si só, para determinar se uma imagem
onírica será lembrada. Strümpell [1877, 82] admite, assim como outros autores
(p. ex. Calkin, 1893, 312), que muitas vezes nos esquecemos de imagens oníricas
que sabemos terem sido muito nítidas, enquanto grande número das que são
obscuras e carentes de força sensorial situam-se entre as que são retidas na
memória. Além disso, quando acordados, tendemosfacilmente a esquecer um fato
que ocorra apenas uma vez e a reparar mais depressa naquilo que possa ser
percebido repetidamente. Ora, a maioria das imagens oníricas constituem
experiências únicas; e esse fato contribui imparcialmente para fazer com
que esqueçamos todos os sonhos. Uma importância muito maior prende-se a uma
terceira causa do esquecimento. Para que as sensações, as representações, os
pensamentos e assim por diante atinjam certo grau de suscetibilidade para serem
lembrados, é essencial que não permaneçam isolados, mas que sejam dispostos em
concatenações e agrupamentos apropriados. Quando um verso curto de uma
composição poética é dividido nas palavras que compõem e estas são
embaralhadas, torna-se muito difícil recordá-lo. “Quando as palavras são
convenientemente dispostas e colocadas na ordem apropriada, uma palavra ajuda a
outra, e o todo, estando carregado de sentido, é facilmente assimilado pela
memória e retido por muito tempo. Em geral, é tão difícil e inusitado conservar
o que é absurdo como reter o que é confuso e desordenado.” [Strümpell, 1877,
83.] Ora, na maioria dos casos, faltam aos sonhos inteligibilidade e ordem. As
composições que constituem os sonhos são desprovidas das qualidades que
tornariam possível recordá-las, sendo esquecidas porque, via de regra,
desfazem-se em pedaços no momento seguinte. Radestock (1879, 168), contudo,
alega ter observado que os sonhos mais peculiares é que são recordados com mais
clareza, e isso, deve-se admitir, dificilmente se coadunaria com o que acaba de
ser dito.
Strümpell [1877, 82 e seg.] acredita que alguns
outros fatores oriundos da relação entre o sonhar e a vida de vigília são de
importância ainda maior na causação do esquecimento dos sonhos. A tendência dos
sonhos a serem esquecidos pela consciência de vigília é, evidentemente, apenas
a contrapartida do fato já mencionado [em [1]] de que os sonhos quase nunca se
apoderam de lembranças ordenadas da vida de vigília. Dessa forma, as
composições oníricas não encontram lugar em companhia das seqüências psíquicas
de que a mente se acha repleta. Nada existe que nos possa ajudar a nos lembrarmos
delas. “Desse modo, as estruturas oníricas estão, por assim dizer, alçadas
acima do piso de nossa vida mental, e flutuam no espaço psíquico como as nuvens
no firmamento, dispersas pelo primeiro sopro de vento.” (Strümpell, 1877, 87.)
Além disso, após o despertar, o mundo dos sentidos exerce pressão e se apossa
imediatamente da atenção com uma forçaà qual muito poucas imagens oníricas
conseguem resistir, de modo que também nisso temos outro fator que tende na
mesma direção. Os sonhos cedem ante as impressões de um novo dia, da mesma
forma que o brilho das estrelas cede à luz do sol.
Por fim, há outro fato que se deve ter em mente
como passível de levar os sonhos a serem esquecidos, a saber, que a maioria das
pessoas tem muito pouco interesse em seus sonhos. Qualquer pessoa, tal como um
pesquisador científico, que preste atenção a seus sonhos por certo período de
tempo, terá mais sonhos do que de hábito - o que sem dúvida significa que passa
a se lembrar de seus sonhos com maior facilidade e freqüência.
Duas outras razões por que os sonhos são
esquecidos, que Benini [1898, 155-6] cita como tendo sido propostas por
Bonatelli [1880] como acréscimos às mencionadas por Strümpell, parecem de fato
já estar abrangidas por estas últimas. São elas: (1) que a alteração da
cenestesia entre os estados de sono e de vigília é desfavorável à reprodução
recíproca entre eles; e (2) que o arranjo diferente do material ideacional nos
sonhos os torna intraduzíveis, por assim dizer, para a consciência de vigília.
Em vista de todas as razões em favor do
esquecimento dos sonhos, é de fato muito notável (como insiste o próprio
Strümpell [1877, 6]) que tantos deles sejam retidos na memória. As repetidas
tentativas dos que escrevem sobre o assunto no sentido de explicitarem as normas
que regem a lembrança dos sonhos equivalem à admissão de que, também aqui,
estamos diante de algo enigmático e inexplicado. Certas características
específicas das lembrança dos sonhos foram acertadamente ressaltadas em época
recente (cf. Radestock, 1879, [169], e Tissié, 1898, [148 e seg.].), como o
fato de que, quando um sonho parece, pela manhã, ter sido esquecido, ainda
assim pode ser recordado no decorrer do dia, caso seu conteúdo, embora
esquecido, seja evocado por alguma percepção casual.
Mas a lembrança dos sonhos, em geral, é
passível de uma objeção que está fadada a reduzir radicalmente o valor de tais
sonhos na opinião crítica. Visto que uma proporção tão grande dos sonhos se
perde por completo, podemos muito bem duvidar se nossa lembrança do que resta
deles não será falseada.
Essas dúvidas quanto à exatidão da reprodução
dos sonhos também são expressas por Strümpell (1877, [119]): “Assim, pode
facilmente acontecer que a consciência de vigília, inadvertidamente, faça
interpolações na lembrança de um sonho: persuadimo-nos de ter sonhado com toda
sorte de coisas que não estavam contidas nos sonhos efetivamente ocorridos.”
Jessen (1855, 547) escreve com especial ênfase
sobre esse ponto: “Além disso, ao se investigar e interpretar sonhos coerentes
e consistentes, deve-seter em mente uma circunstância particular que, ao que me
parece, até agora recebeu muito pouca atenção. Nesses casos, a verdade é quase
sempre obscurecida pelo fato de que, ao recordarmos tal tipo de sonhos, quase
sempre - não intencionalmente e sem notarmos esse fato - preenchemos as lacunas
nas imagens oníricas. Raramente ou nunca um sonho coerente foi de fato tão
coerente quanto nos parece na lembrança. Mesmo o maior amante da verdade
dificilmente consegue relatar um sonho digno de nota sem alguns acréscimos ou
retoques. É tão acentuada a tendência da mente humana a ver tudo de maneira
concatenada que, na memória, ela preenche, sem querer, qualquer falta de
coerência que possa haver num sonho incoerente.”
Algumas observações feitas por Egger [1895,
41], embora sem dúvida tenham sido alcançadas independentemente, soam quase
como uma tradução desse trecho de Jessen: “…L’observation des rêves a ses
difficultés spéciales et le seul moyen d’éviter tout erreur en pareille matière
est de confier au papier sans le moindre retard ce que l’on vient d’éprouver et
de remarquer; sinon, l’oubli vient vite ou total ou partiel; l’oubli total est
sans gravité; mais lóubli partiel est perfide; car si l’on se met ensuite à
raconter ce que l’on n’a pas oublié, on est exposé à compléter par imagination
les fragments incohérents et disjoints fournis par la mémoire (…); on devient
artiste à son insu, et le récit périodiquement répété s’impose à la créance de
son auteur, qui, de bonne foi, le présente comme un fait authentique, dûment
établi selon les bonnes méthodes…”
Idéias muito semelhantes são expressas por
Spitta (1882, 338), que parece crer que é somente quando tentamos reproduzir um
sonho que introduzimos algum tipo de ordem em seus elementos frouxamente associados:
“modificamos coisas que se acham meramente justapostas, transformando-as em
seqüências ou cadeias causais, isto é, introduzimos um processo de conexão
lógica que falta ao sonho.”
Visto que a única verificação que temos da
validade de nossa memória é a confirmação objetiva, e visto que ela não é
obtenível no tocante aos sonhos, que são nossa experiência pessoal e cuja única
fonte de que dispomos é nossa rememoração, que valor podemos ainda atribuir a
nossa lembrança dos sonhos?”
(E) AS CARACTERÍSTICAS
PSICOLÓGICAS DISTINTIVAS DOS SONHOS
Nosso exame científico dos sonhos parte do
pressuposto de que eles são produtos de nossas próprias atividades mentais. Não
obstante, o sonho acabado nos deixa a impressão de algo estranho a nós. Estamos
tão pouco obrigados a reconhecer nossa responsabilidade por ele que [em alemão]
somos tão aptos a dizer “mir hat geträumt” [“tive um sonho”,
literalmente “um sonho veio a mim”] quanto “ich habe geträumt”
[“sonhei”]. Qual a origem desse sentimento de que os sonhos são estranhos a
nossa mente? Em vista de nossa discussão das fontes dos sonhos, devemos
concluir que a estranheza não pode ser causada pelo material que penetra o
conteúdo deles, uma vez que esse material, em sua maior parte, é comum aos
sonhos e à vida de vigília. Surge a questão de determinar se, nos sonhos, não
haverá modificações nos processos da mente que produzam a impressão ora
examinada; por isso, faremos uma tentativa de traçar um quadro dos atributos
psicológicos dos sonhos.
Ninguém ressaltou com maior precisão a
diferença essencial entre o sonhar e a vida de vigília, ou tirou dela
conclusões de maior alcance, do que G. T. Fechner, num trecho de sua obra Elemente
der Psychophysik (1889, 2, 520-1). Em sua opinião, “nem o mero rebaixamento
da vida mental consciente a um nível inferior ao do limiar principal, nem o
desvio da atenção das influências do mundo externo são suficientes para
explicar as características da vida onírica quando contrastadas com a vida de
vigília. Ele suspeita, antes, de que a cena de ação dos sonhos [seja]
diferente da cena da vida de representações de vigília. “Se a cena de ação
da atividade psicofísica fosse a mesma no sono e no estado de vigília, os
sonhos só poderiam ser, segundo meu ponto de vista, um prolongamento, num grau
inferior de intensidade, da vida de representações de vigília, e além disso,
seriam necessariamente do mesmo material e forma. Mas os fatos são bem
diferentes disso.”
Não está claro o que Fechner tinha em mente ao
se referir a essa mudança de localização da atividade mental, nem tampouco, ao
que eu saiba, qualquer outra pessoa seguiu a trilha indicada por suas palavras.
Podemos, penso eu, descartar a possibilidade de dar à frase uma interpretação
anatômica e supor que ela se refere à localização cerebral fisiológica, ou
mesmo às camadas histológicas do córtex cerebral. É possível, porém, que a
sugestão venha finalmente a se revelar sagaz e fértil, se puder ser aplicada a
um aparelho mental composto por várias instâncias dispostas
seqüencialmente, uma após outra.
Outros autores se contentaram em chamar a
atenção para as características distintivas mais tangíveis da vida onírica e em
adotá-las como ponto de partida para tentativas que visavam a explicações de
maior alcance.
Observou-se, justificadamente, que uma das
principais peculiaridades da vida onírica surge durante o próprio processo de
adormecimento, podendo ser descrita como um fenômeno anunciador do sonho. De
acordo com Scheiermacher (1862, 351), o que caracteriza o estado de vigília é o
fato de que a atividade do pensar ocorre em conceitos, e não em imagens.
Já os sonhos pensam essencialmente por meio de imagens e, com a aproximação do
sono, é possível observar como, à medida que as atividades voluntárias se
tornam mais difíceis, surgem representações involuntárias, todas elas se
enquadrando na categoria de imagens. A incapacidade para o trabalho de
representações do tipo que vivenciamos como intencionalmente desejado e o
surgimento (habitualmente associado a tais estados de abstração) de imagens -
estas são duas características perseverantes nos sonhos, que a análise
psicológica dos sonhos nos força a reconhecer como características essenciais
da vida onírica. Já tivemos ocasião de ver [pág. 69 e segs.] que essas imagens
- alucinações hipnagógicas - são, elas próprias, idênticas em seu conteúdo às
imagens oníricas.
Os sonhos, portanto, pensam predominantemente
em imagens visuais - mas não exclusivamente. Utilizam também imagens auditivas
e, em menor grau, impressões que pertencem aos outros sentidos. Além disso,
muitas coisas ocorrem nos sonhos (tal como fazem normalmente na vida de
vigília) simplesmente como pensamentos ou representações - provavelmente, bem
entendido, sob a forma de resíduos de representações verbais. Não obstante, o
que é verdadeiramente característico dos sonhos são apenas os elementos de seu
conteúdo que se comportam como imagens, que se assemelham mais às percepções,
isto é, que são como representações mnêmicas. Deixando de lado todos os
argumentos, tão familiares aos psiquiatras,sobre a natureza das alucinações,
estaremos concordando com todas as autoridades no assunto ao afirmar que os
sonhos alucinam - que substituem os pensamentos por alucinações. Nesse
sentido, não há distinção entre as representações visuais e acústicas: tem-se
observado que, quando se adormece com a lembrança de uma seqüência de notas
musicais na mente, a lembrança se transforma numa alucinação da mesma melodia;
ao passo que, quando se volta a acordar - e os dois estados podem alternar-se
mais de uma vez durante o processo do adormecimento - a alucinação cede lugar,
por sua vez, à representação mnêmica, que é, ao mesmo tempo, mais fraca e
qualitativamente diferente dela.
A transformação de representações em
alucinações não é o único aspecto em que os sonhos diferem de pensamentos
correspondentes na vida de vigília. Os sonhos constroem uma situação a
partir dessas imagens; representam um fato que está realmente acontecendo; como
diz Spitta (1882, 145), eles “dramatizam” uma idéia. Mas essa faceta da vida
onírica só pode ser plenamente compreendida se reconhecermos, além disso, que
nos sonhos - via de regra, pois há exceções que exigem um exame especial -
parecemos não pensar, mas ter uma experiência: em outras
palavras, atribuímos completa crença às alucinações. Somente ao despertarmos é
que surge o comentário crítico de que não tivemos nenhuma experiência, mas
estivemos apenas pensando de uma forma peculiar, ou, dito de outra maneira,
sonhando. É essa característica que distingue os verdadeiros sonhos do devaneio,
que nunca se confunde com a realidade.
Burdach (1838, 502 e seg.) resume com as
seguintes palavras as características da vida onírica que examinamos até agora:
“Figuram entre as características essenciais dos sonhos: (a) Nos sonhos,
a atividade subjetiva de nossa mente aparece de forma objetiva, pois nossas
faculdades perceptivas encaram os produtos de nossa imaginação como se fossem
impressões sensoriais. (…) (b) O sono significa um fim da autoridade do
eu. Daí o adormecimento trazer consigo certo grau de passividade (…) As imagens
que acompanham o sono só podem ocorrer sob a condição de que a autoridade do eu
seja reduzida.”
O passo seguinte consiste em tentar explicar a
crença que a mente deposita nas alucinações oníricas, crença esta que só pode
surgir depois de ter cessado uma espécie de atividade “autoritária” do eu.
Strümpell (1877) argumenta que, neste sentido, a mente executa sua função
corretamente e de conformidade com seu próprio mecanismo. Longe de serem meras
representações, os elementos dos sonhos são experiências mentais verdadeiras e
reais do mesmo tipo das que surgem no estado de vigília através dos
sentidos.(ibid., 34.) A mente em estado de vigília produz representações e
pensamentos em imagens verbais e na fala; nos sonhos, porém, ela o faz em
verdadeiras imagens sensoriais. (Ibid., 35.) Além disso, existe uma consciência
espacial nos sonhos, visto que sensações e imagens são atribuídas a um espaço
externo, tal como o são na vigília. (Ibid., 43.) Se, não obstante, ela comete
um erro ao proceder assim, é porque no estado do sono lhe falta o único
critério que torna possível estabelecer uma distinção entre as percepções
sensoriais provenientes de fora e de dentro. Ela está impossibilitada de
submeter suas imagens oníricas aos únicos testes que poderiam provar sua
realidade objetiva. Além disso, despreza a distinção entre as imagens que só
são arbitrariamente intercambiáveis e os casos em que o elemento do
arbítrio se acha ausente. Ela comete um erro por estar impossibilitada de
aplicar a lei da causalidade ao conteúdo de seus sonhos. (Ibid., 50-1.) Em
suma, o fato de ter-se afastado do mundo externo é também a razão de sua crença
no mundo subjetivo dos sonhos.
Delboeuf (1885, 84) chega à mesma conclusão
após argumentos psicológicos um pouco diferentes. Acreditamos na realidade das
imagens oníricas, diz ele, porque em nosso sono não dispomos de outras
impressões com as quais compará-las, por estarmos desligados do mundo exterior.
Mas a razão pela qual acreditamos na veracidade dessas alucinações não é por
ser impossível submetê-las a um teste dentro do sonho. O sonho pode
parecer oferecer-nos esses testes: pode deixar-nos tocar a rosa que vemos - e,
ainda assim, estaremos sonhando. Na opinião de Delboeuf, existe apenas um
critério válido para determinar se estamos sonhando ou acordados, e esse é o
critério puramente empírico do fato de acordarmos. Concluo que tudo o que
experimentei entre adormecer e acordar foi ilusório quando, ao despertar,
verifico que estou deitado e despido na cama. Durante o sono, tomei as imagens
oníricas por imagens reais graças a meu hábito mental (que não pode ser
adormecido) de supor a existência de um modo externo com o qual estabeleço um
contraste com meu próprio ego.
Assim, o desligamento do mundo externo parece
ser considerado como o fator que determina as características mais marcantes da
vida onírica. Vale a pena, portanto, citar algumas observações perspicazes
feitas há muito tempo por Burdach, que lançam a luz sobre as relações entre a
mente adormecida e o mundo externo, e que são a conta certa para nos impedir de
dar grande valor às conclusões tiradas nas páginas anteriores. “O sono”,
escreve ele, “só pode ocorrer sob a condição de que a mente não seja irritada
por estímulos sensoriais. (…) Mas a precondição real do sono não é tanto a
ausência de estímulos sensoriais, mas antes a falta de interesse neles.
Algumas impressões sensoriais, a rigor, podem ser necessária para acalmar a
mente. Assim, o moleiro só consegue dormir se estiver ouvindo o estalido de seu
moinho, e quem quer que encare como precaução necessária manter uma lamparina
acesa durante a noite acha impossível dormir no escuro.” (Burdach, 1838, 482.)
“No sono, a mente se isola do mundo externo e
se retrai de sua própria periferia. (…) Não obstante, a conexão não se
interrompe inteiramente. Se não pudéssemos ouvir nem sentir enquanto estamos
efetivamente adormecidos, mas só depois de acordarmos, seria inteiramente
impossível despertarmos (…) A persistência da sensação é comprovada com mais
clareza ainda pelo fato de que o que nos desperta não é sempre a mera força
sensorial deuma impressão, mas seu contexto psíquico: um homem adormecido não é
despertado por uma palavra qualquer mas, se for chamado pelo nome, acorda…
Assim, a mente adormecida distingue diferentes sensações (…) É por essa razão
que a falta de um estímulo sensorial pode despertar um homem, caso esteja
relacionada com algo de importância representativa para ele; assim é que o
homem com a lamparina acesa acorda se ela se apagar, e o mesmo acontece com o
moleiro, se seu moinho parar. Em outras palavras, ele é despertado pela
cessação de uma atividade sensorial; e isso implica que tal atividade era
percebida por ele, mas, como era indiferente, ou antes, satisfatória, não lhe
perturbava a mente.” (Ibid., 485-6.)
Mesmo que desprezemos essas objeções - e de
modo algum elas são insignificantes -, teremos de confessar que as
características da vida onírica que consideramos até agora, e que foram
atribuídas a seu desligamento do mundo externo, não explicam inteiramente seu
estranho caráter. Pois, de outro modo, deveria ser possível retransformar as
alucinações de um sonho em representações, e suas situações em pensamentos, e
assim solucionar o problema da interpretação dos sonhos. E isso é realmente o que
fazemos quando, depois de acordar, reproduzimos de memória um sonho; mas, quer
consigamos efetuar essa retradução inteiramente ou apenas em parte, o sonho
continuará tão enigmático quanto antes.
E, com efeito, todas as autoridades presumem,
sem hesitar, que ainda outras e mais profundas modificações do material de
representações da vida de vigília têm lugar nos sonhos. Strümpell (1877, 27-8)
esforçou-se por apontar uma dessas modificações no seguinte trecho: “Com a
cessação do funcionamento sensorial e da consciência vital normal, a mente
perde o solo onde se enraízam seus sentimentos, desejos, interesses e
atividades. Também os estados psíquicos - sentimentos, interesses, juízos de
valor -, que estão ligados a imagens mnêmicas na vida de vigília, ficam sujeitos
a (…) uma pressão obscurecedora, como resultado da qual sua ligação com tais
imagens se rompe; as imagens perceptuais das coisas, pessoas, lugares,
acontecimentos e ações na vida de vigília são reproduzidas separadamente em
grande número, mas nenhuma delas leva consigo seu valor psíquico. Esse
valor é desligado delas e, assim, elas flutuam na mente a seu bel-prazer…” De
acordo com Strümpell, o fato de as imagens serem despojadas de seu valor
psíquico (fato este que, por sua vez, remonta ao desligamento do mundo externo)
desempenha um papel preponderante na criação da impressão de estranheza que
distingue os sonhos da vida real em nossa memória.
Já vimos [em [1]] que o adormecimento envolve,
de imediato, a perda de uma de nossas atividades mentais, qual seja, nosso
poder de imprimir uma orientação intencional à seqüência de nossas
representações. Vemo-nos agora diante da sugestão, que afinal é plausível, de
que os efeitos do estado de sono podem estender-se a todas as faculdades
da mente. Algumas destas parecem ficar inteiramente suspensas, mas surge então
a questão de saber se as demais continuam a funcionar normalmente e se, nessas
condições, são capazes de trabalho normal. E aqui se pode perguntar se
as características distintivas dos sonhos não podem ser explicadas pela redução
da eficiência psíquica no estado do sono - uma idéia que encontra apoio na
impressão causada pelos sonhos em nosso julgamento de vigília. Os sonhos são
desconexos, aceitam as mais violentas contradições sem a mínima objeção, admitem
impossibilidades, desprezam conhecimentos que têm grande importância para nós
na vida diurna e nos revelam como imbecis éticos e morais. Quem quer que se
comportasse, quando acordado, da maneira peculiar às situações dos sonhos,
seria considerado louco. Quem quer que falasse, quando acordado, da maneira
como as pessoas falam nos sonhos, ou descrevesse o tipo de coisas que acontecem
nos sonhos, dar-nos-ia a impressão de ser apalermado ou débil mental. Parecemos
não fazer mais do que pôr a verdade em palavras quando expressamos nossa
opinião extremamente desfavorável sobre a atividade mental nos sonhos e
asseveramos que, neles, as faculdades intelectuais superiores, em particular,
ficam suspensas ou, pelo menos, gravemente prejudicadas.
As autoridades exibem uma inusitada unanimidade
- as exceções serão tratadas adiante [em [1]] - ao expressarem opiniões dessa
natureza sobre os sonhos; e esses julgamentos levam diretamente a uma teoria ou
explicação específica da vida onírica. Mas é chegado o momento de eu deixar as
generalidades e apresentar, em seu lugar, uma série de citações de vários
autores - filósofos e médicos - sobre as características psicológicas dos
sonhos.
Segundo Lemoine (1855), a “incoerência” das
imagens oníricas constitui a característica essencial dos sonhos.
Maury (1878, 163) concorda com ele: “Il n’y
a pas de rêves absolument raisonnables et qui ne contiennent quelque
incohérence, quelque anachronisme, quelque absurdité.”
Spitta [1882, 193] cita Hegel como afirmando
que os sonhos são destituídos de qualquer coerência objetiva e razoável.
Dugas [1897a, 417] escreve: “Le rêve c’est
l’anarchie psychique affetive et mentale, c’est le jeu des fonctions livrées à
elles-mêmes e s’exerçant sans contrôle et sans but; dans le rêve l’esprit est
un automate spirituel”.
Mesmo Volkelt (1875, 14), cuja teoria está
longe de considerar a atividade psíquica durante o sono como destituída de
propósito, fala no “relaxamento na desconexão e na confusão da vida ideativa,
que no estado de vigília se mantém unida pela força lógica do ego central.”
O absurdo das associações de
representações que ocorrem nos sonhos dificilmente poderia ser criticado com
mais agudeza do que por Cícero. (De divinatione, II, [LXXI, 146]): “Nihil
tam praepostere, tam incondite, tam monstruose cogitari potest, quod non
possimus somniare.”
Fechner (1889, 2, 522) escreve: “É como se a
atividade psicológica tivesse sido transportada do cérebro de um homem sensato
para o de um idiota.”
Radestock (1879, 145): “De fato, parece
impossível descobrir quaisquer leis fixas nessa atividade louca. Depois de se
furtarem ao rigoroso policiamento exercido sobre o curso das representações de
vigília pela vontade racional e pela atenção, os sonhos se dissolvem num louco
redemoinho de confusão caleidoscópica.”
Hildebrandt (1875, 45): “Que saltos
surpreendentes o sonhador é capaz de dar, por exemplo, ao extrair inferências!
Com que calma se dispõe a ver as mais familiares lições da experiência viradas
pelo avesso! Que contradições risíveis está pronto a aceitar nas leis da
natureza e da sociedade antes que, como se costuma dizer, as coisas vão além de
um chiste e a tensão excessiva do contra-senso o desperte. Calculamos, sem
nenhum escrúpulo, que três vezes três são vinte; não ficamos nem um pouco
surpresos quando um cão cita um verso de um poema, ou quando um morto anda até
seu túmulo com as próprias pernas, ou quando vemos uma pedra flutuando na água;
dirigimo-nos solenemente, numa importante missão, até o Ducado de Bernburg ou
Principado de Liechtenstein para inspecionarmos suas forças navais; ou somos
persuadidos a nos alistar nos exércitos de Carlos XII pouco antes da batalha de
Poltava.”
Binz (1878, 33), tendo em mente a teoria dos
sonhos que se baseia em impressões como essas, escreve: “O conteúdo de pelo menos
nove dentre dez sonhos é absurdo. Neles reunimos pessoas e coisas que não têm a
menor relação entre si. No momento seguinte, há uma mudança no caleidoscópio e
somos confrontados com um novo agrupamento, ainda mais sem nexo e louco, se é
que isso é possível, do que o anterior. E assim prossegue o jogo mutável do
cérebro incompletamente adormecido, até que despertamos, levamos a mão à testa
e ficamos imaginando se ainda possuímos a capacidade para idéias e pensamentos
racionais.”
Maury (1878, 50) encontra um paralelo para a
relação entre as imagens oníricas e os pensamentos de vigília que há de ser
altamente significativo para os médicos. “La production de ces images que
chez l’homme éveillé fait le plus souvent naître la volonté, correspond, pour
l’intelligence, à ce que sont pour la motilité certains mouvementes que nous
offre la chorée et las affections paralytiques…” E considera os sonhos,
além disso, como “toute une série de dégradations de la faculté pensante et
raisonnante.” (Ibid., 27.)
Quase não chega a ser necessário citar os
autores que repetem a opinião de Maury em relação às várias funções mentais
superiores. Strümpell (1877, 26), por exemplo, observa que nos sonhos - mesmo,
é claro, onde não há contra-senso evidente - há um eclipse de todas as
operações lógicas da mente que se baseiam em relações e conexões. Spitta (1882,
148) declara que as representações que ocorrem nos sonhos parecem estar
inteiramente afastadas da lei de causalidade. Radestock (1879 [153-4]) e outros
autores insistem na fraqueza de julgamento e de inferência característica dos
sonhos. Segundo Jodl (1896, 123), não existe faculdade crítica nos sonhos,
nenhum poder de corrigir um grupo de percepções mediante referência ao conteúdo
geral da consciência. Observa o mesmo autor que “toda sorte de atividade
consciente ocorre nos sonhos, mas apenas de forma incompleta, inibida e
isolada”. As contradições em que os sonhos se envolvem com nosso conhecimento
de vigília são explicadas por Stricker (1879, 98) e muitos outros como causadas
por fatos que são esquecidos nos sonhos ou pelo desaparecimento de relações
lógicas entre as representações. E assim por diante.
Não obstante, os autores que costumam adotar
uma visão tão desfavorável do funcionamento psíquico nos sonhos admitem que ainda
resta neles um certo resíduo de atividade mental. Isso é explicitamente
admitido por Wundt, cujas teorias têm exercido uma influência significativa em
muitos outros pesquisadores neste campo. Qual é, poder-se-ia perguntar, a
natureza do resíduo de atividade mental normal que persiste nos sonhos? Há um
consenso mais ou menos geral de que a faculdade reprodutiva, a memória, parece
ser a que menos sofre, e até mesmo de que mostra certa superioridade a essa
mesma função na vida de vigília (ver Seção B), embora parte dos absurdos dos
sonhos pareça explicável pela propensão da memória a esquecer. Na opinião de
Spitta (1882, 84 e seg.), a parte da mente que não é afetada pelo sono é a vida
dos ânimos, e é esta que dirige os sonhos. Por “ânimo” [“Gemüt”] ele quer
dizer “o conjunto estável de sentimentos que constitui a mais íntima essência
de um ser humano”.
Scholz (1893, 64) acredita que uma das
atividades mentais que atua nos sonhos é a tendência a submeter o material
onírico a uma “reinterpretação em termos alegóricos”. Também Siebeck (1877, 11)
vê nos sonhos uma faculdade mental de “interpretação mais ampla”, que é
exercida sobre todas as sensações e percepções. Há uma dificuldade específica
para avaliar a posição que ocupa, nos sonhos, o que constitui, evidentemente, a
mais elevada das funções psíquicas: a consciência. Visto que tudo o que sabemos
dos sonhos provém da consciência, não pode haver dúvida de que ela persiste
neles; contudo, Spitta (1882, 84-5) acredita que o que persiste nos sonhos é
apenas a consciência, e não a autoconsciência. Delboeuf (1885, 19), no
entanto, se confessa incapaz de perceber essa distinção.
As leis de associação que regem a seqüência de
representações são válidas para as imagens oníricas e, a rigor, sua
predominância é ainda mais nítida e acentuadamente expressa nos sonhos. “Os
sonhos”, afirma Strümpell (1877, 70), “seguem seu curso, ao que parece, segundo
as leis quer das representações simples, quer dos estímulos orgânicos que
acompanham tais representações - isto é, sem serem de forma alguma afetados
pela reflexão, pelo bom-senso, ou pelo gosto estético, ou pelo julgamento
moral.” [Ver em [1] e [2] [3].]
Os autores cujos pontos de vista estou agora
apresentando retratam o processo da formação dos sonhos mais ou menos da
seguinte maneira. A totalidade dos estímulos sensoriais gerados durante o sono,
a partir das várias fontes que já enumerei [ver Seção C], despertam na mente,
em primeiro lugar, diversas representações que aparecem sob a forma de
alucinações, ou, mais propriamente, segundo Wundt [ver em [1]], de ilusões, em
vista de sua derivação de estímulos externos e internos. Essas representações
vinculam-se de acordo com as conhecidas leis da associação e, de conformidade
com as mesmas leis, convocam uma outra série de representações (ou imagens).
Todo esse material é então trabalhado, na medida em que o permita, pelo que
ainda resta das faculdades mentais de organização e pensamento em ação. (Ver,
por exemplo, Wundt [1874, 658] e Weygandt [1893].) Tudo o que permanece irrevelado
são os motivos que decidem se a convocação das imagens decorrentes de fontes
não externas se processará por uma cadeia de associações ou por outra.
Já se observou muitas vezes, no entanto, que as
associações que ligam as imagens oníricas entre si são de natureza muito
especial e diferem das que funcionam no pensamento de vigília. Assim, Volkelt
(1875, 15) escreve: “Nos sonhos, as associações parecem travar uma luta livre,
de acordo com semelhanças e conexões fortuitas que mal são perceptíveis. Todos
os sonhos estão repletos desse tipo de associações desalinhadas e
superficiais.” Maury (1878, 126) atribui enorme importância a essa
característica da maneira como as representações se vinculam nos sonhos, uma
vez que ela lhe permite traçar uma analogia muito estreita entre a vida onírica
e certos distúrbios mentais. Ele especifica duas características básicas de um “délire”:
“(1) une action spontanée et comme automatique de l’esprit; (2) une association
vicieuse et irréguliére des idées.” O próprio Maury apresenta dois
excelentes exemplos de sonhos que ele mesmo teve, nos quais as imagens oníricas
se ligavam meramente por meio de uma semelhança no som das palavras. Certa vez,
ele sonhou que estava numa peregrinação (pèlerinage) a Jerusalém ou
Meca; após muitas aventuras, viu-se visitando o químico Pelletier, que,
depois de conversar um pouco, deu-lhe uma pá (pelle) de zinco; na parte
seguinte do sonho, esta se transformou numa espada de lâmina larga. (Ibid.,
137.) Em outro sonho, estava andando por uma estrada e lendo o número de quilômetros
nos marcos; a seguir, encontrava-se numa mercearia onde havia uma grande
balança, e um homem punha nela pesos de quilogramas para pesar Maury;
disse-lhe então o merceeiro: “O senhor não está em Paris, mas na ilha de Gilolo.”
Seguiram-se várias outras cenas, nas quais ele viu uma Lobélia, e depois
o General Lopes, sobre cuja morte lera pouco antes. Finalmente, enquanto
jogava loto, acordou. (Ibid., 126.)
Sem dúvida, porém, estaremos aptos a constatar
que não se deixou passar em contradição essa baixa estimativa do funcionamento
psíquico nos sonhos - embora a contradição quanto a esse ponto não pareça nada
fácil. Por exemplo, Spitta (1882, 118), um dos depreciadores da vida onírica,
insiste em que as mesmas leis psicológicas que regem a vida de vigília também
se aplicam aos sonhos; e outro, Dugas (1897a), declara que “le rêve n’est
pas déraison ni même irraison pure”. Mas tais afirmações têm pouco valor,
na medida em que seus autores não fazem nenhuma tentativa de conciliá-las com
suas próprias descrições da anarquia psíquica e da ruptura de todas as funções
que predominam nos sonhos. Parece, contudo, ter ocorrido a alguns outros
autores que a loucura dos sonhos talvez não seja desprovida de método e possa
até ser simulada, como a do príncipe dinamarquês sobre o qual se fez esse
arguto julgamento. Estes últimos autores não podem ter julgado pelas
aparências, ou então a aparência a eles apresentada pelos sonhos deve ter sido
diferente.
Assim, Havelock Ellis (1899, 721), sem se deter
no aparente absurdo dos sonhos, refere-se a eles como “um mundo arcaico de
vastas emoções e pensamentos imperfeitos” cujo estudo talvez nos revele
estágios primitivos da evolução da vida mental.
O mesmo ponto de vista é expresso por
James Sully (1893, 362), numa forma que é, ao mesmo tempo, mais abrangente e
mais perspicaz. Suas palavras merecem ainda mais atenção tendo em mente que ele
talvez estivesse mais firmemente convencido do que qualquer outro psicólogo de
que os sonhos têm um significado disfarçado. “Ora, nossos sonhos constituem um
meio de conservar essas personalidades sucessivas [anteriores]. Quando
adormecidos, retornamos às antigas formas de encarar as coisas e de senti-las,
a impulsos e atividades que nos dominavam muito tempo atrás.”
O sagaz Delboeuf (1885, 222) declara (embora
cometa o erro de não apresentar qualquer refutação do material que contradiz
sua tese): “Dans le sommeil, hormis la perception, toutes les facultés de
l’esprit, intelligence, imagination, mémoire, volonté, moralité, restent
intactes dans leur essence; seulement elles s’apliquent à des objets
imaginaires et mobiles. Le songeur est un
acteur qui joue à volonté les fous et les sages, les bourreaux et les victimes,
les nains et les géants, les démons et les anges.”
O mais ferrenho oponente dos que procuram
depreciar o funcionamento psíquico nos sonhos parece ser o Marquês d’Hervey de
Saint-Denys [1867], com quem Maury travou viva controvérsia, e cujo livro,
apesar de todos os meus esforços, não consegui obter. Maury (1878, 19)
escreve a respeito dele: “M. le Marquis d’Hervey prête à l’intelligence
durant le sommeil, toute sa liberté d’action et d’attention et il ne semble
faire consister le sommeil que dans l’occlusion des sens, dans leur fermeture
au monde extérieur; en sorte que l’homme qui dortè ne se distingue guère, selon
sa manière de voir, de l’homme qui laisse vaguer sa pensée en se bouchant les
sens; toute la différence qui sépare alors la pensée ordinaire de celle du
dormeur c’est que, chez celui-ci, l’idée prend une forme visible, objective et
ressemble, à s’y méprendre, à la sensation déterminée par les objetes
extérieurs; le souvenir revêt l’apparence du fait présent.” A isso Maury
acrescenta “qu’il y a une différence de plus et capitale à savoir que les
facultés intellectuelles de l’homme endormi n’offrent pas l’èquilibre qu’elles
gardent chez l’homme éveillé.”
Vaschide (1911, 146 e seg.) nos fornece uma
exposição mais clara do livro de Hervey de Saint-Denys e cita dele um trecho
[1867, 35] sobre a aparente incoerência dos sonhos: “L’image du rêve est la
copie de l’idée. Le pincipal est l’idée;
la vision n’est qu’accessoire. Ceci établi, il faut savior suivre la marche des
idées, il faut savoir analyser le tissu des rêves; l’incohérence devientes…
alors compréhensible, les conceptions les plus fantasques deviennent des faits
simples et parfaitement logiques- Les rêves les plus bizarres trouvent même une
explication des plus logiques quand on sait les analyser.”
Johan Stärcke (1913, 243) salientou que uma
explicação semelhante da incoerência dos sonhos fora proposta por um autor mais
antigo, Wolf Davidson (1799, 136), cuja obra me era desconhecida; “Todos os
notáveis saltos dados por nossas representações nos sonhos têm sua base na lei
da associação; às vezes, contudo, essas conexões ocorrem na mente de maneira
muito obscura, de modo que muitas vezes nossas representações parecem ter dado
um salto, quando, de fato, não houve salto algum.”
A literatura sobre o assunto mostra, assim, uma
gama muito ampla de variação quanto ao valor que ela atribui aos sonhos como
produtos psíquicos. Essa amplitude se estende desde o mais profundo menosprezo,
do tipo com que nos familiarizamos, passando por indícios de uma valorização
ainda não revelada, até uma supervalorização que coloca os sonhos numa posição
muito mais elevada do que qualquer das funções da vida de vigília. Hildebrandt
(1875, 19 e seg.), que, como já soubemos [ver em [1]], enfeixou todas as características
psicológicas da vida onírica em três antinomias, vale-se dos dois pontos
extremos dessa faixa de valores para compor seu terceiro paradoxo: “trata-se de
um contraste entre uma intensificação da vida mental, um realce dela que não
raro corresponde ao virtuosismo e, por outro lado, uma deterioração e um
enfraquecimento que muitas vezes submergem abaixo do nível da humanidade. No
tocante à primeira, poucos há dentre nós que não possam afirmar, por nossa
própria experiência, que vez por outra surge, nas criações e tramas do gênio
dos sonos, uma tal profundeza e intimidade da emoção, uma delicadeza do
sentimento, uma clareza de visão, uma sutileza de observação e um tal brilho do
espírito que jamais alegaríamos ter permanentemente a nosso dispor em nossa vida
de vigília. Há nos sonhos uma encantadora poesia, uma alegoria arguta, um humor
incomparável, uma rara ironia. O sonho contempla o mundo à luz de um estranho
idealismo e, muitas vezes, realça os efeitos do que vê pela profunda
compreensão de sua natureza essencial. Retrata a beleza terrena ante nossos
olhos num esplendor verdadeiramente celestial e reveste a dignidade com a mais
alta majestade; mostra-nos nossos temores cotidianos da mais aterradora forma e
converte nosso divertimento em chistes de uma pungência indescritível. E
algumas vezes, quando estamos acordados e ainda sob o pleno impacto de uma
experiência como essa, não podemos deixar de sentir que jamais em nossa vida o
mundo real nos ofereceu algo que lhe fosse equivalente.”
Podemos muito bem perguntar se os comentários
depreciativos citados nas páginas anteriores e esse entusiástico elogio têm
alguma possibilidade de estar relacionados com a mesma coisa. Será que algumas
de nossas autoridades desprezaram os sonhos disparatados, e outras, os profundos
e sutis? E, se ocorrerem sonhos de ambas as espécies, sonhos que justificam
ambos os julgamentos, não seria um desperdício de tempo buscar qualquer
característica psicológica distintiva dos sonhos? Não será bastante dizer que
nos sonhos tudo é possível - desde a mais profunda degradação da vida
mental até uma exaltação dela que é rara nas horas de vigília? Por mais
conveniente que fosse uma solução desse tipo, o que se opõe a ela é o fato de
que todos os esforços para pesquisar o problema dos sonhos parecem basear-se na
convicção de que realmente existe uma característica distintiva, que é
universalmente válida em seus contornos essenciais e que limparia do caminho
essas aparentes contradições.
Não há dúvida de que as realizações psíquicas
dos sonhos receberam um reconhecimento mais rápido e mais caloroso durante o
período intelectual que agora ficou para trás, quando a mente humana era
dominada pela filosofia, e não pelas ciências naturais exatas. Pronunciamentos
como o de Schubert (1814, 20 e seg.), de que os sonhos constituem uma
libertação do espírito em relação ao poder da natureza externa, uma liberação
da alma entre os grilhões dos sentidos, e outros comentários semelhantes do
jovem Fichte (1864, 1, 143 e seg.) e de outros, todos os quais retratam
os sonhos como uma elevação da vida mental a um nível superior, parecem-nos
agora quase ininteligíveis; hoje em dia, são repetidos apenas pelos místicos
e pelos carolas. A introdução do modelo de pensamento científico trouxe
consigouma reação na apreciação dos sonhos. Os autores médicos, em especial,
tendem a considerar a atividade psíquica nos sonhos como trivial e desprovida
de valor, enquanto os filósofos e os observadores não profissionais - os
psicólogos amadores - cujas contribuições para esse assunto específico não
devem ser desprezadas - têm conservado (numa afinidade mais estreita com o
sentimento popular) a crença no valor psíquico dos sonhos. Quem quer que se
incline a adotar uma visão depreciativa do funcionamento psíquico nos sonhos
preferirá, naturalmente, atribuir a fonte deles à estimulação somática; ao
passo que os que acreditam que a mente preserva, ao sonhar, a maior parte de
suas capacidades de vigília não têm nenhuma razão, é claro, para negar que o
estímulo ao sonho pode surgir dentro da própria mente que sonha.
Dentre as faculdades superiores que até uma
sóbria comparação pode inclinar-se a atribuir à vida onírica, a mais acentuada
é a da memória; já examinamos longamente [na Seção B] as provas nada incomuns
em defesa desse ponto de vista. Outro ponto de superioridade da vida onírica,
muitas vezes louvado pelos autores mais antigos - o de que ela se eleva acima
da distância no tempo e no espaço -, pode ser facilmente comprovado como não
tendo base nos fatos. Como frisa Hildebrandt (1875, [25]), essa vantagem é
ilusória, pois o sonhar se eleva acima do tempo e do espaço precisamente da
mesma forma que o pensamento de vigília, e pela simples razão de que ele é
apenas uma forma de pensamento. Tem-se alegado, em defesa dos sonhos, que eles
desfrutam ainda de outra vantagem sobre a vida de vigília em relação ao tempo -
que são independentes da passagem do tempo ainda sob outro aspecto. Sonhos como
o que teve Maury com seu próprio guilhotinamento (ver pág. [1]) parecem indicar
que um sonho é capaz de comprimir um espaço muito maior do que a quantidade de
material de representações com que pode lidar nossa mente em estado de vigília.
Essa conclusão, no entanto, tem sido contestada por vários argumentos; desde o
trabalho de Le Lorrain (1894) e Egger (1895) sobre a duração aparente dos
sonhos, desenvolveu-se um longo e interessante debate sobre o assunto, mas
parece improvável que a última palavra já tenha sido dita acerca dessa questão
sutil e das profundas implicações que ela envolve.
Relatos de numerosos casos, bem como a
coletânea de exemplos feitos por Chabaneix (1897), parecem tornar indiscutível
o fato de que os sonhos são capazes de dar prosseguimento ao trabalho
intelectual diurno e levá-lo a conclusões que não foram alcançadas durante o dia,
e que podem resolver dúvidas e problemas e constituir a fonte de uma nova
inspiração para os poetas e compositores musicais. Mas, embora o fato
seja indiscutível, suas implicações estão abertas a muitas dúvidas, que
levantam questões de princípio.
Por fim, considera-se que os sonhos têm o poder
de adivinhar o futuro. Temos aqui um conflito em que um ceticismo quase
insuperável se defronta com asserções obstinadamente repetidas. Sem dúvida
alguma, estaremos agindo com acerto não insistindo em que esse ponto de vista
não tem nenhum fundamento nos fatos, pois é possível que, dentro em breve,
muitos dos exemplos citados venham a encontrar explicação no âmbito da
psicologia natural.
(F) O SENTIDO MORAL NOS SONHOS
Por motivos que só se tornarão evidentes depois
que minhas pesquisas sobre os sonhos forem levadas em conta, isolei do assunto
da psicologia dos sonhos o problema especial de determinar se e até que ponto
as inclinações e sentimentos morais se estendem até a vida onírica. Também aqui
nos vemos diante dos mesmos pontos de vista contraditórios que, curiosamente,
vimos adotados por diferentes autores no tocante a todas as outras funções da
mente durante os sonhos. Alguns asseveram que os ditames da moralidade não têm
lugar nos sonhos, enquanto outros sustentam não menos categoricamente que o
caráter moral do homem persiste em sua vida onírica.
O recurso à experiência comum dos sonhos parece
estabelecer, sem sombra de dúvida, a correção do primeiro desses pontos de
vista. Jessen (1855, 553) escreve: “Tampouco nos tornamos melhores nem mais
virtuosos no sono. Pelo contrário, a consciência parece ficar silenciosa nos
sonhos, pois neles não sentimos nenhuma piedade e podemos cometer os piores
crimes - roubo, violência e assassinato - com completa indiferença e sem
quaisquer sentimentos posteriores de remorso.”
Radestock (1879, 164): “Deve-se ter em mente
que ocorrem associações e vinculam-se representações nos sonhos sem nenhum
respeito pela reflexão, bom-senso, gosto estético ou julgamento moral. O
julgamento extremamente fraco e a indiferença ética reina, suprema.”
Volkelt (1875, 23): “Nos sonhos, como todos
sabemos, os procedimentos são particularmente irrefreados nos assuntos sexuais.
O próprio indivíduo que sonha fica inteiramente despudorado e destituído de
qualquer sentimento ou julgamento moral; além disso, vê todos os demais,
inclusive aqueles por quem nutre o mais profundo respeito, entregues a atos com
os quais ficaria horrorizado em associá-los quando acordado, até mesmo em seus
pensamentos.”
Em oposição diametral a estas, encontramos
declarações como a de Schopenhauer [1862, 1, 245], no sentido de que qualquer
pessoa que apareça num sonho age e fala em completo acordo com seu caráter. K.
P. Fischer (1850, 72 e seg.), citado por Spitta (1882, 188), declara que os
sentimentos e anseios subjetivos, ou os afetos e as paixões, revelam-se na
liberdade da vida onírica, e que as características morais das pessoas se
refletem em seus sonhos.
Haffner (1887, 251): “Com raras exceções (…) o
homem virtuoso é virtuoso também em seus sonhos; resiste às tentações e se
mantém afastado do ódio, da inveja, da cólera e de todos os outros vícios. Mas
o pecador, em geral, encontra em seus sonhos as mesmas imagens que tinha ante
seus olhos quando acordado.”
Scholz [1893, 62]: “Nos sonhos está a verdade: nos
sonhos aprendemos a conhecer-nos tal como somos, a despeito de todos os
disfarces que usamos perante o mundo [sejam eles enobrecedores ou humilhantes]
(…) O homem honrado não pode cometer um crime nos sonhos, ou, se o fizer,
ficará tão horrorizado com isso como com algo contrário à sua natureza. O
imperador romano que condenou à morte um homem que sonhara ter assassinado o
governante estaria justificado em fazê-lo, se raciocinasse que os pensamentos
que se têm nos sonhos também se têm quando em estado de vigília. A expressão
corriqueira ‘eu nem sonharia em fazer tal coisa’ tem um significado duplamente
correto, quando se refere a algo que não pode encontrar guarida em nosso
coração nem em nossa mente.” (Platão, ao contrário, considerava que os
melhores homens são aqueles que apenas sonham com o que os outros fazem
em sua vida de vigília.)
Pfaff (1868, [9]), citado por Spitta (1882,
192), altera a formulação de um ditado familiar: “Diz-me alguns de teus sonhos
e te direi quem é teu eu interior.”
O problema da moral nos sonhos é tomado como o
centro do interesse por Hildebrandt, de cujo pequeno volume já fiz tantaz
citações - pois, de todas as contribuições ao estudo dos sonhos com que
deparei, ele é o mais perfeito quanto à forma e o mais rico de idéias. Também
Hildebrandt [1875, 54] formula como norma que, quanto mais pura a vida, mais
puro o sonho, e quanto mais impura aquela, mais impuro este. Ele crê que a
natureza moral do homem persiste nos sonhos. “Enquanto”, escreve ele, “até o
mais grosseiro erro de aritmética, até a mais romântica inversão das leis
científicas, até o mais ridículo anacronismo deixa de nos perturbar, ou mesmo
de despertar nossas suspeitas, nunca perdemos de vista a distinção entre o bem
e o mal, entre o certo e o errado, ou entre a virtude e o vício. Não importa
quanto do que nos acompanha durante o dia desapareça em nossas horas de sono,
oimperativo categórico de Kant é um companheiro que nos segue tão de perto em
nossos calcanhares que não nos podemos ver livres dele nem quando adormecidos,
(…) Mas isso só pode ser explicado pelo fato de que o que é fundamental na
natureza do homem, seu ser moral, está fixado com firmeza demais para ser
afetado pelo embaralhamento caleidoscópico ao qual a imaginação, a razão, a
memória e outras dessas faculdades têm de se submeter nos sonhos.” (Ibid., 45 e
seg.)
À medida que prossegue o debate sobre esse
assunto, contudo, ambos os grupos de autores começam a exibir notáveis mudanças
e incoerências em suas opiniões. Os que sustentam que a personalidade moral do
homem deixa de funcionar nos sonhos deveriam, pelo rigor da lógica, perder todo
o interesse nos sonhos imorais. Poderiam rejeitar qualquer tentativa de
responsabilizar o sonhador por seus sonhos, ou de deduzir da maldade de seus
sonhos que haveria um traço maligno em seu caráter, com a mesma confiança com
que rejeitariam uma tentativa semelhante de deduzir do absurdo de seus sonhos
que as atividades intelectuais dele, na vida de vigília, seriam destituídas de valor.
O outro grupo, que acredita que o “imperativo categórico” se estende aos
sonhos, deveria logicamente aceitar uma responsabilidade irrestrita pelos
sonhos imorais. Só nos restaria esperar, pelo bem deles, que eles mesmos não
tivessem tais sonhos repreensíveis, capazes de perturbar sua sólida crença em
seu próprio caráter moral.
Parece, no entanto, que ninguém é tão confiante
assim quanto a até que ponto é bom ou mau, e que ninguém pode negar a lembrança
de ter tido seus próprios sonhos imorais. Pois os autores de ambos os grupos,
independentemente da oposição entre suas opiniões sobre a moralidade onírica,
fazem esforços para explicar a origem dos sonhos imorais; e surge uma nova
diferença de opinião, conforme a origem deles seja baseada nas funções da mente
ou nos efeitos perniciosos produzidos na mente por causas somáticas. Assim, a
lógica imperativa dos fatos compele tanto os defensores da responsabilidade
como da irresponsabilidade da vida onírica a se aliarem no reconhecimento de
que a imoralidade dos sonhos tem uma fonte psíquica específica.
Os que crêem que a moral se estende aos sonhos,
porém, mostram-se cautelosos para evitar assumir completa
responsabilidade por seus sonhos. Assim, escreve Haffner (1887, 250): “Não
somos responsáveis por nossos sonhos, visto que neles nosso pensamento e nossa
vontade são privados do único fundamento com base no qual nossa vida possui
verdade e realidade. (…) Por essa razão, nenhum desejo onírico ou ação onírica
pode ser virtuoso ou pecaminoso.” Não obstante, prossegue ele, os homens são
responsáveis por seus sonhos pecaminosos na medida em que os provocam
indiretamente.Eles têm o dever de limpar moralmente suas mentes, não só na vida
de vigília como também, mas especialmente, antes de irem dormir.
Hildebrandt [1875, 48 e seg.] nos fornece uma
análise muito mais profunda dessa mescla de rejeição e aceitação da
responsabilidade pelo conteúdo moral dos sonhos. Argumenta que, ao considerar a
aparência imoral dos sonhos, deve-se fazer uma concessão à forma dramática em que
eles se expressam, à compressão que fazem dos mais complicados processos de
reflexão nos mais curtos períodos de tempo, e também à forma pela qual, como
até ele admite, os elementos de representação se tornam confusos e privados de
sua significância. Ainda assim, Hildebrandt confessa que sente enorme
hesitação, em pensar que toda a responsabilidade pelos pecados e erros dos
sonhos pode ser repudiada.
“Quando estamos ansiosos por negar alguma
acusação injusta, especialmente uma acusação que se relacione com nossos
objetivos e intenções, muitas vezes usamos a frase ‘eu nunca sonharia com tal
coisa’. Desse modo expressamos, por um lado, nosso sentimento de que a região
dos sonhos é a mais remota e distante das áreas em que somos responsáveis por
nossos pensamentos, já que os pensamentos nessa região acham-se tão frouxamente
ligados com nosso eu essencial que mal podem ser considerados como nossos; mas,
ainda assim, visto nos sentirmos expressamente obrigados a negar a existência
desses pensamentos nessa região, admitimos indiretamente, ao mesmo tempo, que
nossa autojustificação não seria completa caso não se estendesse até esse
ponto. E penso que nisso falamos, embora inconscientemente, a linguagem da
verdade.” (Ibid., 49.)
“É impossível pensar em qualquer ato de um
sonho cuja motivação original não tenha passado, de um modo ou de outro - fosse
como desejo, anseio ou impulso -, através da mente desperta.” Devemos admitir,
prossegue Hildebrandt, que esse impulso original não foi inventado pelo sonho;
o sonho simplesmente o copiou e desdobrou, meramente elaborou de forma
dramática um fragmento de material histórico que encontrou em nós; meramente
dramatizou as palavras do Apóstolo: “Todo aquele que odeia seu irmão é
assassino.” [1 João 3, 15.] E embora, depois de acordarmos, conscientes da
nossa força moral, possamos sorrir de toda a elaborada estrutura do sonho
pecaminoso, mesmo assim o material original de que derivou a estrutura não
conseguirá despertar um sorriso. Sentimo-nos responsáveis pelos erros do sonhador
- não por sua totalidade, mas por uma certa percentagem. “Em suma, se
compreendemos, nesse sentido quase incontestável, as palavras de Cristo, de que
‘do coração procedem os maus pensamentos’ [Mateus 15, 19], dificilmente
escaparemos à convicção de queum pecado cometido num sonho traz em si pelo
menos um mínimo obscuro de culpa.” (Hildebrandt, 1875, 51 e segs.)
Assim, Hildebrandt encontra a fonte da
imoralidade dos sonhos nos germes e indícios de impulsos maléficos que, sob a
forma de tentações, atravessam nossa mente durante o dia; e ele não hesita em
incluir esses elementos imorais em sua estimativa do valor moral de uma pessoa.
Esses mesmos pensamentos, como sabemos, e essa mesma avaliação deles, é que
conduziram os devotos e santos de todas as épocas a se confessarem míseros
pecadores.
Naturalmente, não há dúvida quanto à existência
geral de tais representações incompatíveis; elas ocorrem na maioria das pessoas
e em outras esferas que não a da ética. Por vezes, entretanto, têm sido
julgadas com menos seriedade. Spitta (1882, 194) cita algumas observações de
Zeller [1818, 120-1] que são relevantes a esse respeito: “É raro uma mente ser
tão bem organizada a ponto de possuir completo poder em todos os momentos e de
não ter o curso regular e livre de seus pensamentos constantemente
interrompido, não só por representações não essenciais como também por
representações decididamente grotescas e disparatadas. Com efeito, os maiores
pensadores viram-se obrigados a se queixar dessa confusão oniróide, incômoda e
torturante de representações que perturbava suas reflexões mais profundas e
seus mais solenes e sinceros pensamentos.”
Uma luz mais reveladora é lançada sobre a
posição psicológica dessas idéias incompatíveis por meio de outra observação de
Hildebrandt (1875, 55), no sentido de que os sonhos nos proporcionam um
vislumbre ocasional de profundezas e recessos de nossa natureza a que em geral
não temos acesso em nosso estado de vigília. Kant expressa a mesma idéia num
trecho de sua Anthropologie [1798], onde declara que os
sonhos parecem existir para nos mostrar nossas naturezas ocultas e nos revelar
não o que somos, mas o que poderíamos ter sido se tivéssemos sido criados de
maneira diferente. Radestock (1879, 84) afirma igualmente que, com freqüência,
os sonhos não fazem mais do que nos revelar o que não admitiríamos para nós
mesmos, e que,portanto, é injusto de nossa parte estigmatizá-los como
mentirosos e impostores. Erdmann [1852, 115] escreve: “Os sonhos nunca me
mostraram o que devo pensar de um homem; mas, ocasionalmente, tenho descoberto
por meio de um sonho, para meu próprio grande assombro, o que realmente
penso de um homem e como me sinto em relação a ele.” De modo semelhante, I. H.
Fichte (1864, 1, 539) observa: “A natureza de nossos sonhos proporciona um
reflexo muito mais verdadeiro de toda a nossa inclinação do que somos capazes
de descobrir sobre ela por meio da auto-observação na vida de vigília.”
Observa-se que o surgimento de impulsos alheios
a nossa consciência moral é meramente análogo ao que já aprendemos - ao fato de
os sonhos terem acesso a um material ideativo que está ausente em nosso estado
de vigília ou desempenha nele apenas um pequeno papel. Assim, escreve Benini
(1898, 149): “Certe nostre inclinazioni che si credevano soffocate e spente
da un pezzo, si ridestano; passioni vecchie e sepolte rivivono: cose e persone
a cui non pensiamo mai, ci vengono dinanzi.” E Volkelt (1875, 105): “Também
algumas representações que penetraram na consciência de vigília quase
despercebidas, e que talvez nunca tenham sido re-evocadas pela memória, com
muita freqüência anunciam sua presença na mente através de sonhos.” A esta
altura, finalmente, podemos relembrar a asserção de Schleiermacher [ver em [1]]
de que o ato de adormecer é acompanhado pelo aparecimento de “representações
involuntárias” ou imagens involuntárias.
Podemos, portanto, classificar em conjunto, sob
a epígrafe de “representações involuntárias”, todo o material de representações
cujo surgimento, tanto nos sonhos imorais quanto nos sonhos absurdos, nos causa
tanto espanto. Há, porém, um importante ponto de diferenciação: as
representações involuntárias na esfera moral contradizem nossa atitude mental
costumeira, ao passo que as outras simplesmente nos causam uma impressão de
estranheza. Ainda não se tomou nenhuma providência no sentido de um
conhecimento mais profundo que pudesse solucionar essa distinção.
Surge em seguida a questão da importância
do aparecimento de representações involuntárias nos sonhos, da luz que pode ser
lançada pelo surgimento noturno desses impulsos moralmente incompatíveis na
psicologia da mente desperta e da que sonha. E aqui encontramos uma nova
divisão de opiniões e mais um agrupamento diferente das autoridades. A linha de
pensamento adotada por Hildebrandt e outros que partilham de sua posição
fundamental conduz, inevitavelmente, à visão de que os impulsos morais possuem
certo grau de poder até mesmo na vida de vigília, embora seja um poder inibido,
incapaz de se impor à ação, e que, no sono, desativa-se algo que atua como uma
inibição durante o dia e nos impede de nos conscientizarmos da existência de
tais impulsos. Assim, os sonhos revelariam a verdadeira natureza do homem,
embora não toda a sua natureza, e constituiriam um meio de tornar o
interior oculto da mente acessível a nosso conhecimento. É somente em premissas
como essas que Hildebrandt [1875, 56] pode basear sua atribuição aos sonhos de
poderes de advertência, que atraem nossa atenção para as fraquezas morais de
nossa mente, da mesma forma que os médicos admitem que os sonhos podem trazer
males físicos não observados a nossa atenção consciente. Do mesmo modo, Spitta
deve estar adotando esse ponto de vista quando, ao falar [1882, 193 e seg.] nas
fontes de excitação que afetam a mente (na puberdade, por exemplo), consola o
sonhador com a certeza de que ele terá feito tudo o que está em seu poder se
levar uma vida rigorosamente virtuosa em suas horas de vigília, e se tomar o
cuidado de suprimir os pensamentos pecaminosos sempre que eles surgirem, e de impedir
sua maturação e transformação em atos. Segundo essa visão, poderíamos definir
as “representações involuntárias” como “representações que foram “suprimidas”
durante o dia, e teríamos de encarar seu surgimento como um fenômeno mental
autêntico.
Outros autores, porém, consideram
injustificável esta última conclusão. Assim, Jessen (1855, 360) acredita que as
representações involuntárias, tanto nos sonhos como no estado de vigília, e
também nos estados febris e outras situações de delírio, “têm o caráter de uma
atividade volitiva que foi posta em repouso e de uma sucessão mais ou menos
mecânica de imagens e representações provocadas por impulsos internos”. Tudo o
que um sonho imoral prova quanto à vida mental do sonhador é que, segundo a
visão de Jessen, em alguma ocasião ele teve conhecimento do conteúdo de
representações em questão; certamente não constitui evidência de um impulso
mental próprio do sonhador.
No tocante a outro autor, Maury, chega quase a
parecer que também ele atribui ao estado onírico uma capacidade não de
destruição arbitrária da atividade mental, mas de decomposição dela em seus
elementos constitutivos. Assim escreve ele sobre os sonhos que transgridem os
ditames da moral: “Ce sont nos penchants qui parlent et qui nous font agir,
sans que la conscience nous retienne, bien que parfois elle nous avertisse.
J’ai mes défauts et mes penchants vicieux; à l’état de veille je tâche de
lutter contre eux, et il m’arrive assez souvent de n’y pas succomber. Mais dans
mes songes j’y succombe toujours ou pour mieux dire j’agis par leur impulsion,
sans crainte et sans remords. (…) Evidemment les visions qui se déroulent
devant ma pensée et qui constituen le rêve, me sont suggérées par les
incitations que je ressens et que ma volonté absente ne cherche pas à
refouler.” (Maury, 1878, 113.)
Ninguém que acredite na capacidade dos sonhos
de revelar uma tendência imoral do sonhador, a qual esteja realmente presente,
embora suprimida ou oculta, poderia expressar seu ponto de vista mais
precisamente do que nas palavras de Maury: “En rêve l’homme se révèle donc
tout entier à soi-même dans sa nudité et sa misère natives. Dès qu’il suspend
l’exercice de sa volonté, il devient le jouet de toutes les passions contres
lesquelles, à l’état de veille, la conscience, le sentiment de l’honneur, la
crainte nous défendent.” (Ibid., 165.) Num outro trecho encontramos as
seguintes frases pertinentes: “Dans le songe, c’est surtout l’homme
instinctif qui se révèle. (…) L’homme revient pour ainsi dire à l’état de
nature quand il rêve; mais moins les idées acquises ont pénétré dans encore sur
lui l’influence dans le rêve.” (Ibid., 462.) E Maury prossegue relatando, à
guisa de exemplo, como, em seus sonhos, ele é, não raro, vítima da própria
superstição que combate em seus textos com particular veemência.
Essas reflexões penetrantes de Maury, contudo,
perdem seu valor na investigação da vida onírica, pelo fato de ele considerar
os fenômenos que observou com tanta exatidão como não passando de provas de um
“automatisme psychologique” que, em sua opinião, domina os sonhos, e que
ele encara como o oposto exato da atividade mental.
Stricker (1879, [51]) escreve: “Os sonhos não
consistem unicamente em ilusões. Quando, por exemplo, num sonho alguém tem medo
de ladrões, os ladrões, é verdade, são imaginários - mas o medo é real.”
Isso nos chama a atenção para o fato de os afetos nos sonhos não poderem
ser julgados da mesma forma que o restante de seu conteúdo; e nos confrontamos
com o problema de determinar que parte dos processos psíquicos que ocorrem nos
sonhos deve ser tomada como real, isto é, que parte tem o direito de figurar
entre os processos psíquicos da vida de vigília.
(G) TEORIAS DO SONHAR E DE SUA
FUNÇÃO
Qualquer investigação sobre os sonhos que
procure explicar o maior número possível de suas características observadas de
um ponto de vista particular, e que, ao mesmo tempo, defina a posição ocupada
pelos sonhos numa esfera mais ampla de fenômenos merece ser chamada de teoria
dos sonhos. Verificaremos que as várias teorias diferem no sentido de
selecionarem uma ou outra característica dos sonhos como sendo a essencial e de
tornarem-na como ponto de partida para suas explicações e correlações. Não
precisa ser necessariamente possível inferir uma função do sonhar (seja
ela utilitária ou não) a partir da teoria. Não obstante, visto termos o hábito
de buscar explicações teleológicas, estaremos mais propensos a aceitar teorias
que estejam ligadas com a atribuição de uma função ao sonhar.
Já travamos conhecimento com vários grupos de
pontos de vista que merecem ser mais ou menos intitulados de teorias dos sonhos
neste sentido do termo. A crença sustentada na Antiguidade de que os sonhos
eram enviados pelos deuses para orientar as ações dos homens constituía uma
teoria completa dos sonhos, proporcionando informações sobre tudo o que valia a
pena saber a respeito deles. Desde que os sonhos passaram a ser objeto da
pesquisa científica, desenvolveu-se um número considerável de teorias,
inclusive algumas que são extremamente incompletas.
Sem a intenção de fazer qualquer enumeração
exaustiva, podemos tentar dividir as teorias dos sonhos, grosso modo,
nos três seguintes grupos, conforme seus pressupostos subjacentes quanto ao
volume e à natureza da atividade psíquica nos sonhos.
(1) Existem teorias, como a de Delboeuf [1885,
221 e seg.], segundo as quais a totalidade psíquica continua nos sonhos. A
mente, presumem elas, não dorme, e seu aparelho permanece intacto; como se
enquadra nas condições do estado de sono, que diferem das da vida de vigília,
seu funcionamento normal necessariamente produz resultados diferentes durante o
sono. Surge, no tocante a essas teorias, a questão de saber se elas são capazes
de extrair todas as distinções do estado de sono. Além disso, não há nenhuma possibilidade
de elas poderem sugerir qualquer função para o sonhar; elas não fornecem
nenhuma razão pela qual devamos sonhar, pela qual o complexo mecanismo do
aparelho psíquico deva continuar a funcionar mesmo quando colocado em
circunstâncias para as quais não parece destinar-se. As únicas reações
adequadas pareceriam ser ou o sono sem sonhos, ou, havendo interferência de
estímulos perturbadores, o despertar - e não a terceira alternativa, a de
sonhar.
(2) Existem as teorias que, pelo contrário,
pressupõem que os sonhos implicam um rebaixamento da atividade psíquica, um
afrouxamento das conexões e um empobrecimento do material acessível. Essas
teorias implicam atribuírem-se ao sono características inteiramente diferentes
das sugeridas, por exemplo, por Delboeuf. O sono, segundo essas teorias, exerce
vasta influência sobre a mente; não consiste apenas no isolamento da mente em
relação ao mundo externo; em vez disso, ele se impõe ao mecanismo mental e o
deixa temporariamente fora de uso. Se é que posso arriscar uma analogia
extraída da esfera da psiquiatria, direi que o primeiro grupo de teorias
interpreta os sonhos segundo o modelo da paranóia, enquanto o segundo grupo faz
com que eles assemelhem à deficiência mental ou aos estados confusionais.
A teoria segundo a qual apenas um fragmento da
atividade psíquica encontra expressão nos sonhos, por ter sido paralisada pelo
sono, é de longe a mais popular entre os autores médicos e no mundo científico
em geral. Tanto quanto se possa presumir que haja um interesse geral na
explicação dos sonhos, esta pode ser descrita como a teoria dominante. Convém
notar com que facilidade essa teoria evita o pior obstáculo no caminho de
qualquer explicação dos sonhos - a dificuldade de lidar com as contradições
envolvidas neles. Ela encara os sonhos como o resultado de um despertar parcial
- “um despertar gradativo, parcial e, ao mesmo tempo, altamente anormal”, para
citar um comentário de Herbart sobre os sonhos (1892, 307). Assim, essa teoria
pode valer-se de uma série de condições de um crescente estado de vigília,
culminando no estado completamente desperto, a fim de explicar a série de
variações na eficiência do funcionamento mental nos sonhos, indo desde a
ineficiência revelada por seu absurdo ocasional até o funcionamento intelectual
plenamente concentrado. [Ver em [1].]
Os que julgam não poder dispensar uma colocação
em termos da fisiologia, ou para os quais uma afirmação nesses termos parece
mais científica, encontrarão o que procuram na explicação dada por Binz (1878,
43): “Esse estado” (de torpor) “chega ao fim nas primeiras horas da manhã, mas
apenas gradativamente. Os produtos da fadiga que se acumularam na albumina do
cérebro diminuem gradualmente; uma quantidade cada vez maior deles é decomposta
ou eliminada pelo fluxo incessante da corrente sanguínea. Aqui e ali, grupos
isolados de células começam a despontar no estado de vigília enquanto o estado
de torpor ainda persiste em torno delas. O trabalho isolado desses grupos
separados surge então diante de nossa consciência obscurecido de associação.
Por esse motivo, as imagens produzidas, que correspondem, em sua maior parte, a
impressões materiais do passado mais recente, são concatenadas de maneira
tumultuada e irregular. O número das células cerebrais liberadas cresce continuamente,
enquanto a insensatez dos sonhos vai tendo uma redução proporcional.”
Essa visão do sonhar como um estado de vigília
incompleto e parcial se encontra, sem dúvida, nos textos de todos os
fisiologistas e filósofos modernos. Sua exposição mais elaborada é dada por
Maury (1878, 6 e seg.). Muitas vezes, é como se esse autor imaginasse que o
estado de vigília ou de sono poderia mudar-se de uma região anatômica para
outra, estando cada região anatômica específica ligada a uma função psíquica
particular. Neste ponto, teço apenas o comentário de que, mesmo que se
confirmasse a teoria da vigília parcial, seus detalhes ainda permaneceriam
extremamente discutíveis.
Essa visão, naturalmente, não deixa margem para
se atribuir qualquer função ao sonhar. A conclusão lógica que dela se infere
quanto à posição e ao significado dos sonhos é corretamente enunciada por Binz
(1878, 35): “Todos os fatos observados forçam-nos a concluir que os sonhos
devem ser caracterizados como processos somáticos que, na totalidade dos
casos, são inúteis, e em muitos deles decididamente patológicos. (…)”
A aplicação do termo “somático” aos sonhos,
grifado pelo próprio Binz, tem mais de um sentido. Alude, em primeiro lugar, à etiologia
dos sonhos que pareceu particularmente plausível a Binz quando ele estudou a
produção experimental de sonhos mediante o emprego de substâncias tóxicas. Isso
porque as teorias dessa natureza envolvem uma tendência a limitar a instigação
dos sonhos, tanto quanto possível, às causas somáticas. Colocada em sua forma
mais extrema, a visão é a seguinte: Uma vez que adormecemos pela exclusão de
todos os estímulos, não há necessidade nem ocasião para sonhar senão com a
chegada da manhã, quando o processo de ser gradualmente acordado pelo impacto
dos novos estímulos poderia refletir-se no fenômeno do sonhar. É impraticável,
contudo, manter nosso sono livre dos estímulos; eles incidem na pessoa
adormecida vindos de todos os lados - como os germes de vida de que se
queixava Mefistófeles -, vindo de fora e de dentro,e até de partes do corpo
que passam inteiramente despercebidas na vida de vigília. Assim, o sono é
perturbado; primeiro uma parte da mente é abalada e despertada, e depois,
outra; a mente funciona por um breve momento com sua parte desperta e, então,
alegra-se em adormecer de novo. Os sonhos são uma reação à perturbação do sono
provocada por estímulo - uma reação, aliás, bastante supérflua.
Mas a descrição do sonhar - que, afinal de
contas, continua a ser uma função da mente - como um processo somático implica
também outro sentido. Destina-se a demonstrar que os sonhos não merecem ser
classificados como processos psíquicos. O sonhar tem sido muitas vezes
comparado com “os dez dedos de um homem que nada sabe de música, deslocando-se
ao acaso sobre as teclas de um piano” [Strümpell, 1877, 84; ver em [1],
adiante]; e esse símile mostra, melhor do que qualquer outra coisa, o tipo de
opinião que geralmente fazem do sonhar os representantes das ciências exatas.
Sob esse prisma, o sonho é algo total e completamente impossível de
interpretar, pois como poderiam os dez dedos de alguém que não soubesse música
produzir uma peça musical?
Mesmo no passado distante não faltaram críticos
à teoria do estado de vigília parcial. Assim, Burdach (1838, 508 e seg.)
escreveu: “Quando se diz que os sonhos são um despertar parcial, em primeiro
lugar isso não lança nenhuma luz sobre a vigília ou o sono, e, em segundo, nada
faz além de afirmar que, nos sonhos, algumas forças mentais ficam ativas
enquanto outras se acham em repouso. Mas esse tipo de variabilidade ocorre ao
longo de toda a vida.”
Essa teoria dominante, que considera os sonhos
como um processo somático, está subjacente a uma interessantíssima hipótese,
formulada pela primeira vez por Robert, em 1886. Ela é particularmente atraente,
pois consegue sugerir uma função, uma finalidade utilitária, para o sonhar.
Robert toma como base para sua teoria dois fatos observáveis que já
consideramos no decurso de nosso exame do material dos sonhos (ver em [1]), a
saber, que é muito freqüente sonharmos com as impressões diurnas mais triviais
e que é muito raro transpormos para nossos sonhos os interesses cotidianos
importantes. Robert (1866, 10) assevera ser universalmente verdadeiro que as
coisas que foram minuciosamente elaboradas pelo pensamento nunca se tornam
instigadoras de sonhos, mas apenas as que estão em nossa mente numa forma
incompleta, ou que foram simplesmente tocadas de passagem por nossos
pensamentos: “A razão por que costuma ser impossível explicar os sonhos é,
precisamente, eles serem causados por impressões sensoriais do dia anterior que
deixaram de atrair atenção suficiente do sonhador.” [Ibid., 19-20.] Portanto, a
condição que determina se uma impressão penetrará num sonho é ter havido uma
interrupção no processo de elaborar essa impressão, ou ter ela sido
excessivamente sem importância para ter o direito de ser elaborada.
Robert descreve os sonhos como “um processo
somático de excreção do qual nos tornamos cônscios em nossa reação mental a
ele”. [Ibid., 9.] Os sonhos são excreções de pensamentos que foram sufocados na
origem. “Um homem privado da capacidade de sonhar ficaria, com o correr do
tempo, mentalmente transtornado, pois uma grande massa de pensamentos
incompletos e não elaborados e de impressões superficiais se acumularia em seu
cérebro e, por seu grande volume, estaria fadada a sufocar os pensamentos que
deveriam ser assimilados em sua memória como conjuntos completos.” [Ibid., 10.]
Os sonhos servem de válvula de escape para o cérebro sobrecarregado. Possuem o
poder de curar e aliviar. (Ibid., 32.)
Faríamos uma interpretação errônea de Robert se
lhe perguntássemos como pode a mente ser aliviada pela representação nos
sonhos. O que Robert faz, evidentemente, é inferir dessas duas características
do material onírico que, de um modo ou de outro, uma expulsão de impressões sem
valor se realiza durante o sono como um processo somático, e que o
sonhar não constitui uma modalidade especial de processo psíquico, mas apenas a
informação que recebemos sobre essa expulsão. Além disso, a excreção não é o
único evento que ocorre na mente à noite. O próprio Robert acrescenta que, além
dela, as sugestões surgidas na véspera são trabalhadas e que “todas as partes
dos pensamentos indigeridos que não são expelidas são reunidas num todo integrado
por fios de pensamento tomados de empréstimo à imaginação, e assim inseridas na
memória como um inofensivo quadro imaginatório.” (Ibid., 23.)
Mas a teoria de Robert é diametralmente oposta
à teoria dominante em sua avaliação da natureza das fontes dos sonhos.
Segundo esta última, não haveria sonho algum se a mente não fosse despertada de
maneira constante por estímulos sensoriais externos e internos. Na visão de
Robert, porém, o impulso para o sonhar surge na própria mente - no fato de ela
ficar sobrecarregada e precisar de alívio; e ele conclui com perfeita lógica
que as causas derivadas das condições somáticas desempenham um papel secundário
como determinantes dos sonhos, e que tais causas seriam inteiramente incapazes
de provocar sonhos numa mente em que não houvesse material para a construção de
sonhos oriundo da consciência de vigília. A única ressalva que ele faz é
admitir que as imagens fantasiosas que surgem nos sonhos, vindas das
profundezas da mente, podem ser afetadas por estímulos nervosos. (Ibid., 48.)
Afinal, portanto, Robert não encara os sonhos como sendo tão inteiramente
dependentes dos eventos somáticos. Não obstante, em sua opinião, os sonhos
não são processos psíquicos, não têm lugar entre os processos psíquicos da vida
de vigília; são processos somáticos que ocorrem todas as noites no aparelho
relacionado com a atividade mental, e têm como função a tarefa de proteger esse
aparelho da tensão excessiva - ou, modificando a metáfora, de agir como “garis”
da mente.
Outro autor, Yves Delage, baseia sua teoria nas
mesmas características dos sonhos, tais como reveladas na escolha de seu
material; e é instrutivo notar como uma ligeira variação em seu ponto de vista
acerca das mesmas coisas o leva a conclusões de sentido muito diferente.
Diz-nos Delage (1891, 41) ter experimentado em
sua própria pessoa, por ocasião da morte de alguém que lhe era querido, o fato
de não sonharmos com o que ocupou todos os nossos pensamentos durante o
dia, ou não até que isso tenha começado a dar lugar a outros interesses
cotidianos. Suas pesquisas em meio a outras pessoas confirmaram-lhe a verdade
geral desse fato. Ele faz o que seria uma observação interessante dessa
natureza, se provasse ter validade geral, a respeito dos sonhos dos jovens
casais: “S’ils ont été fortement épris, presque jamais ils n’ont rêvé l’un
de l’autre avant le mariage ou pendant la lune de miel; et s’ils ont rêvé
d’amour c’est pour être infidèles avec quelque personne indifférente ou
odieuse.” [Ibid., 41.] Como que é, então, que sonhamos? Delage identifica o
material de nossos sonhos como consistindo em fragmentos e resíduos dos dia
precedentes e de épocas anteriores. Tudo o que aparece em nossos sonhos, ainda
que a princípio nos inclinemos a considerá-lo como uma criação de nossa vida onírica,
revela-se, quando o examinamos mais de perto, como a reprodução não reconhecida
[de material já vivenciado] - “souvenir inconscient”. Mas esse material
derepresentações possui uma característica comum: provém de impressões que
provavelmente afetaram nossos sentidos com mais intensidade do que nossa
inteligência, ou das quais nossa atenção foi desviada logo depois que surgiram.
Quanto menos consciente e, ao mesmo tempo, mais poderosa tenha sido uma
impressão, mais possibilidade tem ela de desempenhar um papel no sonho
seguinte.
Temos aqui o que são, essencialmente, as duas
mesmas categorias de impressões enfatizadas por Robert: as triviais e as que
não foram trabalhadas. Delage, contudo, dá à situação uma interpretação
diferente, pois sustenta que é por não terem sido trabalhadas que essas
impressões são passíveis de produzir sonhos, e não por serem triviais. É
verdade, num certo sentido, que também as impressões triviais não foram
completamente trabalhadas; sendo da ordem das impressões novas, elas são “autant
de ressorts tendus” que se soltam durante o sono. Uma impressão poderosa
que tenha esbarrado casualmente em algum obstáculo no processo de ser
trabalhada, ou que tenha sido deliberadamente refreada, tem mais justificativa
para desempenhar algum papel nos sonhos do que a impressão que seja fraca e
quase despercebida. A energia psíquica armazenada durante o dia mediante
inibição e supressão torna-se a força motriz dos sonhos durante a noite. O
material psíquico que foi suprimido vem à luz nos sonhos. [Ibid., 1891,
43.]
Nessa altura, infelizmente, Delage interrompe
sua seqüência de idéias. Nos sonhos, só consegue atribuir a mais ínfima parcela
a qualquer atividade psíquica independente; e assim alinha sua teoria com a
teoria dominante do despertar parcial do cérebro: “En somme le rêve est le
produit de la pensée errante, sans but et sans direction, se fixant
successivement sur les souvenirs, qui ont gardé assez d’intensité pour se
placer sur sa route et l’arrêter au passage, établissant entre eux un lien tantôt
faible et indécis, tantôt plus fort et plus serré, selon que l’activité
actuelle du cerveau est plus ou moins abolie par le sommeil.” [Ibid., 46.]
(3) Podemos situar num terceiro grupo as
teorias que atribuem à mente no sonho uma capacidade de inclinação para
desenvolver atividades psíquicas especiais de que, na vida de vigília, ela é
total ou basicamente incapaz. A ativação dessas faculdades costuma conferir aos
sonhos uma função utilitária. A maioria das opiniões do sonhar dadas pelos
autores antigos no campo da psicologia enquadra-se nessa classe. Basta-me,
porém, citar uma frase de Burdach (1838, 512). O sonhar, escreve ele, “é uma
atividade natural da mente que não é limitada pelo poder da individualidade,
não é interrompida pela consciência de si mesma e não é dirigida pela
autodeterminação, mas que é a vitalidade dos centros sensoriais atuando
livremente.”
Esse deleite da psique no livre emprego de suas
próprias forças é evidentemente encarado por Burdach e pelos demais como uma
condição em que a mente se revigora e reúne novas forças para o trabalho diurno
,- na qual, de fato, ela desfruta de uma espécie de feriado. Assim, Burdach
[ibid., 514] cita com aprovação as encantadoras palavras com que o poeta
Novalis louva o reino dos sonhos: “Os sonhos são um escudo contra a enfadonha
monotonia da vida: libertam a imaginação de seus grilhões, para que ela possa
confundir todos os quadros da existência cotidiana e irromper na permanente
gravidade dos adultos com o brinquedo alegre da criança. Sem sonhos, por certo
envelheceríamos mais cedo; assim, podemos contemplá-los, não, talvez, como uma
dádiva do céu, mas como uma recreação preciosa, como companheiros amáveis em
nossa peregrinação para o túmulo.” [Heinrich von Ofterdingen (1802),
Parte I, Cap. 1.]
A função curativa e revigorante dos sonhos é
descrita com insistência ainda maior por Purkinje (1846, 456): “Essas funções
são executadas especialmente pelos sonhos produtivos. Eles são o livre curso da
imaginação e não têm ligação alguma com os assuntos do dia. A mente não tem
nenhum desejo de prolongar as tensões da vida de vigília; procura relaxá-las e
recuperar-se delas. Produz, acima de tudo, condições contrárias às da vigília.
Cura o pesar com a alegria, as preocupações com esperanças e imagens de amena
descontração, o ódio com o amor e a amizade, o medo com a coragem e a
previdência; mitiga a dúvida com a convicção e confiança sólida, e a
vãesperança com a realização. Muitas das feridas do espírito, que são
constantemente reabertas durante o dia, são curadas pelo sono, que as cobre e
resguarda de novos danos. A ação curativa do tempo baseia-se parcialmente
nisso.” Todos temos a sensação de que o sono exerce um efeito benéfico sobre as
atividades mentais, e o obscuro funcionamento da mentalidade popular se recusa
a abrir mão de sua crença de que sonhar é uma das maneiras pelas quais o sono
proporciona seus benefícios.
A tentativa mais original e ampla de explicar
os sonhos como uma atividade especial da mente, capaz de livre expansão apenas
durante o estado de sono, foi a que empreendeu Scherner em 1861. Seu livro é
escrito num estilo bombástico e extravagante e se inspira num entusiasmo quase
extasiado por seu assunto, fadado a repelir quem quer que não consiga partilhar
de seu fervor. Cria tantas dificuldades à análise de seu conteúdo que passamos
com alívio à exposição mais clara e mais sucinta das doutrinas de Scherner
fornecida pelo filósofo Volkelt. “Lampejos sugestivos de sentido emanam como
relâmpagos dessas aglomerações místicas, dessas nuvens de glória e de esplendor
- mas não iluminam a trilha de um filósofo.” É nesses termos que os escritos de
Scherner são julgados até mesmo por seu discípulo. [Volkelt, 1875, 29.]
Scherner não é dos que acreditam que as
capacidades da mente continuem irreduzidas na vida onírica. Ele próprio [nas
palavras de Volkelt (ibid., 30)] mostra como o núcleo central do ego - sua
energia espontânea - fica privado de sua força nervosa nos sonhos; como, em
decorrência dessa descentralização, os processos de cognição, sensação, vontade
e representação se vêem modificados e, como os remanescentes dessas funções
psíquicas deixam de possuir um caráter verdadeiramente mental, tornando-se nada
além de mecanismos. Contudo, à guisa de contraste, a atividade mental que se
pode descrever como “imaginação”, liberta do domínio da razão e de qualquer
controle moderador, salta para uma posição de soberania ilimitada. Embora a
imaginação onírica lance mão das lembranças recentes da vigília como o material
de que é construída, ela as erige como estruturas que não guardam a mais remota
semelhança com as da vida de vigília; revela-se nos sonhos como possuindo não
só poderes reprodutivos, mas também poderes produtivos. [Ibid., 31.]
Suas características são o que empresta aos sonhos seus traços peculiares. Ela
mostra preferência pelo que é imoderado, exagerado e monstruoso. Mas, ao mesmo
tempo, liberta dos entraves das categorias de pensamento, ela adquire
maleabilidade, agilidade e versatilidade. É suscetível, da maneira mais sutil,
às nuanças dos sentimentos de ternura e às emoções apaixonadas, e logo
incorpora nossa vida interior em imagensplásticas externas. Nos sonhos, a
imaginação se vê destituída do poder da linguagem conceitual. É obrigada a
retratar o que tem a dizer de forma pictórica e, como não há conceitos que
exerçam uma influência atenuante, faz pleno e poderoso uso da forma pictórica.
Assim, por mais clara que seja sua linguagem, ela é difusa, desajeitada e
canhestra. A clareza de sua linguagem sofre, particularmente, pelo fato de ela
se mostrar avessa a representar um objeto por sua imagem própria, preferindo
alguma imagem estranha que expresse apenas a imagem específica dos atributos do
objeto que ela busca representar. Temos aqui a “atividade simbolizadora” da
imaginação (…) [Ibid., 32.] Outro ponto importantíssimo é que a imaginação
onírica jamais retrata as coisas por completo, mas apenas esquematicamente e,
mesmo assim, da forma mais rústica. Por essa razão, suas pinturas parecem
esboços inspirados. Não se detém, contudo, ante a mera representação de um
objeto, mas atende a uma exigência interna de envolver o ego onírico, em maior
ou menor grau, com o objeto, assim produzindo um evento. Por exemplo, um
sonho provocado por um estímulo visual pode representar moedas de ouro na rua;
o sonhador as apanhará com prazer e as levará consigo. [Ibid., 33.|
O material com que a imaginação onírica realiza
seu trabalho artístico é principalmente, de acordo com Scherner, fornecido por
aqueles estímulos somáticos orgânicos que são tão obscuros durante o dia. (Ver
em [1]) Assim, a hipótese extremamente fantástica formulada por Scherner e as
doutrinas talvez indevidamente sóbrias de Wundt e outros fisiologistas, que são
diametralmente opostas em outros aspectos, concordam inteiramente em suas
teorias acerca das fontes e dos instigadores dos sonhos. Segundo a visão
fisiológica, porém, a reação mental aos estímulos somáticos internos esgotasse
na provocação de certas representações apropriadas aos estímulos; essas
representações dão lugar a outras por vias associativas e, nesse ponto, o curso
dos eventos psíquicos nos sonhos parece chegar ao fim. Segundo Scherner, por
outro lado, os estímulos somáticos não fazem mais do que fornecer à mente
material que ela possa utilizar para suas finalidades imaginativas. A formação
dos sonhos só começa, aos olhos de Scherner, no ponto que os outros autores
encaram como seu fim.
O que a imaginação onírica faz aos estímulos
somáticos não pode, naturalmente, ser considerado como servindo a alguma
finalidade útil. Ela os desloca de um lado para outro e retrata as fontes
orgânicas de que surgiram os estímulos do sonho em causa numa espécie de
simbolismo plástico. Scherner é de opinião - embora, nisso Volkelt [1875, 37] e
outros se recusem a segui-lo - que a imaginação onírica tem uma forma
prediletaespecífica de representar o organismo como um todo: a saber, como uma
casa. Felizmente, porém, não parece restringir-se a esse método único de
representação. Por outro lado, pode valer-se de toda uma fileira de casas para
indicar um único órgão; por exemplo, uma rua muito longa, repleta de casas,
pode representar um estímulo proveniente dos intestinos. Além disso, partes
isoladas de uma casa podem representar partes separadas do corpo; assim, num
sonho causado por uma dor de cabeça, a cabeça pode ser representada pelo teto
de um quarto, coberto de aranhas repelentes e semelhantes a sapos. [Ibid., 33 e
seg.]
Deixando de lado esse simbolismo da casa,
inúmeros outros tipos de coisas podem ser empregados para representar as partes
do corpo de que surgiu o estímulo para o sonho. “Assim, o pulmão que respira
será simbolicamente representado por uma fornalha flamejante, com chamas a
crepitar com um som semelhante ao da passagem de ar; o coração será
representado por caixas ou cestas ocas, a bexiga por objetos redondos em forma
de sacos ou, mais genericamente, por objetos ocos. Um sonho causado por
estímulos provenientes dos órgãos sexuais masculinos poderá fazer com que o
sonhador encontre na rua a parte superior de um clarinete ou a boquilha de um
cachimbo, ou ainda um pedaço de pele de animal. Aqui, o clarinete e o cachimbo
representam a forma aproximada do órgão masculino, enquanto a pele representa
os pêlos pubianos. No caso de um sonho sexual numa mulher, o espaço estreito em
que as coxas se unem poderá ser representado por um pátio estreito cercado de
casas, enquanto a vagina será simbolizada por uma trilha lisa, escorregadia e
muito estreita, que atravesse o pátio, por onde a sonhadora terá que passar,
talvez, para levar uma carta a um cavalheiro.” (Ibid., 34.) É de especial
importância que, ao final de sonhos como esses, com um estímulo somático, a
imaginação onírica muitas vezes ponha de lado seu véu, por assim dizer,
revelando abertamente o órgão em causa a sua função. Assim, um sonho “com um
estímulo dental” costuma terminar com a imagem do sonhador arrancando um dente
de sua boca. [Ibid., 35.]
A imaginação onírica pode não apenas dirigir
sua atenção para a forma do órgão estimulante, mas igualmente simbolizar
a substância contida nesse órgão. Dessa maneira, um sonho com um estímulo
intestinal pode levar o sonhador a percorrer ruas lamacentas, enquanto um sonho
com um estímulo urinário talvez o conduza a um curso d’água espumejante. Ou
então o estímulo com tal, a natureza da excitação que ele produz, ou o objeto
que ele deseja podem ser simbolicamente representados. Ou talvez o ego onírico
entre as relações concretas com os símbolos de seu próprio estado; porexemplo,
no caso de estímulos dolorosos, o sonhador poderá empenhar-se numa luta desesperada
com cães ferozes ou touros selvagens, ou uma mulher que tenha um sonho sexual
poderá ver-se perseguida por um homem nu. [Ibid., 35 e seg.] Independentemente
da riqueza dos meios que emprega, a atividade simbolizadora da imaginação
permanece como a força central em todos os sonhos. [Ibid., 36.] A tarefa de
penetrar mais a fundo na natureza dessa imaginação e de encontrar um lugar para
ela num sistema de pensamento filosófico é tentada por Volkelt nas páginas de
seu livro. Mas, embora este seja bem escrito e dotado de sensibilidade,
continua a ser extremamente difícil de compreender por qualquer um cuja
formação anterior não o tenha preparado para uma apreensão benevolente dos
construtos conceituais da filosofia.
Nenhuma função utilitária se liga à imaginação
simbolizadora de Scherner. A mente se entretém, no sono, com os estímulos que
incidem sobre ela. Poder-se-ia quase suspeitar que lida com eles
maliciosamente. Mas também me poderiam perguntar se meu exame pormenorizado da
teoria de Scherner sobre os sonhos atende a alguma finalidade útil, já que seu
caráter arbitrário e sua desobediência a todas as regras da pesquisa parecem
óbvios demais. À guisa de resposta, eu poderia registrar um protesto contra a
arrogância que descartaria a teoria de Scherner sem examiná-la. Sua teoria se
fundamenta na impressão causada pelos sonhos num homem que os considerou com
extrema atenção e que parece ter tido um grande talento pessoal para pesquisar
as coisas obscuras da mente. Além disso, ela versa sobre um assunto que, por
milhares de anos, tem sido considerado pela humanidade como enigmático, sem
dúvida, mas também como importante em si mesmo e em suas implicações - um
assunto para cuja elucidação a ciência exata, segundo ela própria admite, pouco
tem contribuído, salvo por uma tentativa (em oposição direta ao sentimento
popular) de negar-lhe qualquer sentido ou importância. E por fim, pode-se
afirmar honestamente que, na tentativa de explicar os sonhos, não é fácil
evitar ser fantasioso. As células ganglionares também podem ser fantasiosas. O
trecho que citei em [1], de um pesquisador sóbrio e rigoroso como Binz, e que
descreve o modo como o alvorecer do estado de vigília penetra furtivamente na
massa de células adormecidas do córtex cerebral, não é menos fantasioso - nem
menos improvável - do que as tentativas de Scherner de chegar a uma
interpretação. Espero poder demonstrar que há por trás destas últimas um
elemento de realidade, embora tenha sido apenas vagamente percebido e lhe falte
o atributo de universalidade que deve caracterizar uma teoria dos sonhos.
Entrementes,o contraste entre a teoria de Scherner e a teoria médica nos
mostrará os extremos entre os quais as explicações da vida onírica oscilam
dubiamente até os dias de hoje.
(H) AS RELAÇÕES ENTRE OS SONHOS E
AS DOENÇAS MENTAIS
Ao falarmos na relação entre os sonhos e os
distúrbios mentais, podemos ter três coisas em mente: (1) as conexões
etiológicas e clínicas, como quando um sonho representa um estado psicótico, ou
o introduz, ou é um remanescente dele; (2) as modificações a que está sujeita a
vida onírica nos casos de doença mental; e (3) as ligações intrínsecas entre os
sonhos e as psicoses, apontando as analogias para o fato de eles serem
essencialmente afins. Essas numerosas relações entre os dois grupos de
fenômenos constituíram um tema favorito entre os autores médicos de épocas
anteriores e voltaram a sê-lo nos dias atuais, como demonstrado pelas
bibliografias sobre o assunto coligidas por Spitta [1882, 196 e seg. e 319 e
seg.], Radestock [1879, 217], Maury [1878, 124 e seg.] e Tissié [1898, 77 e
seg.]. Bem recentemente, Sante de Sanctis voltou sua atenção para esse
assunto.
Será
suficiente, para fins de minha tese, que eu me limite apenas a tocar nesta
importante questão.
Com respeito às ligações clínicas e etiológicas
entre os sonhos e as psicoses, as seguintes observações podem ser representadas
como amostras. Hohnbaum [1830, 124], citado por Krauss [1858, 619], relata que
uma primeira irrupção de insanidade delirante muitas vezes se origina num sonho
de angústia ou de terror, e que a idéia dominante está ligada ao sonho. Sante
de Sanctis apresenta observações semelhantes em casos de paranóia e declara
que, em algumas delas, o sonho foi a “vraie cause déterminante de la folie”
A psicose, diz de Sanctis, pode surgir de um só golpe com o aparecimento do
sonho operativo que traz à luz o material delirante; ou pode desenvolver-se
lentamente numa série de outros sonhos, que têm ainda de superar certa dose de
dúvida. Em um de seus casos, o sonho relevante foi seguido de ataques
histéricos brandos e, posteriormente, de um estado de melancolia de angústia.
Féré [1886] (citado por Tissié, 1898, [78]) relata um sonho que resultou numa
paralisia histérica. Nesses exemplos, os sonhos são representados como a
etiologia do distúrbio mental; mas faríamos igual justiça aos fatos se
disséssemos que o distúrbio mental apareceu pela primeira vez na vida onírica,
tendo irrompido primeiro num sonho. Em alguns outros exemplos, os sintomas
patológicos estão contidos na vida onírica, ou a psicose se limita a esta.
Assim, Thomayer (1897) chama a atenção para certos sonhos de angústia que ele
julga deverem ser considerados como equivalentes a ataques epilépticos. Allison
[1868] (citado por Radestock, 1879 [225]) descreveu uma “insanidade noturna” na
qual o paciente parece inteiramente sadio durante o dia, mas, à noite, fica
regularmente sujeito a alucinações, crises de excitação etc. Observações
semelhantes são relatadas por de Sanctis [1899, 226] (um sonho de um paciente
alcoólatra que era equivalente a uma paranóia, e que representava vozes que
acusavam sua mulher de infidelidade) e por Tissié. Este (1898, [147 e segs.])
fornece copiosos exemplos recentes em que atos de natureza patológica, tais
como conduta baseada em premissas delirantes e impulsos obsessivos, derivam de
sonhos. Guislain [1833] descreve um caso em que o sono foi substituído por uma
loucura intermitente.
Não há dúvida de que, juntamente com a
psicologia dos sonhos, os médicos terão, algum dia, de voltar sua atenção para
uma psicopatologia dos sonhos.
Nos casos de recuperação de doenças mentais,
observa-se muitas vezes com bastante clareza que, embora o funcionamento seja
normal durante o dia, a vida onírica ainda se acha sob a influência da psicose.
Segundo Krauss (1859, 270), Gregory foi o primeiro a chamar a atenção para esse
fato. Macario [1847], citado por Tissié [1898, 89], descreve como um paciente
maníaco, uma semana após sua completa recuperação, ainda estava sujeito, em seus
sonhos, à fuga de idéias e às paixões violentas que eram características de sua
doença.
Fizeram-se até agora muito poucas pesquisas
sobre as modificações que ocorrem na vida onírica durante as psicoses crônicas. Por outro lado, há
muito tempo se dirigiu a atenção para o parentesco subjacente entre os sonhos e
os distúrbios mentais, exibido na ampla medida de concordância entre suas
manifestações. Maury (1854, 124) conta-nos que Cabanis (1802) foi o primeiro a
comentá-las e, depois dele, Lélut [1852], J. Moreau (1855) e, em particular, o
filósofo Maine de Biran [1834, 111 e segs.]. Sem dúvida a comparação remonta a
épocas ainda mais distantes. Radestock (1879, 217) introduz o capítulo em que
trata do assunto mediante várias citações que traçam uma analogia entre os
sonhos e a loucura. Kant escreve em algum ponto de sua obra [1764]: “O louco é
um sonhador acordado.” Krauss (1859, 270) declara que “a insanidade é um sonho
sonhado enquanto os sentidos estão despertos”. Schopenhauer [1862, 1, 246]
chama os sonhos de loucura breve e a loucura de sonho longo. Hagen [1846, 812]
descreve o delírio como uma vida onírica que é induzida não pelo sono, mas pela
doença. Wundt [1878, 662] escreve: “Nós mesmos, de fato, podemos experimentar
nos sonhos quase todos os fenômenos encontrados nos manicômios.”
Spitta (1882, 199), da mesma forma que Maury
(1854), assim enumera os diferentes pontos de concordância que constituem a
base dessa comparação: “(1) A autoconsciência fica suspensa ou, pelo menos,
retardada, o que resulta numa falta de compreensão da natureza do estado, com a
conseqüente incapacidade de sentir surpresa e com perda da consciência moral.
(2) A percepção por meio dos órgãos dos sentidos se modifica, reduzindo-se nos
sonhos, mas sendo, em geral, grandemente aumentada na loucura. (3) A
interligação de representações ocorre exclusivamente segundo as leis de
associação e reprodução; assim, as representações se enquadram automaticamente
em seqüências e há uma conseqüente desproporção na relação entre as
representações (exageros e ilusões). Tudo isso leva a (4) uma alteração ou, em
alguns casos, uma reversão de personalidade, e, ocasionalmente, dos traços de
caráter (conduta perversa).”
Radestock (1879, 219) acrescenta mais algumas
características - analogias entre o material nos dois casos: “A maioria
das alucinações e ilusões ocorre na região dos sentidos da visão e da audição,
e da cenestesia. Como no caso dos sonhos, os sentidos do olfato e do paladar
são os que fornecem menos elementos. - Tanto nos pacientes que sofrem de febre
como nas pessoas que sonham, surgem lembranças do passado remoto; tanto as
pessoas adormecidas quanto os doentes se lembram de coisas que os indivíduos
despertos e sadios parecem ter esquecido.” A analogia entre os sonhos e as
psicoses só é plenamente apreciada quando se constata que ela se estende aos
detalhes da movimentação expressiva e às características da expressão facial.
“O homem atormentado pelo sofrimento físico e
mental obtém dos sonhos o que a realidade lhe nega: saúde e felicidade. Do
mesmo modo, há na doença mental imagens brilhantes de felicidade,
grandiosidade, eminência e riqueza. A suposta posse de bens e a realização
imaginária de desejos - cujo refreamento ou destruição realmente fornece uma
base psicológica para a loucura - constituem muitas vezes o conteúdo principal
do delírio. Uma mulher que tenha perdido um filho amado experimenta as alegrias
da maternidade em seu delírio; um homem que tenha perdido seu dinheiro julga-se
imensamente rico; uma moça que tenha sido enganada sente que é ternamente
amada.”
(Esse trecho de Radestock é, na verdade, um
resumo de uma aguda observação feita por Griesinger (1861, 106), que mostra com
bastante clareza que as representações nos sonhos e nas psicoses têm em comum a
característica de serem realizações de desejos. Minhas próprias
pesquisas ensinaram-me que neste fato se encontra a chave de uma teoria
psicológica tanto dos sonhos quanto das psicoses.)
“A principal característica dos sonhos e da
loucura reside em suas excêntricas seqüências de pensamento e sua fraqueza de
julgamento.” Em ambos os estados [prossegue Radestock], encontramos uma
supervalorização das realizações mentais do próprio sujeito que parece
destituída de sentido ante uma visão sensata: a rápida seqüência de
representações nos sonhos encontra paralelo na fuga de idéias nas psicoses. Há
em ambos uma completa falta de sentido do tempo. Nos sonhos, a personalidade
pode ser cindida - quando, por exemplo, os conhecimentos do próprio sonhador se
dividem entre duas pessoas e quando, no sonho, o ego externo corrige o ego
real. Isso corresponde precisamente à cisão da personalidade que nos é familiar
na paranóia alucinatória; também o sonhador ouve seus próprios pensamentos
pronunciados por vozes externas. Mesmo as idéias delirantes crônicas têm sua
analogia nos sonhos patológicos estereotipados recorrentes (le rêve obsédant).
- Não raro, depois de se recuperarem de um delírio, os pacientes dizem que todo
o período de sua doença lhes parece um sonho que não foi desagradável: a rigor,
às vezes nos dizem que, mesmo durante a doença, tiveram ocasionalmente a
sensação de estarem apenas aprisionados num sonho - como acontece com muita
freqüência nos sonhos que ocorrem durante o sono.
Depois de tudo isso, não surpreende que
Radestock resuma seus pontos de vista, e os de muitos outros autores,
declarando que “a loucura, um fenômeno patológico anormal, deve ser encarada
como uma intensificação do estado normal periodicamente recorrente do sonhar”.
(Ibid., 228.)
Krauss (1859, 270 e seg.) procurou estabelecer
o que talvez seja uma ligação ainda mais íntima entre os sonhos e a loucura do
que a que pode ser demonstrada por uma analogia entre essas manifestações
externas. Ele vê essa ligação em sua etiologia, ou melhor, nas fontes de sua
excitação. O elemento fundamental comum aos dois estados reside, segundo ele,
como já vimos [em [1]], nas sensações organicamente determinadas, nas sensações
derivadas de estímulos somáticos e na cenestesia que se baseia nas
contribuições provenientes de todos os órgãos. (Cf. Peisse, 1857, 2, 21, citado
por Maury, 1878, 52.)
A indiscutível analogia entre os sonhos e a
loucura, que se estende até seus detalhes característicos, é um dos mais
poderosos suportes da teoria médica da vida onírica, que considera o sonhar
como um processo inútil e perturbador e como a expressão de uma atividade
reduzida da mente. Não obstante, não se deve esperar que encontremos a
explicação final dos sonhos na linha dos distúrbios mentais, pois o estado
insatisfatório de nossos conhecimentos acerca da origem destes últimos é
genericamente reconhecido. É bem provável, pelo contrário, que uma
modificação de nossa atitude perante os sonhos, ao mesmo tempo, afete nossos
pontos de vista sobre o mecanismo interno dos distúrbios mentais e nos aproxime
de uma explicação das psicoses enquanto nos esforçamos por lançar alguma luz
sobre o mistério dos sonhos.
PÓS-ESCRITO, 1909
O fato de eu não haver estendido minha
exposição sobre a literatura que trata dos problemas dos sonhos a ponto de
abranger o período entre a primeira e a segunda edições deste livro exige uma
justificativa. Talvez ela pareça insatisfatória ao leitor, mas, assim mesmo,
foi decisiva para mim. Os motivos que me levaram a apresentar qualquer relato
da forma pela qual os autores mais antigos lidaram com os sonhos esgotaram-se
com a conclusão deste capítulo introdutório; prosseguir nessa tarefa ter-me-ia
custado um esforço extraordinário - e o resultado teria sido muito pouco útil
ou instrutivo, pois os nove anos intermediários nada trouxeram de novo ou
valioso, quer em material factual, quer em opiniões que pudessem lançar luz
sobre o assunto. Na maioria das publicações surgidas durante esse intervalo,
meu trabalho não foi objeto de menção nem de exame. Recebeu, naturalmente, um
mínimo de atenção dos que se empenham no que é descrito como “pesquisa” dos
sonhos, e que assim forneceram brilhante exemplo da repugnância por aprender
qualquer coisa nova que é característica dos homens de ciência. Nas irônicas
palavras de Anatole France, “les savants ne sont pas curieux”. Se
houvesse na ciência algo como o direito à retaliação, por certo eu estaria
justificado, por minha parte, em desprezar a literatura editada desde a
publicação deste livro. As poucas notas que apareceram sobre ele nos periódicos
científicos demonstram tal falta de compreensão e tais erros na
compreensão, que minha única resposta aos críticos seria sugerir que relessem o
livro - ou talvez, a rigor, apenas sugerir que o lessem.
Grande número de sonhos foi publicado e
analisado segundo minha orientação em trabalhos da autoria de médicos que
resolveram adotar o método terapêutico psicanalítico, bem como de outros
autores.
Na medida em que esses textos foram além de uma simples confirmação de meus
pontos de vista, incluí seus resultados no corpo de minha exposição. Acrescentei
uma segunda bibliografia no fim do volume, contendo uma relação das obras mais
importantes surgidas desde a primeira edição deste livro. A extensa
monografia sobre os sonhos, da autoria de Sante de Sanctis (1899), cuja
tradução alemã surgiu logo após seu lançamento, foi publicada quase
simultaneamente a minha Interpretação dos Sonhos, de modo que nem eu nem
o autor italiano pudemos tecer comentários sobre as obras um do outro.
Infelizmente, não pude fugir à conclusão de que seu trabalhoso volume é
totalmente deficiente de idéias - tanto, de fato, que nem sequer levaria alguém
a suspeitar da existência dos problemas sobre os quais discorri.
Exigem menção apenas duas publicações que se
aproximam de minha própria abordagem dos problemas dos sonhos. Hermann
Swoboda (1904), um jovem filósofo, empreendeu a tarefa de estender aos eventos
psíquicos a descoberta de uma periodicidade biológica (em períodos de 23 e 28
dias) feita por Wilhelm Fliess [1906]. No decurso de seu trabalho altamente
imaginativo, ele se esforçou por utilizar essa chave para a solução, entre
outros problemas, do enigma dos sonhos. Seus resultados parecem subestimar a
importância dos sonhos; o tema de um sonho, segundo seu ponto de vista, deve
ser explicado como uma montagem de todas as lembranças que, na noite em que
ocorre o sonho, completem um dos períodos biológicos, seja pela primeira ou
pela enésima vez. Uma comunicação pessoal do autor levou-me a supor, a
princípio, que ele próprio já não levava essa teoria a sério, mas essa parece
ter sido uma conclusão errônea de minha parte. Numa fase posterior [ver
mais adiante, em [1] e segs.], relatarei algumas observações que fiz em relação
à sugestão de Swoboda, mas que não me conduziram a qualquer conclusão convincente.
Fiquei mais satisfeito quando, num setor inesperado, descobri casualmente uma
visão dos sonhos que coincide na íntegra com o cerne de minha própria teoria. É
impossível, por motivos cronológicos, que a formulação em pauta possa ter sido
influenciada por meu livro. Devo, portanto, saudá-la como o único exemplo,
encontrável na literatura sobre o assunto, de um pensador independente que
concorda com a essência da minha teoria dos sonhos. O livro que contém o
trecho que tenho em mente sobre os sonhos surgiu em sua segunda edição, em
1900, sob o título de Phantasien eines Realisten, de “Lynkeus”.
[Primeira edição, 1899.]
PÓS-ESCRITO, 1914
A nota justificatória precedente foi escrita em
1909. Sou forçado a admitir que, desde então, a situação se modificou; minha
contribuição para a interpretação dos sonhos já não é desprezada pelos autores
que escrevem sobre o assunto. O novo estado de coisas, entretanto, fez com que
ficasse inteiramente fora de cogitação a idéia de ampliar meu relato anterior
sobre a literatura. A Interpretação dos Sonhos levantou toda uma série
de novas considerações e problemas que têm sido discutidos de inúmeras
maneiras. Não posso apresentar uma exposição dessas obras, no entanto, antes de
expor os pontos de vista de minha própria autoria em que elas se baseiam. Assim
sendo, abordei tudo o que me pareceu valioso na literatura mais recente, no
lugar apropriado, ao longo da discussão que se segue.
Continua na Parte 2
Parte 1 - Parte 2 - Parte 3