Id, Ego e Superego para Freud e a Neurofisiologia


Archives of Clinical Psychiatry (São Paulo)
Print version ISSN 0101-6083
Rev. psiquiatr. clín. vol.37 no.6 São Paulo  2010

http://dx.doi.org/10.1590/S0101-60832010000600005 
REVISÃO DA LITERATURA



O modelo estrutural de Freud e o cérebro: uma proposta de integração entre a psicanálise e a neurofisiologia



From Freud's theories to brain function: integrating psychoanalysis and neurophysiology





Andréa Pereira de Lima

Universidade Federal de Uberlândia (UFU), União Educacional de Minas Gerais (Uniminas)

Endereço para correspondência





RESUMO

CONTEXTO: Trabalhos recentes mostram que as visões psicanalítica e neurocientífica podem ser complementares e mutuamente enriquecedoras. Esses trabalhos indicam não só a viabilidade, mas a necessidade de reavaliar o legado psicanalítico de Freud, com uma abordagem conciliadora entre a psicanálise e a neurociência. 
OBJETIVO: Apresentar uma proposta de integração entre a segunda tópica de Freud e o encéfalo, na tentativa de estabelecer um diálogo entre a psicanálise e a neurofisiologia, para melhor compreensão da mente humana. 
MÉTODO: Pesquisa bibliográfica e reflexão crítica sobre os dados obtidos. 
RESULTADOS: Considerando as clássicas descrições de Freud, o id estaria relacionado aos circuitos neurais filogeneticamente mais antigos, como os circuitos do tronco cerebral, o feixe prosencefálico medial, a amígdala medial, o septo pelúcido, o hipotálamo, o núcleo acumbens, o estriado e os núcleos talâmicos. O superego, como um freio modulador dos interesses motivacionais/pulsionais do id, estaria representado principalmente pelo núcleo central da amígdala e pelo córtex da ínsula. O ego, como o mediador entre as forças que operam no id, no superego e as exigências da realidade externa, estaria relacionado principalmente ao córtex pré-frontal, considerado atualmente a sede da personalidade, importante para a tomada de decisões e ajuste social do comportamento. 
CONCLUSÃO: O modelo de integração aqui proposto não representa, em absoluto, um modelo completo, acabado, mas constitui um diálogo fértil entre a psicanálise e a neurociência, indicando que as clássicas descrições de Freud sobre a mente têm lugar perfeitamente na neurofisiologia de hoje.

Palavras-chave: Freud, psicanálise, neurofisiologia, neurociências, neurobiologia.

ABSTRACT

BACKGROUND: Recent studies show that psychoanalytical and neuroscientific contributions to the understanding of human emotions and behavior can be complementary, and the interaction between these two approaches can be fruitful for both perspectives. 
OBJECTIVE: We revisited Freud's "structural model and encephalus", and propose and integrated reading of related psychoanalytical and neurobiological theories. 
METHOD: Bibliographic search and critical reflection about the selected papers. 
RESULTS: Considering Freud's classical descriptions, the id would be related to phylogenetically primitive neural circuits, such as the brain stem, the medial fasciculus of the forebrain (prosencephalon), medial amygdala, septum pellucidum, hypothalamus, nucleus accumbens, basal ganglia and thalamic nuclei. The superego, as a modulator of id's drive/motivations, would be represented mainly by the central nuclei of the amygdala and the insular cortex. The ego, as a mediator between the forces that operate between the id, the superego and the demands of external reality, would be related mainly to the prefrontal cortex, which is nowadays considered as one the underpinning of personality, given its importance to behaviors involving decision making and social adjustment. 
DISCUSSION: These preliminary notions illustrate the authors' point of view from an integrative reading of psychoanalysis and neuroscience.

Keywords: Freud, psychoanalysis, neurophysiology, neurosciences, neurobiology.




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Introdução

Freud empregou a palavra "aparelho" para definir uma organização psíquica dividida em sistemas, ou instâncias psíquicas, com funções específicas, que estão interligadas entre si, ocupando certo lugar na mente. Assim, o modelo tópico designa um "modelo de lugares"; Freud formulou primeiramente a primeira tópica, conhecida como Teoria Topográfica, e posteriormente apresentou a segunda tópica, conhecida como Teoria Estrutural ou Dinâmica. Na primeira tópica de Freud, o aparelho psíquico é composto por três sistemas: o inconsciente, o pré-consciente e o consciente. Segundo Freud, o consciente é somente uma pequena parte da mente, incluindo tudo aquilo de que estamos cientes num dado momento. Do ponto de vista tópico, o sistema percepção-consciência está situado na periferia do aparelho psíquico, recebendo, ao mesmo tempo, as informações do mundo exterior e as provenientes do interior. O pré-consciente foi concebido como articulado com o consciente e funciona como uma espécie de barreira que seleciona aquilo que pode ou não passar para o consciente. O pré-consciente seria uma parte do inconsciente que pode tornar-se consciente com relativa facilidade, ouseja, seus conteúdos são acessíveis, podem ser evocados e trazidos à consciência. O sistema inconsciente designa a parte mais arcaica do aparelho psíquico. Segundo Freud, por herança genética, existemelementos instintivos ou pulsões, acrescidos das respectivas energias.No inconsciente estariam os elementos instintivos não acessíveis à consciência. Além disso, há também material que foi excluído da consciência pelos processos psíquicos de censura e repressão. Esseconteúdo "censurado" não é permitido ser lembrado, mas não éperdido, permanecendo no inconsciente. Para Freud, a maior parte do aparelho psíquico é inconsciente. Ali estão os principais determinantes da personalidade, as fontes da energia psíquica e as pulsões ou instintos1. Cabe aqui uma explicação sobre o que Freud denomina pulsões ou instintos. A pulsão consistiria numa espécie de energia psíquica que tende a levar o indivíduo à ação, para aliviar a tensão resultante do acúmulo de energia pulsional. Trata-se de um conceitofronteiriço entre o somático e o psíquico. Freud descreveu duas forças pulsionais opostas: a sexual (erótica ou fisicamente gratificante) e a agressiva ou destrutiva. Suas descrições encararam essas forças antagônicas, ou como mantenedoras da vida ou como incitadoras da morte, respectivamente. Tal antagonismo não costuma ser visível ou consciente, e a maioria de nossos pensamentos e ações é evocada por essas duas forças instintivas em combinação1.

Insatisfeito com o "Modelo Topográfico", porquanto esse não conseguia explicar muitos fenômenos psíquicos, Freud elaborou uma segunda teoria, a segunda tópica. Na segunda tópica, Freud estabeleceu a sua clássica concepção do aparelho psíquico, conhecido como "modelo estrutural" ou "dinâmico", tendo em vista que a palavra "estrutura" significa um conjunto de elementos que têm funções específicas, porém que interagem permanentemente e se influenciam reciprocamente. Essa concepção estruturalista ficou cristalizada em "O ego e o id", de 1923, e consiste em uma divisão da mente em três instâncias psíquicas: o id, o ego e o superego2.
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O id segundo Freud

O id foi concebido como um conjunto de conteúdos de natureza pulsional e de ordem inconsciente, constituindo o polo psicobiológico da personalidade. É considerado a reserva inconsciente dos desejos e impulsos de origem genética, voltados para a preservação e propagação da vida. Contém tudo o que é herdado, que se acha presente no nascimento, acima de tudo os elementos instintivos que se originam da organização somática. Do ponto de vista "topográfico", o inconsciente, como instância psíquica, virtualmente coincide com o id. Portanto, os conteúdos do id, expressão psíquica das pulsões, são inconscientes, por um lado hereditários e inatos e, por outro lado, adquiridos e recalcados. Do ponto de vista "econômico", o id é, para Freud, a fonte e o reservatório de toda a energia psíquica do indivíduo, que anima a operação dos outros dois sistemas (ego e superego). Do ponto de vista "dinâmico", o id interage com as funções do ego e com os objetos, tanto os da realidade exterior como aqueles que, introjetados, habitam o superego. Do ponto de vista "funcional", o id é regido pelo princípio do prazer, ou seja, procura a resposta direta e imediata a um estímulo instintivo, sem considerar as circunstâncias da realidade. Assim, o id tem a função de descarregar as tensões biológicas, regido pelo "princípio do prazer"2.
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O ego segundo Freud

O ego se desenvolve a partir da diferenciação das capacidades psíquicas em contato com a realidade exterior. Sua atividade é, em parte, consciente (percepção e processos intelectuais) e, em parte, pré-consciente e também inconsciente. É regido pelo princípio da realidade, que é o fator que se incumbe do ajustamento ao ambiente e da solução dos conflitos entre o organismo e a realidade. O ego lida com a estimulação que vem tanto da própria mente como do mundo exterior. Desempenha a função de obter controle sobre as exigências das pulsões, decidindo se elas devem ou não ser satisfeitas, adiando essa satisfação para ocasiões e circunstâncias mais favoráveis ou reprimindo parcial ou inteiramente as excitações pulsionais. Assim, o ego atua como mediador entre o id e o mundo exterior, tendo que lidar também com o superego, com as memórias de todo tipo e com as necessidades físicas do corpo. Como o ego opera de acordo com o princípio da realidade, seu tipo de pensamento é verbal e se caracteriza pela lógica e pela objetividade. Dinamicamente, o ego é pressionado pelos desejos insaciáveis do id, pela severidade repressiva do superego e as ameaças do mundo exterior. Assim, a função do ego é tentar conciliar as reivindicações das três instâncias a que serve, ou seja, o id, o mundo externo e o superego. Para Freud, estamos divididos entre o princípio do prazer (que não conhece limites) e o princípio de realidade (que nos impõe limites). Com referência aos acontecimentos externos, o ego desempenha sua função armazenando experiências sobre os diferentes estímulos na memória e aprendendo a produzir modificações convenientes no mundo externo em seu próprio benefício. A teoria psicanalítica procura explicar a gênese do ego como um sistema adaptativo, diferenciado a partir do id em contato com a realidade exterior2.
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O superego segundo Freud

O superego desenvolve-se a partir do ego, em um período que Freud designa como período de latência, situado entre a infância e o início da adolescência. Nesse período, forma-se nossa personalidade moral e social. O superego atua como um juiz ou um censor relativamente ao ego. Freud vê na consciência moral, na auto-observação, na formação de ideais, funções do superego. Classicamente, o superego constitui-se por interiorização das exigências e das interdições parentais. Num primeiro momento, o superego é representado pela autoridade parental que molda o desenvolvimento infantil, alternando as provas de amor com as punições, geradoras de angústia. Num segundo tempo, quando a criança renuncia à satisfação edipiana, as proibições externas são internalizadas. Esse é o momento em que o superego vem substituir a instância parental por intermédio de uma identificação da criança com os pais. Freud salientou que o superego não se constrói segundo o modelo dos pais, mas segundo o que é constituído pelo superego deles. O superego estabelece a censura dos impulsos que a sociedade e a cultura proíbem ao id, impedindo o indivíduo desatisfazer plenamente seus instintos e desejos. É o órgão psíquico da repressão, particularmente a repressão sexual2.
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Freud e a neurobiologia

Há poucas décadas, muitos cientistas consideraram que a psicanálise não fornecia hipóteses confiáveis, merecedoras de crédito, por não ter, como método principal de pesquisa, a experimentação controlada de laboratório, mas somente o encontro clínico no consultório. Os tratamentos medicamentosos ganharam terreno e a biologização irrestrita do entendimento das afecções psíquicas não cansou de anunciar a morte iminente da teoria construída por Freud3.

Felizmente, conquistas recentes da neurobiologia, relativas a questões caras aos psicanalistas, como a consciência, a memória, a percepção, processos mentais inconscientes, a pulsão, o desejo, a sexualidade, entre outros, começam a estar disponíveis para melhor compreensão da psicanálise4. Para Kandel, a neurobiologia evoluiu significativamente nas últimas décadas e atualmente apresenta um corpo de dados que não só permite uma convergência entre a neurobiologia e a psicanálise, mas também seria benéfico para uma consolidação mais científica do corpo teórico-técnico da psicanálise. O autor vai além disso: ressalta que um diálogo genuíno entre a psicanálise e a biologia é necessário caso se pretenda alcançar uma compreensão profunda da mente4. O próprio Freud previa ser a biologia um campo de possibilidades ilimitadas que poderia embasar o edifício da teoria psicanalítica.

Na resenha do livro Um diálogo entre a psicanálise e a neurociência, do autor V. M. Andrade, os autores citam que Andrade reconta a história da psicanálise, destacando a neurologia em Freud e sua convicção de que fazia ciência natural5. Em 1895, em Projeto para uma psicologia científica6, Freud fez uma tentativa de construir um modelo da mente humana com base nos mecanismos neurobiológicos até então conhecidos. Em seu esforço de elaborar uma psicologia que se aproximasse das ciências naturais, ele elaborou teorias inovadoras que até hoje permanecem como a base teórica da psicanálise. Entretanto, muitos, senão quase todos, dos seus inovadores conceitos ficaram relegados por muito tempo ao campo da metapsicologia. Como foi citado anteriormente, felizmente, as descrições atuais das funções encefálicas parecem poder integrar o quadro teórico proposto por Freud. Durante as últimas décadas, numerosas investigações no campo da neurociência têm apresentado dados que corroboram uma frutífera associação entre a psicanálise e a neurociência4,7,8.

Em seu trabalho, Soussumi9 descreve muito bem a falta de uma visão integrativa do ser humano que existe no estudo da neurociência e da psicanálise, em virtude da educação e da cultura fundamentadas no paradigma da fragmentação. Segundo o autor, essa visão fragmentada conduz à perda da visão do todo. O autor salienta que a junção entre neurociência e psicanálise permite a integração mente-corpo como um todo inseparável, em que é possível constatar a existência de um encadeamento contínuo entre manifestações corporais e psíquicas, de forma indissociável9.

Sempre existiram, no meio psicanalítico, aqueles que se interessaram em buscar fazer correlações entre a neurociência e os conhecimentos adquiridos na investigação psicanalítica. Com isso, puderam ser mostradas as contribuições que a psicanálise poderia dar para um enriquecimento mútuo nas investigações neuropsicológicas e traduzir em termos psicanalíticos as conquistas neurocientíficas10. O desenvolvimento da neurociência começa a tornar realidade o vaticínio de Freud de que no futuro as hipóteses psicanalíticas seriam explicadas pela biologia11.

As aquisições recentes da neurobiologia indicam que a neuroplasticidade pode ser um dos caminhos para a reconciliação entre a psicanálise e a neurociência7. Dentre os achados neurocientíficos no âmbito do psiquismo, destaca-se a ação da relação afetiva sobre circuitos neurais de bebês, os quais podem sofrer atrofia cerebral se cuidados inadequadamente. Também há evidências de que métodos psicológicos podem promover modificações no cérebro. Este ponto é de especial interesse para a psicanálise, cujo método se baseia numa relação afetiva (transferência)11.

Recentes avanços no estudo interdisciplinar da emoção também indicam possibilidades de uma aproximação bem-sucedida entre a psicanálise e a neurociência. O conhecimento atual dos mecanismos psicobiológicos, por meio dos quais, por exemplo, o hemisfério direito processa informações sociais e emocionais em níveis subconscientes e mediante os quais o córtex orbitofrontal regula o afeto e a motivação, permite uma compreensão mais profunda da "Estrutura Psíquica" formulada por Freud12.

A descrição tradicional de inconsciência como concebida por Freud é de significância histórica e não somente ganhou ampla aceitação, mas também atraiu muito criticismo. Entretanto, hoje se sabe que o modo fundamental de processamento das funções cerebrais é de ordem inconsciente. Partes do processamento simbólico-declarativo e do processamento de funções emocionais do cérebro são permanentemente inconscientes. Outras partes desses processos são conscientes ou podem ser trazidas à consciência ou, alternativamente, podem ser excluídas da consciência13. Ressaltando o papel essencial dos processos psíquicos inconscientes, Winograd3 cita como exemplo a verificação de que o comportamento de pacientes incapazes de se lembrar de acontecimentos passados, por causa de lesões em estruturas cerebrais responsáveis pelo armazenamento de memória, é claramente influenciado pelos fatos "esquecidos"3. Esses dados corroboram a teoria de Freud, segundo a qual o inconsciente domina a maior parte dos processos psicofisiológicos.

A neurociência também demonstrou que as estruturas do cérebro essenciais para a formação de memórias conscientes não são funcionais durante os dois primeiros anos de vida, explicando o que Freud identificou como "amnésia infantil". Assim como Freud hipotetizou, não poder trazer à luz da consciência a maior parte de nossas memórias de infância não significa que elas não tenham se inscrito em nós nem que não afetem nossos sentimentos, pensamentos e comportamentos atuais. As experiências da primeira infância, sobretudo entre mãe e bebê, influenciam o padrão das conexões cerebrais e, correlativamente, o padrão de nossos comportamentos e pensamentos3.

A vasta contribuição de Freud relativamente à função dos sonhos foi em grande parte ignorada pela ciência, pela falta de um método quantitativo e de hipóteses testáveis. Felizmente, os avanços da neurociência convergiram nos últimos anos para dois importantes insights psicanalíticos. O primeiro consiste na observação concreta de que os sonhos, frequentemente, contêm elementos da experiência do dia anterior, denominados de "restos do dia". O segundo é o reconhecimento de que estes "restos" incluem atividades mnemônicas e cognitivas da vigília, persistindo nos sonhos na medida de sua importância para o sonhador. Assim, ainda que de maneira difusa, a psicanálise prevê que a consolidação de memórias e o aprendizado sejam importantes funções oníricas14.

Segundo Freud, os sonhos constituem "uma realização (disfarçada) de um desejo (reprimido)". A hipótese de que o sistema dopaminérgico mesolímbico-mesocortical, relacionado aos estados motivacionais, é essencial para a formação dos sonhos também oferece algum respaldo à teoria freudiana. Assim, as emoções parecem exercer um papel fundamental na formação dos sonhos15.

Estudos experimentais recentes trazem à tona duas grandes contribuições de Freud aos conhecimentos atuais sobre a supressão e/ou inibição de memórias. Ambos os processos, largamente estudados por ele, a repressão e a extinção, já têm boa parte de seus mecanismos conhecidos. Essa inibição ou supressão é inerente à nossa natureza. Por um lado, precisamos impedir o acesso à consciência de muitas memórias, porque sua evocação seria prejudicial ou insuportável. Por outro, precisamos fazê-lo porque devemos recordar ou aprender outras memórias16. Em seu comunicado, Izquierdo16 cita achados interessantes de outro grupo17: no momento em que o cérebro exclui da consciência a expressão de memórias indesejadas, ocorrem: a) inibição da evocação dessas memórias (repressão); b) ativação do córtex pré-frontal anterolateral (envolvido na memória de trabalho); c) inibição da atividade do hipocampo. O hipocampo é o "diretor" da "orquestra" de áreas corticais envolvidas na evocação de memórias17. O estudo desses cientistas pretendeu explicar casos de bloqueio de memória especialmente nas situações de abusos sexuais sofridos por crianças que não se lembram dos abusos quando se tornam adultas. Sua existência foi percebida por meio da utilização de imagens cerebrais que mostravam os sistemas neurológicos participantes do bloqueio da evocação de memórias indesejáveis. Esses dados corroboram a hipótese de Freud sobre o processo de "recalque".

Analisando todos esses dados, consideramos que as visões psicanalítica e neurocientífica podem ser complementares e mutuamente enriquecedoras. Tomados em conjunto, esses achados indicam não só a viabilidade, mas a necessidade de reavaliar o legado psicanalítico de Freud, com uma diferente abordagem. Assim, realizamos uma revisão bibliográfica a respeito da segunda tópica de Freud, procurando possíveis pontos de contato entre a psicanálise e a neurofisiologia. A seguir, será apresentada uma proposta de interface entre a segunda tópica de Freud e o encéfalo, na tentativa de estabelecer uma abordagem conciliadora entre a psicanálise e a neurofisiologia. Nossa expectativa é de que esse trabalho possa contribuir para a integração entre a psicanálise e a neurofisiologia, para melhor compreensão do complexo funcionamento da mente humana.


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Métodos

Para o presente trabalho, foram realizados os seguintes procedimentos:

1. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica nas principais bases de dados: Biblioteca Virtual em Saúde (BVS); Scientific Electronic Library Online (SciELO); U.S. National Library of Medicine (PubMed) e Lilacs; ato contínuo. Tendo em vista que a proposta deste trabalho é realizar uma abordagem de interface entre a segunda tópica de Freud e a neurofisiologia, cruzamos as seguintes palavras-chave:

psicanálise-psychoanalysis; Freud-Freud; id-id; ego-ego; superego-superego X neurobiologia-neurobiology; neurofisiologia-neurophysiology; neurociências-neuroscience; sistema límbico-limbic system.

A pesquisa bibliográfica foi realizada no período compreendido entre 2 de julho e 26 de setembro de 2009, para artigos publicados nos últimos 10 anos. Quanto aos critérios de inclusão e exclusão, foram selecionados artigos originais e de revisão que contemplassem os seguintes aspectos:

Artigos que apresentassem dados ou hipóteses que possibilitassem uma aproximação integradora entre a psicanálise e a neurobiologia atual, utilizados principalmente para a apresentação da introdução e justificativa do presente trabalho.

Artigos que apresentassem dados ou hipóteses que possibilitassem uma aproximação integradora entre a segunda tópica de Freud e a neurofisiologia atual, utilizados principalmente para a discussão.

Artigos que abordassem as emoções e/ou o controle do comportamento. Esses artigos forneceram informações para a apresentação de estruturas e vias encefálicas envolvidas nas emoções e no controle do comportamento. Tendo em vista que não se pode abordar id, ego e superego sem falar de emoção e comportamento, tais informações foram fundamentais para a nossa discussão de interface entre a neurofisiologia e a segunda tópica de Freud.
Artigos localizados na pesquisa bibliográfica que não contemplassem nenhum dos critérios anteriormente descritos não foram selecionados para inclusão neste trabalho.

2. Além da pesquisa já descrita, também foram utilizados capítulos de livros de referência em neurociências como "Fisiologia do comportamento", do autor Neil Carlson, e "Cem bilhões de neurônios", do autor Roberto Lent. Os capítulos selecionados abordam as emoções e/ou o controle do comportamento e também forneceram informações fundamentais para a nossa proposta de integração entre a segunda tópica de Freud e a neurofisiologia.

3. Finalmente, procuramos realizar uma reflexão crítica sobre todo o material obtido para a elaboração de nossa proposta de integração entre a psicanálise e a neurobiologia.


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Resultados

Durante nossa pesquisa bibliográfica, foram localizados mais de 100 artigos; muitos artigos (os mesmos) estavam citados em mais de uma base de dados. Após a identificação dos artigos repetidos, restaram cerca de 40 artigos diferentes para análise. De acordo com os critériosde inclusão e exclusão anteriormente descritos, foram selecionados 20 artigos (originais ou de revisão) para citação em nosso trabalho. Dos artigos selecionados e incluídos em nosso trabalho, tiveram relevância para nossa discussão os seguintes:

Winograd M. Matéria pensante – a fertilidade do encontro entrepsicanálise e neurociência. Arq Bras Psicol. 2004;(56)1:21-34.

Soussumi Y. Tentativa de integração entre algumas concepções básicas da psicanálise e da neurociência. Psicologia Clínica. 2006;18(1):63-82.

Cheniaux E. Os sonhos: integrando as visões psicanalítica eneurocientífica. Rev Psiquiatr Rio Gde Sul. 2006;28(2):69-76.

Sidarta R. Sonho, memória e o reencontro de Freud com o cérebro. Rev Bras Psiquiatr. 2003;25(2):59-63.

De Martino B, Kumaran D, Seymour B, Dolan RJ. Frames, biases, and rational decision-making in the human brain.Science Magazzine. 2006;313(5787):684-7.

Siever LJ, Weinstein LN. The neurobiology of personality disorders: implications for psychoanalysis. J Am Psychoanal Assoc. 2009;57(2):361-98.

Houdart R. Affectivity in the nervous system. Encephale.2004;30(3):236-44.

Mancia M. The dream between neuroscience and psychoanalysis. Arch Ital Biol. 2004;142(4):525-31.

Damásio AR. Emotion and the human brain. In: Harrington A, Kagan J (Orgs.). Unity of knowledge – the convergence of natural and human science. New York: New York Academy of Sciences; 2001.


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Discussão

No presente trabalho, procurou-se realizar uma abordagem de interface entre a segunda tópica de Freud e a neurofisiologia atual, com base nas clássicas descrições de Freud e em dados da neurofisiologia, com inclusão de dados relevantes de artigos de outros autores, para discussão e elaboração de hipóteses relacionadas ao tema. Para fins didáticos, apresentaremos nossa discussão nos seguintes tópicos:

O id segundo Freud e a neurofisiologia;

O ego segundo Freud e a neurofisiologia;

O superego segundo Freud e a neurofisiologia.

O id segundo Freud e a neurofisiologia

Trazendo as clássicas descrições do id para o campo neurobiológico, pode-se considerar que essa instância psíquica estaria voltada basicamente para os processos vitais mais primitivos, como a conservação da vida (beber e comer), a defesa da vida ou do território (ataque e agressão), a propagação da vida (reprodução), e com a obtenção de prazer. Assim, propomos que os sistemas neurais, cujos processos ocorrem predominantemente de forma inconsciente e estão destinados ao controle da conservação e propagação da vida, ou seja, os sistemas neurais que controlam o comportamento de beber e comer, que controlam o comportamento agressivo-defensivo, o comportamento reprodutivo e os sistemas de recompensa cerebrais, juntos constituiriam o sistema neurobiológico mais estreitamente relacionado ao sistema id.

Em relação à conservação da vida, parece claro que os comportamentos básicos de ingestão (beber e comer) são programados por circuitos cerebrais filogeneticamente antigos. Estudos indicam que o tronco encefálico contém circuitos neurais que podem controlar a ingestão de alimentos, e a área postrema, o núcleo do trato solitário do bulbo e a área parabraquial da ponte estão mais diretamente envolvidos no controle da ingestão de alimentos. Além disso, toda a região em volta do terceiro ventrículo anterior parece ser uma parte do cérebro onde são integrados os sinais osmométricos e volumétricos para o controle da sede e do apetite por sal. A estimulação do hipotálamo lateral, particularmente, estimula o comportamento de beber e a ingestão de alimento. A estimulação do hipotálamo ventromedial, ao contrário, causa sensação de tranquilidade e saciedade, inibindo o comportamento de busca por alimento18-20.

Considerando a hierarquia das necessidades, estando o indivíduo saciado (sem sede ou fome), a próxima etapa seria a preocupação do indivíduo com a defesa da vida ou de seu território, caso haja algum evento ameaçador no ambiente. O controle neural do comportamento agressivo/defensivo é hierárquico, isto é, os comportamentos de ataque e defesa são programados por circuitos no tronco cerebral, com o auxílio de sinais do hipotálamo e da amígdala. Tanto o comportamento defensivo quanto o comportamento agressivo podem ser eliciados pela estimulação da matéria cinzenta periaquedutal (MCP), dos núcleos periventriculares do hipotálamo e da amígdala central. Essas três estruturas compõem uma importante parte do sistema límbico, denominada sistema cerebral aversivo, responsável por organizar comportamentos em resposta a situações aversivas ou ansiogênicas. Além disso, a área pré-óptica medial do hipotálamo também parece ser importante na mediação dos efeitos dos andrógenos sobre a agressão entre machos21.

Obviamente, todas essas estruturas não atuam isoladamente, mas sofrem constantemente influências modulatórias, principalmente por parte do córtex pré-frontal. Em geral, um aumento da atividade de sinapses serotonérgicas inibe a agressão. Por essa razão, alguns clínicos têm usado drogas serotonérgicas para tratar comportamentos violentos em humanos. Estudos sugeriram que o álcool pode estimular a agressão, interferindo de forma inibitória na função do córtex pré-frontal, que tem função modulatória sobre o comportamento21.

Adiante, veremos como as funções do córtex pré-frontal podem encaixar-se nas descrições de ego segundo Freud. Assim, a neurofisiologia fornece suporte para o clássico entendimento, na psicanálise, de que, quando o ego enfraquece, as manifestações pulsionais do id irrompem e predominam.

Enfatizando a natureza pulsional do id, não se poderia deixar de falar de sexo ou comportamento reprodutivo. Considerando que o cérebro é sexualmente dimórfico, o controle do comportamento sexual envolve diferentes mecanismos cerebrais em machos e fêmeas. Em roedores, a área pré-óptica medial (APM), localizada rostralmente em relação ao hipotálamo, é a região do prosencéfalo mais crítica para o comportamento sexual do macho. Lesões dessa área diminuem ou abolem o comportamento sexual masculino. Além disso, a atividade dessa área é influenciada positivamente pelos níveis de andrógenos circulantes. A APM recebe aferências quimiossensoriais através de conexões com a amígdala medial. A amígdala medial, assim como a área pré-óptica medial, também contém uma concentração particularmente alta de receptores de andrógenos. A destruição da amígdala medial prejudica o comportamento sexual de ratos machos. Assim, as conexões entre a amígdala medial e a APM são importantes para a expressão normal do comportamento sexual em machos22.

Da mesma forma que a APM exerce um papel essencial no comportamento sexual masculino, outra região no prosencéfalo basal exerce um papel similar no comportamento sexual feminino: o núcleo ventromedial do hipotálamo (HVM). O estradiol e a progesterona exercem seus efeitos estimulantes sobre o comportamento sexual feminino, pela ativação de neurônios do HVM. De forma semelhante aos machos, a amígdala medial também é importante para a expressão normal do comportamento sexual em fêmeas. Os neurônios do HVM enviam axônios para a matéria cinzenta periaquedutal que circunda o aqueduto mesencefálico. Essa região também tem sido implicada no comportamento sexual feminino e também é influenciada pelos hormônios estradiol e progesterona. Lesões que desconectam o HVM da matéria cinzenta periaquedutal abolem o comportamento sexual feminino. Os neurônios da matéria cinzenta periaquedutal enviam axônios para a formação reticular do bulbo e os neurônios ali localizados projetam axônios para a medula espinhal. Essa via parece ser o elo final entre os neurônios hipotalâmicos e os neurônios que controlam a contração dos músculos envolvidos na cópula22.

Assim, em relação ao controle do comportamento sexual, em machos, há o envolvimento da área pré-óptica medial do hipotálamo e da amígdala medial. Em fêmeas, há o envolvimento do núcleo ventromedial do hipotálamo, da amígdala medial, da matéria cinzenta periaquedutal do mesencéfalo e da formação reticular do bulbo.

Considerando ainda o id como a reserva inconsciente dos elementos instintivos que se originam da organização somática, voltados para a preservação e a propagação da vida, não se pode dissociar o controle do comportamento reprodutivo do comportamento maternal. A área pré-óptica medial (APM), a região do prosencéfalo que exerce o papel mais crítico sobre o comportamento sexual masculino, parece exercer um papel similar sobre o comportamento maternal22.

Os neurônios da APM, que são ativados pelo desempenho do comportamento maternal, projetam axônios para duas regiões: a área tegmental ventral e a área retrorrubral. A área retrorrubral do mesencéfalo projeta axônios a regiões da formação reticular do tronco cerebral, que podem estar envolvidas na expressão do comportamento maternal. A secção das conexões da APM com o tronco cerebral abole o comportamento maternal. Hormônios que estimulam o comportamento maternal, como estrógenos, progesterona, hormônios lactogênicos placentários e prolactina, exercem seus efeitos, principalmente, ao estimular neurônios da APM22. Assim, para a expressão do comportamento maternal estão envolvidos circuitos da área pré-óptica medial do hipotálamo, a área tegmental ventral e a área retrorrubral do mesencéfalo, bem como a formação reticular do tronco cerebral.

Passemos, agora, do controle do comportamento reprodutivo ao prazer. Ao falar de id, não se poderia esquecer que essa instância psíquica é regida pelo "princípio do prazer". Quando ocorrem estímulos que causam respostas emocionais positivas, isto é, quando ocorrem estímulos que causam sensações de prazer-recompensa, os mecanismos de reforço no cérebro tornam-se ativos. Assim, todo comportamento que produz uma resposta emocional positiva é reforçado, ou seja, ocorrem alterações em determinados circuitos neurais que promovem a repetição do comportamento. Como o id é uma instância psíquica que, além da satisfação imediata dos impulsos instintivos, busca também o prazer, consideramos que os principais sistemas de reforço do cérebro poderiam também ser relacionados ao sistema id.

Entre as principais estruturas envolvidas no reforço, encontram-se: o núcleo acumbens, o estriado (núcleo caudado e putâmen), núcleos talâmicos, a formação reticular, partes da amígdala, a área tegmental ventral, a substância negra do mesencéfalo e o locus coeruleus da ponte23. Assim, há vários mecanismos de reforço. O feixe prosencefálico medial (FPM) representa a localização mais fiel. Esse feixe contém longos axônios ascendentes e descendentes que interconectam estruturas mesencefálicas e prosencefálicas. No seu trajeto, que se estende do tronco encefálico até suas áreas de projeção no prosencéfalo, ele contém axônios ascendentes dopaminérgicos, os quais exercem um papel particularmente importante no reforço. Uma das principais vias dopaminérgicas do encéfalo é o sistema mesolímbico. O sistema mesolímbico origina-se na área tegmental ventral do mesencéfalo e projeta-se, por meio do feixe prosencefálico medial, para a amígdala, o septo, a estria terminal, o hipocampo e o núcleo acumbens. A ramificação que termina no núcleo acumbens é responsável pelos principais efeitos reforçadores da estimulação do feixe prosencefálico medial. Esse sistema está relacionado aos estados motivacionais, os quais instigam comportamentos que visam à satisfação das necessidades biológicas, como beber, comer e copular23. Substâncias estimulantes e que causam dependência, comococaína e anfetamina, atuam nesse circuito, causando um aumento na liberação de dopamina no núcleo acumbens, o que, por sua vez, leva a uma grande sensação de prazer15,20.

Em seu trabalho, Soussumi9 se refere ao circuito envolvendo o núcleo acumbens como o sistema de busca de prazer por excelência, em que a excitação dopaminérgica pode conduzir a quadros de fixação e de adicção, correspondendo, segundo sua interpretação, ao que Freud denomina como "sistema de luxúria"9.

O sistema mesolímbico-mesocortical tende a impulsionar o indivíduo a uma atividade exploratória do meio, em busca de satisfação de sua necessidade, desejo ou curiosidade. Segundo Soussumi, é por meio desse impulso que o homem sai do estado de isolamento para a busca de contato com o outro, com o que existe fora de si, ou seja, sai do narcisismo para a relação de objeto. Esse sistema, segundo o autor, seria responsável pela busca do homem por objetos que satisfaçam, primariamente, a suas necessidades e, secundariamente, a seus desejos. Em uma colocação interessante, Soussumi identifica o sistema dopaminérgico mesolímbico-mesocortical como correspondente ao que Freud chamou de "libido", propondo ser por meio desse sistema que ocorrerão as catexizações dos objetos de relação9.

Analisando todos os dados apresentados anteriormente, hipotetizamos que diversos circuitos do tronco encefálico, em associação a outras estruturas como o feixe prosencefálico medial, a amígdala medial, o septo, a estria terminal, o hipocampo, o hipotálamo, o núcleo acumbens, o estriado (núcleo caudado e putâmen) e os núcleos talâmicos, apresentam funções que podem ser relacionadas às descrições do sistema id de Freud.

Segundo Soussumi9, as atividades desses núcleos, com seus produtos neuroquímicos, corresponderiam aos correlatos neurais deFreud denominados drives ou pulsões9. Não por acaso, muitas dessasestruturas são consideradas como importantes componentes que integram o sistema límbico, relacionado ao controle das motivações e do comportamento emocional. Como vimos, nessas áreas predomina a atividade inata, pré-programada, involuntária e inconsciente. Segundo Freud, os impulsos motivacionais derivariam de regiões predominantemente subcorticais, cujas funções impelem o organismo a tentar descarregar o excesso de energia acumulada, sentido como desprazer, para um nível mais moderado de energia, sentido como alívio-prazer6. Passemos agora à próxima instância psíquica: o ego.
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O ego segundo Freud e a neurofisiologia

De acordo com as descrições do ego que foram apresentadas na introdução, quais estruturas cerebrais cujas características funcionais mais se encaixam no perfil do ego? A neuropsicanálise identificou nas funções do lobo frontal muitas das funções atribuídas ao ego9. O lobo frontal é a parte mais desenvolvida do cérebro, em especial o pré-frontal, que encontra no homem a sua expressão mais evoluída. Dotado de função associativa, o lobo frontal recebe os estímulos de todas as demais estruturas do cérebro e os associa, integrando-os.

Nós, humanos, somos capazes de reagir emocionalmente diante de situações muito complexas, especialmente envolvendo outras pessoas. A percepção do significado de situações sociais é muito mais complexa do que a percepção de estímulos individuais. Ela envolve muito mais que a análise sensorial, incluindo a análise de experiências e memórias, inferências e julgamentos. Essas habilidades parecem envolver os circuitos do córtex pré-frontal, especialmente o córtex orbitofrontal. O córtex orbitofrontal está localizado na base dos lobos frontais. A lesão ou retirada do córtex orbitofrontal prejudica a capacidade de fazer julgamentos e inferências e prejudica a capacidade de traduzir esses julgamentos em comportamentos apropriados. Pessoas que tiveram lesões pré-frontais ou foram submetidas a vários tipos de lobotomias pré-frontais apresentaram perda da capacidade de realizar planos para o futuro, tornaram-se inconsequentes, irresponsáveis, emocionalmente instáveis e incapazes de distinguir entre decisões triviais e importantes20,21.

Em geral, as respostas emocionais fornecem um elemento importante na tomada de decisões. As lesões pré-frontais (e também as lesões da amígdala) parecem impedir que as respostas emocionais e sentimentos sejam traduzidos em julgamentos e comportamentos apropriados21. Ademais, o corte pré-frontal tem sido considerado a "sede da personalidade". Essa estrutura parece ser importante para a tomada de decisões e para a adoção de estratégias comportamentais mais adequadas a determinada situação. O córtex pré-frontal estabelece conexões recíprocas com praticamente todo o encéfalo: todas as áreas corticais, vários núcleos talâmicos, núcleos da base, o cerebelo, a amígdala, o hipocampo e o tronco encefálico. Uma região que possui conexões tão variadas tem grandes possibilidades de exercer funções de controle e coordenação geral das funções mentais e do comportamento24.

Tudo indica que a região ventromedial do córtex pré-frontal é responsável pelo raciocínio lógico para a resolução de problemas, o planejamento de ações e a ordenação temporal dos atos, sua adaptação e ajuste às circunstâncias (ajuste social do comportamento) e a seleção das ações mais adequadas a cada momento, bem como os objetivos de longo, médio e curto prazo estabelecidos pelo indivíduo. A região dorsolateral do córtex pré-frontal estaria relacionada com a memória operacional24.

Acredita-se que o córtex pré-frontal e o córtex orbitofrontal recebam aferências da amígdala, as quais representam o valor motivacional dos estímulos, integrando-os e promovendo uma avaliação do comportamento futuro que será adotado25.

Um limiar baixo para a agressão impulsiva, como observado nas desordens de personalidade borderline e antissocial, pode estar relacionado à reatividade excessiva de núcleos da amígdala (id), à redução da inibição pré-frontal (ego) e à redução do controle serotonérgico sobre o córtex pré-frontal (ego)26.

Ao falar de ego, não se pode deixar de discutir o giro do cíngulo. O giro do cíngulo (peleocórtex) é parte importante do sistema límbico, fornecendo uma interface entre o processo de tomada de decisão do córtex frontal, as funções emocionais da amígdala e os mecanismos cerebrais que controlam os movimentos21. Dessa forma, propomos que ele atuaria como um auxiliar do ego. Danos na região límbica frontal que produzem confabulações prejudicam os mecanismos de controle cognitivo – base da monitoração normal da realidade –, intensificando a influência do desejo na percepção, na memória e no julgamento3.

O córtex cingulado anterior parece ser importante para a modulação das informações processadas pelo córtex pré-frontal25. Estudos de neuroimagem demonstram que processos executivos são mediados pelo córtex frontal, particularmente o córtex cingulado anterior e o córtex pré-frontal. A estimulação elétrica do giro do cíngulo, em humanos, pode produzir emoções negativas ou positivas. Assim, o giro do cíngulo exerce um papel excitatório sobre as emoções e sobre a motivação comportamental em geral. Ele se comunica (em ambas as direções) com o restante do sistema límbico, bem como com outras regiões do córtex frontal. As pessoas extrovertidas – mais ativas e mais salientes – apresentam um nível maior de ativação do córtex cingulado anterior. E as pessoas introvertidas – que são mais reflexivas, cautelosas e solitárias – apresentam menor ativação do córtex cingulado anterior e uma maior ativação do córtex pré-frontal21, o que corrobora a hipótese de que o córtex pré-frontal atua como um "mediador moderador" do comportamento, exatamente como o ego se incumbe do ajustamento ao ambiente e da solução dos conflitos entre o indivíduo e a realidade.

Agora, cabe aqui uma colocação. A afetividade não é gerada pelo córtex cerebral. Ela resulta do processamento das informações sensoriais e informações armazenadas na memória pelo sistema límbicoe sistema reticular (circuitos neurais predominantemente id). Após análise do córtex límbico, se determinada situação é considerada favorável ou desfavorável, as informações são convertidas nas regiões médio-centrais do cérebro como "prazer" ou "aversão" e geram motivação para o comportamento apropriado. Do córtex límbico (predominantemente id), essas motivações são transmitidas para o córtex pré-frontal contíguo (ego). O córtex pré-frontal atua como um centro para a atividade consciente e armazenamento para memórias afetivas. Assim, somente o neocórtex pré-frontal é consciente, mas o córtex límbico, embora inconsciente, é a fonte de motivação27.

Esses dados também se encaixam nas clássicas descrições do id (inconsciente) e do ego (partes inconscientes e conscientes). Com referência aos acontecimentos externos, o ego desempenha sua função armazenando experiências sobre os diferentes estímulos na memória e aprendendo, por meio da atividade, a produzir modificações convenientes no mundo externo em seu próprio benefício9, funções desempenhadas pela região ventromedial do córtex préfrontal. A teoria psicanalítica procura explicar a gênese do ego (córtex pré-frontal?) como um sistema adaptativo, diferenciado a partir do id (circuitos filogeneticamente mais antigos) em contato com a realidade exterior (estímulos externos).

Para Freud, o sonho constitui "uma realização (disfarçada) de um desejo (reprimido)". Ainda de acordo com Freud, o conteúdo manifesto dos sonhos é aparentemente incompreensível, porque consiste numa versão distorcida do conteúdo latente. Essa distorção se dá, em primeiro lugar, porque no sono há uma profunda regressão do funcionamento do ego, que faz com que prevaleça o processo primário do pensamento. O processo primário é caracterizado pelo predomínio das imagens visuais, em detrimento da linguagem verbal1.

Estudos recentes mostram que durante o sono REM, o córtex pré-frontal encontra-se desativado e vários aspectos característicos do sonho podem ser relacionados a esse achado: a bizarrice, a incoerência, a perda da crítica e o esquecimento15,28. É interessante o fato de que, segundo Freud, há uma profunda regressão do ego durante o sono, como citado anteriormente. Esses dados corroboram a hipótese de que o córtex pré-frontal pode muito bem sediar as funções do ego.Passemos agora ao superego.
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O superego segundo Freud e a neurofisiologia

Considerando as descrições de superego que foram apresentadas na introdução, quais estruturas cerebrais cujas funções poderiam estar mais relacionadas ao superego segundo Freud? Salientamos que o superego atua como um juiz, como um censor moral. Inicialmente, o superego é representado principalmente pela autoridade parental que dá ritmo à evolução infantil, alternando as provas de amor com as punições, geradoras de angústia. Posteriormente, o superego passa a incluir também a internalização das regras, proibições e punições provenientes da sociedade. E são mais comumente as punições ou estímulos aversivos que nos ensinam o que devemos ou não devemosfazer, o que podemos ou não podemos fazer, ou seja, o que é bom ou ruim considerando as consequências. Qual estrutura cerebral que nos possibilita aprender o que podemos ou não podemos fazer? Propomos que um bom candidato seria o núcleo central da amígdala.

A amígdala exerce um papel especial nas reações fisiológicas e comportamentais, diante de estímulos emocionalmente relevantes ou situações que possuem um significado biológico importante21. Com relação ao id, vimos que o núcleo medial da amígdala é importante para o comportamento reprodutivo. O que nos interessa agora é o núcleo central da amígdala ou amígdala central. Graças à amígdala central, podemos aprender que uma determinada situação é perigosa, ameaçadora ou simplesmente traz consequências ruins20,21. Traduzindo: se levamos palmadas na infância porque desobedecemos nossos pais, provavelmente não vamos nos esquecer disso.

Danos na amígdala interferem nos efeitos das emoções sobre a memória. Normalmente, quando as pessoas enfrentam situações que produzem respostas emocionais fortes, elas têm maior probabilidade de lembrar dessas situações. Lesões da amígdala diminuem essa probabilidade. O núcleo central da amígdala é a região mais importante do cérebro para a expressão das respostas emocionais provocadas por estímulos aversivos. A amígdala central é particularmente importante na aprendizagem emocional aversiva, ou seja, seus circuitos permitem que o organismo aprenda a emitir respostas específicas que evitam o contato com estímulos aversivos21. Isso significa aprender a emitir comportamentos que minimizem ou evitem consequências desagradáveis para o indivíduo. Traduzindo: não basta lembrar que levamos palmadas de nossos pais, é preciso aprender a evitar os comportamentos que estimularam nossos pais a recorrer às palmadas.

O núcleo central da amígdala também é importante para o desenvolvimento de respostas emocionais condicionadas21. Aqui a palavra condicionada refere-se ao processo de condicionamento clássico. O que seriam nossos comportamentos mais socialmente aceitáveis, senão aqueles que resultaram de uma série de condicionamentos clássicos gerados pela sociedade? Não foi por acaso que Freud argumentou que a transmissão dos valores e das tradições perpetua-se por intermédio dos superegos, de uma geração para outra2. Dessa forma, o superego seria o depósito dos modelos de conduta socialmente aceitáveis e o núcleo central da amígdala funciona muito bem como o censor neural que prediz o que podemos ou não podemos fazer, o que devemos ou não devemos fazer.

Quando abordamos o id, comentamos o envolvimento da matéria cinzenta periaquedutal do mesencéfalo e das zonas periventriculares do hipotálamo, na organização dos comportamentos de luta e fuga. Entretanto, essas duas estruturas também apresentam circuitos neurais que constituem importantes centros de punição e, portanto, não poderiam trabalhar dissociadamente do núcleo central da amígdala21. E de fato não trabalham. Os axônios que emergem do núcleo central da amígdala estabelecem conexões com os núcleos periventriculares do hipotálamo e com a matéria cinzenta periaquedutal24. Assim, propomos que os "centros de punição" da matéria cinzenta periaquedutal do mesencéfalo e das zonas periventriculares do hipotálamo funcionam como auxiliares do superego (núcleo central da amígdala).

Outra estrutura cerebral cujas funções poderiam se encaixar nas descrições de superego seria o córtex da ínsula. O córtex da ínsula é responsável por emoções negativas, como o medo e a ansiedade. A sua ativação em resposta a situações que podem trazer consequências desagradáveis atua como um freio inibitório que tende a reprimir o comportamento de risco21,24.

Damásio sugere que sem a emoção não se pode compreender como o organismo mantém a homeostase, ante os desafios do meio ambiente e ameaças à sobrevivência no mundo complexo da sociedade e cultura. As emoções e os sentimentos que se seguem aos diferentes tipos de estímulos são parte integrante dos sistemas de valores necessários para estabelecer a memória de longo prazo e para racionalização e tomada de decisão, envolvendo as escolhas para direcionar a vida29.

Consideremos uma situação hipotética. Você deseja comprar um carro, que é o carro dos seus sonhos. Representando o prazer antecipado da aquisição do carro, há o envolvimento dos sistemas de recompensa cerebral, como a via mesolímbica-núcleo acumbens, cuja ação é motivadora e representa muito bem os anseios do id (Eu quero muito comprar esse carro!). Por outro lado, analisando o contexto, prevendo as consequências da compra do carro dos seus sonhos, há a ativação do núcleo central da amígdala e do córtex da ínsula, que alertam para os possíveis riscos e prejuízos advindos dessa ação (Não faça isso agora, você pode ficar muito endividado!). Entre os dois polos, atuando como a parte executiva da personalidade, entra em ação o córtex pré-frontal, que deverá decidir se o seu desejo será satisfeito imediatamente (decisão a favor do id) ou se não será realizado (decisão a favor do superego). O córtex pré-frontal, atuando como o ego mediador, poderá decidir pelo adiamento da compra, quando as circunstâncias econômicas forem mais favoráveis. Na realidade, o córtex pré-frontal pode ir além disso: ele é capaz de elaborar planos e estratégias para criar, num futuro não muito distante, essas condições favoráveis. Assim, numa perspectiva mais otimista, o córtex pré-frontal (ego) poderá satisfazer o id, sem transgredir as limitações impostas pelo superego e pela realidade externa. No indivíduo normal, essa função é cumprida a contento. Nos neuróticos e psicóticos o ego sucumbe, seja porque o id ou o superego são excessivamente fortes, seja porque o ego é excessivamente fraco.


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Considerações finais

A meta fundamental do aparelho psíquico é manter e recuperar, quando perdido, um nível aceitável de equilíbrio dinâmico que maximiza o prazer e minimiza o desprazer. A energia psíquica que é usada para acionar o sistema nasce no id, que é de natureza primitiva, instintiva. O id seria representado por circuitos filogeneticamente mais antigos como os circuitos do tronco cerebral, o feixe prosencefálico medial, a amígdala medial, o septo pelúcido, a estria terminal, o hipotálamo, o núcleo acumbens, o núcleo caudado, o putâmen e os núcleos talâmicos. Emergindo a partir do id, o ego, representado principalmente pelo córtex pré-frontal, tem a função de lidar realisticamente com as pulsões básicas do id e também age como mediador entre as forças que operam no id, no superego e as exigências da realidade externa. O superego, representado principalmente pelo núcleo central da amígdala e pelo córtex da ínsula, atua como um freio modulador em relação aos interesses motivacionais/ pulsionais do id. Ora, o ser humano é um animal social e, se quiser viver com seus congêneres, não pode fazer sempre o que quer e quando quer. De fato, o mundo exterior impõe ao indivíduo limites e proibições que provocam a repressão e a transformação das pulsões, na busca constante de satisfações substitutivas que não transgridam as normas sociais. Em indivíduos normais, essa busca constante pela adaptação ao meio e a procura por prazeres que não prejudiquem as relações intra e interpessoais tendem a levar ao desenvolvimento e fortalecimento progressivos do ego.

Finalmente, gostaríamos de salientar que o modelo de integração entre a segunda tópica de Freud e a neurobiologia aqui proposto não constitui, em absoluto, um modelo completo, acabado. Longe disso. Acreditamos que esse modelo estará sempre sujeito a acréscimos e alterações, de acordo com novos avanços da neurobiologia, e também, obviamente, está aberto a contribuições de visões diferentes de outros autores. Entretanto, acreditamos que o presente modelo constitui um diálogo fértil entre a psicanálise e a neurociência, indicando que as clássicas descrições de Freud sobre a mente têm perfeitamente lugar na neurofisiologia de hoje.



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Recebido: 20/7/2009 
Aceito: 22/10/2009


http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832010000600005

LIMA, Andréa Pereira de. O modelo estrutural de Freud e o cérebro: uma proposta de integração entre a psicanálise e a neurofisiologia. Rev. psiquiatr. clín.,  São Paulo ,  v. 37, n. 6, p. 280-287,    2010 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832010000600005&lng=en&nrm=iso>. access on  20  Dec.  2016.  http://dx.doi.org/10.1590/S0101-60832010000600005.