Freud - Obras Completas XVIII

Além do princípio do prazer, psicologia de grupo
e outros trabalhos

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VOLUME XVIII
(1925-1926)














Dr. Sigmund Freud





ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER (1920)


NOTA DO EDITOR INGLÊS - JENSEITS DES LUSTPRINZIPS

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1920 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. 60 págs.
1921 2ª ed. Mesmos editores. 64 págs.
1923 3ª ed. Mesmos editores. 94 págs.
1925 G.S., 6, 191-257
1931 Theoretische Schriften, 178-247.
1940 G.W., 13, 3-69.

(b)TRADUÇÕES INGLESAS:
Beyond the Pleasure Principle
1922 Londres e Viena: International Psycho-Analytical Press. VIII + 90 págs. (Trad. de C.J. M. Hubback; pref. de Ernest Jones.)
1924 Nova Iorque: Boni and Liveright.
1942 Londres: Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis. (Reedição da anterior.)
1950 Mesmos editores. VI + 97 págs. (Trad. de J. Strachey.)

            Freud fez uma série de acréscimos na segunda edição, mas as alterações subseqüentes foram desprezíveis. A presente tradução inglesa é uma versão um tanto modificada da publicada em 1950.

            Como é demonstrado por sua correspondência, Freud começou a trabalhar num primeiro rascunho de Além do Princípio de Prazer em março de 1919 e informou que esse rascunho estava terminado em maio seguinte. Durante o mesmo mês, ele completou seu artigo sobre ‘The Uncanny’ (1919h), que inclui um parágrafo que apresenta grande parte da essência da presente obra, em poucas frases. Nesse parágrafo, refere-se à ‘compulsão à repetição’ como sendo um fenômeno apresentado no comportamento das crianças e no tratamento psicanalítico; sugere que essa compulsão é algo derivado da natureza mais íntima dos instintos e a declara ser suficientemente poderosa para desprezar o princípio de prazer. Não há, contudo, alusão aos ‘instintos de morte’. Acrescenta que já terminou uma exposição pormenorizada do assunto. O artigo sobre ‘The Uncanny’ contendo esse resumo foi publicado no outono de 1919, mas Freud reteve Além do Princípio de Prazer por um ano ainda. Na primeira parte de 1920, ainda trabalhava nele e então - pela primeira vez, aparentemente - surge uma referência aos ‘instintos de morte’, numa carta a Eitingon, de 20 de fevereiro. Estava ainda revisando a obra em maio e junho, e ela foi finalmente terminada por meador de julho de 1920. Em 9 de setembro, fez uma comunicação ao Congresso Psicanalítico Internacional de Haia, com o título de ‘Suplementos à Teoria dos Sonhos’, na qual anunciou a próxima publicação do livro; este foi lançado pouco depois. Um ‘resumo do autor’ da comunicação apareceu no Int. Z. Psychoanal., 6 (1920), 397-8 (uma tradução dele foi publicada no Int. J. Psycho-Anal., 1, 354). Não parece certo que esse resumo tenha sido realmente da autoria de Freud, mas pode ser interessante reproduzi-lo aqui (em nova tradução).

                        ‘Suplementos à Teoria dos Sonhos‘

            ‘O orador tratou, em suas breves observações, de três pontos referentes à teoria dos sonhos. Os dois primeiros relacionaram-se à tese de que os sonhos são realizações de desejo e apresentaram algumas modificações necessárias dela. O terceiro referiu-se a um material que trouxe confirmação completa de sua rejeição dos alegados intuitos “previdentes” dos sonhos.
            ’‘Explicou o orador que, juntamente com os familiares sonhos de desejo e os sonhos de ansiedade que podiam ser facilmente incluídos na teoria, existiam fundamentos para reconhecer a existência de uma terceira categoria, à qual deu o nome de “sonhos de punição”. Se levarmos em conta a justificável suposição da existência de um órgão especial auto-observador e crítico no ego (ideal do ego, censor, consciência), também esses sonhos de punição devem ser classificados na teoria da realização de desejo, porque representariam a realização de um desejo por parte desse órgão crítico. Tais sonhos, disse ele, possuem aproximadamente a mesma relação com os sonhos de desejo comuns que os sintomas da neurose obsessiva, surgidos na formação reativa, têm com os da histeria.
            Outra classe de sonhos, no entanto, pareceu ao orador apresentar uma exceção mais séria à regra de que os sonhos são realizações de desejo. Trata-se dos chamados sonhos “traumáticos”, que ocorrem em pacientes que sofreram acidentes, mas aparecem também durante a psicanálise de neuróticos, trazendo-lhes de volta traumas esquecidos da infância. Em conexão com o problema de ajustar esses sonhos à teoria da realização de desejo, o orador referiu-se a uma obra a ser publicada dentro em breve, sob o título de Além do Princípio de Prazer.
            O terceiro ponto da comunicação do orador referiu-se a uma investigação que ainda não foi publicada, feita pelo Dr. Varendonck, de Ghent. Esse autor conseguiu trazer à sua observação consciente a produção de fantasias inconscientes em ampla escala, num estado de semi-adormecimento, processo que descreveu como “pensamento autístico”. Surgiu dessa investigação que a consideração das possibilidades do dia seguinte, a preparação de esforços de soluções e adaptações etc., jazem inteiramente dentro do campo dessa atividade pré-consciente, que também cria pensamentos oníricos latentes e que, como o orador sempre sustentou, nada tem a ver com a elaboração onírica.
            Na série dos trabalhos metapsicológicos de Freud, Além do Princípio de Prazer pode ser considerado como uma introdução da fase final de suas concepções. Já havia chamado a atenção para a ‘compulsão à repetição’ como fenômeno clínico, mas lhe atribui aqui as características de um instinto; também aqui, pela primeira vez, apresenta a nova dicotomia entre Eros e os instintos de morte, que iria encontrar sua plena elaboração em O Ego e o Id (1923b). Em Além do Princípio de Prazer, também, podemos ver sinais do novo quadro da estrutura anatômica da mente que deveria dominar todos os últimos trabalhos de Freud. Finalmente, o problema da destrutividade, que desempenhou papel cada vez mais importante em suas obras teóricas, faz seu primeiro aparecimento explícito. A derivação de diversos elementos do presente estudo a partir de suas obras metapsicológicas anteriores - tais como ‘The Two Principles of Mental Functioning’ (1911b) ‘Narcisismo’ (1914c) e ‘Os Instintos e Suas Vicissitudes’ (1915c) - será óbvia. Particularmente notável, porém, é a proximidade com que algumas das primeiras partes do presente trabalho acompanham o ‘Projeto para uma Psicologia Científica’ (1950a), esboçado por Freud vinte e cinco anos antes, em 1895.
            Extratos da primeira tradução (1922) do presente trabalho foram incluídos em General Selection from the Works of Sigmund Freud, de Rickman (1937, 162-194).

ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER
I
Na teoria da psicanálise não hesitamos em supor que o curso tomado pelos eventos mentais está automaticamente regulado pelo princípio de prazer, ou seja, acreditamos que o curso desses eventos é invariavelmente colocado em movimento por uma tensão desagradável e que toma uma direção tal, que seu resultado final coincide com uma redução dessa tensão, isto é, com uma evitação de desprazer ou uma produção de prazer. Levando esse curso em conta na consideração dos processos mentais que constituem o tema de nosso estudo, introduzimos um ponto de vista ‘econômico’ em nosso trabalho, e se, ao descrever esses processos, tentarmos calcular esse fator ‘econômico’ além dos ‘topográficos’ e ‘dinâmicos’, estaremos, penso eu, fornecendo deles a mais completa descrição que poderemos atualmente conceber, uma descrição que merece ser distinguida pelo nome de ‘metapsicológica’.
            Com relação a isso, não nos interessa indagar até onde, com a hipótese do princípio de prazer, abordamos qualquer sistema filosófico específico, historicamente estabelecido. Chegamos a essas suposições especulativas numa tentativa de descrever e explicar os fatos da observação diária em nosso campo de estudo. A prioridade e a originalidade não se encontram entre os objetivos que o trabalho psicanalítico estabelece para si, e as impressões subjacentes à hipótese do princípio de prazer são tão evidentes, que dificilmente podem ser desprezadas. Por outro lado, prontamente expressaríamos nossa gratidão a qualquer teoria filosófica ou psicológica que pudesse informar-nos sobre o significado dos sentimentos de prazer e desprazer que atuam tão imperativamente sobre nós. Contudo, quanto a esse ponto, infelizmente nada nos é oferecido para nossos fins. Trata-se da região mais obscura e inacessível da mente e, já que não podemos evitar travar contato com ela, a hipótese menos rígida será a melhor, segundo me parece. Decidimos relacionar o prazer e o desprazer à quantidade de excitação, presente na mente, mas que não se encontra de maneira alguma ‘vinculada’, e relacioná-los de tal modo, que o desprazer corresponda a um aumento na quantidade de excitação, e o prazer, a uma diminuição. O que isso implica não é uma simples relação entre a intensidade dos sentimentos de prazer e desprazer e as modificações correspondentes na quantidade de excitação; tampouco - em vista de tudo que nos foi ensinado pela psicofisiologia - sugerimos a existência de qualquer razão proporcional direta: o fator que determina o sentimento e provavelmente a quantidade de aumento ou diminuição na quantidade de excitação num determinado período de tempo. A experimentação possivelmente poderia desempenhar um papel aqui, mas não é aconselhável a nós, analistas, ir mais à frente no problema enquanto nosso caminho não estiver balizado por observações bastante definidas.
            Não podemos, entretanto, permanecer indiferentes à descoberta de um investigador de tanta penetração como G.T.Fechner, que sustenta uma concepção sobre o tema do prazer e do desprazer que coincide em todos os seus aspectos essenciais com aquela a que fomos levados pelo trabalho psicanalítico. A afirmação de Fechner pode ser encontrada numa pequena obra, Einige Ideen zur Schöpfungs - und Entwick - lungsgeschichte der Organismen, 1873 (Parte XI, Suplemento, 94), e diz o seguinte: ‘Até onde os impulsos conscientes sempre possuem uma certa relação com o prazer e o desprazer, estes também podem ser encarados como possuindo uma relação psicofísica com condições de estabilidade e instabilidade. Isso fornece a base para uma hipótese em que me proponho ingressar com maiores pormenores em outra parte. De acordo com ela, todo movimento psicofísico que se eleve acima do limiar da consciência é assistido pelo prazer na proporção em que, além de um certo limite, ele se aproxima da estabilidade completa, sendo assistido pelo desprazer na proporção em que, além de um certo limite, se desvia dessa estabilidade, ao passo que entre os dois limites, que podem ser descritos como limiares qualitativos de prazer e desprazer, há uma certa margem de indiferença estética (…)’
            Os fatos que nos fizeram acreditar na dominância do princípio de prazer na vida mental encontram também expressão na hipótese de que o aparelho mental se esforça por manter a quantidade de excitação nele presente tão baixa quanto possível, ou, pelo menos, por mantê-la constante. Essa última hipótese constitui apenas outra maneira de enunciar o princípio de prazer, porque, se o trabalho do aparelho mental se dirige no sentido de manter baixa a quantidade de excitação, então qualquer coisa que seja calculada para aumentar essa quantidade está destinada a ser sentida como adversa ao funcionamento do aparelho, ou seja, como desagradável. O princípio de prazer decorre do princípio de constância; na realidade, esse último princípio foi inferido dos fatos que nos forçaram a adotar o princípio de prazer. Além disso, um exame mais pormenorizado mostrará que a tendência que assim atribuímos ao aparelho mental, subordina-se, como um caso especial, ao princípio de Fechner da ‘tendência no sentido da estabilidade’, com a qual ele colocou em relação os sentimentos de prazer e desprazer.
            Deve-se, contudo, apontar que, estritamente falando, é incorreto falar na dominância do princípio de prazer sobre o curso dos processos mentais. Se tal dominância existisse, a imensa maioria de nossos processos mentais teria de ser acompanhada pelo prazer ou conduzir a ele, ao passo que a experiência geral contradiz completamente uma conclusão desse tipo. O máximo que se pode dizer, portanto, é que existe na mente uma forte tendência no sentido do princípio de prazer, embora essa tendência seja contrariada por certas outras forças ou circunstâncias, de maneira que o resultado final talvez nem sempre se mostre em harmonia com a tendência no sentido do prazer. Podemos comparar isso com o que Fechner (1873, 90) observa sobre um ponto semelhante: ‘Visto que, porém, uma tendência no sentido de um objetivo não implica que este seja atingido, e desde que, em geral, o objetivo é atingível apenas por aproximações (…)’
            Se nos voltarmos agora para a questão de saber quais as circunstâncias que podem impedir o princípio de prazer de ser levado a cabo, encontrar-nos-emos mais uma vez em terreno seguro e bem batido e, ao estruturarmos nossa resposta, teremos à nossa disposição um copioso fundo de experiência analítica.
            O primeiro exemplo do princípio de prazer a ser assim inibido é familiar e ocorre com regularidade. Sabemos que o princípio de prazer é próprio de um método primário de funcionamento por parte do aparelho mental, mas que, do ponto de vista da autopreservação do organismo entre as dificuldades do mundo externo, ele é, desde o início, ineficaz e até mesmo altamente perigoso. Sob a influência dos instintos de autopreservação do ego, o princípio de prazer é substituído pelo princípio de realidade. Esse último princípio não abandona a intenção de fundamentalmente obter prazer; não obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abandono de uma série de possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária do desprazer como uma etapa no longo e indireto caminho para o prazer. Contudo, o princípio de prazer persiste por longo tempo como o método de funcionamento empregado pelos instintos sexuais, que são difíceis de ‘educar’, e, partindo desses instintos, ou do próprio ego, com freqüência consegue vencer o princípio de realidade, em detrimento do organismo como um todo.
            Não pode, porém, haver dúvida de que a substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade só pode ser responsabilizada por um pequeno número - e de modo algum as mais intensas - das experiências desagradáveis. Outra ocasião de liberação do desprazer, que ocorre com não menor regularidade, pode ser encontrada nos conflitos e dissensões que se efetuam no aparelho mental enquanto o ego está passando por seu desenvolvimento para organizações mais altamente compostas. Quase toda a energia com que o aparelho se abastece, origina-se de seus impulsos instintuais inatos, mas não é a todos estes que se permite atingir as mesmas fases de desenvolvimento. No curso das coisas, acontece repetidas vezes que instintos individuais ou parte de instintos se mostrem incompatíveis, em seus objetivos ou exigências, com os remanescentes, que podem combinar-se na unidade inclusiva do ego. Os primeiros são então expelidos dessa unidade pelo processo de repressão, mantidos em níveis inferiores de desenvolvimento psíquico, e afastados, de início, da possibilidade de satisfação. Se subseqüentemente alcançam êxito - como tão facilmente acontece com os instintos sexuais reprimidos - em conseguir chegar por caminhos indiretos a uma satisfação direta ou substitutiva, esse acontecimento, que em outros casos seria uma oportunidade de prazer, é sentida pelo ego como desprazer. Em conseqüência do velho conflito que terminou pela repressão, uma nova ruptura ocorreu no princípio de prazer no exato momento em que certos instintos estavam esforçando-se, de acordo com o princípio, por obter novo prazer. Os pormenores do processo pelo qual a repressão transforma uma possibilidade de prazer numa fonte de desprazer ainda não estão claramente compreendidos, ou não podem ser claramente representados; não há dúvida, porém, de que todo desprazer neurótico é dessa espécie, ou seja, um prazer que não pode ser sentido como tal.
            As duas fontes de desprazer que acabei de indicar estão muito longe de abranger a maioria de nossas experiências desagradáveis; contudo, no que concerne ao restante, pode-se afirmar com certa justificativa que sua presença não contradiz a dominância do princípio de prazer. A maior parte do desprazer que experimentamos é um desprazer perceptivo. Esse desprazer pode ser a percepção de uma pressão por parte de instintos insatisfeitos, ou ser a percepção externa do que é aflitivo em si mesmo ou que excita expectativas desprazerosas no aparelho mental, isto é, que é por ele reconhecido como um ‘perigo’. A reação dessas exigências instintuais e ameaças de perigo, reação que constitui a atividade apropriada do aparelho mental, pode ser então dirigida de maneira correta pelo princípio de prazer ou pelo princípio de realidade pelo qual o primeiro é modificado. Isso não parece tornar necessária nenhuma limitação de grande alcance do princípio de prazer. Não obstante, a investigação da reação mental ao perigo externo encontra-se precisamente em posição de produzir novos materiais e levantar novas questões relacionadas com nosso problema atual.


                             II

            Há muito tempo se conhece e foi descrita uma condição que ocorre após graves concussões mecânicas, desastres ferroviários e outros acidentes que envolvem risco de vida; recebeu o nome de ‘neurose traumática’. A terrível guerra que há pouco findou deu origem a grande número de doenças desse tipo; pelo menos, porém, pôs fim à tentação de atribuir a causa do distúrbio a lesões orgânicas do sistema nervoso, ocasionadas pela força mecânica. O quadro sintomático apresentado pela neurose traumática aproxima-se do da histeria pela abundância de seus sintomas motores semelhantes; em geral, contudo, ultrapassa-o em seus sinais fortemente acentuados de indisposição subjetiva (no que se assemelha à hipocondria ou melancolia), bem como nas provas que fornece de debilitamento e de perturbação muito mais abrangentes e gerais das capacidades mentais. Ainda não se chegou a nenhuma explicação completa, seja das neuroses de guerra, seja das neuroses traumáticas dos tempos de paz. No caso das primeiras, o fato de os mesmos sintomas às vezes aparecerem sem a intervenção de qualquer grande força mecânica, pareceu a princípio esclarecedor e desnorteante. No caso das neuroses traumáticas comuns, duas características surgem proeminentemente: primeira, que o ônus principal de sua causação parece repousar sobre o fator da surpresa, do susto, e, segunda, que um ferimento ou dano infligidos simultaneamente operam, via de regra, contra o desenvolvimento de uma neurose. ‘Susto’, ‘medo’ e ‘ansiedade’ são palavras impropriamente empregadas como expressões sinônimas; são, de fato, capazes de uma distinção clara em sua relação com o perigo. A ‘ansiedade’ descreve um estado particular de esperar o perigo ou preparar-se para ele, ainda que possa ser desconhecido. O ‘medo’ exige um objeto definido de que se tenha temor. ‘Susto’, contudo, é o nome que damos ao estado em que alguém fica, quando entrou em perigo sem estar preparado para ele, dando-se ênfase ao fator da surpresa. Não acredito que a ansiedade possa produzir neurose traumática; nela existe algo que protege o seu sujeito contra o susto e, assim, contra as neuroses de susto. Voltaremos posteriormente a esse ponto (ver em [1] e segs).
            O estudo dos sonhos pode ser considerado o método mais digno de confiança na investigação dos processos mentais profundos. Ora, os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas possuem a característica de repetidamente trazer o paciente de volta à situação de seu acidente, numa situação da qual acorda em outro susto. Isso espanta bem pouco as pessoas. Pensam que o fato de a experiência traumática estar-se continuamente impondo ao paciente, mesmo no sono, se encontra, conforme se poderia dizer, fixado em seu trauma. As fixações na experiência que iniciou a doença há muito tempo, nos são familiares na histeria. Breuer e Freud declararam em 1893 que ‘os histéricos sofrem principalmente de reminiscências’. Nas neuroses de guerra também, observadores como Ferenczi e Simmel puderam explicar certos sintomas motores pela fixação no momento em que o trauma ocorreu.
            Não é de meu conhecimento, contudo, que pessoas que sofrem de neurose traumática estejam muito ocupadas, em suas vidas despertas, com lembranças de seu acidente. Talvez estejam mais interessadas em não pensar nele. Qualquer um que aceite, como algo por si mesmo evidente, que os sonhos delas devam à noite fazê-las voltar à situação que as fez cair doentes, compreendeu mal a natureza dos sonhos. Estaria mais em harmonia com a natureza destes, se mostrassem ao paciente quadros de seu passado sadio ou da cura pela qual esperam. Se não quisermos que os sonhos dos neuróticos traumáticos abalem nossa crença no teor realizador de desejos dos sonhos, teremos ainda aberta a nós uma saída: podemos argumentar que a função de sonhar, tal como muitas pessoas, nessa condição está perturbada e afastada de seus propósitos, ou podemos ser levados a refletir sobre as misteriosas tendências masoquistas do ego.
            Nesse ponto, proponho abandonarmos o obscuro e melancólico tema da neurose traumática, e passar a examinar o método de funcionamento empregado pelo aparelho mental em uma de suas primeiras atividades normais; quero referir-me à brincadeira das crianças.
            As diferentes teorias sobre a brincadeira das crianças foram ainda recentemente resumidas e discutidas do ponto de vista psicanalítico por Pfeifer (1919), a cujo artigo remeto meus leitores. Essas teorias esforçam-se por descobrir os motivos que levam as crianças a brincar, mas deixam de trazer para o primeiro plano o motivo econômico, a consideração da produção de prazer envolvida. Sem querer incluir todo o campo abrangido por esses fenômenos, pude, através de uma oportunidade fortuita que se me apresentou, lançar certa luz sobre a primeira brincadeira efetuada por um menininho de ano e meio de idade e inventada por ele próprio. Foi mais do que uma simples observação passageira, porque vivi sob o mesmo teto que a criança e seus pais durante algumas semanas, e foi algum tempo antes que descobri o significado da enigmática atividade que ele constantemente repetia.
            A criança de modo algum era precoce em seu desenvolvimento intelectual. À idade de ano e meio podia dizer apenas algumas palavras compreensíveis e utilizava também uma série de sons que expressavam um significado inteligível para aqueles que a rodeavam. Achava-se, contudo, em bons termos com os pais e sua única empregada, e tributos eram-lhe prestados por ser um ‘bom menino’. Não incomodava os pais à noite, obedecia conscientemente às ordens de não tocar em certas coisas, ou de não entrar em determinados cômodos e, acima de tudo, nunca chorava quando sua mãe o deixava por algumas horas. Ao mesmo tempo, era bastante ligado à mãe, que tinha não apenas de alimentá-lo, como também cuidava dele sem qualquer ajuda externa. Esse bom menininho, contudo, tinha o hábito ocasional e perturbador de apanhar quaisquer objetos que pudesse agarrar e atirá-los longe para um canto, sob a cama, de maneira que procurar seus brinquedos e apanhá-los, quase sempre dava bom trabalho. Enquanto procedia assim, emitia um longo e arrastado ‘o-o-o-ó’, acompanhado por expressão de interesse e satisfação. Sua mãe e o autor do presente relato concordaram em achar que isso não constituía uma simples interjeição, mas representava a palavra alemã ‘fort‘. Acabei por compreender que se tratava de um jogo e que o único uso que o menino fazia de seus brinquedos, era brincar de ‘ir embora’ com eles. Certo dia, fiz uma observação que confirmou meu ponto de vista. O menino tinha um carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele. Nunca lhe ocorrera puxá-lo pelo chão atrás de si, por exemplo, e brincar com o carretel como se fosse um carro. O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas, ao mesmo tempo que o menino proferia seu expressivo ‘o-o-ó’. Puxava então o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre ‘da‘ (‘ali’). Essa, então, era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno. Via de regra, assistia-se apenas a seu primeiro ato, que era incansavelmente repetido como um jogo em si mesmo, embora não haja dúvida de que o prazer maior se ligava ao segundo ato.
            A interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ele se relacionava à grande realização cultural da criança, a renúncia instintual (isto é, a renúncia à satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu alcance. É naturalmente indiferente, do ponto de vista de ajuizar a natureza efetiva do jogo, saber se a própria criança o inventara ou o tirara de alguma sugestão externa. Nosso interesse se dirige para outro ponto. A criança não pode ter sentido a partida da mãe como algo agradável ou mesmo indiferente. Como, então, a repetição dessa experiência aflitiva, enquanto jogo, harmonizava-se com o princípio de prazer? Talvez se possa responder que a partida dela tinha de ser encenada como preliminar necessária a seu alegre retorno, e que neste último residia o verdadeiro propósito do jogo. Mas contra isso deve-se levar em conta o fato observado de o primeiro ato, o da partida, ser encenado como um jogo em si mesmo, e com muito mais freqüência do que o episódio na íntegra, com seu final agradável.
            Nenhuma decisão certa pode ser alcançada pela análise de um caso isolado como esse. De um ponto de vista não preconcebido, fica-se com a impressão de que a criança transformou sua experiência em jogo devido a outro motivo. No início, achava-se numa situação passiva, era dominada pela experiência; repetindo-a, porém, por mais desagradável que fosse, como jogo, assumia papel ativo. Esses esforços podem ser atribuídos a um instinto de dominação que atuava independentemente de a lembrança em si mesma ser agradável ou não. Mas uma outra interpretação ainda pode ser tentada. Jogar longe o objeto, de maneira a que fosse ‘embora’, poderia satisfazer um impulso da criança, suprimido na vida real, de vingar-se da mãe por afastar-se dela. Nesse caso, possuiria significado desafiador: ‘Pois bem, então: vá embora! Não preciso de você. Sou eu que estou mandando você embora.’ Um ano mais tarde, o mesmo menino que eu observara em seu primeiro jogo, costumava agarrar um brinquedo, se estava zangado com este, e jogá-lo ao chão, exclamando: ‘Vá para a frente!’ Escutara nessa época que o pai ausente se encontrava ‘na frente (de batalha)’, e o menino estava longe de lamentar sua ausência, pelo contrário, deixava bastante claro que não tinha desejo de ser perturbado em sua posse exclusiva da mãe. Conhecemos outras crianças que gostavam de expressar impulsos hostis semelhantes lançando longe de si objetos, em vez de pessoas. Assim, ficamos em dúvida quanto a saber se o impulso para elaborar na mente alguma experiência de dominação, de modo a tornar-se senhor dela, pode encontrar expressão como um evento primário e independentemente do princípio de prazer. Isso porque, no caso que acabamos de estudar, a criança, afinal de contas, só foi capaz de repetir sua experiência desagradável na brincadeira porque a repetição trazia consigo uma produção de prazer de outro tipo, uma produção mais direta.
            Não seremos auxiliados em nossa hesitação entre esses dois pontos de vista por outras considerações sobre brincadeiras infantis. É claro que em suas brincadeiras as crianças repetem tudo que lhes causou uma grande impressão na vida real, e assim procedendo, ab-reagem a intensidade da impressão, tornando-se, por assim dizer, senhoras da situação. Por outro lado, porém, é óbvio que todas as suas brincadeiras são influenciadas por um desejo que as domina o tempo todo: o desejo de crescer e poder fazer o que as pessoas crescidas fazem. Pode-se também observar que a natureza desagradável de uma experiência nem sempre a torna inapropriada para a brincadeira. Se o médico examina a garganta de uma criança ou faz nela alguma pequena intervenção, podemos estar inteiramente certos de que essas assustadoras experiências serão tema da próxima brincadeira; contudo, não devemos, quanto a isso, desprezar o fato de existir uma produção de prazer provinda de outra fonte. Quando a criança passa da passividade da experiência para a atividade do jogo, transfere a experiência desagradável para um de seus companheiros de brincadeira e, dessa maneira, vinga-se num substituto.
            Todavia, decorre desse exame que não há necessidade de supor a existência de um instinto imitativo especial para fornecer um motivo para a brincadeira. Finalmente, em acréscimo, pode-se lembrar que a representação e a imitação artísticas efetuadas por adultos, as quais, diferentemente daquelas das crianças, se dirigem a uma audiência, não poupam aos espectadores (como na tragédia, por exemplo) as mais penosas experiências, e, no entanto, podem ser por eles sentidas como altamente prazerosas. Isso constitui prova convincente de que, mesmo sob a dominância do princípio de prazer, há maneiras e meios suficientes para tornar o que em si mesmo é desagradável num tema a ser rememorado e elaborado na mente. A consideração desses casos e situações, que têm a produção de prazer como seu resultado final, deve ser empreendida por algum sistema de estética com uma abordagem econômica a seu tema geral. Eles não têm utilidade para nossos fins, pois pressupõem a existência e a dominância do princípio de prazer; não fornecem provas do funcionamento de tendências além do princípio de prazer, ou seja, de tendências mais primitivas do que ele e dele independentes.

                             III

            Vinte e cinco anos de intenso trabalho tiveram por resultado que os objetivos imediatos da psicanálise sejam hoje inteiramente diferentes do que eram no começo. A princípio, o médico que analisava não podia fazer mais do que descobrir o material inconsciente oculto para o paciente, reuni-lo e no momento oportuno comunicá-lo a este. A psicanálise era então, primeiro e acima de tudo, uma arte interpretativa. Uma vez que isso não solucionava o problema terapêutico, um outro objetivo rapidamente surgiu à vista: obrigar o paciente a confirmar a construção teórica do analista com sua própria memória. Nesse esforço, a ênfase principal reside nas resistências do paciente: a arte consistia então em descobri-las tão rapidamente quanto possível, apontando-as ao paciente e induzindo-o, pela influência humana - era aqui que a sugestão, funcionando como ‘transferência’, desempenhava seu papel -, a abandonar suas resistências.
            Contudo, tornou-se cada vez mais claro que o objetivo que fora estabelecido - que o inconsciente deve tornar-se consciente - não era completamente atingível através desse método. O paciente não pode recordar a totalidade do que nele se acha reprimido, e o que não lhe é possível recordar pode ser exatamente a parte essencial. Dessa maneira, ele não adquire nenhum sentimento de convicção da correção da construção teórica que lhe foi comunicada. É obrigado a repetir o material reprimido como se fosse uma experiência contemporânea, em vez de, como o médico preferiria ver, recordá-lo como algo pertencente ao passado. Essas reproduções, que surgem com tal exatidão indesejada, sempre têm como tema alguma parte da vida sexual infantil, isto é, do complexo de Édipo, e de seus derivativos, e são invariavelmente atuadas (acted out) na esfera da transferência, da relação do paciente com o médico. Quando as coisas atingem essa etapa, pode-se dizer que a neurose primitiva foi então substituída por outra nova, pela ‘neurose de transferência’. O médico empenha-se por manter essa neurose de transferência dentro dos limites mais restritos; forçar tanto quanto possível o canal da memória, e permitir que surja como repetição o mínimo possível. A proporção entre o que é lembrado e o que é reproduzido varia de caso para caso. O médico não pode, via de regra, poupar ao paciente essa face do tratamento. Deve fazê-lo reexperimentar alguma parte de sua vida esquecida, mas deve também cuidar, por outro lado, que o paciente retenha certo grau de alheamento, que lhe permitirá, a despeito de tudo, reconhecer que aquilo que parece ser realidade é, na verdade, apenas reflexo de um passado esquecido. Se isso puder ser conseguido com êxito, o sentimento de convicção do paciente será conquistado, juntamente com o sucesso terapêutico que dele depende.
            A fim de tornar mais fácil a compreensão dessa ‘compulsão à repetição’ que surge durante o tratamento psicanalítico dos neuróticos, temos acima de tudo de livrar-nos da noção equivocada de que aquilo com que estamos lidando em nossa luta contra as resistências seja uma resistência por parte do inconsciente. O inconsciente, ou seja, o ‘reprimido’, não oferece resistência alguma aos esforços do tratamento. Na verdade, ele próprio não se esforça por outra coisa que não seja irromper através da pressão que sobre ele pesa, e abrir seu caminho à consciência ou a uma descarga por meio de alguma ação real. A resistência durante o tratamento origina-se dos mesmos estratos e sistemas mais elevados da mente que originalmente provocaram a repressão. Mas o fato de, como sabemos pela experiência, os motivos das resistências e, na verdade, as próprias resistências serem a princípio inconscientes durante o tratamento, é-nos uma sugestão para que corrijamos uma deficiência de nossa terminologia. Evitaremos a falta de clareza se fizermos nosso contraste não entre o consciente e o inconsciente, mas entre o ego coerente e o reprimido. É certo que grande parte do ego é, ela própria, inconsciente, e notavelmente aquilo que podemos descrever como seu núcleo; apenas pequena parte dele se acha abrangida pelo termo ‘pré-consciente’. Havendo substituído uma terminologia puramente descritiva por outra sistemática e dinâmica, podemos dizer que as resistências do paciente originam-se do ego, e então imediatamente perceberemos que a compulsão à repetição deve ser atribuída ao reprimido inconsciente. Parece provável que a compulsão só possa expressar-se depois que o trabalho do tratamento avançou a seu encontro até a metade do caminho e que afrouxou a repressão.
            Não há dúvida de que a resistência do ego consciente e inconsciente funciona sob a influência do princípio de prazer; ela busca evitar o desprazer que seria produzido pela liberação do reprimido. Nossos esforços, por outro lado, dirigem-se no sentido de conseguir a tolerância desse desprazer por um apelo ao princípio de realidade. Mas, como se acha a compulsão à repetição - a manifestação do poder do reprimido - relacionada com o princípio de prazer? É claro que a maior parte do que é reexperimentado sob a compulsão à repetição, deve causar desprazer ao ego, pois traz à luz as atividades dos impulsos instintuais reprimidos. Isso, no entanto, constitui desprazer de uma espécie que já consideramos e que não contradiz o princípio de prazer: desprazer para um dos sistemas e, simultaneamente, satisfação para outro. Contudo, chegamos agora a um fato novo e digno de nota, a saber, que a compulsão à repetição também rememora do passado experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo para impulsos instintuais que desde então foram reprimidos.
            O florescimento precoce da vida sexual infantil está condenado à extinção porque seus desejos são incompatíveis com a realidade e com a etapa inadequada de desenvolvimento a que a criança chegou. Esse florescimento chega ao fim nas mais aflitivas circunstâncias e com o acompanhamento dos mais penosos sentimentos. A perda do amor e o fracasso deixam atrás de si um dano permanente à autoconsideração, sob a forma de uma cicatriz narcisista, o que, em minha opinião, bem como na de Marcinowski (1918), contribui mais do que qualquer outra coisa para o ‘sentimento de inferioridade’, tão comum aos neuróticos. As explorações sexuais infantis, às quais seu desenvolvimento físico impõe limites, não conduzem a nenhuma conclusão satisfatória; daí as queixas posteriores, tais como ‘Não consigo realizar nada; não tenho sucesso em nada’. O laço da afeição, que via de regra liga a criança ao genitor do sexo oposto, sucumbe ao desapontamento, a uma vã expectativa de satisfação, ou ao ciúme pelo nascimento de um novo bebê, prova inequívoca da infidelidade do objetivo da afeição da criança. Sua própria tentativa de fazer um bebê, efetuada com trágica seriedade, fracassa vergonhosamente. A menor quantidade de afeição que recebe, as exigências crescentes da educação, palavras duras e um castigo ocasional mostram-lhe por fim toda a extensão do desdém que lhe concederam. Estes são alguns exemplos típicos e constantemente recorrentes das maneiras pelas quais o amor característico da idade infantil é levado a um término.
            Os pacientes repetem na transferência todas essas situações indesejadas e emoções penosas, revivendo-as com a maior engenhosidade. Procuram ocasionar a interrupção do tratamento enquanto este ainda se acha incompleto; imaginam sentir-se desprezados mais uma vez, obrigam o médico a falar-lhes severamente e a tratá-los friamente; descobrem objetos apropriados para seu ciúme; em vez do nenê apaixonadamente desejado de sua infância, produzem um plano ou a promessa de algum grande presente, que em regra se mostra não menos irreal. Nenhuma dessas coisas pode ter produzido prazer no passado, e poder-se-ia supor que causariam menos desprazer hoje se emergissem como lembranças ou sonhos, em vez de assumirem a forma de experiências novas. Constituem, naturalmente, as atividades de instintos destinados a levar à satisfação, mas nenhuma lição foi aprendida da antiga experiência de que essas atividades, ao contrário, conduziram apenas ao desprazer. A despeito disso, são repetidas, sob a pressão de uma compulsão.
            O que a psicanálise revela nos fenômenos de transferência dos neuróticos, também pode ser observado nas vidas de certas pessoas normais. A impressão que dão é de serem perseguidas por um destino maligno ou possuídas por algum poder ‘demoníaco’; a psicanálise, porém, sempre foi de opinião de que seu destino é, na maior parte, arranjado por elas próprias e determinado por influências infantis primitivas. A compulsão que aqui se acha em evidência não difere em nada da compulsão à repetição que encontramos nos neuróticos, ainda que as pessoas que agora estamos considerando nunca tenham mostrado quaisquer sinais de lidarem com um conflito neurótico pela produção de sintomas. Assim, encontramos pessoas em que todas as relações humanas têm o mesmo resultado, tal como o benfeitor que é abandonado iradamente, após certo tempo, por todos os seus protegés, por mais que eles possam, sob outros aspectos, diferir uns dos outros, parecendo assim condenado a provar todo o amargor da ingratidão; o homem cujas amizades findam por uma traição por parte do amigo; o homem que, repetidas vezes, no decorrer da vida, eleva outrem a uma posição de grande autoridade particular ou pública e depois, após certo intervalo, subverte essa autoridade e a substitui por outra nova; ou, ainda, o amante cujos casos amorosos com mulheres atravessam as mesmas fases e chegam à mesma conclusão. Essa ‘perpétua recorrência da mesma coisa’ não nos causa espanto quando se refere a um comportamento ativo por parte da pessoa interessada, e podemos discernir nela um traço de caráter essencial, que permanece sempre o mesmo, sendo compelido a expressar-se por uma repetição das mesmas experiências. Ficamos muito mais impressionados nos casos em que o sujeito parece ter uma experiência passiva, sobre a qual não possui influência, mas nos quais se defronta com uma repetição da mesma fatalidade. É o caso, por exemplo, da mulher que se casou sucessivamente com três maridos, cada um dos quais caiu doente logo depois e teve que ser cuidado por ela em seu leito de morte. O retrato poético mais comovente de um destino assim foi pintado por Tasso em sua epopéia romântica Gerusalemme Liberata. Seu herói, Tancredo, inadvertidamente mata sua bem amada Clorinda num duelo, estando ela disfarçada sob a armadura de um cavaleiro inimigo. Após o enterro, abre caminho numa estranha floresta mágica que aterroriza o exército dos Cruzados. Com a espada faz um talho numa árvore altaneira, mas do corte é sangue que escorre e a voz de Clorinda, cuja alma está aprisionada na árvore, é ouvida a lamentar-se que mais uma vez ele feriu sua amada.
            Se levarmos em consideração observações como essas, baseadas no comportamento, na transferência e nas histórias da vida de homens e mulheres, não só encontraremos coragem para supor que existe realmente na mente uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio de prazer, como também ficaremos agora inclinados a relacionar com essa compulsão os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas e o impulso que leva as crianças a brincar.
            Contudo, é de notar que apenas em raros casos podemos observar os motivos puros da compulsão à repetição, desapoiados por outros motivos. No caso da brincadeira das crianças, já demos ênfase às outras maneiras pelas quais o surgimento da compulsão pode ser interpretado; aqui, a compulsão à repetição e a satisfação instintual que é imediatamente agradável, parecem convergir em associação íntima. Os fenômenos da transferência são obviamente explorados pela resistência que o ego mantém em sua pertinaz insistência na repressão; a compulsão à repetição, que o tratamento tenta colocar a seu serviço, é, por assim dizer, arrastada pelo ego para o lado dele (aferrando-se, como faz o ego, ao princípio de prazer). Grande parte do que poderia ser descrito como compulsão do destino parece inteligível numa base racional, de maneira que não temos necessidade de convocar uma nova e misteriosa força motivadora para explicá-la.
            O exemplo menos dúbio [de tal força motivadora] é talvez o dos sonhos traumáticos. Numa reflexão mais amadurecida, porém, seremos forçados a admitir que, mesmo nos outros casos, nem todo o campo é abrangido pelo funcionamento das familiares forças motivadoras. Resta inexplicado o bastante para justificar a hipótese de uma compulsão à repetição, algo que parece mais primitivo, mais elementar e mais instintual do que o princípio de prazer que ela domina. Mas, se uma compulsão à repetição opera realmente na mente, ficaríamos satisfeitos em conhecer algo sobre ela, aprender a que função corresponde, sob que condições pode surgir e qual é sua relação com o princípio de prazer, ao qual, afinal de contas, até agora atribuímos dominância sobre o curso dos processos de excitação na vida mental.

                             IV

            O que se segue é especulação, amiúde especulação forçada, que o leitor tomará em consideração ou porá de lado, de acordo com sua predileção individual. É mais uma tentativa de acompanhar uma idéia sistematicamente, só por curiosidade de ver até onde ela levará.
            A especulação psicanalítica toma como ponto de partida a impressão, derivada do exame dos processos inconscientes, de que a consciência pode ser, não o atributo mais universal dos processos mentais, mas apenas uma função especial deles. Falando em termos metapsicológicos, assevera que a consciência constitui função de um sistema específico que descreve como Cs. O que a consciência produz consiste essencialmente em percepções de excitação provindas do mundo externo e de sentimentos de prazer e desprazer que só podem surgir do interior do aparelho psíquico; assim, é possível atribuir ao sistema Pcpt.-Cs. uma posição no espaço. Ele deve ficar na linha fronteiriça entre o exterior e o interior; tem de achar-se voltado para o mundo externo e tem de envolver os outros sistemas psíquicos. Ver-se-á que não existe nada de ousadamente novo nessas suposições; adotamos simplesmente as concepções sobre localização sustentadas pela anatomia cerebral, que localiza a ‘sede’ da consciência no córtex cerebral, a camada mais externa, envolvente do órgão central. A anatomia cerebral não tem necessidade de considerar por que, anatomicamente falando, a consciência deva alojar-se na superfície do cérebro, em vez de encontrar-se seguramente abrigada em algum lugar de seu mais íntimo interior. Talvez nós sejamos mais bem-sucedidos em explicar essa situação, no caso de nosso sistema Pcpt.-Cs.
            A consciência não é o único caráter distintivo que atribuímos aos processos desse sistema. Com base em impressões derivadas de nossa experiência psicanalítica, supomos que todos os processos excitatórios que ocorrem nos outros sistemas deixam atrás de si traços permanentes, os quais formam os fundamentos da memória. Tais traços de memória, então, nada têm a ver com o fato de se tornarem conscientes; na verdade, com freqüência são mais poderosos e permanentes quando o processo que os deixou atrás de si foi um processo que nunca penetrou na consciência. Achamos difícil acreditar, contudo, que traços permanentes de excitação como esses sejam também deixados no sistema Pcpt.-Cs. Se permanecessem constantemente conscientes, muito cedo estabeleceriam limites à aptidão do sistema para o recebimento de novas excitações. Se, por outro lado, fossem inconscientes, nos defrontaríamos com o problema de explicar a existência de processos inconscientes num sistema cujo funcionamento, sob outros aspectos, se faz acompanhar pelo fenômeno da consciência. Não teríamos, por assim dizer, nem alterado nem ganho nada com nossa hipótese de relegar o processo de tornar-se consciente a um sistema especial. Embora essa consideração de modo algum seja conclusiva, leva-nos não obstante a suspeitar de que tornar-se consciente e deixar atrás de si um traço de memória, são processos incompatíveis um com o outro dentro de um só e mesmo sistema. Assim, poderíamos dizer que o processo excitatório se torna consciente no sistema Cs., mas não deixa traço permanente atrás de si; a excitação, porém, é transmitida aos sistemas que ficam a seguir e é neles que seus traços são deixados. Segui essas mesmas linhas no quadro esquemático que incluí na parte especulativa de minha Interpretação de Sonhos. Deve-se manter em mente que muito pouco se conhece sobre outras fontes de origem da consciência; dessa maneira, quando formulamos a proposição de que a consciência surge em vez de um traço de memória, a assertiva merece consideração, pelo menos com o fundamento de que é estruturada em termos bastante precisos.
            Se isso é assim, então, o sistema Cs. se caracteriza pela peculiaridade de que nele (em contraste com o que acontece nos outros sistemas psíquicos) os processos excitatórios não deixam atrás de si nenhuma alteração permanente em seus elementos, mas exaurem-se, por assim dizer, no fenômeno de se tornarem conscientes. Uma exceção desse tipo à regra geral exige ser explicada por algum fator que se aplique exclusivamente a esse determinado sistema. Tal fator, ausente nos outros sistemas, bem poderia ser a situação exposta do sistema Cs., imediatamente próxima, como é, do mundo externo.
            Imaginemos um organismo vivo em sua forma mais simplificada possível, como uma vesícula indiferenciada de uma substância que é suscetível de estimulação. Então, a superfície voltada para o mundo externo, pela sua própria situação, se diferenciará e servirá de órgão para o recebimento de estímulos. Na verdade, a embriologia, em sua capacidade de recapituladora da história desenvolvimental, mostra-nos realmente que o sistema nervoso central se origina do ectoderma; a matéria cinzenta do córtex permanece um derivado da camada superficial primitiva do organismo e pode ter herdado algumas de suas propriedades essenciais. Seria então fácil supor que, como resultado do impacto incessante de estímulos externos sobre a superfície da vesícula, sua substância, até uma certa profundidade, pode ter sido permanentemente modificada, de maneira que os processos excitatórios nela seguem um curso diferente do seguido nas camadas mais profundas. Formar-se-ia então uma crosta que acabaria por ficar tão inteiramente ‘calcinada’ pela estimulação, que apresentaria as condições mais favoráveis possíveis para a recepção de estímulos e se tornaria incapaz de qualquer outra modificação. Em termos do sistema Cs. isso significa que seus elementos não poderiam mais experimentar novas modificações permanentes pela passagem da excitação, porque já teriam sido modificados, a esse respeito, até o ponto mais amplo possível; agora, contudo, se teriam tornado capazes de dar origem à consciência. É possível formar várias idéias, que não podem, de momento, ser verificadas, quanto à natureza dessa modificação da substância e do processo excitatório. Pode-se supor que, ao passar de determinado elemento para outro, a excitação tem de vencer uma resistência e que é a diminuição da resistência assim alcançada que deixa um traço permanente da excitação, isto é, uma facilitação. No sistema Cs., então, uma resistência dessa espécie à passagem de determinado elemento não mais existirá. Esse quadro pode ser relacionado com a distinção efetuada por Breuer entre energia catéxica quiescente (ou vinculada) e móvel nos elementos dos sistemas psíquicos; os elementos do sistema Cs. não conduziriam energia vinculada, mas apenas energia capaz de descarga livre. Parece melhor, contudo, expressarmo-nos tão cautelosamente quanto possível sobre esses pontos. Não obstante, essa especulação permitiu-nos colocar a origem da consciência num certo tipo de vinculação com a situação do sistema Cs. e com as peculiaridades que devem ser atribuídas aos processos excitatórios que neles se realizam.
            Contudo, temos mais a dizer sobre a vesícula viva, com sua camada cortical receptiva. Esse pequeno fragmento de substância viva acha-se suspenso no meio de um mundo externo carregado com as mais poderosas energias, e seria morto pela estimulação delas emanadas, se não dispusesse de um escudo protetor contra os estímulos. Ele adquire esse escudo da seguinte maneira: sua superfície mais externa deixa de ter a estrutura apropriada à matéria viva, torna-se até certo ponto inorgânica e, daí por diante, funciona como um envoltório ou membrana especial, resistente aos estímulos. Em conseqüência disso, as energias do mundo externo só podem passar para as camadas subjacentes seguintes, que permaneceram vivas, com um fragmento de sua intensidade original, e essas camadas podem dedicar-se, por trás do escudo protetor, à recepção das quantidades de estímulo que este deixou passar. Através de sua morte a camada exterior salvou todas as camadas mais profundas de um destino semelhante, a menos que os estímulos que a atinjam sejam tão fortes que atravessem o escudo protetor. A proteção contra os estímulos é, para os organismos vivos, uma função quase mais importante do que a recepção deles. O escudo protetor é suprido com seu próprio estoque de energia e deve, acima de tudo, esforçar-se por preservar os modos especiais de transformação de energia que nele operam, contra os efeitos ameaçadores das enormes energias em ação no mundo externo, efeitos que tendem para o nivelamento deles e, assim, para a destruição. O principal intuito da recepção de estímulos é descobrir a direção e a natureza dos estímulos externos; para isso, é suficiente apanhar pequenos espécimes do mundo externo, para classificá-lo em pequenas quantidades. Nos organismos altamente desenvolvidos, a camada cortical receptiva da antiga vesícula há muito tempo já se retirou para as profundezas do corpo, embora partes dela tenham sido deixadas sobre a superfície, imediatamente abaixo do escudo geral contra os estímulos. Essas partes são os órgãos dos sentidos, que consistem essencialmente em aparelhos para a recepção de certos efeitos específicos de estimulação, mas que também incluem disposições especiais para maior proteção contra quantidades excessivas de estimulação e para a exclusão de tipos inapropriados de estímulos. É característico deles tratarem apenas com quantidades muito pequenas de estimulação externa e apenas apanharem amostras do mundo externo. Podem ser talvez comparados a tentáculos que estão sempre efetuando avanços experimentais no sentido do mundo externo, e então retirando-se dele.
            Nesse ponto, aventurar-me-ei a aflorar por um momento um assunto que mereceria tratamento mais exaustivo. Em conseqüência de certas descobertas psicanalíticas, encontramo-nos hoje em posição de empenhar-nos num estudo do teorema kantiano segundo o qual tempo e espaço são ‘formas necessárias de pensamento’. Aprendemos que os processos mentais inconscientes são, em si mesmos, ‘intemporais’. Isso significa, em primeiro lugar, que não são ordenados temporalmente, que o tempo de modo algum os altera e que a idéia de tempo não lhes pode ser aplicada. Trata-se de características negativas que só podem ser claramente entendidas se se fizer uma comparação com os processos mentais conscientes. Por outro lado, nossa idéia abstrata de tempo parece ser integralmente derivada do método de funcionamento do sistema Pcpt.-Cs. e corresponder a uma percepção de sua própria parte nesse método de funcionamento, o qual pode talvez constituir uma outra maneira de fornecer um escudo contra os estímulos. Sei que essas observações devem soar muito obscuras, mas tenho de limitar-me a essas sugestões.
            Indicamos como a vesícula viva está provida de um escudo contra os estímulos provenientes do mundo externo e mostramos anteriormente que a camada cortical seguinte a esse escudo deve ser diferenciada como um órgão para a recepção de estímulos do exterior. Esse córtex sensitivo, contudo, que posteriormente deve tornar-se o sistema Cs., também recebe excitações desde o interior. A situação do sistema, entre o exterior e o interior, e a diferença entre as condições que regem a recepção de excitações nos dois casos, têm um efeito decisivo sobre o funcionamento do sistema e de todo o aparelho mental. No sentido do exterior, acha-se resguardado contra os estímulos, e as quantidades de excitação que sobre ele incidem possuem apenas efeito reduzido. No sentido do interior, não pode haver esse escudo; as excitações das camadas mais profundas estendem-se para o sistema diretamente e em quantidade não reduzida, até onde algumas de suas características dão origem a sentimentos da série prazer-desprazer. As excitações que provêm de dentro, entretanto, em sua intensidade e em outros aspectos qualitativos - em sua amplitude, talvez -, são mais comensuradas com o método de funcionamento do sistema do que os estímulos que afluem desde o mundo externo. Esse estado de coisas produz dois resultados definidos. Primeiramente, os sentimentos de prazer e desprazer (que constituem um índice do que está acontecendo no interior do aparelho) predominam sobre todos os estímulos externos. Em segundo lugar, é adotada uma maneira específica de lidar com quaisquer excitações internas que produzam um aumento demasiado grande de desprazer; há uma tendência a tratá-las como se atuassem, não de dentro, mas de fora, de maneira que seja possível colocar o escudo contra estímulos em operação, como meio de defesa contra elas. É essa a origem da projeção, destinada a desempenhar um papel tão grande na causação dos processos patológicos.
            Tenho a impressão de que essas últimas considerações nos levaram a uma melhor compreensão da dominância do princípio de prazer, mas ainda não se lançou luz alguma sobre os casos que contradizem essa dominância. Assim, avancemos um passo. Descrevemos como ‘traumáticas’ quaisquer excitações provindas de fora que sejam suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor. Parece-me que o conceito de trauma implica necessariamente uma conexão desse tipo com uma ruptura numa barreira sob outros aspectos eficazes contra os estímulos. Um acontecimento como um trauma externo está destinado a provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento da energia do organismo e a colocar em movimento todas as medidas defensivas possíveis. Ao mesmo tempo, o princípio de prazer é momentaneamente posto fora de ação. Não há mais possibilidade de impedir que o aparelho mental seja inundado com grandes quantidades de estímulos; em vez disso, outro problema surge, o problema de dominar as quantidades de estímulo que irromperam, e de vinculá-las no sentido psíquico, a fim de que delas se possa então desvencilhar.
            O desprazer específico do sofrimento físico provavelmente resulta de que o escudo protetor tenha sido atravessado numa área limitada. Dá-se então um fluxo contínuo de excitações desde a parte da periferia relacionada até o aparelho central da mente, tal como normalmente surgiria apenas desde o interior do aparelho. E como esperamos que a mente reaja a essa invasão? A energia catéxica é convocada de todos os lados para fornecer catexias suficientemente altas de energia nos arredores da ruptura. Uma ‘anticatexia’ em grande escala é estabelecida, em cujo benefício todos os outros sistemas psíquicos são empobrecidos, de maneira que as funções psíquicas remanescentes são grandemente paralisadas ou reduzidas. Devemos empenhar-nos em extrair uma lição de exemplos como esse e utilizá-los como base para nossas especulações metapsicológicas. Do presente caso, então, inferimos que um sistema que é altamente catexizado é capaz de receber um influxo adicional de energia nova e de convertê-la em catexia quiescente, isso é, de vinculá-la psiquicamente. Quanto mais alta a própria catexia quiescente do sistema, maior parece ser a sua força vinculadora; inversamente, entretanto, quanto mais baixa a catexia, menos capacidade terá para receber o influxo de energia e mais violentas serão as conseqüências de tal ruptura no escudo protetor contra estímulos. A essa concepção não se pode corretamente objetar que o aumento de catexia em redor da ruptura pode ser mais simplesmente explicado como sendo o resultado direto das massas afluentes de excitação. Se assim fosse, o aparelho mental meramente receberia um aumento em suas catexias de energia, e o caráter paralisante do sofrimento e o empobrecimento de todos os outros sistemas permaneceriam inexplicados. Tampouco os fenômenos muito violentos de descarga a que o sofrimento dá origem influenciam nossa explicação, porque ocorrem de maneira reflexa, ou seja, decorrem sem a intervenção do aparelho mental. A indefinição de todas as nossas discussões sobre o que descrevemos como metapsicologia, é naturalmente devida ao fato de nada sabermos sobre a natureza do processo excitatório que se efetua nos elementos dos sistemas psíquicos, e ao fato de não nos sentirmos justificados em estruturar qualquer hipótese sobre o assunto. Por conseguinte, ficamos operando todo o tempo com um grande fator desconhecido, que somos obrigados a transportar para cada nova fórmula. Poder-se-ia razoavelmente supor que esse processo excitatório possa ser executado com energias que variam quantitativamente; pode também parecer provável que ele tenha mais do que uma só qualidade (da natureza da amplitude, por exemplo). Como novo fator, tomamos em consideração a hipótese de Breuer de que as cargas de energia ocorrem sob duas formas [ver em [1] e [2] ], de maneira que temos de distinguir entre dois tipos de catexia dos sistemas psíquicos ou seus elementos: uma catexia que flui livremente e pressiona no sentido da descarga e uma catexia quiescente. Podemos talvez suspeitar de que a vinculação da energia que flui para dentro do aparelho mental consiste em sua mudança de um estado de fluxo livre para um estado quiescente.
            Podemos, acredito, atrever-nos experimentalmente a considerar a neurose traumática comum como conseqüência de uma grande ruptura que foi causada no escudo protetor contra os estímulos. Isso pareceria restabelecer a antiga e ingênua teoria do choque, em aparente contraste com a teoria posterior e psicologicamente mais ambiciosa que atribuiu importância etiológica não aos efeitos da violência mecânica, mas ao susto e à ameaça à vida. Esses pontos de vista opostos não são, entretanto, irreconciliáveis, nem tampouco a concepção psicanalítica das neuroses traumáticas é idêntica à teoria do choque em sua forma mais grosseira. Esta última considera a essência do choque como sendo o dano direto à estrutura molecular ou mesmo à estrutura histológica dos elementos do sistema nervoso, ao passo que aquilo que nós procuramos compreender são os efeitos produzidos sobre o órgão da mente pela ruptura do escudo contra estímulos e pelos problemas que se seguem em sua esteira. E atribuímos ainda importância ao elemento de susto. Ele é causado pela falta de qualquer preparação para a ansiedade, inclusive a falta de hipercatexia dos sistemas que seriam os primeiros a receber o estímulo. Devido à sua baixa catexia, esses sistemas não se encontram em boa posição para vincular as quantidades afluentes de excitação, e as conseqüências da ruptura no escudo defensivo decorrem mais facilmente ainda. Ver-se-á, então, que a preparação para a ansiedade e a hipercatexia dos sistemas receptivos constitui a última linha de defesa do escudo contra estímulos. No caso de bom número de traumas, a diferença entre sistemas que estão despreparados e sistemas que se acham bem preparados através da hipercatexia, pode constituir fator decisivo na determinação do resultado, embora, onde a intensidade do trauma exceda certo limite, esse fator indubitavelmente deixe de ter importância. A realização de desejo é, como sabemos, ocasionada de maneira alucinatória pelos sonhos e sob a dominância do princípio de prazer tornou-se função deles. Mas não é a serviço desse princípio que os sonhos dos pacientes que sofrem de neuroses traumáticas nos conduzem de volta, com tal regularidade, à situação em que o trauma ocorreu. Podemos antes supor que aqui os sonhos estão ajudando a executar outra tarefa, a qual deve ser realizada antes que a dominância do princípio de prazer possa mesmo começar. Esses sonhos esforçam-se por dominar retrospectivamente o estímulo, desenvolvendo a ansiedade cuja omissão constituiu a causa da neurose traumática. Concedem-nos assim a visão de uma função do aparelho mental, visão que, embora não contradiga o princípio de prazer, é sem embargo independente dele, parecendo ser mais primitiva do que o intuito de obter prazer e evitar desprazer.
            Esse, então, pareceria ser o lugar para, pela primeira vez, admitir uma exceção à proposição de que os sonhos são realizações de desejos. Os sonhos de ansiedade, como repetida e pormenorizadamente demonstrei, não oferecem essa exceção, nem tampouco o fazem os ‘sonhos de castigo’, porque eles simplesmente substituem a realização de desejo proibida pela punição adequada a ela, isto é, realizam o desejo do sentimento de culpa que é a reação ao impulso repudiado. É, porém, impossível classificar como realizações de desejos os sonhos que estivemos debatendo e que ocorrem nas neuroses traumáticas, ou os sonhos tidos durante as psicanálises, os quais trazem à lembrança os traumas psíquicos da infância. Eles surgem antes em obediência à compulsão à repetição, embora seja verdade que, na análise, essa compulsão é apoiada pelo desejo (incentivado pela ‘sugestão’) de conjurar o que foi esquecido e reprimido. Dessa maneira, pareceria que a função dos sonhos, que consiste em afastar quaisquer motivos que possam interromper o sono, através da realização dos desejos dos impulsos perturbadores, não é a sua função original. Não lhes seria possível desempenhar essa função até que a totalidade da vida mental houvesse aceito a dominância do princípio de prazer. Se existe um ‘além do princípio de prazer’, é coerente conceber que houve também uma época anterior em que o intuito dos sonhos foi a realização de desejos. Isso não implicaria numa negação de sua função posterior, mas, uma vez rompida a regra geral, surge uma outra questão. Não podem os sonhos que, com vistas à sujeição psíquica de impressões traumáticas, obedecem à compulsão à repetição, não podem esses sonhos, perguntamos, ocorrer fora da análise também? E a resposta só pode ser uma afirmativa decidida.
            Argumentei em outra parte que as ‘neuroses de guerra’ (até onde essa expressão implica algo mais do que uma referência às circunstâncias do desencadeamento da doença) podem muito bem ser neuroses traumáticas que foram facilitadas por um conflito no ego. O fato a que me referi em [1], o de que um grande dano físico causado simultaneamente pelo trauma diminui as possibilidades de que uma neurose se desenvolva, torna-se inteligível se tivermos em mente dois fatos que foram enfatizados pela pesquisa psicanalítica: primeiramente, que a agitação mecânica deve ser reconhecida como uma das fontes de excitação sexual e, em segundo lugar, que moléstias penosas e febris exercem um poderoso efeito, enquanto perduram, sobre a distribuição da libido. Assim, por um lado, a violência mecânica do trauma liberaria uma quantidade de excitação sexual que, devido à falta de preparação para a ansiedade, teria um efeito traumático, mas, por outro lado, o dano físico simultâneo, exigindo uma hipercatexia narcisista do órgão prejudicado, sujeitaria o excesso de excitação. É também bem conhecido, embora a teoria da libido ainda não tenha feito uso suficiente do fato, que distúrbios graves na distribuição da libido, tal como a melancolia, são temporariamente interrompidos por uma moléstia orgânica intercorrente, e, na verdade, que mesmo uma condição plenamente desenvolvida de demência precoce é capaz de remissão temporária nessas mesmas circunstâncias.

                             V

            O fato de a camada cortical que recebe os estímulos achar-se sem qualquer escudo protetor contra as excitações provindas do interior deve ter como resultado que essas últimas transmissões de estímulos possuam uma preponderância em importância econômica e amiúde ocasionem distúrbios econômicos comparáveis às neuroses traumáticas. As mais abundantes fontes dessa excitação interna são aquilo que é descrito como os ‘instintos’ do organismo, os representantes de todas as forças que se originam no interior do corpo e são transmitidas ao aparelho mental, desde logo o elemento mais importante e obscuro da pesquisa psicológica.
            Não se pensará que é precipitado demais supor que os impulsos que surgem dos instintos não pertencem ao tipo dos processos nervosos vinculados, mas sim ao de processos livremente móveis, que pressionam no sentido da descarga. A maior parte do que sabemos desses processos deriva de nosso estudo sobre a elaboração onírica. Nela descobrimos que os processos dos sistemas inconscientes eram fundamentalmente diferentes dos existentes nos sistemas pré-conscientes (ou conscientes). No inconsciente, as catexias podem com facilidade ser completamente transferidas, deslocadas e condensadas. Tal tratamento, no entanto, produziria apenas resultados não-válidos se fosse aplicado ao material pré-consciente, e isso explica as familiares peculiaridades apresentadas pelos sonhos manifestos depois que os resíduos pré-conscientes do dia anterior foram elaborados de acordo com as leis que operam no inconsciente. Descrevi o tipo de processo encontrado no inconsciente como sendo o processo psíquico ‘primário’, em contraposição com o processo ‘secundário’, que é o que impera em nossa vida de vigília normal. Visto que todos os impulsos instintuais têm os sistemas inconscientes como seu ponto de impacto, quase não constitui novidade dizer que eles obedecem ao processo primário. É fácil ainda identificar o processo psíquico primário com a catexia livremente móvel de Breuer, e o processo secundário, com alterações em sua catexia vinculada ou tônica. Se assim é, seria tarefa dos estratos mais elevados do aparelho mental sujeitar a excitação instintual que atinge o processo primário. Um fracasso em efetuar essa sujeição provocaria um distúrbio análogo a uma neurose traumática, e somente após haver sido efetuada é que seria possível à dominância do princípio de prazer (e de sua modificação, o princípio de realidade) avançar sem obstáculo. Até então, a outra tarefa do aparelho mental, a tarefa de dominar ou sujeitar as excitações, teria precedência, não, na verdade, em oposição ao princípio de prazer, mas independentemente dele e, até certo ponto, desprezando-o.
            As manifestações de uma compulsão à repetição (que descrevemos como ocorrendo nas primeiras atividades da vida mental infantil, bem como entre os eventos do tratamento psicanalítico) apresentam em alto grau um caráter instintual e, quando atuam em oposição ao princípio de prazer, dão a aparência de alguma força ‘demoníaca’ em ação. No caso da brincadeira, parece que percebemos que as crianças repetem experiências desagradáveis pela razão adicional de poderem dominar uma impressão poderosa muito mais completamente de modo ativo do que poderiam fazê-lo simplesmente experimentando-a de modo passivo. Cada nova repetição parece fortalecer a supremacia que buscam. Tampouco podem as crianças ter as suas experiências agradáveis repetidas com freqüência suficiente, e elas são inexoráveis em sua insistência de que a repetição seja idêntica. Posteriormente, esse traço de caráter desaparece. Se um chiste é escutado pela segunda vez, quase não produz efeito; uma produção teatral jamais cria, da segunda vez, uma impressão tão grande como da primeira; na verdade, é quase impossível persuadir um adulto que gostou muito de ler um livro, a relê-lo imediatamente. A novidade é sempre a condição do deleite, mas as crianças nunca se cansam de pedir a um adulto que repita um jogo que lhes ensinou ou que com elas jogou, até ele ficar exausto demais para prosseguir. E, se contarmos a uma criança uma linda história, ela insistirá em ouvi-la repetidas vezes, de preferência a escutar uma nova, e sem remorsos estipulará que a repetição seja idêntica, corrigindo quaisquer alterações de que o narrador tenha a culpa, embora, na realidade, estas possam ter sido efetuadas na esperança de obter uma nova aprovação. Nada disso contradiz o princípio de prazer: a repetição, a reexperiência de algo idêntico, é claramente, em si mesma, uma fonte de prazer. No caso de uma pessoa em análise, pelo contrário, a compulsão à repetição na transferência dos acontecimentos da infância evidentemente despreza o princípio de prazer sob todos os modos. O paciente comporta-se de modo puramente infantil e assim nos mostra que os traços de memória reprimidos de suas experiências primevas não se encontram presentes nele em estado de sujeição, mostrando-se elas, na verdade, em certo sentido, incapazes de obedecer ao processo secundário. Além disso, é ao fato de não se acharem sujeitas, que devem sua capacidade de formar, em conjunção com os resíduos do dia anterior, uma fantasia de desejo que surge num sonho. A mesma compulsão à repetição freqüentemente se nos defronta como um obstáculo ao tratamento, quando, ao fim da análise, tentamos induzir o paciente a desligar-se completamente do médico. Pode-se supor também que, quando pessoas desfamiliarizadas com a análise sentem um medo obscuro, um temor de despertar algo que, segundo pensam, é melhor deixar adormecido, aquilo de que no fundo têm medo, é do surgimento dessa compulsão com sua sugestão de posse por algum poder ‘demoníaco’.
            Mas como o predicado de ser ‘instintual’ se relaciona com a compulsão à repetição? Nesse ponto, não podemos fugir à suspeita de que deparamos com a trilha de um atributo universal dos instintos e talvez da vida orgânica em geral que até o presente não foi claramente identificado ou, pelo menos, não explicitamente acentuado. Parece, então que um instinto é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças perturbadoras externas, ou seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou, para dizê-lo de outro modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica.
            Essa visão dos instintos nos impressiona como estranha porque nos acostumamos a ver neles um fator impelidor no sentido da mudança e do desenvolvimento, ao passo que agora nos pedem para reconhecer neles o exato oposto, isto é, uma expressão da natureza conservadora da substância viva. Por outro lado, logo relembraremos exemplos tirados a vida animal que parecem confirmar a opinião de que os instintos são historicamente determinados. Certos peixes, por exemplo, empreendem laboriosas migrações na época da desova, a fim de depositar sua progênie em águas específicas, muito afastadas de suas regiões costumeiras. Na opinião de muitos biólogos, o que fazem é simplesmente procurar as localidades que suas espécies antigamente habitavam, mas que, no decorrer do tempo, trocaram por outras. Acredita-se que a mesma explicação se aplique aos vôos migratórios das aves de arribação, mas somos rapidamente liberados da necessidade de buscar outros exemplos pela reflexão de que as mais impressivas provas de que há uma compulsão orgânica a repetir estão nos fenômenos da hereditariedade e nos fatos da embriologia. Vemos como o germe de um animal vivo é obrigado, no curso de sua evolução, a recapitular (mesmo se de maneira transitória e abreviada) as estruturas de todas as formas das quais se originou, em vez de avançar rapidamente, pela via mais curta, até sua forma final. Esse comportamento é, apenas em grau muito tênue, atribuível a causas mecânicas, e, por conseguinte, a explicação histórica não pode ser desprezada. Assim também o poder de regenerar um órgão perdido, fazendo crescer de novo um outro exatamente semelhante, estende-se bem acima do reino animal.
            Apresentar-se-nos-á a plausível objeção de que bem pode ser que, além dos instintos de conservação que impelem à repetição, poderão existir outros que impulsionam no sentido do progresso e da produção de nova formas. Esse argumento decerto não deve ser desprezado e será levado em conta numa etapa posterior. No momento, porém, é tentador perseguir até sua conclusão lógica a hipótese de que todos os instintos tendem à restauração de um estado anterior de coisas. O resultado talvez dê a impressão de misticismo ou de falsa profundidade, mas podemos sentir-nos inocentes de ter quaisquer desses propósitos em vista. Buscamos apenas os sóbrios resultados da pesquisa ou da reflexão nela baseada, e não temos desejo algum de encontrar neles qualquer outra qualidade que não seja a certeza.
            Suponhamos, então, que todos os instintos orgânicos são conservadores, que são adquiridos historicamente, e que tendem à restauração de um estado anterior de coisas. Disso decorre que os fenômenos do desenvolvimento orgânico devem ser atribuídos a influências perturbadoras e desviadoras externas. A entidade viva elementar, desde seu início, não teria desejo de mudar; se as condições permanecessem as mesmas, não faria mais do que constantemente repetir o mesmo curso de vida. Em última instância, o que deixou sua marca sobre o desenvolvimento dos organismos deve ter sido a história da Terra em que vivemos e de sua relação com o Sol. Toda modificação, assim imposta ao curso da vida do organismo, é aceita pelos instintos orgânicos conservadores e armazenada para ulterior repetição. Esses instintos, portanto, estão fadados a dar uma aparência enganadora de serem forças tendentes à mudança e ao progresso, ao passo que, de fato, estão apenas buscando alcançar um antigo objetivo por caminhos tanto velhos quanto novos. Ademais, é possível especificar esse objetivo final de todo o esforço orgânico. Estaria em contradição à natureza conservadora dos instintos que o objetivo da vida fosse um estado de coisas que jamais houvesse sido atingido. Pelo contrário, ele deve ser um estado de coisas antigo, um estado inicial de que a entidade viva, numa ou noutra ocasião, se afastou e ao qual se esforça por retornar através dos tortuosos caminhos ao longo dos quais seu desenvolvimento conduz. Se tomarmos como verdade que não conhece exceção o fato de tudo o que vive morrer por razões internas, tornar-se mais uma vez inorgânico, seremos então compelidos a dizer que ‘o objetivo de toda vida é a morte‘, e, voltando o olhar para trás, que ‘as coisas inanimadas existiram antes das vivas‘.
            Os atributos da vida foram, em determinada ocasião, evocados na matéria inanimada pela ação de uma força de cuja natureza não podemos formar concepção. Pode ter sido um processo de tipo semelhante ao que posteriormente provocou o desenvolvimento da consciência num estrato particular da matéria viva. A tensão que então surgiu no que até aí fora uma substância inanimada se esforçou por neutralizar-se e, dessa maneira, surgiu o primeiro instinto: o instinto a retornar ao estado inanimado. Naquela época, era ainda coisa fácil a uma substância viva morrer; o curso de sua vida era provavelmente breve determinando-se sua direção pela estrutura química da jovem vida. Assim, por longo tempo talvez, a substância viva esteve sendo constantemente criada de novo e morrendo facilmente, até que influências externas decisivas se alteraram de maneira a obrigar a substância ainda sobrevivente a divergir mais amplamente de seu original curso de vida e a efetuar détours mais complicados antes de atingir seu objetivo de morte. Esses tortuosos caminhos para a morte, fielmente seguidos pelos instintos de conservação, nos apresentariam hoje, portanto, o quadro dos fenômenos da vida. Se sustentarmos com firmeza a natureza exclusivamente conservadora dos instintos, não poderemos chegar a nenhuma outra noção quanto à origem e ao objetivo da vida.
            As implicações referentes aos grandes grupos de instintos que, segundo acreditamos, jazem por trás dos fenômenos da vida nos organismos, devem parecer não menos desnorteantes. A hipótese de instintos de autoconservação, tais como os atribuímos a todos os seres vivos, alteia-se em acentuada oposição à idéia de que a vida instintual, como um todo, sirva para ocasionar a morte. Vista sob essa luz, a importância teórica dos instintos de autoconservação, auto-afirmação e domínio diminui grandemente. Trata-se de instintos componentes cuja função é garantir que o organismo seguirá seu próprio caminho para a morte, e afastar todos os modos possíveis de retornar à existência inorgânica que não sejam os imanentes ao próprio organismo. Não temos mais de levar em conta a enigmática determinação do organismo (tão difícil de encaixar em qualquer contexto) de manter sua própria existência frente a qualquer obstáculo. O que nos resta é o fato de que o organismo deseja morrer apenas do seu próprio modo. Assim, originalmente, esses guardiães da vida eram também os lacaios da morte. Daí surgir a situação paradoxal de que o organismo vivo luta com toda a sua energia contra fatos (perigos, na verdade) que poderiam auxiliá-lo a atingir mais rapidamente seu objetivo de vida, por uma espécie de curto-circuito. Tal comportamento, entretanto, é precisamente o que caracteriza os esforços puramente instintuais, contrastados com os esforços inteligentes.
            Mas detenhamo-nos por um momento e reflitamos. Não pode ser assim. Os instintos sexuais, a que a teoria das neuroses concede um lugar inteiramente especial, surgem sob aspecto muito diferente.
            A pressão externa que provoca uma ampliação constantemente crescente do desenvolvimento não se impôs a todos os organismos. Muitos conseguiram permanecer até os dias de hoje em seu nível humilde. Na verdade, muitas - embora não todas - dessas criaturas, que devem assemelhar-se às fases primitivas dos animais e vegetais superiores, ainda hoje acham-se vivas. Da mesma maneira, a totalidade do caminho do desenvolvimento para a morte natural não é percorrido por todas as entidades elementares que compõem o complicado corpo de um dos organismos mais elevados. Algumas delas, as células germinais, provavelmente retêm a estrutura original da matéria viva e, após certo tempo, com todo o seu complemento de disposições instintuais herdadas e recentemente adquiridas, separam-se do organismo como um todo. Essas duas características podem ser exatamente aquilo que as capacita a ter uma existência independente. Sob condições favoráveis, começam a desenvolver-se, isto é, a repetir o desempenho a que devem sua existência, e, ao final, mais uma vez uma parte de sua substância leva sua evolução a um término, ao passo que outra parte reverte novamente, como um germe residual novo, ao início do processo de desenvolvimento. Essas células germinais, portanto, trabalham contra a morte da substância viva e têm êxito em conseguir para ela o que só podemos encarar como uma imortalidade potencial, ainda que isso possa significar nada mais do que um alongamento da estrada para a morte. Temos de considerar como significante, no mais elevado grau, o fato de essa função da célula germinal ser reforçada, ou só tornada possível, se ela fundir-se com outra célula similar a si mesma e, contudo, diferente dela.
            Os instintos que cuidam dos destinos desses organismos elementares que sobrevivem à totalidade do indivíduo, que lhes fornecem um abrigo seguro enquanto se acham indefesos contra os estímulos do mundo externo, que ocasionam seu encontro com outras células germinais etc., constituem o grupo dos instintos sexuais. São conservadores no mesmo sentido dos outros instintos porque trazem de volta estados anteriores de substância viva; contudo, são conservadores num grau mais alto, por serem peculiarmente resistentes às influências externas; e são conservadores ainda em outro sentido, por preservarem a própria vida por um longo período. São os verdadeiros instintos de vida. Operam contra o propósito dos outros instintos, que conduzem, em razão de sua função, à morte, e este fato indica que existe oposição entre eles e os outros, oposição que foi há muito tempo reconhecida pela teoria das neuroses. É como se a vida do organismo se movimentasse num ritmo vacilante. Certo grupo de instintos se precipita como que para atingir o objetivo final da vida tão rapidamente quanto possível, mas, quando determinada etapa no avanço foi alcançada, o outro grupo atira-se para trás até um certo ponto, a fim de efetuar nova saída e prolongar assim a jornada. E ainda que seja certo que a sexualidade e a distinção entre os sexos não existiam quando a vida começou, permanece a possibilidade de que os instintos que posteriormente vieram a ser descritos como sexuais, possam ter estado em funcionamento desde o início, e talvez não seja verdade que foi apenas em época posterior que eles começaram seu trabalho de oposição às atividades dos ‘instintos do ego’.
            Retornemos nós mesmos por um momento e consideremos se existe qualquer base para essas especulações. Será realmente o caso que, à parte os instintos sexuais, não existem instintos que não procurem restaurar um estado anterior de coisas? Que não haja nenhum que vise a um estado de coisas que nunca foi alcançado? Não conheço exemplo certo do mundo orgânico que contradiga a caracterização que assim propus. Indiscutivelmente não existe um instinto universal para desenvolvimento superior observável no mundo animal ou vegetal, ainda que seja inegável que o desenvolvimento realmente ocorre nessa direção. Mas, por um lado, trata-se amiúde de uma questão de opinião o fato de declararmos que determinado estágio de desenvolvimento é superior a outro, e, por outro lado, a biologia nos ensina que o desenvolvimento superior sob certo aspecto é com bastante freqüência compensado ou sobrepujado pela involução sob outro aspecto. Além disso, existem muitas formas animais de cujos primeiros estágios podemos inferir que seu desenvolvimento, pelo contrário, assumiu caráter retrógrado. Tanto o desenvolvimento superior quanto a involução bem podem ser as conseqüências da adaptação à pressão de forças externas e, em ambos os casos, o papel desempenhado pelos instintos pode-se limitar à retenção (na forma de um fonte interna de prazer) de uma modificação obrigatória.
            Pode também ser difícil, para muitos de nós, abandonar a crença de que existe em ação nos seres humanos um instinto para a perfeição, instinto que os trouxe a seu atual alto nível de realização intelectual e sublimação ética, e do qual se pode esperar que zele pelo seu desenvolvimento em super-homens. Não tenho fé, contudo, na existência de tal instinto interno e não posso perceber por que essa ilusão benévola deva ser conservada. A evolução atual dos seres humanos não exige, segundo me parece, uma explicação diferente da dos animais. Aquilo que, numa minoria de indivíduos humanos, parece ser um impulso incansável no sentido de maior perfeição, pode ser facilmente compreendido como resultado da repressão instintual em que se baseia tudo o que é mais precioso na civilização humana. O instinto reprimido nunca deixa de esforçar-se em busca da satisfação completa, que consistiria na repetição de uma experiência primária de satisfação. Formações reativas e substitutivas, bem como sublimações, não bastarão para remover a tensão persistente do instinto reprimido, sendo que a diferença de quantidade entre o prazer da satisfação que é exigida e a que é realmente conseguida, é que fornece o fator impulsionador que não permite qualquer parada em nenhuma das posições alcançadas, mas, nas palavras do poeta, ‘ungebändigt immer vorwärts dringt‘. O caminho para trás que conduz à satisfação completa acha-se, via de regra, obstruído pelas resistências que mantêm as repressões, de maneira que não há alternativa senão avançar na direção em que o crescimento ainda se acha livre, embora sem perspectiva de levar o processo a uma conclusão ou de ser capaz de atingir o objetivo. Os processos envolvidos na formação de uma fobia neurótica, que nada mais é do que uma tentativa de fuga da satisfação de um instinto, apresentam-nos um modelo do modo de origem desse suposto ‘instinto para a perfeição’, o qual não tem possibilidades de ser atribuído a todos os seres humanos. Na verdade, as condições dinâmicas para o seu desenvolvimento estão universalmente presentes, mas apenas em raros casos a situação econômica parece favorecer a produção do fenômeno.
            Acrescentarei apenas uma palavra para sugerir que os esforços de Eros para combinar substâncias orgânicas em unidades cada vez maiores provavelmente fornecem um sucedâneo para esse ‘instinto para a perfeição’, cuja existência não podemos admitir. Os fenômenos que lhe são atribuídos parecem passíveis de explicação por esses esforços de Eros, tomados em conjunto com os resultados da repressão.


                             VI

            A essência de nossa investigação até agora foi o traçado de uma distinção nítida entre os ‘instintos do ego’ e os instintos sexuais, e a visão de que os primeiros exercem pressão no sentido da morte e os últimos no sentido de um prolongamento da vida. Contudo, essa conclusão está fadada a ser insatisfatória sob muitos aspectos, mesmo para nós. Ademais, na realidade, é apenas quanto ao primeiro grupo de instintos que podemos afirmar que possuem caráter conservador, ou melhor, retrógrado, correspondente a uma compulsão à repetição, porque, em nossa hipótese, os instintos do ego se originam da animação da matéria inanimada e procuram restaurar o estado inanimado, ao passo que, quanto aos instintos sexuais, embora seja verdade que reproduzem estados primitivos do organismo, aquilo a que claramente visam, por todos os meios possíveis, é à coalescência de duas células germinais que são diferenciadas de maneira particular. Se essa união não é efetuada, a célula germinal morre juntamente com todos os outros elementos do organismo multicelular. É apenas com essa condição que a função sexual pode prolongar a vida da célula e emprestar-lhe uma aparência de imortalidade. Mas, qual é o acontecimento importante no desenvolvimento da substância viva, que está sendo repetido na reprodução sexual ou em sua antecessora, a conjugação de dois protozoários? Não podemos dizer, e, conseqüentemente, deveríamos sentir-nos aliviados se toda a estrutura de nossa argumentação se mostrou equivocada. A oposição entre os instintos do ego ou instintos de morte e os instintos sexuais ou instintos de vida deixaria então de sustentar-se e a compulsão à repetição não mais possuiria a importância que lhe atribuímos.
            Voltemo-nos, então, para uma das suposições já feitas por nós, na expectativa de podermos dar-lhe uma negação categórica. Tiramos conclusões de longo alcance da hipótese de que toda substância viva está fadada a morrer por causas internas. Fizemos essa suposição assim descuidadamente porque ela não nos parece ser uma suposição. Estamos acostumados a pensar que esse é o fato, e somos fortalecidos em nossas reflexões pelos escritos de nossos poetas. Talvez tenhamos adotado a crença porque existe nela um certo consolo. Se temos de morrer, e primeiro perder para a morte aqueles que nos são mais caros, é mais fácil submeter-se a uma lei impiedosa da natureza, à sublime ‘‘ [Necessidade], do que a um acaso de que talvez pudéssemos ter fugido. Pode ser, contudo, que essa crença na necessidade interna de morrer seja apenas outra daquelas ilusões que criamos ‘um die Schwere des Daseins zu ertragen‘. Decerto não se trata de uma licença primeva. A noção de ‘morte natural’ é inteiramente estranha às raças primitivas; atribuem toda morte que ocorre entre elas à influência de um inimigo ou de um espírito mau. Devemos, portanto, voltar-nos para a biologia, a fim de testar a validade da crença.
            Se assim fizermos, ficaremos estupefatos em descobrir quão pouco acordo existe entre os biólogos sobre a questão da morte natural e, na realidade, que todo o conceito de morte se dissolve em suas mãos. O fato de haver uma duração média e fixa de vida, pelo menos entre os animais superiores, argúi naturalmente em favor da existência de algo como a morte por causas naturais. Mas essa impressão é contraditada quando consideramos que certos grandes animais e determinados crescimentos arbóreos gigantescos atingem idade muito avançada, idade que atualmente não pode ser computada. De acordo com a grande concepção de Wilhelm Fliess [1906], todos os fenômenos vitais apresentados pelos organismos - e também, indubitavelmente, sua morte - estão vinculados à conclusão de períodos fixos, os quais expressam a dependência de dois tipos de substância viva (um masculino e outro feminino) quanto ao ano solar. Quando vemos, contudo, quão fácil e extensamente a influência de forças externas pode modificar a data do aparecimento dos fenômenos vitais (especialmente no mundo vegetal), precipitando-os ou retendo-os, temos de levantar dúvidas quanto à rigidez das fórmulas de Fliess ou, pelo menos, quanto às leis por ele estabelecidas constituírem os únicos fatores determinantes.
            De nosso ponto de vista, o maior interesse prende-se ao tratamento dado ao tema da duração da vida e da morte dos organismos nos escritos de Weismann (1882, 1884, 1892 etc.). Foi ele que introduziu a divisão da substância viva em partes mortais e imortais. A parte mortal é o corpo no sentido mais estrito, o ‘soma’, que, somente ele, se acha sujeito à morte natural. As células germinais, por outro lado, são potencialmente imortais, na medida em que são capazes, em determinadas condições, de desenvolver-se no indivíduo novo ou, em outras palavras, de cercar-se de um novo soma (Weismann, 1884).
            O que nos impressiona nisso é a inesperada analogia com nosso próprio ponto de vista, ao qual chegamos ao longo de caminho tão diferente. Weismann, encarando morfologicamente a substância viva, enxerga nela uma parte que está destinada a morrer - o soma, o corpo separado da substância relacionada com o sexo e a herança -, e uma parte imortal - o plasma germinal, que se relaciona com a sobrevivência da espécie, com a reprodução. Nós, por outro lado, lidando não com a substância viva, mas com as forças que nela operam, fomos levados a distinguir duas espécies de instintos: aqueles que procuram conduzir o que é vivo à morte, e os outros, os instintos sexuais, que estão perpetuamente tentando e conseguindo uma renovação da vida, o que soa como um corolário dinâmico à teoria morfológica de Weismann.
            Contudo, a aparência de uma correspondência significante se dissipa tão logo descobrimos as concepções de Weismann sobre o problema da morte, porque ele só relaciona a distinção entre o soma mortal e o plasma germinal imortal aos organismos multicelulares; nos organismos unicelulares, o indivíduo e a célula reprodutora são ainda um só e o mesmo (Weismann, 1882, 38). Desse modo, considera que os organismos unicelulares são potencialmente imortais e que a morte só faz seu aparecimento com os metazoários multicelulares. É verdade que essa morte dos organismos mais elevados é natural, uma morte provocada por causas internas, mas não se funda em nenhuma característica primitiva da substância viva (Weismann, 1884, 84) e não pode ser encarada como uma necessidade absoluta, com base na própria natureza da vida (Weismann, 1882, 33). A morte é antes uma questão de conveniência, uma manifestação de adaptação às condições externas da vida, porque, uma vez as células do corpo tenham sido divididas em soma e plasma germinal, uma duração ilimitada da vida individual se tornaria um luxo inteiramente sem sentido. Feita essa diferenciação nos organismos multicelulares, a morte torna-se possível e conveniente. Desde então, o soma dos organismos superiores morreu a períodos fixos por razões internas, ao passo que os protistas permaneceram imortais. Não é o caso, por outro lado, de a reprodução ter sido introduzida ao mesmo tempo que a morte. Pelo contrário, trata-se de uma característica primitiva da matéria viva, como o crescimento (do qual se originou), e a vida foi contínua desde seu início sobre a Terra (Weismann, 1884, 84 e seg.).
            Ver-se-á em seguida que concordar dessa maneira que os organismos superiores tenham uma morte natural é de muito pouco auxílio para nós, porque, se a morte é uma aquisição tardia dos organismos, então não há o que falar quanto a ter havido instintos de morte desde o começo da vida sobre a Terra. Os organismos multicelulares podem morrer por razões internas, devido a uma diferenciação deficiente ou a imperfeições de seu metabolismo, mas a questão não tem interesse do ponto de vista de nosso problema. Uma explicação da origem da morte como esta encontra-se, ademais, em muito menor variância com nossos modos de pensamentos habituais do que a estranha pressuposição dos ‘instintos de morte’.
            O debate que se seguiu às sugestões de Weismann não conduziu, até onde posso perceber, a nenhum resultado conclusivo em qualquer direção. Alguns escritores retornaram às opiniões de Goethe (1883), que considerava a morte o resultado direto da reprodução. Hartmann (1906, 29) não considera a aparência de um ‘cadáver’ - uma parte morta da substância viva - como critério de morte, mas define esta como sendo ‘o término do desenvolvimento individual’. Nesse sentido, também os protozoários são mortais; em seu caso, a morte também coincide com a reprodução, mas é, até certo ponto, obscurecida por ela, desde que toda a substância do animal pai pode ser diretamente transmitida à jovem progênie.
            Pouco depois, a pesquisa voltou-se para a verificação experimental, em organismos unicelulares, da alegada imortalidade da substância viva. Um biólogo americano, Woodruff, fazendo experiências com um infusório ciliado, o ‘animálculo deslizador’ (slipper-animalcule), que se reproduz por fissão em dois outros indivíduos, persistiu até a 3.029ª geração (ocasião em que interrompeu a experiência), a cada vez isolando um dos produtos parciais e colocando-o em água nova. Esse remoto descendente do primeiro animálculo era tão vivaz quanto seu antepassado e não apresentava sinais de envelhecimento ou degeneração. Assim, até onde cifras desse tipo podem provar algo, a imortalidade dos protozoários pareceu ser experimentalmente demonstrável.
            Outros experimentadores chegaram a resultados diferentes. Maupas, Calkins e outros, em contraste com Woodruff, descobriram que, após certo número de divisões, aqueles infusórios se tornavam mais débeis, diminuíam de tamanho, sofriam a perda de alguma parte de sua organização e acabavam por morrer, a menos que certas medidas recuperadoras lhes fossem aplicadas. Se assim for, os protozoários pareceriam morrer após uma fase de senescência, exatamente como aos animais superiores, contraditando assim completamente a assertiva weismanniana de que a morte é uma aquisição tardia dos organismos vivos.
            Do conjunto dessas experiências surgem dois fatos que parecem fornecer-nos uma base firme.
            Primeiro: se dois dos animálculos, no momento antes de apresentarem sinais de senescência, puderem coalescer um com o outro, isto é, ‘conjugarem-se’ (pouco após o que, mais uma vez se separam), salvam-se de ficarem velhos e tornam-se ‘rejuvenescidos’. A conjugação é indubitavelmente a antecessora da reprodução sexual nas criaturas mais elevadas; ainda se acha, por enquanto, desvinculada da propagação e limita-se à mistura das substâncias dos dois indivíduos. (A ‘anfimixia’ de Weismann.) Os efeitos recuperadores da conjugação podem, contudo, ser substituídos por certos agentes estimulantes, através de alterações na composição do fluido que proporciona sua nutrição, pela elevação de sua temperatura ou por sua agitação. Somos lembrados do célebre experimento efetuado por J. Loeb, no qual, através de certos estímulos químicos, induziu a segmentação de ovos de ouriço-do-mar, processo que normalmente só pode ocorrer após a fertilização.
            Segundo: não obstante, é provável que os infusórios morram de morte natural em resultado de seus próprios processos vitais, porque a contradição entre as descobertas de Woodruff e dos outros deve-se ao fato de haver ele provido cada geração de fluido nutriente novo. Se deixava de fazê-lo, observava os mesmos sinais de senescência que os outros experimentadores. Concluiu que os animálculos eram prejudicados pelos produtos do metabolismo que expeliam para o fluido circundante. Pôde então provar conclusivamente que eram apenas os produtos de seu próprio metabolismo que tinham resultados fatais para esse tipo específico de animálculo, porque os mesmos animais que inevitavelmente pereciam se eram apinhados em seu próprio fluido nutriente, floresciam numa solução supersaturada com os produtos excretórios de uma espécie distantemente aparentada. Um infusório, portanto, se é deixado a si mesmo, morre de morte natural devido à evacuação incompleta dos produtos de seu próprio metabolismo. (Pode ser que a mesma incapacidade seja a causa suprema também da morte de todos os animais superiores.)
            Nesse ponto, bem pode surgir em nosso espírito a dúvida quanto a saber se servimos a algum objetivo ao tentar solucionar o problema da morte natural a partir do estudo dos protozoários. A organização primitiva dessas criaturas pode ocultar-nos condições importantes que, embora de fato presentes nelas também, só se tornam visíveis nos animais superiores, quando podem encontrar expressão morfológica. E, se abandonarmos o ponto de vista morfológico e adotarmos o dinâmico, torna-se-nos completamente indiferente poder demonstrar se a morte natural ocorre ou não nos protozoários. A substância que posteriormente é reconhecida como imortal, neles não se separou ainda da mortal. As forças instintuais que procuram conduzir a vida para a morte podem também achar-se em funcionamento nos protozoários desde o início; no entanto, seus esforços podem ser tão completamente ocultos pelas forças preservadoras da vida, que talvez seja muito difícil encontrar qualquer prova direta de sua presença. Vimos também, além disso, que as observações efetuadas pelos biólogos nos permitem presumir que processos internos desse tipo, conducentes à morte, ocorrem também nos protistas. Mas, mesmo que estes últimos se mostrassem imortais no sentido weismanniano, a assertiva de Weismann de que a morte é uma aquisição tardia, se aplicaria apenas a seus fenômenos manifestos e não tornaria impossível a pressuposição de processos a ela tendentes.
            Assim, não se realizou nossa esperança de que a biologia contradissesse redondamente o reconhecimento dos instintos de morte. Estamos livres para continuar a nos preocupar com sua possibilidade, se tivermos outras razões para assim proceder. A notável semelhança entre a distinção weismanniana de soma e plasma germinal e nossa separação dos instintos de morte dos instintos de vida persiste e mantém a sua significância.
            Podemos deter-nos por um momento sobre essa visão preeminentemente dualística da vida instintual. De acordo com a teoria de E. Hering, dois tipos de processos estão constantemente em ação na substância viva, operando em direções contrárias, uma construtiva ou assimilatória, e a outra destrutiva ou dissimilatória. Podemos atrever-nos a identificar nessas duas direções tomadas pelos processos vitais a atividade de nossos dois impulsos instintuais, os instintos de vida e os instintos de morte? Existe algo mais, de qualquer modo, a que não podemos permanecer cegos. Inadvertidamente voltamos nosso curso para a baía da filosofia de Schopenhauer. Para ele, a morte é o ‘verdadeiro resultado e, até esse ponto, o propósito da vida’, ao passo que o instinto sexual é a corporificação da vontade de viver.
            Façamos uma ousada tentativa de dar outro passo à frente. Considera-se geralmente que a união de uma série de células numa associação vital - o caráter multicelular dos organismos - se tornou um meio de prolongar a sua vida. Uma célula ajuda a conservar a vida de outra, e a comunidade de células pode sobreviver mesmo que as células individuais tenham de morrer. Já aprendemos que também a conjugação, a coalescência temporária de dois organismos unicelulares, possui feito preservador de vida e rejuvenescedor sobre ambos. Por conseguinte, podemos tentar aplicar a teoria da libido a que se chegou na psicanálise à relação mútua das células. Podemos supor que os instintos de vida ou instintos sexuais ativos em cada célula tomam as outras células como seu objeto, que parcialmente neutralizam os instintos de morte (isto é, os processos estabelecidos por estes) nessas células, preservando assim sua vida, ao passo que as outras células fazem o mesmo para elas e outras ainda se sacrificam no desempenho dessa função libidinal. As próprias células germinais se comportariam de maneira completamente ‘narcisista’, para empregar a expressão que estamos acostumados a utilizar na teoria das neuroses para descrever um indivíduo total que retém sua libido em seu ego e nada desembolsa dela em catexias de objeto. As células germinais exigem sua libido, a atividade de seus instintos de vida, para si mesmas, como uma reserva para sua posterior e momentosa atividade construtiva. (As células dos neoplasmas malignos que destroem o organismo, talvez também devessem ser descritas como narcisistas nesse mesmo sentido: a patologia está preparada para considerar seus germes como inatos e atribuir-lhes atitudes embriônicas.) Dessa maneira, a libido de nossos instintos sexuais coincidiria com o Eros dos poetas e dos filósofos, o qual mantém unidas todas as coisas vivas.
            Aqui se encontra, portanto, uma oportunidade para considerar o lento desenvolvimento de nossa teoria da libido. Em primeira instância, a análise das neuroses de transferência forçou à nossa observação a oposição entre os ‘instintos sexuais’, que se dirigem para um objeto, e certos outros instintos, com os quais nos achamos insuficientemente familiarizados e que descrevemos provisoriamente como ‘instintos do ego’. Um lugar de proa entre estes foi necessariamente concedido aos instintos que servem à autoconservação do indivíduo. Foi impossível dizer que outras distinções deveriam ser traçadas entre eles. Nenhum conhecimento seria mais valioso como base para uma ciência verdadeiramente psicológica do que uma compreensão aproximada das características comuns e dos possíveis aspectos distintivos dos instintos, mas em nenhuma região da psicologia tateamos mais no escuro. Cada um supôs a existência de tantos instintos ou ‘instintos básicos’ quantos quis e fez malabarismos com eles, tal como os antigos filósofos naturalistas gregos faziam com seus quatro elementos: a terra, o ar, o fogo e a água. A psicanálise, que não podia deixar de fazer alguma suposição sobre os instintos, ateve-se primeiramente à popular divisão de instintos tipificada na expressão ‘fome e amor’. Pelo menos, nada havia de arbitrário nisso e, com sua ajuda, a análise das psiconeuroses foi levada à frente até uma boa distância. O conceito de ‘sexualidade’ e, ao mesmo tempo, de instinto sexual, teve, é verdade, de ser ampliado de modo a abranger muitas coisas que não podiam ser classificadas sob a função reprodutora, e isso provocou não pouco alarido num mundo austero, respeitável, ou simplesmente hipócrita.
            O passo seguinte foi dado quando a psicanálise sondou de mais perto o caminho no sentido do ego psicológico, que primeiramente fora conhecido apenas como órgão repressivo e censor, capaz de erguer estruturas protetoras e formações reativas. Há muito tempo, espíritos críticos e de visão ampla já haviam, é verdade, feito objeção ao fato de o conceito de libido restringir-se à energia dos instintos sexuais dirigidos no sentido de um objeto, mas fracassaram em explicar como haviam chegado a seu melhor conhecimento, ou em derivar dele algo de que a análise pudesse fazer uso. Avançando mais cautelosamente, a psicanálise observou a regularidade com que a libido é retirada do objeto e dirigida para o ego (o processo de introversão), e, pelo estudo do desenvolvimento libidinal das crianças em suas primeiras fases, chegou à conclusão de que o ego é o verdadeiro e original reservatório da libido, sendo apenas desse reservatório que ela se estende para os objetos. O ego encontrou então sua posição entre os objetos sexuais e imediatamente recebeu o lugar de proa entre eles. A libido que assim se alojara no ego foi descrita como ‘narcisista’. Essa libido narcisista era também, naturalmente, uma manifestação da força do instinto sexual, no sentido analítico dessas palavras, e necessariamente tinha de ser identificada com os instintos de autoconservação, cuja existência fora reconhecida desde o início. Assim, a oposição original entre os instintos do ego e os instintos sexuais mostrou-se inapropriada. Viu-se que uma parte dos instintos do ego era libidinal e que instintos sexuais (provavelmente ao lado de outros) operavam no ego. Não obstante, temos justificação para dizer que a antiga fórmula que estabeleceu que as psiconeuroses se baseiam num conflito entre os instintos do ego e os instintos sexuais não contém nada que precisemos rejeitar atualmente. Acontece simplesmente que a distinção entre os dois tipos de instintos, que era originalmente considerada, de certa maneira, como qualitativa deve ser hoje diferentemente caracterizada, ou seja, como topográfica. E, em particular, é ainda verdade que as neuroses de transferência, o tema essencial do estudo psicanalítico, são o resultado de um conflito entre o ego e a catexia libidinal dos objetos.
            Mas ainda nos é mais necessário enfatizar o caráter libidinal dos instintos de autoconservação, agora que nos estamos aventurando ao novo passo de reconhecer o instinto sexual como Eros, o conservador de todas as coisas, e de derivar a libido narcisista do ego dos estoques de libido por meio da qual as células do soma estão ligadas umas às outras. Mas agora, subitamente, defrontamo-nos com outra questão. Se os instintos de autoconservação são também de natureza libidinal, talvez não existam quaisquer outros instintos, a não ser os libidinais? De qualquer modo, não existem outros visíveis. Nesse caso, porém, seremos, no fim das contas, levados a concordar com os críticos que desconfiaram desde o início que a psicanálise explica tudo pela sexualidade, ou com inovadores como Jung, que, fazendo um juízo apressado, utilizaram a palavra ‘libido’ para significar força instintual em geral. Não deve isso ser assim?
            De modo algum era nossa intenção produzir tal resultado. Nosso debate teve como ponto de partida uma distinção nítida entre os instintos do ego, que equiparamos aos instintos de morte, e os instintos sexuais, que equiparamos aos instintos de vida. (Achávamo-nos preparados, em determinada etapa [ver em [1]], para incluir os chamados instintos de autoconservação do ego entre os instintos de morte, mas subseqüentemente [ver em [1]] nos corrigimos sobre esse ponto e o retiramos.) Nossas concepções, desde o início, foram dualistas e são hoje ainda mais definidamente dualistas do que antes, agora que descrevemos a oposição como se dando, não entre instintos do ego e instintos sexuais, mas entre instintos de vida e instintos de morte. A teoria da libido de Jung é, pelo contrário, monista; o fato de haver ele chamado sua única força instintual de ‘libido’, destina-se a causar confusão, mas não precisa afetar-nos sob outros aspectos. Suspeitamos que instintos outros que não os de autoconservação funcionam no ego, e deveria ser-nos possível apontá-los. Infelizmente, porém, a análise do ego fez tão poucos avanços, que nos é muito difícil proceder assim. É possível, na verdade, que os instintos libidinais do ego possam estar vinculados de maneira peculiar a esses outros instintos do ego que ainda nos são estranhos. Mesmo antes de dispormos de qualquer compreensão clara do narcisismo, a psicanálise já desconfiava que os ‘instintos do ego’ tinham componentes libidinais a eles ligados. Mas trata-se de possibilidades muito incertas, a que nossos oponentes prestarão muito pouca atenção. Permanece a dificuldade de que a psicanálise até aqui não nos permitiu indicar quaisquer instintos [do ego] que não sejam os libidinais. Isso, contudo, não constitui razão para concordarmos com a conclusão de que nenhum outro realmente existe.
            Na obscuridade que reina atualmente na teoria dos instintos, não seria avisado rejeitar qualquer idéia que prometa lançar luz sobre ela. Partimos da grande oposição entre os instintos de vida e de morte. Ora, o próprio amor objetal nos apresenta um segundo exemplo de polaridade semelhante: a existente entre o amor (ou afeição) e o ódio (ou agressividade). Se pudéssemos conseguir relacionar mutuamente essas duas polaridades e derivar uma da outra! Desde o início identificamos a presença de um componente sádico no instinto sexual. Como sabemos, ele pode tornar-se independente e, sob a forma de perversão dominar toda a atividade sexual de um indivíduo. Surge também como um instinto componente predominante numa das ‘organizações pré-genitais’, como as denominei. Mas, como pode o instinto sádico, cujo intuito é prejudicar o objeto, derivar de Eros, o conservador da vida? Não é plausível imaginar que esse sadismo seja realmente um instinto de morte que, sob a influência da libido narcisista, foi expulso do ego e, conseqüentemente, só surgiu em relação ao objeto? Ele entra em ação a serviço da função sexual. Durante a fase oral da organização da libido, o ato de obtenção de domínio erótico sobre um objeto coincide com a destruição desse objeto; posteriormente, o instinto sádico se isola, e, finalmente, na fase de primazia genital, assume, para os fins da reprodução, a função de dominar o objeto sexual até o ponto necessário à efetivação do ato sexual. Poder-se-ia verdadeiramente dizer que o sadismo que for expulso do ego apontou o caminho para os componentes libidinais do instinto sexual e que estes o seguiram para o objeto. Onde quer que o sadismo original não tenha sofrido mitigação ou mistura, encontramos a ambivalência familiar de amor e ódio na vida erótica.
            Se uma pressuposição assim é permissível, atendemos então a exigência de que produzíssemos um exemplo de instinto de morte, embora se trate, na verdade, de um instinto deslocado. Mas essa maneira de considerar as coisas está muito longe de ser fácil de captar e cria uma impressão positivamente mística. Sua aparência é suspeita, como se estivéssemos tentando achar um modo de sair a qualquer preço de uma situação embaraçosa. Podemos recordar, no entanto, que não existe nada de novo numa suposição desse tipo. Já apresentamos outra, em ocasião anterior, antes que se falasse em qualquer situação embaraçosa. As observações clínicas nos conduziram, naquela ocasião, à concepção de que o masoquismo, o instinto componente complementar ao sadismo, deve ser encarado como um sadismo que se voltou para o próprio ego do sujeito. Mas, em princípio, não existe diferença entre um instinto voltar-se do objeto para o ego ou do ego para um objeto, que é o novo ponto que se acha em discussão atualmente. O masoquismo, a volta do instinto para o próprio ego do sujeito, constituiria, nesse caso, um retorno a uma fase anterior da história do instinto, uma regressão. A descrição anteriormente fornecida do masoquismo exige uma emenda por ter sido ampla demais sob um aspecto: pode haver um masoquismo primário, possibilidade que naquela época contestei.
            Retornemos, porém, aos instintos sexuais autoconservadores. As experiências com os protistas já demonstraram que a conjugação, isto é, a coalescência de dois indivíduos que se separam logo após sem que qualquer divisão celular subseqüente ocorra, tem efeito fortalecedor e rejuvenescedor sobre ambos. Nas gerações posteriores, não mostram sinais de degeneração e parecem aptos a opor resistência mais prolongada aos efeitos prejudiciais de seu próprio metabolismo. Essa observação isolada pode, penso eu, ser tomada como típica do efeito produzido também pela união sexual. Mas, como é que a coalescência de duas células apenas ligeiramente diferentes pode ocasionar essa renovação da vida? O experimento que substitui a conjugação dos protozoários pela aplicação de estímulos químicos ou mesmo mecânicos (cf. Lipschütz, 1914), permite-nos dar o que é, indubitavelmente, uma resposta conclusiva a essa pergunta. O resultado é ocasionado pelo influxo de novas quantidades de estímulo. Isso condiz bem com a hipótese de que os processos vitais do indivíduo levam, por razões internas, a uma abolição das tensões químicas, isto é, à morte, ao passo que a união com a substância viva de um indivíduo diferente aumenta essas tensões, introduzindo o que pode ser descrito como novas ‘diferenças vitais’, que devem então ser vividas. Com referência a essa dessemelhança, naturalmente tem de haver um ou mais pontos ótimos. A tendência dominante da vida mental e, talvez, da vida nervosa em geral, é o esforço para reduzir, para manter constante ou para remover a tensão interna devida aos estímulos (o ‘princípio do Nirvana’, para tomar de empréstimo uma expressão de Barbara Low [1920, 73]), tendência que encontra expressão no princípio de prazer, e o reconhecimento desse fato constitui uma de nossas mais fortes razões para acreditar na existência dos instintos de morte.
            Contudo, ainda sentimos nossa linha de pensamento apreciavelmente entravada pelo fato de não podermos atribuir ao instinto sexual a característica de uma compulsão à repetição que primeiramente nos colocou na trilha dos instintos de morte. A esfera dos processos de desenvolvimento embrionário é, sem dúvida alguma, extremamente rica em tais fenômenos de repetição; as duas células germinais que estão envolvidas na reprodução sexual, e a história de sua vida são apenas repetições dos começos da vida orgânica. Mas a essência do processo a que a vida sexual se dirige é a coalescência de dois corpos celulares. Só isso é que assegura a imortalidade da substância viva nos organismos superiores.
            Em outras palavras, precisamos de mais informações sobre a origem da reprodução sexual e dos instintos sexuais em geral. Trata-se de problema capaz de atemorizar um leigo, e que os próprios especialistas ainda não foram capazes de resolver. Assim, forneceremos apenas o mais breve resumo do que parece pertinente à nossa linha de pensamento, entre as minhas assertivas e concepções discordantes.
            Uma dessas concepções despoja o problema da reprodução de sua fascinação misteriosa, representando-o como manifestação parcial do crescimento. (Cf. a multiplicação por fissão, brotação e gemiparidade). A origem da reprodução por células germinais sexualmente diferenciadas pode ser representada segundo sóbrias linhas darwinianas, imaginando-se que a vantagem da anfimixia, a que se chegou em determinada ocasião pela conjugação fortuita de dois protistas, foi retida e posteriormente explorada para desenvolvimento ulterior. Segundo essa concepção, o ‘sexo’ não seria nada de muito antigo e os instintos extraordinariamente violentos, cujo objetivo é ocasionar a união sexual, estariam repetindo algo que outrora ocorrera por acaso e desde então se estabelecera, por ser vantajoso.
            Surge aqui a questão, como no caso da morte [ver em [1] e [2]], de saber se estamos certos em atribuir aos protistas só essas características que realmente apresentam, ou se será correto supor que forças e processos que se tornam visíveis apenas nos organismos superiores, se originaram pela primeira vez naqueles organismos. A concepção da sexualidade que acabamos de mencionar é de pouca ajuda para nossos fins. Contra ela pode ser levantada a objeção de postular a existência de instintos de vida já a funcionar nos organismos mais simples, porque de outra maneira a conjugação, que trabalha contra o curso da vida e torna a tarefa de deixar de viver mais difícil, não teria sido mantida e elaborada, mas, ao contrário, seria evitada. Se, portanto, não quisermos abandonar a hipótese dos instintos de morte, temos de supor que estão associados, desde o início, com os instintos de vida. Deve-se, porém, admitir que, nesse caso, estaremos trabalhando com uma equação de duas quantidades desconhecidas.
            À parte isso, a ciência tem tão pouco a nos dizer sobre a origem da sexualidade, que podemos comparar o problema a uma escuridão em que nem mesmo o raio de luz de uma hipótese penetrou. Em outra região, inteiramente diferente, é verdade, defrontamo-nos realmente com tal hipótese, mas é de tipo tão fantástico, mais mito do que explicação científica, que não me atreveria a apresentá-la aqui se ela não atendesse precisamente àquela condição cujo preenchimento desejamos, porque faz remontar a origem de um instinto a uma necessidade de restaurar um estado anterior de coisas.
            O que tenho no espírito é, naturalmente, a teoria que Platão colocou na boca de Aristófanes no Symposium e que trata não apenas da origem do instinto sexual, mas também da mais importante de suas variações em relação ao objeto. ‘A natureza humana original não era semelhante à atual, mas diferente. Em primeiro lugar, os sexos eram originalmente em número de três, e não dois, como são agora; havia o homem, a mulher, e a união dos dois (…)’ Tudo nesses homens primevos era duplo: tinham quatro mãos e quatro pés, dois rostos, duas partes pudendas, e assim por diante. Finalmente, Zeus decidiu cortá-los em dois, ‘como uma sorva que é dividida em duas metades para fazer conserva’. Depois de feita a divisão, ‘as duas partes do homem, cada uma desejando sua outra metade, reuniram-se e lançaram os braços uma em torno da outra, ansiosas por fundir-se.’
Seguiremos a sugestão que nos foi oferecida pelo poeta-filósofo e aventurar-nos-emos pela hipótese de que a substância viva, por ocasião de sua animação, foi dividida em pequenas partículas, que desde então se esforçaram por reunir-se através dos instintos sexuais? De que esses instintos, nos quais a afinidade química da matéria inanimada persistiu, gradualmente conseguiram, à medida que evoluíam pelo reino dos protistas, sobrepujar as dificuldades colocadas no caminho desse esforço por um ambiente carregado de estímulos perigosos, estímulos que os compeliram a formar uma camada cortical protetora? De que esses fragmentos estilhaçados de substância viva atingiram dessa maneira uma condição multicelular e finalmente transferiram o instinto de reunião, sob a forma mais altamente concentrada, para as células germinais? - Mas aqui, acho eu, chegou o momento de interromper-nos.
            Não, contudo, sem o acréscimo de algumas palavras de reflexão crítica. Pode-se perguntar se, e até onde, eu próprio me acho convencido da verdade das hipóteses que foram formuladas nestas páginas. Minha resposta seria que eu próprio não me acho convencido e que não procuro persuadir outras pessoas a nelas acreditar, ou, mais precisamente, que não sei até onde nelas acredito. Não há razão, segundo me parece, para que o fator emocional da convicção tenha, de algum modo, de entrar nessa questão. É certamente possível que nos lancemos por uma linha de pensamento e que a sigamos aonde quer que ela leve, por simples curiosidade científica, ou, se o leitor preferir, como um advocatus diaboli, que não se acha, por essa razão, vendido ao demônio. Não discuto o fato de que o terceiro passo pela teoria dos instintos, por mim dado aqui, não pode reivindicar o mesmo grau de certeza que os dois primeiros: a extensão do conceito de sexualidade e a hipótese do narcisismo. Essas duas novidades foram uma tradução direta da observação para a teoria e não se achavam mais abertas a fontes de erro do que é inevitável em todos os casos assim. É verdade que minha afirmativa do caráter regressivo dos instintos também se apóia em material observado, ou seja, nos fatos da compulsão à repetição. Pode ser, contudo, que eu tenha superestimado sua significação. E, de qualquer modo, é impossível perseguir uma idéia desse tipo, exceto pela combinação repetida de material concreto com o que é puramente especulativo e, assim, amplamente divergente da observação impírica. Quanto mais freqüentemente isso é feito no decurso da construção de uma teoria, menos fidedigno, como sabemos, deve ser o resultado final. Mas o grau de incertezas não é atribuível. Podemos ter dado um golpe de sorte ou havermo-nos extraviado vergonhosamente. Não penso que, num trabalho desse tipo, uma parte grande seja desempenhada pelo que é chamado de ‘intuição’. Pelo que tenho visto da intuição, ela me parece ser o produto de um tipo de imparcialidade intelectual. Infelizmente, porém, as pessoas raramente são imparciais no que concerne às coisas supremas, aos grandes problemas da ciência e da vida. Em tais casos, cada um de nós é dirigido por preconceitos internos profundamente enraizados, aos quais nossa especulação inadvertidamente dá vantagem. Já que possuímos tão bons fundamentos para sermos desconfiados, nossa atitude para com os resultados de nossas próprias deliberações não pode ser outra que a de uma fria benevolência. Apresso-me a acrescentar, contudo, que uma autocrítica como esta acha-se longe de vincular-nos a qualquer tolerância especial para com opiniões discordantes. É perfeitamente legítimo rejeitar sem remorsos teorias que são contraditadas pelos próprios primeiros passos dados na análise dos fatos observados, enquanto nos achamos ao mesmo tempo cientes de que a validade de nossas próprias teorias é apenas provisória.
            Não precisamos sentir-nos grandemente perturbados em ajuizar nossas especulações sobre os instintos de vida e de morte pelo fato de tantos processos desnorteantes e obscuros nelas ocorrerem, tal como um instinto ser expulso por outro, ou um instinto voltar-se do ego para um objeto, e assim por diante. Isso se deve simplesmente ao fato de sermos obrigados a trabalhar com termos científicos, isto é, com a linguagem figurativa, peculiar à psicologia (ou, mais precisamente, à psicologia profunda). Não poderíamos, de outra maneira, descrever os processos em questão e, na verdade, não nos teríamos tornado cientes deles. As deficiências de nossa posição provavelmente se desvaneceriam se nos achássemos em posição de substituir os termos psicológicos por expressões fisiológicas ou químicas. É verdade que estas também são apenas parte de uma linguagem figurativa, mas trata-se de uma linguagem com que há muito tempo nos familiarizamos, sendo também, talvez, uma linguagem mais simples.
            Por outro lado, deve-se deixar completamente claro que a incerteza de nossa especulação foi muito aumentada pela necessidade de pedir empréstimos à ciência da biologia. A biologia é, verdadeiramente, uma terra de possibilidades ilimitadas. Podemos esperar que ela nos forneça as informações mais surpreendentes, e não podemos imaginar que respostas nos dará, dentro de poucas dezenas de anos, às questões que lhe formulamos. Poderão ser de um tipo que ponha por terra toda a nossa estrutura artificial de hipóteses. Se assim for, poder-se-á perguntar por que nos embrenhamos numa linha de pensamento como a presente e, em particular, por que decidi torná-la pública. Bem, não posso negar que algumas das analogias, correlações e vinculações que ela contém pareceram-me merecer consideração.


                             VII

            Se procurar restaurar um estado anterior de coisas constitui característica tão universal dos instintos, não precisaremos surpreender-nos com que tantos processos se realizem na vida mental independentemente do princípio de prazer. Essa característica seria partilhada por todos os instintos componentes e, em seu caso, visariam a retornar mais uma vez a uma fase específica do curso do desenvolvimento. Trata-se de questões sobre as quais o princípio de prazer ainda não possui controle, mas disso não decorre que alguma delas seja necessariamente oposta a este, e ainda temos de solucionar o problema da relação dos processos instintuais de repetição com a dominância do princípio de prazer.
            Descobrimos que uma das mais antigas e importantes funções do aparelho mental é sujeitar os impulsos instintuais que com ele se chocam, substituir o processo primário que neles predomina pelo processo secundário, e converter sua energia catéxica livremente móvel numa catexia principalmente quiescente (tônica). Enquanto essa transformação se está realizando, nenhuma atenção pode ser concedida ao desenvolvimento do desprazer, mas isso não implica a suspensão do princípio de prazer. Pelo contrário, a transformação ocorre em favor dele; a sujeição constitui o ato preparatório que introduz e assegura a dominância do princípio de prazer.
            Façamos uma distinção mais nítida, do que até aqui fizemos, entre função e tendência. O princípio de prazer, então, é uma tendência que opera a serviço de uma função, cuja missão é libertar inteiramente o aparelho mental de excitações, conservar a quantidade de excitação constante nele, ou mantê-la tão baixa quanto possível. Ainda não podemos decidir com certeza em favor de nenhum desses enunciados, mas é claro que a função estaria assim relacionada com o esforço mais fundamental de toda substância viva: o retorno à quiescência do mundo inorgânico. Todo nós já experimentamos como o maior prazer por nós atingível, o do ato sexual, acha-se associado à extinção momentânea altamente intensificada. A sujeição de um impulso instintual seria uma função preliminar, destinada a preparar a excitação para sua eliminação final no prazer da descarga.
            Isso levanta a questão de saber se sentimentos de prazer e desprazer podem ser igualmente produzidos por processos excitatórios vinculados e livres. E não parece haver qualquer dúvida de que os processos livres ou primários dão origem a sentimentos muito mais intensos em ambos os sentidos do que os vinculados ou secundários. Além disso, os processos primários são os mais antigos no tempo; no começo da vida mental não existem outros e podemos inferir que, se o princípio de prazer não tivesse sido operante neles, jamais se poderia ter estabelecido para os posteriores. Chegamos assim ao que, no fundo, não é uma conclusão muito simples, a saber, que no começo da vida mental a luta pelo prazer era muito mais intensa do que posteriormente, mas não tão irrestrita; tinha de submeter-se a freqüentes interrupções. Em épocas posteriores, a dominância do princípio de prazer é muitíssimo mais segura, mas ele próprio não fugiu aos processos de sujeição que os outros instintos em geral. De qualquer modo, seja lá o que for aquilo que causa o aparecimento de sentimentos de prazer e desprazer nos processos de excitação, deve estar presente no processo secundário, tal como está no primário.
            Aqui poderia achar-se o ponto de partida para novas investigações. Nossa consciência nos comunica sentimentos provindos de dentro que não são apenas de prazer e desprazer, mas também de uma tensão peculiar que, por sua vez, tanto pode ser agradável quanto desagradável. Permitir-nos-á a diferença entre esses sentimentos distinguir entre processos de energia vinculados e livres? Ou deve o sentimento de tensão ser relacionado à magnitude absoluta, ou talvez ao nível da catexia, ao passo que a série prazer e desprazer indica uma mudança na magnitude da catexia dentro de determinada unidade de tempo? Outro fato notável é que os instintos de vida têm muito mais contato com nossa percepção interna, surgindo como rompedores da paz e constantemente produzindo tensões cujo alívio é sentido como prazer, ao passo que os instintos de morte parecem efetuar seu trabalho discretamente. O princípio de prazer parece, na realidade, servir aos instintos de morte. É verdade que mantém guarda sobre os estímulos provindos de fora, que são encarados como perigos por ambos os tipos de instintos, mas se acha mais especialmente em guarda contra os aumentos de estimulação provindos de dentro, que tornariam mais difícil a tarefa de viver. Isso, por sua vez, levanta uma infinidade de outras questões, para as quais, no presente, não podemos encontrar resposta. Temos de ser pacientes e aguardar novos métodos e ocasiões de pesquisa. Devemos estar prontos, também, para abandonar um caminho que estivemos seguindo por certo tempo, se parecer que ele não leva a qualquer bom fim. Somente os crentes, que exigem que a ciência seja um substituto para o catecismo que abandonaram, culparão um investigador por desenvolver ou mesmo transformar suas concepções. Podemos confortar-nos também, pelos lentos avanços de nosso conhecimento científico, com as palavras do poeta:

Was man nicht erfliegen kann, muss man erhinken.  
Die Schrift sagt, es ist keine Sünde zu hinken.

























PSICOLOGIA DE GRUPO E A ANÁLISE DO EGO (1921)

           
NOTA DO EDITOR INGLÊS - MASSENPSYCHOLOGIE UND ICH-ANALYSE

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1921 Leipzig, Viena e Zurique, Internationaler Psychoanalytischer Verlag, III +140 págs.
1923 2ª ed., mesmos editores, IV + 120 págs.
1925 G.S., 6, 261-349.
1931 Theoretische Schriften, 248-337.
1940 G.W, 13, 71-161.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:
            Group Psychology and the Analysis of the Ego
1922 Londres e Viena, Internacional Psycho-Analytical Press, VIII + 134 págs. (Trad. de James Strachey.)
1940 Londres, Hogarth Press e Instituto de Psicanálise; Nova Iorque, Liveright. (Reimpressão da anterior.)

            Na primeira edição alemã alguns parágrafos do texto foram impressos em tipo menor. Na ocasião, o tradutor inglês foi instruído por Freud para transferir esses parágrafos para notas de rodapé. A mesma transposição foi feita em todas as edições alemãs posteriores, à exceção do caso mencionado na pág. 106, adiante. Freud fez algumas ligeiras alterações e acréscimos nas edições posteriores do trabalho. A presente tradução inglesa constitui versão consideravelmente alterada da publicada em 1922.

            As cartas de Freud mostram que a primeira ‘idéia simples’ de uma explicação da psicologia de grupo lhe ocorreu durante a primavera de 1919. Nada resultou disso na ocasião; em fevereiro de 1920, porém, estava trabalhando no assunto e já escrevera um primeiro rascunho em agosto do mesmo ano. Foi somente em fevereiro de 1921, contudo, que começou a lhe dar forma final. O livro foi terminado antes do fim do março de 1921 e publicado cerca de três ou quatro meses mais tarde.
            Há pouca ligação direta entre o presente trabalho e seu predecessor imediato, Além do Princípio de Prazer (1920g). As seqüências de pensamento aqui seguidas por Freud derivam mais especialmente do quarto ensaio de Totem e Tabu (1912-13), de seus artigos sobre o narcisismo (1914c) (cujo último parágrafo aborda, de forma altamente condensada, muitos dos pontos aqui debatidos) e de ‘Luto e Melancolia’ (1917e). Freud também retorna a seu primeiro interesse pelo hipnotismo e pela sugestão, que datava de seus estudos com Charcot em 1885-6.
            Tal como o título indica, o trabalho é importante em dois sentidos diferentes. Por um lado, explica a psicologia dos grupos com base em alterações na psicologia da mente individual, e, por outro, leva um passo à frente a investigação freudiana da estrutura anatômica da mente, já prenunciada em Além do Princípio de Prazer (1920g) e a ser completamente elaborada em O Ego e o Id (1923b).

            Extratos da primeira (1922) tradução deste trabalho foram incluídos na General Selection from the Works of Sigmund Freud, de Rickman (1937, 195-244).

PSICOLOGIA DE GRUPO E A ANÁLISE DO EGO

I - INTRODUÇÃO

            O contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou de grupo, que à primeira vista pode parecer pleno de significação, perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto. É verdade que a psicologia individual relaciona-se com o homem tomado individualmente e explora os caminhos pelos quais ele busca encontrar satisfação para seus impulsos instintuais; contudo, apenas raramente e sob certas condições excepcionais, a psicologia individual se acha em posição de desprezar as relações desse indivíduo com os outros. Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social.
            As relações de um indivíduo com os pais, com os irmãos e irmãs, com o objeto de seu amor e com seu médico, na realidade, todas as relações que até o presente constituíram o principal tema da pesquisa psicanalítica, podem reivindicar serem consideradas como fenômenos sociais, e, com respeito a isso, podem ser postas em contraste com certos outros processos, por nós descritos como ‘narcisistas’, nos quais a satisfação dos instintos é parcial ou totalmente retirada da influência de outras pessoas. O contraste entre atos mentais sociais e narcisistas - Bleuler [1912] talvez os chamasse de ‘autísticos’ - incide assim inteiramente dentro do domínio da psicologia individual, não sendo adequado para diferençá-la de uma psicologia social ou de grupo.
            O indivíduo, nas relações que já mencionei - com os pais, com os irmãos e irmãs, com a pessoa amada, com os amigos e com o médico -, cai sob a influência de apenas uma só pessoa ou de um número bastante reduzido de pessoas, cada uma das quais se torna enormemente importante para ele. Ora, quando se fala de psicologia social ou de grupo, costuma-se deixar essas relações de lado e isolar como tema de indagação o influenciamento de um indivíduo por um grande número de pessoas simultaneamente, pessoas com quem se acha ligado por algo, embora, sob outros aspectos e em muitos respeitos, possam ser-lhe estranhas. A psicologia de grupo interessa-se assim pelo indivíduo como membro de uma raça, de uma nação, de uma casta, de uma profissão, de uma instituição, ou como parte componente de uma multidão de pessoas que se organizaram em grupo, numa ocasião determinada, para um intuito definido. Uma vez a continuidade natural tenha sido interrompida desse modo, se uma ruptura é assim efetuada entre coisas que são por natureza interligadas, é fácil encarar os fenômenos surgidos sob essas condições especiais como expressões de um instinto especial que já não é redutível - o instinto social (herd instinct, group mind), que não vem à luz em nenhuma outra situação. Contudo, talvez possamos atrever-nos a objetar que parece difícil atribuir ao fator numérico uma significação tão grande, que o torne capaz, por si próprio, de despertar em nossa vida mental um novo instinto, que de outra maneira não seria colocado em jogo. Nossa expectativa dirige-se assim para duas outras possibilidades: que o instinto social talvez não seja um instinto primitivo, insuscetível de dissociação, e que seja possível descobrir os primórdios de sua evolução num círculo mais estreito, tal como o da família.
            Embora a psicologia de grupo ainda se encontre em sua infância, ela abrange imenso número de temas independentes e oferece aos investigadores incontáveis problemas que até o momento nem mesmo foram corretamente distinguidos uns dos outros. A mera classificação das diferentes formas de formação de grupo e a descrição dos fenômenos mentais por elas produzidos exigem grande dispêndio de observação e exposição, que já deu origem a uma copiosa literatura. Qualquer pessoa que compare as exíguas dimensões deste pequeno livro com a ampla extensão da psicologia de grupo, poderá perceber em seguida que apenas alguns pontos, escolhidos dentre a totalidade do material, serão tratados aqui. E, realmente, é em apenas algumas questões que a psicologia profunda da psicanálise está especialmente interessada.

II - A DESCRIÇÃO DE LE BON DA MENTE GRUPAL

            Em vez de partir de uma definição, parece mais proveitoso começar com alguma indicação do campo de ação dos fenômenos em exame e selecionar dentre eles alguns fatos especialmente notáveis e característicos, aos quais nossa indagação possa ligar-se. Podemos alcançar ambos os objetivos por meio de citações da obra merecidamente famosa de Le Bon, Psychologie des foules [1855].
            Esclareçamos mais uma vez o assunto. Se uma psicologia - interessada em explorar as predisposições, os impulsos instintuais, os motivos e os fins de um indivíduo até as suas ações e suas relações com aqueles que lhe são mais próximos - houvesse atingido completamente seu objetivo e esclarecido a totalidade dessas questões, com suas interconexões, defrontar-se-ia então subitamente com uma nova tarefa, que perante ela se estenderia incompleta. Seria obrigada a explicar o fato surpreendente de que, sob certa condição, esse indivíduo, a quem havia chegado a compreender, pensou, sentiu e agiu de maneira inteiramente diferente daquela que seria esperada. Essa condição é a sua inclusão numa reunião de pessoas que adquiriu a característica de um ‘grupo psicológico’. O que é, então, um ‘grupo’? Como adquire ele a capacidade de exercer influência tão decisiva sobre a vida mental do indivíduo? E qual é a natureza da alteração mental que ele força no indivíduo?
            Constituiu tarefa de uma psicologia de grupo teórica responder a essas três perguntas. A melhor maneira de abordá-las é, evidentemente, começar pela terceira. É a observação das alterações nas reações do indivíduo que fornece à psicologia de grupo seu material, de uma vez que toda tentativa de explicação deve ser precedida pela descrição da coisa que tem de ser explicada.
            Deixarei que agora Le Bon fale por si próprio. Diz ele: ‘A peculiaridade mais notável apresentada por um grupo psicológico é a seguinte: sejam quem forem os indivíduos que o compõem, por semelhantes ou dessemelhantes que sejam seu modo de vida, suas ocupações, seu caráter ou sua inteligência, o fato de haverem sido transformados num grupo coloca-os na posse de uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar e agir de maneira muito diferente daquela pela qual cada membro dele, tomado individualmente, sentiria, pensaria e agiria, caso se encontrasse em estado de isolamento. Há certas idéias e sentimentos que não surgem ou que não se transformam em atos, exceto no caso de indivíduos que formam um grupo. O grupo psicológico é um ser provisório, formado por elementos heterogêneos que por um momento se combinam, exatamente como as células que constituem um corpo vivo, formam, por sua reunião, um novo ser que apresenta características muito diferentes daquelas possuídas por cada uma das células isoladamente.’ (Trad., 1920, 29.)
            Tomaremos a liberdade de interromper a exposição de Le Bon com comentários nossos; por conseguinte, inseriremos uma observação nesse ponto. Se os indivíduos do grupo se combinam numa unidade, deve haver certamente algo para uni-los, e esse elo poderia ser precisamente a coisa que é característica de um grupo. Mas Le Bon não responde a essa questão; prossegue considerando a alteração que o indivíduo experimenta quando num grupo, e a descreve em termos que se harmonizam bem com os postulados fundamentais de nossa própria psicologia profunda.
            ‘É fácil provar quanto o indivíduo que faz parte de um grupo difere do indivíduo isolado; mas não é tão fácil descobrir as causas dessa diferença.’
            ‘Para obter, de qualquer modo, um vislumbre delas, é necessário em primeiro lugar trazer à mente a verdade estabelecida pela psicologia moderna, a de que os fenômenos inconscientes desempenham papel inteiramente preponderante não apenas na vida orgânica, mas também nas operações da inteligência. A vida consciente da mente é de pequena importância, em comparação com sua vida inconsciente. O analista mais sutil, o observador mais agudo dificilmente obtêm êxito em descobrir mais do que um número muito pequeno dos motivos conscientes que determinam sua conduta. Nossos atos conscientes são o produto de um substrato inconsciente criado na mente, principalmente por influências hereditárias. Esse substrato consiste nas inumeráveis características comuns, transmitidas de geração a geração, que constituem o gênio de uma raça. Por detrás das causas confessadas de nossos atos jazem indubitavelmente causas secretas que não confessamos, mas por detrás dessas causas secretas existem muitas outras, mais secretas ainda, ignoradas por nós próprios. A maior parte de nossas ações cotidianas são resultados de motivos ocultos que fogem à nossa observação.’ (Ibid., 30.)
            Le Bon pensa que os dotes particulares dos indivíduos se apagam num grupo e que, dessa maneira, sua distintividade se desvanece. O inconsciente racial emerge; o que é heterogêneo submerge no que é homogêneo. Como diríamos nós, a superestrutura mental, cujo desenvolvimento nos indivíduos apresenta tais dessemelhanças, é removida, e as funções inconscientes, que são semelhantes em todos, ficam expostas à vista.
            Assim, os indivíduos de um grupo viriam a mostrar um caráter médio. Mas Le Bon acredita que eles também apresentam novas características que não possuíam anteriormente, e busca a razão disso em três fatores diferentes.
            ‘O primeiro é que o indivíduo que faz parte de um grupo adquire, unicamente por considerações numéricas, um sentimento de poder invencível que lhe permite render-se a instintos que, estivesse ele sozinho, teria compulsoriamente mantido sob coerção. Ficará ele ainda menos disposto a controlar-se pela consideração de que, sendo um grupo anônimo e, por conseqüência, irresponsável, o sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos, desaparece inteiramente.’ (Ibid., 33.)
            Segundo nosso ponto de vista, não precisamos atribuir tanta importância ao aparecimento de características novas. Para nós, seria bastante dizer que, num grupo, o indivíduo é colocado sob condições que lhe permitem arrojar de si as repressões de seus impulsos instintuais inconscientes. As características aparentemente novas que então apresenta são na realidade as manifestações desse inconsciente, no qual tudo o que é mau na mente humana está contido como uma predisposição. Não há dificuldade alguma em compreender o desaparecimento da consciência ou do senso de responsabilidade, nessas circunstâncias. Há muito tempo é asserção nossa que a ‘ansiedade social’ constitui a essência do que é chamado de consciência.
            ‘A segunda causa, que é o contágio, também intervém para determinar nos grupos a manifestação de suas características especiais e, ao mesmo tempo, a tendência que devem tomar. O contágio é um fenômeno cuja presença é fácil estabelecer e difícil explicar. Deve ser classificado entre aqueles fenômenos de ordem hipnótica que logo estudaremos. Num grupo, todo sentimento e todo ato são contagiosos, e contagiosos em tal grau, que o indivíduo prontamente sacrifica seu interesse pessoal ao interesse coletivo. Trata-se de aptidão bastante contrária à sua natureza e da qual um homem dificilmente é capaz, exceto quando faz parte de um grupo.’ (Ibid., 33.)
            Mais tarde, basearemos uma importante conjectura nessa última afirmação.
            ‘Uma terceira causa, de longe a mais importante, determina nos indivíduos de um grupo características especiais que são às vezes inteiramente contrárias às apresentadas pelo indivíduo isolado. Aludo àquela sugestionabilidade, da qual, além disso, o contágio acima mencionado não é mais do que um efeito.’
            ‘Para compreender esse fenômeno, é necessário ter em mente certas recentes descobertas psicológicas. Sabemos hoje que, por diversos processos, um indivíduo pode ser colocado numa condição em que, havendo perdido inteiramente sua personalidade consciente, obedece a todas as sugestões do operador que o privou dela e comete atos em completa contradição com seu caráter e hábitos. As investigações mais cuidadosas parecem demonstrar que um indivíduo imerso por certo lapso de tempo num grupo em ação, cedo se descobre - seja em conseqüência da influência magnética emanada do grupo, seja devido a alguma outra causa por nós ignorada - num estado especial, que se assemelha muito ao estado de ‘fascinação’ em que o indivíduo hipnotizado se encontra nas mãos do hipnotizador. (…) A personalidade consciente desvaneceu-se inteiramente; a vontade e o discernimento se perderam. Todos os sentimentos e o pensamento inclinam-se na direção determinada pelo hipnotizador.’
            ‘Esse também é, aproximadamente, o estado do indivíduo que faz parte de um grupo psicológico. Ele já não se acha consciente de seus atos. Em seu caso, como no do sujeito hipnotizado, ao mesmo tempo que certas faculdades são destruídas, outras podem ser conduzidas a um alto grau de exaltação. Sob a influência de uma sugestão, empreenderá a realização de certos atos com irresistível impetuosidade. Essa impetuosidade é ainda mais irresistível no caso dos grupos do que no do sujeito hipnotizado, porque, sendo a sugestão a mesma para todos os indivíduos do grupo, ela ganha força pela reciprocidade.’ (Ibid., 34.)
            ‘Vemos então que o desaparecimento da personalidade consciente, a predominância da personalidade inconsciente, a modificação por meio da sugestão e do contágio de sentimentos e idéias numa direção idêntica, a tendência a transformar imediatamente as idéias sugeridas em atos, estas, vemos, são as características principais do indivíduo que faz parte de um grupo. Ele não é mais ele mesmo, mas transformou-se num autômato que deixou de ser dirigido pela sua vontade.’ (Ibid., 35.)
            Citei essa passagem tão integralmente a fim de tornar inteiramente claro que Le Bon explica a condição de um indivíduo num grupo como sendo realmente hipnótica, e não faz simplesmente uma comparação entre os dois estados. Não temos intenção de levantar qualquer objeção a esse argumento, mas queremos apenas dar ênfase ao fato de que as duas últimas causas pelas quais um indivíduo se modifica num grupo (o contágio e a alta sugestionabilidade), não se encontram evidentemente no mesmo plano, de modo que o contágio parece, na realidade, ser uma manifestação da sugestionabilidade. Além disso, os efeitos dos dois fatores não parecem ser nitidamente diferenciados no texto das observações de Le Bon. Talvez possamos interpretar melhor seu enunciado se vincularmos o contágio aos efeitos dos membros do grupo, tomados individualmente, uns sobre os outros, enquanto apontamos outra fonte para essas manifestações de sugestões no grupo, as quais ele considera semelhantes aos fenômenos da influência hipnótica. Mas que fonte? Não podemos deixar de ficar impressionados por uma sensação de lacuna quando observarmos que um dos principais elementos da comparação, a saber, a pessoa que deve substituir o hipnotizador no caso do grupo, não é mencionada na exposição de Le Bon. Entretanto, ele faz distinção entre essa influência da ‘fascinação’ que permanece mergulhada na obscuridade e o efeito contagioso que os indivíduos exercem uns sobre os outros e através do qual a sugestão original é fortalecida.
            Temos aqui outra importante comparação para ajudar-nos a entender o indivíduo num grupo: ‘Além disso, pelo simples fato de fazer parte de um grupo organizado, um homem desce vários degraus na escada da civilização. Isolado, pode ser um indivíduo culto; numa multidão, é um bárbaro, ou seja, uma criatura que age pelo instinto. Possui a espontaneidade, a violência, a ferocidade e também o entusiasmo e o heroísmo dos seres primitivos.’ (Ibid., 36.) Le Bon demora-se então especialmente na redução da capacidade intelectual que um indivíduo experimenta quando se funde num grupo.
            Abandonemos agora o indivíduo e voltemo-nos para a mente grupal, tal como delineada por Le Bon. Ela não apresenta um único aspecto que um psicanalista encontre qualquer dificuldade em situar ou em fazer derivar de sua fonte. O próprio Le Bon nos mostra o caminho, apontando para sua semelhança com a vida mental dos povos primitivos e das crianças (ibid., 40).
            Um grupo é impulsivo, mutável e irritável. É levado quase que exclusivamente por seu inconsciente. Os impulsos a que um grupo obedece, podem, de acordo com as circunstâncias, ser generosos ou cruéis, heróicos ou covardes, mas são sempre tão imperiosos, que nenhum interesse pessoal, nem mesmo o da autopreservação, pode fazer-se sentir (ibid., 41). Nada dele é premeditado. Embora possa desejar coisas apaixonadamente, isso nunca se dá por muito tempo, porque é incapaz de perseverança. Não pode tolerar qualquer demora entre seu desejo e a realização do que deseja. Tem um sentimento de onipotência: para o indivíduo num grupo a noção de impossibilidade desaparece.
            Um grupo é extremamente crédulo e aberto à influência; não possui faculdade crítica e o improvável não existe para ele. Pensa por imagens, que se chamam umas às outras por associação (tal como surgem nos indivíduos em estados de imaginação livre), e cuja concordância com a realidade jamais é conferida por qualquer órgão razoável. Os sentimentos de um grupo são sempre muito simples e muito exagerados, de maneira que não conhece a dúvida nem a incerteza.
            Ele vai diretamente a extremos; se uma suspeita é expressa, ela instantaneamente se modifica numa certeza incontrovertível; um traço de antipatia se transforma em ódio furioso (ibid., 56).
            Inclinado como é a todos os extremos, um grupo só pode ser excitado por um estímulo excessivo. Quem quer que deseje produzir efeito sobre ele, não necessita de nenhuma ordem lógica em seus argumentos; deve pintar nas cores mais fortes, deve exagerar e repetir a mesma coisa diversas vezes.
            Desde que não se acha em dúvida quanto ao que constitui verdade ou erro e, além disso, tem consciência de sua própria grande força, um grupo é tão intolerante quanto obediente à autoridade. Respeita a força e só ligeiramente pode ser influenciado pela bondade, que encara simplesmente como uma forma de fraqueza. O que exige de seus heróis, é força ou mesmo violência. Quer ser dirigido, oprimido e temer seus senhores. Fundamentalmente, é inteiramente conservador e tem profunda aversão por todas as inovações e progressos, e um respeito ilimitado pela tradição (ibid., 62).
            A fim de fazer um juízo correto dos princípios éticos do grupo, há que levar em consideração o fato de que, quando indivíduos se reúnem num grupo, todas as suas inibições individuais caem e todos os instintos cruéis, brutais e destrutivos, que neles jaziam adormecidos, como relíquias de uma época primitiva, são despertados para encontrar gratificação livre. Mas, sob a influência da sugestão, os grupos também são capazes de elevadas realizações sob forma de abnegação, desprendimento e devoção a um ideal. Ao passo que com os indivíduos isolados o interesse pessoal é quase a única força motivadora, nos grupos ele muito raramente é proeminente. É possível afirmar que um indivíduo tenha seus padrões morais elevados por um grupo (ibid., 65). Ao passo que a capacidade intelectual de um grupo está sempre muito abaixo da de um indivíduo, sua conduta ética pode tanto elevar-se muito acima da conduta deste último, quanto cair muito abaixo dela.
            Alguns outros aspectos da descrição de Le Bon mostram, a uma clara luz, quão justificada é a identificação da mente grupal com a mente dos povos primitivos. Nos grupos, as idéias mais contraditórias podem existir lado a lado e tolerar-se mutuamente, sem que nenhum conflito surja da contradição lógica entre elas. Esse é também o caso da vida mental inconsciente dos indivíduos, das crianças e dos neuróticos, como a psicanálise há muito tempo indicou.
            Um grupo, ainda, está sujeito ao poder verdadeiramente mágico das palavras, que podem evocar as mais formidáveis tempestades na mente grupal, sendo também capazes de apaziguá-las (ibid., 117). ‘A razão e os argumentos são incapazes de combater certas palavras e fórmulas. Elas são proferidas com solenidade na presença dos grupos e, assim que foram pronunciadas, uma expressão de respeito se torna visível em todos os semblantes e todas as cabeças se curvam. Por muitos, são consideradas como forças naturais ou como poderes sobrenaturais.’ (Ibid., 117.) A esse respeito, basta recordar os tabus sobre nomes entre os povos primitivos e os poderes mágicos que atribuem aos nomes e às palavras.
            E, finalmente, os grupos nunca ansiaram pela verdade. Exigem ilusões e não podem passar sem elas. Constantemente dão ao que é irreal precedência sobre o real; são quase tão intensamente influenciados pelo que é falso quanto pelo que é verdadeiro. Possuem tendência evidente a não distinguir entre as duas coisas (ibid., 77).
            Já indicamos que essa predominância da vida da fantasia e da ilusão nascida de um desejo irrealizado é o fator dominante na psicologia das neuroses. Descobrimos que aquilo por que os neuróticos se guiam não é a realidade objetiva comum, mas a realidade psicológica. Um sintoma histérico baseia-se na fantasia, em vez de na repetição da experiência real, e o sentimento de culpa na neurose obsessiva fundamenta-se no fato de uma intenção má que nunca foi executada. Na verdade, tal como nos sonhos e na hipnose, nas operações mentais de um grupo a função de verificação da realidade das coisas cai para o segundo plano, em comparação com a força dos impulsos plenos de desejo com sua catexia afetiva.
            O que Le Bon diz sobre o tema dos líderes de grupos é menos exaustivo e não nos permite elaborar tão claramente um princípio subjacente. Pensa ele que, assim que seres vivos se reúnem em certo número, sejam eles um rebanho de animais ou um conjunto de seres humanos, se colocam instintivamente sob a influência de um chefe (ibid., 134). Um grupo é um rebanho obediente, que nunca poderia viver sem um senhor. Possui tal anseio de obediência, que se submete instintivamente a qualquer um que se indique a si próprio como chefe.
            Embora, dessa maneira, as necessidades de um grupo o conduzam até meio caminho ao encontro de um líder, este, contudo, deve ajustar-se àquele em suas qualidades pessoais. Deve ser fascinado por uma intensa fé (numa idéia), a fim de despertar a fé do grupo; tem de possuir vontade forte e imponente, que o grupo, que não tem vontade própria, possa dele aceitar. Le Bon discute então os diferentes tipos de líderes e os meios pelos quais atuam sobre o grupo. Em geral, acredita que os líderes se fazem notados por meio das idéias em que eles próprios acreditam fanaticamente.
            Além disso, atribui tanto às idéias quanto aos líderes um poder misterioso e irresistível, a que chama de ‘prestígio’. O prestígio é uma espécie de domínio exercido sobre nós por um indivíduo, um trabalho ou uma idéia. Paralisa inteiramente nossas faculdades críticas e enche-nos de admiração e respeito. Parece que desperta um sentimento como o da ‘fascinação’ na hipnose (ibid., 148). Le Bon faz distinção entre o prestígio adquirido ou artificial e o prestígio pessoal. O primeiro se liga às pessoas em virtude de seu nome, fortuna e reputação, e a opiniões, obras de arte etc. em virtude da tradição. Desde que em todos os casos ele remonta ao passado, não nos pode ser de grande auxílio para a compreensão dessa influência enigmática. O prestígio pessoal liga-se a umas poucas pessoas, que se tornam líderes por meio dele, e tem o efeito de fazer com que todos as obedeçam como se fosse pelo funcionamento de alguma magia magnética. Todo prestígio, contudo, depende também do sucesso e se perde em caso de fracasso (ibid., 159).
            Le Bon não dá a impressão de haver conseguido colocar a função do líder e a importância do prestígio completamente em harmonia com seu retrato brilhantemente executado da mente grupal.


III - OUTRAS DESCRIÇÕES DA VIDA MENTAL COLETIVA

            Utilizamos a descrição de Le Bon à guisa de introdução, por ajustar-se tão bem à nossa própria psicologia na ênfase que dá à vida mental inconsciente. Mas temos agora de acrescentar que, na realidade, nenhuma das afirmativas desse autor apresentou algo de novo. Tudo o que diz em detrimento e depreciação das manifestações da mente grupal, já fora dito por outros antes dele, com igual nitidez e igual hostilidade, e fora repetido em uníssono por pensadores, estadistas e escritores desde os primeiros períodos da literatura. As duas teses que abrangem as mais importantes das opiniões de Le Bon, ou seja, as que tocam na inibição coletiva do funcionamento intelectual e na elevação da afetividade nos grupos, foram formuladas pouco antes por Sighele. No fundo, tudo o que resta como peculiar a Le Bon são as duas noções do inconsciente e da comparação com a vida mental dos povos primitivos, e mesmo estas naturalmente, já haviam sido com freqüência aludidas antes dele.
            Contudo - o que é mais -, a descrição e a estimativa da mente grupal, tal como fornecidas por Le Bon e os outros, de modo algum foram deixadas sem objeção. Não há dúvida de que todos os fenômenos da mente grupal que acabaram de ser mencionados, foram corretamente observados; mas é também possível distinguir outras manifestações de formação de grupo que atuam em sentido exatamente contrário, e das quais uma opinião muito mais elevada da mente grupal deve necessariamente decorrer.
            O próprio Le Bon estava pronto a admitir que, em certas circunstâncias, os princípios éticos de um grupo podem ser mais elevados que os dos indivíduos que o compõem, e que apenas as coletividades são capazes de um alto grau de desprendimento e devoção. ‘Ao passo que com os indivíduos isolados o interesse pessoal é quase a única força motivadora, nos grupos ele muito raramente é proeminente.’ (Le Bon, trad., 1920, 65.) Outros escritores aduzem o fato de que apenas a sociedade prescreve quaisquer padrões éticos para o indivíduo, enquanto que, via de regra, este fracassa, de uma maneira ou de outra, em mostrar-se à altura de suas elevadas exigências. Ou então indicam eles que, em circunstâncias excepcionais, pode surgir nas comunidades o fenômeno do entusiasmo, que tornou possíveis as mais esplêndidas realizações grupais.
            Quanto ao trabalho intelectual, permanece um fato, na verdade, que as grandes decisões no domínio do pensamento e as momentosas descobertas e soluções de problemas só são possíveis ao indivíduo que trabalha em solidão. Contudo, mesmo a mente grupal é capaz de gênio criativo no campo da inteligência, como é demonstrado, acima de tudo, pela própria linguagem, bem como pelo folclore, pelas canções populares e outros fatos semelhantes. Permanece questão aberta, além disso, saber quanto o pensador ou o escritor, individualmente, devem ao estímulo do grupo em que vivem, e se eles não fazem mais do que aperfeiçoar um trabalho mental em que os outros tiveram parte simultânea.
            Frente a essas descrições completamente contraditórias, talvez parecesse que o trabalho da psicologia de grupo estivesse fadado a chegar a um fim infrutífero. Mas é fácil encontrar uma saída mais esperançosa para o dilema. Uma série de estruturas bastante diferentes provavelmente se fundiram sob a expressão ‘grupo’ e podem exigir que sejam distinguidas. As assertivas de Sighele, Le Bon e outros referem-se a grupos de caráter efêmero, que algum interesse passageiro apressadamente aglomerou a partir de diversos tipos de indivíduos. As características dos grupos revolucionários, especialmente os da grande Revolução Francesa, influenciaram inequivocamente suas descrições. As opiniões contrárias devem sua origem à consideração daqueles grupos ou associações estáveis em que a humanidade passa a sua vida e que se acham corporificados nas instituições da sociedade. Os grupos do primeiro tipo encontram-se, com os do segundo, no mesmo tipo de relação que um mar alto, mas encapelado, tem com uma ondulação de terreno.
            McDougall, em seu livro sobre The Group Mind (A Mente Grupal) (1920a), parte da mesma contradição que acabou de ser mencionada, e encontra uma solução para ela no fato da organização. No caso mais simples, diz ele, o ‘grupo’ não possui organização alguma, ou uma que mal merece esse nome. Descreve um grupo dessa espécie como sendo uma ‘multidão’. Admite, porém, que uma multidão de seres humanos dificilmente pode reunir-se sem possuir, pelo menos, os rudimentos de uma organização, e que, precisamente nesses grupos simples, certos fatos fundamentais da psicologia coletiva podem ser observados com facilidade especial (McDougall, 1920a, 22). Antes que os membros de uma multidão ocasional de pessoas possam constituir algo semelhante a um grupo no sentido psicológico, uma condição tem de ser satisfeita: esses indivíduos devem ter algo em comum uns com os outros, um interesse comum num objeto, uma inclinação emocional semelhante numa situação ou noutra e (‘conseqüentemente’, gostaria eu de interpolar) ‘certo grau de influência recíproca’ (ibid., 23). Quanto mais alto o grau dessa ‘homogeneidade mental’, mais prontamente os indivíduos constituem um grupo psicológico e mais notáveis são as manifestações da mente grupal.
            O resultado mais notável e também o mais importante da formação de um grupo é a ‘exaltação ou intensificação de emoção’ produzida em cada membro dele (ibid., 24). Segundo McDougall, num grupo as emoções dos homens são excitadas até um grau que elas raramente ou nunca atingem sob outras condições, e constitui experiência agradável para os interessados entregar-se tão irrestritamente às suas paixões, e assim fundirem-se no grupo e perderem o senso dos limites de sua individualidade. A maneira pela qual os indivíduos são assim arrastados por um impulso comum é explicada por McDougall através do que chama de ‘princípio da indução direta da emoção por via da reação simpática primitiva’ (ibid., 25), ou seja, através do contágio emocional com que já estamos familiarizados. O fato é que a percepção dos sinais de um estado emocional é automaticamente talhada para despertar a mesma emoção na pessoa que os percebe. Quanto maior for o número de pessoas em que a mesma emoção possa ser simultaneamente observada, mais intensamente cresce essa compulsão automática. O indivíduo perde seu poder de crítica e deixa-se deslizar para a mesma emoção. Mas, ao assim proceder, aumenta a excitação das outras pessoas que produziram esse resultado nele, e assim a carga emocional dos indivíduos se intensifica por interação mútua. Acha-se inequivocamente em ação algo da natureza de uma compulsão a fazer o mesmo que os outros, a permanecer em harmonia com a maioria. Quanto mais grosseiros e simples são os impulsos emocionais, mais aptos se encontram a propagar-se dessa maneira através de um grupo (ibid., 39).
            Esse mecanismo de intensificação da emoção é favorecido por algumas outras influências que emanam dos grupos. Um grupo impressiona um indivíduo como sendo um poder ilimitado e um perigo insuperável. Momentaneamente, ele substitui toda a sociedade humana, que é a detentora da autoridade, cujos castigos o indivíduo teme e em cujo benefício se submeteu a tantas inibições. É-lhe claramente perigoso colocar-se em oposição a ele, e será mais seguro seguir o exemplo dos que o cercam, e talvez mesmo ‘caçar com a matilha’. Em obediência à nova autoridade, pode colocar sua antiga ‘consciência’ fora de ação e entregar-se à atração do prazer aumentado, que é certamente obtido com o afastamento das inibições. No todo, portanto, não é tão notável que vejamos um indivíduo num grupo fazendo ou aprovando coisas que teria evitado nas condições normais de vida, e assim podemos mesmo esperar esclarecer um pouco da obscuridade tão freqüentemente coberta pela enigmática palavra ‘sugestão’.
            McDougall não discute a tese relativa à inibição coletiva da inteligência nos grupos (ibid., 41). Diz que as mentes de inteligência inferior fazem com que as de ordem mais elevada desçam a seu próprio nível. Estas últimas são obstruídas em sua atividade, porque em geral a intensificação da emoção cria condições desfavoráveis para o trabalho intelectual correto, e, ademais, porque os indivíduos são intimidados pelo grupo e sua atividade mental não se acha livre, bem como porque há uma redução, em cada indivíduo, de seu senso de responsabilidade por seus próprios desempenhos.
            O juízo com que McDougall resume o comportamento psicológico de um grupo ‘não organizado’ simples não é mais amistoso do que o de Le Bon. Tal grupo ‘é excessivamente emocional, impulsivo, violento, inconstante, contraditório e extremado em sua ação, apresentando apenas as emoções rudes e os sentimentos menos refinados; extremamente sugestionável, descuidado nas deliberações, apressado nos julgamentos, incapaz de qualquer forma que não seja a mais simples e imperfeita das formas de raciocínio; facilmente influenciado e levado, desprovido de autoconsciência, despido de auto-respeito e de senso de responsabilidade, e apto a ser conduzido pela consciência de sua própria força, de maneira que tende a produzir todas as manifestações que aprendemos a esperar de qualquer poder irresponsável e absoluto. Daí seu comportamento assemelhar-se mais ao de uma criança indisciplinada ou de um selvagem passional e desassistido numa situação estranha, do que ao de seu membro médio, e, nos piores casos, ser mais semelhante ao de um animal selvagem que ao de seres humanos.’ (Ibid., 45).
            De uma vez que McDougall contrasta o comportamento de um grupo altamente organizado com o que acabou de ser descrito, estaremos particularmente interessados em saber no que essa organização consiste e por que fatores é produzida. O autor enumera cinco ‘condições principais’ para a elevação da vida mental coletiva a um nível mais alto.
            A primeira e fundamental condição é que haja certo grau de continuidade de existência no grupo. Esta pode ser material ou formal: material, se os mesmos indivíduos persistem no grupo por certo tempo, e formal, se se desenvolveu dentro do grupo um sistema de posições fixas que são ocupadas por uma sucessão de indivíduos.
            A segunda condição é que em cada membro do grupo se forme alguma idéia definida da natureza, composição, funções e capacidades do grupo, de maneira que, a partir disso, possa desenvolver uma relação emocional com o grupo como um todo.
            A terceira é que o grupo deva ser colocado em interação (talvez sob a forma de rivalidade) com outros grupos semelhantes, mas que dele difiram em muitos aspectos.
            A quarta é que o grupo possua tradições, costumes e hábitos, especialmente tradições, costumes e hábitos tais, que determinem a relação de seus membros uns com os outros.
            A quinta é que o grupo tenha estrutura definida, expressa na especialização e diferenciação das funções de seus constituintes.
            De acordo com McDougall, se essas condições forem satisfeitas, afastam-se as desvantagens psicológicas das formações de grupo. A redução coletiva da capacidade intelectual é evitada retirando-se do grupo o desempenho das tarefas intelectuais e reservando-as para alguns membros dele.
            Parece-nos que a condição que McDougall designa como sendo a ‘organização’ de um grupo pode, mais justificadamente, ser descrita de outra maneira. O problema consiste em saber como conseguir para o grupo exatamente aqueles aspectos que eram característicos do indivíduo e nele se extinguiram pela formação do grupo, pois o indivíduo, fora do grupo primitivo, possuía sua própria continuidade, sua autoconsciência, suas tradições e seus costumes, suas próprias e particulares funções e posições, e mantinha-se apartado de seus rivais. Devido à sua entrada num grupo ‘inorganizado’, perdeu essa distintividade por certo tempo. Se assim reconhecemos que o objetivo é aparelhar o grupo com os atributos do indivíduo, lembrar-nos-emos de uma valiosa observação de Trotter, no sentido de que a tendência para a formação de grupos é, biologicamente, uma continuação do caráter multicelular de todos os organismos superiores.

IV - SUGESTÃO E LIBIDO

            Partimos do fato fundamental de que o indivíduo num grupo está sujeito, através da influência deste, ao que com freqüência constitui profunda alteração em sua atividade mental. Sua submissão à emoção torna-se extraordinariamente intensificada, enquanto que sua capacidade intelectual é acentuadamente reduzida, com ambos os processos evidentemente dirigindo-se para uma aproximação com os outros indivíduos do grupo; e esse resultado só pode ser alcançado pela remoção daquelas inibições aos instintos que são peculiares a cada indivíduo, e pela resignação deste àquelas expressões de inclinações que são especialmente suas. Aprendemos que essas conseqüências, amiúde importunas, são, até certo ponto pelo menos, evitadas por uma ‘organização’ superior do grupo, mas isto não contradiz o fato fundamental da psicologia de grupo: as duas teses relativas à intensificação das emoções e à inibição do intelecto nos grupos primitivos. Nosso interesse dirige-se agora para a descoberta da explicação psicológica dessa alteração mental que é experimentada pelo indivíduo num grupo.
            É claro que fatores racionais (tais como a intimidação do indivíduo que já foi mencionada, ou seja, a ação de seu instinto de autopreservação) não abrangem os fenômenos observáveis. Além disso, o que nos é oferecido como explicação por autoridade em sociologia e psicologia de grupo é sempre a mesma coisa, embora receba diversos nomes: a palavra mágica ‘sugestão’. Tarde [1890] chama-a de ‘imitação’, mas não podemos deixar de concordar com um escritor que protesta que a imitação se subordina ao conceito de sugestão, sendo, na realidade, um de seus resultados (Brugeilles, 1913). Le Bon faz com que a origem de todas as enigmáticas características dos fenômenos sociais remonte a dois fatores: a sugestão mútua dos indivíduos e o prestígio dos líderes. Contudo, mais uma vez, o prestígio só é reconhecível por sua capacidade de evocar a sugestão. McDougall por um momento nos dá a impressão de que seu princípio da ‘indução primitiva de emoção’ pode permitir-nos passar sem a suposição da sugestão. Numa consideração mais detida, porém, somos forçados a perceber que esse princípio não faz mais do que as familiares afirmativas sobre ‘imitação’ ou ‘contágio’, exceto pela decidida ênfase dada ao fator emocional. Não há dúvida de que existe algo em nós que, quando nos damos conta de sinais de emoção em alguém mais, tende a fazer-nos cair na mesma emoção; contudo, quão amiúde não nos opomos com sucesso a isso, resistimos à emoção e reagimos de maneira inteiramente contrária? Por que, portanto, invariavelmente cedemos a esse contágio quando nos encontramos num grupo? Mais uma vez teríamos de dizer que o que nos compele a obedecer a essa tendência é a imitação, e o que induz a emoção em nós é a influência sugestiva do grupo. Ademais, inteiramente à parte disso, McDougall não nos permite escapar à sugestão; aprendemos com ele, bem como com outros autores, que os grupos se distinguem por sua especial sugestionabilidade.
            Estaremos assim preparados para a assertiva de que a sugestão (ou, mais corretamente, a sugestionabilidade) é na realidade um fenômeno irredutível e primitivo, um fato fundamental na vida mental do homem. Essa também era a opinião de Bernheim, de cuja espantosa arte fui testemunha em 1889. Posso, porém, lembrar-me de que mesmo então sentia uma hostilidade surda contra essa tirania da sugestão. Quando um paciente que não se mostrava dócil enfrentava o grito: ‘Mas o que está fazendo? Vou vous contre-suggestionnez!‘, eu dizia a mim mesmo que isso era uma injustiça evidente e um ato de violência, porque o homem certamente tinha direito a contra-sugestões, se estavam tentando dominá-lo com sugestões. Mais tarde, minha resistência tomou o sentido de protestar contra a opinião de que a própria sugestão, que explicava tudo, era isenta de explicação. Pensando nisso, eu repetia a velha adivinhação:

Christoph trug Christum,
Christus trug die ganze Welt,
Sag’ wo hat Christoph
Damals hin den Fuss gestellt?


Christophorus Christum, sed Christus sustulit orbem:
Constiterit pedibus dic ubi Christophorus?


            Agora que mais uma vez abordo o enigma da sugestão, depois que me mantive afastado dele por cerca de trinta anos, descubro que não houve mudança na situação. (Há uma exceção a ser feita a essa afirmativa, exceção que dá testemunho exatamente da influência da psicanálise.) Observo que esforços particulares estão sendo efetuados para formular corretamente o conceito de sugestão, isto é, fixar o emprego convencional do nome (por exemplo, McDougall, 1920b). E isso de maneira alguma é supérfluo, porque a palavra está adquirindo uso casa vez mais impreciso [em alemão] e cedo virá a designar uma espécie de influência, por qualquer que seja, tal como acontece em inglês, em que ‘sugerir’ e ‘sugestão’ correspondem aos nossos nahelegen e Anregung. Entretanto, não houve explicação da natureza da sugestão, ou seja, das condições sob as quais a influência sem fundamento lógico e adequado se realiza. Eu não fugiria à tarefa de sustentar aquela afirmativa por uma análise da literatura dos últimos trinta anos, se não me achasse ciente de que está sendo empreendida, muito próximo, uma exaustiva investigação que tem por objetivo a realização dessa mesma tarefa.
            Em vez disso, tentarei utilizar o conceito de libido, que nos prestou bons serviços no estudo das psiconeuroses, a fim de lançar luz sobre a psicologia de grupo.
            Libido é expressão extraída da teoria das emoções. Damos esse nome à energia, considerada como uma magnitude quantitativa (embora na realidade não seja presentemente mensurável), daqueles instintos que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido sob a palavra ‘amor’. O núcleo do que queremos significar por amor consiste naturalmente (e é isso que comumente é chamado de amor e que os poetas cantam) no amor sexual, com a união sexual como objetivo. Mas não isolamos disso - que, em qualquer caso, tem sua parte no nome ‘amor’ -, por um lado, o amor próprio, e, por outro, o amor pelos pais e pelos filhos, a amizade e o amor pela humanidade em geral, bem como a devoção a objetos concretos e a idéias abstratas. Nossa justificativa reside no fato de que a pesquisa psicanalítica nos ensinou que todas essas tendências constituem expressão dos mesmos impulsos instintuais; nas relações entre os sexos, esses impulsos forçam seu caminho no sentido da união sexual, mas, em outras circunstâncias, são desviados desse objetivo ou impedidos de atingi-lo, embora sempre conservem o bastante de sua natureza original para manter reconhecível sua identidade (como em características tais como o anseio de proximidade e o auto-sacrifício).
            Somos de opinião, pois, que a linguagem efetuou uma unificação inteiramente justificável ao criar a palavra ‘amor’ com seus numerosos usos, e que não podemos fazer nada melhor senão tomá-la também como base de nossas discussões e exposições científicas. Por chegar a essa decisão, a psicanálise desencadeou uma tormenta de indignação, como se fosse culpada de um ato de ultrajante inovação. Contudo, não fez nada de original em tomar o amor nesse sentido ‘mais amplo’. Em sua origem, função e relação com o amor sexual, o ‘Eros’ do filósofo Platão coincide exatamente com a força amorosa, a libido da psicanálise, tal como foi pormenorizadamente demonstrado por Nachmansohn (1915) e Pfister (1921), e, quando o apóstolo Paulo, em sua famosa Epístola aos Coríntios, louva o amor sobre tudo o mais, certamente o entende no mesmo sentido ‘mais amplo’. Mas isso apenas demonstra que os homens nem sempre levam a sério seus grandes pensadores, mesmo quando mais professam admirá-los.
            A psicanálise, portanto, dá a esses instintos amorosos o nome de instintos sexuais, a potiori e em razão de sua origem. A maioria das pessoas ‘instruídas’ encarou essa nomenclatura como um insulto e fez sua vingança retribuindo à psicanálise a pecha de ‘pansexualismo’. Qualquer pessoa que considere o sexo como algo mortificante e humilhante para a natureza humana está livre para empregar as expressões mais polidas ‘Eros’ e ‘erótico’. Eu poderia ter procedido assim desde o começo e me teria poupado muita oposição. Mas não quis fazê-lo, porque me apraz evitar fazer concessões à pusilanimidade. Nunca se pode dizer até onde esse caminho nos levará; cede-se primeiro em palavras e depois, pouco a pouco, em substância também. Não posso ver mérito algum em se ter vergonha do sexo; a palavra grega ‘Eros’, destinada a suavizar a afronta, ao final nada mais é do que tradução de nossa palavra alemã Liebe [amor], e finalmente, aquele que sabe esperar não precisa de fazer concessões.
            Tentaremos nossa sorte, então, com a suposição de que as relações amorosas (ou, para empregar expressão mais neutra, os laços emocionais) constituem também a essência da mente grupal. Recordemos que as autoridades não fazem menção a nenhuma dessas relações. Aquilo que lhes corresponderia está evidentemente oculto por detrás do abrigo, do biombo da sugestão. Em primeira instância, nossa hipótese encontra apoio em duas reflexões de rotina. Primeiro, a de que um grupo é claramente mantido unido por um poder de alguma espécie; e a que poder poderia essa façanha ser mais bem atribuída do que a Eros, que mantém unido tudo o que existe no mundo? Segundo, a de que, se um indivíduo abandona a sua distintividade num grupo e permite que seus outros membros o influenciem por sugestão, isso nos dá a impressão de que o faz por sentir necessidade de estar em harmonia com eles, de preferência a estar em oposição a eles, de maneira que, afinal de contas, talvez o faça ‘ihnen zu Liebe‘.

V - DOIS GRUPOS ARTIFICIAIS: A IGREJA E O EXÉRCITO

            Daquilo que sabemos sobre a morfologia dos grupos podemos recordar que é possível distinguir tipos muito diferentes de grupos e linhas opostas em seu desenvolvimento. Há grupos muito efêmeros e outros extremamente duradouros; grupos homogêneos, constituídos pelos mesmos tipos de indivíduos, e grupos não homogêneos; grupos naturais e grupos artificiais, que exigem uma força externa para mantê-los reunidos; grupos primitivos e grupos altamente organizados, com estrutura definida. Entretanto, por razões ainda não explicadas, gostaríamos de dar ênfase especial a uma distinção a que os que escreveram sobre o assunto, inclinaram-se a conceder muito pouca atenção; refiro-me à distinção existente entre grupos sem líderes e grupos com líderes. E, em completa oposição à prática costumeira, não escolherei, como nosso ponto de partida, uma formação de grupo relativamente simples, mas começarei por grupos altamente organizados, permanentes e artificiais. Os mais interessantes exemplos de tais estruturas são as Igrejas - comunidades de crentes - e os exércitos.
            Uma Igreja e um exército são grupos artificiais, isto é, uma certa força externa é empregada para impedi-los de desagregar-se e para evitar alterações em sua estrutura. Via de regra, a pessoa não é consultada ou não tem escolha sobre se deseja ou não ingressar em tal grupo; qualquer tentativa de abandoná-lo se defronta geralmente com a perseguição ou severas punições, ou possui condições inteiramente definidas a ela ligadas. Acha-se inteiramente fora de nosso interesse atual indagar a razão por que essas associações precisam de tais salvaguardas especiais. Somos atraídos apenas por uma circunstância, a saber, a de que certos fatos, muito mais ocultos em outros casos, podem ser observados de modo bastante claro nesses grupos altamente organizados, que são protegidos da dissolução pela maneira já mencionada.Numa Igreja (e podemos com proveito tomar a Igreja Católica como exemplo típico), bem como num exército, por mais diferentes que ambos possam ser em outros aspectos, prevalece a mesma ilusão de que há um cabeça - na Igreja Católica, Cristo; num exército, o comandante-chefe - que ama todos os indivíduos do grupo com um amor igual. Tudo depende dessa ilusão; se ela tivesse de ser abandonada, então tanto a Igreja quanto o exército se dissolveriam, até onde a força externa lhes permitisse fazê-lo. Esse amor igual foi expressamente enunciado por Cristo: ‘Quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.’ Ele coloca-se, para cada membro do grupo de crentes, na relação de um bondoso irmão mais velho; é seu pai substituto. Todas as exigências feitas ao indivíduo derivam desse amor de Cristo. Um traço democrático perpassa pela Igreja, pela própria razão de que, perante Cristo, todos são iguais e todos possuem parte igual de seu amor. Não é sem profunda razão que se invoca a semelhança entre a comunidade cristã e uma família, e que os crentes chamam-se a si mesmos de irmãos em Cristo, isto é, irmãos através do amor que Cristo tem por eles. Não há dúvida de que o laço que une cada indivíduo a Cristo é também a causa do laço que os une uns aos outros. A mesma coisa se aplica a um exército. O comandante-chefe é um pai que ama todos os soldados igualmente e, por essa razão, eles são camaradas entre si. O exército difere estruturalmente da Igreja por compor-se de uma série de tais grupos. Todo capitão é, por assim dizer, o comandante-chefe e o pai de sua companhia, e assim também todo oficial inferior o de sua unidade. É verdade que uma hierarquia semelhante foi construída na Igreja; contudo, não desempenha nela, economicamente, o mesmo papel, pois um maior conhecimento e cuidado quanto aos indivíduos pode ser atribuído a Cristo, mas não a um comandante-chefe humano.
            Levantar-se-á justificadamente uma objeção contra essa concepção da estrutura libidinal de um exército, com base no fato de nela não se ter encontrado lugar para idéias como as do próprio país, da glória nacional etc., de tanta importância para manter unido um exército. A resposta é que esse é um caso diferente de laço grupal, e não mais um laço simples, porque os exemplos dos grandes generais, como César, Wallenstein, ou Napoleão, mostram que tais idéias não são indispensáveis à existência de um exército. Tocaremos dentro em pouco na possibilidade de um líder ser substituído por uma idéia dominante, e nas relações entre ambos. Parece que o desprezo desse fator libidinal num exército, mesmo quando não constitui o único fator em atuação, não é apenas uma omissão teórica, mas também um perigo prático. O militarismo prussiano, que era exatamente tão carente de psicologia quanto a ciência alemã, pode ter sofrido as conseqüências disso na [primeira] Guerra Mundial. Sabemos que as neuroses de guerra que assolaram o exército alemão foram identificadas como sendo um protesto do indivíduo contra o papel que se esperava que ele desempenhasse no exército, e, de acordo com a comunicação de Simmel (1918), o duro tratamento dos soldados pelos seus superiores pode ser considerado como a principal entre as forças motivadoras da moléstia. Se a importância das reivindicações da libido no tocante a isso houvesse sido mais bem apreciada, provavelmente não se teria acreditado tão facilmente nas fantásticas promessas dos Quatorze Pontos do presidente americano, e o esplêndido instrumento não se teria rompido nas mãos dos líderes alemães.
            É de notar que nesses dois grupos artificiais, cada indivíduo está ligado por laços libidinais por um lado ao líder (Cristo, o comandante-chefe) e por outro aos demais membros do grupo. Como esses dois laços se relacionam, se são da mesma espécie e do mesmo valor, e como devem ser descritos psicologicamente, constituem questões que devemos reservar para investigação subseqüente. Mas, já agora, nos aventuraremos a fazer uma leve censura contra os escritores anteriores, por não terem apreciado suficientemente a importância do líder na psicologia de grupo, enquanto que nossa própria escolha disso como primeiro tema de investigação nos colocou numa posição mais favorável. Pareceria que nos achamos no caminho certo para uma explicação do principal fenômeno da psicologia de grupo: a falta de liberdade do indivíduo num grupo. Se cada indivíduo está preso em duas direções por um laço emocional tão intenso, não encontraremos dificuldade em atribuir a essa circunstância a alteração e a limitação que foram observadas em sua personalidade.
            Uma sugestão no mesmo sentido, a de que a essência de um grupo reside nos laços libidinais que nele existem, pode também ser encontrada no fenômeno do pânico, que se acha mais bem estudado nos grupos militares. Surge o pânico se um grupo desse tipo se desintegra. Suas características são a de que as ordens dadas pelos superiores não são mais atendidas e a de que cada indivíduo se preocupa apenas consigo próprio, sem qualquer consideração pelos outros. Os laços mútuos deixaram de existir e libera-se um medo gigantesco e insensato. Nesse ponto, mais uma vez, far-se-á naturalmente a objeção de que ocorre antes exatamente o contrário, e a de que o medo tornou-se grande a ponto de poder desprezar todos os laços e todos os sentimentos de consideração pelos outros. McDougall (1920a, 24) chegou mesmo a utilizar o pânico (embora não o pânico militar) como exemplo típico daquela intensificação da emoção pelo contágio (‘indução primária’) a que dá tanta ênfase. Não obstante, porém, esse método racional de explicação é aqui inteiramente inadequado. A própria questão que necessita de explicação é saber por que o medo se torna tão gigantesco. A magnitude do perigo não pode ser a responsável, porque o mesmo exército que agora tomba vítima de pânico pode anteriormente ter enfrentado perigos iguais ou maiores com sucesso total; pertence à própria essência do pânico não apresentar relação com o perigo que ameaça, e irromper freqüentemente nas ocasiões mais triviais. Se um indivíduo com medo pânico começa a se preocupar apenas consigo próprio, dá testemunho, ao fazê-lo, do fato de que os laços emocionais, que até então haviam feito o perigo parecer-lhe mínimo, cessaram de existir. Agora que está sozinho, a enfrentar o perigo, pode certamente achá-lo maior. Dessa maneira, o fato é que o medo pânico pressupõe relaxamento na estrutura libidinal do grupo e reage a esse relaxamento de maneira justificável, e que a conceituação contrária, ou seja, a de que os laços libidinais do grupo são destruídos devido ao medo em face do perigo, pode ser refutada.
            A afirmativa de que o medo num grupo é aumentado em proporções enormes através da indução (contágio), de modo algum é contraditada por essas observações. A conceituação de McDougall atende completamente ao caso quando o perigo é realmente grande e o grupo não possui fortes laços emocionais, condições que são preenchidas, por exemplo, quando irrompe um incêndio num teatro ou numa casa de diversões. Mas o caso verdadeiro instrutivo e que pode ser mais bem empregado para nossos fins é o mencionado acima, no qual um corpo de tropa irrompe em pânico, embora o perigo não tenha aumentado além de um grau que é costumeiro e que anteriormente já foi amiúde enfrentado. Não é de esperar que o uso da palavra ‘pânico’ seja claro e determinado sem ambigüidade. Às vezes ela é utilizada para descrever qualquer medo coletivo, outras até mesmo o medo no indivíduo quando ele excede todos os limites, e, com freqüência, a palavra parece reservada para os casos em que a irrupção do medo não é justificada pela ocasião. Tomando a palavra ‘pânico’ no sentido de medo coletivo, podemos estabelecer uma analogia de grandes conseqüências. No indivíduo o medo é provocado seja pela magnitude de um perigo, seja pela cessação dos laços emocionais (catexias libidinais); este último é o caso do medo neurótico ou ansiedade. Exatamente da mesma maneira, o pânico surge, seja devido a um aumento do perigo comum, seja ao desaparecimento dos laços emocionais que mantêm unido o grupo, e esse último caso é análogo ao da ansiedade neurótica.
            Qualquer pessoa que, como McDougall (1920), descreva o pânico como uma das funções mais claras da ‘mente grupal’, chega à posição paradoxal de que essa mente grupal se extingue numa de suas mais notáveis manifestações. É impossível duvidar de que o pânico signifique a desintegração de um grupo; ele envolve a cessação de todos os sentimentos de consideração que os membros do grupo, sob outros aspectos, mostram uns para com os outros.
            A ocasião típica da irrupção de pânico assemelha-se muito à que é representada na paródia de Nestroy, da peça de Hebbel, sobre Judite e Holofernes. Um soldado brada: ‘O general perdeu a cabeça!’ e, imediatamente, todos os assírios empreendem a fuga. A perda do líder, num sentido ou noutro, o nascimento de suspeitas sobre ele, trazem a irrupção do pânico, embora o perigo permaneça o mesmo; os laços mútuos entre os membros do grupo via de regra desaparecem ao mesmo tempo que o laço com seu líder. O grupo desvanece-se em poeira, como uma Gota do Príncipe Rupert, quando uma de suas extremidades é partida.
            A dissolução de um grupo religioso não é tão fácil de observar. Pouco tempo atrás, caiu-me nas mãos um romance inglês de origem católica, recomendado pelo Bispo de Londres, com o título When It Was Dark (Quando Estava Escuro). Esse romance fornecia um hábil e, segundo me pareceu, convincente relato de tal possibilidade e suas conseqüências. O romance, que pretende relacionar-se com os dias de hoje, conta como uma conspiração de inimigos da pessoa de Cristo e da fé cristã teve êxito em conseguir que um sepulcro fosse descoberto em Jerusalém. Nesse sepulcro encontra-se uma inscrição em que José de Arimatéia confessa que, por razões de piedade, retirou secretamente o corpo de Cristo de sua sepultura, no terceiro dia após o sepultamento, e enterrou-o naquele lugar. A ressurreição de Cristo e sua natureza divina são dessa maneira refutadas e o resultado da descoberta arqueológica é uma convulsão na civilização européia e um extraordinário aumento em todos os crimes e atos de violência, os quais só cessam quando a conspiração dos falsificadores é revelada.
            O fenômeno que acompanha a dissolução que aqui se supõe dominar um grupo religioso, não é o medo, para o qual falta a ocasião. Em vez dele, impulsos cruéis e hostis para com outras pessoas fazem seu aparecimento, impulsos que, devido ao amor equânime de Cristo, haviam sido anteriormente incapazes de fazê-lo. Mas, mesmo durante o reino de Cristo, aqueles que não pertencem à comunidade de crentes, que não o amam e a quem ele não ama, permanecem fora de tal laço. Desse modo, uma religião, mesmo que se chame a si mesma de religião do amor, tem de ser dura e inclemente para com aqueles que a ela não pertencem. Fundamentalmente, na verdade, toda religião é, dessa mesma maneira, uma religião de amor para todos aqueles a quem abrange, ao passo que a crueldade e a intolerância para com os que não lhes pertencem, são naturais a todas as religiões. Por mais difícil que possamos achá-lo pessoalmente, não devemos censurar os crentes severamente demais por causa disso; as pessoas que são descrentes ou indiferentes estão psicologicamente em situação muito melhor nessa questão [da crueldade e da intolerância]. Se hoje a intolerância não mais se apresenta tão violenta e cruel como em séculos anteriores, dificilmente podemos concluir que ocorreu uma suavização nos costumes humanos. A causa deve ser antes achada no inegável enfraquecimento dos sentimentos religiosos e dos laços libidinais que deles dependem. Se outro laço grupal tomar o lugar do religioso - e o socialista parece estar obtendo sucesso em conseguir isso -, haverá então a mesma intolerância para com os profanos que ocorreu na época das Guerras de Religião, e, se diferenças entre opiniões científicas chegassem um dia a atingir uma significação semelhante para grupos, o mesmo resultado se repetiria mais uma vez com essa nova motivação.



VI - OUTROS PROBLEMAS E LINHAS DE TRABALHO

            Até aqui consideramos dois grupos artificiais e descobrimos que ambos são dominados por laços emocionais de dois tipos. Um destes, o laço com o líder, parece (pelo menos para esses casos) ser um fator mais dominante do que o outro, que é mantido entre os membros do grupo.
            Ora, muito mais resta a ser examinado e descrito na morfologia dos grupos. Teremos de partir do fato verificado segundo o qual uma simples reunião de pessoas não constitui um grupo enquanto esses laços não se tiverem estabelecido nele; teremos, porém, de admitir que em qualquer reunião de pessoas a tendência a formar um grupo psicológico pode muito facilmente vir à tona. Teremos de conceder atenção aos diferentes tipos de grupos, mais ou menos estáveis, que surgem espontaneamente, e estudar as condições de sua origem e dissolução. Teremos de nos interessar, acima de tudo, pela distinção existente entre os grupos que possuem um líder e os grupos sem líder. Teremos de considerar se os grupos com líderes talvez não sejam os mais primitivos e completos, se nos outros uma idéia, uma abstração, não pode tomar o lugar do líder (estado de coisas para o qual os grupos religiosos, com seu chefe invisível, constituem etapa transitória), e se uma tendência comum, um desejo, em que certo número de pessoas tenha uma parte, não poderá, da mesma maneira, servir de sucedâneo. Essa abstração, ainda, poderá achar-se mais ou menos completamente corporificada na figura do que poderíamos chamar de líder secundário, e interessantes variações surgiriam da relação entre a idéia e o líder. O líder ou a idéia dominante poderiam também, por assim dizer, ser negativos; o ódio contra uma determinada pessoa ou instituição poderia funcionar exatamente da mesma maneira unificadora e evocar o mesmo tipo de laços emocionais que a ligação positiva. Surgiria então a questão de saber se o líder é realmente indispensável à essência de um grupo, e outras ainda, além dessa.
            Contudo, todas essas questões, que podem, além disso, ter sido apenas parcialmente tratadas na literatura sobre psicologia de grupo, não conseguirão desviar nosso interesse dos problemas psicológicos fundamentais com que nos defrontamos na estrutura de um grupo. E nossa atenção será atraída em primeiro lugar por uma consideração que promete levar-nos da maneira mais direta a uma prova de que os laços libidinais são o que caracteriza um grupo.
            Mantenhamos perante nós a natureza das relações emocionais que existem entre os homens em geral. De acordo com o famoso símile schopenhaueriano dos porcos-espinhos que se congelam, nenhum deles pode tolerar uma aproximação demasiado íntima com o próximo.
            As provas da psicanálise demonstram que quase toda relação emocional íntima entre duas pessoas que perdura por certo tempo - casamento, amizade, as relações entre pais e filhos - contém um sedimento de sentimentos de aversão e hostilidade, o qual só escapa à percepção em conseqüência da repressão. Isso se acha menos disfarçado nas altercações comuns entre sócios comerciais ou nos resmungos de um subordinado em relação a seu superior. A mesma coisa acontece quando os homens se reúnem em unidades maiores. Cada vez que duas famílias se vinculam por matrimônio, cada uma delas se julga superior ou de melhor nascimento do que a outra. De duas cidades vizinhas, cada uma é a mais ciumenta rival da outra; cada pequeno cantão encara os outros com desprezo. Raças estreitamente aparentadas mantêm-se a certa distância uma da outra: o alemão do sul não pode suportar o alemão setentrional, o inglês lança todo tipo de calúnias sobre o escocês, o espanhol despreza o português. Não ficamos mais espantados que diferenças maiores conduzam a uma repugnância quase insuperável, tal como a que o povo gaulês sente pelo alemão, o ariano pelo semita e as raças brancas pelos povos de cor.
            Quando essa hostilidade se dirige contra pessoas que de outra maneira são amadas, descrevemo-la como ambivalência de sentimentos e explicamos o fato, provavelmente de maneira demasiadamente racional, por meio das numerosas ocasiões para conflitos de interesse que surgem precisamente em tais relações mais próximas. Nas antipatias e aversões indisfarçadas que as pessoas sentem por estranhos com quem têm de tratar, podemos identificar a expressão do amor a si mesmo, do narcisismo. Esse amor a si mesmo trabalha para a preservação do indivíduo e comporta-se como se a ocorrência de qualquer divergência de suas próprias linhas específicas de desenvolvimento envolvesse uma crítica delas e uma exigência de sua alteração. Não sabemos por que tal sensitividade deva dirigir-se exatamente a esses pormenores de diferenciação, mas é inequívoco que, com relação a tudo isso, os homens dão provas de uma presteza a odiar, de uma agressividade cuja fonte é desconhecida, e à qual se fica tentado a atribuir um caráter elementar.
            Mas, quando um grupo se forma, a totalidade dessa intolerância se desvanece, temporária ou permanentemente, dentro do grupo. Enquanto uma formação de grupo persiste ou até onde ela se estende, os indivíduos do grupo comportam-se como se fossem uniformes, toleram as peculiaridades de seus outros membros, igualam-se a eles e não sentem aversão por eles. Uma tal limitação do narcisismo, de acordo com nossas conceituações teóricas, só pode ser produzida por um determinado fator, um laço libidinal com outras pessoas. O amor por si mesmo só conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor por objetos. Levantar-se-á imediatamente a questão de saber se a comunidade de interesse em si própria, sem qualquer adição de libido, não deve necessariamente conduzir à tolerância das outras pessoas e à consideração para com elas. Essa objeção pode ser enfrentada pela resposta de que, não obstante, nenhuma limitação duradoura do narcisismo é efetuada dessa maneira, visto que essa tolerância não persiste por mais tempo do que o lucro imediato obtido pela colaboração de outras pessoas. Contudo, a importância prática desse debate é menor do que se poderia supor, porque a experiência demonstrou que, nos casos de colaboração, se formam regularmente laços libidinais entre os companheiros de trabalho, laços que prolongam e solidificam a relação entre eles até um ponto além do que é simplesmente lucrativo. A mesma coisa ocorre nas relações sociais dos homens, como se tornou familiar à pesquisa psicanalítica no decurso do desenvolvimento da libido individual. A libido se liga à satisfação das grandes necessidades vitais e escolhe como seus primeiros objetos as pessoas que têm uma parte nesse processo. E, no desenvolvimento da humanidade como um todo, do mesmo modo que nos indivíduos, só o amor atua como fator civilizador, no sentido de ocasionar a modificação do egoísmo em altruísmo. E isso é verdade tanto do amor sexual pelas mulheres, com todas as obrigações que envolve de não causar dano às coisas que são caras às mulheres, quanto do amor homossexual, dessexualizado e sublimado, por outros homens, que se origina do trabalho em comum.
            Se assim, nos grupos, o amor a si mesmo narcisista está sujeito a limitações que não atuam fora deles, isso é prova irresistível de que a essência de uma formação grupal consiste em novos tipos de laços libidinais entre os membros do grupo.
            Nosso interesse nos conduz agora à premente questão de saber qual possa ser a natureza desses laços que existem nos grupos. No estudo psicanalítico das neuroses, ocupamo-nos, até aqui, quase exclusivamente com os laços com objetos feitos pelos instintos amorosos que ainda perseguem objetivos diretamente sexuais. Nos grupos, evidentemente, não se pode falar de objetivos sexuais dessas espécies. Preocupamo-nos aqui com instintos amorosos que foram desviados de seus objetivos originais, embora não atuem com menor energia devido a isso. Ora, no âmbito das habituais catexias sexuais de objeto, já observamos fenômenos que representam um desvio do instinto de seu objetivo sexual. Descrevemos esses fenômenos como gradações do estado de estar amando e reconhecemos que elas envolvem certa usurpação do ego. Voltaremos agora mais de perto nossa atenção para esses fenômenos de estar enamorado ou amando, na firme expectativa de neles encontrar condições que possam ser transferidas para os laços existentes nos grupos. Mas gostaríamos também de saber se esse tipo de catexia de objeto, tal como a conhecemos na vida sexual, representa a única maneira de laço emocional com outras pessoas, ou se devemos levar em consideração outros mecanismos desse tipo. Na verdade, aprendemos da psicanálise que existem realmente outros mecanismos para os laços emocionais, as chamadas identificações, processos insuficientemente conhecidos e difíceis de descrever, cuja investigação nos manterá afastados, por algum tempo, do tema da psicologia de grupo.

VII - IDENTIFICAÇÃO

            A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa. Ela desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo. Um menino mostrará interesse especial pelo pai; gostaria de crescer como ele, ser como ele e tomar seu lugar em tudo. Podemos simplesmente dizer que toma o pai como seu ideal. Este comportamento nada tem a ver com uma atitude passiva ou feminina em relação ao pai (ou aos indivíduos do sexo masculino em geral); pelo contrário, é tipicamente masculina. Combina-se muito bem com o complexo de Édipo, cujo caminho ajuda a preparar.
            Ao mesmo tempo que essa identificação com o pai, ou pouco depois, o menino começa a desenvolver uma catexia de objeto verdadeira em relação à mãe, de acordo com o tipo [anaclítico] de ligação. Apresenta então, portanto, dois laços psicologicamente distintos: uma catexia de objeto sexual e direta para com a mãe e uma identificação com o pai que o toma como modelo. Ambos subsistem lado a lado durante certo tempo, sem qualquer influência ou interferência mútua. Em conseqüência do avanço irresistível no sentido de uma unificação da vida mental, eles acabam por reunir-se e o complexo de Édipo normal origina-se de sua confluência. O menino nota que o pai se coloca em seu caminho, em relação à mãe. Sua identificação com eles assume então um colorido hostil e se identifica com o desejo de substituí-lo também em relação à mãe. A identificação, na verdade, é ambivalente desde o início; pode tornar-se expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo do afastamento de alguém. Comporta-se como um derivado da primeira fase da organização da libido, da fase oral, em que o objeto que prezamos e pelo qual ansiamos é assimilado pela ingestão, sendo dessa maneira aniquilado como tal. O canibal, como sabemos, permaneceu nessa etapa; ele tem afeição devoradora por seus inimigos e só devora as pessoas de quem gosta.
            A história subseqüente dessa identificação com o pai pode facilmente perder-se de vista. Pode acontecer que o complexo de Édipo se inverta e que o pai seja tomado como objeto de uma atitude feminina, objeto no qual os instintos diretamente sexuais buscam satisfação; nesse caso, a identificação com o pai torna-se a precursora de uma vinculação de objeto com ele. A mesma coisa também se aplica, com as substituições necessárias, à menina.
            É fácil enunciar numa fórmula a distinção entre a identificação com o pai e a escolha deste como objeto. No primeiro caso, o pai é o que gostaríamos de ser; no segundo, o que gostaríamos de ter, ou seja, a distinção depende de o laço se ligar ao sujeito ou ao objeto do ego. O primeiro tipo de laço, portanto, já é possível antes que qualquer escolha sexual de objeto tenha sido feita. É muito mais difícil fornecer a representação metapsicológica clara da distinção. Podemos apenas ver que a identificação esforça-se por moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o aspecto daquele que foi tomado como modelo.
            Desemaranhemos a identificação, tal como ocorre na estrutura de um sintoma neurótico, de suas conexões bastante complicadas. Suponhamos que uma menininha (e, no momento, nos ateremos a ela) desenvolve o mesmo penoso sintoma que sua mãe, a mesma tosse atormentadora, por exemplo. Isso pode ocorrer de diversas maneiras. A identificação pode provir do complexo de Édipo; nesse caso, significa um desejo hostil, por parte da menina, de tomar o lugar da mãe, e o sintoma expressa seu amor objetal pelo pai, ocasionando realização, sob a influência do sentimento de culpa, de seu desejo de assumir o lugar da mãe: ‘Você queria ser sua mãe e agora você a é - pelo menos, no que concerne a seus sofrimentos’. Esse é o mecanismo completo da estrutura de um sintoma histérico. Ou, por outro lado, o sintoma pode ser o mesmo que o da pessoa que é amada; assim, por exemplo, Dora imitava a tosse do pai. Nesse caso, só podemos descrever o estado de coisas dizendo que a identificação apareceu no lugar da escolha de objeto e que a escolha de objeto regrediu para a identificação. Já aprendemos que a identificação constitui a forma mais primitiva e original do laço emocional; freqüentemente acontece que, sob as condições em que os sintomas são construídos, ou seja, onde há repressão e os mecanismos do inconsciente são dominantes, a escolha de objeto retroaja para a identificação: o ego assume as características do objeto. É de notar que, nessas identificações, o ego às vezes copia a pessoa que não é amada e, outras, a que é. Deve também causar-nos estranheza que em ambos os casos a identificação seja parcial e extremamente limitada, tomando emprestado apenas um traço isolado da pessoa que é objeto dela.
            Existe um terceiro caso, particularmente freqüente e importante, de formação de sintomas, no qual a identificação deixa inteiramente fora de consideração qualquer relação de objeto com a pessoa que está sendo copiada. Suponha-se, por exemplo, que uma das moças de um internato receba de alguém de quem está secretamente enamorada uma carta que lhe desperta ciúmes e que a ela reaja por uma crise de histeria. Então, algumas de suas amigas que são conhecedoras do assunto pegarão a crise, por assim dizer, através de uma infecção mental. O mecanismo é o da identificação baseada na possibilidade ou desejo de colocar-se na mesma situação. As outras moças também gostariam de ter um caso amoroso secreto e, sob a influência do sentimento de culpa, aceitam também o sofrimento envolvido nele. Seria errado supor que assumissem o sintoma por simpatia. Pelo contrário, a simpatia só surge da identificação e isso é provado pelo fato de que uma infecção ou imitação desse tipo acontece em circunstâncias em que é de presumir uma simpatia preexistente ainda menor do que a que costumeiramente existe entre amigas, numa escola para moças. Um determinado ego percebeu uma analogia significante com outro sobre certo ponto, em nosso exemplo sobre a receptividade a uma emoção semelhante. Uma identificação é logo após construída sobre esse ponto e, sob a influência da situação patogênica, deslocada para o sintoma que o primeiro ego produziu. A identificação por meio do sintoma tornou-se assim o sinal de um ponto de coincidência entre os dois egos, sinal que tem de ser mantido reprimido.
            O que aprendemos dessas três fontes pode ser assim resumido: primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto; segundo, de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio de introjeção do objeto no ego; e, terceiro, pode surgir com qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é objeto de instinto sexual. Quanto mais importante essa qualidade comum é, mais bem-sucedida pode tornar-se essa identificação parcial, podendo representar assim o início de um novo laço.
            Já começamos a adivinhar que o laço mútuo existente entre os membros de um grupo é da natureza de uma identificação desse tipo, baseada numa importante qualidade emocional comum, e podemos suspeitar que essa qualidade comum reside na natureza do laço com o líder. Outra suspeita pode dizer-nos que estamos longe de haver exaurido o problema da identificação e que nos defrontamos com o processo que a psicologia chama de ‘empatia’ [Einfühlung] o qual desempenha o maior papel em nosso entendimento do que é inerentemente estranho ao nosso ego nas outras pessoas. Aqui, porém, teremos de nos limitar aos efeitos emocionais imediatos da identificação, e deixaremos de lado sua significação em nossa vida intelectual.
            A pesquisa psicanalítica, que já atacou ocasionalmente os mais difíceis problemas das psicoses, também pôde mostrar-nos a identificação em alguns outros casos que não são imediatamente compreensíveis. Tratarei de dois deles em pormenor, como material para nossa consideração posterior.
            A gênese do homossexualismo masculino, em grande quantidade de casos, é a seguinte: um jovem esteve inusitadamente e por longo tempo fixado em sua mãe, no sentido do complexo de Édipo. Finalmente, porém, após o término da puberdade, chega a ocasião de trocar a mãe por algum outro objeto sexual. As coisas sofrem uma virada repentina: o jovem não abandona a mãe, mas identifica-se com ela; transforma-se e procura então objetos que possam substituir o seu ego para ele, objetos aos quais possa conceder um amor e um carinho iguais aos que recebeu de sua mãe. Trata-se de processo freqüente, que pode ser confirmado tão amiúde quanto se queira, e que, naturalmente, é inteiramente independente de qualquer hipótese que se possa efetuar quanto à força orgânica impulsora e aos motivos de repentina transformação. Uma coisa notável sobre essa identificação é sua ampla escala; ela remolda o ego em um de seus mais importantes aspectos, em seu caráter sexual, segundo o modelo do que até então constituíra o objeto. Neste processo, o objeto em si mesmo é renunciado, se inteiramente ou se no sentido de ser preservado apenas no inconsciente sendo uma questão que se acha fora do escopo do presente estudo. A identificação com um objeto que é renunciado ou perdido, como um sucedâneo para esse objeto - introjeção dele no ego - não constitui verdadeiramente mais novidade para nós. Um processo dessa espécie pode às vezes ser diretamente observado em crianças pequenas. Há pouco tempo atrás uma observação desse tipo foi publicada no Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse. Uma criança que se achava pesarosa pela perda de um gatinho declarou francamente que ela agora era o gatinho e, por conseguinte, andava de quatro, não comia à mesa etc.
            Outro exemplo de introjeção do objeto foi fornecido pela análise da melancolia, afecção que inclui entre as mais notáveis de suas causas excitadoras a perda real ou emocional de um objeto amado. Uma característica principal desses casos é a cruel autodepreciação do ego, combinada com uma inexorável autocrítica e acerbas autocensuras. As análises demonstraram que essa depreciação e essas censuras aplicam-se, no fundo, ao objeto e representam a vingança do ego sobre ele. A sombra do objeto caiu sobre o ego, como disse noutra parte. Aqui a introjeção do objeto é inequivocamente clara.
            Essas melancolias, porém, também nos mostram mais alguma coisa, que pode ser importante para nossos estudos posteriores. Mostram-nos o ego dividido, separado em duas partes, uma das quais vocifera contra a segunda. Esta segunda parte é aquela que foi alterada pela introjeção e contém o objeto perdido. Porém a parte que se comporta tão cruelmente tampouco a desconhecemos. Ela abrange a consciência, uma instância crítica dentro do ego, que até em ocasiões normais assume, embora nunca tão implacável e injustificadamente, uma atitude crítica para com a última. Em ocasiões anteriores, fomos levados à hipótese de que no ego se desenvolve uma instância assim, capaz de isolar-se do resto daquele ego e entrar em conflito com ele. A essa instância chamamos de ‘ideal do ego’ e, a título de funções, atribuímos-lhe a auto-observação, a consciência moral, a censura dos sonhos e a principal influência na repressão. Dissemos que ele é o herdeiro do narcisismo original em que o ego infantil desfrutava de auto-suficiência; gradualmente reúne, das influências do meio ambiente, as exigências que este impõe ao ego, das quais este não pode sempre estar à altura; de maneira que um homem, quando não pode estar satisfeito com seu próprio ego, tem, no entanto, possibilidade de encontrar satisfação no ideal do ego que se diferenciou do ego. Nos delírios de observação, como demonstramos noutro lugar, a desintegração dessa instância tornou-se patente e revelou assim sua origem na influência de poderes superiores e, acima de tudo, dos pais. Mas não nos esquecemos de acrescentar que o valor da distância entre esse ideal do ego e o ego real é muito variável de um indivíduo para outro e que, em muitas pessoas, essa diferenciação dentro do ego não vai além da que sucede em crianças.
            Antes que possamos empregar este material, a fim de compreender a organização libidinal dos grupos, devemos, contudo, tomar em consideração alguns outros exemplos das relações mútuas entre o objeto e o ego.

VIII - ESTAR AMANDO E HIPNOSE
           
Mesmo em seus caprichos, o uso da linguagem permanece fiel a uma certa espécie de realidade. Assim, ela dá o nome de ‘amor’ a numerosos tipos de relações emocionais que agrupamos, também, teoricamente como amor; por outro lado, porém, sente, a seguir, dúvidas se esse amor é amor real, verdadeiro, genuíno, e assim insinua toda uma gama de possibilidades no âmbito dos fenômenos do amor. Não teremos dificuldade em efetuar a mesma descoberta por nossas próprias observações.
            Em determinada classe de casos, estar amando nada mais é que uma catexia de objeto por parte dos instintos sexuais com vistas a uma satisfação diretamente sexual, catexia que, além disso, expira quando se alcançou esse objetivo: é o que se chama de amor sensual comum. Mas, como sabemos, raramente a situação libidinal permanece tão simples. Era possível calcular com certeza a revivescência da necessidade que acabara de expirar e, sem dúvida, isso deve ter constituído o primeiro motivo para dirigir uma catexia duradoura sobre o objeto sexual e para ‘amá-lo’ também nos intervalos desapaixonados.
            A isso é preciso acrescentar outro fato derivado do notável curso de evolução seguido pela vida erótica do homem. Em sua primeira fase, que geralmente termina na ocasião em que a criança está com cinco anos de idade, ela descobriu o primeiro objeto para seu amor em um ou outro dos pais, e todos os seus instintos sexuais, com sua exigência de satisfação, unificaram-se nesse objeto. A repressão que então se estabelece, compele-a a renunciar à maior parte desse objetivos sexuais infantis e deixa atrás de si uma profunda modificação em sua relação com os pais. A criança ainda permanece ligada a eles, mas por instintos que devem ser descritos como ‘inibidos em seu objetivo’. As emoções que daí passa a sentir por esses objetos de seu amor são caracterizadas como ‘afetuosas’. Sabe-se que as primitivas tendências ‘sensuais’ permanecem mais ou menos intensamente preservadas no inconsciente, de maneira que, em certo sentido, a totalidade da corrente original continua a existir.
            Na puberdade, como sabemos, estabelecem-se impulsos novos e muito fortes, dirigidos a objetivos diretamente sexuais. Em casos desfavoráveis eles permanecem, sob a forma de uma corrente sensual, separados das tendências ‘afetuosas’ de sentimento que persistem. Temos então à frente um quadro cujos dois aspectos são tipificados com deleite por certas escolas de literatura. Um homem mostrará um entusiasmo sentimental por mulheres a quem respeita profundamente, mas não o excitam a atividades sexuais, e só será potente com outras mulheres a quem não ‘ama’, a quem pouco considera, ou mesmo despreza. Com mais freqüência, contudo, o adolescente consegue efetuar um certo grau de síntese entre o amor não sensual e celeste e o amor sensual e terreno, e sua relação com seu objeto sexual se caracteriza pela interação de instintos desinibidos e instintos inibidos em seu objetivo. A profundidade em que qualquer um está amando, quando contrastada com seu desejo puramente sensual, pode ser medida pela dimensão da parte assumida pelos instintos de afeição inibidos em seu objetivo.
            Com relação a essa questão de estar amando, sempre ficamos impressionados pelo fenômeno da supervalorização sexual: o fato de o objeto amado desfrutar de certa liberdade quanto à crítica, e o de todas as suas características serem mais altamente valorizadas do que as das pessoas que não são amadas, ou do que as próprias características dele numa ocasião em que não era amado. Se os impulsos sexuais estão mais ou menos eficazmente reprimidos ou postos do lado, produz-se a ilusão de que o objeto veio a ser sensualmente amado devido aos seus méritos espirituais, ao passo que, pelo contrário, na realidade esses méritos só podem ter sido emprestados a ele pelo seu encanto sensual.
            A tendência que falsifica o julgamento nesse respeito é a da idealização. Agora, porém, é mais fácil encontrarmos nosso rumo. Vemos que o objeto está sendo tratado da mesma maneira que nosso próprio ego, de modo que, quando estamos amando, uma quantidade considerável de libido narcisista transborda para o objeto. Em muitas formas de escolha amorosa, é fato evidente que o objeto serve de sucedâneo para algum inatingido ideal do ego de nós mesmos. Nós o amamos por causa das perfeições que nos esforçamos por conseguir para nosso próprio ego e que agora gostaríamos de adquirir, dessa maneira indireta, como meio de satisfazer nosso narcisismo.
            Se a supervalorização sexual e o estar amando aumentam ainda mais, a interpretação do quadro se torna ainda mais inequívoca. Os impulsos cuja inclinação se dirige para a satisfação diretamente sexual podem agora ser empurrados inteiramente para o segundo plano, como por exemplo acontece regularmente com a paixão sentimental de um jovem; o ego se torna cada vez mais despretensioso e modesto e o objeto cada vez mais sublime e precioso, até obter finalmente a posse de todo o auto-amor do ego, cujo auto-sacrifício decorre, assim, como conseqüência natural. O objeto, por assim dizer, consumiu o ego. Traços de humildade, de limitação do narcisismo e de danos causados a si próprio ocorrem em todos os casos de estar amando; no caso extremo, são simplesmente intensificados e como resultado da retirada das reivindicações sexuais, permanecem em solitária supremacia.
            Isso acontece com especial facilidade com o amor infeliz e que não pode ser satisfeito, porque, a despeito de tudo, cada satisfação sexual envolve sempre uma redução da supervalorização sexual. Ao mesmo tempo desta ‘devoção’ do ego ao objeto, a qual não pode mais ser distinguida de uma devoção sublimada a uma idéia abstrata, as funções atribuídas ao ideal do ego deixam inteiramente de funcionar. A crítica exercida por essa instância silencia; tudo que o objeto faz e pede é correto e inocente. A consciência não se aplica a nada que seja feito por amor do objeto; na cegueira do amor, a falta de piedade é levada até o diapasão do crime. A situação total pode ser inteiramente resumida numa fórmula: o objeto foi colocado no lugar do ideal do ego.
            É fácil agora definir a diferença entre a identificação e esse desenvolvimento tão extremo do estado de estar amando que podem ser descritos como ‘fascinação’ ou ‘servidão’. No primeiro caso, o ego enriqueceu-se com as propriedades do objeto, ‘introjetou’ o objeto em si próprio, como Ferenczi [1909] o expressa. No segundo caso, empobreceu-se, entregou-se ao objeto, substituiu o seu constituinte mais importante pelo objeto. Uma consideração mais próxima, contudo, logo esclarece que esse tipo de descrição cria uma ilusão de contradições que não possuem existência real. Economicamente, não se trata de empobrecimento ou enriquecimento; é mesmo possível descrever um caso extremo de estar amando como um estado em que o ego introjetou o objeto em si próprio. Outra distinção talvez esteja mais bem talhada para atender à essência da questão. No caso da identificação, o objeto foi perdido ou abandonado; assim ele é novamente erigido dentro do ego e este efetua uma alteração parcial em si próprio, segundo o modelo do objeto perdido. No outro caso, o objeto é mantido e dá-se uma hipercatexia dele pelo ego e às expensas do ego. Aqui, porém, apresenta-se nova dificuldade. Será inteiramente certo que a identificação pressupõe que a catexia de objeto tenha sido abandonada? Não pode haver identificação enquanto o objeto é mantido? E antes de nos empenharmos numa discussão dessa delicada questão, já poderá estar alvorecendo em nós a percepção de que mais outra alternativa abrange a essência real da questão, ou seja, se o objeto é colocado no lugar do ego ou do ideal do ego.
            Do estado de estar amando à hipnose vai, evidentemente, apenas um curto passo. Os aspectos em que os dois concordam são evidentes. Existe a mesma sujeição humilde, que há para com o objeto amado. Há o mesmo debilitamento da iniciativa própria do sujeito; ninguém pode duvidar que o hipnotizador colocou-se no lugar do ideal do ego. Acontece apenas que tudo é ainda mais claro e mais intenso na hipnose, de maneira que seria mais apropriado explicar o estado de estar amando por meio da hipnose, que fazer o contrário. O hipnotizador constitui o único objeto e não se presta atenção a mais ninguém que não seja ele. O fato de o ego experimentar, de maneira semelhante à do sonho, tudo que o hipnotizador possa pedir ou afirmar, relembra-nos que nos esquecemos de mencionar entre as funções de ideal do ego a tarefa de verificar a realidade das coisas. Não admira que o ego tome uma percepção por real, se a realidade dela é corroborada pela instância mental que ordinariamente desempenha o dever de testar a realidade das coisas. A completa ausência de impulsos que se acham inibidos em seus objetivos sexuais contribui ainda mais para a pureza extrema dos fenômenos. A relação hipnótica é a devoção ilimitada de alguém enamorado, mas excluída a satisfação sexual, ao passo que no caso real de estar amando esta espécie de satisfação é apenas temporariamente refreada e permanece em segundo plano, como um possível objeto para alguma ocasião posterior.
            Por outro lado, porém, também podemos dizer que a relação hipnótica é (se permissível a expressão) uma formação de grupo composta de dois membros. A hipnose não constitui um bom objeto para comparação com uma formação de grupo, porque é mais verdadeiro dizer que ela é idêntica a essa última. Da complicada textura do grupo, ela isola um elemento para nós: o comportamento do indivíduo em relação ao líder. A hipnose é distinguida da formação de grupo por esta limitação de número, tal como se distingue do estado de estar amando pela ausência de inclinações diretamente sexuais. A esse respeito, ocupa uma posição intermediária entre ambos.
            É interessante ver que são precisamente esses impulsos sexuais inibidos em seus objetivos que conseguem tais laços permanentes entre as pessoas. Porém isso pode ser facilmente compreendido pelo fato de não serem capazes de satisfação completa, ao passo que os impulsos sexuais desinibidos em seus objetivos sofrem uma redução extraordinária mediante a descarga de energia, sempre que o objetivo sexual é atingido. É o destino do amor sensual extinguir-se quando se satisfaz; para que possa durar, desde o início tem de estar mesclado com componentes puramente afetuosos - isto é, que se acham inibidos em seus objetivos - ou deve, ele próprio, sofrer uma transformação desse tipo.
            A hipnose solucionaria imediatamente o enigma da constituição libidinal dos grupos, não fosse pelo fato de ela própria apresentar alguns aspectos não atendidos pela explicação racional que dela vimos fornecendo como sendo um estado de estar amando sem as tendências diretamente sexuais. Nela ainda existe muita coisa que devemos reconhecer como inexplicada e misteriosa. A hipnose contém um elemento adicional de paralisia derivado da relação entre alguém com poderes superiores e alguém que está sem poder e desamparado - o que pode facultar uma transição para a hipnose do susto que ocorre nos animais. A maneira pela qual a hipnose é produzida e sua relação com o sono não são claras e o modo enigmático pelo qual algumas pessoas lhe estão sujeitas, enquanto outras lhe resistem completamente, indica algum fator desconhecido nela compreendido que, sozinho, talvez torne possível a pureza das atitudes da libido que ela apresenta. É de notar que, mesmo existindo uma completa submissão sugestiva sob outros aspectos, a consciência moral da pessoa hipnotizada pode apresentar resistência. Porém, é possível que isso se atribua ao fato de que na hipnose, tal como é habitualmente praticada, pode ser mantido um certo conhecimento de que o que está acontecendo seja apenas um jogo, uma reprodução inverídica de outra situação muito mais importante para a vida.
            Após as discussões anteriores, estamos, no entanto, em perfeita posição de fornecer a fórmula para a constituição libidinal dos grupos, ou, pelo menos, de grupos como os que até aqui consideramos, ou seja, aqueles grupos que têm um líder e não puderam, mediante uma ‘organização’ demasiada, adquirir secundariamente as características de um indivíduo. Um grupo primário desse tipo é um certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal do ego e, conseqüentemente, se identificaram uns com os outros em seu ego. Esta condição admite uma representação gráfica.


IX - O INSTINTO GREGÁRIO

            Não podemos desfrutar por muito tempo da ilusão de havermos solucionado o enigma do grupo com essa fórmula. É impossível fugir à lembrança imediata e perturbadora de que tudo que realmente fizemos foi deslocar a questão para o enigma da hipnose, sobre o qual tantos pontos ainda precisam ser esclarecidos. E agora uma outra objeção nos mostra nosso novo caminho.
            Poder-se-ia dizer que os intensos vínculos emocionais que observamos nos grupos, são inteiramente suficientes para explicar uma de suas características: a falta de independência e iniciativa de seus membros, a semelhança nas reações de todos eles, sua redução, por assim dizer, ao nível de indivíduos grupais. Mas, se o considerarmos como um todo, um grupo nos mostra mais que isso. Alguns de seus aspectos - a fraqueza de capacidade intelectual, a falta de controle emocional, a incapacidade de moderação ou adiamento, a inclinação a exceder todos os limites na expressão da emoção e descarregá-la completamente sob a forma de ação - essas e outras características semelhantes tão impressivamente descritas por Le Bon apresentam um quadro inequívoco de regressão da atividade mental a um estágio anterior, como não nos surpreendemos em descobri-la entre os selvagens e as crianças. Uma regressão desse tipo é, particularmente, uma característica essencial dos grupos comuns, ao passo que, como soubemos, nos grupos organizados e artificiais ela pode em grande parte ser controlada.
            Temos assim a impressão de um estado no qual os impulsos emocionais particulares e os atos intelectuais de um indivíduo são fracos demais para chegar a algo por si próprios; para isso dependem inteiramente de serem reforçados por sua igual repetição nos outros membros do grupo. Somos lembrados de quantos desses fenômenos de dependência fazem parte da constituição normal da sociedade humana, de quão pouca originalidade e coragem pessoal podem encontrar-se nela, de quanto cada indivíduo é governado por essas atitudes da mente grupal que se apresentam sob formas tais como características raciais, preconceitos de classe, opinião pública etc. A influência da sugestão torna-se um grande enigma para nós quando admitimos que ela não é exercida apenas pelo líder, mas por cada indivíduo sobre outro indivíduo, e temos de censurar-nos por havermos injustamente enfatizado a relação com o líder e mantido demais em segundo plano o outro fator da sugestão mútua.
            Após esse incentivo à modéstia, ficaremos inclinados a escutar outra voz, que nos promete uma explicação baseada em fundamentos mais simples. Essa voz pode ser encontrada no refletido livro de Trotter sobre o instinto de rebanho ou instinto gregário (1916), com relação ao qual meu único pesar é que ele não escapa inteiramente às antipatias desencadeadas pela recente grande guerra.
            Trotter deriva os fenômenos mentais, descritos como ocorrentes nos grupos, de um instinto gregário (‘gregariousness’, gregarismo) inato aos seres humanos, tal como a outras espécies de animais. Biologicamente, diz ele, esse gregarismo constitui uma analogia à multicelularidade, sendo, por assim dizer, uma continuação dela. (Em termos da teoria da libido, trata-se de uma outra manifestação da tendência proveniente da libido e sentida por todos os seres vivos da mesma espécie, a combinar-se em unidades cada vez mais abrangentes. Se está sozinho, o indivíduo sente-se incompleto. O medo apresentado pelas crianças pequenas já pareceria ser uma expressão desse instinto gregário. A oposição à grei é tão boa quanto a separação dela, sendo assim ansiosamente evitada. Mas a grei se afasta de tudo que é novo ou fora do comum. O instinto gregário pareceria ser algo primário, something which cannot be split up (algo que não pode ser dividido).
            Trotter põe na relação de instintos que considera primários os da autopreservação, nutrição, sexo e gregário. O último freqüentemente entra em oposição com os outros. Os sentimentos de culpa e de dever são possessões peculiares de um animal gregário. Trotter também deriva do instinto gregário as forças repressivas que a psicanálise demonstrou existirem no ego, e deriva da mesma fonte, por conseguinte, as resistências com que o médico se defronta no tratamento psicanalítico. A fala deve sua importância à aptidão para o entendimento mútuo na grei, sendo nela que a identificação mútua dos indivíduos repousa em grande parte.
            Enquanto Le Bon preocupa-se com as formações grupais passageiras típicas e McDougall com as associações estáveis, Trotter escolheu como centro de seu interesse a forma mais generalizada de reunião em que o homem, esse , passa sua vida e nos fornece sua base psicológica. Mas Trotter não vê necessidade de remontar à origem do instinto gregário, por caracterizá-lo como primário e não mais redutível. A tentativa de Boris Sidis, a que se refere, de buscar a origem do instinto gregário na sugestionabilidade é afortunadamente supérflua, até onde lhe concerne; trata-se de uma explicação de tipo familiar e insatisfatório, e a proposição inversa de que a sugestionabilidade é um derivado do instinto gregário, me pareceria lançar muito mais luz sobre o assunto.
            A exposição de Trotter, porém, está aberta, com mais justiça ainda que as outras, à objeção de levar muito pouco em conta o papel do líder num grupo, ao passo que nos inclinamos, antes, para o juízo oposto, ou seja, de que é impossível apreender a natureza de um grupo se se desprezar o líder. O instinto de grei não deixa lugar algum para o líder; ele é simplesmente arremessado junto com a multidão, quase que fortuitamente; daí decorre também que nenhum caminho conduz desse instinto à necessidade de um Deus; o rebanho está sem pastor. Mas, além disso, a exposição de Trotter pode ser psicologicamente solapada, isto é, pode-se tornar pelo menos provável que o instinto gregário não seja irredutível, que não seja primário no mesmo sentido que o são o instinto de autopreservação e o instinto sexual.
            Naturalmente, não é fácil a tarefa de traçar a ontogênese do instinto gregário. O medo mostrado pelas crianças pequenas quando são deixadas sozinhas, e que Trotter alega constituir já uma manifestação do instinto, no entanto sugere mais facilmente uma outra interpretação. O medo relaciona-se à mãe da criança e, posteriormente, a outras pessoas familiares, sendo a expressão de um desejo irrealizado, que a criança ainda não sabe tratar de outra maneira, exceto transformando-o em ansiedade. O medo da criança, quando está sozinha, tampouco é apaziguado pela visão de qualquer fortuito ‘membro da grei’; pelo contrário, é criado pela aproximação de um ‘estranho’ desse tipo. Assim, durante longo tempo nada na natureza de um instinto gregário ou sentimento de grupo pode ser observado nas crianças. Algo semelhante a ele primeiro se desenvolve, num quarto de crianças com muitas crianças, fora das relações dos filhos com os pais, e assim sucede como uma reação à inveja inicial com que a criança mais velha recebe a mais nova. O filho mais velho certamente gostaria de ciumentamente pôr de lado seu sucessor, mantê-lo afastado dos pais e despojá-lo de todos os seus privilégios; mas, à vista de essa criança mais nova (como todas as que virão depois) ser amada pelos pais tanto quanto ele próprio, e em conseqüência da impossibilidade de manter sua atitude hostil sem prejudicar-se a si próprio, aquele é forçado a identificar-se com as outras crianças. Assim, no grupo de crianças desenvolve-se um sentimento comunal ou de grupo, que é ainda mais desenvolvido na escola. A primeira exigência feita por essa formação reativa é de justiça, de tratamento igual para todos. Todos sabemos do modo ruidoso e implacável como essa reivindicação é apresentada na escola. Se nós mesmos não podemos ser os favoritos, pelo menos ninguém mais o será. Essa transformação, ou seja, a substituição do ciúme por um sentimento grupal no quarto das crianças e na sala de aula, poderia ser considerada improvável, se mais tarde o mesmo processo não pudesse ser de novo observado em outras circunstâncias. Basta-nos pensar no grupo de mulheres e moças, todas elas apaixonadas de forma entusiasticamente sentimental, que se aglomeram em torno de um cantor ou pianista após a sua apresentação. Certamente seria fácil para cada uma delas ter ciúmes das outras; porém, diante de seu número e da conseqüente impossibilidade de alcançarem o objetivo de seu amor, renunciam a ele e, em vez de uma puxar os cabelos da outra, atuam como um grupo unido, prestam homenagem ao herói da ocasião com suas ações comuns e provavelmente ficariam contentes em ficar com um pedaço das esvoaçantes madeixas dele. Originariamente rivais, conseguiram identificar-se umas com as outras por meio de um amor semelhante pelo mesmo objeto. Quando, como de hábito, uma situação instintual é capaz de resultados diversos, não nos surpreenderá que o resultado real seja algum que traga consigo a possibilidade de uma certa quantidade de satisfação, ao passo que um outro resultado, mais óbvio em si, seja desprezado, já que as circunstâncias da vida impedem que ele conduza àquela satisfação.
            O que posteriormente aparece na sociedade sob a forma de Gemeingeist, esprit de corps, ‘espírito de grupo’ etc. não desmente a sua derivação do que foi originalmente inveja. Ninguém deve querer salientar-se, todos devem ser o mesmo e ter o mesmo. A justiça social significa que nos negamos muitas coisas a fim de que os outros tenham de passar sem elas, também, ou, o que dá no mesmo, não possam pedi-las. Essa exigência de igualdade é a raiz da consciência social e do senso de dever. Revela-se inesperadamente no pavor que tem o sifilítico de contagiar outras pessoas, coisa que a psicanálise nos ensinou a compreender. O pavor demonstrado por esses pobres infelizes corresponde às suas violentas lutas contra o desejo inconsciente de propagar sua infecção a outros; por que razão apenas eles deveriam ser infectados e apartados de tantas coisas? Por que também não os outros? E o mesmo princípio pode-se encontrar na apropriada história do julgamento de Salomão. Se o filho de uma mulher morreu, a outra tampouco deverá ter um filho, e a mulher despojada é identificada por esse desejo.
            O sentimento social, assim, se baseia na inversão daquilo que a princípio constituiu um sentimento hostil em uma ligação da tonalidade positiva, da natureza de uma identificação. Na medida em que, até aqui, pudemos acompanhar o curso dos acontecimentos, essa inversão parece ocorrer sob a influência de um vínculo afetuoso comum com uma pessoa fora do grupo. Nós próprios não encaramos nossa análise da identificação como exaustiva, mas, para nosso presente objetivo, basta que retrocedamos a esta característica determinada: sua exigência de que o igualamento seja sistematicamente realizado. Já aprendemos do exame de dois grupos artificiais, a Igreja e o exército que sua premissa necessária é que todos os membros sejam amados da mesma maneira por uma só pessoa, o líder. Não nos esqueçamos, contudo, de que a exigência de igualdade num grupo aplica-se apenas aos membros e não ao líder. Todos os membros devem ser iguais uns aos outros, mas todos querem ser dirigidos por uma só pessoa. Muitos iguais, que podem identificar-se uns com os outros, e uma pessoa isolada, superior a todos eles: essa é a situação que vemos realizada nos grupos capazes de subsistir. Ousemos, então, corrigir o pronunciamento de Trotter de que o homem é um animal gregário, e asseverar ser ele de preferência um animal de horda, uma criatura individual numa horda conduzida por um chefe.
           
      X - O GRUPO E A HORDA PRIMEVA

            Em 1912 concordei com uma conjectura de Darwin, segundo a qual a forma primitiva da sociedade humana era uma horda governada despoticamente por um macho poderoso. Tentei demonstrar que os destinos dessa horda deixaram traços indestrutíveis na história da descendência humana e, especialmente, que o desenvolvimento do totemismo, que abrange em si os primórdios da religião, da moralidade e da organização social, está ligado ao assassinato do chefe pela violência e à transformação da horda paterna em uma comunidade de irmãos. Para dizer a verdade, isso constitui apenas uma hipótese, como tantas outras com que os arqueólogos se esforçam por iluminar as trevas dos tempos pré-históricos, uma ‘estória mais ou menos’, como foi divertidamente chamada por um crítico inglês sem maldade; porém essa hipótese para mim tem mérito se se mostrar capaz de trazer coerência e compreensão a um número cada vez maior de novas regiões.
            Os grupos humanos apresentam mais uma vez o quadro familiar de um indivíduo de força superior em meio a um bando de companheiros iguais, quadro que também é abarcado em nossa idéia da horda primeva. A psicologia de um grupo assim, como a conhecemos a partir das descrições a que com tanta freqüência nos referimos, o definhamento da personalidade individual consciente, a focalização de pensamentos e sentimentos numa direção comum, a predominância do lado afetivo da mente e da vida psíquica inconsciente, a tendência à execução imediata das intenções tão logo ocorram: tudo isso corresponde a um estado de regressão a uma atividade mental primitiva, exatamente da espécie que estaríamos inclinados a atribuir à horda primeva.
            Assim, o grupo nos aparece como uma revivescência da horda primeva. Do mesmo modo como o homem primitivo sobrevive potencialmente em cada indivíduo, a horda primeva pode mais uma vez surgir de qualquer reunião fortuita; na medida em que os homens se acham habitualmente sob a influência da formação de grupo, reconhecemos nela a sobrevivência da horda primeva. Temos de concluir que a psicologia dos grupos é a mais antiga psicologia humana; o que isolamos como psicologia individual, desprezando todos os traços do grupo, só depois veio a ser notório a partir da velha psicologia de grupo, através de um processo gradual, que talvez possa, ainda, ser descrito como incompleto. Posteriormente nos arriscaremos à tentativa de especificar o ponto de partida desse desenvolvimento. [Ver em [1] e segs.]
            Uma reflexão mais demorada irá demonstrar-nos sob que aspecto essa afirmativa exige uma correção. A psicologia individual, pelo contrário, deve ser tão antiga quanto a psicologia de grupo, porque, desde o princípio, houve dois tipos de psicologia, a dos membros individuais do grupo e a do pai, chefe ou líder. Os membros do grupo achavam-se sujeitos a vínculos, tais como os que percebemos atualmente; o pai da horda primeva, porém, era livre. Os atos intelectuais deste eram fortes e independentes, mesmo no isolamento, e sua vontade não necessitava do reforço de outros. A congruência leva-nos a presumir que seu ego possuía poucos vínculos libidinais; ele não amava ninguém, a não ser a si próprio, ou a outras pessoas, na medida em que atendiam às suas necessidades. Aos objetos, seu ego não dava mais que o estritamente necessário.
            Ele, no próprio início da história da humanidade, era o ‘super-homem’ que Nietzsche somente esperava do futuro. Ainda hoje os membros de um grupo permanecem na necessidade da ilusão de serem igual e justamente amados por seu líder; ele próprio, porém, não necessita amar ninguém mais, pode ser de uma natureza dominadora, absolutamente narcisista, autoconfiante e independente. Sabemos que o amor impõe um freio ao narcisismo, e seria possível demonstrar como, agindo dessa maneira, ele se tornou um fator de civilização.
            O pai primevo da horda não era ainda imortal, como posteriormente veio a ser, pela deificação. Se morria, tinha de ser substituído; seu lugar era provavelmente tomado por um filho mais jovem, que até então fora um membro do grupo, como qualquer outro. Deve existir, portanto, uma possibilidade de transformar a psicologia de grupo em psicologia individual; há que descobrir uma condição sob a qual tal transformação seja facilmente realizada, como é possível às abelhas transformarem, em caso de necessidade, uma larva numa rainha em lugar de uma operária. Pode-se imaginar apenas uma possibilidade: o pai primevo impedira os filhos de satisfazer seus impulsos diretamente sexuais; forçara-os à abstinência e, conseqüentemente, aos laços emocionais com ele e uns com os outros, que poderiam surgir daqueles de seus impulsos antes inibidos em seu objetivo sexual. Ele os forçara, por assim dizer, à psicologia de grupo. Seu ciúme e intolerância sexual tornaram-se, em última análise, as causas da psicologia de grupo.
            Quem quer que se haja tornado seu sucessor recebeu também a possibilidade de satisfação sexual e, por esse meio, lhe foi dada uma saída para as condições de psicologia de grupo. A fixação da libido na mulher e a possibilidade de satisfação sem qualquer necessidade de adiamento ou acúmulo puseram fim à importância daqueles entre seus impulsos sexuais que se achavam inibidos em seu objetivo, e permitiram ao seu narcisismo elevar-se sempre, até chegar a seu apogeu total. Retornaremos, em um pós-escrito [ver em [1] e segs.] a essa conexão entre amor e formação do caráter.
            A seguir, como algo especialmente instrutivo, podemos dar ênfase à relação que existe entre o ardil pelo qual um grupo artificial se mantém unido, e a constituição da horda primeva. Vimos que, com o exército e a Igreja, esse artifício é a ilusão de que o líder ama todos os indivíduos de modo igual e justo. Mas isso constitui apenas uma remodelação idealística do estado de coisas na horda primeva, onde todos os filhos sabiam que eram igualmente perseguidos pelo pai primevo e o temiam igualmente. Essa mesma remoldagem sobre a qual todos os deveres sociais se erguem, já se acha pressuposta pela forma seguinte da sociedade humana, o clã totêmico. A força indestrutível da família como formação natural de grupo reside no fato de que essa pressuposição necessária do amor igual do pai pode ter uma aplicação real na família.
            Nós, todavia, esperamos mais ainda dessa derivação do grupo a partir da horda primeva. Ela deveria também ajudar-nos a entender o que ainda é incompreensível e misterioso nas formações de grupo, tudo o que jaz escondido por trás das enigmáticas palavras ‘hipnose’ e ‘sugestão’. E acho que isso também pode ser bem-sucedido. Relembremos que nela a hipnose tem algo de positivamente misterioso, mas a característica de mistério sugere algo de antigo e familiar que experimentou uma repressão. Consideremos como a hipnose é induzida. O hipnotizador afirma que se acha de posse de um poder misterioso que despoja o sujeito de sua própria vontade ou, o que é a mesma coisa, o sujeito crê nisso. Esse poder misterioso (que ainda hoje é muitas vezes popularmente descrito como ‘magnetismo animal’) deve ser o mesmo poder encarado pelos povos primitivos como a fonte do tabu, o mesmo poder emanante dos rei e chefes de tribo e que torna perigoso o aproximar-se deles (mana). Imagina-se, então, que o hipnotizador esteja na posse desse poder. E como o manifesta? Dizendo ao sujeito para olhá-lo nos olhos: seu método mais típico de hipnotização é pelo olhar. Mas é precisamente a visão do chefe que é perigosa e insuportável para os povos primitivos, tal como, mais tarde, a da Divindade é para os mortais. O próprio Moisés teve de agir como intermediário entre seu povo e Javé, de vez que o povo não poderia suportar a visão divina, e quando retornou da presença de Deus seu rosto resplandecia: um pouco do mana lhe havia sido comunicado, tal como acontece com o intermediário entre os povos primitivos.
            É verdade que também se pode evocar a hipnose por outras maneiras, como, por exemplo, fixando os olhos sobre um objeto brilhante ou escutando um som monótono. Isso pode equivocar e já ocasionou teorias fisiológicas inapropriadas. Na realidade, esses procedimentos servem apenas para desviar a atenção consciente e mantê-la retida. A situação seria a mesma, se o hipnotizador houvesse dito ao sujeito: ‘Agora, preocupe-se exclusivamente com a minha pessoa; o resto do mundo é totalmente desinteressante.’ Naturalmente, seria tecnicamente desaconselhável a um hipnotizador fazer tal declaração; ela arrancaria o sujeito de sua atitude inconsciente e o estimularia a uma oposição consciente. O hipnotizador evita dirigir os pensamentos conscientes do sujeito para suas próprias intenções e faz a pessoa com quem realiza a experiência mergulhar numa atividade na qual o mundo está fadado a parecer-lhe desinteressante. Ao mesmo tempo, porém, o sujeito está, na realidade, concentrando inconscientemente toda a sua atenção no hipnotizador e entrando numa atitude de rapport, de transferência, para com ele. Assim, os métodos indiretos de hipnotizar, iguais a muitos procedimentos técnicos utilizados para fazer chistes, têm o efeito de controlar certas distribuições de energia mental que interfeririam com o curso dos acontecimentos no inconsciente, e acabam por levar ao mesmo resultado que os métodos diretos de influência através do olhar fixo ou das batidas.
            Ferenczi [1909] realizou a descoberta real de que, quando o hipnotizador dá a ordem para dormir, o que com freqüência se faz no começo da hipnose, ele está se colocando no lugar dos pais do sujeito. Pensa ele que dois tipos de hipnotismo devem ser distinguidos: um persuasor e tranqüilizador, segundo ele modelado na mãe, e um outro ameaçador, que deriva do pai. Ora, na hipnose a ordem para dormir significa, nem mais nem menos, uma ordem para afastar do mundo todo o interesse e concentrá-lo na pessoa do hipnotizador. E ela é assim entendida pelo sujeito, pois nessa retração de interesse do mundo externo reside a característica psicológica do sono e nela se baseia o parentesco entre este e o estado de hipnose.
            Pelas medidas que toma, o hipnotizador desperta no sujeito uma parte de sua herança arcaica que também o tornara submisso aos genitores e experimentara uma reanimação individual em sua relação com o pai; o que é assim despertado é a idéia de uma personalidade predominante e perigosa, para com quem só é possível ter uma atitude passivo-masoquista, a quem se tem de entregar a própria vontade, ao passo que estar com ele, ‘olhá-lo no rosto’, parece ser um empreendimento arriscado. Só de uma outra maneira semelhante podemos representar a relação do membro individual da horda primeva com o pai primevo. Como sabemos de outras reações, os indivíduos preservaram um grau variável de aptidão pessoal para reviver velhas situações desse tipo. Um certo conhecimento de que, apesar de tudo, a hipnose é apenas um jogo, uma renovação enganadora dessas antigas impressões, pode contudo remanescer e cuidar para que haja uma resistência contra quaisquer conseqüências demasiado sérias da suspensão da vontade na hipnose.
            As características misteriosas e coercivas das formações grupais, presentes nos fenômenos de sugestão que as acompanham, podem assim, com justiça, ser remontadas à sua origem na horda primeva. O líder do grupo ainda é o temido pai primevo; o grupo ainda deseja ser governado pela força irrestrita e possui uma paixão extrema pela autoridade; na expressão de Le Bon, tem sede de obediência. O pai primevo é o ideal do grupo, que dirige o ego no lugar do ideal do ego. A hipnose bem pode reivindicar sua descrição como um grupo de dois. Aqui fica como definição para a sugestão: uma convicção que não está baseada na percepção e no raciocínio, mas em um vínculo erótico.

XI - UMA GRADAÇÃO DIFERENCIADORA NO EGO

            Se examinarmos a vida de um homem de hoje como indivíduo, tendo em mente as descrições mutuamente complementares da psicologia de grupo fornecidas pelas autoridades, pode ser que, diante das complicações reveladas, percamos a coragem de tentar uma exposição abrangente. Cada indivíduo é uma parte componente de numerosos grupos, acha-se ligado por vínculos de identificação em muitos sentidos e construiu seu ideal do ego segundo os modelos mais variados. Cada indivíduo, portanto, partilha de numerosas mentes grupais - as de sua raça, classe, credo, nacionalidade etc. - podendo também elevar-se sobre elas, na medida em que possui um fragmento de independência e originalidade. Essas formações grupais estáveis e duradouras, com seus efeitos constantes e uniformes, são menos notáveis para um observador que os grupos rapidamente formados e transitórios a partir dos quais Le Bon traçou seu brilhante esboço psicológico do caráter da mente grupal. E é exatamente nesses ruidosos grupos efêmeros, superpostos uns aos outros, por assim dizer, que encontramos o prodígio do desaparecimento completo, embora apenas temporário, exatamente daquilo que identificamos como aquisições individuais.
            Interpretamos esse prodígio com a significação de que o indivíduo abandona seu ideal do ego e o substitui pelo ideal do grupo, tal como é corporificado no líder. E temos de acrescentar, a título de correção, que o prodígio não é igualmente grande em todos os casos. Em muitos indivíduos, a separação entre o ego e o ideal do ego não se acha muito avançada e os dois ainda coincidem facilmente; o ego amiúde preservou sua primitiva autocomplacência narcisista. A seleção do líder é muitíssimo facilitada por essa circunstância. Com freqüência precisa apenas possuir as qualidades típicas dos indivíduos interessados sob uma forma pura, clara e particularmente acentuada, necessitando somente fornecer uma impressão de maior força e de mais liberdade de libido. Nesse caso, a necessidade de um chefe forte freqüentemente o encontrará a meio caminho, e o investirá de uma predominância que de outro modo talvez não pudesse reivindicar. Os outros membros do grupo, cujo ideal do ego, salvo isso, não se haveria corporificado em sua pessoa sem alguma correção, são então arrastados com os demais por ‘sugestão’, isto é, por meio da identificação.
            Estamos cientes de que aquilo com que pudemos contribuir para a explicação da estrutura libidinal dos grupos, reconduz à distinção entre o ego e o ideal do ego e à dupla espécie de vínculo que isso possibilita: a identificação e a colocação do objeto no lugar do ideal do ego. A pressuposição dessa espécie de gradação diferenciadora no ego como um primeiro passo para a análise do ego deve gradualmente estabelecer sua justificativa nas quais diversas regiões da psicologia. Em meu artigo sobre narcisismo [1914c], reuni todo o material patológico que na ocasião podia ser utilizado em apoio dessa diferenciação. Contudo, podemos esperar que, ao penetrarmos mais profundamente na psicologia das psicoses, descobriremos que sua significação é muito maior. Reflitamos que o ego ingressa agora na relação de um objeto para com o ideal do ego, dele desenvolvido, e que a ação recíproca total entre um objeto externo e o ego como um todo, com que nosso estudo das neuroses nos familiarizou, deve possivelmente repetir-se nessa nova cena de ação dentro do ego.
            Nesse ponto acompanharei apenas uma das conseqüências que, partindo desse enfoque, parecem possíveis retomando assim o debate de um problema que fui obrigado a deixar, noutra parte, sem solução.Cada uma das diferenciações mentais com que nos familiarizamos, representa um novo agravamento das dificuldades de funcionamento mental, aumenta a sua instabilidade, podendo tornar-se o ponto de partida para a sua desintegração, isto é, para o desencadeamento de uma doença. Assim, com o nascimento, demos o primeiro passo de um narcisismo absolutamente auto-suficiente para a percepção de um mundo externo cambiante e para os primórdios da descoberta dos objetos. A isso está associado o fato de não podermos suportar o novo estado de coisas por muito tempo, de periodicamente dele revertermos, no sono, à nossa anterior condição de ausência de estimulação e fuga de objetos. É verdade, contudo, que nisto estamos seguindo uma sugestão do mundo externo que, através da mudança periódica do dia e da noite, afasta temporariamente a maior parte dos estímulos que nos influenciam. O segundo exemplo de um tal passo, patologicamente mais importante, não está sujeito a essa restrição. No curso de nossa evolução, efetuamos uma separação de nossa existência mental em um ego coerente e em uma parte inconsciente e reprimida que é deixada fora dele; ficamos sabendo que a estabilidade dessa nova aquisição se acha exposta a abalos constantes. Nos sonhos e neuroses, o que é assim excluído bate aos portões em busca de admissão, guardados não obstante pelas resistências, e em nossa saúde desperta fazemos uso de artifícios especiais para permitir que o que está reprimido contorne as resistências e o recebamos temporariamente em nosso ego, para aumento de nosso prazer. Os chistes e o humor e, até certo ponto, o cômico em geral, podem ser encarados sob esta luz. Qualquer um que esteja familiarizado com a psicologia das neuroses pensará em exemplos semelhantes de menor importância, mas apresso-me à aplicação do que tenho em vista.
            É inteiramente concebível que a separação do ideal do ego do próprio ego não pode ser mantida por muito tempo, tendo de ser temporariamente desfeita. Em todas as renúncias e limitações impostas ao ego, uma infração periódica da proibição é a regra. Isso, na realidade, é demonstrado pela instituição dos festivais, que, na origem, nada mais eram do que excessos previstos em lei e que devem seu caráter alegre ao alívio que proporcionam. As saturnais dos romanos e o nosso moderno carnaval concordam nessa característica essencial com os festivais dos povos primitivos, que habitualmente terminam com deboches de toda espécie e com a transgressão daquilo que, noutras ocasiões, constituem os mandamentos mais sagrados. Mas o ideal do ego abrange a soma de todas as limitações a que o ego deve aquiescer e, por essa razão, a revogação do ideal constituiria necessariamente um magnífico festival para o ego, que mais uma vez poderia então sentir-se satisfeito consigo próprio.
            Há sempre uma sensação de triunfo quando algo no ego coincide com o ideal do ego. E o sentimento de culpa (bem como o de inferioridade) também pode ser entendido como uma expressão da tensão entre o ego e o ideal do ego.
            Sabe-se bem que existem pessoas cujo colorido geral do estado de ânimo oscila periodicamente de uma depressão excessiva, atravessando algum tipo de estado intermediário, a uma sensação exaltada de bem-estar. Essas oscilações aparecem em graus de amplitude muito diferentes, desde o que é apenas observável até exemplos extremos tais que, sob a forma de melancolia e mania, empreendem as mais perturbadoras ou atormentadoras incursões na vida da pessoa interessada. Nos casos típicos dessa depressão cíclica, as causas precipitantes externas não parecem desempenhar qualquer papel decisivo; quanto aos motivos internos, nesses pacientes, não se encontra nada a mais, ou nada mais, do que em todos os outros. Conseqüentemente, tornou-se costume considerar esses casos como não sendo psicogênicos. Dentro em pouco nos referiremos àqueles outros casos exatamente semelhantes de depressão cíclica que podem ser facilmente remontados a traumas mentais.
            Os fundamentos dessas oscilações espontâneas de estado de ânimo são, assim, desconhecidos. Falta-nos compreensão do mecanismo do deslocamento de uma melancolia realizado por uma mania, de modo que nos achamos livres para supor que esses pacientes sejam pessoas em quem nossa conjectura poderia encontrar uma aplicação real: seu ideal do ego poderia ter-se temporariamente convertido no ego, após havê-lo anteriormente governado com especial rigidez.
            Atenhamo-nos ao que é claro: com base em nossa análise do ego, não se pode duvidar que, nos casos de mania, o ego e o ideal do ego se fundiram, de maneira que a pessoa, em estado de ânimo de triunfo e auto-satisfação, imperturbada por nenhuma autocrítica, pode desfrutar a abolição de suas inibições, sentimentos de consideração pelos outros e autocensuras. Não é tão óbvio, não obstante muito provável, que o sofrimento do melancólico seja a expressão de um agudo conflito entre as duas instâncias de seu ego, conflito em que o ideal, em excesso de sensitividade, incansavelmente exibe sua condenação do ego com delírios de inferioridade e com autodepreciação. A única questão é se devemos procurar as causas dessas relações alteradas entre o ego e o ideal do ego nas rebeliões periódicas, que acima postulamos, contra a nova instituição, ou se devemos responsabilizar por elas outras circunstâncias.
            Uma mudança para a mania não constitui característica indispensável da sintomatologia da depressão melancólica. Existem melancolias simples - umas em crises isoladas, outras em crises recorrentes - que nunca apresentam essa evolução.
            Por outro lado, há melancolias em que a causa precipitadora desempenha claramente um papel etiológico. São aquelas que ocorrem após a perda de um objeto amado, seja pela morte, seja por efeito de circunstâncias que tornaram necessária a retirada da libido do objeto. Uma melancolia psicogênica desse tipo pode terminar em mania e o ciclo repetir-se diversas vezes, tão facilmente como num caso que parece ser espontâneo. Assim, o estado de coisas é um tanto obscuro, especialmente porque só poucas formas e casos de melancolia foram submetidos à investigação psicanalítica. Até aqui, compreendemos somente casos em que o objeto é abandonado porque demonstrou ser indigno de amor. Ele é, então, novamente erigido dentro do ego, mediante identificação, e severamente condenado pelo ideal do ego. As censuras e ataques dirigidos ao objeto vêm à luz sob a forma de autocensuras melancólicas.
            Uma melancolia desse tipo, além disso, pode acabar em uma mudança para a mania, de sorte que a possibilidade de isso acontecer representa uma característica que independe das outras características do quadro clínico.
            Não obstante, não vejo dificuldade em atribuir ao fato da rebelião periódica do ego contra o ideal do ego uma cota em ambos os tipos de melancolia, tanto o psicogênico quanto o espontâneo. No espontâneo, pode-se supor que o ideal do ego está inclinado a apresentar uma rigidez peculiar, que então resulta automaticamente em sua suspensão temporária. No tipo psicogênico, o ego seria incitado à rebelião pelo mau tratamento por parte de seu ideal, mau tratamento que ele encontra quando houve uma identificação com um objeto rejeitado.
           
XII - PÓS-ESCRITO

            No decorrer da indagação que acabou de ser levada a um final provisório, encontramos um certo número de caminhos laterais que evitamos seguir em primeiro lugar, mas nos quais existia muita coisa oferecendo-nos promessas de compreensão. Propomo-nos agora considerar alguns desses pontos que, assim, foram deixados de lado.

            A.A distinção entre a identificação do ego com um objeto e a substituição do ideal do ego por um objeto encontra uma ilustração interessante nos dois grandes grupos artificiais que começamos por estudar, o exército e a Igreja cristã.
            É óbvio que um soldado toma o seu superior, que é, na realidade, o líder do exército, como seu ideal, enquanto se identifica com os seus iguais e deriva dessa comunidade de seus egos as obrigações de prestar ajuda mútua e partilhar das posses que o companheirismo implica. Mas, se tenta identificar-se com o general, torna-se ridículo. O soldado em Wallensteins Lager ri do sargento por essa mesma razão:

Wie er räuspert und wie er spuckt,
Das habt ihr ihm glücklich abgeguckt!

            É diferente na Igreja católica. Todo cristão ama Cristo como seu ideal e sente-se unido a todos os outros cristãos pelo vínculo da identificação. Mas a Igreja exige mais dele. Tem também de identificar-se com Cristo e amar todos os outros cristãos como Cristo os amou. Em ambos os pontos, portanto, a Igreja exige que a posição da libido fornecida pela formação grupal seja suplementada. Há que acrescentar a identificação ali onde a escolha objetal já se realizou, e o amor objetal onde há identificação. Esse acréscimo, evidentemente, vai além da constituição do grupo. Pode-se ser um bom cristão e, contudo, estar distante da idéia de se pôr no lugar de Cristo e ter, como ele, um amor abrangente pela humanidade. Não precisamos nos sentir capazes, fracos mortais que somos, da grandeza de alma e da força de amor do Salvador. Porém, esse novo desenvolvimento na distribuição da libido no grupo constitui provavelmente o fator sobre o qual o cristianismo baseia sua alegação de haver atingido um nível ético mais elevado.

            B.Dissemos que seria possível especificar o ponto do desenvolvimento mental da humanidade em que a passagem da psicologia de grupo para a psicologia individual foi alcançada também pelos membros do grupo [ver em [1]].
            Para esse fim, devemos retornar por um momento ao mito científico do pai da horda primeva. Ele foi posteriormente exaltado como criador do mundo, e com justiça, porque produzira todos os filhos que compuseram o primeiro grupo. Era o ideal de cada um deles, ao mesmo tempo temido e honrado, o que conduziu mais tarde à idéia do tabu. Esses numerosos indivíduos acabaram por se agrupar, mataram-no e despedaçaram-no. Ninguém do grupo de vitoriosos podia tomar o seu lugar, ou, se algum o fez, retomaram-se os combates, até compreenderem que deviam todos renunciar à herança do pai. Formaram então a comunidade totêmica de irmãos, todos com direitos iguais e unidos pelas proibições totêmicas que se destinavam a preservar e a expiar a lembrança do assassinato. No entanto, a insatisfação com o que fora conseguido ainda permanecia e tornou-se fonte de novos desfechos. As pessoas que estavam unidas nesse grupo de irmãos gradualmente chegaram a uma revivescência do antigo estado de coisas, em novo nível. O macho tornou-se mais uma vez o chefe de uma família e destruiu as prerrogativas da ginecocracia que se estabelecera durante o período em que não havia pai. Em compensação, ele, nessa ocasião, pode ter reconhecido as divindades maternas, cujos sacerdotes eram castrados para a proteção da mãe, segundo o exemplo que fora fornecido pelo pai da horda primeva. Contudo, a nova família era apenas uma sombra da antiga; havia um grande número de pais e cada um deles era limitado pelos direitos dos outros.
            Foi então que talvez algum indivíduo, na urgência de seu anseio, tenha sido levado a libertar-se do grupo e a assumir o papel do pai. Quem conseguiu isso foi o primeiro poeta épico e o progresso foi obtido em sua imaginação. Esse poeta disfarçou a verdade com mentiras consoantes com seu anseio: inventou o mito heróico. O herói era um homem que, sozinho, havia matado o pai - o pai que ainda aparecia no mito como um monstro totêmico. Como o pai fora o primeiro ideal do menino, também no herói que aspira ao lugar do pai o poeta criava agora o primeiro ideal do ego. A transição para o herói foi provavelmente fornecida pelo filho mais moço, o favorito da mãe, filho que ela protegera do ciúme paterno e que, na época da horda primeva, fora o sucessor do pai. Nas mentirosas fantasias poéticas dos tempos pré-históricos, a mulher, que constituíra o prêmio do combate e a tentação para o assassinato, foi provavelmente transformada na sedutora e na instigadora ativa do crime.
            O herói reivindica haver agido sozinho na realização da façanha, à qual certamente só a horda como um todo ter-se-ia aventurado. Porém, como Rank observou, os contos de fadas preservaram traços claros dos fatos que foram desmentidos, porque neles amiúde descobrimos que o herói, tendo de realizar alguma tarefa difícil (geralmente o filho mais novo e não poucas vezes um filho que se fez passar, perante o substituto paterno, por estúpido, isto é, inofensivo), só pode, ele próprio, realizar sua missão com a ajuda de uma multidão de animais pequenos, tais como abelhas ou formigas. Esses seriam os irmãos da horda primeva, da mesma forma que no simbolismo onírico insetos ou animais nocivos significam irmãos e irmãs (considerados desprezivelmente como bebês). Ademais, todas as tarefas dos mitos e contos de fadas são facilmente reconhecíveis como sucedâneos do feito heróico.
            Assim, o mito é o passo com o qual o indivíduo emerge da psicologia de grupo. O primeiro mito foi certamente o psicológico, o mito do herói; o mito explicativo da natureza deve tê-lo seguido muito depois. O poeta que dera esse passo, com isso libertando-se do grupo em sua imaginação, é, não obstante (como Rank observa ainda), capaz de encontrar seu caminho de volta ao grupo na realidade - porque ele vai e relata ao grupo as façanhas do herói, as quais inventou. No fundo, esse herói não é outro senão ele próprio. Assim, desce ao nível da realidade e eleva seus ouvintes ao nível da imaginação. Seus ouvintes, porém, entendem o poeta e, em virtude de terem a mesma relação de anseio pelo pai primevo, podem identificar-se com o herói.
            A mentira do mito heróico culmina pela deificação do herói. Talvez o herói deificado possa ter sido mais antigo que o Deus Pai e precursor do retorno do pai primevo como deidade. A série dos deuses, então, seria cronologicamente esta: Deusa Mãe - Herói - Deus Pai. Mas só com a elevação do pai primevo nunca esquecido a divindade adquire as características que ainda hoje nela identificamos.

            C.Muito se disse, neste artigo, sobre instintos diretamente sexuais e instintos inibidos em seus objetivos, podendo-se esperar que essa distinção não experimente demasiada resistência. Um estudo pormenorizado da questão, contudo, não ficará deslocado, ainda que apenas repita o que, em grande parte, já foi dito antes.
            O desenvolvimento da libido nas crianças familiarizou-nos com o primeiro, mas também o melhor, exemplo de instintos sexuais inibidos em seus objetivos. Todos os sentimentos que uma criança tem para com os pais e para com aqueles que cuidam dela transformam-se, por uma fácil transição, em desejos que dão expressão aos impulsos sexuais da criança. Ela reivindica desses objetos de seu amor todos os sinais de afeição que conhece; quer beijá-los, tocá-los e olhá-los; tem curiosidade de ver seus órgãos genitais e estar com eles quando realizam suas funções excretórias íntimas; promete casar-se com a mãe ou com a babá, não importa o que entenda por casamento; propõe-se a si mesma ter um filho do pai etc. A observação direta, bem como a subseqüente investigação analítica dos resíduos da infância, não deixa dúvidas quanto à completa fusão de sentimentos ternos e ciumentos e de intenções sexuais, mostrando-nos de que maneira fundamental a criança faz da pessoa que ama o objeto de todas as suas tendências sexuais, ainda não corretamente centradas.
            Essa primeira configuração do amor da criança, que nos casos típicos toma a forma do complexo de Édipo, sucumbe, tanto quanto sabemos a partir do começo do período de latência, a uma onda de repressão. O que resta dela apresenta-se como um laço emocional puramente afetuoso, referente às mesmas pessoas; porém, não mais pode ser descrito como ‘sexual’. A psicanálise, que ilumina as profundezas da vida mental, não tem dificuldade em demonstrar que os vínculos sexuais dos primeiros anos da infância também persistem, embora reprimidos e inconscientes. Ela nos dá coragem para afirmar que um sentimento afetuoso, onde quer que o encontremos, constitui um sucessor de uma vinculação de objeto completamente ‘sensual’ com a pessoa em pauta ou, antes, com o protótipo (ou Imago) dessa pessoa. Ela não pode verdadeiramente revelar-nos, sem uma investigação especial, se em dado caso essa antiga corrente sexual completa ainda existe sob repressão ou já se exauriu. Mais precisamente: é inteiramente certo que essa corrente ainda se encontra lá, como forma e possibilidade, podendo sempre ser catexizada e novamente colocada em atividade por meio da regressão; a única questão é (e nem sempre pode ser respondida) que grau de catexia e força operativa ela ainda possui no presente momento. Nessa referência, deve-se tomar idêntico cuidado em evitar duas fontes de erro: o Sila de subestimar a importância do inconsciente reprimido e o Caribde de julgar o normal inteiramente pelos padrões do patológico.
            Uma psicologia que não penetre ou não possa penetrar nas profundezas do que é reprimido, considera os laços emocionais afetuosos como sendo invariavelmente a expressão de impulsos que não possuem objetivo sexual, ainda que derivem de impulsos com esse fim.
            Temos justificativa para dizer que eles foram desviados desses fins sexuais, embora exista certa dificuldade de fornecer uma descrição de um desvio de objetivo assim, que se adapte às exigências da metapsicologia. Ademais, esses instintos inibidos em seus objetivos conservam alguns de seus objetivos sexuais originais; mesmo um devoto afetuoso, mesmo um amigo ou um admirador, desejam a proximidade física e a visão da pessoa que é agora amada apenas no sentido ‘paulino’. Se preferirmos, podemos identificar nesse desvio de objetivo um início da sublimação dos instintos sexuais ou, por outro lado, podemos fixar os limites da sublimação em algum ponto mais distante. Esses instintos sexuais inibidos em seus objetivos possuem uma grande vantagem funcional sobre os desinibidos. Desde que não são capazes de satisfação realmente completa, acham-se especialmente aptos a criar vínculos permanentes, ao passo que os instintos diretamente sexuais incorrem numa perda de energia sempre que se satisfazem e têm de esperar serem renovados por um novo acúmulo de libido sexual; assim, nesse meio tempo, o objeto pode ter-se alterado. Os instintos inibidos são capazes de realizar qualquer grau de mescla com os desinibidos; podem ser novamente transformados em desinibidos, exatamente como deles se originaram. É bem conhecido com que facilidade se desenvolvem desejos eróticos a partir de relações emocionais de caráter amistoso, baseadas na apreciação e na admiração (compare-se o ‘Beije-me pelo amor do grego’, de Molière), entre professor e aluno, recitalista e ouvinte deliciada, especialmente no caso das mulheres. Na realidade, o crescimento de laços emocionais desse tipo, com seus começos despropositados, fornece uma via muito freqüentada para a escolha sexual de objeto. Pfister, em sua Froömmigkeit des Grafen von Zinzendorf (1910), forneceu um exemplo extremamente claro e certamente não isolado de quão facilmente até um intenso vínculo religioso pode converter-se em ardente excitação sexual. Por outro lado, também é muito comum aos impulsos diretamente sexuais de pequena duração em si mesmos transformarem-se em um laço permanente e puramente afetuoso; e a consolidação de um apaixonado casamento de amor repousa em grande parte nesse processo.
            Naturalmente não ficaremos surpresos ao ouvir que os impulsos sexuais inibidos em seus objetivos se originam daqueles diretamente sexuais quando obstáculos internos ou externos tornam inatingíveis os objetivos sexuais. A repressão durante o período de latência é um obstáculo interno desse tipo, ou melhor, um obstáculo que se tornou interno. Presumimos que o pai da horda primeva, devido à sua intolerância sexual, compeliu todos os filhos à abstinência, forçando-os assim a laços inibidos em seus objetivos, enquanto reservava para si a liberdade de gozo sexual, permanecendo, desse modo, sem vínculos. Todos os vínculos de que um grupo depende têm o caráter de instintos inibidos em seus objetivos. Porém, aqui nos aproximamos da discussão de um novo assunto, que trata da relação existente entre os instintos diretamente sexuais e a formação de grupos.

            D.As duas últimas observações nos terão preparado para descobrir que os impulsos diretamente sexuais são desfavoráveis para a formação de grupos. Na história da evolução da família é fato que também houve relações grupais de caráter sexual (casamentos grupais), mas, quanto mais importante o amor sexual se tornou para o ego e mais desenvolveu o ego as características de estar amando, com maior premência exigiu ser limitado a duas pessoas - una cum uno -, como é prescrito pela natureza do objetivo genital. As inclinações polígamas tiveram de contentar-se em encontrar satisfação numa sucessão de objetos mutáveis.
            Duas pessoas que se reúnem com o intuito de satisfação sexual, na medida em que buscam a solidão, estão realizando uma demonstração contra o instinto gregário, o sentimento de grupo. Quanto mais enamoradas se encontram, mais completamente se bastam uma à outra. Sua rejeição da influência do grupo se expressa sob a forma de um sentimento de vergonha. Sentimentos de ciúme da mais extrema violência são convocados para proteger a escolha de um objeto sexual da usurpação por um laço grupal. Apenas quando o fator afetuoso, isto é, pessoal, de uma relação amorosa cede inteiramente lugar ao sensual, torna-se possível a duas pessoas manterem relações sexuais na presença de outros, ou haver atos sexuais simultâneos num grupo, tal como ocorre em uma orgia. Nesse ponto, porém, afetuou-se uma regressão a uma fase anterior das relações sexuais, na qual estar amando ainda não desempenhava um papel e todos os objetos eram julgados como de igual valor, um pouco no sentido do malicioso aforismo de Bernard Shaw, segundo o qual estar apaixonado significa exagerar grandemente a diferença existente entre uma mulher e outra.
            Existem abundantes indicações de que o estado de estar amando só fez seu aparecimento tardiamente nas relações sexuais entre homens e mulheres, de maneira que a oposição entre amor sexual e vínculos grupais constitui também um desenvolvimento tardio. Ora, pode parecer que essa pressuposição seja incompatível com nosso mito da família primeva, pois, afinal de contas, por seu amor pelas mães e irmãs a turba de irmãos, conforme supomos, foi levada ao parricídio, sendo difícil imaginar esse amor como algo que não fosse indiviso e primitivo, isto é, como uma união íntima do afetuoso e do sensual. Uma consideração mais atenta, entretanto, transforma essa objeção à nossa teoria em confirmação dela. Uma das reações ao parricídio foi, em última análise, a instituição da exogamia totêmica, a proibição de qualquer relação sexual com aquelas mulheres da família que haviam sido ternamente amadas desde a infância. Desse modo, enfiou-se uma cunha entre os sentimentos afetuosos e sensuais do homem, que, atualmente, ainda se acha firmemente fixada em sua vida erótica. Em resultado dessa exogamia, as necessidades sensuais dos homens tiveram de ser satisfeitas com mulheres estranhas e não amadas.
            Nos grandes grupos artificiais, a Igreja e o exército, não há lugar para a mulher como objeto sexual. As relações amorosas entre homens e mulheres permanecem fora dessas organizações. Mesmo onde se formam grupos compostos tanto de homens como de mulheres, a distinção entre os sexos não desempenha nenhum papel. Mal há sentido em perguntar se a libido que mantém reunidos os grupos é de natureza homossexual ou heterossexual, porque ela não se diferencia de acordo com os sexos e, particularmente, mostra um completo desprezo pelos objetivos da organização genital da libido.
            Mesmo na pessoa que, sob outros aspectos, se absorveu em um grupo, os impulsos diretamente sexuais conservam um pouco de sua atividade individual. Se se tornam fortes demais, desintegram qualquer formação grupal. A Igreja Católica possui o melhor dos motivos para recomendar a seus seguidores que permaneçam solteiros, e para impor o celibato a seus sacerdotes, mas o apaixonar-se com freqüência impeliu mesmo padres a abandonar a Igreja. Da mesma maneira, o amor pela mulheres rompe os vínculos grupais de raça, divisões nacionais e sistema de classes sociais, produzindo importantes efeitos como fator de civilização. Parece certo que o amor homossexual é muito mais compatível com os laços grupais, mesmo quando toma o aspecto de impulsos sexuais desinibidos, fato notável cuja explicação poderia levar-nos longe.
            A investigação psicanalítica das psiconeuroses nos ensinou que seus sintomas devem ser remetidos a impulsos diretamente sexuais que são reprimidos mas permanecem ainda ativos. Podemos completar essa fórmula acrescentando: ‘ou a impulsos inibidos nos objetivos, cuja inibição não foi inteiramente bem-sucedida ou permitiu um retorno do objetivo sexual reprimido’. Está de acordo com isso que uma neurose torne associal a sua vítima ou a afaste das formações habituais de grupo. Pode-se dizer que uma neurose tem sobre o grupo o mesmo efeito desintegrador que o estado de estar amando. Por outro lado, parece que onde foi dado um poderoso ímpeto à formação de grupo, as neuroses podem diminuir ou, pelo menos temporariamente, desaparecer. Justificáveis tentativas foram feitas para situar esse antagonismo entre as neuroses e as formações de grupo a serviço da terapêutica. Mesmo os que não lamentam o desaparecimento das ilusões religiosas do mundo civilizado de hoje, admitem que, enquanto estiveram em vigor, ofereceram aos que a elas se achavam presos a mais poderosa proteção contra o perigo da neurose. Tampouco é difícil discernir que todos os vínculos que ligam as pessoas a seitas e comunidades místico-religiosas ou filosófico-religiosas, são expressões de curas distorcidas de todos os tipos de neuroses. Tudo isso se correlaciona com o contraste entre os impulsos diretamente sexuais e os inibidos em seus objetivos.
            Se é abandonado a si próprio, um neurótico é obrigado a substituir por suas próprias formações de sintomas as grandes formações de grupo de que se acha excluído. Ele cria seu próprio mundo de imaginação, sua própria religião, seu próprio sistema de delírios, recapitulando assim as instituições da humanidade de uma maneira distorcida, que constitui prova evidente do papel dominante desempenhado pelos impulsos diretamente sexuais.

            E.Em conclusão, acrescentaremos, do ponto de vista da teoria da libido, uma estimativa comparativa dos estados em que estivemos interessados: estar amando, hipnose, formação grupal e neurose.
            Estar amando baseia-se na presença simultânea de impulsos diretamente sexuais e impulsos sexuais inibidos em seus objetivos, enquanto o objeto arrasta uma parte da libido do ego narcisista do sujeito para si próprio. Trata-se de uma condição em que há lugar apenas para o ego e o objeto.
            A hipnose assemelha-se ao estado de estar amando por limitar-se a essas duas pessoas, mas baseia-se inteiramente em impulsos sexuais inibidos em seus objetivos e coloca o objeto no lugar do ideal do ego.
            O grupo multiplica esse processo; concorda com a hipnose na natureza dos instintos que o mantém unido e na substituição do ideal do ego pelo objeto, mas acrescenta a identificação com outros indivíduos, o que foi talvez, originalmente, tornado possível por terem eles a mesma relação com o objeto.
            Ambos os estados, hipnose e formação de grupo, constituem um depósito herdado da filogênese da libido humana; a hipnose sob a forma de uma predisposição e o grupo, ademais disso, como uma sobrevivência direta. A substituição dos impulsos diretamente sexuais por aqueles que são inibidos em seus objetivos promove em ambos os estados uma separação entre o ego e o ideal do ego, separação da qual já se realizara um começo no estado de estar amando.
            A neurose permanece fora dessa série. Baseia-se também numa peculiaridade do desenvolvimento da libido humana - o início duas vezes repetido, feito pela função diretamente sexual, com um período intermediário de latência. Até aqui, ela assemelha-se à hipnose e à formação de grupo, por ter o caráter de uma regressão, que se acha ausente do estado de estar amando. Faz seu aparecimento onde quer que a passagem dos instintos diretamente sexuais para os que são inibidos em seus objetivos não foi inteiramente bem-sucedida; e representa um conflito entre aquelas partes dos instintos que foram recebidas no ego, após haverem passado por essa evolução, e as partes deles que, originando-se do inconsciente reprimido, esforçam-se - como outros impulsos instintuais completamente reprimidos - por conseguir satisfação direta. As neuroses são extremamente ricas em conteúdo, por abrangerem todas as relações possíveis entre o ego e o objeto - tanto aquelas nas quais o objeto é mantido, como noutras, em que é abandonado ou erigido dentro do próprio ego - e também as relações conflitantes entre o ego e o seu ideal do ego.













A PSICOGÊNESE DE UM CASO DE HOMOSSEXUALISMO NUMA MULHER (1920)


NOTA DO EDITOR INGLÊS
ÜBER DIE PSYCHOGENESE EINES FALLES VONWEIBLICHER HOMOSEXUALITÄT


(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1920 Int. Z. Psychoanal., 6 (1), 1-24.
1922 S.K.S.N., 5, 159-94.
1924 G.S., 5, 312-43.
1926 Psychoanalyse der Neurosen, 87-124.
1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 155-88.
1947 G.W., 12, 271-302

.(b) TRADUÇÃO INGLESA:
            ‘The Psychogenesis of a Case of Homosexuality in a Woman’
1920 Int. J. Psycho-Anal., 1, 125-49. (Trad. de Barbara Low e R. Gabler.)
1924 C.P., 2, 202-31. (Mesmos tradutores.)

            A presente tradução inglesa é uma versão consideravelmente modificada da publicada em 1924.

            Após um intervalo de quase vinte anos, Freud publicou no presente artigo uma história clínica bastante pormenorizada, embora incompleta, de uma paciente. Mas, ao passo que o caso de ‘Dora’ (1905e [1901]), bem como suas contribuições aos Estudos sobre a Histeria (1905d), tratavam exclusivamente da histeria, começou agora a considerar mais profundamente toda a questão da sexualidade nas mulheres. Suas investigações deveriam posteriormente conduzir aos artigos sobre os efeitos da distinção anatômica entre os sexos (1925j) e sobre a sexualidade feminina (1931b), também à Conferência XXIII de suas New Introductory Lectures (1933a). Afora isso, o artigo contém uma exposição de algumas opiniões posteriores de Freud sobre o homossexualismo em geral, bem como certas observações interessantes sobre pontos técnicos.
           
           


A PSICOGÊNESE DE UM CASO DE HOMOSSEXUALISMO NUMA MULHER  

                                                           I

            O homossexualismo nas mulheres, que certamente não é menos comum que nos homens, embora muito menos manifesto, não só tem sido ignorado pela lei, mas também negligenciado pela pesquisa psicanalítica. A narração de um caso isolado, não muito marcante em categoria, no qual foi possível determinar sua origem e desenvolvimento na mente com uma segurança completa e quase sem lacunas, pode assim reivindicar certa atenção. Se essa apresentação do caso fornece apenas os contornos mais gerais dos diversos fatos correlacionados e das conclusões obtidas de um estudo do caso, suprimindo ao mesmo tempo todos os pormenores característicos sobre os quais se funda a interpretação, essa limitação pode ser facilmente explicada pela discrição médica necessária à discussão de um caso recente.
            Uma bela e inteligente jovem de dezoito anos, pertencente a uma família de boa posição, despertara desprazer e preocupação em seus pais pela devotada adoração com que perseguia certa ‘dama da sociedade’ cerca de dez anos mais velha que ela própria. Os pais asseguravam que, a despeito de seu nome eminente, essa senhora não era mais que uma cocotte. Era bem conhecido, diziam, que vivia com uma amiga, uma mulher casada, com quem tinha relações íntimas ao mesmo tempo que mantinha casos promíscuos com certo número de homens. A moça não desmentia esses relatos maldosos, mas sequer permitia-lhes interferir em sua adoração da dama, embora de modo algum lhe faltasse certo senso de decência e propriedade. Nem as proibições nem a vigilância impediam a jovem de aproveitar todas as suas raras oportunidades de encontrar-se com a bem-amada, de verificar todos os seus hábitos, de esperar por ela durante horas diante de sua porta ou numa parada de bonde, de mandar-lhe presentes ou flores, e assim por diante. Era evidente que esse interesse único havia engolfado todos os outros na mente da jovem. Não se preocupava mais com os estudos, não se interessava por funções sociais ou prazeres de moça e mantinha relações apenas com algumas amigas que podiam auxiliá-la na questão ou servir-lhe de confidentes. Os pais não podiam dizer a que ponto a filha havia chegado em suas relações com a discutível senhora, se os limites da admiração devotada já haviam ou não sido ultrapassados. Jamais tinham observado na filha qualquer interesse em moços, nem prazer em seus galanteios, ao passo que, por outro lado, se achavam seguros de sua presente ligação a uma mulher constituir apenas a seqüência, em grau mais acentuado, de um sentimento que em anos recentes demonstrara por outros membros de seu próprio sexo, sentimento que já despertara a suspeita e a ira do pai.
            Dois pormenores em seu comportamento, estando um em aparente contraste com o outro, mais especialmente agastavam os pais. De um lado, não tinha escrúpulos quanto a aparecer nas ruas mais freqüentadas em companhia de sua indesejável amiga, então sendo bastante negligente quanto à própria reputação; de resto, não desprezava nenhum meio de embuste, desculpas e mentiras que possibilitassem seus encontros com a amiga e os acobertassem. Assim, mostrava-se demasiado franca sob um dos aspectos e noutros, cheia de embustes. Um dia ocorreu de fato, como mais cedo ou mais tarde seria inevitável nas circunstâncias, o pai encontrar a filha em companhia da senhora, acerca de quem chegara a conhecer. Passou por elas de olhar irado, prenunciando nada de bom. Subitamente, a jovem saiu correndo e arremeteu-se em direção a um muro, saltando-o para o lado de um corte que dava para a linha ferroviária suburbana ali perto. Pagou essa tentativa indiscutivelmente séria de suicídio com um tempo considerável deitada de costas na cama, embora, afortunadamente, fossem poucos os danos permanentes causados. Após a recuperação, descobriu ser mais fácil que antes conseguir o que queria. Os pais não ousaram opor-se-lhe com tanta determinação e a senhora, que até então recebera friamente seus avanços, comoveu-se com prova tão inequívoca de séria paixão e começou a tratá-la de maneira mais amistosa.
            Aproximadamente seis meses após o episódio, os pais buscaram orientação médica e confiaram ao médico a tarefa de reconduzir sua filha a um estado normal de espírito. A tentativa de suicídio da jovem evidentemente lhes tinha mostrado que fortes medidas disciplinares em casa eram impotentes para vencer esse seu distúrbio. Antes de prosseguir será, porém, desejável considerar separadamente as atitudes do pai e da mãe perante o assunto. O pai, um homem sério e conceituado, no fundo de coração muito terno; porém, até certo ponto tinha alheado de si os filhos com a rigidez que adotara para com eles. Seu tratamento com a filha única era demasiadamente influenciado pela consideração que tinha pela mulher. Quando soubera, pela primeira vez, das tendências homossexuais da filha, ficara enfurecido e tentara suprimi-las com ameaças. Naquela ocasião, talvez, hesitava entre opiniões diferentes, embora do mesmo modo aflitivas: encarando a filha como viciosa, ou degenerada ou mentalmente perturbada. Sequer após a tentativa de suicídio não lograra a eloqüente resignação demonstrada por um de nossos colegas médicos que observou de uma irregularidade semelhante em sua própria família: ‘Bem, é apenas uma infelicidade como qualquer outra’. Havia algo no homossexualismo da filha que lhe despertava a mais profunda amargura, e estava determinado a combatê-lo por todos os meios em seu poder. A pouca estima em que a psicanálise geralmente é tida em Viena não impediu que se voltasse a ela em busca de auxílio. Falhasse essa solução, ele ainda tinha de reserva sua mais forte medida defensiva: um casamento rápido deveria despertar os instintos naturais da moça e abafar suas tendências inaturais.
            A atitude da mãe para com a jovem não era tão fácil de compreender. Ela era uma mulher jovem, evidentemente pouco disposta a abandonar seus próprios direitos à atração. Claro era o fato global de ela não tomar o enamoramento da filha tão tragicamente como o pai, e tampouco se enfurecia com ele. Havia mesmo, por certo tempo, desfrutado da confiança da filha relativamente à paixão dela. Sua oposição a ela parecia ter sido sobretudo despertada pela danosa publicidade com que a moça demonstrava seus sentimentos. Ela própria sofrera, durante alguns anos, de problemas neuróticos e gozava de grande consideração por parte do marido. Tratava os filhos de modos inteiramente diferentes, sendo decididamente áspera com a filha e de excessiva indulgência com os três filhos, dos quais o mais novo nascera após longo intervalo e não contava, então, ainda três anos de idade. Não era fácil apurar algo de mais definido a respeito do seu caráter, porque, por motivos que posteriormente se tornarão inteligíveis, a paciente era sempre reservada no que dizia sobre a mãe, ao passo que, em relação ao pai, nada disso acontecia.
            Para um médico que fosse empreender o tratamento psicanalítico da jovem, havia muitos fundamentos para desconfiança. A situação que devia tratar não era a que a análise exige, na qual somente ela pode demonstrar sua eficácia. Sabe-se bem que a situação ideal para a análise é a circunstância de alguém que, sob outros aspectos, é seu próprio senhor, estar no momento sofrendo de um conflito interno, que é incapaz de resolver sozinho; assim leva seu problema ao analista e lhe pede auxílio. O médico então trabalha de mãos dadas com uma das partes da personalidade patologicamente dividida, contra a outra parte no conflito. Qualquer situação que dessa difira é, em maior ou menor grau, desfavorável para a psicanálise e acrescenta novas dificuldades às internas, já presentes. Situações como as de um proprietário em perspectiva, que ordena a um arquiteto construir-lhe uma vivenda de acordo com seus próprios gostos e exigências, ou de doador piedoso que comissiona um artista para pintar um quadro sacro, em cujo canto deve haver um seu retrato em adoração: tais são, no fundo, incompatíveis com as condições necessárias à psicanálise. Assim, acontece constantemente que um marido instrua o médico do seguinte modo: ‘Minha esposa sofre dos nervos e, por isso, dá-se muito mal comigo; por favor, cure-a, a fim de podermos levar novamente uma vida conjugal feliz.’ Com muita freqüência, porém, fica provado que a um pedido desses é impossível atender, isto é, o médico não poder expor o resultado para o qual o marido procurou o tratamento. Assim que a esposa se liberta de suas inibições neuróticas, põe-se a conseguir uma separação, porque sua neurose era a única condição sob a qual o matrimônio podia ser mantido. Ou então os pais esperam que curem seu filho nervoso e desobediente. Entendem por criança sadia a que nunca cause problemas aos pais e nada lhes dê senão prazer. O médico pode conseguir a cura da criança, mas, depois, ela faz o que quer com mais decisão ainda, e a insatisfação dos pais é bem maior que antes. Em suma, não é indiferente que alguém venha à psicanálise por sua própria vontade ou seja levado a ela, quando é ele próprio que deseja mudar, ou apenas os seus parentes, que o amam (ou se supõe que o amem).
            Outros aspectos desfavoráveis no presente caso eram os fatos de a jovem não estar de modo algum doente (não sofria em si de nada, nem se queixava de sua condição) e de a tarefa a cumprir não consistir em solucionar um conflito neurótico, mas em transformar determinada variedade da organização genital da sexualidade em outra. Tal realização - a remoção da inversão genital ou homossexualismo - nunca, pela minha experiência, é matéria fácil. Pelo contrário, só achei possível o êxito em circunstâncias especialmente favoráveis e, assim mesmo, o sucesso consistia essencialmente em facilitar o acesso ao sexo oposto (até então barrado) a uma pessoa restrita ao homossexualismo, restaurando assim suas funções bissexuais plenas. Depois, competia a ela escolher se desejava abandonar o caminho que é proibido pela sociedade, e, em alguns casos, assim procedia. Devemos lembrar-nos de que também a sexualidade normal depende de uma restrição na escolha do objeto. Em geral, empreender a conversão de um homossexual plenamente desenvolvido em um heterossexual não oferece muito maiores perspectivas de sucesso que o inverso; exceto que, por boas e práticas razões, o último caso nunca é tentado.
            O número de êxitos conseguidos pelo tratamento psicanalítico das diversas formas de homossexualismo, que, por casualidade, são múltiplas, na verdade não é muito notável. Via de regra, o homossexual não é capaz de abandonar o objeto que o abastece de prazer e não se pode convencê-lo de que, se fizesse a mudança, descobriria em outro objeto o prazer a que renunciou. Se chega a ser tratado, isso se dá principalmente pela pressão de motivos externos, tais como as desvantagens sociais e os perigos ligados à sua escolha de objetos; e esses componentes do instinto de autoconservação mostram-se fracos demais na luta contra os impulsos sexuais. Então, logo descobrimos seu plano secreto, que é obter do notável fracasso de sua tentativa um sentimento de satisfação por ter feito tudo quanto possível contra a sua anormalidade, com o qual pode resignar-se agora de consciência tranqüila. O caso é um tanto diferente quando a consideração por pais e parentes queridos foi o motivo da sua tentativa de curar-se. Aqui estão realmente presentes impulsos libidinais que podem aplicar energias opostas à escolha homossexual de objeto, contudo sua força raramente é suficiente. Apenas onde a fixação homossexual ainda não se tornou suficientemente forte, ou onde existem consideráveis rudimentos e vestígios de uma escolha heterossexual de objeto, isto é, numa organização ainda oscilante ou definitivamente bissexual, é que se pode efetuar um prognóstico mais favorável para a psicoterapia psicanalítica.
            Por essas razões me abstive por completo de oferecer aos pais qualquer perspectiva de realização de seu desejo. Simplesmente lhes disse que estava preparado para estudar cuidadosamente a moça durante algumas semanas ou meses, para então poder julgar em que medida uma continuação da análise teria probabilidade de influenciá-la. Em bom número de casos é fato uma análise incidir em duas fases claramente distinguíveis. Na primeira, o médico consegue do paciente as informações necessárias, familiariza-o com as premissas e os postulados da psicanálise e lhe revela a reconstrução da gênese de seu distúrbio, como essa é deduzida do material trazido à análise. Na segunda fase, o próprio paciente se apossa do material que lhe foi apresentado; trabalha sobre ele, recorda-se do que pode de lembranças aparentemente reprimidas e tenta repetir o resto, como se de alguma forma o estivesse vivendo novamente. Pode assim confirmar, suplementar e corrigir as inferências do médico. Só durante esse trabalho que ele experimenta, pela vitória sobre as resistências, a mudança interior a que visa e adquire para si as convicções que o tornam independente da autoridade do médico. Essas duas fases no curso do tratamento analítico não estão sempre nitidamente separadas uma da outra, o que só pode acontecer quando a resistência obedece a certas condições. Mas sendo assim, pode-se apresentar, como analogia, as duas etapas de uma viagem. A primeira compreende todos os preparativos necessários, hoje tão complicados e difíceis de efetuar, antes de, passagem na mão, poder-se finalmente chegar à plataforma e garantir um lugar no trem. Tem-se então o direito e a possibilidade de viajar para um país distante; mas, passadas aquelas diligências, ainda não nos encontramos lá; na verdade, não estamos um quilômetro sequer mais próximos de nosso destino. Para que isso aconteça, há que efetuar a própria viagem, de uma estação à outra, e essa parte da execução bem pode ser comparada à segunda fase da análise.
            O curso da análise da atual paciente acompanhou esse modelo de duas fases, todavia não foi continuado após o início da segunda. Uma constelação especial da resistência tornou possível, não obstante, conseguir uma plena confirmação de minhas construções teóricas e obter uma compreensão interna (insight) adequada, em linhas gerais, da maneira pela qual sua inversão se desenvolvera. Mas antes de relatar as descobertas da análise, devo tratar de alguns pontos que ou já foram aflorados por mim ou despertarão um interesse especial no leitor.
            Fiz o prognóstico parcialmente na dependência da extensão em que a jovem lograra satisfazer sua paixão. As informações que obtive durante a análise pareceram favoráveis nesse respeito. Com nenhum dos objetos de sua adoração havia a paciente fruído de algo além de alguns beijos e abraços; sua castidade genital, se se pode usar essa expressão, permanecera intacta. Quanto à demi-mondaine que despertava suas mais recentes e, de longe, mais intensas emoções, ela sempre a tratara friamente e nunca lhe fora permitido qualquer favor maior do que beijar-lhe a mão. Provavelmente ela transformava a necessidade em virtude, quando insistia na pureza de seu amor e em sua repulsão física à idéia de qualquer relação sexual. Mas pode ser que não se achasse inteiramente enganada ao gabar-se de sua maravilhosa bem-amada, que, sendo de boa família como era, e forçada à presente situação apenas devido a circunstâncias familiares adversas, havia conservado a despeito de sua situação atual, muita nobreza de caráter. A dama costumava recomendar à moça, sempre quando se encontravam, que afastasse sua afeição dela e das mulheres em geral, havendo persistentemente rejeitado todos os avanços da jovem até a ocasião da tentativa de suicídio.
            Um segundo ponto, que imediatamente tentei investigar, relacionava-se com quaisquer motivos possíveis na própria moça que pudessem servir de base para o tratamento psicanalítico. Ela não procurou enganar-me dizendo sentir alguma necessidade urgente de libertar-se de seu homossexualismo. Pelo contrário, disse ser incapaz de imaginar outra maneira de enamorar-se, mas acrescentou que, por amor aos pais, auxiliaria honestamente no esforço terapêutico, de vez que lhe doía muito ser-lhes a causa de tanto pesar. Inicialmente, não pude deixar de considerar essa intenção também como um signo propício, pois não podia imaginar a atitude emocional inconsciente que jazia oculta por trás dela. O que nessa correlação posteriormente veio à luz influenciou decisivamente o curso tomado pela análise e determinou a sua conclusão prematura.
            Os leitores não versados em psicanálise há muito estarão aguardando uma resposta a duas outras perguntas. Apresentava essa jovem homossexual características físicas claramente pertinentes ao sexo oposto, e o caso provou ser homossexualismo congênito ou adquirido (desenvolvido posteriormente)?
            Estou ciente da importância que se prende à primeira das perguntas, contudo não se deve exagerá-la e permitir-lhe que obscureça o fato de características secundárias esporádicas do sexo oposto amiúde estarem presentes em indivíduos normais, e de características físicas bem acentuadas do sexo oposto poderem existir em pessoas cuja escolha de objeto não experimentou mudança no sentido da inversão. Noutras palavras, em ambos os sexos  o grau de hermafroditismo físico é, em grande parte, independente do hermafroditismo psíquico. Alterando essas afirmativas, deve-se acrescentar que tal independência é mais evidente nos homens que nas mulheres, onde traços corporais e mentais pertencentes ao sexo oposto tendem a coincidir. Entretanto, não me encontro em posição de fornecer uma resposta satisfatória à primeira de nossas questões sobre minha paciente. O psicanalista de hábito se abstém de um exame físico detalhado de seus pacientes, em certos casos. Certamente não havia desvio óbvio do tipo físico feminino, sequer qualquer distúrbio menstrual. A jovem bela e bem-feita tinha, de fato, a figura alta do pai e suas feições eram mais agudas do que suaves e feminis, traços que podiam ser vistos como indicadores de masculinidade física. Alguns de seus atributos intelectuais também podiam estar vinculados à masculinidade, como, por exemplo, sua acuidade de compreensão e sua lúcida objetividade, na medida em que não se achava dominada por sua paixão. Mas essas distinções são antes convencionais que cientificas. O que certamente tem importância maior é a jovem, em seu comportamento para com seu objeto amoroso, haver assumido inteiramente o papel masculino, isto é, apresentava a humildade e a sublime supervalorização do objeto sexual tão características do amante masculino, a renúncia a toda satisfação narcisista e a preferência de ser o amante e não o amado. Havia, assim, não apenas escolhido um objeto amoroso feminino, mas desenvolvera também uma atitude masculina para com esse objeto.
            A segunda questão - se se tratava de um caso de homossexualismo congênito ou adquirido - será respondida pela história completa da anormalidade da paciente e de sua evolução. O estudo desse aspecto nos mostrará até onde essa questão é estéril e despropositada.

                             II

            Após essa introdução altamente discursiva, apenas posso apresentar um resumo muito conciso da história sexual do caso em consideração. Na infância, a jovem passou pela atitude normal característica do complexo de Édipo feminino de maneira não tanto notável e posteriormente começara a substituir o pai por um irmão ligeiramente mais velho que ela. Não se lembrava de quaisquer traumas sexuais no começo da vida, nem tampouco algum foi descoberto pela análise. A comparação entre os órgãos genitais do irmão e os seus, que fez pelo início do período de latência (aos cinco anos de idade ou, talvez, um pouco antes), deixara-lhe forte impressão e tivera efeitos posteriores de grandes conseqüências. Havia poucos sinais a apontar para a masturbação infantil ou, então, a análise não foi suficientemente longe para lançar luz sobre este ponto. O nascimento de um segundo irmão quando contava entre cinco e seis anos de idade, não exerceu influência especial sobre seu desenvolvimento. Durante os anos de pré-puberdade, na escola, gradualmente familiarizou-se com os fatos do sexo e recebeu este conhecimento com sentimentos mistos de lascívia e assustada aversão, de uma maneira que se pode chamar de anormal e sem exagero em grau. Este número de informações sobre ela parece bastante escasso e tampouco posso garantir que seja completo. Pode ser que a história de sua juventude fosse muito mais rica em experiências; não sei. Como já disse, a análise foi interrompida após curto tempo e, portanto, produziu uma anamnese não muito mais digna de fé que as outras anamneses de homossexuais, de que há bons motivos para duvidar. Além disso, a jovem nunca fora neurótica e chegara a análise sem um único sintoma histérico, de modo que as oportunidades para investigar a história de sua infância não se apresentaram tão prontamente quanto de hábito.
            Na idade dos treze aos quatorze anos apresentara uma afeição terna e, segundo a opinião geral, exageradamente forte por um menino de menos de três anos de idade, a quem costumava ver regularmente num playground infantil. Apegou-se à criança tão calorosamente que, em conseqüência, uma amizade duradoura surgiu entre ela e os pais dele. Pode-se inferir desse episódio que, naquela época, achava-se possuída de forte desejo de ser mãe e ter um filho. Contudo, após curto tempo, tornou-se indiferente ao menino e começou a interessar-se por mulheres maduras porém de aparência ainda jovem. As manifestações desse interesse logo lhe valeram um severo castigo das mãos de seu pai.
            Ficou estabelecido, além de qualquer dúvida, que essa mudança ocorreu simultaneamente com certo acontecimento na família e, assim, pode-se examiná-lo em busca de alguma explicação para a mudança. Antes que acontecesse, sua libido se concentrava em uma atitude maternal, a seguir tornando-se uma homossexual atraída por mulheres maduras, assim permanecendo desde então. O acontecimento, tão significante para a nossa compreensão do caso, foi uma nova gravidez de sua mãe, e o nascimento de um terceiro irmão quando a paciente contava cerca de dezesseis anos de idade.
            A situação de ocorrências que agora passarei a revelar não é produto de minhas forças inventivas; baseia-se em provas analíticas tão dignas de fé, que para ela posso reivindicar uma validez objetiva. Foi, em particular, uma série de sonhos, inter-relacionados e fáceis de interpretar, que me fizeram decidir em favor de sua realidade.
            A análise da jovem revelou, sem sombra de dúvida, que a amada era uma substituta de sua mãe. É verdade que a própria dama não era mãe; contudo, também não era o primeiro amor da moça. Os primeiros objetos de sua afeição após o nascimento do irmão mais novo haviam sido realmente mães, mulheres entre trinta e trinta e cinco anos de idade, a quem havia encontrado com os filhos durante férias de verão ou no círculo familiar de conhecidos na cidade. A maternidade como condição sine qua non em seu objeto amoroso foi posteriormente abandonada, de vez que na vida real essa precondição era difícil de combinar com outra, que foi tornando-se cada vez mais importante. A ligação sobremodo intensa com seu último amor tinha, ainda, outro fundamento que a jovem com facilidade descobriu certo dia. A figura esbelta, a beleza severa e a postura ereta de sua dama faziam-na lembrar-se do irmão que era um pouco mais velho que ela. Assim, sua última escolha correspondia não só ao ideal feminino, como também ao masculino; combinava a satisfação da tendência homossexual com a da tendência heterossexual. É bem sabido que a análise de homossexuais masculinos em numerosos casos revelou a mesma combinação, o que deveria nos alertar contra formarmos uma concepção demasiado simples de natureza e gênese da inversão e mantermos em mente a bissexualidade universal dos seres humanos.
            Como, porém, devemos compreender o fato de ter sido precisamente o nascimento de uma criança, chegada à família extemporaneamente (numa ocasião em que a própria jovem já estava madura e com intensos desejos próprios), que a levou a aplicar sua ternura apaixonada à mulher que dera à luz essa criança, isto é, à sua própria mãe, e expressar esse sentimento para com um substituto materno? De tudo quanto sabemos seria de esperarmos exatamente o oposto. Em tais circunstâncias, as mães com filhas em idade próxima de casar geralmente se sentem embaraçadas em relação a elas, e as filhas capazes de sentir pelas mães uma mescla de compaixão, desprezo e inveja, que em nada contribui para aumentar sua ternura com elas. A jovem que estamos considerando tinha, de modo geral, poucos motivos para sentir afeição pela mãe. A mãe, moça ainda, via na filha, que se desenvolvia rapidamente, uma competidora inconveniente; favorecia os filhos em detrimento dela, limitava-lhe a independência tanto quanto possível e mantinha vigilância especialmente estrita contra qualquer relação mais chegada entre a jovem e o pai. Assim, ansiar, desde o começo, por uma mãe mais bondosa fora inteiramente compreensível, contudo difícil de entender é a razão por que deveria ter-se inflamado exatamente naquela ocasião e sob a forma de uma paixão consumidora.
            A explicação é a seguinte: no exato período em que a jovem experimentava a revivescência de seu complexo de Édipo infantil, na puberdade, sofreu seu grande desapontamento. Tornou-se profundamente cônscia do desejo de possuir um filho, um filho homem; seu desejo de ter o filho de seu pai e uma imagem dele, na consciência ela não podia conhecer. Que sucedeu depois? Não foi ela quem teve o filho, mas sua rival inconscientemente odiada, a mãe. Furiosamente ressentida e amargurada, afastou-se completamente do pai e dos homens. Passado esse primeiro grande revés, abjurou de sua feminidade e procurou outro objetivo para sua libido.
            Assim procedendo, comportou-se exatamente como muitos homens que, após uma primeira experiência penosa, dão as costas, para sempre, ao infiel sexo feminino e se tornam odiadores de mulheres. Relata-se de uma das mais atraentes e infelizes figuras principescas de nossa época que ele se tornou homossexual porque a dama com quem estava comprometido em matrimônio traiu-o com outro homem. Ignoro se isso é historicamente verdadeiro, mas por trás do boato há um elemento de verdade psicológica. Em todos nós, no decorrer da vida, a libido oscila normalmente entre objetos masculinos e femininos; o solteiro abandona seus amigos homens, ao casar-se, e retorna à vida de clube quando a vida conjugal perdeu o sabor. Naturalmente, quando a amplitude da oscilação é fundamental e final, suspeitamos da presença de algum fator especial que favorece definidamente um lado ou outro e que talvez só tenha esperado pelo momento apropriado para voltar a escolha de objeto em sua direção.
            Assim, após seu desapontamento a jovem repudiara inteiramente seu desejo de um filho, o amor dos homens e o papel feminino em geral. É evidente que, nesse ponto, algumas coisas bem diferentes poderiam ter acontecido. O que realmente ocorreu foi o caso mais extremo. Ela se transformou em homem e tomou a mãe, em lugar do pai, como objeto de seu amor. Sua relação com a mãe certamente fora ambivalente desde o início, foi fácil reviver o primitivo amor por ela e, com o seu auxílio, provocar uma supercompensação de sua hostilidade atual para com a mesma. De vez que pouco havia a fazer com a mãe real, dessa transformação de sentimentos nasceu a busca de uma mãe substituta, a quem poderia ligar-se apaixonadamente.
            Ademais, havia um motivo prático para essa mudança, derivado de suas relações reais com a mãe, que serviu como novo ganho [secundário] à sua doença. A própria mãe ainda ligava grande valor às atenções e à admiração dos homens. A jovem, tornando-se homossexual e deixando os homens para a mãe (noutras palavras, ‘se se retirasse em benefício’ dela), poderia afastar algo que até então fora parcialmente responsável pela antipatia da mãe.
            Essa posição libidinal da jovem, a que se chegou, foi grandemente reforçada tão logo percebeu o quanto ela desagradava a seu pai. Após ter sido punida por sua atitude tão afetuosa para com uma mulher, compreendeu como poderia ferir o pai e vingar-se dele. Desde então permaneceu homossexual em desafio ao pai, sequer também tinha escrúpulos em mentir-lhe e enganá-lo de todas as formas. Para com a mãe, na verdade, só era falsa na medida do necessário, para impedir o pai de saber de coisas. Tive a impressão de que seu comportamento seguia o princípio de Talião: ‘De vez que você me traiu, tem de se conformar com que eu o traia.’ Não cheguei a nenhuma outra conclusão sobre a notável falta de precauções apresentada pela jovem, sob outros aspectos de uma excessiva sagacidade. Ela queria que o pai soubesse ocasionalmente de suas relações com a dama, do contrário ficaria privada da satisfação de seu desejo mais penetrante, ou seja, a vingança. Assim, tomou essa providência mostrando-se abertamente em companhia de sua adorada, passeando com ela pelas ruas próximas de onde o pai tinha seus negócios, e coisas semelhantes. Ademais, essa inabilidade absolutamente não era intencional. Era notável, também, que ambos os genitores se comportavam como se entendessem a psicologia secreta da filha. A mãe era tolerante, como se apreciasse a ‘retirada’ da filha como um favor feito a ela; o pai se enfurecia, como se compreendesse a vingança deliberada dirigida contra ele.
            A inversão da jovem, entretanto, recebeu o reforço final quando descobriu em sua ‘dama’ um objeto que prometia satisfazer não apenas as suas inclinações homossexuais, como também aquela parte de sua libido que ainda se achava ligada ao irmão.

                             III

            A apresentação linear não constitui um meio muito adequado de descrever complicados processos mentais que se desenrolam em camadas diferentes da mente. Dessa forma, sou obrigado a fazer uma pausa no exame do caso e tratar mais ampla e profundamente alguns dos pontos acima apresentados.
            Mencionei que, em seu comportamento para com a dama adorada, a jovem adotara o característico tipo masculino de amor. Sua humildade e sua terna ausência de pretensões, ‘che poco spera e nulla chiede‘, sua felicidade quando lhe permitiam acompanhar um pouco a senhora e beijar sua mão ao se separar, sua alegria quando ouvia elogiarem-na de bela ao passo que qualquer reconhecimento de sua própria beleza por outra pessoa não lhe significava absolutamente nada, suas peregrinações a lugares outrora visitados pela bem-amada, o silêncio de todos os desejos mais sensuais - todos esses pequenos traços seus se assemelhavam à primeira e apaixonada admiração de um jovem por uma atriz célebre, a quem considera estar em plano muito mais alto do que ele e para quem mal se atreve a levantar os acanhados olhos. A correspondência com ‘um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens’ que descrevi noutra parte (1910h) e cujas características especiais remeti à ligação com a mãe, aplicava-se mesmo nos menores detalhes. Pode parecer digno de nota que ela não fosse de modo algum repelida pela má reputação de sua amada, embora suas próprias observações confirmassem suficientemente a verdade de tais boatos. Era, afinal de contas, uma jovem bem educada e recatada, que evitava para si aventuras sexuais e encarava como antiestéticas as satisfações grosseiramente sensuais. No entanto, já as suas primeiras paixões haviam sido por mulheres, não afamadas por um comportamento especialmente rígido. O primeiro protesto lançado pelo pai contra sua escolha amorosa fora evocado pela pertinácia com que procurara a companhia de uma atriz cinematográfica num lugar de veraneio. Ademais, em todos esses casos, nunca se tratara de mulheres que tivessem qualquer reputação por homossexualismo e que, portanto, poderiam ter-lhe oferecido alguma perspectiva de satisfação homossexual; pelo contrário, ilogicamente cortejava mulheres coquetes, no sentido comum da palavra, e rejeitara sem hesitação os avanços condescendentes feitos por uma amiga homossexual de sua mesma idade. Para ela, a má reputação de sua ‘dama’, contudo, era positivamente uma ‘condição necessária para o amor’. Tudo de enigmático nessa atitude se desvanece quando recordamos que também no caso do tipo masculino de escolha de objeto derivado da mãe é condição necessária que o objeto amado seja, de uma maneira ou outra, sexualmente ‘de má reputação’, alguém que realmente possa ser chamada de cocotte. Quando a jovem mais tarde descobriu o quanto sua adorada dama merecia essa qualificação e que vivia simplesmente de oferecer seus favores corporais, sua reação assumiu a forma de uma grande compaixão e de fantasias e planos para ‘resgatar’ sua querida dessas circunstâncias ignóbeis. Ficamos impressionados com o mesmo ímpeto de ‘resgatar’, nos homens do tipo acima mencionado, e, em minha descrição tentei fornecer a derivação analítica desse impulso.
            Somos levados a outro domínio inteiramente diferente de explicação pela análise da tentativa de suicídio, que devo encarar como seriamente intencionada e que, incidentalmente, melhorou bastante sua posição tanto com relação aos pais quanto à senhora que amava. Saiu, certo dia, de passeio com ela, numa parte da cidade e em hora que não era improvável encontrar seu pai de volta do escritório. Assim aconteceu. O pai passou por ela, na rua, de olhar furioso para ela e sua companheira, de que, nessa época, vinha tomando conhecimento. Poucos momentos depois, ela atirou-se para dentro do corte ferroviário. A sua explicação das razões imediatas que determinaram sua decisão, pareciam inteiramente plausíveis. Confessara à senhora que o homem que lhes dirigira o olhar tão enfurecido era seu pai, e que ele proibira por completo a amizade entre elas. A dama encolerizara-se com isso e ordenara à jovem que a deixasse ali mesmo e nunca mais esperá-la ou a ela se dirigir: o caso tinha de terminar ali. Desesperada por haver dessa forma perdido para sempre sua bem-amada, quis pôr termo à sua própria vida. A análise, contudo, pode descobrir outra interpretação mais profunda por trás da que forneceu, confirmada pela interpretação dos próprios sonhos da paciente. A tentativa de suicídio, como se podia esperar, foi determinada por dois outros motivos, além do que ela forneceu: a realização de uma punição (autopunição) e a realização de um desejo. Esse último significava a consecução do próprio desejo que, quando frustrado, a impelira ao homossexualismo: o desejo de ter um filho do pai, pois agora ela ‘caíra’ por culpa do pai. O fato de, naquele momento, a senhora haver-lhe falado exatamente nos mesmos termos que o pai e proferido a mesma proibição, forma o elo vinculatório entre essa interpretação profunda e a superficial, de que a própria jovem estava ciente. Do ponto de vista da autopunição, a ação da jovem nos mostra que desenvolvera no inconsciente intensos desejos de morte contra um ou outro de seus genitores, talvez contra o pai, como vingança por impedir seu amor, porém mais provavelmente contra a mãe, quando grávida do irmão pequeno, tendo a análise explicado o enigma do suicídio da seguinte maneira: é provável que ninguém encontre a energia mental necessária para matar-se, a menos que, em primeiro lugar, agindo assim, esteja ao mesmo tempo matando um objeto com quem se identificou e, em segundo lugar, voltando contra si próprio um desejo de morte antes dirigido contra outrem. Tampouco a descoberta regular desses desejos de morte inconscientes naqueles que tentaram o suicídio precisa surpreender-nos (não mais do que deveria para fazer-nos refletir que isso confirma nossas deduções), de vez que o inconsciente de todos os seres humanos se acha bem repleto de tais desejos de morte, até contra aqueles a quem amam. Uma vez que a jovem se identificava com a mãe, que deveria ter morrido no nascimento do filho, a ela negado, essa realização de punição constituía mais uma vez uma realização de desejo. Finalmente, a descoberta de que vários motivos inteiramente diversos, todos de grande intensidade, devem ter cooperado para tornar possível tal ação, está de estrito acordo com o que esperaríamos.
            No relato da jovem, de seus motivos conscientes, o pai não figurou em absoluto; sequer foi mencionado o temor de sua ira. Nos motivos desnudados pela análise, por outro lado, ele desempenhava o papel principal. Sua relação com o pai teve a mesma importância decisiva para o curso e o resultado do tratamento analítico, ou antes, exploração analítica. Por trás de sua pretensa consideração pelos genitores, por amor dos quais dispusera-se a efetuar as tentativa de transformação, jazia escondida sua atitude de desafio e vingança contra o pai, atitude que a fizera aferrar-se ao homossexualismo. Protegida sob essa cobertura, a resistência liberou à investigação analítica uma considerável região. A análise prosseguiu quase sem sinais de resistência, a paciente participando ativamente com o seu intelecto, embora emocionalmente bastante tranqüila. Certa vez, ao lhe expor uma parte especialmente importante da teoria, que lhe tocava de perto, ela respondeu num tom inimitável, ‘Que interessante’, como se fosse uma grande dame levada a um museu e passando o olhar, através de seu lorgnon, por objetos a que era completamente indiferente. A impressão que se tinha de sua análise não era diferente da que se tem de um tratamento hipnótico, em que a resistência, da mesma maneira, se retirou para certa linha limítrofe, além da qual mostra ser inconquistável. A resistência com muita freqüência emprega táticas semelhantes, táticas russas, como se poderia chamá-las, em casos de neuroses obsessivas. Em conseqüência, durante certo tempo, esses casos apresentam os mais claros resultados e permitem uma profunda compreensão interna (insight) da causa dos sintomas. Dentro em pouco, porém, começa-se a imaginar como um progresso tão acentuado na compreensão analítica pode estar desacompanhado até mesmo da mais ligeira mudança nas compulsões e inibições do paciente, até que por fim se percebe que tudo quanto foi realizado está sujeito a uma reserva mental de dúvida e que por trás dessa barreira protetora a neurose pode sentir-se segura. ‘Tudo seria muito bom’, pensa o paciente, muitas vezes de modo inteiramente consciente, ‘se eu fosse obrigado a acreditar no que o homem diz, mas como não se trata disso e enquanto for assim, não preciso mudar nada.’ Depois, ao nos aproximarmos dos motivos para essa dúvida, a batalha com as resistências irrompe a sério.
            No caso de nossa paciente, não havia dúvida de que fora o fator emocional de vingança contra o pai que tornara possível sua fria reserva, dividira a análise em duas fases distintas e tornara tão completos e claros os resultados da primeira fase. Parecia, ademais, como se nada semelhante a uma transferência para o médico se houvesse efetuado. Isso, contudo, é naturalmente absurdo ou, pelo menos, é uma maneira imprecisa de expressar as coisas, de vez que algum tipo de relação com o analista deve surgir e esta quase sempre é transferida de uma relação infantil. Na realidade, ela me transferira o abrangente repúdio dos homens que a dominara desde o desapontamento sofrido com o pai. O azedume contra os homens, via de regra, é fácil de ser gratificado com o médico; não precisa evocar quaisquer manifestações emocionais violentas, simplesmente expressa-se pelo tornar fúteis todos os esforços dele e pelo aferrar-se à doença. Sei por experiência quão difícil é fazer um paciente entender precisamente esse tipo silencioso de comportamento sintomático e torná-lo ciente dessa hostilidade latente e excessivamente forte, amiúde, sem pôr em perigo o tratamento. Assim, logo que identifiquei a atitude da jovem para com o pai, interrompi o tratamento e aconselhei aos genitores que, se davam valor ao procedimento terapêutico, este deveria ser continuado por uma médica. Nesse meio tempo, a jovem prometera ao pai que, de qualquer jeito, deixaria de ver a ‘senhora’, e desconheço se meu conselho, cujas razões são óbvias, será seguido.
            Houve um único fragmento de material no curso desta análise, que pude considerar como transferência positiva, como uma revivescência grandemente enfraquecida do original e apaixonado amor da jovem pelo pai. Mesmo essa manifestação não estava inteiramente livre de outras motivações, só a menciono por apresentar, noutro sentido, um problema interessante de técnica analítica. Em certo período, não muito depois de começado o tratamento, a jovem trouxe uma série de sonhos que, deformados segundo a regra e enunciados na costumeira linguagem onírica, podiam, não obstante, ser facilmente traduzidos com certeza. No entanto, seu conteúdo, quando interpretado, era fora do comum. Previam a cura da inversão por meio do tratamento, expressavam sua alegria pelas perspectivas de vida que então se lhe abririam, confessavam seu anseio pelo amor de um homem e por filhos, e assim poderiam ter sido acolhidos como uma preparação gratificante para a mudança desejada. A contradição entre eles e as afirmativas da jovem na vida desperta, na ocasião, era muito grande. Não escondia de mim que pretendia casar-se, mas só para fugir à tirania do pai e seguir imperturbada suas verdadeiras inclinações. Quanto ao marido, observava com bastante desprezo, lidaria facilmente com ele e, além disso, podia-se ter relações com um homem e uma mulher a um só e mesmo tempo, como demonstrava o exemplo da dama adorada. Advertido por uma ou outra ligeira impressão, disse-lhe certo dia que não acreditava naqueles sonhos, que os encarava como falsos ou hipócritas e que ela pretendia enganar-me, tal como habitualmente enganava o pai. Eu estava certo; após havê-lo esclarecido, esse tipo de sonhos cessou. Mas ainda acredito que, além da intenção de desorientar-me, os sonhos parcialmente expressavam o desejo de conquistar meu favor; eram também uma tentativa de ganhar meu interesse e minha boa opinião, talvez a fim de, posteriormente, desapontar-me mais completamente ainda.
            Posso imaginar que apontar a existência de sonhos mentirosos desse tipo, de sonhos ‘obsequiosos’, levantará uma positiva tempestade de impotente indignação em certos leitores que se denominam a si mesmos analistas. ‘O quê!’, exclamarão, ‘O inconsciente, o centro real de nossa vida mental, a parte de nós que se acha tão mais próxima do divino que nossa pobre consciência, pode mentir também? Então como poderemos continuar a trabalhar sobre as interpretações da análise e a exatidão de nossas descobertas?’ A isso precisa-se responder que o reconhecimento desses sonhos mentirosos não constitui nenhuma novidade destruidora. Na verdade, sei que o anseio da humanidade pelo misticismo é inerradicável e faz esforços incessantes por retomar para este o território de que A Interpretação de Sonhos o privou, mas certamente, no caso em pauta, tudo é bastante simples. Um sonho não é o ‘inconsciente’; trata-se da forma pela qual um pensamento remanescente da vida desperta pré-consciente ou mesmo consciente pode, graças ao estado favorecedor de sono, ser remoldado. No estado de sono, esse pensamento foi reforçado por impulsos inconscientes plenos de desejo e assim experimentou uma deformação através da elaboração onírica, que é determinada pelos mecanismos predominantes no inconsciente. Com a jovem que sonhou, a intenção de enganar-me, tal como fizera com o pai, certamente emanava do pré-consciente e pode, de fato, ter sido consciente; poderia conseguir expressão entrando em conexão com o impulso desejoso inconsciente de agradar o pai (ou substituto paterno), assim criando um sonho mentiroso. As duas intenções, trair e agradar o pai, originaram-se do mesmo complexo; a primeira resultou da repressão da última e a posterior foi, pela elaboração onírica, conduzida de volta à anterior. Desse modo, não se pode falar em qualquer desvalorização do inconsciente, nem na desagregação de nossa confiança nos resultados da análise.
            Não posso desprezar a oportunidade de expressar, de passagem, meu espanto de que os seres humanos possam atravessar tão grandes e importantes momentos de sua vida erótica sem notá-los muito; na verdade, às vezes nem mesmo possuir a mais pálida suspeita de sua existência, ou então, havendo-se dado conta desses momentos, enganar-se a si mesmos tão completamente no julgamento deles. Isto não acontece apenas em condições neuróticas, onde estamos familiarizados com o fenômeno, mas parece ser também bastante comum na vida ordinária. No presente caso, por exemplo, uma jovem desenvolve uma adoração sentimental por mulheres, que os pais a princípio acham vexatória simplesmente, e raramente tomam a sério; ela própria sabe muito bem estar muito ocupada com essas relações, porém ainda experimenta poucas das sensações de amor intenso até que uma frustração específica é seguida por uma reação bastante excessiva, que mostra a qualquer um interessado que elas têm algo a ver com uma paixão consumidora de força elementar. Tampouco a jovem nunca percebera do estado de coisas algo que constituía uma preliminar necessária ao desencadeamento dessa tormenta mental. Noutros casos também encontramos moças ou mulheres em estado de grave depressão, que ao serem interrogadas sobre a possível causa de sua condição, nos dizem que, realmente, tiveram um ligeiro sentimento por determinada pessoa, mas que não fora nada profundo, logo superando o sentimento quando tiveram de abandoná-la. No entanto foi essa renúncia, aparentemente tão bem suportada, que se tornou a causa do grave distúrbio mental. Encontramos ainda homens que passaram por casos amorosos ocasionais, e só pelos efeitos subseqüentes compreendem que estiveram apaixonadamente amorosos da pessoa a quem, aparentemente, consideraram levianamente. Fica-se também estupefato com os resultados inesperados que se podem seguir a um aborto artificial, à morte de um filho não nascido, decidido sem remorso e sem hesitação. Tem-se de admitir que os poetas estão certos em gostar de retratar pessoas que estão enamoradas sem sabê-lo ou incertas se amam, ou que pensam que odeiam quando na realidade amam. Pareceria que as informações recebidas por nossa consciência acerca de nossa vida erótica são especialmente passíveis de serem incompletas, cheias de lacunas ou falsificadas. É desnecessário dizer que, neste exame, não deixei de dar espaço para o papel desempenhado pelo esquecimento subseqüente.

                             IV

            Retorno agora, após essa digressão, à consideração do caso de minha paciente. Fizemos um levantamento das forças que conduziram a libido da jovem da atitude de Édipo normal à do homossexualismo, e dos caminhos psíquicos percorridos por ela no processo. O mais importante nesse respeito foi a impressão causada pelo nascimento de seu irmãozinho e a partir disso poderíamos inclinar-nos a classificar o caso como de inversão posteriormente adquirida.
            A essa altura, porém, nos damos conta de um estado de coisas com que nos defrontamos em muitos outros casos nos quais a psicanálise lançou luz sobre um processo mental. Fazendo recuo do desenvolvimento a partir de seu produto final a cadeia de acontecimento parece contínua, e sentimos que obtivemos uma compreensão interna (insight) completamente satisfatória ou mesmo exaustiva. Mas, se avançarmos de maneira inversa, isto é, se partirmos das premissas inferidas da análise e tentarmos segui-las até o resultado final, então não mais teremos a impressão de uma seqüência inevitável de eventos que não poderiam ter sido determinados de outra forma. Observamos, a seguir, que poderia ter havido outro resultado e que poderíamos ter sido capazes de compreendê-lo e explicá-lo. A síntese, portanto, não é tão satisfatória quanto a análise; noutras palavras, de um conhecimento das premissas não poderíamos ter previsto a natureza do resultado.
            É muito fácil explicar este perturbador estado de coisas. Mesmo supondo que tivéssemos um conhecimento completo dos fatores etiológicos que decidem um determinado resultado, a seu respeito conhecemos apenas a sua qualidade, não a sua força relativa. Alguns são suprimidos por outros por serem fracos demais, não influenciando, assim, o resultado final. De antemão, nunca sabemos, porém, qual dos fatores determinantes se revelará o mais fraco ou o mais forte. Dizemos apenas, no final, que os bem-sucedidos devem ter sido os mais fortes. Daí podermos reconhecer, sempre, com exatidão, a cadeia de causação, se seguirmos a linha da análise, ao passo que predizê-la ao longo da linha da síntese é impossível.
            Não sustentaremos, portanto, que toda jovem que experimenta um desapontamento, como esse do anseio de amor, que brota da atitude de Édipo na puberdade, necessariamente cairá, por causa disso, vítima do homossexualismo. Pelo contrário, outros tipos de reação a esse trauma sem dúvida são mais comuns. Contudo, sendo assim, na jovem paciente podem ter existido fatores especiais que fizeram pender a balança, fatores externos ao trauma, provavelmente de natureza interna. Além do mais, não há qualquer dificuldade em apontá-los.
            Sabe-se bem que, mesmo em uma pessoa normal, leva algum tempo antes de se tomar finalmente a decisão com referência ao sexo do objeto amoroso. Entusiasmos homossexuais, amizades exageradamente intensas e matizadas de sensualidades são bastante comuns em ambos os sexos durante os primeiros anos após a puberdade. Assim também aconteceu com nossa paciente; nela, porém, essas tendências mostraram-se sem dúvida mais fortes e permaneceram mais tempo do que noutras pessoas. Além disso, esses presságios de homossexualismo posterior haviam ocupado sempre a sua vida consciente, enquanto a atitude originária do complexo de Édipo permanecera inconsciente e se mostrara apenas em sinais, tais como o seu comportamento terno com o garotinho. Quando estudante, estivera longo tempo enamorada de uma professora rígida e inaproximável, evidentemente uma mãe substituta. Mostrara muito vivo interesse em certo número de jovens mães, bem antes do nascimento do irmão, portanto com mais certeza ainda, antes da primeira reprimenda do pai. Assim, desde anos muito precoces sua libido fluíra em duas correntes, das quais a da superfície é a que, sem hesitação, podemos designar como homossexual. Essa última era provavelmente uma continuação direta e imodificada de uma fixação infantil na mãe. Possivelmente a análise aqui descrita na realidade não revelou nada mais que o processo pelo qual, em ocasião apropriada, também a corrente heterossexual e mais profunda da libido foi desviada para a homossexual e manifesta.
            A análise demonstrou, além disso, que a jovem trouxera consigo, desde a infância, um ‘complexo de masculinidade’ fortemente acentuado. Jovem fogosa, sempre pronta a traquinagens e lutas, não se achava de modo algum preparada para ser a segunda diante do irmão ligeiramente mais velho; após inspecionar seus órgãos genitais [ver em [1]] desenvolvera uma acentuada inveja do pênis e as reflexões derivadas dessa inveja ainda continuavam a povoar-lhe o espírito. Era na realidade uma feminista; achava injusto que as meninas não gozassem da mesma liberdade que os rapazes e rebelava-se contra a sorte das mulheres em geral. Na ocasião da análise, as idéias de gravidez e parto eram-lhe desagradáveis, em parte, presumo, devido ao desfiguramento corporal a elas vinculado. Seu narcisismo de moça recorrera a essa defesa e deixara de expressar-se como orgulho por sua boa aparência. Diversas pistas indicavam que, anteriormente, deveria ter tido fortes tendências exibicionistas e escopofílicas. Quem ansiosamente desejar que as reivindicações dos fatores adquiridos, em oposição aos hereditários, não sejam subestimadas na etiologia, chamará a atenção para o fato de que o comportamento da jovem, tal como antes descrito, era exatamente o que decorreria em uma pessoa com forte fixação materna, do efeito combinado das duas influências da negligência da mãe e da comparação de seus órgãos genitais com os do irmão. Aqui, à marca da operação da influência externa nos primeiros anos de vida é possível atribuir algo que seria bom considerar como uma peculiaridade constitucional. Por outro lado, de fato uma parte dessa disposição adquirida (se foi realmente adquirida) tem de ser atribuída à constituição inata. Assim, na prática, vemos uma contínua mescla e mistura do que em teoria tentaríamos separar em um par de opostos, a saber, caracteres herdados e adquiridos.
            Se a análise tivesse terminado mais cedo, mais prematuramente ainda, haveria a possível opinião de que se tratava de um caso de homossexualismo posteriormente adquirido; porém, tal como foi, uma consideração do material nos impele a concluir tratar-se, antes, de um caso de homossexualismo congênito, o qual, como de praxe, fixou-se e se tornou inequivocamente manifesto apenas no período seguinte à puberdade. Cada uma dessas classificações faz justiça apenas a uma parte do estado de coisas verificável pela observação, mas despreza a outra. Seria melhor não ligar demasiado valor a esse modo de enunciar o problema.
            A literatura do homossexualismo em geral deixa de distinguir claramente entre as questões da escolha do objeto, por um lado, e das características sexuais e da atitude sexual do sujeito, pelo outro, como se a resposta à primeira necessariamente envolvesse as respostas às últimas. A experiência, contudo, demonstra o contrário: um homem com características predominantemente masculinas e também masculino em sua vida erótica pode ainda ser invertido com respeito ao seu objeto, amando apenas homens, em vez de mulheres. Um homem em cujo caráter os atributos femininos obviamente predominam, que possa, na verdade, comportar-se no amor como uma mulher, dele se poderia esperar, com essa atitude feminina, que escolhesse um homem como objeto amoroso; não obstante, pode ser heterossexual e não mostrar, com respeito a seu objeto, mais inversão do que um homem médio normal. O mesmo procede, quanto às mulheres; também aqui o caráter sexual mental e a escolha de objeto não coincidem necessariamente. O mistério do homossexualismo, portanto, não é de maneira alguma tão simples quanto comumente se retrata nas exposições populares: ‘uma mente feminina, fadada assim a amar um homem, mas infelizmente ligada a um corpo masculino; uma mente masculina, irresistivelmente atraída pelas mulheres, mas, ai dela, aprisionada em um corpo feminino’. Trata-se, em seu lugar, de uma questão de três conjuntos de características, a saber:

            Caracteres sexuais físicos
(hermafroditismo físico)

            Caracteres sexuais mentais
(atitude masculina ou feminina)

            Tipo de escolha de objeto

            Essas características, até certo ponto, variam independentemente uma da outra e em indivíduos diferentes são encontradas em permutações múltiplas. A literatura tendenciosa obscureceu nossa visão dessa inter-relação, colocando em primeiro plano, por razões práticas, o terceiro aspecto (tipo de escolha de objeto), que é o único que impressiona o leigo, e, além disso, exagerando a proximidade de associação entre esta e a primeira característica. Ademais, ela bloqueia o caminho para uma compreensão interna (insight) mais profunda de tudo que uniformemente se designa de homossexualismo, rejeitando dois fatos fundamentais, revelados pela investigação psicanalítica. O primeiro deles é que os homens homossexuais experimentaram uma fixação especialmente forte na mãe; o segundo é que, além de sua heterossexualidade manifesta, uma medida muito considerável de homossexualismo latente ou inconsciente pode ser detectada em todas as pessoas normais. Se tomarmos em consideração essas descobertas, evidentemente, cai por terra a suposição de que a natureza criou, de maneira aberrante, um ‘terceiro sexo’.
            Não compete à psicanálise solucionar o problema do homossexualismo. Ela deve contentar-se com revelar os mecanismos psíquicos que culminaram na determinação da escolha de objeto, e remontar os caminhos que levam deles até às disposições instintuais. Aqui o seu trabalho termina e ela deixa o restante à pesquisa biológica, que recentemente trouxe à luz, através dos experimentos de Steinach, resultados muito importantes concernentes à influência exercida pelo primeiro conjunto de características, acima mencionadas, sobre o segundo e o terceiro. A psicanálise possui uma base comum com a biologia, ao pressupor uma bissexualidade original nos seres humanos (tal como nos animais). Mas a psicanálise não pode elucidar a natureza intrínseca daquilo que, na fraseologia convencional ou biológica, é denominado de ‘masculino’ e ‘feminino’: ela simplesmente toma os dois conceitos e faz deles a base de seu trabalho. Quando tentamos reduzi-los mais ainda, descobrimos a masculinidade desvanecendo-se em atividade e a feminilidade em passividade, e isso não nos diz o bastante. Já tentei [ver em [1] e seg.] explicar até onde podemos razoavelmente esperar, ou até onde a experiência já provou, que o trabalho de elucidação como parte da tarefa da análise nos forneça os meios de efetuar uma modificação da inversão. Quando se compara até onde podemos influenciá-la com as notáveis transformações que Steinach efetuou em alguns casos, através de suas operações, o resultado não provoca uma impressão muito imponente. Mas seria prematuro, ou exagero prejudicial, se, nessa fase, cedêssemos a esperanças de uma ‘terapia’ da inversão que pudesse ser geralmente aplicada. Os casos de homossexualismo masculino em que Steinach foi bem-sucedido, atendiam à condição, nem sempre presente, de um ‘hermafroditismo’ físico muito patente. Qualquer tratamento análogo do homossexualismo feminino é, atualmente, bastante obscuro. Se consistisse em remover o que são provavelmente ovários hermafroditas e enxertar outros, que se supõe serem de um único sexo, haveria poucas perspectivas de ser aplicado na prática. Uma mulher que já se sentiu ser um homem e amou à maneira masculina, dificilmente permitirá que a forcem a desempenhar o papel de mulher, quando deve pagar pela transformação, não vantajosa sob todos os aspectos, com a renúncia a toda esperança de maternidade.
           
           
           
           
           






PSICANÁLISE E TELEPATIA (1941 [1921])

NOTA DO EDITOR INGLÊS - PSYCHOANALYSE UND TELEPATHIE
           
(a) EDIÇÃO ALEMÃ:
(1921 Agosto, data do manuscrito.)
1941 G.W., 17, 27-44.
           
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
Psychoanalysis and Telepathy’
1953 Em Psychoanalysis and the Occult, Nova Iorque, International Universities Press, 56-68. (Trad. de George Devereux.)
           
            A presente tradução inglesa é nova, de autoria de James Strachey.
           
            O manuscrito apresenta em seu início a data ‘2 ago. 21’ e, ao final, ‘Gastein, 6 ago. 21’. O original não apresenta título e o aqui adotado é o escolhido pelos editores das Gesammelte Werke.
            Uma nota prefaciadora à edição alemã afirma que o artigo ‘foi escrito para a reunião da Executiva Central da Associação Psicanalítica Internacional, realizada nas montanhas do Harz no começo de setembro de 1921’. O Dr. Ernest Jones, na ocasião Presidente da Executiva Central, conta-nos, porém, que nenhuma reunião desse órgão se realizou nas montanhas do Harz na referida data, embora houvesse uma reunião dos seguidores mais chegados de Freud: Abraham, Eitingon, Ferenczi, Rank e Sachs, além do próprio Dr. Jones. Foi para esse grupo não oficial que o artigo parece ter sido lido.
            Freud pretendera que o artigo fornecesse relatos de três casos, mas, quando foi preparar o manuscrito em Gastein, descobriu haver deixado em Viena o material do terceiro caso, e foi obrigado a substituí-lo por material de caráter bastante diferente. O ‘terceiro caso’ original, contudo, sobreviveu como manuscrito separado e está assim intitulado: ‘Pós-escrito‘. Aqui se acha o relato, omitido devido à resistência, sobre um caso de transmissão de pensamento durante a prática analítica’. O caso, na realidade, é o relativo ao Dr. Forsyth e à Forsyte Saga, o último dos registrados na Conferência XXX das New Introductory Lectures. As duas versões do caso concordam muito de perto, com algumas poucas diferenças verbais; assim, não pareceu necessário incluí-lo aqui. Quaisquer pontos substanciais de diferenças serão encontrados registrados na Standard Ed.,22.
            Esse foi o primeiro dos artigos de Freud sobre telepatia e nunca foi publicado em vida, embora a maior parte de seu material estivesse incluído, sob diversas formas, em seus últimos artigos publicados sobre o assunto. Seu artigo seguinte, o primeiro a ser publicado, é o que logo se segue neste volume, sobre o tópico um tanto diferente de Sonhos e Telepatia (1922a). Pouco depois deste, escreveu uma breve nota sobre ‘The Occult Significance of Dreams’ (1925i), aparentemente destinada à inclusão em A Interpretação de Sonhos e que foi na realidade pela primeira vez impressa como parte de um apêndice ao volume III da edição dos Gesammelte Schriften daquela obra, mas não incluído em nenhuma de suas edições posteriores. Finalmente, houve a conferência, já mencionada, sobre ‘Dreams and Occultism’ nas New Introductory Lectures, (1933a). Vale a pena observar que nesse último de seus escritos sobre o assunto não mais sentia as dúvidas sobre a propriedade de discuti-lo, tão evidentes no presente artigo; na verdade, perto do final da conferência, afasta especificamente os temores, aqui expressos, de as perspectivas científicas da psicanálise poderem ser colocadas em perigo, caso a verdade da transmissão de pensamento viesse a ser estabelecida.

PSICANÁLISE E TELEPATIA INTRODUÇÃO
           
            Não estamos destinados, segundo parece, a dedicar-nos com tranqüilidade à ampliação de nossa ciência. Mal acabamos de repelir triunfalmente dois ataques - um dos quais procurava mais uma vez negar o que trouxemos à luz e só nos oferecia em troca o tema do repúdio, ao passo que o outro tentava persuadir-nos de que nos equivocáramos da natureza do que descobrimos e poderíamos, com vantagem, tomar outra coisa em seu lugar -, logo, então, que nos sentimos seguros quanto a esses inimigos e já outro perigo surgiu. E, desta vez, é algo tremendo, algo de elementar, que ameaça não somente a nós, ameaça, talvez mais ainda, a nossos inimigos.
            Não mais parece possível manter-se afastado do estudo daqueles fenômenos conhecidos como ‘ocultos’, ou seja, dos fatos que professam falar em favor da existência real de forças psíquicas outras que não as mentes humanas e animais com que estamos familiarizados, ou que parecem revelar a posse, por essas mentes, de faculdades até aqui irreconhecidas. O ímpeto no sentido dessa investigação parece irresistivelmente forte. Durante essas últimas breves férias, tive três oportunidades de recusar associar-me a periódicos recentemente fundados, e relacionados com esses estudos. Tampouco existem muitas dúvidas quanto à origem dessa tendência. É, em parte, uma expressão da perda de valor pela qual tudo foi afetado desde a catástrofe mundial da Grande Guerra, uma parte da abordagem experimental à grande revolução, em cujo sentido nos estamos dirigindo e de cuja extensão não podemos fazer estimativa; mas indubitavelmente se trata de uma tentativa de compensação, de criar noutra esfera, supermundana, as atrações perdidas pela vida sobre esta Terra. Na verdade, alguns dos procedimentos das próprias ciências exatas podem ter contribuído para esse desenvolvimento. A descoberta do rádio confundiu, tanto quanto fez progredir, as possibilidades de explicar o mundo físico, e o novíssimo conhecimento adquirido do que é chamado de teoria da relatividade teve, sobre tantos que a admiram sem compreendê-la, o efeito de diminuir sua crença na fidedignidade objetiva da ciência. Lembrar-se-ão de que há não muito tempo atrás o próprio Einstein aproveitou a ocasião para protestar contra essa má interpretação.
            Não decorre como fato lógico que um interesse intensificado no ocultismo deva encerrar um perigo para a psicanálise. Deveríamos, pelo contrário, estar preparados para encontrar uma simpatia recíproca entre eles. Ambos experimentaram o mesmo tratamento desdenhoso e arrogante por parte da ciência oficial. Até os dias de hoje, a psicanálise é encarada como cheirando a misticismo e o seu inconsciente é olhado como uma daquelas coisas existentes entre o céu e a terra com que a filosofia se recusa a sonhar. As numerosas sugestões que ocultistas nos fizeram de que deveríamos cooperar com eles, demonstra que gostariam de tratarmos como meio pertencentes a eles, e que contam com o nosso apoio contra as pressões das autoridades exatas. Sequer, por outro lado, tem a psicanálise qualquer interesse em sair do seu caminho para defender essas autoridades, pois ela própria se coloca em oposição a tudo que é convencionalmente restrito, bem estabelecido e geralmente aceito. Não seria a primeira vez que estaria oferecendo seu auxílio às obscuras, porém indestrutíveis, conjecturas das pessoas comuns contra o obscurantismo da opinião culta. A aliança e a cooperação entre analistas e ocultistas poderiam surgir-nos como plausíveis e promissoras.
            Contudo, se olharmos mais de perto, as dificuldades começam a aparecer. A imensa maioria dos ocultistas não é impulsionada por um desejo de conhecimento por um sentimento de vergonha de que a ciência tenha por tanto tempo se recusado a tomar conhecimento do que são problemas indiscutíveis, ou por um desejo de conquistar essa nova esfera de fenômenos. São, pelo contrário, crentes convictos buscando confirmação e algo que os justifique para abertamente confessarem sua fé. Porém, a fé que primeiramente adotaram e depois procuraram impor a outros, ou é a velha fé religiosa, empurrada para o segundo plano pela ciência no curso do desenvolvimento humano, ou então outra, mais próxima ainda das convicções ultrapassadas dos povos primitivos. Os analistas, por outro lado, não podem repudiar sua descendência da ciência exata e sua comunhão com os representantes desta última. Movidos por uma extrema desconfiança do poder dos desejos humanos e das tentações do princípio de prazer, acham-se prontos, para alcançar algum fragmento de certeza objetiva, a sacrificar tudo: o brilhantismo deslumbrante de uma teoria impecável, a consciência exaltada de haver conseguido uma visão abrangente do universo e a calma mental ocasionada pela posse de amplos fundamentos para uma ação ética e conveniente. Em lugar de tudo isso, contentam-se com pedaços fragmentários de conhecimento e com hipóteses básicas, carentes de exatidão e sempre abertas à revisão. Em vez de esperar pelo momento em que poderá escapar da coerção das leis familiares da física e da química, têm esperanças no surgimento de leis naturais mais amplas e de alcance mais profundo, às quais estão prontos a submeter-se. Os analistas são, no fundo, incorrigíveis mecanicistas e materialistas, ainda que procurem evitar despojar a mente e o espírito de suas características ainda irreconhecidas. Da mesma forma, dedicam-se à investigação dos fenômenos ocultos apenas porque esperam, com isso, excluir finalmente da realidade material os desejos da humanidade.
            Em vista dessa diferença entre suas atitudes mentais, a cooperação entre analistas e ocultistas oferece poucas perspectivas de lucro. O analista tem a sua própria província de trabalho, a qual não deve abandonar: o elemento inconsciente da vida mental. Se, no curso de seu trabalho, tivesse de estar atento aos fenômenos ocultos, correria o perigo de não se dar conta de tudo o que mais de perto lhe fosse concernente. Estaria abandonando a imparcialidade, a ausência de preconceitos e prevenções que constituíram uma parte essencial de sua armadura e aparelhamento analítico. Se fenômenos ocultos se fizerem sentir sobre ele da mesma maneira que ocorre com outros fenômenos, não fugirá deles mais que a estes. Pareceria ser esse o único plano de comportamento coerente com a atividade de um analista.
            Pela autodisciplina, o analista pode defender-se contra um perigo específico, o perigo de permitir que seu interesse seja arrastado para os fenômenos ocultos. Com relação ao perigo objetivo, a situação é diferente. É pouco duvidoso que, sendo a atenção dirigida para os fenômenos ocultos, seu resultado muito em breve seja que ocorra a confirmação de um certo número deles, e provavelmente decorrerá longo tempo antes de se poder chegar a uma teoria aceitável que abranja esses fatos novos. Os espectadores avidamente atentos não esperarão tanto. À primeira confirmação, os ocultistas proclamarão o triunfo de suas opiniões. Transportarão o acolhimento de um determinado fenômeno para todos os outros e estenderão a crença nos fenômenos à crença em quaisquer explicações mais fáceis e mais a seu gosto. Estarão aptos a empregar os métodos da indagação científica, apenas como uma escada para elevá-los por sobre a cabeça da ciência. O céu nos ajude se chegarem a tal altura! Não haverá ceticismo dos assistentes em torno que os faça hesitar, nem clamor público que os faça parar. Serão saudados como libertadores do fardo da servidão intelectual, alacremente aclamados por toda a credulidade que se acha pronta e à mão desde a infância da raça humana e a infância do indivíduo. Poderá seguir-se um temível colapso do pensamento crítico, dos padrões deterministas e da ciência mecanicista. Será possível ao método científico, por uma insistência inexorável sobre a magnitude das forças, da massa e das qualidades do material em questão, impedir esse colapso?
            É vã esperança imaginar que o trabalho analítico, precisamente por relacionar-se com o misterioso inconsciente, poderá escapar de um colapso de valores como esse. Se os seres espirituais, que são os amigos íntimos dos indagadores humanos, podem fornecer explicações definitivas para tudo, nenhum interesse é capaz de sobrar para as laboriosas abordagens às forças mentais desconhecidas efetuadas pela pesquisa analítica. Tanto assim, que os métodos da técnica analítica serão abandonados se houver uma esperança de entrar em contato direto com os espíritos operantes através de processos ocultos, tal como os hábitos do trabalho paciente e enfadonho são abandonados quando há a esperança de se ficar rico de um só golpe, mediante uma especulação bem-sucedida. Ouvimos falar, durante a guerra, de pessoas situadas no meio-termo entre duas nações hostis, pertencendo a uma delas pelo nascimento e à outra pela escolha e domicílio; foi seu destino serem tratados como inimigos, primeiro por um dos lados e depois, se tinham a sorte de fugir, pelo outro. Essa poderá igualmente ser a sorte da psicanálise. Contudo, há que suportar a própria sorte, seja ela qual for, e a psicanálise, de uma ou doutra forma, terá de chegar a um acordo com a sua.
            Retornemos à situação atual, à nossa tarefa imediata. No decurso dos últimos anos, efetuei algumas observações que não ocultarei, pelo menos do círculo mais chegado a mim. Um desagrado de cair no que é atualmente uma corrente predominante, um temor de desviar o interesse da psicanálise e a total ausência de qualquer véu de discrição sobre o que tenho a dizer, tudo isso se combina, constituindo motivos para subtrair minhas observações de um público mais amplo. Meu material pode reivindicar duas vantagens que raramente estão presentes. Em primeiro lugar, ele está isento das incertezas e dúvidas a que se inclina a maioria das observações dos ocultistas e, em segundo, só desenvolve sua força convincente depois de analiticamente elaborado. Consiste, devo mencionar, em apenas dois casos de caráter semelhante; um terceiro caso, de outra espécie e aberto a uma avaliação diferente, é acrescentado à maneira de apêndice. Os primeiros dois casos, que agora comunicarei minuciosamente, estão relacionados a acontecimentos do mesmo tipo, ou seja, a profecias feitas por adivinhos profissionais que não se realizaram. A despeito disso, essas profecias causaram impressão extraordinária nas pessoas a quem foram anunciadas, de modo que sua relação com o futuro não pode constituir seu ponto essencial. Qualquer coisa capaz de contribuir para sua explicação, bem como tudo que lance dúvidas sobre sua força probatória, para mim serão extremamente bem-vindos. Minha atitude pessoal para com o material permanece sem entusiasmo e ambivalente.

                             I

            Alguns anos antes da guerra, um jovem procedente da Alemanha veio até mim a fim de ser analisado. Queixava-se de ser incapaz de trabalhar, de haver esquecido sua vida passada e de ter perdido todo o interesse. Era estudante de filosofia em Munique e estava preparando-se para o exame final. Casualmente, era um jovem altamente instruído bastate dissimulado, velhaco de uma maneira infantil e filho de um financista; como veio a surgir depois, o jovem remodelara com sucesso uma quantidade colossal de erotismo anal. Quando lhe perguntei se não havia realmente nada de que pudesse lembrar-se sobre sua vida ou sua esfera de interesse, recordou-se do enredo de um romance que esboçara, passado no Egito durante o reinado de Amenófis IV e no qual um anel em particular representava um papel importante. Tomamos esse romance como ponto de partida; o anel mostrou ser um símbolo de matrimônio e, a partir daí, conseguimos reviver todas as suas lembranças e interesses. Descobrimos que seu colapso fora o resultado de um grande ato de autodisciplina mental de sua parte. Tinha uma única irmã, alguns anos mais nova que ele, a quem era sincera e muito indisfarçadamente devotado. ‘Por que é que não podemos casar-nos?’, haviam amiúde perguntado um ao outro, mas a afeição entre eles nunca fora além do ponto permissível entre irmãos e irmãs.
            Um jovem engenheiro se enamorara da irmã. Seu amor era retribuído por ela, mas de seus rígidos pais não encontrava aprovação. Em seu problema, os dois jovens amorosos voltaram-se para o irmão em busca de ajuda. Este deu apoio à causa deles, tornou-lhes possível que se correspondessem, conseguiu que se encontrassem enquanto se achava em casa, de férias, e acabou por persuadir os pais a darem seu consentimento ao noivado e casamento. Durante o tempo de noivado, houve uma ocorrência altamente suspeita. O irmão levou seu futuro cunhado para escalar o Zugspitze e ele próprio serviu de guia. Perderam-se na montanha, envolveram-se em problemas e somente com dificuldade evitaram uma queda. O paciente ofereceu pouca objeção à minha interpretação dessa aventura como uma tentativa de assassinato e suicídio. Foi alguns meses após o casamento da irmã que o jovem começou a análise.
            Cerca de seis ou nove meses depois havia reconquistado completamente sua capacidade de trabalhar e interrompeu a análise a fim de prestar o exame e escrever sua dissertação. Um ano ou mais depois, voltou - agora doutor em filosofia - para retomar a análise, porque, segundo disse, como filósofo, a psicanálise tinha para ele um interesse que ia além do sucesso terapêutico. Foi em outubro que a recomeçou, e algumas semanas mais tarde, numa ou noutra conexão, contou-me a seguinte história.
            Vivia em Munique uma adivinha que gozava de grande reputação. Os príncipes bávaros costumavam visitá-la quando tinham algum empreendimento em mente. Tudo o que ela pedia era que lhe fornecessem uma data. (Deixei de indagar se esta tinha de incluir a data do ano). Entendia-se que a data era a do nascimento de alguma pessoa específica, mas ela não perguntava de quem. Fornecida essa data, consultaria seus livros de astrologia sobre a pessoa em questão. No mês de março anterior, meu paciente resolvera visitar a adivinha. Apresentou-lhe a data do nascimento do cunhado, sem, naturalmente, mencionar seu nome ou revelar o fato de que o tinha em mente. O oráculo assim manifestou-se: ‘A pessoa em causa morrerá no próximo julho ou agosto, de envenenamento por lagosta ou ostras.’ Após contar-me isso, meu paciente exclamou: ‘Foi maravilhoso!’
            Não pude entender e contradisse-o energicamente: ‘O que vê nisso de maravilhoso? Você está trabalhando comigo já faz diversas semanas e se seu cunhado houvesse realmente morrido, já me teria contado há muito tempo atrás. Logo, ele deve estar vivo. A profecia foi feita em março e deveria realizar-se pelo auge do verão. Agora estamos em novembro, de modo que ela não se realizou. O que acha você de tão maravilhoso nisso?’
            ‘Não há dúvida de que ela não se realizou’, respondeu ele. ‘Mas o notável a respeito é o seguinte: meu cunhado gosta apaixonadamente de lagostins, ostras etc., e, em agosto passado, teve realmente uma crise de envenenamento por lagostim e quase morreu.’ O assunto não foi mais discutido.
            Consideremos agora o caso.
            Acredito na veracidade do narrador. É inteiramente digno de confiança, sendo atualmente professor de filosofia em K -. Não consigo imaginar motivos que pudessem havê-lo induzido a me enganar. A história foi incidental e não serviu a intuitos posteriores; nada mais surgiu, nem dela se tiraram conclusões. Não era sua intenção persuadir-me da existência de fenômenos mentais ocultos e, na verdade, tenho a impressão de que não estava em absoluto esclarecido sobre o significado de sua experiência. Eu próprio fiquei tão impressionado - para falar a verdade, desagradavelmente afetado - que omiti fazer qualquer emprego analítico de seu relato.
            E a observação me parece igualmente inobjetável, de outro ponto de vista. É certo que a adivinha não conhecia o homem que apresentou a questão. Mas considere-se que grau de intimidade com alguém conhecido seria necessário, antes que se pudesse identificar a data do aniversário de seu cunhado. Por outro lado, sem dúvida todos concordarão comigo em oferecer a mais obstinada resistência à possibilidade de se inferir da data do nascimento do sujeito pelo auxílio de quaisquer tábuas ou fórmulas um acontecimento tão pormenorizado como cair doente de envenenamento por lagostim. Não se esqueçam de quantas pessoas nascem no mesmo dia. Será crível que a semelhança dos futuros de pessoas nascidas no mesmo dia possa ser levada a pormenores como esse? Arrisco-me, assim, a excluir inteiramente da discussão os cálculos astrológicos; acredito que a adivinha poderia ter adotado um outro procedimento sem afetar o resultado da indagação. Por conseguinte, segundo me parece, nós também podemos por completo excluir a adivinha (ou, como podemos dizer diretamente, a médium) da consideração como possível fonte de embuste.
            Se anuirmos à genuidade e verdade dessa observação, a sua explicação estará próxima. E em seguida descobrimos - e assim se dá com a maioria desses fenômenos - que sua explanação numa base oculta é excepcionalmente adequada e abrange por completo o que tem de ser explicado, salvo quando é tão insatisfatória em si própria. É impossível que a adivinha pudesse saber que esse homem - nascido no dia referido - teria uma crise de envenenamento por lagostim, nem que ela pudesse ter logrado tal conhecimento a partir de suas tábuas e cálculos. Entretanto, isso estava presente na mente de quem a interrogou. O fato torna-se completamente explicável se estivermos preparados para presumir que o conhecimento foi transferido dele parta a suposta profetisa, por algum método desconhecido que excluiu os meios de comunicação que nos são familiares, ou seja, teremos de inferir que existe algo como a transmissão de pensamento. As atividades astrológicas da adivinha, nesse caso, teriam desempenhado a função de desviar suas próprias forças psíquicas e ocupá-las de maneira inócua, de modo a poder tornar-se receptiva e acessível aos efeitos sobre ela causados pelos pensamentos do cliente, podendo, assim, tornar-se uma verdadeira ‘médium’. Já vimos empregados artifícios desviadores semelhantes (no caso dos chistes, por exemplo), onde se procura assegurar uma descarga mais automática para algum processo mental.
            A aplicação da análise a esse caso faz mais que isso, entretanto; aumenta mais ainda a sua significação. Ensina-nos que o que foi comunicado por este meio de indução de uma pessoa para outra não constituiu simplesmente um fragmento fortuito de conhecimento indiferente. Mostra-nos que um desejo extraordinariamente poderoso, abrigado por determinada pessoa e colocado numa relação especial com sua consciência, conseguiu, com o auxílio de uma segunda pessoa, encontrar expressão consciente sob forma ligeiramente disfarçada, tal como a extremidade sensível do espectro se revela aos sentidos, em uma chapa sensível à luz, como uma extensão colorida. Parece possível reconstruir a seqüência de pensamento do jovem após a doença e recuperação do cunhado que era o seu odiado rival: ‘Bem, ele escapou desta vez, mas não abandonará seu perigoso gosto por causa disso; esperemos que a próxima vez seja o seu fim’. Foi esse ‘esperemos’ que foi transformado na profecia. Poderia citar um fato paralelo, em um sonho (de outra pessoa), no qual uma profecia fazia parte do tema geral. A análise do sonho demonstrou que o conteúdo da profecia coincidia com a realização de um desejo.
            Não posso simplificar minha afirmação descrevendo o desejo de morte de meu paciente contra o cunhado como sendo um desejo inconsciente, reprimido, porque ele fora tornado consciente durante o tratamento, no ano anterior, e as conseqüências decorrentes de sua repressão cederam ao tratamento. Ele, porém, ainda persistia, e, embora não fosse mais patogênico, era suficientemente intenso. Poderia ser descrito como um desejo ‘suprimido’.

                             II

            Na cidade de F - cresceu uma criança que era a mais velha de uma família de cinco, todas meninas. A caçula era dez anos mais moça que ela; certa ocasião, deixara a menor cair-lhe dos braços, quando bebê; mais tarde, chamava-a de ‘sua filha’. A mãe era mais velha que o pai, e não era uma pessoa agradável. O pai - e não só na idade era mais jovem - via bastante as menininhas e as impressionava por suas muitas destrezas. Infelizmente, não impressionara sob nenhum outro aspecto: era incompetente nos negócios e incapaz de sustentar a família sem o auxílio dos parentes. A filha mais velha tornou-se, em tenra idade, o repositório de todas as preocupações que surgiam pela falta de poder aquisitivo do pai.
            Uma vez deixado para trás o caráter rígido e apaixonado de sua infância, ela se transformou em um bom espelho de todas as virtudes. Seus elevados sentimentos morais faziam-se acompanhar de uma inteligência estreitamente limitada. Tornou-se professora de uma escola primária e era muito respeitada. A tímida homenagem que lhe prestou um jovem conhecido, professor de música, deixou-a indiferente. Nenhum homem até então havia atraído sua atenção.
            Certo dia, um parente da mãe apareceu em cena, homem bem mais idoso que ela, mas ainda jovem (pois ela contava apenas dezenove anos de idade). Era um estrangeiro que vivia na Rússia como diretor de uma grande empresa comercial e se enriquecera. Foi preciso nada menos que uma guerra mundial e a derrota de um grande despotismo para empobrecê-lo. Apaixonou-se por sua jovem e severa prima e pediu-lhe para ser sua esposa. Os pais não a pressionaram, mas ela entendeu seus desejos. Por trás de todas as suas idéias morais, sentiu a atração da realização de uma fantasia plena do desejo de ajudar o pai e resgatá-lo de seu estado de necessidade. Calculou que o primo daria ao pai apoio financeiro enquanto este continuasse com o negócio e uma pensão quando finalmente o abandonasse, bem como forneceria às irmãs dotes e trousseaux, a fim de poderem casar-se. E apaixonou-se por ele, casou-se pouco depois e o acompanhou à Rússia.
            Salvo por algumas ocorrências que não eram inteiramente compreensíveis à primeira vista e cujo significado só se evidenciou em retrospecto, tudo decorreu muito bem no casamento. Ela se transformou em esposa afetuosa, sexualmente satisfeita, e um apoio providencial para sua família. Somente uma coisa faltava: não tinha filhos. Estava agora com 27 anos de idade e no oitavo ano de seu matrimônio. Morava na Alemanha e, após vencer todo tipo de hesitação, foi consultar um ginecologista alemão. Com a habitual leviandade do especialista, ele assegurou-lhe a cura se se submetesse a uma pequena operação. Ela concordou e, na véspera da operação, discutiu o assunto com o marido. Era a hora do crepúsculo e estava prestes a acender as luzes, quando o marido lhe pediu para não fazê-lo: tinha algo a dizer-lhe e preferiria estar no escuro. Disse-lhe para cancelar a operação porque a culpa de sua esterilidade era dele. Durante um congresso médico, dois anos antes, ele soubera que certas moléstias podem privar um homem da capacidade de procriar filhos. Um exame lhe demonstrara ser esse o seu caso. Após tal revelação, a operação foi abandonada. Ela própria sofreu um colapso, que durou algum tempo e que inutilmente procurou disfarçar. Só pudera amá-lo como um pai substituto e agora soubera que ele nunca poderia ser pai. Três caminhos estavam abertos para ela, todos igualmente intransponíveis: a infidelidade, a renúncia ao desejo de um filho ou a separação do marido. Esse último estava excluído pelas melhores razões práticas e o intermediário pelas mais fortes razões inconscientes, fáceis de adivinhar: toda a sua infância fora dominada pelo desejo três vezes frustrado de ter um filho do pai. Restava uma via de saída, que é a que nos interessa em seu caso. Caiu seriamente enferma com uma neurose. Durante certo tempo ergueu uma defesa contra várias tentações com o auxílio de uma neurose de angústia, mas, posteriormente, seu sintomas se transformaram em graves atos obsessivos. Passou algum tempo em institutos e por fim, com 10 anos de moléstia, veio até mim. Seu sintoma mais notável era que, quando se achava na cama, costumava prender [anstecken = colocar em contato] os lençóis aos cobertores com alfinetes de segurança. Dessa maneira, revelara o segredo do contágio [Ansteckung] de seu marido, ao qual sua esterilidade era devida.
            Em certa ocasião, contando talvez 40 anos de idade, a paciente narrou-me um episódio que remontava à época em que sua depressão estava começando, antes do desencadeamento da neurose obsessiva. Para distrair-lhe o espírito, o marido levara-a consigo numa viagem de negócios a Paris. Estavam sentados com um amigo de negócios do marido no saguão do seu hotel quando perceberam alguma agitação e movimento. Perguntara a um dos empregados do hotel o que estava acontecendo e foi-lhe dito que Monsieur le Professeur havia chegado para dar consultas em sua salinha próxima à entrada do hotel. Monsieur le Professeur, segundo parecia, era um famoso adivinho; não formulava perguntas, mas fazia os clientes imprimirem a mão em um prato cheio de areia, e predizia o futuro pelo estudo da impressão deixada. Minha paciente disse que iria entrar, para que lhe dissessem o futuro. O marido a dissuadiu, que era tolice. No entanto, após ele haver saído com o amigo, ela tirou a aliança e esgueirou-se para o gabinete do adivinho. Este estudou longamente a impressão da sua mão e então falou: ‘No futuro próximo, você terá de passar por severos conflitos, mas tudo sairá bem. Casar-se-á e terá dois filhos quando estiver com 32 anos de idade’. Ela, fazendo esse relato, dava todos os sinais de achar-se grandemente impressionada por ele, sem compreendê-lo. Não lhe causou impressão meu comentário de que, lamentavelmente, a data fixada pela profecia já havia passado há cerca de oito anos. Refleti que talvez estivesse admirando a confiante audácia da profecia, tal como o fiel discípulo do rabino profeta.
            Infelizmente minha memória, geralmente tão digna de confiança, não assegura se a primeira parte da profecia dizia: ‘Tudo sairá bem. Você se casará’, ou ‘Você será feliz.’ Minha atenção estava completamente focalizada em minha nítida impressão da frase final, com seus notáveis pormenores. Na realidade, porém, as primeiras observações, sobre conflitos que teriam um final feliz, incluem-se entre as expressões vagas que figuram em todas as profecias, até mesmo nas que se podem comprar prontas. O contraste oferecido pelos dois números específicos na frase final é mais notável ainda. Não obstante, seria de fato interessante saber se o Professor realmente falou no casamento dela. Havia tirado fora sua aliança e, aos 27 anos de idade, parecia muito jovem, podendo facilmente ter sido tomada por uma solteira. Em compensação, não seria necessária uma observação refinada, para notar a marca da aliança em seu dedo.
            Limitemo-nos ao problema contido na última frase, que lhe prometia dois filhos aos 32 anos de idade. Estes pormenores parecem cabalmente arbitrários e inexplicáveis. A pessoa mais crédula dificilmente empreenderia deduzi-los de uma interpretação das linhas da mão. Recebiam uma justificação indiscutível, se confirmados pelo futuro. Porém, não era esse o caso. Ela tinha agora 40 anos de idade, e nenhum filho. Qual, então, era a fonte e o significado desses números? A própria paciente não sabia. O óbvio seria pôr de lado toda questão e destiná-la ao monte de lixo, entre muitas outras mensagens sem sentido e ostensivamente ocultas. Isso seria muito agradável: a solução mais simples e um alívio grandemente desejável. Infelizmente, porém, tenho de acrescentar que era possível - e exatamente com a ajuda da análise - encontrar uma explicação para os dois números, uma explicação que, mais uma vez, foi completamente satisfatória, surgindo, quase naturalmente, da situação real, de vez que os dois números se ajustavam perfeitamente à história da vida da mãe de nossa paciente. A mãe só se casara aos trinta anos e fora em seu trigésimo segundo ano de vida que (diferentemente da maioria das mulheres e para compensar, por assim dizer, o seu atraso) dera à luz dois filhos. Dessa maneira, é fácil traduzir a profecia: ‘Não há necessidade de preocupar-se com a sua atual esterilidade. Isso não tem importância. Você ainda pode seguir o exemplo de sua mãe, que ainda nem se achava casada em sua idade e, não obstante, teve dois filhos aos 32 anos de idade.’ A profecia prometia-lhe a realização da identificação com a mãe, que constituíra o segredo de sua infância, e fora enunciada pela boca de um adivinho desconhecedor de todos os seus problemas pessoais, ocupando-se com examinar uma impressão deixada na areia. Podemos também acrescentar, como precondição dessa realização de desejo (inconsciente como era, em todos os sentidos): ‘Você se libertará de seu esposo inútil pela morte ou encontrará forças para separar-se dele.’ A primeira alternativa ajustar-se-ia melhor à natureza de uma neurose obsessiva, ao passo que a segunda é sugerida pela luta que, segundo a profecia, ela deveria vencer com êxito.
            Como observação, o papel representado pela interpretação analítica é ainda mais importante nesse exemplo que no anterior. Pode-se realmente dizer que a análise criou o fato oculto. Em conseqüência, o exemplo também pareceria oferecer positivamente uma prova conclusiva de poder transmitir um desejo inconsciente, assim como os pensamentos e o conhecimento a ele relacionados. Apenas posso perceber um modo de escapar à conclusividade desse último caso e, acreditem, não vou ocultá-lo. É possível que, no decurso dos doze ou treze anos passados entre a profecia e sua narração, feita durante o tratamento, a paciente tivesse formado uma paramnésia: o Professor poderia haver enunciado algum consolo geral e incolor - o que não seria de admirar - e a paciente ter gradualmente inserido nele os números significantes, tirados de seu inconsciente. Se assim foi, teríamos evitado o fato que nos ameaçou com conseqüências tão graves. Alegremente nos identificaremos com os céticos que só dão valor a um relato desse tipo quando feito imediatamente após o fato, e assim mesmo não sem hesitação. Lembro-me de que, após ter sido indicado para uma cátedra de professor, tive uma audiência com o Ministro [da Educação] para expressar-lhe meus agradecimentos. Quando me achava a caminho de casa, de volta da audiência, apanhei-me no ato de tentar falsificar as palavras trocadas entre nós, e nunca mais pude recapturar corretamente a conversa real. Deixo aos senhores decidir se a explicação que sugeri é sustentável. Não posso prová-la nem negá-la. Assim, essa segunda observação, embora em si própria mais comovente que a primeira, não está igualmente isenta de dúvidas.
            Os dois casos que lhes comuniquei acham-se relacionados com profecias não realizadas. As observações desse tipo, a meu ver, podem fornecer o melhor material sobre a questão da transmissão de pensamento, e gostaria de incentivá-los a coligir outras semelhantes. Pretendia também trazer-lhes um exemplo baseado em um material de outra espécie, um caso em que, durante determinada sessão, um paciente especial falou de coisas notavelmente relacionadas a uma experiência que eu próprio tivera pouco antes. Contudo, posso dar-lhes agora uma prova visível do fato de que discuto o assunto sobre ocultismo sob pressão de enorme resistência. Quando, em Gastein, procurei as notas que reunira e comigo trouxera [de Viena] para este trabalho, a folha onde havia anotado essa última observação não se encontrava lá; em seu lugar, porém, encontrei outra folha de lembretes irrelevantes sobre um tópico inteiramente diverso, que trouxera comigo por engano. Nada se pode fazer contra uma resistência tão clara. Devo pedir-lhes que me perdoem por omitir esse caso, pois não posso preencher a perda por memória.
            Em seu lugar acrescentarei algumas observações sobre alguém muito conhecido em Viena, o grafologista Rafael Schermann, que tem uma reputação de desempenhos muito espantosos. Diz-se que é capaz não apenas de ler o caráter de uma pessoa por uma amostra de sua letra, mas também de descrever sua aparência e adicionar a seu respeito predições que posteriormente se realizam. Incidentalmente, muitas dessas notáveis realizações se baseiam em suas próprias histórias. Certa vez, um amigo meu, sem meu conhecimento prévio, efetuou a experiência de permitir-lhe que sua imaginação divagasse sobre uma amostra de minha letra. Tudo o que produziu foi que a escrita pertencia a um senhor de idade (o que era fácil de adivinhar), com quem era difícil viver, visto tratar-se de um tirano intolerável no lar. Aqueles que desfrutam de minha casa dificilmente confirmarão isso. Mas, como sabemos, o campo do oculto está sujeito ao conveniente princípio de que os casos negativos nada provam. Não efetuei observações diretas sobre Schermann, porém, através de um paciente meu, entrei em contato com ele, sem que o soubesse. Contar-lhes-ei a respeito.
            Há alguns anos atrás procurou-me um jovem que me causou impressão particularmente simpática, e eu, assim, lhe dei preferência sobre alguns outros. Parecia estar envolvido com uma das mais conhecidas demi-mondaines e que desejava livrar-se dela, de vez que a relação o privava de toda independência de ação, mas era incapaz de fazê-lo. Consegui libertá-lo e, ao mesmo tempo, logrei uma plena compreensão de sua compulsão. Não muitos meses atrás noivara de modo normal e respeitável. A análise logo mostrou que a compulsão contra a qual estava lutando, não era a ligação com a demi-mondaine, mas com uma senhora casada de seu próprio círculo, com quem tivera uma liaison, desde o início da juventude. A demi-mondaine servia apenas de bode expiatório em quem podia satisfazer todos os sentimentos de vingança e ciúme que realmente se aplicavam à outra senhora. Segundo um modelo que nos é familiar, fizera uso do deslocamento para um novo objeto, a fim de escapar à inibição ocasionada por sua ambivalência.
            Era hábito seu infligir os tormentos mais refinados à demi-mondaine, que se apaixonara por ele de uma maneira quase desprendida. Entretanto, quando não mais podia esconder seus sofrimentos, ele, por sua vez, transportava para ela a afeição que sentira pela mulher que amara desde a juventude; dava-lhe presentes e a aplacava, e o ciclo retomava seu curso. Quando enfim, sob a influência do tratamento, rompeu com ela, tornou-se claro o que estivera tentando conseguir por aquele comportamento em relação a esse sucedâneo de seu primeiro amor: a vingança com a tentativa de suicídio que fizera quando essa amada rejeitara suas propostas. Após a tentativa, conseguiu por fim vencer a relutância dela. Durante esse período do tratamento costumava visitar o famoso Schermann. Com base em amostras da letra da demi-mondaine, o grafologista repetidamente lhe disse, à guisa de interpretação, que ela se achava em seu último alento, que se encontrava à beira do suicídio e que certamente se mataria. Ela, contudo, assim não procedeu, mas arremessou de si suas fraquezas humanas e recordou os princípios de sua profissão e seus deveres para com o amigo oficial. Percebi com clareza que o homem milagroso havia simplesmente revelado a meu paciente o seu desejo mais íntimo.
            Após descartar-se dessa figura espúria, meu paciente empreendeu seriamente a tarefa de libertar-se de seu vínculo real. Depreendi de seus sonhos um plano que estava formando, com o qual poderia escapar da relação com o seu primeiro amor sem causar-lhe demasiada mortificação ou prejuízos materiais. Ela tinha uma filha, que gostava muito do jovem amigo da família e ostensivamente nada sabia do papel secreto que desempenhava. Propunha-se agora a casar-se com essa jovem. Pouco depois, o esquema tornou-se consciente e o homem deu os primeiros passos para o pôr em funcionamento. Apoiei suas intenções, uma vez que o plano oferecia o que constituía uma possível saída de sua difícil situação, ainda que irregular. Dentro em pouco, porém, teve um sonho em que mostrava hostilidade pela jovem, e então, voltou a consultar Schermann; o grafologista informou que a jovem era infantil e neurótica, e ele não deveria casar-se com ela. Dessa vez, o grande observador da natureza humana estava certo. Ela, já então considerada como a fiancée do homem, comportava-se de maneira cada vez mais contraditória e decidiu-se que ela devia analisar-se. Em resultado da análise, o esquema de casamento foi abandonado. A jovem tinha completo conhecimento inconsciente das relações entre a mãe e o fiancé, achando-se ligada a ele apenas por causa de seu complexo de Édipo.
            Por essa época, a análise interrompeu-se. O paciente achava-se livre e capaz de seguir seu próprio caminho no futuro. Escolheu para esposa uma moça respeitável fora de seu círculo familiar, à qual Schermann concedera um julgamento favorável. Esperemos que esteja certo mais uma vez.
            Terão compreendido o sentido de minha inclinação a interpretar essas experiências minhas com Schermann. Verão que todo o meu material se relaciona apenas ao ponto isolado da transmissão de pensamento. Nada tenho a dizer sobre todos os outros milagres que reivindica o ocultismo. Minha própria vida, como já abertamente admiti, tem sido particularmente pobre, no sentido do oculto. Talvez o problema da transmissão de pensamento possa parecer-lhes muito trivial em comparação com o grande mágico do oculto, mas considerem que grave medida além do que até aqui acreditamos estaria envolvida apenas nessa hipótese. O que o zelador de [a basílica de] São Dionísio costumava acrescentar à sua narração do martírio do santo permanece uma verdade. Conta-se que São Dionísio, após sua cabeça haver sido cortada, apanhou-a do chão e caminhou boa distância com ela sob o braço. Mas o zelador costumava acrescentar: ‘Dans des cas pareils, ce n’est que le premier pas qui coûte.’ O resto é fácil.
           
           





















SONHOS E TELEPATIA (1922)

TRAUM UND TELEPATHIE
           
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1922 Imago, 8 (1), 1-22.
1925 G.S., 3, 278-304.
1925 Traumlehre, 22-48.
1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 326-354.
1940 G.W., 13, 165-91.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:
            Dreams and Telepathy’
1922 Int. J. Psycho-Anal., 3, 283-305. (Trad. de C. J. M. Hubback.)
1925 C.P., 4, 408-35. (Mesmo tradutor.)

            A presente tradução inglesa é uma versão consideravelmente modificada da publicada em 1925.

            Este foi o primeiro dos escritos de Freud sobre telepatia a ser publicado, embora houvesse sido escrito após o anterior (pág. 189). Não pode ter sido escrito muito antes do final de novembro de 1921, visto que uma data oito semanas após 27 de setembro desse ano aparece realmente no material em estudo (pág. 223). Provas internas demonstram que foi projetado como uma conferência, e no manuscrito original (bem como nas edições de 1922 e 1925) as palavras ‘conferência proferida perante a Sociedade Psicanalítica de Viena’ ocorrem abaixo do título. Por outro lado, as minutas publicadas da Sociedade de Viena não fornecem provas de que o trabalho tenha sido lido perante ela. Parece provável que a intenção de Freud em lê-la foi por alguma razão abandonada, após o primeiro número de Imago de 1922 já se achar composto.
           
SONHOS E TELEPATIA 

            Atualmente, quando se sente tão grande interesse pelo que é chamado de fenômenos ‘ocultos’, expectativas muito definidas serão indubitavelmente despertadas pelo anúncio de um artigo com esse título. Não obstante, apresso-me em explicar que não há fundamento para tais expectativas. Nada aprenderão, deste meu trabalho, sobre o enigma da telepatia; na verdade, nem mesmo depreenderão se acredito ou não em sua existência. Nesta ocasião, propus-me a tarefa muito modesta de examinar a relação das ocorrências telepáticas em causa, seja qual for sua origem, com os sonhos, ou, mais exatamente, com nossa teoria dos sonhos. Saberão que comumente se acredita ser muito íntima a conexão entre sonhos e telepatia; apresentarei a opinião de que ambos pouco têm a ver reciprocamente, e que, viesse a existência de sonhos telepáticos a ser estabelecida, não haveria necessidade de modificar nossa concepção dos sonhos, em absoluto.
            O material em que se baseia o presente relato é muito tênue. Em primeiro lugar, devo expressar meu pesar de não poder fazer uso de meus próprios sonhos, como fiz quando escrevi A Interpretação de Sonhos (1900a). Porém, nunca tive um sonho ‘telepático’. Não que eu passasse sem sonhos do tipo que transmitem a impressão de que um certo evento definido está acontecendo em algum lugar distante, deixando ao que sonha decidir se o fato está acontecendo naquele momento ou acontecerá em alguma época posterior. Também na vida desperta amiúde me dei conta de pressentimentos de acontecimentos distantes. Contudo, nenhuma dessas impressões, previsões e premonições se ‘realizaram’, como dizemos; não se demonstrou existir uma realidade externa correspondente a elas e, portanto, tiveram de ser encaradas como previsões puramente subjetivas.
            Sonhei certa vez, por exemplo, durante a guerra, que um de meus filhos então servindo na frente de batalha fora morto. Isso não estava diretamente enunciado no sonho, mas expresso de uma maneira inequívoca através do bem conhecido simbolismo de morte, cuja descrição foi dada pela primeira vez por Stekel [1911a]. (Não devemos nos esquecer de cumprir o dever, que amiúde se sente ser inconveniente, de apresentar agradecimentos literários.) Vi o jovem soldado de pé sobre um patamar, entre a terra e a água, digamos, e ele me apareceu muito pálido. Falei-lhe, mas não me respondeu. Havia outras indicações inequívocas. Não estava usando uniforme militar, mas um costume de esqui que usara quando um grave acidente de esquiagem lhe acontecera, vários anos antes da guerra. Ficou de pé sobre algo semelhante a um banquinho, com um armário à sua frente, situação sempre associada em meu espírito à idéia de ‘cair’, através de uma lembrança de minha própria infância. Menino de pouco mais de dois anos de idade, eu subira num banquinho como aquele para apanhar algo de cima de um armário - provavelmente algo bom de comer -, caí e causei-me um ferimento de que ainda hoje posso mostrar a cicatriz. Meu filho, contudo, a quem o sonho pronunciava como morto, voltou ileso da guerra para casa.
            Apenas há pouco tempo atrás tive outro sonho trazendo más notícias; deu-se, penso eu, exatamente antes de me decidir a reunir essas poucas observações. Dessa vez, não houve muita tentativa de disfarce. Vi minhas duas sobrinhas que moram na Inglaterra. Estavam vestidas de preto e me disseram: ‘Enterramo-la na quinta-feira.’ Soube que a referência era à morte de sua mãe, então com 87 anos de idade, viúva de meu irmão mais velho.
            Seguiu-se um tempo de desagradável expectativa; certamente nada haveria de surpreendente no fato de uma senhora tão idosa ter-se finado subitamente; contudo, seria muito desagradável que o sonho coincidisse exatamente com a ocorrência. A próxima carta da Inglaterra, contudo, dissipou esse temor. Em benefício daqueles que se interessam pela teoria onírica da realização de desejos posso interpolar a reafirmação de que não houve dificuldade em detectar pela análise os motivos inconscientes que se poderia presumir existirem nesses sonhos de morte, bem como em outros.
            Espero que não contestem o valor do que acabo de relatar, conquanto as experiências negativas provem tão pouco aqui quanto o fazem em assuntos ocultos. Estou bem ciente disso e não aduzi esses exemplos com qualquer intenção de provar algo ou de sub-repticiamente influenciá-los em algum sentido específico. Meu único propósito foi explicar a pobreza de meu material.
            Outro fato por certo me parece de maior significação: que durante cerca de 27 anos de trabalho como analista, nunca me achei em posição de observar um sonho verdadeiramente telepático em qualquer de meus pacientes. E esses pacientes, contudo, constituíam uma boa coleção de naturezas gravemente neuropáticas e ‘altamente sensíveis’. Vários deles relataram-me incidentes bem notáveis em sua vida anterior, nos quais baseavam uma crença em misteriosas influências ocultas. Acontecimentos como acidentes ou doenças de parentes próximos, sobretudo a morte de um dos genitores, ocorreram com bastante freqüência durante o tratamento e o interromperam, mas sequer numa única ocasião essas ocorrências, eminentemente apropriadas, como eram, em caráter, permitiram-me a oportunidade de registrar um único sonho telepático, embora o tratamento se estendesse por diversos meses ou mesmo anos. Quem se interessar, pode procurar uma explicação para este fato, que restringe ainda mais o material à minha disposição. Seja como for, ver-se-á que tal explicação não influenciaria o tema deste artigo.
            Tampouco me embaraça indagarem-me por que não fiz uso da abundante reserva de sonhos telepáticos ocorrida na literatura do assunto. Não teria de procurar muito, visto que as publicações tanto da Sociedade Inglesa quanto da Sociedade Americana de Pesquisas Psíquicas me são acessíveis como membro de ambas. Em nenhum desses relatos há qualquer tentativa de submeter tais sonhos à investigação analítica, que seria nosso primeiro interesse em casos assim. Ademais, logo perceberão que, para os fins do presente artigo, um único sonho será o bastante.
            Assim, meu material consiste simples e unicamente em dois relatos que chegaram até mim de correspondentes na Alemanha. Os autores não me são pessoalmente conhecidos, mas fornecem seus nomes e endereços; não tenho o menor fundamento para presumir, de sua parte, qualquer intenção de embuste.

                             I

            Com o primeiro dos dois já havia mantido correspondência; fora suficientemente gentil em enviar-me, como muitos de meus leitores fazem, observações de ocorrências cotidianas e coisas assim. Trata-se obviamente de um homem instruído e extremamente inteligente; dessa vez, coloca expressamente seu material à minha disposição, caso me interesse em transformá-lo em ‘relato literário’.
            Sua carta diz o seguinte:
            ‘Considero o seguinte sonho como de interesse suficiente para que o transmita ao senhor, a título de material para suas pesquisas.
            ‘Devo primeiro enunciar os seguintes fatos. Minha filha, que é casada e mora em Berlim, esperava seu primeiro parto em meados de dezembro deste ano. Eu pretendia ir a Berlim, na ocasião, com minha (segunda) esposa, madrasta de minha filha. Durante a noite de 16 para 17 de novembro sonhei, com vividez e clareza nunca experimentada, que minha esposa havia dado à luz gêmeos. Vi os dois saudáveis bebês muito claramente, com seus rostos rechonchudos, deitados em seu berço, lado a lado. Não lhes observei o sexo; um, de cabelos claros, tinha distintamente as minhas feições e algo das de minha esposa; o outro, de cabelos castanhos, parecia-se claramente com ela, com algum aspecto meu. Disse a minha esposa, que tem cabelos louro-arruivados: “Provavelmente o cabelo castanho de ‘seu’ filho também ficará ruivo mais tarde.” Minha mulher deu-lhe o seio. No sonho, ela também fizera um pouco de geléia numa bacia de lavar e as duas crianças engatinhavam pela bacia e lambiam-lhe o conteúdo.
            ‘Quanto ao sonho, é só. Quatro ou cinco vezes que despertei durante ele perguntei-me se era verdade que tínhamos gêmeos, mas não cheguei, com exatidão alguma, à conclusão de ser apenas um sonho. Este durou até eu despertar e, após, ainda decorreu tempo até que me sentisse inteiramente esclarecido sobre o verdadeiro estado de coisas. Ao desjejum, contei à minha esposa o sonho, que muito a divertiu. Disse ela: “Será que Ilse (minha filha) vai ter gêmeos?” Respondi: “Dificilmente, uma vez que os gêmeos não são costume, seja em minha família ou na de G” (marido dela). Em 18 de novembro, às dez horas da manhã, recebi um telegrama de meu genro, passado na tarde anterior, comunicando-me o nascimento de gêmeos, um menino e uma menina. O nascimento, assim, dera-se na ocasião em que estava sonhando que minha esposa tivera gêmeos. O parto ocorrera quatro semanas mais cedo do que qualquer de nós esperava, com base nos cálculos de minha filha e meu genro.
            ‘Mas há ainda uma outra circunstância: na noite seguinte [isto é, antes também de recebido o telegrama], sonhara que minha falecida esposa, mãe de minha filha, tomara a seu cargo 48 bebês recém-nascidos. Quando a primeira dúzia estava chegando, protestei. Nesse ponto, o sonho findou.
            ‘Minha falecida esposa gostava muito de crianças. Freqüentemente falava a esse respeito, dizendo que gostaria de ter um bando inteiro delas em torno de si, quanto mais, melhor; que se sairia muito bem se a encarregassem de um jardim de infância e que seria muito feliz assim. O barulho que as crianças fazem era música para ela. De tempos em tempos convidava um bando inteiro de crianças das ruas e as regalava com chocolate e bolos no pátio de nossa vivenda. Minha filha deve ter pensado em seguida na mãe após o parto, especialmente devido à surpresa de sua prematuridade, da vinda de gêmeos e de sua diferença de sexo. Sabia que a mãe teria acolhido o fato com a mais viva alegria e simpatia: “Pense só no que mamãe diria, se estivesse comigo agora!” Esse pensamento deve, indubitavelmente, ter-lhe passado pela mente. E então sonhei com minha falecida esposa, com quem raramente sonho, e em quem não falara nem pensara após o primeiro sonho.
            ‘O senhor acha que a coincidência entre o sonho e o fato foi acidental em ambos os casos? Minha filha é muito ligada a mim e estava certamente pensando em mim durante o trabalho de parto, particularmente porque amiúde trocáramos cartas sobre o seu modo de vida durante a gravidez e eu lhe havia constantemente dado conselhos.’
            É fácil adivinhar o que foi minha resposta a essa carta. Fiquei triste por descobrir que o interesse de meu correspondente pela análise havia sido tão completamente morto por seu interesse na telepatia. Evitei assim sua pergunta direta e, observando que o sonho continha muito coisa além da vinculação com o nascimento dos gêmeos, pedi-lhe para fornecer-me quaisquer informações ou idéias que lhe ocorressem e pudessem dar-me uma pista quanto ao significado do sonho.
            Logo após recebi a seguinte segunda carta que, deve-se admitir, não me forneceu inteiramente tudo o que eu queria:
            ‘Não pude responder sua amável carta do dia 24 senão hoje. Ficarei encantado em contar-lhe, “sem omissão ou reserva”, todas as associações que me ocorrerem. Infelizmente não são muitas, e outras viriam em conversa.
            ‘Pois bem: minha esposa e eu não queremos mais filhos. Quase nunca temos relações sexuais; seja como for, por ocasião do sonho certamente não havia “perigo”. O parto de minha filha, que era esperado para meados de dezembro, constituía naturalmente um tema freqüente de conversa entre nós. Minha filha fora examinada e radiografada no verão e o médico que fizera o exame estava certo de que a criança seria um menino. Minha esposa disse na ocasião: “Vou rir se, ao fim das contas, for uma menina.” Na ocasião, também observou que seria melhor que fosse um H. em vez de um G. (nome de família de meu genro); minha filha é mais bonita e faz melhor figura que ele embora ele tenha sido oficial da marinha. Efetuei alguns estudos da questão da hereditariedade e tenho o hábito de olhar para bebês, a fim de ver com quem se parecem. Uma coisa ainda: temos um cãozinho que se senta conosco à mesa, à noite, para receber sua comida, e que lambe os pratos. Todo esse material aparece no sonho.
            ‘Gosto de crianças pequenas e amiúde tenho dito que gostaria de novamente cuidar da educação de uma criança, agora que devo possuir bem mais compreensão, interesse e tempo para dedicar-lhe; porém, com minha esposa não o desejaria, visto que não possui as qualidades necessárias para criar judiciosamente uma criança. O sonho faz-me presente de dois filhos; não observei seu sexo. Vejo-os ainda neste momento, deitados na cama, e reconheço-lhes as feições, um deles mais “eu” e o outro mais minha esposa, cada qual, porém, com traços menores do outro lado. Minha esposa possui cabelos louro-arruivados, mas um dos filhos tem cabelos castanhos (avermelhados). Digo eu: “Ora bem, eles também ficarão ruivos mais tarde.” Ambas as crianças engatinham por uma grande bacia de lavar em que minha esposa esteve mexendo geléia e lambem-lhe o fundo e os lados (sonho). A origem desse pormenor é facilmente explicável, assim como o sonho como um todo. Ele não seria difícil de compreender ou interpretar se não houvesse coincidido com a chegada inesperadamente precoce de meus netos (três semanas mais cedo), uma coincidência de tempo quase exata. (Não posso dizer exatamente quando começou o sonho; meus netos nasceram às 9 e 9 e 15 da noite; fui deitar-me por volta das onze horas e tive o sonho no decorrer da noite.) Também o nosso conhecimento de que a criança seria um menino junta-se à dificuldade, embora possivelmente a dúvida sobre se isso fora inteiramente determinado possa explicar o aparecimento de gêmeos no sonho. Mesmo assim, a coincidência do sonho com o aparecimento inesperado e prematuro dos gêmeos de minha filha permanece.
            ‘Não foi a primeira vez que fatos distantes se me tornaram conhecidos antes que recebesse as notícias reais. Para fornecer um exemplo entre muitos, em outubro recebi uma visita de meus três irmãos. Não nos havíamos reunido durante trinta anos, exceto por um tempo muito breve, uma vez nos funerais de meu pai e outra nos de minha mãe. Ambas as mortes eram esperadas e não tivera “pressentimentos” em nenhum dos casos. Mas, há cerca de 25 anos atrás, meu irmão mais moço faleceu de modo inteiramente súbito e inesperado, quando tinha dez anos. Quando o carteiro entregou-me o cartão-postal com a notícia de sua morte, antes que passasse o olhar por ele veio-me logo o pensamento: “É para dizer que meu irmão morreu.” Fora o único que ficara em casa, um rapaz forte e sadio, ao passo que nós, os quatro irmãos mais velhos, já estávamos plenamente desenvolvidos e havíamos deixado a casa paterna. Por ocasião da visita de meus irmãos, a conversa fortuitamente girou em torno dessa experiência minha e, como se fosse uma palavra de ordem, todos os três irmãos declaravam haver-lhes acontecido exatamente a mesma coisa. Se ocorreu exatamente da mesma maneira, não posso dizer; de qualquer modo, cada um declarou que se sentira perfeitamente certo da morte, exatamente antes que a notícia inesperada chegasse. Somos todos, pelo lado materno, de disposição sensível, embora homens fortes e altos, mas nenhum de nós é, de modo algum, inclinado ao espiritismo ou ao ocultismo; pelo contrário, rejeitamos a adesão a qualquer dos dois. Meus irmãos são todos homens de formação universitária, dois professores, o outro agrimensor, todos antes formalistas que visionários. Isto é tudo o que posso contar-lhe em relação ao sonho. Se puder transformá-lo em um relato literário, fico encantado em colocá-lo à sua disposição.’
            Temo que os leitores possam comportar-se como o autor dessas duas cartas. Também estarão primariamente interessados em saber se o sonho pode ser realmente considerado como uma notificação telepática do nascimento inesperado dos gêmeos, e não estarão dispostos a submeter o sonho à análise, como qualquer outro. Prevejo que sempre será assim quando a psicanálise e o ocultismo se encontrarem. A primeira tem, por assim dizer, todos os nossos instintos mentais contra ela; do último, vamos a seu encontro a meio caminho, movidos por simpatias poderosas e misteriosas. Entretanto, não vou assumir a posição de não ser mais que um psicanalista, de os problemas do ocultismo não me serem concernentes; com acerto julgariam isso como apenas uma fuga ao problema. Nada disso eu posso dizer que constituiria uma grande satisfação para mim, se pudesse convencer-me, assim como a outros, da inatacável evidência da existência de processos telepáticos, mas considero também que as informações fornecidas sobre esse sonho são inteiramente inadequadas para justificar um pronunciamento desse tipo. Observação que nem uma só vez ocorre a esse homem inteligente, profundamente interessado em saber como se acha no problema de seu sonho, dizer-nos quando pela última vez viu a filha ou que notícias teve dela ultimamente. Escreve, na primeira carta, que o nascimento foi um mês mais cedo; na segunda, porém, esse mês transformou-se em apenas três semanas e nenhuma delas nos diz se o nascimento foi realmente prematuro ou se, como tão amiúde acontece, os interessados estavam enganados em seus cálculos. Temos, porém, de considerar esses e outros pormenores da ocorrência, se quisermos pesar a probabilidade de aquele que sonhou haver feito estimativas e palpites inconscientes. Sinto também que isso não seria útil, ainda que conseguisse obter resposta a tais perguntas. No processo de chegar à informação, sempre surgiriam novas dúvidas, que só poderiam ser acalmadas se tivéssemos o homem à nossa frente e pudéssemos reviver todas as lembranças pertinentes que talvez ele tenha afastado como não essenciais. Tem certamente razão no que diz no começo de sua segunda carta, de que mais coisas surgiriam conversando.
            Considerem um outro caso semelhante, em que nenhum papel desempenha o intérprete perturbado pelo ocultismo. Amiúde devem os leitores ter estado em posição de comparar a anamnese e as informações sobre a doença, dadas durante a primeira sessão por qualquer neurótico, com o que dele obtiveram após alguns meses de psicanálise. À parte as abreviações inevitáveis, quantas coisas essenciais foram omitidas ou suprimidas, quantas conexões foram deslocadas; na realidade, quanto de incorreto ou inverídico lhes foi contado naquela primeira ocasião! Não me chamarão de hipercrítico se recusar-me, nas circunstâncias, a fazer qualquer pronunciamento sobre se o sonho em causa é um evento telepático, uma realização particularmente sutil por parte do inconsciente do que sonhou, ou se deve simplesmente ser tomado como uma coincidência notável. Nossa curiosidade deve satisfazer-se com a esperança de que, em alguma ocasião posterior, seja possível efetuar um exame oral pormenorizado do que sonhou. Mas não podem dizer que esse resultado de nossa investigação os desapontou, porque os preparei para ele; disse-lhes que não ouviriam nada que lançasse luz sobre o problema da telepatia.
            Se agora passarmos ao tratamento analítico do sonho, seremos novamente obrigados a expressar nossa insatisfação. Os pensamentos que aquele que sonhou associa ao conteúdo manifesto do sonho, são mais uma vez insuficientes e não nos permitem efetuar qualquer análise do sonho. Por exemplo, o sonho entra em grandes pormenores sobre as semelhanças das crianças com os pais, discute a cor de seus cabelos e a provável mudança de cor numa idade posterior, e como explicação desses elaborados detalhes recebemos apenas, do que sonhou, a árida informação de que sempre se interessou por questões de semelhança e hereditariedade. Estamos acostumados a esperar um material bastante mais amplo que este! Em determinado ponto, porém, o sonho admite uma interpretação analítica e exatamente nesse ponto a análise, que sob outros aspectos não possui conexão com o ocultismo, vem em auxílio da telepatia de uma maneira digna de nota. É apenas por causa desse ponto isolado que lhes estou pedindo sua atenção para este sonho.
            Corretamente falando, o sonho não tem qualquer direito a ser chamado de ‘telepático’. Não informou quem o sonhou de nada que (fora de seu conhecimento normal) se estivesse realizando noutro lugar. O que o sonho contou foi algo inteiramente diferente do acontecimento comunicado no telegrama recebido no segundo dia após a noite do sonho. Este e a ocorrência real divergem num ponto particularmente importante, mas concordam, afora a coincidência de tempo, noutro elemento muito interessante. No sonho, a esposa do que sonhou teve gêmeos. A ocorrência, contudo, fora que a filha dele dera à luz gêmeos, em sua casa distante. O que sonhou não desprezou essa diferença; não parecia conhecer nenhum modo de superá-la e como, de acordo com seu próprio relato, não tinha inclinações para o oculto, perguntava apenas, de modo bastante experimental, se a coincidência entre o sonho e a ocorrência sobre o ponto do nascimento de gêmeos poderia ser mais que um acidente. A interpretação analítica dos sonhos, contudo, extingue essa diferença entre o sonho e o acontecimento e dá a ambos o mesmo conteúdo. Se consultarmos o material associado ao sonho, ele mostra, a despeito de sua dispersão, que existia um vínculo íntimo de sentimento entre o pai e a filha, um vínculo de sentimento que é tão costumeiro e natural que deveríamos deixar de nos envergonharmos dele, um vínculo que, na vida cotidiana, simplesmente se expressa como um interesse terno e só é impulsionado à sua conclusão lógica nos sonhos. O pai sabia que a filha se aferrava a ele, estava convencido de que amiúde pensara nele durante o trabalho de parto. Penso que, em seu coração, dera-a de má vontade ao genro, a que, em uma das cartas, faz algumas referências depreciativas. Na ocasião do parto (esperado ou comunicado por telepatia) o desejo inconsciente tornou-se ativo na parte reprimida de sua mente: ‘ela deveria ser minha (segunda) esposa’; foi esse desejo que deformou os pensamentos oníricos e constituiu a causa da diferença entre o conteúdo manifesto do sonho e o acontecimento. Temos o direito de substituir, no sonho, a segunda esposa pela filha. Se possuíssemos mais associações com o sonho, poderíamos indubitavelmente verificar e aprofundar esta interpretação.
            E agora cheguei ao argumento que quero apresentar-lhes. Esforçamo-nos por manter a imparcialidade mais estrita e permitimos que duas concepções do sonho se classificassem como igualmente prováveis e igualmente não provadas. Segundo a primeira, o sonho é uma reação a uma mensagem telepática: ‘sua filha acabou de trazer gêmeos ao mundo’. De acordo com a segunda, está subjacente ao sonho um processo inconsciente de pensamento capaz de ser reproduzido mais ou menos assim: ‘Hoje é o dia em que o parto deveria realizar-se, se é que aqueles jovens em Berlim estão realmente errados de um mês em seus cálculos, como suspeito. E se minha (primeira) esposa ainda estivesse viva, certamente não ficaria contente com um só neto. Para agradá-la, teria de haver pelo menos gêmeos.’ Estando certa essa segunda opinião não surge nenhum problema novo. Trata-se simplesmente de um sonho como qualquer outro. Os pensamentos oníricos (pré-conscientes), tal como delineados acima, são reforçados pelo desejo (inconsciente) de que nenhuma outra mulher senão a filha deveria ser a segunda esposa do que sonhou e assim surge o sonho manifesto, tal como nos foi descrito.
            Se preferirem pressupor que uma mensagem telepática sobre o parto da filha chegou ao que dormia, surgem novas questões da relação de uma mensagem como esta com um sonho e de sua influência na formação dos sonhos. A resposta não se acha distante, sendo bastante clara. Uma mensagem telepática será tratada como uma parte do material que entra na formação de um sonho, como qualquer outro estímulo externo ou interno, como um ruído perturbador na rua ou uma insistente sensação orgânica no próprio corpo do que dorme. Em nosso exemplo, é evidente a maneira pela qual a mensagem, com a ajuda de um desejo reprimido à espreita, remodelou-se numa realização de desejo; infelizmente, não é tão fácil demonstrar que se combinou com outros materiais que se tornaram ativos ao mesmo tempo, misturando-se com eles para formar um sonho. As mensagens telepáticas - se temos justificativa para reconhecer sua existência - não provocam assim alteração no processo de formação de um sonho; a telepatia nada tem a ver com a natureza dos sonhos. E, a fim de evitar a impressão de que estou tentando ocultar uma noção vaga por trás de palavras abstratas e bem sonantes, estou pronto a repetir: a natureza essencial dos sonhos consiste no processo peculiar da ‘elaboração onírica’, que, com o auxílio de um desejo inconsciente, transporta os pensamentos pré-conscientes (resíduos diurnos) para o conteúdo manifesto do sonho. O problema da telepatia interessa aos sonhos tanto quanto o problema da ansiedade.
            Tenho esperanças de que irão pressupor isso; irão porém levantar a objeção de que, não obstante, existem outros sonhos telepáticos em que não há diferença entre o acontecimento e o sonho e nos quais nada mais se pode encontrar senão uma reprodução não deformada do evento. Em minha própria experiência, não tenho conhecimento desses sonhos, mas sei que foram muitas vezes comunicados. Se presumirmos a necessidade de lidarmos com um sonho telepático assim, indisfarçado e inadulterado, surgirá outra questão. Deveríamos chamar essa experiência telepática realmente de ‘sonho’? Certamente o farão enquanto se ativerem à praxe popular, segundo a qual tudo o que acontece na vida mental durante o sono é chamado de sonho. Vocês, também, talvez digam: ‘Agitei-me no sonho’ e ainda se acham menos conscientes de alguma incorreção quando falam: ‘Derramei lágrimas no sonho’ ou ‘Senti-me apreensivo no sonho’. Mas sem dúvida notarão que em todos esses casos estão empregando ‘sonho’, ‘sono’ e ‘estado de estar adormecido’ intercambiavelmente, como se não houvesse distinção entre eles. Penso que seria interessante para a precisão científica manter ‘sonho’ e ‘estado de sono’ mais distintamente separados. Por que deveríamos fornecer uma contrapartida à confusão evocada por Maeder que, por recusar-se a distinguir entre a elaboração onírica e os pensamentos oníricos latentes, descobriu uma nova função para os sonhos? Supondo-se, então, que somos colocados frente a frente com um ‘sonho’ telepático puro, denominemo-lo de preferência, em vez de ‘sonho’, de experiência telepática em um estado de sono. Um sonho sem condensação, deformação, dramatização e, acima de tudo, sem realização de desejo, certamente não merece esse nome. Recordar-me-ão de que, sendo assim, existem outros produtos mentais no sono a que o direito de serem chamados ‘sonhos’ teria de ser recusado. Experiências reais do dia são, às vezes, simplesmente repetidas no sono; reproduções de cenas traumáticas em ‘sonhos’ [ver em [1]] levaram-nos ainda ultimamente a revisar a teoria dos sonhos. Há sonhos que devem ser distinguidos do tipo habitual por certas qualidades especiais que, dizendo corretamente, nada mais são que fantasias noturnas, não havendo sofrido acréscimos ou alterações de espécie alguma e sendo, sob todos os outros aspectos, semelhantes aos familiares devaneios ou sonhos diurnos. Seria esquisito, sem dúvida, excluir essas estruturas do domínio dos ‘sonhos’. Entretanto, todas elas provêm de dentro, são produtos de nossa vida mental, ao passo que a própria concepção do sonho puramente ‘telepático’ reside em ser ele uma percepção de algo externo perante o qual a mente permanece passiva e receptiva.

                             II

            O segundo caso que apresentarei à observação, na realidade segue outras linhas. Não se trata de um sonho telepático, mas de um sonho recorrente da infância em diante, em uma pessoa que teve muitas experiências telepáticas. A sua carta, que reproduzirei aqui, contém certas coisas notáveis a cujo respeito não podemos formar nenhum julgamento. Uma parte dela é de interesse quanto ao problema da relação da telepatia com os sonhos.

            (1) ‘…Meu médico, Herr Dr. N., aconselha-me a fornecer-lhe um relato de um sonho que me perseguiu durante uns 30 ou 32 anos. Estou seguindo o conselho dele e talvez o sonho possa interessar ao senhor, sob algum aspecto científico. Desde que, em sua opinião, esses sonhos devem remontar sua origem a uma experiência de natureza sexual nos primeiros anos de minha infância, relato algumas reminiscências dela. São experiências cuja impressão em mim ainda persiste, e seu caráter foi tão acentuado que chegaram ao ponto de determinar minha religião.
            ‘Permita-me que lhe peça para notificar-me de que maneira o senhor explica esse sonho e se não será possível bani-lo de minha vida, porque ele me assombra com um fantasma e as circunstâncias que o acompanham - sempre caio da cama e já me infligi danos não pouco consideráveis - tornam-no particularmente desagradável e aflitivo.’
            (2) ‘Tenho 37 anos de idade, sou muito forte e me encontro em boa saúde física, mas na infância tive, além de sarampo e escarlatina, uma crise de nefrite. Além disso, aos cinco anos de idade, tive uma inflamação muito grave nos olhos que me deixou com visão dupla. As imagens ficam em ângulo umas com as outras e seu contorno é enevoado, enquanto as cicatrizes das úlceras afetam a clareza da visão. Na opinião do especialista, não existe nada mais a ser feito e nenhuma possibilidade de melhora. O lado esquerdo de meu rosto é repuxado para cima, por ter de retesar o olho esquerdo para ver melhor. À força de prática e determinação, posso fazer os mais delicados trabalhos de agulha; e semelhantemente, quando ainda menina de seis anos, curei-me do estrabismo praticando em frente do espelho, de modo que hoje não existe sinal externo do defeito na visão.
            ‘Desde os meus primeiros anos fui sempre solitária. Mantinha-me separada das outras crianças e tinha visões (clarividência e clariaudição). Não era capaz de distingui-las da realidade e, conseqüentemente, amiúde me descobria em conflito com outras pessoas, em posições embaraçosas, do que resultou haver-me tornado uma pessoa muito reservada e tímida. Porque desde muito pequena já sabia muito mais do que poderia haver aprendido, simplesmente não entendia as crianças de minha própria idade. Eu mesma sou a mais velha de uma família de doze.
            ‘Dos seis aos dez anos freqüentei a escola paroquial e até os dezesseis o ginásio das Freiras Ursulinas em B -. Aos dez anos já havia aprendido tanto francês em quatro semanas e oito lições quanto as outras crianças aprendem em dois anos. Tinha apenas de praticar, falando. Era como se já o tivesse sabido e apenas esquecido. Nunca precisei aprender francês, em contraste com o inglês, que não me causou problemas, certamente, mas que eu desconhecia de antemão. Com o latim sucedeu-me como o francês e jamais o aprendi corretamente, conhecendo-o apenas do latim eclesiástico, o qual, contudo, é-me inteiramente familiar. Se hoje leio um livro em francês, passo de imediato a pensar em francês, ao passo que o mesmo jamais me ocorre com o inglês embora o domine melhor. Meus pais são gente do campo que, por gerações, nunca falaram outro idioma que o alemão e o polonês.
            ‘Visões. - Às vezes a realidade se desvanece por alguns momentos e vejo algo inteiramente diferente. Em minha casa, por exemplo, amiúde vejo um casal idoso e uma criança e a casa acha-se então diferentemente mobiliada. No sanatório, certa vez, uma amiga veio a meu quarto por volta das quatro da manhã; estava acordada, com a lâmpada acesa e sentada à mesa, lendo, porque sofro muito de insônia. A sua aparição sempre significa uma época penosa para mim, como o foi nessa ocasião.
            ‘Em 1914, meu irmão se encontrava no serviço ativo; eu não estava com meus pais em B -, mas em Ch -. Eram 10 da manhã de 22 de agosto quando ouvi a voz de meu irmão chamando: “Mãe! Mãe!” Aconteceu de novo dez minutos depois, mas nada vi. Em 24 de agosto voltei para casa e encontrei minha mãe muitíssimo deprimida; em resposta às minhas perguntas, disse-me que recebera uma mensagem do rapaz em 22 de agosto. Estivera no jardim pela manhã, quando o ouvira chamar: “Mãe! Mãe!” Acalmei-a e nada lhe disse sobre mim mesma. Três semanas depois chegou um cartão de meu irmão, escrito em 22 de agosto, entre 9 e 10 da manhã; logo após, ele morreu.
            ‘Em 27 de setembro de 1921, enquanto me achava no sanatório, recebi uma mensagem de algum tipo. Houve violentas batidas, duas ou três repetidas, na cama da paciente que dividia o quarto comigo. Estávamos ambas acordadas; perguntei-lhe se havia batido, porém ela nem mesmo ouvira coisa alguma. Oito semanas mais tarde soube que uma de minhas amigas havia morrido na noite de 26 para 27 de setembro.
            ‘Agora, algo que é encarado como uma alucinação, questão de opinião! Tenho uma amiga que se casou com um viúvo com cinco filhos; vim a conhecer o marido apenas através de minha amiga. Quase sempre quando ia visitá-la, via uma senhora entrando e saindo da casa. Era natural supor que se tratasse da primeira esposa do marido. Numa ocasião conveniente, pedi para ver um retrato dela, mas não pude identificar a aparição com a fotografia. Sete anos depois vi um retrato com as feições da senhora, pertencente a um dos filhos. Era realmente a primeira esposa. No retrato, ela parecia em muito boa saúde; acabara de fazer um tratamento para engordar e isso altera o aspecto de uma paciente tísica. Estes são apenas alguns exemplos entre muitos.
            ‘O sonho [recorrente]. - Vi uma língua de terra rodeada de água. As vagas eram impelidas para a frente e, depois, para trás, pelas ondas de rebentação. Nesse pedaço de terra erguia-se uma palmeira, um tanto torcida em direção da água. Uma mulher passara o braço em torno do caule da palmeira e se inclinava para a água, onde um homem tentava alcançar a praia. Por fim, ela deitou-se no solo, agarrou-se fortemente à palmeira com a mão esquerda e estendeu a mão direita tão longe quanto podia na direção do homem na água, mas sem alcançá-lo. Nesse ponto, caio da cama e acordo. Tinha aproximadamente 15 ou 16 anos de idade quando compreendi que essa mulher era eu própria e, a partir dessa época, não apenas experimentei todas as suas apreensões em relação ao homem, mas, às vezes, me detive lá, como uma terceira pessoa, olhando para a cena sem participar dela. Já tive esse sonho também em cenas separadas. Quando em mim despertou algum interesse pelos homens (dos 18 aos 20 anos de idade), tentei ver o rosto do homem, mas isso nunca foi possível. A espuma ocultava tudo, salvo sua nuca e a parte de trás da cabeça. Duas vezes estive noiva, mas, a julgar por sua cabeça e compleição, ele não era nenhum dos dois homens com quem fui comprometida. Certa vez, deitada no sanatório, sob a influência do paraldeído, vi o rosto do homem, o qual agora sempre vejo no sonho. Era o rosto do médico sob cujos cuidados me achava. Gostava dele como médico, mas não me sentia atraída por ele de nenhuma outra forma.
            ‘Lembranças. Seis a nove meses de idade. - Achava-me num carrinho de bebê. À minha direita estavam dois cavalos; um deles, de cor castanha, olhava-me muito atenta e expressivamente. Foi a minha mais vívida experiência; tive a impressão de tratar-se de um ser humano.
            ‘Um ano de idade. - Papai e eu no parque municipal, onde um guarda do parque estava pondo um passarinho em minha mão. Seus olhos fitaram os meus. Senti: “Essa é uma criatura como você.”
            ‘Animais sendo abatidos. - Quando ouvia os porcos gritando, sempre pedia socorro e gritava: “Você está matando uma pessoa!” (quatro anos de idade). Sempre me recusei a comer carne. A carne de porco invariavelmente me faz vomitar. Somente durante a guerra vim a comer carne e apenas contra a vontade; agora estou aprendendo a passar novamente sem ela.
            ‘Cinco anos de idade. - Minha mãe estava dando à luz e eu a ouvia gritar. Tive a sensação: “Há um ser humano ou um animal em grande aflição”, tal como tivera quando da matança dos porcos.
            ‘Em criança fui inteiramente indiferente aos assuntos sexuais; aos dez anos ainda não tinha concepção das ofensas contra a castidade. A menstruação apareceu aos doze anos. A mulher despertou pela primeira vez em mim aos vinte e seis, após haver dado vida a um filho; até essa ocasião (seis meses) constantemente tinha vômitos violentos após a relação. Isso também acontecia sempre que me achava de ânimo deprimido.
            ‘Tenho poderes de observação extraordinariamente agudos e uma audição excepcionalmente nítida, além de um sentido muito agudo do olfato. De olhos vendados, posso apontar pelo cheiro as pessoas que conheço entre um certo número de outras.
            ‘Não encaro meus poderes anormais de visão e audição como patológicos, mas atribuo-os a percepções mais refinadas e a uma maior rapidez de pensamento; porém só falei disso ao meu pastor e ao Dr. - (ao último, muito contra a vontade, pois receava que me dissesse serem qualidades negativas aquilo que eu encarava como qualidades positivas, e também porque, de tanto ser mal interpretada na infância, sou muito reservada e tímida).’
            O sonho que a autora da carta nos pede para interpretar não é difícil de compreender. Trata-se de um sonho de resgatar das águas, um sonho típico de nascimento. A linguagem do simbolismo, como estão cientes, não conhece gramática; é um caso extremo de uma linguagem de infinitivos e mesmo o ativo e o passivo são representados por uma só e mesma imagem. Se, num sonho, uma mulher puxa (ou tenta puxar) um homem para fora das águas, isso pode significar que deseja ser sua mãe (toma-o por filho, como a filha do Faraó fez com Moisés) ou pode significar seu desejo de que ele a transforme em mãe: quer ter um filho dele, o qual, como semelhança dele, possa ser seu equivalente. O caule a que a mulher se aferrava, facilmente se identifica como um símbolo fálico, ainda que não esteja ereto, mas inclinado no sentido da superfície das águas - no sonho, a palavra é ‘torcido’. A arremetida e o recuo das ondas de rebentação trouxe à mente de outra pessoa que relatava um sonho semelhante, uma comparação com as dores intermitentes do trabalho de parto, e ao perguntar-lhe, sabendo que ela ainda não havia tido um filho, como sabia dessa característica do trabalho de parto, respondeu que o imaginava como uma espécie de cólica - psicologicamente, uma descrição inteiramente impecável. Forneceu a associação ‘As Vagas do Mar e do Amor’. O modo como a nossa presente sonhadora, em idade tão precoce, possa ter chegado aos mais refinados detalhes do simbolismo - língua de terra, palmeira -, acho-me naturalmente incapaz de dizê-lo. Não devemos, ademais, desprezar o fato de que, quando as pessoas asseveram serem há anos perseguidas pelo mesmo sonho, acontece com freqüência que o conteúdo manifesto não é inteiramente o mesmo. Somente o âmago do sonho é que recorreu a cada vez; os pormenores do conteúdo são alterados ou acréscimos lhe são efetuados.
            Ao final do sonho, que se acha claramente eivado de ansiedade, ela cai do leito. Esta é uma nova representação do nascimento. A investigação analítica do medo às alturas, do temor do impulso de arrojar-se de uma janela, sem dúvida conduziram, todos, à mesma conclusão.
            Quem é o homem, de quem aquela que sonhou deseja ter um filho ou de cuja semelhança gostaria de ser a mãe? Freqüentemente tentou ver-lhe o rosto, mas o sonho jamais lhe permitiu isso; o homem tinha de permanecer incógnito. Sabemos de incontáveis análises o que significa esse ocultamento e a conclusão que basearíamos na analogia é certificada por outra afirmativa da sonhadora. Sob a influência do paraldeído, reconheceu certa vez o rosto do homem do sonho como o rosto do médico do hospital que a estava tratando e que nada significava para sua vida emocional consciente. O original, assim, nunca divulgou sua identidade, mas essa sua impressão em ‘transferência’ estabeleceu a conclusão de que anteriormente deve ter sido sempre o seu pai. Ferenczi [1917] está perfeitamente certo ao apontar que esses ‘sonhos do insuspeitante’ constituem valiosas fontes de informações, confirmando as conjecturas da análise. Aquela que sonhou era a mais velha de doze filhos; quantas vezes não deve ter sofrido as dores do ciúme e do desapontamento, quando não era ela, e sim a mãe, que conseguia do pai o filho por que ansiava!
            A sonhadora muito corretamente imaginou que suas primeiras lembranças da infância seriam valiosas para a interpretação de seu sonho precoce e recorrente. Na primeira cena, antes de contar um ano de idade, enquanto estava sentada em seu carrinho, viu dois cavalos a seu lado, um deles olhando para ela. Descreve-o como sendo sua mais vívida experiência; teve a impressão de tratar-se de um ser humano. É um sentimento que só podemos compreender se presumirmos que os dois cavalos representavam, neste caso, como é tão freqüente, um casal: o pai e a mãe. Foi, por assim dizer, um vislumbre de totemismo infantil. Se pudéssemos, perguntaríamos à autora se o cavalo castanho que a olhava tão humanamente não poderia ser identificado, pela cor, com seu pai. A segunda recordação estava associativamente vinculada à primeira mediante o mesmo olhar ‘compreensivo’. Tomar o passarinho na mão, contudo, recorda ao analista, que possui opiniões preconcebidas próprias, de um aspecto no sonho em que a mão da mulher estava em contato com outro símbolo fálico.
            As duas lembranças seguintes são da mesma categoria e impõem exigências ainda mais fáceis ao intérprete. A mãe a gritar durante o parto recordou diretamente a filha dos porcos guinchando ao serem abatidos e levou-a no mesmo frenesi de piedade. Podemos, entretanto, também conjecturar que isso constituía uma relação violenta contra um irado desejo de morte dirigido contra a mãe.
            Com tais indicações de ternura pelo pai, de contato com os órgãos genitais dele e de desejos de morte contra a mãe, fica esboçado o delineamento do complexo de Édipo feminino. A longa conservação de sua ignorância sobre assuntos sexuais e sua frigidez em um período posterior corroboram essas suposições. A autora da carta tornou-se em potencial (e, sem dúvida, realmente, por vezes) uma neurótica histérica. Para sua própria felicidade, as forças da vida carregaram-na consigo. Despertaram nela os sentimentos sexuais de mulher e trouxeram-lhe as alegrias da maternidade e a capacidade de trabalhar. Uma parte de sua libido, porém, ainda se aferra a seus pontos de fixação na infância; ela ainda tem o sonho que a arroja para fora do leito e a pune por sua escolha incestuosa de objeto com ‘danos de não pequena monta’.
            E agora se espera que uma explicação, dada por escrito por um médico que é um estranho para ela, realize o que todas as experiências mais importantes de sua vida posterior não puderam fazer! Provavelmente uma análise regular, prosseguida durante um tempo considerável, obteria êxito no caso. Pelas coisas como sucederam, fui obrigado a contentar-me com escrever-lhe que estava convencido de que ela sofria dos efeitos ulteriores de um forte vínculo emocional ligando-a ao pai e de uma correspondente identificação com a mãe, mas que não esperava que essa explicação a ajudasse. As curas espontâneas das neuroses geralmente deixam atrás de si cicatrizes e estas se tornam novamente doloridas de tempos em tempos. Ficamos muito orgulhosos de nossa arte se conseguimos uma cura pela psicanálise, mas ainda nesse ponto nem sempre podemos impedir a formação de uma dolorosa cicatriz como resultado.
            A pequena série de reminiscências deve prender um pouco mais a nossa atenção. Afirmei noutra parte que essas cenas de infância constituem ‘lembranças encobridoras’, selecionadas num período posterior, reunidas e não infreqüentemente falsificadas no processo. Esse remodelamento subseqüente serve a um fim às vezes fácil de adivinhar. Em nosso caso, quase se pode ouvir o ego da autora a glorificar-se ou acalmar-se por meio dessa série de recordações: ‘Fui desde a infância uma criatura nobre e compassiva. Aprendi muito cedo que os animais têm alma como nós e não podia suportar a crueldade para com eles. Os pecados da carne achavam-se longe de mim e conservei minha castidade até bem tarde na vida.’ Com declarações como essas ela se encontrava contradizendo em voz alta as inferências que temos de fazer sobre sua primeira infância, com base em nossa experiência analítica; ou seja, que ela tinha em abundância impulsos sexuais prematuros e violentos sentimentos de ódio pela mãe e pelos irmãos e irmãs mais moços. (Ao lado da significação genital que acabei de lhe atribuir, o passarinho pode ser também o símbolo de uma criança, como todos os animais pequenos; sua recordação, assim acentuava com muita insistência o fato de ter essa pequena criatura o mesmo direito de existir que ela própria.) Conseqüentemente, a curta série de recordações fornece um exemplo muito bom de uma estrutura mental com um duplo aspecto. Vista superficialmente, podemos encontrar nela a expressão de uma idéia abstrata, aqui como de praxe com uma referência ética. Na nomenclatura de Silberer, a estrutura possui um conteúdo anagógico. Com uma investigação mais profunda ela se revela como uma cadeia de fenômenos pertinentes à região da vida reprimida dos instintos: apresenta o seu conteúdo psicanalítico. Como sabem, Silberer, um dos primeiros a advertir-nos para não perder de vista o lado mais nobre da alma humana, apresentou a opinião de que todos, ou quase todos, os sonhos permitem tal interpretação dupla, uma mais pura, anagógica, ao lado da ignóbil, psicanalítica. Entretanto, isso infelizmente não é assim. Pelo contrário, uma supra-interpretação desse tipo raramente é possível. Pelo que eu saiba, nenhum exemplo válido de tal análise onírica com duplo sentido foi publicado até o presente, porém observações dessa espécie podem amiúde ser feitas sobre a série de associações produzidas por nossos pacientes durante o tratamento analítico. Por um lado, as idéias sucessivas são ligadas por uma linha de associação que é clara para os olhos, ao passo que, por outro, damo-nos conta de um tema subjacente que é mantido em segredo, porém ao mesmo tempo desempenhando um papel em todas essas idéias. O contraste entre os dois temas que regem a mesma série de idéias nem sempre é o existente entre o altaneiro anagógico e o reles psicanalítico; é, antes, um contraste entre idéias ofensivas e idéias respeitáveis ou indiferentes, fato que facilmente explica por que surge essa cadeia de associações com determinação dupla. Em nosso presente exemplo, naturalmente não é acidental que as interpretações anagógica e psicanalítica estejam em contraste tão nítido uma com a outra; ambas se relacionam ao mesmo material e a última tendência não era outra senão a das formações reativas, erguidas contra os impulsos instintuais repudiados.
            Aliás, por que procurarmos uma interpretação psicanalítica em vez de contentar-nos com a anagógica, mais acessível? A resposta está vinculada a muitos outros problemas - à existência em geral da neurose e às explicações que ela inevitavelmente exige -, ao fato de que a virtude não recompensa um homem com tanta alegria e força na vida como seria de esperar, como se trouxesse consigo muito de sua origem (aquela que sonhou, do mesmo modo, não fora recompensada por sua virtude), e vinculada a outras coisas que não preciso debater perante esta assistência.
            Até aqui, contudo, negligenciamos completamente a questão da telepatia, o outro ponto de interesse para nós, neste caso; é, pois, hora de retornarmos a ele. Em certo sentido temos aqui uma tarefa mais fácil do que no caso de Herr H. Com uma pessoa que tão fácil e precocemente na vida perdeu o contato com a realidade e a substituiu pelo mundo da fantasia, é irresistível a tentação de vincular suas experiências telepáticas e ‘visões’ à sua neurose e derivá-las dela, embora aqui também não devemos permitir-nos ser enganados quanto à força lógica de nossos próprios argumentos. Estaremos simplesmente substituindo o que é desconhecido e ininteligível por possibilidades que, pelo menos, são compreensíveis.
            Em 22 de agosto de 1914, às 10 horas da manhã, nossa correspondente experimentou a impressão telepática de que seu irmão, na ocasião em serviço ativo, estava chamando: ‘Mamãe! Mamãe!’ O fenômeno foi puramente acústico e repetiu-se pouco depois, mas nada foi visto. Dois dias mais tarde, encontrou a mãe e achou-a muito deprimida, porque o rapaz se lhe anunciara com um repetido chamado de ‘Mamãe! Mamãe!’ Ela imediatamente lembrou-se da mesma mensagem telepática que experimentara no mesmo tempo e, na realidade, algumas semanas depois, foi estabelecido que o jovem soldado morrera naquele dia, na hora mencionada.
            Não se pode provar, mas também não se pode refutar, que, em vez disso, o que ocorreu foi o seguinte: Certo dia a mãe lhe dissera que o filho lhe enviara uma mensagem telepática, em conseqüência do que imediatamente lhe ocorrera no espírito haver tido a mesma experiência, na mesma ocasião. Tais ilusões da memória surgem na mente com uma força constrangedora que haurem de fontes reais, mas transformam a realidade psíquica em realidade material. A força da ilusão reside em constituir ela uma maneira excelente de expressar a inclinação da irmã a identificar-se com a mãe: ‘A senhora está ansiosa sobre o rapaz, mas eu sou a mãe dele realmente e seu grito se dirigia a mim; fui eu que recebi essa mensagem telepática.’ A irmã, naturalmente, rejeitaria firmemente nossa tentativa de explicação e aferrar-se-ia à crença na autenticidade de sua experiência. Não poderia, contudo, agir de outra forma. Estaria fadada a acreditar na realidade do efeito patológico enquanto a realidade de suas premissas inconscientes lhe fosse desconhecida. Todos os delírios semelhantes derivam sua força e seu caráter inexpugnável do fato de possuírem fonte na realidade psíquica inconsciente. Observo de passagem que não nos cumpre explicar aqui a experiência da mãe ou investigar sua autenticidade.
            O irmão morto contudo não era apenas o filho imaginário de nossa correspondente; representava também um rival a quem havia encarado com ódio desde o dia de seu nascimento. Procede amplamente o fato de que a maioria de todas as notificações telepáticas se relacionam com a morte ou com a possibilidade de morte; quando pacientes em análise se detêm contando-nos da freqüência e da infalibilidade de suas sombrias previsões, podemos com igual regularidade demonstrar-lhes que estão nutrindo desejos de morte particularmente intensos em seus inconscientes contra suas relações mais chegadas e, assim, estiveram por muito tempo suprimindo-as. O paciente cuja história relatei em 1909 foi um exemplo apropriado desse aspecto: era chamado de ‘abutre’ por suas relações. Mas quando esse homem bondoso e altamente inteligente - que já pereceu na guerra - começou a fazer progressos no sentido da recuperação, forneceu-me ele uma assistência considerável no esclarecimento de seus próprios truques psicológicos conjurativos. Da mesma maneira, parece prescindir de outra explicação o relato fornecido pela carta de nosso primeiro correspondente, de como ele e os irmãos haviam recebido a notícia da morte do irmão mais novo como algo de que há muito tempo estiveram interiormente cônscios [ver em [1]]. Todos os irmãos mais velhos teriam estado igualmente convencidos da superfluidade da chegada do mais jovem.
            Eis outra das ‘visões’ daquela que sonhou, que provavelmente se tornará mais inteligível à luz do conhecimento analítico. As amigas obviamente tinham grande significação em sua vida emocional. Ainda há pouco a morte de uma delas lhe foi transmitida por uma batida, à noite, na cama de uma companheira de quarto no sanatório. Outra amiga, muitos anos antes, casara-se com um viúvo com muitos (cinco) filhos. Por ocasião de suas visitas à casa deles ela via regularmente a aparição de uma senhora, que não podia deixar de supor que fosse a primeira esposa do marido. Isso não permitiu a princípio confirmação e só virou certeza para ela sete anos mais tarde, quando da descoberta de uma fotografia recente da falecida. Essa realização à guisa de uma visão por parte de nossa correspondente tinha a mesma dependência íntima dos complexos familiares que nos são conhecidos, que o seu pressentimento da morte do irmão. Identificando-se com a amiga, podia, na pessoa desta, encontrar a realização de seus próprios desejos, de vez que toda filha mais velha de uma família numerosa constrói em seu inconsciente a fantasia de tornar-se a segunda esposa do pai, com a morte da mãe. Se esta está enferma ou morre, a filha mais velha assume naturalmente seu lugar em relação aos irmãos e irmãs mais novos e pode mesmo assumir certa parte das funções da esposa, com respeito ao pai. O desejo inconsciente preenche a outra parte.
            Encontro-me agora quase ao final do que desejo dizer. Poderia, contudo, acrescentar a observação de que os exemplos de mensagens ou produções telepáticas aqui estudados estão claramente vinculados a emoções pertinentes à esfera do complexo de Édipo. Isso pode soar como espantoso, contudo não pretendo apresentá-lo como uma grande descoberta. Preferiria remeter-me ao resultado a que chegamos pela investigação do sonho que considerei em primeiro lugar. A telepatia não possui relação com a natureza essencial dos sonhos e não pode em absoluto aprofundar o que já compreendemos deles através da análise. Por outro lado, a psicanálise pode realizar algo para fazer avançar o estudo da telepatia, na medida em que, com auxílio de suas interpretações, muitas das enigmáticas características dos fenômenos telepáticos podem tornar-se mais inteligíveis para nós; ou então outros fenômenos, ainda duvidosos, podem, pela primeira vez e definitivamente, ser confirmados como de natureza telepática.
            Resta apenas um elemento da vinculação aparentemente íntima entre a telepatia e os sonhos, não influenciado por nenhuma dessas considerações: o fato incontestável de o sono criar condições favoráveis à telepatia. O sono, na verdade, não é indispensável à ocorrência de processos telepáticos, originem-se eles de mensagens ou da atividade inconsciente. Se ainda não sabem, aprendê-lo-ão do exemplo dado por nossa segunda correspondente, da mensagem do jovem que chegou entre as 9 e as 10 da manhã. Deve-se acrescentar, contudo, que ninguém tem o direito de protestar contra as ocorrências telepáticas se o evento e a notificação (ou mensagem) não coincidem exatamente em tempo astronômico. É perfeitamente concebível uma mensagem telepática poder chegar contemporaneamente ao evento e, contudo, só penetrar na consciência na noite seguinte, durante o sono (ou, mesmo na vida desperta, somente após algum tempo, durante alguma pausa na atividade da mente). Como sabem, somos de opinião que a própria formação onírica não espera necessariamente o início do sono para começar. Repetidamente os pensamentos oníricos latentes podem ter estado preparando-se durante todo o dia, até que, à noite, processam o contato com o desejo inconsciente que os modela em um sonho. Mas, se o problema da telepatia é apenas uma atividade da mente inconsciente, então, naturalmente nenhum problema novo se nos apresenta. Pode-se, assim, pressupor que as leis da vida mental inconsciente se aplicam à telepatia.
            Dei-lhes porventura a impressão de que estou secretamente inclinado a apoiar a realidade da telepatia no sentido do oculto? Se for assim, lamentaria muito que seja tão difícil evitar dar essa impressão. Isso porque, na realidade, estive ansioso por ser estritamente imparcial. Tenho todas as razões para sê-lo, visto não possuir opinião sobre o assunto e nada conhecer a seu respeito.
           
           




























ALGUNS MECANISMOS NEURÓTICOS NO CIÚME, NA PARANÓIA E NO HOMOSSEXUALISMO (1922)


NOTA DO EDITOR INGLÊS
ÜBER EINIGE NEUROTISCHE MECHANISMEN BEIEIFERSUCHT, PARANOIA UND HOMOSEXUALITÄT


 (a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1922 Int. Z. Psychoanal., 8, (3) 249-58.
1924 G.S., 5, 387-99.
1924 Psychoanalyse der Neurosen, 125-39.
1931 Neurosenlehre und Technik, 173-86.
1940 G.W., 13, 195-207.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

Certain Neurotic Mechanism in Jealousy,Paranoia and Homosexuality’

1923 Int. J. Psycho-Anal., 4, 1-10. (Trad. de Joan Riviere.)
1924 C.P., 2, 232-43. (Mesma tradutora.)

            A presente tradução inglesa baseia-se na publicada em 1924; o título foi modificado.

            Informa-nos o Dr. Ernest Jones que este artigo foi lido por Freud a um pequeno grupo de amigos nas Montanhas do Harz em setembro de 1921, na mesma ocasião em que o artigo sobre ‘Psicanálise e Telepatia’. (Ver antes, pág. 187.)






ALGUNS MECANISMOS NEURÓTICOS NO CIÚME, NA PARANÓIA E NO HOMOSSEXUALISMO


           
                             A

            O ciúme é um daqueles estados emocionais, como o luto, que podem ser descritos como normais. Se alguém parece não possuí-lo, justifica-se a inferência de que ele experimentou severa repressão e, conseqüentemente, desempenha um papel ainda maior em sua vida mental inconsciente. Os exemplos de ciúme anormalmente intenso encontrados no trabalho analítico revelam-se como constituídos de três camadas. As três camadas ou graus do ciúme podem ser descritas como ciúme (1) competitivo ou normal, (2) projetado, e (3) delirante.
            Não há muito a dizer, do ponto de vista analítico, sobre o ciúme normal. É fácil perceber que essencialmente se compõe de pesar, do sofrimento causado pelo pensamento de perder o objeto amado, e da ferida narcísica, na medida em que esta é distinguível da outra ferida; ademais, também de sentimentos de inimizade contra o rival bem-sucedido, e de maior ou menor quantidade de autocrítica, que procura responsabilizar por sua perda o próprio ego do sujeito. Embora possamos chamá-lo de normal, esse ciúme não é, em absoluto, completamente racional, isto é, derivado da situação real, proporcionado às circunstâncias reais e sob o controle completo do ego consciente; isso por achar-se profundamente enraizado no inconsciente, ser uma continuação das primeiras manifestações da vida emocional da criança e originar-se do complexo de Édipo ou de irmão-e-irmã do primeiro período sexual. Além do mais, é digno de nota que, em certas pessoas, ele é experimentado bissexualmente, isto é, um homem não apenas sofrerá pela mulher que ama e odiará o homem seu rival, mas também sentirá pesar pelo homem, a quem ama inconscientemente, e ódio pela mulher, como sua rival; esse último conjunto de sentimentos adicionar-se-á à intensidade de seu ciúme. Eu mesmo conheço um homem que sofria excessivamente durante suas crises de ciúme e que, conforme seu próprio relato, sofria tormentos insuportáveis imaginando-se conscientemente na posição da mulher infiel. A sensação de impotência que então o acometia e as imagens que utilizava para descrever sua condição - exposto ao bico do abutre, como Prometeu, ou arrojado em um ninho de cobras - foram por ele atribuídas a impressões recebidas durante vários atos homossexuais de agressão a que fora submetido quando menino.
            O ciúme da segunda camada, o ciúme projetado, deriva-se, tanto nos homens quanto nas mulheres, de sua própria infidelidade concreta na vida real ou de impulsos no sentido dela que sucumbiram à repressão. É fato da experiência cotidiana que a fidelidade, especialmente aquele seu grau exigido pelo matrimônio, só se mantém em face de tentações contínuas. Qualquer pessoa que negue essas tentações em si própria sentirá, não obstante, sua pressão tão fortemente que ficará contente em utilizar um mecanismo inconsciente para mitigar sua situação. Pode obter esse alívio - e, na verdade, a absolvição de sua consciência - se projetar seus próprios impulsos à infidelidade no companheiro a quem deve fidelidade. Esse forte motivo pode então fazer uso do material perceptivo que revela os impulsos inconscientes do mesmo tipo no companheiro e o sujeito pode justificar-se com a reflexão de o outro provavelmente não ser bem melhor que ele próprio.As convenções sociais avisadamente tomaram em consideração esse estado universal de coisas, concedendo certa amplitude ao anseio de atrair da mulher casada e à sede de conquistas do homem casado, na esperança de que essa inevitável tendência à infidelidade encontrasse assim uma válvula de segurança e se tornasse inócua. A convenção estabeleceu que nenhum dos parceiros pode responsabilizar o outro por essas pequenas excursões na direção da infidelidade e elas geralmente resultam no desejo despertado pelo novo objeto encontrando satisfação em certo tipo de retorno à fidelidade ao objeto original. Uma pessoa ciumenta, contudo, não reconhece essa convenção da tolerância; não acredita existirem coisas como interrupção ou retorno, uma vez o caminho tenha sido trilhado, nem crê que um flerte possa ser uma salvaguarda contra a infidelidade real. No tratamento de uma pessoa assim, ciumenta, temos de abster-nos de discutir com ela o material em que baseia suas suspeitas; pode-se apenas visar a levá-la a encarar o assunto sob uma luz diferente.
            O ciúme emergente de tal projeção possui efetivamente um caráter quase delirante; é, contudo, ameno ao trabalho analítico de exposição das fantasias inconscientes da própria infidelidade do sujeito. A posição é pior com referência ao ciúme pertencente à terceira camada, o tipo delirante verdadeiro. Este também tem sua origem em impulsos reprimidos no sentido da infidelidade, mas o objeto, nesses casos, é do mesmo sexo do sujeito. O ciúme delirante é o sobrante de um homossexualismo que cumpriu seu curso e corretamente toma sua posição entre as formas clássicas da paranóia. Como tentativa de defesa contra um forte impulso homossexual indevido, ele pode, no homem, ser descrito pela fórmula: ‘Eu não o amo; é ela que o ama!’ Num caso delirante deve-se estar preparado para encontrar ciúmes pertinentes a todas as três camadas, nunca apenas à terceira.

                             B

            Paranóia - Os casos de paranóia, por razões bem conhecidas, não são geralmente sensíveis à investigação analítica. Recentemente, porém, mediante um estudo intensivo de dois paranóicos pude descobrir algo de novo para mim.
            O primeiro caso foi o de um homem ainda jovem com paranóia de ciúmes inteiramente desenvolvida, cujo objeto era sua esposa impecavelmente fiel. Um período tempestuoso em que o delírio o possuíra ininterruptamente, já ficara para trás. Quando o vi, achava-se sujeito apenas a crises nitidamente separadas que duravam por vários dias e que, curiosamente, apareciam com regularidade no dia após haver tido com a esposa relações sexuais, incidentalmente satisfatórias para ambos. Justifica-se a inferência de que após cada saciação da libido heterossexual o componente homossexual, igualmente estimulado pelo ato, forçava um escoadouro para si na crise de ciúmes.
            Essas crises hauriam seu material de sua observação de indicações insignificantes, pela quais a coqueteria inteiramente inconsciente de sua esposa, inobservável por mais ninguém, se traíra para ele. Ela tocara, sem intencionalidade, com a mão o homem sentado próximo a ela; voltara-se demais para ele ou sorrira de modo mais agradável do que quando se achava só com o marido. Era extraordinariamente observador de todas essas manifestações do inconsciente dela e sempre sabia como interpretá-las corretamente, de modo que realmente estava com a razão a respeito e podia, além disso, invocar a análise para justificar seu ciúme. Sua anormalidade de fato se reduzia a isso, em vigiar bem mais de perto a mente inconsciente de sua esposa e, depois, encará-la como muito mais importante do que outra pessoa teria pensado fazer.
            Recordamo-nos de que os que sofrem de paranóia persecutória agem exatamente da mesma maneira. Eles, também, não podem encarar nada em outras pessoas como indiferente e tomam indicações insignificantes que essas outras pessoas desconhecidas lhes apresentam e as utilizam em seus delírios de referência. O significado de seu delírio de referência é que esperam de todos os estranhos algo semelhante ao amor. No entanto essas pessoas não lhes demonstram nada desse tipo; riem consigo próprias, fazem floreios com as bengalas e até mesmo cospem no chão enquanto passam; e, na realidade, tais coisas não se fazem quando uma pessoa em que se tem um interesse amigável se acha perto. A não ser quando nos sentimos inteiramente indiferentes ao passante, quando se pode tratá-lo como se fosse ar e, considerando também o parentesco fundamental dos conceitos de ‘estranho’ e ‘inimigo’, o paranóico não se acha tão errado em considerar essa indiferença como ódio, em contraste com sua reivindicação de amor.
            Começamos a perceber que descrevemos o comportamento tanto dos paranóicos ciumentos quanto dos persecutórios muito inadequadamente, ao dizer que projetam exteriormente para os outros o que não desejam reconhecer em si próprios. Certamente o fazem, mas não o projetam, por assim dizer, no vazio, onde já não existe algo dessa espécie. Deixam-se guiar por seu conhecimento do inconsciente e deslocam para as mentes inconscientes dos outros a atenção que afastaram da sua própria. O nosso ciumento marido percebia as infidelidades da esposa, em vez das suas; tornando-se consciente das infidelidades dela e amplificando-as enormemente, conseguia manter as suas inconscientes. Se aceitamos seu exemplo como típico, podemos inferir que a amizade vista nos outros pelo paranóico perseguido é o reflexo de seus próprios impulsos hostis contra eles. Sabendo que, no paranóico, é exatamente a pessoa mais amada de seu próprio sexo que se torna seu perseguidor, surge a questão de saber onde essa inversão de afeto se origina. Não se precisa ir longe para buscar a resposta: a sempre presente ambivalência de sentimento fornece-lhe a fonte e a não-realização de sua reivindicação de amor a fortalece. Essa ambivalência serve assim, para o paranóico, ao mesmo objetivo que o ciúme servia ao meu paciente: o de uma defesa contra o homossexualismo.
            Os sonhos de meu paciente ciumento me apresentaram uma grande surpresa. Não eram simultâneos com os desencadeamentos das crises, é verdade, mas ocorriam dentro do período que se achava sob o domínio do delírio; contudo, estavam completamente livres destes e revelaram os impulsos homossexuais subjacentes com um grau de disfarce não maior que o habitual. De vez que eu tinha pouca experiência dos sonhos de paranóicos, pareceu plausível, na ocasião, supor, ser em geral verdadeiro que a paranóia não penetra nos sonhos.
            Essa posição homossexual do paciente foi facilmente reconhecida. Não fizera amizade e não desenvolvera interesses sociais; tinha-se a impressão de que apenas o delírio fizera avançar o desenvolvimento de suas relações com os homens, como se tivesse assumido algumas das obrigações que haviam sido negligenciadas. O fato de seu pai não haver sido de grande importância na família, combinado com um humilhante trauma homossexual no início da mocidade, forçara seu homossexualismo à repressão e impedira-lhe o caminho à sublimação. Sua juventude toda fora governada por uma forte ligação à mãe. De todos os muitos filhos, fora o seu favorito declarado e desenvolvera acentuado ciúme, do tipo normal, em relação a ela. Quando posteriormente escolheu uma esposa - incitado principalmente pelo impulso de enriquecer a mãe - seu anseio por uma mãe virgem expressou-se em dúvidas obsessivas sobre a virgindade da noiva. Os primeiros anos do casamento foram livres de ciúmes. Depois, tornou-se infiel à mulher e ingressou em uma relação íntima com outra mulher, que perdurou por muito tempo. Assustado por esta suspeita, finalmente encerrou esse caso amoroso e somente aí irrompeu o segundo tipo, o ciúme projetado, pelo qual pôde acalmar suas autocensuras sobre suas próprias infidelidades. O ciúme cedo se complicou por um acréscimo de impulsos homossexuais, dos quais seu sogro era o objeto, transformando-se numa paranóia de ciúmes inteiramente formada.
            Meu segundo caso, não fosse a análise, provavelmente não teria sido classificado como paranóia persecutória, mas tive de classificar o jovem como candidato a uma moléstia final desse tipo. Em sua atitude para com o pai existia uma ambivalência que, na sua amplitude, era inteiramente extraordinária. Por um lado, era o mais pronunciado rebelde imaginável e desenvolvera-se manifestamente, em todos os sentidos, em oposição aos desejos e ideais do pai; por outro, em nível mais profundo, era ainda o mais submisso dos filhos, que, após a morte do pai, negou a si mesmo todo o gozo das mulheres devido a um terno sentimento de culpa. Suas relações reais com os homens eram claramente dominadas pela suspeita; seu arguto intelecto racionalizava facilmente essa atitude e sabia como conseguir que tanto amigos quanto conhecidos o enganassem e explorassem. A novidade que aprendi de seu estudo foi a possibilidade de idéias persecutórias clássicas estarem presentes sem lograr alguma crença ou aceitação. Ocorriam súbita e ocasionalmente durante a análise; ele, porém, as via sem importância e invariavelmente escarnecia delas. Isso pode acontecer em muitos casos de paranóia; talvez os delírios que observamos como formações novas ao desencadear-se a doença, há muito tempo já existissem.
            Parece-me que aqui temos uma descoberta importante, ou seja, que o fator qualitativo, a presença de certas formações neuróticas, possui menos significação prática que o fator quantitativo, o grau de atenção ou, mais corretamente, a catexia que essas estruturas podem atrair para si próprias. Nossa consideração do primeiro caso, a paranóia de ciúmes, conduziu a uma semelhante estimativa da importância do fator quantitativo ao demonstrar que nela também a anormalidade consistia essencialmente na hipercatexia das interpretações do inconsciente de outra pessoa. Há muito tempo sabemos de um fato análogo na análise da histeria. As fantasias patogênicas, derivativos de impulsos instintuais reprimidos, são por longo tempo toleradas juntamente com a vida normal da mente e não têm efeito patogênico até que, por uma revolução na economia libidinal, recebem uma hipercatexia; somente então irrompe o conflito que acarreta a formação dos sintomas. Assim, à medida que nosso conhecimento cresce, somos cada vez mais impelidos a trazer o ponto de vista econômico para o primeiro plano. Gostaria também de lançar a questão de saber se esse fator quantitativo, no qual agora me detenho, não basta para abranger os fenômenos que Bleuler [1916] e outros propuseram ultimamente denominar de ‘comutação’. Precisa-se apenas presumir que um aumento na resistência no curso tomado pela corrente psíquica em determinada direção resulta na hipercatexia de outra via e, assim, leva o fluxo a ser desviado para esse caminho.Meus dois casos de paranóia apresentaram um instrutivo contraste no comportamento de seus sonhos. Ao passo que os do primeiro caso se achavam livres de delírio, como já foi dito, o outro paciente produzia grande número de sonhos persecutórios que podemos considerar como precursores os substitutos das idéias delirantes. O perseguidor, de quem só conseguia escapar com grande medo, era geralmente um poderoso touro ou algum outro símbolo masculino que, no próprio sonho, ele às vezes identificava como representando o pai. Certo dia, produziu um sonho paranóico de transferência muito característico. Viu-me fazendo a barba na frente dele e, do perfume, compreendeu que estava usando o mesmo sabão que o pai usava. Eu fazia isso a fim de obrigá-lo a efetuar uma transferência paterna para mim. A escolha desse incidente para o sonho revela de modo inteiramente inequívoco a atitude depreciativa do paciente para com suas fantasias paranóicas e sua descrença nelas, porque seus próprios olhos podiam dizer-lhe diariamente que nunca me achei em posição de usar sabão de barba e que, portanto, nesse respeito nada havia a que uma transferência paterna pudesse ligar-se. Uma comparação dos sonhos dos dois pacientes mostra, contudo, que a questão de saber se a paranóia (ou qualquer outra psiconeurose) pode ou não penetrar nos sonhos, baseia-se numa concepção falsa dos sonhos. Os sonhos distinguem-se do pensamento de vigília pela sua possibilidade de incluir material (pertencente à região do reprimido) que não deve aflorar no pensamento desperto. Afora isso, os sonhos são meramente uma forma de pensar, uma transformação do material pré-consciente do pensamento pela elaboração onírica e suas condições. Nossa terminologia das neuroses não é aplicável ao material reprimido, que não pode ser chamado de histérico, obsessivo ou paranóico. Opondo-se a isso, a outra parte do material sujeita ao processo de formação onírica - os pensamentos pré-conscientes - pode ser normal ou apresentar o caráter de qualquer neurose; eles podem ser os produtos de qualquer dos processos patogênicos em que reside a essência de uma neurose. Não parece haver razão para que qualquer idéia patológica do gênero não deva ser transformada em um sonho. Um sonho pode, assim, simplesmente representar uma fantasia histérica, uma idéia obsessiva ou um delírio, isto é, pode revelar um ou outro desses fatos após a interpretação. A observação dos dois paranóicos demonstra que os sonhos de um deles eram inteiramente normais enquanto sujeito a seu delírio, e que os do outro eram paranóicos em conteúdo enquanto tratava suas idéias delirantes com desprezo. Logo, em ambos os casos, o sonho aproveitava o material que, na ocasião, se achava forçado para o segundo plano na vida desperta. Entretanto, isso também não precisa necessariamente constituir uma regra invariável.

                             C

            Homossexualismo. - O reconhecimento do fator orgânico no homossexualismo não nos isenta da obrigação de estudar os processos psíquicos vinculados à sua origem. O processo típico, já estabelecido em casos inumeráveis, é de um jovem, alguns anos após a puberdade, e que até então fora intensamente fixado na mãe, mudar de atitude; identifica-se com ela e procura objetos amorosos em quem possa redescobrir-se e a quem possa então amar como a mãe o amara. A marca característica desse processo é que, por vários anos, uma das condições necessárias para o seu amor consiste em o objeto masculino ter, em geral, a mesma idade que ele próprio tinha quando se deu a mudança. Vimos a conhecer diversos fatores que contribuem para esse resultado, provavelmente em graus diferentes. Primeiro há a fixação na mãe, que fica difícil de passar para outra mulher. A identificação com a mãe é um resultado dessa ligação e ao mesmo temppo, em certo sentido, permite que o filho lhe permaneça fiel, a ela que foi seu primeiro objeto. Há em seguida inclinação no sentido de uma escolha de objeto narcísico, que em geral se encontra mais à mão e é mais fácil de efetuar que um movimento no sentido do outro sexo. Por trás desse último fator jaz oculto um outro, de força bastante excepcional, ou talvez coincida com ele: o alto valor atribuído ao órgão masculino e a incapacidade de tolerar sua ausência num objeto amoroso. A depreciação das mulheres, a aversão e até mesmo o horror a elas derivam-se geralmente da precoce descoberta de que as mulheres não possuem pênis. Subseqüentemente descobrimos, como outro poderoso motivo a compelir no sentido da escolha homossexual de objeto, a consideração pelo pai ou o medo dele, porque a renúncia às mulheres significa que toda a rivalidade com aquele (ou com todos os homens que podem tomar seu lugar) é evitada. Os dois últimos motivos - o apego à condição de existência de um pênis no objeto, bem como o afastamento em favor do pai - podem ser atribuídos ao complexo de castração. A ligação à mãe, o narcisismo, o medo da castração são os fatores (que, incidentalmente, nada têm em si de especial) que até o presente encontramos na etiologia psíquica do homossexualismo; com eles é preciso computar o efeito da sedução responsável por uma fixação prematura da libido, bem como a influência do fator orgânico que favorece o papel passivo no amor.
            Nunca consideramos, entretanto, esta análise da origem do homossexualismo como completa. Posso agora indicar um novo mecanismo que conduz à escolha homossexual do objeto, embora não possa dizer quão grande é o papel que ele desempenha na formação do tipo de homossexualismo extremo, manifesto e exclusivo. A observação dirigiu minha atenção para diversos casos em que, durante a primeira infância, impulsos de ciúmes, derivados do complexo materno e de grande intensidade, surgiram [num menino] contra os rivais, geralmente irmãos mais velhos. Esse ciúme provocou uma atitude excessivamente hostil e agressiva para com esses irmãos, que poderia às vezes atingir a intensidade de desejos reais de morte, incapazes então de manter-se face ao desenvolvimento ulterior do sujeito. Sob as influências da criação - e certamente sem deixar de ser influenciados também por sua própria e continuada impotência - esses impulsos renderam-se à repressão e experimentaram uma transformação, de maneira que os rivais do período anterior se tornaram os primeiros objetos amorosos homossexuais. Tal resultado da ligação à mãe mostra-nos diversas relações e interessantes com outros processos que nos são conhecidos. Antes de tudo, ele é um contraste completo com o desenvolvimento da paranóia persecutória, na qual a pessoa anteriormente amada se torna o perseguidor odiado, ao passo que aqui os rivais odiados se transformam em objetos amorosos. Representa também uma exageração do processo que, na minha opinião, conduz ao nascimento dos instintos sociais no indivíduo. Em ambos os processos há primeiro a presença de impulsos ciumentos e hostis que não podem conseguir satisfação, e tanto os sentimentos afetuosos quanto os sentimentos sociais de identificação surgem como formações reativas contra os impulsos agressivos reprimidos.
            Esse novo mecanismo de escolha homossexual de objeto - sua origem na rivalidade que foi sobrepujada e em impulsos agressivos que se tornaram reprimidos - combina-se às vezes com as condições típicas já familiares para nós. Na história dos homossexuais ouve-se amiúde que neles a mudança se efetuou após a mãe ter elogiado outro rapaz e tê-lo estabelecido como modelo. A tendência à escolha narcísica de objeto foi assim estimulada e, após uma breve fase de agudos ciúmes, o rival se torna um objeto amoroso. Via de regra, contudo, o novo mecanismo se distingue pelo fato de a mudança efetuar-se em um período muito mais precoce e a identificação com a mãe retroceder para o segundo plano. Ademais, nos casos que observei, ele apenas levou a atitudes homossexuais que não excluem a heterossexualidade e não envolvem um horror feminae.
            É bem conhecido que um bom número de homossexuais se caracteriza por um desenvolvimento especial de seus impulsos instintuais sociais e por sua devoção aos interesses da comunidade. Seria tentador, como explicação teórica pertinente, dizer que o comportamento para com os homens em geral, de um homem que vê nos outros homens objetos amorosos potenciais, deve ser diferente do de um homem que encara os outros, em primeira instância, como rivais em relação às mulheres. A única objeção a isso é que o ciúme e a rivalidade desempenham seu papel também no amor homossexual e que a comunidade dos homens também inclui esses rivais potenciais. À parte esta explicação especulativa, contudo, o fato de a escolha homossexual de objeto não sem freqüência provir de um anterior sobrepujamento da rivalidade com os homens não pode passar sem relação com a vinculação entre o homossexualismo e o sentimento social.
            À luz da psicanálise, estamos acostumados a considerar o sentimento social como uma sublimação de atitudes homossexuais para com objetos. Nos homossexuais com acentuados interesses sociais pareceria que o desligamento do sentimento social da escolha de objeto não foi inteiramente efetuado.
           
           






















DOIS VERBETES DE ENCICLOPÉDIA (1923 [1922])


NOTA DO EDITOR INGLÊS - PSYCHOANALYSE UND LIBIDOTHEORIE

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1923 Em Handwörterbuch der Sexualwissenschaft, org. por M. Marcuse, Bonn. Págs. 296-8 e 377-83.
1928 G.S., 11, 201-23.
1940 G.W., 13, 211-33.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:
Two Encyclopaedia Articles’
1942 Int. J. Psycho-Anal., 23, 97-107. (Trad. de James Strachey.)
1950 C.P., 5, 107-35. (Mesmo tradutor.)

            A presente tradução inglesa é a de 1950, ligeiramente modificada.

            De acordo com uma nota que pode ser encontrada nos Gesammelte Schriften, 11, 201, estes verbetes foram escritos durante o verão de 1922, isto é, antes do remoldamento final de Freud de suas opiniões sobre a estrutura da mente em O Ego e o Id (1923b). Mas as novas opiniões, embora não expressas nestes verbetes, já deviam estar claramente presentes em seus pensamentos enquanto os escrevia, porque foi em setembro de 1922, no Congresso Psicanalítico Internacional de Berlim, que realmente se mencionou em um dos verbetes (ver em [1]) que ele pela primeira vez tornou pública as concepções de ego, superego e id, que acabara de definir. Um verbete didático, um tanto semelhantemente concebido, escrito não muito tempo depois para uma publicação americana (1924f), toma essas novas idéias em consideração.




DOIS VERBETES DE ENCICLOPÉDIA


(A) PSICANÁLISE

            PSICANÁLISE é o nome de (1) um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica.
            História - A melhor maneira de compreender a psicanálise ainda é traçar sua origem e evolução. Em 1880 e 1881, o Dr. Josef Breuer, de Viena, médico e fisiologista experimental bem conhecido, ocupava-se do tratamento de uma jovem que caíra enferma de grave histeria enquanto se achava cuidando do pai doente. O quadro clínico era constituído de paralisias motoras, inibições e distúrbios de consciência. Seguindo uma sugestão que lhe fora dada pela própria paciente, pessoa de grande inteligência, ele colocou-a em estado de hipnose e conseguiu que, descrevendo-lhe os estados de ânimo e os pensamentos que eram dominantes em sua mente, retornasse, em cada ocasião específica, a uma condição mental normal. Repetindo sistematicamente o mesmo laborioso processo, conseguiu libertá-la de todas as suas inibições e paralisias, de maneira que, ao final, achou o seu trabalho recompensado por um grande sucesso terapêutico, bem como por uma inesperada compreensão da natureza da enigmática neurose. Não obstante, Breuer absteve-se de acompanhar sua descoberta ou de publicar algo sobre o caso até cerca de 10 anos depois, quando a influência pessoal do presente autor (Freud, que retornara a Viena em 1886, após estudar na escola de Charcot) o persuadiu a retomar o assunto e empenhar-se num estudo conjunto dele. Os dois, Breuer e Freud, publicaram um artigo preliminar em 1893, ‘Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos’, e, em 1895, um volume intitulado Estudos sobre a Histeria (que chegou à sua quarta edição em 1922), no qual descreviam seu procedimento terapêutico como ‘catártico’.
            Catarse. - As investigações existentes na raiz dos estudos de Breuer e Freud conduziram a dois resultados principais, que não foram abalados pela experiência subseqüente: primeiro, que os sintomas histéricos têm sentido e significado, sendo substitutos de atos mentais normais, e, segundo, que a descoberta desse significado desconhecido é acompanhada pela remoção dos sintomas, de modo que, nesse caso, a pesquisa científica e o esforço terapêutico coincidem. As observações foram efetuadas sobre uma série de pacientes tratados da mesma maneira que a primeira paciente de Breuer, ou seja, colocados em estados de hipnose profunda; os resultados pareceram brilhantes até que, posteriormente, seu lado fraco tornou-se evidente. As idéias teóricas apresentadas na ocasião por Breuer e Freud foram influenciadas pelas teorias de Charcot sobre a histeria traumática e puderam apoiar-se nas descobertas de seu aluno Pierre Janet, as quais, embora tenham sido publicadas antes dos ‘Estudos‘, foram na realidade subseqüentes ao primeiro caso de Breuer. Desde o início, o fator do afeto foi trazido para o primeiro plano: os sintomas histéricos, sustentavam os autores, surgiam quando um processo mental com pesada carga emocional era de alguma maneira impedido de nivelar-se ao longo do caminho normal que conduz à consciência e ao movimento (isto é, era impedido de ser ‘ab-reagido‘); em resultado disso, o afeto, em certo sentido ‘estrangulado‘, era desviado ao longo de caminhos errados e transbordava para a inervação somática (processo denominado de ‘conversão‘). As ocasiões em que surgem ‘idéias patogênicas’ desse tipo foram descritas por Breuer e Freud como ‘traumas psíquicos’ e, visto que estes amiúde remontavam ao passado muito remoto, foi possível aos autores dizer que os histéricos sofriam principalmente de reminiscências (que não haviam sido tratadas). Sob o tratamento, portanto, a ‘catarse‘ surgia quando o caminho à consciência se abria e havia uma descarga normal do afeto. Ver-se-á que uma parte essencial dessa teoria era a pressuposição da existência de processos mentais inconscientes. Também Janet fez uso dos atos inconscientes na vida mental, porém, como insistiu em sua polêmica posterior contra a psicanálise, para ele a expressão não era mais que uma expressão improvisada, uma ‘manière de parler‘, e não pretendia sugerir mediante ela nenhum novo ponto de vista.
            Numa seção teórica dos Estudos, Breuer apresentou algumas idéias especulativas sobre os processos de excitação da mente. Essas idéias determinaram a direção das futuras linhas de pensamentos e ainda hoje não receberam apreciação suficiente, mas puseram fim às suas contribuições a esse ramo da ciência e logo depois ele afastou-se do trabalho comum.
            A Transição para a Psicanálise. - Contrastes entre as conceituações dos dois autores eram visíveis mesmo nos Estudos. Breuer supunha que as idéias patogênicas produziam seu efeito traumático porque surgiam durante ‘estados hipnóides‘, nos quais o funcionamento mental estava sujeito a limitações especiais. O presente autor rejeitou a explicação e inclinou-se para a crença de que uma idéia se tornava patogênica se seu conteúdo estava em oposição com a tendência predominante da vida mental do sujeito, de maneira a incitá-lo a entrar em ‘defesa‘. (Janet atribuía aos pacientes histéricos uma incapacidade constitucional para manter unido o conteúdo de suas mentes e foi neste ponto que seu caminho divergiu do de Breuer e Freud.) Além disso, as duas inovações que levaram o presente autor a afastar-se do método catártico já haviam sido mencionadas nos Estudos. Após o afastamento de Breuer, elas se tornaram o ponto de partida de novos desenvolvimentos.
            O Abandono da Hipnose. - A primeira dessas inovações baseou-se na experiência prática e levou a uma mudança de técnica. A segunda consistiu num avanço na compreensão clínica das neuroses. Logo mostrou-se que as esperanças terapêuticas, antes depositadas no tratamento catártico da hipnose, achavam-se até certo ponto irrealizadas. Era verdade que o desaparecimento dos sintomas ia de mãos dadas com a catarse, mas o sucesso total revelara ser inteiramente dependente da relação do paciente com o médico e, assim, assemelhava-se ao efeito da ‘sugestão’. Se essa relação era perturbada, todos os sintomas reapareciam, como se nunca houvessem sido dissipados. Além disso, o pequeno número de pessoas que podia ser colocado em profundo estado de hipnose envolvia uma limitação considerável, do ponto de vista médico, da aplicabilidade do procedimento catártico. Por essas razões, o presente autor decidiu abandonar o emprego da hipnose, mas, ao mesmo tempo, as impressões que dela derivara forneceram-lhe os meios de substituí-la.
            A Associação Livre. - O efeito da condição hipnótica sobre o paciente fora aumentar tão grandemente sua capacidade de efetuar associações que ele podia encontrar diretamente o caminho - inacessível à sua reflexão consciente - que conduzia do sintoma aos pensamentos e lembranças a ele vinculados. O abandono da hipnose parecia tornar desesperadora a situação, até que o autor se recordou de uma observação de Bernheim segundo a qual as coisas experimentadas em estado de sonambulismo eram apenas aparentemente esquecidas e podiam ser trazidas à lembrança em qualquer época, se o médico insistisse energicamente em que o paciente as conhecia. O autor, assim, esforçou-se por insistir junto a seus pacientes não hipnotizados que lhe fornecessem suas associações, a fim de que, do material assim fornecido, pudesse achar o caminho que levava ao antes esquecido ou desviado. Observou posteriormente que a insistência era desnecessária e que idéias copiosas quase sempre surgiam na mente do paciente, mas eram retidas de serem comunicadas e, até mesmo, de se tornarem conscientes devido a certas objeções colocadas pelo paciente, à sua própria maneira. Era de se esperar - embora isso ainda não estivesse provado e somente depois fosse confirmado por vasta experiência - que tudo o que acontecesse a um paciente, estendendo-se de um ponto de partida específico, deveria também estar em conexão interna com esse ponto de partida; daí surgiu a técnica de ensinar o paciente a abandonar toda a sua atitude crítica e fazer uso do material que era então trazido à luz para o fim de revelar as conexões que estavam sendo buscadas. Uma forte crença na determinação escrita dos fatos mentais certamente desempenhou um papel na escolha dessa técnica como um sucedâneo da hipnose.
            A ‘Regra Técnica Fundamental‘ desse procedimento de ‘associação livre’ foi desde então mantida no trabalho psicanalítico. O tratamento é iniciado pedindo-se ao paciente que se coloque na posição de um auto-observador atento e desapaixonado, simplesmente comunicando o tempo inteiro a superfície de sua consciência e, por um lado, tornando um dever a mais completa honestidade, enquanto que, por outro lado, não retendo da comunicação nenhuma idéia, mesmo que (1) sinta ser ela muito desagradável, (2) julgue-a absurda ou (3) sem importância demais ou (4) irrelevante para o que está sendo buscado. Descobre-se uniformemente que justamente as idéias que provocam as reações por último mencionadas são as que têm valor específico para a descoberta do material esquecido.
            A Psicanálise como Arte Interpretativa. - A nova técnica modificou tão grandemente o quadro do tratamento, situou o médico em uma relação tão nova com o paciente e produziu resultados tão surpreendentes que pareceu justificado diferenciar do método catártico o procedimento, atribuindo-lhe nova denominação. O presente autor deu a esse método de tratamento, que podia agora ser estendido a muitas outras formas de distúrbio neurótico, o nome de psicanálise. Ora, em primeira instância, essa psicanálise era uma arte de interpretação e estabeleceu a si própria a tarefa de levar mais a fundo a primeira das grandes descobertas de Breuer, ou seja, que os sintomas neuróticos são substitutos significantes de outros atos mentais que foram omitidos. Tratava-se agora da questão de encarar o material produzido pelas associações do paciente como se insinuasse um significado oculto, e de descobrir, a partir dele, esse significado. A experiência logo mostrou que a atitude que o médico analítico podia mais vantajosamente adotar, era entregar-se à sua própria atividade mental inconsciente, num estado de atenção imparcialmente suspensa, a fim de evitar, tanto quando possível, a reflexão e a construção de expectativas conscientes, não tentar fixar particularmente coisa alguma que ouvisse na memória e, por esses meios, apreender o curso do inconsciente do paciente com o seu próprio inconsciente. Descobriu-se então que, salvo em condições por demais desfavoráveis, as associações do paciente surgiam como alusões, por assim dizer, a um tema específico, e que ao médico só era necessário adiantar um passo a fim de adivinhar o material que estava oculto ao próprio paciente, e poder comunicá-lo a este. É verdade que esse trabalho de interpretação não podia ser submetido a regras estritas e deixava uma grande margem de manobra ao tato e à perícia do médico; no entanto, com imparcialidade e prática era geralmente possível obter resultados dignos de confiança, isto é, resultados que eram confirmados por se repetirem em casos semelhantes. Num tempo em que ainda se conhecia tão pouco do inconsciente, da estrutura das neuroses e dos processos patológicos a elas subjacentes, era motivo de satisfação dispor-se de uma técnica dessa espécie, mesmo que não possuísse uma base teórica melhor. Ademais, ainda hoje ela é empregada da mesma maneira nas análises, embora com um senso de maior segurança e com melhor compreensão de suas limitações.
            A Interpretação das Parapraxias e dos Atos Fortuitos. - Constituiu um triunfo para a arte interpretativa da psicanálise conseguir demonstrar que certos atos mentais comuns de pessoas normais, para os quais ninguém havia até então buscado apresentar explicação psicológica, deveriam ser considerados sob o mesmo ângulo que os sintomas dos neuróticos, isto é, que tinham um significado, desconhecido do sujeito, mas capaz de ser facilmente descoberto pelos meios analíticos. Os fenômenos em causa eram eventos como o esquecimento temporário de palavras e nomes familiares e de efetuar tarefas prescritas, lapsos cotidianos de língua e de escrita, leituras erradas, perdas e colocações erradas de objetos, certos erros, exemplos de danos a si próprio aparentemente acidentais e, finalmente, movimentos habituais efetuados aparentemente sem intenção ou brincando, melodias murmuradas ‘sem pensar’ etc. Todos foram despidos de sua explicação fisiológica, se é que alguma fora um dia tentada, demonstrados como estritamente determinados e revelados como expressão de intenções suprimidas do sujeito ou como o resultado de um embate entre duas intenções, uma das quais era permanente ou temporariamente inconsciente. A importância dessa contribuição para a psicologia foi de muitos tipos. O âmbito de determinismo mental foi por ela ampliado de maneira imprevista; o suposto abismo existente entre os fatos mentais normais e patológicos se estreitou, em muitos casos logrou-se uma compreensão útil ao jogo das forças mentais que se deve suspeitar existir por trás dos fenômenos. Finalmente, foi trazida à luz uma classe de material que se adapta melhor que qualquer outra para estimular a crença na existência de atos mentais inconscientes mesmo em pessoas a quem a hipótese de algo ao mesmo tempo mental e inconsciente parece estranha, e até absurda. O estudo de nossas próprias parapraxias e atos fortuitos, para o qual a maioria das pessoas possui amplas oportunidades, é ainda hoje a melhor preparação para uma abordagem da psicanálise. No tratamento analítico, a interpretação das parapraxias retém seu lugar como meio de descoberta do inconsciente, juntamente com a interpretação das associações, imensuravelmente mais importante.
            A Interpretação de Sonhos. - Uma nova abordagem às profundezas da vida mental inaugurou-se quando a técnica da associação livre foi aplicada aos sonhos, fossem os nossos próprios ou os dos pacientes em análise. Na realidade, a maior e melhor parte do que sabemos dos processos nos níveis inconscientes da mente deriva-se da interpretação dos sonhos. A psicanálise restaurou aos sonhos a importância que lhes era geralmente atribuída nos tempos passados, mas os trata de modo diferente. Não se apóia na perícia do intérprete onírico, mas, na maior parte, entrega a tarefa àquele mesmo que sonhou, pedindo-lhe suas associações aos elementos independentes do sonho. Levando essas associações mais além, logramos conhecimento de pensamentos que coincidem inteiramente com o sonho, mas que podem ser identificados - até certo ponto - como partes genuínas e completamente inteligíveis da atividade mental desperta. Assim, o sonho relembrado surge como o conteúdo onírico manifesto, em contraste com os pensamentos oníricos latentes, descobertos pela interpretação. O processo que transformou os últimos no primeiro, isto é, no ‘sonho’, e que é desfeito pelo trabalho da interpretação, pode ser chamado de ‘elaboração onírica
            Também descrevemos os pensamentos oníricos latentes, devido à sua vinculação com a vida de vigília, como ‘resíduos do dia [anterior]’. Pela operação da elaboração onírica (à qual seria inteiramente incorreto atribuir qualquer caráter ‘criativo’), os pensamentos oníricos latentes se condensam de uma maneira notável, deformam-se pelo deslocamento das intensidades psíquicas e dispõem-se com vistas a serem representados em quadros visuais. Além de tudo isso, antes que se chegue ao sonho manifesto, são submetidos a um processo de revisão secundária, que procura dar ao novo produto algo da natureza de um sentido e uma coerência. Estritamente falando, esse último processo não faz parte da elaboração onírica.A Teoria Dinâmica da Formação Onírica. - A compreensão da dinâmica da formação onírica não envolve dificuldades muito grandes. A força motivadora para a formação dos sonhos não é fornecida pelos pensamentos oníricos latentes ou resíduos diurnos, mas por um impulso inconsciente, reprimido durante o dia, com o qual os resíduos diurnos puderam estabelecer contato e que imagina efetuar uma realização de desejo para si próprio a partir do material dos pensamentos latentes. Assim, todo sonho é, por um lado, a realização de um desejo por parte do inconsciente e, por outro (na medida em que consegue resguardar o estado de sono contra os distúrbios), a realização do desejo normal de dormir que dá começo ao sono. Se desperzarmos a contribuição inconsciente para a formação do sonho e limitarmos este a seus pensamentos latentes, ele pode representar qualquer coisa em que a vida de vigília tenha estado interessada: uma reflexão, uma advertência, uma intenção, uma preparação para o futuro imediato ou, mais uma vez, a satisfação de um desejo não realizado. A irreconhecibilidade, a estranheza e o absurdo do sonho manifesto são em parte o resultado da tradução dos pensamentos em um método de expressão diferente, arcaico, por assim dizer, mas em parte também o efeito de um agente restrito, criticamente desaprovador, existente na mente, que não deixa inteiramente de funcionar durante o sono. É plausível supor que a ‘censura onírica’, que encaramos como responsável, em primeira instância, pela deformação dos pensamentos oníricos no sonho manifesto, seja expressão das mesmas forças mentais que, durante o dia, retiveram ou reprimiram o desejo inconsciente pleno de desejo.
            Valeu a pena entrar em alguns pormenores sobre a explicação dos sonhos, de vez que o trabalho analítico demonstrou ser a dinâmica da formação dos sonhos a mesma da formação dos sintomas. Em ambos os casos encontramos uma luta entre duas tendências, das quais uma é inconsciente, normalmente reprimida, e se esforça por obter satisfação, isto é, a realização do desejo, enquanto que a outra, pertencente provavelmente ao ego consciente, é desaprovadora e repressiva. O resultado desse conflito é uma formação conciliatória (o sonho ou o sintoma) na qual ambas as tendências encontram expressão incompleta. A importância teórica dessa conformidade entre os sonhos e os sintomas é esclarecedora. Porquanto os sonhos não são fenômenos patológicos, o fato demonstra que os mecanismos mentais que produzem os sintomas de doença estão igualmente presentes na vida mental normal, que a mesma lei uniforme abrange tanto o normal quanto o anormal e que as descobertas da pesquisa em neuróticos e psicóticos não podem deixar de ter significação para a nossa compreensão da mente saudável.
            Simbolismo. - No curso da investigação da forma de expressão ocasionada pela elaboração onírica, surgiu o fato surpreendente de que certos objetos, combinações e relações são representados, em certo sentido, indiretamente, através de ‘símbolos’, utilizados por aquele que sonha, sem entendê-los, e para os quais, via de regra, não oferece associações. Sua tradução tem de ser forncida pelo analista, que, por si próprio, só pode descobri-la empiricamente, ajustando-a experimentalmente ao contexto. Descobriu-se posteriormente que o hábito lingüístico, a mitologia e o folclore apresentam as mais amplas analogias com os símbolos oníricos. Os símbolos, que levantam os problemas mais interessantes, até agora insolucionados, parecem ser um fragmento de uma aparelhagem mental herdada e extremamente antiga. O emprego de um simbolismo comum estende-se muito além do uso de uma linguagem comum.
            A Significação Etiológica da Vida Sexual. - A segunda novidade que surgiu após a técnica hipnótica ter sido substituída pela associação livre, foi de natureza clínica, havendo sido descoberta no decurso da prolongada busca das experiências traumáticas de que os sintomas histéricos pareciam derivar-se. Quanto mais cuidadosamente a procura era feita, mais extensa parecia ser a rede de impressões etiologicamente signficantes, mas retrocedendo, do mesmo modo, iam elas pela puberdade ou infância do paciente. Ao mesmo tempo, assumiam um caráter uniforme e, finalmente, tornou-se inevitável curvar-se perante a evidência e reconhecer que na raiz da formação de todo sintoma deveriam encontrar-se experiências traumáticas do início da vida sexual. Assim, um trauma sexual entrou no lugar de um trauma comum e viu-se que o último devia sua significação etiológica a uma conexão associativa ou simbólica com o primeiro, que o precedera. Uma investigação de casos de nervosismo comum (incidindo nas duas classes da neurastenia e da neurose de angústia) empreendida simultaneamente levou à conclusão de que esses distúrbios podiam ser remontados a abusos contemporâneos na vida sexual dos pacientes e removidos se estes fossem levados a um fim. Assim, foi fácil inferir que as neuroses em geral são expressão de distúrbios na vida sexual, em que as chamadas neuroses atuais são conseqüência (por interferência química) de danos contemporâneos e as psiconeuroses, conseqüência (por modificação psíquica) de danos passados causados a uma função biológica que até então fora gravemente negligenciada pela ciência. Nenhuma das teses da psicanálise defrontou-se com tão tenaz ceticismo ou tão acerba resistência quanto essa assertida da significação preponderantemente etiológica da vida sexual nas neuroses. Deve-se expressamente observar, contudo, que, em sua evolução até os dias de hoje a psicanálise não encontrou razões para retratar-se dessa opinião.
            A Sexualidade Infantil. - Em resultado de suas pesquisas etiológicas, a psicanálise ficou em posição de tratar de um assunto cuja própria existência mal havia sido suspeitada anteriormente. A ciência acostumara-se a considerar a vida sexual como iniciando-se na puberdade e encarava as maniestações de sexualidade em crianças como sinais raros de precocidade anormal e degeneração. Porém, agora, a psicanálise revelara uma opulência de fenômenos (notáveis, no entanto, de ocorrência regular) que tornaram necessário remontar o início da função sexual nas crianças quase ao começo da existência extra-uterina; e perguntou-se, com espanto, como tudo isso podia ter sido desprezado. Os primeiros vislumbres da sexualidade nas crianças haviam, na verdade, sido obtidos através do exame analítico de adultos e estavam conseqüentemente carregados de todas as dúvidas e fontes de erro que podiam ser atribuídas a uma retrospecção tão atrasada; subseqüentemente (de 1908 em diante), contudo, iniciou-se com a análise das próprias crianças e com a observação desimpedida de seu comportamento; dessa maneira, conseguiu-se confirmação direta para toda a base concreta da nova visão.
            A sexualidade nas crianças, em muitos respeitos, apresentou um quadro diferente da dos adultos e, de modo bastante surpreendente, exibiu numerosos traços daquilo que, nos adultos, era condenado como ‘perversões‘. Tornou-se necessário ampliar o conceito do que era sexual, até que abrangesse mais que o impulso no sentido da união dos dois sexos no ato sexual ou da provocação de sensações agradáveis específicas nos órgãos genitais. Essa ampliação foi, porém, recompensada pela nova possibilidade de apreender a vida sexual infantil, normal e perversa, como um todo único.
            As pesquisas analíticas efetuadas pelo autor, para começar, incidiram no erro de superestimar grandemente a importância da sedução como fonte de manifestações sexuais nas crianças e raiz para a formação de sintomas neuróticos. Essa má compreensão foi corrigida quando se tornou possível apreciar o papel extraordinariamente grande desempenhado na vida mental dos neuróticos pelas atividades da fantasia, que claramente pesava mais sobre as neuroses que a realidade externa. Por trás dessas fantasias desvelou-se o material que nos permite traçar o quadro, a seguir, do desenvolvimento da função sexual.
            O Desenvolvimento da Libido. - O instinto sexual, a manifestação dinâmica do que, na vida mental, chamamos de ‘libido’, é constituído de instintos componentes nos quais pode novamente desdobrar-se e que só gradualmente se unem em organizações bem definidas. As fontes desses instintos componentes são os órgãos do corpo e, em particular, certas zonas erógenas especialmente acentuadas; no entanto, a libido recebe contribuições de todo processo funcional importante do corpo. A princípio, os instintos componentes individuais esforçam-se por obter satisfação independentemente uns dos outros, mas, no decorrer do desenvolvimento, se tornam cada vez mais convergentes e concentrados. A primeira fase (pré-genital) de organização a ser discernida é a oral, na qual, em conformidade com os interesses predominantes do bebê, a zona oral desempenha o papel principal. Ela é seguida pela organização analsádica em que a zona anal e o instinto componente do sadismo são particularmente proeminentes; nesta fase, a diferença entre os sexos é representada pelo contraste entre ativo e passivo. A fase terceira e final da organização é aquela em que a maioria dos instintos componentes converge para o primado das zonas genitais. Via de regra, essa evolução é atravessada rápida e moderadamente, mas certas partes individuais dos instintos permanecem atrás, nas fases prodrômicas do processo, e dão assim surgimento a fixações da libido, importantes como predisposições constituintes para irrupções subseqüentes de impulsos reprimidos e que se encontram em relação definida com o desenvolvimento posterior das neuroses e perversões. (Ver o verbete sobre ‘A Teoria da Libido’.)
            O Processo de Encontrar um Objeto e o Complexo de Édipo. - Em primeira instância, o instinto componente oral encontra satisfação ligando-se à saciação do desejo de nutrição, e seu objeto é o seio materno. Ele depois se desliga, torna-se independente e, ao mesmo tempo, auto-erótico, isto é, encontra um objeto no próprio corpo da criança. Outros instintos componentes também começam por serem auto-eróticos e somente mais tarde são desviados para um objeto externo. Constitui fato particularmente importante que os instintos componentes pertencentes à zona genital atravessam habitualmente um período de intensa satisfação auto-erótica. Os instintos componentes não são todos igualmente úteis na organização genital final da libido; alguns deles (os componentes anais, por exemplo) são conseqüentemente deixados de lado e suprimidos ou experimentam complicadas transformações.
            Em anos muito precoces da infância (aproximadamente entre as idades de dois e cinco anos) ocorre uma convergência dos impulsos sexuais, da qual, no caso dos meninos, o objeto é a mãe. Essa escolha de um objeto, em conjunção com uma atitude correspondente de rivalidade e hostilidade para com o pai, fornece o conteúdo do que é conhecido como o complexo de Édipo, que em todo ser humano é da maior importância na determinação da forma final de sua vida erótica. Descobriu-se ser característica de um indivíduo normal aprender a dominar seu complexo de Édipo, ao passo que o neurótico permanece envolvido nele.
            O Começo Difásico do Desenvolvimento Sexual. - Aproximando-se o final do quinto ano de idade, esse período inicial da vida sexual normalmente chega ao fim. É sucedido por um período de latência mais ou menos completa, durante o qual as coibições éticas são construídas, para atuar como defesas contra os desejos do complexo de Édipo. No período subseqüente da puberdade esse complexo é revivescido no inconsciente e envolve-se em novas modificações. Somente na puberdade é que os instintos sexuais chegam à sua plena intensidade, mas a direção desse desenvolvimento, bem como todas as predisposições a ele, já foram determinadas pela eflorescência precoce da sexualidade durante a infância que o precedeu. Esse desenvolvimento difásico da função sexual - em duas fases, interrompidas pelo período de latência - parece constituir uma peculiaridade biológia da espécie humana e conter o fator determinante da origem das neuroses.
            A Teoria da Repressão. - Estas considerações teóricas, tomadas conjuntamente com as impressões imediatas derivadas do trabalho analítico, conduzem a uma visão das neuroses que se pode descrever, no mais grosseiro dos esboços, como se segue. As neuroses são expressão de conflitos entre o ego e aqueles impulsos sexuais que parecem ao ego incompatíveis com sua integridade ou com seus padrões éticos. Visto esses impulsos não serem egossintônicos, o ego os reprimiu, isto é, afastou deles seu interesse e impediu-os de se tornarem conscientes, bom como de obterem satisfação através de descarga motora. Se, no curso do trabalho analítico, tentamos tornar conscientes esses impulsos reprimidos, damo-nos conta das forças repressivas sob a forma de resistência. A consecução da repressão, porém, fracassa de modo especialmente fácil no caso dos instintos sexuais. Sua libido represada encontra outras saídas do inconsciente, porque regride a fases anteriores do desenvolvimento e a atitudes anteriores para com os objetos, e em pontos fracos de desenvolvimento libidinal, onde existem fixações infantis, irrompe na consciência e obtém descarga. O que resulta é um sintoma e, conseqüentemente, em sua essência, uma satisfação sexual substitutiva. Não obstante, o sintoma não pode escapar inteiramente às forças repressivas do ego, tendo assim de submeter-se a modificações e deslocamentos - exatamente como acontece com os sonhos - através dos quais sua característica de satisfação sexual se torna irreconhecível. Conseqüentemente, os sintomas têm a natureza de conciliações entre os instintos sexuais reprimidos e os instintos repressores do ego; representam uma realização de desejo para ambas as partes do conflito simultaneamente, uma realização porém incompleta para cada uma delas. Isso é inteira e estritamente genuíno dos sintomas da histeria, ao passo que nos sintomas da neurose obsessiva há amiúde uma ênfase mais forte no lado da função repressora devido ao erguimento de formações reativas, que são garantias contra a satisfação sexual.
            Transferência. - Se hovesse necessidade de outras provas da verdade de que as forças motivadoras por trás da formação de sintomas neuróticos são de natureza sexual, elas seriam encontradas no fato de, no decurso do tratamento analítico, formar-se regularmente entre o paciente e o médico uma relação emocional especial, relaçao que vai muito além dos limites racionais. Ela varia entre a devoção mais afetuosa e a inimizade mais obstinada e deriva todas as suas características de atitudes eróticas anteriores do paciente, as quais se tornaram inconscientes. Essa transferência, tanto em sua forma positiva quanto negativa, é utilizada como arma pela resistência; porém, nas mãos do médico, transforma-se no mais poderoso instrumento terapêutico e desempenha um papel que dificilmente se pode superestimar na dinâmica do processo de cura.
            As Pedras Angulares da Teoria Psicanalítica. - A pressuposição de existirem processos mentais inconscientes, o reconhecimento da teoria da resistência e repressão, a apreciação da importância da sexualidade e do complexo de Édipo constituem o principal tema da psicanálise e os fundamentos de sua teoria. Aquele que não possa aceitá-los a todos não deve considerar-se a si mesmo como psicanalista.
            História Posterior da Psicanálise. - A psicanálise foi conduzida aproximadamente até aí pelo trabalho do autor deste verbete, que por mais de dez anos foi seu único representante. Em 1906, os psiquiatras suíços Bleuler e C. G. Jung começaram a desempenhar um papel vigoroso na análise; em 1907, uma primeira conferência de seus seguidores realizou-se em Salzburg e a jovem ciência cedo descobriu-se como centro de interesse tanto entre psiquiatras quanto entre leigos. Sua recepção na Alemanha, o país com seu mórbido anseio por autoridade, não foi precisamente meritória para a ciência alemã e levou mesmo um partidário assim tão frio como Bleuler a um enérgico protesto. Contudo, nenhuma condenação ou repúdio em congressos oficiais serviu para deter o crescimento interno ou a expansão externa da psicanálise. No decorrer dos dez anos seguintes ela se estendeu muito além das fronteiras da Europa e tornou-se especialmente popular nos Estados Unidos da América, o que se atribui em não pequeno grau à advocacia e à colaboração de Putnam (Boston), Ernest Jones (Toronto, e depois Londres), Flournoy (Genebra), Ferenczi (Budapest), Abraham (Berlim), e muitos outros além destes. O anátema imposto à psicanálise levou seus seguidores a reunirem-se numa organização internacional que, no presente ano (1922), está realizando seu oitavo Congresso privado em Berlim e inclui hoje grupos locais em Viena, Budapest, Berlim, Holanda, Zurique, Londres, Nova Iorque, Calcutá e Moscou. Esse desenvolvimento não foi interrompido nem mesmo pela Guerra Mundial. Em 1918-19, o Dr. Anton von Freund, de Budapest, fundou a Internationaler Psychoanalysticher Verlag, que publica períodicos e livros relacionados com a psicanálise, e, em 1920, o Dr. M. Eitingon abriu em Berlim a primeira clínica psicanalítica para o tratamento de neuróticos sem recursos particulares. Traduções em francês, italiano e espanhol das obras principais do autor, que se encontram atualmente em preparação, dão testemunho de um crescente interesse na psicanálise também no mundo latino.
            Entre 1911 e 1913 dois movimentos de divergência da psicanálise se efetuaram, evidentemente com o objetivo de atenuar suas feições repelentes. Um deles (patrocinado por C.G. Jung), num esforço por conformar-se aos padrões éticos, desvestiu o complexo de Édipo de sua significação real, concedendo-lhe apenas um valor simbólico e, na prática, desprezou a revelação do período infantil esquecido e, como podemos chamá-lo, ‘pré-histórico’. O outro (originado por Alfred Adler em Viena) reproduziu muitos fatores da psicanálise sob outros nomes; a repressão, por exemplo, aparecia numa versão sexualizada como ‘protesto masculino’. Sob outros aspectos, porém, o movimento afastou-se do inconsciente e dos instintos sexuais e esforçou-se por remontar a origem do desenvolvimento do caráter e das neuroses à ‘vontade de poder’, a qual, por meio de uma supercompensação, esforça-se por contrabalançar os perigos que surgem da ‘inferioridade de órgão’. Nenhum desses movimentos, com suas estruturas sistemáticas, teve qualquer influência permanente sobre a psicanálise. No caso das teorias de Adler, logo ficou claro que pouco tinham em comum com a psicanálise, a qual se destinavam a substituir.
            Progressos mais Recentes na Psicanálise. - Visto a psicanálise haver-se tornado o campo de trabalho de tão grande número de observadores, ela efetuou progressos, tanto em amplitude quanto em profundidade, mas infelizmente estes podem receber só a mais breve menção no presente verbete.
            Narcisismo. - O mais importante progresso teórico foi certamente a aplicação da teoria da libido ao ego repressor. O próprio ego veio a ser encarado como um reservatório do que foi descrito como libido narcísica, do qual as catexias libidinais dos objetos fluíam e para o qual podiam ser novamente retiradas. Com a ajuda dessa concepção tornou-se possível empenhar-se na análise do ego e efetuar uma distinção clínica das psiconeuroses em neuroses de transferência e distúrbios narcísicos. Nas primeiras (histeria e neurose obsessiva), o sujeito tem à sua disposição uma quantidade de libido que se esforça por ser transferida para objetos externos, fazendo-se uso disso para levar a cabo o tratamento analítico; por outro lado, os distúrbios narcísicos (demência precoce, paranóia, melancolia) caracterizam-se por uma retirada da libido dos objetos e, assim, raramente são acessíveis à terapia analítica. Sua inacessibilidade terapêutica, contudo, não impediu a análise de efetuar os mais fecundos começos do estudo mais profundo dessas moléstias, que se contam entre as psicoses.
            Desenvolvimento da Técnica. - Após a curiosidade do analista ter sido, por assim dizer, gratificada pela elaboração da técnica da interpretação, era inevitável que o interesse se voltasse para o problema de descobrir a maneira mais eficaz de influenciar o paciente. Logo tornou-se evidente que a tarefa imediata do médico era assistir o paciente e vir a conhecer - e, posteriormente, sobrepujar - as resitências que nele surgiam durante o tratamento e das quais, inicialmente, ele próprio não estava consciente. E ao mesmo tempo descobriu-se que a parte essencial do proceso de cura residia no sobrepujamento dessas resistências e que, a menos que isso fosse conseguido, nenhuma modificação mental permanente poderia ser efetuada no paciente. Visto os esforços do analista dirigirem-se dessa maneira para a resistência do paciente, a técnica analítica atingiu uma certeza e uma delicadeza que rivalizam com as da cirurgia. Conseqüentemente, todos são energicamente advertidos contra o empreendimento de tratamentos psicanalíticos sem uma formação estrita, e um médico que neles se aventure baseado em sua qualificação médica não é, sob qualquer aspecto, melhor que um leigo.
            A Psicanálise como Processo Terapêutico. - A psicanálise nunca se apresentou como uma panacéia e jamais reivindicou realizar milagres. Em uma das mais difíceis esferas da atividade médica, ela constitui o único método possível de tratamento para certas enfermidades e, para outras, é o método que rende os melhores ou os mais permanentes resultados, embora nunca sem um dispêndio correspondente de tempo e de trabalho. Um médico que não esteja inteiramente absorvido pelo trabalho de dar auxílio descobrirá seus sacrifícios amplamente recompensados pela consecução de uma compreensão inesperada das complicações da vida mental e das inter-relações entre o mental e o físico. Onde atualmente ela não pode oferecer ajuda, senão apenas compreensão teórica, pode talvez estar preparando o caminho para algum meio posterior e mais direto de influenciar os distúrbios neuróticos. Sua província é, acima de tudo, as duas neuroses de transferência, a histeria e a neurose obsessiva, onde contribuiu para a descoberta de sua estrutura interna e mecanismos operativos, e, além delas, todas as espécies de fobias, inibições, deformidades de caráter, perversões sexuais e dificuldades da vida erótica. Alguns analistas (Jelliffe, Groddeck, Felix Deutsch) comunicaram também que o tratamento analítico de vulgares doenças orgânicas não é inauspicioso, de vez que um fator mental não infreqüentemente contribui para a origem e continuação de tais moléstias. Desde que a psicanálise exige certa plasticidade psíquica de seus pacientes, algum tipo de limite etário deve ser estabelecido na seleção deles, e uma vez que torna necessária a dedicação de uma atenção longa e intensa ao paciente individual, não seria econômico esbanjar esse dispêndio em pessoas completamente inúteis que ocorre serem neurótica. Só a experiência do material das clínicas pode mostrar quais as modificações imprescindíveis para tornarem o tratamento psicanálitico acessível a estratos mais amplos da população ou adaptá-lo a inteligências mais débeis.
            Comparação entre a Psicanálise e os Métodos Hipnótico e Sugestivo. - O procedimento psicanalítico difere de todos os métodos que fazem uso da sugestão, persuasão, etc., pelo fato de não procurar suprimir através da autoridade qualquer fenômeno mental que possa ocorrer no paciente. Esforça-se por traçar a causação de fenômeno e removê-la pelo ocasionamento de uma modificação permanente nas condições que levaram a ele. Na psicanálise, a influência sugestiva que é inevitavelmente exercida pelo médico desvia-se para a missão atribuída ao paciente de sobrepujar suas resistências, isto é, de levar avante o processo curativo. Qualquer perigo de falsificar os produtos da memória de um paciente pela sugestão pode ser evitado pelo manejo prudente da técnica; mas, em geral, o despertar das resistências constitui uma garantia contra os efeitos enganadores da influência sugestiva. Pode-se estabelecer que o objetivo do tratamento é remover as resistências do paciente e passar em revista suas repressões, ocasionando assim a unificação e o fortalecimento de mais longo alcance de seu ego, capacitando-o a poupar a energia mental que está dispendendo em conflitos internos, obtendo do paciente o melhor que suas capacidades herdadas permitam, e tornando-o assim tão eficiente e capaz de gozo quanto é possível. Não se visa especificamente à remoção dos sintomas da doença, contudo ela é conseguida, por assim dizer, como um subproduto, se a análise for corretamente efetuada. O analista respeita a individualidade do paciente e não procura remoldá-lo de acordo com suas próprias idéias pessoais, isto é, as do médico; contenta-se com evitar dar conselhos e, em vez disso, com despertar o poder de iniciativa do paciente.
            Sua Relação com a Psiquiatria. - A psiquiatria é na atualidade essencialmente uma ciência descritiva e classificatória cuja orientação ainda é no sentido do somático, de preferência ao psicológico, e que se acha sem possibilidades de fornecer explicações aos fenômenos que observa. A psicanálise, contudo, não se coloca em oposição a ela, como o comportamento quase unânime dos psiquiatras poderia levar-nos a acreditar. Pelo contrário, como uma psicologia profunda, uma psicologia daqueles processos da vida mental que são retirados da consciência, ela é convocada a dar à psiquiatria um fundamento indispensável e a libertá-la de suas atuais limitações. Podemos prever que futuro dará origem a uma psiquiatria científica, à qual a psicanálise serviu de introdução.
            Críticas e Más Interpretações da Psicanálise. - A maioria do que é apresentado contra a psicanálise, mesmo em obras científicas, baseia-se em informações insuficientes que, por sua vez, parecem ser determinadas por resistências emocionais. Assim, é um equívoco acusar a psicanálise de ‘pansexualismo’ e alegar que ela deriva da sexualidade todas as ocorrências mentais e as remonta todas àquela. Ao contrário, a psicanálise desde o início distinguiu os instintos sexuais de outros, que provisoriamente denominou de ‘instintos do ego’. Ela jamais sonhou tentar explicar ‘tudo’, e mesmo das neuroses, remontou sua origem não somente à sexualidade, mas ao conflito entre os impulsos sexuais e o ego. Na psicanálise (diferentemente das obras de C.G. Jung), o termo ‘libido‘ não significa energia psíquica em geral, mas sim a força motivadora dos instintos sexuais. Algumas assertivas, como a de que todo sonho é a realização de um desejo sexual, nunca, em absoluto, foram sustentadas por ela. A acusação de unilateralidade feita contra a psicanálise, que, como a ciência da mente inconsciente, tem seu próprio campo de trabalho definido e restrito, é-lhe tão inaplicável quanto seria se houvesse sido feita contra a química. Acreditar que a psicanálise busca a cura dos distúrbios neuróticos dando rédea livre à sexualidade é uma grave má interpretação que só pode ser desculpada pela ignorância. A tomada de consciência dos desejos sexuais reprimidos na análise, ao contrário, torna possível obter sobre eles um domínio que a repressão anterior fora incapaz de conseguir. Pode-se com mais verdade dizer que a análise libera o neurótico das cadeias de sua sexualidade. Ademais, é inteiramente anticientífico julgar a análise como calculada para solapar a religião, a autoridade e a moral, porque, como todas as ciências, ela é inteiramente não tendenciosa e possui um único objetivo, ou seja, chegar a uma visão harmônica de uma parte da realidade. Finalmente, só se pode caracterizar como simplório o temor às vezes expresso de que todos os mais elevados bens da humanidade, como são chamados - a pesquisa, a arte, o amor, o senso ético e social - perderão seu valor ou sua dignidade porque a psicanálise se encontra em posição de demonstrar sua origem em impulsos instintuais elementares e animais.
            As Aplicações e as Correlações Não-Médicas da Psicanálise. - Qualquer estimativa da psicanálise estaria incompleta se deixasse de tornar claro que, sozinha entre as disciplinas médicas, ela possui as mais amplas relações com as ciências mentais e se encontra em posição de desempenhar um papel da mesma importância nos estudos da história religiosa e cultural e nas ciências da mitologia e da literatura que na psiquiatria. Isso pode parecer estranho quando refletimos que originalmente seu único objetivo era a compreensão e a melhoria dos sintomas neuróticos. Mas é fácil indicar o ponto de partida da ponte que conduz às ciências mentais. A análise dos sonhos forneceu-nos uma compreensão dos processos inconscientes da mente e demostrou-nos que os mecanismos produtores dos sintomas patológicos operam também na mente normal. Assim, a psicanálise tornou-se uma psicologia profunda e, como tal, capaz de ser aplicada às ciências mentais, e pôde responder a um bom número de questões que a psicologia acadêmica da consciência era impotente para tratar. Numa etapa muito precoce, surgiram problemas de filogenia humana. Tornou-se claro que a função patológica amiúde nada mais era que uma regressão a uma etapa anterior na evolução da função normal. C. G. Jung foi o primeiro a chamar atenção explícita para a notável semelhança entre as fantasias desordenadas dos que padeciam de demência precoce e os mitos dos povos primitivos, ao passo que o presente autor indicou que os dois desejos que se combinam para formar o complexo de Édipo coincidem precisamente com as duas principais proibições impostas pelo totemismo (não matar o ancestral tribal e não casar com nenhuma mulher pertencente ao próprio clã), tirando conclusões de grandes conseqüências desse fato. A significação do complexo de Édipo começou a crescer a proporções gigantescas e pareceu como se a ordem social, a moral, a justiça e a religião houvessem surgido juntas, na eras primevas da humanidade, como formações reativas contra esse complexo. Otto Rank lançou uma luz radiante sobre a mitologia e a história da literatura pela aplicação de pontos de vista psicanalíticos, bem como Theodor Reik sobre a história da moral e da religião, enquanto que o Dr. Pfister, de Zurique, despertou o interesse de professores religiosos e seculares e demonstrou a importância do ponto de vista psicanalítico para a educação. Um estudo ulterior dessas aplicações da psicanálise estaria deslocado, aqui, sendo suficiente dizer que os limites de sua influência ainda não estão à vista.
            A Psicanálise como Ciência Empírica. - A psicanálise não é, como as filosofias, um sistema que parta de alguns conceitos básicos nitidamente definidos, procurando apreender todo o universo com o auxílio deles, e, uma vez completo, não possui mais lugar para novas descobertas ou uma melhor compreensão. Pelo contrário, ela se atém aos fatos de seu campo de estudo, procura resolver os problemas imediatos da observação, sonda o caminho à frente com o auxílio da experiência, acha-se sempre incompleta e sempre pronta a corrigir ou a modificar suas teorias. Não há incongruência (não mais que no caso da física ou da química) se a seus conceitos mais gerais falta clareza e seus postulados são provisórios; ela deixa a definição mais precisa deles aos resultados do trabalho futuro.

(B) A TEORIA DA LIBIDO
           
            LIBIDO é um termo empregado na teoria dos instintos para descrever a manifestação dinâmica da sexualidade. Já fora utilizado nesse sentido por Moll (1898) e foi introduzido na psicanálise pelo presente autor. O que se segue limita-se a uma descrição dos desenvolvimentos por que a teoria dos instintos passou na psicanálise, desenvolvimentos que ainda se acham progredindo.
            O Contraste entre os Instintos Sexuais e os Instintos do Ego. - A psicanálise cedo deu-se conta de que todas as ocorrências mentais devem ser vistas como construídas na base de uma ação recíproca das forças dos instintos elementares. Isso, contudo, acarretou uma situação difícil, visto a psicologia não incluir nenhuma teoria dos instintos. Ninguém podia dizer o que era realmente um instinto, deixava-se a questão inteiramente ao capricho individual, e todo psicólogo tinha o hábito de postular quaisquer instintos, em qualquer número que escolhesse. A primeira esfera de fenômenos a ser estudada pela psicanálise compreendia o que era conhecido como neurose de transferência (histeria e neurose obsessiva). Descobriu-se que seus sintomas sucediam pelo fato de os impulsos instintuais sexuais serem rejeitados (reprimidos) pela personalidade do sujeito (o seu ego), encontrando pois expressão por caminhos tortuosos através do inconsciente. Esses fatos podiam ser encontrados traçando-se um contraste entre os instintos sexuais e os instintos do ego (instintos de autopreservação), o que estava de acordo com o dito popular de serem a fome e o amor que fazem o mundo girar: a libido era a manifestação da força do amor, no mesmo sentido que a fome o era do instinto autopreservativo. A natureza dos instintos do ego permaneceu por então indefinida e, como todas as outras características do ego, inacessível à análise. Não havia meio de decidir se seria de supor existirem diferenças qualitativas entre as duas classes de instintos e, em caso afirmativo, quais seriam.
            A Libido Primitiva. - C. G. Jung tentou resolver essa obscuridade seguindo linhas especulativas, pressupondo existir uma só libido primitiva que podia ser sexualizada ou dessexualizada e que, assim, em sua essência, coincidia com a energia mental em geral. Essa inovação era metodologicamente discutível, provocou grande confusão, reduziu o termo ‘libido’ ao nível de um sinônimo supérfluo e, na prática, defrontava-se ainda com a necessidade de distinguir entre libido sexual e assexual. Não se iria escapar à diferença entre os instintos sexuais e os instintos com outros objetivos por meio de uma nova definição.
            Sublimação. - Um atento exame das tendências sexuais, que por si mesmas eram acessíveis à psicanálise, nesse meio tempo conduziria a algumas descobertas notáveis e pormenorizadas. O que se descreve como instinto sexual mostra ser de uma natureza altamente complexa e sujeita a decompor-se novamente em seus instintos componentes. Cada instinto componente é inalteravelmente caracterizado por sua fonte, isto é, pela região ou zona do corpo da qual sua excitação se deriva. Cada um deles possui, ademais, como aspectos distinguíveis, um objeto e um objetivo. O objetivo é sempre a descarga acompanhada pela satisfação, mas é capaz de ser mudado da atividade para a passividade. O objeto acha-se menos estreitamente ligado ao instinto do que se supôs a princípio; é facilmente trocado por outro e, além disso, um instinto que possuía um objeto externo pode ser voltado para o próprio eu do sujeito. Os instintos separados podem permanecer independentes uns dos outros ou - de um modo ainda inexplicável - combinar-se e fundir-se uns com os outros, para realizar um trabalho em comum. Podem também substituir-se mutuamente e transferir sua catexia libidinal uns para os outros, de forma que a satisfação de um determinado instinto pode assumir o lugar da satisfação de outros. A vicissitude mais importante que um instinto pode experimentar parece ser a sublimação; aqui, tanto o objeto quanto o objetivo são modificados; assim, o que originalmente era um instinto sexual encontra satisfação em alguma realização que não é mais sexual, mas de uma valoração social ou ética superior. Esses diferentes aspectos ainda não se combinam para formar um quadro integral.
            Narcisismo. - Um progresso decisivo foi realizado quando se aventurou a análise da demência precoce e outros distúrbios psicóticos e assim o exame foi iniciado do próprio ego, que até então fora conhecido apenas como instância da repressão e da oposição. Descobriu-se que o processo patogênico na demência precoce é a retirada da libido dos objetos e sua introdução no ego, ao passo que os sintomas clamorosos da moléstia surgem dos vãos esforços da libido para encontrar um caminho de volta aos objetos. Mostrou-se assim ser possível à libido de objeto transformar-se em catexia do ego e vice-versa. Uma reflexão mais detida demonstrou que foi preciso presumir que esse processo ocorre na maior escala e que o ego deve ser encarado como um grande reservatório de libido, do qual a libido é enviada para os objetos, e que sempre está pronto a absorver a libido que flui de volta dos objetos. Assim, os instintos de autopreservação também eram de natureza libidinal: eram instintos sexuais que, em vez de objetos externos, haviam tomado o próprio ego do sujeito como objeto. A experiência clínica familiarizou-nos com as pessoas que se comportam de uma maneira notável, como se estivessem enamoradas de si mesmas, e essa perversão recebeu o nome de narcisismo. A libido dos instintos autopreservativos foi então descrita como libido narcísica e reconheceu-se que um elevado grau desse auto-amor constituía o estado de coisas primário e normal. A fórmula primitiva estabelecida para as neuroses de transferência conseqüentemente exigia ser modificada, embora não corrigida. Era melhor, em vez de falar de um conflito entre instintos sexuais e instintos do ego, falar de um conflito entre libido de objeto e libido de ego, ou, de vez que era a mesma a natureza desses instintos, conflito entre as catexias de objeto e o ego.
            Abordagem Aparente às Opiniões de Jung. - À vista disso, parecia como se o lento processo da pesquisa psicanalítica estivesse seguindo os passos da especulação de Jung sobre uma libido primitiva especialmente porque a transformação da libido de objeto em narcisismo necessariamente portava consigo certo grau de dessexualismo ou abandono dos objetivos especificamente sexuais. Não obstante, há de se ter em mente que o fato de os instintos autopreservativos do ego serem reconhecidos como libidinais não prova necessariamente que não existam outros instintos funcionando no ego.
            O Instinto Gregário. - Sustentou-se, em muitos grupos, que existe um ‘instinto gregário’ especial, inato e não mais analisável, que determina o comportamento social dos seres humanos e impele os indivíduos a se reunirem em comunidades maiores. A psicanálise está em contradição com essa opinião. Mesmo que o instinto social seja inato, ele pode, sem qualquer dificuldade, ser remetido ao que originalmente constituíam catexias de objeto libidinais e pode ter-se desenvolvido na infância do indivíduo como uma formação reativa contra atitudes hostis de rivalidade. Ele se baseia num tipo peculiar de identificação com outras pessoas.
            Impulsos Sexuais Inibidos quanto ao Objetivo. - Os instintos sociais pertencem a uma classe de impulsos instintuais que prescindem serem descritos como sublimados, embora estejam estreitamente relacionados com estes. Não abandonaram seus objetivos diretamente sexuais, mas são impedidos, por resistências internas, de alcançá-los; contentam-se com certas aproximações à satisfação e, por essa própria razão, conduzem a ligações especialmente firmes e permanentes entre os seres humanos. A essa classe pertencem em particular as relações afetuosas entre pais e filhos, que originalmente eram inteiramente sexuais, os sentimentos de amizade e os laços emocionais no casamento que tem sua origem na atração sexual.
            Reconhecimento de Duas Classes de Instintos na Vida Mental. - Embora a psicanálise via de regra se esforce por desenvolver suas teorias tão independentemente quanto possível das outras ciências, é contudo obrigada a procurar uma base para a teoria dos instintos na biologia. Com fundamento em uma consideração de longo alcance dos processos que empreendem construir a vida e que conduzem à morte, torna-se provável que devamos reconhecer a existência de duas classes de instintos, correspondentes aos processos contrários de construção e dissolução no organismo. Segundo esse ponto de vista, um dos conjuntos de instintos, que trabalham essencialmente em silêncio, seriam aqueles, cujo objetivo é conduzir a criatura viva à morte e, assim, merecem ser chamados de ‘instintos de morte‘; dirigir-se-iam para fora como resultado da combinação de grande número de organismos elementares unicelulares e se manifestariam como impulsos destrutivos ou agressivos. O outro conjunto de instintos seria o daqueles que nos são mais bem conhecidos na análise: os instintos libidinais, sexuais ou instintos de vida, que são mais bem abrangidos pelo nome de Eros; seu intuito seria constituir a substância viva em unidades cada vez maiores, de maneira que a vida possa ser prolongada e conduzida a uma evolução mais alta. Os instintos eróticos e os instintos de morte estariam presentes nos seres vivos em misturas ou fusões regulares, mas ‘desfusões’ também estariam sujeitas a ocorrer. A vida consistiria nas manifestações do conflito ou na interação entre as duas classes de instintos; a morte significaria para o indivíduo a vitória dos instintos destrutivos, mas a reprodução representaria para ele a vitória de Eros.
            A Natureza dos Instintos. - Essa visão nos permitiria caracterizar os instintos como tendências inerentes à substância viva no sentido da restauração de um estado anterior de coisas, isto é, seriam historicamente determinados, de natureza conservadora e, por assim dizer, expressão de uma inércia ou elasticidade presente no que é orgânico. Ambas as classes de instintos, tanto Eros quanto o instinto de morte, segundo este ponto de vista, teriam estado operando e trabalhando um contra o outro desde a primeira origem da vida.
           
           





































BREVES ESCRITOS (1920-1922)


UMA NOTA SOBRE A PRÉ-HISTÓRIADA TÉCNICA DE ANÁLISE (1920)

            Um livro recente de Havelock Ellis (tão justamente admirado por suas pesquisas em ciência sexual e crítico eminente da psicanálise), que tem por título The Philosophy of Conflict (1919), inclui um ensaio sobre ‘Psycho-Analysis in Relation to Sex’. O objetivo desse ensaio é demonstrar que os escritos do criador da análise não devem ser julgados como uma peça de trabalho científico, mas sim como uma produção artística. Não podemos deixar de encarar essa opinião como uma recente tendência tomada por resistência e como um repúdio da análise, ainda que se ache disfarçada em uma maneira amistosa e, na verdade, lisonjeante demais. Estamos inclinados a enfrentá-la com a mais decidida contradição.
            No entanto, não é com vistas a contradizê-lo nesse ponto que nos achamos agora interessados no ensaio de Havelock Ellis, mas por outra razão. Suas vastas leituras capacitaram-no a apresentar um autor que praticou e recomendou a associação livre como técnica, embora para fins diferentes dos nossos, possuindo assim um direito a ser considerado como um precursor da psicanálise.
            ‘Em 1857, o Dr. J. J. Garth Wilkinson, mais conhecido como místico swedenborguiano e poeta que como médico, publicou um volume de místicos versos de pé quebrado, escritos com o que considerou “um novo método”, o método da “impressão”. “Um tema é escolhido ou escrito”, afirmou ele; “assim que isso foi feito, a primeira impressão na mente que sucede o ato de escrever o título é o começo da evolução desse tema, por mais estranha ou exótica que a palavra ou sentença possa parecer.” “O primeiro movimento mental, a primeira palavra que surge” é “a reação ao desejo da mente para o desdobramento do tema.” Ele é continuado pelo mesmo método, e Garth Wilkinson acrescenta: “Sempre descobri que ele condizia, por um instinto infalível, ao tema”. O método era, segundo Garth Wilkinson o via, uma espécie de laissez-faire exacerbado, uma ordem dada aos mais profundos instintos inconscientes para se expressarem. A razão e a vontade, indicava, são deixadas de lado; confiamo-nos a “um influxo” e as faculdades da mente são “dirigidas para fins que não conhecem”. Garth Wilkinson, deve ficar claramente entendido, embora fosse médico, empregava esse método para fins religiosos e literários, jamais para fins científicos ou médicos; porém é fácil perceber que, essencialmente, trata-se do método da psicanálise aplicado a si próprio, constituindo outra prova de quanto o método de Freud é um método de artista.’
            Os que estão familiarizados com a literatura psicanalítica recordarão neste ponto a interessante passagem na correspondência de Schiller com Körner, na qual (1788) o grande poeta e pensador recomenda a todos que desejem ser produtivos adotarem o método da associação livre. É de se desconfiar que o que se alega ser uma nova técnica de Garth Wilkinson tenha já ocorrido às mentes de muitos outros, e que sua aplicação sistemática na psicanálise não seja tanto uma prova da natureza artística de Freud quanto de sua convicção, equivalente quase a uma opinião preconcebida, de que todos os fatos mentais são completamente determinados. Decorreu dessa opinião que a primeira e mais provável possibilidade fosse que uma associação livre se relacionasse com o assunto designado, e isso foi confirmado pela experiência da análise, exceto na medida em que resistências demasiado grandes tornassem irreconhecível a vinculação suspeitada.
            Entretanto, é seguro presumir que nem Schiller nem Garth Wilkinson tiveram na realidade qualquer influência sobre a escolha da técnica psicanalítica. É de outra direção que existem indicações de uma influência pessoal em ação.
            Há pouco tempo atrás, em Budapest, o Dr. Hugo Dubowitz chamou a atenção do Dr. Ferenczi para um breve ensaio que abrangia apenas quatro páginas e meia, da autoria de Ludwig Börne. Fora escrito em 1823 e reimpresso no primeiro volume da edição de 1862 de suas obras completas. Intitula-se ‘A Arte de Tornar-se um Escritor Original em Três Dias’ e mostra as familiares características estilísticas de Jean Paul, de quem Börne era na ocasião grande admirador. Ele termina o ensaio com as seguintes frases:
            ‘E aqui temos a aplicação prática que foi prometida. Pegue algumas folhas de papel e por três dias a fio anote, sem falsidade ou hipocrisia, tudo o que lhe vier à cabeça. Escreva o que pensa de si mesmo, de sua mulher, da Guerra Turca, de Goethe, do julgamento de Fonk, do Juízo Final, de seus superiores, e, quando os três dias houverem passado, ficará espantadíssimo pelo novos e inauditos pensamentos que teve. Esta é a arte de tornar-se um escritor original em três dias.’
            Quando o Professor Freud veio a ler esse ensaio de Börne, apresentou certo número de fatos que podem ter uma importante relação com a questão aqui em debate quanto à pré-história do emprego psicanalítico da associação livre. Disse que quando contava 14 anos de idade, recebera de presente as obras de Börne; que hoje ainda possuía o livro, cinqüenta anos depois, e que se tratava do único que sobrevivera dos seus tempos de rapaz. Börne, disse ele, fora o primeiro autor em cujos escritos penetrara profundamente. Não podia lembrar-se do ensaio em pauta, mas alguns dos outros contidos no mesmo volume, tais como ‘Um Tributo à Memória de Jean Paul’, ‘O Artista a Comer’ e ‘O Tolo na Estalagem do Cisne Branco’, continuaram a vir-lhe à mente, sem razão óbvia, por longos anos. Ficou particularmente espantado de encontrar expressas no conselho ao escritor original algumas opiniões que ele próprio sempre prezara e reivindicara, como, por exemplo: ‘Uma covardia vergonhosa com relação ao pensar nos retém a todos. A censura do governo é menos opressiva que a censura exercida pela opinião pública sobre nossas produções intelectuais. (Além disso, temos aqui uma referência a uma ‘censura’ que reaparece na psicanálise como a censura onírica.) ‘Não é falta de intelecto, mas de caráter que impede a maioria dos escritores de serem melhores que são… A sinceridade é a fonte de todo gênio e os homens seriam mais argutos se fossem mais morais…’
            Assim não parece impossível que essa sugestão possa ter trazido à luz o fragmento de criptoamnésia que em tantos casos se pode suspeitar jazer por trás da originalidade aparente.





ASSOCIAÇÕES DE UMA CRIANÇA DE QUATRO ANOS DE IDADE (1920)

            Aqui temos parte da carta de uma mãe americana: ‘Tenho de contar-lhe o que minha garotinha disse ontem. Ainda não me recobrei de meu espanto. A prima Emily estava falando de como ia arranjar um apartamento, ao que a criança comentou: “Se Emily se casar, vai ter um bebê.” Fiquei muito surpresa e perguntei-lhe: “Ora, como é que você sabe disso?” Ela respondeu: “Bem, quando alguém se casa, surge sempre um bebê.” Repeti: “Mas como é que você pode dizer isso?” E a menina respondeu: “Ora, eu sei uma porção de outras coisas. Sei que as árvores crescem in the ground.” Que estranha associação! Era precisamente o que pretendia dizer-lhe algum dia, a título de esclarecimento. E então prosseguiu: “E sei que é Deus que makes the world.” Quando fala assim, mal posso acreditar que não tem ainda 4 anos de idade.’
            A própria mãe parece ter entendido a transição da primeira observação da criança para a segunda. O que estava tentando dizer era: ‘Sei que os bebês crescem dentro de suas mães.’ Não expressava esse conhecimento diretamente, mas de modo simbólico, substituindo a mãe pela Mãe Terra. Já aprendemos de numerosas observações incontestáveis a idade precoce em que as crianças sabem como utilizar-se de símbolos. Mas a terceira observação da garotinha leva avante o mesmo contexto. Só podemos supor que estava tentando transmitir um outro fragmento de seu conhecimento sobre a origem dos bebês: ‘Sei que tudo é obra do pai.’ Desta vez, porém, substituía o pensamento direto pela sublimação apropriada: que Deus faz o mundo.

DR. ANTON VON FREUND (1920)

            O Dr. Anton von Freund, que foi Secretário Geral da Associação Psicanalítica Internacional desde o Congresso de Budapest em setembro de 1918, faleceu em 20 de janeiro de 1920, num sanatório de Viena, alguns dias após completar seu quadragésimo ano de vida. Era o mais vigoroso promotor de nossa ciência e uma de suas esperanças mais brilhantes. Nascido em Budapest em 1880, obteve um doutorado em filosofia. Pretendia tornar-se professor, mas foi persuadido a ingressar na empresa industrial de seu pai. Entretanto, os grandes sucessos que conseguiu como industrial e organizador deixavam de satisfazer as duas necessidades que se achavam ativas nas profundezas de sua natureza: de beneficência social e de atividade científica. Nada buscando para si próprio, possuindo todos os dons que podem encantar e cativar, utilizou seus poderes materiais para assistir a outros e aliviar a dureza de seu destino, bem como para avivar em todas as direções o senso de justiça social. Dessa maneira, adquiriu um amplo círculo de amigos, que pranteiam profundamente a sua perda.
            Quando, durante os seus últimos anos, veio a conhecer a psicanálise, ela pareceu-lhe prometer a realização de seus dois grandes desejos. Impôs-se a tarefa de ajudar as massas pela psicanálise e de fazer uso dos efeitos terapêuticos dessa técnica médica, que até então estivera apenas a serviço dos ricos, a fim de mitigar os sofrimentos neuróticos dos pobres. Desde que o Estado não se ocupava das neuroses do povo comum, que as clínicas hospitalares na maioria rejeitavam a terapia psicanalítica sem poderem oferecer qualquer sucedâneo para ela e que os poucos médicos psicanalistas, premidos pela necessidade de se manterem, não se achavam à altura de tarefa tão gigantesca. Anton von Freund procurou, através de sua iniciativa privada, abrir um caminho para todos no sentido do cumprimento desse importante dever social. Durante os anos de guerra coletou a soma então muito considerável de 1,5 milhão de kronen para fins humanitários na cidade de Budapest. Com a concordância do Dr. Stephan von Bárczy, então burgomestre, destinou a quantia à fundação de um instituto de psicanálise em Budapest, no qual a análise deveria ser praticada, ensinada e tornada acessível ao povo. Pretendia-se formar nesse instituto um número considerável de médicos, que, depois, dele receberiam um grau honorário para o tratamento de neuróticos pobres numa clínica de ambulatório. O instituto, ademais, deveria constituir um centro para novas pesquisas científicas na análise. O Dr. Ferenczi deveria ser o diretor científico do instituto e o próprio von Freund se encarregaria de sua organização e finanças. O fundador entregou ao Professor Freud uma soma relativamente menor, para a fundação de uma casa editora psicanalítica internacional. Mas,
            Was sind Hoffnungen, was sind Entwürfe,die der Mensch, der vergängliche, baut?
            A morte prematura de von Freund pôs fim a esses esquemas filantrópicos, com todas as suas esperanças científicas. Embora o fundo que coletou ainda exista, a atitude daqueles que atualmente se acham no poder na capital húngara não dá promessas de que as intenções dele se realizarão. Somente a casa editora psicanalítica veio à luz em Viena.
            Não obstante, o exemplo que von Freund procurou estabelecer já teve seu efeito. Poucas semanas após sua morte, graças à energia e à liberalidade do Dr. Max Eitingon, a primeira clínica ambulatória de psicanálise foi aberta em Berlim. Assim a obra de von Freund é continuada, embora ele próprio nunca possa ser substituído ou olvidado.

PREFÁCIO A ADDRESSES ON PSYCHO-ANALYSIS, DE J. J. PUTNAM (1921)

            O Editor desta série deve sentir uma satisfação especial em poder lançar como seu volume de abertura esta compilação dos escritos psicanalíticos do Professor James J. Putnam, o eminente neurologista da Universidade de Harvard. O Professor Putnam, falecido em 1918 com a idade de 72 anos, foi não apenas o primeiro americano a interessar-se pela psicanálise, mas logo se tornou o seu mais decidido defensor e representante mais influente nos Estados Unidos. Em conseqüência da reputação estabelecida que granjeara por suas atividades de professor, bem como por sua importante obra no domínio da enfermidade nervosa orgânica, e graças ao respeito universal que sua personalidade desfrutava, pôde fazer talvez mais do que qualquer outro para a disseminação da psicanálise em seu próprio país e para protegê-la das calúnias que, no outro lado do Atlântico não menos que neste, seriam inevitavelmente lançadas sobre ela. Mas todas as censuras estavam assim fadadas a serem silenciadas, quando um homem dos elevados padrões éticos e da retitude moral de Putnam colocava-se entre os defensores da nova ciência e da terapêutica nela baseada.
            Os artigos aqui coligidos em um só volume, escritos por Putnam entre 1909 e o fim de sua vida, fornecem um bom retrato de suas relações com a psicanálise. Mostram que esteve a princípio ocupado em corrigir um juízo provisório que se baseara em conhecimentos insuficientes; mostram como depois aceitou a essência da análise, reconheceu sua capacidade de lançar uma luz esclarecedora sobre a origem das imperfeições e fracassos, e como ficou impressionado pela perspectiva de contribuir para a melhoria da humanidade segundo as linhas da análise; como então se convenceu, por suas próprias atividades médicas, da verdade da maioria das conclusões e postulados psicanalíticos, dando, por sua vez, testemunho do fato de que o médico que faz uso da análise compreende muito mais os sofrimentos de seus pacientes e pode fazer por eles muito mais do que fora possível com os métodos anteriores de tratamento; e, finalmente, mostram como começou a estender-se além dos limites da análise, exigindo que, como ciência, ela se ligasse a um sistema filosófico específico e que sua prática fosse manifestamente associada a um conjunto especial de doutrinas éticas.
            Assim, não é de admirar que um espírito com tendências tão preeminentemente éticas e filosóficas como o de Putnam houvesse desejado, após haver mergulhado profundamente na psicanálise, estabelecer a relação mais estreita entre ela e os objetivos que estavam mais chegados ao seu coração. Contudo, seu entusiasmo, tão admirável em um homem de sua avançada idade, não conseguiu arrastar outros consigo. Os mais jovens permaneceram frios. Foi especialmente Ferenczi que exprimiu o ponto de vista oposto. A razão decisiva para a rejeição das propostas de Putnam foi a dúvida sobre qual dos incontáveis sistemas filosóficos deveria ter aceito, de vez que todos pareciam repousar em uma base igualmente insegura, e desde que tudo até então havia sido sacrificado em benefício da relativa certeza dos resultados da psicanálise. Pareceu mais prudente esperar e descobrir se uma atitude específica para com a vida poderia ser compelida sobre nós, com todo o peso da necessidade, pela própria investigação analítica.
            É nosso dever exprimir nossos agradecimentos à viúva do autor, a Sra. Putnam, por sua assistência com os manuscritos, com os direitos autorais e com apoio financeiro, sem os quais a publicação deste volume teria sido impossível. Não havia manuscritos ingleses acessíveis no caso dos artigos de número VI, VII e X. Foram traduzidos para o inglês pela Dra. Katherine Jones, a partir do texto alemão que se originara do próprio Putnam.
            Este volume manterá viva nos círculos analíticos a memória do amigo cuja perda tão profundamente deploramos. Possa ele ser o primeiro de uma série de publicações que servirão à finalidade de promover a compreensão e a aplicação da psicanálise entre os que falam o idioma inglês, finalidade a que James P. Putnam dedicou os dez últimos anos de sua fecunda vida.
            Janeiro de 1921.

INTRODUÇÃO A THE PSYCHOLOGY OF DAY-DREAMS, DE J. VARENDONCK (1921)

            Este presente volume, dentre outros do Dr. Varendonck, contém uma novidade significativa e com justiça despertará o interesse de todos os filósofos, psicólogos e psicanalistas. Após um esforço que durou alguns anos, o autor conseguiu captar a modalidade de atividade de pensamento a que nos abandonamos durante o estado de distração, ao qual imediatamente passamos antes do sono ou após o despertar incompleto. Ele trouxe à consciência as cadeias de pensamento originadas nestas condições sem a interferência da vontade; anotou-as, estudou suas peculiaridades e diferenças com uma reflexão consciente e dirigida e efetuou por esse meio uma série de importantes descobertas que conduzem a problemas ainda mais vastos e dão origem à formulação de questões de ainda maior alcance. Muitos pontos na psicologia do sonho e do ato falho encontram, graças às observações do Dr. Varendonck, uma solução digna de confiança.
            Não é minha intenção passar em revista os resultados do autor. Contentar-me-ei em apontar para a significação de sua obra e me permitirei apenas uma observação concernente à terminologia que adotou. Inclui ele o tipo de atividade de pensamento que observou no pensamento autista de Bleuler, mas chama-o, via de regra, de pensamento anteconsciente, segundo o costume predominante na psicanálise. Entretanto, o pensamento autista de Bleuler de modo algum corresponde à extensão e ao conteúdo do anteconsciente, nem posso admitir que o nome utilizado por Bleuler tenha sido adequadamente escolhido. A própria designação, pensamento ‘anteconsciente’, como característica me parece enganadora e insatisfatória. O assunto em foco é que o tipo de atividade de pensamento de que o bem conhecido devaneio é um exemplo - completo em si próprio, desenvolvendo uma situação ou um ato que está sendo levado a um término - constitui o melhor e, até agora, o único exemplo estudado. Esse devanear não deve suas peculiaridades à circunstância de processar-se na maioria das vezes anteconscientemente, nem as formas se alteram quando ele é realizado conscientemente. De outro ponto de vista, sabemos também que mesmo a reflexão estritamente dirigida pode ser conseguida sem a cooperação da consciência, ou seja, anteconscientemente. Por esse motivo julgo aconselhável, ao se estabelecer uma distinção entre as diferentes modalidades de atividades do pensamento, não utilizar a relação à consciência em primeira instância e designar o devaneio, bem como as cadeias de pensamento livremente divagante ou fantástico, em oposição à reflexão intencionalmente dirigida. Ao mesmo tempo, deve-se levar em consideração que mesmo o pensamento fantástico invariavelmente não carece de um objetivo e representação finais.

A CABEÇA DE MEDUSA (1940 [1922])

            Não foi amiúde que tentamos interpretar temas mitológicos individuais, mas uma interpretação sugere-se facilmente no caso da horripilante cabeça decapitada da Medusa.
            Decapitar = castrar. O terror da Medusa é assim um terror de castração ligado à visão de alguma coisa. Numerosas análises familiarizam-nos com a ocasião para isso: ocorre quando um menino, que até então não estava disposto a acreditar na ameaça de castração, tem a visão dos órgãos genitais femininos, provavelmente os de uma pessoa adulta, rodeados por cabelos, e, essencialmente, os de sua mãe.
            Os cabelos na cabeça da Medusa são freqüentemente representados nas obras de arte sob a forma de serpentes e estas, mais uma vez, derivam-se do complexo de castração. Constitui fato digno de nota que, por assustadoras que possam ser em si mesmas, na realidade, porém, servem como mitigação do horror, por substituírem o pênis, cuja ausência é a causa do horror. Isso é uma confirmação da regra técnica segundo a qual uma multiplicação de símbolos de pênis significa castração.
            A visão da cabeça da Medusa torna o espectador rígido de terror, transforma-o em pedra. Observe-se que temos aqui, mais uma vez, a mesma origem do complexo de castração e a mesma transformação de afeto, porque ficar rígido significa uma ereção, Assim, na situação original, ela oferece consolação ao espectador: ele ainda se acha de posse de um pênis e o enrijecimento tranqüiliza-o quanto ao fato.
            Esse símbolo de horror é usado sobre as suas vestes pela deusa virgem Atena, e com razão, porque assim ela se torna uma mulher que é inabordável e repele todos os desejos sexuais, visto apresentar os terrificantes órgãos genitais da Mãe. De vez que os gregos eram, em geral, fortemente homossexuais, era inevitável que encontrássemos entre eles uma representação da mulher como um ser que assusta e repele por ser castrada.
            Se a cabeça da Medusa toma o lugar de uma representação dos órgãos genitais femininos ou, melhor, se isola seus efeitos horripilantes dos dispensadores de prazer, pode-se recordar que mostrar os órgãos genitais é familiar, sob outros aspectos, como um ato apotropaico. O que desperta horror em nós próprios produzirá o mesmo efeito sobre o inimigo de quem estamos procurando nos defender. Lemos em Rabelais como o Diabo se pôs em fuga quando a mulher lhe mostrou sua vulva.
            O órgão masculino ereto também possui um efeito apotropaico, mas graças a outro mecanismo. Mostrar o pênis (ou qualquer de seus sucedâneos) é dizer: ‘Não tenho medo de você. Desafio-o. Tenho um pênis.’ Aqui, então, temos outra maneira de intimidar o Espírito Mau.
            A fim de substanciar seriamente essa interpretação, seria necessário investigar a origem desse símbolo isolado de horror na mitologia grega, bem como paralelos seus em outras mitologias.