Além do princípio do prazer, psicologia de grupo
e outros trabalhos
VOLUME XVIII
(1925-1926)
Dr.
Sigmund Freud
ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER (1920)
NOTA DO EDITOR INGLÊS - JENSEITS
DES LUSTPRINZIPS
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1920 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler
Psychoanalytischer Verlag. 60 págs.
1921 2ª ed. Mesmos editores. 64 págs.
1923 3ª ed. Mesmos editores. 94 págs.
1925
G.S., 6, 191-257
1931
Theoretische Schriften, 178-247.
1940 G.W., 13, 3-69.
(b)TRADUÇÕES INGLESAS:
Beyond
the Pleasure Principle
1922
Londres e Viena: International Psycho-Analytical Press. VIII + 90 págs. (Trad.
de C.J. M. Hubback; pref. de Ernest Jones.)
1924 Nova Iorque: Boni and Liveright.
1942
Londres: Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis. (Reedição da anterior.)
1950 Mesmos editores. VI + 97 págs. (Trad. de
J. Strachey.)
Freud fez uma série de acréscimos na
segunda edição, mas as alterações subseqüentes foram desprezíveis. A presente
tradução inglesa é uma versão um tanto modificada da publicada em 1950.
Como é demonstrado por sua
correspondência, Freud começou a trabalhar num primeiro rascunho de Além do
Princípio de Prazer em março de 1919 e informou que esse rascunho estava
terminado em maio seguinte. Durante o mesmo mês, ele completou seu artigo sobre
‘The Uncanny’ (1919h), que inclui um parágrafo que apresenta grande
parte da essência da presente obra, em poucas frases. Nesse parágrafo,
refere-se à ‘compulsão à repetição’ como sendo um fenômeno apresentado no comportamento
das crianças e no tratamento psicanalítico; sugere que essa compulsão é algo
derivado da natureza mais íntima dos instintos e a declara ser suficientemente
poderosa para desprezar o princípio de prazer. Não há, contudo, alusão aos
‘instintos de morte’. Acrescenta que já terminou uma exposição pormenorizada do
assunto. O artigo sobre ‘The Uncanny’ contendo esse resumo foi publicado no
outono de 1919, mas Freud reteve Além do Princípio de Prazer por um ano
ainda. Na primeira parte de 1920, ainda trabalhava nele e então - pela primeira
vez, aparentemente - surge uma referência aos ‘instintos de morte’, numa carta
a Eitingon, de 20 de fevereiro. Estava ainda revisando a obra em maio e junho,
e ela foi finalmente terminada por meador de julho de 1920. Em 9 de setembro,
fez uma comunicação ao Congresso Psicanalítico Internacional de Haia, com o
título de ‘Suplementos à Teoria dos Sonhos’, na qual anunciou a próxima
publicação do livro; este foi lançado pouco depois. Um ‘resumo do autor’ da
comunicação apareceu no Int. Z. Psychoanal., 6 (1920), 397-8 (uma
tradução dele foi publicada no Int. J. Psycho-Anal., 1, 354). Não parece
certo que esse resumo tenha sido realmente da autoria de Freud, mas pode ser
interessante reproduzi-lo aqui (em nova tradução).
‘Suplementos à Teoria
dos Sonhos‘
‘O orador tratou, em suas breves
observações, de três pontos referentes à teoria dos sonhos. Os dois primeiros
relacionaram-se à tese de que os sonhos são realizações de desejo e
apresentaram algumas modificações necessárias dela. O terceiro referiu-se a um
material que trouxe confirmação completa de sua rejeição dos alegados intuitos
“previdentes” dos sonhos.
’‘Explicou o orador que, juntamente
com os familiares sonhos de desejo e os sonhos de ansiedade que podiam ser facilmente
incluídos na teoria, existiam fundamentos para reconhecer a existência de uma
terceira categoria, à qual deu o nome de “sonhos de punição”. Se levarmos em
conta a justificável suposição da existência de um órgão especial
auto-observador e crítico no ego (ideal do ego, censor, consciência), também
esses sonhos de punição devem ser classificados na teoria da realização de
desejo, porque representariam a realização de um desejo por parte desse órgão
crítico. Tais sonhos, disse ele, possuem aproximadamente a mesma relação com os
sonhos de desejo comuns que os sintomas da neurose obsessiva, surgidos na
formação reativa, têm com os da histeria.
Outra classe de sonhos, no entanto,
pareceu ao orador apresentar uma exceção mais séria à regra de que os sonhos
são realizações de desejo. Trata-se dos chamados sonhos “traumáticos”, que
ocorrem em pacientes que sofreram acidentes, mas aparecem também durante a
psicanálise de neuróticos, trazendo-lhes de volta traumas esquecidos da
infância. Em conexão com o problema de ajustar esses sonhos à teoria da
realização de desejo, o orador referiu-se a uma obra a ser publicada dentro em
breve, sob o título de Além do Princípio de Prazer.
O terceiro ponto da comunicação do
orador referiu-se a uma investigação que ainda não foi publicada, feita pelo
Dr. Varendonck, de Ghent. Esse autor conseguiu trazer à sua observação
consciente a produção de fantasias inconscientes em ampla escala, num estado de
semi-adormecimento, processo que descreveu como “pensamento autístico”. Surgiu
dessa investigação que a consideração das possibilidades do dia seguinte, a
preparação de esforços de soluções e adaptações etc., jazem inteiramente dentro
do campo dessa atividade pré-consciente, que também cria pensamentos oníricos
latentes e que, como o orador sempre sustentou, nada tem a ver com a elaboração
onírica.
Na série dos trabalhos
metapsicológicos de Freud, Além do Princípio de Prazer pode ser
considerado como uma introdução da fase final de suas concepções. Já havia
chamado a atenção para a ‘compulsão à repetição’ como fenômeno clínico, mas lhe
atribui aqui as características de um instinto; também aqui, pela primeira vez,
apresenta a nova dicotomia entre Eros e os instintos de morte, que iria
encontrar sua plena elaboração em O Ego e o Id (1923b). Em Além
do Princípio de Prazer, também, podemos ver sinais do novo quadro da
estrutura anatômica da mente que deveria dominar todos os últimos trabalhos de
Freud. Finalmente, o problema da destrutividade, que desempenhou papel cada vez
mais importante em suas obras teóricas, faz seu primeiro aparecimento
explícito. A derivação de diversos elementos do presente estudo a partir de
suas obras metapsicológicas anteriores - tais como ‘The Two Principles of
Mental Functioning’ (1911b) ‘Narcisismo’ (1914c) e ‘Os Instintos
e Suas Vicissitudes’ (1915c) - será óbvia. Particularmente notável, porém, é a
proximidade com que algumas das primeiras partes do presente trabalho
acompanham o ‘Projeto para uma Psicologia Científica’ (1950a), esboçado
por Freud vinte e cinco anos antes, em 1895.
Extratos da primeira tradução (1922)
do presente trabalho foram incluídos em General Selection from the Works of
Sigmund Freud, de Rickman (1937, 162-194).
ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER
I
Na teoria da psicanálise não hesitamos em supor
que o curso tomado pelos eventos mentais está automaticamente regulado pelo
princípio de prazer, ou seja, acreditamos que o curso desses eventos é
invariavelmente colocado em movimento por uma tensão desagradável e que toma
uma direção tal, que seu resultado final coincide com uma redução dessa tensão,
isto é, com uma evitação de desprazer ou uma produção de prazer. Levando esse
curso em conta na consideração dos processos mentais que constituem o tema de
nosso estudo, introduzimos um ponto de vista ‘econômico’ em nosso trabalho, e
se, ao descrever esses processos, tentarmos calcular esse fator ‘econômico’
além dos ‘topográficos’ e ‘dinâmicos’, estaremos, penso eu, fornecendo deles a
mais completa descrição que poderemos atualmente conceber, uma descrição que
merece ser distinguida pelo nome de ‘metapsicológica’.
Com relação a isso, não nos
interessa indagar até onde, com a hipótese do princípio de prazer, abordamos
qualquer sistema filosófico específico, historicamente estabelecido. Chegamos a
essas suposições especulativas numa tentativa de descrever e explicar os fatos
da observação diária em nosso campo de estudo. A prioridade e a originalidade
não se encontram entre os objetivos que o trabalho psicanalítico estabelece
para si, e as impressões subjacentes à hipótese do princípio de prazer são tão
evidentes, que dificilmente podem ser desprezadas. Por outro lado, prontamente
expressaríamos nossa gratidão a qualquer teoria filosófica ou psicológica que
pudesse informar-nos sobre o significado dos sentimentos de prazer e desprazer
que atuam tão imperativamente sobre nós. Contudo, quanto a esse ponto,
infelizmente nada nos é oferecido para nossos fins. Trata-se da região mais
obscura e inacessível da mente e, já que não podemos evitar travar contato com
ela, a hipótese menos rígida será a melhor, segundo me parece. Decidimos
relacionar o prazer e o desprazer à quantidade de excitação, presente na mente,
mas que não se encontra de maneira alguma ‘vinculada’, e relacioná-los de tal
modo, que o desprazer corresponda a um aumento na quantidade de
excitação, e o prazer, a uma diminuição. O que isso implica não é uma
simples relação entre a intensidade dos sentimentos de prazer e desprazer e as
modificações correspondentes na quantidade de excitação; tampouco - em vista de
tudo que nos foi ensinado pela psicofisiologia - sugerimos a existência de
qualquer razão proporcional direta: o fator que determina o sentimento e
provavelmente a quantidade de aumento ou diminuição na quantidade de excitação num
determinado período de tempo. A experimentação possivelmente poderia
desempenhar um papel aqui, mas não é aconselhável a nós, analistas, ir mais à
frente no problema enquanto nosso caminho não estiver balizado por observações
bastante definidas.
Não podemos, entretanto, permanecer
indiferentes à descoberta de um investigador de tanta penetração como
G.T.Fechner, que sustenta uma concepção sobre o tema do prazer e do desprazer
que coincide em todos os seus aspectos essenciais com aquela a que fomos levados
pelo trabalho psicanalítico. A afirmação de Fechner pode ser encontrada numa
pequena obra, Einige Ideen zur Schöpfungs - und Entwick - lungsgeschichte
der Organismen, 1873 (Parte XI, Suplemento, 94), e diz o seguinte: ‘Até
onde os impulsos conscientes sempre possuem uma certa relação com o prazer e o
desprazer, estes também podem ser encarados como possuindo uma relação
psicofísica com condições de estabilidade e instabilidade. Isso fornece a base
para uma hipótese em que me proponho ingressar com maiores pormenores em outra
parte. De acordo com ela, todo movimento psicofísico que se eleve acima do
limiar da consciência é assistido pelo prazer na proporção em que, além de um
certo limite, ele se aproxima da estabilidade completa, sendo assistido pelo
desprazer na proporção em que, além de um certo limite, se desvia dessa
estabilidade, ao passo que entre os dois limites, que podem ser descritos como
limiares qualitativos de prazer e desprazer, há uma certa margem de indiferença
estética (…)’
Os fatos que nos fizeram acreditar
na dominância do princípio de prazer na vida mental encontram também expressão
na hipótese de que o aparelho mental se esforça por manter a quantidade de
excitação nele presente tão baixa quanto possível, ou, pelo menos, por mantê-la
constante. Essa última hipótese constitui apenas outra maneira de enunciar o
princípio de prazer, porque, se o trabalho do aparelho mental se dirige no
sentido de manter baixa a quantidade de excitação, então qualquer coisa que
seja calculada para aumentar essa quantidade está destinada a ser sentida como
adversa ao funcionamento do aparelho, ou seja, como desagradável. O princípio
de prazer decorre do princípio de constância; na realidade, esse último
princípio foi inferido dos fatos que nos forçaram a adotar o princípio de
prazer. Além disso, um exame mais pormenorizado mostrará que a tendência que
assim atribuímos ao aparelho mental, subordina-se, como um caso especial, ao
princípio de Fechner da ‘tendência no sentido da estabilidade’, com a qual ele
colocou em relação os sentimentos de prazer e desprazer.
Deve-se, contudo, apontar que,
estritamente falando, é incorreto falar na dominância do princípio de prazer
sobre o curso dos processos mentais. Se tal dominância existisse, a imensa
maioria de nossos processos mentais teria de ser acompanhada pelo prazer ou
conduzir a ele, ao passo que a experiência geral contradiz completamente uma
conclusão desse tipo. O máximo que se pode dizer, portanto, é que existe na
mente uma forte tendência no sentido do princípio de prazer, embora essa
tendência seja contrariada por certas outras forças ou circunstâncias, de
maneira que o resultado final talvez nem sempre se mostre em harmonia com a
tendência no sentido do prazer. Podemos comparar isso com o que Fechner (1873,
90) observa sobre um ponto semelhante: ‘Visto que, porém, uma tendência no
sentido de um objetivo não implica que este seja atingido, e desde que, em
geral, o objetivo é atingível apenas por aproximações (…)’
Se nos voltarmos agora para a
questão de saber quais as circunstâncias que podem impedir o princípio de
prazer de ser levado a cabo, encontrar-nos-emos mais uma vez em terreno seguro
e bem batido e, ao estruturarmos nossa resposta, teremos à nossa disposição um
copioso fundo de experiência analítica.
O primeiro exemplo do princípio de
prazer a ser assim inibido é familiar e ocorre com regularidade. Sabemos que o
princípio de prazer é próprio de um método primário de funcionamento por parte
do aparelho mental, mas que, do ponto de vista da autopreservação do organismo
entre as dificuldades do mundo externo, ele é, desde o início, ineficaz e até
mesmo altamente perigoso. Sob a influência dos instintos de autopreservação do
ego, o princípio de prazer é substituído pelo princípio de realidade.
Esse último princípio não abandona a intenção de fundamentalmente obter prazer;
não obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abandono de uma série
de possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária do desprazer como uma
etapa no longo e indireto caminho para o prazer. Contudo, o princípio de prazer
persiste por longo tempo como o método de funcionamento empregado pelos
instintos sexuais, que são difíceis de ‘educar’, e, partindo desses instintos,
ou do próprio ego, com freqüência consegue vencer o princípio de realidade, em
detrimento do organismo como um todo.
Não pode, porém, haver dúvida de que
a substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade só pode ser
responsabilizada por um pequeno número - e de modo algum as mais intensas - das
experiências desagradáveis. Outra ocasião de liberação do desprazer, que ocorre
com não menor regularidade, pode ser encontrada nos conflitos e dissensões que
se efetuam no aparelho mental enquanto o ego está passando por seu
desenvolvimento para organizações mais altamente compostas. Quase toda a
energia com que o aparelho se abastece, origina-se de seus impulsos instintuais
inatos, mas não é a todos estes que se permite atingir as mesmas fases de
desenvolvimento. No curso das coisas, acontece repetidas vezes que instintos
individuais ou parte de instintos se mostrem incompatíveis, em seus objetivos
ou exigências, com os remanescentes, que podem combinar-se na unidade inclusiva
do ego. Os primeiros são então expelidos dessa unidade pelo processo de repressão,
mantidos em níveis inferiores de desenvolvimento psíquico, e afastados, de
início, da possibilidade de satisfação. Se subseqüentemente alcançam êxito -
como tão facilmente acontece com os instintos sexuais reprimidos - em conseguir
chegar por caminhos indiretos a uma satisfação direta ou substitutiva, esse
acontecimento, que em outros casos seria uma oportunidade de prazer, é sentida
pelo ego como desprazer. Em conseqüência do velho conflito que terminou pela
repressão, uma nova ruptura ocorreu no princípio de prazer no exato momento em
que certos instintos estavam esforçando-se, de acordo com o princípio, por
obter novo prazer. Os pormenores do processo pelo qual a repressão transforma
uma possibilidade de prazer numa fonte de desprazer ainda não estão claramente
compreendidos, ou não podem ser claramente representados; não há dúvida, porém,
de que todo desprazer neurótico é dessa espécie, ou seja, um prazer que não
pode ser sentido como tal.
As duas fontes de desprazer que
acabei de indicar estão muito longe de abranger a maioria de nossas
experiências desagradáveis; contudo, no que concerne ao restante, pode-se
afirmar com certa justificativa que sua presença não contradiz a dominância do
princípio de prazer. A maior parte do desprazer que experimentamos é um
desprazer perceptivo. Esse desprazer pode ser a percepção de uma pressão
por parte de instintos insatisfeitos, ou ser a percepção externa do que é
aflitivo em si mesmo ou que excita expectativas desprazerosas no aparelho
mental, isto é, que é por ele reconhecido como um ‘perigo’. A reação dessas
exigências instintuais e ameaças de perigo, reação que constitui a atividade
apropriada do aparelho mental, pode ser então dirigida de maneira correta pelo
princípio de prazer ou pelo princípio de realidade pelo qual o primeiro é
modificado. Isso não parece tornar necessária nenhuma limitação de grande
alcance do princípio de prazer. Não obstante, a investigação da reação mental
ao perigo externo encontra-se precisamente em posição de produzir novos
materiais e levantar novas questões relacionadas com nosso problema atual.
II
Há muito tempo se conhece e foi
descrita uma condição que ocorre após graves concussões mecânicas, desastres
ferroviários e outros acidentes que envolvem risco de vida; recebeu o nome de
‘neurose traumática’. A terrível guerra que há pouco findou deu origem a grande
número de doenças desse tipo; pelo menos, porém, pôs fim à tentação de atribuir
a causa do distúrbio a lesões orgânicas do sistema nervoso, ocasionadas pela
força mecânica. O quadro sintomático apresentado pela neurose traumática
aproxima-se do da histeria pela abundância de seus sintomas motores
semelhantes; em geral, contudo, ultrapassa-o em seus sinais fortemente
acentuados de indisposição subjetiva (no que se assemelha à hipocondria ou
melancolia), bem como nas provas que fornece de debilitamento e de perturbação
muito mais abrangentes e gerais das capacidades mentais. Ainda não se chegou a
nenhuma explicação completa, seja das neuroses de guerra, seja das neuroses traumáticas
dos tempos de paz. No caso das primeiras, o fato de os mesmos sintomas às vezes
aparecerem sem a intervenção de qualquer grande força mecânica, pareceu a
princípio esclarecedor e desnorteante. No caso das neuroses traumáticas comuns,
duas características surgem proeminentemente: primeira, que o ônus principal de
sua causação parece repousar sobre o fator da surpresa, do susto, e, segunda,
que um ferimento ou dano infligidos simultaneamente operam, via de regra, contra
o desenvolvimento de uma neurose. ‘Susto’, ‘medo’ e ‘ansiedade’ são
palavras impropriamente empregadas como expressões sinônimas; são, de fato,
capazes de uma distinção clara em sua relação com o perigo. A ‘ansiedade’
descreve um estado particular de esperar o perigo ou preparar-se para ele,
ainda que possa ser desconhecido. O ‘medo’ exige um objeto definido de que se
tenha temor. ‘Susto’, contudo, é o nome que damos ao estado em que alguém fica,
quando entrou em perigo sem estar preparado para ele, dando-se ênfase ao fator
da surpresa. Não acredito que a ansiedade possa produzir neurose traumática;
nela existe algo que protege o seu sujeito contra o susto e, assim, contra as
neuroses de susto. Voltaremos posteriormente a esse ponto (ver em [1] e segs).
O estudo dos sonhos pode ser considerado
o método mais digno de confiança na investigação dos processos mentais
profundos. Ora, os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas possuem a
característica de repetidamente trazer o paciente de volta à situação de seu
acidente, numa situação da qual acorda em outro susto. Isso espanta bem pouco
as pessoas. Pensam que o fato de a experiência traumática estar-se
continuamente impondo ao paciente, mesmo no sono, se encontra, conforme se
poderia dizer, fixado em seu trauma. As fixações na experiência que iniciou a
doença há muito tempo, nos são familiares na histeria. Breuer e Freud
declararam em 1893 que ‘os histéricos sofrem principalmente de reminiscências’.
Nas neuroses de guerra também, observadores como Ferenczi e Simmel puderam
explicar certos sintomas motores pela fixação no momento em que o trauma
ocorreu.
Não é de meu conhecimento, contudo,
que pessoas que sofrem de neurose traumática estejam muito ocupadas, em suas
vidas despertas, com lembranças de seu acidente. Talvez estejam mais interessadas
em não pensar nele. Qualquer um que aceite, como algo por si mesmo
evidente, que os sonhos delas devam à noite fazê-las voltar à situação que as
fez cair doentes, compreendeu mal a natureza dos sonhos. Estaria mais em
harmonia com a natureza destes, se mostrassem ao paciente quadros de seu
passado sadio ou da cura pela qual esperam. Se não quisermos que os sonhos dos
neuróticos traumáticos abalem nossa crença no teor realizador de desejos dos
sonhos, teremos ainda aberta a nós uma saída: podemos argumentar que a função
de sonhar, tal como muitas pessoas, nessa condição está perturbada e afastada
de seus propósitos, ou podemos ser levados a refletir sobre as misteriosas
tendências masoquistas do ego.
Nesse ponto, proponho abandonarmos o
obscuro e melancólico tema da neurose traumática, e passar a examinar o método
de funcionamento empregado pelo aparelho mental em uma de suas primeiras
atividades normais; quero referir-me à brincadeira das crianças.
As diferentes teorias sobre a
brincadeira das crianças foram ainda recentemente resumidas e discutidas do
ponto de vista psicanalítico por Pfeifer (1919), a cujo artigo remeto meus
leitores. Essas teorias esforçam-se por descobrir os motivos que levam as
crianças a brincar, mas deixam de trazer para o primeiro plano o motivo econômico,
a consideração da produção de prazer envolvida. Sem querer incluir todo o campo
abrangido por esses fenômenos, pude, através de uma oportunidade fortuita que
se me apresentou, lançar certa luz sobre a primeira brincadeira efetuada por um
menininho de ano e meio de idade e inventada por ele próprio. Foi mais do que
uma simples observação passageira, porque vivi sob o mesmo teto que a criança e
seus pais durante algumas semanas, e foi algum tempo antes que descobri o
significado da enigmática atividade que ele constantemente repetia.
A criança de modo algum era precoce
em seu desenvolvimento intelectual. À idade de ano e meio podia dizer apenas
algumas palavras compreensíveis e utilizava também uma série de sons que
expressavam um significado inteligível para aqueles que a rodeavam. Achava-se,
contudo, em bons termos com os pais e sua única empregada, e tributos eram-lhe
prestados por ser um ‘bom menino’. Não incomodava os pais à noite, obedecia
conscientemente às ordens de não tocar em certas coisas, ou de não entrar em
determinados cômodos e, acima de tudo, nunca chorava quando sua mãe o deixava
por algumas horas. Ao mesmo tempo, era bastante ligado à mãe, que tinha não
apenas de alimentá-lo, como também cuidava dele sem qualquer ajuda externa.
Esse bom menininho, contudo, tinha o hábito ocasional e perturbador de apanhar
quaisquer objetos que pudesse agarrar e atirá-los longe para um canto, sob a
cama, de maneira que procurar seus brinquedos e apanhá-los, quase sempre dava
bom trabalho. Enquanto procedia assim, emitia um longo e arrastado ‘o-o-o-ó’,
acompanhado por expressão de interesse e satisfação. Sua mãe e o autor do
presente relato concordaram em achar que isso não constituía uma simples
interjeição, mas representava a palavra alemã ‘fort‘. Acabei por
compreender que se tratava de um jogo e que o único uso que o menino fazia de
seus brinquedos, era brincar de ‘ir embora’ com eles. Certo dia, fiz uma
observação que confirmou meu ponto de vista. O menino tinha um carretel de madeira
com um pedaço de cordão amarrado em volta dele. Nunca lhe ocorrera puxá-lo pelo
chão atrás de si, por exemplo, e brincar com o carretel como se fosse um carro.
O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia
arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira que
aquele desaparecia por entre as cortinas, ao mesmo tempo que o menino proferia
seu expressivo ‘o-o-ó’. Puxava então o carretel para fora da cama novamente,
por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre ‘da‘
(‘ali’). Essa, então, era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno.
Via de regra, assistia-se apenas a seu primeiro ato, que era incansavelmente
repetido como um jogo em si mesmo, embora não haja dúvida de que o prazer maior
se ligava ao segundo ato.
A interpretação do jogo tornou-se
então óbvia. Ele se relacionava à grande realização cultural da criança, a
renúncia instintual (isto é, a renúncia à satisfação instintual) que efetuara
ao deixar a mãe ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, por assim
dizer, encenando ele próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se
encontravam a seu alcance. É naturalmente indiferente, do ponto de vista de
ajuizar a natureza efetiva do jogo, saber se a própria criança o inventara ou o
tirara de alguma sugestão externa. Nosso interesse se dirige para outro ponto.
A criança não pode ter sentido a partida da mãe como algo agradável ou mesmo
indiferente. Como, então, a repetição dessa experiência aflitiva, enquanto
jogo, harmonizava-se com o princípio de prazer? Talvez se possa responder que a
partida dela tinha de ser encenada como preliminar necessária a seu alegre
retorno, e que neste último residia o verdadeiro propósito do jogo. Mas contra
isso deve-se levar em conta o fato observado de o primeiro ato, o da partida,
ser encenado como um jogo em si mesmo, e com muito mais freqüência do que o
episódio na íntegra, com seu final agradável.
Nenhuma decisão certa pode ser
alcançada pela análise de um caso isolado como esse. De um ponto de vista não
preconcebido, fica-se com a impressão de que a criança transformou sua
experiência em jogo devido a outro motivo. No início, achava-se numa situação passiva,
era dominada pela experiência; repetindo-a, porém, por mais desagradável que
fosse, como jogo, assumia papel ativo. Esses esforços podem ser atribuídos a um
instinto de dominação que atuava independentemente de a lembrança em si mesma
ser agradável ou não. Mas uma outra interpretação ainda pode ser tentada. Jogar
longe o objeto, de maneira a que fosse ‘embora’, poderia satisfazer um impulso
da criança, suprimido na vida real, de vingar-se da mãe por afastar-se dela.
Nesse caso, possuiria significado desafiador: ‘Pois bem, então: vá embora! Não
preciso de você. Sou eu que estou mandando você embora.’ Um ano mais tarde, o
mesmo menino que eu observara em seu primeiro jogo, costumava agarrar um
brinquedo, se estava zangado com este, e jogá-lo ao chão, exclamando: ‘Vá para
a frente!’ Escutara nessa época que o pai ausente se encontrava ‘na frente (de
batalha)’, e o menino estava longe de lamentar sua ausência, pelo contrário,
deixava bastante claro que não tinha desejo de ser perturbado em sua posse
exclusiva da mãe. Conhecemos outras crianças que gostavam de expressar impulsos
hostis semelhantes lançando longe de si objetos, em vez de pessoas. Assim,
ficamos em dúvida quanto a saber se o impulso para elaborar na mente alguma
experiência de dominação, de modo a tornar-se senhor dela, pode encontrar
expressão como um evento primário e independentemente do princípio de prazer.
Isso porque, no caso que acabamos de estudar, a criança, afinal de contas, só
foi capaz de repetir sua experiência desagradável na brincadeira porque a
repetição trazia consigo uma produção de prazer de outro tipo, uma produção
mais direta.
Não seremos auxiliados em nossa
hesitação entre esses dois pontos de vista por outras considerações sobre
brincadeiras infantis. É claro que em suas brincadeiras as crianças repetem
tudo que lhes causou uma grande impressão na vida real, e assim procedendo,
ab-reagem a intensidade da impressão, tornando-se, por assim dizer, senhoras da
situação. Por outro lado, porém, é óbvio que todas as suas brincadeiras são
influenciadas por um desejo que as domina o tempo todo: o desejo de crescer e poder
fazer o que as pessoas crescidas fazem. Pode-se também observar que a natureza
desagradável de uma experiência nem sempre a torna inapropriada para a
brincadeira. Se o médico examina a garganta de uma criança ou faz nela alguma
pequena intervenção, podemos estar inteiramente certos de que essas
assustadoras experiências serão tema da próxima brincadeira; contudo, não
devemos, quanto a isso, desprezar o fato de existir uma produção de prazer
provinda de outra fonte. Quando a criança passa da passividade da experiência
para a atividade do jogo, transfere a experiência desagradável para um de seus
companheiros de brincadeira e, dessa maneira, vinga-se num substituto.
Todavia, decorre desse exame que não
há necessidade de supor a existência de um instinto imitativo especial para
fornecer um motivo para a brincadeira. Finalmente, em acréscimo, pode-se
lembrar que a representação e a imitação artísticas efetuadas por adultos, as
quais, diferentemente daquelas das crianças, se dirigem a uma audiência, não poupam
aos espectadores (como na tragédia, por exemplo) as mais penosas experiências,
e, no entanto, podem ser por eles sentidas como altamente prazerosas. Isso
constitui prova convincente de que, mesmo sob a dominância do princípio de
prazer, há maneiras e meios suficientes para tornar o que em si mesmo é
desagradável num tema a ser rememorado e elaborado na mente. A consideração
desses casos e situações, que têm a produção de prazer como seu resultado
final, deve ser empreendida por algum sistema de estética com uma abordagem
econômica a seu tema geral. Eles não têm utilidade para nossos fins,
pois pressupõem a existência e a dominância do princípio de prazer; não
fornecem provas do funcionamento de tendências além do princípio de
prazer, ou seja, de tendências mais primitivas do que ele e dele independentes.
III
Vinte e cinco anos de intenso
trabalho tiveram por resultado que os objetivos imediatos da psicanálise sejam
hoje inteiramente diferentes do que eram no começo. A princípio, o médico que
analisava não podia fazer mais do que descobrir o material inconsciente oculto
para o paciente, reuni-lo e no momento oportuno comunicá-lo a este. A
psicanálise era então, primeiro e acima de tudo, uma arte interpretativa. Uma
vez que isso não solucionava o problema terapêutico, um outro objetivo
rapidamente surgiu à vista: obrigar o paciente a confirmar a construção teórica
do analista com sua própria memória. Nesse esforço, a ênfase principal reside
nas resistências do paciente: a arte consistia então em descobri-las tão
rapidamente quanto possível, apontando-as ao paciente e induzindo-o, pela
influência humana - era aqui que a sugestão, funcionando como ‘transferência’,
desempenhava seu papel -, a abandonar suas resistências.
Contudo, tornou-se cada vez mais
claro que o objetivo que fora estabelecido - que o inconsciente deve tornar-se
consciente - não era completamente atingível através desse método. O paciente
não pode recordar a totalidade do que nele se acha reprimido, e o que não lhe é
possível recordar pode ser exatamente a parte essencial. Dessa maneira, ele não
adquire nenhum sentimento de convicção da correção da construção teórica que
lhe foi comunicada. É obrigado a repetir o material reprimido como se
fosse uma experiência contemporânea, em vez de, como o médico preferiria ver, recordá-lo
como algo pertencente ao passado. Essas reproduções, que surgem com tal
exatidão indesejada, sempre têm como tema alguma parte da vida sexual infantil,
isto é, do complexo de Édipo, e de seus derivativos, e são invariavelmente
atuadas (acted out) na esfera da transferência, da relação do paciente
com o médico. Quando as coisas atingem essa etapa, pode-se dizer que a neurose
primitiva foi então substituída por outra nova, pela ‘neurose de
transferência’. O médico empenha-se por manter essa neurose de transferência
dentro dos limites mais restritos; forçar tanto quanto possível o canal da
memória, e permitir que surja como repetição o mínimo possível. A proporção
entre o que é lembrado e o que é reproduzido varia de caso para caso. O médico
não pode, via de regra, poupar ao paciente essa face do tratamento. Deve
fazê-lo reexperimentar alguma parte de sua vida esquecida, mas deve também
cuidar, por outro lado, que o paciente retenha certo grau de alheamento, que
lhe permitirá, a despeito de tudo, reconhecer que aquilo que parece ser
realidade é, na verdade, apenas reflexo de um passado esquecido. Se isso puder
ser conseguido com êxito, o sentimento de convicção do paciente será conquistado,
juntamente com o sucesso terapêutico que dele depende.
A fim de tornar mais fácil a
compreensão dessa ‘compulsão à repetição’ que surge durante o tratamento
psicanalítico dos neuróticos, temos acima de tudo de livrar-nos da noção
equivocada de que aquilo com que estamos lidando em nossa luta contra as
resistências seja uma resistência por parte do inconsciente. O
inconsciente, ou seja, o ‘reprimido’, não oferece resistência alguma aos
esforços do tratamento. Na verdade, ele próprio não se esforça por outra coisa
que não seja irromper através da pressão que sobre ele pesa, e abrir seu
caminho à consciência ou a uma descarga por meio de alguma ação real. A
resistência durante o tratamento origina-se dos mesmos estratos e sistemas mais
elevados da mente que originalmente provocaram a repressão. Mas o fato de, como
sabemos pela experiência, os motivos das resistências e, na verdade, as
próprias resistências serem a princípio inconscientes durante o tratamento,
é-nos uma sugestão para que corrijamos uma deficiência de nossa terminologia.
Evitaremos a falta de clareza se fizermos nosso contraste não entre o
consciente e o inconsciente, mas entre o ego coerente e o reprimido.
É certo que grande parte do ego é, ela própria, inconsciente, e notavelmente
aquilo que podemos descrever como seu núcleo; apenas pequena parte dele se acha
abrangida pelo termo ‘pré-consciente’. Havendo substituído uma terminologia
puramente descritiva por outra sistemática e dinâmica, podemos dizer que as
resistências do paciente originam-se do ego, e então imediatamente perceberemos
que a compulsão à repetição deve ser atribuída ao reprimido inconsciente.
Parece provável que a compulsão só possa expressar-se depois que o trabalho do
tratamento avançou a seu encontro até a metade do caminho e que afrouxou a
repressão.
Não há dúvida de que a resistência
do ego consciente e inconsciente funciona sob a influência do princípio de
prazer; ela busca evitar o desprazer que seria produzido pela liberação do
reprimido. Nossos esforços, por outro lado, dirigem-se no sentido de
conseguir a tolerância desse desprazer por um apelo ao princípio de realidade.
Mas, como se acha a compulsão à repetição - a manifestação do poder do
reprimido - relacionada com o princípio de prazer? É claro que a maior parte do
que é reexperimentado sob a compulsão à repetição, deve causar desprazer ao
ego, pois traz à luz as atividades dos impulsos instintuais reprimidos. Isso,
no entanto, constitui desprazer de uma espécie que já consideramos e que não
contradiz o princípio de prazer: desprazer para um dos sistemas e,
simultaneamente, satisfação para outro. Contudo, chegamos agora a um fato novo
e digno de nota, a saber, que a compulsão à repetição também rememora do
passado experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer e que
nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo para impulsos
instintuais que desde então foram reprimidos.
O florescimento precoce da vida
sexual infantil está condenado à extinção porque seus desejos são incompatíveis
com a realidade e com a etapa inadequada de desenvolvimento a que a criança
chegou. Esse florescimento chega ao fim nas mais aflitivas circunstâncias e com
o acompanhamento dos mais penosos sentimentos. A perda do amor e o fracasso
deixam atrás de si um dano permanente à autoconsideração, sob a forma de uma
cicatriz narcisista, o que, em minha opinião, bem como na de Marcinowski
(1918), contribui mais do que qualquer outra coisa para o ‘sentimento de
inferioridade’, tão comum aos neuróticos. As explorações sexuais infantis, às
quais seu desenvolvimento físico impõe limites, não conduzem a nenhuma
conclusão satisfatória; daí as queixas posteriores, tais como ‘Não consigo
realizar nada; não tenho sucesso em nada’. O laço da afeição, que via de regra
liga a criança ao genitor do sexo oposto, sucumbe ao desapontamento, a uma vã
expectativa de satisfação, ou ao ciúme pelo nascimento de um novo bebê, prova
inequívoca da infidelidade do objetivo da afeição da criança. Sua própria
tentativa de fazer um bebê, efetuada com trágica seriedade, fracassa
vergonhosamente. A menor quantidade de afeição que recebe, as exigências
crescentes da educação, palavras duras e um castigo ocasional mostram-lhe por
fim toda a extensão do desdém que lhe concederam. Estes são alguns exemplos típicos
e constantemente recorrentes das maneiras pelas quais o amor característico da
idade infantil é levado a um término.
Os pacientes repetem na
transferência todas essas situações indesejadas e emoções penosas, revivendo-as
com a maior engenhosidade. Procuram ocasionar a interrupção do tratamento
enquanto este ainda se acha incompleto; imaginam sentir-se desprezados mais uma
vez, obrigam o médico a falar-lhes severamente e a tratá-los friamente;
descobrem objetos apropriados para seu ciúme; em vez do nenê apaixonadamente
desejado de sua infância, produzem um plano ou a promessa de algum grande
presente, que em regra se mostra não menos irreal. Nenhuma dessas coisas pode
ter produzido prazer no passado, e poder-se-ia supor que causariam menos
desprazer hoje se emergissem como lembranças ou sonhos, em vez de assumirem a
forma de experiências novas. Constituem, naturalmente, as atividades de
instintos destinados a levar à satisfação, mas nenhuma lição foi aprendida da
antiga experiência de que essas atividades, ao contrário, conduziram apenas ao
desprazer. A despeito disso, são repetidas, sob a pressão de uma compulsão.
O que a psicanálise revela nos
fenômenos de transferência dos neuróticos, também pode ser observado nas vidas
de certas pessoas normais. A impressão que dão é de serem perseguidas por um
destino maligno ou possuídas por algum poder ‘demoníaco’; a psicanálise, porém,
sempre foi de opinião de que seu destino é, na maior parte, arranjado por elas
próprias e determinado por influências infantis primitivas. A compulsão que
aqui se acha em evidência não difere em nada da compulsão à repetição que
encontramos nos neuróticos, ainda que as pessoas que agora estamos considerando
nunca tenham mostrado quaisquer sinais de lidarem com um conflito neurótico pela
produção de sintomas. Assim, encontramos pessoas em que todas as relações
humanas têm o mesmo resultado, tal como o benfeitor que é abandonado
iradamente, após certo tempo, por todos os seus protegés, por mais que
eles possam, sob outros aspectos, diferir uns dos outros, parecendo assim
condenado a provar todo o amargor da ingratidão; o homem cujas amizades findam
por uma traição por parte do amigo; o homem que, repetidas vezes, no decorrer
da vida, eleva outrem a uma posição de grande autoridade particular ou pública
e depois, após certo intervalo, subverte essa autoridade e a substitui por
outra nova; ou, ainda, o amante cujos casos amorosos com mulheres atravessam as
mesmas fases e chegam à mesma conclusão. Essa ‘perpétua recorrência da mesma
coisa’ não nos causa espanto quando se refere a um comportamento ativo por
parte da pessoa interessada, e podemos discernir nela um traço de caráter
essencial, que permanece sempre o mesmo, sendo compelido a expressar-se por uma
repetição das mesmas experiências. Ficamos muito mais impressionados nos casos
em que o sujeito parece ter uma experiência passiva, sobre a qual não
possui influência, mas nos quais se defronta com uma repetição da mesma
fatalidade. É o caso, por exemplo, da mulher que se casou sucessivamente com
três maridos, cada um dos quais caiu doente logo depois e teve que ser cuidado
por ela em seu leito de morte. O retrato poético mais comovente de um destino
assim foi pintado por Tasso em sua epopéia romântica Gerusalemme Liberata.
Seu herói, Tancredo, inadvertidamente mata sua bem amada Clorinda num duelo,
estando ela disfarçada sob a armadura de um cavaleiro inimigo. Após o enterro,
abre caminho numa estranha floresta mágica que aterroriza o exército dos
Cruzados. Com a espada faz um talho numa árvore altaneira, mas do corte é
sangue que escorre e a voz de Clorinda, cuja alma está aprisionada na árvore, é
ouvida a lamentar-se que mais uma vez ele feriu sua amada.
Se levarmos em consideração
observações como essas, baseadas no comportamento, na transferência e nas
histórias da vida de homens e mulheres, não só encontraremos coragem para supor
que existe realmente na mente uma compulsão à repetição que sobrepuja o
princípio de prazer, como também ficaremos agora inclinados a relacionar com
essa compulsão os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas e o impulso que
leva as crianças a brincar.
Contudo, é de notar que apenas em
raros casos podemos observar os motivos puros da compulsão à repetição,
desapoiados por outros motivos. No caso da brincadeira das crianças, já demos
ênfase às outras maneiras pelas quais o surgimento da compulsão pode ser
interpretado; aqui, a compulsão à repetição e a satisfação instintual que é
imediatamente agradável, parecem convergir em associação íntima. Os fenômenos
da transferência são obviamente explorados pela resistência que o ego mantém em
sua pertinaz insistência na repressão; a compulsão à repetição, que o
tratamento tenta colocar a seu serviço, é, por assim dizer, arrastada pelo ego
para o lado dele (aferrando-se, como faz o ego, ao princípio de prazer).
Grande parte do que poderia ser descrito como compulsão do destino parece
inteligível numa base racional, de maneira que não temos necessidade de
convocar uma nova e misteriosa força motivadora para explicá-la.
O exemplo menos dúbio [de tal força
motivadora] é talvez o dos sonhos traumáticos. Numa reflexão mais amadurecida,
porém, seremos forçados a admitir que, mesmo nos outros casos, nem todo o campo
é abrangido pelo funcionamento das familiares forças motivadoras. Resta
inexplicado o bastante para justificar a hipótese de uma compulsão à repetição,
algo que parece mais primitivo, mais elementar e mais instintual do que o
princípio de prazer que ela domina. Mas, se uma compulsão à repetição opera realmente
na mente, ficaríamos satisfeitos em conhecer algo sobre ela, aprender a que
função corresponde, sob que condições pode surgir e qual é sua relação com o
princípio de prazer, ao qual, afinal de contas, até agora atribuímos dominância
sobre o curso dos processos de excitação na vida mental.
IV
O que se segue é especulação, amiúde
especulação forçada, que o leitor tomará em consideração ou porá de lado, de
acordo com sua predileção individual. É mais uma tentativa de acompanhar uma
idéia sistematicamente, só por curiosidade de ver até onde ela levará.
A especulação psicanalítica toma
como ponto de partida a impressão, derivada do exame dos processos
inconscientes, de que a consciência pode ser, não o atributo mais universal dos
processos mentais, mas apenas uma função especial deles. Falando em termos
metapsicológicos, assevera que a consciência constitui função de um sistema
específico que descreve como Cs. O que a consciência produz consiste
essencialmente em percepções de excitação provindas do mundo externo e de
sentimentos de prazer e desprazer que só podem surgir do interior do aparelho
psíquico; assim, é possível atribuir ao sistema Pcpt.-Cs. uma posição no
espaço. Ele deve ficar na linha fronteiriça entre o exterior e o interior; tem
de achar-se voltado para o mundo externo e tem de envolver os outros sistemas
psíquicos. Ver-se-á que não existe nada de ousadamente novo nessas suposições;
adotamos simplesmente as concepções sobre localização sustentadas pela anatomia
cerebral, que localiza a ‘sede’ da consciência no córtex cerebral, a camada
mais externa, envolvente do órgão central. A anatomia cerebral não tem
necessidade de considerar por que, anatomicamente falando, a consciência deva
alojar-se na superfície do cérebro, em vez de encontrar-se seguramente abrigada
em algum lugar de seu mais íntimo interior. Talvez nós sejamos mais
bem-sucedidos em explicar essa situação, no caso de nosso sistema Pcpt.-Cs.
A consciência não é o único caráter
distintivo que atribuímos aos processos desse sistema. Com base em impressões
derivadas de nossa experiência psicanalítica, supomos que todos os processos
excitatórios que ocorrem nos outros sistemas deixam atrás de si traços
permanentes, os quais formam os fundamentos da memória. Tais traços de memória,
então, nada têm a ver com o fato de se tornarem conscientes; na verdade, com
freqüência são mais poderosos e permanentes quando o processo que os deixou
atrás de si foi um processo que nunca penetrou na consciência. Achamos difícil
acreditar, contudo, que traços permanentes de excitação como esses sejam também
deixados no sistema Pcpt.-Cs. Se permanecessem constantemente
conscientes, muito cedo estabeleceriam limites à aptidão do sistema para o
recebimento de novas excitações. Se, por outro lado, fossem inconscientes, nos
defrontaríamos com o problema de explicar a existência de processos
inconscientes num sistema cujo funcionamento, sob outros aspectos, se faz
acompanhar pelo fenômeno da consciência. Não teríamos, por assim dizer, nem
alterado nem ganho nada com nossa hipótese de relegar o processo de tornar-se
consciente a um sistema especial. Embora essa consideração de modo algum seja
conclusiva, leva-nos não obstante a suspeitar de que tornar-se consciente e
deixar atrás de si um traço de memória, são processos incompatíveis um com o
outro dentro de um só e mesmo sistema. Assim, poderíamos dizer que o processo
excitatório se torna consciente no sistema Cs., mas não deixa traço
permanente atrás de si; a excitação, porém, é transmitida aos sistemas que
ficam a seguir e é neles que seus traços são deixados. Segui essas
mesmas linhas no quadro esquemático que incluí na parte especulativa de minha Interpretação
de Sonhos. Deve-se manter em mente que muito pouco se conhece sobre outras
fontes de origem da consciência; dessa maneira, quando formulamos a proposição
de que a consciência surge em vez de um traço de memória, a assertiva
merece consideração, pelo menos com o fundamento de que é estruturada em termos
bastante precisos.
Se isso é assim, então, o sistema Cs.
se caracteriza pela peculiaridade de que nele (em contraste com o que acontece
nos outros sistemas psíquicos) os processos excitatórios não deixam atrás de si
nenhuma alteração permanente em seus elementos, mas exaurem-se, por assim
dizer, no fenômeno de se tornarem conscientes. Uma exceção desse tipo à regra
geral exige ser explicada por algum fator que se aplique exclusivamente a esse
determinado sistema. Tal fator, ausente nos outros sistemas, bem poderia ser a
situação exposta do sistema Cs., imediatamente próxima, como é, do mundo
externo.
Imaginemos um organismo vivo em sua
forma mais simplificada possível, como uma vesícula indiferenciada de uma
substância que é suscetível de estimulação. Então, a superfície voltada para o
mundo externo, pela sua própria situação, se diferenciará e servirá de órgão
para o recebimento de estímulos. Na verdade, a embriologia, em sua capacidade
de recapituladora da história desenvolvimental, mostra-nos realmente que o
sistema nervoso central se origina do ectoderma; a matéria cinzenta do córtex
permanece um derivado da camada superficial primitiva do organismo e pode ter
herdado algumas de suas propriedades essenciais. Seria então fácil supor que,
como resultado do impacto incessante de estímulos externos sobre a superfície
da vesícula, sua substância, até uma certa profundidade, pode ter sido
permanentemente modificada, de maneira que os processos excitatórios nela
seguem um curso diferente do seguido nas camadas mais profundas. Formar-se-ia
então uma crosta que acabaria por ficar tão inteiramente ‘calcinada’ pela
estimulação, que apresentaria as condições mais favoráveis possíveis para a
recepção de estímulos e se tornaria incapaz de qualquer outra modificação. Em
termos do sistema Cs. isso significa que seus elementos não poderiam mais
experimentar novas modificações permanentes pela passagem da excitação, porque
já teriam sido modificados, a esse respeito, até o ponto mais amplo possível;
agora, contudo, se teriam tornado capazes de dar origem à consciência. É
possível formar várias idéias, que não podem, de momento, ser verificadas,
quanto à natureza dessa modificação da substância e do processo excitatório.
Pode-se supor que, ao passar de determinado elemento para outro, a excitação
tem de vencer uma resistência e que é a diminuição da resistência assim
alcançada que deixa um traço permanente da excitação, isto é, uma facilitação.
No sistema Cs., então, uma resistência dessa espécie à passagem de
determinado elemento não mais existirá. Esse quadro pode ser relacionado com a
distinção efetuada por Breuer entre energia catéxica quiescente (ou vinculada)
e móvel nos elementos dos sistemas psíquicos; os elementos do sistema Cs.
não conduziriam energia vinculada, mas apenas energia capaz de descarga livre.
Parece melhor, contudo, expressarmo-nos tão cautelosamente quanto possível
sobre esses pontos. Não obstante, essa especulação permitiu-nos colocar a
origem da consciência num certo tipo de vinculação com a situação do sistema Cs.
e com as peculiaridades que devem ser atribuídas aos processos excitatórios que
neles se realizam.
Contudo, temos mais a dizer sobre a
vesícula viva, com sua camada cortical receptiva. Esse pequeno fragmento de
substância viva acha-se suspenso no meio de um mundo externo carregado com as
mais poderosas energias, e seria morto pela estimulação delas emanadas, se não
dispusesse de um escudo protetor contra os estímulos. Ele adquire esse escudo
da seguinte maneira: sua superfície mais externa deixa de ter a estrutura
apropriada à matéria viva, torna-se até certo ponto inorgânica e, daí por
diante, funciona como um envoltório ou membrana especial, resistente aos
estímulos. Em conseqüência disso, as energias do mundo externo só podem passar
para as camadas subjacentes seguintes, que permaneceram vivas, com um fragmento
de sua intensidade original, e essas camadas podem dedicar-se, por trás do
escudo protetor, à recepção das quantidades de estímulo que este deixou passar.
Através de sua morte a camada exterior salvou todas as camadas mais profundas
de um destino semelhante, a menos que os estímulos que a atinjam sejam tão
fortes que atravessem o escudo protetor. A proteção contra os estímulos
é, para os organismos vivos, uma função quase mais importante do que a recepção
deles. O escudo protetor é suprido com seu próprio estoque de energia e deve,
acima de tudo, esforçar-se por preservar os modos especiais de transformação de
energia que nele operam, contra os efeitos ameaçadores das enormes energias em
ação no mundo externo, efeitos que tendem para o nivelamento deles e, assim,
para a destruição. O principal intuito da recepção de estímulos é
descobrir a direção e a natureza dos estímulos externos; para isso, é
suficiente apanhar pequenos espécimes do mundo externo, para classificá-lo em
pequenas quantidades. Nos organismos altamente desenvolvidos, a camada cortical
receptiva da antiga vesícula há muito tempo já se retirou para as profundezas
do corpo, embora partes dela tenham sido deixadas sobre a superfície,
imediatamente abaixo do escudo geral contra os estímulos. Essas partes são os
órgãos dos sentidos, que consistem essencialmente em aparelhos para a recepção
de certos efeitos específicos de estimulação, mas que também incluem
disposições especiais para maior proteção contra quantidades excessivas de
estimulação e para a exclusão de tipos inapropriados de estímulos. É
característico deles tratarem apenas com quantidades muito pequenas de
estimulação externa e apenas apanharem amostras do mundo externo. Podem
ser talvez comparados a tentáculos que estão sempre efetuando avanços
experimentais no sentido do mundo externo, e então retirando-se dele.
Nesse ponto, aventurar-me-ei a
aflorar por um momento um assunto que mereceria tratamento mais exaustivo. Em
conseqüência de certas descobertas psicanalíticas, encontramo-nos hoje em
posição de empenhar-nos num estudo do teorema kantiano segundo o qual tempo e
espaço são ‘formas necessárias de pensamento’. Aprendemos que os processos
mentais inconscientes são, em si mesmos, ‘intemporais’. Isso significa, em
primeiro lugar, que não são ordenados temporalmente, que o tempo de modo algum
os altera e que a idéia de tempo não lhes pode ser aplicada. Trata-se de
características negativas que só podem ser claramente entendidas se se fizer
uma comparação com os processos mentais conscientes. Por outro lado,
nossa idéia abstrata de tempo parece ser integralmente derivada do método de
funcionamento do sistema Pcpt.-Cs. e corresponder a uma percepção de sua
própria parte nesse método de funcionamento, o qual pode talvez constituir uma
outra maneira de fornecer um escudo contra os estímulos. Sei que essas
observações devem soar muito obscuras, mas tenho de limitar-me a essas
sugestões.
Indicamos como a vesícula viva está
provida de um escudo contra os estímulos provenientes do mundo externo e
mostramos anteriormente que a camada cortical seguinte a esse escudo deve ser
diferenciada como um órgão para a recepção de estímulos do exterior. Esse
córtex sensitivo, contudo, que posteriormente deve tornar-se o sistema Cs.,
também recebe excitações desde o interior. A situação do sistema, entre
o exterior e o interior, e a diferença entre as condições que regem a recepção
de excitações nos dois casos, têm um efeito decisivo sobre o funcionamento do
sistema e de todo o aparelho mental. No sentido do exterior, acha-se
resguardado contra os estímulos, e as quantidades de excitação que sobre ele
incidem possuem apenas efeito reduzido. No sentido do interior, não pode haver
esse escudo; as excitações das camadas mais profundas estendem-se para o sistema
diretamente e em quantidade não reduzida, até onde algumas de suas
características dão origem a sentimentos da série prazer-desprazer. As
excitações que provêm de dentro, entretanto, em sua intensidade e em outros
aspectos qualitativos - em sua amplitude, talvez -, são mais comensuradas com o
método de funcionamento do sistema do que os estímulos que afluem desde o mundo
externo. Esse estado de coisas produz dois resultados definidos. Primeiramente,
os sentimentos de prazer e desprazer (que constituem um índice do que está
acontecendo no interior do aparelho) predominam sobre todos os estímulos
externos. Em segundo lugar, é adotada uma maneira específica de lidar com
quaisquer excitações internas que produzam um aumento demasiado grande de
desprazer; há uma tendência a tratá-las como se atuassem, não de dentro, mas de
fora, de maneira que seja possível colocar o escudo contra estímulos em
operação, como meio de defesa contra elas. É essa a origem da projeção,
destinada a desempenhar um papel tão grande na causação dos processos
patológicos.
Tenho a impressão de que essas
últimas considerações nos levaram a uma melhor compreensão da dominância do
princípio de prazer, mas ainda não se lançou luz alguma sobre os casos que
contradizem essa dominância. Assim, avancemos um passo. Descrevemos como
‘traumáticas’ quaisquer excitações provindas de fora que sejam suficientemente
poderosas para atravessar o escudo protetor. Parece-me que o conceito de trauma
implica necessariamente uma conexão desse tipo com uma ruptura numa barreira
sob outros aspectos eficazes contra os estímulos. Um acontecimento como um
trauma externo está destinado a provocar um distúrbio em grande escala no
funcionamento da energia do organismo e a colocar em movimento todas as medidas
defensivas possíveis. Ao mesmo tempo, o princípio de prazer é momentaneamente
posto fora de ação. Não há mais possibilidade de impedir que o aparelho mental
seja inundado com grandes quantidades de estímulos; em vez disso, outro
problema surge, o problema de dominar as quantidades de estímulo que
irromperam, e de vinculá-las no sentido psíquico, a fim de que delas se possa
então desvencilhar.
O desprazer específico do sofrimento
físico provavelmente resulta de que o escudo protetor tenha sido atravessado
numa área limitada. Dá-se então um fluxo contínuo de excitações desde a parte
da periferia relacionada até o aparelho central da mente, tal como normalmente
surgiria apenas desde o interior do aparelho. E como esperamos que a
mente reaja a essa invasão? A energia catéxica é convocada de todos os lados
para fornecer catexias suficientemente altas de energia nos arredores da
ruptura. Uma ‘anticatexia’ em grande escala é estabelecida, em cujo benefício
todos os outros sistemas psíquicos são empobrecidos, de maneira que as funções
psíquicas remanescentes são grandemente paralisadas ou reduzidas. Devemos
empenhar-nos em extrair uma lição de exemplos como esse e utilizá-los como base
para nossas especulações metapsicológicas. Do presente caso, então, inferimos
que um sistema que é altamente catexizado é capaz de receber um influxo
adicional de energia nova e de convertê-la em catexia quiescente, isso é, de
vinculá-la psiquicamente. Quanto mais alta a própria catexia quiescente do
sistema, maior parece ser a sua força vinculadora; inversamente, entretanto,
quanto mais baixa a catexia, menos capacidade terá para receber o influxo de
energia e mais violentas serão as conseqüências de tal ruptura no escudo
protetor contra estímulos. A essa concepção não se pode corretamente objetar que
o aumento de catexia em redor da ruptura pode ser mais simplesmente explicado
como sendo o resultado direto das massas afluentes de excitação. Se assim
fosse, o aparelho mental meramente receberia um aumento em suas catexias de
energia, e o caráter paralisante do sofrimento e o empobrecimento de todos os
outros sistemas permaneceriam inexplicados. Tampouco os fenômenos muito
violentos de descarga a que o sofrimento dá origem influenciam nossa
explicação, porque ocorrem de maneira reflexa, ou seja, decorrem sem a
intervenção do aparelho mental. A indefinição de todas as nossas discussões
sobre o que descrevemos como metapsicologia, é naturalmente devida ao fato de
nada sabermos sobre a natureza do processo excitatório que se efetua nos
elementos dos sistemas psíquicos, e ao fato de não nos sentirmos justificados
em estruturar qualquer hipótese sobre o assunto. Por conseguinte, ficamos
operando todo o tempo com um grande fator desconhecido, que somos obrigados a
transportar para cada nova fórmula. Poder-se-ia razoavelmente supor que esse
processo excitatório possa ser executado com energias que variam quantitativamente;
pode também parecer provável que ele tenha mais do que uma só qualidade (da
natureza da amplitude, por exemplo). Como novo fator, tomamos em consideração a
hipótese de Breuer de que as cargas de energia ocorrem sob duas formas [ver em
[1] e [2] ], de maneira que temos de distinguir entre dois tipos de catexia dos
sistemas psíquicos ou seus elementos: uma catexia que flui livremente e
pressiona no sentido da descarga e uma catexia quiescente. Podemos talvez
suspeitar de que a vinculação da energia que flui para dentro do aparelho
mental consiste em sua mudança de um estado de fluxo livre para um estado
quiescente.
Podemos, acredito, atrever-nos experimentalmente
a considerar a neurose traumática comum como conseqüência de uma grande ruptura
que foi causada no escudo protetor contra os estímulos. Isso pareceria
restabelecer a antiga e ingênua teoria do choque, em aparente contraste com a
teoria posterior e psicologicamente mais ambiciosa que atribuiu importância
etiológica não aos efeitos da violência mecânica, mas ao susto e à ameaça à
vida. Esses pontos de vista opostos não são, entretanto, irreconciliáveis, nem
tampouco a concepção psicanalítica das neuroses traumáticas é idêntica à teoria
do choque em sua forma mais grosseira. Esta última considera a essência do
choque como sendo o dano direto à estrutura molecular ou mesmo à estrutura
histológica dos elementos do sistema nervoso, ao passo que aquilo que nós procuramos
compreender são os efeitos produzidos sobre o órgão da mente pela ruptura do
escudo contra estímulos e pelos problemas que se seguem em sua esteira. E
atribuímos ainda importância ao elemento de susto. Ele é causado pela falta de
qualquer preparação para a ansiedade, inclusive a falta de hipercatexia dos
sistemas que seriam os primeiros a receber o estímulo. Devido à sua baixa
catexia, esses sistemas não se encontram em boa posição para vincular as
quantidades afluentes de excitação, e as conseqüências da ruptura no escudo
defensivo decorrem mais facilmente ainda. Ver-se-á, então, que a preparação
para a ansiedade e a hipercatexia dos sistemas receptivos constitui a última
linha de defesa do escudo contra estímulos. No caso de bom número de traumas, a
diferença entre sistemas que estão despreparados e sistemas que se acham bem
preparados através da hipercatexia, pode constituir fator decisivo na
determinação do resultado, embora, onde a intensidade do trauma exceda certo
limite, esse fator indubitavelmente deixe de ter importância. A realização de
desejo é, como sabemos, ocasionada de maneira alucinatória pelos sonhos e sob a
dominância do princípio de prazer tornou-se função deles. Mas não é a serviço
desse princípio que os sonhos dos pacientes que sofrem de neuroses traumáticas
nos conduzem de volta, com tal regularidade, à situação em que o trauma
ocorreu. Podemos antes supor que aqui os sonhos estão ajudando a executar outra
tarefa, a qual deve ser realizada antes que a dominância do princípio de prazer
possa mesmo começar. Esses sonhos esforçam-se por dominar retrospectivamente o
estímulo, desenvolvendo a ansiedade cuja omissão constituiu a causa da neurose
traumática. Concedem-nos assim a visão de uma função do aparelho mental, visão
que, embora não contradiga o princípio de prazer, é sem embargo independente
dele, parecendo ser mais primitiva do que o intuito de obter prazer e evitar
desprazer.
Esse, então, pareceria ser o lugar
para, pela primeira vez, admitir uma exceção à proposição de que os sonhos são
realizações de desejos. Os sonhos de ansiedade, como repetida e
pormenorizadamente demonstrei, não oferecem essa exceção, nem tampouco o fazem
os ‘sonhos de castigo’, porque eles simplesmente substituem a realização de desejo
proibida pela punição adequada a ela, isto é, realizam o desejo do sentimento
de culpa que é a reação ao impulso repudiado. É, porém, impossível classificar
como realizações de desejos os sonhos que estivemos debatendo e que ocorrem nas
neuroses traumáticas, ou os sonhos tidos durante as psicanálises, os quais
trazem à lembrança os traumas psíquicos da infância. Eles surgem antes em
obediência à compulsão à repetição, embora seja verdade que, na análise, essa
compulsão é apoiada pelo desejo (incentivado pela ‘sugestão’) de conjurar o que
foi esquecido e reprimido. Dessa maneira, pareceria que a função dos sonhos,
que consiste em afastar quaisquer motivos que possam interromper o sono,
através da realização dos desejos dos impulsos perturbadores, não é a sua
função original. Não lhes seria possível desempenhar essa função até que
a totalidade da vida mental houvesse aceito a dominância do princípio de
prazer. Se existe um ‘além do princípio de prazer’, é coerente conceber que
houve também uma época anterior em que o intuito dos sonhos foi a realização de
desejos. Isso não implicaria numa negação de sua função posterior, mas, uma vez
rompida a regra geral, surge uma outra questão. Não podem os sonhos que, com
vistas à sujeição psíquica de impressões traumáticas, obedecem à compulsão à
repetição, não podem esses sonhos, perguntamos, ocorrer fora da análise também?
E a resposta só pode ser uma afirmativa decidida.
Argumentei em outra parte que as
‘neuroses de guerra’ (até onde essa expressão implica algo mais do que uma
referência às circunstâncias do desencadeamento da doença) podem muito bem ser
neuroses traumáticas que foram facilitadas por um conflito no ego. O fato a que
me referi em [1], o de que um grande dano físico causado simultaneamente pelo
trauma diminui as possibilidades de que uma neurose se desenvolva, torna-se
inteligível se tivermos em mente dois fatos que foram enfatizados pela pesquisa
psicanalítica: primeiramente, que a agitação mecânica deve ser reconhecida como
uma das fontes de excitação sexual e, em segundo lugar, que moléstias penosas e
febris exercem um poderoso efeito, enquanto perduram, sobre a distribuição da
libido. Assim, por um lado, a violência mecânica do trauma liberaria uma
quantidade de excitação sexual que, devido à falta de preparação para a
ansiedade, teria um efeito traumático, mas, por outro lado, o dano físico
simultâneo, exigindo uma hipercatexia narcisista do órgão prejudicado,
sujeitaria o excesso de excitação. É também bem conhecido, embora a teoria da
libido ainda não tenha feito uso suficiente do fato, que distúrbios graves na
distribuição da libido, tal como a melancolia, são temporariamente
interrompidos por uma moléstia orgânica intercorrente, e, na verdade, que mesmo
uma condição plenamente desenvolvida de demência precoce é capaz de remissão
temporária nessas mesmas circunstâncias.
V
O fato de a camada cortical que
recebe os estímulos achar-se sem qualquer escudo protetor contra as excitações
provindas do interior deve ter como resultado que essas últimas transmissões de
estímulos possuam uma preponderância em importância econômica e amiúde
ocasionem distúrbios econômicos comparáveis às neuroses traumáticas. As mais
abundantes fontes dessa excitação interna são aquilo que é descrito como os
‘instintos’ do organismo, os representantes de todas as forças que se originam
no interior do corpo e são transmitidas ao aparelho mental, desde logo o
elemento mais importante e obscuro da pesquisa psicológica.
Não se pensará que é precipitado
demais supor que os impulsos que surgem dos instintos não pertencem ao tipo dos
processos nervosos vinculados, mas sim ao de processos livremente
móveis, que pressionam no sentido da descarga. A maior parte do que sabemos
desses processos deriva de nosso estudo sobre a elaboração onírica. Nela
descobrimos que os processos dos sistemas inconscientes eram fundamentalmente
diferentes dos existentes nos sistemas pré-conscientes (ou conscientes). No
inconsciente, as catexias podem com facilidade ser completamente transferidas,
deslocadas e condensadas. Tal tratamento, no entanto, produziria apenas
resultados não-válidos se fosse aplicado ao material pré-consciente, e isso
explica as familiares peculiaridades apresentadas pelos sonhos manifestos
depois que os resíduos pré-conscientes do dia anterior foram elaborados de
acordo com as leis que operam no inconsciente. Descrevi o tipo de processo
encontrado no inconsciente como sendo o processo psíquico ‘primário’, em
contraposição com o processo ‘secundário’, que é o que impera em nossa vida de
vigília normal. Visto que todos os impulsos instintuais têm os sistemas
inconscientes como seu ponto de impacto, quase não constitui novidade dizer que
eles obedecem ao processo primário. É fácil ainda identificar o processo
psíquico primário com a catexia livremente móvel de Breuer, e o processo
secundário, com alterações em sua catexia vinculada ou tônica. Se assim é,
seria tarefa dos estratos mais elevados do aparelho mental sujeitar a excitação
instintual que atinge o processo primário. Um fracasso em efetuar essa sujeição
provocaria um distúrbio análogo a uma neurose traumática, e somente após haver
sido efetuada é que seria possível à dominância do princípio de prazer (e de
sua modificação, o princípio de realidade) avançar sem obstáculo. Até então, a
outra tarefa do aparelho mental, a tarefa de dominar ou sujeitar as excitações,
teria precedência, não, na verdade, em oposição ao princípio de prazer, mas
independentemente dele e, até certo ponto, desprezando-o.
As manifestações de uma compulsão à
repetição (que descrevemos como ocorrendo nas primeiras atividades da vida
mental infantil, bem como entre os eventos do tratamento psicanalítico)
apresentam em alto grau um caráter instintual e, quando atuam em oposição ao
princípio de prazer, dão a aparência de alguma força ‘demoníaca’ em ação. No
caso da brincadeira, parece que percebemos que as crianças repetem experiências
desagradáveis pela razão adicional de poderem dominar uma impressão poderosa
muito mais completamente de modo ativo do que poderiam fazê-lo simplesmente
experimentando-a de modo passivo. Cada nova repetição parece fortalecer a
supremacia que buscam. Tampouco podem as crianças ter as suas experiências agradáveis
repetidas com freqüência suficiente, e elas são inexoráveis em sua
insistência de que a repetição seja idêntica. Posteriormente, esse traço de
caráter desaparece. Se um chiste é escutado pela segunda vez, quase não produz
efeito; uma produção teatral jamais cria, da segunda vez, uma impressão tão
grande como da primeira; na verdade, é quase impossível persuadir um adulto que
gostou muito de ler um livro, a relê-lo imediatamente. A novidade é sempre a
condição do deleite, mas as crianças nunca se cansam de pedir a um adulto que
repita um jogo que lhes ensinou ou que com elas jogou, até ele ficar exausto
demais para prosseguir. E, se contarmos a uma criança uma linda história, ela
insistirá em ouvi-la repetidas vezes, de preferência a escutar uma nova, e sem
remorsos estipulará que a repetição seja idêntica, corrigindo quaisquer alterações
de que o narrador tenha a culpa, embora, na realidade, estas possam ter sido
efetuadas na esperança de obter uma nova aprovação. Nada disso contradiz o
princípio de prazer: a repetição, a reexperiência de algo idêntico, é
claramente, em si mesma, uma fonte de prazer. No caso de uma pessoa em análise,
pelo contrário, a compulsão à repetição na transferência dos acontecimentos da
infância evidentemente despreza o princípio de prazer sob todos os modos. O
paciente comporta-se de modo puramente infantil e assim nos mostra que os
traços de memória reprimidos de suas experiências primevas não se encontram
presentes nele em estado de sujeição, mostrando-se elas, na verdade, em certo
sentido, incapazes de obedecer ao processo secundário. Além disso, é ao fato de
não se acharem sujeitas, que devem sua capacidade de formar, em conjunção com
os resíduos do dia anterior, uma fantasia de desejo que surge num sonho. A
mesma compulsão à repetição freqüentemente se nos defronta como um obstáculo ao
tratamento, quando, ao fim da análise, tentamos induzir o paciente a
desligar-se completamente do médico. Pode-se supor também que, quando pessoas
desfamiliarizadas com a análise sentem um medo obscuro, um temor de despertar
algo que, segundo pensam, é melhor deixar adormecido, aquilo de que no fundo
têm medo, é do surgimento dessa compulsão com sua sugestão de posse por algum
poder ‘demoníaco’.
Mas como o predicado de ser
‘instintual’ se relaciona com a compulsão à repetição? Nesse ponto, não podemos
fugir à suspeita de que deparamos com a trilha de um atributo universal dos
instintos e talvez da vida orgânica em geral que até o presente não foi
claramente identificado ou, pelo menos, não explicitamente acentuado. Parece,
então que um instinto é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um
estado anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a
abandonar sob a pressão de forças perturbadoras externas, ou seja, é uma
espécie de elasticidade orgânica, ou, para dizê-lo de outro modo, a expressão
da inércia inerente à vida orgânica.
Essa visão dos instintos nos
impressiona como estranha porque nos acostumamos a ver neles um fator impelidor
no sentido da mudança e do desenvolvimento, ao passo que agora nos pedem para
reconhecer neles o exato oposto, isto é, uma expressão da natureza conservadora
da substância viva. Por outro lado, logo relembraremos exemplos tirados a
vida animal que parecem confirmar a opinião de que os instintos são
historicamente determinados. Certos peixes, por exemplo, empreendem laboriosas
migrações na época da desova, a fim de depositar sua progênie em águas
específicas, muito afastadas de suas regiões costumeiras. Na opinião de muitos
biólogos, o que fazem é simplesmente procurar as localidades que suas espécies
antigamente habitavam, mas que, no decorrer do tempo, trocaram por outras.
Acredita-se que a mesma explicação se aplique aos vôos migratórios das aves de
arribação, mas somos rapidamente liberados da necessidade de buscar outros
exemplos pela reflexão de que as mais impressivas provas de que há uma
compulsão orgânica a repetir estão nos fenômenos da hereditariedade e nos fatos
da embriologia. Vemos como o germe de um animal vivo é obrigado, no curso de
sua evolução, a recapitular (mesmo se de maneira transitória e abreviada) as estruturas
de todas as formas das quais se originou, em vez de avançar rapidamente, pela
via mais curta, até sua forma final. Esse comportamento é, apenas em grau muito
tênue, atribuível a causas mecânicas, e, por conseguinte, a explicação
histórica não pode ser desprezada. Assim também o poder de regenerar um órgão
perdido, fazendo crescer de novo um outro exatamente semelhante, estende-se bem
acima do reino animal.
Apresentar-se-nos-á a plausível
objeção de que bem pode ser que, além dos instintos de conservação que impelem
à repetição, poderão existir outros que impulsionam no sentido do progresso e
da produção de nova formas. Esse argumento decerto não deve ser desprezado e
será levado em conta numa etapa posterior. No momento, porém, é tentador
perseguir até sua conclusão lógica a hipótese de que todos os instintos tendem
à restauração de um estado anterior de coisas. O resultado talvez dê a
impressão de misticismo ou de falsa profundidade, mas podemos sentir-nos
inocentes de ter quaisquer desses propósitos em vista. Buscamos apenas os
sóbrios resultados da pesquisa ou da reflexão nela baseada, e não temos desejo
algum de encontrar neles qualquer outra qualidade que não seja a certeza.
Suponhamos, então, que todos os
instintos orgânicos são conservadores, que são adquiridos historicamente, e que
tendem à restauração de um estado anterior de coisas. Disso decorre que os
fenômenos do desenvolvimento orgânico devem ser atribuídos a influências
perturbadoras e desviadoras externas. A entidade viva elementar, desde seu
início, não teria desejo de mudar; se as condições permanecessem as mesmas, não
faria mais do que constantemente repetir o mesmo curso de vida. Em última
instância, o que deixou sua marca sobre o desenvolvimento dos organismos deve
ter sido a história da Terra em que vivemos e de sua relação com o Sol. Toda
modificação, assim imposta ao curso da vida do organismo, é aceita pelos
instintos orgânicos conservadores e armazenada para ulterior repetição. Esses
instintos, portanto, estão fadados a dar uma aparência enganadora de serem
forças tendentes à mudança e ao progresso, ao passo que, de fato, estão apenas
buscando alcançar um antigo objetivo por caminhos tanto velhos quanto novos.
Ademais, é possível especificar esse objetivo final de todo o esforço orgânico.
Estaria em contradição à natureza conservadora dos instintos que o objetivo da
vida fosse um estado de coisas que jamais houvesse sido atingido. Pelo
contrário, ele deve ser um estado de coisas antigo, um estado inicial de
que a entidade viva, numa ou noutra ocasião, se afastou e ao qual se esforça
por retornar através dos tortuosos caminhos ao longo dos quais seu
desenvolvimento conduz. Se tomarmos como verdade que não conhece exceção o fato
de tudo o que vive morrer por razões internas, tornar-se mais uma vez
inorgânico, seremos então compelidos a dizer que ‘o objetivo de toda vida é
a morte‘, e, voltando o olhar para trás, que ‘as coisas inanimadas
existiram antes das vivas‘.
Os atributos da vida foram, em
determinada ocasião, evocados na matéria inanimada pela ação de uma força de
cuja natureza não podemos formar concepção. Pode ter sido um processo de tipo
semelhante ao que posteriormente provocou o desenvolvimento da consciência num
estrato particular da matéria viva. A tensão que então surgiu no que até aí
fora uma substância inanimada se esforçou por neutralizar-se e, dessa maneira,
surgiu o primeiro instinto: o instinto a retornar ao estado inanimado. Naquela
época, era ainda coisa fácil a uma substância viva morrer; o curso de sua vida era
provavelmente breve determinando-se sua direção pela estrutura química da jovem
vida. Assim, por longo tempo talvez, a substância viva esteve sendo
constantemente criada de novo e morrendo facilmente, até que influências
externas decisivas se alteraram de maneira a obrigar a substância ainda
sobrevivente a divergir mais amplamente de seu original curso de vida e a
efetuar détours mais complicados antes de atingir seu objetivo de morte.
Esses tortuosos caminhos para a morte, fielmente seguidos pelos instintos de
conservação, nos apresentariam hoje, portanto, o quadro dos fenômenos da vida.
Se sustentarmos com firmeza a natureza exclusivamente conservadora dos
instintos, não poderemos chegar a nenhuma outra noção quanto à origem e ao
objetivo da vida.
As implicações referentes aos
grandes grupos de instintos que, segundo acreditamos, jazem por trás dos
fenômenos da vida nos organismos, devem parecer não menos desnorteantes. A
hipótese de instintos de autoconservação, tais como os atribuímos a todos os
seres vivos, alteia-se em acentuada oposição à idéia de que a vida instintual,
como um todo, sirva para ocasionar a morte. Vista sob essa luz, a importância
teórica dos instintos de autoconservação, auto-afirmação e domínio diminui
grandemente. Trata-se de instintos componentes cuja função é garantir que o
organismo seguirá seu próprio caminho para a morte, e afastar todos os modos
possíveis de retornar à existência inorgânica que não sejam os imanentes ao
próprio organismo. Não temos mais de levar em conta a enigmática determinação
do organismo (tão difícil de encaixar em qualquer contexto) de manter sua
própria existência frente a qualquer obstáculo. O que nos resta é o fato de que
o organismo deseja morrer apenas do seu próprio modo. Assim, originalmente, esses
guardiães da vida eram também os lacaios da morte. Daí surgir a situação
paradoxal de que o organismo vivo luta com toda a sua energia contra fatos
(perigos, na verdade) que poderiam auxiliá-lo a atingir mais rapidamente seu
objetivo de vida, por uma espécie de curto-circuito. Tal comportamento,
entretanto, é precisamente o que caracteriza os esforços puramente instintuais,
contrastados com os esforços inteligentes.
Mas detenhamo-nos por um momento e
reflitamos. Não pode ser assim. Os instintos sexuais, a que a teoria das
neuroses concede um lugar inteiramente especial, surgem sob aspecto muito
diferente.
A pressão externa que provoca uma
ampliação constantemente crescente do desenvolvimento não se impôs a todos os
organismos. Muitos conseguiram permanecer até os dias de hoje em seu nível
humilde. Na verdade, muitas - embora não todas - dessas criaturas, que devem
assemelhar-se às fases primitivas dos animais e vegetais superiores, ainda hoje
acham-se vivas. Da mesma maneira, a totalidade do caminho do desenvolvimento
para a morte natural não é percorrido por todas as entidades elementares que
compõem o complicado corpo de um dos organismos mais elevados. Algumas delas,
as células germinais, provavelmente retêm a estrutura original da matéria viva
e, após certo tempo, com todo o seu complemento de disposições instintuais
herdadas e recentemente adquiridas, separam-se do organismo como um todo. Essas
duas características podem ser exatamente aquilo que as capacita a ter uma
existência independente. Sob condições favoráveis, começam a desenvolver-se,
isto é, a repetir o desempenho a que devem sua existência, e, ao final, mais
uma vez uma parte de sua substância leva sua evolução a um término, ao passo
que outra parte reverte novamente, como um germe residual novo, ao início do
processo de desenvolvimento. Essas células germinais, portanto, trabalham
contra a morte da substância viva e têm êxito em conseguir para ela o que só
podemos encarar como uma imortalidade potencial, ainda que isso possa
significar nada mais do que um alongamento da estrada para a morte. Temos de
considerar como significante, no mais elevado grau, o fato de essa função da
célula germinal ser reforçada, ou só tornada possível, se ela fundir-se com
outra célula similar a si mesma e, contudo, diferente dela.
Os instintos que cuidam dos destinos
desses organismos elementares que sobrevivem à totalidade do indivíduo, que
lhes fornecem um abrigo seguro enquanto se acham indefesos contra os estímulos
do mundo externo, que ocasionam seu encontro com outras células germinais etc.,
constituem o grupo dos instintos sexuais. São conservadores no mesmo sentido
dos outros instintos porque trazem de volta estados anteriores de substância
viva; contudo, são conservadores num grau mais alto, por serem peculiarmente
resistentes às influências externas; e são conservadores ainda em outro
sentido, por preservarem a própria vida por um longo período. São os
verdadeiros instintos de vida. Operam contra o propósito dos outros instintos,
que conduzem, em razão de sua função, à morte, e este fato indica que existe
oposição entre eles e os outros, oposição que foi há muito tempo reconhecida
pela teoria das neuroses. É como se a vida do organismo se movimentasse num
ritmo vacilante. Certo grupo de instintos se precipita como que para atingir o
objetivo final da vida tão rapidamente quanto possível, mas, quando determinada
etapa no avanço foi alcançada, o outro grupo atira-se para trás até um certo
ponto, a fim de efetuar nova saída e prolongar assim a jornada. E ainda que
seja certo que a sexualidade e a distinção entre os sexos não existiam quando a
vida começou, permanece a possibilidade de que os instintos que posteriormente
vieram a ser descritos como sexuais, possam ter estado em funcionamento desde o
início, e talvez não seja verdade que foi apenas em época posterior que eles
começaram seu trabalho de oposição às atividades dos ‘instintos do ego’.
Retornemos nós mesmos por um momento
e consideremos se existe qualquer base para essas especulações. Será realmente
o caso que, à parte os instintos sexuais, não existem instintos que não
procurem restaurar um estado anterior de coisas? Que não haja nenhum que vise a
um estado de coisas que nunca foi alcançado? Não conheço exemplo certo do mundo
orgânico que contradiga a caracterização que assim propus. Indiscutivelmente
não existe um instinto universal para desenvolvimento superior observável no
mundo animal ou vegetal, ainda que seja inegável que o desenvolvimento
realmente ocorre nessa direção. Mas, por um lado, trata-se amiúde de uma
questão de opinião o fato de declararmos que determinado estágio de
desenvolvimento é superior a outro, e, por outro lado, a biologia nos ensina
que o desenvolvimento superior sob certo aspecto é com bastante freqüência
compensado ou sobrepujado pela involução sob outro aspecto. Além disso, existem
muitas formas animais de cujos primeiros estágios podemos inferir que seu
desenvolvimento, pelo contrário, assumiu caráter retrógrado. Tanto o
desenvolvimento superior quanto a involução bem podem ser as conseqüências da
adaptação à pressão de forças externas e, em ambos os casos, o papel
desempenhado pelos instintos pode-se limitar à retenção (na forma de um fonte
interna de prazer) de uma modificação obrigatória.
Pode também ser difícil, para muitos
de nós, abandonar a crença de que existe em ação nos seres humanos um instinto
para a perfeição, instinto que os trouxe a seu atual alto nível de realização
intelectual e sublimação ética, e do qual se pode esperar que zele pelo seu desenvolvimento
em super-homens. Não tenho fé, contudo, na existência de tal instinto interno e
não posso perceber por que essa ilusão benévola deva ser conservada. A evolução
atual dos seres humanos não exige, segundo me parece, uma explicação diferente
da dos animais. Aquilo que, numa minoria de indivíduos humanos, parece ser um
impulso incansável no sentido de maior perfeição, pode ser facilmente
compreendido como resultado da repressão instintual em que se baseia tudo o que
é mais precioso na civilização humana. O instinto reprimido nunca deixa de
esforçar-se em busca da satisfação completa, que consistiria na repetição de
uma experiência primária de satisfação. Formações reativas e substitutivas, bem
como sublimações, não bastarão para remover a tensão persistente do instinto
reprimido, sendo que a diferença de quantidade entre o prazer da satisfação que
é exigida e a que é realmente conseguida, é que fornece o fator
impulsionador que não permite qualquer parada em nenhuma das posições
alcançadas, mas, nas palavras do poeta, ‘ungebändigt immer vorwärts dringt‘.
O caminho para trás que conduz à satisfação completa acha-se, via de regra,
obstruído pelas resistências que mantêm as repressões, de maneira que não há
alternativa senão avançar na direção em que o crescimento ainda se acha livre,
embora sem perspectiva de levar o processo a uma conclusão ou de ser capaz de
atingir o objetivo. Os processos envolvidos na formação de uma fobia neurótica,
que nada mais é do que uma tentativa de fuga da satisfação de um instinto,
apresentam-nos um modelo do modo de origem desse suposto ‘instinto para a
perfeição’, o qual não tem possibilidades de ser atribuído a todos os seres
humanos. Na verdade, as condições dinâmicas para o seu desenvolvimento estão
universalmente presentes, mas apenas em raros casos a situação econômica parece
favorecer a produção do fenômeno.
Acrescentarei apenas uma palavra
para sugerir que os esforços de Eros para combinar substâncias orgânicas em
unidades cada vez maiores provavelmente fornecem um sucedâneo para esse
‘instinto para a perfeição’, cuja existência não podemos admitir. Os fenômenos
que lhe são atribuídos parecem passíveis de explicação por esses esforços de
Eros, tomados em conjunto com os resultados da repressão.
VI
A essência de nossa investigação até
agora foi o traçado de uma distinção nítida entre os ‘instintos do ego’ e os
instintos sexuais, e a visão de que os primeiros exercem pressão no sentido da
morte e os últimos no sentido de um prolongamento da vida. Contudo, essa conclusão
está fadada a ser insatisfatória sob muitos aspectos, mesmo para nós. Ademais,
na realidade, é apenas quanto ao primeiro grupo de instintos que podemos
afirmar que possuem caráter conservador, ou melhor, retrógrado, correspondente
a uma compulsão à repetição, porque, em nossa hipótese, os instintos do ego se
originam da animação da matéria inanimada e procuram restaurar o estado
inanimado, ao passo que, quanto aos instintos sexuais, embora seja verdade que
reproduzem estados primitivos do organismo, aquilo a que claramente visam, por
todos os meios possíveis, é à coalescência de duas células germinais que são
diferenciadas de maneira particular. Se essa união não é efetuada, a célula
germinal morre juntamente com todos os outros elementos do organismo
multicelular. É apenas com essa condição que a função sexual pode prolongar a
vida da célula e emprestar-lhe uma aparência de imortalidade. Mas, qual é o
acontecimento importante no desenvolvimento da substância viva, que está sendo
repetido na reprodução sexual ou em sua antecessora, a conjugação de dois
protozoários? Não podemos dizer, e, conseqüentemente, deveríamos sentir-nos
aliviados se toda a estrutura de nossa argumentação se mostrou equivocada. A
oposição entre os instintos do ego ou instintos de morte e os instintos sexuais
ou instintos de vida deixaria então de sustentar-se e a compulsão à repetição
não mais possuiria a importância que lhe atribuímos.
Voltemo-nos, então, para uma das
suposições já feitas por nós, na expectativa de podermos dar-lhe uma negação
categórica. Tiramos conclusões de longo alcance da hipótese de que toda
substância viva está fadada a morrer por causas internas. Fizemos essa
suposição assim descuidadamente porque ela não nos parece ser uma suposição.
Estamos acostumados a pensar que esse é o fato, e somos fortalecidos em nossas
reflexões pelos escritos de nossos poetas. Talvez tenhamos adotado a crença
porque existe nela um certo consolo. Se temos de morrer, e primeiro perder para
a morte aqueles que nos são mais caros, é mais fácil submeter-se a uma lei
impiedosa da natureza, à sublime ‘‘ [Necessidade], do que a um acaso de
que talvez pudéssemos ter fugido. Pode ser, contudo, que essa crença na
necessidade interna de morrer seja apenas outra daquelas ilusões que criamos ‘um
die Schwere des Daseins zu ertragen‘. Decerto não se trata de uma licença
primeva. A noção de ‘morte natural’ é inteiramente estranha às raças
primitivas; atribuem toda morte que ocorre entre elas à influência de um
inimigo ou de um espírito mau. Devemos, portanto, voltar-nos para a biologia, a
fim de testar a validade da crença.
Se assim fizermos, ficaremos
estupefatos em descobrir quão pouco acordo existe entre os biólogos sobre a
questão da morte natural e, na realidade, que todo o conceito de morte se
dissolve em suas mãos. O fato de haver uma duração média e fixa de vida, pelo
menos entre os animais superiores, argúi naturalmente em favor da existência de
algo como a morte por causas naturais. Mas essa impressão é contraditada quando
consideramos que certos grandes animais e determinados crescimentos arbóreos
gigantescos atingem idade muito avançada, idade que atualmente não pode ser
computada. De acordo com a grande concepção de Wilhelm Fliess [1906], todos os
fenômenos vitais apresentados pelos organismos - e também, indubitavelmente,
sua morte - estão vinculados à conclusão de períodos fixos, os quais expressam
a dependência de dois tipos de substância viva (um masculino e outro feminino)
quanto ao ano solar. Quando vemos, contudo, quão fácil e extensamente a
influência de forças externas pode modificar a data do aparecimento dos
fenômenos vitais (especialmente no mundo vegetal), precipitando-os ou
retendo-os, temos de levantar dúvidas quanto à rigidez das fórmulas de Fliess
ou, pelo menos, quanto às leis por ele estabelecidas constituírem os únicos
fatores determinantes.
De nosso ponto de vista, o maior
interesse prende-se ao tratamento dado ao tema da duração da vida e da morte
dos organismos nos escritos de Weismann (1882, 1884, 1892 etc.). Foi ele que
introduziu a divisão da substância viva em partes mortais e imortais. A parte
mortal é o corpo no sentido mais estrito, o ‘soma’, que, somente ele, se acha sujeito
à morte natural. As células germinais, por outro lado, são potencialmente
imortais, na medida em que são capazes, em determinadas condições, de
desenvolver-se no indivíduo novo ou, em outras palavras, de cercar-se de um
novo soma (Weismann, 1884).
O que nos impressiona nisso é a
inesperada analogia com nosso próprio ponto de vista, ao qual chegamos ao longo
de caminho tão diferente. Weismann, encarando morfologicamente a substância
viva, enxerga nela uma parte que está destinada a morrer - o soma, o corpo
separado da substância relacionada com o sexo e a herança -, e uma parte
imortal - o plasma germinal, que se relaciona com a sobrevivência da espécie,
com a reprodução. Nós, por outro lado, lidando não com a substância viva, mas
com as forças que nela operam, fomos levados a distinguir duas espécies de
instintos: aqueles que procuram conduzir o que é vivo à morte, e os outros, os
instintos sexuais, que estão perpetuamente tentando e conseguindo uma renovação
da vida, o que soa como um corolário dinâmico à teoria morfológica de Weismann.
Contudo, a aparência de uma
correspondência significante se dissipa tão logo descobrimos as concepções de
Weismann sobre o problema da morte, porque ele só relaciona a distinção entre o
soma mortal e o plasma germinal imortal aos organismos multicelulares;
nos organismos unicelulares, o indivíduo e a célula reprodutora são ainda um só
e o mesmo (Weismann, 1882, 38). Desse modo, considera que os organismos
unicelulares são potencialmente imortais e que a morte só faz seu aparecimento
com os metazoários multicelulares. É verdade que essa morte dos organismos mais
elevados é natural, uma morte provocada por causas internas, mas não se funda
em nenhuma característica primitiva da substância viva (Weismann, 1884, 84) e
não pode ser encarada como uma necessidade absoluta, com base na própria
natureza da vida (Weismann, 1882, 33). A morte é antes uma questão de
conveniência, uma manifestação de adaptação às condições externas da vida,
porque, uma vez as células do corpo tenham sido divididas em soma e plasma
germinal, uma duração ilimitada da vida individual se tornaria um luxo
inteiramente sem sentido. Feita essa diferenciação nos organismos
multicelulares, a morte torna-se possível e conveniente. Desde então, o soma
dos organismos superiores morreu a períodos fixos por razões internas, ao passo
que os protistas permaneceram imortais. Não é o caso, por outro lado, de a
reprodução ter sido introduzida ao mesmo tempo que a morte. Pelo contrário,
trata-se de uma característica primitiva da matéria viva, como o crescimento
(do qual se originou), e a vida foi contínua desde seu início sobre a Terra
(Weismann, 1884, 84 e seg.).
Ver-se-á em seguida que concordar
dessa maneira que os organismos superiores tenham uma morte natural é de muito
pouco auxílio para nós, porque, se a morte é uma aquisição tardia dos
organismos, então não há o que falar quanto a ter havido instintos de morte
desde o começo da vida sobre a Terra. Os organismos multicelulares podem morrer
por razões internas, devido a uma diferenciação deficiente ou a imperfeições de
seu metabolismo, mas a questão não tem interesse do ponto de vista de nosso
problema. Uma explicação da origem da morte como esta encontra-se, ademais, em
muito menor variância com nossos modos de pensamentos habituais do que a
estranha pressuposição dos ‘instintos de morte’.
O debate que se seguiu às sugestões
de Weismann não conduziu, até onde posso perceber, a nenhum resultado
conclusivo em qualquer direção. Alguns escritores retornaram às opiniões de
Goethe (1883), que considerava a morte o resultado direto da reprodução.
Hartmann (1906, 29) não considera a aparência de um ‘cadáver’ - uma parte morta
da substância viva - como critério de morte, mas define esta como sendo ‘o
término do desenvolvimento individual’. Nesse sentido, também os protozoários
são mortais; em seu caso, a morte também coincide com a reprodução, mas é, até
certo ponto, obscurecida por ela, desde que toda a substância do animal pai
pode ser diretamente transmitida à jovem progênie.
Pouco depois, a pesquisa voltou-se
para a verificação experimental, em organismos unicelulares, da alegada
imortalidade da substância viva. Um biólogo americano, Woodruff, fazendo
experiências com um infusório ciliado, o ‘animálculo deslizador’ (slipper-animalcule),
que se reproduz por fissão em dois outros indivíduos, persistiu até a 3.029ª
geração (ocasião em que interrompeu a experiência), a cada vez isolando um dos
produtos parciais e colocando-o em água nova. Esse remoto descendente do
primeiro animálculo era tão vivaz quanto seu antepassado e não apresentava
sinais de envelhecimento ou degeneração. Assim, até onde cifras desse tipo
podem provar algo, a imortalidade dos protozoários pareceu ser
experimentalmente demonstrável.
Outros experimentadores chegaram a
resultados diferentes. Maupas, Calkins e outros, em contraste com Woodruff,
descobriram que, após certo número de divisões, aqueles infusórios se tornavam
mais débeis, diminuíam de tamanho, sofriam a perda de alguma parte de sua
organização e acabavam por morrer, a menos que certas medidas recuperadoras
lhes fossem aplicadas. Se assim for, os protozoários pareceriam morrer após uma
fase de senescência, exatamente como aos animais superiores, contraditando
assim completamente a assertiva weismanniana de que a morte é uma aquisição
tardia dos organismos vivos.
Do conjunto dessas experiências
surgem dois fatos que parecem fornecer-nos uma base firme.
Primeiro: se dois dos animálculos,
no momento antes de apresentarem sinais de senescência, puderem coalescer um
com o outro, isto é, ‘conjugarem-se’ (pouco após o que, mais uma vez se
separam), salvam-se de ficarem velhos e tornam-se ‘rejuvenescidos’. A
conjugação é indubitavelmente a antecessora da reprodução sexual nas criaturas
mais elevadas; ainda se acha, por enquanto, desvinculada da propagação e
limita-se à mistura das substâncias dos dois indivíduos. (A ‘anfimixia’ de
Weismann.) Os efeitos recuperadores da conjugação podem, contudo, ser
substituídos por certos agentes estimulantes, através de alterações na
composição do fluido que proporciona sua nutrição, pela elevação de sua
temperatura ou por sua agitação. Somos lembrados do célebre experimento
efetuado por J. Loeb, no qual, através de certos estímulos químicos, induziu a
segmentação de ovos de ouriço-do-mar, processo que normalmente só pode ocorrer
após a fertilização.
Segundo: não obstante, é provável
que os infusórios morram de morte natural em resultado de seus próprios
processos vitais, porque a contradição entre as descobertas de Woodruff e dos
outros deve-se ao fato de haver ele provido cada geração de fluido nutriente
novo. Se deixava de fazê-lo, observava os mesmos sinais de senescência que os
outros experimentadores. Concluiu que os animálculos eram prejudicados pelos
produtos do metabolismo que expeliam para o fluido circundante. Pôde então
provar conclusivamente que eram apenas os produtos de seu próprio metabolismo
que tinham resultados fatais para esse tipo específico de animálculo, porque os
mesmos animais que inevitavelmente pereciam se eram apinhados em seu próprio
fluido nutriente, floresciam numa solução supersaturada com os produtos
excretórios de uma espécie distantemente aparentada. Um infusório, portanto, se
é deixado a si mesmo, morre de morte natural devido à evacuação incompleta dos
produtos de seu próprio metabolismo. (Pode ser que a mesma incapacidade seja a
causa suprema também da morte de todos os animais superiores.)
Nesse ponto, bem pode surgir em
nosso espírito a dúvida quanto a saber se servimos a algum objetivo ao tentar
solucionar o problema da morte natural a partir do estudo dos protozoários. A
organização primitiva dessas criaturas pode ocultar-nos condições importantes
que, embora de fato presentes nelas também, só se tornam visíveis nos
animais superiores, quando podem encontrar expressão morfológica. E, se
abandonarmos o ponto de vista morfológico e adotarmos o dinâmico, torna-se-nos
completamente indiferente poder demonstrar se a morte natural ocorre ou não nos
protozoários. A substância que posteriormente é reconhecida como imortal, neles
não se separou ainda da mortal. As forças instintuais que procuram conduzir a
vida para a morte podem também achar-se em funcionamento nos protozoários desde
o início; no entanto, seus esforços podem ser tão completamente ocultos pelas
forças preservadoras da vida, que talvez seja muito difícil encontrar qualquer
prova direta de sua presença. Vimos também, além disso, que as observações
efetuadas pelos biólogos nos permitem presumir que processos internos desse
tipo, conducentes à morte, ocorrem também nos protistas. Mas, mesmo que estes
últimos se mostrassem imortais no sentido weismanniano, a assertiva de Weismann
de que a morte é uma aquisição tardia, se aplicaria apenas a seus fenômenos manifestos
e não tornaria impossível a pressuposição de processos a ela tendentes.
Assim, não se realizou nossa
esperança de que a biologia contradissesse redondamente o reconhecimento dos
instintos de morte. Estamos livres para continuar a nos preocupar com sua
possibilidade, se tivermos outras razões para assim proceder. A notável
semelhança entre a distinção weismanniana de soma e plasma germinal e nossa
separação dos instintos de morte dos instintos de vida persiste e mantém a sua
significância.
Podemos deter-nos por um momento
sobre essa visão preeminentemente dualística da vida instintual. De acordo com
a teoria de E. Hering, dois tipos de processos estão constantemente em ação na
substância viva, operando em direções contrárias, uma construtiva ou
assimilatória, e a outra destrutiva ou dissimilatória. Podemos atrever-nos a
identificar nessas duas direções tomadas pelos processos vitais a atividade de
nossos dois impulsos instintuais, os instintos de vida e os instintos de morte?
Existe algo mais, de qualquer modo, a que não podemos permanecer cegos.
Inadvertidamente voltamos nosso curso para a baía da filosofia de Schopenhauer.
Para ele, a morte é o ‘verdadeiro resultado e, até esse ponto, o propósito da
vida’, ao passo que o instinto sexual é a corporificação da vontade de viver.
Façamos uma ousada tentativa de dar
outro passo à frente. Considera-se geralmente que a união de uma série de
células numa associação vital - o caráter multicelular dos organismos - se
tornou um meio de prolongar a sua vida. Uma célula ajuda a conservar a vida de
outra, e a comunidade de células pode sobreviver mesmo que as células
individuais tenham de morrer. Já aprendemos que também a conjugação, a
coalescência temporária de dois organismos unicelulares, possui feito
preservador de vida e rejuvenescedor sobre ambos. Por conseguinte, podemos
tentar aplicar a teoria da libido a que se chegou na psicanálise à relação
mútua das células. Podemos supor que os instintos de vida ou instintos sexuais
ativos em cada célula tomam as outras células como seu objeto, que parcialmente
neutralizam os instintos de morte (isto é, os processos estabelecidos por
estes) nessas células, preservando assim sua vida, ao passo que as outras
células fazem o mesmo para elas e outras ainda se sacrificam no desempenho
dessa função libidinal. As próprias células germinais se comportariam de
maneira completamente ‘narcisista’, para empregar a expressão que estamos
acostumados a utilizar na teoria das neuroses para descrever um indivíduo total
que retém sua libido em seu ego e nada desembolsa dela em catexias de objeto.
As células germinais exigem sua libido, a atividade de seus instintos de vida,
para si mesmas, como uma reserva para sua posterior e momentosa atividade
construtiva. (As células dos neoplasmas malignos que destroem o organismo,
talvez também devessem ser descritas como narcisistas nesse mesmo sentido: a
patologia está preparada para considerar seus germes como inatos e
atribuir-lhes atitudes embriônicas.) Dessa maneira, a libido de nossos
instintos sexuais coincidiria com o Eros dos poetas e dos filósofos, o qual
mantém unidas todas as coisas vivas.
Aqui se encontra, portanto, uma
oportunidade para considerar o lento desenvolvimento de nossa teoria da libido.
Em primeira instância, a análise das neuroses de transferência forçou à nossa
observação a oposição entre os ‘instintos sexuais’, que se dirigem para um
objeto, e certos outros instintos, com os quais nos achamos insuficientemente
familiarizados e que descrevemos provisoriamente como ‘instintos do ego’. Um
lugar de proa entre estes foi necessariamente concedido aos instintos que
servem à autoconservação do indivíduo. Foi impossível dizer que outras
distinções deveriam ser traçadas entre eles. Nenhum conhecimento seria mais
valioso como base para uma ciência verdadeiramente psicológica do que uma
compreensão aproximada das características comuns e dos possíveis aspectos
distintivos dos instintos, mas em nenhuma região da psicologia tateamos mais no
escuro. Cada um supôs a existência de tantos instintos ou ‘instintos básicos’ quantos
quis e fez malabarismos com eles, tal como os antigos filósofos naturalistas
gregos faziam com seus quatro elementos: a terra, o ar, o fogo e a água. A
psicanálise, que não podia deixar de fazer alguma suposição sobre os
instintos, ateve-se primeiramente à popular divisão de instintos tipificada na
expressão ‘fome e amor’. Pelo menos, nada havia de arbitrário nisso e, com sua
ajuda, a análise das psiconeuroses foi levada à frente até uma boa distância. O
conceito de ‘sexualidade’ e, ao mesmo tempo, de instinto sexual, teve, é
verdade, de ser ampliado de modo a abranger muitas coisas que não podiam ser
classificadas sob a função reprodutora, e isso provocou não pouco alarido num
mundo austero, respeitável, ou simplesmente hipócrita.
O passo seguinte foi dado quando a
psicanálise sondou de mais perto o caminho no sentido do ego psicológico, que
primeiramente fora conhecido apenas como órgão repressivo e censor, capaz de
erguer estruturas protetoras e formações reativas. Há muito tempo, espíritos
críticos e de visão ampla já haviam, é verdade, feito objeção ao fato de o
conceito de libido restringir-se à energia dos instintos sexuais dirigidos no
sentido de um objeto, mas fracassaram em explicar como haviam chegado a seu
melhor conhecimento, ou em derivar dele algo de que a análise pudesse fazer
uso. Avançando mais cautelosamente, a psicanálise observou a regularidade com
que a libido é retirada do objeto e dirigida para o ego (o processo de
introversão), e, pelo estudo do desenvolvimento libidinal das crianças em suas
primeiras fases, chegou à conclusão de que o ego é o verdadeiro e original
reservatório da libido, sendo apenas desse reservatório que ela se estende para
os objetos. O ego encontrou então sua posição entre os objetos sexuais e
imediatamente recebeu o lugar de proa entre eles. A libido que assim se alojara
no ego foi descrita como ‘narcisista’. Essa libido narcisista era também,
naturalmente, uma manifestação da força do instinto sexual, no sentido
analítico dessas palavras, e necessariamente tinha de ser identificada com os
instintos de autoconservação, cuja existência fora reconhecida desde o início.
Assim, a oposição original entre os instintos do ego e os instintos sexuais
mostrou-se inapropriada. Viu-se que uma parte dos instintos do ego era
libidinal e que instintos sexuais (provavelmente ao lado de outros) operavam no
ego. Não obstante, temos justificação para dizer que a antiga fórmula que
estabeleceu que as psiconeuroses se baseiam num conflito entre os instintos do
ego e os instintos sexuais não contém nada que precisemos rejeitar atualmente.
Acontece simplesmente que a distinção entre os dois tipos de instintos, que era
originalmente considerada, de certa maneira, como qualitativa deve ser
hoje diferentemente caracterizada, ou seja, como topográfica. E, em
particular, é ainda verdade que as neuroses de transferência, o tema essencial
do estudo psicanalítico, são o resultado de um conflito entre o ego e a catexia
libidinal dos objetos.
Mas ainda nos é mais necessário
enfatizar o caráter libidinal dos instintos de autoconservação, agora que nos
estamos aventurando ao novo passo de reconhecer o instinto sexual como Eros, o
conservador de todas as coisas, e de derivar a libido narcisista do ego dos
estoques de libido por meio da qual as células do soma estão ligadas umas às
outras. Mas agora, subitamente, defrontamo-nos com outra questão. Se os
instintos de autoconservação são também de natureza libidinal, talvez não
existam quaisquer outros instintos, a não ser os libidinais? De qualquer modo,
não existem outros visíveis. Nesse caso, porém, seremos, no fim das contas,
levados a concordar com os críticos que desconfiaram desde o início que a
psicanálise explica tudo pela sexualidade, ou com inovadores como Jung,
que, fazendo um juízo apressado, utilizaram a palavra ‘libido’ para significar
força instintual em geral. Não deve isso ser assim?
De modo algum era nossa intenção produzir
tal resultado. Nosso debate teve como ponto de partida uma distinção nítida
entre os instintos do ego, que equiparamos aos instintos de morte, e os
instintos sexuais, que equiparamos aos instintos de vida. (Achávamo-nos
preparados, em determinada etapa [ver em [1]], para incluir os chamados
instintos de autoconservação do ego entre os instintos de morte, mas
subseqüentemente [ver em [1]] nos corrigimos sobre esse ponto e o retiramos.)
Nossas concepções, desde o início, foram dualistas e são hoje ainda mais
definidamente dualistas do que antes, agora que descrevemos a oposição como se
dando, não entre instintos do ego e instintos sexuais, mas entre instintos de
vida e instintos de morte. A teoria da libido de Jung é, pelo contrário,
monista; o fato de haver ele chamado sua única força instintual de ‘libido’,
destina-se a causar confusão, mas não precisa afetar-nos sob outros aspectos.
Suspeitamos que instintos outros que não os de autoconservação funcionam no
ego, e deveria ser-nos possível apontá-los. Infelizmente, porém, a análise do
ego fez tão poucos avanços, que nos é muito difícil proceder assim. É possível,
na verdade, que os instintos libidinais do ego possam estar vinculados de
maneira peculiar a esses outros instintos do ego que ainda nos são estranhos.
Mesmo antes de dispormos de qualquer compreensão clara do narcisismo, a
psicanálise já desconfiava que os ‘instintos do ego’ tinham componentes
libidinais a eles ligados. Mas trata-se de possibilidades muito incertas, a que
nossos oponentes prestarão muito pouca atenção. Permanece a dificuldade de que
a psicanálise até aqui não nos permitiu indicar quaisquer instintos [do ego]
que não sejam os libidinais. Isso, contudo, não constitui razão para
concordarmos com a conclusão de que nenhum outro realmente existe.
Na obscuridade que reina atualmente
na teoria dos instintos, não seria avisado rejeitar qualquer idéia que prometa
lançar luz sobre ela. Partimos da grande oposição entre os instintos de vida e
de morte. Ora, o próprio amor objetal nos apresenta um segundo exemplo de
polaridade semelhante: a existente entre o amor (ou afeição) e o ódio (ou
agressividade). Se pudéssemos conseguir relacionar mutuamente essas duas
polaridades e derivar uma da outra! Desde o início identificamos a presença de
um componente sádico no instinto sexual. Como sabemos, ele pode tornar-se independente
e, sob a forma de perversão dominar toda a atividade sexual de um indivíduo.
Surge também como um instinto componente predominante numa das ‘organizações
pré-genitais’, como as denominei. Mas, como pode o instinto sádico, cujo
intuito é prejudicar o objeto, derivar de Eros, o conservador da vida? Não é
plausível imaginar que esse sadismo seja realmente um instinto de morte que,
sob a influência da libido narcisista, foi expulso do ego e, conseqüentemente,
só surgiu em relação ao objeto? Ele entra em ação a serviço da função sexual.
Durante a fase oral da organização da libido, o ato de obtenção de domínio
erótico sobre um objeto coincide com a destruição desse objeto; posteriormente,
o instinto sádico se isola, e, finalmente, na fase de primazia genital, assume,
para os fins da reprodução, a função de dominar o objeto sexual até o ponto
necessário à efetivação do ato sexual. Poder-se-ia verdadeiramente dizer que o
sadismo que for expulso do ego apontou o caminho para os componentes libidinais
do instinto sexual e que estes o seguiram para o objeto. Onde quer que o
sadismo original não tenha sofrido mitigação ou mistura, encontramos a
ambivalência familiar de amor e ódio na vida erótica.
Se uma pressuposição assim é
permissível, atendemos então a exigência de que produzíssemos um exemplo de
instinto de morte, embora se trate, na verdade, de um instinto deslocado. Mas
essa maneira de considerar as coisas está muito longe de ser fácil de captar e
cria uma impressão positivamente mística. Sua aparência é suspeita, como se
estivéssemos tentando achar um modo de sair a qualquer preço de uma situação
embaraçosa. Podemos recordar, no entanto, que não existe nada de novo numa
suposição desse tipo. Já apresentamos outra, em ocasião anterior, antes que se
falasse em qualquer situação embaraçosa. As observações clínicas nos
conduziram, naquela ocasião, à concepção de que o masoquismo, o instinto
componente complementar ao sadismo, deve ser encarado como um sadismo que se
voltou para o próprio ego do sujeito. Mas, em princípio, não existe diferença
entre um instinto voltar-se do objeto para o ego ou do ego para um objeto, que
é o novo ponto que se acha em discussão atualmente. O masoquismo, a volta do
instinto para o próprio ego do sujeito, constituiria, nesse caso, um retorno a
uma fase anterior da história do instinto, uma regressão. A descrição
anteriormente fornecida do masoquismo exige uma emenda por ter sido ampla
demais sob um aspecto: pode haver um masoquismo primário, possibilidade
que naquela época contestei.
Retornemos, porém, aos instintos
sexuais autoconservadores. As experiências com os protistas já demonstraram que
a conjugação, isto é, a coalescência de dois indivíduos que se separam logo
após sem que qualquer divisão celular subseqüente ocorra, tem efeito
fortalecedor e rejuvenescedor sobre ambos. Nas gerações posteriores, não
mostram sinais de degeneração e parecem aptos a opor resistência mais
prolongada aos efeitos prejudiciais de seu próprio metabolismo. Essa observação
isolada pode, penso eu, ser tomada como típica do efeito produzido também pela
união sexual. Mas, como é que a coalescência de duas células apenas
ligeiramente diferentes pode ocasionar essa renovação da vida? O experimento
que substitui a conjugação dos protozoários pela aplicação de estímulos
químicos ou mesmo mecânicos (cf. Lipschütz, 1914), permite-nos dar o que é,
indubitavelmente, uma resposta conclusiva a essa pergunta. O resultado é
ocasionado pelo influxo de novas quantidades de estímulo. Isso condiz bem com a
hipótese de que os processos vitais do indivíduo levam, por razões internas, a
uma abolição das tensões químicas, isto é, à morte, ao passo que a união com a
substância viva de um indivíduo diferente aumenta essas tensões, introduzindo o
que pode ser descrito como novas ‘diferenças vitais’, que devem então ser
vividas. Com referência a essa dessemelhança, naturalmente tem de haver um ou
mais pontos ótimos. A tendência dominante da vida mental e, talvez, da vida
nervosa em geral, é o esforço para reduzir, para manter constante ou para
remover a tensão interna devida aos estímulos (o ‘princípio do Nirvana’, para
tomar de empréstimo uma expressão de Barbara Low [1920, 73]), tendência que
encontra expressão no princípio de prazer, e o reconhecimento desse fato
constitui uma de nossas mais fortes razões para acreditar na existência dos
instintos de morte.
Contudo, ainda sentimos nossa linha
de pensamento apreciavelmente entravada pelo fato de não podermos atribuir ao
instinto sexual a característica de uma compulsão à repetição que primeiramente
nos colocou na trilha dos instintos de morte. A esfera dos processos de
desenvolvimento embrionário é, sem dúvida alguma, extremamente rica em tais
fenômenos de repetição; as duas células germinais que estão envolvidas na
reprodução sexual, e a história de sua vida são apenas repetições dos começos
da vida orgânica. Mas a essência do processo a que a vida sexual se dirige é a
coalescência de dois corpos celulares. Só isso é que assegura a imortalidade da
substância viva nos organismos superiores.
Em outras palavras, precisamos de
mais informações sobre a origem da reprodução sexual e dos instintos sexuais em
geral. Trata-se de problema capaz de atemorizar um leigo, e que os próprios
especialistas ainda não foram capazes de resolver. Assim, forneceremos apenas o
mais breve resumo do que parece pertinente à nossa linha de pensamento, entre
as minhas assertivas e concepções discordantes.
Uma dessas concepções despoja o
problema da reprodução de sua fascinação misteriosa, representando-o como manifestação
parcial do crescimento. (Cf. a multiplicação por fissão, brotação e
gemiparidade). A origem da reprodução por células germinais sexualmente
diferenciadas pode ser representada segundo sóbrias linhas darwinianas,
imaginando-se que a vantagem da anfimixia, a que se chegou em determinada
ocasião pela conjugação fortuita de dois protistas, foi retida e posteriormente
explorada para desenvolvimento ulterior. Segundo essa concepção, o ‘sexo’ não
seria nada de muito antigo e os instintos extraordinariamente violentos, cujo
objetivo é ocasionar a união sexual, estariam repetindo algo que outrora
ocorrera por acaso e desde então se estabelecera, por ser vantajoso.
Surge aqui a questão, como no caso
da morte [ver em [1] e [2]], de saber se estamos certos em atribuir aos
protistas só essas características que realmente apresentam, ou se será correto
supor que forças e processos que se tornam visíveis apenas nos organismos
superiores, se originaram pela primeira vez naqueles organismos. A concepção da
sexualidade que acabamos de mencionar é de pouca ajuda para nossos fins. Contra
ela pode ser levantada a objeção de postular a existência de instintos de vida
já a funcionar nos organismos mais simples, porque de outra maneira a
conjugação, que trabalha contra o curso da vida e torna a tarefa de deixar de
viver mais difícil, não teria sido mantida e elaborada, mas, ao contrário,
seria evitada. Se, portanto, não quisermos abandonar a hipótese dos instintos
de morte, temos de supor que estão associados, desde o início, com os instintos
de vida. Deve-se, porém, admitir que, nesse caso, estaremos trabalhando com uma
equação de duas quantidades desconhecidas.
À parte isso, a ciência tem tão
pouco a nos dizer sobre a origem da sexualidade, que podemos comparar o problema
a uma escuridão em que nem mesmo o raio de luz de uma hipótese penetrou. Em
outra região, inteiramente diferente, é verdade, defrontamo-nos realmente com
tal hipótese, mas é de tipo tão fantástico, mais mito do que explicação
científica, que não me atreveria a apresentá-la aqui se ela não atendesse
precisamente àquela condição cujo preenchimento desejamos, porque faz remontar
a origem de um instinto a uma necessidade de restaurar um estado anterior de
coisas.
O que tenho no espírito é,
naturalmente, a teoria que Platão colocou na boca de Aristófanes no Symposium
e que trata não apenas da origem do instinto sexual, mas também da
mais importante de suas variações em relação ao objeto. ‘A natureza humana
original não era semelhante à atual, mas diferente. Em primeiro lugar, os sexos
eram originalmente em número de três, e não dois, como são agora; havia o
homem, a mulher, e a união dos dois (…)’ Tudo nesses homens primevos era duplo:
tinham quatro mãos e quatro pés, dois rostos, duas partes pudendas, e assim por
diante. Finalmente, Zeus decidiu cortá-los em dois, ‘como uma sorva que é
dividida em duas metades para fazer conserva’. Depois de feita a divisão, ‘as
duas partes do homem, cada uma desejando sua outra metade, reuniram-se e
lançaram os braços uma em torno da outra, ansiosas por fundir-se.’
Seguiremos
a sugestão que nos foi oferecida pelo poeta-filósofo e aventurar-nos-emos pela
hipótese de que a substância viva, por ocasião de sua animação, foi dividida em
pequenas partículas, que desde então se esforçaram por reunir-se através dos
instintos sexuais? De que esses instintos, nos quais a afinidade química da
matéria inanimada persistiu, gradualmente conseguiram, à medida que evoluíam
pelo reino dos protistas, sobrepujar as dificuldades colocadas no caminho desse
esforço por um ambiente carregado de estímulos perigosos, estímulos que os
compeliram a formar uma camada cortical protetora? De que esses fragmentos
estilhaçados de substância viva atingiram dessa maneira uma condição
multicelular e finalmente transferiram o instinto de reunião, sob a forma mais
altamente concentrada, para as células germinais? - Mas aqui, acho eu, chegou o
momento de interromper-nos.
Não, contudo, sem o acréscimo de
algumas palavras de reflexão crítica. Pode-se perguntar se, e até onde, eu
próprio me acho convencido da verdade das hipóteses que foram formuladas nestas
páginas. Minha resposta seria que eu próprio não me acho convencido e que não
procuro persuadir outras pessoas a nelas acreditar, ou, mais precisamente, que
não sei até onde nelas acredito. Não há razão, segundo me parece, para que o
fator emocional da convicção tenha, de algum modo, de entrar nessa questão. É
certamente possível que nos lancemos por uma linha de pensamento e que a
sigamos aonde quer que ela leve, por simples curiosidade científica, ou, se o
leitor preferir, como um advocatus diaboli, que não se acha, por essa
razão, vendido ao demônio. Não discuto o fato de que o terceiro passo pela
teoria dos instintos, por mim dado aqui, não pode reivindicar o mesmo grau de
certeza que os dois primeiros: a extensão do conceito de sexualidade e a
hipótese do narcisismo. Essas duas novidades foram uma tradução direta da
observação para a teoria e não se achavam mais abertas a fontes de erro do que
é inevitável em todos os casos assim. É verdade que minha afirmativa do caráter
regressivo dos instintos também se apóia em material observado, ou seja, nos
fatos da compulsão à repetição. Pode ser, contudo, que eu tenha superestimado
sua significação. E, de qualquer modo, é impossível perseguir uma idéia desse
tipo, exceto pela combinação repetida de material concreto com o que é
puramente especulativo e, assim, amplamente divergente da observação impírica.
Quanto mais freqüentemente isso é feito no decurso da construção de uma teoria,
menos fidedigno, como sabemos, deve ser o resultado final. Mas o grau de
incertezas não é atribuível. Podemos ter dado um golpe de sorte ou havermo-nos
extraviado vergonhosamente. Não penso que, num trabalho desse tipo, uma parte
grande seja desempenhada pelo que é chamado de ‘intuição’. Pelo que tenho visto
da intuição, ela me parece ser o produto de um tipo de imparcialidade
intelectual. Infelizmente, porém, as pessoas raramente são imparciais no que
concerne às coisas supremas, aos grandes problemas da ciência e da vida. Em
tais casos, cada um de nós é dirigido por preconceitos internos profundamente
enraizados, aos quais nossa especulação inadvertidamente dá vantagem. Já que
possuímos tão bons fundamentos para sermos desconfiados, nossa atitude para com
os resultados de nossas próprias deliberações não pode ser outra que a de uma
fria benevolência. Apresso-me a acrescentar, contudo, que uma autocrítica como
esta acha-se longe de vincular-nos a qualquer tolerância especial para com
opiniões discordantes. É perfeitamente legítimo rejeitar sem remorsos teorias
que são contraditadas pelos próprios primeiros passos dados na análise dos
fatos observados, enquanto nos achamos ao mesmo tempo cientes de que a validade
de nossas próprias teorias é apenas provisória.
Não precisamos sentir-nos
grandemente perturbados em ajuizar nossas especulações sobre os instintos de
vida e de morte pelo fato de tantos processos desnorteantes e obscuros nelas
ocorrerem, tal como um instinto ser expulso por outro, ou um instinto voltar-se
do ego para um objeto, e assim por diante. Isso se deve simplesmente ao fato de
sermos obrigados a trabalhar com termos científicos, isto é, com a linguagem
figurativa, peculiar à psicologia (ou, mais precisamente, à psicologia
profunda). Não poderíamos, de outra maneira, descrever os processos em questão
e, na verdade, não nos teríamos tornado cientes deles. As deficiências de nossa
posição provavelmente se desvaneceriam se nos achássemos em posição de
substituir os termos psicológicos por expressões fisiológicas ou químicas. É
verdade que estas também são apenas parte de uma linguagem figurativa, mas
trata-se de uma linguagem com que há muito tempo nos familiarizamos, sendo
também, talvez, uma linguagem mais simples.
Por outro lado, deve-se deixar
completamente claro que a incerteza de nossa especulação foi muito aumentada
pela necessidade de pedir empréstimos à ciência da biologia. A biologia é,
verdadeiramente, uma terra de possibilidades ilimitadas. Podemos esperar que
ela nos forneça as informações mais surpreendentes, e não podemos imaginar que
respostas nos dará, dentro de poucas dezenas de anos, às questões que
lhe formulamos. Poderão ser de um tipo que ponha por terra toda a nossa
estrutura artificial de hipóteses. Se assim for, poder-se-á perguntar por que
nos embrenhamos numa linha de pensamento como a presente e, em particular, por
que decidi torná-la pública. Bem, não posso negar que algumas das analogias,
correlações e vinculações que ela contém pareceram-me merecer consideração.
VII
Se procurar restaurar um estado
anterior de coisas constitui característica tão universal dos instintos, não
precisaremos surpreender-nos com que tantos processos se realizem na vida
mental independentemente do princípio de prazer. Essa característica seria
partilhada por todos os instintos componentes e, em seu caso, visariam a
retornar mais uma vez a uma fase específica do curso do desenvolvimento.
Trata-se de questões sobre as quais o princípio de prazer ainda não possui
controle, mas disso não decorre que alguma delas seja necessariamente oposta a
este, e ainda temos de solucionar o problema da relação dos processos
instintuais de repetição com a dominância do princípio de prazer.
Descobrimos que uma das mais antigas
e importantes funções do aparelho mental é sujeitar os impulsos instintuais que
com ele se chocam, substituir o processo primário que neles predomina pelo
processo secundário, e converter sua energia catéxica livremente móvel numa
catexia principalmente quiescente (tônica). Enquanto essa transformação se está
realizando, nenhuma atenção pode ser concedida ao desenvolvimento do desprazer,
mas isso não implica a suspensão do princípio de prazer. Pelo contrário, a
transformação ocorre em favor dele; a sujeição constitui o ato preparatório
que introduz e assegura a dominância do princípio de prazer.
Façamos uma distinção mais nítida,
do que até aqui fizemos, entre função e tendência. O princípio de prazer,
então, é uma tendência que opera a serviço de uma função, cuja missão é libertar
inteiramente o aparelho mental de excitações, conservar a quantidade de
excitação constante nele, ou mantê-la tão baixa quanto possível. Ainda não
podemos decidir com certeza em favor de nenhum desses enunciados, mas é claro
que a função estaria assim relacionada com o esforço mais fundamental de toda
substância viva: o retorno à quiescência do mundo inorgânico. Todo nós já
experimentamos como o maior prazer por nós atingível, o do ato sexual, acha-se
associado à extinção momentânea altamente intensificada. A sujeição de um
impulso instintual seria uma função preliminar, destinada a preparar a
excitação para sua eliminação final no prazer da descarga.
Isso levanta a questão de saber se
sentimentos de prazer e desprazer podem ser igualmente produzidos por processos
excitatórios vinculados e livres. E não parece haver qualquer dúvida de que os
processos livres ou primários dão origem a sentimentos muito mais intensos em
ambos os sentidos do que os vinculados ou secundários. Além disso, os processos
primários são os mais antigos no tempo; no começo da vida mental não existem
outros e podemos inferir que, se o princípio de prazer não tivesse sido
operante neles, jamais se poderia ter estabelecido para os posteriores.
Chegamos assim ao que, no fundo, não é uma conclusão muito simples, a saber,
que no começo da vida mental a luta pelo prazer era muito mais intensa do que
posteriormente, mas não tão irrestrita; tinha de submeter-se a freqüentes
interrupções. Em épocas posteriores, a dominância do princípio de prazer é
muitíssimo mais segura, mas ele próprio não fugiu aos processos de sujeição que
os outros instintos em geral. De qualquer modo, seja lá o que for aquilo que
causa o aparecimento de sentimentos de prazer e desprazer nos processos de
excitação, deve estar presente no processo secundário, tal como está no
primário.
Aqui poderia achar-se o ponto de
partida para novas investigações. Nossa consciência nos comunica sentimentos
provindos de dentro que não são apenas de prazer e desprazer, mas também de uma
tensão peculiar que, por sua vez, tanto pode ser agradável quanto desagradável.
Permitir-nos-á a diferença entre esses sentimentos distinguir entre processos
de energia vinculados e livres? Ou deve o sentimento de tensão ser relacionado
à magnitude absoluta, ou talvez ao nível da catexia, ao passo que a série
prazer e desprazer indica uma mudança na magnitude da catexia dentro de
determinada unidade de tempo? Outro fato notável é que os instintos de vida têm
muito mais contato com nossa percepção interna, surgindo como rompedores da paz
e constantemente produzindo tensões cujo alívio é sentido como prazer, ao passo
que os instintos de morte parecem efetuar seu trabalho discretamente. O
princípio de prazer parece, na realidade, servir aos instintos de morte. É
verdade que mantém guarda sobre os estímulos provindos de fora, que são
encarados como perigos por ambos os tipos de instintos, mas se acha mais
especialmente em guarda contra os aumentos de estimulação provindos de dentro,
que tornariam mais difícil a tarefa de viver. Isso, por sua vez, levanta uma
infinidade de outras questões, para as quais, no presente, não podemos
encontrar resposta. Temos de ser pacientes e aguardar novos métodos e ocasiões
de pesquisa. Devemos estar prontos, também, para abandonar um caminho que
estivemos seguindo por certo tempo, se parecer que ele não leva a qualquer bom
fim. Somente os crentes, que exigem que a ciência seja um substituto para o
catecismo que abandonaram, culparão um investigador por desenvolver ou mesmo
transformar suas concepções. Podemos confortar-nos também, pelos lentos avanços
de nosso conhecimento científico, com as palavras do poeta:
Was man nicht erfliegen
kann, muss man erhinken.
Die Schrift sagt, es
ist keine Sünde zu hinken.
PSICOLOGIA DE GRUPO E A ANÁLISE DO EGO (1921)
NOTA DO EDITOR INGLÊS -
MASSENPSYCHOLOGIE UND ICH-ANALYSE
(a)
EDIÇÕES ALEMÃS:
1921
Leipzig, Viena e Zurique, Internationaler Psychoanalytischer Verlag, III +140
págs.
1923
2ª ed., mesmos editores, IV + 120 págs.
1925 G.S., 6, 261-349.
1931 Theoretische Schriften,
248-337.
1940 G.W, 13, 71-161.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
Group
Psychology and the Analysis of the Ego
1922
Londres e Viena, Internacional Psycho-Analytical Press, VIII + 134 págs. (Trad.
de James Strachey.)
1940
Londres, Hogarth Press e Instituto de Psicanálise; Nova Iorque, Liveright.
(Reimpressão da anterior.)
Na primeira edição alemã alguns
parágrafos do texto foram impressos em tipo menor. Na ocasião, o tradutor
inglês foi instruído por Freud para transferir esses parágrafos para notas de
rodapé. A mesma transposição foi feita em todas as edições alemãs posteriores,
à exceção do caso mencionado na pág. 106, adiante. Freud fez algumas ligeiras
alterações e acréscimos nas edições posteriores do trabalho. A presente
tradução inglesa constitui versão consideravelmente alterada da publicada em
1922.
As cartas de Freud mostram que a
primeira ‘idéia simples’ de uma explicação da psicologia de grupo lhe ocorreu
durante a primavera de 1919. Nada resultou disso na ocasião; em fevereiro de
1920, porém, estava trabalhando no assunto e já escrevera um primeiro rascunho
em agosto do mesmo ano. Foi somente em fevereiro de 1921, contudo, que começou
a lhe dar forma final. O livro foi terminado antes do fim do março de 1921 e
publicado cerca de três ou quatro meses mais tarde.
Há pouca ligação direta entre o
presente trabalho e seu predecessor imediato, Além do Princípio de Prazer (1920g).
As seqüências de pensamento aqui seguidas por Freud derivam mais especialmente
do quarto ensaio de Totem e Tabu (1912-13), de seus artigos sobre o
narcisismo (1914c) (cujo último parágrafo aborda, de forma altamente
condensada, muitos dos pontos aqui debatidos) e de ‘Luto e Melancolia’ (1917e).
Freud também retorna a seu primeiro interesse pelo hipnotismo e pela sugestão,
que datava de seus estudos com Charcot em 1885-6.
Tal como o título indica, o trabalho
é importante em dois sentidos diferentes. Por um lado, explica a psicologia dos
grupos com base em alterações na psicologia da mente individual, e, por outro,
leva um passo à frente a investigação freudiana da estrutura anatômica da
mente, já prenunciada em Além do Princípio de Prazer (1920g) e a
ser completamente elaborada em O Ego e o Id (1923b).
Extratos da primeira (1922) tradução
deste trabalho foram incluídos na General Selection from the Works of
Sigmund Freud, de Rickman (1937, 195-244).
PSICOLOGIA DE GRUPO E A ANÁLISE
DO EGO
I - INTRODUÇÃO
O contraste entre a psicologia
individual e a psicologia social ou de grupo, que à primeira vista pode parecer
pleno de significação, perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais
de perto. É verdade que a psicologia individual relaciona-se com o homem tomado
individualmente e explora os caminhos pelos quais ele busca encontrar
satisfação para seus impulsos instintuais; contudo, apenas raramente e sob
certas condições excepcionais, a psicologia individual se acha em posição de
desprezar as relações desse indivíduo com os outros. Algo mais está
invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um
objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia
individual, nesse sentido ampliado mas inteiramente justificável das palavras,
é, ao mesmo tempo, também psicologia social.
As relações de um indivíduo com os
pais, com os irmãos e irmãs, com o objeto de seu amor e com seu médico, na
realidade, todas as relações que até o presente constituíram o principal tema
da pesquisa psicanalítica, podem reivindicar serem consideradas como fenômenos
sociais, e, com respeito a isso, podem ser postas em contraste com certos
outros processos, por nós descritos como ‘narcisistas’, nos quais a satisfação
dos instintos é parcial ou totalmente retirada da influência de outras pessoas.
O contraste entre atos mentais sociais e narcisistas - Bleuler [1912] talvez os
chamasse de ‘autísticos’ - incide assim inteiramente dentro do domínio da
psicologia individual, não sendo adequado para diferençá-la de uma psicologia
social ou de grupo.
O indivíduo, nas relações que já
mencionei - com os pais, com os irmãos e irmãs, com a pessoa amada, com os
amigos e com o médico -, cai sob a influência de apenas uma só pessoa ou de um
número bastante reduzido de pessoas, cada uma das quais se torna enormemente
importante para ele. Ora, quando se fala de psicologia social ou de grupo,
costuma-se deixar essas relações de lado e isolar como tema de indagação o
influenciamento de um indivíduo por um grande número de pessoas
simultaneamente, pessoas com quem se acha ligado por algo, embora, sob outros
aspectos e em muitos respeitos, possam ser-lhe estranhas. A psicologia de grupo
interessa-se assim pelo indivíduo como membro de uma raça, de uma nação, de uma
casta, de uma profissão, de uma instituição, ou como parte componente de uma
multidão de pessoas que se organizaram em grupo, numa ocasião determinada, para
um intuito definido. Uma vez a continuidade natural tenha sido interrompida
desse modo, se uma ruptura é assim efetuada entre coisas que são por natureza
interligadas, é fácil encarar os fenômenos surgidos sob essas condições
especiais como expressões de um instinto especial que já não é redutível - o
instinto social (herd instinct, group mind), que não vem à luz em
nenhuma outra situação. Contudo, talvez possamos atrever-nos a objetar que
parece difícil atribuir ao fator numérico uma significação tão grande, que o
torne capaz, por si próprio, de despertar em nossa vida mental um novo
instinto, que de outra maneira não seria colocado em jogo. Nossa expectativa
dirige-se assim para duas outras possibilidades: que o instinto social talvez
não seja um instinto primitivo, insuscetível de dissociação, e que seja
possível descobrir os primórdios de sua evolução num círculo mais estreito, tal
como o da família.
Embora a psicologia de grupo ainda
se encontre em sua infância, ela abrange imenso número de temas independentes e
oferece aos investigadores incontáveis problemas que até o momento nem mesmo
foram corretamente distinguidos uns dos outros. A mera classificação das
diferentes formas de formação de grupo e a descrição dos fenômenos mentais por
elas produzidos exigem grande dispêndio de observação e exposição, que já deu
origem a uma copiosa literatura. Qualquer pessoa que compare as exíguas
dimensões deste pequeno livro com a ampla extensão da psicologia de grupo,
poderá perceber em seguida que apenas alguns pontos, escolhidos dentre a
totalidade do material, serão tratados aqui. E, realmente, é em apenas algumas
questões que a psicologia profunda da psicanálise está especialmente
interessada.
II - A DESCRIÇÃO DE LE BON DA MENTE GRUPAL
Em vez de partir de uma definição,
parece mais proveitoso começar com alguma indicação do campo de ação dos
fenômenos em exame e selecionar dentre eles alguns fatos especialmente notáveis
e característicos, aos quais nossa indagação possa ligar-se. Podemos alcançar
ambos os objetivos por meio de citações da obra merecidamente famosa de Le Bon,
Psychologie des foules [1855].
Esclareçamos mais uma vez o assunto.
Se uma psicologia - interessada em explorar as predisposições, os impulsos
instintuais, os motivos e os fins de um indivíduo até as suas ações e suas
relações com aqueles que lhe são mais próximos - houvesse atingido
completamente seu objetivo e esclarecido a totalidade dessas questões, com suas
interconexões, defrontar-se-ia então subitamente com uma nova tarefa, que
perante ela se estenderia incompleta. Seria obrigada a explicar o fato surpreendente
de que, sob certa condição, esse indivíduo, a quem havia chegado a compreender,
pensou, sentiu e agiu de maneira inteiramente diferente daquela que seria
esperada. Essa condição é a sua inclusão numa reunião de pessoas que adquiriu a
característica de um ‘grupo psicológico’. O que é, então, um ‘grupo’? Como
adquire ele a capacidade de exercer influência tão decisiva sobre a vida mental
do indivíduo? E qual é a natureza da alteração mental que ele força no
indivíduo?
Constituiu tarefa de uma psicologia
de grupo teórica responder a essas três perguntas. A melhor maneira de
abordá-las é, evidentemente, começar pela terceira. É a observação das
alterações nas reações do indivíduo que fornece à psicologia de grupo seu
material, de uma vez que toda tentativa de explicação deve ser precedida pela
descrição da coisa que tem de ser explicada.
Deixarei que agora Le Bon fale por
si próprio. Diz ele: ‘A peculiaridade mais notável apresentada por um grupo
psicológico é a seguinte: sejam quem forem os indivíduos que o compõem, por
semelhantes ou dessemelhantes que sejam seu modo de vida, suas ocupações, seu
caráter ou sua inteligência, o fato de haverem sido transformados num grupo
coloca-os na posse de uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar e
agir de maneira muito diferente daquela pela qual cada membro dele, tomado
individualmente, sentiria, pensaria e agiria, caso se encontrasse em estado de
isolamento. Há certas idéias e sentimentos que não surgem ou que não se
transformam em atos, exceto no caso de indivíduos que formam um grupo. O grupo
psicológico é um ser provisório, formado por elementos heterogêneos que por um
momento se combinam, exatamente como as células que constituem um corpo vivo,
formam, por sua reunião, um novo ser que apresenta características muito
diferentes daquelas possuídas por cada uma das células isoladamente.’ (Trad.,
1920, 29.)
Tomaremos a liberdade de interromper
a exposição de Le Bon com comentários nossos; por conseguinte, inseriremos uma
observação nesse ponto. Se os indivíduos do grupo se combinam numa unidade,
deve haver certamente algo para uni-los, e esse elo poderia ser precisamente a
coisa que é característica de um grupo. Mas Le Bon não responde a essa questão;
prossegue considerando a alteração que o indivíduo experimenta quando num
grupo, e a descreve em termos que se harmonizam bem com os postulados
fundamentais de nossa própria psicologia profunda.
‘É fácil provar quanto o indivíduo
que faz parte de um grupo difere do indivíduo isolado; mas não é tão fácil
descobrir as causas dessa diferença.’
‘Para obter, de qualquer modo, um
vislumbre delas, é necessário em primeiro lugar trazer à mente a verdade
estabelecida pela psicologia moderna, a de que os fenômenos inconscientes
desempenham papel inteiramente preponderante não apenas na vida orgânica, mas
também nas operações da inteligência. A vida consciente da mente é de pequena
importância, em comparação com sua vida inconsciente. O analista mais sutil, o
observador mais agudo dificilmente obtêm êxito em descobrir mais do que um
número muito pequeno dos motivos conscientes que determinam sua conduta. Nossos
atos conscientes são o produto de um substrato inconsciente criado na mente,
principalmente por influências hereditárias. Esse substrato consiste nas inumeráveis
características comuns, transmitidas de geração a geração, que constituem o
gênio de uma raça. Por detrás das causas confessadas de nossos atos jazem
indubitavelmente causas secretas que não confessamos, mas por detrás dessas
causas secretas existem muitas outras, mais secretas ainda, ignoradas por nós
próprios. A maior parte de nossas ações cotidianas são resultados de motivos
ocultos que fogem à nossa observação.’ (Ibid., 30.)
Le Bon pensa que os dotes
particulares dos indivíduos se apagam num grupo e que, dessa maneira, sua
distintividade se desvanece. O inconsciente racial emerge; o que é heterogêneo
submerge no que é homogêneo. Como diríamos nós, a superestrutura mental, cujo
desenvolvimento nos indivíduos apresenta tais dessemelhanças, é removida, e as
funções inconscientes, que são semelhantes em todos, ficam expostas à vista.
Assim, os indivíduos de um grupo
viriam a mostrar um caráter médio. Mas Le Bon acredita que eles também
apresentam novas características que não possuíam anteriormente, e busca a
razão disso em três fatores diferentes.
‘O primeiro é que o indivíduo que
faz parte de um grupo adquire, unicamente por considerações numéricas, um
sentimento de poder invencível que lhe permite render-se a instintos que,
estivesse ele sozinho, teria compulsoriamente mantido sob coerção. Ficará ele
ainda menos disposto a controlar-se pela consideração de que, sendo um grupo
anônimo e, por conseqüência, irresponsável, o sentimento de responsabilidade
que sempre controla os indivíduos, desaparece inteiramente.’ (Ibid., 33.)
Segundo nosso ponto de vista, não
precisamos atribuir tanta importância ao aparecimento de características novas.
Para nós, seria bastante dizer que, num grupo, o indivíduo é colocado sob
condições que lhe permitem arrojar de si as repressões de seus impulsos
instintuais inconscientes. As características aparentemente novas que então
apresenta são na realidade as manifestações desse inconsciente, no qual tudo o
que é mau na mente humana está contido como uma predisposição. Não há
dificuldade alguma em compreender o desaparecimento da consciência ou do senso
de responsabilidade, nessas circunstâncias. Há muito tempo é asserção nossa que
a ‘ansiedade social’ constitui a essência do que é chamado de consciência.
‘A segunda causa, que é o contágio,
também intervém para determinar nos grupos a manifestação de suas
características especiais e, ao mesmo tempo, a tendência que devem tomar. O
contágio é um fenômeno cuja presença é fácil estabelecer e difícil explicar.
Deve ser classificado entre aqueles fenômenos de ordem hipnótica que logo
estudaremos. Num grupo, todo sentimento e todo ato são contagiosos, e
contagiosos em tal grau, que o indivíduo prontamente sacrifica seu interesse
pessoal ao interesse coletivo. Trata-se de aptidão bastante contrária à sua
natureza e da qual um homem dificilmente é capaz, exceto quando faz parte de um
grupo.’ (Ibid., 33.)
Mais tarde, basearemos uma
importante conjectura nessa última afirmação.
‘Uma terceira causa, de longe a mais
importante, determina nos indivíduos de um grupo características especiais que
são às vezes inteiramente contrárias às apresentadas pelo indivíduo isolado.
Aludo àquela sugestionabilidade, da qual, além disso, o contágio acima
mencionado não é mais do que um efeito.’
‘Para compreender esse fenômeno, é
necessário ter em mente certas recentes descobertas psicológicas. Sabemos hoje
que, por diversos processos, um indivíduo pode ser colocado numa condição em
que, havendo perdido inteiramente sua personalidade consciente, obedece a todas
as sugestões do operador que o privou dela e comete atos em completa
contradição com seu caráter e hábitos. As investigações mais cuidadosas parecem
demonstrar que um indivíduo imerso por certo lapso de tempo num grupo em ação,
cedo se descobre - seja em conseqüência da influência magnética emanada do
grupo, seja devido a alguma outra causa por nós ignorada - num estado especial,
que se assemelha muito ao estado de ‘fascinação’ em que o indivíduo hipnotizado
se encontra nas mãos do hipnotizador. (…) A personalidade consciente
desvaneceu-se inteiramente; a vontade e o discernimento se perderam. Todos os
sentimentos e o pensamento inclinam-se na direção determinada pelo
hipnotizador.’
‘Esse também é, aproximadamente, o
estado do indivíduo que faz parte de um grupo psicológico. Ele já não se acha
consciente de seus atos. Em seu caso, como no do sujeito hipnotizado, ao mesmo
tempo que certas faculdades são destruídas, outras podem ser conduzidas a um
alto grau de exaltação. Sob a influência de uma sugestão, empreenderá a
realização de certos atos com irresistível impetuosidade. Essa impetuosidade é
ainda mais irresistível no caso dos grupos do que no do sujeito hipnotizado,
porque, sendo a sugestão a mesma para todos os indivíduos do grupo, ela ganha
força pela reciprocidade.’ (Ibid., 34.)
‘Vemos então que o desaparecimento
da personalidade consciente, a predominância da personalidade inconsciente, a
modificação por meio da sugestão e do contágio de sentimentos e idéias numa
direção idêntica, a tendência a transformar imediatamente as idéias sugeridas
em atos, estas, vemos, são as características principais do indivíduo que faz
parte de um grupo. Ele não é mais ele mesmo, mas transformou-se num autômato
que deixou de ser dirigido pela sua vontade.’ (Ibid., 35.)
Citei essa passagem tão
integralmente a fim de tornar inteiramente claro que Le Bon explica a condição
de um indivíduo num grupo como sendo realmente hipnótica, e não faz
simplesmente uma comparação entre os dois estados. Não temos intenção de levantar
qualquer objeção a esse argumento, mas queremos apenas dar ênfase ao fato de
que as duas últimas causas pelas quais um indivíduo se modifica num grupo (o
contágio e a alta sugestionabilidade), não se encontram evidentemente no mesmo
plano, de modo que o contágio parece, na realidade, ser uma manifestação da
sugestionabilidade. Além disso, os efeitos dos dois fatores não parecem ser
nitidamente diferenciados no texto das observações de Le Bon. Talvez possamos
interpretar melhor seu enunciado se vincularmos o contágio aos efeitos dos
membros do grupo, tomados individualmente, uns sobre os outros, enquanto
apontamos outra fonte para essas manifestações de sugestões no grupo, as quais
ele considera semelhantes aos fenômenos da influência hipnótica. Mas que fonte?
Não podemos deixar de ficar impressionados por uma sensação de lacuna quando
observarmos que um dos principais elementos da comparação, a saber, a pessoa
que deve substituir o hipnotizador no caso do grupo, não é mencionada na
exposição de Le Bon. Entretanto, ele faz distinção entre essa influência da
‘fascinação’ que permanece mergulhada na obscuridade e o efeito contagioso que
os indivíduos exercem uns sobre os outros e através do qual a sugestão original
é fortalecida.
Temos aqui outra importante comparação
para ajudar-nos a entender o indivíduo num grupo: ‘Além disso, pelo simples
fato de fazer parte de um grupo organizado, um homem desce vários degraus na
escada da civilização. Isolado, pode ser um indivíduo culto; numa multidão, é
um bárbaro, ou seja, uma criatura que age pelo instinto. Possui a
espontaneidade, a violência, a ferocidade e também o entusiasmo e o heroísmo
dos seres primitivos.’ (Ibid., 36.) Le Bon demora-se então especialmente na
redução da capacidade intelectual que um indivíduo experimenta quando se funde
num grupo.
Abandonemos agora o indivíduo e
voltemo-nos para a mente grupal, tal como delineada por Le Bon. Ela não
apresenta um único aspecto que um psicanalista encontre qualquer dificuldade em
situar ou em fazer derivar de sua fonte. O próprio Le Bon nos mostra o caminho,
apontando para sua semelhança com a vida mental dos povos primitivos e das
crianças (ibid., 40).
Um grupo é impulsivo, mutável e
irritável. É levado quase que exclusivamente por seu inconsciente. Os impulsos
a que um grupo obedece, podem, de acordo com as circunstâncias, ser generosos
ou cruéis, heróicos ou covardes, mas são sempre tão imperiosos, que nenhum
interesse pessoal, nem mesmo o da autopreservação, pode fazer-se sentir (ibid.,
41). Nada dele é premeditado. Embora possa desejar coisas apaixonadamente, isso
nunca se dá por muito tempo, porque é incapaz de perseverança. Não pode tolerar
qualquer demora entre seu desejo e a realização do que deseja. Tem um
sentimento de onipotência: para o indivíduo num grupo a noção de
impossibilidade desaparece.
Um grupo é extremamente crédulo e
aberto à influência; não possui faculdade crítica e o improvável não existe
para ele. Pensa por imagens, que se chamam umas às outras por associação (tal
como surgem nos indivíduos em estados de imaginação livre), e cuja concordância
com a realidade jamais é conferida por qualquer órgão razoável. Os sentimentos
de um grupo são sempre muito simples e muito exagerados, de maneira que não
conhece a dúvida nem a incerteza.
Ele vai diretamente a extremos; se
uma suspeita é expressa, ela instantaneamente se modifica numa certeza
incontrovertível; um traço de antipatia se transforma em ódio furioso (ibid.,
56).
Inclinado como é a todos os
extremos, um grupo só pode ser excitado por um estímulo excessivo. Quem quer
que deseje produzir efeito sobre ele, não necessita de nenhuma ordem lógica em
seus argumentos; deve pintar nas cores mais fortes, deve exagerar e repetir a mesma
coisa diversas vezes.
Desde que não se acha em dúvida
quanto ao que constitui verdade ou erro e, além disso, tem consciência de sua
própria grande força, um grupo é tão intolerante quanto obediente à autoridade.
Respeita a força e só ligeiramente pode ser influenciado pela bondade, que
encara simplesmente como uma forma de fraqueza. O que exige de seus heróis, é
força ou mesmo violência. Quer ser dirigido, oprimido e temer seus senhores.
Fundamentalmente, é inteiramente conservador e tem profunda aversão por todas
as inovações e progressos, e um respeito ilimitado pela tradição (ibid., 62).
A fim de fazer um juízo correto dos
princípios éticos do grupo, há que levar em consideração o fato de que, quando
indivíduos se reúnem num grupo, todas as suas inibições individuais caem e
todos os instintos cruéis, brutais e destrutivos, que neles jaziam adormecidos,
como relíquias de uma época primitiva, são despertados para encontrar
gratificação livre. Mas, sob a influência da sugestão, os grupos também são capazes
de elevadas realizações sob forma de abnegação, desprendimento e devoção a um
ideal. Ao passo que com os indivíduos isolados o interesse pessoal é quase a
única força motivadora, nos grupos ele muito raramente é proeminente. É
possível afirmar que um indivíduo tenha seus padrões morais elevados por um
grupo (ibid., 65). Ao passo que a capacidade intelectual de um grupo está
sempre muito abaixo da de um indivíduo, sua conduta ética pode tanto elevar-se
muito acima da conduta deste último, quanto cair muito abaixo dela.
Alguns outros aspectos da descrição
de Le Bon mostram, a uma clara luz, quão justificada é a identificação da mente
grupal com a mente dos povos primitivos. Nos grupos, as idéias mais
contraditórias podem existir lado a lado e tolerar-se mutuamente, sem que
nenhum conflito surja da contradição lógica entre elas. Esse é também o caso da
vida mental inconsciente dos indivíduos, das crianças e dos neuróticos, como a
psicanálise há muito tempo indicou.
Um grupo, ainda, está sujeito ao
poder verdadeiramente mágico das palavras, que podem evocar as mais formidáveis
tempestades na mente grupal, sendo também capazes de apaziguá-las (ibid., 117).
‘A razão e os argumentos são incapazes de combater certas palavras e fórmulas.
Elas são proferidas com solenidade na presença dos grupos e, assim que foram
pronunciadas, uma expressão de respeito se torna visível em todos os semblantes
e todas as cabeças se curvam. Por muitos, são consideradas como forças naturais
ou como poderes sobrenaturais.’ (Ibid., 117.) A esse respeito, basta recordar
os tabus sobre nomes entre os povos primitivos e os poderes mágicos que
atribuem aos nomes e às palavras.
E, finalmente, os grupos nunca
ansiaram pela verdade. Exigem ilusões e não podem passar sem elas.
Constantemente dão ao que é irreal precedência sobre o real; são quase tão
intensamente influenciados pelo que é falso quanto pelo que é verdadeiro.
Possuem tendência evidente a não distinguir entre as duas coisas (ibid., 77).
Já indicamos que essa predominância
da vida da fantasia e da ilusão nascida de um desejo irrealizado é o fator
dominante na psicologia das neuroses. Descobrimos que aquilo por que os
neuróticos se guiam não é a realidade objetiva comum, mas a realidade
psicológica. Um sintoma histérico baseia-se na fantasia, em vez de na repetição
da experiência real, e o sentimento de culpa na neurose obsessiva fundamenta-se
no fato de uma intenção má que nunca foi executada. Na verdade, tal como nos
sonhos e na hipnose, nas operações mentais de um grupo a função de verificação
da realidade das coisas cai para o segundo plano, em comparação com a força dos
impulsos plenos de desejo com sua catexia afetiva.
O que Le Bon diz sobre o tema dos
líderes de grupos é menos exaustivo e não nos permite elaborar tão claramente um
princípio subjacente. Pensa ele que, assim que seres vivos se reúnem em certo
número, sejam eles um rebanho de animais ou um conjunto de seres humanos, se
colocam instintivamente sob a influência de um chefe (ibid., 134). Um grupo é
um rebanho obediente, que nunca poderia viver sem um senhor. Possui tal anseio
de obediência, que se submete instintivamente a qualquer um que se indique a si
próprio como chefe.
Embora, dessa maneira, as
necessidades de um grupo o conduzam até meio caminho ao encontro de um líder,
este, contudo, deve ajustar-se àquele em suas qualidades pessoais. Deve ser
fascinado por uma intensa fé (numa idéia), a fim de despertar a fé do grupo;
tem de possuir vontade forte e imponente, que o grupo, que não tem vontade
própria, possa dele aceitar. Le Bon discute então os diferentes tipos de
líderes e os meios pelos quais atuam sobre o grupo. Em geral, acredita que os
líderes se fazem notados por meio das idéias em que eles próprios acreditam
fanaticamente.
Além disso, atribui tanto às idéias
quanto aos líderes um poder misterioso e irresistível, a que chama de
‘prestígio’. O prestígio é uma espécie de domínio exercido sobre nós por um
indivíduo, um trabalho ou uma idéia. Paralisa inteiramente nossas faculdades
críticas e enche-nos de admiração e respeito. Parece que desperta um sentimento
como o da ‘fascinação’ na hipnose (ibid., 148). Le Bon faz distinção entre o
prestígio adquirido ou artificial e o prestígio pessoal. O primeiro se liga às
pessoas em virtude de seu nome, fortuna e reputação, e a opiniões, obras de
arte etc. em virtude da tradição. Desde que em todos os casos ele remonta ao
passado, não nos pode ser de grande auxílio para a compreensão dessa influência
enigmática. O prestígio pessoal liga-se a umas poucas pessoas, que se tornam
líderes por meio dele, e tem o efeito de fazer com que todos as obedeçam como
se fosse pelo funcionamento de alguma magia magnética. Todo prestígio, contudo,
depende também do sucesso e se perde em caso de fracasso (ibid., 159).
Le Bon não dá a impressão de haver
conseguido colocar a função do líder e a importância do prestígio completamente
em harmonia com seu retrato brilhantemente executado da mente grupal.
III - OUTRAS DESCRIÇÕES DA VIDA MENTAL COLETIVA
Utilizamos a descrição de Le Bon à
guisa de introdução, por ajustar-se tão bem à nossa própria psicologia na
ênfase que dá à vida mental inconsciente. Mas temos agora de acrescentar que,
na realidade, nenhuma das afirmativas desse autor apresentou algo de novo. Tudo
o que diz em detrimento e depreciação das manifestações da mente grupal, já
fora dito por outros antes dele, com igual nitidez e igual hostilidade, e fora
repetido em uníssono por pensadores, estadistas e escritores desde os primeiros
períodos da literatura. As duas teses que abrangem as mais importantes das
opiniões de Le Bon, ou seja, as que tocam na inibição coletiva do funcionamento
intelectual e na elevação da afetividade nos grupos, foram formuladas pouco
antes por Sighele. No fundo, tudo o que resta como peculiar a Le Bon são as
duas noções do inconsciente e da comparação com a vida mental dos povos
primitivos, e mesmo estas naturalmente, já haviam sido com freqüência aludidas
antes dele.
Contudo - o que é mais -, a
descrição e a estimativa da mente grupal, tal como fornecidas por Le Bon e os
outros, de modo algum foram deixadas sem objeção. Não há dúvida de que todos os
fenômenos da mente grupal que acabaram de ser mencionados, foram corretamente
observados; mas é também possível distinguir outras manifestações de formação
de grupo que atuam em sentido exatamente contrário, e das quais uma opinião
muito mais elevada da mente grupal deve necessariamente decorrer.
O próprio Le Bon estava pronto a
admitir que, em certas circunstâncias, os princípios éticos de um grupo podem
ser mais elevados que os dos indivíduos que o compõem, e que apenas as
coletividades são capazes de um alto grau de desprendimento e devoção. ‘Ao
passo que com os indivíduos isolados o interesse pessoal é quase a única força
motivadora, nos grupos ele muito raramente é proeminente.’ (Le Bon, trad.,
1920, 65.) Outros escritores aduzem o fato de que apenas a sociedade prescreve
quaisquer padrões éticos para o indivíduo, enquanto que, via de regra, este
fracassa, de uma maneira ou de outra, em mostrar-se à altura de suas elevadas
exigências. Ou então indicam eles que, em circunstâncias excepcionais, pode
surgir nas comunidades o fenômeno do entusiasmo, que tornou possíveis as mais
esplêndidas realizações grupais.
Quanto ao trabalho intelectual,
permanece um fato, na verdade, que as grandes decisões no domínio do pensamento
e as momentosas descobertas e soluções de problemas só são possíveis ao
indivíduo que trabalha em solidão. Contudo, mesmo a mente grupal é capaz de
gênio criativo no campo da inteligência, como é demonstrado, acima de tudo,
pela própria linguagem, bem como pelo folclore, pelas canções populares e
outros fatos semelhantes. Permanece questão aberta, além disso, saber quanto o
pensador ou o escritor, individualmente, devem ao estímulo do grupo em que vivem,
e se eles não fazem mais do que aperfeiçoar um trabalho mental em que os outros
tiveram parte simultânea.
Frente a essas descrições
completamente contraditórias, talvez parecesse que o trabalho da psicologia de
grupo estivesse fadado a chegar a um fim infrutífero. Mas é fácil encontrar uma
saída mais esperançosa para o dilema. Uma série de estruturas bastante
diferentes provavelmente se fundiram sob a expressão ‘grupo’ e podem exigir que
sejam distinguidas. As assertivas de Sighele, Le Bon e outros referem-se a
grupos de caráter efêmero, que algum interesse passageiro apressadamente
aglomerou a partir de diversos tipos de indivíduos. As características dos
grupos revolucionários, especialmente os da grande Revolução Francesa,
influenciaram inequivocamente suas descrições. As opiniões contrárias devem sua
origem à consideração daqueles grupos ou associações estáveis em que a
humanidade passa a sua vida e que se acham corporificados nas instituições da
sociedade. Os grupos do primeiro tipo encontram-se, com os do segundo, no mesmo
tipo de relação que um mar alto, mas encapelado, tem com uma ondulação de
terreno.
McDougall, em seu livro sobre The
Group Mind (A Mente Grupal) (1920a), parte da mesma contradição que
acabou de ser mencionada, e encontra uma solução para ela no fato da
organização. No caso mais simples, diz ele, o ‘grupo’ não possui organização
alguma, ou uma que mal merece esse nome. Descreve um grupo dessa espécie como
sendo uma ‘multidão’. Admite, porém, que uma multidão de seres humanos dificilmente
pode reunir-se sem possuir, pelo menos, os rudimentos de uma organização, e
que, precisamente nesses grupos simples, certos fatos fundamentais da
psicologia coletiva podem ser observados com facilidade especial (McDougall,
1920a, 22). Antes que os membros de uma multidão ocasional de pessoas
possam constituir algo semelhante a um grupo no sentido psicológico, uma
condição tem de ser satisfeita: esses indivíduos devem ter algo em comum uns
com os outros, um interesse comum num objeto, uma inclinação emocional
semelhante numa situação ou noutra e (‘conseqüentemente’, gostaria eu de
interpolar) ‘certo grau de influência recíproca’ (ibid., 23). Quanto mais alto
o grau dessa ‘homogeneidade mental’, mais prontamente os indivíduos constituem
um grupo psicológico e mais notáveis são as manifestações da mente grupal.
O resultado mais notável e também o
mais importante da formação de um grupo é a ‘exaltação ou intensificação de
emoção’ produzida em cada membro dele (ibid., 24). Segundo McDougall, num grupo
as emoções dos homens são excitadas até um grau que elas raramente ou nunca
atingem sob outras condições, e constitui experiência agradável para os
interessados entregar-se tão irrestritamente às suas paixões, e assim
fundirem-se no grupo e perderem o senso dos limites de sua individualidade. A
maneira pela qual os indivíduos são assim arrastados por um impulso comum é
explicada por McDougall através do que chama de ‘princípio da indução direta da
emoção por via da reação simpática primitiva’ (ibid., 25), ou seja, através do
contágio emocional com que já estamos familiarizados. O fato é que a percepção
dos sinais de um estado emocional é automaticamente talhada para despertar a
mesma emoção na pessoa que os percebe. Quanto maior for o número de pessoas em
que a mesma emoção possa ser simultaneamente observada, mais intensamente
cresce essa compulsão automática. O indivíduo perde seu poder de crítica e
deixa-se deslizar para a mesma emoção. Mas, ao assim proceder, aumenta a
excitação das outras pessoas que produziram esse resultado nele, e assim a
carga emocional dos indivíduos se intensifica por interação mútua. Acha-se
inequivocamente em ação algo da natureza de uma compulsão a fazer o mesmo que
os outros, a permanecer em harmonia com a maioria. Quanto mais grosseiros e
simples são os impulsos emocionais, mais aptos se encontram a propagar-se dessa
maneira através de um grupo (ibid., 39).
Esse mecanismo de intensificação da
emoção é favorecido por algumas outras influências que emanam dos grupos. Um
grupo impressiona um indivíduo como sendo um poder ilimitado e um perigo
insuperável. Momentaneamente, ele substitui toda a sociedade humana, que é a
detentora da autoridade, cujos castigos o indivíduo teme e em cujo benefício se
submeteu a tantas inibições. É-lhe claramente perigoso colocar-se em oposição a
ele, e será mais seguro seguir o exemplo dos que o cercam, e talvez mesmo
‘caçar com a matilha’. Em obediência à nova autoridade, pode colocar sua antiga
‘consciência’ fora de ação e entregar-se à atração do prazer aumentado, que é
certamente obtido com o afastamento das inibições. No todo, portanto, não é tão
notável que vejamos um indivíduo num grupo fazendo ou aprovando coisas que
teria evitado nas condições normais de vida, e assim podemos mesmo esperar
esclarecer um pouco da obscuridade tão freqüentemente coberta pela enigmática
palavra ‘sugestão’.
McDougall não discute a tese
relativa à inibição coletiva da inteligência nos grupos (ibid., 41). Diz que as
mentes de inteligência inferior fazem com que as de ordem mais elevada desçam a
seu próprio nível. Estas últimas são obstruídas em sua atividade, porque em
geral a intensificação da emoção cria condições desfavoráveis para o trabalho
intelectual correto, e, ademais, porque os indivíduos são intimidados pelo
grupo e sua atividade mental não se acha livre, bem como porque há uma redução,
em cada indivíduo, de seu senso de responsabilidade por seus próprios
desempenhos.
O juízo com que McDougall resume o
comportamento psicológico de um grupo ‘não organizado’ simples não é mais
amistoso do que o de Le Bon. Tal grupo ‘é excessivamente emocional, impulsivo,
violento, inconstante, contraditório e extremado em sua ação, apresentando
apenas as emoções rudes e os sentimentos menos refinados; extremamente
sugestionável, descuidado nas deliberações, apressado nos julgamentos, incapaz
de qualquer forma que não seja a mais simples e imperfeita das formas de
raciocínio; facilmente influenciado e levado, desprovido de autoconsciência, despido
de auto-respeito e de senso de responsabilidade, e apto a ser conduzido pela
consciência de sua própria força, de maneira que tende a produzir todas as
manifestações que aprendemos a esperar de qualquer poder irresponsável e
absoluto. Daí seu comportamento assemelhar-se mais ao de uma criança
indisciplinada ou de um selvagem passional e desassistido numa situação
estranha, do que ao de seu membro médio, e, nos piores casos, ser mais
semelhante ao de um animal selvagem que ao de seres humanos.’ (Ibid., 45).
De uma vez que McDougall contrasta o
comportamento de um grupo altamente organizado com o que acabou de ser
descrito, estaremos particularmente interessados em saber no que essa
organização consiste e por que fatores é produzida. O autor enumera cinco
‘condições principais’ para a elevação da vida mental coletiva a um nível mais
alto.
A primeira e fundamental condição é
que haja certo grau de continuidade de existência no grupo. Esta pode ser
material ou formal: material, se os mesmos indivíduos persistem no grupo por
certo tempo, e formal, se se desenvolveu dentro do grupo um sistema de posições
fixas que são ocupadas por uma sucessão de indivíduos.
A segunda condição é que em cada
membro do grupo se forme alguma idéia definida da natureza, composição, funções
e capacidades do grupo, de maneira que, a partir disso, possa desenvolver uma
relação emocional com o grupo como um todo.
A terceira é que o grupo deva ser
colocado em interação (talvez sob a forma de rivalidade) com outros grupos
semelhantes, mas que dele difiram em muitos aspectos.
A quarta é que o grupo possua
tradições, costumes e hábitos, especialmente tradições, costumes e hábitos
tais, que determinem a relação de seus membros uns com os outros.
A quinta é que o grupo tenha
estrutura definida, expressa na especialização e diferenciação das funções de
seus constituintes.
De acordo com McDougall, se essas
condições forem satisfeitas, afastam-se as desvantagens psicológicas das
formações de grupo. A redução coletiva da capacidade intelectual é evitada
retirando-se do grupo o desempenho das tarefas intelectuais e reservando-as
para alguns membros dele.
Parece-nos que a condição que
McDougall designa como sendo a ‘organização’ de um grupo pode, mais
justificadamente, ser descrita de outra maneira. O problema consiste em saber
como conseguir para o grupo exatamente aqueles aspectos que eram
característicos do indivíduo e nele se extinguiram pela formação do grupo, pois
o indivíduo, fora do grupo primitivo, possuía sua própria continuidade, sua
autoconsciência, suas tradições e seus costumes, suas próprias e particulares
funções e posições, e mantinha-se apartado de seus rivais. Devido à sua entrada
num grupo ‘inorganizado’, perdeu essa distintividade por certo tempo. Se assim
reconhecemos que o objetivo é aparelhar o grupo com os atributos do indivíduo,
lembrar-nos-emos de uma valiosa observação de Trotter, no sentido de que a
tendência para a formação de grupos é, biologicamente, uma continuação do
caráter multicelular de todos os organismos superiores.
IV - SUGESTÃO E LIBIDO
Partimos do fato fundamental de que
o indivíduo num grupo está sujeito, através da influência deste, ao que com
freqüência constitui profunda alteração em sua atividade mental. Sua submissão
à emoção torna-se extraordinariamente intensificada, enquanto que sua
capacidade intelectual é acentuadamente reduzida, com ambos os processos
evidentemente dirigindo-se para uma aproximação com os outros indivíduos do
grupo; e esse resultado só pode ser alcançado pela remoção daquelas inibições
aos instintos que são peculiares a cada indivíduo, e pela resignação deste
àquelas expressões de inclinações que são especialmente suas. Aprendemos que
essas conseqüências, amiúde importunas, são, até certo ponto pelo menos,
evitadas por uma ‘organização’ superior do grupo, mas isto não contradiz o fato
fundamental da psicologia de grupo: as duas teses relativas à intensificação
das emoções e à inibição do intelecto nos grupos primitivos. Nosso interesse
dirige-se agora para a descoberta da explicação psicológica dessa alteração
mental que é experimentada pelo indivíduo num grupo.
É claro que fatores racionais (tais
como a intimidação do indivíduo que já foi mencionada, ou seja, a ação de seu
instinto de autopreservação) não abrangem os fenômenos observáveis. Além disso,
o que nos é oferecido como explicação por autoridade em sociologia e psicologia
de grupo é sempre a mesma coisa, embora receba diversos nomes: a palavra mágica
‘sugestão’. Tarde [1890] chama-a de ‘imitação’, mas não podemos deixar de
concordar com um escritor que protesta que a imitação se subordina ao conceito
de sugestão, sendo, na realidade, um de seus resultados (Brugeilles, 1913). Le
Bon faz com que a origem de todas as enigmáticas características dos fenômenos
sociais remonte a dois fatores: a sugestão mútua dos indivíduos e o prestígio
dos líderes. Contudo, mais uma vez, o prestígio só é reconhecível por sua
capacidade de evocar a sugestão. McDougall por um momento nos dá a impressão de
que seu princípio da ‘indução primitiva de emoção’ pode permitir-nos passar sem
a suposição da sugestão. Numa consideração mais detida, porém, somos forçados a
perceber que esse princípio não faz mais do que as familiares afirmativas sobre
‘imitação’ ou ‘contágio’, exceto pela decidida ênfase dada ao fator emocional.
Não há dúvida de que existe algo em nós que, quando nos damos conta de sinais
de emoção em alguém mais, tende a fazer-nos cair na mesma emoção; contudo, quão
amiúde não nos opomos com sucesso a isso, resistimos à emoção e reagimos de
maneira inteiramente contrária? Por que, portanto, invariavelmente cedemos a
esse contágio quando nos encontramos num grupo? Mais uma vez teríamos de dizer
que o que nos compele a obedecer a essa tendência é a imitação, e o que induz a
emoção em nós é a influência sugestiva do grupo. Ademais, inteiramente à parte
disso, McDougall não nos permite escapar à sugestão; aprendemos com ele, bem
como com outros autores, que os grupos se distinguem por sua especial
sugestionabilidade.
Estaremos assim preparados para a
assertiva de que a sugestão (ou, mais corretamente, a sugestionabilidade) é na
realidade um fenômeno irredutível e primitivo, um fato fundamental na vida
mental do homem. Essa também era a opinião de Bernheim, de cuja espantosa arte
fui testemunha em 1889. Posso, porém, lembrar-me de que mesmo então sentia uma
hostilidade surda contra essa tirania da sugestão. Quando um paciente que não
se mostrava dócil enfrentava o grito: ‘Mas o que está fazendo? Vou vous
contre-suggestionnez!‘, eu dizia a mim mesmo que isso era uma injustiça
evidente e um ato de violência, porque o homem certamente tinha direito a
contra-sugestões, se estavam tentando dominá-lo com sugestões. Mais tarde,
minha resistência tomou o sentido de protestar contra a opinião de que a própria
sugestão, que explicava tudo, era isenta de explicação. Pensando nisso, eu
repetia a velha adivinhação:
Christoph
trug Christum,
Christus trug die ganze
Welt,
Sag’ wo hat Christoph
Damals hin den Fuss
gestellt?
Christophorus Christum, sed Christus
sustulit orbem:
Constiterit pedibus dic
ubi Christophorus?
Agora que mais uma vez
abordo o enigma da sugestão, depois que me mantive afastado dele por cerca de
trinta anos, descubro que não houve mudança na situação. (Há uma exceção a ser
feita a essa afirmativa, exceção que dá testemunho exatamente da influência da
psicanálise.) Observo que esforços particulares estão sendo efetuados para
formular corretamente o conceito de sugestão, isto é, fixar o emprego
convencional do nome (por exemplo, McDougall, 1920b). E isso de maneira
alguma é supérfluo, porque a palavra está adquirindo uso casa vez mais
impreciso [em alemão] e cedo virá a designar uma espécie de influência, por
qualquer que seja, tal como acontece em inglês, em que ‘sugerir’ e ‘sugestão’
correspondem aos nossos nahelegen e Anregung. Entretanto, não houve
explicação da natureza da sugestão, ou seja, das condições sob as quais a
influência sem fundamento lógico e adequado se realiza. Eu não fugiria à tarefa
de sustentar aquela afirmativa por uma análise da literatura dos últimos trinta
anos, se não me achasse ciente de que está sendo empreendida, muito próximo,
uma exaustiva investigação que tem por objetivo a realização dessa mesma
tarefa.
Em vez disso, tentarei utilizar o
conceito de libido, que nos prestou bons serviços no estudo das
psiconeuroses, a fim de lançar luz sobre a psicologia de grupo.
Libido é expressão extraída da
teoria das emoções. Damos esse nome à energia, considerada como uma magnitude
quantitativa (embora na realidade não seja presentemente mensurável), daqueles
instintos que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido sob a palavra ‘amor’.
O núcleo do que queremos significar por amor consiste naturalmente (e é isso
que comumente é chamado de amor e que os poetas cantam) no amor sexual, com a
união sexual como objetivo. Mas não isolamos disso - que, em qualquer caso, tem
sua parte no nome ‘amor’ -, por um lado, o amor próprio, e, por outro, o amor
pelos pais e pelos filhos, a amizade e o amor pela humanidade em geral, bem
como a devoção a objetos concretos e a idéias abstratas. Nossa justificativa
reside no fato de que a pesquisa psicanalítica nos ensinou que todas essas
tendências constituem expressão dos mesmos impulsos instintuais; nas relações entre
os sexos, esses impulsos forçam seu caminho no sentido da união sexual, mas, em
outras circunstâncias, são desviados desse objetivo ou impedidos de atingi-lo,
embora sempre conservem o bastante de sua natureza original para manter
reconhecível sua identidade (como em características tais como o anseio de
proximidade e o auto-sacrifício).
Somos de opinião, pois, que a
linguagem efetuou uma unificação inteiramente justificável ao criar a palavra
‘amor’ com seus numerosos usos, e que não podemos fazer nada melhor senão
tomá-la também como base de nossas discussões e exposições científicas. Por
chegar a essa decisão, a psicanálise desencadeou uma tormenta de indignação,
como se fosse culpada de um ato de ultrajante inovação. Contudo, não fez nada
de original em tomar o amor nesse sentido ‘mais amplo’. Em sua origem, função e
relação com o amor sexual, o ‘Eros’ do filósofo Platão coincide exatamente com
a força amorosa, a libido da psicanálise, tal como foi pormenorizadamente
demonstrado por Nachmansohn (1915) e Pfister (1921), e, quando o apóstolo
Paulo, em sua famosa Epístola aos Coríntios, louva o amor sobre tudo o mais,
certamente o entende no mesmo sentido ‘mais amplo’. Mas isso apenas demonstra
que os homens nem sempre levam a sério seus grandes pensadores, mesmo quando
mais professam admirá-los.
A psicanálise, portanto, dá a esses
instintos amorosos o nome de instintos sexuais, a potiori e em razão de
sua origem. A maioria das pessoas ‘instruídas’ encarou essa nomenclatura como
um insulto e fez sua vingança retribuindo à psicanálise a pecha de
‘pansexualismo’. Qualquer pessoa que considere o sexo como algo mortificante e
humilhante para a natureza humana está livre para empregar as expressões mais
polidas ‘Eros’ e ‘erótico’. Eu poderia ter procedido assim desde o começo e me
teria poupado muita oposição. Mas não quis fazê-lo, porque me apraz evitar
fazer concessões à pusilanimidade. Nunca se pode dizer até onde esse caminho
nos levará; cede-se primeiro em palavras e depois, pouco a pouco, em substância
também. Não posso ver mérito algum em se ter vergonha do sexo; a palavra grega
‘Eros’, destinada a suavizar a afronta, ao final nada mais é do que tradução de
nossa palavra alemã Liebe [amor], e finalmente, aquele que sabe esperar
não precisa de fazer concessões.
Tentaremos nossa sorte, então, com a
suposição de que as relações amorosas (ou, para empregar expressão mais neutra,
os laços emocionais) constituem também a essência da mente grupal. Recordemos
que as autoridades não fazem menção a nenhuma dessas relações. Aquilo que lhes
corresponderia está evidentemente oculto por detrás do abrigo, do biombo da
sugestão. Em primeira instância, nossa hipótese encontra apoio em duas
reflexões de rotina. Primeiro, a de que um grupo é claramente mantido unido por
um poder de alguma espécie; e a que poder poderia essa façanha ser mais bem
atribuída do que a Eros, que mantém unido tudo o que existe no mundo? Segundo,
a de que, se um indivíduo abandona a sua distintividade num grupo e permite que
seus outros membros o influenciem por sugestão, isso nos dá a impressão de que
o faz por sentir necessidade de estar em harmonia com eles, de preferência a
estar em oposição a eles, de maneira que, afinal de contas, talvez o faça ‘ihnen
zu Liebe‘.
V - DOIS GRUPOS ARTIFICIAIS: A IGREJA E O EXÉRCITO
Daquilo que sabemos sobre a
morfologia dos grupos podemos recordar que é possível distinguir tipos muito
diferentes de grupos e linhas opostas em seu desenvolvimento. Há grupos muito
efêmeros e outros extremamente duradouros; grupos homogêneos, constituídos
pelos mesmos tipos de indivíduos, e grupos não homogêneos; grupos naturais e
grupos artificiais, que exigem uma força externa para mantê-los reunidos;
grupos primitivos e grupos altamente organizados, com estrutura definida.
Entretanto, por razões ainda não explicadas, gostaríamos de dar ênfase especial
a uma distinção a que os que escreveram sobre o assunto, inclinaram-se a
conceder muito pouca atenção; refiro-me à distinção existente entre grupos sem
líderes e grupos com líderes. E, em completa oposição à prática costumeira, não
escolherei, como nosso ponto de partida, uma formação de grupo relativamente
simples, mas começarei por grupos altamente organizados, permanentes e
artificiais. Os mais interessantes exemplos de tais estruturas são as Igrejas -
comunidades de crentes - e os exércitos.
Uma Igreja e um exército são grupos
artificiais, isto é, uma certa força externa é empregada para impedi-los de
desagregar-se e para evitar alterações em sua estrutura. Via de regra, a pessoa
não é consultada ou não tem escolha sobre se deseja ou não ingressar em tal
grupo; qualquer tentativa de abandoná-lo se defronta geralmente com a
perseguição ou severas punições, ou possui condições inteiramente definidas a
ela ligadas. Acha-se inteiramente fora de nosso interesse atual indagar a razão
por que essas associações precisam de tais salvaguardas especiais. Somos
atraídos apenas por uma circunstância, a saber, a de que certos fatos, muito
mais ocultos em outros casos, podem ser observados de modo bastante claro
nesses grupos altamente organizados, que são protegidos da dissolução pela
maneira já mencionada.Numa Igreja (e podemos com proveito tomar a Igreja
Católica como exemplo típico), bem como num exército, por mais diferentes que
ambos possam ser em outros aspectos, prevalece a mesma ilusão de que há um
cabeça - na Igreja Católica, Cristo; num exército, o comandante-chefe - que ama
todos os indivíduos do grupo com um amor igual. Tudo depende dessa ilusão; se
ela tivesse de ser abandonada, então tanto a Igreja quanto o exército se
dissolveriam, até onde a força externa lhes permitisse fazê-lo. Esse amor igual
foi expressamente enunciado por Cristo: ‘Quando o fizestes a um destes meus
pequeninos irmãos, a mim o fizestes.’ Ele coloca-se, para cada membro do grupo
de crentes, na relação de um bondoso irmão mais velho; é seu pai substituto.
Todas as exigências feitas ao indivíduo derivam desse amor de Cristo. Um traço
democrático perpassa pela Igreja, pela própria razão de que, perante Cristo,
todos são iguais e todos possuem parte igual de seu amor. Não é sem profunda
razão que se invoca a semelhança entre a comunidade cristã e uma família, e que
os crentes chamam-se a si mesmos de irmãos em Cristo, isto é, irmãos através do
amor que Cristo tem por eles. Não há dúvida de que o laço que une cada
indivíduo a Cristo é também a causa do laço que os une uns aos outros. A mesma
coisa se aplica a um exército. O comandante-chefe é um pai que ama todos os
soldados igualmente e, por essa razão, eles são camaradas entre si. O exército
difere estruturalmente da Igreja por compor-se de uma série de tais grupos.
Todo capitão é, por assim dizer, o comandante-chefe e o pai de sua companhia, e
assim também todo oficial inferior o de sua unidade. É verdade que uma hierarquia
semelhante foi construída na Igreja; contudo, não desempenha nela,
economicamente, o mesmo papel, pois um maior conhecimento e cuidado quanto aos
indivíduos pode ser atribuído a Cristo, mas não a um comandante-chefe humano.
Levantar-se-á justificadamente uma
objeção contra essa concepção da estrutura libidinal de um exército, com base
no fato de nela não se ter encontrado lugar para idéias como as do próprio
país, da glória nacional etc., de tanta importância para manter unido um
exército. A resposta é que esse é um caso diferente de laço grupal, e não mais
um laço simples, porque os exemplos dos grandes generais, como César,
Wallenstein, ou Napoleão, mostram que tais idéias não são indispensáveis à
existência de um exército. Tocaremos dentro em pouco na possibilidade de um
líder ser substituído por uma idéia dominante, e nas relações entre ambos.
Parece que o desprezo desse fator libidinal num exército, mesmo quando não
constitui o único fator em atuação, não é apenas uma omissão teórica, mas
também um perigo prático. O militarismo prussiano, que era exatamente tão
carente de psicologia quanto a ciência alemã, pode ter sofrido as conseqüências
disso na [primeira] Guerra Mundial. Sabemos que as neuroses de guerra que
assolaram o exército alemão foram identificadas como sendo um protesto do
indivíduo contra o papel que se esperava que ele desempenhasse no exército, e,
de acordo com a comunicação de Simmel (1918), o duro tratamento dos soldados
pelos seus superiores pode ser considerado como a principal entre as forças
motivadoras da moléstia. Se a importância das reivindicações da libido no
tocante a isso houvesse sido mais bem apreciada, provavelmente não se teria
acreditado tão facilmente nas fantásticas promessas dos Quatorze Pontos do
presidente americano, e o esplêndido instrumento não se teria rompido nas mãos
dos líderes alemães.
É de notar que nesses dois grupos
artificiais, cada indivíduo está ligado por laços libidinais por um lado ao
líder (Cristo, o comandante-chefe) e por outro aos demais membros do grupo.
Como esses dois laços se relacionam, se são da mesma espécie e do mesmo valor,
e como devem ser descritos psicologicamente, constituem questões que devemos
reservar para investigação subseqüente. Mas, já agora, nos aventuraremos a
fazer uma leve censura contra os escritores anteriores, por não terem apreciado
suficientemente a importância do líder na psicologia de grupo, enquanto que
nossa própria escolha disso como primeiro tema de investigação nos colocou numa
posição mais favorável. Pareceria que nos achamos no caminho certo para uma
explicação do principal fenômeno da psicologia de grupo: a falta de liberdade
do indivíduo num grupo. Se cada indivíduo está preso em duas direções por um
laço emocional tão intenso, não encontraremos dificuldade em atribuir a essa
circunstância a alteração e a limitação que foram observadas em sua
personalidade.
Uma sugestão no mesmo sentido, a de
que a essência de um grupo reside nos laços libidinais que nele existem, pode
também ser encontrada no fenômeno do pânico, que se acha mais bem estudado nos
grupos militares. Surge o pânico se um grupo desse tipo se desintegra. Suas
características são a de que as ordens dadas pelos superiores não são mais
atendidas e a de que cada indivíduo se preocupa apenas consigo próprio, sem
qualquer consideração pelos outros. Os laços mútuos deixaram de existir e
libera-se um medo gigantesco e insensato. Nesse ponto, mais uma vez, far-se-á
naturalmente a objeção de que ocorre antes exatamente o contrário, e a de que o
medo tornou-se grande a ponto de poder desprezar todos os laços e todos os
sentimentos de consideração pelos outros. McDougall (1920a, 24) chegou
mesmo a utilizar o pânico (embora não o pânico militar) como exemplo típico
daquela intensificação da emoção pelo contágio (‘indução primária’) a que dá
tanta ênfase. Não obstante, porém, esse método racional de explicação é aqui
inteiramente inadequado. A própria questão que necessita de explicação é saber
por que o medo se torna tão gigantesco. A magnitude do perigo não pode ser a
responsável, porque o mesmo exército que agora tomba vítima de pânico pode
anteriormente ter enfrentado perigos iguais ou maiores com sucesso total;
pertence à própria essência do pânico não apresentar relação com o perigo que
ameaça, e irromper freqüentemente nas ocasiões mais triviais. Se um indivíduo
com medo pânico começa a se preocupar apenas consigo próprio, dá testemunho, ao
fazê-lo, do fato de que os laços emocionais, que até então haviam feito o
perigo parecer-lhe mínimo, cessaram de existir. Agora que está sozinho, a
enfrentar o perigo, pode certamente achá-lo maior. Dessa maneira, o fato é que
o medo pânico pressupõe relaxamento na estrutura libidinal do grupo e reage a
esse relaxamento de maneira justificável, e que a conceituação contrária, ou
seja, a de que os laços libidinais do grupo são destruídos devido ao medo em
face do perigo, pode ser refutada.
A afirmativa de que o medo num grupo
é aumentado em proporções enormes através da indução (contágio), de modo algum
é contraditada por essas observações. A conceituação de McDougall atende
completamente ao caso quando o perigo é realmente grande e o grupo não possui
fortes laços emocionais, condições que são preenchidas, por exemplo, quando
irrompe um incêndio num teatro ou numa casa de diversões. Mas o caso verdadeiro
instrutivo e que pode ser mais bem empregado para nossos fins é o mencionado
acima, no qual um corpo de tropa irrompe em pânico, embora o perigo não tenha
aumentado além de um grau que é costumeiro e que anteriormente já foi amiúde
enfrentado. Não é de esperar que o uso da palavra ‘pânico’ seja claro e
determinado sem ambigüidade. Às vezes ela é utilizada para descrever qualquer
medo coletivo, outras até mesmo o medo no indivíduo quando ele excede todos os
limites, e, com freqüência, a palavra parece reservada para os casos em que a
irrupção do medo não é justificada pela ocasião. Tomando a palavra ‘pânico’ no
sentido de medo coletivo, podemos estabelecer uma analogia de grandes
conseqüências. No indivíduo o medo é provocado seja pela magnitude de um
perigo, seja pela cessação dos laços emocionais (catexias libidinais); este
último é o caso do medo neurótico ou ansiedade. Exatamente da mesma maneira, o
pânico surge, seja devido a um aumento do perigo comum, seja ao desaparecimento
dos laços emocionais que mantêm unido o grupo, e esse último caso é análogo ao
da ansiedade neurótica.
Qualquer pessoa que, como McDougall
(1920), descreva o pânico como uma das funções mais claras da ‘mente grupal’,
chega à posição paradoxal de que essa mente grupal se extingue numa de suas
mais notáveis manifestações. É impossível duvidar de que o pânico signifique a
desintegração de um grupo; ele envolve a cessação de todos os sentimentos de
consideração que os membros do grupo, sob outros aspectos, mostram uns para com
os outros.
A ocasião típica da irrupção de
pânico assemelha-se muito à que é representada na paródia de Nestroy, da peça
de Hebbel, sobre Judite e Holofernes. Um soldado brada: ‘O general perdeu a
cabeça!’ e, imediatamente, todos os assírios empreendem a fuga. A perda do
líder, num sentido ou noutro, o nascimento de suspeitas sobre ele, trazem a
irrupção do pânico, embora o perigo permaneça o mesmo; os laços mútuos entre os
membros do grupo via de regra desaparecem ao mesmo tempo que o laço com seu
líder. O grupo desvanece-se em poeira, como uma Gota do Príncipe Rupert, quando
uma de suas extremidades é partida.
A dissolução de um grupo religioso
não é tão fácil de observar. Pouco tempo atrás, caiu-me nas mãos um romance
inglês de origem católica, recomendado pelo Bispo de Londres, com o título When
It Was Dark (Quando Estava Escuro). Esse romance fornecia um hábil e,
segundo me pareceu, convincente relato de tal possibilidade e suas
conseqüências. O romance, que pretende relacionar-se com os dias de hoje, conta
como uma conspiração de inimigos da pessoa de Cristo e da fé cristã teve êxito
em conseguir que um sepulcro fosse descoberto em Jerusalém. Nesse sepulcro
encontra-se uma inscrição em que José de Arimatéia confessa que, por razões de piedade,
retirou secretamente o corpo de Cristo de sua sepultura, no terceiro dia após o
sepultamento, e enterrou-o naquele lugar. A ressurreição de Cristo e sua
natureza divina são dessa maneira refutadas e o resultado da descoberta
arqueológica é uma convulsão na civilização européia e um extraordinário
aumento em todos os crimes e atos de violência, os quais só cessam quando a
conspiração dos falsificadores é revelada.
O fenômeno que acompanha a
dissolução que aqui se supõe dominar um grupo religioso, não é o medo, para o
qual falta a ocasião. Em vez dele, impulsos cruéis e hostis para com outras
pessoas fazem seu aparecimento, impulsos que, devido ao amor equânime de
Cristo, haviam sido anteriormente incapazes de fazê-lo. Mas, mesmo durante o
reino de Cristo, aqueles que não pertencem à comunidade de crentes, que não o
amam e a quem ele não ama, permanecem fora de tal laço. Desse modo, uma
religião, mesmo que se chame a si mesma de religião do amor, tem de ser dura e
inclemente para com aqueles que a ela não pertencem. Fundamentalmente, na
verdade, toda religião é, dessa mesma maneira, uma religião de amor para todos
aqueles a quem abrange, ao passo que a crueldade e a intolerância para com os
que não lhes pertencem, são naturais a todas as religiões. Por mais difícil que
possamos achá-lo pessoalmente, não devemos censurar os crentes severamente
demais por causa disso; as pessoas que são descrentes ou indiferentes estão
psicologicamente em situação muito melhor nessa questão [da crueldade e da
intolerância]. Se hoje a intolerância não mais se apresenta tão violenta e
cruel como em séculos anteriores, dificilmente podemos concluir que ocorreu uma
suavização nos costumes humanos. A causa deve ser antes achada no inegável
enfraquecimento dos sentimentos religiosos e dos laços libidinais que deles
dependem. Se outro laço grupal tomar o lugar do religioso - e o socialista
parece estar obtendo sucesso em conseguir isso -, haverá então a mesma
intolerância para com os profanos que ocorreu na época das Guerras de Religião,
e, se diferenças entre opiniões científicas chegassem um dia a atingir uma
significação semelhante para grupos, o mesmo resultado se repetiria mais uma
vez com essa nova motivação.
VI - OUTROS PROBLEMAS E LINHAS DE TRABALHO
Até aqui consideramos dois grupos
artificiais e descobrimos que ambos são dominados por laços emocionais de dois
tipos. Um destes, o laço com o líder, parece (pelo menos para esses casos) ser
um fator mais dominante do que o outro, que é mantido entre os membros do
grupo.
Ora, muito mais resta a ser
examinado e descrito na morfologia dos grupos. Teremos de partir do fato
verificado segundo o qual uma simples reunião de pessoas não constitui um grupo
enquanto esses laços não se tiverem estabelecido nele; teremos, porém, de
admitir que em qualquer reunião de pessoas a tendência a formar um grupo
psicológico pode muito facilmente vir à tona. Teremos de conceder atenção aos
diferentes tipos de grupos, mais ou menos estáveis, que surgem espontaneamente,
e estudar as condições de sua origem e dissolução. Teremos de nos interessar,
acima de tudo, pela distinção existente entre os grupos que possuem um líder e
os grupos sem líder. Teremos de considerar se os grupos com líderes talvez não
sejam os mais primitivos e completos, se nos outros uma idéia, uma abstração,
não pode tomar o lugar do líder (estado de coisas para o qual os grupos
religiosos, com seu chefe invisível, constituem etapa transitória), e se uma
tendência comum, um desejo, em que certo número de pessoas tenha uma parte, não
poderá, da mesma maneira, servir de sucedâneo. Essa abstração, ainda, poderá
achar-se mais ou menos completamente corporificada na figura do que poderíamos
chamar de líder secundário, e interessantes variações surgiriam da relação entre
a idéia e o líder. O líder ou a idéia dominante poderiam também, por assim
dizer, ser negativos; o ódio contra uma determinada pessoa ou instituição
poderia funcionar exatamente da mesma maneira unificadora e evocar o mesmo tipo
de laços emocionais que a ligação positiva. Surgiria então a questão de saber
se o líder é realmente indispensável à essência de um grupo, e outras ainda,
além dessa.
Contudo, todas essas questões, que
podem, além disso, ter sido apenas parcialmente tratadas na literatura sobre psicologia
de grupo, não conseguirão desviar nosso interesse dos problemas psicológicos
fundamentais com que nos defrontamos na estrutura de um grupo. E nossa atenção
será atraída em primeiro lugar por uma consideração que promete levar-nos da
maneira mais direta a uma prova de que os laços libidinais são o que
caracteriza um grupo.
Mantenhamos perante nós a natureza
das relações emocionais que existem entre os homens em geral. De acordo com o
famoso símile schopenhaueriano dos porcos-espinhos que se congelam, nenhum
deles pode tolerar uma aproximação demasiado íntima com o próximo.
As provas da psicanálise demonstram
que quase toda relação emocional íntima entre duas pessoas que perdura por
certo tempo - casamento, amizade, as relações entre pais e filhos - contém um
sedimento de sentimentos de aversão e hostilidade, o qual só escapa à percepção
em conseqüência da repressão. Isso se acha menos disfarçado nas altercações
comuns entre sócios comerciais ou nos resmungos de um subordinado em relação a
seu superior. A mesma coisa acontece quando os homens se reúnem em unidades
maiores. Cada vez que duas famílias se vinculam por matrimônio, cada uma delas
se julga superior ou de melhor nascimento do que a outra. De duas cidades
vizinhas, cada uma é a mais ciumenta rival da outra; cada pequeno cantão encara
os outros com desprezo. Raças estreitamente aparentadas mantêm-se a certa
distância uma da outra: o alemão do sul não pode suportar o alemão
setentrional, o inglês lança todo tipo de calúnias sobre o escocês, o espanhol
despreza o português. Não ficamos mais espantados que diferenças maiores
conduzam a uma repugnância quase insuperável, tal como a que o povo gaulês
sente pelo alemão, o ariano pelo semita e as raças brancas pelos povos de cor.
Quando essa hostilidade se dirige
contra pessoas que de outra maneira são amadas, descrevemo-la como ambivalência
de sentimentos e explicamos o fato, provavelmente de maneira demasiadamente
racional, por meio das numerosas ocasiões para conflitos de interesse que
surgem precisamente em tais relações mais próximas. Nas antipatias e aversões
indisfarçadas que as pessoas sentem por estranhos com quem têm de tratar,
podemos identificar a expressão do amor a si mesmo, do narcisismo. Esse amor a
si mesmo trabalha para a preservação do indivíduo e comporta-se como se a
ocorrência de qualquer divergência de suas próprias linhas específicas de
desenvolvimento envolvesse uma crítica delas e uma exigência de sua alteração.
Não sabemos por que tal sensitividade deva dirigir-se exatamente a esses
pormenores de diferenciação, mas é inequívoco que, com relação a tudo isso, os
homens dão provas de uma presteza a odiar, de uma agressividade cuja fonte é
desconhecida, e à qual se fica tentado a atribuir um caráter elementar.
Mas, quando um grupo se forma, a
totalidade dessa intolerância se desvanece, temporária ou permanentemente,
dentro do grupo. Enquanto uma formação de grupo persiste ou até onde ela se
estende, os indivíduos do grupo comportam-se como se fossem uniformes, toleram
as peculiaridades de seus outros membros, igualam-se a eles e não sentem
aversão por eles. Uma tal limitação do narcisismo, de acordo com nossas
conceituações teóricas, só pode ser produzida por um determinado fator, um laço
libidinal com outras pessoas. O amor por si mesmo só conhece uma barreira: o
amor pelos outros, o amor por objetos. Levantar-se-á imediatamente a questão de
saber se a comunidade de interesse em si própria, sem qualquer adição de
libido, não deve necessariamente conduzir à tolerância das outras pessoas e à
consideração para com elas. Essa objeção pode ser enfrentada pela resposta de
que, não obstante, nenhuma limitação duradoura do narcisismo é efetuada dessa
maneira, visto que essa tolerância não persiste por mais tempo do que o lucro
imediato obtido pela colaboração de outras pessoas. Contudo, a importância
prática desse debate é menor do que se poderia supor, porque a experiência
demonstrou que, nos casos de colaboração, se formam regularmente laços
libidinais entre os companheiros de trabalho, laços que prolongam e solidificam
a relação entre eles até um ponto além do que é simplesmente lucrativo. A mesma
coisa ocorre nas relações sociais dos homens, como se tornou familiar à
pesquisa psicanalítica no decurso do desenvolvimento da libido individual. A
libido se liga à satisfação das grandes necessidades vitais e escolhe como seus
primeiros objetos as pessoas que têm uma parte nesse processo. E, no
desenvolvimento da humanidade como um todo, do mesmo modo que nos indivíduos,
só o amor atua como fator civilizador, no sentido de ocasionar a modificação do
egoísmo em altruísmo. E isso é verdade tanto do amor sexual pelas mulheres, com
todas as obrigações que envolve de não causar dano às coisas que são caras às
mulheres, quanto do amor homossexual, dessexualizado e sublimado, por outros
homens, que se origina do trabalho em comum.
Se assim, nos grupos, o amor a si
mesmo narcisista está sujeito a limitações que não atuam fora deles, isso é
prova irresistível de que a essência de uma formação grupal consiste em novos
tipos de laços libidinais entre os membros do grupo.
Nosso interesse nos conduz agora à
premente questão de saber qual possa ser a natureza desses laços que existem
nos grupos. No estudo psicanalítico das neuroses, ocupamo-nos, até aqui, quase exclusivamente
com os laços com objetos feitos pelos instintos amorosos que ainda perseguem
objetivos diretamente sexuais. Nos grupos, evidentemente, não se pode falar de
objetivos sexuais dessas espécies. Preocupamo-nos aqui com instintos amorosos
que foram desviados de seus objetivos originais, embora não atuem com menor
energia devido a isso. Ora, no âmbito das habituais catexias sexuais de objeto,
já observamos fenômenos que representam um desvio do instinto de seu objetivo
sexual. Descrevemos esses fenômenos como gradações do estado de estar amando e
reconhecemos que elas envolvem certa usurpação do ego. Voltaremos agora mais de
perto nossa atenção para esses fenômenos de estar enamorado ou amando, na firme
expectativa de neles encontrar condições que possam ser transferidas para os
laços existentes nos grupos. Mas gostaríamos também de saber se esse tipo de
catexia de objeto, tal como a conhecemos na vida sexual, representa a única
maneira de laço emocional com outras pessoas, ou se devemos levar em consideração
outros mecanismos desse tipo. Na verdade, aprendemos da psicanálise que existem
realmente outros mecanismos para os laços emocionais, as chamadas identificações,
processos insuficientemente conhecidos e difíceis de descrever, cuja
investigação nos manterá afastados, por algum tempo, do tema da psicologia de
grupo.
VII - IDENTIFICAÇÃO
A identificação é conhecida pela
psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa.
Ela desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo. Um menino
mostrará interesse especial pelo pai; gostaria de crescer como ele, ser como
ele e tomar seu lugar em tudo. Podemos simplesmente dizer que toma o pai como
seu ideal. Este comportamento nada tem a ver com uma atitude passiva ou
feminina em relação ao pai (ou aos indivíduos do sexo masculino em geral); pelo
contrário, é tipicamente masculina. Combina-se muito bem com o complexo de
Édipo, cujo caminho ajuda a preparar.
Ao mesmo tempo que essa
identificação com o pai, ou pouco depois, o menino começa a desenvolver uma
catexia de objeto verdadeira em relação à mãe, de acordo com o tipo
[anaclítico] de ligação. Apresenta então, portanto, dois laços psicologicamente
distintos: uma catexia de objeto sexual e direta para com a mãe e uma
identificação com o pai que o toma como modelo. Ambos subsistem lado a lado
durante certo tempo, sem qualquer influência ou interferência mútua. Em
conseqüência do avanço irresistível no sentido de uma unificação da vida
mental, eles acabam por reunir-se e o complexo de Édipo normal origina-se de
sua confluência. O menino nota que o pai se coloca em seu caminho, em relação à
mãe. Sua identificação com eles assume então um colorido hostil e se identifica
com o desejo de substituí-lo também em relação à mãe. A identificação, na
verdade, é ambivalente desde o início; pode tornar-se expressão de ternura com
tanta facilidade quanto um desejo do afastamento de alguém. Comporta-se como um
derivado da primeira fase da organização da libido, da fase oral, em que
o objeto que prezamos e pelo qual ansiamos é assimilado pela ingestão, sendo
dessa maneira aniquilado como tal. O canibal, como sabemos, permaneceu nessa
etapa; ele tem afeição devoradora por seus inimigos e só devora as pessoas de
quem gosta.
A história subseqüente dessa
identificação com o pai pode facilmente perder-se de vista. Pode acontecer que
o complexo de Édipo se inverta e que o pai seja tomado como objeto de uma
atitude feminina, objeto no qual os instintos diretamente sexuais buscam
satisfação; nesse caso, a identificação com o pai torna-se a precursora de uma
vinculação de objeto com ele. A mesma coisa também se aplica, com as
substituições necessárias, à menina.
É fácil enunciar numa fórmula a
distinção entre a identificação com o pai e a escolha deste como objeto. No
primeiro caso, o pai é o que gostaríamos de ser; no segundo, o que
gostaríamos de ter, ou seja, a distinção depende de o laço se ligar ao
sujeito ou ao objeto do ego. O primeiro tipo de laço, portanto, já é possível antes
que qualquer escolha sexual de objeto tenha sido feita. É muito mais difícil
fornecer a representação metapsicológica clara da distinção. Podemos apenas ver
que a identificação esforça-se por moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o
aspecto daquele que foi tomado como modelo.
Desemaranhemos a identificação, tal
como ocorre na estrutura de um sintoma neurótico, de suas conexões bastante
complicadas. Suponhamos que uma menininha (e, no momento, nos ateremos a ela)
desenvolve o mesmo penoso sintoma que sua mãe, a mesma tosse atormentadora, por
exemplo. Isso pode ocorrer de diversas maneiras. A identificação pode provir do
complexo de Édipo; nesse caso, significa um desejo hostil, por parte da menina,
de tomar o lugar da mãe, e o sintoma expressa seu amor objetal pelo pai,
ocasionando realização, sob a influência do sentimento de culpa, de seu desejo
de assumir o lugar da mãe: ‘Você queria ser sua mãe e agora você a é -
pelo menos, no que concerne a seus sofrimentos’. Esse é o mecanismo completo da
estrutura de um sintoma histérico. Ou, por outro lado, o sintoma pode ser o
mesmo que o da pessoa que é amada; assim, por exemplo, Dora imitava a tosse do
pai. Nesse caso, só podemos descrever o estado de coisas dizendo que a
identificação apareceu no lugar da escolha de objeto e que a escolha de objeto
regrediu para a identificação. Já aprendemos que a identificação constitui
a forma mais primitiva e original do laço emocional; freqüentemente acontece
que, sob as condições em que os sintomas são construídos, ou seja, onde há
repressão e os mecanismos do inconsciente são dominantes, a escolha de objeto
retroaja para a identificação: o ego assume as características do objeto. É de
notar que, nessas identificações, o ego às vezes copia a pessoa que não é amada
e, outras, a que é. Deve também causar-nos estranheza que em ambos os casos a
identificação seja parcial e extremamente limitada, tomando emprestado apenas
um traço isolado da pessoa que é objeto dela.
Existe um terceiro caso,
particularmente freqüente e importante, de formação de sintomas, no qual a
identificação deixa inteiramente fora de consideração qualquer relação de
objeto com a pessoa que está sendo copiada. Suponha-se, por exemplo, que uma
das moças de um internato receba de alguém de quem está secretamente enamorada
uma carta que lhe desperta ciúmes e que a ela reaja por uma crise de histeria.
Então, algumas de suas amigas que são conhecedoras do assunto pegarão a crise,
por assim dizer, através de uma infecção mental. O mecanismo é o da identificação
baseada na possibilidade ou desejo de colocar-se na mesma situação. As outras
moças também gostariam de ter um caso amoroso secreto e, sob a influência do
sentimento de culpa, aceitam também o sofrimento envolvido nele. Seria errado
supor que assumissem o sintoma por simpatia. Pelo contrário, a simpatia só
surge da identificação e isso é provado pelo fato de que uma infecção ou
imitação desse tipo acontece em circunstâncias em que é de presumir uma
simpatia preexistente ainda menor do que a que costumeiramente existe entre
amigas, numa escola para moças. Um determinado ego percebeu uma analogia
significante com outro sobre certo ponto, em nosso exemplo sobre a
receptividade a uma emoção semelhante. Uma identificação é logo após construída
sobre esse ponto e, sob a influência da situação patogênica, deslocada para o
sintoma que o primeiro ego produziu. A identificação por meio do sintoma
tornou-se assim o sinal de um ponto de coincidência entre os dois egos, sinal
que tem de ser mantido reprimido.
O que aprendemos dessas três fontes
pode ser assim resumido: primeiro, a identificação constitui a forma original
de laço emocional com um objeto; segundo, de maneira regressiva, ela se torna
sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio de
introjeção do objeto no ego; e, terceiro, pode surgir com qualquer nova
percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é
objeto de instinto sexual. Quanto mais importante essa qualidade comum é, mais
bem-sucedida pode tornar-se essa identificação parcial, podendo representar
assim o início de um novo laço.
Já começamos a adivinhar que o laço
mútuo existente entre os membros de um grupo é da natureza de uma identificação
desse tipo, baseada numa importante qualidade emocional comum, e podemos
suspeitar que essa qualidade comum reside na natureza do laço com o líder.
Outra suspeita pode dizer-nos que estamos longe de haver exaurido o problema da
identificação e que nos defrontamos com o processo que a psicologia chama de ‘empatia’
[Einfühlung] o qual desempenha o maior papel em nosso entendimento do
que é inerentemente estranho ao nosso ego nas outras pessoas. Aqui, porém,
teremos de nos limitar aos efeitos emocionais imediatos da identificação, e
deixaremos de lado sua significação em nossa vida intelectual.
A pesquisa psicanalítica, que já
atacou ocasionalmente os mais difíceis problemas das psicoses, também pôde
mostrar-nos a identificação em alguns outros casos que não são imediatamente
compreensíveis. Tratarei de dois deles em pormenor, como material para nossa
consideração posterior.
A gênese do homossexualismo
masculino, em grande quantidade de casos, é a seguinte: um jovem esteve
inusitadamente e por longo tempo fixado em sua mãe, no sentido do complexo de
Édipo. Finalmente, porém, após o término da puberdade, chega a ocasião de
trocar a mãe por algum outro objeto sexual. As coisas sofrem uma virada
repentina: o jovem não abandona a mãe, mas identifica-se com ela; transforma-se
e procura então objetos que possam substituir o seu ego para ele, objetos aos
quais possa conceder um amor e um carinho iguais aos que recebeu de sua mãe.
Trata-se de processo freqüente, que pode ser confirmado tão amiúde quanto se
queira, e que, naturalmente, é inteiramente independente de qualquer hipótese
que se possa efetuar quanto à força orgânica impulsora e aos motivos de
repentina transformação. Uma coisa notável sobre essa identificação é sua ampla
escala; ela remolda o ego em um de seus mais importantes aspectos, em seu
caráter sexual, segundo o modelo do que até então constituíra o objeto. Neste
processo, o objeto em si mesmo é renunciado, se inteiramente ou se no sentido
de ser preservado apenas no inconsciente sendo uma questão que se acha fora do
escopo do presente estudo. A identificação com um objeto que é renunciado ou
perdido, como um sucedâneo para esse objeto - introjeção dele no ego - não
constitui verdadeiramente mais novidade para nós. Um processo dessa espécie
pode às vezes ser diretamente observado em crianças pequenas. Há pouco tempo
atrás uma observação desse tipo foi publicada no Internationale Zeitschrift
für Psychoanalyse. Uma criança que se achava pesarosa pela perda de um
gatinho declarou francamente que ela agora era o gatinho e, por conseguinte,
andava de quatro, não comia à mesa etc.
Outro exemplo de introjeção do
objeto foi fornecido pela análise da melancolia, afecção que inclui entre as
mais notáveis de suas causas excitadoras a perda real ou emocional de um objeto
amado. Uma característica principal desses casos é a cruel autodepreciação do
ego, combinada com uma inexorável autocrítica e acerbas autocensuras. As
análises demonstraram que essa depreciação e essas censuras aplicam-se, no
fundo, ao objeto e representam a vingança do ego sobre ele. A sombra do objeto
caiu sobre o ego, como disse noutra parte. Aqui a introjeção do objeto é
inequivocamente clara.
Essas melancolias, porém, também nos
mostram mais alguma coisa, que pode ser importante para nossos estudos
posteriores. Mostram-nos o ego dividido, separado em duas partes, uma das quais
vocifera contra a segunda. Esta segunda parte é aquela que foi alterada pela
introjeção e contém o objeto perdido. Porém a parte que se comporta tão
cruelmente tampouco a desconhecemos. Ela abrange a consciência, uma instância
crítica dentro do ego, que até em ocasiões normais assume, embora nunca tão
implacável e injustificadamente, uma atitude crítica para com a última. Em
ocasiões anteriores, fomos levados à hipótese de que no ego se desenvolve uma
instância assim, capaz de isolar-se do resto daquele ego e entrar em conflito
com ele. A essa instância chamamos de ‘ideal do ego’ e, a título de funções, atribuímos-lhe
a auto-observação, a consciência moral, a censura dos sonhos e a principal
influência na repressão. Dissemos que ele é o herdeiro do narcisismo original
em que o ego infantil desfrutava de auto-suficiência; gradualmente reúne, das
influências do meio ambiente, as exigências que este impõe ao ego, das quais
este não pode sempre estar à altura; de maneira que um homem, quando não pode
estar satisfeito com seu próprio ego, tem, no entanto, possibilidade de
encontrar satisfação no ideal do ego que se diferenciou do ego. Nos delírios de
observação, como demonstramos noutro lugar, a desintegração dessa instância
tornou-se patente e revelou assim sua origem na influência de poderes
superiores e, acima de tudo, dos pais. Mas não nos esquecemos de acrescentar
que o valor da distância entre esse ideal do ego e o ego real é muito variável
de um indivíduo para outro e que, em muitas pessoas, essa diferenciação dentro
do ego não vai além da que sucede em crianças.
Antes que possamos empregar este
material, a fim de compreender a organização libidinal dos grupos, devemos,
contudo, tomar em consideração alguns outros exemplos das relações mútuas entre
o objeto e o ego.
VIII - ESTAR AMANDO E HIPNOSE
Mesmo em seus caprichos, o uso da linguagem
permanece fiel a uma certa espécie de realidade. Assim, ela dá o nome de ‘amor’
a numerosos tipos de relações emocionais que agrupamos, também, teoricamente
como amor; por outro lado, porém, sente, a seguir, dúvidas se esse amor é amor
real, verdadeiro, genuíno, e assim insinua toda uma gama de possibilidades no
âmbito dos fenômenos do amor. Não teremos dificuldade em efetuar a mesma
descoberta por nossas próprias observações.
Em determinada classe de casos,
estar amando nada mais é que uma catexia de objeto por parte dos instintos
sexuais com vistas a uma satisfação diretamente sexual, catexia que, além
disso, expira quando se alcançou esse objetivo: é o que se chama de amor
sensual comum. Mas, como sabemos, raramente a situação libidinal permanece tão
simples. Era possível calcular com certeza a revivescência da necessidade que
acabara de expirar e, sem dúvida, isso deve ter constituído o primeiro motivo
para dirigir uma catexia duradoura sobre o objeto sexual e para ‘amá-lo’ também
nos intervalos desapaixonados.
A isso é preciso acrescentar outro
fato derivado do notável curso de evolução seguido pela vida erótica do homem.
Em sua primeira fase, que geralmente termina na ocasião em que a criança está
com cinco anos de idade, ela descobriu o primeiro objeto para seu amor em um ou
outro dos pais, e todos os seus instintos sexuais, com sua exigência de
satisfação, unificaram-se nesse objeto. A repressão que então se estabelece,
compele-a a renunciar à maior parte desse objetivos sexuais infantis e deixa
atrás de si uma profunda modificação em sua relação com os pais. A criança
ainda permanece ligada a eles, mas por instintos que devem ser descritos como
‘inibidos em seu objetivo’. As emoções que daí passa a sentir por esses objetos
de seu amor são caracterizadas como ‘afetuosas’. Sabe-se que as primitivas
tendências ‘sensuais’ permanecem mais ou menos intensamente preservadas no
inconsciente, de maneira que, em certo sentido, a totalidade da corrente
original continua a existir.
Na puberdade, como sabemos,
estabelecem-se impulsos novos e muito fortes, dirigidos a objetivos diretamente
sexuais. Em casos desfavoráveis eles permanecem, sob a forma de uma corrente
sensual, separados das tendências ‘afetuosas’ de sentimento que persistem.
Temos então à frente um quadro cujos dois aspectos são tipificados com deleite
por certas escolas de literatura. Um homem mostrará um entusiasmo sentimental
por mulheres a quem respeita profundamente, mas não o excitam a atividades
sexuais, e só será potente com outras mulheres a quem não ‘ama’, a quem pouco
considera, ou mesmo despreza. Com mais freqüência, contudo, o adolescente
consegue efetuar um certo grau de síntese entre o amor não sensual e celeste e
o amor sensual e terreno, e sua relação com seu objeto sexual se caracteriza
pela interação de instintos desinibidos e instintos inibidos em seu objetivo. A
profundidade em que qualquer um está amando, quando contrastada com seu desejo
puramente sensual, pode ser medida pela dimensão da parte assumida pelos
instintos de afeição inibidos em seu objetivo.
Com relação a essa questão de estar
amando, sempre ficamos impressionados pelo fenômeno da supervalorização sexual:
o fato de o objeto amado desfrutar de certa liberdade quanto à crítica, e o de
todas as suas características serem mais altamente valorizadas do que as das
pessoas que não são amadas, ou do que as próprias características dele numa
ocasião em que não era amado. Se os impulsos sexuais estão mais ou menos
eficazmente reprimidos ou postos do lado, produz-se a ilusão de que o objeto veio
a ser sensualmente amado devido aos seus méritos espirituais, ao passo que,
pelo contrário, na realidade esses méritos só podem ter sido emprestados a ele
pelo seu encanto sensual.
A tendência que falsifica o
julgamento nesse respeito é a da idealização. Agora, porém, é mais fácil
encontrarmos nosso rumo. Vemos que o objeto está sendo tratado da mesma maneira
que nosso próprio ego, de modo que, quando estamos amando, uma quantidade
considerável de libido narcisista transborda para o objeto. Em muitas formas de
escolha amorosa, é fato evidente que o objeto serve de sucedâneo para algum
inatingido ideal do ego de nós mesmos. Nós o amamos por causa das perfeições
que nos esforçamos por conseguir para nosso próprio ego e que agora gostaríamos
de adquirir, dessa maneira indireta, como meio de satisfazer nosso narcisismo.
Se a supervalorização sexual e o
estar amando aumentam ainda mais, a interpretação do quadro se torna ainda mais
inequívoca. Os impulsos cuja inclinação se dirige para a satisfação diretamente
sexual podem agora ser empurrados inteiramente para o segundo plano, como por
exemplo acontece regularmente com a paixão sentimental de um jovem; o ego se
torna cada vez mais despretensioso e modesto e o objeto cada vez mais sublime e
precioso, até obter finalmente a posse de todo o auto-amor do ego, cujo
auto-sacrifício decorre, assim, como conseqüência natural. O objeto, por assim
dizer, consumiu o ego. Traços de humildade, de limitação do narcisismo e de
danos causados a si próprio ocorrem em todos os casos de estar amando; no caso
extremo, são simplesmente intensificados e como resultado da retirada das
reivindicações sexuais, permanecem em solitária supremacia.
Isso acontece com especial
facilidade com o amor infeliz e que não pode ser satisfeito, porque, a despeito
de tudo, cada satisfação sexual envolve sempre uma redução da supervalorização
sexual. Ao mesmo tempo desta ‘devoção’ do ego ao objeto, a qual não pode mais
ser distinguida de uma devoção sublimada a uma idéia abstrata, as funções
atribuídas ao ideal do ego deixam inteiramente de funcionar. A crítica exercida
por essa instância silencia; tudo que o objeto faz e pede é correto e inocente.
A consciência não se aplica a nada que seja feito por amor do objeto; na
cegueira do amor, a falta de piedade é levada até o diapasão do crime. A
situação total pode ser inteiramente resumida numa fórmula: o objeto foi
colocado no lugar do ideal do ego.
É fácil agora definir a diferença
entre a identificação e esse desenvolvimento tão extremo do estado de estar
amando que podem ser descritos como ‘fascinação’ ou ‘servidão’. No primeiro
caso, o ego enriqueceu-se com as propriedades do objeto, ‘introjetou’ o objeto
em si próprio, como Ferenczi [1909] o expressa. No segundo caso, empobreceu-se,
entregou-se ao objeto, substituiu o seu constituinte mais importante pelo
objeto. Uma consideração mais próxima, contudo, logo esclarece que esse tipo de
descrição cria uma ilusão de contradições que não possuem existência real.
Economicamente, não se trata de empobrecimento ou enriquecimento; é mesmo
possível descrever um caso extremo de estar amando como um estado em que o ego
introjetou o objeto em si próprio. Outra distinção talvez esteja mais bem
talhada para atender à essência da questão. No caso da identificação, o objeto
foi perdido ou abandonado; assim ele é novamente erigido dentro do ego e este
efetua uma alteração parcial em si próprio, segundo o modelo do objeto perdido.
No outro caso, o objeto é mantido e dá-se uma hipercatexia dele pelo ego e às
expensas do ego. Aqui, porém, apresenta-se nova dificuldade. Será inteiramente
certo que a identificação pressupõe que a catexia de objeto tenha sido
abandonada? Não pode haver identificação enquanto o objeto é mantido? E antes
de nos empenharmos numa discussão dessa delicada questão, já poderá estar
alvorecendo em nós a percepção de que mais outra alternativa abrange a essência
real da questão, ou seja, se o objeto é colocado no lugar do ego ou do ideal
do ego.
Do estado de estar amando à hipnose
vai, evidentemente, apenas um curto passo. Os aspectos em que os dois concordam
são evidentes. Existe a mesma sujeição humilde, que há para com o objeto amado.
Há o mesmo debilitamento da iniciativa própria do sujeito; ninguém pode duvidar
que o hipnotizador colocou-se no lugar do ideal do ego. Acontece apenas que
tudo é ainda mais claro e mais intenso na hipnose, de maneira que seria mais
apropriado explicar o estado de estar amando por meio da hipnose, que fazer o
contrário. O hipnotizador constitui o único objeto e não se presta atenção a
mais ninguém que não seja ele. O fato de o ego experimentar, de maneira
semelhante à do sonho, tudo que o hipnotizador possa pedir ou afirmar,
relembra-nos que nos esquecemos de mencionar entre as funções de ideal do ego a
tarefa de verificar a realidade das coisas. Não admira que o ego tome uma
percepção por real, se a realidade dela é corroborada pela instância mental que
ordinariamente desempenha o dever de testar a realidade das coisas. A completa
ausência de impulsos que se acham inibidos em seus objetivos sexuais contribui
ainda mais para a pureza extrema dos fenômenos. A relação hipnótica é a devoção
ilimitada de alguém enamorado, mas excluída a satisfação sexual, ao passo que
no caso real de estar amando esta espécie de satisfação é apenas
temporariamente refreada e permanece em segundo plano, como um possível objeto
para alguma ocasião posterior.
Por outro lado, porém, também
podemos dizer que a relação hipnótica é (se permissível a expressão) uma
formação de grupo composta de dois membros. A hipnose não constitui um bom
objeto para comparação com uma formação de grupo, porque é mais verdadeiro
dizer que ela é idêntica a essa última. Da complicada textura do grupo, ela
isola um elemento para nós: o comportamento do indivíduo em relação ao líder. A
hipnose é distinguida da formação de grupo por esta limitação de número, tal
como se distingue do estado de estar amando pela ausência de inclinações
diretamente sexuais. A esse respeito, ocupa uma posição intermediária entre
ambos.
É interessante ver que são
precisamente esses impulsos sexuais inibidos em seus objetivos que conseguem
tais laços permanentes entre as pessoas. Porém isso pode ser facilmente
compreendido pelo fato de não serem capazes de satisfação completa, ao passo
que os impulsos sexuais desinibidos em seus objetivos sofrem uma redução
extraordinária mediante a descarga de energia, sempre que o objetivo sexual é
atingido. É o destino do amor sensual extinguir-se quando se satisfaz; para que
possa durar, desde o início tem de estar mesclado com componentes puramente
afetuosos - isto é, que se acham inibidos em seus objetivos - ou deve, ele
próprio, sofrer uma transformação desse tipo.
A hipnose solucionaria imediatamente
o enigma da constituição libidinal dos grupos, não fosse pelo fato de ela
própria apresentar alguns aspectos não atendidos pela explicação racional que
dela vimos fornecendo como sendo um estado de estar amando sem as tendências
diretamente sexuais. Nela ainda existe muita coisa que devemos reconhecer como
inexplicada e misteriosa. A hipnose contém um elemento adicional de paralisia
derivado da relação entre alguém com poderes superiores e alguém que está sem
poder e desamparado - o que pode facultar uma transição para a hipnose do susto
que ocorre nos animais. A maneira pela qual a hipnose é produzida e sua relação
com o sono não são claras e o modo enigmático pelo qual algumas pessoas lhe
estão sujeitas, enquanto outras lhe resistem completamente, indica algum fator
desconhecido nela compreendido que, sozinho, talvez torne possível a pureza das
atitudes da libido que ela apresenta. É de notar que, mesmo existindo uma
completa submissão sugestiva sob outros aspectos, a consciência moral da pessoa
hipnotizada pode apresentar resistência. Porém, é possível que isso se atribua
ao fato de que na hipnose, tal como é habitualmente praticada, pode ser mantido
um certo conhecimento de que o que está acontecendo seja apenas um jogo, uma
reprodução inverídica de outra situação muito mais importante para a vida.
Após as discussões anteriores,
estamos, no entanto, em perfeita posição de fornecer a fórmula para a
constituição libidinal dos grupos, ou, pelo menos, de grupos como os que até
aqui consideramos, ou seja, aqueles grupos que têm um líder e não puderam, mediante
uma ‘organização’ demasiada, adquirir secundariamente as características de um
indivíduo. Um grupo primário desse tipo é um certo número de indivíduos que
colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal do ego e,
conseqüentemente, se identificaram uns com os outros em seu ego. Esta
condição admite uma representação gráfica.
IX - O INSTINTO GREGÁRIO
Não podemos desfrutar por muito
tempo da ilusão de havermos solucionado o enigma do grupo com essa fórmula. É
impossível fugir à lembrança imediata e perturbadora de que tudo que realmente
fizemos foi deslocar a questão para o enigma da hipnose, sobre o qual tantos
pontos ainda precisam ser esclarecidos. E agora uma outra objeção nos mostra
nosso novo caminho.
Poder-se-ia dizer que os intensos
vínculos emocionais que observamos nos grupos, são inteiramente suficientes
para explicar uma de suas características: a falta de independência e
iniciativa de seus membros, a semelhança nas reações de todos eles, sua
redução, por assim dizer, ao nível de indivíduos grupais. Mas, se o
considerarmos como um todo, um grupo nos mostra mais que isso. Alguns de seus
aspectos - a fraqueza de capacidade intelectual, a falta de controle emocional,
a incapacidade de moderação ou adiamento, a inclinação a exceder todos os
limites na expressão da emoção e descarregá-la completamente sob a forma de
ação - essas e outras características semelhantes tão impressivamente descritas
por Le Bon apresentam um quadro inequívoco de regressão da atividade mental a
um estágio anterior, como não nos surpreendemos em descobri-la entre os
selvagens e as crianças. Uma regressão desse tipo é, particularmente, uma
característica essencial dos grupos comuns, ao passo que, como soubemos, nos
grupos organizados e artificiais ela pode em grande parte ser controlada.
Temos assim a impressão de um estado
no qual os impulsos emocionais particulares e os atos intelectuais de um
indivíduo são fracos demais para chegar a algo por si próprios; para isso
dependem inteiramente de serem reforçados por sua igual repetição nos outros
membros do grupo. Somos lembrados de quantos desses fenômenos de dependência
fazem parte da constituição normal da sociedade humana, de quão pouca
originalidade e coragem pessoal podem encontrar-se nela, de quanto cada indivíduo
é governado por essas atitudes da mente grupal que se apresentam sob formas
tais como características raciais, preconceitos de classe, opinião pública etc.
A influência da sugestão torna-se um grande enigma para nós quando admitimos
que ela não é exercida apenas pelo líder, mas por cada indivíduo sobre outro
indivíduo, e temos de censurar-nos por havermos injustamente enfatizado a
relação com o líder e mantido demais em segundo plano o outro fator da sugestão
mútua.
Após esse incentivo à modéstia,
ficaremos inclinados a escutar outra voz, que nos promete uma explicação
baseada em fundamentos mais simples. Essa voz pode ser encontrada no refletido
livro de Trotter sobre o instinto de rebanho ou instinto gregário (1916), com
relação ao qual meu único pesar é que ele não escapa inteiramente às antipatias
desencadeadas pela recente grande guerra.
Trotter deriva os fenômenos mentais,
descritos como ocorrentes nos grupos, de um instinto gregário
(‘gregariousness’, gregarismo) inato aos seres humanos, tal como a outras
espécies de animais. Biologicamente, diz ele, esse gregarismo constitui uma
analogia à multicelularidade, sendo, por assim dizer, uma continuação dela. (Em
termos da teoria da libido, trata-se de uma outra manifestação da tendência
proveniente da libido e sentida por todos os seres vivos da mesma espécie, a
combinar-se em unidades cada vez mais abrangentes. Se está sozinho, o indivíduo
sente-se incompleto. O medo apresentado pelas crianças pequenas já pareceria
ser uma expressão desse instinto gregário. A oposição à grei é tão boa quanto a
separação dela, sendo assim ansiosamente evitada. Mas a grei se afasta de tudo
que é novo ou fora do comum. O instinto gregário pareceria ser algo primário, something
which cannot be split up (algo que não pode ser dividido).
Trotter põe na relação de instintos
que considera primários os da autopreservação, nutrição, sexo e gregário. O
último freqüentemente entra em oposição com os outros. Os sentimentos de culpa
e de dever são possessões peculiares de um animal gregário. Trotter também
deriva do instinto gregário as forças repressivas que a psicanálise demonstrou
existirem no ego, e deriva da mesma fonte, por conseguinte, as resistências com
que o médico se defronta no tratamento psicanalítico. A fala deve sua
importância à aptidão para o entendimento mútuo na grei, sendo nela que a
identificação mútua dos indivíduos repousa em grande parte.
Enquanto Le Bon preocupa-se com as
formações grupais passageiras típicas e McDougall com as associações estáveis,
Trotter escolheu como centro de seu interesse a forma mais generalizada de
reunião em que o homem, esse , passa sua vida e nos fornece sua
base psicológica. Mas Trotter não vê necessidade de remontar à origem do
instinto gregário, por caracterizá-lo como primário e não mais redutível. A
tentativa de Boris Sidis, a que se refere, de buscar a origem do instinto
gregário na sugestionabilidade é afortunadamente supérflua, até onde lhe
concerne; trata-se de uma explicação de tipo familiar e insatisfatório, e a
proposição inversa de que a sugestionabilidade é um derivado do instinto
gregário, me pareceria lançar muito mais luz sobre o assunto.
A exposição de Trotter, porém, está
aberta, com mais justiça ainda que as outras, à objeção de levar muito pouco em
conta o papel do líder num grupo, ao passo que nos inclinamos, antes, para o
juízo oposto, ou seja, de que é impossível apreender a natureza de um grupo se
se desprezar o líder. O instinto de grei não deixa lugar algum para o líder;
ele é simplesmente arremessado junto com a multidão, quase que fortuitamente;
daí decorre também que nenhum caminho conduz desse instinto à necessidade de um
Deus; o rebanho está sem pastor. Mas, além disso, a exposição de Trotter pode
ser psicologicamente solapada, isto é, pode-se tornar pelo menos provável que o
instinto gregário não seja irredutível, que não seja primário no mesmo sentido
que o são o instinto de autopreservação e o instinto sexual.
Naturalmente, não é fácil a tarefa
de traçar a ontogênese do instinto gregário. O medo mostrado pelas crianças
pequenas quando são deixadas sozinhas, e que Trotter alega constituir já uma
manifestação do instinto, no entanto sugere mais facilmente uma outra
interpretação. O medo relaciona-se à mãe da criança e, posteriormente, a outras
pessoas familiares, sendo a expressão de um desejo irrealizado, que a criança
ainda não sabe tratar de outra maneira, exceto transformando-o em ansiedade. O
medo da criança, quando está sozinha, tampouco é apaziguado pela visão de
qualquer fortuito ‘membro da grei’; pelo contrário, é criado pela aproximação
de um ‘estranho’ desse tipo. Assim, durante longo tempo nada na natureza de um
instinto gregário ou sentimento de grupo pode ser observado nas crianças. Algo
semelhante a ele primeiro se desenvolve, num quarto de crianças com muitas
crianças, fora das relações dos filhos com os pais, e assim sucede como uma
reação à inveja inicial com que a criança mais velha recebe a mais nova. O
filho mais velho certamente gostaria de ciumentamente pôr de lado seu sucessor,
mantê-lo afastado dos pais e despojá-lo de todos os seus privilégios; mas, à
vista de essa criança mais nova (como todas as que virão depois) ser amada
pelos pais tanto quanto ele próprio, e em conseqüência da impossibilidade de
manter sua atitude hostil sem prejudicar-se a si próprio, aquele é forçado a
identificar-se com as outras crianças. Assim, no grupo de crianças
desenvolve-se um sentimento comunal ou de grupo, que é ainda mais desenvolvido
na escola. A primeira exigência feita por essa formação reativa é de justiça,
de tratamento igual para todos. Todos sabemos do modo ruidoso e implacável como
essa reivindicação é apresentada na escola. Se nós mesmos não podemos ser os
favoritos, pelo menos ninguém mais o será. Essa transformação, ou seja, a
substituição do ciúme por um sentimento grupal no quarto das crianças e na sala
de aula, poderia ser considerada improvável, se mais tarde o mesmo processo não
pudesse ser de novo observado em outras circunstâncias. Basta-nos pensar no
grupo de mulheres e moças, todas elas apaixonadas de forma entusiasticamente
sentimental, que se aglomeram em torno de um cantor ou pianista após a sua
apresentação. Certamente seria fácil para cada uma delas ter ciúmes das outras;
porém, diante de seu número e da conseqüente impossibilidade de alcançarem o
objetivo de seu amor, renunciam a ele e, em vez de uma puxar os cabelos da
outra, atuam como um grupo unido, prestam homenagem ao herói da ocasião com
suas ações comuns e provavelmente ficariam contentes em ficar com um pedaço das
esvoaçantes madeixas dele. Originariamente rivais, conseguiram
identificar-se umas com as outras por meio de um amor semelhante pelo mesmo
objeto. Quando, como de hábito, uma situação instintual é capaz de resultados
diversos, não nos surpreenderá que o resultado real seja algum que traga
consigo a possibilidade de uma certa quantidade de satisfação, ao passo que um
outro resultado, mais óbvio em si, seja desprezado, já que as circunstâncias da
vida impedem que ele conduza àquela satisfação.
O que posteriormente aparece na
sociedade sob a forma de Gemeingeist, esprit de corps, ‘espírito de
grupo’ etc. não desmente a sua derivação do que foi originalmente inveja.
Ninguém deve querer salientar-se, todos devem ser o mesmo e ter o mesmo. A
justiça social significa que nos negamos muitas coisas a fim de que os outros
tenham de passar sem elas, também, ou, o que dá no mesmo, não possam pedi-las.
Essa exigência de igualdade é a raiz da consciência social e do senso de dever.
Revela-se inesperadamente no pavor que tem o sifilítico de contagiar outras
pessoas, coisa que a psicanálise nos ensinou a compreender. O pavor demonstrado
por esses pobres infelizes corresponde às suas violentas lutas contra o desejo
inconsciente de propagar sua infecção a outros; por que razão apenas eles
deveriam ser infectados e apartados de tantas coisas? Por que também não os
outros? E o mesmo princípio pode-se encontrar na apropriada história do
julgamento de Salomão. Se o filho de uma mulher morreu, a outra tampouco deverá
ter um filho, e a mulher despojada é identificada por esse desejo.
O sentimento social, assim, se
baseia na inversão daquilo que a princípio constituiu um sentimento hostil em
uma ligação da tonalidade positiva, da natureza de uma identificação. Na medida
em que, até aqui, pudemos acompanhar o curso dos acontecimentos, essa inversão
parece ocorrer sob a influência de um vínculo afetuoso comum com uma pessoa
fora do grupo. Nós próprios não encaramos nossa análise da identificação como
exaustiva, mas, para nosso presente objetivo, basta que retrocedamos a esta
característica determinada: sua exigência de que o igualamento seja
sistematicamente realizado. Já aprendemos do exame de dois grupos artificiais,
a Igreja e o exército que sua premissa necessária é que todos os membros sejam
amados da mesma maneira por uma só pessoa, o líder. Não nos esqueçamos,
contudo, de que a exigência de igualdade num grupo aplica-se apenas aos membros
e não ao líder. Todos os membros devem ser iguais uns aos outros, mas todos querem
ser dirigidos por uma só pessoa. Muitos iguais, que podem identificar-se uns
com os outros, e uma pessoa isolada, superior a todos eles: essa é a situação
que vemos realizada nos grupos capazes de subsistir. Ousemos, então, corrigir o
pronunciamento de Trotter de que o homem é um animal gregário, e asseverar ser
ele de preferência um animal de horda, uma criatura individual numa horda
conduzida por um chefe.
X - O GRUPO E A HORDA PRIMEVA
Em 1912 concordei com uma conjectura
de Darwin, segundo a qual a forma primitiva da sociedade humana era uma horda
governada despoticamente por um macho poderoso. Tentei demonstrar que os
destinos dessa horda deixaram traços indestrutíveis na história da descendência
humana e, especialmente, que o desenvolvimento do totemismo, que abrange em si
os primórdios da religião, da moralidade e da organização social, está ligado
ao assassinato do chefe pela violência e à transformação da horda paterna em
uma comunidade de irmãos. Para dizer a verdade, isso constitui apenas uma
hipótese, como tantas outras com que os arqueólogos se esforçam por iluminar as
trevas dos tempos pré-históricos, uma ‘estória mais ou menos’, como foi
divertidamente chamada por um crítico inglês sem maldade; porém essa hipótese
para mim tem mérito se se mostrar capaz de trazer coerência e compreensão a um
número cada vez maior de novas regiões.
Os grupos humanos apresentam mais
uma vez o quadro familiar de um indivíduo de força superior em meio a um bando
de companheiros iguais, quadro que também é abarcado em nossa idéia da horda
primeva. A psicologia de um grupo assim, como a conhecemos a partir das
descrições a que com tanta freqüência nos referimos, o definhamento da
personalidade individual consciente, a focalização de pensamentos e sentimentos
numa direção comum, a predominância do lado afetivo da mente e da vida psíquica
inconsciente, a tendência à execução imediata das intenções tão logo ocorram:
tudo isso corresponde a um estado de regressão a uma atividade mental
primitiva, exatamente da espécie que estaríamos inclinados a atribuir à horda
primeva.
Assim, o grupo nos aparece como uma
revivescência da horda primeva. Do mesmo modo como o homem primitivo sobrevive
potencialmente em cada indivíduo, a horda primeva pode mais uma vez surgir de
qualquer reunião fortuita; na medida em que os homens se acham habitualmente
sob a influência da formação de grupo, reconhecemos nela a sobrevivência da
horda primeva. Temos de concluir que a psicologia dos grupos é a mais antiga
psicologia humana; o que isolamos como psicologia individual, desprezando todos
os traços do grupo, só depois veio a ser notório a partir da velha psicologia
de grupo, através de um processo gradual, que talvez possa, ainda, ser descrito
como incompleto. Posteriormente nos arriscaremos à tentativa de especificar o
ponto de partida desse desenvolvimento. [Ver em [1] e segs.]
Uma reflexão mais demorada irá
demonstrar-nos sob que aspecto essa afirmativa exige uma correção. A psicologia
individual, pelo contrário, deve ser tão antiga quanto a psicologia de grupo,
porque, desde o princípio, houve dois tipos de psicologia, a dos membros
individuais do grupo e a do pai, chefe ou líder. Os membros do grupo achavam-se
sujeitos a vínculos, tais como os que percebemos atualmente; o pai da horda primeva,
porém, era livre. Os atos intelectuais deste eram fortes e independentes, mesmo
no isolamento, e sua vontade não necessitava do reforço de outros. A
congruência leva-nos a presumir que seu ego possuía poucos vínculos libidinais;
ele não amava ninguém, a não ser a si próprio, ou a outras pessoas, na medida
em que atendiam às suas necessidades. Aos objetos, seu ego não dava mais que o
estritamente necessário.
Ele, no próprio início da história
da humanidade, era o ‘super-homem’ que Nietzsche somente esperava do futuro.
Ainda hoje os membros de um grupo permanecem na necessidade da ilusão de serem
igual e justamente amados por seu líder; ele próprio, porém, não necessita amar
ninguém mais, pode ser de uma natureza dominadora, absolutamente narcisista, autoconfiante
e independente. Sabemos que o amor impõe um freio ao narcisismo, e seria
possível demonstrar como, agindo dessa maneira, ele se tornou um fator de
civilização.
O pai primevo da horda não era ainda
imortal, como posteriormente veio a ser, pela deificação. Se morria, tinha de
ser substituído; seu lugar era provavelmente tomado por um filho mais jovem,
que até então fora um membro do grupo, como qualquer outro. Deve existir,
portanto, uma possibilidade de transformar a psicologia de grupo em psicologia
individual; há que descobrir uma condição sob a qual tal transformação seja
facilmente realizada, como é possível às abelhas transformarem, em caso de
necessidade, uma larva numa rainha em lugar de uma operária. Pode-se imaginar
apenas uma possibilidade: o pai primevo impedira os filhos de satisfazer seus
impulsos diretamente sexuais; forçara-os à abstinência e, conseqüentemente, aos
laços emocionais com ele e uns com os outros, que poderiam surgir daqueles de
seus impulsos antes inibidos em seu objetivo sexual. Ele os forçara, por assim
dizer, à psicologia de grupo. Seu ciúme e intolerância sexual tornaram-se, em
última análise, as causas da psicologia de grupo.
Quem quer que se haja tornado seu
sucessor recebeu também a possibilidade de satisfação sexual e, por esse meio,
lhe foi dada uma saída para as condições de psicologia de grupo. A fixação da
libido na mulher e a possibilidade de satisfação sem qualquer necessidade de
adiamento ou acúmulo puseram fim à importância daqueles entre seus impulsos sexuais
que se achavam inibidos em seu objetivo, e permitiram ao seu narcisismo
elevar-se sempre, até chegar a seu apogeu total. Retornaremos, em um
pós-escrito [ver em [1] e segs.] a essa conexão entre amor e formação do
caráter.
A seguir, como algo especialmente
instrutivo, podemos dar ênfase à relação que existe entre o ardil pelo qual um
grupo artificial se mantém unido, e a constituição da horda primeva. Vimos que,
com o exército e a Igreja, esse artifício é a ilusão de que o líder ama todos
os indivíduos de modo igual e justo. Mas isso constitui apenas uma remodelação
idealística do estado de coisas na horda primeva, onde todos os filhos sabiam
que eram igualmente perseguidos pelo pai primevo e o temiam igualmente.
Essa mesma remoldagem sobre a qual todos os deveres sociais se erguem, já se
acha pressuposta pela forma seguinte da sociedade humana, o clã totêmico. A
força indestrutível da família como formação natural de grupo reside no fato de
que essa pressuposição necessária do amor igual do pai pode ter uma aplicação
real na família.
Nós, todavia, esperamos mais ainda
dessa derivação do grupo a partir da horda primeva. Ela deveria também
ajudar-nos a entender o que ainda é incompreensível e misterioso nas formações
de grupo, tudo o que jaz escondido por trás das enigmáticas palavras ‘hipnose’
e ‘sugestão’. E acho que isso também pode ser bem-sucedido. Relembremos que
nela a hipnose tem algo de positivamente misterioso, mas a característica de
mistério sugere algo de antigo e familiar que experimentou uma repressão.
Consideremos como a hipnose é induzida. O hipnotizador afirma que se acha de
posse de um poder misterioso que despoja o sujeito de sua própria vontade ou, o
que é a mesma coisa, o sujeito crê nisso. Esse poder misterioso (que ainda hoje
é muitas vezes popularmente descrito como ‘magnetismo animal’) deve ser o mesmo
poder encarado pelos povos primitivos como a fonte do tabu, o mesmo poder
emanante dos rei e chefes de tribo e que torna perigoso o aproximar-se deles (mana).
Imagina-se, então, que o hipnotizador esteja na posse desse poder. E como o
manifesta? Dizendo ao sujeito para olhá-lo nos olhos: seu método mais típico de
hipnotização é pelo olhar. Mas é precisamente a visão do chefe que é
perigosa e insuportável para os povos primitivos, tal como, mais tarde, a da
Divindade é para os mortais. O próprio Moisés teve de agir como intermediário
entre seu povo e Javé, de vez que o povo não poderia suportar a visão divina, e
quando retornou da presença de Deus seu rosto resplandecia: um pouco do mana
lhe havia sido comunicado, tal como acontece com o intermediário entre os
povos primitivos.
É verdade que também se pode evocar
a hipnose por outras maneiras, como, por exemplo, fixando os olhos sobre um
objeto brilhante ou escutando um som monótono. Isso pode equivocar e já
ocasionou teorias fisiológicas inapropriadas. Na realidade, esses procedimentos
servem apenas para desviar a atenção consciente e mantê-la retida. A situação
seria a mesma, se o hipnotizador houvesse dito ao sujeito: ‘Agora, preocupe-se
exclusivamente com a minha pessoa; o resto do mundo é totalmente
desinteressante.’ Naturalmente, seria tecnicamente desaconselhável a um
hipnotizador fazer tal declaração; ela arrancaria o sujeito de sua atitude
inconsciente e o estimularia a uma oposição consciente. O hipnotizador evita
dirigir os pensamentos conscientes do sujeito para suas próprias intenções e
faz a pessoa com quem realiza a experiência mergulhar numa atividade na qual o
mundo está fadado a parecer-lhe desinteressante. Ao mesmo tempo, porém, o
sujeito está, na realidade, concentrando inconscientemente toda a sua atenção
no hipnotizador e entrando numa atitude de rapport, de transferência,
para com ele. Assim, os métodos indiretos de hipnotizar, iguais a muitos
procedimentos técnicos utilizados para fazer chistes, têm o efeito de controlar
certas distribuições de energia mental que interfeririam com o curso dos
acontecimentos no inconsciente, e acabam por levar ao mesmo resultado que os
métodos diretos de influência através do olhar fixo ou das batidas.
Ferenczi [1909] realizou a
descoberta real de que, quando o hipnotizador dá a ordem para dormir, o que com
freqüência se faz no começo da hipnose, ele está se colocando no lugar dos pais
do sujeito. Pensa ele que dois tipos de hipnotismo devem ser distinguidos: um
persuasor e tranqüilizador, segundo ele modelado na mãe, e um outro ameaçador,
que deriva do pai. Ora, na hipnose a ordem para dormir significa, nem mais nem
menos, uma ordem para afastar do mundo todo o interesse e concentrá-lo na
pessoa do hipnotizador. E ela é assim entendida pelo sujeito, pois nessa
retração de interesse do mundo externo reside a característica psicológica do
sono e nela se baseia o parentesco entre este e o estado de hipnose.
Pelas medidas que toma, o
hipnotizador desperta no sujeito uma parte de sua herança arcaica que também o
tornara submisso aos genitores e experimentara uma reanimação individual em sua
relação com o pai; o que é assim despertado é a idéia de uma personalidade
predominante e perigosa, para com quem só é possível ter uma atitude
passivo-masoquista, a quem se tem de entregar a própria vontade, ao passo que
estar com ele, ‘olhá-lo no rosto’, parece ser um empreendimento arriscado. Só
de uma outra maneira semelhante podemos representar a relação do membro
individual da horda primeva com o pai primevo. Como sabemos de outras reações,
os indivíduos preservaram um grau variável de aptidão pessoal para reviver
velhas situações desse tipo. Um certo conhecimento de que, apesar de tudo, a hipnose
é apenas um jogo, uma renovação enganadora dessas antigas impressões, pode
contudo remanescer e cuidar para que haja uma resistência contra quaisquer
conseqüências demasiado sérias da suspensão da vontade na hipnose.
As características misteriosas e coercivas
das formações grupais, presentes nos fenômenos de sugestão que as acompanham,
podem assim, com justiça, ser remontadas à sua origem na horda primeva. O líder
do grupo ainda é o temido pai primevo; o grupo ainda deseja ser governado pela
força irrestrita e possui uma paixão extrema pela autoridade; na expressão de
Le Bon, tem sede de obediência. O pai primevo é o ideal do grupo, que dirige o
ego no lugar do ideal do ego. A hipnose bem pode reivindicar sua descrição como
um grupo de dois. Aqui fica como definição para a sugestão: uma convicção que
não está baseada na percepção e no raciocínio, mas em um vínculo erótico.
XI - UMA GRADAÇÃO DIFERENCIADORA NO EGO
Se examinarmos a vida de um homem de
hoje como indivíduo, tendo em mente as descrições mutuamente complementares da
psicologia de grupo fornecidas pelas autoridades, pode ser que, diante das
complicações reveladas, percamos a coragem de tentar uma exposição abrangente.
Cada indivíduo é uma parte componente de numerosos grupos, acha-se ligado por
vínculos de identificação em muitos sentidos e construiu seu ideal do ego
segundo os modelos mais variados. Cada indivíduo, portanto, partilha de
numerosas mentes grupais - as de sua raça, classe, credo, nacionalidade etc. -
podendo também elevar-se sobre elas, na medida em que possui um fragmento de
independência e originalidade. Essas formações grupais estáveis e duradouras,
com seus efeitos constantes e uniformes, são menos notáveis para um observador
que os grupos rapidamente formados e transitórios a partir dos quais Le Bon
traçou seu brilhante esboço psicológico do caráter da mente grupal. E é
exatamente nesses ruidosos grupos efêmeros, superpostos uns aos outros, por
assim dizer, que encontramos o prodígio do desaparecimento completo, embora apenas
temporário, exatamente daquilo que identificamos como aquisições individuais.
Interpretamos esse prodígio com a
significação de que o indivíduo abandona seu ideal do ego e o substitui pelo
ideal do grupo, tal como é corporificado no líder. E temos de acrescentar, a
título de correção, que o prodígio não é igualmente grande em todos os casos.
Em muitos indivíduos, a separação entre o ego e o ideal do ego não se acha
muito avançada e os dois ainda coincidem facilmente; o ego amiúde preservou sua
primitiva autocomplacência narcisista. A seleção do líder é muitíssimo
facilitada por essa circunstância. Com freqüência precisa apenas possuir as
qualidades típicas dos indivíduos interessados sob uma forma pura, clara e
particularmente acentuada, necessitando somente fornecer uma impressão de maior
força e de mais liberdade de libido. Nesse caso, a necessidade de um chefe
forte freqüentemente o encontrará a meio caminho, e o investirá de uma
predominância que de outro modo talvez não pudesse reivindicar. Os outros
membros do grupo, cujo ideal do ego, salvo isso, não se haveria corporificado
em sua pessoa sem alguma correção, são então arrastados com os demais por
‘sugestão’, isto é, por meio da identificação.
Estamos cientes de que aquilo com
que pudemos contribuir para a explicação da estrutura libidinal dos grupos,
reconduz à distinção entre o ego e o ideal do ego e à dupla espécie de vínculo
que isso possibilita: a identificação e a colocação do objeto no lugar do ideal
do ego. A pressuposição dessa espécie de gradação diferenciadora no ego como um
primeiro passo para a análise do ego deve gradualmente estabelecer sua
justificativa nas quais diversas regiões da psicologia. Em meu artigo sobre
narcisismo [1914c], reuni todo o material patológico que na ocasião podia
ser utilizado em apoio dessa diferenciação. Contudo, podemos esperar que, ao
penetrarmos mais profundamente na psicologia das psicoses, descobriremos que
sua significação é muito maior. Reflitamos que o ego ingressa agora na relação
de um objeto para com o ideal do ego, dele desenvolvido, e que a ação recíproca
total entre um objeto externo e o ego como um todo, com que nosso estudo das
neuroses nos familiarizou, deve possivelmente repetir-se nessa nova cena de
ação dentro do ego.
Nesse ponto acompanharei apenas uma
das conseqüências que, partindo desse enfoque, parecem possíveis retomando
assim o debate de um problema que fui obrigado a deixar, noutra parte, sem
solução.Cada uma das diferenciações mentais com que nos familiarizamos,
representa um novo agravamento das dificuldades de funcionamento mental,
aumenta a sua instabilidade, podendo tornar-se o ponto de partida para a sua
desintegração, isto é, para o desencadeamento de uma doença. Assim, com o
nascimento, demos o primeiro passo de um narcisismo absolutamente
auto-suficiente para a percepção de um mundo externo cambiante e para os
primórdios da descoberta dos objetos. A isso está associado o fato de não
podermos suportar o novo estado de coisas por muito tempo, de periodicamente
dele revertermos, no sono, à nossa anterior condição de ausência de estimulação
e fuga de objetos. É verdade, contudo, que nisto estamos seguindo uma sugestão
do mundo externo que, através da mudança periódica do dia e da noite, afasta
temporariamente a maior parte dos estímulos que nos influenciam. O segundo
exemplo de um tal passo, patologicamente mais importante, não está sujeito a
essa restrição. No curso de nossa evolução, efetuamos uma separação de nossa
existência mental em um ego coerente e em uma parte inconsciente e reprimida
que é deixada fora dele; ficamos sabendo que a estabilidade dessa nova
aquisição se acha exposta a abalos constantes. Nos sonhos e neuroses, o que é
assim excluído bate aos portões em busca de admissão, guardados não obstante
pelas resistências, e em nossa saúde desperta fazemos uso de artifícios
especiais para permitir que o que está reprimido contorne as resistências e o
recebamos temporariamente em nosso ego, para aumento de nosso prazer. Os
chistes e o humor e, até certo ponto, o cômico em geral, podem ser encarados
sob esta luz. Qualquer um que esteja familiarizado com a psicologia das
neuroses pensará em exemplos semelhantes de menor importância, mas apresso-me à
aplicação do que tenho em vista.
É inteiramente concebível que a
separação do ideal do ego do próprio ego não pode ser mantida por muito tempo,
tendo de ser temporariamente desfeita. Em todas as renúncias e limitações
impostas ao ego, uma infração periódica da proibição é a regra. Isso, na
realidade, é demonstrado pela instituição dos festivais, que, na origem, nada
mais eram do que excessos previstos em lei e que devem seu caráter alegre ao
alívio que proporcionam. As saturnais dos romanos e o nosso moderno carnaval
concordam nessa característica essencial com os festivais dos povos primitivos,
que habitualmente terminam com deboches de toda espécie e com a transgressão
daquilo que, noutras ocasiões, constituem os mandamentos mais sagrados. Mas o
ideal do ego abrange a soma de todas as limitações a que o ego deve aquiescer
e, por essa razão, a revogação do ideal constituiria necessariamente um
magnífico festival para o ego, que mais uma vez poderia então sentir-se
satisfeito consigo próprio.
Há sempre uma sensação de triunfo
quando algo no ego coincide com o ideal do ego. E o sentimento de culpa (bem
como o de inferioridade) também pode ser entendido como uma expressão da tensão
entre o ego e o ideal do ego.
Sabe-se bem que existem pessoas cujo
colorido geral do estado de ânimo oscila periodicamente de uma depressão
excessiva, atravessando algum tipo de estado intermediário, a uma sensação
exaltada de bem-estar. Essas oscilações aparecem em graus de amplitude muito
diferentes, desde o que é apenas observável até exemplos extremos tais que, sob
a forma de melancolia e mania, empreendem as mais perturbadoras ou
atormentadoras incursões na vida da pessoa interessada. Nos casos típicos dessa
depressão cíclica, as causas precipitantes externas não parecem desempenhar
qualquer papel decisivo; quanto aos motivos internos, nesses pacientes, não se
encontra nada a mais, ou nada mais, do que em todos os outros.
Conseqüentemente, tornou-se costume considerar esses casos como não sendo
psicogênicos. Dentro em pouco nos referiremos àqueles outros casos exatamente
semelhantes de depressão cíclica que podem ser facilmente remontados a
traumas mentais.
Os fundamentos dessas oscilações
espontâneas de estado de ânimo são, assim, desconhecidos. Falta-nos compreensão
do mecanismo do deslocamento de uma melancolia realizado por uma mania, de modo
que nos achamos livres para supor que esses pacientes sejam pessoas em quem
nossa conjectura poderia encontrar uma aplicação real: seu ideal do ego poderia
ter-se temporariamente convertido no ego, após havê-lo anteriormente governado
com especial rigidez.
Atenhamo-nos ao que é claro: com
base em nossa análise do ego, não se pode duvidar que, nos casos de mania, o
ego e o ideal do ego se fundiram, de maneira que a pessoa, em estado de ânimo
de triunfo e auto-satisfação, imperturbada por nenhuma autocrítica, pode
desfrutar a abolição de suas inibições, sentimentos de consideração pelos
outros e autocensuras. Não é tão óbvio, não obstante muito provável, que o
sofrimento do melancólico seja a expressão de um agudo conflito entre as duas
instâncias de seu ego, conflito em que o ideal, em excesso de sensitividade,
incansavelmente exibe sua condenação do ego com delírios de inferioridade e com
autodepreciação. A única questão é se devemos procurar as causas dessas
relações alteradas entre o ego e o ideal do ego nas rebeliões periódicas, que
acima postulamos, contra a nova instituição, ou se devemos responsabilizar por
elas outras circunstâncias.
Uma mudança para a mania não
constitui característica indispensável da sintomatologia da depressão
melancólica. Existem melancolias simples - umas em crises isoladas, outras em
crises recorrentes - que nunca apresentam essa evolução.
Por outro lado, há melancolias em
que a causa precipitadora desempenha claramente um papel etiológico. São
aquelas que ocorrem após a perda de um objeto amado, seja pela morte, seja por
efeito de circunstâncias que tornaram necessária a retirada da libido do
objeto. Uma melancolia psicogênica desse tipo pode terminar em mania e o ciclo
repetir-se diversas vezes, tão facilmente como num caso que parece ser
espontâneo. Assim, o estado de coisas é um tanto obscuro, especialmente porque
só poucas formas e casos de melancolia foram submetidos à investigação
psicanalítica. Até aqui, compreendemos somente casos em que o objeto é
abandonado porque demonstrou ser indigno de amor. Ele é, então, novamente
erigido dentro do ego, mediante identificação, e severamente condenado pelo
ideal do ego. As censuras e ataques dirigidos ao objeto vêm à luz sob a forma
de autocensuras melancólicas.
Uma melancolia desse tipo, além
disso, pode acabar em uma mudança para a mania, de sorte que a possibilidade de
isso acontecer representa uma característica que independe das outras
características do quadro clínico.
Não obstante, não vejo dificuldade
em atribuir ao fato da rebelião periódica do ego contra o ideal do ego uma cota
em ambos os tipos de melancolia, tanto o psicogênico quanto o espontâneo. No
espontâneo, pode-se supor que o ideal do ego está inclinado a apresentar uma
rigidez peculiar, que então resulta automaticamente em sua suspensão
temporária. No tipo psicogênico, o ego seria incitado à rebelião pelo mau
tratamento por parte de seu ideal, mau tratamento que ele encontra quando houve
uma identificação com um objeto rejeitado.
XII - PÓS-ESCRITO
No decorrer da indagação que acabou
de ser levada a um final provisório, encontramos um certo número de caminhos
laterais que evitamos seguir em primeiro lugar, mas nos quais existia muita
coisa oferecendo-nos promessas de compreensão. Propomo-nos agora considerar
alguns desses pontos que, assim, foram deixados de lado.
A.A distinção entre a identificação
do ego com um objeto e a substituição do ideal do ego por um objeto encontra
uma ilustração interessante nos dois grandes grupos artificiais que começamos
por estudar, o exército e a Igreja cristã.
É óbvio que um soldado toma o seu
superior, que é, na realidade, o líder do exército, como seu ideal, enquanto se
identifica com os seus iguais e deriva dessa comunidade de seus egos as
obrigações de prestar ajuda mútua e partilhar das posses que o companheirismo
implica. Mas, se tenta identificar-se com o general, torna-se ridículo. O
soldado em Wallensteins Lager ri do sargento por essa mesma razão:
Wie er räuspert und wie
er spuckt,
Das habt ihr ihm
glücklich abgeguckt!
É diferente na Igreja
católica. Todo cristão ama Cristo como seu ideal e sente-se unido a todos os
outros cristãos pelo vínculo da identificação. Mas a Igreja exige mais dele.
Tem também de identificar-se com Cristo e amar todos os outros cristãos como Cristo
os amou. Em ambos os pontos, portanto, a Igreja exige que a posição da libido
fornecida pela formação grupal seja suplementada. Há que acrescentar a
identificação ali onde a escolha objetal já se realizou, e o amor objetal onde
há identificação. Esse acréscimo, evidentemente, vai além da constituição do
grupo. Pode-se ser um bom cristão e, contudo, estar distante da idéia de se pôr
no lugar de Cristo e ter, como ele, um amor abrangente pela humanidade. Não
precisamos nos sentir capazes, fracos mortais que somos, da grandeza de alma e
da força de amor do Salvador. Porém, esse novo desenvolvimento na distribuição
da libido no grupo constitui provavelmente o fator sobre o qual o cristianismo
baseia sua alegação de haver atingido um nível ético mais elevado.
B.Dissemos que seria possível
especificar o ponto do desenvolvimento mental da humanidade em que a passagem
da psicologia de grupo para a psicologia individual foi alcançada também pelos
membros do grupo [ver em [1]].
Para esse fim, devemos retornar por
um momento ao mito científico do pai da horda primeva. Ele foi posteriormente
exaltado como criador do mundo, e com justiça, porque produzira todos os filhos
que compuseram o primeiro grupo. Era o ideal de cada um deles, ao mesmo tempo
temido e honrado, o que conduziu mais tarde à idéia do tabu. Esses numerosos
indivíduos acabaram por se agrupar, mataram-no e despedaçaram-no. Ninguém do
grupo de vitoriosos podia tomar o seu lugar, ou, se algum o fez, retomaram-se
os combates, até compreenderem que deviam todos renunciar à herança do pai.
Formaram então a comunidade totêmica de irmãos, todos com direitos iguais e
unidos pelas proibições totêmicas que se destinavam a preservar e a expiar a
lembrança do assassinato. No entanto, a insatisfação com o que fora conseguido
ainda permanecia e tornou-se fonte de novos desfechos. As pessoas que estavam
unidas nesse grupo de irmãos gradualmente chegaram a uma revivescência do
antigo estado de coisas, em novo nível. O macho tornou-se mais uma vez o chefe
de uma família e destruiu as prerrogativas da ginecocracia que se estabelecera
durante o período em que não havia pai. Em compensação, ele, nessa ocasião,
pode ter reconhecido as divindades maternas, cujos sacerdotes eram castrados
para a proteção da mãe, segundo o exemplo que fora fornecido pelo pai da horda
primeva. Contudo, a nova família era apenas uma sombra da antiga; havia um
grande número de pais e cada um deles era limitado pelos direitos dos outros.
Foi então que talvez algum
indivíduo, na urgência de seu anseio, tenha sido levado a libertar-se do grupo
e a assumir o papel do pai. Quem conseguiu isso foi o primeiro poeta épico e o
progresso foi obtido em sua imaginação. Esse poeta disfarçou a verdade com
mentiras consoantes com seu anseio: inventou o mito heróico. O herói era um
homem que, sozinho, havia matado o pai - o pai que ainda aparecia no mito como
um monstro totêmico. Como o pai fora o primeiro ideal do menino, também no
herói que aspira ao lugar do pai o poeta criava agora o primeiro ideal do ego.
A transição para o herói foi provavelmente fornecida pelo filho mais moço, o
favorito da mãe, filho que ela protegera do ciúme paterno e que, na época da
horda primeva, fora o sucessor do pai. Nas mentirosas fantasias poéticas dos
tempos pré-históricos, a mulher, que constituíra o prêmio do combate e a
tentação para o assassinato, foi provavelmente transformada na sedutora e na
instigadora ativa do crime.
O herói reivindica haver agido
sozinho na realização da façanha, à qual certamente só a horda como um todo ter-se-ia
aventurado. Porém, como Rank observou, os contos de fadas preservaram traços
claros dos fatos que foram desmentidos, porque neles amiúde descobrimos que o
herói, tendo de realizar alguma tarefa difícil (geralmente o filho mais novo e
não poucas vezes um filho que se fez passar, perante o substituto paterno, por
estúpido, isto é, inofensivo), só pode, ele próprio, realizar sua missão com a
ajuda de uma multidão de animais pequenos, tais como abelhas ou formigas. Esses
seriam os irmãos da horda primeva, da mesma forma que no simbolismo onírico
insetos ou animais nocivos significam irmãos e irmãs (considerados
desprezivelmente como bebês). Ademais, todas as tarefas dos mitos e contos de
fadas são facilmente reconhecíveis como sucedâneos do feito heróico.
Assim, o mito é o passo com o qual o
indivíduo emerge da psicologia de grupo. O primeiro mito foi certamente o
psicológico, o mito do herói; o mito explicativo da natureza deve tê-lo seguido
muito depois. O poeta que dera esse passo, com isso libertando-se do grupo em
sua imaginação, é, não obstante (como Rank observa ainda), capaz de encontrar
seu caminho de volta ao grupo na realidade - porque ele vai e relata ao grupo
as façanhas do herói, as quais inventou. No fundo, esse herói não é outro senão
ele próprio. Assim, desce ao nível da realidade e eleva seus ouvintes ao nível
da imaginação. Seus ouvintes, porém, entendem o poeta e, em virtude de terem a
mesma relação de anseio pelo pai primevo, podem identificar-se com o herói.
A mentira do mito heróico culmina
pela deificação do herói. Talvez o herói deificado possa ter sido mais antigo
que o Deus Pai e precursor do retorno do pai primevo como deidade. A série dos
deuses, então, seria cronologicamente esta: Deusa Mãe - Herói - Deus Pai. Mas
só com a elevação do pai primevo nunca esquecido a divindade adquire as
características que ainda hoje nela identificamos.
C.Muito se disse, neste artigo,
sobre instintos diretamente sexuais e instintos inibidos em seus objetivos,
podendo-se esperar que essa distinção não experimente demasiada resistência. Um
estudo pormenorizado da questão, contudo, não ficará deslocado, ainda que
apenas repita o que, em grande parte, já foi dito antes.
O desenvolvimento da libido nas
crianças familiarizou-nos com o primeiro, mas também o melhor, exemplo de
instintos sexuais inibidos em seus objetivos. Todos os sentimentos que uma
criança tem para com os pais e para com aqueles que cuidam dela transformam-se,
por uma fácil transição, em desejos que dão expressão aos impulsos sexuais da
criança. Ela reivindica desses objetos de seu amor todos os sinais de afeição
que conhece; quer beijá-los, tocá-los e olhá-los; tem curiosidade de ver seus
órgãos genitais e estar com eles quando realizam suas funções excretórias
íntimas; promete casar-se com a mãe ou com a babá, não importa o que entenda
por casamento; propõe-se a si mesma ter um filho do pai etc. A observação
direta, bem como a subseqüente investigação analítica dos resíduos da infância,
não deixa dúvidas quanto à completa fusão de sentimentos ternos e ciumentos e
de intenções sexuais, mostrando-nos de que maneira fundamental a criança faz da
pessoa que ama o objeto de todas as suas tendências sexuais, ainda não
corretamente centradas.
Essa primeira configuração do amor
da criança, que nos casos típicos toma a forma do complexo de Édipo, sucumbe,
tanto quanto sabemos a partir do começo do período de latência, a uma onda de
repressão. O que resta dela apresenta-se como um laço emocional puramente
afetuoso, referente às mesmas pessoas; porém, não mais pode ser descrito como
‘sexual’. A psicanálise, que ilumina as profundezas da vida mental, não tem
dificuldade em demonstrar que os vínculos sexuais dos primeiros anos da
infância também persistem, embora reprimidos e inconscientes. Ela nos dá
coragem para afirmar que um sentimento afetuoso, onde quer que o encontremos,
constitui um sucessor de uma vinculação de objeto completamente ‘sensual’ com a
pessoa em pauta ou, antes, com o protótipo (ou Imago) dessa pessoa. Ela
não pode verdadeiramente revelar-nos, sem uma investigação especial, se em dado
caso essa antiga corrente sexual completa ainda existe sob repressão ou já se
exauriu. Mais precisamente: é inteiramente certo que essa corrente ainda se encontra
lá, como forma e possibilidade, podendo sempre ser catexizada e novamente
colocada em atividade por meio da regressão; a única questão é (e nem sempre
pode ser respondida) que grau de catexia e força operativa ela ainda possui no
presente momento. Nessa referência, deve-se tomar idêntico cuidado em evitar
duas fontes de erro: o Sila de subestimar a importância do inconsciente
reprimido e o Caribde de julgar o normal inteiramente pelos padrões do
patológico.
Uma psicologia que não penetre ou
não possa penetrar nas profundezas do que é reprimido, considera os laços
emocionais afetuosos como sendo invariavelmente a expressão de impulsos que não
possuem objetivo sexual, ainda que derivem de impulsos com esse fim.
Temos justificativa para dizer que
eles foram desviados desses fins sexuais, embora exista certa dificuldade de
fornecer uma descrição de um desvio de objetivo assim, que se adapte às
exigências da metapsicologia. Ademais, esses instintos inibidos em seus
objetivos conservam alguns de seus objetivos sexuais originais; mesmo um devoto
afetuoso, mesmo um amigo ou um admirador, desejam a proximidade física e a
visão da pessoa que é agora amada apenas no sentido ‘paulino’. Se preferirmos,
podemos identificar nesse desvio de objetivo um início da sublimação dos
instintos sexuais ou, por outro lado, podemos fixar os limites da sublimação em
algum ponto mais distante. Esses instintos sexuais inibidos em seus objetivos
possuem uma grande vantagem funcional sobre os desinibidos. Desde que não são
capazes de satisfação realmente completa, acham-se especialmente aptos a criar
vínculos permanentes, ao passo que os instintos diretamente sexuais incorrem
numa perda de energia sempre que se satisfazem e têm de esperar serem renovados
por um novo acúmulo de libido sexual; assim, nesse meio tempo, o objeto pode
ter-se alterado. Os instintos inibidos são capazes de realizar qualquer grau de
mescla com os desinibidos; podem ser novamente transformados em desinibidos,
exatamente como deles se originaram. É bem conhecido com que facilidade se
desenvolvem desejos eróticos a partir de relações emocionais de caráter
amistoso, baseadas na apreciação e na admiração (compare-se o ‘Beije-me pelo
amor do grego’, de Molière), entre professor e aluno, recitalista e ouvinte
deliciada, especialmente no caso das mulheres. Na realidade, o crescimento de
laços emocionais desse tipo, com seus começos despropositados, fornece uma via
muito freqüentada para a escolha sexual de objeto. Pfister, em sua Froömmigkeit
des Grafen von Zinzendorf (1910), forneceu um exemplo extremamente claro e
certamente não isolado de quão facilmente até um intenso vínculo religioso pode
converter-se em ardente excitação sexual. Por outro lado, também é muito comum
aos impulsos diretamente sexuais de pequena duração em si mesmos
transformarem-se em um laço permanente e puramente afetuoso; e a consolidação
de um apaixonado casamento de amor repousa em grande parte nesse processo.
Naturalmente não ficaremos surpresos
ao ouvir que os impulsos sexuais inibidos em seus objetivos se originam
daqueles diretamente sexuais quando obstáculos internos ou externos tornam
inatingíveis os objetivos sexuais. A repressão durante o período de latência é
um obstáculo interno desse tipo, ou melhor, um obstáculo que se tornou interno.
Presumimos que o pai da horda primeva, devido à sua intolerância sexual,
compeliu todos os filhos à abstinência, forçando-os assim a laços inibidos em
seus objetivos, enquanto reservava para si a liberdade de gozo sexual,
permanecendo, desse modo, sem vínculos. Todos os vínculos de que um grupo
depende têm o caráter de instintos inibidos em seus objetivos. Porém, aqui nos
aproximamos da discussão de um novo assunto, que trata da relação existente
entre os instintos diretamente sexuais e a formação de grupos.
D.As duas últimas observações nos
terão preparado para descobrir que os impulsos diretamente sexuais são
desfavoráveis para a formação de grupos. Na história da evolução da família é
fato que também houve relações grupais de caráter sexual (casamentos grupais),
mas, quanto mais importante o amor sexual se tornou para o ego e mais
desenvolveu o ego as características de estar amando, com maior premência
exigiu ser limitado a duas pessoas - una cum uno -, como é prescrito
pela natureza do objetivo genital. As inclinações polígamas tiveram de
contentar-se em encontrar satisfação numa sucessão de objetos mutáveis.
Duas pessoas que se reúnem com o
intuito de satisfação sexual, na medida em que buscam a solidão, estão
realizando uma demonstração contra o instinto gregário, o sentimento de grupo.
Quanto mais enamoradas se encontram, mais completamente se bastam uma à outra.
Sua rejeição da influência do grupo se expressa sob a forma de um sentimento de
vergonha. Sentimentos de ciúme da mais extrema violência são convocados para
proteger a escolha de um objeto sexual da usurpação por um laço grupal. Apenas
quando o fator afetuoso, isto é, pessoal, de uma relação amorosa cede
inteiramente lugar ao sensual, torna-se possível a duas pessoas manterem
relações sexuais na presença de outros, ou haver atos sexuais simultâneos num
grupo, tal como ocorre em uma orgia. Nesse ponto, porém, afetuou-se uma
regressão a uma fase anterior das relações sexuais, na qual estar amando ainda
não desempenhava um papel e todos os objetos eram julgados como de igual valor,
um pouco no sentido do malicioso aforismo de Bernard Shaw, segundo o qual estar
apaixonado significa exagerar grandemente a diferença existente entre uma
mulher e outra.
Existem abundantes indicações de que
o estado de estar amando só fez seu aparecimento tardiamente nas relações
sexuais entre homens e mulheres, de maneira que a oposição entre amor sexual e
vínculos grupais constitui também um desenvolvimento tardio. Ora, pode parecer
que essa pressuposição seja incompatível com nosso mito da família primeva,
pois, afinal de contas, por seu amor pelas mães e irmãs a turba de irmãos,
conforme supomos, foi levada ao parricídio, sendo difícil imaginar esse amor
como algo que não fosse indiviso e primitivo, isto é, como uma união íntima do
afetuoso e do sensual. Uma consideração mais atenta, entretanto, transforma
essa objeção à nossa teoria em confirmação dela. Uma das reações ao parricídio
foi, em última análise, a instituição da exogamia totêmica, a proibição de
qualquer relação sexual com aquelas mulheres da família que haviam sido
ternamente amadas desde a infância. Desse modo, enfiou-se uma cunha entre os
sentimentos afetuosos e sensuais do homem, que, atualmente, ainda se acha
firmemente fixada em sua vida erótica. Em resultado dessa exogamia, as
necessidades sensuais dos homens tiveram de ser satisfeitas com mulheres
estranhas e não amadas.
Nos grandes grupos artificiais, a
Igreja e o exército, não há lugar para a mulher como objeto sexual. As relações
amorosas entre homens e mulheres permanecem fora dessas organizações. Mesmo
onde se formam grupos compostos tanto de homens como de mulheres, a distinção
entre os sexos não desempenha nenhum papel. Mal há sentido em perguntar se a
libido que mantém reunidos os grupos é de natureza homossexual ou
heterossexual, porque ela não se diferencia de acordo com os sexos e,
particularmente, mostra um completo desprezo pelos objetivos da organização
genital da libido.
Mesmo na pessoa que, sob outros
aspectos, se absorveu em um grupo, os impulsos diretamente sexuais conservam um
pouco de sua atividade individual. Se se tornam fortes demais, desintegram
qualquer formação grupal. A Igreja Católica possui o melhor dos motivos para
recomendar a seus seguidores que permaneçam solteiros, e para impor o celibato
a seus sacerdotes, mas o apaixonar-se com freqüência impeliu mesmo padres a
abandonar a Igreja. Da mesma maneira, o amor pela mulheres rompe os vínculos
grupais de raça, divisões nacionais e sistema de classes sociais, produzindo importantes
efeitos como fator de civilização. Parece certo que o amor homossexual é muito
mais compatível com os laços grupais, mesmo quando toma o aspecto de impulsos
sexuais desinibidos, fato notável cuja explicação poderia levar-nos longe.
A investigação psicanalítica das
psiconeuroses nos ensinou que seus sintomas devem ser remetidos a impulsos
diretamente sexuais que são reprimidos mas permanecem ainda ativos. Podemos
completar essa fórmula acrescentando: ‘ou a impulsos inibidos nos objetivos,
cuja inibição não foi inteiramente bem-sucedida ou permitiu um retorno do
objetivo sexual reprimido’. Está de acordo com isso que uma neurose torne
associal a sua vítima ou a afaste das formações habituais de grupo. Pode-se
dizer que uma neurose tem sobre o grupo o mesmo efeito desintegrador que o
estado de estar amando. Por outro lado, parece que onde foi dado um poderoso
ímpeto à formação de grupo, as neuroses podem diminuir ou, pelo menos
temporariamente, desaparecer. Justificáveis tentativas foram feitas para situar
esse antagonismo entre as neuroses e as formações de grupo a serviço da
terapêutica. Mesmo os que não lamentam o desaparecimento das ilusões religiosas
do mundo civilizado de hoje, admitem que, enquanto estiveram em vigor,
ofereceram aos que a elas se achavam presos a mais poderosa proteção contra o
perigo da neurose. Tampouco é difícil discernir que todos os vínculos que ligam
as pessoas a seitas e comunidades místico-religiosas ou filosófico-religiosas,
são expressões de curas distorcidas de todos os tipos de neuroses. Tudo isso se
correlaciona com o contraste entre os impulsos diretamente sexuais e os
inibidos em seus objetivos.
Se é abandonado a si próprio, um
neurótico é obrigado a substituir por suas próprias formações de sintomas as
grandes formações de grupo de que se acha excluído. Ele cria seu próprio mundo
de imaginação, sua própria religião, seu próprio sistema de delírios,
recapitulando assim as instituições da humanidade de uma maneira distorcida,
que constitui prova evidente do papel dominante desempenhado pelos impulsos
diretamente sexuais.
E.Em conclusão, acrescentaremos, do
ponto de vista da teoria da libido, uma estimativa comparativa dos estados em
que estivemos interessados: estar amando, hipnose, formação grupal e neurose.
Estar amando baseia-se na
presença simultânea de impulsos diretamente sexuais e impulsos sexuais inibidos
em seus objetivos, enquanto o objeto arrasta uma parte da libido do ego
narcisista do sujeito para si próprio. Trata-se de uma condição em que há lugar
apenas para o ego e o objeto.
A hipnose assemelha-se ao
estado de estar amando por limitar-se a essas duas pessoas, mas baseia-se
inteiramente em impulsos sexuais inibidos em seus objetivos e coloca o objeto
no lugar do ideal do ego.
O grupo multiplica esse
processo; concorda com a hipnose na natureza dos instintos que o mantém unido e
na substituição do ideal do ego pelo objeto, mas acrescenta a identificação com
outros indivíduos, o que foi talvez, originalmente, tornado possível por terem
eles a mesma relação com o objeto.
Ambos os estados, hipnose e formação
de grupo, constituem um depósito herdado da filogênese da libido humana; a
hipnose sob a forma de uma predisposição e o grupo, ademais disso, como uma
sobrevivência direta. A substituição dos impulsos diretamente sexuais por
aqueles que são inibidos em seus objetivos promove em ambos os estados uma
separação entre o ego e o ideal do ego, separação da qual já se realizara um
começo no estado de estar amando.
A neurose permanece fora
dessa série. Baseia-se também numa peculiaridade do desenvolvimento da libido
humana - o início duas vezes repetido, feito pela função diretamente sexual,
com um período intermediário de latência. Até aqui, ela assemelha-se à hipnose
e à formação de grupo, por ter o caráter de uma regressão, que se acha ausente
do estado de estar amando. Faz seu aparecimento onde quer que a passagem dos
instintos diretamente sexuais para os que são inibidos em seus objetivos não
foi inteiramente bem-sucedida; e representa um conflito entre aquelas
partes dos instintos que foram recebidas no ego, após haverem passado por essa
evolução, e as partes deles que, originando-se do inconsciente reprimido,
esforçam-se - como outros impulsos instintuais completamente reprimidos - por
conseguir satisfação direta. As neuroses são extremamente ricas em conteúdo,
por abrangerem todas as relações possíveis entre o ego e o objeto - tanto
aquelas nas quais o objeto é mantido, como noutras, em que é abandonado ou
erigido dentro do próprio ego - e também as relações conflitantes entre o ego e
o seu ideal do ego.
A PSICOGÊNESE DE UM CASO DE HOMOSSEXUALISMO NUMA MULHER (1920)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ÜBER DIE PSYCHOGENESE EINES
FALLES VONWEIBLICHER HOMOSEXUALITÄT
(a) EDIÇÕES
ALEMÃS:
1920 Int. Z.
Psychoanal., 6 (1), 1-24.
1922 S.K.S.N., 5, 159-94.
1924 G.S., 5, 312-43.
1926 Psychoanalyse der Neurosen, 87-124.
1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 155-88.
1947 G.W., 12, 271-302
.(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘The Psychogenesis
of a Case of Homosexuality in a Woman’
1920 Int. J.
Psycho-Anal., 1, 125-49. (Trad. de Barbara Low e R. Gabler.)
1924 C.P., 2,
202-31. (Mesmos tradutores.)
A presente tradução inglesa é uma
versão consideravelmente modificada da publicada em 1924.
Após um intervalo de quase vinte
anos, Freud publicou no presente artigo uma história clínica bastante
pormenorizada, embora incompleta, de uma paciente. Mas, ao passo que o caso de
‘Dora’ (1905e [1901]), bem como suas contribuições aos Estudos sobre
a Histeria (1905d), tratavam exclusivamente da histeria, começou
agora a considerar mais profundamente toda a questão da sexualidade nas
mulheres. Suas investigações deveriam posteriormente conduzir aos artigos sobre
os efeitos da distinção anatômica entre os sexos (1925j) e sobre a
sexualidade feminina (1931b), também à Conferência XXIII de suas New
Introductory Lectures (1933a). Afora isso, o artigo contém uma
exposição de algumas opiniões posteriores de Freud sobre o homossexualismo em
geral, bem como certas observações interessantes sobre pontos técnicos.
A PSICOGÊNESE DE UM CASO DE
HOMOSSEXUALISMO NUMA MULHER
I
O homossexualismo nas mulheres, que
certamente não é menos comum que nos homens, embora muito menos manifesto, não
só tem sido ignorado pela lei, mas também negligenciado pela pesquisa
psicanalítica. A narração de um caso isolado, não muito marcante em categoria,
no qual foi possível determinar sua origem e desenvolvimento na mente com uma
segurança completa e quase sem lacunas, pode assim reivindicar certa atenção.
Se essa apresentação do caso fornece apenas os contornos mais gerais dos
diversos fatos correlacionados e das conclusões obtidas de um estudo do caso,
suprimindo ao mesmo tempo todos os pormenores característicos sobre os quais se
funda a interpretação, essa limitação pode ser facilmente explicada pela
discrição médica necessária à discussão de um caso recente.
Uma bela e inteligente jovem de
dezoito anos, pertencente a uma família de boa posição, despertara desprazer e
preocupação em seus pais pela devotada adoração com que perseguia certa ‘dama
da sociedade’ cerca de dez anos mais velha que ela própria. Os pais asseguravam
que, a despeito de seu nome eminente, essa senhora não era mais que uma cocotte.
Era bem conhecido, diziam, que vivia com uma amiga, uma mulher casada, com quem
tinha relações íntimas ao mesmo tempo que mantinha casos promíscuos com certo
número de homens. A moça não desmentia esses relatos maldosos, mas sequer
permitia-lhes interferir em sua adoração da dama, embora de modo algum lhe
faltasse certo senso de decência e propriedade. Nem as proibições nem a
vigilância impediam a jovem de aproveitar todas as suas raras oportunidades de
encontrar-se com a bem-amada, de verificar todos os seus hábitos, de esperar
por ela durante horas diante de sua porta ou numa parada de bonde, de
mandar-lhe presentes ou flores, e assim por diante. Era evidente que esse
interesse único havia engolfado todos os outros na mente da jovem. Não se
preocupava mais com os estudos, não se interessava por funções sociais ou
prazeres de moça e mantinha relações apenas com algumas amigas que podiam
auxiliá-la na questão ou servir-lhe de confidentes. Os pais não podiam dizer a
que ponto a filha havia chegado em suas relações com a discutível senhora, se
os limites da admiração devotada já haviam ou não sido ultrapassados. Jamais
tinham observado na filha qualquer interesse em moços, nem prazer em seus
galanteios, ao passo que, por outro lado, se achavam seguros de sua presente ligação
a uma mulher constituir apenas a seqüência, em grau mais acentuado, de um
sentimento que em anos recentes demonstrara por outros membros de seu próprio
sexo, sentimento que já despertara a suspeita e a ira do pai.
Dois pormenores em seu comportamento,
estando um em aparente contraste com o outro, mais especialmente agastavam os
pais. De um lado, não tinha escrúpulos quanto a aparecer nas ruas mais
freqüentadas em companhia de sua indesejável amiga, então sendo bastante
negligente quanto à própria reputação; de resto, não desprezava nenhum meio de
embuste, desculpas e mentiras que possibilitassem seus encontros com a amiga e
os acobertassem. Assim, mostrava-se demasiado franca sob um dos aspectos e
noutros, cheia de embustes. Um dia ocorreu de fato, como mais cedo ou mais
tarde seria inevitável nas circunstâncias, o pai encontrar a filha em companhia
da senhora, acerca de quem chegara a conhecer. Passou por elas de olhar irado,
prenunciando nada de bom. Subitamente, a jovem saiu correndo e arremeteu-se em
direção a um muro, saltando-o para o lado de um corte que dava para a linha
ferroviária suburbana ali perto. Pagou essa tentativa indiscutivelmente séria
de suicídio com um tempo considerável deitada de costas na cama, embora,
afortunadamente, fossem poucos os danos permanentes causados. Após a
recuperação, descobriu ser mais fácil que antes conseguir o que queria. Os pais
não ousaram opor-se-lhe com tanta determinação e a senhora, que até então
recebera friamente seus avanços, comoveu-se com prova tão inequívoca de séria
paixão e começou a tratá-la de maneira mais amistosa.
Aproximadamente seis meses após o
episódio, os pais buscaram orientação médica e confiaram ao médico a tarefa de
reconduzir sua filha a um estado normal de espírito. A tentativa de suicídio da
jovem evidentemente lhes tinha mostrado que fortes medidas disciplinares em
casa eram impotentes para vencer esse seu distúrbio. Antes de prosseguir será,
porém, desejável considerar separadamente as atitudes do pai e da mãe perante o
assunto. O pai, um homem sério e conceituado, no fundo de coração muito terno;
porém, até certo ponto tinha alheado de si os filhos com a rigidez que adotara
para com eles. Seu tratamento com a filha única era demasiadamente influenciado
pela consideração que tinha pela mulher. Quando soubera, pela primeira vez, das
tendências homossexuais da filha, ficara enfurecido e tentara suprimi-las com
ameaças. Naquela ocasião, talvez, hesitava entre opiniões diferentes, embora do
mesmo modo aflitivas: encarando a filha como viciosa, ou degenerada ou
mentalmente perturbada. Sequer após a tentativa de suicídio não lograra a
eloqüente resignação demonstrada por um de nossos colegas médicos que observou
de uma irregularidade semelhante em sua própria família: ‘Bem, é apenas uma infelicidade
como qualquer outra’. Havia algo no homossexualismo da filha que lhe despertava
a mais profunda amargura, e estava determinado a combatê-lo por todos os meios
em seu poder. A pouca estima em que a psicanálise geralmente é tida em Viena
não impediu que se voltasse a ela em busca de auxílio. Falhasse essa solução,
ele ainda tinha de reserva sua mais forte medida defensiva: um casamento rápido
deveria despertar os instintos naturais da moça e abafar suas tendências
inaturais.
A atitude da mãe para com a jovem
não era tão fácil de compreender. Ela era uma mulher jovem, evidentemente pouco
disposta a abandonar seus próprios direitos à atração. Claro era o fato global
de ela não tomar o enamoramento da filha tão tragicamente como o pai, e
tampouco se enfurecia com ele. Havia mesmo, por certo tempo, desfrutado da
confiança da filha relativamente à paixão dela. Sua oposição a ela parecia ter
sido sobretudo despertada pela danosa publicidade com que a moça demonstrava
seus sentimentos. Ela própria sofrera, durante alguns anos, de problemas
neuróticos e gozava de grande consideração por parte do marido. Tratava os
filhos de modos inteiramente diferentes, sendo decididamente áspera com a filha
e de excessiva indulgência com os três filhos, dos quais o mais novo nascera
após longo intervalo e não contava, então, ainda três anos de idade. Não era
fácil apurar algo de mais definido a respeito do seu caráter, porque, por
motivos que posteriormente se tornarão inteligíveis, a paciente era sempre
reservada no que dizia sobre a mãe, ao passo que, em relação ao pai, nada disso
acontecia.
Para um médico que fosse empreender
o tratamento psicanalítico da jovem, havia muitos fundamentos para
desconfiança. A situação que devia tratar não era a que a análise exige, na qual
somente ela pode demonstrar sua eficácia. Sabe-se bem que a situação ideal para
a análise é a circunstância de alguém que, sob outros aspectos, é seu próprio
senhor, estar no momento sofrendo de um conflito interno, que é incapaz de
resolver sozinho; assim leva seu problema ao analista e lhe pede auxílio. O
médico então trabalha de mãos dadas com uma das partes da personalidade
patologicamente dividida, contra a outra parte no conflito. Qualquer situação
que dessa difira é, em maior ou menor grau, desfavorável para a psicanálise e
acrescenta novas dificuldades às internas, já presentes. Situações como as de
um proprietário em perspectiva, que ordena a um arquiteto construir-lhe uma
vivenda de acordo com seus próprios gostos e exigências, ou de doador piedoso
que comissiona um artista para pintar um quadro sacro, em cujo canto deve haver
um seu retrato em adoração: tais são, no fundo, incompatíveis com as condições
necessárias à psicanálise. Assim, acontece constantemente que um marido instrua
o médico do seguinte modo: ‘Minha esposa sofre dos nervos e, por isso, dá-se
muito mal comigo; por favor, cure-a, a fim de podermos levar novamente uma vida
conjugal feliz.’ Com muita freqüência, porém, fica provado que a um pedido
desses é impossível atender, isto é, o médico não poder expor o resultado para
o qual o marido procurou o tratamento. Assim que a esposa se liberta de suas
inibições neuróticas, põe-se a conseguir uma separação, porque sua neurose era
a única condição sob a qual o matrimônio podia ser mantido. Ou então os pais
esperam que curem seu filho nervoso e desobediente. Entendem por criança sadia
a que nunca cause problemas aos pais e nada lhes dê senão prazer. O médico pode
conseguir a cura da criança, mas, depois, ela faz o que quer com mais decisão ainda,
e a insatisfação dos pais é bem maior que antes. Em suma, não é indiferente que
alguém venha à psicanálise por sua própria vontade ou seja levado a ela, quando
é ele próprio que deseja mudar, ou apenas os seus parentes, que o amam (ou se
supõe que o amem).
Outros aspectos desfavoráveis no
presente caso eram os fatos de a jovem não estar de modo algum doente (não
sofria em si de nada, nem se queixava de sua condição) e de a tarefa a cumprir
não consistir em solucionar um conflito neurótico, mas em transformar
determinada variedade da organização genital da sexualidade em outra. Tal
realização - a remoção da inversão genital ou homossexualismo - nunca, pela
minha experiência, é matéria fácil. Pelo contrário, só achei possível o êxito
em circunstâncias especialmente favoráveis e, assim mesmo, o sucesso consistia
essencialmente em facilitar o acesso ao sexo oposto (até então barrado) a uma
pessoa restrita ao homossexualismo, restaurando assim suas funções bissexuais
plenas. Depois, competia a ela escolher se desejava abandonar o caminho que é
proibido pela sociedade, e, em alguns casos, assim procedia. Devemos
lembrar-nos de que também a sexualidade normal depende de uma restrição na
escolha do objeto. Em geral, empreender a conversão de um homossexual plenamente
desenvolvido em um heterossexual não oferece muito maiores perspectivas de
sucesso que o inverso; exceto que, por boas e práticas razões, o último caso
nunca é tentado.
O número de êxitos conseguidos pelo
tratamento psicanalítico das diversas formas de homossexualismo, que, por
casualidade, são múltiplas, na verdade não é muito notável. Via de regra, o
homossexual não é capaz de abandonar o objeto que o abastece de prazer e não se
pode convencê-lo de que, se fizesse a mudança, descobriria em outro objeto o
prazer a que renunciou. Se chega a ser tratado, isso se dá principalmente pela
pressão de motivos externos, tais como as desvantagens sociais e os perigos
ligados à sua escolha de objetos; e esses componentes do instinto de
autoconservação mostram-se fracos demais na luta contra os impulsos sexuais.
Então, logo descobrimos seu plano secreto, que é obter do notável fracasso de
sua tentativa um sentimento de satisfação por ter feito tudo quanto possível
contra a sua anormalidade, com o qual pode resignar-se agora de consciência
tranqüila. O caso é um tanto diferente quando a consideração por pais e
parentes queridos foi o motivo da sua tentativa de curar-se. Aqui estão
realmente presentes impulsos libidinais que podem aplicar energias opostas à
escolha homossexual de objeto, contudo sua força raramente é suficiente. Apenas
onde a fixação homossexual ainda não se tornou suficientemente forte, ou onde
existem consideráveis rudimentos e vestígios de uma escolha heterossexual de
objeto, isto é, numa organização ainda oscilante ou definitivamente bissexual,
é que se pode efetuar um prognóstico mais favorável para a psicoterapia
psicanalítica.
Por essas razões me abstive por
completo de oferecer aos pais qualquer perspectiva de realização de seu desejo.
Simplesmente lhes disse que estava preparado para estudar cuidadosamente a moça
durante algumas semanas ou meses, para então poder julgar em que medida uma
continuação da análise teria probabilidade de influenciá-la. Em bom número de
casos é fato uma análise incidir em duas fases claramente distinguíveis. Na
primeira, o médico consegue do paciente as informações necessárias,
familiariza-o com as premissas e os postulados da psicanálise e lhe revela a
reconstrução da gênese de seu distúrbio, como essa é deduzida do material
trazido à análise. Na segunda fase, o próprio paciente se apossa do material
que lhe foi apresentado; trabalha sobre ele, recorda-se do que pode de
lembranças aparentemente reprimidas e tenta repetir o resto, como se de alguma
forma o estivesse vivendo novamente. Pode assim confirmar, suplementar e
corrigir as inferências do médico. Só durante esse trabalho que ele
experimenta, pela vitória sobre as resistências, a mudança interior a que visa
e adquire para si as convicções que o tornam independente da autoridade do
médico. Essas duas fases no curso do tratamento analítico não estão sempre
nitidamente separadas uma da outra, o que só pode acontecer quando a
resistência obedece a certas condições. Mas sendo assim, pode-se apresentar,
como analogia, as duas etapas de uma viagem. A primeira compreende todos os
preparativos necessários, hoje tão complicados e difíceis de efetuar, antes de,
passagem na mão, poder-se finalmente chegar à plataforma e garantir um lugar no
trem. Tem-se então o direito e a possibilidade de viajar para um país distante;
mas, passadas aquelas diligências, ainda não nos encontramos lá; na verdade,
não estamos um quilômetro sequer mais próximos de nosso destino. Para que isso
aconteça, há que efetuar a própria viagem, de uma estação à outra, e essa parte
da execução bem pode ser comparada à segunda fase da análise.
O curso da análise da atual paciente
acompanhou esse modelo de duas fases, todavia não foi continuado após o início
da segunda. Uma constelação especial da resistência tornou possível, não
obstante, conseguir uma plena confirmação de minhas construções teóricas e
obter uma compreensão interna (insight) adequada, em linhas gerais, da
maneira pela qual sua inversão se desenvolvera. Mas antes de relatar as
descobertas da análise, devo tratar de alguns pontos que ou já foram aflorados
por mim ou despertarão um interesse especial no leitor.
Fiz o prognóstico parcialmente na
dependência da extensão em que a jovem lograra satisfazer sua paixão. As
informações que obtive durante a análise pareceram favoráveis nesse respeito.
Com nenhum dos objetos de sua adoração havia a paciente fruído de algo além de
alguns beijos e abraços; sua castidade genital, se se pode usar essa expressão,
permanecera intacta. Quanto à demi-mondaine que despertava suas mais
recentes e, de longe, mais intensas emoções, ela sempre a tratara friamente e
nunca lhe fora permitido qualquer favor maior do que beijar-lhe a mão.
Provavelmente ela transformava a necessidade em virtude, quando insistia na
pureza de seu amor e em sua repulsão física à idéia de qualquer relação sexual.
Mas pode ser que não se achasse inteiramente enganada ao gabar-se de sua
maravilhosa bem-amada, que, sendo de boa família como era, e forçada à presente
situação apenas devido a circunstâncias familiares adversas, havia conservado a
despeito de sua situação atual, muita nobreza de caráter. A dama costumava
recomendar à moça, sempre quando se encontravam, que afastasse sua afeição dela
e das mulheres em geral, havendo persistentemente rejeitado todos os avanços da
jovem até a ocasião da tentativa de suicídio.
Um segundo ponto, que imediatamente
tentei investigar, relacionava-se com quaisquer motivos possíveis na própria
moça que pudessem servir de base para o tratamento psicanalítico. Ela não
procurou enganar-me dizendo sentir alguma necessidade urgente de libertar-se de
seu homossexualismo. Pelo contrário, disse ser incapaz de imaginar outra
maneira de enamorar-se, mas acrescentou que, por amor aos pais, auxiliaria
honestamente no esforço terapêutico, de vez que lhe doía muito ser-lhes a causa
de tanto pesar. Inicialmente, não pude deixar de considerar essa intenção
também como um signo propício, pois não podia imaginar a atitude emocional
inconsciente que jazia oculta por trás dela. O que nessa correlação
posteriormente veio à luz influenciou decisivamente o curso tomado pela análise
e determinou a sua conclusão prematura.
Os leitores não versados em
psicanálise há muito estarão aguardando uma resposta a duas outras perguntas.
Apresentava essa jovem homossexual características físicas claramente
pertinentes ao sexo oposto, e o caso provou ser homossexualismo congênito ou
adquirido (desenvolvido posteriormente)?
Estou ciente da importância que se
prende à primeira das perguntas, contudo não se deve exagerá-la e permitir-lhe
que obscureça o fato de características secundárias esporádicas do sexo oposto
amiúde estarem presentes em indivíduos normais, e de características físicas
bem acentuadas do sexo oposto poderem existir em pessoas cuja escolha de objeto
não experimentou mudança no sentido da inversão. Noutras palavras, em ambos os
sexos o grau de hermafroditismo
físico é, em grande parte, independente do hermafroditismo psíquico.
Alterando essas afirmativas, deve-se acrescentar que tal independência é mais
evidente nos homens que nas mulheres, onde traços corporais e mentais
pertencentes ao sexo oposto tendem a coincidir. Entretanto, não me encontro em
posição de fornecer uma resposta satisfatória à primeira de nossas questões
sobre minha paciente. O psicanalista de hábito se abstém de um exame físico
detalhado de seus pacientes, em certos casos. Certamente não havia desvio óbvio
do tipo físico feminino, sequer qualquer distúrbio menstrual. A jovem bela e
bem-feita tinha, de fato, a figura alta do pai e suas feições eram mais agudas
do que suaves e feminis, traços que podiam ser vistos como indicadores de
masculinidade física. Alguns de seus atributos intelectuais também podiam estar
vinculados à masculinidade, como, por exemplo, sua acuidade de compreensão e
sua lúcida objetividade, na medida em que não se achava dominada por sua
paixão. Mas essas distinções são antes convencionais que cientificas. O que
certamente tem importância maior é a jovem, em seu comportamento para com seu
objeto amoroso, haver assumido inteiramente o papel masculino, isto é,
apresentava a humildade e a sublime supervalorização do objeto sexual tão
características do amante masculino, a renúncia a toda satisfação narcisista e
a preferência de ser o amante e não o amado. Havia, assim, não apenas escolhido
um objeto amoroso feminino, mas desenvolvera também uma atitude masculina para
com esse objeto.
A segunda questão - se se tratava de
um caso de homossexualismo congênito ou adquirido - será respondida pela
história completa da anormalidade da paciente e de sua evolução. O estudo desse
aspecto nos mostrará até onde essa questão é estéril e despropositada.
II
Após essa introdução altamente
discursiva, apenas posso apresentar um resumo muito conciso da história sexual
do caso em consideração. Na infância, a jovem passou pela atitude normal
característica do complexo de Édipo feminino de maneira não tanto notável e
posteriormente começara a substituir o pai por um irmão ligeiramente mais velho
que ela. Não se lembrava de quaisquer traumas sexuais no começo da vida, nem
tampouco algum foi descoberto pela análise. A comparação entre os órgãos
genitais do irmão e os seus, que fez pelo início do período de latência (aos
cinco anos de idade ou, talvez, um pouco antes), deixara-lhe forte impressão e
tivera efeitos posteriores de grandes conseqüências. Havia poucos sinais a
apontar para a masturbação infantil ou, então, a análise não foi
suficientemente longe para lançar luz sobre este ponto. O nascimento de um
segundo irmão quando contava entre cinco e seis anos de idade, não exerceu
influência especial sobre seu desenvolvimento. Durante os anos de
pré-puberdade, na escola, gradualmente familiarizou-se com os fatos do sexo e
recebeu este conhecimento com sentimentos mistos de lascívia e assustada
aversão, de uma maneira que se pode chamar de anormal e sem exagero em grau.
Este número de informações sobre ela parece bastante escasso e tampouco posso
garantir que seja completo. Pode ser que a história de sua juventude fosse
muito mais rica em experiências; não sei. Como já disse, a análise foi
interrompida após curto tempo e, portanto, produziu uma anamnese não muito mais
digna de fé que as outras anamneses de homossexuais, de que há bons motivos
para duvidar. Além disso, a jovem nunca fora neurótica e chegara a análise sem
um único sintoma histérico, de modo que as oportunidades para investigar a
história de sua infância não se apresentaram tão prontamente quanto de hábito.
Na idade dos treze aos quatorze anos
apresentara uma afeição terna e, segundo a opinião geral, exageradamente forte
por um menino de menos de três anos de idade, a quem costumava ver regularmente
num playground infantil. Apegou-se à criança tão calorosamente que, em
conseqüência, uma amizade duradoura surgiu entre ela e os pais dele. Pode-se
inferir desse episódio que, naquela época, achava-se possuída de forte desejo
de ser mãe e ter um filho. Contudo, após curto tempo, tornou-se indiferente ao
menino e começou a interessar-se por mulheres maduras porém de aparência ainda
jovem. As manifestações desse interesse logo lhe valeram um severo castigo das
mãos de seu pai.
Ficou estabelecido, além de qualquer
dúvida, que essa mudança ocorreu simultaneamente com certo acontecimento na
família e, assim, pode-se examiná-lo em busca de alguma explicação para a
mudança. Antes que acontecesse, sua libido se concentrava em uma atitude
maternal, a seguir tornando-se uma homossexual atraída por mulheres maduras,
assim permanecendo desde então. O acontecimento, tão significante para a nossa
compreensão do caso, foi uma nova gravidez de sua mãe, e o nascimento de um
terceiro irmão quando a paciente contava cerca de dezesseis anos de idade.
A situação de ocorrências que agora
passarei a revelar não é produto de minhas forças inventivas; baseia-se em
provas analíticas tão dignas de fé, que para ela posso reivindicar uma validez
objetiva. Foi, em particular, uma série de sonhos, inter-relacionados e fáceis
de interpretar, que me fizeram decidir em favor de sua realidade.
A análise da jovem revelou, sem
sombra de dúvida, que a amada era uma substituta de sua mãe. É verdade que a
própria dama não era mãe; contudo, também não era o primeiro amor da moça. Os
primeiros objetos de sua afeição após o nascimento do irmão mais novo haviam
sido realmente mães, mulheres entre trinta e trinta e cinco anos de idade, a
quem havia encontrado com os filhos durante férias de verão ou no círculo
familiar de conhecidos na cidade. A maternidade como condição sine qua non em
seu objeto amoroso foi posteriormente abandonada, de vez que na vida real essa
precondição era difícil de combinar com outra, que foi tornando-se cada vez
mais importante. A ligação sobremodo intensa com seu último amor tinha, ainda,
outro fundamento que a jovem com facilidade descobriu certo dia. A figura
esbelta, a beleza severa e a postura ereta de sua dama faziam-na lembrar-se do
irmão que era um pouco mais velho que ela. Assim, sua última escolha
correspondia não só ao ideal feminino, como também ao masculino; combinava a satisfação
da tendência homossexual com a da tendência heterossexual. É bem sabido que a
análise de homossexuais masculinos em numerosos casos revelou a mesma
combinação, o que deveria nos alertar contra formarmos uma concepção demasiado
simples de natureza e gênese da inversão e mantermos em mente a bissexualidade
universal dos seres humanos.
Como, porém, devemos compreender o
fato de ter sido precisamente o nascimento de uma criança, chegada à família
extemporaneamente (numa ocasião em que a própria jovem já estava madura e com
intensos desejos próprios), que a levou a aplicar sua ternura apaixonada à
mulher que dera à luz essa criança, isto é, à sua própria mãe, e expressar esse
sentimento para com um substituto materno? De tudo quanto sabemos seria de esperarmos
exatamente o oposto. Em tais circunstâncias, as mães com filhas em idade
próxima de casar geralmente se sentem embaraçadas em relação a elas, e as
filhas capazes de sentir pelas mães uma mescla de compaixão, desprezo e inveja,
que em nada contribui para aumentar sua ternura com elas. A jovem que estamos
considerando tinha, de modo geral, poucos motivos para sentir afeição pela mãe.
A mãe, moça ainda, via na filha, que se desenvolvia rapidamente, uma
competidora inconveniente; favorecia os filhos em detrimento dela, limitava-lhe
a independência tanto quanto possível e mantinha vigilância especialmente
estrita contra qualquer relação mais chegada entre a jovem e o pai. Assim,
ansiar, desde o começo, por uma mãe mais bondosa fora inteiramente compreensível,
contudo difícil de entender é a razão por que deveria ter-se inflamado
exatamente naquela ocasião e sob a forma de uma paixão consumidora.
A explicação é a seguinte: no exato
período em que a jovem experimentava a revivescência de seu complexo de Édipo
infantil, na puberdade, sofreu seu grande desapontamento. Tornou-se
profundamente cônscia do desejo de possuir um filho, um filho homem; seu desejo
de ter o filho de seu pai e uma imagem dele, na consciência ela
não podia conhecer. Que sucedeu depois? Não foi ela quem teve o filho,
mas sua rival inconscientemente odiada, a mãe. Furiosamente ressentida e
amargurada, afastou-se completamente do pai e dos homens. Passado esse primeiro
grande revés, abjurou de sua feminidade e procurou outro objetivo para sua
libido.
Assim procedendo, comportou-se
exatamente como muitos homens que, após uma primeira experiência penosa, dão as
costas, para sempre, ao infiel sexo feminino e se tornam odiadores de mulheres.
Relata-se de uma das mais atraentes e infelizes figuras principescas de nossa
época que ele se tornou homossexual porque a dama com quem estava comprometido
em matrimônio traiu-o com outro homem. Ignoro se isso é historicamente
verdadeiro, mas por trás do boato há um elemento de verdade psicológica. Em
todos nós, no decorrer da vida, a libido oscila normalmente entre objetos
masculinos e femininos; o solteiro abandona seus amigos homens, ao casar-se, e
retorna à vida de clube quando a vida conjugal perdeu o sabor. Naturalmente,
quando a amplitude da oscilação é fundamental e final, suspeitamos da presença
de algum fator especial que favorece definidamente um lado ou outro e que
talvez só tenha esperado pelo momento apropriado para voltar a escolha de
objeto em sua direção.
Assim, após seu desapontamento a
jovem repudiara inteiramente seu desejo de um filho, o amor dos homens e o
papel feminino em geral. É evidente que, nesse ponto, algumas coisas bem
diferentes poderiam ter acontecido. O que realmente ocorreu foi o caso mais
extremo. Ela se transformou em homem e tomou a mãe, em lugar do pai, como
objeto de seu amor. Sua relação com a mãe certamente fora ambivalente desde o
início, foi fácil reviver o primitivo amor por ela e, com o seu auxílio,
provocar uma supercompensação de sua hostilidade atual para com a mesma. De vez
que pouco havia a fazer com a mãe real, dessa transformação de sentimentos
nasceu a busca de uma mãe substituta, a quem poderia ligar-se apaixonadamente.
Ademais, havia um motivo prático
para essa mudança, derivado de suas relações reais com a mãe, que serviu como
novo ganho [secundário] à sua doença. A própria mãe ainda ligava grande valor
às atenções e à admiração dos homens. A jovem, tornando-se homossexual e
deixando os homens para a mãe (noutras palavras, ‘se se retirasse em benefício’
dela), poderia afastar algo que até então fora parcialmente responsável pela
antipatia da mãe.
Essa posição libidinal da jovem, a
que se chegou, foi grandemente reforçada tão logo percebeu o quanto ela
desagradava a seu pai. Após ter sido punida por sua atitude tão afetuosa para
com uma mulher, compreendeu como poderia ferir o pai e vingar-se dele. Desde
então permaneceu homossexual em desafio ao pai, sequer também tinha escrúpulos
em mentir-lhe e enganá-lo de todas as formas. Para com a mãe, na verdade, só era
falsa na medida do necessário, para impedir o pai de saber de coisas. Tive a
impressão de que seu comportamento seguia o princípio de Talião: ‘De vez que
você me traiu, tem de se conformar com que eu o traia.’ Não cheguei a nenhuma
outra conclusão sobre a notável falta de precauções apresentada pela jovem, sob
outros aspectos de uma excessiva sagacidade. Ela queria que o pai
soubesse ocasionalmente de suas relações com a dama, do contrário ficaria
privada da satisfação de seu desejo mais penetrante, ou seja, a vingança.
Assim, tomou essa providência mostrando-se abertamente em companhia de sua
adorada, passeando com ela pelas ruas próximas de onde o pai tinha seus
negócios, e coisas semelhantes. Ademais, essa inabilidade absolutamente não era
intencional. Era notável, também, que ambos os genitores se comportavam como se
entendessem a psicologia secreta da filha. A mãe era tolerante, como se
apreciasse a ‘retirada’ da filha como um favor feito a ela; o pai se enfurecia,
como se compreendesse a vingança deliberada dirigida contra ele.
A inversão da jovem, entretanto,
recebeu o reforço final quando descobriu em sua ‘dama’ um objeto que prometia
satisfazer não apenas as suas inclinações homossexuais, como também aquela
parte de sua libido que ainda se achava ligada ao irmão.
III
A apresentação linear não constitui
um meio muito adequado de descrever complicados processos mentais que se
desenrolam em camadas diferentes da mente. Dessa forma, sou obrigado a fazer
uma pausa no exame do caso e tratar mais ampla e profundamente alguns dos
pontos acima apresentados.
Mencionei que, em seu comportamento
para com a dama adorada, a jovem adotara o característico tipo masculino de
amor. Sua humildade e sua terna ausência de pretensões, ‘che poco spera e
nulla chiede‘, sua felicidade quando lhe permitiam acompanhar um pouco a
senhora e beijar sua mão ao se separar, sua alegria quando ouvia elogiarem-na
de bela ao passo que qualquer reconhecimento de sua própria beleza por outra
pessoa não lhe significava absolutamente nada, suas peregrinações a lugares
outrora visitados pela bem-amada, o silêncio de todos os desejos mais sensuais
- todos esses pequenos traços seus se assemelhavam à primeira e apaixonada
admiração de um jovem por uma atriz célebre, a quem considera estar em plano
muito mais alto do que ele e para quem mal se atreve a levantar os acanhados
olhos. A correspondência com ‘um tipo especial de escolha de objeto feita pelos
homens’ que descrevi noutra parte (1910h) e cujas características
especiais remeti à ligação com a mãe, aplicava-se mesmo nos menores detalhes.
Pode parecer digno de nota que ela não fosse de modo algum repelida pela má
reputação de sua amada, embora suas próprias observações confirmassem
suficientemente a verdade de tais boatos. Era, afinal de contas, uma jovem bem
educada e recatada, que evitava para si aventuras sexuais e encarava como
antiestéticas as satisfações grosseiramente sensuais. No entanto, já as suas
primeiras paixões haviam sido por mulheres, não afamadas por um comportamento
especialmente rígido. O primeiro protesto lançado pelo pai contra sua escolha
amorosa fora evocado pela pertinácia com que procurara a companhia de uma atriz
cinematográfica num lugar de veraneio. Ademais, em todos esses casos, nunca se
tratara de mulheres que tivessem qualquer reputação por homossexualismo e que,
portanto, poderiam ter-lhe oferecido alguma perspectiva de satisfação
homossexual; pelo contrário, ilogicamente cortejava mulheres coquetes,
no sentido comum da palavra, e rejeitara sem hesitação os avanços
condescendentes feitos por uma amiga homossexual de sua mesma idade. Para ela,
a má reputação de sua ‘dama’, contudo, era positivamente uma ‘condição
necessária para o amor’. Tudo de enigmático nessa atitude se desvanece quando
recordamos que também no caso do tipo masculino de escolha de objeto
derivado da mãe é condição necessária que o objeto amado seja, de uma maneira
ou outra, sexualmente ‘de má reputação’, alguém que realmente possa ser chamada
de cocotte. Quando a jovem mais tarde descobriu o quanto sua adorada
dama merecia essa qualificação e que vivia simplesmente de oferecer seus
favores corporais, sua reação assumiu a forma de uma grande compaixão e de
fantasias e planos para ‘resgatar’ sua querida dessas circunstâncias ignóbeis.
Ficamos impressionados com o mesmo ímpeto de ‘resgatar’, nos homens do tipo
acima mencionado, e, em minha descrição tentei fornecer a derivação analítica
desse impulso.
Somos levados a outro domínio
inteiramente diferente de explicação pela análise da tentativa de suicídio, que
devo encarar como seriamente intencionada e que, incidentalmente, melhorou
bastante sua posição tanto com relação aos pais quanto à senhora que amava.
Saiu, certo dia, de passeio com ela, numa parte da cidade e em hora que não era
improvável encontrar seu pai de volta do escritório. Assim aconteceu. O pai
passou por ela, na rua, de olhar furioso para ela e sua companheira, de que,
nessa época, vinha tomando conhecimento. Poucos momentos depois, ela atirou-se
para dentro do corte ferroviário. A sua explicação das razões imediatas que
determinaram sua decisão, pareciam inteiramente plausíveis. Confessara à
senhora que o homem que lhes dirigira o olhar tão enfurecido era seu pai, e que
ele proibira por completo a amizade entre elas. A dama encolerizara-se com isso
e ordenara à jovem que a deixasse ali mesmo e nunca mais esperá-la ou a ela se
dirigir: o caso tinha de terminar ali. Desesperada por haver dessa forma
perdido para sempre sua bem-amada, quis pôr termo à sua própria vida. A análise,
contudo, pode descobrir outra interpretação mais profunda por trás da que
forneceu, confirmada pela interpretação dos próprios sonhos da paciente. A
tentativa de suicídio, como se podia esperar, foi determinada por dois outros
motivos, além do que ela forneceu: a realização de uma punição (autopunição) e
a realização de um desejo. Esse último significava a consecução do próprio
desejo que, quando frustrado, a impelira ao homossexualismo: o desejo de ter um
filho do pai, pois agora ela ‘caíra’ por culpa do pai. O fato de, naquele
momento, a senhora haver-lhe falado exatamente nos mesmos termos que o pai e
proferido a mesma proibição, forma o elo vinculatório entre essa interpretação
profunda e a superficial, de que a própria jovem estava ciente. Do ponto de vista
da autopunição, a ação da jovem nos mostra que desenvolvera no inconsciente
intensos desejos de morte contra um ou outro de seus genitores, talvez contra o
pai, como vingança por impedir seu amor, porém mais provavelmente contra a mãe,
quando grávida do irmão pequeno, tendo a análise explicado o enigma do suicídio
da seguinte maneira: é provável que ninguém encontre a energia mental
necessária para matar-se, a menos que, em primeiro lugar, agindo assim, esteja
ao mesmo tempo matando um objeto com quem se identificou e, em segundo lugar,
voltando contra si próprio um desejo de morte antes dirigido contra outrem.
Tampouco a descoberta regular desses desejos de morte inconscientes naqueles
que tentaram o suicídio precisa surpreender-nos (não mais do que deveria para
fazer-nos refletir que isso confirma nossas deduções), de vez que o
inconsciente de todos os seres humanos se acha bem repleto de tais desejos de
morte, até contra aqueles a quem amam. Uma vez que a jovem se identificava com
a mãe, que deveria ter morrido no nascimento do filho, a ela negado, essa
realização de punição constituía mais uma vez uma realização de desejo.
Finalmente, a descoberta de que vários motivos inteiramente diversos, todos de
grande intensidade, devem ter cooperado para tornar possível tal ação, está de
estrito acordo com o que esperaríamos.
No relato da jovem, de seus motivos
conscientes, o pai não figurou em absoluto; sequer foi mencionado o temor de
sua ira. Nos motivos desnudados pela análise, por outro lado, ele desempenhava
o papel principal. Sua relação com o pai teve a mesma importância decisiva para
o curso e o resultado do tratamento analítico, ou antes, exploração analítica.
Por trás de sua pretensa consideração pelos genitores, por amor dos quais
dispusera-se a efetuar as tentativa de transformação, jazia escondida sua
atitude de desafio e vingança contra o pai, atitude que a fizera aferrar-se ao
homossexualismo. Protegida sob essa cobertura, a resistência liberou à
investigação analítica uma considerável região. A análise prosseguiu quase sem
sinais de resistência, a paciente participando ativamente com o seu intelecto,
embora emocionalmente bastante tranqüila. Certa vez, ao lhe expor uma parte
especialmente importante da teoria, que lhe tocava de perto, ela respondeu num
tom inimitável, ‘Que interessante’, como se fosse uma grande dame levada
a um museu e passando o olhar, através de seu lorgnon, por objetos a que
era completamente indiferente. A impressão que se tinha de sua análise não era
diferente da que se tem de um tratamento hipnótico, em que a resistência, da
mesma maneira, se retirou para certa linha limítrofe, além da qual mostra ser
inconquistável. A resistência com muita freqüência emprega táticas semelhantes,
táticas russas, como se poderia chamá-las, em casos de neuroses obsessivas. Em
conseqüência, durante certo tempo, esses casos apresentam os mais claros
resultados e permitem uma profunda compreensão interna (insight) da
causa dos sintomas. Dentro em pouco, porém, começa-se a imaginar como um
progresso tão acentuado na compreensão analítica pode estar desacompanhado até
mesmo da mais ligeira mudança nas compulsões e inibições do paciente, até que
por fim se percebe que tudo quanto foi realizado está sujeito a uma reserva
mental de dúvida e que por trás dessa barreira protetora a neurose pode
sentir-se segura. ‘Tudo seria muito bom’, pensa o paciente, muitas vezes de
modo inteiramente consciente, ‘se eu fosse obrigado a acreditar no que o homem
diz, mas como não se trata disso e enquanto for assim, não preciso mudar nada.’
Depois, ao nos aproximarmos dos motivos para essa dúvida, a batalha com as
resistências irrompe a sério.
No caso de nossa paciente, não havia
dúvida de que fora o fator emocional de vingança contra o pai que tornara
possível sua fria reserva, dividira a análise em duas fases distintas e tornara
tão completos e claros os resultados da primeira fase. Parecia, ademais, como
se nada semelhante a uma transferência para o médico se houvesse efetuado.
Isso, contudo, é naturalmente absurdo ou, pelo menos, é uma maneira imprecisa
de expressar as coisas, de vez que algum tipo de relação com o analista deve
surgir e esta quase sempre é transferida de uma relação infantil. Na realidade,
ela me transferira o abrangente repúdio dos homens que a dominara desde o
desapontamento sofrido com o pai. O azedume contra os homens, via de regra, é
fácil de ser gratificado com o médico; não precisa evocar quaisquer
manifestações emocionais violentas, simplesmente expressa-se pelo tornar fúteis
todos os esforços dele e pelo aferrar-se à doença. Sei por experiência quão
difícil é fazer um paciente entender precisamente esse tipo silencioso de
comportamento sintomático e torná-lo ciente dessa hostilidade latente e
excessivamente forte, amiúde, sem pôr em perigo o tratamento. Assim, logo que
identifiquei a atitude da jovem para com o pai, interrompi o tratamento e
aconselhei aos genitores que, se davam valor ao procedimento terapêutico, este
deveria ser continuado por uma médica. Nesse meio tempo, a jovem prometera ao pai
que, de qualquer jeito, deixaria de ver a ‘senhora’, e desconheço se meu
conselho, cujas razões são óbvias, será seguido.
Houve um único fragmento de material
no curso desta análise, que pude considerar como transferência positiva, como
uma revivescência grandemente enfraquecida do original e apaixonado amor da
jovem pelo pai. Mesmo essa manifestação não estava inteiramente livre de outras
motivações, só a menciono por apresentar, noutro sentido, um problema
interessante de técnica analítica. Em certo período, não muito depois de
começado o tratamento, a jovem trouxe uma série de sonhos que, deformados
segundo a regra e enunciados na costumeira linguagem onírica, podiam, não
obstante, ser facilmente traduzidos com certeza. No entanto, seu conteúdo, quando
interpretado, era fora do comum. Previam a cura da inversão por meio do
tratamento, expressavam sua alegria pelas perspectivas de vida que então se lhe
abririam, confessavam seu anseio pelo amor de um homem e por filhos, e assim
poderiam ter sido acolhidos como uma preparação gratificante para a mudança
desejada. A contradição entre eles e as afirmativas da jovem na vida desperta,
na ocasião, era muito grande. Não escondia de mim que pretendia casar-se, mas
só para fugir à tirania do pai e seguir imperturbada suas verdadeiras
inclinações. Quanto ao marido, observava com bastante desprezo, lidaria
facilmente com ele e, além disso, podia-se ter relações com um homem e uma
mulher a um só e mesmo tempo, como demonstrava o exemplo da dama adorada.
Advertido por uma ou outra ligeira impressão, disse-lhe certo dia que não
acreditava naqueles sonhos, que os encarava como falsos ou hipócritas e que ela
pretendia enganar-me, tal como habitualmente enganava o pai. Eu estava certo;
após havê-lo esclarecido, esse tipo de sonhos cessou. Mas ainda acredito que,
além da intenção de desorientar-me, os sonhos parcialmente expressavam o desejo
de conquistar meu favor; eram também uma tentativa de ganhar meu interesse e
minha boa opinião, talvez a fim de, posteriormente, desapontar-me mais
completamente ainda.
Posso imaginar que apontar a
existência de sonhos mentirosos desse tipo, de sonhos ‘obsequiosos’, levantará
uma positiva tempestade de impotente indignação em certos leitores que se
denominam a si mesmos analistas. ‘O quê!’, exclamarão, ‘O inconsciente, o
centro real de nossa vida mental, a parte de nós que se acha tão mais próxima
do divino que nossa pobre consciência, pode mentir também? Então como poderemos
continuar a trabalhar sobre as interpretações da análise e a exatidão de nossas
descobertas?’ A isso precisa-se responder que o reconhecimento desses sonhos
mentirosos não constitui nenhuma novidade destruidora. Na verdade, sei que o
anseio da humanidade pelo misticismo é inerradicável e faz esforços incessantes
por retomar para este o território de que A Interpretação de Sonhos o
privou, mas certamente, no caso em pauta, tudo é bastante simples. Um sonho não
é o ‘inconsciente’; trata-se da forma pela qual um pensamento remanescente da
vida desperta pré-consciente ou mesmo consciente pode, graças ao estado
favorecedor de sono, ser remoldado. No estado de sono, esse pensamento foi
reforçado por impulsos inconscientes plenos de desejo e assim experimentou uma
deformação através da elaboração onírica, que é determinada pelos mecanismos
predominantes no inconsciente. Com a jovem que sonhou, a intenção de
enganar-me, tal como fizera com o pai, certamente emanava do pré-consciente e
pode, de fato, ter sido consciente; poderia conseguir expressão entrando em
conexão com o impulso desejoso inconsciente de agradar o pai (ou substituto
paterno), assim criando um sonho mentiroso. As duas intenções, trair e agradar
o pai, originaram-se do mesmo complexo; a primeira resultou da repressão da
última e a posterior foi, pela elaboração onírica, conduzida de volta à
anterior. Desse modo, não se pode falar em qualquer desvalorização do
inconsciente, nem na desagregação de nossa confiança nos resultados da análise.
Não posso desprezar a oportunidade
de expressar, de passagem, meu espanto de que os seres humanos possam
atravessar tão grandes e importantes momentos de sua vida erótica sem notá-los
muito; na verdade, às vezes nem mesmo possuir a mais pálida suspeita de sua
existência, ou então, havendo-se dado conta desses momentos, enganar-se a si
mesmos tão completamente no julgamento deles. Isto não acontece apenas em
condições neuróticas, onde estamos familiarizados com o fenômeno, mas parece
ser também bastante comum na vida ordinária. No presente caso, por exemplo, uma
jovem desenvolve uma adoração sentimental por mulheres, que os pais a princípio
acham vexatória simplesmente, e raramente tomam a sério; ela própria sabe muito
bem estar muito ocupada com essas relações, porém ainda experimenta poucas das
sensações de amor intenso até que uma frustração específica é seguida por uma
reação bastante excessiva, que mostra a qualquer um interessado que elas têm
algo a ver com uma paixão consumidora de força elementar. Tampouco a jovem
nunca percebera do estado de coisas algo que constituía uma preliminar
necessária ao desencadeamento dessa tormenta mental. Noutros casos também
encontramos moças ou mulheres em estado de grave depressão, que ao serem
interrogadas sobre a possível causa de sua condição, nos dizem que, realmente,
tiveram um ligeiro sentimento por determinada pessoa, mas que não fora nada
profundo, logo superando o sentimento quando tiveram de abandoná-la. No entanto
foi essa renúncia, aparentemente tão bem suportada, que se tornou a causa do
grave distúrbio mental. Encontramos ainda homens que passaram por casos
amorosos ocasionais, e só pelos efeitos subseqüentes compreendem que estiveram
apaixonadamente amorosos da pessoa a quem, aparentemente, consideraram
levianamente. Fica-se também estupefato com os resultados inesperados que se podem
seguir a um aborto artificial, à morte de um filho não nascido, decidido sem
remorso e sem hesitação. Tem-se de admitir que os poetas estão certos em gostar
de retratar pessoas que estão enamoradas sem sabê-lo ou incertas se amam, ou
que pensam que odeiam quando na realidade amam. Pareceria que as informações
recebidas por nossa consciência acerca de nossa vida erótica são especialmente
passíveis de serem incompletas, cheias de lacunas ou falsificadas. É
desnecessário dizer que, neste exame, não deixei de dar espaço para o papel
desempenhado pelo esquecimento subseqüente.
IV
Retorno agora, após essa digressão,
à consideração do caso de minha paciente. Fizemos um levantamento das forças
que conduziram a libido da jovem da atitude de Édipo normal à do
homossexualismo, e dos caminhos psíquicos percorridos por ela no processo. O
mais importante nesse respeito foi a impressão causada pelo nascimento de seu
irmãozinho e a partir disso poderíamos inclinar-nos a classificar o caso como
de inversão posteriormente adquirida.
A essa altura, porém, nos damos
conta de um estado de coisas com que nos defrontamos em muitos outros casos nos
quais a psicanálise lançou luz sobre um processo mental. Fazendo recuo do
desenvolvimento a partir de seu produto final a cadeia de acontecimento parece
contínua, e sentimos que obtivemos uma compreensão interna (insight)
completamente satisfatória ou mesmo exaustiva. Mas, se avançarmos de maneira
inversa, isto é, se partirmos das premissas inferidas da análise e tentarmos
segui-las até o resultado final, então não mais teremos a impressão de uma
seqüência inevitável de eventos que não poderiam ter sido determinados de outra
forma. Observamos, a seguir, que poderia ter havido outro resultado e que
poderíamos ter sido capazes de compreendê-lo e explicá-lo. A síntese, portanto,
não é tão satisfatória quanto a análise; noutras palavras, de um conhecimento
das premissas não poderíamos ter previsto a natureza do resultado.
É muito fácil explicar este
perturbador estado de coisas. Mesmo supondo que tivéssemos um conhecimento
completo dos fatores etiológicos que decidem um determinado resultado, a seu
respeito conhecemos apenas a sua qualidade, não a sua força relativa. Alguns
são suprimidos por outros por serem fracos demais, não influenciando, assim, o
resultado final. De antemão, nunca sabemos, porém, qual dos fatores
determinantes se revelará o mais fraco ou o mais forte. Dizemos apenas, no
final, que os bem-sucedidos devem ter sido os mais fortes. Daí podermos
reconhecer, sempre, com exatidão, a cadeia de causação, se seguirmos a linha da
análise, ao passo que predizê-la ao longo da linha da síntese é impossível.
Não sustentaremos, portanto, que
toda jovem que experimenta um desapontamento, como esse do anseio de amor, que
brota da atitude de Édipo na puberdade, necessariamente cairá, por causa disso,
vítima do homossexualismo. Pelo contrário, outros tipos de reação a esse trauma
sem dúvida são mais comuns. Contudo, sendo assim, na jovem paciente podem ter
existido fatores especiais que fizeram pender a balança, fatores externos ao
trauma, provavelmente de natureza interna. Além do mais, não há qualquer
dificuldade em apontá-los.
Sabe-se bem que, mesmo em uma pessoa
normal, leva algum tempo antes de se tomar finalmente a decisão com referência
ao sexo do objeto amoroso. Entusiasmos homossexuais, amizades exageradamente
intensas e matizadas de sensualidades são bastante comuns em ambos os sexos
durante os primeiros anos após a puberdade. Assim também aconteceu com nossa
paciente; nela, porém, essas tendências mostraram-se sem dúvida mais fortes e
permaneceram mais tempo do que noutras pessoas. Além disso, esses presságios de
homossexualismo posterior haviam ocupado sempre a sua vida consciente,
enquanto a atitude originária do complexo de Édipo permanecera inconsciente e
se mostrara apenas em sinais, tais como o seu comportamento terno com o
garotinho. Quando estudante, estivera longo tempo enamorada de uma professora
rígida e inaproximável, evidentemente uma mãe substituta. Mostrara muito vivo
interesse em certo número de jovens mães, bem antes do nascimento do irmão,
portanto com mais certeza ainda, antes da primeira reprimenda do pai. Assim,
desde anos muito precoces sua libido fluíra em duas correntes, das quais a da
superfície é a que, sem hesitação, podemos designar como homossexual. Essa
última era provavelmente uma continuação direta e imodificada de uma fixação
infantil na mãe. Possivelmente a análise aqui descrita na realidade não revelou
nada mais que o processo pelo qual, em ocasião apropriada, também a corrente
heterossexual e mais profunda da libido foi desviada para a homossexual e
manifesta.
A análise demonstrou, além disso,
que a jovem trouxera consigo, desde a infância, um ‘complexo de masculinidade’
fortemente acentuado. Jovem fogosa, sempre pronta a traquinagens e lutas, não
se achava de modo algum preparada para ser a segunda diante do irmão
ligeiramente mais velho; após inspecionar seus órgãos genitais [ver em [1]]
desenvolvera uma acentuada inveja do pênis e as reflexões derivadas dessa
inveja ainda continuavam a povoar-lhe o espírito. Era na realidade uma
feminista; achava injusto que as meninas não gozassem da mesma liberdade que os
rapazes e rebelava-se contra a sorte das mulheres em geral. Na ocasião da
análise, as idéias de gravidez e parto eram-lhe desagradáveis, em parte,
presumo, devido ao desfiguramento corporal a elas vinculado. Seu narcisismo de
moça recorrera a essa defesa e deixara de expressar-se como orgulho por sua boa
aparência. Diversas pistas indicavam que, anteriormente, deveria ter tido
fortes tendências exibicionistas e escopofílicas. Quem ansiosamente desejar que
as reivindicações dos fatores adquiridos, em oposição aos hereditários, não
sejam subestimadas na etiologia, chamará a atenção para o fato de que o
comportamento da jovem, tal como antes descrito, era exatamente o que
decorreria em uma pessoa com forte fixação materna, do efeito combinado das
duas influências da negligência da mãe e da comparação de seus órgãos genitais
com os do irmão. Aqui, à marca da operação da influência externa nos primeiros
anos de vida é possível atribuir algo que seria bom considerar como uma
peculiaridade constitucional. Por outro lado, de fato uma parte dessa
disposição adquirida (se foi realmente adquirida) tem de ser atribuída à
constituição inata. Assim, na prática, vemos uma contínua mescla e mistura do
que em teoria tentaríamos separar em um par de opostos, a saber, caracteres
herdados e adquiridos.
Se a análise tivesse terminado mais
cedo, mais prematuramente ainda, haveria a possível opinião de que se tratava
de um caso de homossexualismo posteriormente adquirido; porém, tal como foi,
uma consideração do material nos impele a concluir tratar-se, antes, de um caso
de homossexualismo congênito, o qual, como de praxe, fixou-se e se tornou
inequivocamente manifesto apenas no período seguinte à puberdade. Cada uma
dessas classificações faz justiça apenas a uma parte do estado de coisas
verificável pela observação, mas despreza a outra. Seria melhor não ligar
demasiado valor a esse modo de enunciar o problema.
A literatura do homossexualismo em
geral deixa de distinguir claramente entre as questões da escolha do objeto,
por um lado, e das características sexuais e da atitude sexual do sujeito, pelo
outro, como se a resposta à primeira necessariamente envolvesse as respostas às
últimas. A experiência, contudo, demonstra o contrário: um homem com
características predominantemente masculinas e também masculino em sua vida
erótica pode ainda ser invertido com respeito ao seu objeto, amando apenas
homens, em vez de mulheres. Um homem em cujo caráter os atributos femininos
obviamente predominam, que possa, na verdade, comportar-se no amor como uma
mulher, dele se poderia esperar, com essa atitude feminina, que escolhesse um
homem como objeto amoroso; não obstante, pode ser heterossexual e não mostrar,
com respeito a seu objeto, mais inversão do que um homem médio normal. O mesmo
procede, quanto às mulheres; também aqui o caráter sexual mental e a escolha de
objeto não coincidem necessariamente. O mistério do homossexualismo, portanto,
não é de maneira alguma tão simples quanto comumente se retrata nas exposições
populares: ‘uma mente feminina, fadada assim a amar um homem, mas infelizmente
ligada a um corpo masculino; uma mente masculina, irresistivelmente atraída
pelas mulheres, mas, ai dela, aprisionada em um corpo feminino’. Trata-se, em
seu lugar, de uma questão de três conjuntos de características, a saber:
Caracteres sexuais físicos
(hermafroditismo
físico)
Caracteres sexuais mentais
(atitude
masculina ou feminina)
Tipo de escolha de objeto
Essas características, até certo
ponto, variam independentemente uma da outra e em indivíduos diferentes são
encontradas em permutações múltiplas. A literatura tendenciosa obscureceu nossa
visão dessa inter-relação, colocando em primeiro plano, por razões práticas, o
terceiro aspecto (tipo de escolha de objeto), que é o único que impressiona o
leigo, e, além disso, exagerando a proximidade de associação entre esta e a
primeira característica. Ademais, ela bloqueia o caminho para uma compreensão
interna (insight) mais profunda de tudo que uniformemente se designa de
homossexualismo, rejeitando dois fatos fundamentais, revelados pela
investigação psicanalítica. O primeiro deles é que os homens homossexuais
experimentaram uma fixação especialmente forte na mãe; o segundo é que, além de
sua heterossexualidade manifesta, uma medida muito considerável de
homossexualismo latente ou inconsciente pode ser detectada em todas as pessoas
normais. Se tomarmos em consideração essas descobertas, evidentemente, cai por
terra a suposição de que a natureza criou, de maneira aberrante, um ‘terceiro
sexo’.
Não compete à psicanálise solucionar
o problema do homossexualismo. Ela deve contentar-se com revelar os mecanismos
psíquicos que culminaram na determinação da escolha de objeto, e remontar os
caminhos que levam deles até às disposições instintuais. Aqui o seu trabalho
termina e ela deixa o restante à pesquisa biológica, que recentemente trouxe à
luz, através dos experimentos de Steinach, resultados muito importantes
concernentes à influência exercida pelo primeiro conjunto de características,
acima mencionadas, sobre o segundo e o terceiro. A psicanálise possui uma base
comum com a biologia, ao pressupor uma bissexualidade original nos seres
humanos (tal como nos animais). Mas a psicanálise não pode elucidar a natureza
intrínseca daquilo que, na fraseologia convencional ou biológica, é denominado
de ‘masculino’ e ‘feminino’: ela simplesmente toma os dois conceitos e faz
deles a base de seu trabalho. Quando tentamos reduzi-los mais ainda,
descobrimos a masculinidade desvanecendo-se em atividade e a feminilidade em
passividade, e isso não nos diz o bastante. Já tentei [ver em [1] e seg.]
explicar até onde podemos razoavelmente esperar, ou até onde a experiência já
provou, que o trabalho de elucidação como parte da tarefa da análise nos
forneça os meios de efetuar uma modificação da inversão. Quando se compara até
onde podemos influenciá-la com as notáveis transformações que Steinach efetuou
em alguns casos, através de suas operações, o resultado não provoca uma
impressão muito imponente. Mas seria prematuro, ou exagero prejudicial, se,
nessa fase, cedêssemos a esperanças de uma ‘terapia’ da inversão que pudesse
ser geralmente aplicada. Os casos de homossexualismo masculino em que Steinach
foi bem-sucedido, atendiam à condição, nem sempre presente, de um
‘hermafroditismo’ físico muito patente. Qualquer tratamento análogo do homossexualismo
feminino é, atualmente, bastante obscuro. Se consistisse em remover o que são
provavelmente ovários hermafroditas e enxertar outros, que se supõe serem de um
único sexo, haveria poucas perspectivas de ser aplicado na prática. Uma mulher
que já se sentiu ser um homem e amou à maneira masculina, dificilmente
permitirá que a forcem a desempenhar o papel de mulher, quando deve pagar pela
transformação, não vantajosa sob todos os aspectos, com a renúncia a toda
esperança de maternidade.
PSICANÁLISE E TELEPATIA (1941 [1921])
NOTA DO EDITOR INGLÊS -
PSYCHOANALYSE UND TELEPATHIE
(a) EDIÇÃO
ALEMÃ:
(1921 Agosto, data do
manuscrito.)
1941 G.W., 17,
27-44.
(b) TRADUÇÃO
INGLESA:
‘Psychoanalysis and Telepathy’
1953 Em Psychoanalysis and the Occult, Nova Iorque, International
Universities Press, 56-68. (Trad. de George Devereux.)
A presente tradução inglesa é nova,
de autoria de James Strachey.
O manuscrito apresenta em seu início
a data ‘2 ago. 21’ e, ao final, ‘Gastein, 6 ago. 21’. O original não apresenta
título e o aqui adotado é o escolhido pelos editores das Gesammelte Werke.
Uma nota prefaciadora à edição alemã
afirma que o artigo ‘foi escrito para a reunião da Executiva Central da
Associação Psicanalítica Internacional, realizada nas montanhas do Harz no
começo de setembro de 1921’. O Dr. Ernest Jones, na ocasião Presidente da
Executiva Central, conta-nos, porém, que nenhuma reunião desse órgão se
realizou nas montanhas do Harz na referida data, embora houvesse uma reunião
dos seguidores mais chegados de Freud: Abraham, Eitingon, Ferenczi, Rank e
Sachs, além do próprio Dr. Jones. Foi para esse grupo não oficial que o artigo
parece ter sido lido.
Freud pretendera que o artigo
fornecesse relatos de três casos, mas, quando foi preparar o manuscrito em
Gastein, descobriu haver deixado em Viena o material do terceiro caso, e foi
obrigado a substituí-lo por material de caráter bastante diferente. O ‘terceiro
caso’ original, contudo, sobreviveu como manuscrito separado e está assim
intitulado: ‘Pós-escrito‘. Aqui se acha o relato, omitido devido à
resistência, sobre um caso de transmissão de pensamento durante a prática
analítica’. O caso, na realidade, é o relativo ao Dr. Forsyth e à Forsyte
Saga, o último dos registrados na Conferência XXX das New Introductory
Lectures. As duas versões do caso concordam muito de perto, com algumas
poucas diferenças verbais; assim, não pareceu necessário incluí-lo aqui.
Quaisquer pontos substanciais de diferenças serão encontrados registrados na Standard
Ed.,22.
Esse foi o primeiro dos artigos de
Freud sobre telepatia e nunca foi publicado em vida, embora a maior parte de
seu material estivesse incluído, sob diversas formas, em seus últimos artigos
publicados sobre o assunto. Seu artigo seguinte, o primeiro a ser publicado, é
o que logo se segue neste volume, sobre o tópico um tanto diferente de Sonhos
e Telepatia (1922a). Pouco depois deste, escreveu uma breve nota
sobre ‘The Occult Significance of Dreams’ (1925i), aparentemente destinada
à inclusão em A Interpretação de Sonhos e que foi na realidade pela
primeira vez impressa como parte de um apêndice ao volume III da edição dos Gesammelte
Schriften daquela obra, mas não incluído em nenhuma de suas edições
posteriores. Finalmente, houve a conferência, já mencionada, sobre ‘Dreams and
Occultism’ nas New Introductory Lectures, (1933a). Vale a pena
observar que nesse último de seus escritos sobre o assunto não mais sentia as
dúvidas sobre a propriedade de discuti-lo, tão evidentes no presente artigo; na
verdade, perto do final da conferência, afasta especificamente os temores, aqui
expressos, de as perspectivas científicas da psicanálise poderem ser colocadas
em perigo, caso a verdade da transmissão de pensamento viesse a ser estabelecida.
PSICANÁLISE E TELEPATIA
INTRODUÇÃO
Não estamos destinados, segundo
parece, a dedicar-nos com tranqüilidade à ampliação de nossa ciência. Mal
acabamos de repelir triunfalmente dois ataques - um dos quais procurava mais
uma vez negar o que trouxemos à luz e só nos oferecia em troca o tema do
repúdio, ao passo que o outro tentava persuadir-nos de que nos equivocáramos da
natureza do que descobrimos e poderíamos, com vantagem, tomar outra coisa em
seu lugar -, logo, então, que nos sentimos seguros quanto a esses inimigos e já
outro perigo surgiu. E, desta vez, é algo tremendo, algo de elementar, que
ameaça não somente a nós, ameaça, talvez mais ainda, a nossos inimigos.
Não mais parece possível manter-se
afastado do estudo daqueles fenômenos conhecidos como ‘ocultos’, ou seja, dos
fatos que professam falar em favor da existência real de forças psíquicas
outras que não as mentes humanas e animais com que estamos familiarizados, ou
que parecem revelar a posse, por essas mentes, de faculdades até aqui
irreconhecidas. O ímpeto no sentido dessa investigação parece irresistivelmente
forte. Durante essas últimas breves férias, tive três oportunidades de recusar
associar-me a periódicos recentemente fundados, e relacionados com esses
estudos. Tampouco existem muitas dúvidas quanto à origem dessa tendência. É, em
parte, uma expressão da perda de valor pela qual tudo foi afetado desde a
catástrofe mundial da Grande Guerra, uma parte da abordagem experimental à
grande revolução, em cujo sentido nos estamos dirigindo e de cuja extensão não
podemos fazer estimativa; mas indubitavelmente se trata de uma tentativa de
compensação, de criar noutra esfera, supermundana, as atrações perdidas pela
vida sobre esta Terra. Na verdade, alguns dos procedimentos das próprias
ciências exatas podem ter contribuído para esse desenvolvimento. A descoberta
do rádio confundiu, tanto quanto fez progredir, as possibilidades de explicar o
mundo físico, e o novíssimo conhecimento adquirido do que é chamado de teoria
da relatividade teve, sobre tantos que a admiram sem compreendê-la, o efeito de
diminuir sua crença na fidedignidade objetiva da ciência. Lembrar-se-ão de que
há não muito tempo atrás o próprio Einstein aproveitou a ocasião para protestar
contra essa má interpretação.
Não decorre como fato lógico que um
interesse intensificado no ocultismo deva encerrar um perigo para a
psicanálise. Deveríamos, pelo contrário, estar preparados para encontrar uma
simpatia recíproca entre eles. Ambos experimentaram o mesmo tratamento desdenhoso
e arrogante por parte da ciência oficial. Até os dias de hoje, a psicanálise é
encarada como cheirando a misticismo e o seu inconsciente é olhado como uma
daquelas coisas existentes entre o céu e a terra com que a filosofia se recusa
a sonhar. As numerosas sugestões que ocultistas nos fizeram de que deveríamos
cooperar com eles, demonstra que gostariam de tratarmos como meio pertencentes
a eles, e que contam com o nosso apoio contra as pressões das autoridades
exatas. Sequer, por outro lado, tem a psicanálise qualquer interesse em sair do
seu caminho para defender essas autoridades, pois ela própria se coloca em
oposição a tudo que é convencionalmente restrito, bem estabelecido e geralmente
aceito. Não seria a primeira vez que estaria oferecendo seu auxílio às
obscuras, porém indestrutíveis, conjecturas das pessoas comuns contra o
obscurantismo da opinião culta. A aliança e a cooperação entre analistas e
ocultistas poderiam surgir-nos como plausíveis e promissoras.
Contudo, se olharmos mais de perto,
as dificuldades começam a aparecer. A imensa maioria dos ocultistas não é
impulsionada por um desejo de conhecimento por um sentimento de vergonha de que
a ciência tenha por tanto tempo se recusado a tomar conhecimento do que são
problemas indiscutíveis, ou por um desejo de conquistar essa nova esfera de
fenômenos. São, pelo contrário, crentes convictos buscando confirmação e algo
que os justifique para abertamente confessarem sua fé. Porém, a fé que
primeiramente adotaram e depois procuraram impor a outros, ou é a velha fé
religiosa, empurrada para o segundo plano pela ciência no curso do
desenvolvimento humano, ou então outra, mais próxima ainda das convicções
ultrapassadas dos povos primitivos. Os analistas, por outro lado, não podem
repudiar sua descendência da ciência exata e sua comunhão com os representantes
desta última. Movidos por uma extrema desconfiança do poder dos desejos humanos
e das tentações do princípio de prazer, acham-se prontos, para alcançar algum
fragmento de certeza objetiva, a sacrificar tudo: o brilhantismo deslumbrante
de uma teoria impecável, a consciência exaltada de haver conseguido uma visão
abrangente do universo e a calma mental ocasionada pela posse de amplos
fundamentos para uma ação ética e conveniente. Em lugar de tudo isso,
contentam-se com pedaços fragmentários de conhecimento e com hipóteses básicas,
carentes de exatidão e sempre abertas à revisão. Em vez de esperar pelo momento
em que poderá escapar da coerção das leis familiares da física e da química,
têm esperanças no surgimento de leis naturais mais amplas e de alcance mais
profundo, às quais estão prontos a submeter-se. Os analistas são, no fundo,
incorrigíveis mecanicistas e materialistas, ainda que procurem evitar despojar
a mente e o espírito de suas características ainda irreconhecidas. Da mesma
forma, dedicam-se à investigação dos fenômenos ocultos apenas porque esperam,
com isso, excluir finalmente da realidade material os desejos da humanidade.
Em vista dessa diferença entre suas
atitudes mentais, a cooperação entre analistas e ocultistas oferece poucas
perspectivas de lucro. O analista tem a sua própria província de trabalho, a
qual não deve abandonar: o elemento inconsciente da vida mental. Se, no curso
de seu trabalho, tivesse de estar atento aos fenômenos ocultos, correria o
perigo de não se dar conta de tudo o que mais de perto lhe fosse concernente.
Estaria abandonando a imparcialidade, a ausência de preconceitos e prevenções
que constituíram uma parte essencial de sua armadura e aparelhamento analítico.
Se fenômenos ocultos se fizerem sentir sobre ele da mesma maneira que ocorre
com outros fenômenos, não fugirá deles mais que a estes. Pareceria ser esse o
único plano de comportamento coerente com a atividade de um analista.
Pela autodisciplina, o analista pode
defender-se contra um perigo específico, o perigo de permitir que seu interesse
seja arrastado para os fenômenos ocultos. Com relação ao perigo objetivo,
a situação é diferente. É pouco duvidoso que, sendo a atenção dirigida para os
fenômenos ocultos, seu resultado muito em breve seja que ocorra a confirmação
de um certo número deles, e provavelmente decorrerá longo tempo antes de se
poder chegar a uma teoria aceitável que abranja esses fatos novos. Os
espectadores avidamente atentos não esperarão tanto. À primeira confirmação, os
ocultistas proclamarão o triunfo de suas opiniões. Transportarão o acolhimento
de um determinado fenômeno para todos os outros e estenderão a crença nos
fenômenos à crença em quaisquer explicações mais fáceis e mais a seu gosto.
Estarão aptos a empregar os métodos da indagação científica, apenas como uma
escada para elevá-los por sobre a cabeça da ciência. O céu nos ajude se
chegarem a tal altura! Não haverá ceticismo dos assistentes em torno que os
faça hesitar, nem clamor público que os faça parar. Serão saudados como
libertadores do fardo da servidão intelectual, alacremente aclamados por toda a
credulidade que se acha pronta e à mão desde a infância da raça humana e a
infância do indivíduo. Poderá seguir-se um temível colapso do pensamento
crítico, dos padrões deterministas e da ciência mecanicista. Será possível ao
método científico, por uma insistência inexorável sobre a magnitude das forças,
da massa e das qualidades do material em questão, impedir esse colapso?
É vã esperança imaginar que o
trabalho analítico, precisamente por relacionar-se com o misterioso
inconsciente, poderá escapar de um colapso de valores como esse. Se os seres
espirituais, que são os amigos íntimos dos indagadores humanos, podem fornecer
explicações definitivas para tudo, nenhum interesse é capaz de sobrar para as
laboriosas abordagens às forças mentais desconhecidas efetuadas pela pesquisa
analítica. Tanto assim, que os métodos da técnica analítica serão abandonados
se houver uma esperança de entrar em contato direto com os espíritos operantes
através de processos ocultos, tal como os hábitos do trabalho paciente e
enfadonho são abandonados quando há a esperança de se ficar rico de um só
golpe, mediante uma especulação bem-sucedida. Ouvimos falar, durante a guerra,
de pessoas situadas no meio-termo entre duas nações hostis, pertencendo a uma
delas pelo nascimento e à outra pela escolha e domicílio; foi seu destino serem
tratados como inimigos, primeiro por um dos lados e depois, se tinham a sorte
de fugir, pelo outro. Essa poderá igualmente ser a sorte da psicanálise.
Contudo, há que suportar a própria sorte, seja ela qual for, e a psicanálise,
de uma ou doutra forma, terá de chegar a um acordo com a sua.
Retornemos à situação atual, à nossa
tarefa imediata. No decurso dos últimos anos, efetuei algumas observações que
não ocultarei, pelo menos do círculo mais chegado a mim. Um desagrado de cair
no que é atualmente uma corrente predominante, um temor de desviar o interesse
da psicanálise e a total ausência de qualquer véu de discrição sobre o que
tenho a dizer, tudo isso se combina, constituindo motivos para subtrair minhas
observações de um público mais amplo. Meu material pode reivindicar duas
vantagens que raramente estão presentes. Em primeiro lugar, ele está isento das
incertezas e dúvidas a que se inclina a maioria das observações dos ocultistas
e, em segundo, só desenvolve sua força convincente depois de analiticamente
elaborado. Consiste, devo mencionar, em apenas dois casos de caráter semelhante;
um terceiro caso, de outra espécie e aberto a uma avaliação diferente, é
acrescentado à maneira de apêndice. Os primeiros dois casos, que agora
comunicarei minuciosamente, estão relacionados a acontecimentos do mesmo tipo,
ou seja, a profecias feitas por adivinhos profissionais que não se
realizaram. A despeito disso, essas profecias causaram impressão extraordinária
nas pessoas a quem foram anunciadas, de modo que sua relação com o futuro não
pode constituir seu ponto essencial. Qualquer coisa capaz de contribuir para
sua explicação, bem como tudo que lance dúvidas sobre sua força probatória,
para mim serão extremamente bem-vindos. Minha atitude pessoal para com o
material permanece sem entusiasmo e ambivalente.
I
Alguns anos antes da guerra, um
jovem procedente da Alemanha veio até mim a fim de ser analisado. Queixava-se
de ser incapaz de trabalhar, de haver esquecido sua vida passada e de ter
perdido todo o interesse. Era estudante de filosofia em Munique e estava
preparando-se para o exame final. Casualmente, era um jovem altamente instruído
bastate dissimulado, velhaco de uma maneira infantil e filho de um financista;
como veio a surgir depois, o jovem remodelara com sucesso uma quantidade
colossal de erotismo anal. Quando lhe perguntei se não havia realmente nada de
que pudesse lembrar-se sobre sua vida ou sua esfera de interesse, recordou-se
do enredo de um romance que esboçara, passado no Egito durante o reinado de
Amenófis IV e no qual um anel em particular representava um papel importante.
Tomamos esse romance como ponto de partida; o anel mostrou ser um símbolo de
matrimônio e, a partir daí, conseguimos reviver todas as suas lembranças e
interesses. Descobrimos que seu colapso fora o resultado de um grande ato de
autodisciplina mental de sua parte. Tinha uma única irmã, alguns anos mais nova
que ele, a quem era sincera e muito indisfarçadamente devotado. ‘Por que é que
não podemos casar-nos?’, haviam amiúde perguntado um ao outro, mas a afeição
entre eles nunca fora além do ponto permissível entre irmãos e irmãs.
Um jovem engenheiro se enamorara da
irmã. Seu amor era retribuído por ela, mas de seus rígidos pais não encontrava
aprovação. Em seu problema, os dois jovens amorosos voltaram-se para o irmão em
busca de ajuda. Este deu apoio à causa deles, tornou-lhes possível que se
correspondessem, conseguiu que se encontrassem enquanto se achava em casa, de
férias, e acabou por persuadir os pais a darem seu consentimento ao noivado e
casamento. Durante o tempo de noivado, houve uma ocorrência altamente suspeita.
O irmão levou seu futuro cunhado para escalar o Zugspitze e ele próprio serviu
de guia. Perderam-se na montanha, envolveram-se em problemas e somente com
dificuldade evitaram uma queda. O paciente ofereceu pouca objeção à minha interpretação
dessa aventura como uma tentativa de assassinato e suicídio. Foi alguns meses
após o casamento da irmã que o jovem começou a análise.
Cerca de seis ou nove meses depois
havia reconquistado completamente sua capacidade de trabalhar e interrompeu a análise
a fim de prestar o exame e escrever sua dissertação. Um ano ou mais depois,
voltou - agora doutor em filosofia - para retomar a análise, porque, segundo
disse, como filósofo, a psicanálise tinha para ele um interesse que ia além do
sucesso terapêutico. Foi em outubro que a recomeçou, e algumas semanas mais
tarde, numa ou noutra conexão, contou-me a seguinte história.
Vivia em Munique uma adivinha que
gozava de grande reputação. Os príncipes bávaros costumavam visitá-la quando
tinham algum empreendimento em mente. Tudo o que ela pedia era que lhe
fornecessem uma data. (Deixei de indagar se esta tinha de incluir a data do ano).
Entendia-se que a data era a do nascimento de alguma pessoa específica, mas ela
não perguntava de quem. Fornecida essa data, consultaria seus livros de
astrologia sobre a pessoa em questão. No mês de março anterior, meu paciente
resolvera visitar a adivinha. Apresentou-lhe a data do nascimento do cunhado,
sem, naturalmente, mencionar seu nome ou revelar o fato de que o tinha em mente.
O oráculo assim manifestou-se: ‘A pessoa em causa morrerá no próximo julho ou
agosto, de envenenamento por lagosta ou ostras.’ Após contar-me isso, meu
paciente exclamou: ‘Foi maravilhoso!’
Não pude entender e contradisse-o
energicamente: ‘O que vê nisso de maravilhoso? Você está trabalhando comigo já
faz diversas semanas e se seu cunhado houvesse realmente morrido, já me teria
contado há muito tempo atrás. Logo, ele deve estar vivo. A profecia foi feita
em março e deveria realizar-se pelo auge do verão. Agora estamos em novembro,
de modo que ela não se realizou. O que acha você de tão maravilhoso
nisso?’
‘Não há dúvida de que ela não se
realizou’, respondeu ele. ‘Mas o notável a respeito é o seguinte: meu cunhado
gosta apaixonadamente de lagostins, ostras etc., e, em agosto passado,
teve realmente uma crise de envenenamento por lagostim e quase morreu.’ O
assunto não foi mais discutido.
Consideremos agora o caso.
Acredito na veracidade do narrador.
É inteiramente digno de confiança, sendo atualmente professor de filosofia em K
-. Não consigo imaginar motivos que pudessem havê-lo induzido a me enganar. A
história foi incidental e não serviu a intuitos posteriores; nada mais surgiu,
nem dela se tiraram conclusões. Não era sua intenção persuadir-me da existência
de fenômenos mentais ocultos e, na verdade, tenho a impressão de que não estava
em absoluto esclarecido sobre o significado de sua experiência. Eu próprio
fiquei tão impressionado - para falar a verdade, desagradavelmente afetado -
que omiti fazer qualquer emprego analítico de seu relato.
E a observação me parece igualmente
inobjetável, de outro ponto de vista. É certo que a adivinha não conhecia o
homem que apresentou a questão. Mas considere-se que grau de intimidade com
alguém conhecido seria necessário, antes que se pudesse identificar a data do
aniversário de seu cunhado. Por outro lado, sem dúvida todos concordarão comigo
em oferecer a mais obstinada resistência à possibilidade de se inferir da data
do nascimento do sujeito pelo auxílio de quaisquer tábuas ou fórmulas um
acontecimento tão pormenorizado como cair doente de envenenamento por lagostim.
Não se esqueçam de quantas pessoas nascem no mesmo dia. Será crível que a
semelhança dos futuros de pessoas nascidas no mesmo dia possa ser levada a
pormenores como esse? Arrisco-me, assim, a excluir inteiramente da discussão os
cálculos astrológicos; acredito que a adivinha poderia ter adotado um outro
procedimento sem afetar o resultado da indagação. Por conseguinte, segundo me
parece, nós também podemos por completo excluir a adivinha (ou, como podemos
dizer diretamente, a médium) da consideração como possível fonte de embuste.
Se anuirmos à genuidade e verdade
dessa observação, a sua explicação estará próxima. E em seguida descobrimos - e
assim se dá com a maioria desses fenômenos - que sua explanação numa base
oculta é excepcionalmente adequada e abrange por completo o que tem de ser
explicado, salvo quando é tão insatisfatória em si própria. É impossível que a
adivinha pudesse saber que esse homem - nascido no dia referido - teria uma
crise de envenenamento por lagostim, nem que ela pudesse ter logrado tal
conhecimento a partir de suas tábuas e cálculos. Entretanto, isso estava
presente na mente de quem a interrogou. O fato torna-se completamente
explicável se estivermos preparados para presumir que o conhecimento foi
transferido dele parta a suposta profetisa, por algum método desconhecido que
excluiu os meios de comunicação que nos são familiares, ou seja, teremos de
inferir que existe algo como a transmissão de pensamento. As atividades
astrológicas da adivinha, nesse caso, teriam desempenhado a função de desviar
suas próprias forças psíquicas e ocupá-las de maneira inócua, de modo a poder
tornar-se receptiva e acessível aos efeitos sobre ela causados pelos
pensamentos do cliente, podendo, assim, tornar-se uma verdadeira ‘médium’. Já
vimos empregados artifícios desviadores semelhantes (no caso dos chistes, por
exemplo), onde se procura assegurar uma descarga mais automática para algum
processo mental.
A aplicação da análise a esse caso
faz mais que isso, entretanto; aumenta mais ainda a sua significação.
Ensina-nos que o que foi comunicado por este meio de indução de uma pessoa para
outra não constituiu simplesmente um fragmento fortuito de conhecimento
indiferente. Mostra-nos que um desejo extraordinariamente poderoso, abrigado
por determinada pessoa e colocado numa relação especial com sua consciência,
conseguiu, com o auxílio de uma segunda pessoa, encontrar expressão consciente
sob forma ligeiramente disfarçada, tal como a extremidade sensível do espectro
se revela aos sentidos, em uma chapa sensível à luz, como uma extensão
colorida. Parece possível reconstruir a seqüência de pensamento do jovem após a
doença e recuperação do cunhado que era o seu odiado rival: ‘Bem, ele escapou
desta vez, mas não abandonará seu perigoso gosto por causa disso; esperemos que
a próxima vez seja o seu fim’. Foi esse ‘esperemos’ que foi transformado na
profecia. Poderia citar um fato paralelo, em um sonho (de outra pessoa), no
qual uma profecia fazia parte do tema geral. A análise do sonho demonstrou que
o conteúdo da profecia coincidia com a realização de um desejo.
Não posso simplificar minha
afirmação descrevendo o desejo de morte de meu paciente contra o cunhado como
sendo um desejo inconsciente, reprimido, porque ele fora tornado consciente
durante o tratamento, no ano anterior, e as conseqüências decorrentes de sua
repressão cederam ao tratamento. Ele, porém, ainda persistia, e, embora não
fosse mais patogênico, era suficientemente intenso. Poderia ser descrito como
um desejo ‘suprimido’.
II
Na cidade de F - cresceu uma criança
que era a mais velha de uma família de cinco, todas meninas. A caçula era dez
anos mais moça que ela; certa ocasião, deixara a menor cair-lhe dos braços,
quando bebê; mais tarde, chamava-a de ‘sua filha’. A mãe era mais velha que o
pai, e não era uma pessoa agradável. O pai - e não só na idade era mais jovem -
via bastante as menininhas e as impressionava por suas muitas destrezas.
Infelizmente, não impressionara sob nenhum outro aspecto: era incompetente nos
negócios e incapaz de sustentar a família sem o auxílio dos parentes. A filha
mais velha tornou-se, em tenra idade, o repositório de todas as preocupações
que surgiam pela falta de poder aquisitivo do pai.
Uma vez deixado para trás o caráter
rígido e apaixonado de sua infância, ela se transformou em um bom espelho de
todas as virtudes. Seus elevados sentimentos morais faziam-se acompanhar de uma
inteligência estreitamente limitada. Tornou-se professora de uma escola
primária e era muito respeitada. A tímida homenagem que lhe prestou um jovem
conhecido, professor de música, deixou-a indiferente. Nenhum homem até então
havia atraído sua atenção.
Certo dia, um parente da mãe
apareceu em cena, homem bem mais idoso que ela, mas ainda jovem (pois ela
contava apenas dezenove anos de idade). Era um estrangeiro que vivia na Rússia
como diretor de uma grande empresa comercial e se enriquecera. Foi preciso nada
menos que uma guerra mundial e a derrota de um grande despotismo para
empobrecê-lo. Apaixonou-se por sua jovem e severa prima e pediu-lhe para ser
sua esposa. Os pais não a pressionaram, mas ela entendeu seus desejos. Por trás
de todas as suas idéias morais, sentiu a atração da realização de uma fantasia
plena do desejo de ajudar o pai e resgatá-lo de seu estado de necessidade.
Calculou que o primo daria ao pai apoio financeiro enquanto este continuasse
com o negócio e uma pensão quando finalmente o abandonasse, bem como forneceria
às irmãs dotes e trousseaux, a fim de poderem casar-se. E apaixonou-se
por ele, casou-se pouco depois e o acompanhou à Rússia.
Salvo por algumas ocorrências que
não eram inteiramente compreensíveis à primeira vista e cujo significado só se
evidenciou em retrospecto, tudo decorreu muito bem no casamento. Ela se
transformou em esposa afetuosa, sexualmente satisfeita, e um apoio providencial
para sua família. Somente uma coisa faltava: não tinha filhos. Estava agora com
27 anos de idade e no oitavo ano de seu matrimônio. Morava na Alemanha e, após
vencer todo tipo de hesitação, foi consultar um ginecologista alemão. Com a
habitual leviandade do especialista, ele assegurou-lhe a cura se se submetesse
a uma pequena operação. Ela concordou e, na véspera da operação, discutiu o
assunto com o marido. Era a hora do crepúsculo e estava prestes a acender as
luzes, quando o marido lhe pediu para não fazê-lo: tinha algo a dizer-lhe e
preferiria estar no escuro. Disse-lhe para cancelar a operação porque a culpa
de sua esterilidade era dele. Durante um congresso médico, dois anos antes, ele
soubera que certas moléstias podem privar um homem da capacidade de procriar
filhos. Um exame lhe demonstrara ser esse o seu caso. Após tal revelação, a operação
foi abandonada. Ela própria sofreu um colapso, que durou algum tempo e que
inutilmente procurou disfarçar. Só pudera amá-lo como um pai substituto e agora
soubera que ele nunca poderia ser pai. Três caminhos estavam abertos para ela,
todos igualmente intransponíveis: a infidelidade, a renúncia ao desejo de um
filho ou a separação do marido. Esse último estava excluído pelas melhores
razões práticas e o intermediário pelas mais fortes razões inconscientes,
fáceis de adivinhar: toda a sua infância fora dominada pelo desejo três vezes
frustrado de ter um filho do pai. Restava uma via de saída, que é a que nos
interessa em seu caso. Caiu seriamente enferma com uma neurose. Durante certo
tempo ergueu uma defesa contra várias tentações com o auxílio de uma neurose de
angústia, mas, posteriormente, seu sintomas se transformaram em graves atos
obsessivos. Passou algum tempo em institutos e por fim, com 10 anos de
moléstia, veio até mim. Seu sintoma mais notável era que, quando se achava na
cama, costumava prender [anstecken = colocar em contato] os lençóis aos
cobertores com alfinetes de segurança. Dessa maneira, revelara o segredo do
contágio [Ansteckung] de seu marido, ao qual sua esterilidade era
devida.
Em certa ocasião, contando talvez 40
anos de idade, a paciente narrou-me um episódio que remontava à época em que
sua depressão estava começando, antes do desencadeamento da neurose obsessiva.
Para distrair-lhe o espírito, o marido levara-a consigo numa viagem de negócios
a Paris. Estavam sentados com um amigo de negócios do marido no saguão do seu
hotel quando perceberam alguma agitação e movimento. Perguntara a um dos
empregados do hotel o que estava acontecendo e foi-lhe dito que Monsieur le
Professeur havia chegado para dar consultas em sua salinha próxima à entrada do
hotel. Monsieur le Professeur, segundo parecia, era um famoso adivinho; não
formulava perguntas, mas fazia os clientes imprimirem a mão em um prato cheio
de areia, e predizia o futuro pelo estudo da impressão deixada. Minha paciente
disse que iria entrar, para que lhe dissessem o futuro. O marido a dissuadiu,
que era tolice. No entanto, após ele haver saído com o amigo, ela tirou a
aliança e esgueirou-se para o gabinete do adivinho. Este estudou longamente a
impressão da sua mão e então falou: ‘No futuro próximo, você terá de passar por
severos conflitos, mas tudo sairá bem. Casar-se-á e terá dois filhos quando
estiver com 32 anos de idade’. Ela, fazendo esse relato, dava todos os sinais
de achar-se grandemente impressionada por ele, sem compreendê-lo. Não lhe
causou impressão meu comentário de que, lamentavelmente, a data fixada pela
profecia já havia passado há cerca de oito anos. Refleti que talvez estivesse
admirando a confiante audácia da profecia, tal como o fiel discípulo do rabino
profeta.
Infelizmente minha memória,
geralmente tão digna de confiança, não assegura se a primeira parte da profecia
dizia: ‘Tudo sairá bem. Você se casará’, ou ‘Você será feliz.’ Minha atenção
estava completamente focalizada em minha nítida impressão da frase final, com
seus notáveis pormenores. Na realidade, porém, as primeiras observações, sobre
conflitos que teriam um final feliz, incluem-se entre as expressões vagas que
figuram em todas as profecias, até mesmo nas que se podem comprar prontas. O
contraste oferecido pelos dois números específicos na frase final é mais
notável ainda. Não obstante, seria de fato interessante saber se o Professor
realmente falou no casamento dela. Havia tirado fora sua aliança e, aos
27 anos de idade, parecia muito jovem, podendo facilmente ter sido tomada por
uma solteira. Em compensação, não seria necessária uma observação refinada,
para notar a marca da aliança em seu dedo.
Limitemo-nos ao problema contido na
última frase, que lhe prometia dois filhos aos 32 anos de idade. Estes
pormenores parecem cabalmente arbitrários e inexplicáveis. A pessoa mais
crédula dificilmente empreenderia deduzi-los de uma interpretação das linhas da
mão. Recebiam uma justificação indiscutível, se confirmados pelo futuro. Porém,
não era esse o caso. Ela tinha agora 40 anos de idade, e nenhum filho. Qual,
então, era a fonte e o significado desses números? A própria paciente não
sabia. O óbvio seria pôr de lado toda questão e destiná-la ao monte de lixo,
entre muitas outras mensagens sem sentido e ostensivamente ocultas. Isso seria
muito agradável: a solução mais simples e um alívio grandemente desejável.
Infelizmente, porém, tenho de acrescentar que era possível - e exatamente com a
ajuda da análise - encontrar uma explicação para os dois números, uma
explicação que, mais uma vez, foi completamente satisfatória, surgindo, quase
naturalmente, da situação real, de vez que os dois números se ajustavam
perfeitamente à história da vida da mãe de nossa paciente. A mãe só se
casara aos trinta anos e fora em seu trigésimo segundo ano de vida que
(diferentemente da maioria das mulheres e para compensar, por assim dizer, o
seu atraso) dera à luz dois filhos. Dessa maneira, é fácil traduzir a profecia:
‘Não há necessidade de preocupar-se com a sua atual esterilidade. Isso não tem
importância. Você ainda pode seguir o exemplo de sua mãe, que ainda nem se
achava casada em sua idade e, não obstante, teve dois filhos aos 32 anos de
idade.’ A profecia prometia-lhe a realização da identificação com a mãe, que
constituíra o segredo de sua infância, e fora enunciada pela boca de um
adivinho desconhecedor de todos os seus problemas pessoais, ocupando-se com
examinar uma impressão deixada na areia. Podemos também acrescentar, como
precondição dessa realização de desejo (inconsciente como era, em todos os
sentidos): ‘Você se libertará de seu esposo inútil pela morte ou encontrará
forças para separar-se dele.’ A primeira alternativa ajustar-se-ia melhor à
natureza de uma neurose obsessiva, ao passo que a segunda é sugerida pela luta
que, segundo a profecia, ela deveria vencer com êxito.
Como observação, o papel
representado pela interpretação analítica é ainda mais importante nesse exemplo
que no anterior. Pode-se realmente dizer que a análise criou o fato oculto. Em
conseqüência, o exemplo também pareceria oferecer positivamente uma prova
conclusiva de poder transmitir um desejo inconsciente, assim como os
pensamentos e o conhecimento a ele relacionados. Apenas posso perceber um modo
de escapar à conclusividade desse último caso e, acreditem, não vou ocultá-lo.
É possível que, no decurso dos doze ou treze anos passados entre a profecia e
sua narração, feita durante o tratamento, a paciente tivesse formado uma
paramnésia: o Professor poderia haver enunciado algum consolo geral e incolor -
o que não seria de admirar - e a paciente ter gradualmente inserido nele os
números significantes, tirados de seu inconsciente. Se assim foi, teríamos
evitado o fato que nos ameaçou com conseqüências tão graves. Alegremente nos
identificaremos com os céticos que só dão valor a um relato desse tipo quando
feito imediatamente após o fato, e assim mesmo não sem hesitação. Lembro-me de
que, após ter sido indicado para uma cátedra de professor, tive uma audiência
com o Ministro [da Educação] para expressar-lhe meus agradecimentos. Quando me
achava a caminho de casa, de volta da audiência, apanhei-me no ato de tentar
falsificar as palavras trocadas entre nós, e nunca mais pude recapturar
corretamente a conversa real. Deixo aos senhores decidir se a explicação que
sugeri é sustentável. Não posso prová-la nem negá-la. Assim, essa segunda
observação, embora em si própria mais comovente que a primeira, não está
igualmente isenta de dúvidas.
Os dois casos que lhes comuniquei
acham-se relacionados com profecias não realizadas. As observações desse tipo,
a meu ver, podem fornecer o melhor material sobre a questão da transmissão de
pensamento, e gostaria de incentivá-los a coligir outras semelhantes. Pretendia
também trazer-lhes um exemplo baseado em um material de outra espécie, um caso
em que, durante determinada sessão, um paciente especial falou de coisas
notavelmente relacionadas a uma experiência que eu próprio tivera pouco antes.
Contudo, posso dar-lhes agora uma prova visível do fato de que discuto o assunto
sobre ocultismo sob pressão de enorme resistência. Quando, em Gastein, procurei
as notas que reunira e comigo trouxera [de Viena] para este trabalho, a folha
onde havia anotado essa última observação não se encontrava lá; em seu lugar,
porém, encontrei outra folha de lembretes irrelevantes sobre um tópico
inteiramente diverso, que trouxera comigo por engano. Nada se pode fazer contra
uma resistência tão clara. Devo pedir-lhes que me perdoem por omitir esse caso,
pois não posso preencher a perda por memória.
Em seu lugar acrescentarei algumas
observações sobre alguém muito conhecido em Viena, o grafologista Rafael
Schermann, que tem uma reputação de desempenhos muito espantosos. Diz-se que é
capaz não apenas de ler o caráter de uma pessoa por uma amostra de sua letra,
mas também de descrever sua aparência e adicionar a seu respeito predições que
posteriormente se realizam. Incidentalmente, muitas dessas notáveis realizações
se baseiam em suas próprias histórias. Certa vez, um amigo meu, sem meu
conhecimento prévio, efetuou a experiência de permitir-lhe que sua imaginação
divagasse sobre uma amostra de minha letra. Tudo o que produziu foi que a
escrita pertencia a um senhor de idade (o que era fácil de adivinhar), com quem
era difícil viver, visto tratar-se de um tirano intolerável no lar. Aqueles que
desfrutam de minha casa dificilmente confirmarão isso. Mas, como sabemos, o
campo do oculto está sujeito ao conveniente princípio de que os casos negativos
nada provam. Não efetuei observações diretas sobre Schermann, porém, através de
um paciente meu, entrei em contato com ele, sem que o soubesse. Contar-lhes-ei
a respeito.
Há alguns anos atrás procurou-me um
jovem que me causou impressão particularmente simpática, e eu, assim, lhe dei
preferência sobre alguns outros. Parecia estar envolvido com uma das mais
conhecidas demi-mondaines e que desejava livrar-se dela, de vez que a
relação o privava de toda independência de ação, mas era incapaz de fazê-lo.
Consegui libertá-lo e, ao mesmo tempo, logrei uma plena compreensão de sua
compulsão. Não muitos meses atrás noivara de modo normal e respeitável. A
análise logo mostrou que a compulsão contra a qual estava lutando, não era a
ligação com a demi-mondaine, mas com uma senhora casada de seu próprio
círculo, com quem tivera uma liaison, desde o início da juventude. A demi-mondaine
servia apenas de bode expiatório em quem podia satisfazer todos os
sentimentos de vingança e ciúme que realmente se aplicavam à outra senhora.
Segundo um modelo que nos é familiar, fizera uso do deslocamento para um novo
objeto, a fim de escapar à inibição ocasionada por sua ambivalência.
Era hábito seu infligir os tormentos
mais refinados à demi-mondaine, que se apaixonara por ele de uma maneira
quase desprendida. Entretanto, quando não mais podia esconder seus sofrimentos,
ele, por sua vez, transportava para ela a afeição que sentira pela mulher que
amara desde a juventude; dava-lhe presentes e a aplacava, e o ciclo retomava
seu curso. Quando enfim, sob a influência do tratamento, rompeu com ela,
tornou-se claro o que estivera tentando conseguir por aquele comportamento em
relação a esse sucedâneo de seu primeiro amor: a vingança com a tentativa de
suicídio que fizera quando essa amada rejeitara suas propostas. Após a
tentativa, conseguiu por fim vencer a relutância dela. Durante esse período do
tratamento costumava visitar o famoso Schermann. Com base em amostras da letra
da demi-mondaine, o grafologista repetidamente lhe disse, à guisa de
interpretação, que ela se achava em seu último alento, que se encontrava à
beira do suicídio e que certamente se mataria. Ela, contudo, assim não
procedeu, mas arremessou de si suas fraquezas humanas e recordou os princípios
de sua profissão e seus deveres para com o amigo oficial. Percebi com clareza
que o homem milagroso havia simplesmente revelado a meu paciente o seu desejo
mais íntimo.
Após descartar-se dessa figura
espúria, meu paciente empreendeu seriamente a tarefa de libertar-se de seu
vínculo real. Depreendi de seus sonhos um plano que estava formando, com o qual
poderia escapar da relação com o seu primeiro amor sem causar-lhe demasiada
mortificação ou prejuízos materiais. Ela tinha uma filha, que gostava muito do
jovem amigo da família e ostensivamente nada sabia do papel secreto que
desempenhava. Propunha-se agora a casar-se com essa jovem. Pouco depois, o
esquema tornou-se consciente e o homem deu os primeiros passos para o pôr em
funcionamento. Apoiei suas intenções, uma vez que o plano oferecia o que
constituía uma possível saída de sua difícil situação, ainda que irregular.
Dentro em pouco, porém, teve um sonho em que mostrava hostilidade pela jovem, e
então, voltou a consultar Schermann; o grafologista informou que a jovem era
infantil e neurótica, e ele não deveria casar-se com ela. Dessa vez, o grande
observador da natureza humana estava certo. Ela, já então considerada como a fiancée
do homem, comportava-se de maneira cada vez mais contraditória e decidiu-se
que ela devia analisar-se. Em resultado da análise, o esquema de casamento foi
abandonado. A jovem tinha completo conhecimento inconsciente das relações entre
a mãe e o fiancé, achando-se ligada a ele apenas por causa de seu
complexo de Édipo.
Por essa época, a análise
interrompeu-se. O paciente achava-se livre e capaz de seguir seu próprio
caminho no futuro. Escolheu para esposa uma moça respeitável fora de seu
círculo familiar, à qual Schermann concedera um julgamento favorável. Esperemos
que esteja certo mais uma vez.
Terão compreendido o sentido de
minha inclinação a interpretar essas experiências minhas com Schermann. Verão
que todo o meu material se relaciona apenas ao ponto isolado da transmissão de
pensamento. Nada tenho a dizer sobre todos os outros milagres que reivindica o
ocultismo. Minha própria vida, como já abertamente admiti, tem sido
particularmente pobre, no sentido do oculto. Talvez o problema da transmissão
de pensamento possa parecer-lhes muito trivial em comparação com o grande
mágico do oculto, mas considerem que grave medida além do que até aqui
acreditamos estaria envolvida apenas nessa hipótese. O que o zelador de [a
basílica de] São Dionísio costumava acrescentar à sua narração do martírio do
santo permanece uma verdade. Conta-se que São Dionísio, após sua cabeça haver
sido cortada, apanhou-a do chão e caminhou boa distância com ela sob o braço.
Mas o zelador costumava acrescentar: ‘Dans des cas pareils, ce n’est que le
premier pas qui coûte.’ O resto é fácil.
SONHOS E TELEPATIA (1922)
TRAUM UND TELEPATHIE
(a) EDIÇÕES
ALEMÃS:
1922 Imago, 8 (1), 1-22.
1925 G.S., 3, 278-304.
1925 Traumlehre, 22-48.
1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 326-354.
1940 G.W., 13,
165-91.
(b) TRADUÇÃO
INGLESA:
‘Dreams and
Telepathy’
1922 Int. J. Psycho-Anal., 3, 283-305. (Trad. de C. J. M.
Hubback.)
1925 C.P., 4, 408-35. (Mesmo tradutor.)
A presente tradução inglesa é uma versão
consideravelmente modificada da publicada em 1925.
Este foi o primeiro dos escritos de
Freud sobre telepatia a ser publicado, embora houvesse sido escrito após o
anterior (pág. 189). Não pode ter sido escrito muito antes do final de novembro
de 1921, visto que uma data oito semanas após 27 de setembro desse ano aparece
realmente no material em estudo (pág. 223). Provas internas demonstram que foi
projetado como uma conferência, e no manuscrito original (bem como nas edições
de 1922 e 1925) as palavras ‘conferência proferida perante a Sociedade
Psicanalítica de Viena’ ocorrem abaixo do título. Por outro lado, as minutas
publicadas da Sociedade de Viena não fornecem provas de que o trabalho tenha
sido lido perante ela. Parece provável que a intenção de Freud em lê-la foi por
alguma razão abandonada, após o primeiro número de Imago de 1922 já se
achar composto.
SONHOS E TELEPATIA
Atualmente, quando se sente tão
grande interesse pelo que é chamado de fenômenos ‘ocultos’, expectativas muito
definidas serão indubitavelmente despertadas pelo anúncio de um artigo com esse
título. Não obstante, apresso-me em explicar que não há fundamento para tais
expectativas. Nada aprenderão, deste meu trabalho, sobre o enigma da telepatia;
na verdade, nem mesmo depreenderão se acredito ou não em sua existência. Nesta
ocasião, propus-me a tarefa muito modesta de examinar a relação das ocorrências
telepáticas em causa, seja qual for sua origem, com os sonhos, ou, mais
exatamente, com nossa teoria dos sonhos. Saberão que comumente se acredita ser
muito íntima a conexão entre sonhos e telepatia; apresentarei a opinião de que
ambos pouco têm a ver reciprocamente, e que, viesse a existência de sonhos telepáticos
a ser estabelecida, não haveria necessidade de modificar nossa concepção dos
sonhos, em absoluto.
O material em que se baseia o
presente relato é muito tênue. Em primeiro lugar, devo expressar meu pesar de
não poder fazer uso de meus próprios sonhos, como fiz quando escrevi A
Interpretação de Sonhos (1900a). Porém, nunca tive um sonho
‘telepático’. Não que eu passasse sem sonhos do tipo que transmitem a impressão
de que um certo evento definido está acontecendo em algum lugar distante,
deixando ao que sonha decidir se o fato está acontecendo naquele momento ou
acontecerá em alguma época posterior. Também na vida desperta amiúde me dei
conta de pressentimentos de acontecimentos distantes. Contudo, nenhuma dessas
impressões, previsões e premonições se ‘realizaram’, como dizemos; não se
demonstrou existir uma realidade externa correspondente a elas e, portanto,
tiveram de ser encaradas como previsões puramente subjetivas.
Sonhei certa vez, por exemplo,
durante a guerra, que um de meus filhos então servindo na frente de batalha
fora morto. Isso não estava diretamente enunciado no sonho, mas expresso de uma
maneira inequívoca através do bem conhecido simbolismo de morte, cuja descrição
foi dada pela primeira vez por Stekel [1911a]. (Não devemos nos esquecer
de cumprir o dever, que amiúde se sente ser inconveniente, de apresentar
agradecimentos literários.) Vi o jovem soldado de pé sobre um patamar, entre a
terra e a água, digamos, e ele me apareceu muito pálido. Falei-lhe, mas não me
respondeu. Havia outras indicações inequívocas. Não estava usando uniforme
militar, mas um costume de esqui que usara quando um grave acidente de
esquiagem lhe acontecera, vários anos antes da guerra. Ficou de pé sobre algo
semelhante a um banquinho, com um armário à sua frente, situação sempre
associada em meu espírito à idéia de ‘cair’, através de uma lembrança de minha
própria infância. Menino de pouco mais de dois anos de idade, eu subira num
banquinho como aquele para apanhar algo de cima de um armário - provavelmente algo
bom de comer -, caí e causei-me um ferimento de que ainda hoje posso mostrar a
cicatriz. Meu filho, contudo, a quem o sonho pronunciava como morto, voltou
ileso da guerra para casa.
Apenas há pouco tempo atrás tive
outro sonho trazendo más notícias; deu-se, penso eu, exatamente antes de me
decidir a reunir essas poucas observações. Dessa vez, não houve muita tentativa
de disfarce. Vi minhas duas sobrinhas que moram na Inglaterra. Estavam vestidas
de preto e me disseram: ‘Enterramo-la na quinta-feira.’ Soube que a referência
era à morte de sua mãe, então com 87 anos de idade, viúva de meu irmão mais
velho.
Seguiu-se um tempo de desagradável
expectativa; certamente nada haveria de surpreendente no fato de uma senhora
tão idosa ter-se finado subitamente; contudo, seria muito desagradável que o
sonho coincidisse exatamente com a ocorrência. A próxima carta da Inglaterra,
contudo, dissipou esse temor. Em benefício daqueles que se interessam pela
teoria onírica da realização de desejos posso interpolar a reafirmação de que
não houve dificuldade em detectar pela análise os motivos inconscientes que se
poderia presumir existirem nesses sonhos de morte, bem como em outros.
Espero que não contestem o valor do
que acabo de relatar, conquanto as experiências negativas provem tão pouco aqui
quanto o fazem em assuntos ocultos. Estou bem ciente disso e não aduzi esses
exemplos com qualquer intenção de provar algo ou de sub-repticiamente
influenciá-los em algum sentido específico. Meu único propósito foi explicar a
pobreza de meu material.
Outro fato por certo me parece de
maior significação: que durante cerca de 27 anos de trabalho como analista,
nunca me achei em posição de observar um sonho verdadeiramente telepático em
qualquer de meus pacientes. E esses pacientes, contudo, constituíam uma boa
coleção de naturezas gravemente neuropáticas e ‘altamente sensíveis’. Vários
deles relataram-me incidentes bem notáveis em sua vida anterior, nos quais
baseavam uma crença em misteriosas influências ocultas. Acontecimentos como
acidentes ou doenças de parentes próximos, sobretudo a morte de um dos
genitores, ocorreram com bastante freqüência durante o tratamento e o
interromperam, mas sequer numa única ocasião essas ocorrências, eminentemente
apropriadas, como eram, em caráter, permitiram-me a oportunidade de registrar
um único sonho telepático, embora o tratamento se estendesse por diversos meses
ou mesmo anos. Quem se interessar, pode procurar uma explicação para este fato,
que restringe ainda mais o material à minha disposição. Seja como for, ver-se-á
que tal explicação não influenciaria o tema deste artigo.
Tampouco me embaraça indagarem-me
por que não fiz uso da abundante reserva de sonhos telepáticos ocorrida na
literatura do assunto. Não teria de procurar muito, visto que as publicações
tanto da Sociedade Inglesa quanto da Sociedade Americana de Pesquisas Psíquicas
me são acessíveis como membro de ambas. Em nenhum desses relatos há qualquer
tentativa de submeter tais sonhos à investigação analítica, que seria nosso
primeiro interesse em casos assim. Ademais, logo perceberão que, para os fins
do presente artigo, um único sonho será o bastante.
Assim, meu material consiste simples
e unicamente em dois relatos que chegaram até mim de correspondentes na
Alemanha. Os autores não me são pessoalmente conhecidos, mas fornecem seus
nomes e endereços; não tenho o menor fundamento para presumir, de sua parte,
qualquer intenção de embuste.
I
Com o primeiro dos dois já havia
mantido correspondência; fora suficientemente gentil em enviar-me, como muitos
de meus leitores fazem, observações de ocorrências cotidianas e coisas assim.
Trata-se obviamente de um homem instruído e extremamente inteligente; dessa
vez, coloca expressamente seu material à minha disposição, caso me interesse em
transformá-lo em ‘relato literário’.
Sua carta diz o seguinte:
‘Considero o seguinte sonho como de
interesse suficiente para que o transmita ao senhor, a título de material para
suas pesquisas.
‘Devo primeiro enunciar os seguintes
fatos. Minha filha, que é casada e mora em Berlim, esperava seu primeiro parto
em meados de dezembro deste ano. Eu pretendia ir a Berlim, na ocasião, com
minha (segunda) esposa, madrasta de minha filha. Durante a noite de 16 para 17
de novembro sonhei, com vividez e clareza nunca experimentada, que minha
esposa havia dado à luz gêmeos. Vi os dois saudáveis bebês muito claramente,
com seus rostos rechonchudos, deitados em seu berço, lado a lado. Não lhes
observei o sexo; um, de cabelos claros, tinha distintamente as minhas feições e
algo das de minha esposa; o outro, de cabelos castanhos, parecia-se claramente
com ela, com algum aspecto meu. Disse a minha esposa, que tem cabelos
louro-arruivados: “Provavelmente o cabelo castanho de ‘seu’ filho também ficará
ruivo mais tarde.” Minha mulher deu-lhe o seio. No sonho, ela também fizera um
pouco de geléia numa bacia de lavar e as duas crianças engatinhavam pela bacia
e lambiam-lhe o conteúdo.
‘Quanto ao sonho, é só. Quatro ou cinco
vezes que despertei durante ele perguntei-me se era verdade que tínhamos
gêmeos, mas não cheguei, com exatidão alguma, à conclusão de ser apenas um
sonho. Este durou até eu despertar e, após, ainda decorreu tempo até que me
sentisse inteiramente esclarecido sobre o verdadeiro estado de coisas. Ao
desjejum, contei à minha esposa o sonho, que muito a divertiu. Disse ela: “Será
que Ilse (minha filha) vai ter gêmeos?” Respondi: “Dificilmente, uma vez que os
gêmeos não são costume, seja em minha família ou na de G” (marido dela). Em 18
de novembro, às dez horas da manhã, recebi um telegrama de meu genro, passado
na tarde anterior, comunicando-me o nascimento de gêmeos, um menino e uma
menina. O nascimento, assim, dera-se na ocasião em que estava sonhando que minha
esposa tivera gêmeos. O parto ocorrera quatro semanas mais cedo do que qualquer
de nós esperava, com base nos cálculos de minha filha e meu genro.
‘Mas há ainda uma outra
circunstância: na noite seguinte [isto é, antes também de recebido o telegrama],
sonhara que minha falecida esposa, mãe de minha filha, tomara a seu cargo 48
bebês recém-nascidos. Quando a primeira dúzia estava chegando, protestei.
Nesse ponto, o sonho findou.
‘Minha falecida esposa gostava muito
de crianças. Freqüentemente falava a esse respeito, dizendo que gostaria de ter
um bando inteiro delas em torno de si, quanto mais, melhor; que se sairia muito
bem se a encarregassem de um jardim de infância e que seria muito feliz assim.
O barulho que as crianças fazem era música para ela. De tempos em tempos
convidava um bando inteiro de crianças das ruas e as regalava com chocolate e
bolos no pátio de nossa vivenda. Minha filha deve ter pensado em seguida na mãe
após o parto, especialmente devido à surpresa de sua prematuridade, da vinda de
gêmeos e de sua diferença de sexo. Sabia que a mãe teria acolhido o fato com a
mais viva alegria e simpatia: “Pense só no que mamãe diria, se estivesse comigo
agora!” Esse pensamento deve, indubitavelmente, ter-lhe passado pela mente. E
então sonhei com minha falecida esposa, com quem raramente sonho, e em quem não
falara nem pensara após o primeiro sonho.
‘O senhor acha que a coincidência
entre o sonho e o fato foi acidental em ambos os casos? Minha filha é muito
ligada a mim e estava certamente pensando em mim durante o trabalho de parto,
particularmente porque amiúde trocáramos cartas sobre o seu modo de vida
durante a gravidez e eu lhe havia constantemente dado conselhos.’
É fácil adivinhar o que foi minha
resposta a essa carta. Fiquei triste por descobrir que o interesse de meu
correspondente pela análise havia sido tão completamente morto por seu
interesse na telepatia. Evitei assim sua pergunta direta e, observando que o
sonho continha muito coisa além da vinculação com o nascimento dos gêmeos, pedi-lhe
para fornecer-me quaisquer informações ou idéias que lhe ocorressem e pudessem
dar-me uma pista quanto ao significado do sonho.
Logo após recebi a seguinte segunda
carta que, deve-se admitir, não me forneceu inteiramente tudo o que eu queria:
‘Não pude responder sua amável carta
do dia 24 senão hoje. Ficarei encantado em contar-lhe, “sem omissão ou
reserva”, todas as associações que me ocorrerem. Infelizmente não são muitas, e
outras viriam em conversa.
‘Pois bem: minha esposa e eu não
queremos mais filhos. Quase nunca temos relações sexuais; seja como for, por
ocasião do sonho certamente não havia “perigo”. O parto de minha filha, que era
esperado para meados de dezembro, constituía naturalmente um tema freqüente de
conversa entre nós. Minha filha fora examinada e radiografada no verão e o
médico que fizera o exame estava certo de que a criança seria um menino. Minha
esposa disse na ocasião: “Vou rir se, ao fim das contas, for uma menina.” Na
ocasião, também observou que seria melhor que fosse um H. em vez de um G. (nome
de família de meu genro); minha filha é mais bonita e faz melhor figura que ele
embora ele tenha sido oficial da marinha. Efetuei alguns estudos da questão da
hereditariedade e tenho o hábito de olhar para bebês, a fim de ver com quem se
parecem. Uma coisa ainda: temos um cãozinho que se senta conosco à mesa, à
noite, para receber sua comida, e que lambe os pratos. Todo esse material
aparece no sonho.
‘Gosto de crianças pequenas e amiúde
tenho dito que gostaria de novamente cuidar da educação de uma criança, agora
que devo possuir bem mais compreensão, interesse e tempo para dedicar-lhe;
porém, com minha esposa não o desejaria, visto que não possui as qualidades
necessárias para criar judiciosamente uma criança. O sonho faz-me presente de
dois filhos; não observei seu sexo. Vejo-os ainda neste momento, deitados na
cama, e reconheço-lhes as feições, um deles mais “eu” e o outro mais minha
esposa, cada qual, porém, com traços menores do outro lado. Minha esposa possui
cabelos louro-arruivados, mas um dos filhos tem cabelos castanhos
(avermelhados). Digo eu: “Ora bem, eles também ficarão ruivos mais tarde.”
Ambas as crianças engatinham por uma grande bacia de lavar em que minha esposa
esteve mexendo geléia e lambem-lhe o fundo e os lados (sonho). A origem desse
pormenor é facilmente explicável, assim como o sonho como um todo. Ele não
seria difícil de compreender ou interpretar se não houvesse coincidido com a
chegada inesperadamente precoce de meus netos (três semanas mais cedo), uma coincidência
de tempo quase exata. (Não posso dizer exatamente quando começou o sonho; meus
netos nasceram às 9 e 9 e 15 da noite; fui deitar-me por volta das onze horas e
tive o sonho no decorrer da noite.) Também o nosso conhecimento de que a
criança seria um menino junta-se à dificuldade, embora possivelmente a dúvida
sobre se isso fora inteiramente determinado possa explicar o aparecimento de
gêmeos no sonho. Mesmo assim, a coincidência do sonho com o aparecimento
inesperado e prematuro dos gêmeos de minha filha permanece.
‘Não foi a primeira vez que fatos
distantes se me tornaram conhecidos antes que recebesse as notícias reais. Para
fornecer um exemplo entre muitos, em outubro recebi uma visita de meus três
irmãos. Não nos havíamos reunido durante trinta anos, exceto por um tempo muito
breve, uma vez nos funerais de meu pai e outra nos de minha mãe. Ambas as
mortes eram esperadas e não tivera “pressentimentos” em nenhum dos casos. Mas,
há cerca de 25 anos atrás, meu irmão mais moço faleceu de modo inteiramente
súbito e inesperado, quando tinha dez anos. Quando o carteiro entregou-me o
cartão-postal com a notícia de sua morte, antes que passasse o olhar por ele
veio-me logo o pensamento: “É para dizer que meu irmão morreu.” Fora o único
que ficara em casa, um rapaz forte e sadio, ao passo que nós, os quatro irmãos
mais velhos, já estávamos plenamente desenvolvidos e havíamos deixado a casa
paterna. Por ocasião da visita de meus irmãos, a conversa fortuitamente girou
em torno dessa experiência minha e, como se fosse uma palavra de ordem, todos
os três irmãos declaravam haver-lhes acontecido exatamente a mesma coisa. Se
ocorreu exatamente da mesma maneira, não posso dizer; de qualquer modo, cada um
declarou que se sentira perfeitamente certo da morte, exatamente antes que a
notícia inesperada chegasse. Somos todos, pelo lado materno, de disposição
sensível, embora homens fortes e altos, mas nenhum de nós é, de modo algum,
inclinado ao espiritismo ou ao ocultismo; pelo contrário, rejeitamos a adesão a
qualquer dos dois. Meus irmãos são todos homens de formação universitária, dois
professores, o outro agrimensor, todos antes formalistas que visionários. Isto
é tudo o que posso contar-lhe em relação ao sonho. Se puder transformá-lo em um
relato literário, fico encantado em colocá-lo à sua disposição.’
Temo que os leitores possam
comportar-se como o autor dessas duas cartas. Também estarão primariamente
interessados em saber se o sonho pode ser realmente considerado como uma
notificação telepática do nascimento inesperado dos gêmeos, e não estarão
dispostos a submeter o sonho à análise, como qualquer outro. Prevejo que sempre
será assim quando a psicanálise e o ocultismo se encontrarem. A primeira tem,
por assim dizer, todos os nossos instintos mentais contra ela; do último, vamos
a seu encontro a meio caminho, movidos por simpatias poderosas e misteriosas.
Entretanto, não vou assumir a posição de não ser mais que um psicanalista, de
os problemas do ocultismo não me serem concernentes; com acerto julgariam isso
como apenas uma fuga ao problema. Nada disso eu posso dizer que constituiria
uma grande satisfação para mim, se pudesse convencer-me, assim como a outros,
da inatacável evidência da existência de processos telepáticos, mas considero
também que as informações fornecidas sobre esse sonho são inteiramente
inadequadas para justificar um pronunciamento desse tipo. Observação que nem
uma só vez ocorre a esse homem inteligente, profundamente interessado em saber
como se acha no problema de seu sonho, dizer-nos quando pela última vez viu a
filha ou que notícias teve dela ultimamente. Escreve, na primeira carta, que o
nascimento foi um mês mais cedo; na segunda, porém, esse mês transformou-se em
apenas três semanas e nenhuma delas nos diz se o nascimento foi realmente prematuro
ou se, como tão amiúde acontece, os interessados estavam enganados em seus
cálculos. Temos, porém, de considerar esses e outros pormenores da ocorrência,
se quisermos pesar a probabilidade de aquele que sonhou haver feito estimativas
e palpites inconscientes. Sinto também que isso não seria útil, ainda que
conseguisse obter resposta a tais perguntas. No processo de chegar à
informação, sempre surgiriam novas dúvidas, que só poderiam ser acalmadas se
tivéssemos o homem à nossa frente e pudéssemos reviver todas as lembranças
pertinentes que talvez ele tenha afastado como não essenciais. Tem certamente
razão no que diz no começo de sua segunda carta, de que mais coisas surgiriam
conversando.
Considerem um outro caso semelhante,
em que nenhum papel desempenha o intérprete perturbado pelo ocultismo. Amiúde
devem os leitores ter estado em posição de comparar a anamnese e as informações
sobre a doença, dadas durante a primeira sessão por qualquer neurótico, com o
que dele obtiveram após alguns meses de psicanálise. À parte as abreviações
inevitáveis, quantas coisas essenciais foram omitidas ou suprimidas, quantas
conexões foram deslocadas; na realidade, quanto de incorreto ou inverídico lhes
foi contado naquela primeira ocasião! Não me chamarão de hipercrítico se
recusar-me, nas circunstâncias, a fazer qualquer pronunciamento sobre se o
sonho em causa é um evento telepático, uma realização particularmente sutil por
parte do inconsciente do que sonhou, ou se deve simplesmente ser tomado como
uma coincidência notável. Nossa curiosidade deve satisfazer-se com a esperança
de que, em alguma ocasião posterior, seja possível efetuar um exame oral
pormenorizado do que sonhou. Mas não podem dizer que esse resultado de nossa
investigação os desapontou, porque os preparei para ele; disse-lhes que não
ouviriam nada que lançasse luz sobre o problema da telepatia.
Se agora passarmos ao tratamento
analítico do sonho, seremos novamente obrigados a expressar nossa insatisfação.
Os pensamentos que aquele que sonhou associa ao conteúdo manifesto do sonho,
são mais uma vez insuficientes e não nos permitem efetuar qualquer análise do
sonho. Por exemplo, o sonho entra em grandes pormenores sobre as semelhanças
das crianças com os pais, discute a cor de seus cabelos e a provável mudança de
cor numa idade posterior, e como explicação desses elaborados detalhes
recebemos apenas, do que sonhou, a árida informação de que sempre se interessou
por questões de semelhança e hereditariedade. Estamos acostumados a esperar um
material bastante mais amplo que este! Em determinado ponto, porém, o sonho
admite uma interpretação analítica e exatamente nesse ponto a análise, que sob
outros aspectos não possui conexão com o ocultismo, vem em auxílio da telepatia
de uma maneira digna de nota. É apenas por causa desse ponto isolado que lhes
estou pedindo sua atenção para este sonho.
Corretamente falando, o sonho não
tem qualquer direito a ser chamado de ‘telepático’. Não informou quem o sonhou
de nada que (fora de seu conhecimento normal) se estivesse realizando noutro
lugar. O que o sonho contou foi algo inteiramente diferente do acontecimento
comunicado no telegrama recebido no segundo dia após a noite do sonho. Este e a
ocorrência real divergem num ponto particularmente importante, mas concordam,
afora a coincidência de tempo, noutro elemento muito interessante. No sonho, a esposa
do que sonhou teve gêmeos. A ocorrência, contudo, fora que a filha dele
dera à luz gêmeos, em sua casa distante. O que sonhou não desprezou essa
diferença; não parecia conhecer nenhum modo de superá-la e como, de acordo com
seu próprio relato, não tinha inclinações para o oculto, perguntava apenas, de
modo bastante experimental, se a coincidência entre o sonho e a ocorrência
sobre o ponto do nascimento de gêmeos poderia ser mais que um acidente. A
interpretação analítica dos sonhos, contudo, extingue essa diferença entre o
sonho e o acontecimento e dá a ambos o mesmo conteúdo. Se consultarmos o
material associado ao sonho, ele mostra, a despeito de sua dispersão, que
existia um vínculo íntimo de sentimento entre o pai e a filha, um vínculo de
sentimento que é tão costumeiro e natural que deveríamos deixar de nos
envergonharmos dele, um vínculo que, na vida cotidiana, simplesmente se
expressa como um interesse terno e só é impulsionado à sua conclusão lógica nos
sonhos. O pai sabia que a filha se aferrava a ele, estava convencido de que
amiúde pensara nele durante o trabalho de parto. Penso que, em seu coração,
dera-a de má vontade ao genro, a que, em uma das cartas, faz algumas referências
depreciativas. Na ocasião do parto (esperado ou comunicado por telepatia) o
desejo inconsciente tornou-se ativo na parte reprimida de sua mente: ‘ela
deveria ser minha (segunda) esposa’; foi esse desejo que deformou os
pensamentos oníricos e constituiu a causa da diferença entre o conteúdo
manifesto do sonho e o acontecimento. Temos o direito de substituir, no sonho,
a segunda esposa pela filha. Se possuíssemos mais associações com o sonho,
poderíamos indubitavelmente verificar e aprofundar esta interpretação.
E agora cheguei ao argumento que
quero apresentar-lhes. Esforçamo-nos por manter a imparcialidade mais estrita e
permitimos que duas concepções do sonho se classificassem como igualmente
prováveis e igualmente não provadas. Segundo a primeira, o sonho é uma reação a
uma mensagem telepática: ‘sua filha acabou de trazer gêmeos ao mundo’. De
acordo com a segunda, está subjacente ao sonho um processo inconsciente de
pensamento capaz de ser reproduzido mais ou menos assim: ‘Hoje é o dia em que o
parto deveria realizar-se, se é que aqueles jovens em Berlim estão realmente
errados de um mês em seus cálculos, como suspeito. E se minha (primeira) esposa
ainda estivesse viva, certamente não ficaria contente com um só neto. Para
agradá-la, teria de haver pelo menos gêmeos.’ Estando certa essa segunda
opinião não surge nenhum problema novo. Trata-se simplesmente de um sonho como
qualquer outro. Os pensamentos oníricos (pré-conscientes), tal como delineados
acima, são reforçados pelo desejo (inconsciente) de que nenhuma outra mulher
senão a filha deveria ser a segunda esposa do que sonhou e assim surge o sonho
manifesto, tal como nos foi descrito.
Se preferirem pressupor que uma
mensagem telepática sobre o parto da filha chegou ao que dormia, surgem novas
questões da relação de uma mensagem como esta com um sonho e de sua influência
na formação dos sonhos. A resposta não se acha distante, sendo bastante clara.
Uma mensagem telepática será tratada como uma parte do material que entra na
formação de um sonho, como qualquer outro estímulo externo ou interno, como um
ruído perturbador na rua ou uma insistente sensação orgânica no próprio corpo
do que dorme. Em nosso exemplo, é evidente a maneira pela qual a mensagem, com
a ajuda de um desejo reprimido à espreita, remodelou-se numa realização de
desejo; infelizmente, não é tão fácil demonstrar que se combinou com outros
materiais que se tornaram ativos ao mesmo tempo, misturando-se com eles para
formar um sonho. As mensagens telepáticas - se temos justificativa para reconhecer
sua existência - não provocam assim alteração no processo de formação de um
sonho; a telepatia nada tem a ver com a natureza dos sonhos. E, a fim de evitar
a impressão de que estou tentando ocultar uma noção vaga por trás de palavras
abstratas e bem sonantes, estou pronto a repetir: a natureza essencial dos
sonhos consiste no processo peculiar da ‘elaboração onírica’, que, com o
auxílio de um desejo inconsciente, transporta os pensamentos pré-conscientes
(resíduos diurnos) para o conteúdo manifesto do sonho. O problema da telepatia
interessa aos sonhos tanto quanto o problema da ansiedade.
Tenho esperanças de que irão
pressupor isso; irão porém levantar a objeção de que, não obstante, existem
outros sonhos telepáticos em que não há diferença entre o acontecimento e o
sonho e nos quais nada mais se pode encontrar senão uma reprodução não
deformada do evento. Em minha própria experiência, não tenho conhecimento
desses sonhos, mas sei que foram muitas vezes comunicados. Se presumirmos a
necessidade de lidarmos com um sonho telepático assim, indisfarçado e
inadulterado, surgirá outra questão. Deveríamos chamar essa experiência
telepática realmente de ‘sonho’? Certamente o farão enquanto se ativerem à
praxe popular, segundo a qual tudo o que acontece na vida mental durante o sono
é chamado de sonho. Vocês, também, talvez digam: ‘Agitei-me no sonho’ e ainda
se acham menos conscientes de alguma incorreção quando falam: ‘Derramei
lágrimas no sonho’ ou ‘Senti-me apreensivo no sonho’. Mas sem dúvida notarão que
em todos esses casos estão empregando ‘sonho’, ‘sono’ e ‘estado de estar
adormecido’ intercambiavelmente, como se não houvesse distinção entre eles.
Penso que seria interessante para a precisão científica manter ‘sonho’ e
‘estado de sono’ mais distintamente separados. Por que deveríamos fornecer uma
contrapartida à confusão evocada por Maeder que, por recusar-se a distinguir
entre a elaboração onírica e os pensamentos oníricos latentes, descobriu uma
nova função para os sonhos? Supondo-se, então, que somos colocados frente a
frente com um ‘sonho’ telepático puro, denominemo-lo de preferência, em vez de
‘sonho’, de experiência telepática em um estado de sono. Um sonho sem
condensação, deformação, dramatização e, acima de tudo, sem realização de
desejo, certamente não merece esse nome. Recordar-me-ão de que, sendo assim,
existem outros produtos mentais no sono a que o direito de serem
chamados ‘sonhos’ teria de ser recusado. Experiências reais do dia são, às
vezes, simplesmente repetidas no sono; reproduções de cenas traumáticas em
‘sonhos’ [ver em [1]] levaram-nos ainda ultimamente a revisar a teoria dos
sonhos. Há sonhos que devem ser distinguidos do tipo habitual por certas
qualidades especiais que, dizendo corretamente, nada mais são que fantasias
noturnas, não havendo sofrido acréscimos ou alterações de espécie alguma e
sendo, sob todos os outros aspectos, semelhantes aos familiares devaneios ou
sonhos diurnos. Seria esquisito, sem dúvida, excluir essas estruturas do
domínio dos ‘sonhos’. Entretanto, todas elas provêm de dentro, são produtos de
nossa vida mental, ao passo que a própria concepção do sonho puramente
‘telepático’ reside em ser ele uma percepção de algo externo perante o qual a
mente permanece passiva e receptiva.
II
O segundo caso que apresentarei à
observação, na realidade segue outras linhas. Não se trata de um sonho
telepático, mas de um sonho recorrente da infância em diante, em uma pessoa que
teve muitas experiências telepáticas. A sua carta, que reproduzirei aqui,
contém certas coisas notáveis a cujo respeito não podemos formar nenhum
julgamento. Uma parte dela é de interesse quanto ao problema da relação da
telepatia com os sonhos.
(1) ‘…Meu médico, Herr Dr. N.,
aconselha-me a fornecer-lhe um relato de um sonho que me perseguiu durante uns
30 ou 32 anos. Estou seguindo o conselho dele e talvez o sonho possa interessar
ao senhor, sob algum aspecto científico. Desde que, em sua opinião, esses
sonhos devem remontar sua origem a uma experiência de natureza sexual nos
primeiros anos de minha infância, relato algumas reminiscências dela. São
experiências cuja impressão em mim ainda persiste, e seu caráter foi tão
acentuado que chegaram ao ponto de determinar minha religião.
‘Permita-me que lhe peça para
notificar-me de que maneira o senhor explica esse sonho e se não será possível
bani-lo de minha vida, porque ele me assombra com um fantasma e as
circunstâncias que o acompanham - sempre caio da cama e já me infligi danos não
pouco consideráveis - tornam-no particularmente desagradável e aflitivo.’
(2) ‘Tenho 37 anos de idade, sou
muito forte e me encontro em boa saúde física, mas na infância tive, além de
sarampo e escarlatina, uma crise de nefrite. Além disso, aos cinco anos de
idade, tive uma inflamação muito grave nos olhos que me deixou com visão dupla.
As imagens ficam em ângulo umas com as outras e seu contorno é enevoado,
enquanto as cicatrizes das úlceras afetam a clareza da visão. Na opinião do
especialista, não existe nada mais a ser feito e nenhuma possibilidade de
melhora. O lado esquerdo de meu rosto é repuxado para cima, por ter de retesar
o olho esquerdo para ver melhor. À força de prática e determinação, posso fazer
os mais delicados trabalhos de agulha; e semelhantemente, quando ainda menina
de seis anos, curei-me do estrabismo praticando em frente do espelho, de modo
que hoje não existe sinal externo do defeito na visão.
‘Desde os meus primeiros anos fui
sempre solitária. Mantinha-me separada das outras crianças e tinha visões
(clarividência e clariaudição). Não era capaz de distingui-las da realidade e,
conseqüentemente, amiúde me descobria em conflito com outras pessoas, em
posições embaraçosas, do que resultou haver-me tornado uma pessoa muito
reservada e tímida. Porque desde muito pequena já sabia muito mais do que
poderia haver aprendido, simplesmente não entendia as crianças de minha própria
idade. Eu mesma sou a mais velha de uma família de doze.
‘Dos seis aos dez anos freqüentei a
escola paroquial e até os dezesseis o ginásio das Freiras Ursulinas em B -. Aos
dez anos já havia aprendido tanto francês em quatro semanas e oito lições
quanto as outras crianças aprendem em dois anos. Tinha apenas de praticar,
falando. Era como se já o tivesse sabido e apenas esquecido. Nunca precisei
aprender francês, em contraste com o inglês, que não me causou problemas,
certamente, mas que eu desconhecia de antemão. Com o latim sucedeu-me como o
francês e jamais o aprendi corretamente, conhecendo-o apenas do latim
eclesiástico, o qual, contudo, é-me inteiramente familiar. Se hoje leio um
livro em francês, passo de imediato a pensar em francês, ao passo que o mesmo
jamais me ocorre com o inglês embora o domine melhor. Meus pais são gente do
campo que, por gerações, nunca falaram outro idioma que o alemão e o polonês.
‘Visões. - Às vezes a
realidade se desvanece por alguns momentos e vejo algo inteiramente diferente.
Em minha casa, por exemplo, amiúde vejo um casal idoso e uma criança e a casa
acha-se então diferentemente mobiliada. No sanatório, certa vez, uma amiga veio
a meu quarto por volta das quatro da manhã; estava acordada, com a lâmpada
acesa e sentada à mesa, lendo, porque sofro muito de insônia. A sua aparição
sempre significa uma época penosa para mim, como o foi nessa ocasião.
‘Em 1914, meu irmão se encontrava no
serviço ativo; eu não estava com meus pais em B -, mas em Ch -. Eram 10 da
manhã de 22 de agosto quando ouvi a voz de meu irmão chamando: “Mãe! Mãe!”
Aconteceu de novo dez minutos depois, mas nada vi. Em 24 de agosto voltei para
casa e encontrei minha mãe muitíssimo deprimida; em resposta às minhas
perguntas, disse-me que recebera uma mensagem do rapaz em 22 de agosto.
Estivera no jardim pela manhã, quando o ouvira chamar: “Mãe! Mãe!” Acalmei-a e
nada lhe disse sobre mim mesma. Três semanas depois chegou um cartão de meu
irmão, escrito em 22 de agosto, entre 9 e 10 da manhã; logo após, ele morreu.
‘Em 27 de setembro de 1921, enquanto
me achava no sanatório, recebi uma mensagem de algum tipo. Houve violentas
batidas, duas ou três repetidas, na cama da paciente que dividia o quarto
comigo. Estávamos ambas acordadas; perguntei-lhe se havia batido, porém ela nem
mesmo ouvira coisa alguma. Oito semanas mais tarde soube que uma de minhas
amigas havia morrido na noite de 26 para 27 de setembro.
‘Agora, algo que é encarado como uma
alucinação, questão de opinião! Tenho uma amiga que se casou com um viúvo com
cinco filhos; vim a conhecer o marido apenas através de minha amiga. Quase
sempre quando ia visitá-la, via uma senhora entrando e saindo da casa. Era
natural supor que se tratasse da primeira esposa do marido. Numa ocasião
conveniente, pedi para ver um retrato dela, mas não pude identificar a aparição
com a fotografia. Sete anos depois vi um retrato com as feições da senhora,
pertencente a um dos filhos. Era realmente a primeira esposa. No retrato, ela
parecia em muito boa saúde; acabara de fazer um tratamento para engordar e isso
altera o aspecto de uma paciente tísica. Estes são apenas alguns exemplos entre
muitos.
‘O sonho [recorrente]. - Vi uma
língua de terra rodeada de água. As vagas eram impelidas para a frente e,
depois, para trás, pelas ondas de rebentação. Nesse pedaço de terra erguia-se
uma palmeira, um tanto torcida em direção da água. Uma mulher passara o braço
em torno do caule da palmeira e se inclinava para a água, onde um homem tentava
alcançar a praia. Por fim, ela deitou-se no solo, agarrou-se fortemente à
palmeira com a mão esquerda e estendeu a mão direita tão longe quanto podia na
direção do homem na água, mas sem alcançá-lo. Nesse ponto, caio da cama e
acordo. Tinha aproximadamente 15 ou 16 anos de idade quando compreendi que essa
mulher era eu própria e, a partir dessa época, não apenas experimentei todas as
suas apreensões em relação ao homem, mas, às vezes, me detive lá, como uma
terceira pessoa, olhando para a cena sem participar dela. Já tive esse sonho
também em cenas separadas. Quando em mim despertou algum interesse pelos homens
(dos 18 aos 20 anos de idade), tentei ver o rosto do homem, mas isso nunca foi
possível. A espuma ocultava tudo, salvo sua nuca e a parte de trás da cabeça.
Duas vezes estive noiva, mas, a julgar por sua cabeça e compleição, ele não era
nenhum dos dois homens com quem fui comprometida. Certa vez, deitada no
sanatório, sob a influência do paraldeído, vi o rosto do homem, o qual agora
sempre vejo no sonho. Era o rosto do médico sob cujos cuidados me achava.
Gostava dele como médico, mas não me sentia atraída por ele de nenhuma outra
forma.
‘Lembranças. Seis a nove meses de
idade. - Achava-me num carrinho de bebê. À minha direita estavam dois
cavalos; um deles, de cor castanha, olhava-me muito atenta e expressivamente.
Foi a minha mais vívida experiência; tive a impressão de tratar-se de um ser
humano.
‘Um ano de idade. - Papai e
eu no parque municipal, onde um guarda do parque estava pondo um passarinho em
minha mão. Seus olhos fitaram os meus. Senti: “Essa é uma criatura como você.”
‘Animais sendo abatidos. -
Quando ouvia os porcos gritando, sempre pedia socorro e gritava: “Você está
matando uma pessoa!” (quatro anos de idade). Sempre me recusei a comer carne. A
carne de porco invariavelmente me faz vomitar. Somente durante a guerra vim a
comer carne e apenas contra a vontade; agora estou aprendendo a passar
novamente sem ela.
‘Cinco anos de idade. - Minha
mãe estava dando à luz e eu a ouvia gritar. Tive a sensação: “Há um ser humano
ou um animal em grande aflição”, tal como tivera quando da matança dos porcos.
‘Em criança fui inteiramente
indiferente aos assuntos sexuais; aos dez anos ainda não tinha concepção das
ofensas contra a castidade. A menstruação apareceu aos doze anos. A mulher
despertou pela primeira vez em mim aos vinte e seis, após haver dado vida a um
filho; até essa ocasião (seis meses) constantemente tinha vômitos violentos
após a relação. Isso também acontecia sempre que me achava de ânimo deprimido.
‘Tenho poderes de observação
extraordinariamente agudos e uma audição excepcionalmente nítida, além de um
sentido muito agudo do olfato. De olhos vendados, posso apontar pelo cheiro as
pessoas que conheço entre um certo número de outras.
‘Não encaro meus poderes anormais de
visão e audição como patológicos, mas atribuo-os a percepções mais refinadas e
a uma maior rapidez de pensamento; porém só falei disso ao meu pastor e ao Dr.
- (ao último, muito contra a vontade, pois receava que me dissesse serem
qualidades negativas aquilo que eu encarava como qualidades positivas,
e também porque, de tanto ser mal interpretada na infância, sou muito reservada
e tímida).’
O sonho que a autora da carta nos
pede para interpretar não é difícil de compreender. Trata-se de um sonho de
resgatar das águas, um sonho típico de nascimento. A linguagem do simbolismo,
como estão cientes, não conhece gramática; é um caso extremo de uma linguagem
de infinitivos e mesmo o ativo e o passivo são representados por uma só e mesma
imagem. Se, num sonho, uma mulher puxa (ou tenta puxar) um homem para fora das
águas, isso pode significar que deseja ser sua mãe (toma-o por filho, como a
filha do Faraó fez com Moisés) ou pode significar seu desejo de que ele a
transforme em mãe: quer ter um filho dele, o qual, como semelhança dele, possa
ser seu equivalente. O caule a que a mulher se aferrava, facilmente se
identifica como um símbolo fálico, ainda que não esteja ereto, mas inclinado no
sentido da superfície das águas - no sonho, a palavra é ‘torcido’. A arremetida
e o recuo das ondas de rebentação trouxe à mente de outra pessoa que relatava
um sonho semelhante, uma comparação com as dores intermitentes do trabalho de
parto, e ao perguntar-lhe, sabendo que ela ainda não havia tido um filho, como
sabia dessa característica do trabalho de parto, respondeu que o imaginava como
uma espécie de cólica - psicologicamente, uma descrição inteiramente impecável.
Forneceu a associação ‘As Vagas do Mar e do Amor’. O modo como a nossa presente
sonhadora, em idade tão precoce, possa ter chegado aos mais refinados detalhes
do simbolismo - língua de terra, palmeira -, acho-me naturalmente incapaz de
dizê-lo. Não devemos, ademais, desprezar o fato de que, quando as pessoas
asseveram serem há anos perseguidas pelo mesmo sonho, acontece com freqüência
que o conteúdo manifesto não é inteiramente o mesmo. Somente o âmago do sonho é
que recorreu a cada vez; os pormenores do conteúdo são alterados ou acréscimos
lhe são efetuados.
Ao final do sonho, que se acha
claramente eivado de ansiedade, ela cai do leito. Esta é uma nova representação
do nascimento. A investigação analítica do medo às alturas, do temor do impulso
de arrojar-se de uma janela, sem dúvida conduziram, todos, à mesma conclusão.
Quem é o homem, de quem aquela que
sonhou deseja ter um filho ou de cuja semelhança gostaria de ser a mãe?
Freqüentemente tentou ver-lhe o rosto, mas o sonho jamais lhe permitiu isso; o
homem tinha de permanecer incógnito. Sabemos de incontáveis análises o
que significa esse ocultamento e a conclusão que basearíamos na analogia é
certificada por outra afirmativa da sonhadora. Sob a influência do paraldeído,
reconheceu certa vez o rosto do homem do sonho como o rosto do médico do
hospital que a estava tratando e que nada significava para sua vida emocional
consciente. O original, assim, nunca divulgou sua identidade, mas essa sua
impressão em ‘transferência’ estabeleceu a conclusão de que anteriormente deve
ter sido sempre o seu pai. Ferenczi [1917] está perfeitamente certo ao apontar
que esses ‘sonhos do insuspeitante’ constituem valiosas fontes de informações,
confirmando as conjecturas da análise. Aquela que sonhou era a mais velha de
doze filhos; quantas vezes não deve ter sofrido as dores do ciúme e do
desapontamento, quando não era ela, e sim a mãe, que conseguia do pai o filho
por que ansiava!
A sonhadora muito corretamente
imaginou que suas primeiras lembranças da infância seriam valiosas para a
interpretação de seu sonho precoce e recorrente. Na primeira cena, antes de
contar um ano de idade, enquanto estava sentada em seu carrinho, viu dois
cavalos a seu lado, um deles olhando para ela. Descreve-o como sendo sua mais
vívida experiência; teve a impressão de tratar-se de um ser humano. É um
sentimento que só podemos compreender se presumirmos que os dois cavalos
representavam, neste caso, como é tão freqüente, um casal: o pai e a mãe. Foi,
por assim dizer, um vislumbre de totemismo infantil. Se pudéssemos, perguntaríamos
à autora se o cavalo castanho que a olhava tão humanamente não poderia
ser identificado, pela cor, com seu pai. A segunda recordação estava
associativamente vinculada à primeira mediante o mesmo olhar ‘compreensivo’.
Tomar o passarinho na mão, contudo, recorda ao analista, que possui opiniões
preconcebidas próprias, de um aspecto no sonho em que a mão da mulher estava em
contato com outro símbolo fálico.
As duas lembranças seguintes são da
mesma categoria e impõem exigências ainda mais fáceis ao intérprete. A mãe a
gritar durante o parto recordou diretamente a filha dos porcos guinchando ao
serem abatidos e levou-a no mesmo frenesi de piedade. Podemos, entretanto,
também conjecturar que isso constituía uma relação violenta contra um irado
desejo de morte dirigido contra a mãe.
Com tais indicações de ternura pelo
pai, de contato com os órgãos genitais dele e de desejos de morte contra a mãe,
fica esboçado o delineamento do complexo de Édipo feminino. A longa conservação
de sua ignorância sobre assuntos sexuais e sua frigidez em um período posterior
corroboram essas suposições. A autora da carta tornou-se em potencial (e, sem
dúvida, realmente, por vezes) uma neurótica histérica. Para sua própria
felicidade, as forças da vida carregaram-na consigo. Despertaram nela os
sentimentos sexuais de mulher e trouxeram-lhe as alegrias da maternidade e a
capacidade de trabalhar. Uma parte de sua libido, porém, ainda se aferra a seus
pontos de fixação na infância; ela ainda tem o sonho que a arroja para fora do
leito e a pune por sua escolha incestuosa de objeto com ‘danos de não pequena
monta’.
E agora se espera que uma
explicação, dada por escrito por um médico que é um estranho para ela, realize
o que todas as experiências mais importantes de sua vida posterior não puderam
fazer! Provavelmente uma análise regular, prosseguida durante um tempo
considerável, obteria êxito no caso. Pelas coisas como sucederam, fui obrigado
a contentar-me com escrever-lhe que estava convencido de que ela sofria dos
efeitos ulteriores de um forte vínculo emocional ligando-a ao pai e de uma
correspondente identificação com a mãe, mas que não esperava que essa
explicação a ajudasse. As curas espontâneas das neuroses geralmente deixam
atrás de si cicatrizes e estas se tornam novamente doloridas de tempos em
tempos. Ficamos muito orgulhosos de nossa arte se conseguimos uma cura pela
psicanálise, mas ainda nesse ponto nem sempre podemos impedir a formação de uma
dolorosa cicatriz como resultado.
A pequena série de reminiscências
deve prender um pouco mais a nossa atenção. Afirmei noutra parte que essas
cenas de infância constituem ‘lembranças encobridoras’, selecionadas num
período posterior, reunidas e não infreqüentemente falsificadas no processo.
Esse remodelamento subseqüente serve a um fim às vezes fácil de adivinhar. Em
nosso caso, quase se pode ouvir o ego da autora a glorificar-se ou acalmar-se
por meio dessa série de recordações: ‘Fui desde a infância uma criatura nobre e
compassiva. Aprendi muito cedo que os animais têm alma como nós e não podia
suportar a crueldade para com eles. Os pecados da carne achavam-se longe de mim
e conservei minha castidade até bem tarde na vida.’ Com declarações como essas
ela se encontrava contradizendo em voz alta as inferências que temos de fazer
sobre sua primeira infância, com base em nossa experiência analítica; ou seja,
que ela tinha em abundância impulsos sexuais prematuros e violentos sentimentos
de ódio pela mãe e pelos irmãos e irmãs mais moços. (Ao lado da significação
genital que acabei de lhe atribuir, o passarinho pode ser também o símbolo de
uma criança, como todos os animais pequenos; sua recordação, assim acentuava
com muita insistência o fato de ter essa pequena criatura o mesmo direito de
existir que ela própria.) Conseqüentemente, a curta série de recordações
fornece um exemplo muito bom de uma estrutura mental com um duplo aspecto.
Vista superficialmente, podemos encontrar nela a expressão de uma idéia
abstrata, aqui como de praxe com uma referência ética. Na nomenclatura de
Silberer, a estrutura possui um conteúdo anagógico. Com uma investigação
mais profunda ela se revela como uma cadeia de fenômenos pertinentes à região
da vida reprimida dos instintos: apresenta o seu conteúdo psicanalítico.
Como sabem, Silberer, um dos primeiros a advertir-nos para não perder de vista
o lado mais nobre da alma humana, apresentou a opinião de que todos, ou quase
todos, os sonhos permitem tal interpretação dupla, uma mais pura, anagógica, ao
lado da ignóbil, psicanalítica. Entretanto, isso infelizmente não é assim. Pelo
contrário, uma supra-interpretação desse tipo raramente é possível. Pelo que eu
saiba, nenhum exemplo válido de tal análise onírica com duplo sentido foi
publicado até o presente, porém observações dessa espécie podem amiúde ser
feitas sobre a série de associações produzidas por nossos pacientes durante o
tratamento analítico. Por um lado, as idéias sucessivas são ligadas por uma
linha de associação que é clara para os olhos, ao passo que, por outro,
damo-nos conta de um tema subjacente que é mantido em segredo, porém ao mesmo
tempo desempenhando um papel em todas essas idéias. O contraste entre os dois
temas que regem a mesma série de idéias nem sempre é o existente entre o
altaneiro anagógico e o reles psicanalítico; é, antes, um contraste entre
idéias ofensivas e idéias respeitáveis ou indiferentes, fato que facilmente
explica por que surge essa cadeia de associações com determinação dupla. Em
nosso presente exemplo, naturalmente não é acidental que as interpretações
anagógica e psicanalítica estejam em contraste tão nítido uma com a outra;
ambas se relacionam ao mesmo material e a última tendência não era outra senão
a das formações reativas, erguidas contra os impulsos instintuais repudiados.
Aliás, por que procurarmos uma
interpretação psicanalítica em vez de contentar-nos com a anagógica, mais
acessível? A resposta está vinculada a muitos outros problemas - à existência
em geral da neurose e às explicações que ela inevitavelmente exige -, ao fato
de que a virtude não recompensa um homem com tanta alegria e força na vida como
seria de esperar, como se trouxesse consigo muito de sua origem (aquela que
sonhou, do mesmo modo, não fora recompensada por sua virtude), e vinculada a
outras coisas que não preciso debater perante esta assistência.
Até aqui, contudo, negligenciamos
completamente a questão da telepatia, o outro ponto de interesse para nós,
neste caso; é, pois, hora de retornarmos a ele. Em certo sentido temos aqui uma
tarefa mais fácil do que no caso de Herr H. Com uma pessoa que tão fácil e
precocemente na vida perdeu o contato com a realidade e a substituiu pelo mundo
da fantasia, é irresistível a tentação de vincular suas experiências
telepáticas e ‘visões’ à sua neurose e derivá-las dela, embora aqui também não
devemos permitir-nos ser enganados quanto à força lógica de nossos próprios
argumentos. Estaremos simplesmente substituindo o que é desconhecido e
ininteligível por possibilidades que, pelo menos, são compreensíveis.
Em 22 de agosto de 1914, às 10 horas
da manhã, nossa correspondente experimentou a impressão telepática de que seu
irmão, na ocasião em serviço ativo, estava chamando: ‘Mamãe! Mamãe!’ O fenômeno
foi puramente acústico e repetiu-se pouco depois, mas nada foi visto. Dois dias
mais tarde, encontrou a mãe e achou-a muito deprimida, porque o rapaz se lhe
anunciara com um repetido chamado de ‘Mamãe! Mamãe!’ Ela imediatamente
lembrou-se da mesma mensagem telepática que experimentara no mesmo tempo e, na
realidade, algumas semanas depois, foi estabelecido que o jovem soldado morrera
naquele dia, na hora mencionada.
Não se pode provar, mas também não
se pode refutar, que, em vez disso, o que ocorreu foi o seguinte: Certo dia a
mãe lhe dissera que o filho lhe enviara uma mensagem telepática, em
conseqüência do que imediatamente lhe ocorrera no espírito haver tido a mesma
experiência, na mesma ocasião. Tais ilusões da memória surgem na mente com uma
força constrangedora que haurem de fontes reais, mas transformam a realidade
psíquica em realidade material. A força da ilusão reside em constituir ela uma
maneira excelente de expressar a inclinação da irmã a identificar-se com a mãe:
‘A senhora está ansiosa sobre o rapaz, mas eu sou a mãe dele realmente e seu
grito se dirigia a mim; fui eu que recebi essa mensagem telepática.’ A
irmã, naturalmente, rejeitaria firmemente nossa tentativa de explicação e
aferrar-se-ia à crença na autenticidade de sua experiência. Não poderia,
contudo, agir de outra forma. Estaria fadada a acreditar na realidade do efeito
patológico enquanto a realidade de suas premissas inconscientes lhe fosse
desconhecida. Todos os delírios semelhantes derivam sua força e seu caráter
inexpugnável do fato de possuírem fonte na realidade psíquica inconsciente.
Observo de passagem que não nos cumpre explicar aqui a experiência da mãe ou
investigar sua autenticidade.
O irmão morto contudo não era apenas
o filho imaginário de nossa correspondente; representava também um rival a quem
havia encarado com ódio desde o dia de seu nascimento. Procede amplamente o
fato de que a maioria de todas as notificações telepáticas se relacionam com a
morte ou com a possibilidade de morte; quando pacientes em análise se detêm
contando-nos da freqüência e da infalibilidade de suas sombrias previsões,
podemos com igual regularidade demonstrar-lhes que estão nutrindo desejos de
morte particularmente intensos em seus inconscientes contra suas relações mais
chegadas e, assim, estiveram por muito tempo suprimindo-as. O paciente cuja
história relatei em 1909 foi um exemplo apropriado desse aspecto: era chamado
de ‘abutre’ por suas relações. Mas quando esse homem bondoso e altamente
inteligente - que já pereceu na guerra - começou a fazer progressos no sentido
da recuperação, forneceu-me ele uma assistência considerável no esclarecimento
de seus próprios truques psicológicos conjurativos. Da mesma maneira, parece
prescindir de outra explicação o relato fornecido pela carta de nosso primeiro
correspondente, de como ele e os irmãos haviam recebido a notícia da morte do
irmão mais novo como algo de que há muito tempo estiveram interiormente
cônscios [ver em [1]]. Todos os irmãos mais velhos teriam estado igualmente
convencidos da superfluidade da chegada do mais jovem.
Eis outra das ‘visões’ daquela que
sonhou, que provavelmente se tornará mais inteligível à luz do conhecimento
analítico. As amigas obviamente tinham grande significação em sua vida
emocional. Ainda há pouco a morte de uma delas lhe foi transmitida por uma
batida, à noite, na cama de uma companheira de quarto no sanatório. Outra
amiga, muitos anos antes, casara-se com um viúvo com muitos (cinco) filhos. Por
ocasião de suas visitas à casa deles ela via regularmente a aparição de uma
senhora, que não podia deixar de supor que fosse a primeira esposa do marido.
Isso não permitiu a princípio confirmação e só virou certeza para ela sete anos
mais tarde, quando da descoberta de uma fotografia recente da falecida. Essa
realização à guisa de uma visão por parte de nossa correspondente tinha a mesma
dependência íntima dos complexos familiares que nos são conhecidos, que o seu
pressentimento da morte do irmão. Identificando-se com a amiga, podia, na
pessoa desta, encontrar a realização de seus próprios desejos, de vez que toda
filha mais velha de uma família numerosa constrói em seu inconsciente a fantasia
de tornar-se a segunda esposa do pai, com a morte da mãe. Se esta está enferma
ou morre, a filha mais velha assume naturalmente seu lugar em relação aos
irmãos e irmãs mais novos e pode mesmo assumir certa parte das funções da
esposa, com respeito ao pai. O desejo inconsciente preenche a outra parte.
Encontro-me agora quase ao final do
que desejo dizer. Poderia, contudo, acrescentar a observação de que os exemplos
de mensagens ou produções telepáticas aqui estudados estão claramente
vinculados a emoções pertinentes à esfera do complexo de Édipo. Isso pode soar
como espantoso, contudo não pretendo apresentá-lo como uma grande descoberta.
Preferiria remeter-me ao resultado a que chegamos pela investigação do sonho
que considerei em primeiro lugar. A telepatia não possui relação com a natureza
essencial dos sonhos e não pode em absoluto aprofundar o que já compreendemos
deles através da análise. Por outro lado, a psicanálise pode realizar algo para
fazer avançar o estudo da telepatia, na medida em que, com auxílio de suas
interpretações, muitas das enigmáticas características dos fenômenos
telepáticos podem tornar-se mais inteligíveis para nós; ou então outros
fenômenos, ainda duvidosos, podem, pela primeira vez e definitivamente, ser
confirmados como de natureza telepática.
Resta apenas um elemento da
vinculação aparentemente íntima entre a telepatia e os sonhos, não influenciado
por nenhuma dessas considerações: o fato incontestável de o sono criar
condições favoráveis à telepatia. O sono, na verdade, não é indispensável à
ocorrência de processos telepáticos, originem-se eles de mensagens ou da
atividade inconsciente. Se ainda não sabem, aprendê-lo-ão do exemplo dado por
nossa segunda correspondente, da mensagem do jovem que chegou entre as 9 e as
10 da manhã. Deve-se acrescentar, contudo, que ninguém tem o direito de
protestar contra as ocorrências telepáticas se o evento e a notificação (ou
mensagem) não coincidem exatamente em tempo astronômico. É perfeitamente
concebível uma mensagem telepática poder chegar contemporaneamente ao evento e,
contudo, só penetrar na consciência na noite seguinte, durante o sono (ou,
mesmo na vida desperta, somente após algum tempo, durante alguma pausa na
atividade da mente). Como sabem, somos de opinião que a própria formação
onírica não espera necessariamente o início do sono para começar. Repetidamente
os pensamentos oníricos latentes podem ter estado preparando-se durante todo o
dia, até que, à noite, processam o contato com o desejo inconsciente que os
modela em um sonho. Mas, se o problema da telepatia é apenas uma atividade da
mente inconsciente, então, naturalmente nenhum problema novo se nos apresenta.
Pode-se, assim, pressupor que as leis da vida mental inconsciente se aplicam à
telepatia.
Dei-lhes porventura a impressão de
que estou secretamente inclinado a apoiar a realidade da telepatia no sentido
do oculto? Se for assim, lamentaria muito que seja tão difícil evitar dar essa
impressão. Isso porque, na realidade, estive ansioso por ser estritamente
imparcial. Tenho todas as razões para sê-lo, visto não possuir opinião sobre o
assunto e nada conhecer a seu respeito.
ALGUNS MECANISMOS NEURÓTICOS NO CIÚME, NA PARANÓIA E NO
HOMOSSEXUALISMO (1922)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ÜBER EINIGE NEUROTISCHE
MECHANISMEN BEIEIFERSUCHT, PARANOIA UND HOMOSEXUALITÄT
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1922 Int. Z.
Psychoanal., 8, (3) 249-58.
1924 G.S., 5, 387-99.
1924 Psychoanalyse der Neurosen, 125-39.
1931 Neurosenlehre und Technik, 173-86.
1940 G.W., 13, 195-207.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Certain Neurotic Mechanism in Jealousy,Paranoia and Homosexuality’
1923 Int. J.
Psycho-Anal., 4, 1-10. (Trad. de Joan Riviere.)
1924 C.P., 2,
232-43. (Mesma tradutora.)
A presente tradução inglesa
baseia-se na publicada em 1924; o título foi modificado.
Informa-nos o Dr. Ernest Jones que
este artigo foi lido por Freud a um pequeno grupo de amigos nas Montanhas do
Harz em setembro de 1921, na mesma ocasião em que o artigo sobre ‘Psicanálise e
Telepatia’. (Ver antes, pág. 187.)
ALGUNS MECANISMOS NEURÓTICOS NO
CIÚME, NA PARANÓIA E NO HOMOSSEXUALISMO
A
O ciúme é um daqueles estados
emocionais, como o luto, que podem ser descritos como normais. Se alguém parece
não possuí-lo, justifica-se a inferência de que ele experimentou severa
repressão e, conseqüentemente, desempenha um papel ainda maior em sua vida
mental inconsciente. Os exemplos de ciúme anormalmente intenso encontrados no
trabalho analítico revelam-se como constituídos de três camadas. As três
camadas ou graus do ciúme podem ser descritas como ciúme (1) competitivo ou
normal, (2) projetado, e (3) delirante.
Não há muito a dizer, do ponto de
vista analítico, sobre o ciúme normal. É fácil perceber que essencialmente se
compõe de pesar, do sofrimento causado pelo pensamento de perder o objeto
amado, e da ferida narcísica, na medida em que esta é distinguível da outra
ferida; ademais, também de sentimentos de inimizade contra o rival
bem-sucedido, e de maior ou menor quantidade de autocrítica, que procura
responsabilizar por sua perda o próprio ego do sujeito. Embora possamos
chamá-lo de normal, esse ciúme não é, em absoluto, completamente racional, isto
é, derivado da situação real, proporcionado às circunstâncias reais e sob o
controle completo do ego consciente; isso por achar-se profundamente enraizado
no inconsciente, ser uma continuação das primeiras manifestações da vida
emocional da criança e originar-se do complexo de Édipo ou de irmão-e-irmã do
primeiro período sexual. Além do mais, é digno de nota que, em certas pessoas,
ele é experimentado bissexualmente, isto é, um homem não apenas sofrerá pela
mulher que ama e odiará o homem seu rival, mas também sentirá pesar pelo homem,
a quem ama inconscientemente, e ódio pela mulher, como sua rival; esse último
conjunto de sentimentos adicionar-se-á à intensidade de seu ciúme. Eu mesmo
conheço um homem que sofria excessivamente durante suas crises de ciúme e que,
conforme seu próprio relato, sofria tormentos insuportáveis imaginando-se
conscientemente na posição da mulher infiel. A sensação de impotência que então
o acometia e as imagens que utilizava para descrever sua condição - exposto ao
bico do abutre, como Prometeu, ou arrojado em um ninho de cobras - foram por ele
atribuídas a impressões recebidas durante vários atos homossexuais de agressão
a que fora submetido quando menino.
O ciúme da segunda camada, o ciúme
projetado, deriva-se, tanto nos homens quanto nas mulheres, de sua própria
infidelidade concreta na vida real ou de impulsos no sentido dela que
sucumbiram à repressão. É fato da experiência cotidiana que a fidelidade,
especialmente aquele seu grau exigido pelo matrimônio, só se mantém em face de
tentações contínuas. Qualquer pessoa que negue essas tentações em si própria
sentirá, não obstante, sua pressão tão fortemente que ficará contente em
utilizar um mecanismo inconsciente para mitigar sua situação. Pode obter esse
alívio - e, na verdade, a absolvição de sua consciência - se projetar seus
próprios impulsos à infidelidade no companheiro a quem deve fidelidade. Esse
forte motivo pode então fazer uso do material perceptivo que revela os impulsos
inconscientes do mesmo tipo no companheiro e o sujeito pode justificar-se com a
reflexão de o outro provavelmente não ser bem melhor que ele próprio.As
convenções sociais avisadamente tomaram em consideração esse estado universal
de coisas, concedendo certa amplitude ao anseio de atrair da mulher casada e à
sede de conquistas do homem casado, na esperança de que essa inevitável
tendência à infidelidade encontrasse assim uma válvula de segurança e se
tornasse inócua. A convenção estabeleceu que nenhum dos parceiros pode
responsabilizar o outro por essas pequenas excursões na direção da infidelidade
e elas geralmente resultam no desejo despertado pelo novo objeto encontrando
satisfação em certo tipo de retorno à fidelidade ao objeto original. Uma pessoa
ciumenta, contudo, não reconhece essa convenção da tolerância; não acredita
existirem coisas como interrupção ou retorno, uma vez o caminho tenha sido
trilhado, nem crê que um flerte possa ser uma salvaguarda contra a infidelidade
real. No tratamento de uma pessoa assim, ciumenta, temos de abster-nos de
discutir com ela o material em que baseia suas suspeitas; pode-se apenas visar
a levá-la a encarar o assunto sob uma luz diferente.
O ciúme emergente de tal projeção
possui efetivamente um caráter quase delirante; é, contudo, ameno ao trabalho
analítico de exposição das fantasias inconscientes da própria infidelidade do
sujeito. A posição é pior com referência ao ciúme pertencente à terceira
camada, o tipo delirante verdadeiro. Este também tem sua origem em impulsos
reprimidos no sentido da infidelidade, mas o objeto, nesses casos, é do mesmo
sexo do sujeito. O ciúme delirante é o sobrante de um homossexualismo que
cumpriu seu curso e corretamente toma sua posição entre as formas clássicas da
paranóia. Como tentativa de defesa contra um forte impulso homossexual
indevido, ele pode, no homem, ser descrito pela fórmula: ‘Eu não o amo;
é ela que o ama!’ Num caso delirante deve-se estar preparado para
encontrar ciúmes pertinentes a todas as três camadas, nunca apenas à terceira.
B
Paranóia - Os casos de
paranóia, por razões bem conhecidas, não são geralmente sensíveis à investigação
analítica. Recentemente, porém, mediante um estudo intensivo de dois paranóicos
pude descobrir algo de novo para mim.
O primeiro caso foi o de um homem
ainda jovem com paranóia de ciúmes inteiramente desenvolvida, cujo objeto era
sua esposa impecavelmente fiel. Um período tempestuoso em que o delírio o
possuíra ininterruptamente, já ficara para trás. Quando o vi, achava-se sujeito
apenas a crises nitidamente separadas que duravam por vários dias e que,
curiosamente, apareciam com regularidade no dia após haver tido com a esposa
relações sexuais, incidentalmente satisfatórias para ambos. Justifica-se a
inferência de que após cada saciação da libido heterossexual o componente
homossexual, igualmente estimulado pelo ato, forçava um escoadouro para si na
crise de ciúmes.
Essas crises hauriam seu material de
sua observação de indicações insignificantes, pela quais a coqueteria
inteiramente inconsciente de sua esposa, inobservável por mais ninguém, se
traíra para ele. Ela tocara, sem intencionalidade, com a mão o homem sentado
próximo a ela; voltara-se demais para ele ou sorrira de modo mais agradável do
que quando se achava só com o marido. Era extraordinariamente observador de
todas essas manifestações do inconsciente dela e sempre sabia como interpretá-las
corretamente, de modo que realmente estava com a razão a respeito e podia, além
disso, invocar a análise para justificar seu ciúme. Sua anormalidade de fato se
reduzia a isso, em vigiar bem mais de perto a mente inconsciente de sua esposa
e, depois, encará-la como muito mais importante do que outra pessoa teria
pensado fazer.
Recordamo-nos de que os que sofrem
de paranóia persecutória agem exatamente da mesma maneira. Eles, também, não
podem encarar nada em outras pessoas como indiferente e tomam indicações
insignificantes que essas outras pessoas desconhecidas lhes apresentam e as
utilizam em seus delírios de referência. O significado de seu delírio de
referência é que esperam de todos os estranhos algo semelhante ao amor. No
entanto essas pessoas não lhes demonstram nada desse tipo; riem consigo
próprias, fazem floreios com as bengalas e até mesmo cospem no chão enquanto
passam; e, na realidade, tais coisas não se fazem quando uma pessoa em que se
tem um interesse amigável se acha perto. A não ser quando nos sentimos
inteiramente indiferentes ao passante, quando se pode tratá-lo como se fosse ar
e, considerando também o parentesco fundamental dos conceitos de ‘estranho’ e
‘inimigo’, o paranóico não se acha tão errado em considerar essa indiferença como
ódio, em contraste com sua reivindicação de amor.
Começamos a perceber que descrevemos
o comportamento tanto dos paranóicos ciumentos quanto dos persecutórios muito
inadequadamente, ao dizer que projetam exteriormente para os outros o que não
desejam reconhecer em si próprios. Certamente o fazem, mas não o projetam, por
assim dizer, no vazio, onde já não existe algo dessa espécie. Deixam-se guiar
por seu conhecimento do inconsciente e deslocam para as mentes inconscientes
dos outros a atenção que afastaram da sua própria. O nosso ciumento marido
percebia as infidelidades da esposa, em vez das suas; tornando-se consciente
das infidelidades dela e amplificando-as enormemente, conseguia manter as suas
inconscientes. Se aceitamos seu exemplo como típico, podemos inferir que a
amizade vista nos outros pelo paranóico perseguido é o reflexo de seus próprios
impulsos hostis contra eles. Sabendo que, no paranóico, é exatamente a pessoa
mais amada de seu próprio sexo que se torna seu perseguidor, surge a questão de
saber onde essa inversão de afeto se origina. Não se precisa ir longe para
buscar a resposta: a sempre presente ambivalência de sentimento fornece-lhe a
fonte e a não-realização de sua reivindicação de amor a fortalece. Essa
ambivalência serve assim, para o paranóico, ao mesmo objetivo que o ciúme
servia ao meu paciente: o de uma defesa contra o homossexualismo.
Os sonhos de meu paciente ciumento
me apresentaram uma grande surpresa. Não eram simultâneos com os
desencadeamentos das crises, é verdade, mas ocorriam dentro do período que se
achava sob o domínio do delírio; contudo, estavam completamente livres destes e
revelaram os impulsos homossexuais subjacentes com um grau de disfarce não
maior que o habitual. De vez que eu tinha pouca experiência dos sonhos de
paranóicos, pareceu plausível, na ocasião, supor, ser em geral verdadeiro que a
paranóia não penetra nos sonhos.
Essa posição homossexual do paciente
foi facilmente reconhecida. Não fizera amizade e não desenvolvera interesses
sociais; tinha-se a impressão de que apenas o delírio fizera avançar o
desenvolvimento de suas relações com os homens, como se tivesse assumido
algumas das obrigações que haviam sido negligenciadas. O fato de seu pai não
haver sido de grande importância na família, combinado com um humilhante trauma
homossexual no início da mocidade, forçara seu homossexualismo à repressão e
impedira-lhe o caminho à sublimação. Sua juventude toda fora governada por uma
forte ligação à mãe. De todos os muitos filhos, fora o seu favorito declarado e
desenvolvera acentuado ciúme, do tipo normal, em relação a ela. Quando
posteriormente escolheu uma esposa - incitado principalmente pelo impulso de
enriquecer a mãe - seu anseio por uma mãe virgem expressou-se em dúvidas
obsessivas sobre a virgindade da noiva. Os primeiros anos do casamento foram
livres de ciúmes. Depois, tornou-se infiel à mulher e ingressou em uma relação
íntima com outra mulher, que perdurou por muito tempo. Assustado por esta
suspeita, finalmente encerrou esse caso amoroso e somente aí irrompeu o segundo
tipo, o ciúme projetado, pelo qual pôde acalmar suas autocensuras sobre suas
próprias infidelidades. O ciúme cedo se complicou por um acréscimo de impulsos
homossexuais, dos quais seu sogro era o objeto, transformando-se numa paranóia
de ciúmes inteiramente formada.
Meu segundo caso, não fosse a
análise, provavelmente não teria sido classificado como paranóia persecutória,
mas tive de classificar o jovem como candidato a uma moléstia final desse tipo.
Em sua atitude para com o pai existia uma ambivalência que, na sua amplitude,
era inteiramente extraordinária. Por um lado, era o mais pronunciado rebelde
imaginável e desenvolvera-se manifestamente, em todos os sentidos, em oposição
aos desejos e ideais do pai; por outro, em nível mais profundo, era ainda o
mais submisso dos filhos, que, após a morte do pai, negou a si mesmo todo o
gozo das mulheres devido a um terno sentimento de culpa. Suas relações reais
com os homens eram claramente dominadas pela suspeita; seu arguto intelecto
racionalizava facilmente essa atitude e sabia como conseguir que tanto amigos
quanto conhecidos o enganassem e explorassem. A novidade que aprendi de seu
estudo foi a possibilidade de idéias persecutórias clássicas estarem presentes
sem lograr alguma crença ou aceitação. Ocorriam súbita e ocasionalmente durante
a análise; ele, porém, as via sem importância e invariavelmente escarnecia
delas. Isso pode acontecer em muitos casos de paranóia; talvez os delírios que
observamos como formações novas ao desencadear-se a doença, há muito tempo já
existissem.
Parece-me que aqui temos uma
descoberta importante, ou seja, que o fator qualitativo, a presença de certas
formações neuróticas, possui menos significação prática que o fator
quantitativo, o grau de atenção ou, mais corretamente, a catexia que essas
estruturas podem atrair para si próprias. Nossa consideração do primeiro caso,
a paranóia de ciúmes, conduziu a uma semelhante estimativa da importância do
fator quantitativo ao demonstrar que nela também a anormalidade consistia
essencialmente na hipercatexia das interpretações do inconsciente de outra
pessoa. Há muito tempo sabemos de um fato análogo na análise da histeria. As
fantasias patogênicas, derivativos de impulsos instintuais reprimidos, são por
longo tempo toleradas juntamente com a vida normal da mente e não têm efeito
patogênico até que, por uma revolução na economia libidinal, recebem uma
hipercatexia; somente então irrompe o conflito que acarreta a formação dos
sintomas. Assim, à medida que nosso conhecimento cresce, somos cada vez mais
impelidos a trazer o ponto de vista econômico para o primeiro plano.
Gostaria também de lançar a questão de saber se esse fator quantitativo, no
qual agora me detenho, não basta para abranger os fenômenos que Bleuler [1916]
e outros propuseram ultimamente denominar de ‘comutação’. Precisa-se apenas
presumir que um aumento na resistência no curso tomado pela corrente psíquica
em determinada direção resulta na hipercatexia de outra via e, assim, leva o
fluxo a ser desviado para esse caminho.Meus dois casos de paranóia apresentaram
um instrutivo contraste no comportamento de seus sonhos. Ao passo que os do
primeiro caso se achavam livres de delírio, como já foi dito, o outro paciente
produzia grande número de sonhos persecutórios que podemos considerar como
precursores os substitutos das idéias delirantes. O perseguidor, de quem só
conseguia escapar com grande medo, era geralmente um poderoso touro ou algum
outro símbolo masculino que, no próprio sonho, ele às vezes identificava como
representando o pai. Certo dia, produziu um sonho paranóico de transferência
muito característico. Viu-me fazendo a barba na frente dele e, do perfume,
compreendeu que estava usando o mesmo sabão que o pai usava. Eu fazia isso a
fim de obrigá-lo a efetuar uma transferência paterna para mim. A escolha desse
incidente para o sonho revela de modo inteiramente inequívoco a atitude
depreciativa do paciente para com suas fantasias paranóicas e sua descrença
nelas, porque seus próprios olhos podiam dizer-lhe diariamente que nunca me
achei em posição de usar sabão de barba e que, portanto, nesse respeito nada
havia a que uma transferência paterna pudesse ligar-se. Uma comparação dos
sonhos dos dois pacientes mostra, contudo, que a questão de saber se a paranóia
(ou qualquer outra psiconeurose) pode ou não penetrar nos sonhos, baseia-se
numa concepção falsa dos sonhos. Os sonhos distinguem-se do pensamento de
vigília pela sua possibilidade de incluir material (pertencente à região do
reprimido) que não deve aflorar no pensamento desperto. Afora isso, os sonhos
são meramente uma forma de pensar, uma transformação do material pré-consciente
do pensamento pela elaboração onírica e suas condições. Nossa terminologia das
neuroses não é aplicável ao material reprimido, que não pode ser chamado de
histérico, obsessivo ou paranóico. Opondo-se a isso, a outra parte do material
sujeita ao processo de formação onírica - os pensamentos pré-conscientes - pode
ser normal ou apresentar o caráter de qualquer neurose; eles podem ser os
produtos de qualquer dos processos patogênicos em que reside a essência de uma
neurose. Não parece haver razão para que qualquer idéia patológica do gênero
não deva ser transformada em um sonho. Um sonho pode, assim, simplesmente
representar uma fantasia histérica, uma idéia obsessiva ou um delírio, isto é,
pode revelar um ou outro desses fatos após a interpretação. A observação dos
dois paranóicos demonstra que os sonhos de um deles eram inteiramente normais
enquanto sujeito a seu delírio, e que os do outro eram paranóicos em conteúdo
enquanto tratava suas idéias delirantes com desprezo. Logo, em ambos os casos,
o sonho aproveitava o material que, na ocasião, se achava forçado para o
segundo plano na vida desperta. Entretanto, isso também não precisa
necessariamente constituir uma regra invariável.
C
Homossexualismo. - O
reconhecimento do fator orgânico no homossexualismo não nos isenta da obrigação
de estudar os processos psíquicos vinculados à sua origem. O processo típico,
já estabelecido em casos inumeráveis, é de um jovem, alguns anos após a
puberdade, e que até então fora intensamente fixado na mãe, mudar de atitude;
identifica-se com ela e procura objetos amorosos em quem possa redescobrir-se e
a quem possa então amar como a mãe o amara. A marca característica desse
processo é que, por vários anos, uma das condições necessárias para o seu amor
consiste em o objeto masculino ter, em geral, a mesma idade que ele próprio
tinha quando se deu a mudança. Vimos a conhecer diversos fatores que contribuem
para esse resultado, provavelmente em graus diferentes. Primeiro há a fixação
na mãe, que fica difícil de passar para outra mulher. A identificação com a mãe
é um resultado dessa ligação e ao mesmo temppo, em certo sentido, permite que o
filho lhe permaneça fiel, a ela que foi seu primeiro objeto. Há em seguida
inclinação no sentido de uma escolha de objeto narcísico, que em geral se
encontra mais à mão e é mais fácil de efetuar que um movimento no sentido do
outro sexo. Por trás desse último fator jaz oculto um outro, de força bastante
excepcional, ou talvez coincida com ele: o alto valor atribuído ao órgão
masculino e a incapacidade de tolerar sua ausência num objeto amoroso. A
depreciação das mulheres, a aversão e até mesmo o horror a elas derivam-se
geralmente da precoce descoberta de que as mulheres não possuem pênis.
Subseqüentemente descobrimos, como outro poderoso motivo a compelir no sentido
da escolha homossexual de objeto, a consideração pelo pai ou o medo dele,
porque a renúncia às mulheres significa que toda a rivalidade com aquele (ou
com todos os homens que podem tomar seu lugar) é evitada. Os dois últimos
motivos - o apego à condição de existência de um pênis no objeto, bem como o
afastamento em favor do pai - podem ser atribuídos ao complexo de castração. A
ligação à mãe, o narcisismo, o medo da castração são os fatores (que,
incidentalmente, nada têm em si de especial) que até o presente encontramos na
etiologia psíquica do homossexualismo; com eles é preciso computar o efeito da
sedução responsável por uma fixação prematura da libido, bem como a influência
do fator orgânico que favorece o papel passivo no amor.
Nunca consideramos, entretanto, esta
análise da origem do homossexualismo como completa. Posso agora indicar um novo
mecanismo que conduz à escolha homossexual do objeto, embora não possa dizer
quão grande é o papel que ele desempenha na formação do tipo de homossexualismo
extremo, manifesto e exclusivo. A observação dirigiu minha atenção para
diversos casos em que, durante a primeira infância, impulsos de ciúmes,
derivados do complexo materno e de grande intensidade, surgiram [num menino]
contra os rivais, geralmente irmãos mais velhos. Esse ciúme provocou uma
atitude excessivamente hostil e agressiva para com esses irmãos, que poderia às
vezes atingir a intensidade de desejos reais de morte, incapazes então de
manter-se face ao desenvolvimento ulterior do sujeito. Sob as influências da
criação - e certamente sem deixar de ser influenciados também por sua própria e
continuada impotência - esses impulsos renderam-se à repressão e experimentaram
uma transformação, de maneira que os rivais do período anterior se tornaram os
primeiros objetos amorosos homossexuais. Tal resultado da ligação à mãe
mostra-nos diversas relações e interessantes com outros processos que nos são
conhecidos. Antes de tudo, ele é um contraste completo com o desenvolvimento da
paranóia persecutória, na qual a pessoa anteriormente amada se torna o
perseguidor odiado, ao passo que aqui os rivais odiados se transformam em
objetos amorosos. Representa também uma exageração do processo que, na minha
opinião, conduz ao nascimento dos instintos sociais no indivíduo. Em ambos os
processos há primeiro a presença de impulsos ciumentos e hostis que não podem
conseguir satisfação, e tanto os sentimentos afetuosos quanto os sentimentos
sociais de identificação surgem como formações reativas contra os impulsos
agressivos reprimidos.
Esse novo mecanismo de escolha
homossexual de objeto - sua origem na rivalidade que foi sobrepujada e em
impulsos agressivos que se tornaram reprimidos - combina-se às vezes com as
condições típicas já familiares para nós. Na história dos homossexuais ouve-se
amiúde que neles a mudança se efetuou após a mãe ter elogiado outro rapaz e
tê-lo estabelecido como modelo. A tendência à escolha narcísica de objeto foi
assim estimulada e, após uma breve fase de agudos ciúmes, o rival se torna um
objeto amoroso. Via de regra, contudo, o novo mecanismo se distingue pelo fato
de a mudança efetuar-se em um período muito mais precoce e a identificação com
a mãe retroceder para o segundo plano. Ademais, nos casos que observei, ele
apenas levou a atitudes homossexuais que não excluem a heterossexualidade e não
envolvem um horror feminae.
É bem conhecido que um bom número de
homossexuais se caracteriza por um desenvolvimento especial de seus impulsos
instintuais sociais e por sua devoção aos interesses da comunidade. Seria
tentador, como explicação teórica pertinente, dizer que o comportamento para
com os homens em geral, de um homem que vê nos outros homens objetos amorosos
potenciais, deve ser diferente do de um homem que encara os outros, em primeira
instância, como rivais em relação às mulheres. A única objeção a isso é que o
ciúme e a rivalidade desempenham seu papel também no amor homossexual e que a
comunidade dos homens também inclui esses rivais potenciais. À parte esta
explicação especulativa, contudo, o fato de a escolha homossexual de objeto não
sem freqüência provir de um anterior sobrepujamento da rivalidade com os homens
não pode passar sem relação com a vinculação entre o homossexualismo e o
sentimento social.
À luz da psicanálise, estamos
acostumados a considerar o sentimento social como uma sublimação de atitudes
homossexuais para com objetos. Nos homossexuais com acentuados interesses
sociais pareceria que o desligamento do sentimento social da escolha de objeto
não foi inteiramente efetuado.
DOIS VERBETES DE ENCICLOPÉDIA (1923 [1922])
NOTA DO EDITOR INGLÊS -
PSYCHOANALYSE UND LIBIDOTHEORIE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1923 Em Handwörterbuch der
Sexualwissenschaft, org. por M. Marcuse, Bonn. Págs. 296-8 e 377-83.
1928 G.S., 11, 201-23.
1940 G.W., 13, 211-33.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Two Encyclopaedia Articles’
1942
Int. J. Psycho-Anal., 23, 97-107. (Trad. de James Strachey.)
1950
C.P., 5, 107-35. (Mesmo
tradutor.)
A presente tradução inglesa é a de
1950, ligeiramente modificada.
De acordo com uma nota que pode ser
encontrada nos Gesammelte Schriften, 11, 201, estes verbetes foram
escritos durante o verão de 1922, isto é, antes do remoldamento final de Freud
de suas opiniões sobre a estrutura da mente em O Ego e o Id (1923b).
Mas as novas opiniões, embora não expressas nestes verbetes, já deviam estar
claramente presentes em seus pensamentos enquanto os escrevia, porque foi em
setembro de 1922, no Congresso Psicanalítico Internacional de Berlim, que
realmente se mencionou em um dos verbetes (ver em [1]) que ele pela primeira
vez tornou pública as concepções de ego, superego e id, que acabara de definir.
Um verbete didático, um tanto semelhantemente concebido, escrito não muito
tempo depois para uma publicação americana (1924f), toma essas novas
idéias em consideração.
DOIS VERBETES DE ENCICLOPÉDIA
(A) PSICANÁLISE
PSICANÁLISE é o nome de (1) um
procedimento para a investigação de processos mentais que são quase
inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa
investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de
informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se
acumula numa nova disciplina científica.
História - A melhor maneira
de compreender a psicanálise ainda é traçar sua origem e evolução. Em 1880 e
1881, o Dr. Josef Breuer, de Viena, médico e fisiologista experimental bem
conhecido, ocupava-se do tratamento de uma jovem que caíra enferma de grave
histeria enquanto se achava cuidando do pai doente. O quadro clínico era
constituído de paralisias motoras, inibições e distúrbios de consciência.
Seguindo uma sugestão que lhe fora dada pela própria paciente, pessoa de grande
inteligência, ele colocou-a em estado de hipnose e conseguiu que,
descrevendo-lhe os estados de ânimo e os pensamentos que eram dominantes em sua
mente, retornasse, em cada ocasião específica, a uma condição mental normal.
Repetindo sistematicamente o mesmo laborioso processo, conseguiu libertá-la de
todas as suas inibições e paralisias, de maneira que, ao final, achou o seu
trabalho recompensado por um grande sucesso terapêutico, bem como por uma
inesperada compreensão da natureza da enigmática neurose. Não obstante, Breuer
absteve-se de acompanhar sua descoberta ou de publicar algo sobre o caso até
cerca de 10 anos depois, quando a influência pessoal do presente autor (Freud,
que retornara a Viena em 1886, após estudar na escola de Charcot) o persuadiu a
retomar o assunto e empenhar-se num estudo conjunto dele. Os dois, Breuer e
Freud, publicaram um artigo preliminar em 1893, ‘Sobre o Mecanismo Psíquico dos
Fenômenos Histéricos’, e, em 1895, um volume intitulado Estudos sobre a
Histeria (que chegou à sua quarta edição em 1922), no qual descreviam seu
procedimento terapêutico como ‘catártico’.
Catarse. - As investigações
existentes na raiz dos estudos de Breuer e Freud conduziram a dois resultados
principais, que não foram abalados pela experiência subseqüente: primeiro, que
os sintomas histéricos têm sentido e significado, sendo substitutos de atos
mentais normais, e, segundo, que a descoberta desse significado desconhecido é
acompanhada pela remoção dos sintomas, de modo que, nesse caso, a pesquisa
científica e o esforço terapêutico coincidem. As observações foram efetuadas
sobre uma série de pacientes tratados da mesma maneira que a primeira paciente
de Breuer, ou seja, colocados em estados de hipnose profunda; os resultados
pareceram brilhantes até que, posteriormente, seu lado fraco tornou-se
evidente. As idéias teóricas apresentadas na ocasião por Breuer e Freud foram
influenciadas pelas teorias de Charcot sobre a histeria traumática e puderam
apoiar-se nas descobertas de seu aluno Pierre Janet, as quais, embora tenham
sido publicadas antes dos ‘Estudos‘, foram na realidade subseqüentes ao
primeiro caso de Breuer. Desde o início, o fator do afeto foi trazido para
o primeiro plano: os sintomas histéricos, sustentavam os autores, surgiam
quando um processo mental com pesada carga emocional era de alguma maneira
impedido de nivelar-se ao longo do caminho normal que conduz à consciência e ao
movimento (isto é, era impedido de ser ‘ab-reagido‘); em resultado
disso, o afeto, em certo sentido ‘estrangulado‘, era desviado ao longo
de caminhos errados e transbordava para a inervação somática (processo
denominado de ‘conversão‘). As ocasiões em que surgem ‘idéias patogênicas’
desse tipo foram descritas por Breuer e Freud como ‘traumas psíquicos’ e,
visto que estes amiúde remontavam ao passado muito remoto, foi possível aos
autores dizer que os histéricos sofriam principalmente de reminiscências (que
não haviam sido tratadas). Sob o tratamento, portanto, a ‘catarse‘
surgia quando o caminho à consciência se abria e havia uma descarga normal do
afeto. Ver-se-á que uma parte essencial dessa teoria era a pressuposição da
existência de processos mentais inconscientes. Também Janet fez uso dos
atos inconscientes na vida mental, porém, como insistiu em sua polêmica
posterior contra a psicanálise, para ele a expressão não era mais que uma
expressão improvisada, uma ‘manière de parler‘, e não pretendia sugerir
mediante ela nenhum novo ponto de vista.
Numa seção teórica dos Estudos,
Breuer apresentou algumas idéias especulativas sobre os processos de excitação
da mente. Essas idéias determinaram a direção das futuras linhas de pensamentos
e ainda hoje não receberam apreciação suficiente, mas puseram fim às suas
contribuições a esse ramo da ciência e logo depois ele afastou-se do trabalho
comum.
A Transição para a Psicanálise.
- Contrastes entre as conceituações dos dois autores eram visíveis mesmo nos Estudos.
Breuer supunha que as idéias patogênicas produziam seu efeito traumático porque
surgiam durante ‘estados hipnóides‘, nos quais o funcionamento mental
estava sujeito a limitações especiais. O presente autor rejeitou a explicação e
inclinou-se para a crença de que uma idéia se tornava patogênica se seu
conteúdo estava em oposição com a tendência predominante da vida mental do
sujeito, de maneira a incitá-lo a entrar em ‘defesa‘. (Janet atribuía
aos pacientes histéricos uma incapacidade constitucional para manter unido o
conteúdo de suas mentes e foi neste ponto que seu caminho divergiu do de Breuer
e Freud.) Além disso, as duas inovações que levaram o presente autor a
afastar-se do método catártico já haviam sido mencionadas nos Estudos.
Após o afastamento de Breuer, elas se tornaram o ponto de partida de novos
desenvolvimentos.
O Abandono da Hipnose. - A
primeira dessas inovações baseou-se na experiência prática e levou a uma
mudança de técnica. A segunda consistiu num avanço na compreensão clínica das
neuroses. Logo mostrou-se que as esperanças terapêuticas, antes depositadas no
tratamento catártico da hipnose, achavam-se até certo ponto irrealizadas. Era
verdade que o desaparecimento dos sintomas ia de mãos dadas com a catarse, mas
o sucesso total revelara ser inteiramente dependente da relação do paciente com
o médico e, assim, assemelhava-se ao efeito da ‘sugestão’. Se essa relação era
perturbada, todos os sintomas reapareciam, como se nunca houvessem sido
dissipados. Além disso, o pequeno número de pessoas que podia ser colocado em
profundo estado de hipnose envolvia uma limitação considerável, do ponto de
vista médico, da aplicabilidade do procedimento catártico. Por essas razões, o
presente autor decidiu abandonar o emprego da hipnose, mas, ao mesmo tempo, as
impressões que dela derivara forneceram-lhe os meios de substituí-la.
A Associação Livre. - O
efeito da condição hipnótica sobre o paciente fora aumentar tão grandemente sua
capacidade de efetuar associações que ele podia encontrar diretamente o caminho
- inacessível à sua reflexão consciente - que conduzia do sintoma aos
pensamentos e lembranças a ele vinculados. O abandono da hipnose parecia tornar
desesperadora a situação, até que o autor se recordou de uma observação de
Bernheim segundo a qual as coisas experimentadas em estado de sonambulismo eram
apenas aparentemente esquecidas e podiam ser trazidas à lembrança em
qualquer época, se o médico insistisse energicamente em que o paciente as
conhecia. O autor, assim, esforçou-se por insistir junto a seus pacientes não
hipnotizados que lhe fornecessem suas associações, a fim de que, do
material assim fornecido, pudesse achar o caminho que levava ao antes esquecido
ou desviado. Observou posteriormente que a insistência era desnecessária e que
idéias copiosas quase sempre surgiam na mente do paciente, mas eram retidas de
serem comunicadas e, até mesmo, de se tornarem conscientes devido a certas
objeções colocadas pelo paciente, à sua própria maneira. Era de se esperar -
embora isso ainda não estivesse provado e somente depois fosse confirmado por
vasta experiência - que tudo o que acontecesse a um paciente, estendendo-se de
um ponto de partida específico, deveria também estar em conexão interna com
esse ponto de partida; daí surgiu a técnica de ensinar o paciente a abandonar
toda a sua atitude crítica e fazer uso do material que era então trazido à luz
para o fim de revelar as conexões que estavam sendo buscadas. Uma forte crença
na determinação escrita dos fatos mentais certamente desempenhou um papel na
escolha dessa técnica como um sucedâneo da hipnose.
A ‘Regra Técnica Fundamental‘
desse procedimento de ‘associação livre’ foi desde então mantida no trabalho
psicanalítico. O tratamento é iniciado pedindo-se ao paciente que se coloque na
posição de um auto-observador atento e desapaixonado, simplesmente comunicando
o tempo inteiro a superfície de sua consciência e, por um lado, tornando um
dever a mais completa honestidade, enquanto que, por outro lado, não retendo da
comunicação nenhuma idéia, mesmo que (1) sinta ser ela muito desagradável, (2)
julgue-a absurda ou (3) sem importância demais ou (4) irrelevante para o que
está sendo buscado. Descobre-se uniformemente que justamente as idéias que
provocam as reações por último mencionadas são as que têm valor específico para
a descoberta do material esquecido.
A Psicanálise como Arte
Interpretativa. - A nova técnica modificou tão grandemente o quadro do
tratamento, situou o médico em uma relação tão nova com o paciente e produziu
resultados tão surpreendentes que pareceu justificado diferenciar do método
catártico o procedimento, atribuindo-lhe nova denominação. O presente autor deu
a esse método de tratamento, que podia agora ser estendido a muitas outras
formas de distúrbio neurótico, o nome de psicanálise. Ora, em primeira
instância, essa psicanálise era uma arte de interpretação e estabeleceu
a si própria a tarefa de levar mais a fundo a primeira das grandes descobertas
de Breuer, ou seja, que os sintomas neuróticos são substitutos significantes de
outros atos mentais que foram omitidos. Tratava-se agora da questão de encarar
o material produzido pelas associações do paciente como se insinuasse um
significado oculto, e de descobrir, a partir dele, esse significado. A
experiência logo mostrou que a atitude que o médico analítico podia mais
vantajosamente adotar, era entregar-se à sua própria atividade mental
inconsciente, num estado de atenção imparcialmente suspensa, a fim de
evitar, tanto quando possível, a reflexão e a construção de expectativas
conscientes, não tentar fixar particularmente coisa alguma que ouvisse na
memória e, por esses meios, apreender o curso do inconsciente do paciente com o
seu próprio inconsciente. Descobriu-se então que, salvo em condições por demais
desfavoráveis, as associações do paciente surgiam como alusões, por assim
dizer, a um tema específico, e que ao médico só era necessário adiantar um
passo a fim de adivinhar o material que estava oculto ao próprio paciente, e
poder comunicá-lo a este. É verdade que esse trabalho de interpretação não
podia ser submetido a regras estritas e deixava uma grande margem de manobra ao
tato e à perícia do médico; no entanto, com imparcialidade e prática era
geralmente possível obter resultados dignos de confiança, isto é, resultados
que eram confirmados por se repetirem em casos semelhantes. Num tempo em que
ainda se conhecia tão pouco do inconsciente, da estrutura das neuroses e dos
processos patológicos a elas subjacentes, era motivo de satisfação dispor-se de
uma técnica dessa espécie, mesmo que não possuísse uma base teórica melhor.
Ademais, ainda hoje ela é empregada da mesma maneira nas análises, embora com
um senso de maior segurança e com melhor compreensão de suas limitações.
A Interpretação das Parapraxias e
dos Atos Fortuitos. - Constituiu um triunfo para a arte interpretativa da
psicanálise conseguir demonstrar que certos atos mentais comuns de pessoas
normais, para os quais ninguém havia até então buscado apresentar explicação
psicológica, deveriam ser considerados sob o mesmo ângulo que os sintomas dos
neuróticos, isto é, que tinham um significado, desconhecido do sujeito,
mas capaz de ser facilmente descoberto pelos meios analíticos. Os fenômenos em
causa eram eventos como o esquecimento temporário de palavras e nomes
familiares e de efetuar tarefas prescritas, lapsos cotidianos de língua e de
escrita, leituras erradas, perdas e colocações erradas de objetos, certos
erros, exemplos de danos a si próprio aparentemente acidentais e, finalmente,
movimentos habituais efetuados aparentemente sem intenção ou brincando,
melodias murmuradas ‘sem pensar’ etc. Todos foram despidos de sua explicação
fisiológica, se é que alguma fora um dia tentada, demonstrados como
estritamente determinados e revelados como expressão de intenções suprimidas do
sujeito ou como o resultado de um embate entre duas intenções, uma das quais
era permanente ou temporariamente inconsciente. A importância dessa
contribuição para a psicologia foi de muitos tipos. O âmbito de determinismo
mental foi por ela ampliado de maneira imprevista; o suposto abismo existente
entre os fatos mentais normais e patológicos se estreitou, em muitos casos
logrou-se uma compreensão útil ao jogo das forças mentais que se deve suspeitar
existir por trás dos fenômenos. Finalmente, foi trazida à luz uma classe de
material que se adapta melhor que qualquer outra para estimular a crença na
existência de atos mentais inconscientes mesmo em pessoas a quem a hipótese de
algo ao mesmo tempo mental e inconsciente parece estranha, e até absurda. O
estudo de nossas próprias parapraxias e atos fortuitos, para o qual a maioria
das pessoas possui amplas oportunidades, é ainda hoje a melhor preparação para
uma abordagem da psicanálise. No tratamento analítico, a interpretação das
parapraxias retém seu lugar como meio de descoberta do inconsciente, juntamente
com a interpretação das associações, imensuravelmente mais importante.
A Interpretação de Sonhos. -
Uma nova abordagem às profundezas da vida mental inaugurou-se quando a técnica
da associação livre foi aplicada aos sonhos, fossem os nossos próprios ou os
dos pacientes em análise. Na realidade, a maior e melhor parte do que sabemos
dos processos nos níveis inconscientes da mente deriva-se da interpretação dos
sonhos. A psicanálise restaurou aos sonhos a importância que lhes era
geralmente atribuída nos tempos passados, mas os trata de modo diferente. Não
se apóia na perícia do intérprete onírico, mas, na maior parte, entrega a
tarefa àquele mesmo que sonhou, pedindo-lhe suas associações aos elementos
independentes do sonho. Levando essas associações mais além, logramos
conhecimento de pensamentos que coincidem inteiramente com o sonho, mas que
podem ser identificados - até certo ponto - como partes genuínas e
completamente inteligíveis da atividade mental desperta. Assim, o sonho
relembrado surge como o conteúdo onírico manifesto, em contraste com os pensamentos
oníricos latentes, descobertos pela interpretação. O processo que
transformou os últimos no primeiro, isto é, no ‘sonho’, e que é desfeito pelo
trabalho da interpretação, pode ser chamado de ‘elaboração onírica‘
Também descrevemos os pensamentos
oníricos latentes, devido à sua vinculação com a vida de vigília, como ‘resíduos
do dia [anterior]’. Pela operação da elaboração onírica (à qual seria
inteiramente incorreto atribuir qualquer caráter ‘criativo’), os pensamentos
oníricos latentes se condensam de uma maneira notável, deformam-se pelo
deslocamento das intensidades psíquicas e dispõem-se com vistas a serem representados
em quadros visuais. Além de tudo isso, antes que se chegue ao sonho
manifesto, são submetidos a um processo de revisão secundária, que
procura dar ao novo produto algo da natureza de um sentido e uma coerência.
Estritamente falando, esse último processo não faz parte da elaboração onírica.A
Teoria Dinâmica da Formação Onírica. - A compreensão da dinâmica da
formação onírica não envolve dificuldades muito grandes. A força motivadora
para a formação dos sonhos não é fornecida pelos pensamentos oníricos latentes
ou resíduos diurnos, mas por um impulso inconsciente, reprimido durante o dia,
com o qual os resíduos diurnos puderam estabelecer contato e que imagina
efetuar uma realização de desejo para si próprio a partir do material
dos pensamentos latentes. Assim, todo sonho é, por um lado, a realização de um
desejo por parte do inconsciente e, por outro (na medida em que consegue
resguardar o estado de sono contra os distúrbios), a realização do desejo
normal de dormir que dá começo ao sono. Se desperzarmos a contribuição
inconsciente para a formação do sonho e limitarmos este a seus pensamentos
latentes, ele pode representar qualquer coisa em que a vida de vigília tenha
estado interessada: uma reflexão, uma advertência, uma intenção, uma preparação
para o futuro imediato ou, mais uma vez, a satisfação de um desejo não
realizado. A irreconhecibilidade, a estranheza e o absurdo do sonho manifesto
são em parte o resultado da tradução dos pensamentos em um método de expressão
diferente, arcaico, por assim dizer, mas em parte também o efeito de um agente
restrito, criticamente desaprovador, existente na mente, que não deixa
inteiramente de funcionar durante o sono. É plausível supor que a ‘censura
onírica’, que encaramos como responsável, em primeira instância, pela
deformação dos pensamentos oníricos no sonho manifesto, seja expressão das
mesmas forças mentais que, durante o dia, retiveram ou reprimiram o desejo
inconsciente pleno de desejo.
Valeu a pena entrar em alguns
pormenores sobre a explicação dos sonhos, de vez que o trabalho analítico
demonstrou ser a dinâmica da formação dos sonhos a mesma da formação dos
sintomas. Em ambos os casos encontramos uma luta entre duas tendências, das
quais uma é inconsciente, normalmente reprimida, e se esforça por obter
satisfação, isto é, a realização do desejo, enquanto que a outra, pertencente
provavelmente ao ego consciente, é desaprovadora e repressiva. O resultado
desse conflito é uma formação conciliatória (o sonho ou o sintoma) na
qual ambas as tendências encontram expressão incompleta. A importância teórica
dessa conformidade entre os sonhos e os sintomas é esclarecedora. Porquanto os
sonhos não são fenômenos patológicos, o fato demonstra que os mecanismos
mentais que produzem os sintomas de doença estão igualmente presentes na vida
mental normal, que a mesma lei uniforme abrange tanto o normal quanto o anormal
e que as descobertas da pesquisa em neuróticos e psicóticos não podem deixar de
ter significação para a nossa compreensão da mente saudável.
Simbolismo. - No curso da
investigação da forma de expressão ocasionada pela elaboração onírica, surgiu o
fato surpreendente de que certos objetos, combinações e relações são
representados, em certo sentido, indiretamente, através de ‘símbolos’,
utilizados por aquele que sonha, sem entendê-los, e para os quais, via de
regra, não oferece associações. Sua tradução tem de ser forncida pelo analista,
que, por si próprio, só pode descobri-la empiricamente, ajustando-a
experimentalmente ao contexto. Descobriu-se posteriormente que o hábito
lingüístico, a mitologia e o folclore apresentam as mais amplas analogias com
os símbolos oníricos. Os símbolos, que levantam os problemas mais
interessantes, até agora insolucionados, parecem ser um fragmento de uma
aparelhagem mental herdada e extremamente antiga. O emprego de um simbolismo
comum estende-se muito além do uso de uma linguagem comum.
A Significação Etiológica da Vida
Sexual. - A segunda novidade que surgiu após a técnica hipnótica ter sido
substituída pela associação livre, foi de natureza clínica, havendo sido
descoberta no decurso da prolongada busca das experiências traumáticas de que
os sintomas histéricos pareciam derivar-se. Quanto mais cuidadosamente a
procura era feita, mais extensa parecia ser a rede de impressões
etiologicamente signficantes, mas retrocedendo, do mesmo modo, iam elas pela
puberdade ou infância do paciente. Ao mesmo tempo, assumiam um caráter uniforme
e, finalmente, tornou-se inevitável curvar-se perante a evidência e reconhecer
que na raiz da formação de todo sintoma deveriam encontrar-se experiências
traumáticas do início da vida sexual. Assim, um trauma sexual entrou no lugar
de um trauma comum e viu-se que o último devia sua significação etiológica a
uma conexão associativa ou simbólica com o primeiro, que o precedera. Uma
investigação de casos de nervosismo comum (incidindo nas duas classes da neurastenia
e da neurose de angústia) empreendida simultaneamente levou à
conclusão de que esses distúrbios podiam ser remontados a abusos contemporâneos
na vida sexual dos pacientes e removidos se estes fossem levados a um fim.
Assim, foi fácil inferir que as neuroses em geral são expressão de distúrbios
na vida sexual, em que as chamadas neuroses atuais são conseqüência (por
interferência química) de danos contemporâneos e as psiconeuroses,
conseqüência (por modificação psíquica) de danos passados causados a uma
função biológica que até então fora gravemente negligenciada pela ciência.
Nenhuma das teses da psicanálise defrontou-se com tão tenaz ceticismo ou tão
acerba resistência quanto essa assertida da significação preponderantemente
etiológica da vida sexual nas neuroses. Deve-se expressamente observar,
contudo, que, em sua evolução até os dias de hoje a psicanálise não encontrou
razões para retratar-se dessa opinião.
A Sexualidade Infantil. - Em
resultado de suas pesquisas etiológicas, a psicanálise ficou em posição de
tratar de um assunto cuja própria existência mal havia sido suspeitada
anteriormente. A ciência acostumara-se a considerar a vida sexual como
iniciando-se na puberdade e encarava as maniestações de sexualidade em crianças
como sinais raros de precocidade anormal e degeneração. Porém, agora, a
psicanálise revelara uma opulência de fenômenos (notáveis, no entanto, de
ocorrência regular) que tornaram necessário remontar o início da função sexual
nas crianças quase ao começo da existência extra-uterina; e perguntou-se, com
espanto, como tudo isso podia ter sido desprezado. Os primeiros vislumbres da
sexualidade nas crianças haviam, na verdade, sido obtidos através do exame
analítico de adultos e estavam conseqüentemente carregados de todas as dúvidas
e fontes de erro que podiam ser atribuídas a uma retrospecção tão atrasada;
subseqüentemente (de 1908 em diante), contudo, iniciou-se com a análise das
próprias crianças e com a observação desimpedida de seu comportamento; dessa
maneira, conseguiu-se confirmação direta para toda a base concreta da nova
visão.
A sexualidade nas crianças, em
muitos respeitos, apresentou um quadro diferente da dos adultos e, de modo
bastante surpreendente, exibiu numerosos traços daquilo que, nos adultos, era
condenado como ‘perversões‘. Tornou-se necessário ampliar o conceito do
que era sexual, até que abrangesse mais que o impulso no sentido da união dos
dois sexos no ato sexual ou da provocação de sensações agradáveis específicas
nos órgãos genitais. Essa ampliação foi, porém, recompensada pela nova
possibilidade de apreender a vida sexual infantil, normal e perversa, como um
todo único.
As pesquisas analíticas efetuadas
pelo autor, para começar, incidiram no erro de superestimar grandemente a
importância da sedução como fonte de manifestações sexuais nas crianças
e raiz para a formação de sintomas neuróticos. Essa má compreensão foi
corrigida quando se tornou possível apreciar o papel extraordinariamente grande
desempenhado na vida mental dos neuróticos pelas atividades da fantasia,
que claramente pesava mais sobre as neuroses que a realidade externa. Por trás
dessas fantasias desvelou-se o material que nos permite traçar o quadro, a
seguir, do desenvolvimento da função sexual.
O Desenvolvimento da Libido.
- O instinto sexual, a manifestação dinâmica do que, na vida mental, chamamos
de ‘libido’, é constituído de instintos componentes nos quais pode novamente
desdobrar-se e que só gradualmente se unem em organizações bem definidas. As
fontes desses instintos componentes são os órgãos do corpo e, em particular,
certas zonas erógenas especialmente acentuadas; no entanto, a libido
recebe contribuições de todo processo funcional importante do corpo. A
princípio, os instintos componentes individuais esforçam-se por obter
satisfação independentemente uns dos outros, mas, no decorrer do
desenvolvimento, se tornam cada vez mais convergentes e concentrados. A
primeira fase (pré-genital) de organização a ser discernida é a oral, na
qual, em conformidade com os interesses predominantes do bebê, a zona oral
desempenha o papel principal. Ela é seguida pela organização analsádica em
que a zona anal e o instinto componente do sadismo são
particularmente proeminentes; nesta fase, a diferença entre os sexos é
representada pelo contraste entre ativo e passivo. A fase terceira e final da
organização é aquela em que a maioria dos instintos componentes converge para o
primado das zonas genitais. Via de regra, essa evolução é atravessada
rápida e moderadamente, mas certas partes individuais dos instintos permanecem
atrás, nas fases prodrômicas do processo, e dão assim surgimento a fixações da
libido, importantes como predisposições constituintes para irrupções subseqüentes
de impulsos reprimidos e que se encontram em relação definida com o
desenvolvimento posterior das neuroses e perversões. (Ver o verbete sobre ‘A
Teoria da Libido’.)
O Processo de Encontrar um Objeto
e o Complexo de Édipo. - Em primeira instância, o instinto componente oral
encontra satisfação ligando-se à saciação do desejo de nutrição, e seu objeto é
o seio materno. Ele depois se desliga, torna-se independente e, ao mesmo tempo,
auto-erótico, isto é, encontra um objeto no próprio corpo da criança. Outros
instintos componentes também começam por serem auto-eróticos e somente mais
tarde são desviados para um objeto externo. Constitui fato particularmente
importante que os instintos componentes pertencentes à zona genital atravessam
habitualmente um período de intensa satisfação auto-erótica. Os instintos
componentes não são todos igualmente úteis na organização genital final da
libido; alguns deles (os componentes anais, por exemplo) são conseqüentemente
deixados de lado e suprimidos ou experimentam complicadas transformações.
Em anos muito precoces da infância
(aproximadamente entre as idades de dois e cinco anos) ocorre uma convergência
dos impulsos sexuais, da qual, no caso dos meninos, o objeto é a mãe. Essa
escolha de um objeto, em conjunção com uma atitude correspondente de rivalidade
e hostilidade para com o pai, fornece o conteúdo do que é conhecido como o
complexo de Édipo, que em todo ser humano é da maior importância na
determinação da forma final de sua vida erótica. Descobriu-se ser característica
de um indivíduo normal aprender a dominar seu complexo de Édipo, ao
passo que o neurótico permanece envolvido nele.
O Começo Difásico do
Desenvolvimento Sexual. - Aproximando-se o final do quinto ano de idade,
esse período inicial da vida sexual normalmente chega ao fim. É sucedido por um
período de latência mais ou menos completa, durante o qual as coibições
éticas são construídas, para atuar como defesas contra os desejos do complexo
de Édipo. No período subseqüente da puberdade esse complexo é revivescido
no inconsciente e envolve-se em novas modificações. Somente na puberdade é que
os instintos sexuais chegam à sua plena intensidade, mas a direção desse
desenvolvimento, bem como todas as predisposições a ele, já foram determinadas
pela eflorescência precoce da sexualidade durante a infância que o precedeu.
Esse desenvolvimento difásico da função sexual - em duas fases, interrompidas
pelo período de latência - parece constituir uma peculiaridade biológia da
espécie humana e conter o fator determinante da origem das neuroses.
A Teoria da Repressão. -
Estas considerações teóricas, tomadas conjuntamente com as impressões imediatas
derivadas do trabalho analítico, conduzem a uma visão das neuroses que se pode
descrever, no mais grosseiro dos esboços, como se segue. As neuroses são
expressão de conflitos entre o ego e aqueles impulsos sexuais que parecem ao
ego incompatíveis com sua integridade ou com seus padrões éticos. Visto esses
impulsos não serem egossintônicos, o ego os reprimiu, isto é,
afastou deles seu interesse e impediu-os de se tornarem conscientes, bom como
de obterem satisfação através de descarga motora. Se, no curso do trabalho
analítico, tentamos tornar conscientes esses impulsos reprimidos, damo-nos
conta das forças repressivas sob a forma de resistência. A consecução da
repressão, porém, fracassa de modo especialmente fácil no caso dos instintos
sexuais. Sua libido represada encontra outras saídas do inconsciente, porque regride
a fases anteriores do desenvolvimento e a atitudes anteriores para com os
objetos, e em pontos fracos de desenvolvimento libidinal, onde existem fixações
infantis, irrompe na consciência e obtém descarga. O que resulta é um sintoma
e, conseqüentemente, em sua essência, uma satisfação sexual substitutiva.
Não obstante, o sintoma não pode escapar inteiramente às forças repressivas do
ego, tendo assim de submeter-se a modificações e deslocamentos - exatamente
como acontece com os sonhos - através dos quais sua característica de
satisfação sexual se torna irreconhecível. Conseqüentemente, os sintomas têm a
natureza de conciliações entre os instintos sexuais reprimidos e os instintos
repressores do ego; representam uma realização de desejo para ambas as partes
do conflito simultaneamente, uma realização porém incompleta para cada uma
delas. Isso é inteira e estritamente genuíno dos sintomas da histeria, ao passo
que nos sintomas da neurose obsessiva há amiúde uma ênfase mais forte no lado
da função repressora devido ao erguimento de formações reativas, que são garantias
contra a satisfação sexual.
Transferência. - Se hovesse
necessidade de outras provas da verdade de que as forças motivadoras por trás
da formação de sintomas neuróticos são de natureza sexual, elas seriam
encontradas no fato de, no decurso do tratamento analítico, formar-se
regularmente entre o paciente e o médico uma relação emocional especial,
relaçao que vai muito além dos limites racionais. Ela varia entre a devoção
mais afetuosa e a inimizade mais obstinada e deriva todas as suas características
de atitudes eróticas anteriores do paciente, as quais se tornaram
inconscientes. Essa transferência, tanto em sua forma positiva quanto
negativa, é utilizada como arma pela resistência; porém, nas mãos do médico,
transforma-se no mais poderoso instrumento terapêutico e desempenha um papel
que dificilmente se pode superestimar na dinâmica do processo de cura.
As Pedras Angulares da Teoria
Psicanalítica. - A pressuposição de existirem processos mentais
inconscientes, o reconhecimento da teoria da resistência e repressão, a
apreciação da importância da sexualidade e do complexo de Édipo constituem o
principal tema da psicanálise e os fundamentos de sua teoria. Aquele que não
possa aceitá-los a todos não deve considerar-se a si mesmo como psicanalista.
História Posterior da Psicanálise.
- A psicanálise foi conduzida aproximadamente até aí pelo trabalho do autor
deste verbete, que por mais de dez anos foi seu único representante. Em 1906,
os psiquiatras suíços Bleuler e C. G. Jung começaram a desempenhar um papel
vigoroso na análise; em 1907, uma primeira conferência de seus seguidores
realizou-se em Salzburg e a jovem ciência cedo descobriu-se como centro de
interesse tanto entre psiquiatras quanto entre leigos. Sua recepção na
Alemanha, o país com seu mórbido anseio por autoridade, não foi precisamente
meritória para a ciência alemã e levou mesmo um partidário assim tão frio como
Bleuler a um enérgico protesto. Contudo, nenhuma condenação ou repúdio em
congressos oficiais serviu para deter o crescimento interno ou a expansão
externa da psicanálise. No decorrer dos dez anos seguintes ela se estendeu
muito além das fronteiras da Europa e tornou-se especialmente popular nos
Estados Unidos da América, o que se atribui em não pequeno grau à advocacia e à
colaboração de Putnam (Boston), Ernest Jones (Toronto, e depois Londres),
Flournoy (Genebra), Ferenczi (Budapest), Abraham (Berlim), e muitos outros além
destes. O anátema imposto à psicanálise levou seus seguidores a reunirem-se
numa organização internacional que, no presente ano (1922), está realizando seu
oitavo Congresso privado em Berlim e inclui hoje grupos locais em Viena,
Budapest, Berlim, Holanda, Zurique, Londres, Nova Iorque, Calcutá e Moscou.
Esse desenvolvimento não foi interrompido nem mesmo pela Guerra Mundial. Em
1918-19, o Dr. Anton von Freund, de Budapest, fundou a Internationaler
Psychoanalysticher Verlag, que publica períodicos e livros relacionados com a
psicanálise, e, em 1920, o Dr. M. Eitingon abriu em Berlim a primeira clínica
psicanalítica para o tratamento de neuróticos sem recursos particulares.
Traduções em francês, italiano e espanhol das obras principais do autor, que se
encontram atualmente em preparação, dão testemunho de um crescente interesse na
psicanálise também no mundo latino.
Entre 1911 e 1913 dois movimentos de
divergência da psicanálise se efetuaram, evidentemente com o objetivo de
atenuar suas feições repelentes. Um deles (patrocinado por C.G. Jung), num
esforço por conformar-se aos padrões éticos, desvestiu o complexo de Édipo de
sua significação real, concedendo-lhe apenas um valor simbólico e, na
prática, desprezou a revelação do período infantil esquecido e, como podemos
chamá-lo, ‘pré-histórico’. O outro (originado por Alfred Adler em Viena)
reproduziu muitos fatores da psicanálise sob outros nomes; a repressão, por
exemplo, aparecia numa versão sexualizada como ‘protesto masculino’. Sob outros
aspectos, porém, o movimento afastou-se do inconsciente e dos instintos sexuais
e esforçou-se por remontar a origem do desenvolvimento do caráter e das
neuroses à ‘vontade de poder’, a qual, por meio de uma supercompensação,
esforça-se por contrabalançar os perigos que surgem da ‘inferioridade de
órgão’. Nenhum desses movimentos, com suas estruturas sistemáticas, teve
qualquer influência permanente sobre a psicanálise. No caso das teorias de
Adler, logo ficou claro que pouco tinham em comum com a psicanálise, a qual se
destinavam a substituir.
Progressos mais Recentes na
Psicanálise. - Visto a psicanálise haver-se tornado o campo de trabalho de
tão grande número de observadores, ela efetuou progressos, tanto em amplitude
quanto em profundidade, mas infelizmente estes podem receber só a mais breve
menção no presente verbete.
Narcisismo. - O mais
importante progresso teórico foi certamente a aplicação da teoria da libido ao
ego repressor. O próprio ego veio a ser encarado como um reservatório do que
foi descrito como libido narcísica, do qual as catexias libidinais dos objetos
fluíam e para o qual podiam ser novamente retiradas. Com a ajuda dessa
concepção tornou-se possível empenhar-se na análise do ego e efetuar uma
distinção clínica das psiconeuroses em neuroses de transferência e
distúrbios narcísicos. Nas primeiras (histeria e neurose obsessiva), o
sujeito tem à sua disposição uma quantidade de libido que se esforça por ser
transferida para objetos externos, fazendo-se uso disso para levar a cabo o
tratamento analítico; por outro lado, os distúrbios narcísicos (demência
precoce, paranóia, melancolia) caracterizam-se por uma retirada da libido dos
objetos e, assim, raramente são acessíveis à terapia analítica. Sua
inacessibilidade terapêutica, contudo, não impediu a análise de efetuar os mais
fecundos começos do estudo mais profundo dessas moléstias, que se contam entre
as psicoses.
Desenvolvimento da Técnica. -
Após a curiosidade do analista ter sido, por assim dizer, gratificada pela
elaboração da técnica da interpretação, era inevitável que o interesse se
voltasse para o problema de descobrir a maneira mais eficaz de influenciar o
paciente. Logo tornou-se evidente que a tarefa imediata do médico era assistir
o paciente e vir a conhecer - e, posteriormente, sobrepujar - as resitências
que nele surgiam durante o tratamento e das quais, inicialmente, ele próprio
não estava consciente. E ao mesmo tempo descobriu-se que a parte essencial do
proceso de cura residia no sobrepujamento dessas resistências e que, a menos
que isso fosse conseguido, nenhuma modificação mental permanente poderia ser
efetuada no paciente. Visto os esforços do analista dirigirem-se dessa maneira
para a resistência do paciente, a técnica analítica atingiu uma certeza e uma
delicadeza que rivalizam com as da cirurgia. Conseqüentemente, todos são
energicamente advertidos contra o empreendimento de tratamentos psicanalíticos
sem uma formação estrita, e um médico que neles se aventure baseado em sua
qualificação médica não é, sob qualquer aspecto, melhor que um leigo.
A Psicanálise como Processo
Terapêutico. - A psicanálise nunca se apresentou como uma panacéia e jamais
reivindicou realizar milagres. Em uma das mais difíceis esferas da atividade
médica, ela constitui o único método possível de tratamento para certas
enfermidades e, para outras, é o método que rende os melhores ou os mais
permanentes resultados, embora nunca sem um dispêndio correspondente de tempo e
de trabalho. Um médico que não esteja inteiramente absorvido pelo trabalho de
dar auxílio descobrirá seus sacrifícios amplamente recompensados pela
consecução de uma compreensão inesperada das complicações da vida mental e das
inter-relações entre o mental e o físico. Onde atualmente ela não pode oferecer
ajuda, senão apenas compreensão teórica, pode talvez estar preparando o caminho
para algum meio posterior e mais direto de influenciar os distúrbios
neuróticos. Sua província é, acima de tudo, as duas neuroses de transferência,
a histeria e a neurose obsessiva, onde contribuiu para a descoberta de sua
estrutura interna e mecanismos operativos, e, além delas, todas as espécies de
fobias, inibições, deformidades de caráter, perversões sexuais e dificuldades
da vida erótica. Alguns analistas (Jelliffe, Groddeck, Felix Deutsch)
comunicaram também que o tratamento analítico de vulgares doenças orgânicas não
é inauspicioso, de vez que um fator mental não infreqüentemente contribui para
a origem e continuação de tais moléstias. Desde que a psicanálise exige certa
plasticidade psíquica de seus pacientes, algum tipo de limite etário deve ser
estabelecido na seleção deles, e uma vez que torna necessária a dedicação de
uma atenção longa e intensa ao paciente individual, não seria econômico
esbanjar esse dispêndio em pessoas completamente inúteis que ocorre serem
neurótica. Só a experiência do material das clínicas pode mostrar quais as
modificações imprescindíveis para tornarem o tratamento psicanálitico acessível
a estratos mais amplos da população ou adaptá-lo a inteligências mais débeis.
Comparação entre a Psicanálise e
os Métodos Hipnótico e Sugestivo. - O procedimento psicanalítico difere de
todos os métodos que fazem uso da sugestão, persuasão, etc., pelo fato de não
procurar suprimir através da autoridade qualquer fenômeno mental que possa
ocorrer no paciente. Esforça-se por traçar a causação de fenômeno e removê-la
pelo ocasionamento de uma modificação permanente nas condições que levaram a
ele. Na psicanálise, a influência sugestiva que é inevitavelmente exercida pelo
médico desvia-se para a missão atribuída ao paciente de sobrepujar suas
resistências, isto é, de levar avante o processo curativo. Qualquer perigo de
falsificar os produtos da memória de um paciente pela sugestão pode ser evitado
pelo manejo prudente da técnica; mas, em geral, o despertar das resistências
constitui uma garantia contra os efeitos enganadores da influência sugestiva.
Pode-se estabelecer que o objetivo do tratamento é remover as resistências do
paciente e passar em revista suas repressões, ocasionando assim a unificação e
o fortalecimento de mais longo alcance de seu ego, capacitando-o a poupar a
energia mental que está dispendendo em conflitos internos, obtendo do paciente
o melhor que suas capacidades herdadas permitam, e tornando-o assim tão
eficiente e capaz de gozo quanto é possível. Não se visa especificamente à
remoção dos sintomas da doença, contudo ela é conseguida, por assim dizer, como
um subproduto, se a análise for corretamente efetuada. O analista respeita a
individualidade do paciente e não procura remoldá-lo de acordo com suas
próprias idéias pessoais, isto é, as do médico; contenta-se com evitar dar
conselhos e, em vez disso, com despertar o poder de iniciativa do paciente.
Sua Relação com a Psiquiatria.
- A psiquiatria é na atualidade essencialmente uma ciência descritiva e
classificatória cuja orientação ainda é no sentido do somático, de preferência
ao psicológico, e que se acha sem possibilidades de fornecer explicações aos
fenômenos que observa. A psicanálise, contudo, não se coloca em oposição a ela,
como o comportamento quase unânime dos psiquiatras poderia levar-nos a
acreditar. Pelo contrário, como uma psicologia profunda, uma psicologia
daqueles processos da vida mental que são retirados da consciência, ela é
convocada a dar à psiquiatria um fundamento indispensável e a libertá-la de
suas atuais limitações. Podemos prever que futuro dará origem a uma psiquiatria
científica, à qual a psicanálise serviu de introdução.
Críticas e Más Interpretações da
Psicanálise. - A maioria do que é apresentado contra a psicanálise, mesmo
em obras científicas, baseia-se em informações insuficientes que, por sua vez,
parecem ser determinadas por resistências emocionais. Assim, é um equívoco
acusar a psicanálise de ‘pansexualismo’ e alegar que ela deriva da sexualidade
todas as ocorrências mentais e as remonta todas àquela. Ao contrário, a
psicanálise desde o início distinguiu os instintos sexuais de outros, que
provisoriamente denominou de ‘instintos do ego’. Ela jamais sonhou tentar
explicar ‘tudo’, e mesmo das neuroses, remontou sua origem não somente à
sexualidade, mas ao conflito entre os impulsos sexuais e o ego. Na psicanálise
(diferentemente das obras de C.G. Jung), o termo ‘libido‘ não significa
energia psíquica em geral, mas sim a força motivadora dos instintos sexuais.
Algumas assertivas, como a de que todo sonho é a realização de um desejo
sexual, nunca, em absoluto, foram sustentadas por ela. A acusação de
unilateralidade feita contra a psicanálise, que, como a ciência da mente
inconsciente, tem seu próprio campo de trabalho definido e restrito, é-lhe
tão inaplicável quanto seria se houvesse sido feita contra a química. Acreditar
que a psicanálise busca a cura dos distúrbios neuróticos dando rédea livre à
sexualidade é uma grave má interpretação que só pode ser desculpada pela
ignorância. A tomada de consciência dos desejos sexuais reprimidos na análise,
ao contrário, torna possível obter sobre eles um domínio que a repressão
anterior fora incapaz de conseguir. Pode-se com mais verdade dizer que a
análise libera o neurótico das cadeias de sua sexualidade. Ademais, é
inteiramente anticientífico julgar a análise como calculada para solapar a
religião, a autoridade e a moral, porque, como todas as ciências, ela é
inteiramente não tendenciosa e possui um único objetivo, ou seja, chegar a uma
visão harmônica de uma parte da realidade. Finalmente, só se pode caracterizar
como simplório o temor às vezes expresso de que todos os mais elevados bens da
humanidade, como são chamados - a pesquisa, a arte, o amor, o senso ético e
social - perderão seu valor ou sua dignidade porque a psicanálise se encontra
em posição de demonstrar sua origem em impulsos instintuais elementares e
animais.
As Aplicações e as Correlações
Não-Médicas da Psicanálise. - Qualquer estimativa da psicanálise estaria
incompleta se deixasse de tornar claro que, sozinha entre as disciplinas
médicas, ela possui as mais amplas relações com as ciências mentais e se
encontra em posição de desempenhar um papel da mesma importância nos estudos da
história religiosa e cultural e nas ciências da mitologia e da literatura que
na psiquiatria. Isso pode parecer estranho quando refletimos que originalmente
seu único objetivo era a compreensão e a melhoria dos sintomas neuróticos. Mas
é fácil indicar o ponto de partida da ponte que conduz às ciências mentais. A
análise dos sonhos forneceu-nos uma compreensão dos processos inconscientes da
mente e demostrou-nos que os mecanismos produtores dos sintomas patológicos
operam também na mente normal. Assim, a psicanálise tornou-se uma psicologia
profunda e, como tal, capaz de ser aplicada às ciências mentais, e pôde
responder a um bom número de questões que a psicologia acadêmica da consciência
era impotente para tratar. Numa etapa muito precoce, surgiram problemas de filogenia
humana. Tornou-se claro que a função patológica amiúde nada mais era que
uma regressão a uma etapa anterior na evolução da função normal. C. G.
Jung foi o primeiro a chamar atenção explícita para a notável semelhança entre
as fantasias desordenadas dos que padeciam de demência precoce e os mitos dos
povos primitivos, ao passo que o presente autor indicou que os dois desejos que
se combinam para formar o complexo de Édipo coincidem precisamente com as duas
principais proibições impostas pelo totemismo (não matar o ancestral
tribal e não casar com nenhuma mulher pertencente ao próprio clã), tirando
conclusões de grandes conseqüências desse fato. A significação do complexo de
Édipo começou a crescer a proporções gigantescas e pareceu como se a ordem
social, a moral, a justiça e a religião houvessem surgido juntas, na eras
primevas da humanidade, como formações reativas contra esse complexo. Otto Rank
lançou uma luz radiante sobre a mitologia e a história da literatura pela
aplicação de pontos de vista psicanalíticos, bem como Theodor Reik sobre a
história da moral e da religião, enquanto que o Dr. Pfister, de Zurique,
despertou o interesse de professores religiosos e seculares e demonstrou a
importância do ponto de vista psicanalítico para a educação. Um estudo ulterior
dessas aplicações da psicanálise estaria deslocado, aqui, sendo suficiente
dizer que os limites de sua influência ainda não estão à vista.
A Psicanálise como Ciência
Empírica. - A psicanálise não é, como as filosofias, um sistema que parta
de alguns conceitos básicos nitidamente definidos, procurando apreender todo o
universo com o auxílio deles, e, uma vez completo, não possui mais lugar para
novas descobertas ou uma melhor compreensão. Pelo contrário, ela se atém aos
fatos de seu campo de estudo, procura resolver os problemas imediatos da
observação, sonda o caminho à frente com o auxílio da experiência, acha-se sempre
incompleta e sempre pronta a corrigir ou a modificar suas teorias. Não há
incongruência (não mais que no caso da física ou da química) se a seus
conceitos mais gerais falta clareza e seus postulados são provisórios; ela
deixa a definição mais precisa deles aos resultados do trabalho futuro.
(B) A TEORIA DA LIBIDO
LIBIDO é um termo empregado na
teoria dos instintos para descrever a manifestação dinâmica da sexualidade. Já
fora utilizado nesse sentido por Moll (1898) e foi introduzido na psicanálise
pelo presente autor. O que se segue limita-se a uma descrição dos
desenvolvimentos por que a teoria dos instintos passou na psicanálise,
desenvolvimentos que ainda se acham progredindo.
O Contraste entre os Instintos
Sexuais e os Instintos do Ego. - A psicanálise cedo deu-se conta de que
todas as ocorrências mentais devem ser vistas como construídas na base de uma
ação recíproca das forças dos instintos elementares. Isso, contudo, acarretou
uma situação difícil, visto a psicologia não incluir nenhuma teoria dos
instintos. Ninguém podia dizer o que era realmente um instinto, deixava-se a
questão inteiramente ao capricho individual, e todo psicólogo tinha o hábito de
postular quaisquer instintos, em qualquer número que escolhesse. A primeira
esfera de fenômenos a ser estudada pela psicanálise compreendia o que era
conhecido como neurose de transferência (histeria e neurose obsessiva).
Descobriu-se que seus sintomas sucediam pelo fato de os impulsos instintuais
sexuais serem rejeitados (reprimidos) pela personalidade do sujeito (o seu
ego), encontrando pois expressão por caminhos tortuosos através do
inconsciente. Esses fatos podiam ser encontrados traçando-se um contraste entre
os instintos sexuais e os instintos do ego (instintos de autopreservação),
o que estava de acordo com o dito popular de serem a fome e o amor que fazem o
mundo girar: a libido era a manifestação da força do amor, no mesmo sentido que
a fome o era do instinto autopreservativo. A natureza dos instintos do ego
permaneceu por então indefinida e, como todas as outras características do ego,
inacessível à análise. Não havia meio de decidir se seria de supor existirem
diferenças qualitativas entre as duas classes de instintos e, em caso
afirmativo, quais seriam.
A Libido Primitiva. - C. G.
Jung tentou resolver essa obscuridade seguindo linhas especulativas,
pressupondo existir uma só libido primitiva que podia ser sexualizada ou
dessexualizada e que, assim, em sua essência, coincidia com a energia mental em
geral. Essa inovação era metodologicamente discutível, provocou grande
confusão, reduziu o termo ‘libido’ ao nível de um sinônimo supérfluo e, na
prática, defrontava-se ainda com a necessidade de distinguir entre libido
sexual e assexual. Não se iria escapar à diferença entre os instintos sexuais e
os instintos com outros objetivos por meio de uma nova definição.
Sublimação. - Um atento exame
das tendências sexuais, que por si mesmas eram acessíveis à psicanálise, nesse
meio tempo conduziria a algumas descobertas notáveis e pormenorizadas. O que se
descreve como instinto sexual mostra ser de uma natureza altamente complexa e
sujeita a decompor-se novamente em seus instintos componentes. Cada instinto
componente é inalteravelmente caracterizado por sua fonte, isto é, pela
região ou zona do corpo da qual sua excitação se deriva. Cada um deles possui,
ademais, como aspectos distinguíveis, um objeto e um objetivo. O
objetivo é sempre a descarga acompanhada pela satisfação, mas é capaz de ser
mudado da atividade para a passividade. O objeto acha-se menos estreitamente
ligado ao instinto do que se supôs a princípio; é facilmente trocado por outro
e, além disso, um instinto que possuía um objeto externo pode ser voltado para
o próprio eu do sujeito. Os instintos separados podem permanecer independentes
uns dos outros ou - de um modo ainda inexplicável - combinar-se e fundir-se uns
com os outros, para realizar um trabalho em comum. Podem também substituir-se
mutuamente e transferir sua catexia libidinal uns para os outros, de forma que
a satisfação de um determinado instinto pode assumir o lugar da satisfação de
outros. A vicissitude mais importante que um instinto pode experimentar parece
ser a sublimação; aqui, tanto o objeto quanto o objetivo são
modificados; assim, o que originalmente era um instinto sexual encontra
satisfação em alguma realização que não é mais sexual, mas de uma valoração
social ou ética superior. Esses diferentes aspectos ainda não se combinam para
formar um quadro integral.
Narcisismo. - Um progresso
decisivo foi realizado quando se aventurou a análise da demência precoce e
outros distúrbios psicóticos e assim o exame foi iniciado do próprio ego, que
até então fora conhecido apenas como instância da repressão e da oposição.
Descobriu-se que o processo patogênico na demência precoce é a retirada da
libido dos objetos e sua introdução no ego, ao passo que os sintomas clamorosos
da moléstia surgem dos vãos esforços da libido para encontrar um caminho de
volta aos objetos. Mostrou-se assim ser possível à libido de objeto
transformar-se em catexia do ego e vice-versa. Uma reflexão mais detida
demonstrou que foi preciso presumir que esse processo ocorre na maior escala e
que o ego deve ser encarado como um grande reservatório de libido, do qual a
libido é enviada para os objetos, e que sempre está pronto a absorver a
libido que flui de volta dos objetos. Assim, os instintos de
autopreservação também eram de natureza libidinal: eram instintos sexuais que,
em vez de objetos externos, haviam tomado o próprio ego do sujeito como objeto.
A experiência clínica familiarizou-nos com as pessoas que se comportam de uma
maneira notável, como se estivessem enamoradas de si mesmas, e essa perversão
recebeu o nome de narcisismo. A libido dos instintos autopreservativos
foi então descrita como libido narcísica e reconheceu-se que um elevado
grau desse auto-amor constituía o estado de coisas primário e normal. A fórmula
primitiva estabelecida para as neuroses de transferência conseqüentemente
exigia ser modificada, embora não corrigida. Era melhor, em vez de falar de um
conflito entre instintos sexuais e instintos do ego, falar de um conflito entre
libido de objeto e libido de ego, ou, de vez que era a mesma a natureza desses
instintos, conflito entre as catexias de objeto e o ego.
Abordagem Aparente às Opiniões de
Jung. - À vista disso, parecia como se o lento processo da pesquisa
psicanalítica estivesse seguindo os passos da especulação de Jung sobre uma
libido primitiva especialmente porque a transformação da libido de objeto em
narcisismo necessariamente portava consigo certo grau de dessexualismo ou
abandono dos objetivos especificamente sexuais. Não obstante, há de se ter em
mente que o fato de os instintos autopreservativos do ego serem reconhecidos
como libidinais não prova necessariamente que não existam outros instintos
funcionando no ego.
O Instinto Gregário. -
Sustentou-se, em muitos grupos, que existe um ‘instinto gregário’ especial,
inato e não mais analisável, que determina o comportamento social dos seres
humanos e impele os indivíduos a se reunirem em comunidades maiores. A
psicanálise está em contradição com essa opinião. Mesmo que o instinto social
seja inato, ele pode, sem qualquer dificuldade, ser remetido ao que
originalmente constituíam catexias de objeto libidinais e pode ter-se
desenvolvido na infância do indivíduo como uma formação reativa contra atitudes
hostis de rivalidade. Ele se baseia num tipo peculiar de identificação com
outras pessoas.
Impulsos Sexuais Inibidos quanto
ao Objetivo. - Os instintos sociais pertencem a uma classe de impulsos
instintuais que prescindem serem descritos como sublimados, embora estejam
estreitamente relacionados com estes. Não abandonaram seus objetivos
diretamente sexuais, mas são impedidos, por resistências internas, de
alcançá-los; contentam-se com certas aproximações à satisfação e, por essa
própria razão, conduzem a ligações especialmente firmes e permanentes entre os
seres humanos. A essa classe pertencem em particular as relações afetuosas
entre pais e filhos, que originalmente eram inteiramente sexuais, os
sentimentos de amizade e os laços emocionais no casamento que tem sua origem na
atração sexual.
Reconhecimento de Duas Classes de
Instintos na Vida Mental. - Embora a psicanálise via de regra se esforce
por desenvolver suas teorias tão independentemente quanto possível das outras
ciências, é contudo obrigada a procurar uma base para a teoria dos instintos na
biologia. Com fundamento em uma consideração de longo alcance dos processos que
empreendem construir a vida e que conduzem à morte, torna-se provável que
devamos reconhecer a existência de duas classes de instintos, correspondentes
aos processos contrários de construção e dissolução no organismo. Segundo esse
ponto de vista, um dos conjuntos de instintos, que trabalham essencialmente em
silêncio, seriam aqueles, cujo objetivo é conduzir a criatura viva à morte e,
assim, merecem ser chamados de ‘instintos de morte‘; dirigir-se-iam para
fora como resultado da combinação de grande número de organismos elementares
unicelulares e se manifestariam como impulsos destrutivos ou agressivos.
O outro conjunto de instintos seria o daqueles que nos são mais bem conhecidos
na análise: os instintos libidinais, sexuais ou instintos de vida, que são mais
bem abrangidos pelo nome de Eros; seu intuito seria constituir a
substância viva em unidades cada vez maiores, de maneira que a vida possa ser
prolongada e conduzida a uma evolução mais alta. Os instintos eróticos e os
instintos de morte estariam presentes nos seres vivos em misturas ou fusões
regulares, mas ‘desfusões’ também estariam sujeitas a ocorrer. A vida
consistiria nas manifestações do conflito ou na interação entre as duas classes
de instintos; a morte significaria para o indivíduo a vitória dos instintos
destrutivos, mas a reprodução representaria para ele a vitória de Eros.
A Natureza dos Instintos. -
Essa visão nos permitiria caracterizar os instintos como tendências inerentes à
substância viva no sentido da restauração de um estado anterior de coisas, isto
é, seriam historicamente determinados, de natureza conservadora e, por assim
dizer, expressão de uma inércia ou elasticidade presente no que é orgânico.
Ambas as classes de instintos, tanto Eros quanto o instinto de morte, segundo
este ponto de vista, teriam estado operando e trabalhando um contra o outro
desde a primeira origem da vida.
BREVES ESCRITOS (1920-1922)
UMA NOTA SOBRE A PRÉ-HISTÓRIADA
TÉCNICA DE ANÁLISE (1920)
Um livro recente de Havelock Ellis
(tão justamente admirado por suas pesquisas em ciência sexual e crítico
eminente da psicanálise), que tem por título The Philosophy of Conflict (1919),
inclui um ensaio sobre ‘Psycho-Analysis in Relation to Sex’. O objetivo desse
ensaio é demonstrar que os escritos do criador da análise não devem ser
julgados como uma peça de trabalho científico, mas sim como uma produção
artística. Não podemos deixar de encarar essa opinião como uma recente
tendência tomada por resistência e como um repúdio da análise, ainda que se
ache disfarçada em uma maneira amistosa e, na verdade, lisonjeante demais.
Estamos inclinados a enfrentá-la com a mais decidida contradição.
No entanto, não é com vistas a
contradizê-lo nesse ponto que nos achamos agora interessados no ensaio de
Havelock Ellis, mas por outra razão. Suas vastas leituras capacitaram-no a
apresentar um autor que praticou e recomendou a associação livre como técnica,
embora para fins diferentes dos nossos, possuindo assim um direito a ser
considerado como um precursor da psicanálise.
‘Em 1857, o Dr. J. J. Garth
Wilkinson, mais conhecido como místico swedenborguiano e poeta que como médico,
publicou um volume de místicos versos de pé quebrado, escritos com o que
considerou “um novo método”, o método da “impressão”. “Um tema é escolhido ou
escrito”, afirmou ele; “assim que isso foi feito, a primeira impressão na mente
que sucede o ato de escrever o título é o começo da evolução desse tema, por
mais estranha ou exótica que a palavra ou sentença possa parecer.” “O primeiro
movimento mental, a primeira palavra que surge” é “a reação ao desejo da mente
para o desdobramento do tema.” Ele é continuado pelo mesmo método, e Garth
Wilkinson acrescenta: “Sempre descobri que ele condizia, por um instinto
infalível, ao tema”. O método era, segundo Garth Wilkinson o via, uma espécie
de laissez-faire exacerbado, uma ordem dada aos mais profundos instintos
inconscientes para se expressarem. A razão e a vontade, indicava, são deixadas
de lado; confiamo-nos a “um influxo” e as faculdades da mente são “dirigidas
para fins que não conhecem”. Garth Wilkinson, deve ficar claramente entendido,
embora fosse médico, empregava esse método para fins religiosos e literários,
jamais para fins científicos ou médicos; porém é fácil perceber que,
essencialmente, trata-se do método da psicanálise aplicado a si próprio,
constituindo outra prova de quanto o método de Freud é um método de artista.’
Os que estão familiarizados com a
literatura psicanalítica recordarão neste ponto a interessante passagem na
correspondência de Schiller com Körner, na qual (1788) o grande poeta e
pensador recomenda a todos que desejem ser produtivos adotarem o método da
associação livre. É de se desconfiar que o que se alega ser uma nova técnica de
Garth Wilkinson tenha já ocorrido às mentes de muitos outros, e que sua
aplicação sistemática na psicanálise não seja tanto uma prova da natureza
artística de Freud quanto de sua convicção, equivalente quase a uma opinião preconcebida,
de que todos os fatos mentais são completamente determinados. Decorreu dessa
opinião que a primeira e mais provável possibilidade fosse que uma associação
livre se relacionasse com o assunto designado, e isso foi confirmado pela
experiência da análise, exceto na medida em que resistências demasiado grandes
tornassem irreconhecível a vinculação suspeitada.
Entretanto, é seguro presumir que
nem Schiller nem Garth Wilkinson tiveram na realidade qualquer influência sobre
a escolha da técnica psicanalítica. É de outra direção que existem indicações
de uma influência pessoal em ação.
Há pouco tempo atrás, em Budapest, o
Dr. Hugo Dubowitz chamou a atenção do Dr. Ferenczi para um breve ensaio que
abrangia apenas quatro páginas e meia, da autoria de Ludwig Börne. Fora escrito
em 1823 e reimpresso no primeiro volume da edição de 1862 de suas obras
completas. Intitula-se ‘A Arte de Tornar-se um Escritor Original em Três Dias’
e mostra as familiares características estilísticas de Jean Paul, de quem Börne
era na ocasião grande admirador. Ele termina o ensaio com as seguintes frases:
‘E aqui temos a aplicação prática
que foi prometida. Pegue algumas folhas de papel e por três dias a fio anote,
sem falsidade ou hipocrisia, tudo o que lhe vier à cabeça. Escreva o que pensa
de si mesmo, de sua mulher, da Guerra Turca, de Goethe, do julgamento de Fonk,
do Juízo Final, de seus superiores, e, quando os três dias houverem passado,
ficará espantadíssimo pelo novos e inauditos pensamentos que teve. Esta é a
arte de tornar-se um escritor original em três dias.’
Quando o Professor Freud veio a ler
esse ensaio de Börne, apresentou certo número de fatos que podem ter uma
importante relação com a questão aqui em debate quanto à pré-história do
emprego psicanalítico da associação livre. Disse que quando contava 14 anos de
idade, recebera de presente as obras de Börne; que hoje ainda possuía o livro,
cinqüenta anos depois, e que se tratava do único que sobrevivera dos seus
tempos de rapaz. Börne, disse ele, fora o primeiro autor em cujos escritos
penetrara profundamente. Não podia lembrar-se do ensaio em pauta, mas alguns
dos outros contidos no mesmo volume, tais como ‘Um Tributo à Memória de Jean
Paul’, ‘O Artista a Comer’ e ‘O Tolo na Estalagem do Cisne Branco’, continuaram
a vir-lhe à mente, sem razão óbvia, por longos anos. Ficou particularmente
espantado de encontrar expressas no conselho ao escritor original algumas
opiniões que ele próprio sempre prezara e reivindicara, como, por exemplo: ‘Uma
covardia vergonhosa com relação ao pensar nos retém a todos. A censura do
governo é menos opressiva que a censura exercida pela opinião pública sobre
nossas produções intelectuais. (Além disso, temos aqui uma referência a uma
‘censura’ que reaparece na psicanálise como a censura onírica.) ‘Não é falta de
intelecto, mas de caráter que impede a maioria dos escritores de serem melhores
que são… A sinceridade é a fonte de todo gênio e os homens seriam mais argutos
se fossem mais morais…’
Assim não parece impossível que essa
sugestão possa ter trazido à luz o fragmento de criptoamnésia que em tantos
casos se pode suspeitar jazer por trás da originalidade aparente.
ASSOCIAÇÕES DE UMA CRIANÇA DE
QUATRO ANOS DE IDADE (1920)
Aqui temos parte da carta de uma mãe
americana: ‘Tenho de contar-lhe o que minha garotinha disse ontem. Ainda não me
recobrei de meu espanto. A prima Emily estava falando de como ia arranjar um
apartamento, ao que a criança comentou: “Se Emily se casar, vai ter um bebê.”
Fiquei muito surpresa e perguntei-lhe: “Ora, como é que você sabe disso?” Ela
respondeu: “Bem, quando alguém se casa, surge sempre um bebê.” Repeti: “Mas
como é que você pode dizer isso?” E a menina respondeu: “Ora, eu sei uma porção
de outras coisas. Sei que as árvores crescem in the ground.” Que estranha
associação! Era precisamente o que pretendia dizer-lhe algum dia, a título de
esclarecimento. E então prosseguiu: “E sei que é Deus que makes the world.”
Quando fala assim, mal posso acreditar que não tem ainda 4 anos de idade.’
A própria mãe parece ter entendido a
transição da primeira observação da criança para a segunda. O que estava
tentando dizer era: ‘Sei que os bebês crescem dentro de suas mães.’ Não
expressava esse conhecimento diretamente, mas de modo simbólico, substituindo a
mãe pela Mãe Terra. Já aprendemos de numerosas observações incontestáveis a
idade precoce em que as crianças sabem como utilizar-se de símbolos. Mas a
terceira observação da garotinha leva avante o mesmo contexto. Só podemos supor
que estava tentando transmitir um outro fragmento de seu conhecimento sobre a
origem dos bebês: ‘Sei que tudo é obra do pai.’ Desta vez, porém, substituía o
pensamento direto pela sublimação apropriada: que Deus faz o mundo.
DR. ANTON VON FREUND (1920)
O Dr. Anton von Freund, que foi
Secretário Geral da Associação Psicanalítica Internacional desde o Congresso de
Budapest em setembro de 1918, faleceu em 20 de janeiro de 1920, num sanatório
de Viena, alguns dias após completar seu quadragésimo ano de vida. Era o mais
vigoroso promotor de nossa ciência e uma de suas esperanças mais brilhantes.
Nascido em Budapest em 1880, obteve um doutorado em filosofia. Pretendia
tornar-se professor, mas foi persuadido a ingressar na empresa industrial de
seu pai. Entretanto, os grandes sucessos que conseguiu como industrial e
organizador deixavam de satisfazer as duas necessidades que se achavam ativas
nas profundezas de sua natureza: de beneficência social e de atividade
científica. Nada buscando para si próprio, possuindo todos os dons que podem
encantar e cativar, utilizou seus poderes materiais para assistir a outros e
aliviar a dureza de seu destino, bem como para avivar em todas as direções o
senso de justiça social. Dessa maneira, adquiriu um amplo círculo de amigos,
que pranteiam profundamente a sua perda.
Quando, durante os seus últimos
anos, veio a conhecer a psicanálise, ela pareceu-lhe prometer a realização de
seus dois grandes desejos. Impôs-se a tarefa de ajudar as massas pela
psicanálise e de fazer uso dos efeitos terapêuticos dessa técnica médica, que
até então estivera apenas a serviço dos ricos, a fim de mitigar os sofrimentos
neuróticos dos pobres. Desde que o Estado não se ocupava das neuroses do povo
comum, que as clínicas hospitalares na maioria rejeitavam a terapia psicanalítica
sem poderem oferecer qualquer sucedâneo para ela e que os poucos médicos
psicanalistas, premidos pela necessidade de se manterem, não se achavam à
altura de tarefa tão gigantesca. Anton von Freund procurou, através de sua
iniciativa privada, abrir um caminho para todos no sentido do cumprimento desse
importante dever social. Durante os anos de guerra coletou a soma então muito
considerável de 1,5 milhão de kronen para fins humanitários na cidade de
Budapest. Com a concordância do Dr. Stephan von Bárczy, então burgomestre,
destinou a quantia à fundação de um instituto de psicanálise em Budapest, no
qual a análise deveria ser praticada, ensinada e tornada acessível ao povo.
Pretendia-se formar nesse instituto um número considerável de médicos, que,
depois, dele receberiam um grau honorário para o tratamento de neuróticos
pobres numa clínica de ambulatório. O instituto, ademais, deveria constituir um
centro para novas pesquisas científicas na análise. O Dr. Ferenczi deveria ser
o diretor científico do instituto e o próprio von Freund se encarregaria de sua
organização e finanças. O fundador entregou ao Professor Freud uma soma
relativamente menor, para a fundação de uma casa editora psicanalítica
internacional. Mas,
Was
sind Hoffnungen, was sind Entwürfe,die der Mensch, der vergängliche, baut?
A morte prematura de
von Freund pôs fim a esses esquemas filantrópicos, com todas as suas esperanças
científicas. Embora o fundo que coletou ainda exista, a atitude daqueles que
atualmente se acham no poder na capital húngara não dá promessas de que as
intenções dele se realizarão. Somente a casa editora psicanalítica veio à luz
em Viena.
Não obstante, o exemplo que von
Freund procurou estabelecer já teve seu efeito. Poucas semanas após sua morte,
graças à energia e à liberalidade do Dr. Max Eitingon, a primeira clínica
ambulatória de psicanálise foi aberta em Berlim. Assim a obra de von Freund é
continuada, embora ele próprio nunca possa ser substituído ou olvidado.
PREFÁCIO A ADDRESSES ON PSYCHO-ANALYSIS, DE J. J. PUTNAM (1921)
O Editor desta série deve sentir uma
satisfação especial em poder lançar como seu volume de abertura esta compilação
dos escritos psicanalíticos do Professor James J. Putnam, o eminente
neurologista da Universidade de Harvard. O Professor Putnam, falecido em 1918
com a idade de 72 anos, foi não apenas o primeiro americano a interessar-se
pela psicanálise, mas logo se tornou o seu mais decidido defensor e
representante mais influente nos Estados Unidos. Em conseqüência da reputação
estabelecida que granjeara por suas atividades de professor, bem como por sua
importante obra no domínio da enfermidade nervosa orgânica, e graças ao
respeito universal que sua personalidade desfrutava, pôde fazer talvez mais do
que qualquer outro para a disseminação da psicanálise em seu próprio país e
para protegê-la das calúnias que, no outro lado do Atlântico não menos que
neste, seriam inevitavelmente lançadas sobre ela. Mas todas as censuras estavam
assim fadadas a serem silenciadas, quando um homem dos elevados padrões éticos
e da retitude moral de Putnam colocava-se entre os defensores da nova ciência e
da terapêutica nela baseada.
Os artigos aqui coligidos em um só
volume, escritos por Putnam entre 1909 e o fim de sua vida, fornecem um bom
retrato de suas relações com a psicanálise. Mostram que esteve a princípio
ocupado em corrigir um juízo provisório que se baseara em conhecimentos
insuficientes; mostram como depois aceitou a essência da análise, reconheceu
sua capacidade de lançar uma luz esclarecedora sobre a origem das imperfeições
e fracassos, e como ficou impressionado pela perspectiva de contribuir para a
melhoria da humanidade segundo as linhas da análise; como então se convenceu,
por suas próprias atividades médicas, da verdade da maioria das conclusões e
postulados psicanalíticos, dando, por sua vez, testemunho do fato de que o
médico que faz uso da análise compreende muito mais os sofrimentos de seus
pacientes e pode fazer por eles muito mais do que fora possível com os métodos
anteriores de tratamento; e, finalmente, mostram como começou a estender-se
além dos limites da análise, exigindo que, como ciência, ela se ligasse a um
sistema filosófico específico e que sua prática fosse manifestamente associada
a um conjunto especial de doutrinas éticas.
Assim, não é de admirar que um
espírito com tendências tão preeminentemente éticas e filosóficas como o de
Putnam houvesse desejado, após haver mergulhado profundamente na psicanálise,
estabelecer a relação mais estreita entre ela e os objetivos que estavam mais
chegados ao seu coração. Contudo, seu entusiasmo, tão admirável em um homem de
sua avançada idade, não conseguiu arrastar outros consigo. Os mais jovens
permaneceram frios. Foi especialmente Ferenczi que exprimiu o ponto de vista
oposto. A razão decisiva para a rejeição das propostas de Putnam foi a dúvida
sobre qual dos incontáveis sistemas filosóficos deveria ter aceito, de vez que
todos pareciam repousar em uma base igualmente insegura, e desde que tudo até
então havia sido sacrificado em benefício da relativa certeza dos resultados da
psicanálise. Pareceu mais prudente esperar e descobrir se uma atitude
específica para com a vida poderia ser compelida sobre nós, com todo o peso da
necessidade, pela própria investigação analítica.
É nosso dever exprimir nossos
agradecimentos à viúva do autor, a Sra. Putnam, por sua assistência com os
manuscritos, com os direitos autorais e com apoio financeiro, sem os quais a
publicação deste volume teria sido impossível. Não havia manuscritos ingleses
acessíveis no caso dos artigos de número VI, VII e X. Foram traduzidos para o
inglês pela Dra. Katherine Jones, a partir do texto alemão que se originara do
próprio Putnam.
Este volume manterá viva nos
círculos analíticos a memória do amigo cuja perda tão profundamente deploramos.
Possa ele ser o primeiro de uma série de publicações que servirão à finalidade
de promover a compreensão e a aplicação da psicanálise entre os que falam o
idioma inglês, finalidade a que James P. Putnam dedicou os dez últimos anos de
sua fecunda vida.
Janeiro de 1921.
INTRODUÇÃO A THE PSYCHOLOGY OF DAY-DREAMS, DE J. VARENDONCK (1921)
Este presente volume, dentre outros
do Dr. Varendonck, contém uma novidade significativa e com justiça despertará o
interesse de todos os filósofos, psicólogos e psicanalistas. Após um esforço
que durou alguns anos, o autor conseguiu captar a modalidade de atividade de
pensamento a que nos abandonamos durante o estado de distração, ao qual
imediatamente passamos antes do sono ou após o despertar incompleto. Ele trouxe
à consciência as cadeias de pensamento originadas nestas condições sem a
interferência da vontade; anotou-as, estudou suas peculiaridades e diferenças
com uma reflexão consciente e dirigida e efetuou por esse meio uma série de
importantes descobertas que conduzem a problemas ainda mais vastos e dão origem
à formulação de questões de ainda maior alcance. Muitos pontos na psicologia do
sonho e do ato falho encontram, graças às observações do Dr. Varendonck, uma
solução digna de confiança.
Não é minha intenção passar em
revista os resultados do autor. Contentar-me-ei em apontar para a significação
de sua obra e me permitirei apenas uma observação concernente à terminologia
que adotou. Inclui ele o tipo de atividade de pensamento que observou no
pensamento autista de Bleuler, mas chama-o, via de regra, de pensamento
anteconsciente, segundo o costume predominante na psicanálise. Entretanto,
o pensamento autista de Bleuler de modo algum corresponde à extensão e ao
conteúdo do anteconsciente, nem posso admitir que o nome utilizado por Bleuler
tenha sido adequadamente escolhido. A própria designação, pensamento
‘anteconsciente’, como característica me parece enganadora e insatisfatória. O
assunto em foco é que o tipo de atividade de pensamento de que o bem conhecido
devaneio é um exemplo - completo em si próprio, desenvolvendo uma situação ou
um ato que está sendo levado a um término - constitui o melhor e, até agora, o
único exemplo estudado. Esse devanear não deve suas peculiaridades à
circunstância de processar-se na maioria das vezes anteconscientemente, nem as
formas se alteram quando ele é realizado conscientemente. De outro ponto de
vista, sabemos também que mesmo a reflexão estritamente dirigida pode ser
conseguida sem a cooperação da consciência, ou seja, anteconscientemente. Por
esse motivo julgo aconselhável, ao se estabelecer uma distinção entre as
diferentes modalidades de atividades do pensamento, não utilizar a relação à
consciência em primeira instância e designar o devaneio, bem como as cadeias de
pensamento livremente divagante ou fantástico, em oposição à reflexão
intencionalmente dirigida. Ao mesmo tempo, deve-se levar em consideração que
mesmo o pensamento fantástico invariavelmente não carece de um objetivo e
representação finais.
A CABEÇA DE MEDUSA (1940 [1922])
Não foi amiúde que tentamos
interpretar temas mitológicos individuais, mas uma interpretação sugere-se
facilmente no caso da horripilante cabeça decapitada da Medusa.
Decapitar = castrar. O terror da
Medusa é assim um terror de castração ligado à visão de alguma coisa. Numerosas
análises familiarizam-nos com a ocasião para isso: ocorre quando um menino, que
até então não estava disposto a acreditar na ameaça de castração, tem a visão
dos órgãos genitais femininos, provavelmente os de uma pessoa adulta, rodeados
por cabelos, e, essencialmente, os de sua mãe.
Os cabelos na cabeça da Medusa são
freqüentemente representados nas obras de arte sob a forma de serpentes e
estas, mais uma vez, derivam-se do complexo de castração. Constitui fato digno
de nota que, por assustadoras que possam ser em si mesmas, na realidade, porém,
servem como mitigação do horror, por substituírem o pênis, cuja ausência é a
causa do horror. Isso é uma confirmação da regra técnica segundo a qual uma
multiplicação de símbolos de pênis significa castração.
A visão da cabeça da Medusa torna o
espectador rígido de terror, transforma-o em pedra. Observe-se que temos aqui,
mais uma vez, a mesma origem do complexo de castração e a mesma transformação
de afeto, porque ficar rígido significa uma ereção, Assim, na situação
original, ela oferece consolação ao espectador: ele ainda se acha de posse de
um pênis e o enrijecimento tranqüiliza-o quanto ao fato.
Esse símbolo de horror é usado sobre
as suas vestes pela deusa virgem Atena, e com razão, porque assim ela se torna
uma mulher que é inabordável e repele todos os desejos sexuais, visto apresentar
os terrificantes órgãos genitais da Mãe. De vez que os gregos eram, em geral,
fortemente homossexuais, era inevitável que encontrássemos entre eles uma
representação da mulher como um ser que assusta e repele por ser castrada.
Se a cabeça da Medusa toma o lugar
de uma representação dos órgãos genitais femininos ou, melhor, se isola seus
efeitos horripilantes dos dispensadores de prazer, pode-se recordar que mostrar
os órgãos genitais é familiar, sob outros aspectos, como um ato apotropaico. O
que desperta horror em nós próprios produzirá o mesmo efeito sobre o inimigo de
quem estamos procurando nos defender. Lemos em Rabelais como o Diabo se pôs em
fuga quando a mulher lhe mostrou sua vulva.
O órgão masculino ereto também
possui um efeito apotropaico, mas graças a outro mecanismo. Mostrar o pênis (ou
qualquer de seus sucedâneos) é dizer: ‘Não tenho medo de você. Desafio-o. Tenho
um pênis.’ Aqui, então, temos outra maneira de intimidar o Espírito Mau.
A fim de substanciar seriamente essa
interpretação, seria necessário investigar a origem desse símbolo isolado de
horror na mitologia grega, bem como paralelos seus em outras mitologias.