Revista da Abordagem Gestáltica
versão impressa ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.19 no.1 Goiânia jul. 2013
ARTIGOS - ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS
A Angústia e a culpa no transtorno obsessivo-compulsivo: uma compreensão fenomenológico-existencial
The anguish and guilty on obsessive-compulsive disorder: a phenomenological-existential understanding
La angustia y la culpa en el transtorno obsesivo-compulsivo: una compreensíon fenomenológico-existencial
Gustavo Alvarenga Oliveira Santos
Psicólogo, Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e Docente na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Endereço Institucional: Rua Getúlio Guaritá, 159 (Bairro Nossa Senhora da Abadia). CEP 38025-440. Uberaba/MG. Email: gustavo.alvarenga@psicologia.uftm.edu.br
RESUMO
Este artigo tem como objetivo demonstrar como os elementos angústia e culpa existenciais estão relacionados com o hoje conhecido Transtorno Obsessivo-Compulsivo. A angústia e a culpa serão explicitados em acordo como o pensamento de Medard Boss e demonstrados na descrição do mundo dos compulsivos empreendida por Von Gebsattel. No final, uma articulação entre esses estudos e as pesquisas atuais de natureza qualitativa e fenomenológica, argumentarão que a angústia e a culpa são elementos válidos para a compreensão do transtorno obsessivo-compulsivo, embora atualmente, com o advento da pesquisa fenomenológica, podem ser melhor compreendidos e explicitados. O texto se encerra, demonstrando a contribuição para a compreensão do transtorno obsessivo-compulsivo no contexto da clínica psicoterápica e dizendo sobre a necessidade em se ampliar as pesquisas sobre o tema, clareando melhor as nuances individuais.
Palavras-chave: Transtorno Obsessivo-Compulsivo; Angústia; Culpa; Psicopatologia Fenomenológica.
ABSTRACT
This article aims to show how the elements anguish and guilt existential are related with the today known Obsessivecompulsive disorder. The anguish and guilt will be explained in agreement as the thought of Medard Boss is shown in the description of the world of compulsive undertaken by Von Gebsattel. In the end, the link between these studies and the current research of qualitative nature and phenomenological, will argue that the anguish and guilt are valid elements for the understanding of obsessive-compulsive disorder, although currently, with the advent of phenomenological research, may be better understood and explained. The text ends, demonstrating the contribution to the understanding of obsessive-compulsive disorder in the context of clinical psychotherapy and saying on the necessity to expand the research on the topic, clearing the best individual nuances
Keywords: Obsessive-compulsive Disorder; Anguish; Guilty; Phenomenological Psychopathology.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo demostrar cómo la angustia existencial y la culpa se relacionan con el ahora conocido trastorno obsesivo-compulsivo. La angustia y la culpa se explicará en el acuerdo con el pensamiento de Medard Boss y se indica en la descripción del mundo de compulsivo realizado por Von Gebsattel. Por ende, una vinculación entre estos estudios e investigaciones cualitativas y fenomenológicas demonstrará que la ansiedad y la culpa son elementos válidos para la comprensión del transtorno obsesivo-compulsivo, aunque ahora, con el advenimiento de la investigación fenomenológica, se puede entender mejor y explícito. El texto concluye con la demostración de la contribución a la comprensión del trastorno obsesivo-compulsivo en el contexto de la clínica psicoterapéutica diciendo acerca de la necesidad de ampliar la investigación sobre el tema, aclarando los mejores matices individuales.
Palabras-clave: Transtorno Obsesivo-compulsivo, angustia, culpa, Psicopatología Fenomenológica.
Introdução
Esse artigo quer demonstrar como os componentes: angústia e culpa se relacionam com o transtorno obsessivo-compulsivo, apoiando nos estudos clássicos, como os de Medard Boss e Von Gebsattel e nos atuais que se utilizam do método fenomenológico de pesquisa.
Sintomas conhecidos hoje como típicos do Transtorno Obsessivo-Compulsivo devem suas primeiras observações há 300 anos, mas foi Esquirol quem primeiro tentou reunir os sintomas em uma unidade nosológica sob a denominação "monomanie raisonnate". Segundo Berrios (2010), no século XIX, as classificações das obsessões variavam entre a mania, a neurose e a psicose. No século XX, esse aparece como um transtorno da vontade, do intelecto e das emoções. Ao longo da história, entretanto prevaleceu o caráter emocional.
Atualmente, o termo obsessivo-compulsivo aparece em dois eixos distintos da classificação das patologias mentais no DSM-IV: como transtorno de ansiedade e como transtorno de personalidade. Embora os diferentes transtornos possam estar correlacionados, não há uma associação direta e necessária entre eles, distinguindo-se quanto a natureza e o tratamento, segundo o manual. Veremos como o manual compreende cada um, para que possamos entender a análise fenomenológica que será feita.
No DSM-IV, o Transtorno da Personalidade Obsessiva-Compulsiva se encontra entre os Transtornos da Personalidade do agrupamento C. O TPOC, como é comumente conhecido, se caracteriza segundo (APA, 2007):
Um padrão invasivo de preocupação com organização, perfeccionismo e controle mental e interpessoal, às custas da flexibilidade, abertura e eficiência, que começa no início da idade adulta e está presente em uma variedade de contextos (p. 198).
Na descrição dos sintomas do Transtorno da Personalidade Obsessiva-Compulsiva feitas pelo DSM-IV, ressaltam-se dois aspectos importantes: de um lado, uma série de preocupações excessivas e invasivas e, do outro, a falta de abertura e de flexibilidade. A lista dessas preocupações é extensa e podem atingir o sujeito de forma branda, sendo que o diagnóstico preconiza que elas devem ocupar pelo menos 1 hora do dia ou todo o cotidiano do sujeito.
Para que se tenha um diagnóstico seguro do transtorno são listadas as seguintes preocupações típicas e excessivas que afligem os indivíduos que dele sofrem: detalhes, regras, listas, ordem e organização de horários, padrões extremamente rígidos na execução de tarefas, impossibilitando que elas sejam cumpridas, rigidez e inflexibilidade nas relações de trabalho, excesso de escrúpulos morais e éticos, preocupação com gastos financeiros, que devem ser controlados para situações de catástrofes, e incapacidade para se desfazer de objetos usados.
O Transtorno da Personalidade Obsessiva-Compulsiva diferencia-se do Transtorno Obsessivo-Compulsivo, conhecido como TOC. Embora eles possam estar associados, o último se caracteriza por um conjunto de sintomas, e o outro por traços de personalidade. Uma das diferenciações importantes entre o Transtorno da Personalidade Obsessiva-Compulsiva e o Transtorno de Ansiedade Obsessivo-Compulsivo é que, no primeiro, o que se evidencia, para Torres (2001):
São traços de personalidade estáveis, precoces e egossintônicos, ou seja, valorizados pela própria pessoa. Este seria um diferencial importante em relação ao TOC, que é habitualmente egodistônico (sintomas considerados indesejáveis e mesmo ridículos pelo paciente) (p. 25).
Já no Transtorno Obsessivo-Compulsivo, o que predomina é um conjunto de sintomas que, não raro, podem estar presentes em outros transtornos mentais. Segundo o DSM-IV, esse transtorno se caracteriza por obsessões que são, APA (2007b) "pensamentos, impulsos ou imagens recorrentes e persistentes que, em algum momento durante a perturbação, são experimentados como intrusivos e inadequados e causam acentuada ansiedade ou sofrimento." p. 95. Além desses sintomas, podemos também citar algumas compulsões, como comportamentos repetitivos de lavar as mãos ou de verificar várias vezes a mesma coisa, com o sentido de aliviar as tensões decorrentes dos pensamentos obsessivos.
Neste texto, trataremos do Transtorno Obsessivo-Compulsivo ora nomeado como obsessão, ora como compulsão, ora como anancástico. Essas variações se referem à multiplicidade de termos utilizados para defini-lo. Diferente, entretanto, do que propõe o DSM-IV, entendemos que o que está categorizado apenas como um transtorno de ansiedade deve ser observado como perturbação de um mundo.
2. Uma compreensão fenomenológico-existencial do Transtorno Obsessivo Compulsivo: angústia e culpa
O primeiro projeto de uma psicopatologia fenomenológica foi fundado por Jaspers em 1913, em sua obra Psicopatologia Geral, em sua sétima edição de 1959, o autor se refere ao obsessivo, ao esquizofrênico e à fuga de ideias como patologias possíveis de se pensar a transformação do mundo. Na compreensão do mundo do obsessivo, Jaspers se referencia nos estudos de Von Gebsattel e Erwin Strauss, autores da chamada escola genético-estrutural da psicopatologia fenomenológica.
A psicopatologia fenomenológica entende que o Transtorno Obsessivo-Compulsivo é uma transformação do mundo, o que leva os pesquisadores a buscarem compreender o mundo dos obsessivos ou anancásticos. Essa forma de compreender um transtorno mental coaduna com a proposta husserliana de se voltar às coisas mesmas, tal como percebidas e vivenciadas pela consciência.
Para se voltar às coisas mesmas e descrever a vivência tal como ela ocorre, é necessário realizar a epoquè, ou seja, colocar entre parênteses o preconceito da realidade do mundo objetivo, voltando-se para o mundo tal como vivenciado. Pode-se dizer, dessa forma, que a realidade objetiva só faz sentido enquanto apreendida pela consciência que a visa com intencionalidade. Portanto, o mundo nada mais é que a apreensão da realidade tal como ocorre na vivência, e para o que interessa nesse artigo, patológica.
O conceito de mundo, tal como tratado por Jaspers em sua Psicopatologia Geral, se dá enquanto algo apreendido pela expressão da pessoa e se revela a partir daí. Uma visão orgânica e total do homem é reivindicada pelo autor através do conceito de mundo, e esse pode ser intuído a partir do que o comportamento do doente revela ao médico através do que o autor denomina "achados individuais", que são; o comportamento, a conformação do mundo, o modo de vida e os atos, com base neles, diz Jaspers (1913/1979):
(...) é que conseguimos apreender o mundo dos doentes; isto é, aquilo que eles vivenciam, fatualmente, como realidade; aquilo em que se movem como se fosse realidade. È assim que apreendemos a transformação do mundo, a maneira por que vivem em seu mundo; a nova configuração cósmica que o doente constrói - mundo em que, só nele, as particularidades ganham significação e transparência (p. 341).
O mundo anormal, no entendimento do autor se dá, entre outras características, como um mundo que restringe e atrofia as relações com os outros homens. Jaspers (1979), utilizando das pesquisas de Von Gebsattel e Strauss, descreve o mundo dos obsessivos como pleno de ameaças, sustos, informidades, impurezas e morte, tomado por uma significação mágica de que o doente é consciente. Nosso entendimento compreenderá ainda que o mundo dos obsessivos assim se encontra graças à relação que se dá nele entre angústia e culpa.
Vários filósofos e pensadores trataram o problema da culpa e da angústia na tradição existencial e fenomenológico-existencial. Entre esses podemos destacar Kierkegaard (1844/2007), que cunhou o conceito de angústia na filosofia em sua obra O conceito de angústia de 1844 e Heidegger (1927/2004) que, ao conceitualizar o Da-sein em Ser e Tempo de 1927, o coloca na condição paradoxal de ser-para-a-morte e ter-que-ser-si-mesmo como projeto (Entwurf), lidando, dessa forma, entre a autenticidade e a inautenticidade.
Já do ponto de vista da psicologia clínica, autores como Paul Tillich (1976), Binswanger (1973), Medard Boss (1975) e Condrau (1962) aprofundaram essa relação. Os três últimos se alicerçando especialmente na compreensão de Heidegger. Utilizaremos aqui da compreensão de Medard Boss, embasada na ontologia fundamental de Heidegger.
Na ontologia de Heidegger, temos o termo Dasein como o ente singular que desvela o ser para si mesmo. É apenas enquanto da-sein (ser aí) que o ser humano é possível enquanto ser. Em uma tradução desse termo alemão tão utilizado por Heidegger, temos que o termo Da pressupõe abertura e participação, enquanto o sein o próprio ser.
O que nos interessa para esse texto, dentre as flexões ou dobras desse ente que é o Dasein, é sua relação entre ser-para-a-morte e ter-que-ser-si-mesmo enquanto um projeto (Entwurf). Enquanto ser-para-a-morte, o Dasein é angústia e também pura liberdade, pois que nada o determina e ele é determinado por nada. A liberdade é, pois, essa possibilidade de ter-que-ser-si-mesmo (Entwurf) que se lhe abre, mas que, como para se livrar desse "peso" que é uma condição angustiante, refugia-se no inautêntico ou impessoal.
Embora o Dasein encontre-se predominantemente no domínio da inautenticidade ou impessoalidade, ele é constantemente chamado ao Entwurf quando lhe é desvelada a angústia e a liberdade. A angústia, no entender de Boss não é um sentimento que se pode definir como referente a algo específico, pois desvela a condição humana que se dá como ser-para-a-morte. O sentimento é de desorientação frente à existência como um todo e não sobre algo ou alguma coisa específica, dessa forma ela desvela o nada, e em certa medida é o próprio nada. Como atesta Heidegger:
Na luminosidade do olhar sustentado pela lembrança ainda fresca, devemos dizer: aquilo a respeito do qual e pelo qual nos angustiávamos não era propriamente - nada. De fato, o próprio nada, enquanto tal, estava presente" (1927/2002, p. 68).
Podemos entender que, enquanto essência, a angústia é captada como um sentimento difuso de insegurança, fragilidade e certa vacuidade. Sentimentos que tem como característica se referirem a um estado de ser global, sem relação com algo. Assim não seria insegurança em relação a algo, fragilidade em uma situação, mas um sentimento amplo de insegurança que envolve a pessoa como um todo. Essas manifestações estão presentes nas falas de alguns pacientes entrevistados em pesquisas que relataremos a seguir.
A angústia não é um sentimento que, existencialmente, implica em adoecimento. Ao contrário, ela está profundamente relacionada com à condição de ser como Dasein, própria à singularidade humana, portanto acessível a todos sem distinção. Para Boss (1975), o adoecimento se dá, no entanto, quando essa condição, ser-para-a-morte e em relação a nada, não é assimilável por um existente e esse nega a angústia, lutando contra uma condição insuperável.
Essa defesa contra o nada e angústia, tende a reduzir o campo de sentido, ação e possibilidade de ser-no-mundo, não possibilitando que o existente desenvolva e vivencie suas potencialidades de ser-no-mundo, o que pode acarretar em culpa.
A culpa é, pois, também condição ontológica, já que uma vez não sendo genuinamente autêntico o Dasein se ocupa também desse chamado de ter-que-ser-si-mesmo. O sentimento de culpa desvela, então, a impossibilidade do homem ser plenamente si-mesmo, e ao mesmo tempo receber esse chamado, estando assim sempre em débito consigo mesmo.
Para Medard Boss toda escolha ou projeto empreendido exige a renúncia de outros, o existente se culpa por não realizar as suas potencialidades totais, embora em sua condição, isso não é possível. A culpa, assim como a angústia, pode ser negada, não gerando em reconhecimento da facticidade e das limitações próprias ao existente. Se por um lado, ela pode evoluir para um grau de responsabilização frente à existência, nesse caso o existente assimila a impossibilidade da plena realização e escolhe algo mais viável em relação a seu projeto existencial. Por outro, na relação com a culpa o existente pode criar um estado existencial em que se sente que tudo é determinado, não oferecendo nenhuma possibilidade ou potencialidade de escolha diante à existência. Esse estado de que se é hiperesponsável pelas circunstâncias à volta, mesmo sem a participação nisso, é uma das formas como a culpa pode evoluir e se tornar patológica.O Transtorno Obsessivo Compulsivo em nosso argumento demonstraria uma das formas em que a culpa se torna patológica.
Assim, culpa e angústia são sentimentos próprios da existência, estão circunscritos na sua condição e desvelam aspectos inerentes à situação do homem como ser-no-mundo. Como partes constitutivas da condição humana, estão de alguma forma interligadas e merecem tratamento especial de alguns autores de base analítico-existencial como Medard Boss e Gion Condrau.
No Transtorno Obsessivo-Compulsivo a culpa e a angústia se evidenciam na medida em que o existente nega suas potencialidades de realização, desveladas pela sua situação de ter-que-ser-si-mesmo, e se sente em débito para consigo mesmo. Em um relato descrito por May (1983/2000) de um caso clínico atendido por Medard Boss, o autor descreve um paciente que apresentava Transtorno Obsessivo-Compulsivo e que tinha adoecido gravemente.
A doença é precedida de uma análise com Boss, na qual o paciente relata um sonho em que ele se dirigia para a porta de um lavatório que estava sempre trancada, o analista questiona o motivo pelo qual a porta estava sempre trancada, e o paciente, após essa intervenção, sonha que finalmente atravessara a porta e que segundo o relato descrito por May (1983/2000):
(...) se encontrava dentro de uma igreja, imerso em fezes até a cintura, amarrado por uma corda e sendo arrastado em direção à torre do sino. O paciente estava tomado de tanta tensão que pensava que seria reduzido a pedaços. Depois disso, passou por uma fase psicótica de quatro dias em que Boss permanece ao pé de sua cama, depois dos quais a análise prosseguiu, chegando a um resultado final de grande sucesso (p. 124-125).
O entendimento de Boss do caso, segundo May (1983/2000), é que o paciente em questão era culpado por ter negado possibilidades de ser-no-mundo, ou em termos heideggerianos, por não ter atendido ao chamado de Entwurf. Ao penetrar naquilo que ele não assumira como potencialidade, o paciente se angustiou profundamente, mas recuperou uma possibilidade de ser por aquilo que antes ele negara: as experimentações corporais do impuro e os aspectos relacionados à transcendência espiritual.
Em sua abordagem, Boss confrontou as possibilidades negadas do paciente quando entendeu aquilo para o qual ele não tinha abertura, evidenciado na porta fechada do sonho. A confiança e o vínculo terapêutico proporcionado pelo analista possibilitou que o paciente abrisse a porta e experimentasse as possibilidades para as quais ele não estava aberto; o que o ameaçou radicalmente, ao mesmo tempo possibilitou a assimilação dessas possibilidades como forma de ser-no-mundo. O confronto com o não-ser, que é angústia, tem como positividade, segundo May (1983/2000), a capacidade do indivíduo tolerar a ansiedade, a hostilidade e a agressão, sem repressão, incorporando essas possibilidades como formas de ser.
Von Gebsattel (1938/1967) em seu texto "O mundo dos compulsivos", supõe que a principal característica do anancástico se refere à sua incapacidade de se projetar para o futuro. Do mesmo modo, o compulsivo não consegue se desprender do passado, tornando-se culpado disso. Ou seja, ao não realizar suas potencialidades futuras, culpa-se.
A ideia central contida na compreensão de Von Gebsattel (1938/1967) diz respeito ao modo como: "Entre os vários tipos de pacientes com dificuldades em seu devir, o anancástico representa o tipo para quem a inibição no devir significa perda da forma" (p. 230). Para a degradação das formas vivas e harmônicas, o autor sugere o termo anti-eidos. Segundo ele, o anti-eidos é o princípio da psicopatologia anancástica que em relação a esse responderia de maneira fóbica.
Assim, em um primeiro momento, surge o anti-eidos, que em geral tem o sentido de degradação, morte, sujeira, mal odor, etc. remetendo a tudo que, de alguma forma, não encontra possibilidades de se integrar à matéria viva. As figuras mortas, demoníacas, deploráveis são manifestações desse anti-eidos que aparecem em todos os quadros fóbicos da neurose obsessiva, para Von Gebsattel (1938/1967): "Ameaças com manchas, poluição e putrefação, símbolos todos de uma tendência nociva à personalidade, a seus valores, a sua beleza e a sua perfeição." (p. 221)
O paciente passa então a se ocupar de atos que visam purificar essa sujeira, atos esses que ele percebe como absurdos e estranhos à sua vontade: são as compulsões. Dessa forma, do ponto de vista da temporalidade, a dimensão do futuro é essa abertura do ser desvelada pela angústia quando impulsiona a projetos de realização. Esses projetos são constituídos pelo ser particular, como manifestação de sua liberdade. Sendo a condição humana aberta, ela é também radicalmente livre, por isso indeterminada. O ser é convidado a se determinar, e a única garantia possível de existir está em seus projetos futuros que ele aliança no mundo enquanto ser-com-os-outros.
A ausência desse projeto leva a um estado de desrealização, um esvanecimento do ser no nada. Os atos coercitivos, desligados de um projeto histórico-vital, dão-se como tentativas de que essa abertura não se escape pelo horror da náusea, que pode advir através da sujeira, da morte, da putrefação ou de quaisquer outros símbolos de degradação. A compulsão a fazer suplanta um projeto existencial futuro, o fazer coercitivo retém o ser no presente não permitindo que ele se abra às possibilidades futuras. Se a sujeira escapar pode ser que todo seu ser se esvaneça diante ao nada, ou desapareça. A conservação do puro, também o é do inócuo. Toda a criação de possibilidades exigiria um empreendimento que passaria pela assimilação da sujeira como parte constituinte do ser e se abrisse ao projeto futuro.
A questão que se coloca é: por que o obsessivo-compulsivo não ousa penetrar na "sujeira" e assimilar a angústia que é abertura e cura? A sujeira é mantida pelo mecanismo da culpa que se deve evitar, que quanto mais dela se aproximar mais perigoso será para o próprio ser.
Essa negação da possibilidade repercute em sua mundaneidade, pois o aprisiona a um mundo próprio em que os projetos existenciais são suplantados pelos atos coercitivos; o imaginário, enquanto pensamento para o futuro, torna-se pobre e repetitivo. Assim, o anancástico pode começar a habitar um mundo próprio alheio ao mundo compartilhado, em que seus atos, não tendo ligação com o projeto histórico-vital, e seu pensamento alheio ao rico imaginário das formas criativas perdem vitalidade e relação com os outros.
Por outro lado, ele percebe seus atos como fúteis, mas eles se divorciam de sua vontade. Uma sequência de atos repetitivos e ideias de ruína e degradação aprisionam-o a um enredo do qual não consegue escapar. As ideias de ruína o lembram a degradação de sua existência, Ungestalt, ou anti-eidos, como aponta Von Gebsattel (1938/1967).
A psicopatologia genético-estrutural, escola a que pertence o autor, segundo Ellenberger (1958/1967), buscaria a gênese estrutural das patologias mentais, a partir de uma ideia de estruturação do mundo. Esse caminho de pesquisa, que se daria pela fenomenologia, coloca-nos diante a um problema de como, depois de quase meio século de pesquisas, pode-nos ser útil para a compreensão de transtornos como o obsessivo-compulsivo. A relação angústia e culpa e temporalidade, destacadas nessa seção estarão consoantes a estudos mais atuais, de cunho qualitativo, quando se estuda o transtorno obsessivo-compulsivo? Essa questão é a que se trará para as considerações finais.
Considerações Finais
Sobre a etiologia do Transtorno Obsessivo-Compulsivo uma variedade de pesquisas buscam fatores genéticos como correlacionados ao desenvolvimento do transtorno, no entanto para Rocha et al (2006), que fizeram uma extensa revisão de literatura sobre esse tópico, embora alguns genes apresentem resultados positivos quando associados ao TOC, esses precisam estar atrelados a subtipos clínicos como sexo, idade de início, dimensão ou gravidade dos sintomas obsessivos ou compulsivos e presença de tiques. Os autores dessa revisão de literatura apontam para a necessidade de se homogeneizar os subtipos clínicos e as formas de apresentação da doença para que a associação entre os genes específicos se torne mais clara.
Interessante entender que o TOC para estar associado a outras patologias. Para Baptista, Dias & Calais (2001), raramente o TOC não está associado a um transtorno de personalidade. Ainda sobre as comorbidades associadas ao TOC, destacam-se estudos que o associam ao ciúme patológico e aos traços psicóticos (Khess et al, 1999) e a comorbidades diversas (Petribu, 2001). É muito interessante a conclusão de Baptista, Dias e Calais (2001) de que o Trasntorno Obsessivo Compulsivo como denominado pelo DSM IV, esteja sempre de alguma forma associado a um transtorno de personalidade, o que coaduna à visão fenomenológica de que se trata de um modo modificado de mundo.
Em relação à epidemiologia o estudo de Torres e Lima (2005), foi feita uma revisão da literatura do ano de 1980 a 2004 sobre estudo epidemiológicos a respeito do TOC. Nessa revisão, evidenciou-se que sua prevalência é em torno de 2,5% ao longo da vida das pessoas, há predomínio de mulheres e de pessoas que tem apenas obsessões. A comorbidade com outros transtornos é quase regra no TOC, sendo comum se associarem a depressão, transtornos ansiosos, transtornos de personalidade e abuso de substâncias.
Do ponto de vista qualitativo.Um estudo etnográfico realizado na Universidad Nacional de Colombia, com pacientes que tiveram o diagnóstico de TOC no atendimento ambulatorial do centro médico da mesma universidade, revelou que todos os indivíduos que tinham esse transtorno faziam parte de famílias rígidas e atreladas às concepções de certo e errado, assim para Duque, Uribe e Vásquez (2005):
(...) es más fácil que el TOC se desarrolle en ambientes donde prevalecen valores referidos al extremo respecto de lo canónico. En algunos relatos se observa cómo los pacientes resaltan en su historia de vida la rigidez y el autoritarismo de sus padres, quienes le han conferido alta relevancia al exagerado cumplimiento de las normas morales y religiosas, con la culpa como mediadora y con un excesivo énfasis en la limpieza y el orden (p. 17).
Esse estudo comprova parte de nossa argumentação, de que a culpa e angústia são relacionados ao TOC. Ambientes em que a ordem moral e religiosa são mais impostos, parecem se associar ao transtorno. Esses ambientes podem não permitir que os sentimentos de culpa e angústia não sejam plenamente vivenciados como inerentes à existência, mas negados e obstruídos, acabando por predominar numa série de sintomas que tendem a obstruir o tempo.
Estudos realizados pelo método fenomenológico de pesquisa demonstram as vivências relacionadas ao Transtorno Obsessivo Compulsivo. Segundo Torres e Sumaia (2001) todos os quadros de TOC estudados apresentam: avaliação exagerada de riscos, dúvida patológica e sensação de incompletude. Elas propõem um continuum em que, de um lado, predominaria a avaliação exagerada de riscos em que o paciente apresenta alto índice de ansiedade e ideias de contaminação e, do outro lado, predominaria a sensação de incompletude, em que os sintomas mais fortes são os rituais e há baixo nível de ansiedade. Se em um extremo (avaliação exagerada de riscos) o paciente tem a responsabilidade patológica como um dos sintomas coadjuvantes, do outro (sensação de fragilidade) tem-se a necessidade de ordem e simetria.
Já o estudo de Lima, ao pesquisar 15 pacientes diagnosticados com TOC, segundo os critérios do DSM III, reuniu fenomenologicamente 7 categorias vivenciais: 1-) o insuportável peso da culpa; 2-) o insuportável peso da dúvida; 3-) o insuportável peso das fobias; 4-) o inviolável reduto do lar; 5-) a insuportável sombra da morte; 6-) o insuportável peso da sujeira moral; 7-) sintomas obsessivo-compulsivos não deriváveis.
A forma como se vivenciou esses temas variou, segundo o autor, a partir de dois subgrupos possíveis. No subgrupo I, os temas colhidos remetem a um sentimento de culpa, dúvida, temor a causar a morte alheia e temor a causar contaminação moral a outrem. No subgrupo 2, os temas invariantes são: segurança no lar, temor à própria morte, temor a ser contaminado moralmente, fobias. Reduzindo ainda mais, o autor propõe que no subgrupo 1, o tema preponderante é o da responsabilidade, e no subgrupo 2, o da fragilidade.
No subgrupo 1 (responsabilidade), os sintomas estão relacionados a um sentimento de culpa e ao temor em causar dano a outrem. Segundo Lima (1994), os pacientes desse grupo estão presos a um passado de culpa relacionado a "falhas" cometidas ao longo da vida.
Já no subgrupo 2, cujo tema é o da fragilidade, os sintomas se relacionam à possibilidade de ser atacado, contaminado ou morto, os sintomas se relacionam a um temor pelo futuro, incerto e perigoso. Há aqui o predomínio das fobias e a busca pela segurança no lar.
O trabalho de Lima (1994), assim como o de Rasmussen e Eisen (1994, apud Torres e Sumaia, 2001), descrevem o TOC de forma genérica, especificando as diferenças em pólos distintos que formam um continuum. No trabalho de Rasmussen e Eisen (1994, citado porTorres e Sumaia, 2001), temos de um lado a chamada "avaliação exagerada de riscos, e de outro a sensação de incompletude. No trabalho de Lima, de um lado a responsabilidade, e do outro a fragilidade. Nota-se que esses sentidos se coadunam à medida que reúnem o mesmo sentido, de um lado mais relacionado à culpa (responsabilidade, avaliação exagerada de riscos), do outro mais à angústia (sensação de incompletude, fragilidade).
Nesse sentido, vemos que na gama de sentimentos em que varia os enfermos de TOC, elementos da culpa e de angústia, podem não apenas estar presentes, mas polarizados como mais acentuados em um tipo que no outro. Essa sugestão demonstra, no nosso entender, que esses elementos estão de alguma forma sempre presentes, mas acentuados na maneira como cada existente nega determinadas dimensões da existência. De um lado o indeterminado, o vazio, o limite imposto pela morte e o tempo, base e pano de fundo da angústia, do outro a perda, o limite da escolha e a impossibilidade de se dominar o futuro, base para a culpa. Esses elementos ontológicos, em nossa proposta, devem ser investigados como pano de fundo da patologia e possíveis pontos de apoio para uma terapêutica existencial que confronte o existente com os dados da sua existência e suas possibilidades de existir.
Os estudos atuais sobre o TOC, inspirados pela fenomenologia e/ou pela psicologia existencial, corroboram com os anteriores quando conseguem especificar melhor as polaridades da patologia. Estamos em um momento que possibilita estabelecer uma compreensão geral fenomenológica-existencial sobre o transtorno utilizando os estudos clássicos de Von Gebsattel e Medard Boss e o mais recente de Lima.
Vimos, desde Von Gebsattel (1938/1967) que o TOC foi tratado como uma perturbação na dimensão da temporalidade que estava associada à culpa e ao anti-eidos. Para o autor, a pessoa acometida de TOC, no seu tempo anancástico, teria problemas em seu devir, prendendo-se a um passado e perdendo a dimensão do futuro. Já para Boss, essa questão é corroborada com a compreensão da culpa e da angústia, em que, em decorrência da culpa existencial, a pessoa não se arriscaria a um futuro, perdendo a noção de continuidade.
Angústia, culpa e anti-eidos são elementos que permanecem na compreensão do TOC sem contradição ou refutação dos estudos atuais. O que se ganha na contemporaneidade diz respeito à possibilidade de se especificar em pólos a generalidade do transtorno.
Esse ganho se deve, em parte, ao desenvolvimento da pesquisa fenomenológica, que permite aos pesquisadores colher dados com o maior número de pacientes e compará-los qualitativamente. A proposta de Lima - dos pólos entre Fragilidade e Responsabilidade, estando o primeiro perturbado em relação ao futuro, visto como perigoso e ameaçador, e o da Responsabilidade atrelado a uma dimensão do passado de culpa - só é possível em uma pesquisa fenomenológica, que permite uma categorização mais clara entre as vivências.
A compreensão de Von Gebsattel se volta a dados colhidos na clínica, por isso mais genérica ao mostrar como ambas as dimensões do tempo (passado e futuro) são afetadas pelo transtorno, já a de Lima (1994) demonstra a prevalência de uma em relação à outra em cada caso. Assim a posição de Von Gebsattel é mais geral, no sentido de tentar alcançar a compreensão do transtorno de forma global, já a de Lima dimensiona possibilidades da temporalidade no mesmo transtorno.
Dessa forma esse artigo cumpre seu objetivo em demonstrar de que modo a angústia e a culpa existencial estão no pano de fundo do desenvolvimento do Transtorno Obsessivo Compulsivo. Assim, contribui para o psicoterapeuta e psicólogo clínico no atendimento a casos dessa natureza e ressalta a necessidade de estudos complementares que complementem a relação abordada em nuances de casos singulares. A compreensão do mundo de determinada patologia, mesmo que hoje essa seja categorizada como um transtorno de ansiedade, demonstra a importância de estudos que levem em conta o estudo clínico aprofundado e a complexidade das patologias mentais.
Referências
Associação Psiquiátrica Americana. (2007) Manual diagnóstico e estatístico de Transtornos mentais - DSM-IV. Porto Alegre: Artes Médicas.
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Recebido em 06.07.2012
Primeira Decisão Editorial em 15.10.12
Segunda Decisão Editorial em 17.01.13
Aceito em 15.02.13
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672013000100011
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