Conferências introdutórias sobre psicanálise
(Parte III)
VOLUME XVI
(1916-1917)
Dr. Sigmund Freud
PARTE III - TEORIA GERAL DAS NEUROSES (1917 [1916-17])
CONFERÊNCIA XVI
PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA
SENHORAS E SENHORES:
Alegra-me vê-los novamente, no início do novo
ano acadêmico, para uma retomada de nossas discussões. No ano passado,
falei-lhes de como a psicanálise aborda as parapraxias e os sonhos. Este ano,
gostaria de conduzi-los à compreensão dos fenômenos da neurose, que, conforme
logo verificarão, têm muitas coisas em comum com ambos. Devo, porém,
adverti-los, antecipadamente, de que não poderei oferecer-lhes, este ano, em
relação a mim, a mesma situação do ano passado. Naquela época, fiz questão de
jamais dar um passo sem estar de acordo com o julgamento dos senhores; foram
muitas as coisas que debati com os senhores, e dei acolhida às suas objeções -
de fato, reconheci-os e ao seu ‘senso comum’ como fator decisivo. Isto,
contudo, não é mais possível, e por uma razão simples. As parapraxias e os
sonhos não são fenômenos desconhecidos dos senhores; poderíamos dizer que os
senhores tinham, ou facilmente podiam obter, tanta experiência acerca dos
mesmos quanto eu. Entretanto, a área dos fenômenos da neurose lhes é desconhecida;
de vez que os senhores não são médicos, têm qualquer acesso a eles que não seja
por intermédio daquilo que tenho a dizer-lhes; e de que serve o melhor
raciocínio, se este não está acompanhado da familiaridade com o conteúdo
daquilo de que se ajuíza?
Os senhores não devem, porém, tomar esse
advertência minha no sentido de que eu proponha dar-lhes conferências
dogmáticas e insista em seu crédito irrestrito. Um equívoco desses far-me-ia
grave injustiça. Não desejo suscitar convicção; desejo estimular o pensamento e
derrubar preconceitos. Se, em decorrência da falta de conhecimento do material,
os senhores não estão em condições de emitir um julgamento, não deveriam nem
acreditar, nem rejeitar. Deveriam ouvir atentamente e permitir que atue nos
senhores aquilo que lhes digo. Não é tão fácil adquirir convicções; ou, se
estas são alcançadas facilmente, logo se revelam sem valor e incapazes de
resistência. A única pessoa que tem o direito de possuir uma convicção é alguém
que, como eu, tenha trabalhado, por muitos anos, o mesmo material e que, assim
agindo, tenha tido, por si próprio, as mesmas e surpreendentes experiências. De
que servem então, na esfera do intelecto, essas convicções súbitas, essas
conversões-relâmpago, essas rejeições instantâneas? Não está claro que o ‘coup
de foudre‘, amor à primeira vista, deriva de esfera bem diferente, da
esfera das emoções? Nem mesmo dos nossos pacientes exigimos que devem
convencer-se da verdade da psicanálise, no tratamento, ou aderir a ela. Tal
atitude freqüentemente levanta nossas suspeitas. A atitude que neles achamos
mais desejável é a de um benévolo ceticismo. Assim, também os senhores devem
esforçar-se por deixar que os pontos de vista psicanalíticos amadureçam
tranqüilamente nos senhores, junto com a visão popular ou psiquiátrica, até
surgir a oportunidade de ambas se influenciarem reciprocamente, de uma competir
com a outra e de se aliarem no rumo de uma conclusão.
Por outro lado, não devem, de modo algum, supor
que aquilo que lhes apresento como conceito psicanalítico seja um sistema
especulativo. Pelo contrário, é empírico - seja uma expressão direta das
observações, seja um processo consistente em trabalhá-las exaustivamente. Se
esse trabalho exaustivo foi executado de uma maneira adequada e fundamentada,
isto se verá no decorrer de futuros progressos da ciência, e realmente posso
afirmar, sem jactância, após um período de quase vinte e cinco anos e tendo
atingido uma idade razoavelmente avançada, que essas observações são o
resultado de trabalho especialmente difícil, intensivo e aprofundado.
Freqüentemente tive a impressão de que nossos opositores relutavam em levar em
conta essa origem de nossas teses, como se pensassem que se tratava apenas de
noções determinadas subjetivamente, às quais qualquer um podia opor outras, de
sua própria escolha. Essa conduta dos nossos opositores não me é completamente
compreensível. Talvez se deva ao fato de que, como médico, habitualmente se tem
tão pouco contacto com pacientes neuróticos e se presta tão pouca atenção ao que
dizem esses pacientes que não se pode imaginar a possibilidade de que se possa
derivar algo de valioso de suas comunicações - isto é, a possibilidade de
efetuar acuradas observações a respeito delas. Valho-me desta oportunidade para
assegurar-lhes que, no decorrer destas conferências, permitirei muito pouca
controvérsia, especialmente com algumas pessoa, individualmente. Nunca pude
convencer-me da verdade da máxima segundo a qual a controvérsia é a mãe de
todas as coisas. Penso que deriva dos sofistas gregos e, como eles, peca por
supervalorizar a dialética. Parece-me, ao contrário, que aquilo que se conhece
como controvérsia científica é, na totalidade, muito improdutivo, além do fato
de quase sempre ser conduzido segundo motivos altamente pessoais. Até há alguns
anos, eu podia gabar-me de apenas uma vez haver-me envolvido numa disputa
científica regular - com um único pesquisador (Löwenfeld, de Munique). Terminou
por nos tornarmos amigos, e o somos até o dia de hoje. Não repeti, porém, a
experiência, por muito tempo, pois não tinha certeza de que o resultado viesse
a ser o mesmo.
Ora, os senhores concluirão, sem dúvida, que
uma rejeição como esta de todas as discussões por escrito demonstra um elevado
grau de inacessibilidade a objeções, de obstinação, ou, para usar um termo
científico, coloquial e educado, de apego às idéias próprias [Verranntheit].
Gostaria de dizer, em resposta, quem, porquanto, após trabalho tão árduo,
chegou-se a adquirir uma convicção, ao mesmo tempo adquiriu-se um certo direito
de manter esta convicção com alguma tenacidade. Também posso declarar que, no
transcorrer do meu trabalho, tenho modificado minhas opiniões em alguns pontos
importantes, tenho-as alterado e substituído por outras, novas - e, em todas
essas ocasiões, naturalmente, tornei isto público. E o resultado dessa
sinceridade? Algumas pessoas jamais tomaram conhecimento de quaisquer de minhas
autocorreções, e continuam, até hoje, a criticar-me por hipóteses que, para
mim, há muito cessaram de ter o mesmo significado. Outros me reprovam
justamente por estas modificações, e, por causa delas, consideram-me indigno de
confiança. Naturalmente! uma pessoa que, vez por outra, mudou de opinião, não
merece absolutamente nenhum crédito, pois tornou tudo tão demasiadamente provável,
que as últimas afirmações também podem ser equivocadas; mas uma pessoa que
inflexivelmente manteve o que uma vez afirmou, ou que não pode de relance ser
persuadida a abandoná-lo, deve naturalmente ser aferrada às idéias próprias, ou
teimosa! Que se pode fazer frente a essas objeções contraditórias dos críticos,
senão permanecer como se é, e conduzir-se de acordo com o julgamento próprio?
Estou resolvido a agir assim, e não me impedirei de modificar ou retirar
qualquer uma de minhas teorias sempre que a progressão da experiência possa
exigi-lo. Com referência a descobertas fundamentais, até o momento
atual, nada tenho a modificar, e espero que isto venha a manter-se verdadeiro
no futuro.
Vou apresentar-lhes, portanto, a visão
psicanalítica dos fenômenos da neurose. Para isto, parece que o melhor plano
consistiria em começarmos por estabelecer uma conexão com os fenômenos de que
já tratamos, tanto pela causa da analogia, como do contraste; e começarei
expondo uma ação sintomática [ver em [1] e [2]] que vi muitas pessoas
executarem durante minhas horas de consulta. Nós, analistas, não podemos fazer
muita coisa para conseguir que as pessoas que vêm até nós, em nosso
consultório, nos exponham, em um quarto de hora, os sofrimentos de toda uma
vida. Nosso conhecimento mais profundo nos dificulta dar o tipo de opinião
emitida por um outro médico - ‘Não há problema com o senhor’ - à qual se
acrescenta o conselho: ‘O senhor devia providenciar um tratamento hidropático
brando.’ Um de meus colegas, quando lhe perguntaram o que fazia com seus
pacientes, que vinham consultar, encolheu os ombros e respondeu: ‘Eu lhes
aplico uma multa, de tantas e tantas Kronen por uma inútil perda de
tempo.’ Assim, os senhores não se surpreenderão ao ouvir que, mesmo no caso de
psicanalistas muito ocupados, suas horas de atendimento não costumam ser muito
animadas. A porta simples, entre minha sala de espera e a sala de atendimento e
a de tratamento, mandei fazê-la dupla e revestida de feltro. Não pode haver
dúvidas a respeito do propósito desse arranjo. Ora, repetidamente acontece uma
pessoa, que estava na sala de espera e que mando entrar, deixar de fechar a
porta atrás de si e quase sempre deixar ambas as portas abertas. Tão logo
percebo esse fato, insisto com o paciente ou a paciente, num tom mais
propriamente inamistoso, para que volte e corrija a omissão - ainda que a
pessoa questão seja um cavalheiro elegantemente trajado ou uma senhora da alta
sociedade. Isto dá a impressão de rigorismo desnecessário. Às vezes, também,
tenho-me colocado em situação absurda, fazendo este pedido quando se verifica,
depois, tratar-se de uma pessoa que não pode por si mesmo tocar na maçaneta da
porta, e se alivia se alguém em sua companhia poupa-a dessa necessidade. Mas,
na maioria dos casos, tenho agido com acerto; pois todo aquele que se conduz
dessa forma e deixa aberta a porta entre a sala de espera e a sala de consulta
de um médico, é mal-educado e merece uma recepção inamistosa. Não tomem,
contudo, partido nesta questão, sem terem ouvido o restante. Pois esse descuido
por parte do paciente apenas acontece quando esteve sozinho na sala de espera
e, portanto, deixou atrás de si uma sala vazia; jamais acontece no caso de
outras pessoas, que lhe sejam estranha, terem estado esperando com ele. Nesse
último caso, sabe muito bem que é de seu interesse que sua conversa com o
médico não seja ouvida secretamente, e nunca deixa de fechar cuidadosamente as
duas portas.Assim, a omissão do paciente não é determinada pelo acaso ou por
falta de propósito; e, na realidade, ela não é destituída de importância, pois,
conforme verificaremos, elucida a atitude de recém-chegado para com o médico. O
paciente é mais um da grande multidão que tem um desejo insaciável de
autoridade mudança, que deseja ser ofuscado e intimidado. Ele pode ter
perguntado pelo telefone sobre a hora em que mais facilmente poderia conseguir
uma entrevista; havia formado para si a imagem de uma multidão de pessoas
procurando ajuda, como a multidão do lado de fora de uma das filiais de Julius
Meinl. E então entra em uma sala de espera vazia, e principalmente, mobiliada
com extrema modéstia, e fica chocado. Ele tem de fazer o médico pagar pelo
respeito supérfluo que tencionava oferecer-lhe: é assim que deixa de fechar a
porta entre a sala de espera e a sala de consulta. O que quer dizer ao médico,
por essa sua conduta, é: ‘Ah, então não há ninguém, e provavelmente não virá
ninguém enquanto eu estiver aqui.’ Ele se conduziria de forma igualmente
descortês e desrespeitosa durante a consulta, se sua arrogância não recebesse
uma dura repreensão logo no começo.A análise dessa pequena ação sintomática não
lhes diz nada que já não soubessem antes: a tese de que ela não é uma ação
casual, mas teve um motivo, um sentido e uma intenção, que se localiza num
contexto mental específico e que informa, mediante uma pequena indicação,
acerca de um processo mental mais importante. Mais que tudo, porém, essa ação
sintomática lhes revela que o processo assim indicado era inconsciente para a
consciência da pessoa que executou essa ação, de vez que nenhum dos pacientes
que deixou as duas portas abertas teria conseguido admitir, por meio dessa
omissão, que desejasse demonstrar tal desrespeito. Alguns deles provavelmente
ter-se-iam apercebido de determinada sensação de desapontamento ao penetrarem
na sala de espera vazia; mas a conexão entre esta impressão e a ação
sintomática que se seguiu, por certo permaneceu desconhecida de sua
consciência.Após essa pequena análise de uma ação sintomática, passaremos agora
à observação de uma paciente. Escolhi esta observação porque está vivida em
minha memória, e também por poder ser relatada em tempo relativamente breve.
Determinada quantidade de detalhes torna-se imprescindível num relato desta
espécie.Um jovem oficial, de regresso a casa, em período de uma breve licença,
pediu-me que tomasse em tratamento sua sogra, que, embora nas circunstâncias
mais felizes, estava amargurando sua própria vida e as vidas de seus parentes,
com uma idéia absurda. Foi assim que vim a conhecer uma senhora bem conservada,
cinqüenta e três anos, de natureza amável e simples, que me narrou sem
relutância a seguinte história. Ela morava no campo, vivia, num casamento
feliz, com seu marido, diretor de uma grande fábrica. Não tinha senão como
elogiar a afetuosa solicitude do marido. Há trinta anos se haviam casado por
amor, e, desde então, jamais tinha havido qualquer problema, discórdia ou
motivo para ciúmes. Seus dois filhos estavam bem casados; seu marido (e pai
destes), compenetrado de suas obrigações, ainda não pensava em aposentar-se. Um
ano antes, ela recebera uma carta anônima, acusando seu excelente marido de um
caso amoroso com uma jovem. E o resultado incrível - e, para ela, ininteligível
- foi que ela imediatamente acreditou na carta, e desde então sua felicidade
foi destruída. O curso dos acontecimentos, em maiores detalhes, é mais ou menos
este. Ela tinha uma empregada doméstica com quem costumava, talvez com
freqüência excessiva, ter conversas íntimas. Esta moça perseguia uma outra, com
certa hostilidade positivamente maldosa, porque esta outra havia progredido
muito mais na vida, embora não fosse de origem mais elevada. Em vez de
dedicar-se ao serviço doméstico, esta moça tinha conseguido concluir um curso
comercial, ingressado na fábrica e, em conseqüência da falta de pessoal, devido
ao fato de elementos da organização fabril serem requisitados para o serviço
militar, foi promovida a uma boa posição. Agora morava na própria fábrica,
mantinha relacionamento social com todos os senhores, e realmente tratavam-na
por ‘Fräulein.’ A moça que tivera menos sucesso na vida naturalmente estava
pronta a repetir todos os tipos de maldades para com a antiga colega de escola.
Certo dia, essa senhora teve um diálogo com a empregada a respeito de um
cavalheiro que tinha estado com elas, que se sabia não estar vivendo com a
esposa e estar tendo um caso amoroso com outra mulher. Ela não sabia como foi
que aconteceu, mas de repente disse: ‘A coisa mais terrível que poderia
acontecer-me era eu saber que meu querido esposo também estivesse tendo um
caso.’ No dia seguinte, recebia uma carta anônima, pelo correio, a qual, como
que por mágica, dava-lhe justamente esta informação, escrita com letra
disfarçada. Concluiu, provavelmente com acerto, que a carta era obra de
empregada maldosa, de vez que apontava como amante do marido a jovem a quem a
serviçal perseguia com seu ódio. Embora imediatamente compreendesse a intriga e
tivesse visto, em muitos casos ocorridos no lugar onde vivia, quão pouco
crédito merecem tais denúncias covardes, o que aconteceu, todavia, foi que a
carta abateu-a instantaneamente. Ficou terrivelmente excitada, mandou chamar
prontamente seu marido e acusou-o violentamente. Seu marido não fez caso da
acusação e agiu da melhor forma possível. Chamou o médico da família (que era
também o médico da fábrica), que se esforçou por apaziguar a infeliz senhora. A
conduta subseqüente de ambos foi inteiramente sensata. A doméstica foi
despedida, mas a suposta rival, não. Desde então a paciente se havia
tranqüilizado por períodos, repetidamente, a ponto de não acreditar mais no
conteúdo da carta anônima, porém nunca completamente, nunca definitivamente.
Bastava-lhe ouvir mencionarem o nome da jovem senhora ou encontrá-la na rua,
para nela desencadear um novo ataque de desconfiança, dor e acusações.Este é,
pois, o caso clínico dessa excelente senhora. Não se requeria muita experiência
psiquiátrica para compreender que, em contraste com outros neuróticos, ela
estava dando uma descrição por demais atenuada de seu caso - que ela estava,
por assim dizer, dissimulando - e que, realmente, jamais deixara de acreditar
na acusação contida na carta anônima.Que atitude, portanto, um psiquiatra
adotará em um caso de doença como este? Já sabemos como ele se conduziria
frente à ação sintomática do paciente que deixa de fechar a porta da sala de
consulta. Ele declara que se trata de evento casual, sem interesse psicológico,
com o qual não tem a maior preocupação. Este procedimento, contudo, não pode
ser mantido no caso da doença dessa mulher ciumenta. A ação sintomática parece
ser uma questão irrelevante; mas o sintoma se impõe à nossa atenção como
questão importante. Acompanha-se de intenso sofrimento subjetivo e, como fato
objetivo, ameaça a vida em comum de uma família; constitui, pois, um assunto de
inegável interesse psiquiátrico. O psiquiatra começará por procurar
caracterizar o sintoma por meio de algum aspecto essencial. A idéia com que a
mulher se atormenta não pode ser, em si, chamada de absurda; de fato, ocorre
senhores casados de certa idade terem casos amorosos com mocinhas. Existe,
porém, algo mais, a este respeito, que é absurdo e difícil de entender. A
paciente não possuía absolutamente nenhum outro motivo para acreditar que seu
marido afetuoso e leal pertencesse a essa outra classe, aliás nada rara, de
maridos, a não ser o que se afirmava na carta anônima. Ela sabia que esse
documento não tinha qualquer valor de prova, e podia dar uma explicação
satisfatória sobre a origem da mesma. Portanto, devia ser capaz de dizer a si
mesma que não tinha qualquer fundamento para seu ciúme, e ela realmente o fez.
Apesar disso, sofria tanto, contudo, como se julgasse esse ciúme totalmente
justificado. Idéias desse tipo, inacessíveis a argumentos lógicos baseados na
realidade, são, segundo o consenso geral, descritas como delírios. A boa
senhora, portanto, estava sofrendo de delírios de ciúme. Este é, sem
dúvida, o aspecto essencial deste caso mórbido.Depois de estabelecido este
primeiro ponto, nosso interesse psiquiátrico se torna até mais vívido. Se não
se pode eliminar um delírio mediante uma referência à realidade, então sem
dúvida ele não se originou da realidade. De onde mais ter-se-ia originado?
Existem delírios dos mais variados conteúdos: por que, neste nosso caso, se
trata justamente do delírio de ciúme? Em que tipo de pessoas atuam os delírios
e, especialmente, os delírios de ciúme? Gostaríamos de ouvir o que o psiquiatra
tem a dizer a este respeito; mas, neste ponto, ele nos deixa em apuros.
Considera apenas uma das nossas perguntas. Investigará a história familiar da
mulher e, talvez, nos dará sua resposta: ‘Os delírios aparecem em pessoas em
cujas famílias tenham ocorrido, repetidamente, outros distúrbios psíquicos
semelhantes.’ Em outros termos, se essa mulher desenvolveu um delírio, estava predisposta
a ele por transmissão hereditária. Sem dúvida, isso já é alguma coisa; mas, é
tudo que queremos saber? Foi isso a única coisa que contribuiu para a causação
da doença? Devemos contentar-nos com supor tratar-se de algo sem importância,
indiferente, ou de um capricho; ou que não se pode explicar se o delírio de
ciúme aparece de preferência a algum outro tipo? E deveríamos entender a
assertiva da predominância da influência hereditária também num sentido
negativo - que, não importa quais experiências a mente dessa mulher tivesse
encontrado, ela estaria destinada, mais cedo ou mais tarde, a vir a apresentar
um delírio? Os senhores desejarão saber por que razão a psiquiatria científica
não nos dará outras informações. Minha resposta aos senhores, contudo, é: ‘ele
é um trapaceiro que dá mais do que tem.’ O psiquiatra não sabe como lançar mais
luz sobre um caso como este. Ele deve contentar-se com um diagnóstico e um
prognóstico - incertos, apesar de uma grande quantidade de experiência -, e com
sua evolução futura.Pode a psicanálise, porém, ir além, em um caso destes? Sim,
ela realmente pode. Espero conseguir mostrar-lhes que, mesmo num caso assim,
tão difícil de abordar, ela pode descobrir algo que possibilite uma primeira
compreensão. E, antes de mais nada, eu atrairia a atenção dos senhores para o
detalhe notório de que a própria paciente positivamente provocou a carta
anônima, tendo, agora, dado apoio a seu delírio, ao informar à empregada
intrigante, no dia anterior, que lhe causaria a maior infelicidade se seu
marido tivesse um caso amoroso com uma jovem. Assim, primeiro ela incute na
empregada a idéia de enviar a carta anônima. O delírio, então, adquire certa
independência da carta; já estivera presente na paciente sob a forma de medo -
ou era um desejo? Acrescentemos a isto as outras pequenas indicações obtidas em
apenas duas sessões analíticas. A paciente, na realidade, conduziu-se de
maneira bastante não-cooperativa quando, após haver contado sua história,
perguntei-lhe por seus outros pensamentos, idéias e lembranças. Disse que não
lhe ocorria nada à mente, que já me havia dito tudo; e, depois de duas sessões,
a tentativa de tratamento comigo realmente teve de ser interrompida pois
declarou que já se sentia bem e estava segura de que a idéia patológica não
retornaria. Naturalmente, ela disse isto apenas devido à sua resistência e ao
receio da continuação da análise. Não obstante, durante essas duas sessões, fez
algumas observações que permitiram, e realmente exigiram, uma interpretação
especial; e essa interpretação lançou viva luz sobre a gênese de seu delírio de
ciúme. Ela própria estava intensamente apaixonada por um homem jovem, pelo
mesmo genro que a persuadira a procurar-me na qualidade de paciente. Ela mesma
nada sabia, ou, talvez, sabia muito pouco dessa paixão; no relacionamento
família que existia entre ambos, era fácil essa afeição apaixonada disfarçar-se
como afeição inocente. Depois de todas as nossas experiências em outras
situações, não nos é difícil tatear os caminhos da vida mental dessa honrada
esposa e digna mãe de cinqüenta e três anos. Estando apaixonada dessa maneira,
uma coisa assim tão monstruosa e impossível não podia tornar-se consciente;
permaneceu, porém, existindo, e, ainda que continuasse inconsciente, exercia
grande pressão. Algo havia de acontecer, um alívio tinha de ser buscado, e a
mitigação mais fácil surgiu, sem dúvida, através do mecanismo do deslocamento,
que desempenhou seu papel de modo tão regular na produção do ciúme delirante.
Se ao menos não somente ela, a senhora idosa, estivesse apaixonada por um homem
jovem, mas também seu idoso marido estivesse mantendo um caso amoroso com uma
jovem, então sua consciência se aliviaria do peso de sua infidelidade. A
fantasia da infidelidade de seu esposo agiu assim como uma compressa fria em
sua ferida ardente. O amor que ela própria obrigava não se lhe tornara
consciente; porém, seu reflexo especular, que lhe deu tal vantagem, agora se
tornou consciente como uma obsessão e um delírio. Naturalmente nenhum argumento
em contrário podia surtir qualquer efeito, pois o argumento era dirigido contra
a imagem especular, e não contra a imagem original que deu à outra sua força e
que permanecia oculta, inviolável, no inconsciente.Vamos reunir agora aquilo
que esta tentativa de psicanálise, curta e detida como foi, trouxe à luz para
uma compreensão deste caso - supondo, naturalmente, que nossas investigações
tenham sido efetuadas corretamente, o que não posso, aqui, submeter ao
julgamento dos senhores. Em primeiro lugar, o delírio deixou de ser absurdo ou
ininteligível; tinha um sentido, tinha motivos fundamentados, e ajustou-se ao
contexto de uma experiência emocional da paciente. Em segundo lugar, o delírio
era necessário como reação a um processo mental inconsciente que inferimos de outras
indicações, e foi justamente a esta conexão que deveu seu caráter delirante e
sua resistência a todo ataque lógico e realista. Esse delírio era, em si, de
certa maneira desejado, uma espécie de consolação. Em terceiro lugar, o fato de
o delírio vir a ser precisamente o delírio de ciúme, e não de outro tipo,
estava inequivocamente determinado pela experiência que está por trás da
doença. Naturalmente, os senhores se recordarão de que, no dia anterior, ela
havia dito à empregada intrigante que a coisa mais terrível que lhe podia
acontecer seria a infidelidade do marido. E os senhores não deixarão de
perceber as duas importantes analogias entre este caso e a ação sintomática que
analisamos - a explicação do seu sentido ou intenção e sua relação com algo inconsciente,
envolvido na situação.Por certo, isto não responde a todas as perguntas que
poderíamos fazer em relação a este caso. Pelo contrário, o caso suscita outros
problemas - alguns, em geral, ainda não se tornaram solúveis, e outros não
poderiam ser solucionados devido a existirem circunstâncias especiais
desfavoráveis. Por exemplo, por que essa mulher, que estava vivendo um
casamento feliz, apaixonou-se por seu genro? E por que o alívio, que teria sido
possível de outras maneiras, tomou a forma dessa imagem especular, dessa
projeção de seu estado em seu marido? Os senhores não devem pensar que é ocioso
ou inútil levantar tais questões. Já possuímos algum material à nossa
disposição, que possivelmente poderia servir para respondê-las. A senhora estava
em uma idade crítica, na qual as necessidades sexuais da mulher sofrem um
aumento súbito e indesejado; isto, por si só, poderia responder pelo evento. Ou
ainda pode ter ocorrido que seu excelente e fiel esposo há alguns anos não
estivesse mais gozando da capacidade sexual que essa mulher bem conservada
requeria para sua satisfação. A experiência nos demonstrou que são precisamente
homens numa situação assim, cuja fidelidade pode, conseqüentemente, ser tida
como certa, que se distinguem por tratarem suas esposas com ternura incomum, e
por mostrarem especial paciência para com os problemas nervosos delas. Ou
ainda, não pode deixar de ter significação o fato de o objeto de seu amor
patogênico ser justamente o jovem marido de uma de suas filhas. Um poderoso vínculo
erótico com uma filha, que remonta aos primórdios da constituição sexual da
mãe, às vezes encontra a forma de sobreviver numa transformação dessa ordem.
Com referência a isto, posso, talvez, recordar-lhes que a relação entre sogra e
genro tem sido considerada, desde as épocas mais remotas da raça humana, como
relação particularmente embaraçosa e que, entre tribos primitivas, deu origem a
regulamentações e ‘evitações’ tabu muito poderosas. A relação, amiúde, é
extravagante, pelos padrões civilizados, tanto em sentido positivo como
negativo. Qual desses três fatores tornou-se atuante, no caso em questão, ou se
dois deles, ou se, talvez, todos os três vieram juntos, verdadeiramente não
lhes posso dizer; isso, contudo, é só porque não me foi possível continuar a
análise do caso além de duas sessões.Verifico agora, senhores, que lhes venho
falando de muitas coisas, e os senhores não estão preparados para entendê-las.
Assim procedi para fazer a comparação entre psiquiatria e psicanálise. Existe,
porém, uma coisa que posso perguntar-lhes, agora. Observaram algum sinal de
contradição entre elas? A psiquiatria não emprega os métodos técnicos da
psicanálise; toca superficialmente qualquer inferência acerca do conteúdo
do delírio, e, ao apontar para a hereditariedade, dá-nos uma etiologia geral e
remota, em vez de indicar, primeiro, as causas mais especiais e próximas. Mas
existe uma contradição, uma oposição nisso? Não é o caso de uma suplementar a
outra? O fator hereditário contradiz a importância da experiência? Ambas as
coisas não se combinam da maneira mais efetiva?
Os senhores assegurarão não existir nada na
natureza do trabalho psiquiátrico que possa opor-se à investigação
psicanalítica. O que se opõe à psicanálise não é a psiquiatria, mas os
psiquiatras. A psicanálise relaciona-se com a psiquiatria aproximadamente como
a histologia se relaciona com a anatomia: uma estuda as formas externas dos
órgãos, a outra estuda sua estruturação em tecidos e células. Não é fácil
imaginar uma contradição entre essas duas espécies de estudo, sendo um a
continuação do outro. Atualmente, como sabem, a anatomia é considerada por nós
como fundamento da medicina científica. Houve, todavia, época em que era tão
proibido dissecar um cadáver humano, a fim de descobrir a estrutura interna do
corpo, como hoje parece ser o exercício da psicanálise, esclarecer acerca do
mecanismo interno da mente. É de se esperar que, em futuro não muito distante,
perceber-se-á que uma psiquiatria cientificamente fundamentada não será
possível sem um sólido conhecimento dos processos inconscientes profundos da
vida mental.
Talvez a psicanálise, sempre tão atacada,
tenha, porém, entre os senhores, amigos que se regozijarão se ela puder
legitimar-se num outro sentido - no aspecto terapêutico. Como sabem, nossa
terapia psiquiátrica, até o momento atual, não é capaz de influenciar os
delírios. Será possível, talvez, que a psicanálise possa fazê-lo, graças à sua
compreensão profunda do mecanismo desses sintomas? Não, senhores, não pode. Ela
é tão impotente (pelo menos por enquanto) contra esses males, quanto qualquer
outra forma de terapia. Nós podemos compreender, na verdade, o que
ocorreu na paciente; no entanto, não temos meios de fazer com que a paciente
mesma o compreenda. Os senhores ouviram como fui incapaz de prosseguir com a
análise desse delírio além de um simples começo. Estariam os senhores dispostos
a afirmar, por isso, que uma análise de tais casos deve ser rejeitada porque é
infrutífera? Penso que não. Temos o direito, ou melhor, a obrigação, de efetuar
nossa pesquisa sem considerar qualquer efeito benéfico imediato. No fim - não
sabemos dizer onde nem quando - cada pequena parcela de conhecimento se
transformará em poder, e também em poder terapêutico. Ainda que a psicanálise
se mostrasse tão ineficaz em qualquer outra forma de doença nervosa e psíquica,
como se mostra ineficaz nos delírios, estaria plenamente justificada como
insubstituível instrumento de investigação científica. É verdade que, nesse
caso, não estaríamos em condições de exercê-la. O material humano, com o qual
procuramos aprender, que vive, tem sua vontade própria e precisa ter motivos
para cooperar em nosso trabalho, se afastaria de nós. Portanto, permitam-me
finalizar meus comentários de hoje informando-lhes que existem extensos grupos
de distúrbios nervosos nos quais a transformação do nosso melhor entendimento
em poder terapêutico realmente se efetivou, e que nessas doenças, às quais é
difícil o acesso por outros meios, obtemos, sob condições favoráveis, êxitos
que não são superados por nenhum outro meio, na área da medicina interna.
CONFERÊNCIA XVII
O SENTIDO DOS SINTOMAS
SENHORAS E SENHORES:
Na última conferência, expliquei-lhes que a
psiquiatria clínica atenta pouco para a forma externa do conteúdo dos sintomas
individualmente considerados, que a psicanálise, entretanto, valoriza
precisamente este ponto e estabeleceu, em primeiro lugar, que os sintomas têm
um sentido e se relacionam com as experiências do paciente. O sentido dos
sintomas neuróticos foi descoberto, em primeira mão, por Josef Breuer, em seu
estudo e cura bem sucedida (entre 1880 e 1882) de um caso de histeria, que
desde então se tornou famoso. É verdade que Pierre Janet apresentou as mesmas
provas, independentemente; com efeito, o pesquisador francês pode alegar prioridade
de publicação, pois foi só uma década depois (em 1893 e 1895), quando estava
colaborando comigo, que Breuer publicou suas observações. Em todo caso, pode
parecer questão de somenos importância saber quem fez a descoberta, de vez que,
como sabem, toda descoberta é feita mais de uma vez, e nenhuma se faz de uma só
vez. Ademais disso, nem sempre o sucesso acompanha o mérito: não foi de Colombo
que a América recebeu seu nome. O grande psiquiatra Leuret opinou, antes de
Breuer e Janete, que mesmo nas idéias delirantes do insano se poderia encontrar
um sentido, bastaria que compreendêssemos a maneira de traduzi-las. Devo
admitir que, durante longo tempo, estive disposto a dar bastante crédito a
Janet por elucidar os sintomas neuróticos, porque ele os considerava expressão
de idées inconscientes que dominavam os pacientes. Depois disso, porém,
ele se tem expressado com exagerada reserva, como se quisesse admitir que o
inconsciente, para ele, não tivesse sido nada mais que uma fórmula verbal, um
expediente, une façon de parler - que ele, com isso, não quis significar
nada de real.Desde então, deixei de compreender os escritos de Janet; penso, no
entanto, que ele, desnecessariamente, perdeu muito crédito.Os sintomas
neuróticos têm, portanto, um sentido, como as parapraxias e os sonhos, e, como
estes, têm uma conexão com a vida de quem os produz.
Por ora, gostaria de tornar esta importante
descoberta mais compreensível para os senhores, através de alguns exemplos.
Realmente, posso apenas afirmar, não posso provar, que é assim, sempre, e em
todos os casos. Todo aquele que procura por si mesmo essas experiências,
encontrará provas convincentes. Por determinadas razões, contudo, escolherei
estes exemplos a partir de casos, não de histeria, mas sim de uma outra neurose
muito extraordinária, que é fundamentalmente muito semelhante àquela e a cujo
respeito tenho alguns comentários preliminares a fazer:
Essa neurose, conhecida como neurose obsessiva,
não é tão comum como a universalmente conhecida histeria. Não é, se assim posso
expressar-me, tão indiscretamente ruidosa; comporta-se mais como assunto
particular do paciente, prescinde quase que completamente dos fenômenos
somáticos e cria todos os sintomas da esfera mental. A neurose obsessiva e a
histeria são as formas de doenças neuróticas em cujo estudo baseou-se
inicialmente a psicanálise, e em cujo tratamento, também, nossa terapia realiza
seus triunfos. Mas a neurose obsessiva, na qual o enigmático salto do mental
para o físico não desempenha nenhum papel, se nos tornou, através dos esforços
da psicanálise, realmente mais compreensível e conhecida do que a histeria, e
temos constatado que ela apresenta muito mais flagrantemente determinadas
características extremas da natureza da neurose.
A neurose obsessiva manifesta-se no fato de o
paciente se ocupar de pensamentos em que realmente não está interessado, de
estar cônscio de impulsos dentro de si mesmo que lhe parecem muito estranhos, e
de ser compelido a ações cuja realização não lhe dá satisfação alguma, mas lhe
é totalmente impossível omitir. Os pensamentos (obsessões) podem ser, em si,
carentes de significação, ou simplesmente assunto sem importância para o
paciente; freqüentemente, são de todo absurdos e, invariavelmente, constituem o
ponto de partida de intensa atividade mental que exaure o paciente e à qual ele
somente se entrega muito contra sua vontade. Obriga-se, contra sua vontade, a
remoer pensamentos e a especular, como se se tratasse dos seus mais importantes
problemas vitais. Os impulsos, dos quais o paciente se apercebe em si próprio,
também podem causar uma impressão de puerilidade e falta de sentido; via de
regra, porém, têm um conteúdo da mais assustadora categoria, tentando-o, por
exemplo, a cometer graves crimes, de modo que não só os rechaça como alheios a
si, mas deles foge com horror e se resguarda de executá-los recorrendo a
proibições, renúncias e restrições em sua liberdade. Ao mesmo tempo, esses
impulsos nunca - literalmente nunca - forçam seu caminho no rumo da realização;
o resultado é que sempre obtêm vitória a fuga e as precauções. Aquilo que o
paciente realmente efetua - os denominados atos obsessivos - são coisas muito
inofensivas e certamente banais, na sua maior parte repetição ou elaborações
rituais das atividades da vida corrente. Essas atividades obrigatórias (tais
como ir deitar, lavar-se, vestir-se ou andar a pé) se tornam, contudo, tarefas
extremamente fatigantes e quase insolúveis. Nos diferentes casos e formas de
neurose obsessiva, as idéias, os impulsos e as ações patológicas não se
combinam em proporções iguais; via de regra, um ou outro desses fatores domina
o quadro e dá seu nome à doença, mas o elemento comum em todas essas formas é
suficientemente inconfundível.
Certamente, esta é uma doença louca. A
imaginação psiquiátrica mais extravagante não teria conseguido, segundo penso,
construir nada semelhante; e só mesmo vendo-a diante de si a cada dia, é que se
é levado a acreditar nela. No entanto, não suponham que ajudarão o paciente,
nem de longe, admoestando-o para que adote uma nova conduta, deixe de ocupar-se
com esses pensamentos absurdos e faça algo sensato em lugar de suas
extravagâncias infantis. Ele próprio gostaria de fazê-lo, pois está
perfeitamente lúcido, compartilha da opinião dos senhores acerca de seus
sintomas neuróticos, e até mesmo expressa-a espontaneamente aos senhores. Só
que ele próprio não consegue ajudar-se a si mesmo. O que é posto em ação, em
uma neurose obsessiva, é sustentado por uma energia com a qual provavelmente
não encontramos nada comparável na vida mental normal. Existe uma coisa apenas,
que ele pode fazer: realizar deslocamentos, trocas, pode substituir uma idéia
absurda por outra um pouco mais atenuada, em vez de um cerimonial pode realizar
um outro. Pode deslocar a obsessão, mas não removê-la. A possibilidade de
deslocar qualquer sintoma para algo muito distante de sua conformação original
é uma das principais características desta doença. Ademais, surpreende que,
nesta condição, as contradições (polaridades), com as quais a vida mental está
entretecida [ver em [1], adiante], emergem de maneira especialmente nítida,
diferenciada. Além das obsessões, de conteúdo positivo e negativo, a dúvida
se faz notar na área intelectual, e lentamente começa a corroer até mesmo
aquilo que geralmente é tido como muito certo. A situação inteira termina em um
grau sempre crescente de indecisão, perda da energia e restrição da liberdade.
Ao mesmo tempo, o neurótico obsessivo inicia seus empreendimentos com uma
disposição de grande energia, freqüentemente é muito voluntarioso e, via de
regra, tem dotes intelectuais acima da média. Geralmente atingiu um nível de
desenvolvimento ético satisfatoriamente elevado; mostra-se superconsciencioso,
e tem uma correção fora do comum em seu comportamento. Os senhores podem
imaginar que não é pouco o trabalho que se requer para se poder penetrar, por
pouco que seja, nessa miscelânea de traços de caráter e de sintomas. E, de
início, não pretendemos nada mais do que compreender alguns desses sintomas e
conseguir interpretá-los.
Talvez os senhores desejassem conhecer, antes
disso, e tendo em mente nossos contatos anteriores, que atitude a psiquiatria
contemporânea adota em relação aos problemas da neurose obsessiva. Está aí um
capítulo árido. A psiquiatria dá nomes às diferentes obsessões, mas não diz
nada mais acerca das mesmas. Por outro lado, insiste em que são ‘degenerados’
aqueles que sofrem desses sintomas. Isto proporciona pouca satisfação; de fato,
é um julgamento de valores - uma condenação, em vez de uma explicação. Supõe-se
acharmos que todas a possíveis espécies de excentricidade conseguem ocorrer em
degenerados. Pois bem, é verdade que devemos considerar aqueles que desenvolvem
tais sintomas como sendo algo diferentes, em sua natureza, de outras pessoas.
Podemos, no entanto, perguntar: São eles mais ‘degenerados’ do que outros
neuróticos - do que os pacientes histéricos, por exemplo, ou aqueles que
adoecem de uma psicose? Também aqui, a caracterização é, evidentemente, muito
genérica. Com efeito, cabe-nos a dúvida quanto a saber se existe absolutamente
qualquer justificativa para essa generalização, quando sabemos que esses
sintomas ocorrem também em pessoas, renomadas, de capacidade especialmente
elevada, de capacidade importante para o mundo em geral. É verdade que, graças
à sua própria discrição e às falsificações de seus biógrafos, pouco sabemos dos
aspectos íntimos dos grandes homens que são nossos modelos; não obstante,
também sucede um deles, como Émile Zola, poder ser um fanático da verdade, e,
assim, ficamos conhecendo seus muitos e estranhos hábitos obsessivos, dos quais
foi vítima a vida inteira.A psiquiatria inventou uma maneira de falar em ‘dégénérés
supérieurs‘. Muito bonito. Mas, na psicanálise, constatamos que é possível
eliminar permanentemente esses estranhos sintomas obsessivos, assim como outras
queixas, e, também, em pessoas não degeneradas. Eu próprio logrei repetidos
êxitos neste ponto.Apresentar-lhes-ei apenas dois exemplos da análise de um
sintoma obsessivo: um deles, uma antiga observação, e não posso encontrar outra
melhor que a substitua, e um outro exemplo, encontrei-o recentemente. Limito-me
a este pequeno número, de vez que é impossível, nestes relatos, evitar ser
muito dispersivo e entrar em todos os detalhes.
Uma senhora, com cerca de trinta anos de idade,
que sofria das mais graves manifestações obsessivas, e que eu talvez pudesse
ter ajudado, se uma eventualidade desfavorável não tivesse transformado em nada
o meu trabalho - posso ser capaz de contar-lhes mais a respeito disso, futuramente
- executava, entre outros, os seguintes e notáveis atos obsessivos, muitas
vezes por dia. Ela corria desde seu quarto até um outro quarto contíguo,
assumia determinada posição ali, ao lado de uma mesa colocada no meio do
aposento, soava a campainha chamando a empregada, dava-lhe algum recado ou
dispensava-a sem maiores explicações, e, depois, corria de volta para seu
quarto. Este não era certamente um sintoma muito desagradável, mas assim mesmo,
não podia deixar de causar curiosidade. A explicação foi obtida da maneira mais
inequívoca e irrefutável, isenta de qualquer contribuição por parte do médico.
Não consigo ver como eu poderia, talvez, ter formado alguma idéia do sentido
desse ato obsessivo, ou dado qualquer sugestão acerca do modo como devia ser interpretado.
Sempre que eu perguntava à paciente “Por que faz isto? qual o sentido disto?’
ela respondia: ‘Não sei.’ Um dia, porém, após eu haver conseguido invalidar uma
de suas dúvidas, uma dúvida importante, fundamental, ela subitamente soube a
resposta, e contou-me o que é que estava em conexão com o ato obsessivo. Mais
de dez anos antes, casara-se com um homem de muito mais idade do que ela, e, na
noite de núpcias, ele ficou impotente. Amiúde, durante a noite, ele viera
correndo de seu quarto para o dela, a fim de tentar mais uma vez, porém sempre
sem êxito. Na manhã seguinte, ele disse com tristeza: ‘Eu devia sentir-me
envergonhado perante a empregada, quando ela arrumar a cama’, pegou de uma
garrafa de tinta vermelha que casualmente havia no quarto e derramou seu
conteúdo sobre o lençol, mas não no exato lugar em que uma mancha viria a
calhar. Num primeiro momento, não pude atinar com a relação entre esta
lembrança e o ato obsessivo em exame; a única semelhança que pude encontrar foi
no ato de correr de um quarto para o outro e, talvez, na vinda da empregada.
Minha paciente então levou-me até a mesa, no segundo quarto, e mostrou-me uma
grande mancha na toalha. Depois, explicou que assumia sua posição em relação à
mesa de maneira tal que a empregada, ao ser dispensada de sua presença, não
podia deixar de ver a mancha. Já não podia mais haver qualquer dúvida sobre a
íntima conexão entre a cena de sua noite de núpcias e o ato obsessivo atual,
embora ficassem por ser esclarecidas muitas outras coisas.
Estava claro, em primeiro lugar, que a paciente
se identificava com seu marido; ela estava executando o papel dele, imitando
sua corridas de um quarto a outro. Além disso, prosseguindo com a analogia,
devemos concordar em que a cama e o lençol foram substituídos pela mesa e pela
toalha. Isto poderia parecer casual, mas por certo não foi sem finalidade que
estudamos o simbolismo onírico. Também nos sonhos, freqüentemente encontramos
uma mesa que deve ser interpretada como uma cama. Mesa e cama, juntas,
representam o casamento, e, assim, uma pode facilmente tomar o lugar da
outra.Parece já estar provado que o ato obsessivo tinha um sentido; parece ter
sido uma representação, uma repetição daquela cena importante. Mas não devemos
parar aqui. Se examinarmos a relação entre as duas cenas mais detidamente,
provavelmente obteremos informações acerca de algo que vai além - acerca da
intenção do ato obsessivo. Sua essência consistia, obviamente, em chamar a
empregada, e, à vista desta, mostrar a mancha, em contraste com o comentário do
marido, de que se sentiria envergonhado perante a empregada. Assim sendo, ele,
cujo papel ela estava desempenhando, não se sentia envergonhado perante a
empregada; portanto, a mancha estava no lugar certo. Vemos, portanto, que ela
não estava simplesmente repetindo a cena, ela estava continuando e, ao mesmo
tempo corrigindo-a; ela estava consertando-a. No entanto, com isso, ela também
estava corrigindo uma outra coisa, que fora tão desagradável, aquela noite, e
que tornou necessário o expediente com a tinta vermelha - a impotência dele. De
modo que o ato obsessivo estava dizendo: ‘Não, não é verdade. Ele não tinha por
que sentir-se envergonhado perante a empregada; ele não ficou impotente.’
Representava este desejo, à maneira de um sonho, como sendo satisfeito numa
ação da época atual; servia ao propósito de fazer seu marido superar a
desventura passada.Tudo quanto eu poderia lhes dizer a respeito dessa mulher
ajusta-se ao fato. Ou, mais corretamente falando, tudo o mais que sabemos a
respeito do caso abre o caminho, mediante esta interpretação ininteligível. A
mulher estivera separada de seu marido, durante anos, e estava debatendo-se com
a intenção de obter divórcio legal. Contudo, não havia como livrar-se dele; ela
era forçada a permanecer fiel a ele; retirou-se do mundo para não ser tentada;
em sua imaginação, desculpava-o e engrandecia as qualidades dele. Na verdade, o
mais profundo segredo de sua doença consistia em que, através desta doença,
protegia seu marido de comentários maldosos, justificava-se por estar separada
dele e possibilitava-lhe levar uma vida separada cômoda. Assim, a análise de um
ato obsessivo inócuo conduziu ao mais íntimo âmago de uma doença; mas, ao mesmo
tempo, revelou-nos uma parte não pequena do segredo da neurose obsessiva em
geral. Estou satisfeito por fazê-los deterem-se um pouco neste exemplo, porque
reúne condições que não se poderia esperar encontrar facilmente em todos os
casos. Aqui, a interpretação do sintoma foi descoberta pela própria paciente,
de um só golpe, sem qualquer influência ou intervenção por parte do analista; e
resultou de uma conexão com um acontecimento que (como geralmente é o caso) não
pertencia a um período esquecido da infância, mas que ocorre na vida adulta da
paciente e permaneceu vivo em sua memória. Todas as objeções que a crítica
normalmente costumava levantar contra nossa interpretação dos sintomas, caem
por terra, neste caso particular. Não podemos esperar ter sempre tanta sorte.E
mais uma coisa. Os senhores não ficaram surpresos pela forma como o discreto
ato obsessivo nos conduziu até a intimidade da paciente? Uma mulher não pode
ter nada mais íntimo para contar do que a história de sua noite de núpcias. Foi
por acaso e sem maior significação que chegamos justamente à intimidade da vida
sexual? Sem dúvida, poderia ser o resultado da escolha que fiz, nessa ocasião.
Não sejamos apressados demais em formar nosso julgamento, e passemos ao meu
segundo exemplo, que é de tipo bem diferente - uma amostra de uma espécie muito
comum, um ritual de dormir.Uma jovem de dezenove anos de idade, bem
desenvolvida e bem dotada, era filha única de pais que superava em instrução e
vivacidade intelectual. Em criança, havia sido alegre e decidida, e no decorrer
dos últimos anos, havia se transformado, sem qualquer causa visível, em
neurótica. Era muito irritável, especialmente para com a mãe, sempre
insatisfeita e deprimida, com tendência à indecisão e à dúvida; finalmente,
verificou que não conseguia mais caminhar livremente por graças ou ruas
relativamente largas. Não nos ocuparemos muito de sua complexa doença, que se
enquadrava em pelo menos dois diagnósticos: agorafobia e neurose obsessiva;
deter-nos-emos apenas no fato de que ela também desenvolveu um ritual de
dormir, com o qual atormentava seus pais. Em certo sentido, pode-se dizer que
toda pessoa normal tem seu ritual de dormir, ou que estabeleceu determinadas
condições necessárias, cujo não-preenchimento interfere com o adormecer; toda
pessoa se impõe determinadas formalidades na transição do estado de vigília ao
de sono, e repete-as da mesma maneira, todas as noites. Tudo aquilo que uma
pessoa sadia exige como condição necessária para dormir, pode, contudo, ser
compreendido racionalmente e, no caso de circunstâncias externas exigirem uma
mudança, a pessoa cede com facilidade, sem perda de tempo. Um ritual
patológico, porém, é inflexível, e insiste em ser levado a cabo, mesmo à custa
de grandes sacrifícios; também se oculta atrás de uma fundamentação racional e,
a um exame superficial, parece divergir do normal apenas por uma exagerada
meticulosidade. Entretanto, a um exame mais acurado, podemos ver que o disfarce
é insuficiente, que o ritual compreende certas especificações que avançam muito
além de sua base racional, e outras, que positivamente a contradizem. Essa
paciente, de que estamos falando, alegou, como pretexto de suas precauções
noturnas, que necessitava de silêncio para dormir e devia abolir qualquer fonte
de ruído. Com este fim em vista, fazia dois tipos de coisas. Parava o grande
relógio em seu quarto, todos os outros relógios eram removidos do quarto e
sequer permitia que seu minúsculo relógio de pulso ficasse dentro de sua
mesinha-de-cabeceira. Vasos de flores e outros vasos eram agrupados na
escrivaninha de modo que não pudessem cair e quebrar-se durante a noite e
perturbar-lhe o sono. Ela se apercebia de que estas medidas só podiam encontrar
uma justificativa ostensiva na observância da regra do silêncio; o
tique-taque de seu pequenino relógio de pulso não poderia ter sido audível,
ainda que fosse deixado na mesa-de-cabeceira, e todos temos experiência do fato
de que o tique-taque regular de um relógio de pêndulo nunca perturba o sono,
mas age, isto sim como soporífero. Admitiu também que seu medo de que os vasos
de flores e outros vasos, se deixados em seu lugares, pudessem cair e
quebrar-se por si mesmos, carecia de qualquer fundamento. No caso de outras
especificações feitas pelo ritual, abandonava-se o pretexto da necessidade de
haver silêncio. Na verdade, a exigência de que a porta entre seu quarto e o
quarto dos pais devesse permanecer entreaberta - exigência que ela satisfazia
colocando diversos objetos no vão da porta - parecia, pelo contrário, agir como
fonte de ruídos perturbadores. as especificações mais importantes referiam-se,
todavia, à cama propriamente dita. O travesseiro, na parte superior da cama,
não devia tocar o encosto de madeira da cabeceira. O travesseiro pequeno devia
repousar sobre o travesseiro grande, somente numa posição específica - ou seja,
de modo a configurar a forma de um diamante. A cabeça devia repousar, então,
exatamente no sentido do diâmetro maior do diamante. O edredom (ou ‘Duchent‘,
como o chamamos na Áustria) tinha de ser, antes de colocado sobre a cama,
sacudido de tal maneira, que a parte inferior ficasse muito volumosa; depois,
no entanto, ela jamais deixava de aplainar esse acúmulo de penas, comprimindo-o
para os lados.Com a permissão dos senhores, desprezarei os demais detalhes,
muito banais, do ritual; não nos ensinariam nada de novo e nos levariam para
bem longe de nossos objetivos. Os senhores não devem, contudo, negligenciar o
fato de que tudo isso não se fazia sem dificuldades. Havia sempre apreensão de
que as coisas não tivessem sido feitas corretamente. Tudo tinha de ser
verificado e repetido, dúvidas assaltavam ora uma, outra outra das medidas de
segurança, e o resultado era que se gastavam nisso duas ou três horas, durante
as quais a jovem não podia dormir, e também não haveria de permitir que
dormissem os seus atemorizados pais.A análise destes tormentos não se faz tão
simplesmente assim, como a análise do ato obsessivo de nossa paciente anterior.
Fui obrigado a apresentar à jovem paciente determinadas alusões e propor
interpretações, as quais sempre eram rejeitadas com um decidido ‘não’ ou aceitas
com dúvidas desdenhosas. Passada essa primeira reação ou rejeição, seguiu-se,
porém, uma época durante a qual ela se ocupava com as possibilidades que se lhe
apresentavam, juntava associações às mesmas, referia recordações e estabelecia
conexões, até que, por seu próprio esforço, passou a aceitar todas as
interpretações. À medida que isso aconteceu, ela abrandou a execução de suas
medidas obsessivas, e, antes mesmo do fim do tratamento, havia abandonado por
completo o ritual. Os senhores devem entender também que o trabalho analítico,
tal como o efetuamos hoje em dia, praticamente exclui o tratamento sistemático
de qualquer sintoma isolado até ser inteiramente elucidado. Pelo contrário,
vemo-nos obrigados a abandonar repetidamente um determinado tema, na expectativa
certa de retornar a ele novamente, em outros contextos. A interpretação de seus
sintomas, que estou por mostrar-lhes, é, em consonância com isto, uma síntese
de achados que foram surgindo, interrompidos por outro trabalho, durante um
período de semanas e meses.Nossa paciente gradualmente veio a constatar que era
devido à sua qualidade de símbolos dos genitais femininos que os relógios eram
retirados do meio de seus objetos de uso à noite. Os relógios - embora em outra
parte tenhamos encontrado outras interpretações simbólicas para os mesmos -
assumiram a significação genital devido à sua relação com processos periódicos
e intervalos de tempo iguais. Uma mulher pode gabar-se de que sua menstruação
funciona com a regularidade de um relógio. A ansiedade de nossa paciente,
porém, estava voltada em especial contra a possibilidade de ela ter o seu sono
perturbado pelo tique-taque de um relógio. O tique-taque do relógio pode ser
comparado com a pulsação ou latejamento do clitóris durante a excitação sexual.
Realmente ela havia, repetidas vezes, acordado durante a noite com essa
sensação, que agora se lhe tinha tornado desagradável; e expressou esse medo de
uma ereção através da regra de que todos os relógios em funcionamento deviam
ser removidos de perto de si, durante a noite. Vasos de flores, assim como
todos os vasos [ver em [1]], também são símbolos sexuais. Tomar precauções para
que não caíssem e não se quebrassem durante a noite, portanto, não deixava de
ter seu correto sentido. Conhecemos o costume tão difundido de quebrar um vaso
ou um prato nas cerimônias dos esponsais. Cada um dos homens presentes apanha
um dos fragmentos, e podemos considerar isto como sendo um sinal de sua
renúncia à pretensão que tinha em relação à noiva, em virtude de uma lei nupcial
que remonta a uma época anterior ao estabelecimento da monogamia. Com relação a
esta parte de seu ritual, a jovem referiu uma lembrança e diversas associações.
Certa vez, quando era criança, sofreu uma queda no momento em que tinha nas
mãos um vaso de vidro ou porcelana, resultando-lhe um corte em um dedo e
sangramento profuso. Quando cresceu e tomou conhecimento dos fatos referentes
ao ato sexual, desenvolveu uma angustiante idéia de que, na sua noite de
núpcias, ela não iria ter perda de sangue, e assim deixaria de mostrar que era
virgem. Suas precauções com a possibilidade de os vasos se quebrarem
significavam, pois, um repúdio a todo o complexo referente à virgindade e ao
sangramento no primeiro coito - igualmente um repúdio ao medo de sangrar e, ao
contrário, medo de não
sangrar. Estas precauções, que ela subordinava
à evitação do ruído, tinham apenas remota conexão com tal complexo.Ela atinou,
um dia, com a significação central de seu ritual, quando, subitamente,
compreendeu a significação da regra segundo a qual o travesseiro não devia
tocar no encosto da cabeceira da cama. O travesseiro, disse, sempre havia sido,
para ela, uma mulher, e o encosto de madeira, ereto, um homem. Assim, desejava
- por meios mágicos, podemos acrescentar - manter homem e mulher separados -
isto é, separar seus pais um do outro, não lhes permitindo terem relação
sexual. Anos antes, em época anterior ao estabelecimento do ritual, havia
procurado atingir o mesmo objetivo, de maneira mais direta. Havia simulado medo
(ou explorara uma tendência ao medo que já se encontrava presente), a fim de
que as portas comunicantes entre o quarto dos pais e seu quarto de criança não
ficassem fechadas. Esta regra, com efeito, tinha sido mantida em seu ritual
atual. Dessa forma, deu-se a si mesma a oportunidade de ficar escutando seus
pais; entretanto, ao utilizá-la, desenvolveu um insônia que durou meses. Não
satisfeita com perturbar os pais por este meio, conseguiu que lhe permitissem
dormir, de tempos em tempos na cama dos pais, entre eles. O travesseiro e o
encosto de madeira, assim, não conseguiram aproximar-se. Por fim, quando já era
tão grande que se tornou fisicamente desconfortável para ela encontrar lugar,
na cama, entre seus pais, conseguiu, por uma consciente simulação de ansiedade,
combinar com sua mãe uma troca de lugares com esta, à noite; a mãe, então,
cedia-lhe o lugar, de modo que a paciente conseguia dormir ao lado do pai. Sem
dúvida, essa situação transformou-se no ponto de partida de fantasias, cujo
efeito secundário se podia constatar no ritual.Se um travesseiro era uma
mulher, então o sacudir o edredom até todas as penas se localizarem na parte
inferior e causarem um abaulamento, também tinha um sentido. Significava um
mulher ficar grávida; ela, contudo, nunca deixava de desfazer novamente essa
gravidez, pois durante anos temera que o coito de seus pais resultasse em mais
um filho e, desta forma, presenteassem-na com um rival. Por outro lado, se o
travesseiro grande era uma mulher, a mãe, o travesseiro menor somente podia
representar a filha. Por que este travesseiro tinha de ser colocado na forma de
um diamante e a cabeça situar-se justamente ao longo da linha central? Foi
fácil recordar-lhe que essa forma de diamante é a figura desenhada em todos os
muros para representar os genitais femininos abertos. Sendo assim, ela própria
estava representando o homem e substituindo o órgão masculino por sua cabeça.
(Cf. o simbolismo da decapitação como símbolo de castração.)
Pensamentos muito dissolutos, dirão os
senhores, para estarem passando na cabeça de uma jovem solteira. Admito que
sim. Mas, não devem esquecer-se de que não criei essas coisas, apenas
interpretei-as. Um ritual de dormir igual a esse também é algo estranho, e os
senhores não deixarão de constatar como o ritual corresponde às fantasias
reveladas pela interpretação. Atribuo, todavia, maior importância ao fato de
notarem que, no ritual, o que se verificou não foi o resultado de uma única
fantasia, mas de diversas, embora tivessem um ponto nodal em alguma parte, e, ademais,
que as regras estabelecidas pelo ritual reproduziam os desejos sexuais da
paciente, num ponto positivamente, e noutro, negativamente - em parte
representavam esses desejos e em parte derivam de defesa contra os
mesmos.Poder-se-ia também obter mais alguma coisa da análise desse ritual, se
este pudesse ser adequadamente vinculado aos demais sintomas da presente. Nossa
investigação, contudo, não segue esta direção. Os senhores devem contentar-se
com um indício de que a jovem estava dominada por uma ligação erótica com seu
pai, ligação cujos começos remontavam à sua infância. Talvez fosse por isso que
ela se portava de forma tão inamistosa com sua mãe [ver em [1]]. E não podemos
deixar de atentar para o fato de que a análise deste sintoma nos levou de volta,
mais uma vez, à vida sexual de uma paciente. Talvez nos surpreendêssemos menos
com isso, à medida que mais freqüentemente compreendemos o sentido e a intenção
dos sintomas neuróticos.Mostrei-lhes, portanto, como base em dois exemplos
escolhidos, que os sintomas neuróticos, como as parapraxias e os sonhos,
possuem um sentido e têm íntima conexão com as experiências do paciente. Posso
esperar que acreditarão nesta tese extremamente importante, com as provas do
dois exemplos? Não. Entretanto, podem os senhores exigir que eu continue a
dar-lhes outros exemplos, até que se declarem satisfeitos? Novamente, não.
Pois, tendo em vista a maneira detalhada como abordo cada caso isoladamente,
teria de dedicar um ciclo de conferência de cinco horas ao estabelecimento de
apenas este ponto da teoria das neuroses. Devo, assim, contentar-me com
ter-lhes dado um prova experimental de minha asserção e, quanto ao restante,
remeto-os aos relatos que a bibliografia oferece sobre o assunto - às clássicas
interpretações de sintomas do primeiro caso (de histeria), de Breuer, à vívida
luz lançada sobre os mais obscuros sintomas daquilo que se conhece como dementia
praecox, por C. G. Jung [1907], numa época em que ele era apenas
psicanalista e ainda não aspirava a ser profeta; e a todos os trabalhos que
desde então têm enchido os nossos periódicos. Não faltavam investigações,
justamente sobre esses assuntos. A análise, interpretação e tradução de
sintomas psiconeuróticos provaram ser tão atraentes para os psicanalistas, que
estes, por um tempo, negligenciaram os demais problemas da neurose.Se algum dos
senhores empreender exercícios desta natureza, certamente terá uma poderosa
impressão da quantidade de provas documentais. Mas também se defrontará com uma
dificuldade. O sentido de um sintoma, conforme verificamos, possui determinada
conexão com a experiência do paciente. Quanto mais individual for a forma dos
sintomas, mais motivos teremos para esperar que seremos capazes de estabelecer
esta conexão. A tarefa, então, consiste simplesmente em descobrir, com relação
a uma idéia sem sentido e uma ação despropositada, a situação passada em que a
idéia se justificou e a ação serviu a um propósito. O ato obsessivo de nossa
paciente, que corria para a mesa e tocava a campainha para chamar a empregada,
é um modelo perfeito dessa espécie de sintomas. Existem, contudo - e são muito
freqüentes - sintomas de tipo bem diferente. Devem ser descritos como sintomas
‘típicos’ de uma doença; são quase os mesmos em todos os casos, as distinções
individuais neles desaparecem, ou pelo menos diminuem, de tal forma, que é
difícil pô-los em conexão com a experiência individual dos pacientes e
relacioná-los a situações particulares que vivenciaram. Voltemo-nos, mais uma
vez, para a neurose obsessiva. O ritual de dormir de nossa segunda paciente já
tem, neste consenso, muitos aspectos típicos, embora, ao mesmo tempo, tenha
muitos traços individuais, de forma a tornar possível aquilo que denomino
interpretação ‘histórica’. Mas todos esses pacientes obsessivos têm uma
tendência a repetir, a executar seus atos ritmicamente e a mantê-los isolados
de outros atos. A maioria deles lava-se em demasia. Pacientes que sofrem de
agorafobia (topofobia ou medo de espaços), que não consideramos mais como
neurose obsessiva, mas descrevemos como ‘histeria de angústia’, freqüentemente
repetem os mesmos aspectos, em seus sintomas, com enfadonha monotonia: têm medo
de espaços fechados, de amplas praças descampadas, de estradas e ruas longas.
Sentem-se protegidos quando acompanhados de um conhecido ou seguidos por um
veículo, e assim por diante. Com um background semelhante, diferentes
pacientes, não obstante, exibem suas exigências individuais - manhas, como se
costuma dizer - que, em alguns casos, se contradizem abertamente umas às outras.
Um paciente evita apenas ruas estreitas, e um outro, somente ruas largas; um
consegue sair somente se houver poucas pessoas na rua, ao passo que um outro
apenas sai se existem muitas. Da mesma forma, a histeria, apesar da quantidade
de traços individuais, possui em exagero sintomas comuns, típicos, que parecem
opor-se a qualquer derivação histórica fácil. E não devemos esquecer que são
estes sintomas típicos, na verdade, que nos dão a orientação com que fazemos
nosso diagnóstico. Suponhamos que, num caso de histeria, tenhamos realmente
constatado um sintoma típico remontar a uma experiência ou a uma seqüência de
experiências semelhantes - um caso de vômito histérico, por exemplo, relativo a
uma série de recordações desagradáveis -; então ficamos na incerteza quando a
análise de um caso semelhante de vômitos revela uma série de experiências
obviamente verdadeiras, de natureza muito diferente. parece, pois, como se, por
motivos desconhecidos, os pacientes histéricos não pudessem deixar de ter os
vômitos, e como se as causas históricas precipitantes reveladas pela análise
fossem apenas pretextos que, no caso de se comprovarem, são explorados por essa
necessidade interna.
Assim sendo, defrontamo-nos agora com a
desanimadora descoberta de que, embora tenhamos a capacidade de fornecer uma
explicação satisfatória dos sintomas neuróticos individuais, mediante sua
conexão com as vivências, essa nossa capacidade deixa-nos na incerteza quando
chegamos aos sintomas típicos, muito mais freqüentes. Ademais disso, estou longe
de ter-lhes apontado todas as dificuldades que surgem ao intentarmos a sério
efetuar a interpretação histórica dos sintomas. E nem pretendo fazê-lo; pois,
embora seja minha intenção não lhes explicar todas as coisas segundo uma
perspectiva favorável, ou ocultá-las, não posso atirá-los na perplexidade e na
confusão justamente no início de nossos estudos em conjunto. É verdade que
apenas estamos no início de nossos esforços de compreender a significação dos
sintomas; ater-nos-emos, porém, àquilo que conseguimos e seguiremos nosso
caminho, passo a passo, até obtermos o domínio daquilo que ainda não
compreendemos. Portanto, tentarei consolá-los com o pensamento de que mal se
pode pensar que haja qualquer distinção fundamental entre um tipo de sintoma e
outro. Se os sintomas, isoladamente, são tão inequivocamente dependentes das
experiências pessoais do paciente, resta a possibilidade de os sintomas
psíquicos remontarem a uma experiência que é típica em si mesma - comum a todos
os seres humanos. Outros aspectos ocorrentes com regularidade nas neuroses
podem constituir relações gerais impostas aos pacientes pela natureza de sua
modificação patológica, como as repetições ou as dúvidas na neurose obsessiva.
Em resumo, não temos motivos para um desespero prematuro; veremos o que resta
por ser visto.Uma dificuldade semelhante se ergue diante de nós na teoria dos
sonhos. Não pude abordá-la antes, quando discorremos a respeito de sonhos. O
conteúdo manifesto dos sonhos possui a maior diversidade e variedade individual,
e mostramos detalhadamente o que é que derivamos deste conteúdo, por meio de
uma análise. Além destes, há, contudo, sonhos que igualmente merecem ser
chamados de ‘típicos’, que acontecem em todas as pessoas, da mesma forma;
sonhos de conteúdo uniforme, que oferecem as mesmas dificuldades à
interpretação. São sonhos com cair, voar, flutuar, nadar, envergonhar-se, estar
nu, e alguns outros sonhos de ansiedade - que conduzem, em pessoas diferentes,
ora a esta, ora àquela interpretação, sem que se possa elucidar sua
uniformidade e ocorrência características. Mas também nesses sonhos observamos
ser este substrato comum enriquecido por acréscimos que variam de indivíduo
para indivíduo; e é provável que, com a ampliação de nossos conhecimentos, se
torne possível, sem empecilhos, incluir também esses sonhos na compreensão da
vida onírica, que adquirimos de outros sonhos.
CONFERÊNCIA XVIII
FIXAÇÃO EM TRAUMAS - O INCONSCIENTE
SENHORAS E SENHORES:
Em minha conferência anterior, expressei o
desejo de que nosso trabalho pudesse prosseguir com base não em nossas dúvidas,
mas sim em nossas descobertas. Não expusemos ainda nada sobre duas das mais
interessantes implicações decorrentes de nossas duas amostras de análise.
Comecemos pela primeira. Ambas as pacientes
dão-nos a impressão de se terem ‘fixado’ em uma determinada parte de seu
passado, como se não conseguissem libertar-se dela, e estivessem, por essa
razão, alienadas do presente e do futuro. Assim, elas permaneceram
enclausuradas em sua doença, da mesma forma como, em épocas anteriores, as
pessoas se retiravam para dento de um mosteiro, a fim de ali suportarem a carga
de suas vidas desditosas. O que havia lançado esse destino sobre nossa primeira
paciente era o casamento que ela, na vida real, havia abandonado. Por meio de
seus sintomas, continuava a manter seu relacionamento com o marido. Pudemos
compreender seus anseios que imploravam por ele, que o desculpavam, que o
colocavam num pedestal e que lamentavam a perda dele. Embora fosse jovem e
desejável para outro homens, havia tomado todas as precauções, reais e
imaginárias (mágicas), para permanecer fiel a ele. Não se mostrava a estranhos
e negligenciava sua aparência pessoal; ademais, sempre que se sentava numa cadeira,
era incapaz de levantar-se rapidamente, recusava-se a assinar o nome e não
podia dar nenhum presente, com fundamento na suposição de que dela ninguém
devia receber nada.O mesmo efeito se produzia na vida de nossa segunda
paciente, a jovem, por meio de uma ligação erótica com seu pai iniciada nos
anos anteriores à puberdade. A conclusão que ela mesma tirou foi não poder
casar-se enquanto estivesse tão doente. Entretanto, suspeitamos que ficara
assim tão doente para não ter de casar e para permanecer com o pai.Não podemos
desprezar a questão de saber por que, de que forma e por qual motivo uma pessoa
pode chegar a uma atitude assim tão estranha perante a vida, uma atitude tão
pouco prática - supondo-se que esta atitude seja uma característica geral das
neuroses, e não uma peculiaridade especial dessas duas pacientes. E, de fato, é
um aspecto geral, de grande importância prática em toda neurose. A primeira
paciente histérica de Breuer [ver em [1], anterior], estava, de modo
semelhante, fixada no período em que cuidava de seu pai gravemente doente.
Apesar da recuperação, essa paciente, em certo aspecto, permaneceu desligada da
vida; permaneceu sadia e eficiente, porém evitou o curso normal da vida de uma
mulher. Em cada uma de nossas pacientes, a análise nos mostra que elas foram
conduzidas de volta a um determinado período de seu passado, através dos
sintomas de sua doença, ou pelas conseqüências desses sintomas. Na maior parte
dos casos, com efeito, escolheu-se, para este fim, uma fase muito precoce da vida
- um período de sua infância ou, até mesmo, por mais que isto pareça risível,
um período de sua existência como criança de peito.A mais íntima analogia com
essa conduta de nossos neuróticos apresenta-se nas doenças que se estão
produzindo com especial freqüência precisamente na época atual, por intermédio
da guerra - o que se descreve como neuroses traumáticas. Naturalmente, casos
semelhantes aparecem também antes da guerra, após colisões de trens e outros
acidentes alarmantes envolvendo riscos fatais. As neuroses traumáticas não são,
em sua essência, a mesma coisa que as neuroses espontâneas que estamos
acostumados a investigar e tratar pela análise; até agora, não conseguimos
harmonizá-las com nossos pontos de vista, e espero, em algum época, poder explicar-lhes
a razão desta limitação. No entanto, num aspecto devemos insistir em que existe
completo acordo entre elas. As neuroses traumáticas dão uma indicação precisa
de que em sua raiz se situa uma fixação no momento do acidente traumático.
Esses pacientes repetem com regularidade a situação traumática, em seus sonhos,
onde correm ataques histeriformes que admitam uma análise, verificamos que o
ataque corresponde a uma completa transportação do paciente para a situação
traumática. É como se esses pacientes não tivessem findado com a situação
traumática, como se ainda tivessem enfrentando-a como tarefa imediata ainda não
executada; e levamos muito a sério esta impressão. Mostra-nos o caminho daquilo
que podemos denominar de aspecto econômico dos processos mentais.
Realmente, o termo ‘traumático’ não tem outro sentido senão o sentido
econômico. Aplicando-o a uma experiência que, em curto período de tempo, aporta
à mente um acréscimo de estímulo excessivamente poderoso para ser manejado ou
elaborado de maneira normal, e isto só pode resultar em perturbações
permanentes da forma em que essa energia opera.Esta analogia nos compele a
descrever como traumáticas também aquelas experiências nas quais nossos
pacientes neuróticos parecem se haver fixado. Isto nos proporia uma causa única
para o início da neurose. Assim, a neurose poderia equivaler a uma doença
traumática, e apareceria em virtude da incapacidade de lidar com uma
experiência cujo tom afetivo fosse excessivamente intenso. Na verdade, foi esta
realmente a primeira fórmula pela qual (em 1893 e 1895) Breuer e eu explicamos
teoricamente nossas observações. Um caso como aquele da primeira de minhas duas
pacientes, em minha conferência anterior - a jovem mulher casada separada de
seu marido - ajusta-se muito bem a esta opinião. Ela não tinha superado o
fracasso de seu casamento e permanecia ligada ao trauma. Mas nosso segundo caso
- o da jovem com uma fixação em seu pai - já nos mostra que a fórmula não
proporciona compreensão suficiente. Por um lado, uma menininha estar de tal
forma apaixonada por seu pai é algo tão comum e tão freqüentemente superado,
que o termo ‘traumático’, aplicado a este fato, perderia todo o seu
significado; e, por outro lado, a história da paciente demonstrou-nos que, numa
primeira instância, sua fixação erótica parecia haver-se dissipado sem causar
qualquer dano, e foi somente alguns anos mais tarde que reapareceu nos sintomas
da neurose obsessiva. Aqui, pois, antevemos complicações, uma maior quantidade
de causas para o começo da doença; também podemos, contudo, suspeitar que não
há por que abandonar a linha de abordagem traumática como se fosse errônea;
deve ser possível fazê-la adequar-se a isto e incluí-la em algum outro lugar.
Aqui, pois, mais uma vez devemos interromper o
trajeto que iniciamos. Por agora, não conduz a nada mais, e teremos de nos
instruir com outras coisas, antes de podermos encontrar sua correta
continuação. Quanto ao tema da fixação numa determinada fase do passado,
podemos, porém, acrescentar que tal conduta é muito mais difundida do que a
neurose. Toda neurose inclui uma fixação desse tipo, mas nem toda fixação
conduz a uma neurose, coincide com uma neurose ou surge devido a uma neurose.
Um perfeito modelo de fixação afetiva em algo que é passado, é o que se nos apresenta
no luto, que realmente envolve a mais completa alienação do presente e do
futuro. Mesmo o julgamento de um leigo, contudo, distinguirá com nitidez entre
luto e neurose. Existem, por outro lado, neuroses que podem ser descritas como
forma patológica de luto.Também pode acontecer que uma pessoa seja levada a uma
parada tão completa, devido a um acontecimento traumático que estremece os
alicerces de sua vida, a ponto de abandonar todo o interesse pelo presente e
pelo futuro e manter-se permanentemente absorvida na concentração mental no
passado. Uma pessoa assim desafortunada, porém, não se torna, por isso,
necessariamente neurótica. Não atribuiremos, portanto, demasiado valor a este
único aspecto ao caracterizar a neurose, embora ele esteja regularmente presente
e possa ser geralmente importante.Voltemo-nos agora para a segunda das
descobertas que resultaram de nossas análises; e neste caso não precisamos
temer a necessidade de fazer uma subseqüente limitação em nossos pontos de
vista. Descrevi-lhes como nossa primeira paciente executava um ato obsessivo
carente de sentido e como referiu uma recordação íntima de sua vida passada que
tinha alguma conexão com ela: e como, a seguir, examinei a conexão entre esse
ato e a lembrança, e descobri a intenção do ato obsessivo a partir de sua
relação com a lembrança. Existe, porém, um fator que omiti completamente,
embora mereça nossa mais completa atenção. Por mais que a paciente repetisse
seu ato obsessivo, não sabia que este derivava da experiência por que havia passado.
A conexão entre o ato e a experiência estava oculta para ela; apenas podia,
muito fielmente, responder que não conhecia aquilo que a fazia executar seu
ato. Então, subitamente, um dia, sob a influência do tratamento, conseguiu
descobrir a significação e a referiu a mim. No entanto, ela ainda nada sabia da
intenção com que executava o ato obsessivo - a intenção de retificar uma parte
desagradável do passado e colocar seu adorado esposo em melhor situação. Levou
um tempo consideravelmente longo e foi necessário muito trabalho, antes que
compreendesse e admitisse para mim que apenas tal motivo poderia ter sido a
força determinada de seu ato obsessivo.
O elo entre a cena após sua infeliz noite de
núpcias e o motivo afetuoso da paciente constituíram, tomados em conjunto, o
que temos chamado de ‘sentido’ do ato obsessivo. Mas, enquanto executava o ato
obsessivo, este sentido lhe tinha sido desconhecido em ambas as direções -
tanto o por quê como o para quê. [ver em [1] e [2], adiante.] Os processos
mentais, portanto, tinham estado em operação dentro dela e o ato obsessivo era
o efeito deles; ela se apercebia deste efeito num estado mental normal, porém
nenhum dos predeterminantes deste efeito vieram ao conhecimento de sua
consciência. Conduzia-se exatamente da mesma forma que uma pessoa hipnotizada
que houvesse recebido de Bernheim a ordem de abrir um guarda-chuva, na
enfermaria do hospital, cinco minutos após haver despertado. O homem executava
esta ordem quando estava acordado, mas não podia referir o motivo de sua ação.
É uma situação semelhante que temos diante de nossos olhos quando falamos na
existência de processos mentais inconscientes. Podemos desafiar a quem
quer que seja, no mundo, que faça uma descrição científica mais correta desta
situação e, se o fizer, de bom grado renunciaremos à nossa hipótese de
processos mentais inconscientes. Enquanto tal não acontecer, porém, nos
aferraremos à hipótese; e se alguém levantar a objeção de que aqui o
inconsciente não constitui nada de real, num sentido científico, que é um
artifício, une façon de parler, podemos apenas sacudir os ombros
resignadamente, e não levar em conta o que diz, por ininteligível. Algo não
real, que produz efeitos de uma realidade tão tangível como um ato obsessivo!E
encontramos na segunda paciente aquilo que, em essência, é a mesma coisa. Ela
estabelecera a regra de que o travesseiro não devia tocar o encosto da
cabeceira da cama, e tinha de obedecer a essa regra, ainda que não soubesse de
onde esta se originava, o que significava, ou a que motivos devia seu poder. A
paciente considerar a regra como algo indiferente, ou lutar contra a mesma, ou
irritar-se com ela, ou decidir transgredi-la - nada disso determinava qualquer
modificação na sua execução. Tinha de ser obedecida, e ela se perguntava em
vão, por quê. Devemos reconhecer, entretanto, que esses sintomas de neurose
obsessiva, essas idéias e impulsos que emergem não se sabe de onde, que provam
ser resistentes a toda influência de uma mente sob outros aspectos normal, que
dão ao paciente a impressão de se tratar de convidados todo-poderosos de um
outro mundo, seres imortais imiscuindo-se no turbilhão da vida mortal - esses
sintomas oferecem a mais clara indicação de que existe uma região da mente, por
completo isolada do resto. Conduzem, por uma via que não se pode perder, a uma
convicção da existência do inconsciente na mente; e é precisamente por esta
razão que a psiquiatria clínica, que está familiarizada apenas com uma
psicologia da consciência, não consegue abordar esses sintomas de nenhuma outra
forma que não seja qualificando-os como sinais de um tipo especial de
degeneração. Idéias obsessivas e impulsos obsessivos naturalmente não são, em
si mesmos, inconscientes, algo mais do que a realização de atos obsessivos
escapa à percepção consciente. Não se teriam tornado sintomas, se não tivessem
forçado o caminho até à consciência. Mas seus motivos predeterminantes, que
inferimos por meio da análise, as conexões em que os inserimos, pela
interpretação, são inconscientes, pelo menos enquanto não os tivermos tornado
conscientes para o paciente, através do trabalho da análise.
Ora, se os senhores considerarem mais
atentamente que a situação que estabelecemos em nossos dois casos se confirma
em relação a todos os sintomas de toda doença neurótica - que sempre e em toda
parte o sentido dos sintomas é desconhecido para o paciente, e que a análise
regularmente demonstra que esses sintomas constituem derivados de processos
inconscientes, contudo podendo, sujeitos a variadas circunstâncias favoráveis,
fazer-se conscientes - se considerarem isto, os senhores compreenderão que, na
psicanálise, não podemos prescindir daquilo que é, ao mesmo tempo, inconsciente
e mental, e que estamos habituados a operar com esse algo, como se se tratasse
de alguma coisa perceptível pelos sentidos. Os senhores, porém, também
entenderão, talvez, quão incapazes de formar um julgamento desta questão são
todas essas outras pessoas familiarizadas apenas com o inconsciente enquanto
conceito, que jamais efetuaram uma análise e jamais interpretaram sonhos, ou
encontraram sentido e intenção nos sintomas neuróticos. Vale anunciar, mais uma
vez, para nossos fins: a possibilidade de conferir um sentido aos sintomas
neuróticos, mediante interpretação analítica, é uma prova inarredável da
existência - ou, se preferem, da necessidade de manter a hipótese … de
processos mentais inconscientes.
Isto não é tudo, porém. Graças a uma segunda
descoberta de Breuer, que a mim parece mais significativa ainda do que a outra
[ver em [1]], a que ele empreendeu sozinho, aprendemos ainda mais acerca da
conexão entre os sintomas neuróticos e o inconsciente. Não apenas o sentido dos
sintomas é, com regularidade, inconsciente, mas também existe uma relação
inseparável entre este fato de os sintomas serem inconscientes e a
possibilidade de eles existirem. Logo os senhores me compreenderão. Estou de
acordo com Breuer ao afirmar que sempre ao encontrarmos um sintoma, poderemos
concluir existirem determinados processos mentais definidos, no paciente, os
quais contêm o sentido do sintoma. Mas, também é necessário que este sentido
seja inconsciente, para que o sintoma possa surgir. Jamais se constroem
sintomas a partir de processos conscientes; tão logo os processos inconscientes
pertinentes se tenham tornado conscientes, o sintoma deve desaparecer. Aqui os
senhores prontamente percebem um meio de se chegar à terapia, uma forma de
fazer os sintomas desaparecerem. E, dessa maneira, Breuer realmente recuperou
sua paciente histérica - isto é, libertou-a de seus sintomas; encontrou uma
técnica de trazer à consciência os processos mentais inconscientes que
continham o sentido dos sintomas, e os sintomas desapareceram.
Essa descoberta de Breuer não foi resultado de
especulação, mas sim uma feliz observação que se tornou possível pela
cooperação da paciente. E nem devem os senhores atormentar-se com tentativas de
compreender essa descoberta atribuindo-a a algo anteriormente conhecido; devem
reconhecer nela um fato fundamental novo, com cujo auxílio muita coisa se
tornará explicável. Permitam-me, portanto, repetir-lhes a mesma coisa, de outro
modo.A construção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa que não
aconteceu. Determinados processos mentais normalmente deveriam ter evoluído até
um ponto em que a consciência recebesse informações deles. Isto, porém, não se
realizou, e, em seu lugar - a partir dos processos interrompidos, que de alguma
forma foram perturbados e obrigados a permanecer inconscientes - o sintoma
emergiu. Assim, passou-se algo semelhante a uma troca; se isso puder ser
invertido, o tratamento dos sintomas neuróticos terá atingido seus objetivos.A
descoberta de Breuer ainda é o alicerce da terapia psicanalítica. A tese,
segundo a qual os sintomas desaparecem quando se fazem conscientes seus motivos
predeterminantes inconscientes, tem sido confirmada por todas as pesquisas
subseqüentes, embora nos defrontemos com as mais estranhas e inesperadas
complicações ao tentarmos pô-la em prática. Nossa terapia age transformando
aquilo que é inconsciente em consciente, e age apenas na medida em que tem
condições de efetuar essa transformação.Devo fazer agora, rapidamente, uma
breve digressão, a fim de evitar o risco de os senhores imaginarem que este
trabalho terapêutico seja realizado com muita facilidade. Daquilo que lhes
disse até aqui, uma neurose poderia resultar de uma espécie de ignorância - um
não-saber acerca de acontecimentos mentais de que se deveria saber. Isto seria
uma aproximação mais efetiva a algumas conhecidas doutrinas socráticas, segundo
as quais até mesmo os vícios se baseiam na ignorância. Ora, via de regra seria
muito fácil, para um médico experiente em análise, compreender que impulsos
mentais tivessem permanecido inconscientes em determinado paciente. Então não
lhe seria muito difícil, também, recuperar o paciente, comunicado seu
conhecimento a este e assim remediando a ignorância de seu paciente. Pelo menos
parte do sentido inconsciente do sintoma poderia ser abordada desta maneira,
embora seja verdade que o médico não pode adivinhar muito a respeito da outra
parte - a conexão entre os sintomas e as experiências do paciente - de vez que
o médico desconhece essas experiências e deve esperar até que o paciente as
recorde e narre. Mesmo para isso, contudo, pode-se, em alguns casos, encontrar
um sucedâneo. Pode-se indagar acerca dessas experiências junto aos parentes do
paciente, e estes amiúdes conseguirão reconhecer qual delas teve um efeito
traumático, podendo até mesmo, vez e outra, referir experiências de que o
próprio paciente nada conhece, porque ocorreram em uma época muito do início de
sua vida. Combinando, então, estes dois métodos, deveríamos ganhar a
perspectiva de aliviar o paciente de sua ignorância patogênica, com pouco
dispêndio de tempo e de trabalho.Oxalá as coisas se passassem desta maneira!
Chegaríamos a descobertas, com relação a este tema, para as quais, de início,
estávamos despreparados. Saber nem sempre é a mesma coisa que saber: existem
diferentes formas de saber, que estão longe de serem psicologicamente
equivalentes. ‘Il y a fagots et fagots’, como disse Molière. O conhecimento do
médico não é o mesmo que o do paciente, e não pode causar os mesmos efeitos. Se
o médico transferir seu conhecimento para o paciente, na forma de informação,
não se produz nenhum resultado. Não, seria incorreto dizer isso. Não resulta em
remoção do sintoma, mas tem um outro resultado - o de pôr em movimento a
análise, do que um dos primeiros sinais, freqüentemente, são as expressões de
rechaço. O paciente sabe, depois disso aquilo que antes não sabia - o sentido
de seus sintomas; porém, sabe tanto quanto sabia. Com isso, aprendemos que
existe mais de uma espécie de ignorância. Necessitaremos ter uma compreensão
mais profunda da psicologia, para que esta nos mostre em que consistem essas
diferenças. Malgrado isso, continua, porém, verdadeira a nossa tese segundo a
qual os sintomas desaparecem quando seu sentido se torna conhecido. Tudo quanto
nos resta acrescentar é que o conhecimento deve basear-se numa modificação
interna no paciente, e esta só pode efetuar-se através de uma parcela de
trabalho psicológico orientado para um objetivo determinado. Aqui deparamos com
problemas que, presentemente, serão agrupados na dinâmica da construção
dos sintomas.Agora devo perguntar; senhores, se isto que estou dizendo não é
demasiado obscuro e complicado. Não estaria eu confundindo-os ao retomar, com
tanta freqüência, coisas que já disse ou fazendo ressalvas às mesmas - ao
iniciar seqüências de idéias e depois abandoná-las? Lamentaria se isto
acontecesse. Porém, desagrada-me muito simplificar as coisas às custas da
veridicidade. Não tenho o que objetar contra o fato de os senhores receberem
todo o impacto da multiplicidade e complexidade de nosso tema; e também penso
que não lhes causo prejuízo se em cada ponto lhes transmito mais do que os
senhores podem utilizar. Afinal, estou consciente de que todo ouvinte ou
leitor, em sua mente, ordena, resume e simplifica tudo o que lhe é apresentado,
e de tudo isto seleciona o que gostaria de reter. Até certo ponto, sem dúvida,
procede o fato de que, quanto mais se tem à disposição, mais pode ser
usufruído. Permitam-se esperar que, apesar de todos os aspectos secundários, os
senhores tenham apreendido nitidamente a parte essencial daquilo que lhes
comuniquei - a respeito do sentido dos sintomas, a respeito do inconsciente e a
respeito da relação entre ambos. Sem dúvida, também terão percebido que nossos
esforços subseqüentes nos conduzirão em duas direções: primeiro, nos levarão a
descobrir a maneira pela qual as pessoas adoecem e como podem vir a adotar a
atitude neurótica em relação à vida - o que é um problema clínico; e, em
segundo lugar, far-nos-ão entender como os sintomas patológicos se desenvolvem
a partir das causas da neurose - o que constitui um problema de dinâmica mental.
Ademais disso, deve haver algures um ponto em que os dois problemas convergem.
Por hoje, não prosseguirei mais nesse tópico.
No entanto, como ainda temos algum tempo disponível, gostaria de chamar sua
atenção para um outra característica de nossas duas análises, que só será
possível apreciar novamente, de modo completo, mais adiante - para as lacunas
nas recordações do paciente, suas amnésias. Conforme já ouviram falar [ver em
[1]], a tarefa do tratamento psicanalítico pode ser expressa nesta fórmula: sua
tarefa consiste em tornar consciente tudo o que é patogenicamente inconsciente.
Os senhores talvez se surpreenderão ao constatar, então, que esta fórmula pode
ser substituída por uma outra: sua tarefa consiste em preencher todas as
lacunas da memória do paciente, em remover as amnésias [ver em [1]]. O que
corresponderia à mesma coisa. Com isso queremos dizer que as amnésias dos
pacientes neuróticos possuem importante conexão com a origem de seus sintomas.
No entanto, se os senhores considerarem o caso de nossa primeira análise, não
encontrarão justificativa para esse conceito de amnésia. A paciente não
havia esquecido a cena da qual se derivava seu ato obsessivo; pelo contrário,
tinha nítida recordação da mesma e nenhuma outra coisa esquecida desempenhou
qualquer papel na origem do sintoma. A situação no caso de nossa segunda
paciente (a jovem com o ritual obsessivo), embora menos clara, era, em seu
conjunto, análoga. Não se havia realmente esquecido de sua conduta de anos
anteriores de sua vida - o fato de haver insistido em que a porta entre o
quarto de seus pais e seu quarto fosse mantida aberta, e de haver expulsado sua
mãe do lugar que ocupava na cama dos pais; recordava-se disto muito bem, embora
com hesitação e contra a vontade. A única coisa que podemos considerar
surpreendente é que a primeira paciente, ao realizar seu ato obsessivo em
inúmeras ocasiões, nem uma vez sequer tenha percebido sua semelhança com
a experiência da noite de núpcias, e que a lembrança respectiva não lhe
ocorresse quando se lhe faziam perguntas diretas no sentido de encontrar os
motivos de seu ato obsessivo. E o mesmo se aplica à adolescente cujo ritual e
suas causas estavam em conexão principalmente com uma situação que se repetia,
de forma idêntica, todas as noites. Em ambos estes casos, não havia amnésia
verdadeira, não havia perda de memória; mas rompera-se uma conexão que devia
ter acarretado a reprodução ou a reemergência da lembrança.
Para a neurose obsessiva, basta uma perturbação
da memória deste tipo; na histeria, porém, o caos é diferente. Via de regra,
esta neurose é marcada por amnésia em escala realmente grande. Ao analisar cada
sintoma histérico isoladamente, descobre-se, geralmente, toda uma seqüência de
impressão de eventos que, quando tornam a emergir, são descritos explicitamente
pelo paciente como tendo sido esquecidos até então. Por outro lado, essa
seqüência remonta aos primeiros anos de vida, de forma que a amnésia histérica
pode ser reconhecida como continuação imediata da amnésia infantil que, para nós,
pessoas normais, ocultou os começos de nossa vida mental. [ver em [1] e seg.,
acima.] Ao seu lado, constatamos, com assombro, que até mesmo as mais recentes
experiências do paciente podem estar sujeitas a esquecimento, e que as
circunstâncias que precipitaram a irrupção da doença ou levaram à sua
intensificação, são especialmente invadidas, se não totalmente apagadas, pela
amnésia. Acontece, com regularidade, que detalhes importantes desaparecem do
quadro total de uma recordação recente deste tipo, ou foram substituídos por
falsificações da memória. Com efeito, sucede, com regularidade quase igual, que
determinadas lembranças de vivências recentes apenas emergem um pouco antes do
final de uma análise - lembranças que haviam sido retidas até esse momento tardio,
e deixado lacunas perceptíveis na continuidade do caso.
Essas limitações da capacidade da memória,
conforme já disse, são características da histeria, na qual, de fato,
determinados estados também surgem como sintomas - os ataques histéricos -, que
não deixam atrás de si qualquer vestígio na memória. Se as coisas se passam
diferentemente na neurose obsessiva, os senhores podem concluir que nessas
amnésias estamos lidando com uma característica psicológica da modificação que
ocorre na histeria, e não é um aspecto universal das neuroses em geral. A
importância desta distinção reduz-se com a seguinte consideração. Temos
incluído duas coisas como ‘sentido’ de um sintoma: o seu ‘de onde’ e seu ‘para
quê’ ou sua ‘finalidade’ [pág. 25] - ou seja, as impressões e experiências das
quais surgiu e as intenções a que serve. Assim, o ‘de onde’ de um sintoma se
reduz a impressões que vieram do exterior, que uma vez forma necessariamente
conscientes e podem, a partir daí, ter-se tornado inconscientes através do
esquecimento. O ‘para quê’ de um sintoma, seu propósito, no entanto, é
invariavelmente um processo endopsíquico, que possivelmente teria sido
consciente, no início, mas pode igualmente não ter sido jamais consciente e ter
permanecido no inconsciente desde o início. Por isso, não é de grande
importância se a amnésia influenciou também o ‘de onde’ - as experiências em
que o sintoma se baseia - como acontece na histeria; é no ‘para quê’, no
propósito do sintoma que pode ter sido inconsciente desde o início, que se baseia
sua dependência do inconsciente - e não menos firmemente na neurose obsessiva
do que na histeria.
Ao enfatizar desta maneira o inconsciente na
vida mental, contudo, conjuramos a maior parte dos maus espíritos da crítica
contrário à psicanálise. Não se surpreendam com isso, e não suponham que a
resistência contra nós se baseia tão-somente na compreensível dificuldade que
constitui o inconsciente ou na relativa inacessibilidade das experiências que
proporcionam provas do mesmo. A origem dessa resistência, segundo penso,
situa-se em algo mais profundo. No transcorrer dos séculos, o ingênuo
amor-próprio dos homens teve de submeter-se a dois grandes golpes desferidos
pela ciência. O primeiro foi quando souberam que a nossa Terra não era o centro
do universo, mas o diminuto fragmento de um sistema cósmico de uma vastidão que
mal se pode imaginar. Isto estabelece conexão, em nossas mentes, com o nome de
Copérnico, embora algo semelhante já tivesse sido afirmado pela ciência de
Alexandria. O segundo golpe foi dado quando a investigação biológica destruiu o
lugar supostamente privilegiado do homem na criação, e provou sua descendência
do reino animal e sua inextirpável natureza animal. Esta nova avaliação foi
realizada em nossos dias, por Darwin, Wallace e seus predecessores, embora não
sem a mais violenta oposição contemporânea. Mas a megalomania humana terá
sofrido seu terceiro golpe, o mais violento, a partir da pesquisa psicológica
da época atual, que procura provar o ego que ele não é senhor nem mesmo em sua
própria casa, devendo, porém, contentar-se com escassas informações acerca do
que acontece inconscientemente em sua mente. Os psicanalistas não foram os
primeiros e nem os únicos que fizeram essa invocação à introspecção; todavia,
parece ser nosso destino conferir-lhe expressão mais vigorosa e apoiá-la com
material empírico que é encontrado em todas as pessoas. Em conseqüência, surge
a revolta geral contra nossa ciência, o desrespeito a todas as considerações de
civilidade acadêmica e a oposição se desvencilha de todas as barreiras da
lógica imparcial. Em ademais de tudo isso, perturbamos a paz deste mundo também
de uma outra forma, conforme em breve os senhores ouvirão.
CONFERÊNCIA XIX
RESISTÊNCIA E REPRESSÃO
SENHORAS E SENHORES:
Antes de empreendemos qualquer outro avanço em
nossa compreensão das neuroses, necessitamos de algumas observações novas. Aqui
estão duas, ambas muito notáveis; quando de sua descoberta, causaram muito
surpresa. Nossas conferências realizadas no ano passado certamente os prepararam
para ambas.Em primeiro lugar, então, quando assumimos a tarefa de recuperar um
paciente para a saúde, aliviá-lo dos sintomas de sua doença, ele nos enfrenta
com uma resistência intensa e persistente, que se prolonga por toda a duração
do tratamento. Este é um fato tão estranho que não podemos esperar que as
pessoas acreditem muito nele. A este respeito é melhor nada dizer aos parentes
dos pacientes, pois eles, invariavelmente, consideram-no desculpa de nossa
parte para o prolongamento ou fracasso de nosso tratamento. O paciente, também,
apresenta todos os fenômenos desta resistência, sem reconhecê-la como tal, e,
se pudermos induzi-lo a adotar nossa opinião a respeito dela e a contar com a
existência da mesma, isto já se pode considerar como grande êxito. Pensem
apenas nisto: O paciente, que tanto sofre com os seus sintomas e tanto
sofrimento causa àqueles que convivem com ele, que está disposto a enfrentar
tantos sacrifícios em tempo, dinheiro, esforço e autodisciplina, a fim de se
libertar desses sintomas - temos de acreditar que esse mesmo paciente empreende
uma luta no interesse da sua doença, contra a pessoa que o está ajudando. Como
deve parecer improvável esta afirmação!
E, no entanto, é verdadeira; e quando sua
improbabilidade nos é apontada, podemos somente responder que essa situação
também tem analogias. Uma pessoa que vai ao dentista, por causa de uma dor de
dente insuportável, assim mesmo procurará afastar o dentista quando este se
aproxima do dente doente, com um boticão.
A resistência do paciente apresenta-se sob
muitíssimos tipos, extremamente sutis e freqüentemente difíceis de detectar; e
mostra mutações cambiantes nas formas em que se manifesta. O médico deve ser
incrédulo e manter-se em guarda contra ela.
No tratamento psicanalítico, fazemos uso da
mesma técnica que os senhores já conhecem da interpretação de sonhos.
Instruímos o paciente para se colocar em um estado de auto-observação
tranqüila, irrefletida, e nos referir quaisquer percepções internas que venha a
ter - sentimentos, pensamentos, lembranças - na ordem em que lhe ocorrem. Ao
mesmo tempo, advertimo-lo expressamente a não deixar que algum motivo leve-o a
fazer uma seleção entre essas associações ou a excluir alguma dentre elas, seja
porque é muito desagradável ou muito indiscreta para ser dita, ou
porque é muito banal ou irrelevante, ou que é absurda e
não necessita ser dita. Sempre insistimos com o paciente para seguir apenas a
superfície de sua consciência e pôr de lado toda crítica sobre aquilo que
encontrar, qualquer que seja a forma que esta crítica possa assumir; e
asseguramos-lhe que o sucesso do tratamento, e sobretudo sua duração, depende
da conscienciosidade com que ele obedece a esta regra técnica fundamental da
análise. Já sabemos, da técnica da interpretação de sonhos, que aquelas
associações que originam as dúvidas e objeções, que acabei de enumerar, são
justamente as que invariavelmente contêm o material que leva à descoberta do
inconsciente. [Cf. Conferência VII, ver em [1].]A primeira coisa que
conseguimos ao estabelecer a regra técnica fundamental é que ela se transforma
no alvo dos ataques da resistência. O paciente procura, por todos os meios,
livrar-se das exigências desta regra. Num momento, declara que não lhe ocorre
nenhuma idéia; no momento seguinte, que tantos pensamentos se acumulam dentro
de si, que não pode apreender nenhum. Ora constatamos com desgostosa surpresa
que o paciente cedeu primeiro a uma e, depois a mais outra objeção crítica:
no-lo revela pelas longas pausas que introduz em seus comentários. E logo
depois, admite que existe algo que de fato não pode dizer - ele teria vergonha
de dizer; e permite que este motivo prevaleça sobre sua promessa. Ou diz que
lhe ocorreu algo, mas que isto se refere a outra pessoa, e não a ele mesmo, e,
em vista disso, não há por que referi-lo. Ou ainda, aquilo que agora lhe acudiu
à mente é realmente sem importância, excessivamente tolo e sem sentido: como é
que eu poderia imaginar que ele enveredasse por pensamentos desse tipo. E assim
continua, com inumeráveis variações e apenas se pode replicar que ‘dizer tudo’
realmente significa ‘dizer tudo’.Dificilmente haver-se-á de encontrar um único
paciente que não faça uma tentativa de reservar uma ou outra região para si
próprio, de modo a evitar que o tratamento tenha acesso a ela. Um homem, que só
posso descrever como possuidor da mais elevada inteligência, manteve um
silêncio deste tipo, durante semanas, por ocasião do término de um caso amoroso
íntimo, e, solicitado a dar as razões de haver rompido a regra estabelecida, defendeu-se
com o argumento de que pensava que essa história especificamente constituía
assunto particular seu. O tratamento psicanalítico por certo não reconhece tal
direito de asilo. Suponham que se fizesse, numa cidade como Viena, a
experiência de considerar uma praça, como a do Hoher Markt, ou uma igreja, como
a de Santo Estêvão, lugares em que nenhuma pessoa pudesse ser presa, e suponham
que então precisássemos apanhar um determinado criminoso. Poderíamos ter
bastante certeza de encontrá-lo num desses refúgios. Certa vez, decidi permitir
a um homem, de cuja eficiência muitas coisas dependiam no mundo externo, o
direito de fazer uma exceção dessa espécie porque ele estava obrigado, por
dever de seu ofício, a não fazer comunicação acerca de determinadas coisas a
outras pessoas. É verdade que ele ficou satisfeito com o resultado; mas eu não.
Resolvi não repetir uma tentativa sob tais condições.
Os neuróticos obsessivos entendem perfeitamente
de como tornar a regra técnica quase inútil, aplicando nela sua superconscienciosidade
e suas dúvidas. Pacientes que sofrem de histeria de angústia por vezes
conseguem seguir a regra ad absurdum, referindo apenas associações tão
distantes daquilo que andamos pesquisando, que não contribuem em nada para a
análise. Não é, porém, minha intenção iniciá-los no manejo dessas dificuldades
técnicas. É suficiente dizer-lhes que, no fim com resolução e perseverança,
conseguimos extorquir à resistência certo grau de obediência à regra técnica
fundamental - que, com isso, passa para outra esfera.Por vezes, surge como
resistência intelectual, luta com argumentos e explora todas as
dificuldades e improbabilidades que um pensar normal, porém não instruído,
encontra nas teorias da análise. Por vezes, somos obrigados a ouvir de uma só
pessoa todas as críticas e objeções que assaltam nossos ouvidos, em coro, na
bibliografia científica referente ao assunto. E, por essa razão, nenhum desses
clamores que nos atingem de fora, nos soam desconhecidos. É uma regular
tempestade em copo d’água. No entanto, o paciente está desejoso de argumentar;
anseia fazer como que passemos a instruí-lo, ministrar-lhe ensinamentos,
contradizê-lo, iniciá-lo na literatura, de modo que possa adquirir mais
conhecimentos. Está muito disposto a tornar-se um adepto da psicanálise - com a
condição de que a análise poupe a sua pessoa. Mas reconhecemos esta curiosidade
como sendo resistência, como manobra tendente a nos desviar de nossas tarefas
específicas, e repelimo-la. No caso de um paciente obsessivo, haveremos de
esperar táticas de resistências especiais. Freqüentemente, permitirá que a
análise prossiga sem empecilhos em seu caminho, de modo que ela possa
esclarecer, cada vez melhor, o enigma de sua doença. Começamos a nos admirar,
por fim, de este aclaramento não se acompanhar de nenhum efeito prático,
nenhuma diminuição dos sintomas. Então conseguimos perceber que a resistência
se refugiou dentro da dúvida, que é própria da neurose obsessiva, e desta
posição ela consegue resistir-nos. É como se o paciente dissesse: ‘Sim, está
tudo muito bem, muito interessante, e terei muito satisfação em prosseguir
ainda mais. Eu mudaria um bocado minha doença, se tudo isto fosse verdade. Mas
não acredito, nem um pouco, que seja verdade; e, na medida em que não acredito,
não faz qualquer diferença para minha doença.’ As coisas podem continuar assim
por longo tempo, até que finalmente a pessoa enfrenta diretamente essa atitude
de reserva, e então se fere a batalha decisiva.As resistências intelectuais não
são as piores: sempre é possível superá-las. O paciente também sabe, contudo,
como erguer resistência sem sair de esquema de referência da análise, e a
superação desta situação está entre os problemas técnicos mais difíceis. Em vez
de recordar, repete atitudes e impulsos emocionais o início de sua vida,
que podem ser utilizados como resistência contra o médico e tratamento, através
do que se conhece como ‘transferência’.Se o paciente é um homem, geralmente
extrai este material de sua relação com seu pai, em cujo lugar coloca o médico,
e dessa forma constrói resistências que surgem a partir de seu esforço de se
tornar independente, em si próprio e em sua opiniões, a partir de sua ambição,
cujo objetivo primeiro consistia em fazer as coisas tão bem como seu pai, ou
superá-lo; ou a partir de sua aversão a se endividar, pela segunda vez na vida,
com uma carga de gratidão. Assim, às vezes, tem-se a impressão de que o
paciente substitui inteiramente sua melhor intenção de pôr um fim à sua doença,
pela intenção alternativa de negar que o médico tenha razão, de fazer com que
este reconheça sua impotência e de triunfar sobre ele. As mulheres têm um
talento de mestre para explorar, na relação com o médico, uma transferência
afetuosa,com nuances eróticas, destinada à resistência. Se esta ligação atinge determinado
nível, desaparece todo o seu interesse pela situação imediata do tratamento e
todas as obrigações que assumiram no início; seu ciúme, que nunca está ausente,
e sua irritação ante a inevitável rejeição, embora expressos respeitosamente,
não podem deixar de ter como efeito um dano na harmonia entre paciente e
médico, e assim inativam uma das mais poderosas forças motrizes da
análise.Resistências deste tipo não devem ser condenadas apressadamente.
Incluem tanto material importante do passado do paciente e trazem-no à
lembrança de forma tão convincente, que elas se tornam os melhores suportes da
análise, se uma técnica habilidosa soube dar-lhes o rumo apropriado. Não
obstante, deve-se observar que esse material está sempre a serviço da
resistência, em princípio, e revela uma façade que é hostil ao
tratamento. Também se pode dizer que aquilo que se mobiliza para lutar contra
as modificações que nos esforçamos por efetivar, são traços de caráter,
atitudes do ego. Com referências a este aspecto, descobrimos que esses traços
de caráter foram formados em conexão com as causas da neurose e como reação
contra as exigências desta; e encontramos traços que normalmente não conseguem
emergir ou não podem emergir no mesmo grau, e que se poderia descrever como
latentes. Ademais, não devem os senhores ficar com a impressão de que
consideramos o aparecimento dessas resistências um risco imprevisto para o
empreendimento analítico. Não; estamos conscientes de que essas resistências
estão fadadas a vir à luz; de fato, ficamos insatisfeitos quando não
conseguimos fazê-las surgir de maneira suficientemente clara e quando somos
incapazes de demostrá-las ao paciente. Na verdade, chegamos a compreender,
finalmente, que a superação dessas resistências constitui a função essencial da
análise e é a única parte do nosso trabalho que nos dá a segurança de havermos
conseguido algo com o paciente.Se os senhores refletirem também que o paciente
transforma todos os eventos casuais, ocorrentes durante a análise, em
interferências no tratamento; que ele utiliza, como motivos para afrouxar seus
esforços, todo acontecimento perturbador externo à análise, todo comentário
feito por uma pessoa ou autoridade, em seu ambiente, hostil à psicanálise, toda
doença orgânica eventual ou tudo aquilo que complica sua neurose, e até mesmo,
na verdade, toda melhora em seu estado - se considerarem tudo isto, terão
obtido uma imagem aproximada, embora ainda incompleta, das formas e dos métodos
da resistência; e a luta contra esta resistência faz parte de toda análise.Abordei
este ponto de forma assim tão detalhada, porque agora devo informar-lhes que
esta experiência nossa com a resistência dos neuróticos à remoção de seus
sintomas tornou-se a base de nosso ponto de vista dinâmico das neuroses.
Inicialmente, Breuer e eu empreendíamos a psicoterapia por meio da hipnose; a
primeira paciente de Breuer foi totalmente tratada sob
influência hipnótica, e, no início, eu o segui
neste procedimento. Admito que, naquela época, o trabalho avançava mais fácil e
satisfatoriamente, e também em muito menos tempo. Os resultados eram, porém,
incertos e não duradouros, e por esse razão finalmente abandonei a hipnose. E
então compreendi que não se tornaria possível a compreensão da dinâmica destas
doenças enquanto fosse empregada a hipnose. Este estado era justamente capaz de
subtrair à percepção do médico a existência da resistência. Ele fazia recuar a
resistência, tornando uma determinada área livre para o trabalho analítico e
represava-a nas fronteiras desta área sob uma tal forma, que se tornava
impenetrável, do mesmo modo como a dúvida age na neurose obsessiva. Por esse
motivo, tenho podido declarar que a psicanálise propriamente dita começou
quando dispensei o auxílio da hipnose.Se, entretanto, tornou-se tão importante
reconhecer a resistência, faríamos bem em deixar lugar para uma cautelosa
dúvida quanto a saber se não estivemos despreocupados demais em nossas
suposições sobre a resistência. Com efeito, talvez haja casos de neurose em que
as associações falhem por outros motivos, talvez os argumentos contra nossas
hipóteses realmente mereçam que seu conteúdo seja examinado, e estejamos
fazendo uma injustiça aos pacientes ao catalogar, tão convenientemente, suas
críticas intelectuais como sendo resistência. No entanto, senhores, não
chegamos a esta conclusão levianamente. Temos tido oportunidade de observar
todos esses pacientes críticos no momento da emergência de uma resistência e
após o seu desaparecimento. Pois a resistência constantemente está modificando
sua intensidade durante o transcorrer do tratamento, cresce sempre quando nos
aproximamos de um novo assunto, alcança sua intensidade máxima quando estamos
no clímax da abordagem desse assunto, e se dissipa quando o assunto é posto de
lado. E não temos por que encontrar, a menos que tenhamos sido culpados de
alguma incorreção especial em nossa técnica, a carga total de resistência de
que um paciente é capaz. Portanto, temos tido a possibilidade de nos convencer
de que, em ocasiões incontáveis no decurso de sua análise, a mesma pessoa
abandonará sua atitude crítica e depois a reassumirá. Se estamos na iminência
de trazer-lhe à consciência uma parcela de material inconsciente especialmente
desagradável, a pessoa se torna extremamente crítica; pode ter empreendido e
aceito muitas coisas previamente, agora, todavia, é simplesmente como se
aquelas aquisições tivessem sido anuladas; em seu esforço de se opor, a todo
custo, pode oferecer o quadro completo de um imbecil emocional. Se, contudo,
conseguimos ajudá-la a superar essa nova resistência, ela recupera sua
compreensão interna (insight) e entendimento. Sua faculdade crítica não
é, assim, uma função independente a ser respeitada como tal, é o instrumento de
suas atitudes emocionais e orienta-se segundo sua resistência. Se existe alguma
coisa de que não gosta, pode empreender contra esta uma luta ferrenha e parecer
extremamente crítica; mas se alguma coisa reza conforme sua cartilha, pode,
pelo contrário, mostrar-se muitíssimo crédula. Talvez nenhuma de nós seja muito
diferente; alguém, que está sendo analisado apenas revela esta subordinação do
intelecto à vida afetiva tão claramente, porque na análise exercemos sobre ele
uma pressão assim tão grande.Como, pois, explicamos nossa observação, segundo a
qual o paciente luta com tamanha energia contra a remoção de seus sintomas e o
estabelecimento de seus processos mentais em um curso normal? Dizemos a nós
mesmos que conseguimos descobrir, aqui, forças poderosas que se opõem a
qualquer modificação na condição do paciente; devem ser as mesmas que, no
passado, produziram esta condição. Durante a formação de seus sintomas, algo
deve ter-se passado, que agora podemos reconstituir a partir de nossas
experiências durante a resolução de seus sintomas. Já sabemos, através
da observação de Breuer, que há uma precondição para a existência de um
sintoma: algum processo mental deve não ter sido conduzido normalmente até seu
objetivo normal - que era o objetivo de poder tornar-se consciente. O sintoma é
o substituto daquilo que não aconteceu nesse ponto [ver em [1] e [2], acima].
Agora sabemos em que ponto devemos localizar a ação da força que presumimos.
Uma violenta oposição deve ter-se iniciado contra o acesso à consciência do
processo mental censurável, e, por este motivo, ele permaneceu inconsciente. Por
constituir algo inconsciente, teve o poder de construir um sintoma. Esta mesma
oposição, durante o tratamento psicanalítico, se insurge, mais uma vez, contra
nosso esforço de tornar consciente aquilo que é inconsciente. É isto o que
percebemos como resistência. Propusemos dar ao processo patogênico, que é
demonstrado pela resistência, o nome de repressão.
Devemos, agora, formar idéias mais definidas
acerca do processo de repressão. Esta é a precondição da formação dos sintomas;
também é, contudo, algo em relação ao qual não encontramos nada semelhante.
Tomemos como nosso modelo um impulso, um processo mental que tenta
transformar-se em ação. Sabemos que pode ser repelido por aquilo que
denominamos rejeição ou condenação. Quando isto acontece, a energia à sua
disposição é retirada dele; o impulso torna-se impotente, ainda que possa
persistir como lembrança. Todo o processo de chegar a uma decisão referente ao
mesmo segue seu curso no âmbito do conhecimento do ego. Passa-se algo muito
diverso quando o mesmo impulso está sujeito à repressão. Nesse caso, ele
conservaria sua energia e dele não restaria nenhuma recordação; além disso, o
processo de repressão seria realizado sem ser percebido pelo ego. Esta
comparação, portanto, não nos aproxima da natureza essencial da
repressão.Apresentarei aos senhores as únicas idéias teóricas que revelaram ser
de alguma utilidade para dar ao conceito de repressão um contorno mais
definido. Sobretudo é essencial, para esse propósito, que passemos da
significação puramente descritiva da palavra “inconsciente’ à significação
sistemática da mesma palavra. Isto é, decidiremos dizer que o fato de um
processo psíquico ser consciente ou inconsciente é apenas um de seus atributos,
e não necessariamente um atributo isento de ambigüidade. Se um processo desse
tipo permaneceu inconsciente, o fato de ser ele mantido afastado da consciência
talvez possa ser apenas uma indicação de alguma vicissitude por que passou, e
não a vicissitude mesma. A fim de formar uma imagem dessa vicissitude, suponhamos
que todo processo mental - devemos admitir uma exceção que mencionaremos numa
fase posterior - exista, inicialmente,
em um estádio ou fase inconsciente, e que é somente dali que o processo se
transporta para a fase consciente, da mesma forma como uma imagem fotográfica
começa como negativo e só se torna fotografia após haver-se transformado em
positivo. Nem todo negativo transforma-se, contudo, necessariamente em
positivo; e não é necessário que todo processo mental inconsciente venha a se
tornar consciente. Isto pode ser vantajosamente expresso com dizermos que um
processo isoladamente pertence, no início, ao sistema de inconsciente, podendo,
depois, em determinadas circunstâncias, passar ao sistema do consciente.A
concepção mais aproximada desses sistemas, a mais conveniente para nós, é a
espacial, Comparemos, portanto, o sistema do inconsciente a um grande salão de
entrada, no qual os impulsos mentais se empurram uns aos outros, como
indivíduos separados. Junto a este salão de entrada existe uma segunda sala,
menor - uma espécie de sala de recepção - na qual, ademais, a consciência
reside. Mas, no limiar entre as duas salas, um guarda desempenha sua função;
examina os diversos impulsos mentais, age como censor, e não os admitirá na
sala de recepção se eles lhe desagradarem. De pronto, os senhores verão que não
faz muita diferença se o guarda impede a entrada de determinado impulso no
próprio limiar ou se ele o faz recuar através do limiar, após o impulso ter
entrado na sala de recepção. Isto é apenas uma questão de grau de sua
vigilância e de quão prontamente efetua sua ação de reconhecimento. Se
mantivermos esta imagem, poderemos ampliar ainda mais nossa terminologia. Os
impulsos do inconsciente, no salão de entrada do inconsciente, estão fora das vistas
do consciente, que está na outra sala; em princípio, devem permanecer
inconscientes. Se já se infiltraram até o limiar e foram afastados pelo guarda,
então eles são inadmissíveis para a consciência; dizemos que eles são reprimidos.
Entretanto, os próprios impulsos que o guarda permitiu que cruzassem o limiar,
não são, também, só por causa disso, necessariamente conscientse; podem vir a
sê-lo somente se conseguissem chamar a atenção da consciência. Portanto,
justifica-se que chamemos a esta segunda sala, de sistema do pré-consciente.
Nesse caso, tornar-se consciente mantém seu sentido meramente descritivo. Para
qualquer impulso, porém, a vicissitude da repressão consiste em o guarda não
lhe permitir passar do sistema do inconsciente para o do pré-consciente.
Trata-se do mesmo guarda que vimos a conhecer como resistência, quando tentamos
suprimir a repressão por meio do tratamento analítico.Ora, sei que dirão que
estas idéias são ao mesmo tempo toscas e fantásticas e bastante inadmissíveis
em assuntos científicos. Sei que são toscas; e, mais do que isso, que são
incorretas; e, se não estou muito equivocado, já tenho algo melhor que tome o
lugar delas. Se os senhores também as julgarão fantásticas, não sei dizer. São
hipóteses de trabalho preliminares, à semelhança do manequim de Ampère nadando
na corrente elétrica, e não devem ser desprezadas, na medida em que são úteis
para tornar inteligíveis nossas observações. Gostaria de afirmar-lhes que essas
toscas hipóteses das duas salas, do guarda no limiar entre elas e da
consciência como um expectador no fim da segunda sala, devem ser, ainda assim,
aproximações de longo alcance dos fatos reais. Ademais, gostaria de ouvir os
senhores admitirem que nossos termos inconsciente’, ‘pré-consciente’ e
‘consciente’ prejulgam muito menos as coisas e são muito mais fáceis de
explicar do que outros termos que foram propostos ou estão em uso, tais como
‘subconsciente’, ‘paraconsciente’, ‘intraconsciente’ e outros.Assim, será mais
importante para mim admitirem que uma concepção do aparelho mental, conforme
esta que aqui proponho para explicar os sintomas neuróticos, deve
necessariamente exigir uma validade geral e dar-nos informações também a
respeito do funcionamento normal. Naturalmente, nisto os senhores terão toda a
razão. No momento, não podemos avançar com esta implicação, mas nosso interesse
na psicologia da formação dos sintomas não pode senão aumentar em grau
extraordinário, se existir uma perspectiva, através do estudo de situações
patológicas, de se obter acesso aos eventos mentais normais que se ocultam tão
bem.
Talvez os senhores também possam reconhecer
qual o elemento que apóia nossa hipótese relativa aos dois sistemas, a relação
entre estes dois sistemas e a relação de ambos com a consciência. Porque o
guarda colocado entre o inconsciente e o pré-consciente não é senão a censura;
a esta, conforme sabemos, subordina-se a forma que assume o sonho manifesto.
[Cf. Conferência IX, ver em [1], acima.] Os resíduos diurnos, que sabemos serem
os elementos deflagradores do sonho, foram material pré-consciente que, tanto
no período noturno como no estado de sono, tinha estado sob a influência de
impulsos plenos de desejos, inconsciente e reprimidos; tais resíduos diurnos,
combinando-se com estes impulsos e graças à energia destes, foram capazes de
construir o sono latente. Sob o domínio do sistema inconsciente, esse material
havia sido trabalhado (pela condensação e pelo deslocamento) segundo uma forma
que é desconhecida ou apenas excepcionalmente permissível na vida normal - isto
é, no sistema pré-consciente. Chegamos a considerar que essa diferença na forma
de operar é o que caracteriza os dois sistemas: achamos que a relação que o
pré-consciente tem para com a consciência é simplesmente uma indicação de que o
processo pertence a um ou a outros dos dois sistemas. Os sonhos não são
fenômenos patológicos; podem surgir em qualquer pessoa sadia, nas condições do
estado de sono. Nossa hipótese referente à estrutura do aparelho mental, que
nos permite compreender a formação análoga dos sonhos e dos sintomas
neuróticos, tem o inquestionável direito de ser aceita como adequada à
explicação da vida mental normal, também.Isso é tudo o que temos a dizer, no
momento, a respeito da repressão. Ela, contudo, é apenas a precondição
da formação dos sintomas. Os sintomas, conforme sabemos, são um substituto de
algo que foi afastado pela repressão. Entretanto, vai uma longa distância,
ainda, dede a repressão à compreensão dessa estrutura substitutiva. Quanto a
este outro aspecto do problema, surgem de nossas observações sobre a repressão
as seguintes perguntas: que espécie de impulsos está sujeita à repressão? por
que forças ela se efetua? e por que motivos? Até agora, temos somente uma
parcela de informação a respeito destes pontos. Ao investigar a resistência,
constatamos que ela emana de forças do ego, de traços de caráter conhecidos e
latente [ver em [1], acima]. São estes, pois, os responsáveis pela repressão,
ou, pelo menos, têm uma participação nela. Presentemente, não sabemos de nada
mais.Neste ponto, a segunda das duas observações que lhes mencionei
anteriormente [na abertura desta Conferência] vem em nosso auxílio. Quase
sempre a análise faculta-nos compreender a intenção dos sintomas neuróticos.
Isso também não será novidade alguma para os senhores. Já lho demonstrei em
dois casos de neurose. Mas, afinal, de que lhes valem dois casos? Os senhores
têm razão para insistir em que este aspecto lhes seja demonstrado em duzentos
casos - em inumeráveis casos. O único problema é que não posso fazê-lo. Mais
uma vez, em lugar disso, o que lhes deve servir é sua experiência própria, ou
sua crença, a qual, neste ponto, pode apelar para os relatos unânimes de todos
os psicanalistas.
Os senhores recordar-se-ão de que, nos dois
casos, cujos sintomas submetemos a uma investigação minuciosa, a análise nos
levou à mais íntima vida sexual dessas duas pacientes. No primeiro caso,
ademais, reconhecemos com especial clareza a intenção ou o propósito do sintoma
em exame; no segundo caso, talvez, este aspecto de certa forma foi ocultado por
um fator que será mencionado posteriormente [ver em [1], adiante]. Pois bem,
qualquer outro caso que submetêssemos à análise nos mostraria a mesma coisa que
encontramos nesses dois exemplos. Em cada caso, iríamos tomar conhecimento, mediante
a análise, das experiências e desejos sexuais do paciente; e, em cada caso, não
poderíamos deixar de verificar que os sintomas servem à mesma intenção.
Verificamos que esta intenção é a satisfação de desejos sexuais; os sintomas
servem de satisfação sexual do paciente; são um substituto da satisfação
sexual, de que os pacientes se privam em suas vidas.
Pensem no ato obsessivo de nossa primeira
paciente. A mulher estava sem seu marido, a quem ela amava intensamente, mas
com quem não podia compartilhar sua vida devido às deficiências e fraquezas
dele. Tinha de permanecer-lhe fiel; não podia colocar nenhuma outra pessoa no
lugar dele. O sintoma obsessivo deu-lhe o que ela desejava, colocar o marido
num pedestal; negou e corrigiu sua fraquezas e, acima de tudo, sua impotência.
Este sintoma era fundamentalmente uma realização de desejo, tal qual um sonho -
e, ademais disso, o que nem sempre acontece com um sonho, uma realização de
desejos eróticos. No caso de nossa segunda paciente, os senhores puderam
pelo menos depreender que seu ritual procurava impedir o coito dos pais ou
evitar que ele desse origem a um novo bebê. Os senhores, provavelmente, também
perceberam que, no fundo, esse ritual procurava colocá-la no lugar de sua mãe.
Mais uma vez, portanto, tratava-se de eliminar algo que interferia na
satisfação sexual e na realização dos desejos sexuais da própria paciente. Em
breve, falarei da complicação que mencionei.
Gostaria de antecipar, senhores, as restrições
que terei de fazer posteriormente à validade universal destas afirmações.
Portanto, assinalarei aos senhores que tudo aquilo que disse aqui sobre
repressão e a formação e significação dos sintomas derivou de três formas de
neurose - histeria de angústia, histeria de conversão e neurose obsessiva, e
que, numa primeira instância, só é válido para estas formas. Este três
distúrbios, que estamos acostumados a agrupar conjuntamente como “neuroses de
transferência’ também circunscrevem a região em que a terapia psicanalítica
pode funcionar. As demais neuroses têm sido estudadas de forma muito menos
completa pela psicanálise; num grupo delas a impossibilidade de influência
terapêutica foi uma das razões desse abandono. E os senhores não devem esquecer
que a psicanálise ainda é uma ciência muito jovem, que preparar-se para ela
demanda muita preocupação e tempo, e que absolutamente, não faz muito tempo,
vinha sendo praticada por uma só pessoa. Apesar disso, estamos, em toda parte,
a ponto de penetrar na compreensão dessas outras perturbações além das neuroses
de transferência. Espero poder mostrar-lhes, posteriormente, o alcance de
nossas hipóteses e de nossas descobertas que resultam da adaptação a este novo
material, e mostrar-lhes que estes outros estudos não levaram a contradições,
mas ao estabelecimento de uma coerência ainda maior. Se, pois, tudo o que estou
dizendo aqui se aplica às neuroses de transferência, permitam-me que acentue o
valor dos sintomas com uma nova informação. Isso porque o estudo comparativo
das causas determinantes do adoecer conduz a um resultado que pode ser expresso
na fórmula: essas pessoas adoecem, de uma forma ou de outra, de frustrações,
quando a realidade as impede de satisfazer seus desejos sexuais. Os senhores
verificam com que perfeição estas duas descobertas se harmonizam entre si.
Apenas assim é que os sintomas podem ser adequadamente visualizados, como
satisfações substitutivas daquilo que se perde na vida.Sem dúvida, pode-se
ainda levantar toda classe de objeções à asserção de que os sintomas neuróticos
são substitutos de satisfações sexuais. Hoje, mencionarei duas dessas objeções.
Quando os senhores mesmos houverem efetuado estudos analíticos de um grande
número de neuróticos, os senhores talvez me digam, meneando a cabeça, que, em
muitos casos, minha asserção simplesmente não é verdadeira; os sintomas parecem
ter, isto sim, o propósito contrário, o de excluir ou paralisar a satisfação
sexual. Não discutirei a correção da sua interpretação. Em psicanálise, os
fatos costumam ser mais complicados do que gostaríamos. Se fossem tão simples
como todos os demais, talvez não fosse necessário que a psicanálise os
esclarecesse. Na verdade, alguns dos aspectos do ritual de nossa segunda
paciente mostram sinais desse caráter ascético, com sua hostilidade voltada
contra a satisfação sexual: quando, por exemplo, ela suprimia os relógios [ver
em [1]], o que tinha a significação de evitar ereções durante a noite [ver em
[1]], ou quando procurava precaver-se contra a queda e a quebra de vasos de
flores [ver em [1]], o que equivalia a proteger sua virgindade [ver em [1]]. Em
alguns outros casos de rituais da hora de dormir, que pude analisar, esse
caráter negativo era muito mais evidente; o ritual podia consistir
exclusivamente em medidas defensivas contra recordações e tentações sexuais.
Entretanto, já constatamos, vezes sem conta, que, em psicanálise, os contrários
não importam em contradição. Poderíamos ampliar nossa tese e dizer que os
sintomas objetivam ou uma satisfação sexual ou o rechaço da mesma, e que, na
totalidade, o caráter positivo de realização de desejo prevalece na histeria e
o negativo, ascético, na neurose obsessiva. Se os sintomas podem servir tanto à
satisfação sexual como ao seu oposto. Existe uma excelente base para esta
bilateralidade ou polaridade numa parte do seu mecanismo, que até o momento não
pude mencionar. Pois, conforme veremos, elas são o produto de um acordo e
surgem da recíproca interferência entre duas correntes opostas; representam não
só o reprimido, mas também a força repressora que compartilhou de sua origem.
Um ou outro lado pode estar representado com mais força; mas é raro uma das
forças em jogo estar totalmente ausente. Na histeria, geralmente ambas as
intenções conseguem convergir no mesmo sintoma. Na neurose obsessiva, as duas
partes freqüentemente estão separadas; o sintoma então se torna bifásico
[divide-se em dois estádios] e consiste em duas ações, uma depois da outra, as
quais se anulam reciprocamente.Não poderemos desprezar tão facilmente uma
segunda objeção. Se os senhores observarem uma série razoavelmente longa de
interpretações de sintomas, provavelmente começarão a pensar que nelas o
conceito de satisfação sexual substitutiva foi ampliado aos seus limites
máximos. Não deixarão de assinalar o fato de que tais sintomas não oferecem nada
de real em termos de satisfação, que eles, muitíssimas vezes, limitam-se a
reviver uma sensação ou a representação de uma fantasia derivada de um complexo
sexual. E, ademais, os senhores notarão que estas supostas satisfações sexuais
assumem, às vezes, uma forma pueril e vergonhosa, próxima, talvez, de um ato de
masturbação, ou relembram formas indecentes de travessuras, que são proibidas
até a crianças - hábitos que foram erradicados. E, prosseguindo, os senhores
também expressarão surpresa por estarmos apresentando como satisfação sexual
aquilo que seria mais adequado descrever como satisfação de desejos cruéis ou
horríveis, ou mesmo teriam de ser chamados de antinaturais. Não chegaremos a um
acordo, senhores, quanto a este último ponto, enquanto não houvermos feito uma
investigação meticulosa da vida sexual dos seres humanos e, com isso, enquanto
não tivermos decidido sobre o que justificadamente podemos denominar ‘sexual’.
CONFERÊNCIA XX
A VIDA SEXUAL DOS SERES HUMANOS
SENHORAS E SENHORES:
Certamente supor-se-ia que não pudesse haver
dúvidas quanto ao que se entende por ‘sexual’. Primeiro e acima de tudo, aquilo
que é sexual é algo impróprio, algo de que não se deve falar. Contaram-me que
os alunos de um conceituado psiquiatra certa vez fizeram uma tentativa de
convencer seu professor de quão freqüentemente os sintomas de pacientes
histéricos representam coisas sexuais. Com este propósito, levaram-no à beira
da cama de uma mulher histérica, cujos ataques eram uma inconfundível imitação
do processo de parto. Sacudindo a cabeça, ele observou: ‘Bem, não há nada de
sexual com relação ao parto.’ Muito certo. O parto não necessita, em todo caso,
ser algo impróprio.
Vejo que os senhores se ofendem por eu gracejar
com coisas tão sérias. Isso não é contudo, totalmente, um gracejo. Falando
sério, não é fácil delimitar aquilo que abrange o conceito de ‘sexual’. Talvez
a única definição acertada fosse ‘tudo o que se relaciona com a distinção entre
os dois sexos’. Os senhores acharão, no entanto, que esta conceituação é neutra
e excessivamente imprecisa. Se tomarem o fato do ato sexual como ponto central,
talvez definissem como sexual tudo aquilo que, com vistas a obter prazer, diz
respeito ao corpo e, em especial, aos órgãos sexuais de uma pessoa do sexo
oposto, e que, em última instância, visa à união dos genitais e à realização do
ato sexual. Com isto, os senhores não estarão, todavia, muito longe da equação
segundo a qual aquilo que é sexual é impróprio, e o parto não constituirá algo
sexual. Se, por outro lado, tomarem a função de reprodução como núcleo da
sexualidade, correm o risco de excluir toda uma série de coisas que não visam à
reprodução, mas certamente são sexuais, como a masturbação, e até mesmo o
beijo. Mas já estamos preparados para constatar que as tentativas de definição
sempre conduzem a dificuldades; portanto, renunciemos à idéia de pretender algo
melhor neste caso particular. Podemos suspeitar que, no transcurso da evolução
do conceito de ‘sexual’, algo aconteceu que resultou naquilo que Silberer apropriadamente
chamou de ‘erro de superposição’.De modo geral, com efeito, quando pensamos
neste aspecto, não temos dúvidas sobre o que as pessoas chamam de sexual. Algo
que reúne uma referência ao contraste entre os sexos, à busca de prazer, à
função reprodutora e à características de algo que é impróprio e deve ser
mantido secreto - algumas destas combinações servirão para todos os fins
práticos da vida de todo dia. Mas para a ciência, isto não basta. Através de
cuidadosas investigações (somente possibilitadas, na verdade, por uma
autodisciplina desinteressada), vimos a saber de grupos de indivíduos cuja
‘vida sexual’ se desvia, da maneira mais supreendente, do quadro habitual da
média. Algumas dessas pessoas ‘pervertidas’, poderíamos dizer assim, riscaram de
seu programa a diferença entre os sexos. Somente pessoas de seu próprio sexo
podem excitar seus desejos sexuais; pessoas do outro sexo, e especialmente os
órgãos sexuais destas pessoas absolutamente não constituem para eles objeto
sexual e, em casos extremos, são objetos de repulsa. Isto implica,
naturalmente, que abandonaram qualquer participação na reprodução. Tais pessoas
denominamos homossexuais ou invertidas. São homens e mulheres que,
freqüentemente, mas não sempre, conduzindo-se irrepreensivelmente, em outros
aspectos, possuindo elevado desenvolvimento intelectual e ético, são vítimas
apenas deste único desvio fatídico. Pela boca de seus porta-vozes científicos,
eles se apresentam como variedade especial da espécie humana - um ‘terceiro
sexo’ que tem o direito de se situar em pé de igualdade com os outros dois.
Talvez tenhamos oportunidade de examinar criticamente suas reivindicações. [ver
em [1] e seg., adiante.] Naturalmente, eles não são, como também gostam de
afirmar, uma ‘élite‘ da humanidade; entre eles, há pelo menos tantos
indivíduos inferiores e inúteis como os há entre pessoas de tipo sexual
diferente.Esta classe de pervertidos, de qualquer modo, se comporta em relação
a seus objetos sexuais aproximadamente da mesma forma como as pessoas normais o
fazem com os seus. Agora, porém, chegamos a uma longa série de pessoas anormais
cuja atividade sexual diverge cada vez mais amplamente daquilo que parece
desejável para uma pessoa racional. Na sua mulplicidade e estranheza, somente
podem ser comparadas aos monstros grotescos, pintados por Breughel para a
tentação de Santo Antônio, ou à longa procissão de deuses e crentes
desaparecidos, que Flaubert faz desfilar ante os olhos de seu piedoso
penitente. Uma tal miscelânea requer algum tipo de ordenamento para que não
venha a confundir nossos sentidos. Por conseguinte, nós os dividimos naqueles
em que, como os homossexuais, o objeto sexual foi modificado, e em
outros nos quais a finalidade sexual é que foi primariamente modificada.
O primeiro grupo inclui aqueles que renunciaram à união dos dois genitais e que
substituem os genitais de um dos parceiros envolvidos no ato sexual por alguma
outra parte ou região do corpo; com isto, eles desprezam a falta de
dispositivos orgânicos adequados, assim como todo impedimento oriundo de
sentimentos de repulsa. (Por exemplo, substituem a vulva pela boca ou pelo
ânus.) Outros há que, realmente, ainda mantêm os genitais como um objeto - não,
porém, por causa da função destes, mas de outras funções em que o genital desempenha
um papel, seja por motivos anatômicos, seja por causa de sua proximidade.
Neles, constatamos que as funções excretórias, que foram postas de lado como
impróprias, durante a educação das crianças, conservam a capacidade de atrair a
totalidade do interesse sexual. E ainda há outros que abandonaram totalmente o
genital como objeto, e tomaram alguma outra parte do corpo como o objeto que
desejam - um seio de mulher, um pé, ou uma trança de cabelos. Depois há outros
para os quais as partes do corpo não têm nenhuma importância, mas todos os seus
desejos se satisfazem com uma peça de roupa, um sapato, uma peça de roupa
íntima - são de fetichistas. Ainda mais atrás, nesse séquito, se enfileiram
essas pessoas que requerem de fato o objeto total, mas fazem a este exigências
muito definidas - estranhas e horríveis exigências - até mesmo a de que esse
objeto devesse tornar-se um cadáver indefeso e de que, usando de uma violência
criminosa, transformem-no num objeto no qual possam encontrar prazer. Mas basta
com essa espécie de horror!O segundo grupo é formado por pervertidos que
transformaram em finalidade de seus desejos sexuais aquilo que normalmente
constitui apenas um ato inicial ou preparatório. São pessoas cujo desejo
consiste em olhar outras pessoas, ou palpá-las, ou espiá-las durante a execução
de atos íntimos, ou pessoas que expõem partes do corpo que deveriam estar
encobertas, na obscura expectativa de poderem ser recompensadas, em troca, por
uma ação correspondente. Depois vêm os sádicos, essas pessoas enigmáticas,
cujas tendências carinhosas não têm outro fim senão o de causar sofrimento e
tormento a seus objetos, indo desde a humilhação até as lesões físicas graves;
e, como que para contrabalançá-los, seus equivalentes opostos, os masoquistas,
cujo único prazer consiste em sofrer toda espécie de tormentos e humilhações de
seu objeto amado, seja simbolicamente, seja na realidade. Ainda existem outros
em que diversas dessas precondições anormais estão unidas e entrelaçadas; e,
por fim, devemos nos lembrar de que cada um destes grupos pode ser encontrado
sob duas formas: ao lado daqueles que procuram sua satisfação sexual na
realidade, estão os que se contentam simplesmente com imaginar essa
satisfação, que absolutamente não necessitam de um objeto real, mas podem
substituí-lo por suas fantasias.
Ora, não pode haver a menor dúvida de que todas
essas coisas loucas, excêntricas e horríveis realmente constituem a atividade
sexual dessas pessoas. Não só elas próprias consideram essas coisas como tais e
estão conscientes de que são substitutas umas das outras, como também devemos
admitir que, em suas vidas, essas coisas desempenham o mesmo papel que, em
nossas vidas, desempenha a satisfação sexual normal; tais pessoas fazem por
essas coisas os mesmos sacrifícios, às vezes excessivos, e podemos, nos
detalhes mais visíveis assim como nos mais sutis, determinar os pontos em que
essas anormalidades se baseiam naquilo que é normal e os pontos em que divergem
da normalidade. E os senhores não podem deixar de perceber que, aqui, mais uma
vez, aquilo que se refere à atividade sexual tem essa característica de
impropriedade, embora aqui, na sua maior parte, isto se intensifique ao ponto
de ser abominável.
Pois bem, senhoras e senhores, que atitude
adotaremos para com essas formas incomuns de satisfação sexual? Indignação,
expressão de nossa repugnância pessoal e garantia de que nós próprios não
compartilhamos de semelhantes sensualidades, obviamente não proporcionarão
qualquer ajuda. Na realidade, não foi para isso que fomos solicitados. Porque,
afinal de contas, o que temos de encarar neste assunto é um campo de fenômenos
como qualquer outro. Seria fácil refutar alguém que negasse sua importância,
propondo evasivamente que, afinal, isto são somente raridades e curiosidades.
Pelo contrário, estamos tratando de fenômenos muito comuns e difundidos. Se,
entretanto, alguém argumentar que não temos por que permitir que nossas
opiniões acerca da vida sexual sejam confundidas por essas anormalidades,
porque estas não são mais que aberrações e desvios do instinto sexual, então o
que se requer é uma resposta séria. A menos que possamos compreender essas
formas patológicas de sexualidade e correlacioná-las com a vida sexual normal,
não poderemos nem mesmo entender a sexualidade normal. Para resumir, persiste a
tarefa inescapável de darmos uma explicação teórica completa da maneira como
essas perversões ocorrem e da sua conexão com aquilo que se descreve como
sexualidade normal.Nessa tarefa, prestar-nos-ão auxílio uma informação e duas
observações recentes. A primeira, devemo-la a Iwan Bloch [1902-3]. Corrige a
opinião de que todas essas perversões são ‘sinais de degeneração’, mostrando
que tais aberrações do fim sexual, esses afrouxamentos do nexo com o objeto
sexual, ocorreram desde tempos imemoriais, em todas as épocas conhecidas, entre
todos os povos, os mais primitivos e os mais civilizados, e, em algumas
ocasiões, foram tolerados e difusamente reconhecidos. As duas observações
derivaram da investigação psicanalítica em neuróticos; ela necessariamente têm
uma decisiva influência sobre nossa visão das perversões sexuais.Eu disse que
os sintomas neuróticos são substitutos da satisfação sexual [pág. 305] e lhes
indiquei que a confirmação desta assertiva pela análise dos sintomas viria a
defrontar-se com numerosas dificuldades. Pois somente será válida se na
‘satisfação sexual’ incluirmos a satisfação daquilo que se chama necessidades
sexuais pervertidas, de vez que, com freqüência surpreendente, se nos impõe uma
interpretação de sintomas dessa espécie. A reivindicação que fazem os
homossexuais ou invertidos de serem uma exceção, desfaz-se imediatamente ao
constatarmos que os impulsos homossexuais são encontrados invariavelmente em
cada um dos neuróticos e que numerosos sintomas dão expressão a essa inversão
latente. Aqueles que se proclamam homossexuais são apenas invertidos
conscientes e manifestos e seu número nada é em comparação com os dos
homossexuais latentes. Entretanto, somos forçados a encarar a escolha de
um objeto do mesmo sexo como um desvio na vida erótica, desvio cuja ocorrência
é positivamente freqüente, e cada vez aprendemos mais sobre isso,
atribuindo-lhe importância particularmente elevada. Sem dúvida, isso não
elimina as diferenças entre o homossexualismo manifesto e uma atitude normal;
permanece a importância prática dessas diferenças, mas seu valor teórico
diminui muito. Temos até mesmo verificado que determinada doença, a paranóia,
que não deve ser incluída entre as neuroses de transferência, origina-se
habitualmente de uma tentativa no sentido de o doente libertar-se de impulsos
homossexuais excessivamente intensos. Os senhores talvez se recordem de que uma
de nossas pacientes (pág. 270), em seu ato obsessivo, comportava-se como homem,
como se fora o próprio marido de quem se separara; mulheres neuróticas muito
freqüentemente produzem sintomas assim, à feição de um homem. Ainda que isso
não se deva considerar homossexualismo, relaciona-se muito de perto com as
precondições destas.
Como provavelmente sabem, a neurose histérica
pode produzir seus sintomas em qualquer sistema de órgãos e, assim, perturbar
qualquer função. A análise demonstra que, desse modo, manifestaram-se todos os
chamados impulsos pervertidos, que procuram substituir o órgão genital por
algum outro órgão: este órgãos, então, comportam-se como genitais
substitutivos. Os sintomas da histeria realmente nos levaram a considerar que
os órgãos corporais, além do papel funcional que desempenham, devem ser
reconhecidos como possuidores de uma significação sexual (erógena) e que a
execução da primeira dessas tarefas é perturbada se a segunda fizer exigências
demasiadas. Inúmeras sensações e inervações, que encontramos como sintomas de
histeria, em órgãos que não possuem conexão evidente com a sexualidade,
revelam-se a nós, assim, como tendo o caráter de realização de impulsos sexuais
pervertidos em relação aos quais outros órgãos adquiriram a significação das
partes sexuais. Também verificamos em que graus os órgãos destinados à tomada
de alimento e à excreção têm particular facilidade de se tornarem veículos de
excitação sexual. Aqui, pois, temos a mesma coisa que constatamos nas
perversões; só que, no caso destas, isto era fácil e inconfundivelmente
visível, ao passo que, na histeria, temos de tomar um caminho indireto, através
da interpretação dos sintomas, e, depois, não atribuímos à consciência da
pessoa os impulsos sexuais pervertidos, mas os localizados em seu
inconsciente.Entre os muitos quadros sintomáticos em que aparece a neurose
obsessiva, os mais importantes vêm a ser aqueles provocados pela pressão de
impulsos sexuais sádicos excessivamente intensos (pervertidos, portanto, quanto
ao seu fim). Os sintomas, na verdade, de acordo com a estrutura de uma neurose
obsessiva, servem predominantemente como defesa contra esses desejos, ou
expressam a luta entre a satisfação e a defesa. A satisfação de tais desejos
sádicos, contudo, também não sai perdendo tanto assim; obtém êxito, através de
vias transversas, ao realizar-se na conduta dos pacientes, e se volta
preferentemente contra eles mesmos, e os torna auto-atormentadores. Outras
formas desta neurose, as formas cismáticas, correspondem a uma excessiva
sexualização de ações que comumente se efetuam como prévias com vistas à
satisfação sexual normal - uma excessiva sexualização do querer olhar, tocar ou
explorar. Aqui temos a explicação da grande importância do temor de tocar e da
obsessão de lavar-se. Uma quantidade incrivelmente grande de atos obsessivos
pode remontar à masturbação, da qual constituem repetições e modificações
disfarçadas; sabe-se muito bem que a masturbação, embora sendo uma ação única e
uniforme, acompanha as mais diversas formas do fantasiar sexual.Eu não teria
muita dificuldade em apresentar-lhes um quadro muito mais pormenorizado das
relações entre perversão e neurose; penso, porém, que aquilo que já lhes disse
servirá aos nossos propósitos. Entretanto, devemos acautelar-nos, a fim de não
nos desorientarmos com aquilo que lhes referi, ou seja, o significado dos
sintomas não deve nos levar a superestimar a freqüência e a intensidade das
inclinações pervertidas das pessoas. Conforme ouviram falar [ver em [1]], é
possível adoecer de neurose em conseqüência de uma frustração da satisfação
sexual normal. Entretanto, quando ocorre uma frustração real como esta, a
necessidade lança-se a métodos anormais de excitação sexual. Mais adiante os
senhores saberão como é que isso acontece [ver em [1] e segs.] Em todo caso,
perceberão, contudo, que, como resultado desse represamento ‘colateral’ [da
corrente sexual normal], os impulsos pervertidos devem emergir com mais
intensidade do que emergiriam se a satisfação sexual normal não tivesse
encontrado obstáculo no mundo real. Ademais, pode-se reconhecer que uma
influência semelhante também afeta as perversões manifestas. Em alguns
caos, elas são provocadas ou postas em atividade se a satisfação normal do
instinto sexual encontra dificuldades excessivas, por motivos temporários ou em
virtude de regras sociais permanentes. Em outros casos, é fato, a inclinação às
perversões é bastante independente de tais condições favorecedoras; poderíamos
dizer que constituem o tipo normal de vida sexual para essas pessoas em
particular.Talvez, por agora, os senhores possam ter a impressão de que
confundi mais do que explanei a relação entre sexualidade normal e pervertida.
Mas devem ter em mente a seguinte consideração. Se procede o fato de que um
aumento de dificuldade em obter satisfação sexual normal da vida real, ou a
privação desta satisfação, põe à mostra as inclinações pervertidas de pessoas
que, anteriormente, nada disso tinham demonstrado, devemos supor que nessas
pessoas havia algo que já se encontrava a meio-caminho das perversões; ou, se
preferirem, as perversões devem ter estado presentes, nessas pessoas, em forma
latente.E isto nos traz a segunda novidade que lhes anunciei (ver em [1]). Pois
a investigação psicanalítica teve de ocupar-se também com a vida sexual das
crianças, e isto porque as lembranças e associações emergentes durante a
análise de sintomas de adultos remetiam-se regularmente aos primeiros anos da
infância. O que inferimos destas análises mais tarde se confirmou, ponto por
ponto, nas observações diretas de crianças. E, com isso, verificou-se que todas
essas inclinações à perversão tinham suas raízes na infância, que as crianças
têm uma predisposição a todas elas e põem-nas em execução numa medida
correspondente à sua imaturidade - em suma, que a sexualidade pervertida não é
senão uma sexualidade infantil cindida em seus impulsos separados.Em todo caso,
agora os senhores verão as perversões sob um novo prisma, e já não mais
deixarão de perceber sua conexão com a vida sexual dos seres humanos: mas à
custa de quanta surpresa e de quanto sentimento de desagrado para com estas
incongruências! Sem dúvida, sentir-se-ão inclinados a negar todo este assunto:
o fato de que as crianças possuem tudo aquilo que se pode descrever como vida
sexual, a justeza de nossas observações e a explicação para o fato de
encontrarmos tantas afinidades entre a conduta das crianças e aquilo que mais
tarde é condenado como perversão. Por isso, permitam-me que comece
explicando-lhes os motivos da oposição dos senhores e, depois, lhes apresente a
totalidade de nossas observações. Supor que as crianças não têm vida sexual -
excitações e necessidades sexuais e alguma forma de satisfação -, mas
adquirem-na subitamente, entre os doze e os quatorze anos de idade, seria
(abstraindo de todas as observações) biologicamente tão improvável, e, na
verdade, tão sem sentido, como supor que viessem ao mundo desprovidas de
genitais e que estes só aparecessem na época da puberdade. O que de fato
desperta nas crianças, nessa idade, é a função reprodutiva, que, para seus
fins, faz uso dos componentes físicos e mentais já anteriormente presentes. Os
senhores estão cometendo o erro de confundir sexualidade com reprodução, e com
isto estão bloqueando seu caminho para a compreensão da sexualidade, das
perversões e das neuroses. Este é, contudo, um erro tendencioso. Estranhamente,
origina-se no fato de que os senhores mesmos uma vez foram crianças e, enquanto
eram crianças, estiveram sob a influência da educação. Pois a sociedade deve
assumir como uma de suas mais importantes tarefas educadoras domar e restringir
o instinto sexual quando este irrompe como impulso à reprodução, e sujeitá-lo a
uma vontade individual que é idêntica à ordem da sociedade. Esta também se
preocupa em adiar o pleno desenvolvimento do instinto até que a criança tenha
atingido certo grau de maturidade intelectual, de vez que, aí, com a completa
irrupção do instinto sexual, a educabilidade, para fins práticos, chega a seu
fim. De outro modo, o instinto romperia todos os diques e arrasaria todo o
trabalho da civilização laboriosamente construído. Ademais, nunca é fácil a
tarefa de dominar o instinto; seu êxito, por vezes, é muito pequeno, por vezes,
muito grande. O móvel da sociedade humana é, em última análise, econômico; como
não possui provisões suficientes para manter vivos todos os seus membros, a
menos que trabalhem, ela deve limitar o número de seus membros e desviar suas
energias da atividade sexual para o trabalho. Em suma, defronta-se com as
eternas e primevas exigências da vida, que nos assediam até o dia de hoje.Sem
dúvida, a experiência deve ter ensinado aos educadores que a tarefa de docilizar
a tendência sexual da nova geração só poderia ser efetuada se começassem a
exercer sua influência muito cedo, se não esperassem pela tempestade da
puberdade, mas interviessem logo na vida sexual das crianças, que é
preparatória para a puberdade. Por essa razão, todas as atividades sexuais
foram proibidas às crianças e vistas com maus olhos; erigiu-se o ideal de
tornar a vida das crianças assexual, e, no decorrer do tempo, as coisas
chegaram ao ponto de as pessoas realmente acreditarem que as crianças sejam assexuais
e, subseqüente, de a ciência proclamar isto como doutrina. Para evitar que
sejam contraditas suas crenças e suas intenções, a partir daí as pessoas passam
por alto as atividades sexuais das crianças (que não são de se desprezar) ou se
mostram contentes quando a ciência assume um ponto de vista diferente com
relação a tais atividades. As crianças são puras e inocentes, e todo aquele que
as descreve de outra maneira, pode ser acusado de ser um blasfemador infame dos
ternos e sagrados sentimentos da humanidade.
As crianças são as únicas a não concordar com
essas convenções. Afirmam seus direitos animais com total naïveté e dão
constantes provas de que ainda terão de trilhar o caminnho da pureza. É por
demais estranho que as pessoas que negam a existência da sexualidade nas
crianças nem por isso se tornam mais brandas em seus esforços educacionais, mas
perseguem as manifestações daquilo que negam que exista, com a máxima
severidade - descrevendo tais manifestações como ‘traquinagens pueris.’ É
também do maior interesse teórico o período de vida que contradiz mais
flagrantemente o preconceito de uma infância assexual - os anos de vida de uma
criança até os cinco ou seis -, ser posteriormente, na maioria das pessoas,
coberto pelo véu da amnésia, o qual só é completamente desfeito pela
investigação analítica, embora anteriormente tenha sido permeável à construção
de alguns sonhos. [ver em [1] e [2], acima.]
Mostrarei aos senhores, agora, aquilo que se
conhece de mais definido acerca da vida sexual das crianças. Permitam-me, ao
mesmo tempo, por motivos de conveniência, apresentar o conceito de ‘libido’. Em
exata analogia com a ‘fome’, empregamos ‘libido’ como nome da força (neste
caso, a força do instinto sexual, assim como, no caso da fome, a força do instinto
de nutrição) pela qual o instinto se manifesta. Outros conceitos, como os de
‘excitação’ e ‘satisfação’ sexual, não requerem explicação. Os senhores mesmos
facilmente perceberão que as atividades sexuais de crianças de colo são
principalmente uma questão de interpretação, ou, então, provavelmente usarão
isso como motivo para objeções. A essas interpretações chega-se através do
exame analítico retrospectivo baseado nos sintomas. Numa criança da tenra
idade, os primeiros impulsos da sexualidade têm seu aparecimento ligado a
outras funções vitais. Seu principal interesse, como sabem, volta-se para a
ingestão de alimentos; quando as crianças adormecem, após se haverem saciado ao
seio, mostram uma expressão de bem-aventurada satisfação, que se repetirá, posteriormente
na vida, após a experiência do orgasmo sexual. Isto seria muito pouco para
servir de base a uma conclusão. Constatamos, todavia, como um bebê repetirá o
ato de tomar alimento sem exigir mais comida; a isto, portanto, o bebê não é
levado devido a fome. Descrevemo-lo como sucção sensual, e o fato de que, ao
fazê-lo, o bebê adormece, igualmente, com uma expressão beatífica, mostra-nos
que o ato da sucção sensual lhe proporcionou, por si só, uma satisfação.
Conforme sabemos, muito cedo as coisas chegam a um ponto em que não pode
adormecer sem haver sugado. Um pediatra de Budapest, Dr. Lindner [1879], foi o
primeiro a apontar, há muito tempo, a natureza sexual dessa atividade. Aqueles
que cuidam de crianças, e que não têm opiniões teóricas sobre o assunto,
parecem formar um juízo semelhante a respeito da sucção. Não têm dúvidas de que
esta somente tem a finalidade de obter prazer, classificam-na como uma das
‘traquinagens’ da criança e obrigam-na a abandoná-la, causando-lhe desprazer,
no caso de a própria criança não se decidir a deixá-la. Assim, aprendemos que o
bebês executam ações que não têm outro propósito senão o de obter prazer.
Acreditamos que elas primeiro experimentam esse prazer em conexão com a tomada
do alimento, porém logo aprendem a separar esse prazer da condição que o
acompanha. Só podemos atribuir esse prazer a uma excitação das áreas da boca e
dos lábios; a estas partes do corpo denominamos ‘zonas erógenas’ e descrevemos
como sexual o prazer derivado da sucção. Sem dúvida, haveremos de discutir,
posteriormente, se esta descrição se justifica.
Se um bebê pudesse falar, ele indubitavelmente
afirmaria que o ato de sugar o seio materno é de longe o ato mais importante de
sua vida. E nisto o bebê não se engana muito, pois nesse único ato está satisfazendo
de uma só vez as duas grandes necessidades vitais. Por isso, não nos
surpreenderemos ao saber, por meio da psicanálise, quanta importância psíquica
conserva esse ato durante toda a vida. Sugar ao seio materno é o ponto de
partida de toda a vida sexual, o protótipo inigualável de toda satisfação
sexual ulterior, ao qual a fantasia retorna muitíssimas vezes, em épocas de
necessidade. Esse sugar importa em fazer o seio materno o primeiro objeto do
instinto sexual. Não posso dar-lhes idéia da importante relação entre esse
primeiro objeto e a escolha de todos os objetos subseqüentes, dos profundos
efeitos que ele tem em suas transformações e substituições até mesmo nas mais
remotas regiões de nossa vida sexual. A princípio, contudo, o bebê, em sua atividade
de sucção, abandonada esse objeto e o substitui por uma parte do seu próprio
corpo. Começa a sugar o polegar ou a própria língua. Desse modo, torna-se
independente do consentimento do mundo externo, no que tange à obtenção de
prazer, e, ademais disso, aumenta-a, acrescentando a excitação de uma segunda
área de seu corpo. As zonas erógenas não são todas igualmente generosas em
proporcionar prazer; ocorre, pois, uma importante experiência quando o
lactente, conforme relata Lindner, descobre, no decorrer de suas buscas, as
regiões especialmente excitáveis representadas por seus genitais e, com isso,
passa da sucção à masturbação.
Ao formarmos esta opinião referente à sucção
sensual, já passamos a conhecer duas características decisivas da sexualidade
infantil. Ela surge ligada à satisfação das principais necessidades orgânicas e
se comporta de maneira auto-erótica - isto é, procura seus objetos no
próprio corpo da criança. O que ficou demonstrado tão claramente com relação à
tomada de alimentos repete-se, em parte, com as excreções. Concluímos que os
bebês têm sensações prazerosas no processo de evacuação da urina e das fezes, e
que logo conseguem dispor destes atos de maneira que estes lhes tragam a máxima
produção de prazer possível, através das correspondentes excitações das zonas
erógenas da membrana mucosa. É aqui que, pela primeira vez (conforme sutilmente
percebeu Lou Andreas-Salomé [1916]), os bebês se defrontam com o mundo externo
como força inibidora, hostil, ao seu desejo de prazer, e têm certa antevisão
dos futuros conflitos externos e internos. Um bebê não deve eliminar suas
excreções em qualquer momento de sua escolha, e sim quando outras pessoas
decidem que deve fazê-lo. Para induzi-lo a renunciar a essas fontes de prazer,
é-lhes dito que tudo aquilo que se relaciona com essas funções é vergonhoso e
deve ser mantido em segredo. Então, pela primeira vez, a criança é obrigada a
trocar o prazer pela respeitabilidade social. No início, sua atitude para com
suas excreções é muito diferente. Não sente repugnância por suas fezes,
valoriza-as como parte de seu próprio corpo, da qual não se separa facilmente,
e usa-as como seu primeiro ‘presente’ com que distingue as pessoas a quem preza
de modo especial. Mesmo depois de a educação ter atingido seu objetivo de
tornar essas tendências incompatíveis com a criança, esta continua a atribuir
elevado valor às fezes, considerando-as ‘presentes’ e ‘dinheiro’. Por outro
lado, parece considerar com especial orgulho a proeza de urinar.Sei que, há
muito, os senhores estavam esperando para interromper-me e exclamar: ‘Chega de
barbaridades! O senhor nos diz que defecar é uma fonte de satisfação sexual
explorada já na infância! que as fezes são uma substância valiosa e que o ânus
é uma espécie de genital! Absolutamente não acreditamos nisso - mas
compreendemos por que os pacientes e educadores se têm mantido à distância da
psicanálise e de suas descoberta.’ Não, senhores. Os Senhores simplesmente se
esqueceram de que estive procurando apresentar-lhes os fatos da vida sexual
infantil em relação aos fatos das perversões sexuais. Por que os senhores não
haveriam de se aperceber de que, para um grande número de adultos, tanto
homossexuais como heterossexuais, o ânus assume, na relação sexual, o papel de
vagina? E que há muitas pessoas que conservam, durante toda a vida, uma
voluptuosa sensação ao defecar, e a caracterizam como não sendo nada
desprezível? Quanto ao interesse pelo ato de defecar e ao prazer de olhar uma
outra pessoa defecando, os senhores podem conseguir que as próprias crianças
confirmem o fato quando elas tiverem alguns anos mais de idade, e forem capazes
de lhes falar a respeito. Naturalmente, os senhores não deverão tê-las
intimidado sistematicamente, de antemão, pois, nesse caso, elas compreenderão
muito bem que devem silenciar sobre o assunto. Quando às demais coisas nas
quais os senhores tanto desejam não acreditar, remeto-os às descobertas da
análise e à observação direta de crianças, e acrescento que realmente é
necessário ser ingênuo para não ver tudo isso, ou vê-lo de modo diferente. E
não me queixo se os senhores consideram muito surpreendente esta semelhança
entre atividade sexual infantil e perversões sexuais. Esta semelhança, contudo,
é evidente: se de fato uma criança tem vida sexual, esta não pode ser senão uma
vida sexual de tipo pervertido; pois, exceto quanto a alguns detalhes obscuros,
as crianças são desprovidas daquilo que transforma a sexualidade em função
reprodutiva. Por outro lado, o abandono da função reprodutiva é o aspecto comum
de todas as perversões. Realmente consideramos pervertida uma atividade sexual,
quando foi abandonando o objetivo da reprodução e permanece a obtenção de
prazer, como objetivo independente. Portanto, conforme poderão ver, a brecha e
o ponto crítico da evolução da vida sexual situam-se no fato de esta permanecer
subordinada aos propósitos da reprodução. Tudo o que acontece antes dessa
mudança de rumo, e igualmente tudo o que a despreza, e que visa somente a obter
prazer, recebe o nome pouco lisonjeiro de ‘pervertido’, e como tal é
proscrito.Permitam-me, portanto, que eu prossiga com minha breve descrição da
sexualidade infantil. O que já relatei com referência aos dois sistemas de
órgãos [digestivo e excretório] poderia ser confirmado em relação aos outros. A
vida sexual de uma criança é, de fato, inteiramente constituída das atividades
de determinado número de instintos parciais que, independentes uns dos outros,
buscam a obtenção de prazer, em parte, do próprio corpo do indivíduo e, em
parte, já de um objeto externo. Entre esses órgãos muito cedo assumem relevo os
genitais. Existem pessoas nas quais a obtenção de prazer de seus próprios
genitais, sem a participação de quaisquer outros genitais de algum objeto,
continua ininterruptamente desde a masturbação infantil até a masturbação
inevitável da puberdade e persiste indefinidamente em épocas posteriores.
Aliás, o tema da masturbação não é um tema que se possa solucionar tão
facilmente: é algo que exige ser examinado a partir de diferentes
ângulos.Embora esteja desejoso de abreviar ainda mais esta exposição, devo, no
entanto, dizer-lhes algumas coisas a respeito das investigações sexuais feitas
por crianças: são por demais características da sexualidade infantil, e de
importância suficientemente grande para a sintomatologia das neuroses, para que
as deixemos passar sem um exame. As investigações sexuais das crianças começam
muito precocemente, às vezes antes do terceiro ano de vida. Não se referem à
distinção entre os sexos, de vez que isto nada significa para as crianças, já
que estas (ao menos quanto aos meninos) atribuem a ambos os sexos o mesmo
genital masculino. Se, depois, um menino faz a descoberta da vagina ao ver sua
irmãzinha ou uma menina, companheira de brinquedos, ele procura, inicialmente,
negar a evidência dos seus sentidos, pois não pode imaginar uma criatura
humana, como ele próprio, desprovida de uma parte tão preciosa. Mais tarde,
amedronta-se com a possibilidade que assim se lhe apresenta; e quaisquer
ameaças que lhe tenham sido feitas anteriormente, porque tomou demasiado
interesse por seu pequeno órgão, agora produzem um efeito retardado. Cai sob o
domínio do complexo de castração, assumindo uma forma que desempenhará um
grande papel na construção do seu caráter se permanecer normal, na sua neurose se
adoecer, e em suas resistências, se vier a se tratar analiticamente. No que se
refere às meninas de tenra idade, podemos dizer que se sentem em grande
desvantagem devido à sua falta de um pênis grande, visível, que elas invejam os
meninos por estes o possuírem e que, principalmente por este motivo,
desenvolvem o desejo de serem homem - desejo que torna a emergir, mais tarde,
em todas as neuroses e que pode surgir se lhes ocorrer algum revés no
desempenho do papel feminino. Ademais disso, na infância, o clitóris da menina
assume inteiramente o papel de pênis: caracteriza-se por especial
excitabilidade e se situa na área em que é obtida a satisfação auto-erótica. O
processo pelo qual uma menina se transforma em mulher depende muitíssimo da
possibilidade de o clitóris ceder sua sensibilidade ao orifício vaginal, na
época oportuna e de forma completa. Nos casos conhecidos como de anestesia
sexual das mulheres, o clitóris reteve obstinadamente sua sensibilidade.O
interesse sexual das crianças começa, certamente, quando elas se voltam para o
problema de saberem de onde é que vêm os bebês - o mesmo problema subjacente à
pergunta feita pela esfinge de Tebas - e na maior parte dos casos este problema
surge por causa dos temores egoístas da chegada de um novo bebê. A resposta,
que já está pronta e diz que os bebês são trazidos pela cegonha [ver em [1]],
esbarra na descrença até mesmo de crianças pequenas, numa freqüência muito
maior do que percebemos. O sentimento de que a verdade está sendo falseada
pelos adultos contribui em muito para fazer com que as crianças se sintam sós e
desenvolvam sua independência. Uma criança não tem, contudo, condições de
solucionar este problema por seus próprios meios. Sua constituição sexual não
desenvolvida estabelece limites precisos à sua capacidade de percepção. Começa
por supor que os bebês vêm de pessoas que ingerem algo de especial no alimento,
e não sabe que apenas as mulheres podem ter bebês. Depois percebe esta
limitação e deixa de considerar o comer como sendo a origem dos bebês - embora
tal teoria persista em contos de fadas. Com o aumento de sua idade, a criança
logo percebe que seu pai deve ter algum papel nessa história de ter bebês, mas
não consegue adivinhar qual. Se ocorre a criança presenciar um ato sexual,
encara-o como tentativa de subjugação, como luta, e isto constitui a
compreensão deformada, em termos sádicos, do coito. Entretanto, no início, não
correlaciona este ato com o surgimento de um bebê. Assim, também, se a criança
encontra vestígios de sangue na cama da mãe, ou nas roupas íntimas desta, toma
isto como sinal de que ela foi ferida por seu pai. Ainda mais tarde, na
infância, a criança sem dúvida suspeita que o órgão sexual do homem tem uma
parte essencial na produção de bebês, mas a única função que consegue atribuir
a esse órgão do corpo é a micção.
Bem desde o início, as crianças são unânimes em
pensar que os bebês devem nascer da barriga; devem aparecer assim como uma
massa uniforme ou como as fezes. Esta teoria não é abandonada senão quando
todos os interesses anais tivessem sido destituídos de seu valor, e é então
substituída pela hipótese de que o umbigo se abre ou que a área do peito entre
as mamas é o lugar em que se dá o nascimento. Desse modo, a criança, no
transcurso de suas investigações, aproxima-se dos fatos referentes ao sexo, ou,
sentindo-se embaraçada devido a sua ignorância, passa por eles até que,
geralmente nos anos que precedem a puberdade, recebe uma explicação, via de
regra incompleta e depreciativa, que, muitas vezes, produz efeitos traumáticos.Sem
dúvida terão ouvido falar, senhores, que, na psicanálise, o conceito daquilo
que é sexual foi indevidamente ampliado, a fim de dar suporte às teses da
causação sexual das neuroses e do significado sexual dos sintomas. Agora os
senhores estão em condições de julgar por si mesmos se essa ampliação é
injustificada. Ampliamos o conceito de sexualidade apenas o bastante para
podermos compreender a vida sexual dos pervertidos e das crianças. Isto é,
restituímos-lhe sua dimensão verdadeira. Fora da psicanálise, o que se denomina
sexualidade refere-se apenas a uma vida sexual restrita, que serve ao propósito
da reprodução e é descrita como normal.
CONFERÊNCIA XXI
O DESENVOLVIMENTO DA LIBIDO E AS
ORGANIZAÇÕES SEXUAIS
SENHORES:
Tenho a impressão de que não alcancei êxito em
convencê-los muito profundamente da importância das perversões para nossa visão
da sexualidade e, portanto, gostaria, até onde me for possível, de aprimorar e
suplementar aquilo que disse.
Não é o caso de apenas as perversões,
isoladamente, ter-nos obrigado a realizar a modificação no conceito de
sexualidade que levantou tantas objeções contra nós. O estudo da sexualidade
infantil teve muito mais influência sobre esse fato, e foi o concurso desses
dois fatores que se tornou decisivo para nós. As manifestações da sexualidade
infantil, por mais inequívocas que possam ser num período ulterior da infância,
contudo parecem mergulhadas na indefinição pelos inícios da infância. Todo
aquele que resolver desprezar a história de sua evolução e de seu contexto
analítico, negará que elas possuem características sexuais e, em vez disso,
lhes atribuirá alguam característica indiferenciada. Os senhores devem não se
esquecer de que, por agora, não possuímos nenhum critério universalmente
reconhecido da natureza sexual de um processo, salvo, novamente, uma conexão
com a função reprodutiva, que devemos rejeitar por ser um critério
demasiadamente limitado. Os critérios biológicos, como os de periodicidades de
vinte e três e de vinte e oito dias, postulados por Wilhelm Fliess [1906], são
ainda altamente controvertidos; as características químicas do processo sexual,
que podemos supor, continuam aguardando a sua descoberta. Por outro lado, as
perversões sexuais dos adultos constituem algo tangível e inequívoco. Como já o
demonstra o nome pelo qual são universalmente conhecidas, elas são
inquestionavelmente sexuais. Se descritas como indicações de degeneração, ou o
que quer que seja, ninguém ainda teve a coragem de classificá-las como algo que
não sejam fenômenos da vida sexual. Apenas em virtude delas justifica-se
afirmarmos que sexualidade e reprodução não coincidem, pois é óbvio que todas
as perversões negam o objetivo da reprodução. Aqui encontro um paralelo não
destituído de interesse. Enquanto, parra a maioria das pessoas, ‘consciente’ e
‘psíquico’ são a mesma coisa, fomos obrigados a ampliar o conceito de
‘psíquico’ e reconhecer como ‘psíquico’ algo que não é ‘consciente’. Exatamente
do mesmo modo, enquanto outras pessoas declaram serem idênticos o ‘sexual’ e o
‘referente à reprodução’ (ou, se preferem resumir mais, o ‘genital’), não
podemos evitar de postular a existência de algo ‘sexual’ que não é ‘genital’ -
que não tem nenhuma relação com a reprodução. Aqui, a similitude é apenas
formal, mas não deixa de ter um fundamento mais profundo.Se, contudo, a
existência das perversões sexuais é um argumento tão decisivo nessa questão,
por que depois de tanto tempo ainda não deu resultado e definiu a questão?
Realmente, não sei dizer. Acredito que se relaciona com o fato de essas
perversões sexuais estarem sujeitas a uma condenação muito especial, que chegou
mesmo a afetar a teoria e se opôs à avaliação científica delas. É como se
ninguém pudesse esquecer que elas não são apenas algo repulsivo, mas também
algo monstruoso e perigoso - como se as pessoas as sentissem como sedutoras e,
no fundo, tivessem de sufocar uma secreta inveja daqueles que as experimentam.
É o caso de se lembrar a confissão feita pelo Landgraf condenador, na famosa
paródia de Tannhäuser:‘Im Venusberg vergass er Ehr und
Pflicht!-Merkwürdig, unser einem passiertso etwas nicht.’Na realidade, os
pervertidos são, antes, uns pobres diabos, que têm de pagar extremamente caro
pela satisfação que obtêm a duras penas.O que torna a atividade dos pervertidos
tão inconfundivelmente sexual, por mais estranhos que sejam seus objetos e
fins, é o fato de, via de regra, um ato de satisfação pervertida ainda assim
terminar em orgasmo completo e emissão de produtos genitais. Naturalmente, só
há esse resultado quando se trata de pessoas adultas. Em crianças, o orgasmo e
a excreção genital raramente são possíveis; em lugar disso, há elementos que
certamente não são reconhecidos como sendo nitidamente sexuais.Existe algo mais
que devo acrescentar a fim de completar nosso ponto de vista referente às
perversões sexuais. Por mais infames que possam ser, por mais nítido que se
faça o contraste com a atividade sexual normal, uma reflexão tranqüila mostrará
que um ou outro traço de perversão raramente está ausente da vida sexual das
pessoas normais. Pode-se alegar que até mesmo um beijo seria considerado ato
pervertido, de vez que consiste na junção de duas zonas erógenas orais em vez
de dois genitais. No entanto ninguém o rejeita como pervertido; pelo contrário,
é permitido, nas representações teatrais, como velada referência ao ato sexual.
Mas, precisamente o beijar pode facilmente tornar-se perversão completa - ou
seja, se se torna tão intenso, que uma descarga genital e o orgasmo sobrevêm
diretamente, coisa nada rara. Podemos verificar, também, serem precondições
indispensáveis do prazer sexual que a pessoa sinta e veja o objeto; sabemos que
a pessoa poderá beliscar ou morder, no auge da excitação sexual, que o ponto
máximo de excitação dos amantes nem sempre é provocado pelos genitais, mas por
alguma outra região do corpo do objeto, e numerosas outras coisas semelhantes.
Não faz sentido excluir da classe dos normais essas pessoas com traços isolados
desse tipo e situá-las entre os pervertidos. Ao contrário, reconheceremos, cada
vez com maior nitidez, que a essência das perversões não está na extensão do
objetivo sexual, nem na substituição dos genitais, e, mesmo, nem sempre na
escolha diferente do objeto, mas sim unicamente na exclusividade com a qual se
efetuam esses desvios e em conseqüência dos quais o ato sexual a serviço do
objetivo de reprodução é posto de lado. Na medida em que as ações pervertidas
se inserem na realização do ato sexual normal, como contribuições preparatórias
ou intensificadoras, não constituem, na realidade, absolutamente perversões. O
abismo entre sexualidade normal e pervertida é, naturalmente, em muito
diminuído por fatos dessa espécie. É fácil concluir que a sexualidade normal
surgiu de algo que existia antes dela, eliminando determinados aspectos desse material
como inservíveis e reunindo o restante a fim de subordiná-lo a uma nova
finalidade, a da reprodução.
Antes de utilizarmos nosso conhecimento das
perversões, para nos atirarmos novamente ao estudo da sexualidade infantil com
base em premissas mais claras, devo chamar a atenção dos senhores para uma
importante diferença entre elas. A sexualidade pervertida é, via de regra,
muito bem centrada: todas as suas ações se dirigem para um fim - geralmente um
único fim: um dos instintos componentes assumiu predominância, e, ou é o único
instinto observável, ou submeteu os outros a seus propósitos. Nesse aspecto,
não há diferença alguma entre sexualidade pervertida e normal, a não ser o fato
de que seus instintos componentes dominantes e, conseqüentemente, seus fins
sexuais são diferentes. Em ambas, pode-se dizer, estabeleceu-se uma bem
organizada tirania, mas, em cada uma das duas, uma família diferente tomou as
rédeas do poder. À sexualidade infantil, por outro lado, falando genericamente,
falta essa centralização; seus instintos componentes separados possuem iguais
direitos, cada um dos quais seguindo seus próprios rumos na busca de prazer.
Naturalmente, tanto a ausência como a presença da centralização harmonizam-se
bem com o fato de que tanto a sexualidade pervertida como a normal surgiram da
sexualidade infantil. Aliás, também existem casos de sexualidade pervertida que
têm uma semelhança muito maior com o tipo infantil, pois, nestes, numerosos
instintos componentes levaram a cabo (ou, mais corretamente, persistiram em)
seus fins, independentemente um dos outos. Em tais casos, é melhor falar em
infantilismo da vida sexual, e não em perversão.
Assim premunidos, podemos prosseguir com o
exame de uma observação da qual certamente não seremos poupados. ‘Por que’,
perguntar-nos-ão, ‘o senhor é tão obstinado em descrever como já constituindo
sexualidade aquilo que, segundo as evidências que o senhor mesmo mostrou, são
indefiníveis manifestações da infância, a partir das quais se desenvolve
posteriormente a vida sexual? Por que, em vez disso, o senhor não se contenta
com dar-lhes uma descrição fisiológica e dizer simplesmente que, num lactente,
já observamos atividades, como a sucção sensual ou a retenção das excreções,
que nos mostram que ele procura o “prazer do órgão”? Dessa forma, o senhor
teria evitado a hipótese, tão repugnante para todo os sentimentos, de os bebês
da mais tenra idade terem uma vida sexual.’ Com efeito, senhores, não tenho em
absoluto qualquer objeção ao prazer do órgão. Sei que mesmo o supremo prazer da
união sexual apenas é um prazer do órgão, vinculado à atividade dos genitais.
Podem os senhores, porém, dizer quando esse prazer do órgão, originalmente
indiferente, adquire o caráter sexual que indubitavelmente possui em fases
posteriores do desenvolvimento? Sobre o ‘prazer do órgão’ sabemos mais do que a
respeito da sexualidade? Os senhores responderão que ele adquire caráter sexual
precisamente quando os genitais começam a desempenhar seu papel; ‘sexual’
coincide com ‘genital’. Os senhores rejeitarão até mesmo a objeção levantada
pelas perversões, assinalando a mim que, na maioria das perversões, visa-se,
afinal de contas, a um orgasmo genital, ainda que a este se chegue por outro
método que não o da união dos genitais. Os senhores certamente estarão
assumindo uma posição muito mais sólida na determinação das características do
sexual, se deste eliminarem a referência à reprodução, que se torna
indefensável nas perversões, e, em seu lugar, colocarem a atividade genital.
Mas se assim for, já não nos distanciamos para muito mais longe: é apenas uma
questão de órgãos genitais versus outros órgãos. Que julgarão os
senhores, entretanto, das numerosas experiências que lhes mostram poderem os
genitais ser representados, relativamente à sua produção de prazer, por outros
órgãos, como no caso do beijo, ou das práticas pervertidas dos sibatibas, ou
dos sintomas da histeria? Nessa neurose, é muito comum acontecer que os sinais
de estimulação, as sensações e as inervações e até mesmo os processos de
ereção, que pertencem propriamente aos genitais, se desloquem para outras
regiões remotas do corpo - como, por exemplo, deslocarem-se para cima, para a
cabeça e a face. Estando dessa forma convencidos de que não têm onde se
apoiarem para sua caracterização daquilo que é sexual, os senhores, sem dúvida,
terão de se decidir a seguir meu exemplo, e estender a descrição de ‘sexual’
também às atividades do início da infância que buscam o prazer do órgão.
Agora, para justificação minha, existem mais
duas considerações que devo pedir para levarem em conta. Como sabem, dizemos
serem sexuais as atividades imprecisas e indefiníveis do início da infância,
porque, no decurso da análise, chegamos a elas a partir dos sintomas, após
examinarmos material indiscutivelmente sexual. Não quer dizer que devam ser,
por isso, necessariamente sexuais - de acordo! Tomem, porém, um caso análogo.
Suponham que não temos meios de observar o desenvolvimento, desde as suas
sementes, de duas plantas dicotiledôneas, a macieira e o feijoeiro, mas que nos
seria possível rastrear retrospectivamente o desenvolvimento de ambos, desde a
planta inteiramente desenvolvida até o primeiro embrião com dois cotilédones.
Os dois cotilédones têm uma aparência neutra; são muito semelhantes em ambos os
casos. Devo supor, então, que sejam realmente semelhantes, e que a diferença
específica entre a macieira e o feijoeiro somente seja introduzida nas plantas
mais tarde? Ou é biologicamente mais correto acreditar que essa diferença já
está presente no embrião da planta, embora eu não possa observar qualquer
distinção nos cotilédones? Ora, estamos fazendo a mesma coisa quando dizemos
que é sexual o prazer obtido nas atividades do lactente. Aqui, não posso
discutir se todo prazer do órgão deva ser chamado de sexual, ou se, além do
sexual, há um outro que não merece ser chamado assim. É muito pouco meu
conhecimento a respeito de prazer do órgão e de suas causas; e, em vista do
caráter regressivo da análise em geral, não ficarei surpreso se, bem no final,
eu atingir aquilo que, por ora, são fatores indefiníveis.E mais outra coisa! Na
totalidade os senhores terão lucrado muito pouco com o que querem afirmar - a
pureza sexual das crianças -, ainda que consigam convencer-me de que seria
melhor considerar não-sexuais as atividades do lactente. A vida sexual das
crianças não comportaria mais todas essas dúvidas, do terceiro ano de vida em
diante: por essa época, aproximadamente, os genitais já começam a excitar-se,
um período de masturbação infantil - da satisfação genital, portanto -
inicia-se, talvez regularmente. Os fenômenos mentais e sociais da vida sexual
não necessitam mais estar ausentes; a escolha de um objeto, uma preferência
carinhosa por determinadas pessoas, até mesmo uma decisão a favor de um dos
dois sexos, ciúme - tudo isso foi estabelecido por observações imparciais,
feitas independentemente da psicanálise e antes que esta surgisse, podendo ser
confirmadas por qualquer observador que tenha o cuidado de verificá-las. Os
senhores objetarão que jamais duvidaram do surgimento precoce da afeição;
apenas duvidaram se essa afeição se revestia de um caráter ‘sexual’. É verdade
que as crianças já aprenderam a ocultar esse fato na idade entre três e oito
anos. Se os senhores estiverem, porém, atentos, poderão, mesmo assim, reunir
provas suficientes dos fins ‘sensuais’ dessa afeição, e tudo quanto lhes
faltar, depois disso, poderão facilmente obter em profusão nas investigações da
análise. Os fins sexuais, nesse período da vida, estão intimamente relacionados
com as investigações sexuais que a criança, por essa época, empreende, das
quais apresentei-lhes alguns exemplos [ver em [1] e [2]]. O caráter pervertido
de alguns desses fins depende, naturalmente, da imaturidade constitucional da
criança, pois esta ainda não descobriu o objetivo do ato da cópula.
Aproximadamente do sexto ao oitavo ano de vida
em diante, podemos observar uma parada e um retrocesso no desenvolvimento
sexual, que, nos casos em que culturalmente há mais condições, podemos chamar
de período de latência. O período de latência também pode estar ausente: não
acarreta necessariamente qualquer interrupção da atividade sexual e dos
interesses sexuais por toda a extensão da linha. A maior parte das experiências
e dos impulsos mentais anteriores ao início do período da latência agora
sucumbe à amnésia infantil - o esquecimento (sobre o qual já discorremos [ver
em [1] e segs.]) que nos oculta nossa primeira juventude e nos torna estranhos
a ela. Em toda psicanálise, coloca-se diante de nós a tarefa de trazer
novamente à memória esse período esquecido da vida. É impossível evitar a
suspeita de que o despontar da vida sexual, que se inclui nesse período, tenha
dado motivo a que fosse esquecido - que este esquecimento, de fato, é o
resultado da repressão.
A partir do terceiro ano de vida, a vida sexual
da criança mostra muita semelhança com a do adulto. Difere desta, conforme já
sabemos, por lhe faltar uma organização estável sob a primazia dos genitais,
por seus inevitáveis traços de perversão e, também, naturalmente, pela intensidade
muito menor de toda a tendência sexual. Do ponto de vista da teoria, contudo,
as fases mais interessantes do desenvolvimento sexual, ou, como diremos, do
desenvolvimento libidinal, situam-se em época anterior a esta. Esse curso do
desenvolvimento realiza-se com tanta rapidez, que, talvez, jamais pudéssemos
conseguir, pela observação direta, apreender firmemente os seus quadros
fugazes. Foi apenas com a ajuda da investigação psicanalítica das neuroses que
se tornou possível descobrir as fases ainda mais precoces do desenvolvimento da
libido. Para dizer a verdade, estas não são senão hipóteses; mas, se os
senhores efetuarem a psicanálise na prática, verificarão que são hipóteses
necessárias e úteis. Em breve irão saber como sucede a patologia poder, aqui,
revelar-nos a existência de conexão que inevitavelmente deixaríamos de perceber
em uma pessoa normal.
Por conseguinte, posso agora descrever-lhes a
forma que toma a vida sexual da criança, antes do estabelecimento da primazia
dos genitais: essa primazia já tem seus preparativos no primeiro período da
infância, prévio ao período de latência, e se organiza, permanentemente, da
puberdade em diante. Uma espécie de organização frouxa, que pode ser chamada
‘pré-genital’, existe durante esse período inicial. Durante essa fase, o que
está em primeiro plano não são os instintos componentes genitais, mas os
sádicos e anais. O contraste entre ‘masculino’ e ‘feminino’ ainda não
desempenha, aqui, nenhum papel. Em lugar disso, o contraste se estabelece entre
‘ativo’ e ‘passivo’, que pode ser descrito como precursor da polaridade sexual
e que, daí em diante, se solda a essa polaridade. O que se nos apresenta como
masculino, nas atividades dessa fase, quando o consideramos do ponto de vista
da fase genital, vem a ser expressão de um instinto de domínio que facilmente
pode transformar-se em crueldade. As tendências que visam a um fim passivo
vinculam-se à zona erógena do orifício anal, que é muito importante nesse
período. Os instintos de olhar e de adquirir conhecimento [instintos
escopofílico e epistemológico] estão funcionando poderosamente; os genitais
realmente desempenham seu papel na vida sexual apenas como órgãos de excreção
da urina. Os instintos componentes parciais dessa fase não existem sem objetos,
mas esses objetos não convergem necessariamente em um único objeto. A
organização sádico-anal é o precursor imediato da fase de primazia genital. Um
estudo detalhado mostra quanto dele se mantém na forma definitiva e ulterior
das coisas, e, também, revela a forma em que seus instintos parciais são
compelidos a tomar seu lugar na nova organização genital. Anterior à fase
sádico-anal do desenvolvimento libidinal, podemos divisar um estádio de
organização ainda mais precoce e primitivo, no qual a zona erógena da boca desempenha
o papel principal. Como podem perceber, a atividade sexual da sucção [ver em
[1] e [2]] pertence a esse estádio. Devemos admirar a compreensão dos antigos
egípcios que, na sua arte, representavam as crianças, inclusive o deus Hórus,
com um dedo na boca. Apenas recentemente, Abraham [1916] deu exemplo dos
vestígios que essa fase oral primitiva deixa após si na vida sexual posterior.
Facilmente posso supor, senhores, que essa
última descrição das organizações sexuais serviu mais para confundi-los do que
para instruí-los, e pode ser que mais uma vez eu tenha entrado em demasiados
detalhes. Os senhores devem, contudo, ter paciência. O que acabaram de ouvir
lhes será de grande valor a partir de suas ulteriores aplicações. Por agora,
devem reter firme em mente que a vida sexual (ou, conforme dizemos, a função
libidinal) não emerge como algo pronto e nem tem seu desenvolvimento ulterior
ditado pelo seu próprio aspecto inicial, mas passa por uma série de fases
sucessivas que não se parecem entre si; sua evolução repete-se, portanto,
várias vezes - como o da lagarta em borboleta. O ponto crítico desse
desenvolvimento é a subordinação de todos os instintos parciais à primazia dos
genitais e, com isso, a sujeição da sexualidade à função reprodutiva. A esta
precede uma vida sexual que poderia ser descrita como anárquica - a atividade
independente dos diferentes instintos parciais buscando o prazer do órgão. Tal
anarquia é mitigada por inícios infrutíferos de organizações ‘pré-genitais’ -
uma fase sádico-anal precedida por uma fase oral que é, talvez, a mais
primitiva. Ademais, existem os processos variados, ainda incompletamente
conhecidos, que levam um estádio de organização ao estádio subseqüente, mais
elevado. Posteriormente saberemos quão importantes são os esclarecimentos que
se obtêm, a respeito das neuroses, com o fato de a libido passar através de um
percurso evolutivo tão longo e sujeito a tantas interrupções.
Hoje,
seguiremos um outro aspecto desse desenvolvimento - isto é, a relação entre os
instintos sexuais parciais e seu objeto. Ou melhor, faremos um rápido apanhado
dessa evolução e nos deteremos um pouco mais em uma de suas conseqüências
relativamente tardias. Alguns dos componentes do instinto sexual têm, portanto,
desde o início, um objeto e aderem a este - por exemplo o instinto de domínio
(sadismo) e os instintos escopofílico e epistemológico. Outros, mais
definidamente vinculados a determinadas zonas erógenas do corpo, têm,
inicialmente, apenas um objeto, enquanto estiverem ainda ligados às funções
não-sexuais [ver em [1], acima], e o abandonam quando se separam dessas funções
não-sexuais. Assim, o primeiro objeto do componente oral do instinto sexual é o
seio materno, que satisfaz a necessidade de alimento do bebê. O componente
erótico, que é satisfeito simultaneamente durante a sucção [nutricional],
torna-se independente com o ato da sucção sensual [lutschen]; abandona o
objeto externo e o substitui por uma área do corpo do próprio bebê. O instinto
oral torna-se auto-erótico, como o são, no início, os instintos anais e
outros instintos erógenos. O desenvolvimento subseqüente, para dar ao assunto
toda a concisão possível, tem dois objetivos: primeiro, o abandono do
auto-erotismo, logo, a substituição do corpo da própria criança por um objeto
externo; e, em segundo lugar, a unificação dos diversos objetos dos instintos
separados e sua substituição por um único objeto. Naturalmente isto só pode ser
realizado se o objeto, de novo, for um corpo total, semelhante ao do próprio
sujeito. E não pode ser efetuado, a menos que alguns impulsos instintuais
auto-eróticos sejam abandonados como inservíveis.
Os processos referentes ao encontro de um
objeto são muito complexos, e até agora ainda não se fez nenhuma descrição
completa dos mesmos. Para nossos propósitos, pode-se assinalar especialmente
que, nos anos da infância anteriores à puberdade, quando o processo atingiu
alguma definição, o objeto encontrado vem a ser quase idêntico ao primeiro
objeto do instinto de prazer oral, que foi obtido por ligação [ao instinto
nutricional]. Embora esse objeto não seja realmente o seio materno, pelo menos
é a mãe. Dizemos que a mãe é o primeiro objeto de amor. Pois falamos em
amor quando trazemos para o primeiro plano o lado mental da tendências sexuais
e quando queremos repelir as exigências instintuais ‘sensuais’ ou físicas
subjacentes, ou esquecê-las no momento. Na época em que a mãe se torna o objeto
de amor da criança, nesta o trabalho psíquico da repressão já começou, trabalho
que consiste em uma parte dos fins sexuais subtrair-se ao conhecimento
consciente. A essa escolha que a criança faz, ao tornar sua mãe o primeiro
objeto de seu amor, vincula-se tudo aquilo que, sob o nome de ‘complexo de
Édipo’, veio a ter tanta importância na explicação psicanalítica das neuroses e
tem tido uma parte não menor, talvez, na resistência à psicanálise (ver em
[1]).
Ouçam este episódio ocorrido no transcurso da
guerra atual. Um dos bravos discípulos da psicanálise foi designado oficial
médico no front alemão, em algum lugar da Polônia. Ele chamou a atenção
de seus colegas pelo fato de, ocasionalmente, exercer inesperada influência
sobre algum paciente. Indagado a respeito, reconheceu que estava empregando os
métodos da psicanálise e declarou-se disposto a transmitir seu conhecimento a seus
colegas. Depois disso, todas as noites os oficiais médicos da tropa, seus
colegas e superiores, reuniam-se a fim de aprender as doutrinas secretas da
análise. Tudo correu bem, durante algum tempo; quando, porém, falou ao seu
auditório a respeito do complexo de Édipo, um de seus superiores levantou-se,
declarou que não acreditava nisso, que constituía um ato vil, por parte do
conferencista, falar-lhes a respeito de tais coisas, a homens honestos que
estavam lutando por seu país e que eram pais de família; e que proibia a
continuação das conferências. Este foi o final do caso. O analista viu-se
transferido para outra parte do front. Parece-me mau, entretanto, se uma
vitória alemão exige que a ciência se ‘organize’ dessa maneira, e a ciência
alemã não reagirá bem a uma organização dessa espécie.
E, agora, os senhores estarão ávidos por ouvir
o que esse terrível complexo de Édipo contém. Seu nome o diz. Todos os senhores
conhecem a lenda grega do rei Édipo, fadado pelo destino a matar seu pai e a
desposar sua mãe, que fez todo o possível para escapar à decisão do oráculo e
puniu-se a si próprio cegando-se, ao saber que, apesar de tudo, havia, sem
querer, cometido ambos os crimes. Suponho que muito dos senhores devem ter
sentido o efeito avassalador da tragédia em que Sófocles abordou essa história.
A obra do dramaturgo atenienese mostra a maneira como o feito de Édipo,
realizado num passado já remoto, é gradualmente trazido à luz por uma
investigação engenhosamente prolongada e restituído à vida por meio de sempre
novas séries de provas. Nesse aspecto, tem certa semelhança com o progresso de
uma psicanálise. No decorrer do diálogo, Jocasta, a iludida mãe e esposa,
declara-se contrária à continuação da investigação. Apela para o fato de que
muitas pessoas sonharam com dormir com a própria mãe, mas que os sonhos devem
ser menosprezados. Não menosprezamos os sonhos - muito menos os sonhos típicos
que muitas pessoas sonham; e não duvidamos que o sonho a que Jocasta se referia
tem íntima conexão com o estranho e terrível conteúdo da lenda. Uma coisa
surpreendente é que a tragédia de Sófocles não suscita um repúdio indignado na
platéia - uma reação semelhante à do nosso sincero médico militar, contudo
muito mais justificada. Basicamente, trata-se, pois, de uma obra amoral:
absolve os homens de responsabilidade moral, mostra os deuses como promotores
do crime e demonstra a importância dos impulsos morais dos homens que lutam
contra o crime. Facilmente poder-se-ia supor que o conteúdo da lenda tivesse em
vista incriminar os deuses e o destino; e , nas mãos de Eurípides, crítico e
inimigo dos deuses, provavelmente ter-se-ia tornado uma incriminação. Com o
devoto Sófocles, todavia, não há lugar para uma aplicação dessa espécie. A
dificuldade então é superada através do piedoso sofisma segundo o qual
submeter-se à vontade dos deuses constitui a mais elevada moralidade, mesmo
quando isto conduza ao crime. Não consigo pensar que essa moralidade seja um
ponto forte na peça; aliás, não tem nenhuma influência em seu efeito. Não é a ela
que o expectador reage, mas ao sentido e ao conteúdo secreto da lenda. Reage
como se, por auto-análise, tivesse reconhecido o complexo de Édipo em si
próprio e desvendado a vontade dos deuses e do oráculo como disfarces
enaltecidos de seu próprio inconsciente. É como se fosse obrigado a recordar os
dois desejos - eliminar o pai e, em lugar deste, desposar a mãe - e
horrorizar-se com esses mesmos desejos. E o espectador compreende as palavras
do dramaturgo, como se elas fossem dirigidas a ele: ‘Tu estás lutando em vão
contra a tua responsabilidade, e estás declarando em vão o que fizeste em
oposição a essas intenções criminosas. És culpado por não teres conseguido
destruí-las; elas ainda persistem em ti, inconscientemente.’ E existe verdade
psicológica encerrada nessa frase. Conquanto um homem tenha reprimido seus maus
impulsos para dentro do inconsciente e prefira dizer a si mesmo,
posteriormente, que não é responsável por eles, ele, não obstante, tem de
reconhecer essa responsabilidade na forma de um sentimento de culpa cuja origem
lhe é desconhecida.Não pode haver dúvida de que o complexo de Édipo pode ser
considerado uma das mais importantes fontes do sentimento de culpa com que tão
freqüentemente se atormentam os neuróticos. E mais do que isso: em um estudo
sobre o início da religião e da moralidade humanas, que publiquei em 1913 sob o
título de Totem e Tabu [Freud, 1912-13], apresentei a hipótese de que a
humanidade como um todo pode ter adquirido seu sentimento de culpa, a origem
primeira da religião e da moralidade, no começo de sua história, em conexão com
o complexo de Édipo. Eu teria muita satisfação em dizer-lhes mais a esse
respeito, prefiro, porém, deixá-lo de lado. Sempre que se começa com esse
assunto, é difícil interromper; devemos, contudo, retornar à psicologia
individual.
O que, então, se pode reunir acerca de complexo
de Édipo, a partir da observação direta das crianças, na época em que fazem sua
escolha de um objeto, antes do período de latência? Pois bem, é fácil verificar
que o homenzinho quer ter sua mãe toda para si mesmo, que sente a presença de
seu pai como um estorvo, que fica ressentido quando o pai dispensa qualquer
sinal de afeição à mãe, e que mostra satisfação quando o pai saiu de viagem ou
está ausente. Amiúde expressará seus sentimentos diretamente em palavras e
prometerá à sua mãe casar com ela. Pensar-se-á que isto assume proporções
modestas, se comparando com os feitos de Édipo; na realidade, porém, é, nada
mais nada menos, basicamente a mesma coisa. A observação é freqüentemente
obscurecida pela circunstância de, em outras ocasiões, a própria criança dar
mostras de grande afeição pelo pai. Atitudes emocionais contrárias - ou, seria
melhor dizer, ‘ambivalentes’ - que, em adultos, conduziriam a um conflito,
permanecem, porém, compatíveis uma com a outra, por longo tempo, nas crianças,
como também, mais tarde, encontram um lugar permanente, lado a lado, no
inconsciente. Do mesmo modo, haver-se-á de objetar que a conduta do menino
origina-se em motivos egoísticos e não oferece base para se postular um
complexo erótico: a mãe satisfaz todas as necessidades da criança, de modo que
esta tem interesse em evitar que ela venha a dispensar cuidados a uma outra
pessoa. Esse fato também é procedente; mas, logo tornar-se-á claro que, nessa situação,
como em outras semelhantes, o interesse egoístico simplesmente oferece um ponto
de apoio ao qual a tendência erótica se vincula. O menino pode mostrar a mais
indisfarçada curiosidade sexual para com sua mãe, pode insistir em dormir ao
seu lado, à noite, pode impor sua presença, junto a ela quando ela está se
vestindo, ou, mesmo fazer tentativas reais de seduzi-la, conforme sua mãe
divertidamente perceberá e relatará - tudo isso demonstra inequivocamente a
natureza erótica de sua ligação com a mãe. E não se deve esquecer que a mãe
dedica a mesma atenção à sua filhinha, sem produzir igual resultado, e que seu
pai amiúde compete com a mãe em proporcionar cuidados ao menino, e, no entanto,
não lhe é atribuída a mesma importância que a ela. Em resumo, não existe
crítica que possa eliminar dessa situação o fator da preferência sexual. Do
ponto de vista do interesse egoístico, seria simplesmente uma tolice o
homenzinho não preferir suportar o fato de ter duas pessoas a seu serviço, a
ter apenas uma delas.Como vêem, descrevi-lhes apenas a relação de um menino
para com seu pai e sua mãe. As coisas se passam de modo exatamente igual com as
meninas, com as devidas modificações: uma afetuosa ligação com o pai, uma
necessidade de eliminar a mãe, por julgá-la supérflua, e de tomar-lhe o lugar,
um coquetismo que já utiliza os métodos da futura feminilidade - tudo isso
oferece um quadro encantador, especialmente em meninas, o que nos faz esquecer
as conseqüências possivelmente graves que se escondem nessa situação infantil.
Não devemos deixar de acrescentar que os próprios pais freqüentemente exercem
uma influência decisiva no despertar da atitude edipiana da criança, ao cederem
ao empuxo da atração sexual, e que, onde houver diversas crianças, o pai dará
definidas provas de sua maior afeição por sua filhinha e a mãe, por seu filho.
Mas a natureza espontânea do complexo de Édipo nas crianças não pode ser
seriamente abalada até mesmo por esse fator.Quando outras crianças aparecem em
cena, o complexo de Édipo avoluma-se em um complexo de família. Este, com novo
apoio obtido a partir do sentimento egoístico de haver sido prejudicado, dá
fundamento a que os novos irmãos e irmãs sejam recebidos com aversão, e faz com
que, sem hesitações, sejam, em desejos, eliminados. Também é verdade que, via
de regra, as crianças são muito mais capazes de expressar verbalmentes esses
sentimentos de ódio, do que aqueles decorrentes do complexo parental. Se um
desejo desse tipo se realiza, e se o irmão que se acrescentou à família
desaparece novamente, logo depois, devido à sua morte, podemos descobrir, numa
análise subseqüente, quão importante foi para a criança essa experiência
referente à morte, embora ela não tenha necessariamente permanecido fixada em
sua memória. Uma criança que tenha sido posta em segundo lugar pelo nascimento
de um irmão ou irmã, e que agora, pela primeira vez, é quase isolada de sua
mãe, não perdoa a esta, com facilidade, sua perda de lugar; sentimentos que, em
um adulto, seriam descritos como de intenso ressentimento, surgem na criança e
freqüentemente constituem a base de permanente desavença. Já mencionamos [ver
em [1]] que as investigações sexuais da criança, com todas as suas
conseqüências, geralmente se originam dessa experiência vital sua. À medida que
esses irmãos e irmãs crescem, a atitude do menino para com eles sofre
transformações muito significativas. Pode tomar sua irmã como objeto de amor, à
maneira de substituta da mãe infiel. Onde há diversos irmãos, todos cortejando
uma irmã mais nova, surgem, já na época infantil, situações de rivalidade
hostil que são tão importantes, na vida, mais tarde. Uma menina pode encontrar
em seu irmão, mais velho, um substituto para seu pai, que não mantém mais um
interesse afetuoso por ela como o fazia em anos anteriores. Ou pode tomar uma
irmã mais nova como substituta da criança que ela, em vão, desejou ter de seu
pai.
Isto e muito mais de natureza semelhante
ser-lhe-á demonstrado pela observação direta de crianças e pelo exame de
recordações nitidamente retidas desde a infância, não influenciadas pela
análise. Disto os senhores concluirão, entre outras coisas, que a posição que
uma criança ocupa na seqüência da família é fator de extrema importância na
determinação da forma de sua vida posterior, e deve merecer consideração em
toda anamnese. Mas, o que é mais importante, em vista dessas informações, que
podem ser obtidas tão facilmente: os senhores não poderão recordar sem um
sorriso os pronunciamentos da ciência ao explicar a proibição do incesto. [Cf.
pág. 211, acima.] Não tem fim o que já se inventou sobre o assunto. Tem sido
dito que a tendência sexual é desviada de membros da mesma família pertencentes
ao sexo oposto, pelo fato de terem vivido juntos desde a infância; ou ainda,
que um propósito biológico de evitar a consangüinidade é representado
psiquicamente por um inato horror ao incesto. Nisso tudo, deixa-se de atentar
para o fato de que uma proibição tão peremptória não seria necessária nas leis
e nos costumes, se houvesse barreiras naturais seguras contra a tentação do
incesto. A verdade é justamente o oposto. A primeira escolha objetal de um ser
humano é regularmente incestuosa, dirigida, no caso do homem, à sua mãe e à sua
irmã; e necessita das mais severas proibições para impedir que essa tendência
infantil persistente se realize. Entre raças primitivas viventes ainda nos dias
atuais, entre selvagens, as proibições contra o incesto são ainda muito mais
estritas do que entre nós, e Theodor Reik, ainda recentemente, num brilhante
trabalho [Reik, 1915-16] demonstrou que os ritos da puberdade dos selvagens,
que representam um renascimento, têm o sentido de liberar o menino de seus
laços incestuosos com sua mãe e de reconciliá-lo com seu pai.A mitologia lhes
ensinará que o incesto que se pensa ser tão rechaçado pelos seres humanos, é
inequivocamente permitido aos deuses. E, na história antiga, podem constatar
que o casamento incestuoso com a irmã era um preceito santificado imposto à
pessoa do soberano (entre os faraós egípcios e os incas do Peru). O que estava
em jogo, portanto, era um privilégio proibido ao homem comum.
Um dos crimes de Édipo foi o incesto com a mãe,
o outro foi o parricídio. Pode-se observar, de passagem, que estes são também
os dois grandes crimes proscritos pelo totemismo, a primeira instituição
social-religiosa da humanidade.Retornemos, agora, da observação direta das
crianças ao exame analítico dos adultos que se tornaram neuróticos. Que ajuda
nos proporciona a análise para um melhor conhecimento do complexo de Édipo?
Isto pode ser respondido numa palavra. A análise confirma tudo o que a lenda
descreve. Mostra que cada um desses neuróticos também tem sido um Édipo, ou, o
que vem a dar no mesmo, como reação ao complexo, tornou-se um Hamlet. A
explicação analítica do complexo de Édipo é, naturalmente, uma ampliação e uma
versão mais crua do esboço infantil. O ódio ao pai, os desejos de morte contra
ele, já não são mais insinuados timidamente, a afeição pela mãe admite que seu
objetivo é possuí-la como mulher. Devemos realmente atribuir esses impulsos emocionais
turbulentos e externos aos tenros anos da infância, ou será que a análise nos
engana com a mistura de algum fator novo? Não é difícil achar um desses
fatores. Sempre que alguém faz um relato de um acontecimento passado, ainda que
seja um historiador, devemos ter em mente o que é que ele intencionalmente faz
recuar do presente, ou de alguma época intermediária, para o passado,
falsificando, com isso, o seu quadro referente ao fato. No caso de um
neurótico, até mesmo surge a questão de saber se esse recuar para o passado é
totalmente não-intencional; de ora em diante, teremos de descobrir as razões
disso, e teremos de, no geral, considerar atentamente o fato do ‘fantasiar
retrospectivo’. Facilmente podemos verificar também que o ódio ao pai é
reforçado por diversos fatores que surgem de épocas e circunstâncias
posteriores, e que os desejos sexuais dirigidos à mãe assumem formas tais, que
devem ter sido estranhos até mesmo para uma criança. Entretanto, seria um
esforço vão procurar explicar a totalidade do complexo de Édipo através do
fantasiar retrospectivo e vinculá-la a épocas posteriores. Seu núcleo infantil
e, no geral, seus aspectos acessórios permanecem do modo como foram confirmados
pela observação direta de crianças.O fato clínico que se nos apresenta sob a
forma do complexo de Édipo, tal como é estabelecido pela análise, é da mais
alta significação prática. Constatamos que, na puberdade, quando os instintos
sexuais, pela primeira vez, fazem suas exigências com toda a sua força, os
velhos objetos incestuosos familiares são retomados mais uma vez e novamente
catexizados com a libido. A escolha objetal infantil era apenas uma escolha
débil, mas já era um começo que indicava a direção para a escolha objetal na
puberdade. Nesse ponto, desenrolam-se, assim, processos emocionais muito
intensos que seguem a direção do complexo de Édipo ou reagem contra ele,
processos que, entretanto, de vez que suas premissas se tornaram intoleráveis,
devem, em larga escala, permanecer apartados da consciência. Dessa época em
diante, o indivíduo humano tem de se dedicar à grande tarefa de desvincular-se
de seus pais e, enquanto essa tarefa não for cumprida, ele não não pode deixar
de ser uma criança para se tornar membro da comunidade social. Para o filho,
essa tarefa consiste em desligar seus desejos libidinais de sua mãe e
empregá-los na escolha de um objeto amoroso real externo e em reconciliar-se
com o pai, se permaneceu em oposição a este, ou em liberar-se da pressão deste,
se, como reação à sua rebeldia infantil, tornou-se subserviente a ele. Essas
tarefas são propostas a todas as pessoas; e é de causar espécie quão raramente
as pessoas enfrentam tais tarefas de maneira ideal - isto é, de maneira tal que
seja correta, tanto psicológica como socialmente. Os neuróticos, porém, não
chegam absolutamente a nenhuma solução: o filho permanece por toda a vida
subjugado à autoridade do pai e é incapaz de transferir sua libido a um objeto
sexual externo. Com o relacionamento modificado, o mesmo destino pode esperar a
filha. Nesse sentido, o complexo de Édipo justificadamente pode ser considerado
como o núcleo das neuroses.
Conforme podem imaginar, senhores, passei em
revista, muito rapidamente, grande número de considerações de importância
prática e teoria relacionadas com o complexo de Édipo. E não adentrarei suas
variações e suas possíveis inversões. Entre suas conexões mais remotas, apenas
mencionarei para os senhores um detalhe que gerou um efeito de alta importância
na produção literária. Em um valioso trabalho, Otto Rank [1912b] mostrou que os
dramaturgos de todos os tempos escolheram o seu material, geralmente, a partir
do complexo de Édipo e do incesto, bem como das suas variações e disfarces. E
não se deve deixar passar despercebido que os dois desejos criminosos do
complexo de Édipo foram reconhecidos como os verdadeiros representantes da vida
irrestrita dos instintos, muito antes da época da psicanálise. Entre os
escritos do enciclopedista Diderot, os senhores encontrarão um diálogo notável,
le neveu de Rameau, que foi traduzido para o alemão por uma pessoa do
porte de Goethe. Ali os senhores podem ler esta frase extraordinária: ‘Si le
petit sauvage était abandonné à lui-même, qu’il conservât toute son
imbécillité, et qu’il réunît au peu de raison de l’enfant au berceau la violence
des passions de l’homme de trente ans, il tordrait le col à son père et
coucherait avec sa mére.’Existe, porém, algo mais, que não posso omitir. Não se
deve permitir que reste infrutífera a advertência referente aos sonhos, que nos
faz a mãe e esposa de Édipo. Recordam-se os senhores do resultado de nossas
análises de sonhos - como os desejos que formam os sonhos são tão
freqüentemente de natureza pervertida ou incestuosa, ou revelam uma
insuspeitada hostilidade para com aqueles que são mais chegados e mais caros ao
sonhador? Naquela ocasião [ver em [1] e [2]] não demos nenhuma explicação da
origem desses impulsos maus. Agora os senhores mesmos podem encontrá-la. São
arranjos da libido e das catexias objetais que datam do início da infância e
que, desde então, foram abandonadas no que respeita à vida consciente, mas que
provam estar ainda presentes, no período noturno, e ser capazes de funcionar em
certo sentido. No entanto, de vez que todos, e não apenas os neuróticos,
experimentam esses sonhos pervertidos, incestuosos e assassinos, podemos
concluir que as pessoas que são normais, atualmente, percorreram um caminho
evolutivo que passou pelas perversões e catexias objetais do complexo de Édipo,
que este é o caminho do desenvolvimento normal e que os neuróticos simplesmente
nos mostram, de forma ampliada e grosseira, aquilo que a análise dos sonhos nos
revela também em pessoas sadias. E esta é uma das razões por que abordei o
estudo dos sonhos antes do estudo dos sintomas neuróticos.
CONFERÊNCIA XXII
ALGUMAS IDÉIAS SOBRE DESENVOLVIMENTO
E REGRESSÃO - ETIOLOGIA
SENHORAS E SENHORES:
Ouviram dizer que a função libidinal sofre uma
prolongada evolução, até que possa, segundo o que se descreve como forma
normal, ser posta a serviço da reprodução. Gostaria de atrair sua atenção,
agora, para a importância desse fato na causação das neuroses.
Penso que estamos de acordo com as teorias da
patologia geral ao supormos que um desenvolvimento dessa espécie envolve dois
perigos: primeiro, de inibição, e, segundo, de regressão. Isto é,
em vista da tendência geral dos processos biológicos à variação, não há como
fugir ao fato de que nem todas as fases preparatórias são ultrapassadas com
igual êxito e superadas completamente: partes da função serão retidas
permanentemente nesses estádios iniciais e o quadro total do desenvolvimento
será limitado por determinada quantidade de inibição de desenvolvimento.
Procuremos algumas analogias com esses
processos em outras áreas de conhecimento. Quando, conforme tantas vezes
aconteceu nos períodos iniciais da história do homem, um povo inteiro abandonou
seu local de morada e procurou um novo, podemos ter a certeza de que nem todos
os indivíduos desse povo chegaram à nova localidade. Afora outras perdas, deve
ter acontecido, regularmente, que pequenos grupos ou bandos de migrantes
pararam no caminho e se fixaram nesses locais de parada, enquanto o grosso da
massa prosseguia adiante. Ou, conforme é do conhecimento dos senhores, voltando
a uma comparação mais próxima, nos mamíferos superiores as glândulas sexuais
masculinas, que inicialmente se situam profundamente na cavidade abdominal,
iniciam uma migração, em determinado estádio da vida intra-uterina, que as traz
quase diretamente sob a pele da extremidade pélvica. Em conseqüência dessa migração,
constatamos, em alguns indivíduos masculinos, que um desses órgãos pares ficou
para trás, dentro da cavidade pélvica, ou que ficou alojado permanentemente
dentro do que se conhece como canal inguinal, através do qual ambos os órgãos
devem passar no decurso de sua migração; ou, pelo menos, que esse canal
permaneceu aberto, embora normalmente devesse fechar-se após as glândulas
haverem completado sua mudança de localização. Uma vez, quando eu era um jovem
estudante, dediquei-me, sob a direção de von Brücke, a meu primeiro trabalho
científico e interessei-me pela origem das raízes nervosas posteriores da
medula espinal de um pequeno peixe de estrutura muito primitiva; constatei que
as fibras nervosas dessas raízes tinham sua origem em células grandes do corno
posterior da substância cinzenta, o que já não acontece mais com outros
vertebrados. Mas também descobri, logo depois, que células nervosas desse tipo
estão presentes fora da substância cinzenta, por toda a extensão do chamado
gânglio espinal da raiz posterior; e desse fato concluí que as células dessas
massas ganglionares migraram da medula espinal ao longo das raízes dos nervos.
Isto também é demonstrado pela sua história evolutiva. Nesse pequeno peixe,
porém, todo o percurso de sua migração foi demonstrado pelas células que
ficaram para trás.Se os senhores se aprofundarem mais no assunto, não terão
dificuldade em detectar os pontos fracos dessas comparações. Portanto, declaro,
sem mais delongas, que, no caso de cada uma das tendências sexuais, considero
possível que algumas partes das mesmas tenham ficado para trás, em estádios
anteriores de seu desenvolvimento, embora outras partes possam ter atingido o
objeto final. Aqui os senhores reconhecerão que estamos delineando cada uma
dessas tendências como uma corrente que tem sido contínua desde o começo da
vida, a qual, porém, dividimos, em certa medida artificialmente, em sucessivos
avanços separados. Justifica-se a sua impressão de que essas idéias necessitam
de maior esclarecimento; contudo, ao tentá-lo, afastar-nos-íamos demais do
tema. Permitam-me ainda esclarecer que nos propomos descrever o retardamento de
uma tendência parcial num estádio anterior como sendo uma fixação - isto
é, uma fixação do instinto.O segundo perigo em um desenvolvimento por etapas
desse tipo reside no fato de que as partes que prosseguiram adiante podem
também, com facilidade, retornar retrocessivamente a um desses estádios
precedentes - o que descrevemos como regressão. A tendência ver-se-à
conduzida a uma regressão desse tipo, se o exercício de sua função - isto é, a
obtenção do seu objetivo de satisfação - depara, em sua forma posterior ou mais
altamente desenvolvida, com poderosos obstáculos externos. É plausível supor
que a fixação e a regressão não sejam independentes uma da outra. Quanto mais
intensas as fixações em seu rumo ao desenvolvimento, mais prontamente a função
fugirá às dificuldades externas, regressando às fixações - portanto, mais
incapaz se revela a função desenvolvida de resistir aos obstáculos externos situados
em seu caminho. Considerem que, se um povo em migração deixou atrás de si
fortes destacamentos nos locais de parada de seu deslocamento, é provável que
os escalões mais avançados tenderão a se retirar para esses locais de parada
quando forem derrotados ou quando se defrontarem com um inimigo superior. Mas,
também estarão em maior perigo de serem derrotadas, quanto maior for o número
deles, que ficou para trás na migração.
Para compreenderem as neuroses, é importante
não perderem de vista essa relação entre fixação e regressão. Isto lhes dará
maior segurança ao enfrentarem a questão da formação das neuroses - a questão
da etiologia das neuroses, que em breve haveremos de abordar.
No momento atual, deter-nos-emos um pouco mais
na regressão. Após essas coisas que os senhores aprenderam a respeito do
desenvolvimento da função libidinal, estarão preparados para saber que há
regressão de dois tipos: um retorno aos objetos que inicialmente foram
catexizados pela libido, os quais, conforme sabemos, são de natureza
incestuosa; e um retorno da organização sexual como um todo a estádios
anteriores. Ambos os tipos de regressão são encontrados nas neuroses de
transferência [ver em [1]] e desempenham importante papel no seu mecanismo.
Particularmente, um retorno aos primeiros objetos incestuosos da libido é um
aspecto que se encontra nos neuróticos com regularidade realmente fatigante. Há
muito mais coisas a dizer acerca das regressões da libido, quando levamos em
consideração também outros grupos de neuroses, as narcísicas, que, por ora, não
pretendemos abordar. Esses distúrbios dão-nos acesso a outros processos de
desenvolvimento da função libidinal que ainda não mencionamos, e nos mostram,
por conseguinte, ainda outras formas de regressão. Acima de tudo, penso, todavia,
que devo adverti-los para não confundirem regressão com repressão
e ajudá-los a formar uma idéia clara das relações entre os dois processos. A
repressão, como se recordam [ver em [1] e segs], é o processo pelo qual um ato
admissível à consciência, portanto um ato que pertence ao sistema Pcs.,
é tornado inconsciente - é repelido para dentro do sistema Ics. E
igualmente falamos em regressão se o ato mental inconsciente é de todo impedido
de ter acesso ao vizinho sistema pré-consciente e é repelido, no limiar, pela
censura. Assim, o conceito de repressão não implica nenhuma relação com a
sexualidade: devo pedir-lhes que tomem especial nota disto. Indica um processo
puramente psicológico, que podemos caracterizar mais bem ainda se o
denominarmos processo ‘topográfico’. Com isso queremos dizer que repressão diz
respeito às regiões psíquicas que supomos existirem ou, se abandonamos essa
desajeitada hipótese de trabalho, à construção do aparelho mental a partir dos
diferentes sistemas psíquicos.
A comparação que propusemos chamou nossa
atenção, pela primeira vez, para o fato de que até então não estivemos usando a
palavra ‘regressão’ em seu sentido geral, mas sim em um sentido muito especial.
Se lhe damos um sentido geral - o de um retorno desde um nível de desenvolvimento
mais elevado para um nível inferior - então a repressão também pode ser
enquadrada no conceito de regressão, de vez que também a repressão pode ser
descrita como um retorno a um estádio anterior e mais profundo na evolução de
um ato psíquico. No caso da repressão, porém, esse movimento retrocessivo não
nos interessa, já que falamos também em repressão, no sentido dinâmico,
quando um ato psíquico é detido no estádio inferior, inconsciente. O fato é ser
a repressão um conceito topográfico-dinâmico, ao passo que a regressão é um
conceito puramente descritivo. O que até agora tratamos como regressão,
entretanto, e temos relacionado à fixação, significou exclusivamente um retorno
da libido a anteriores pontos de interrupção de seu desenvolvimento - isto é,
algo inteiramente diferente, em sua natureza, da repressão, e inteiramente
independente desta. E não podemos chamar de regressão da libido um processo
puramente psíquico, nem podemos dizer onde deveríamos localizá-lo no aparelho
mental. E, embora seja verdade que ele exerce a mais poderosa influência sobre
a vida mental, o fator mais importante nele é o fator orgânico.Senhores,
exposições como esta estão fadadas a se tornarem um tanto áridas. Voltemos,
pois, ao material clínico, a fim de encontrarmos aplicações que serão mais
interessantes. Como sabem, a histeria e a neurose obsessiva são as duas
principais representantes do grupo das neuroses de transferência. Ora, é
verdade que, na histeria, opera-se uma regressão da libido aos primitivos
objetos sexuais incestuosos e que isto ocorre muito regularmente; contudo, não
existe, a bem dizer, nenhuma regressão a um estádio anterior da organização
sexual. Para contrabalançar isso, a parte principal do mecanismo da histeria é
desempenhada pela repressão. Se pudesse aventurar-me a completar aquilo que já
temos por certo a respeito dessa neurose, fazendo alguma hipótese, tentaria
explicar a situação da seguinte maneira. A unificação dos instintos parciais
sob a primazia dos genitais foi conseguida; seus resultados, porém, se
defrontam com a resistência do sistema pré-consciente que se vincula com a
consciência. Assim, a organização genital é válida para o inconsciente, mas não
da mesma forma para o pré-consciente; e essa rejeição por parte do
pré-consciente configura um quadro que tem determinadas semelhanças com a
situação existente antes da primazia genital. Não obstante, é algo muito
diferente.
Dos dois tipos de regressão da libido, a
regressão que se faz a uma fase anterior da organização sexual é, de longe, a mais
surpreendente. Como esta se encontra ausente na histeria, e de vez que nossa
completa visão das neuroses ainda está excessivamente influenciada pelo estudo
da histeria, cronologicamente a primeira a ser estudada, assim a significação
da regressão libidinal também se nos tornou compreensível muito depois de
compreendermos a importância da repressão. Devemos estar preparados para
constatar que nossos pontos de vista estarão sujeitos ainda a outras ampliações
a reavaliações, quando pudermos levar em consideração não apenas a histeria e a
neurose obsessiva, como também as outas neuroses, as neuroses narcísicas.
Na neurose obsessiva, pelo contrário, é a
própria regressão da libido ao estádio preliminar da organização sádico-anal o
fato mais marcante e o fato decisivo para aquilo que se manifesta nos sintomas.
A impulsão de amor, quando isto aconteceu, é obrigada a disfarçar-se em
impulsão sádica. A idéia obsessiva ‘Eu gostaria de te matar’, quando despojada
de determinados acréscimos, não casuais, contudo indispensáveis, não significa,
no fundo, outra coisa senão. ‘Eu gostaria de me deleitar com amor’. Se,
ademais, considerarem que houve simultaneamente uma regressão referente ao
objeto, de modo que essas impulsões se apliquem apenas àqueles objetivos mais chegados
e mais caros ao paciente, os senhores poderão formar uma idéia do horror que
essas obsessões causam no paciente e, ao mesmo tempo, da aparência estranha que
elas conferem a essa percepção consciente. Também a repressão desempenha,
porém, importante papel no mecanismo dessas neuroses, embora isto, numa
introdução sumária como a nossa, não possa ser demonstrado com facilidade. Uma
regressão da libido, sem repressão, jamais produziria uma neurose, mas levaria
a uma perversão. Assim, os senhores podem ver que a repressão é o processo mais
característico das neuroses e é de todos os mecanismos o mais característico.
Talvez, mais adiante, venha a ter a oportunidade de dizer-lhes o que sabemos a
respeito do mecanismo das perversões, e verão que, também no caso destas, as
coisas não são tão simples como nós preferíamos imaginar.Senhores, penso que a
melhor maneira de chegarem a um acordo com tudo isso que acabaram de ouvir
acerca de fixação e regressão da libido, é considerarem-no como preparação para
a pesquisa da etiologia das neuroses. Até agora, forneci-lhes apenas uma
parcela de informação a respeito desse assunto, ou seja: que as pessoas adoecem
de neurose quando impedidas da possibilidade de satisfazer sua libido - que
adoecem devido à ‘frustração’, conforme costumo dizer - e que seus sintomas são
justamente um substituto para sua satisfação frustrada [ver em [1]].
Naturalmente, supõe-se que isto não queira dizer que toda frustração da
satisfação libidinal torne neurótica a pessoa atingida dessa forma, e sim,
simplesmente, que o fator frustração possa ser constatado em qualquer caso de
neurose que for examinado. Assim [conforme diriam os lógicos] a proposição não
é convertível. E, também, não há dúvida de que os senhores compreendem que essa
afirmação não pretende revelar todo o segredo da etiologia das neuroses, mas
apenas ressaltar um fator importante e indispensável.Prosseguindo a discussão
dessa tese, deveríamos considerar a natureza da frustração, ou a característica
peculiar daquelas pessoas afetadas pela frustração? Afinal, é extremamente raro
dar-se o caso de a frustração ser universal e absoluta. A fim de atuar
patogenicamente, ela deve, sem dúvida, afetar o modo de satisfação que é o
único desejado pela pessoa, o único de que a pessoa é capaz. Em geral, há
muitíssimas maneiras de suportar a privação de satisfação libidinal, sem
adoecer em conseqüência da privação. Em primeiro lugar, conhecemos pessoas
capazes de suportar uma privação dessa espécie, sem serem lesadas: não são
felizes, sofrem devido aos seus anseios, porém não adoecem. E depois, devemos
ter em mente que os impulsos instintuais sexuais, em particular, são
extraordinariamente plásticos, se é que posso expressar-me dessa
maneira. Um deles pode assumir o lugar do outro, um pode assumir a intensidade
do outro; no caso de a realidade frustrar a satisfação de um deles, a
satisfação de outro pode proporcionar compensação completa. Relacionam-se uns
com os outros à semelhança de uma rede de canais intercomunicantes cheios de
líquido; e isto se processa assim, apesar de estarem eles sujeitos à primazia
dos genitais - um estado de coisas que absolutamente não se combina com
facilidade e um quadro único. Ademais, os instintos parciais da sexualidade,
bem como a tendência sexual que deles se compõe, revelam grande capacidade de
mudar de objeto, de tomar um objeto por outro - e de tomar, portanto, um objeto
que seja mais facilmente acessível. A deslocabilidade e a facilidade de aceitar
um substituto deve atuar poderosamente contra o efeito patogênico da frustração
Entre esses processos protetores contra o adoecer devido à privação, existe um
que adquiriu especial significação cultural. Consiste no fato de a inclinação
sexual abandonar seu fim de obter um prazer parcial ou reprodutivo e de adotar
um outro, que genericamente se relaciona àquele que foi abandonado, mas que,
por si mesmo, já não possui mais um caráter sexual, devendo ser descrito como
social. A esse processo chamamos ‘sublimação’, segundo o consenso geral que
situa os objetivos sociais acima dos objetivos sexuais, que no fundo, visam aos
próprios interesses próprios do indivíduo. Aliás, a sublimação é apenas um caso
especial da maneira pela qual as inclinações sexuais se vinculam a outras,
não-sexuais [ver em [1]]. Haveremos de discorrer a esse respeito, novamente, em
outro contexto.Ora, os senhores poderão ter a impressão de que a privação foi
reduzida à insignificância devido a todos esses métodos de tolerá-la. Contudo,
não é assim; ela conservou sua capacidade patogênica. As contramedidas são, em
sua totalidade, insuficientes. Há um limite à quantidade de libido não
satisfeita que os seres humanos, em média, podem suportar. A plasticidade ou
livre mobilidade da libido não se mantém absolutamente preservada em todas as
pessoas, e a sublimação jamais tem a capacidade de manejar senão determinada
parcela de libido; acresce-se o fato de que muitas pessoas são dotadas apenas
de uma escassa capacidade de sublimar. A mais importante dessas limitações é,
evidentemente, aquela referente à mobilidade da libido, de vez que isto faz com
que a satisfação da pessoa dependa da obtenção de apenas um número muito
reduzido de fins e de objetos. Basta os senhores recordarem que um
desenvolvimento imperfeito da libido deixa atrás de si fixações libidinais
muito férteis e, talvez, também, muito numerosas, em fases precoces da
organização e da busca de objetos, as quais, em sua maior parte, são incapazes
de prover satisfação real; e, com isso, os senhores poderão reconhecer na
fixação libidinal o segundo poderoso fator que, juntamente com a frustração, é
causa de doença. Podem afirmar, numa abreviação esquemática, que a fixação
libidinal representa o fator interno, predisponente, da etiologia das neuroses,
ao passo que a frustração representa o fator externo, acidental.
A esse ponto, aproveito o oportunidade para
alertá-los contra a possibilidade de tomarem partido em uma disputa muito
desnecessária. Em assuntos científicos, as pessoas mantêm muito essa tendência
de selecionar uma parte da verdade, colocando-se a favor dessa parte somente.
Foi justamente dessa forma que diversas correntes de opinião já se cindiram do
movimento psicanalítico, algumas delas reconhecendo os instintos egoísticos e
negando os sexuais, e outras atribuindo importância à influência das
incumbências reais da vida e desprezando o passado do indivíduo - e outras
mais. Ora, aqui encontramos mais uma ocasião para assinalar um contraste e
iniciar uma controvérsia. São as neuroses doenças exógenas ou endógenas?
São elas o resultado inevitável de determinada constituição, ou são produto de
determinadas experiências de vida prejudiciais (traumáticas)? Mais
particularmente, são elas causadas pela fixação da libido (e pelos outros
aspectos da constituição sexual) ou pela pressão da frustração? Parece-me que
esse dilema, em sua totalidade, não se reveste de sensatez maior do que um
outro dilema que eu poderia apresentar-lhes: um bebê surge por ter sido gerado
por seu pai, ou por ter sido concebido por sua mãe? Ambos os fatores são
igualmente indispensáveis, conforme certamente responderão os senhores. No que
tange à causação das neuroses, a relação, se não precisamente a mesma, pelo
menos é muito similar. Quanto à sua causação, os casos de doença neurótica
enquadram-se numa série, dentro da qual os dois fatores - constituição sexual e
experiência, ou, se preferirem, fixação da libido e frustração - estão
representados de tal modo que, quando um dos fatores é mais forte, o outro o é
menos. Em um dos limites da série estão os casos extremos dos quais os senhores
poderiam dizer convictamente: essas pessoas, em conseqüência do singular
desenvolvimento de sua libido, teriam adoecido de qualquer maneira, quaisquer
que tivessem sido suas experiências e por mais que suas vidas tivessem sido
protegidas. No outro limite da série, estão os casos que, pelo contrário, os
senhores deveriam supor tivessem certamente escapado de adoecer, se suas vidas
não os tivessem conduzido a esta ou àquela situação. Nos casos intermediários
da série, um maior ou menor grau de predisposição na constituição sexual se
combina com um grau menor ou maior de experiências nocivas na vida das pessoas.
Sua constituição sexual não as teria levado à neurose, se não tivessem tido
essas experiências, e essas experiências não teriam tido um efeito traumático
sobre tais pessoas se sua libido tivesse sido disposta de outra forma. Nessa
série posso, com certeza, admitir uma preponderância na importância dos fatores
predisponentes; porém, admitir isto também depende de saber até onde os
senhores resolvem ampliar as fronteiras da doença neurótica.Proponho, senhores,
que denominemos a uma série desse tipo ‘série complementar’, e previno-os de
que terão oportunidade de formar outras da mesma espécie.A tenacidade com que a
libido adere a determinadas tendências e objetos - o que se pode descrever como
‘adesividade’ da libido - surge como fator independente, variando de indivíduo
para indivíduo, e suas causas nos são praticamente desconhecidas; contudo, sua importância
na etiologia das neuroses certamente não mais subestimaremos. Por outro lado,
não devemos superestimar a complexidade dessa relação: uma ‘adesividade’
semelhante ocorre (por motivos desconhecidos), sob numerosas condições, em
pessoas normais, e é encontrada como fator determinante em pessoas que são, em
certo sentido, o oposto dos neuróticos - nos pervertidos. Sabia-se, já antes da
era da psicanálise (cf. Binet [1888]), que, na anamnese de pervertidos, muito
amiúde encontrava-se uma marca muito precoce de alguma tendência instintual ou
de alguma escolha objetal anormal a que a libido da pessoa permanecia ligada
por toda a vida. Muitas vezes, é impossível dizer o que é que possibilitou a
essa marca exercer uma atração tão intensa sobre a libido. Descreverei um caso
dessa ordem, que eu próprio observei.Trata-se de um homem que, hoje, é
praticamente indiferente aos genitais e a outros atrativos das mulheres, mas
que pode ser tomado de irresistível excitação sexual apenas por causa de um pé
que tenha determinada forma, e que calce um sapato. Pode recordar um
acontecimento do seu sexto ano de vida, decisivo para a fixação de sua libido.
Estava sentado num banquinho, ao lado da governanta que lhe ia ministrar lições
de inglês. A governanta, uma solteirona de meia-idade, seca, sem atrativos
especiais, com olhos azul-claros e nariz arrebitado, naquele dia estava com
algum problema no pé e, por causa disso, mantinha-o calçado num chinelo de
veludo, estendido sobre uma almofada. Sua perna, propriamente, estava com
decência recoberta com a roupa. Um pé fino, magricela, como aquele que vira
pertencendo à sua governanta, desde então se tornou (após tímida tentativa de
atividade sexual normal na puberdade) seu único objeto sexual; e o homem se
sentia irresistivelmente atraído se um pé assim se associava mais a outros
aspectos, do que lembrassem a figura da governanta inglesa. Essa fixação de sua
libido, porém, fazia dele não um neurótico mas um pervertido - o que
denominamos fetichista do pé. Portanto, os senhores constatam que, embora uma
fixação excessiva e, acima de tudo, prematura da libido seja indispensável para
a causação das neuroses, a área de seus efeitos se estende muito além do campo
das neuroses. Esse fator é, também, por si mesmo, tão pouco decisivo quanto o é
a frustração, sobre a qual já falamosAssim, o problema da causação das neuroses
parece tornar-se mais complicado. De fato, a investigação psicanalítica nos
familiariza com um fator novo, que não é levado em conta em nossa série
etiológica e que podemos reconhecer muito facilmente em casos nos quais aquilo
que até então constituiu condição sadia, é subitamente perturbado por um início
de doença neurótica. Nessas pessoas regularmente encontramos indícios de um
luta entre impulsos plenos de desejos, ou segundo costumamos expressá-lo, um
conflito psíquico. Uma parte da personalidade defende a causa de determinados
desejos, enquanto outra parte se opõe a eles e os rechaça. Sem tal conflito não
existe neurose. Pareceria não haver nada de característico nisto. Nossa vida
mental, conforme sabem, é permanentemente agitada por conflitos que temos de
resolver. Sem dúvidas, por conseguinte, condições especiais devem ser
preenchidas para que um conflito se torne patogênico. Devemos perguntar que
condições são essas, entre que poderes mentais se desenrolam esses conflitos
patogênicos, e qual é a relação entre o conflito e os demais fatores causais.
Espero poder dar-lhes respostas adequadas a
essas questões, conquanto as respostas possam reduzir-se a dimensões esquemáticas.
O conflito surge pela frustração, em conseqüência da qual a libido, impedida de
encontrar satisfação, é forçada a procurar outros objetos e outros caminhos. A
precondição necessária do conflito é que esses outros caminhos e objetos
suscitem desaprovação em um parte da personalidade, de forma que se impõe um
veto que impossibilita o novo método de satisfação, tal como se apresenta. A
partir desse ponto, a formação dos sintomas prossegue seu curso, que seguiremos
mais tarde. As tendências libidinais rechaçadas conseguem, não obstante, abrir
caminho por algumas vias indiretas, embora, verdadeiramente, não sem levar em
conta a objeção, submetendo-se a algumas deformações e atenuações. As vias
indiretas são aquelas que toma a formação dos sintomas; estes constituem a
satisfação nova ou substituta, que se tornou necessária devido ao fato de
frustração.O significado do conflito psíquico pode ser adequadamente expresso
de outro modo, dizendo-se que, para uma frustração externa tornar-se
patogênica, é preciso acrescentar-lhe uma frustração interna. Nesse
caso, naturalmente, as frustrações externa e interna referem-se a diferentes
vias e objetos. A frustração externa remove uma possibilidade de satisfação e a
frustração interna procura excluir uma outra possibilidade; e em torno
disto irrompe, então, o conflito. Prefiro essa forma de representar o assunto,
porque possui um conteúdo secreto. Aponta para a probabilidade de os
impedimentos internos terem surgido de obstáculos externos reais durante os
períodos pré-históricos da evoluçao do homem.Mas, quais são as forças das quais
surge a objeção à tendência libidinal? Qual é a outra parte do conflito
patogênico? Essas forças, genericamente falando, são as forças instintuais
não-sexuais. Classificamo-las conjuntamente como ‘instintos do ego’. A
psicanálise das neuroses de transferência não nos dá um acesso fácil a um exame
detalhado das mesmas; quando muito, chegamos a conhecê-las, em certa medida,
através das resistências que se opõem à análise. O conflito patogênico é, pois,
um conflito entre os instintos do ego e os instintos sexuais. Em muitos casos,
parece haver como que um conflito também entre diferentes tendências puramente
sexuais. Em essência, isto, porém, é a mesma coisa; pois das duas tendências
sexuais em conflito, uma sempre é, poderíamos dizer assim, ‘egossintônica’, ao
passo que a outra provoca a defesa do ego. Portanto, ainda continua sendo um
conflito entre o ego e a sexualidade.Senhores, sempre que a psicanálise tem
afirmado que algum evento mental é produto dos instintos sexuais, tem-se-lhe
argumentado, indignadamente, a modo de defesa, que os seres humanos não se
resumem apenas em sexualidade, que existem na vida mental instintos e
interesses outros além dos sexuais, que não se deve derivar ‘tudo’ da
sexualidade, e assim por diante. Pois bem, é muito gratificante, vez por outra,
verificar que estamos de acordo com nossos opositores. A psicanálise jamais se
esqueceu de que há também forças instintuais que não sexuais. Ela se baseou
numa nítida distinção entre os instintos sexuais e os instintos do ego, e,
apesar de todas as objeções, sustentou não que as neuroses derivavam da
sexualidade, mas sim, que, sua origem se deve a um conflito entre o ego e a
sexualidde. E enm possui qualquer motivo concebível para contestar a existência
ou a importância dos instintos do ego, enquanto rastreia a parte executada
pelos instintos sexuais na doença e na vida corrente. Simplesmente a
psicanálise teve o destino de começar por interessar-se pelos instintos
sexuais, de vez que as neuroses de transferência os tornaram os de mais fácil
acesso ao exame, e porque é psicanálise coube a tarefa de estudar aquilo de que
outras pessoas haviam descurado.E não se trata de a psicanálise não haver
prestado atenção alguma à parte não sexual da personalidade. É precisamente a
distinção entre ego e sexualidade que nos possibilitou reconhecer com especial
clareza que os instintos do ego passam por um importante processo de evolução,
uma evolução que não é nem completamente independente da libido, nem desprovida
de um efeito secundário sobre a mesma. Contudo, estamos muito menos
familiarizados com o desenvolvimento do ego do que com a evolução da libido, de
vez que apenas o estudo das neuroses narcísicas é que promete dar-nos uma
compreensão interna (insight) da estrutura do ego. Entretanto, já temos
diante de não uma notável tentativa empreendida por Ferenczi [1913] de
estabelecer uma formulação teórica dos estádios de desenvolvimento. Não
acreditamos que os interesses libidinais de uma pessoa estejam, desde o início,
em oposição a seus interesses de autopreservações; pelo contrário, o ego
esforça-se, em cada estádio, por permanecer em harmonia com sua organização
sexual, tal como esta se apresenta na época, e por ajustar-se a ela. A sucessão
das diferentes fases do desenvolvimento libidinal provavelmente segue um
programa estabelecido. Não se pode, contudo, afastar a possibilidade de esse
curso dos acontecimentos pode ser influenciado pelo ego, e podemos igualmente
esperar encontrar algum paralelismo, determinada correspondência, entre a fases
do desenvolvimento do ego e da libido; na verdade, um distúrbio dessa
correspondência poderia originar um fator patogênico. Com isso, defrontamo-nos
com a importante consideração relativa à maneira como se comporta o ego no caso
de sua libido deixar após si uma intensa fixação em algum ponto de seu
desenvolvimento (da libido). O ego pode aceitar isto e, em conseqüência,
tornar-se, nesse sentido, pervertido, ou, o que é a mesma coisa, infantil. No
entanto, o ego pode adotar uma atitude não-complacente com a acomodação da
libido nessa posição, e, nesse caso, o ego experimenta uma repressão ali
onde a libido sofreu uma fixação.
Assim, descobrimos que o terceiro fator na
etiologia das neuroses, a tendência ao conflito, depende tanto do
desenvolvimento do ego como do da libido. Com isso faz-se mais completa nossa
compreensão interna (insight) da causação das neuroses. Primeiro, existe a
precondição mais geral - a frustração; e, a seguir, a fixação da libido que a
força em determinadas direções; e terceiro, a tendência ao conflito, surgida do
desenvolvimento do ego, a qual rejeita esses impulsos libidinais. A situação,
por conseguinte, parece não ser tão difícil de compreender como provavelmente
lhes parecia no transcorrer de minhas observações. É verdade, porém, que
verificaremos não haver ainda completado sua descrição. Existe algo novo a
acrescentar e algo já conhecido a ser mais detidamente examinado.A fim de
demonstrar-lhes a influência que o desenvolvimento do ego exerce sobre a
formação dos conflitos e sobre a causação das neuroses, gostaria de
apresentar-lhes um exemplo - um exemplo que, verdade seja dita, é uma completa
invenção, mas que não está, de modo algum, isento de probabilidade.
Descrevê-lo-ei (com base no título de uma das farsas de Nestroy) como ‘No
Subsolo e no Primeiro Andar’. O zelador da casa mora no subsolo e seu patrão,
um cavalheiro rico e respeitável, no primeiro andar. Ambos têm filhos, e
podemos supor que a filhinha do proprietário pode brincar, sem qualquer
supervisão, com a menina proletária. Muito facilmente poderia acontecer, então,
que as brincadeiras das crianças assumissem um caráter ‘arteiro’ - digamos,
sexual -, e que brincassem de ‘papai e mamãe’, se olhassem uma à outra no que têm
de mais íntimo e uma excitasse os genitais da outra. A filha do zelador, embora
apenas com cinco ou seis anos de idade, teria tido oportunidade de observar um
bocado de coisas a respeito da sexualidade adulta, e nisso tudo ela bem que
poderia desempenhar o papel da sedutora. Essas experiências, conquanto não
continuadas por longo período de tempo, seriam suficientes para pôr em
atividade determinados impulsos sexuais nas duas crianças; e depois que
houvessem cessado as brincadeiras conjuntas, esses impulsos, durante diversos
anos subseqüentes, encontrariam expressão na masturbação. Isto no que se refere
às experiências em comum; o resultado final nas duas crianças será muito
diferente. A filha do zelador continuará a masturbar-se, talvez, até começarem seus
períodos menstruais e, então, sem dificuldade, abandonará a masturbação. Uns
anos depois, encontrará um companheiro e, talvez, terá um filho. Assumirá uma
ou outra ocupação, possivelmente se torne uma figura popular no palco e termine
como aristocrata. Sua carreira não será, com bastante probabilidade, das mais
brilhantes; no entanto, em todo caso, passará a vida sem ter sido prejudicada
por aqueles primeiros exercícios de sua sexualidade e ficará isenta de neurose.
Com a filhinha do proprietário as coisas serão diferentes. Numa fase inicial, e
enquanto é ainda uma criança, terá uma idéia de haver feito algo de errado;
após curto período, talvez, porém apenas após uma luta intensa, abandonará sua
satisfação masturbatória; não obstante, terá em si certo sentimento de
opressão. Posteriormente, em sua meninice, quando estiver em condições de
aprender algo da relação sexual humana, se afastará desta com inexplicável
aversão e preferirá manter-se na ignorância a respeito do assunto. E, agora,
provavelmente estará sujeita a nova emergência de uma pressão irresistível de
se masturbar, da qual não ousará queixar-se. Durante os anos em que deveria
exercer uma atração feminina sobre algum homem, irrompe nela um neurose que
frustra o casamento e defrauda suas esperanças na vida. Se, após isso, uma
análise conseguir obter uma compreensão interna (insight) de sua
neurose, se constatará que a moça bem educada, inteligente, que aspirava a
coisas elevadas, reprimiu completamente seus impulsos sexuais, mas que estes,
inconscientes para ela, ainda estão vinculados às experiências insignificantes
tidas com sua amiga de infância.
A diferença entre as vidas dessas duas pessoas,
malgrado tenham tido a mesma experiência, reside no fato de que o ego de uma
delas sofreu um desenvolvimento que o da outra jamais atingiu. Para a filha do
zelador, a atividade sexual pareceu tão natural e inofensiva na vida posterior
como o havia sido na infância. A filha do senhorio submeteu-se à influência da
educação e aceitou suas exigências. A partir das idéias que lhe foram
vinculadas, seu ego formou ideais de pureza feminina e abstinência
incompatíveis com a atividade sexual; sua educação intelectual reduziu seu
interesse pelo papel feminino que estava destinada a desempenhar. Devido à sua
moral mais elevada e ao desenvolvimento intelectual de seu ego, ela entrou em
conflito com as exigências de sua sexualidade.
Hoje, deter-me-ei um pouco em outro ponto do
desenvolvimento do ego, em parte porque tenho em vista alguns objetivos mais
remotos, contudo, também porque o que se segue destina-se a precisamente
justificar a nítida separação entre os instintos do ego e os instintos sexuais,
que reafirmamos, não sendo, porém, evidente por si mesma. Ao estabelecer nosso
critério das duas linhas de desenvolvimento - a do ego e a da libido - devemos
ressaltar uma consideração que até agora não foi levada em conta. Ambas são, no
fundo, heranças, recapitulações abreviadas do desenvolvimento pelo qual toda a
humanidade passou, desde épocas primitivas, por longos períodos de tempo. No
caso do desenvolvimento da libido, essas origem filogenética é, conforme
ouso pensar, uma evidência imediata. Considerem como numa classe de animais o
aparelho genital põe-se em íntima relação com a boca, ao passo que, em outra,
não pode ser diferenciado do aparelho excretor, e, ainda em outras, está
vinculado aos órgãos motores - e tudo isso os senhores encontrarão em atraente
apresentação no valioso livro de W. Bölsche [1911-13]. Entre os animais,
pode-se encontrar, por assim dizer, em forma petrificada todos os tipos de
perversão da organização sexual. No caso dos seres humanos, entretanto, esse
ponto de vista filogenético é parcialmente velado pelo fato de que aquilo que,
no fundo, é herdado, não obstante é de aquisição recente no desenvolvimento do
indivíduo, provavelmente porque as mesmas condições que impuseram sua aquisição
persistem e continuam a operar em cada indivíduo. Gostaria de acrescentar que,
originalmente, a operação dessas condições era criativa; agora, contudo, é
evocativa. Ademais não há dúvida de que o curso estabelecido do desenvolvimento
pode ser perturbado e alterado em todo indivíduo, através de influências
externas recentes. Mas conhecemos a força que impôs à humanidade um
desenvolvimento dessa ordem e mantém sua pressão na mesma direção nos dias
atuais. Essa força, é, mais uma vez, a frustração advinda da realidade, ou, se
quisermos dar-lhe o nome verdadeiro, o nome de peso, as ‘exigências da vida’ -
Necessidade (‘ [Ananke]). Esta tem sido uma educadora rigorosa e tem
exigido muito de nós. Os neuróticos estão entre aqueles de seus filhos aos
quais seu rigor causou maus resultados; este, porém, é um risco que se corre em
qualquer educação. Essa valorização da importância das necessidades da vida,
aliás, não necessita pesar contra a importância das ‘tendências internas de
desenvolvimento’, se se pode demonstrar que isto está presente.Ora, é digno de
nota o fato de que os instintos sexuais e os instintos de autopreservação não
se comportam da mesma maneira para com a necessidade real. Os instintos de
autopreservação, e tudo o que com eles se relaciona, são muito mais fáceis de
educar: cedo aprendem a adaptar-se à necessidade e a moldar seus
desenvolvimentos de acordo com as instruções da realidade. Isto se compreende,
pois eles não poderiam obter os objetos de que necessitam, se agissem de alguma
outra maneira; e sem esses objetos, o indivíduo inevitavelmente pereceria. Os
instintos sexuais são mais difíceis de educar, de vez que, no início, não
precisam de objeto. Como estão ligados, à semelhança de parasitas, por assim
dizer, às outras funções corporais e conseguem sua satisfação auto-eroticamente
no próprio corpo da pessoa, eles estão, de início, retirados da influência
educadora da necessidade real, e conservam essa característica de serem
rebeldes e inacessíveis à influência (isto descrevemos como sendo ‘irracional’)
na maioria das pessoas, em certo sentido, por toda a vida. Ademais, via de
regra, a educabilidade de pessoas jovens chega ao fim quando suas necessidades
sexuais surgem em toda a sua plenitude. Os educadores sabem disso e agem de
acordo; mas as descobertas da psicanálise talvez possam induzi-los a deslocar a
impacto principal da educação para os anos da meninice, partindo da infância
propriamente dita. A pequena criatura, freqüentemente, já esta completa ao
redor do quarto ou quinto ano de vida, e, depois disso, simplesmente revela o
que já está dentro de si.
A fim de avaliar a plena significação da
diferença que assinalei entre os dois grupos de instintos, devemos retroceder
por um longo caminho e introduzir uma dessas dimensões que merece ser descrita
como econômica [ver em [1], acima]. Isto nos leva a uma das mais
importantes, mas, infelizmente, também uma das mais obscuras regiões da
psicanálise. Podemos nos perguntar se, no funcionamento de nosso aparelho
mental, pode ser evidenciado um propósito principal, e podemos responder, como
proposição inicial, que esse propósito se orienta pela obtenção de prazer. É
como se a totalidade de nossa vida mental fosse dirigida para obter o prazer e
evitar o desprazer - que é automaticamente regulada pelo princípio de prazer.
Gostaríamos de saber, dentre todas as coisas, o que é que determina a geração
do prazer e do desprazer; isto, contudo, ignoramos. Podemos apenas arriscar-nos
a dizer o seguinte: que o prazer está de alguma forma relacionado com a
diminuição, redução ou extinção das cargas de estímulos reinantes no aparelho
mental e que, de maneira semelhante, o desprazer está em conexão com o aumento
dessas cargas. Um exame do prazer mais intenso acessível aos seres humanos, o
prazer de efetuar o ato sexual, deixa pouca dúvida quanto a esse ponto. De vez
que, em tais processos relativos ao prazer, a questão é saber o que acontece
com as quantidades de excitação ou energia mental, damos a essa nova
dimensão o nome de econômica. Notar-se-á que podemos descrever as atribuições e
realizações do aparelho mental de outra forma mais geral do que simplesmente
enfatizando a objeção de prazer. Podemos dizer que o aparelho mental serve ao
propósito de dominar e eliminar as cargas de estímulo e as somas de excitação
que incidem sobre ele, provenientes de fora e de dentro. É imediatamente óbvio
que os instintos sexuais, do começo ao fim de seu desenvolvimento, atuam com
vistas à obtenção de prazer; eles mantêm inalterada sua função original. Os
outros instintos, os instintos do ego, têm, inicialmente, o mesmo objetivo. Sob
a influência da instrutora Necessidade, porém, logo aprendem a substituir à
princípio de prazer por uma modificação do mesmo. Para eles, a tarefa de evitar
desprazer vem a ser tão importante como a de obter prazer. O ego descobre que
lhe é inevitável renunciar à satisfação imediata, adiar a obtenção de prazer,
suportar um pequeno desprazer e abandonar inteiramente determinadas fontes de
prazer. Um ego educado dessa maneira tornou-se ‘racional’; não se deixa mais
governar pelo princípio de prazer, mas obedece ao princípio de realidade
que, no fundo, também busca obter prazer, mas prazer que se assegura levando em
conta a realidade, ainda que seja um prazer adiado ou diminuído.A transição do
princípio de prazer para o princípio de realidade é um dos mais importantes
passos na direção do desenvolvimento do ego. Já sabemos que é só tardia e
relutantemente que os instintos sexuais se reúnem a essa parte do
desenvolvimento, e mais adiante ouviremos falar nas conseqüências, para os
seres humanos, do fato de sua sexualidade se contentar com laços tão frouxos
com a realidade externa. E agora, para terminar, um último comentário a
respeito dessw assunto. Se o ego do homem tem seu próprio processo de
desenvolvimento, assim como a libido tem o seu, os senhores não se
surpreenderão ao ouvir que também há ‘regressões do ego’, e estarão desejosos
de saber também qual o papel que pode ser desempenhado, nas doenças neuróticas,
por esse retorno do ego a fases anteriores de seu desenvolvimento.
CONFERÊNCIA XXIII
OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DOS SINTOMAS
SENHORAS E SENHORES:
Para os leigos, os sintomas constituem a
essência de uma doença, e a cura consiste na remoção dos sintomas. Os médicos
atribuem importância à distinção entre sintomas e doença, e afirmam que
eliminar os sintomas não equivale a curar a doença. A única coisa tangível que
resta da doença, depois de eliminados os sintomas, é a capacidade de formar
novos sintomas. Por esse motivo, no momento adotaremos a posição do leigo e
suporemos que decifrar os sintomas significa o mesmo que compreender a doença.
Os sintomas - e, naturalmente, agora estamos
tratando de sintomas psíquicos (ou psicogênicos) e de doença psíquica - são
atos, prejudiciais, ou, pelo menos, inúteis à vida da pessoa, que por vez,
deles se queixa como sendo indesejados e causadores de desprazer ou sofrimento.
O principal dano que causam reside no dispêndio mental que acarretam, e no
dispêndio adicional que se torna necessário para se lutar contra eles. Onde
existe extensa formação de sintomas, esses dois tipos de dispêndio podem
resultar em extraordinário empobrecimento da pessoa no que se refere à energia
mental que lhe permanece disponível e, com isso, na paralisação da pessoa para
todas as tarefas importantes da vida. Como esse resultado depende
principalmente da quantidade da energia que assim é absorvida, os
senhores verão facilmente que ‘ser doente’ é, em essência, um conceito prático.
Se, contudo, assumirem um ponto de vista teórico e não considerarem essa
questão de quantidade, os senhores podem muito bem dizer que todos nós
somos doentes - isto é, neuróticos -, pois as precondições da formação dos
sintomas também podem ser observadas em pessoas normais.
Já sabemos que os sintomas neuróticos são
resultado de um conflito, e que este surge em virtude de um novo método de
satisfazer a libido [ver em [1]]. As duas forças que entraram em luta
encontram-se novamente no sintoma e se reconciliam, por assim dizer, através do
acordo representado pelo sintoma formado. É por essa razão, também, que o
sintoma é tão resistente: é apoiado por ambas as partes em luta. Também sabemos
que um dos componentes do conflito é a libido insatisfeita, que foi repelida
pela realidade e agora deve procurar outras vias para satisfazer-se. Se a
realidade se mantiver intransigente, ainda que a libido esteja pronta a assumir
um outro objeto em lugar daquele que lhe foi recusado, então a mesma libido,
finalmente, será compelida a tomar o caminho da regressão e a tentar encontrar
satisfação, seja em uma das organizações que já havia deixado para trás, seja
em um dos objetos que havia anteriormente abandonado. A libido à induzida a
tomar o caminho da regressão pela fixação que deixou após si nesses pontos do
seu desenvolvimento.O caminho que leva à perversão se destaca nitidamente
daquele que leva à neurose. Se essas regressões não suscitam objeção por parte
do ego, não surgirá neurose alguma; e a libido chegará a alguma satisfação
real, embora não mais uma satisfação normal. Entretanto, se o ego, que tem sob
seu controle não só a consciência, mas também o acesso à inervação motora e,
por conseguinte, à realização dos desejos mentais, não concordar com essas
regressões, seguir-se-á o conflito. A libido, por assim dizer, é interceptada e
deve procurar escapar em alguma direção na qual, de acordo com as exigências do
princípio de prazer, possa encontrar uma descarga para suas catexias de
energia. Ela deve retirar-se do ego. Uma saída dessa espécie é-lhe oferecida
pelas fixações situadas na trajetória do seu desenvolvimento, na qual agora
entrou regressivamente - fixações das quais o ego se havia protegido, no
passado, por meio de repressões. Catexizando essas posições reprimidas, à
medida que se desloca para trás, a libido se retirou do ego e afastou-se de
suas leis e, ao mesmo tempo, renunciou a toda a educação que adquiriu sob
influência do ego. Era dócil somente enquanto a satisfação lhe acenava; mas,
sob a dupla pressão da frustração externa e interna, torna-se refratária e
relembra épocas anteriores e melhores. Tal é o caráter fundamentalmente
imutável da libido. As idéias, às quais agora transfere sua energia em forma de
catexia, pertencem ao sistema do inconsciente e estão sujeitas aos processos
que ali são possíveis, sobretudo condensação e deslocamento. Estabeleceu-se,
assim, condições que se assemelham totalmente àquelas existentes na construção
onírica. O sonho propriamente dito, que foi completado no inconsciente e que é
a realização de uma fantasia inconsciente constituída de um desejo, enfrenta
uma parcela de atividade (pré-)consciente que exerce o papel de censura e que,
quando foi preservada, permite a formação do sonho manifesto em forma de um
acordo. Do mesmo modo, aquilo que representa a libido no inconsciente tem de
contar com a força do ego pré-consciente. A oposição formada contra ela no ego
persegue-a como se fora uma ‘anticatexia’e compele-a a escolher uma forma de
expressão da própria oposição. Assim, o sintoma emerge como um derivado
múltiplas-vezes-distorcido da realização de desejo libinal inconsciente, uma
peça de ambigüidade engenhosamente escolhida, com dois significados em completa
contradição mútua. Quando a esse último aspecto, porém, há uma distinção entre
a construção de um sonho e a de um sintoma. Isso porque, na formação onírica, o
propósito pré-consciente visa simplesmente a preservar o sono, não permitir que
algo que venha a perturbá-lo possa irromper na consciência; não insiste em
bradar claramente: ‘Não, pelo contrário!’ ao impulso inconsciente pleno de
desejos. Consegue ser mais tolerante porque a situação de alguém que dorme é
menos perigosa. O estado de sono, por si mesmo, impede qualquer saída em
direção à realidade.
Os senhores percebem, então, que o escape da
libido, em condições de conflito, se torna possível pela presença de fixações.
A catexia regressiva dessas fixações consegue contornar a repressão e leva à
descarga (ou satisfação) da libido, sujeita às condições de um acordo a serem
observadas. Pelo caminho indireto, via inconsciente e antigas fixações, a
libido finalmente consegue achar sua saída até uma satisfação real - embora
seja uma satisfação extremamente restrita e que mal se reconhece como tal. Permitam-me
acrescentar dois comentários a essa conclusão. Primeiro, gostaria que os
senhores percebessem como aqui se mostram estreitamente interligados a libido e
o inconsciente, de um lado, e, de outro lado, o ego, a consciência e a
realidade, embora, de início, eles não sejam da mesma espécie, absolutamente.
E, segundo, devo solicitar-lhes que tenham em mente que tudo quando eu disse a
esse respeito e acerca do que vem a seguir, refere-se apenas à formação dos
sintomas na neurose de histeria.
Onde, pois, encontra a libido as fixações
necessárias para romper as repressões? Nas atividades e experiências da
sexualidade infantil, nas tendências parciais abandonadas, nos objetos da
infância que foram abandonados. É a estes, por conseguinte, que a libido
retorna. A significação desse período da infância é dupla: por um lago, durante
esse período, pela primeira vez se tornam manifestas as tendências instintuais
que a criança herdou com sua disposição inata; e, em segundo lugar, outros
instintos seu são, pela primeira vez, despertados e postos em atividade pelas
impressões externas e experiências casuais. Penso não haver dúvida de que
existe justificativa para estabelecermos essa dúplice divisão. A manifestação
das disposições inatas realmente não está sujeita a objeções críticas, mas a
experiência analítica de fato nos leva a supor que experiências puramente
casuais, na infância, são capazes de deixar atrás de si fixações da libido. E
nisto não vejo nenhuma dificuldade teórica. As disposições da constituição
também são indubitavelmente efeitos secundários de experiências vividas pelos
ancestrais no passado; também elas, em alguma ocasião, foram adquiridas. Sem
essa aquisição, não haveria hereditariedade. E é concebível que uma aquisição
dessa espécie, que conduz à herança, chegaria ao fim justamente na geração que
estamos considerando? A importância das experiências infantis não deve ser
totalmente negligenciada, como as pessoas preferem, em comparação com as
experiências dos ancestrais da pessoa e com sua própria maturidade; pelo
contrário, as experiências infantis exigem uma consideração especial. Elas
determinam as mais importantes conseqüências, porque ocorrem numa época de
desenvolvimento incompleto e, por essa mesma razão, são capazes de ter efeitos
traumáticos. Os estudos sobre os mecanismos do desenvolvimento, feitos por Roux
e outros, têm mostrado que a picada de uma agulha em uma camada geminal de um
embrião no ato da divisão celular resulta em grave distúrbio do
desenvolvimento. A mesma lesão infligida a um animal larvar ou inteiramente
desenvolvido não causaria dano.A fixação da libido de um adulto, que
introduzimos na equação etiológica da neurose como representando o fator
constitucional [ver em [1] e [2]], agora se desdobra, para nosso propósitos, em
mais dois componentes: a constituição herdade e a disposição adquirida no
início da infância. Como todos sabemos, um diagrama tem certamente uma acolhida
simpática junto aos estudantes. Por isso, vou resumir a situação com um
diagrama:
A constituição sexual hereditária apresenta-nos
uma grande variedade de disposições, conforme seja herdado, com particular
intensidade, um ou outro dos instintos parciais, sozinho ou em combinação com
os outros. A constituição sexual forma, portanto, junto com o fator da
experiência infantil, uma ‘série complementar’ exatamente semelhante àquela que
já sabemos existir entre disposição e experiência casual do adulto [ver em
[1]]. Em ambas as séries complementares encontramos os mesmos casos extremos e
as mesmas relações entre os dois fatores considerados. E aqui levanta-se a
questão de saber se os mais marcantes tipos de regressões libidinais - os que
se fazem aos primeiros estádios da organização sexual - não poderiam ser
predominantemente determinados pelo fator constitucional hereditário. Contudo,
é melhor adiar a resposta a essa questão, até havermos sido capazes de apreciar
uma série mais ampla de formas de doença neurótica.
Consideramos agora, detidamente, o fato de a
investigação analítica mostrar que a libido dos neuróticos está ligada às suas
experiências sexuais infantis. Assim, ela confere a essas experiências uma
dimensão de grande importância para a vida e a doença dos seres humanos. Elas
mantêm, sem qualquer redução, essa importância, no que concerne ao trabalho
terapêutico. Se, todavia, nos abstrairmos dessa tarefa, podemos, assim mesmo,
ver facilmente que existe nesse ponto o perigo de um equívoco que poderia
levar-nos a basear nossa visão da vida, com demasiada unilateralidade, na
situação neurótica. Devemos, afinal, deduzir da importância das experiências
infantis o fato de que a libido a elas retornou regressivamente, após
haver sido expulsa de suas posições posteriores. Nesse caso, torna-se muito
tentadora a conclusão inversa - a de que essas experiências libidinais não
tiveram absolutamente nenhuma importância na época em que ocorreram, e apenas
regressivamente a adquiriram. Os senhores se recordarão de que já consideramos
uma alternativa similar em nossa discussão sobre o complexo de Édipo [ver em
[1] e [2]].Outrossim, não acharemos difícil chegar a uma decisão. A assertiva
de que a catexia libidinal (e, portanto, a significação patogênica) das
experiências infantis intensificou-se grandemente pela regressão da libido, é
indubitavelmente correta, porém induziria a erro se fôssemos considerá-la,
isoladamente, decisiva. Deve-se permitir também a apreciação de outras
considerações.
Em primeiro lugar, a observação mostra, de uma
forma que exclui qualquer dúvida, que as experiências infantis possuem uma
importância toda peculiar, e disto elas dão provas já na infância. Também as
crianças têm suas neuroses, nas quais o fator do deslocamento para trás, no
tempo, é necessariamente muitíssimo reduzido ou até mesmo está completamente
ausente, pois nelas o início da doença advém imediatamente após as experiências
traumáticas. O estudo dessas neuroses infantis protege-nos de mais um equívoco
perigoso relativo às neuroses de adultos, na mesma medida em que os sonhos de
crianças nos deram a chave da compreensão dos sonhos de adultos. As neuroses de
crianças são muito comuns, muito mais comuns do que se supõe. Muitas vezes,
elas deixam de ser notadas, são consideradas sinais de uma criança má ou
arteira, muitas vezes, também, são mantidas em estado de sujeição pelas
autoridades responsáveis pelas crianças; porém, sempre podem ser reconhecidas,
retrospectivamente, com facilidade. Em geral, surgem sob a forma de histeria
de angústia. Em ocasião subseqüente, saberemos o que isto significa [ver em
[1], adiante]. Se uma neurose emerge posteriormente na vida, a análise revela,
regularmente, que ela é continuação direta da doença infantil, que pode ter
aparecido como sendo apenas um indício velado. Entretanto, conforme eu disse,
há casos em que esses sinais de neurose na infância continuam ininterruptamente
numa doença que dura toda a vida. Pudemos analisar alguns exemplos dessas
neuroses infantis na própria infância - quando estavam realmente presentes;
muito mais amiúde tivemos, porém, de contentar-nos com o caso de alguém que
adoeceu na vida adulta, possibilitando-nos obter uma compreensão diferida de
sua neurose da infância. Em tais casos, não devemos deixar de fazer algumas
correções e de tomar determinadas precauções.Em segundo lugar, devemos pensar
que seria inconcebível a libido regredir de forma tão regular ao período da
infância, a menos que haja ali algo que exerça sobre ela uma atração. A
fixação, que supusemos estar presente em determinados pontos do curso do
desenvolvimento, só tem significado se considerarmos que ela consiste na retenção
de determinada quantidade de energia libidinal. E, finalmente, posso
assinalar-lhes que, entre a intensidade e importância patogênica das
experiências infantis e das experiências posteriores, existe uma relação
complementar semelhante à série de que já tratamos. Existem casos em que todo o
peso da causação recai nas experiências sexuais da infância, casos em que essas
impressões exercem um efeito definidamente traumático e não exigem nenhum outro
apoio, nessa ação patogênica, além do que lhes pode proporcionar uma
constituição sexual médica e a circunstância de seu desenvolvimento incompleto.
Paralelamente a esses casos, existem outros nos quais todo o acento recai nos
conflitos posteriores; e verificamos, na análise, que a ênfase dada às
impressões da infância aparece como sendo inteiramente obra da regressão.
Assim, temos extremos de ‘inibição de desenvolvimento’ e de ‘regressão’, e,
entre estes, todos os graus de combinação entre os dois fatores.Esses fatos têm
algum interesse do ponto de vista da educação, que planeja a prevenção das
neuroses intervindo num estádio inicial do desenvolvimento sexual das crianças.
Contanto que se dirija a atenção principalmente para as experiências sexuais
infantis, deve-se supor que se tem feito tudo pela profilaxia das doenças
nervosas mediante o cuidado de se adiar o desenvolvimento da criança e de esta
ser poupada de experiências de tal espécie. Entretanto, já sabemos que as
precondições para a causação das neuroses são complexas e não podem ser
influenciadas em seu todo, se tomarmos em consideração apenas um dos fatores.
Uma proteção estrita da criança carece de validade por ser impotente contra o
fator constitucional. Ademais, efetuar essa proteção é mais difícil do que a
imaginam os educadores, e encerra dois novos perigos que não devem ser
subestimados: o fato de ela pode ir fundo demais - de encorajar um excesso de
repressão sexual com resultados prejudiciais - e o fato de ela poder enviar a
criança ao encontro da vida sem qualquer defesa contra a avalanche de exigências
sexuais que são de se esperar na puberdade. Assim, continua sendo extremamente
duvidoso saber até onde a profilaxia na infância possa ser executada com
vantagens, e se uma modificação de atitudes para com a situação imediata não
poderia oferecer um melhor ângulo de abordagem à prevenção das
neuroses.Retornemos agora aos sintomas. Estes criam, portanto, um substituto
das satisfação frustrada, realizando uma regressão da libido a épocas de
desenvolvimento anteriores, regressão a que necessariamente se vincula um
retorno a estádios anteriores de escolha objetal ou de organização.
Descobrimos, há algum tempo, que os neuróticos estão ancorados em algum ponto
do seu passado; agora sabemos que esse ponto é um período do seu passado, no
qual sua libido não se privava de satisfação, no qual eram felizes. Buscam na
história de sua vida, até encontrarem um período dessa ordem, ainda que tenham
de retroceder tanto, que atinjam a época em que eram bebês de colo - tal como
dela se lembram ou a imaginam, a partir de indícios posteriores. De algum modo,
o sintoma repete essa forma infantil de satisfação, deformada pela censura que
surge no conflito, via de regra transformada em uma sensação de sofrimento e
mesclada com elementos provenientes da causa precipitante da doença. O tipo de
satisfação que o sintoma consegue, tem em si muitos aspectos estranhos ao
sintoma.Podemos desprezar o fato de que o sintoma se constitui em algo
irreconhecível para o indivíduo que, pelo contrário, sente a suposta satisfação
como sofrimento e se queixa deste. Essa transformação é uma função do conflito
psíquico sob pressão, do qual o sintoma veio a se formar. Aquilo que para o
indivíduo, em determinada época, constituía uma satisfação, na realidade passa,
hoje, necessariamente a originar resistência e repugnância. Conhecemos bem um
modelo banal, porém instrutivo, de uma tal mudança de atitude. A mesma criança
que em determinada época sugava com avidez o seio materno, alguns anos depois,
provavelmente, mostrará uma intensa aversão a tomar leite, o que causa
dificuldade na sua criação. A aversão aumenta até à repugnância, no caso de se
formar uma película sobre o leite ou sobre a mistura que contenha leite. Talvez
não possamos excluir a possibilidade de a película reviver a lembrança do seio
materno, outrora tão ardentemente desejado. Entretanto, entre as duas situações
coloca-se a experiência do desmame, com seus efeitos traumáticos.Existe algo
mais, além disso, que faz com que os sintomas nos pareçam estranhos e
incomprensíveis como meio de satisfação libidinal. Eles não se parecem
absolutamente com nada de que tenhamos o hábito de normalmente auferir
satisfação. Em geral, eles desprezam os objetos e, com isso, abandonam sua
relação com a realidade externa. Podemos verificar que esta é uma conseqüência
de se haver rejeitado o princípio de realidade e se haver retornado ao
princípio de prazer. Também é, contudo, um retorno a um tipo de autoerotismo
difuso, do tipo que proporcionava o instinto sexual nas primeiras satisfações.
Em lugar de uma modificação no mundo externo, essas satisfações substituem-na
por uma modificação no próprio corpo do indivíduo: estabelecem um ato interno
em lugar de um externo, uma adaptação em lugar de uma ação - uma vez mais, algo
que corresponde, filogeneticamente, a uma regressão altamente significativa.
Isto somente compreenderemos em conexão com algo novo que ainda teremos de
aprender das pesquisas analíticas da formação dos sintomas. Ademais, devemos
lembrar que os mesmos processos pertencentes ao inconsciente têm seu desempenho
na formação dos sintomas, tal qual o fazem na formação dos sonhos - ou seja,
condensação e deslocamento. Um sintoma, tal qual um sonho, representa algo como
já tendo sido satisfeito: uma satisfação à maneira infantil. Mediante uma
condensação extrema, porém, essa satisfação pode ser comprimida em uma só
sensação ou inervação, e, por meio de um deslocamento extremo, ela pode se
restringir a apenas um pequeno detalhe de todo o complexo libidinal. Não é de
causar surpresa se também nós, muitas vezes, temos dificuldade em reconhecer
num sintoma a satisfação libidinal, de cuja presença suspeitamos e que
invariavelmente se confirma.Eu os avisei de que ainda tínhamos algo novo para
aprender; trata-se realmente de algo surpreendente e desconcertante. Por meio
da análise, conforme sabem, partindo dos sintomas chegamos ao conhecimento das
experiências infantis, às quais a libido está fixada e das quais se formam os
sintomas. Pois bem, a surpresa reside em que essas cenas da infância nem sempre
são verdadeiras. Com efeito, não são verdadeiras na maioria dos casos, e, em
alguns, são o posto direto da verdade histórica. Conforme os senhores verão,
essa descoberta está fadada, mais que qualquer outra, a desacreditar tanto a
análise, que chegou a tal resultado, como os pacientes, em cujas declarações se
fundamentam a análise e todo o nosso entendimento das neuroses. Existe,
contudo, mais alguma coisa singularmente desconcertante em tudo isso. Se as
experiências infantis trazidas à luz pela análise fossem invariavelmente reais,
deveríamos sentir estarmos pisando em chão firme; se fossem regularmente
falsificadas e mostrassem não passar de invenções de fantasias do paciente,
seríamos obrigados a abandonar esse terreno movediço e procurar salvação noutra
parte. Mas, aqui, não se trata nem de uma nem de outra coisa: pode-se mostrar
que se está diante de uma situação em que as experiências da infância
construídas ou recordadas na análise são, às vezes, indiscutivelmente falsas e,
às vezes, por igual, certamente corretas, e na maior parte do casos são
situações compostas de verdade e de falsificação. Às vezes, portanto, os
sintomas representam eventos que realmente ocorreram, e aos quais podemos
atribuir uma influência na fixação da libido, e, por vezes, representam fantasias
do paciente, não talhadas para desempenhar um papel etiológico. É difícil achar
uma saída nesses casos. Talvez possamos iniciar por uma descoberta semelhante -
ou seja, a de que lembranças infantis isoladas, que as pessoas têm possuído
conscientemente desde os tempos imemoriais e antes que houvesse qualquer coisa
semelhante à análise [ver em [1], acima], podem igualmente ser falsificadas,
ou, pelo menos, podem combinar verdade e adulteração, em abundância. No caso
destas, raramente existe qualquer dificuldade em demonstrar sua inexatidão;
assim, ao menos temos a garantia de saber que a responsabilidade por esse
inesperado desapontamento não está na análise, e sim, de algum modo, nos
pacientes.Após alguma reflexão facilmente poderemos entender o que é que existe
nessa situação que tanto nos confunde. É o reduzido valor concedido à
realidade, é a desatenção à diferença entre realidade e fantasia. Somos
tentados a nos sentir ofendidos com o fato de o paciente haver tomado nosso
tempo com histórias inventadas. A realidade parece-nos ser algo como um mundo
separado da invenção, e lhes atribuímos um valor muito diferente. Ademais,
também o paciente enxerga as coisas por esse prisma, em seu pensar normal.
Quando apresenta o material que conduz desde os sintomas às situações de desejo
modeladas em suas experiências infantis, ficamos em dúvida, no início, se
estamos lidando com a realidade ou com fantasias. Posteriormente, determinadas
indicações nos possibilitam chegar a uma conclusão, e nos defrontamos com a tarefa
de transmiti-la ao paciente. Isto, porém, invariavelmente causa dificuldades.
Se começarmos por dizer-lhe diretamente que agora está disposto a trazer à luz
as fantasias com as quais deturpou a história de sua infância (assim como toda
nação adultera sua pré-história esquecida, construindo lendas), podemos
observar que o interesse do paciente em continuar a desenvolver o assunto
subitamente diminui de uma forma indesejável. Ele, também, quer experimentar as
situações reais e desdenha tudo aquilo que é simplesmente ‘imaginário’.
Todavia, se até a conclusão dessa parte do trabalho o deixarmos na crença de
que estamos ocupados em investigar os eventos reais de sua infância, corremos a
risco de, posteriormente, ele acusar-nos de estarmos equivocados e de rir-se de
nós, por nossa aparente credulidade. Levará um bom tempo até pode assimilar a
nossa proposição de que podemos igualar fantasia e realidade; e não nos
importaremos, em princípio, com qual seja esta ou aquela das experiências da
infância que estão sendo examinadas. Ademais, esta é, evidentemente, a única
atitude correta a adotar para com esses produtos mentais. Também eles possuem
determinada realidade. Subsiste o fato de que o paciente criou essas fantasias
por si mesmo, e essa circunstância dificilmente terá, para a sua neurose,
importância menor do que teria se tivesse realmente experimentado o que contêm
suas fantasias. As fantasias possuem realidade psíquica, em contraste
com a realidade material,, e gradualmente aprendemos a entender que,
no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva. Entre
as ocorrências que aparecem repetidamente na história dos anos iniciais da vida
dos neuróticos - recordações que raramente estão ausentes - existem algumas de
especial importância, as quais, por esta razão, penso, merecem maior relevo que
o restante. Como exemplos dessa categoria, enumero as seguintes: observação do
coito dos pais, sedução por um adulto e ameaça de ser castrado. Seria um erro
supor que essas recordações nunca se caracterizam pela realidade material; ao
contrário, amiúde está é comprovada de modo inconteste por meio de indagação
junto a membros mais velhos da família do paciente. Por exemplo, não é nada
raro que um menininho que começa a brincar de modo arteiro com seu pênis e ainda
não tem noção de que se deve esconder tal atividade, seja ameaçado, por um dos
pais ou pela babá, de lhe serem cortados o pênis ou a mão pecaminosa. Os pais,
quando lhes perguntam a esse respeito, admitem haver-se passado esse fato, pois
pensam haver realizado algo de útil ao fazerem tal ameaça; numerosas pessoas
têm uma memória consciente correta de tal ameaça, sobretudo se foi feita em
período um tanto posterior. Quando a ameaça parte da mãe, ou de alguma outra
pessoa do sexo feminino, esta geralmente diz que sua execução ficará a cargo do
pai - ou do médico. Em Struwwelpeter, a famosa obra de Hoffamann,
pediatra de Frankfurt, (a qual deve sua popularidade justamente à compreensão
dos complexos sexuais e de outros complexos da infância), os senhores verão a
castração atenuada em amputação dos polegares, como castigo pela obstinação em
sugá-los. É altamente improvável, porém, que as crianças sejam ameaçadas com
castração com tanta freqüência como aparece na análise de neuróticos. É-nos
suficiente perceber que a criança, em sua imaginação, capta uma ameaça desse
tipo, com base em indícios e com a ajuda de um vago conhecimento de que a
satisfação auto-erótica lhe é proibida, e sob a impressão de sua descoberta dos
genitais femininos. [ver em [1], acima.] Não apenas em famílias proletárias é
perfeitamente possível que uma criança, enquanto ainda não se julga possuir
compreensão ou memória, seja testemunha do ato sexual dos pais ou de outras
pessoas adultas; e não se pode rejeitar a possibilidade de que a criança será
capaz de entender e reagir a essa impressão retrospectivamente. Se,
entretanto, o coito é descrito em seus mínimos detalhes, os quais seriam
difíceis de observar, ou como sucede muito amiúde, se se revela como sendo um
coito por trás, more ferarum [à maneira dos animais], não pode subsistir
qualquer dúvida de que a fantasia se baseia numa observação do coito de animais
(como o de cães) e que o motivo foi a escopofilia insatisfeita da criança,
durante a puberdade. O máximo de realização nesses assuntos é uma fantasia de
observar o coito dos pais quando a pessoa ainda era criança não nascida, no
útero. As fantasias de ser seduzido encerram interesse especial, de vez que
muito freqüentemente não são fantasias, mas recordações reais. Felizmente,
apesar de tudo elas não são reais, como pareceu tantas vezes, no início, ser
demonstrado pelas descobertas da análise. A sedução por uma criança de mais
idade ou por alguém da mesma idade é ainda mais freqüente do que por um adulto;
e, no caso de meninas, que relatam um evento dessa ordem na sua infância, no
qual o pai figura com muita regularidade como o sedutor, não pode haver dúvida
alguma quanto à natureza imaginária da acusação, nem quanto ao motivo que levou
a formulá-la. Uma fantasia de ser seduzido, quando não ocorreu sedução nenhuma,
geralmente é utilizada por uma criança para encobrir o período auto-erótico de
sua atividade sexual. Fantasiando retrospectivamente dentro dessas épocas mais
primitivas um objeto desejado, a criança se poupa da vergonha de se haver
masturbado. No entanto, os senhores não devem supor que o abuso sexual de uma
criança por algum dos parentes masculinos mais próximos pertença inteiramente
ao reino da fantasia. A maioria dos analistas terá tratados casos nos quais
esses eventos foram reais e poderiam ser constatados inquestionavelmente; o
mesmo em tais casos, contudo, esses fatos se referiam a anos posteriores da
infância e tinham sido transpostos para épocas mais precoces.A única impressão
que nos fica é esses eventos da infância serem de certo modo exigidos como uma
necessidade, incluírem-se entre os elementos essenciais de uma neurose. Se
ocorreram na realidade, não há o que acrescentar; mas, se não encontram apoio
na realidade, são agregados a partir de determinados indícios e suplementados
pela fantasia. O resultado é o mesmo, e, até o presente, não conseguimos
assinalar, por qualquer diferença nas conseqüências, se foi a fantasia ou a
realidade aquela que teve a participação maior nesses eventos da infância.
Aqui, de novo temos simplesmente uma das relações complementares que mencionei
tantas vezes; ela, principalmente, é a mais estranha de todas que já
encontramos. De onde procede a necessidade dessas fantasias, e o material para
elas? Não pode haver dúvida de que suas fontes situam-se nos instintos;
contudo, está ainda por ser explicado por que sempre são geradas as mesmas
fantasias com o mesmo conteúdo. Tenho pronta uma resposta, a qual sei que lhes
parecerá audaciosa. Acredito que essas fantasias primitivas, como
prefiro denominá-las, e, sem dúvida, também algumas outras, constituem um
acervo filogenético. Nelas, o indivíduo se contacta, além de sua própria
experiência, com a experiência primeva naqueles pontos nos quais sua própria
experiência foi demasiado rudimentar. Parece-me bem possível que todas as
coisas que nos são relatadas hoje em dia, na análise, como fantasia - sedução
de crianças, surgimento da excitação sexual por observar o coito dos pais,
ameaça de castração (ou, então, a própria castração) - foram, em determinada
época, ocorrências reais dos tempos primitivos da família humana, e que as
crianças, em suas fantasias, simplesmente preenchem os claros da verdade
individual com a verdade pré-histórica. Repetidamente tenho sido levado a
suspeitar que a psicologia das neuroses tem acumuladas em si mais antiguidades
da evolução humana do que qualquer outra fonte.As coisas que acabei de
descrever, senhores, compelem-me a examinar mais de perto a origem e a
significação da atividade mental que se classifica como ‘fantasia’ [ou
‘imaginação’]. Conforme os senhores sabem, ela desfruta de uma reputação
universalmente elevada, sem que sua posição na vida mental tenha sido
esclarecida. A seu respeito tenho observações a fazer. O ego humano, como
sabem, é, pela pressão da necessidade externa, educado lentamente no sentido de
avaliar a realidade e de obedecer ao princípio de realidade; no decorrer desse
processo, é obrigado a renunciar, temporária ou permanentemente, a uma
variedade de objetos e de fins aos quais está voltada sua busca de prazer, e
não apenas de prazer sexual. Os homens, contudo, sempre acharam difícil
renunciar ao prazer; não podem deixar-se levar a fazê-lo sem alguma forma de
compensação. Por isso, retiveram uma atividade mental na qual todas aquelas
fontes de prazer e aqueles métodos de conseguir prazer, que haviam sido
abandonados, têm assegurada sua sobrevivência - uma forma de existência na qual
se livram das exigências da realidade e aquilo que chamamos ‘teste de
realidade’. Todo desejo tende, dentro de pouco tempo, a afigurar-se em sua
própria realização; não há dúvida de que ficar devaneando sobre imaginárias
realizações de desejos traz satisfação, embora não interfira com o conhecimento
de que se trata de algo não-real. Desse modo, na atividade da fantasia, os
seres humanos continuam a gozar da sensação de serem livres da compulsão
externa, à qual há muito tempo renunciaram, na realidade. Idearam uma forma de
alternar entre permanecer um animal que busca o prazer, e ser, igualmente, uma
criatura dotada de razão. Na verdade, os homens não podem subsistir com a
escassa satisfação que podem obter da realidade. ‘Simplesmente não podemos
passar sem construções auxiliares’, conforme disse, certa vez, Theodor Fontane.
A criação do reino mental da fantasia encontra um paralelo perfeito no
estabelecimento das ‘reservas’ ou ‘reservas naturais’, em locais onde os
requisitos apresentados pela agricultura, pelas comunicações e pela indústria
ameaçam acarretar modificações do aspecto original da terra que em breve o
tornarão irreconhecível. Uma reserva natural preserva seu estado original que,
em todos os demais lugares, para desgosto nosso, foi sacrificado à necessidade.
Nesses locais reservados, tudo, inclusive o que é inútil e até mesmo nocivo,
pode crescer e proliferar como lhe apraz. O reino mental da fantasia é
exatamente uma reserva desse tipo, apartada do princípio de realidade.As mais
conhecidas produções da fantasia são os chamados ‘devaneios’, que já examinamos
[ver em [1]], satisfações imaginárias de desejos ambiciosos, megalomaníacos,
eróticos, que florescem com tanto mais exuberância, quanto mais a realidade
aconselha modéstia e contenção. A essência da felicidade da fantasia - tornar a
obtenção de prazer, mais uma vez, livre da aprovação da realidade - mostra-se inequivocamente
nesses desejos. Sabemos que tais devaneios são o núcleo e o protótipo dos
sonhos noturnos. Um sonho noturno é, no fundo, nada mais do que um devaneio que
se tornou aproveitável devido à liberação dos impulsos instintuais à noite, e
devido ao fato de haver sido distorcido pela forma que assume a atividade
mental à noite. Já nos familiarizamos com a idéia de que mesmo um devaneio não
é necessariamente consciente - de que há também devaneios inconscientes [ver em
[1]]. Tais devaneios inconscientes são, assim, a fonte não apenas dos sonhos
noturnos, mas também dos sintomas neuróticos.A importância do papel que
desempenha a fantasia na formação dos sintomas tornar-se-á evidente para os
senhores através disso que tenho a dizer-lhes. Expliquei [ver em [1]] como, em
caso de frustração, a libido reveste de catexias, regressivamente, as posições
que abandonou, às quais, porém, permaneceram aderentes determinadas parcelas da
mesma libido. O que já expliquei, não retiro nem corrijo; porém, devo inserir,
aqui, um elo de ligação. Como encontra a libido o caminho para chegar a esses
pontos de fixação? Todos os objetos e tendências que a libido abandonou, ainda
não foram abandonados em todos os sentidos. Tais objetos e tendências, ou seus
derivados, ainda são mantidos, com alguma intensidade, nas fantasias. Assim, a
libido necessita apenas retirar-se para as fantasias, a fim de encontrar aberto
o caminho que conduz a todas as fixações reprimidas. Essas fantasias gozaram de
determinado grau de tolerância: não entraram em conflito com o ego, por mais
fortes que possam ter sido os contrastes entre ele, desde que seja observada
uma certa condição. Essa condição é de natureza quantitativa e é agora
perturbada pelo deslocamento da libido para trás, em direção às fantasias. Em
conseqüência desse acréscimo, a catexia de energia das fantasias é de tal modo
aumentada, que elas começam a estabelecer exigências e desenvolvem uma pressão
no sentido de se tornarem realizadas. Mas isto torna inevitável um conflito
entre elas e o ego. Tendo sido anteriormente pré-conscientes ou inconscientes,
agora estão sujeitas à repressão por parte do ego e ficam à mercê da atração
por parte do inconsciente. Partindo daquilo que, agora, são fantasias
inconscientes, a libido movimenta-se para trás, até às origens dessas fantasias
no inconsciente - aos seus próprios pontos de fixação.A retração da libido para
a fantasia é um estádio intermediário no caminho da formação dos sintomas e
parece que ela requer um nome especial. C.G. Jung introduziu o nome apropriado
de ‘introversão’; mas depois, muito desacertadamente, deu-lhe também um outro
significado. Continuaremos a considerar que a introversão denota o desvio da
libido das possibilidades de satisfação real e a hipercatexia das fantasias que
até então foram toleradas como inocentes. Um introvertido não é bem um
neurótico, porém se encontra em situação instável: seguramente desenvolverá
sintomas na próxima modificação da relação de força, a menos que encontre
algumas outras saídas para sua libido represada. O caráter irreal da satisfação
neurótica e a desatenção à diferença entre fantasia e realidade já são, por
outro lado, determinados pelo fato de ter havido uma demora no estádio de
introversão.Sem dúvida, terão observado que, nessas últimas explanações,
introduzi um fator novo na estrutura da série etiológica - ou seja, a
quantidade, a magnitude das energias em questão. Ainda temos de levar em conta
esse fator em tudo o mais. Não basta uma análise puramente qualitativa dos
determinantes etiológicos. Ou, expressando-o de outra maneira, é insuficiente
uma visão simplesmente dinâmica desses processos mentais; requer-se
também uma linha de abordagem econômica. Devemos dizer para nós mesmos
que o conflito entre duas tendências não irrompe senão quando foram atingidas
determinadas intensidades de catexias, ainda que por muito tempo tenham estado
presentes os fatores determinantes do conflito e referentes ao seu próprio
tema. Da mesma forma, a significação patogênica dos fatores constitucionais
deve ser avaliada em relação ao quanto mais de um instinto parcial, do que de
outro, está presente na disposição herdada. Pode-se mesmo supor que a
disposição de todos os seres humanos é qualitativamente semelhante e apenas
difere em virtude dessas condições quantitativas. O fator quantitativo não é
menos decisivo no que respeita à capacidade de resistência à doença neurótica.
É uma questão de saber que quota de libido não-utilizada uma pessoa é
capaz de manter em suspensão, e uma questão do tamanho da fração de
libido que a pessoa é capaz de desviar dos fins sexuais para os fins
sublimados. O objetivo fundamental da atividade mental, que pode ser descrito
qualitativamente como um esforço para obter prazer e evitar desprazer quando
examinado do ponto de vista econômico, surge como tarefa que consiste em
dominar as quantidades de excitação (massa de estímulos) que atuam no aparelho
mental e em conter sua acumulação, capaz de gerar desprazer.Era isto, pois, o
que eu desejava dizer-lhes acerca da formação dos sintomas nas neuroses. Não
posso, contudo, deixar de mais uma vez acentuar expressamente o fato de que
tudo aquilo que disse, aqui, aplica-se apenas à formação dos sintomas na
histeria. Na própria neurose obsessiva existe muita coisa diferente -
excetuando aspectos fundamentais que permanecem inalterados - que será
encontrada. As anticatexias que se opõem às exigências dos instintos (que
também já abordamos, no caso da histeria [ver em [1]]) tornam-se proeminentes
na neurose obsessiva e dominam o quadro clínico, assumindo a forma daquilo que
se conhece como ‘formações reativas’. Nas demais neuroses descobrimos
divergências semelhantes e de maior profundidade ainda, e nelas nossas
investigações dos mecanismos de formação dos sintomas ainda não estão
concluídas em ponto algum.Antes de deixá-los ir, gostaria, contudo, de
chamar-lhes um pouco mais a atenção para um aspecto da vida de fantasia que
merece o mais amplo interesse. Isto porque existe um caminho que conduz da
fantasia de volta à realidade - isto é, o caminho da arte. Um artista é,
certamente, em princípio um introvertido, uma pessoa não muito distante da
neurose. É uma pessoa oprimida por necessidades instintuais demasiado intensas.
Deseja conquistar honras, poder, riqueza, fama e o amor das mulheres; mas
faltam-lhe os meios de conquistar essas satisfações. Conseqüentemente, assim
como qualquer outro homem insatisfeito, afasta-se da realidade e transfere todo
o seu interesse, e também toda a sua libido, para as construções, plenas de
desejos, de sua vida de fantasia, de onde o caminho pode levar à neurose. Sem
dúvida, deve haver uma convergência de todos os tipos de coisas, para que tal
não se torne o resultado completo de sua evolução; na verdade, sabe-se muito
bem com quanta freqüência os artistas, em especial, sofrem de uma inibição
parcial de sua eficiência devido à neurose. Sua constituição provavelmente
conta com uma intensa capacidade de sublimação e com determinado grau de
frouxidão nas repressões, o que é decisivo para um conflito. Um artista
encontra, porém, o caminho de retorno à realidade da maneira expressa a seguir.
A dizer a verdade, ele não é o único que leva uma vida de fantasia. O acesso à
região eqüidistante da fantasia e da realidade é permitido pelo consentimento
universal da humanidade, e todo aquele que sofre privação espera obter dela
alívio e consolo. Entretanto, para aqueles que não são artistas, é muito
limitada a produção de prazer que se deriva das fontes da fantasia. A crueldade
de suas repressões força-os a se contentarem com esses estéreis devaneios aos
quais é permitido o acesso à consciência. Um homem que é um verdadeiro artista,
tem mais coisa à sua disposição. Em primeiro lugar, sabe como dar forma a seus
devaneios de modo tal que estes perdem aquilo que neles é excessivamente
pessoal e que afasta as demais pessoas, possibilitando que os outros
compartilhem do prazer obtido nesses devaneios. Também sabe como abrandá-los de
modo que não traiam sua origem em fontes proscritas. Ademais, possui o
misterioso poder de moldar determinado material até que se torne imagem fiel de
sua fantasia; e sabe, principalmente, pôr em conexão uma tão vasta produção de
prazer com essa representação de sua fantasia inconsciente, que, pelo menos no
momento considerado, as repressões são sobrepujadas e suspensas. Se o artista é
capaz de realizar tudo isso, possibilita a outras pessoas, novamente, obter
consolo e alívio a partir de suas próprias fontes de prazer em seu
inconsciente, que para elas se tornaram inacessíveis; granjeia a gratidão e a
admiração delas, e, dessa forma, através de sua fantasia conseguiu o que
originalmente alcançara apenas em sua fantasia - honras, poder e o amor das
mulheres.
CONFERÊNCIA XXIV
O ESTADO NEURÓTICO COMUM
SENHORAS E SENHORES:
Agora que eliminamos essa parte difícil de
nosso trabalho, em nossa últimas explanações, proponho que, por algum tempo,
abandonemos o assunto e nos voltemos para os senhores mesmos.
Isto porque estou ciente de que os senhores
estão insatisfeitos. Imaginaram uma ‘Introdução à Psicanálise’ muito diferente.
O que esperavam ouvir eram exemplos vívidos, não teoria. Em determinada
ocasião, dizem os senhores, quando lhes contei a parábola ‘No Subsolo e no
Primeiro Andar’ [ver em [1] e [2]], os senhores apreenderam algo da forma como
são causadas as neuroses; as observações deveriam ter sido, porém, observações
reais, e não histórias inventadas. Ou quando, no início, descrevi-lhes dois
sintomas (esperemos que desta vez não tenham sido inventados), e sua solução e
sua relação com a vida das pacientes [ver em [1]], o ‘sentido’ dos sintomas se
revelou aos senhores. Os senhores esperavam que eu prosseguisse nessa linha. Em
vez disso, contudo, apresentei-lhes teorias prolixas, difíceis de compreender,
que jamais estiveram completas e sempre tiveram algo de novo a ser
acrescentado; operei com determinados conceitos que ainda não lhes havia
explanado; passei de uma apreciação descritiva das coisas a uma apreciação
dinâmica, e, daí, àquilo que chamei de conceituação econômica; tornei difícil
para os senhores entender quantos dos termos técnicos que usei significavam a
mesma coisa ou eram substituídos apenas por motivos de eufonia; apresentei
conceitos de tão longo alcance, tais como os conceitos dos princípios de prazer
e de realidade e o das dotações filogeneticamente herdadas. E, sem lhes
apresentar previamente nada, fiz desfilar diante de seus olhos coisas que se
tornaram cada vez mais distanciadas dos senhores.Por que não iniciei minha
introdução à teoria das neuroses com aquilo que os senhores mesmos conhecem a
respeito do estado neurótico e que há muito atraiu o interesse dos senhores -
as peculiares características das pessoas neuróticas, suas incompreensíveis
reações ao relacionamento humano e às influências externas, sua irritabilidade,
sua conduta imprevisível e desarrazoada? Por que não os conduzi, passo a passo,
desde um entendimento das formas mais simples e mais encontradiças do estado
neurótico até os problemas de suas manifestações extremas, enigmáticas?
Em verdade, não posso nem mesmo discordar dos
senhores. Não estou assim tão enamorado de minha habilidade expositiva, a ponto
de poder declarar que cada uma das falhas de minha exposição constitui um
encanto especial. Penso comigo que poderia ter feito mais em benefício dos
senhores, se tivesse agido de outro modo; e, com efeito, esta era minha
intenção. No entanto, nem sempre se pode levar a cabo as intenções racionais.
Freqüentemente, no próprio material existe algo que toma conta de nós e nos
desvia de nossas intenções iniciais. Mesmo uma realização banal como a
organização de determinada quantidade de material não depende inteiramente da
escola do autor; as coisas podem tomar o rumo que lhes apraz, e tudo quanto se
pode fazer é perguntar-se, após os fatos, por que estes se passaram desta e não
daquela maneira.
Um dos motivos é, provavelmente, que o título
‘Introdução à Psicanálise’ já não mais se aplica à presente seção, que supomos
estar tratando das neuroses. Uma introdução à psicanálise compõe-se do estudo
das parapraxias e dos sonhos; a teoria das neuroses é psicanálise propriamente
dita. Acredito que não teria sido possível ministrar-lhes conhecimentos sobre o
tema da teoria das neuroses em tempo tão curto, a não ser em forma resumida.
Era uma questão de apresentar-lhes uma exposição interligada do sentido e da
significação dos sintomas, das causas externas e internas e dos mecanismos de
sua formação. Isto é o que procurei fazer; e mais ou menos o que atualmente a
psicanálise tem a ensinar. Importava em dizer muito coisa sobre a libido e sua
evolução, e também um pouco a respeito do desenvolvimento do ego. Nossa
introdução já os havia preparado com antecedência para as premissas de nossa
técnica e para os importantes pontos de vista relativos ao inconsciente e à
repressão (à resistência). Em uma das conferência seguintes [Conferências
XXVI], os senhores descobrirão os pontos a partir dos quais o trabalho da
psicanálise realiza progressos fundamentais. Até agora não tenho mantido em
segredo o fato de que tudo aquilo que lhes disse se deriva do estudo de um
único grupo de distúrbios nervosos - aqueles que se denominam ‘neurose de
transferência’. Na verdade, determinei o mecanismo da formação dos sintomas
apenas no caso da neurose histérica. Ainda que os senhores não tenham adquirido
um sólido conhecimento e não tenham retido todos os detalhes, eu, não obstante,
espero que tenham formado um quadro dos métodos com os quais a psicanálise
trabalha, dos problemas que ela acomete e dos resultados aos quais ela chegou
atribuí aos senhores o desejo de que poderia ter começado minha descrição das
neuroses a partir do comportamento das pessoas neuróticas, de um relato da
maneira pela qual elas sofrem com a neurose, de como se defendem contra ela e
de como entram em um acordo com ela. Sem dúvida, é um tópico interessante,
merece ser investigado; e não seria muito difícil sua abordagem. Seria, porém,
discutível esse critério de começar a partir daí. Haveria o risco de não
descobrir o inconsciente e, ao mesmo tempo, de não atentar para a grande
importância da libido, e de julgar todas as coisas conforme elas se afiguram ao
ego da pessoa neurótica. É evidente que esse ego não é uma instância digna de
confiança ou imparcial. O ego é, realmente, o poder que nega e desacredita o
inconsciente mantendo-o reprimido; assim, como podemos confiar em que seja
justo para com o inconsciente? Os elementos mais importantes naquilo que dessa
forma está reprimido, são as exigências da sexualidade rechaçadas, e fica
bastante evidente que, partindo dos pontos de vista próprios do ego, jamais
conseguiríamos imaginar a extensão e importância das mesmas. A partir do
momento em que a noção de repressão se torna clara para nós, somos advertidos
para que não façamos uma das duas partes litigantes (e, com isso, o lado
vitorioso) tornar-se juiz da questão. Estamos preparados para verificar que as
assertivas do ego nos desorientarão. Se quisermos acreditar no ego, levemos em
conta que ele teve a iniciativa em cada etapa do processo e ele próprio desejou
e construiu os sintomas. Mas sabemos que ele suporta uma boa dose de
passividade que, depois, ele tenta disfarçar e encobrir. É verdade que nem
sempre ele se arrisca a uma tal tentativa; nos sintomas da neurose obsessiva, o
ego é obrigado a admitir que existe algo de estranho com que se defronta e contra
o qual pode defender-se apenas com dificuldade.
Quem quer que não se deixe coibir por essa
advertência e resolva tomar as falsificações do ego por moeda legítima, vai
passar bem, evitará todas as resistências que se opõem à ênfase dada pela
psicanálise ao inconsciente, à sexualidade e à passividade do ego. Poderá
declarar, como Alfred Adler, que o ‘caráter neurótico’ é a causa das neuroses,
em vez de ser sua conseqüência; mas não estará em condições de explicar um
único detalhe da formação dos sintomas, ou um único sonho. Os
senhores perguntarão se não será possível, porém, fazer justiça ao papel que o
ego desempenha nos estados neuróticos e na formação dos sintomas, sem simultaneamente
desprezar por completo os fatores revelados pela psicanálise. Minha resposta é
que isso deve ser possível, certamente, e, mais cedo ou mais tarde, será feito;
o caminho seguido pelo trabalho da psicanálise, porém, não comporta que
realmente se comece a partir disso. Naturalmente, é possível prever que
um dia a psicanálise se defrontará com semelhante tarefa. Há neuroses em que o
ego desempenha um papel muito mais marcante do que naquelas que investigamos
até o momento; nós as denominamos neuroses ‘narcísicas’. A investigação desses
distúrbios nos possibilitará formar um julgamento imparcial e fidedigno da
contribuição do ego ao desencadeamento das neuroses.Uma das formas pelas quais
o ego se relaciona com suas neuroses, entretanto, é tão óbvia que foi possível
considerá-la desde o início. Parece jamais estar ausente; e é reconhecível com
bastante nitidez em um distúrbio que, ainda hoje em dia, estamos longe de
compreender - a neurose traumática. Os senhores devem saber que os mesmo
fatores sempre entram em jogo na causação e no mecanismo de todas as possíveis
formas de neurose; mas a importância principal na construção dos sintomas recai
ora num, ora noutro desses fatores. A situação assemelha-se à dos membros de
uma companhia teatral. Cada um deles recebe regularmente a tarefa de desempenhar
um papel fundamental - herói, confidente, vilão, e assim por diante; cada qual,
porém, escolherá uma peça diferente para sua própria representação beneficente.
Da mesma forma, as fantasias, que se transformam em sintomas, em nenhuma outra
neurose são mais evidentes do que na histeria; as anticatexias das formações
reativas do ego dominam o quadro nas neuroses obsessivas; aquilo que, no caso
dos sonhos, denominamos ‘elaboração secundária’ [ver em [1]] situa-se em
primeiro plano na paranóia, sob a forma de delírios, e assim por diante.Nas
neuroses traumáticas, e particularmente naquelas causadas pelos horrores da
guerra, inequivocamente deparamo-nos, assim, com um motivo egoísta, por parte
do ego, à procura de proteção e vantagem - um motivo que não pode, talvez,
produzir por si mesmo a doença, mas que condescende com ela e a mantém, uma vez
que ela tenha surgido. Esse motivo procura preservar o ego dos perigos cuja
ameaça foi a causa precipitante da doença, e não permitirá que ocorra a
recuperação enquanto a repetição desses perigo ainda pareça possível, ou
enquanto não tenha recebido a compensação pelo perigo que foi suportado.O ego,
porém, assume um interesse semelhante no desenvolvimento e na manutenção da
neurose em todos os outros casos. Já demonstrei [ver em [1]] que os sintomas
também são apoiados pelo ego, porque possuem um aspecto com o qual oferecem
satisfação ao propósito repressor do ego. Ademais, apaziguar um conflito
construindo um sintoma é a solução mais conveniente e mais agradável para o princípio
de prazer: inquestionavelmente, poupa ao ego uma grande quantidade de trabalho
interno que é sentido como penoso. Na verdade, há casos em que até mesmo o
médico deve admitir que um conflito terminar em neurose constitui a solução
mais inócua e socialmente mais tolerável. Os senhores não devem surpreender-se
ao ouvir dizer que o próprio médico, às vezes, pode tomar o partido da doença
que está combatendo. Não é sua função limitar-se, em todas as situações da
vida, a ser um fanático defensor da saúde. Ele sabe que não há apenas miséria
neurótica no mundo, mas também sofrimento real, irremovível, que a necessidade
pode mesmo exigir que uma pessoa sacrifique sua saúde; e aprende que um
sacrifício dessa espécie, feito por uma única pessoa, pode evitar incomensurável
infelicidade para muitas outras. Portanto, se podemos dizer que sempre que um
neurótico enfrenta um conflito ele empreende uma fuga para a doença, assim
mesmo devemos admitir que, em determinados casos, tal fuga se justifica
plenamente, e um médico que tenha reconhecido a maneira como se configura a
situação, haverá de se retirar, silencioso e apreensivo.Abandonemos,
entretanto, esses casos excepcionais e prossigamos com nossa exposição. Em
circunstâncias comuns, reconhecemos que, refugiando-se na neurose, o ego obtém
internamente um certo ‘ganho proveniente da doença’. Em algumas circunstâncias
da vida, isto se acompanha, ademais, de uma apreciável vantagem externa
que assume um valor real maior ou menor. Considerem o exemplo mais comum desse
tipo. É muito comum uma mulher, tratada com rudeza e explorada de forma
desumana por seu marido, encontrar uma saída na neurose, se sua constituição o
possibilita, se é excessivamente covarde ou excessivamente honrada para
procurar um consolo secreto com outro homem, se em virtude de todos os
empecilhos externos não é suficientemente forte para separar-se de seu marido,
se não tem perspectivas de se sustentar a si própria ou de conseguir um marido
melhor, e se, além do mais, ainda está, através de seus sentimentos sexuais,
vinculada a seu cruel marido. Então a sua doença se converte em arma na batalha
contra o marido dominador - arma que ela pode usar para sua defesa e da qual
pode abusar para sua vingança. É permissível ela queixar-se de sua doença,
embora provavelmente não fosse permissível lamentar o casamento. Ela encontra
no médico um aliado, força o marido, habitualmente indiferente, a cuidar dela,
a gastar dinheiro com ela, a permitir-lhe que de tempos em tempos se afaste de
casa e com isso se liberte da opressão de estar casada. Quando semelhante ganho
externo ou secundário proveniente da doença atinge essas proporções e não há
nenhum substituto real disponível, os senhores não devem contar com
possibilidades muito grande de influenciar a neurose por meio do tratamento que
empreenderem.
Os senhores protestarão, agora, que aquilo que
lhes disse a respeito do ganho proveniente da doença, fala completamente em
favor do ponto de vista que rejeitei - o de que o próprio ego deseja e cria a
neurose [ver em [1]]. Devagar, senhores! Talvez não signifique senão que o ego
tolera a neurose, que, afinal, não pode evitar; e que ele faz o melhor que
pode, se é que, no final das contas, algo pode ser feito. Este é apenas um dos
lados da questão, o lado agradável, para dizer a verdade. Na medida em que a
neurose traz vantagens, o ego, sem dúvida, aceita-a; porém, não traz apenas
vantagens. Via de regra, logo se verifica que o ego fez mau negócio ao optar
pela neurose. Ele pagou caro demais por um alívio do conflito, e os sofrimentos
ligados aos sintomas são, talvez, um substituto equivalente dos tormentos do
conflito, mas provavelmente importam em aumento de desprazer. O ego preferiria
libertar-se desse desprazer dos sintomas, sem desistir do ganho que lhe dá a
doença, e isto é justamente o que não pode obter. Isto mostra, então, que o ego
não era tão completamente ativo como imaginava ser; devemos considerar
atentamente esse aspecto.
Senhores, em seu contato com as neuroses, na
qualidade de médicos, logo desistirão de esperar que aqueles que exibem as
maiores lamentações e queixas acerca de sua doença sejam os mais desejosos de
cooperar e mostrem a menor resistência. É bem o inverso disso. Naturalmente, os
senhores, contudo, reconhecerão com facilidade que tudo aquilo que contribui
para o ganho proveniente da doença haverá de intensificar a resistência devido
repressão e aumentará as dificuldades do tratamento. À parcela de ganho
decorrente da doença que, por assim, dizer, nasceu com a doença, temos de
acrescentar uma outra parcela que surge posteriormente. Quando uma organização
psíquica semelhante a uma doença durou algum tempo, ela termina por funcionar
como mecanismo independente; manifesta-se um tanto como instinto de
autopreservação; estabelece uma espécie de modus vivendi entre si e as
outras partes da mente, mesmo aquelas outras partes que lhe são hostis; e
raramente deixa de haver ocasiões em que se comprova que a doença, repetidas
vezes, se torna útil e adequada, e adquire, por assim dizer, uma função
secundária que reforça novamente sua estabilidade. Em vez de um exemplo
extraído da patologia, tomemos um exemplo flagrante da vida diária. Um
operário, que com sua capacidade ganha sua vida, vem a sofrer uma mutilação num
acidente ocorrido durante o trabalho. Esse homem, assim aleijado, não pode mais
trabalhar; porém, afinal, consegue uma pequena pensão por invalidez e aprende
como explorar sua mutilação pedindo esmolas. Seu novo, embora piorado, meio de
vida se baseia justamente naquela mesma coisa que o privou de seu meio de vida
anterior. Se os senhores pudessem pôr fim à sua mutilação, poderiam fazer,
inicialmente, com que ele ficasse sem seu meio de vida; surgiria então a
questão de saber se ele ainda seria capaz de retomar seu trabalho anterior. No
caso das neuroses, o que corresponde a uma semelhante exploração secundária de
uma doença pode ser descrito como ganho secundário da doença em contraste com o
ganho primário.Em geral, porém, gostaria de recomendar que, conquanto não
subestimando a importância prática do ganho proveniente da doença, os
senhores não devem deixar-se impressionar pelo mesmo, teoricamente. Afinal, à
parte as exceções que apontei anteriormente [ver em [1]], isto sempre leva a
pensar nos exemplos de ‘inteligência animal’ ilustrados por Oberländer em Fliegende
Blätter.Uma árabe ia montado em seu camelo, percorrendo uma trilha estreita
cortada na encosta íngreme de uma montanha. Numa curva da trilha, subitamente
se viu frente a frente com um leão que já se preparava para dar o salto. Ele
não via escapatória: de um lado, um rochedo perpendicular e, de outro, um
precipício; fuga e luta eram impossíveis. Considerou-se perdido. Mas o camelo
pensou diferente. De um salto, lançou-se com o árabe ao abismo - e o leão ficou
sem nada. A ajuda que proporciona uma neurose não representa, geralmente,
melhor solução para o paciente. Isto pode suceder porque lidar com um conflito
produzindo sintomas é, afinal, um processo automático que não pode se mostrar
adequado para arrostar as exigências da vida e no qual a pessoa abandonou o uso
das sua melhores e mais elevadas capacidades. Se houvesse uma escolha, seria
preferível descer à liça para uma honrosa luta com o destino.
Entretanto, ainda lhes devo outros
esclarecimentos do motivo por que não iniciei minha exposição da teoria das
neuroses com o estado neurótico comum. Os senhores podem supor, talvez, que
isto sucedeu porque, nesse caso, eu teria tido maior dificuldade de provar a
causação sexual das neuroses. Mas nisso os senhores poderiam estar enganados.
No caso das neuroses de transferência, deve-se achar a solução através da
interpretação dos sintomas, antes de se poder chegar a essa descoberta. Nas
formas comuns daquilo que se conhece como ‘neuroses atuais’ a significação
etiológica da vida sexual é um fato indisfarçado que salta aos olhos do
observador. Encontrei-a há mais de vinte anos, quando, certo dia, indagava a
mim próprio da razão por que, no exame dos neuróticos, suas atividades sexuais
são tão regularmente excluídas de qualquer consideração. Naquela época, sacrifiquei
minha popularidade junto a meus pacientes, em benefício dessas investigações;
bastou apenas um breve esforço para que pudesse declarar que, ‘se a vita
sexualis é normal, não pode haver neurose’ - e, como isso, eu quis dizer
‘neurose atual’. Sem dúvida, essa afirmação passa muito de leve sobre as
diferenças individuais das pessoas; e padece, também, da imprecisão, que é
inseparável do julgamento daquilo que é ‘normal’. Vista como diretriz geral,
mantém, contudo, o seu valor até hoje. Naquela época, eu chegara a estabelecer
relações específicas entre determinadas formas de neuroses e determinadas
influências nocivas sexuais; e não tenho dúvidas de que poderia, hoje, repetir
as mesmas observações, se ainda estivesse à minha disposição um material patológico
parecido. Muitíssimas vezes verifiquei que um homem que se excedeu em
determinado tipo de satisfação sexual incompleta (por exemplo, masturbação
manual) havia adoecido de determinada forma de ‘neurose atual’, e que essa
neurose prontamente dava lugar a uma outra, se substituísse seu regime
sexual por outro igualmente nada irrepreensível. Naquele tempo, estava em
situação de concluir que, no paciente, havia se operado uma mudança na sua vida
sexual, a partir de uma modificação em sua condição. Também aprendi, nessa
época, a manter obstinadamente minha hipótese, até haver vencido a
insinceridade dos pacientes e havê-los compelido a confirmar meus pontos de
vista. É verdade que, depois disso, eles preferiram ir a outros médicos que não
fizeram essas indagações meticulosas sobre sua vida sexual.Mesmo nessa época,
não pude deixar de perceber que a causação da doença nem sempre aponta para a
vida sexual. Uma pessoa, é fato, adoeceu por uma influência nociva sexual
direta; mas uma outra adoeceu porque perdeu sua fortuna ou porque sofreu uma
doença orgânica exaustiva. A explicação dessas diferenças veio posteriormente,
quando compreendemos as inter-relações, de que já suspeitávamos, entre o ego e
a libido, e a explicação se tornou mais satisfatória à medida que essa
compreensão se aprofundava. Uma pessoa somente adoece de uma neurose se seu ego
perdeu a capacidade de diversificar, de algum modo, sua libido. Quanto mais
forte é seu ego, mais fácil lhe será executar essa tarefa. Qualquer
enfraquecimento do seu ego por qualquer causa deve ter o mesmo efeito, agindo
como um aumento excessivo das exigências da libido, e, por isso, lhe
possibilitará adoecer de uma neurose. Existem outras relações, mais íntimas,
entre o ego e a libido; estas, porém, ainda não se enquadram em nosso objetivo,
de modo que não as abordarei como parte desta minha presente explanação. O que
continua essencial e nos esclarece coisas é que, em todos os casos, e seja qual
for o modo como a doença se pôs em marcha, os sintomas da neurose são mantidos
pela libido, e, por conseguinte, são prova de que ela está sendo utilizada
anormalmente.
Agora, entretanto, devo chamar a atenção dos
senhores para a decisiva diferença entre os sintomas das neuroses ‘atuais’ e os
das psiconeuroses, das quais o primeiro grupo, as neuroses de transferência,
nos manteve tão ocupados até agora. Em ambos os casos, os sintomas se originam
da libido, e constituem, portanto, empregos anormais da mesma; são satisfações
substitutivas. Mas os sintomas das neuroses ‘atuais’ - pressão intracraniana,
sensações de dor, estado de irritação em um órgão, enfraquecimento ou inibição
de uma função - não têm nenhum ‘sentido’, nenhum significado psíquico. Não só
se manifestam predominantemente no corpo (como, por exemplo, os sintomas histéricos,
entre outros), como também constituem, eles próprios, processos inteiramente
somáticos, em cuja origem estão ausentes todos os complicados mecanismos
mentais que já conhecemos. Assim, realmente são a mesma coisa que há tanto
tempo acreditava-se serem os sintomas psiconeuróticos. Mas, sendo assim, com
podem eles corresponder a empregos da libido, que reconhecemos como força que
opera na mente? Bem, senhores, isto é algo muito simples. Permitam-me
lembrar-lhes uma das primeiras objeções levantadas contra a psicanálise. Foi
dito, então, que esta se ocupava em encontrar uma teoria puramente psicológica
dos fenômenos neuróticos, e que isso era uma causa perdida, de vez que as
teorias psicológicas jamais poderiam explicar uma doença. As pessoas haviam
optado por esquecer que a função sexual não é uma coisa puramente psíquica, da
mesma forma como não é uma coisa puramente somática. Influencia igualmente a
vida corporal e mental. Se, nos sintomas das psiconeuroses, nos familiarizamos
com as manifestações de distúrbios na atuação psíquica da função sexual,
não nos surpreenderemos ao encontrar nas neuroses ‘atuais’ as conseqüências somáticas
diretas dos distúrbios sexuais.A clínica médica deu-nos uma indicação valiosa
para uma interpretação desses distúrbios, uma indicação que foi objeto de
considerações por vários investigadores. As neuroses ‘atuais’, nos detalhes de
seus sintomas e também em sua característica de exercer influência em todo
sistema orgânico e toda função, mostram uma inconfundível semelhança com os
estados patológicos que surgem da influência crônica de substâncias tóxicas
externas e de uma suspensão brusca das mesmas - as intoxicações e as situações
de abstinência. Os dois grupos de distúrbios se aproximam mais intimamente por
meio de condições intermediárias, tal como a doença de Grave, que sabemos ser,
também ela, devida à ação de substâncias tóxicas, porém de toxinas não
introduzidas no corpo, mas originadas no próprio metabolismo da pessoa. Em
vista dessa analogias, penso que não podemos evitar considerarmos as neuroses
resultado de distúrbios no metabolismo sexual, seja porque se produzem mais
toxinas do que o indivíduo pode metabolizar, seja porque as condições internas,
e até mesmo as condições psíquicas, limitam o emprego adequado dessas substâncias.
Desde tempos imemoriais, a concepção popular tem prestado homenagem a hipóteses
dessa espécie a respeito da natureza do desejo sexual, falando do amor como uma
‘intoxicação’ e crendo que o apaixonar-se é causado por filtros de amor -
embora aqui o agente atuante esteja, em certa medida, externalizado. E para nós
esta seria a ocasião de relembrar as zonas erógenas e nossa afirmação de que a
excitação sexual pode ser gerada nos mais variados órgãos [ver em [1]]. Mas,
para o restante, a expressão ‘metabolismo sexual’ ou ‘química da sexualidade’ é
um termo sem conteúdo; não sabemos nada a esse respeito, nem podemos dedicar se
devemos supor a existência de duas substâncias sexuais, se seriam então
denominadas ‘masculina’ e ‘feminina’, ou se poderíamos nos contentar com uma
toxina sexual que deveríamos reconhecer como veículo de todos os efeitos
estimulantes da libido. A estrutura teórica da psicanálise, que criamos, é, com
efeito, uma superestrutura, que um dia terá de se erguer sobre seus fundamentos
essenciais. Acerca disso, porém, nada sabemos ainda.O que caracteriza a
psicanálise como ciência não é o material de que trata, mas sim a técnica com a
qual trabalha. Pode ser aplicada à história da civilização, à ciência da
religião e da mitologia não em menor medida do que à teoria das neuroses, sem
forçar sua natureza essencial. Aquilo a que ela visa, aquilo que realiza, não é
senão descobrir o que é inconsciente na vida mental. Os problemas das neuroses
‘atuais’, cujos sintomas provavelmente são gerados por uma lesão tóxica direta,
não oferecem à psicanálise qualquer ponto de ataque. Ela pouco pode fazer para
esclarecê-los e deve deixar a tarefa para a pesquisa biológica-médica.E então,
talvez os senhores entendam melhor por que decidi não ordenar meu material de
outro modo. Se lhes tivesse prometido uma ‘Introdução à Teoria das Neuroses’, o
caminho correto certamente teria levado desde as formas simples das neuroses
‘atuais’ às doenças psíquicas mais complicadas, devidas à perturbação da
libido. No que concerne às primeiras, deveria ter coligido de fontes várias
aquilo que temos aprendido ou pensamos saber e, com relação às psiconeuroses, a
psicanálise surgiria na discussão, como o recurso técnico mais importante para
esclarecer esses estados. No entanto, o que eu pretendi dar, e anunciei, foi
uma ‘Introdução à Psicanálise’. Para mim, era mais importante os senhores
formarem uma idéia sobre a psicanálise, do que obterem algum conhecimento das
neuroses; e, por essa razão, as neuroses ‘atuais’, improdutivas no que concerne
à psicanálise, não podiam mais ocupar um lugar em primeiro plano. Penso também
que fiz a melhor escolha para os senhores. Isso porque, devido à profundidade
de suas hipóteses e ao alcance de duas conexões, a psicanálise merece um lugar
no âmbito dos interesses de toda pessoa culta, ao passo que a teoria das
neuroses é um capítulo da medicina como outro qualquer.
Ainda assim, os senhores acertadamente
esperarão que devamos dedicar também algum interesse às neuroses ‘atuais’. A
íntima conexão clínica dessas neuroses com as psiconeuroses nos compeliria a
fazê-lo. Posso informar-lhes, pois, que distinguimos três formas puras de
neuroses ‘atuais’: neurastenia, neurose de angústia e hipocondria. Mesmo essa
assertiva não é isenta de contradições. Todos os nomes estão em uso, é verdade;
porém, seu conteúdo é impreciso e instável. Aliás, existem médicos que se opõem
a qualquer linha divisória no mundo católico dos fenômenos neuróticos, a
qualquer separação das entidades clínicas ou das doenças individualizadas, e
que nem sequer reconhecem a distinção entre as neuroses ‘atuais’ e as
psiconeuroses. Penso que nisto se excedem e não escolheram o caminho que conduz
ao progresso. As formas de neurose, que mencionei, ocasionalmente ocorrem em
sua forma pura; mais freqüentemente, porém, estão mescladas umas com as outras
e com algum distúrbio psiconeurótico. Isto não deve levar-nos a abandonar a
diferença entre elas. Pensem na diferença entre o estudo dos minerais e o das
rochas, na mineralogia. Os minerais são descritos como substâncias
individualizadas, sem dúvida com base no fato de que amiúde ocorrem na forma de
cristais, nitidamente separadas de seu ambiente. As rochas consistem em um
agregado de minerais, que, podemos ter certeza, não vieram a se juntar por acaso,
mas em conseqüência daquilo que determinou sua origem. Na teoria das neuroses,
ainda sabemos muito pouco sobre o curso de seu desenvolvimento para apresentar
algo semelhante à petrologia. Estaremos, contudo, certamente agindo de forma
correta, se começarmos por isolar do conjunto as entidades clínicas individuais
que reconhecemos e que se podem comparar aos minerais.Uma notável relação entre
os sintomas das neuroses atuais e os das psiconeuroses oferece mais uma
importante contribuição ao nosso conhecimento da formação dos sintomas nestas
últimas. Pois um sintoma de uma neurose ‘atual’ é freqüentemente o núcleo e o
primeiro estádio de um sintoma psiconeurótico. Uma relação dessa espécie pode
ser observada com muita nitidez entre a neurastenia e a neurose de
transferência, conhecida como ‘histeria de conversão’, entre a neurose de
angústia e a histeria de angústia, contudo também entre a hipocondria e as
formas de distúrbio que serão mencionadas posteriormente [ver em [1] e segs.]
sob o nome de parafrenia (demência precoce e paranóia). Tomemos como exemplo um
caso de dor de cabeça ou dor lombar histérica. A análise nos mostra que, pela
condensação e pelo deslocamento, o sintoma tornou-se satisfação substitutiva de
toda uma série de fantasias e recordações libidinais. Mas essa dor, em
determinada época, era também uma dor real e era, então, um sintoma
sexual-tóxico direto, expressão somática de uma excitação libidinal. Longe
estamos de afirmar que todos os sintomas histéricos contém um núcleo
dessa espécie. Mas persiste o fato de que este é, com especial freqüência, o
caso, e que quaisquer influências somáticas (normais ou patológicas) causadas
por excitações libidinais são preferidas na construção dos sintomas histéricos.
Em tais casos, desempenham o papel do grão de areia que um molusco cobre de
camadas de madrepérola. Da mesma forma, as transitórias indicações de excitação
sexual que acompanham o ato sexual não utilizadas pela psiconeurose como o
material mais conveniente e apropriado para a construção dos sintomas.Semelhante
sucessão de fatos reveste-se de especial interesse diagnóstico e terapêutico.
Não é absolutamente raro acontecer, no caso de uma pessoa que está predisposta
a uma neurose sem realmente sofrer de uma neurose manifesta, que uma modificação
somática patológica (talvez por inflamação ou lesão) põe em marcha a atividade
da formação do sintoma; assim, essa atividade prontamente transforma o sintoma,
que lhe foi apresentado pela realidade, em representante de todas as fantasias
inconscientes que estavam apenas aguardando a ocasião de lançar mão de algum
meio de expressão. Num caso destes, o médico adotará ora uma, ora outra linha
de tratamento. Ou se esforçará por abolir a base orgânica, sem importar-se com
a ruidosa elaboração neurótica; ou atacará a neurose que aproveitou essa
oportunidade favorável para surgir, e prestará pouca atenção à sua causa
precipitante orgânica. O resultado mostrará que uma ou outra linha de conduta
está certa ou errada; é impossível fazer recomendações gerais para abordar
esses casos mistos.
CONFERÊNCIA XXV
A
ANSIEDADE
SENHORAS E SENHORES:
O que lhes disse em minha última conferência a
respeito do estado neurótico geral deve tê-los surpreendido, sem dúvida, como o
mais incompleto e inadequado de todos os meus pronunciamentos. Sei que é
verdade, e nada deve tê-los surpreendido mais, segundo espero, do que não haver
nessa conferência nada a respeito da ansiedade, da qual todos os neuróticos se
queixam, e descrevem como sendo seu pior sofrimento e que, de fato, neles
atinge enorme intensidade, e pode resultar nas atitudes mais loucas.
Entretanto, ali, pelo menos, não tive a intenção de oferecer-lhes resumos. Ao
contrário, foi minha intenção abordar o problema da ansiedade nos neuróticos de
forma especialmente acurada e discuti-lo em profundidade com os senhores.A
ansiedade, como tal, não há por que apresentá-la Aos senhores. Cada um de nós
experimentou essa sensação, ou, para expressar com maior correção, esse estado
afetivo, numa ou noutra época, por nossa própria conta. Penso, porém, que
jamais com seriedade suficiente levantou-se a questão de saber por que os
neuróticos, em particular, sofrem de ansiedade tanto mais e tão mais
intensamente do que outras pessoas. Talvez tenha sido considerado como algo
evidente poR si mesmo: as palavras ‘nervös’ e ‘angstlich‘ são
usadas comumente de modo intercambiável, como se significassem a mesma coisa.
Mas não temos o direito de fazê-lo: existem pessoas ‘ängstliche‘ que, de
outro modo, não são absolutamente ‘nervös‘, e ademais, não inclui
pessoas ‘nervöse‘ que padecem de muitos sintomas, entre os quais uma
tendência à ‘Angst‘.Qualquer que seja o caso, não há dúvida de que o
problema da ansiedade é um ponto nodal para o qual convergem as mais diversas e
importantes questões, um enigma cuja solução deverá inundar de luz toda nossa
existência mental. Não afirmarei que lhes possa dar essa solução completa;
certamente, porém, os senhores esperarão que a psicanálise empreenda, em
relação a esse tema, uma abordagem muito diferente da realizada pela medicina
acadêmica. Parece que o interesse se manteve centrado em traçar as vias
anatômicas ao longo das quais o estado de ansiedade se concretiza. Foi-nos dito
que a medula ablonga é estimulada, e o paciente conhece que está sofrendo de
uma neurose de nervo vago. A medula oblonga é algo muito sério e atraente.
Recordo-me, muito vivamente, de quanto tempo e preocupação dediquei ao seu
estudo, há muitos anos passados. Hoje em dia, entretanto, devo observar que não
conheço nada que possa ter menos interesse para mim, ao tratar-se da
compreensão psicológica da ansiedade, do que o conhecimento dos trajetos dos
nervos, por cuja extensão passam suas excitações.
É possível, no princípio, trabalhar o tema da
ansiedade, por um tempo considerável, sem absolutamente pensar nos estados
neuróticos. De imediato, os senhores me entenderão, quando eu descrever essa
espécie de ansiedade como ansiedade ‘realística’, em contraste com ansiedade
‘neurótica’. A ansiedade realística atrai nossa atenção como algo muito racional
e inteligível. Podemos dizer que ela é uma reação à percepção de um perigo
externo - isto é, de um dano que é esperado e previsto. Está relacionada ao
reflexo de fuga e pode ser visualizada como manifestação do instinto de
autopreservação. Saber em que ocasiões a ansiedade aparece - isto é, em face de
que objetos e de que situações - depende, naturalmente, em grande medida, do
estado de conhecimento da pessoa e do seu senso de poder vis-à-vis com o
mundo externo. Podemos compreender muito bem como um selvagem tem medo de um
canhão e fica temeroso de um eclipse do sol, ao passo que o homem branco, que
sabe como manejar a arma e pode prever o eclipse, permanece sem ansiedade
nessas circunstâncias. Em outras ocasiões, é realmente o conhecimento superior
que promove a ansiedade, porque possibilita um reconhecimento muito precoce do
perigo. Assim, o selvagem ficará aterrorizado com um rastro na floresta, porque
este o avisa da proximidade de um animal bravio; o mesmo rastro nada indica
para uma pessoa desinformada dessas coisas; e um marinheiro experimentado
sentirá temor ao ver uma pequena nuvem no céu, porque ela lhe fala de um tufão
aproximando-se; para um passageiro, a nuvem parecerá algo banal.
Numa ponderação adicional, devemos dizer a nós
mesmos que nosso julgamento, segundo o qual a ansiedade realística é racional e
vantajosa, requer uma revisão drástica. Isto porque o único comportamento
vantajoso, quando surge a ameaça de um perigo, seria uma fria avaliação da
força da própria pessoa em comparação com a magnitude da ameaça; e, com base
nisto, a decisão de fugir, ou de se defender, ou mesmo, possivelmente, de
passar ao ataque, oferecem a melhor perspectiva de uma saída bem sucedida.
Nessa situação, contudo, não há absolutamente lugar para a ansiedade; tudo o
que acontece seria conseguido tão bem e provavelmente melhor, se não tivesse
surgido a ansiedade. E os senhores podem verificar, realmente, que, se a
ansiedade for excessivamente grande, ela se revela inadequada no mais alto
grau; paralisa toda ação, inclusive, até mesmo, a fuga. Em geral, a reação ao
perigo consiste numa mistura de afeto de ansiedade e de ação defensiva. Um
animal aterrorizado sente medo e foge; mas a parte adequada desse processo é a
‘fuga’ e não o ‘estar com medo’.
Assim, é-se tentado a afirmar que a geração da
ansiedade nunca é uma coisa apropriada. Talvez nos possa ajudar a vermos mais
claramente essa questão, dissecar mais cuidadosamente a situação de ansiedade.
Nesta, a primeira coisa pertinente é o estudo de preparação para o
perigo, que se manifesta por meio de um aumento da atenção sensória e da tensão
motora. Esse estado de preparação expectante pode ser indubitavelmente
reconhecido como uma vantagem; na realidade, sua ausência pode ser
responsabilizada por graves conseqüências. Dele decorrem, então, por um lado, a
ação motora - fuga, num primeiro caso, e, em nível mais elevado, defesa ativa -
e, por outro lado, o que sentimos como um estado de ansiedade. Quanto mais a
geração de ansiedade limitar-se a um início meramente frustrado - a um sinal -,
tanto mais o estado de preparação para a ansiedade se transformará, sem
distúrbio, em ação, e mais adequada será a forma assumida pela totalidade da
sucessão dos fatos. Por conseguinte, o estado de preparação para a
ansiedade parece-me ser o elemento adequado daquilo que denominamos e a geração
de ansiedade, o elemento inadequado.Evitarei aprofundar-me na questão de saber
se nosso uso idiomático quer significar a mesma coisa, ou algo nitidamente
diferente, com a palavra ‘Angst [ansiedade]’, ‘Furcht [medo]’ e ‘Schreck
[susto]’. Apenas direi que julgo ‘Angst‘ referir-se ao estado e não
considera o objeto, ao passo que ‘Furcht‘ chama a atenção precisamente
para o objeto. Parece que ‘Schreck‘, por outro lado, tem sentido
especial; isto é, põe ênfase no efeito produzido por um perigo com o qual a
pessoa se defronta sem qualquer estado de preparação para a ansiedade.
Portanto, poderíamos dizer que uma pessoa se protege do medo por meio da
ansiedade.Não lhes terá passado despercebida alguma ambigüidade e imprecisão no
uso da palavra ‘Angst‘. Por ‘ansiedade’ geralmente entendemos o estado
subjetivo de que somos tomados ao perceber o ‘surgimento da ansiedade’, e a
isto chamamos afeto. E o que é um afeto, no sentido dinâmico? Em todo caso, é
algo muito complexo. Um afeto inclui, em primeiro lugar, determinadas
inervações ou descargas motoras e, em segundo lugar, certos sentimentos; estes
são de dois tipos: percepções das ações motoras que ocorreram e sensações
diretas de prazer e desprazer que, conforme dizemos, dão ao afeto seu traço
predominante. Não penso, todavia, que com essa enumeração tenhamos chegado à
essência de um afeto. Parecemos ver em maior profundidade no caso de alguns
afetos e reconhecer que o cerne que reúne a combinação que descrevemos é a
repetição de alguma experiência significativa determinada. Essa experiência só
poderia ser uma impressão recebida num período muito inicial, de natureza muito
genérica, situada na pré-história, não do indivíduo, mas da espécie. Para
fazer-me mais inteligível - um estado afetivo seria formado da mesma maneira
que um ataque histérico, e, como esse, seria o precipitado de uma
reminiscência. Um ataque histérico pode, assim, ser equiparado a um afeto
individual recentemente formado, e um afeto normal pode ser comparado à
expressão de uma histeria geral que se tornou herança.Não suponham que as
coisas que lhes disse aqui, a respeito de afetos, são propriedade reconhecida
da psicologia normal. Pelo contrário, são pontos de vista que cresceram em solo
psicanalítico e são originários apenas da psicanálise. Aquilo que, a partir da
psicologia, os senhores podem reunir acerca dos afetos - a teoria de
James-Lange, por exemplo - para nós, psicanalistas, está muito além do
entendimento ou do debate. Também não consideramos muito firmados nossos
conhecimentos a respeito dos afetos; esta é uma primeira tentativa de encontrar
nossa orientação nessa região obscura. Entretanto prosseguirei. Acreditamos
que, no caso do afeto da ansiedade, sabemos qual é a vivência original que ele
repete. Acreditamos ser no ato do nascimento que ocorre a combinação de
sensações desprazíveis, impulsos de descarga e sensações corporais, a qual se
tornou o protótipo dos efeitos de um perigo mortal, e que desde então tem sido
repetida por nós como rigor mortal, e que desde então tem sido repetida por nós
como o estado de ansiedade. O enorme aumento de estimulação devido à
interrupção da renovação do sangue (respiração interna) foi, na época, a causa
da experiência da ansiedade; a primeira ansiedade foi, assim, uma ansiedade
tóxica. O substantivo ‘Angst’ - ‘angustiae‘, ‘Enge‘, - acentua a
característica de limitação da respiração que então se achava presente em
conseqüência da situação real, e é, agora, quase invariavelmente recriada no
afeto. Do mesmo modo, reconhecemos como altamente significativo que esse
primeiro estado de ansiedade surgiu quando da separação da mãe. Naturalmente,
estamos convencidos de que a tendência a repetir o primeiro estado de ansiedade
foi tão firmemente incorporada no organismo, através de incontáveis séries de
gerações, que um único indivíduo não pode escapar do afeto de ansiedade, mesmo
que, como o legendário Macduff, ele ‘tenha sido expulso do útero materno fora
de tempo’ e, portanto, não tenha experimentado o ato do nascimento. Não sabemos
dizer o que é que se tornou o protótipo do estado de ansiedade no caso de
outros seres além dos mamíferos. E, do mesmo modo, não sabemos mesmo que
complexo de sensação constitui, nesses seres, o equivalente de nossa ansiedade.Talvez
lhes interesse saber como pôde alguém formar essa idéia de que o ato do
nascimento é a origem e o protótipo do afeto de ansiedade. Nisto a especulação
teve muito escassa participação; antes, o que fiz foi tomá-la emprestada da naïve
mente popular. Há muitos anos atrás, numa ocasião em que me encontrava em um
restaurante com diversos outros jovens médicos do hospital, para uma refeição
do meio-dia, um médico assistente do departamento de obstetrícia contou-nos um
episódio cômico, acontecido no último exame para parteiras. Perguntou-se a uma
candidata o que significava o aparecimento de mecônio (excrementos), no
nascimento, quando da expulsão das águas, e ela prontamente respondeu:
‘significa que a criança está com medo.’ Ela foi objeto de risos e foi reprovada
no exame. Porém, silenciosamente, tomei o partido dela e comecei a suspeitar de
que essa mulher simples, proveniente das classes mais humildes, tinha apontado
com precisão para uma correlação importante.
Se agora passarmos a considerar a ansiedade neurótica,
que novas formas e situações se manifestam na ansiedade dos neuróticos? Aqui,
há muita coisa a descrever. Em primeiro lugar, encontramos uma apreensão
generalizada, uma espécie de ansiedade livremente flutuante, que está pronta
para se ligar a alguma idéia que seja de algum modo apropriada a esse fim, que
influencia o julgamento, seleciona aquilo que é de se esperar, e está
aguardando qualquer oportunidade que lhe permita justificar-se. A esse estado
denominamos ‘ansiedade expectante’ ou ‘expectativa ansiosa’. As pessoas
atormentada por esse tipo de ansiedade sempre prevêem as mais terríveis de
todas as possibilidades, interpretam todos os eventos casuais como presságio do
mal e exploram todas as incertezas num mau sentido. Semelhante tendência a uma
expectativa do mal pode ser encontrada na forma de traço de caráter em muitas
pessoas de quem não se pode, de outro modo, dizer serem doentes; diz-se que são
superansiosas ou pessimistas. Uma desmesurada quantidade de ansiedade, porém,
compõe um aspecto constante de um distúrbio nervoso ao qual dei o nome de
‘neurose de angústia’ e que incluo entre as neuroses ‘atuais’.Uma segunda forma
de ansiedade, em oposição àquela que acabei de descrever, é psiquicamente
ligada e vinculada a determinados objetos e situações. Esta é a ansiedade das
‘fobias’, extremamente multiformes e freqüentemente muito estranhas. Stanley
Hall [1914], o respeitável psicólogo americano, recentemente deu-se ao trabalho
de nos apresentar uma série inteira dessas fobias em toda a magnificência dos
seus nomes gregos. Tal soa como uma lista da dez pragas do Egito, embora seu
número vá bem além de dez.3 Ouçam todas as coisas que se podem tornar objeto ou
conteúdo de uma fobia: escuridão, ar livre, espaços abertos, gatos, aranhas,
lagartas, cobras, ratos, trovoadas, pontas agudas, sangue, espaços fechados,
multidões, solidão, atravessar pontes, viagens marítimas, viagens de trem, etc.
etc. Uma primeira tentativa de orientação nessa balbúrdia sugere que se faça
uma divisão em três grupos. Alguns dos objetos de situações temidos têm em si
algo de perigoso para as pessoas normais também, alguma relação com perigo; e
tais fobias, portanto, não nos parecem ininteligíveis, embora sua intensidade
seja muito exagerada. Assim, a maioria dentre nós tem uma sensação de repulsa
ao encontrar uma cobra. A fobia às cobras, poderíamos dizer, é uma
característica humana generalizada; e Darwin [1889, 40] descreveu, de modo
muito impressionante, como não conseguiu evitar sentir medo de uma que o
atacou, embora soubesse que estava protegido dela por uma espessa lâmina de
vidro. Podemos situar em um segundo grupo os casos nos quais uma relação a uma
situação de perigo ainda existe, embora estejamos acostumados a minimizar o
perigo e a não prevê-lo. A maioria das fobias de situação pertence a esse
grupo. Sabemos que existe maior possibilidade de acidente quando estamos
viajando de trem, do que quando estamos em casa - a possibilidade de uma
colisão; também sabemos que um navio pode afundar, e, nesse caso, existe a probabilidade
de afogamento; mas não pensamos nesses perigos, e viajamos de trem e de navio
sem ansiedade. É indiscutível que cairíamos no rio, se a ponte ruísse no
momento em que a estivéssemos cruzando; isto, contudo, acontece tão raramente,
que não parece constituir um perigo. A solidão também tem seus perigos e, em
determinadas circunstâncias, evitamo-la; não se dá, porém, o caso de não sermos
capazes de suportá-la em quaisquer condições, nem que seja por um momento. A
mesma coisa procede com relação às multidões, aos espaços fechados, às
trovoadas, e assim por diante. Em geral, nessas fobias dos neuróticos, o que
nos parece estranho não é tanto o seu conteúdo, é mais a sua intensidade. A
ansiedade das fobias é efetivamente avassaladora. E às vezes temos a impressão
de que aquilo que os neuróticos temem não são absolutamente as mesmas coisas e
situações, que, em determinadas circunstâncias, podem causar ansiedade também a
nós, e que eles descrevem com as mesmas palavras.
Resta-nos um terceiro grupo de fobias, o qual
está além de nossa compreensão. Quando um homem adulto e forte é, por causa de
sua ansiedade, incapaz de caminhar por uma rua ou de atravessar uma praça de
sua conhecida cidade natal; quando uma mulher sadia, bem desenvolvida, é tomada
de irracional ansiedade porque um gato roçou na fímbria do seu vestido ou
porque um rato correu através do aposento - como poderemos correlacionar essa
coisas com o perigo que, evidentemente, constituem para a pessoa fóbica? No
caso dessas fobias a animais, não há dúvida de que se trata de um exagero de
aversões humanas universais, pois, como que para demonstrar o contrário, há
numerosas pessoas que não podem passar por um gato sem afagá-lo e acariciá-lo.
O rato, de que essas mulheres têm tanto medo, também é [em alemão] um dos
principais termos de afeição; uma jovem que se delicia quando o namorado a
chama de ratinho, muitas vezes haverá de gritar aterrorizada quando enxergar a
amável criatura que leva esse nome. No caso do homem com agorafobia, a única
explicação que podemos obter é ele comportar-se como uma criança pequena. Uma
criança realmente é ensinada, como parte de sua educação, a evitar essas
situações por serem perigosas; e nossa agorafóbico será, de fato, protegido de
sua ansiedade se o acompanharmos através da praça.
As duas formas de ansiedade que acabei de
descrever - a ansiedade expectante livremente flutuante e o tipo que se liga às
fobias - são independentes uma da outra. Uma não é, por assim dizer, um estádio
mais avançado da outra; e só aparecem simultaneamente em casos excepcionais e,
diríamos, de modo casual. O estado e apreensão geral mais intenso não necessita
ser expresso em fobia; pessoas cuja existência inteira é limitada por
agorafobia podem ser inteiramente livres de ansiedade expectante pessimista.
Algumas fobias - por exemplo, agorafobia e fobia a trens - conforme se pode
demonstrar, são adquiridas em idade bastante madura, ao passo que outras - tais
como medo de escuridão, de trovoadas e de animais - parecem ter estado
presentes desde o início. As do primeiro tipo têm a significação de doenças
graves; as últimas surgem mais como excentricidades ou esquisitices. Se uma
pessoa mostra possuir uma destas últimas, pode-se suspeitar, via de regra, que
terá outras parecidas. Devo acrescentar que classificamos todas essas fobias
como histeria de angústia; ou seja, considerando-as um distúrbio
estreitamente relacionado com a conhecida histeria de conversão [ver em [1]]. A
terceira forma de ansiedade neurótica apresenta-nos o fato enigmático de que,
aqui, a conexão entre a ansiedade e um perigo ameaçador foge completamente à
nossa percepção. Por exemplo, a ansiedade pode aparecer, na histeria, como
acompanhamento dos sintomas histéricos, ou em alguma situação fortuita de
excitação, na qual certamente esperaríamos alguma manifestação de afeto, mas
jamais de ansiedade; ou pode surgir separada de quaisquer fatores determinantes
e ser incompreensível tanto para nós como para o paciente, na forma de acesso
de ansiedade isolado. Aqui não há nenhum sinal de qualquer perigo ou de
qualquer causa que pudesse ser exagerada como perigo. E logo verificamos, a
partir desses ataques espontâneos, que o complexo que descrevemos como um
estado de ansiedade é passível de fracionamento. O ataque total pode ser
representado por um único sintoma, intensamente desenvolvido, por um tremor,
uma vertigem, por palpitação ou por dispnéia; e a sensação geral, pela qual
reconhecemos a ansiedade, pode estar ausente ou haver-se tornado indistinta.
Então, essas condições que descrevemos como ‘equivalentes da ansiedade’ devem
ser igualadas à ansiedade para todos os fins clínicos e etiológicos.Surgem,
agora, duas questões. Podemos correlacionar a ansiedade neurótica, na qual o
perigo desempenha um papel mínimo ou nulo, com a ansiedade realística que,
invariavelmente, é uma reação ao perigo? E como iremos compreender a ansiedade
neurótica? Certamente nos inclinaremos, no primeiro caso, a manter nossa
expectativa de que, onde existe ansiedade, deve haver algo que se teme.A
observação clínica nos proporciona certo número de indícios para a compreensão
da ansiedade neurótica, e lhes indicarei o teor dos mesmos:(a) Não é difícil
comprovar a fato de que a ansiedade expectante, ou o estado de apreensão geral,
depende estreitamente de determinados acontecimentos da vida sexual ou,
digamos, de certos empregos da libido. O caso mais simples e mais instrutivo
desse tipo ocorre em pessoas que se expõem àquilo que se conhece como excitação
não-consumada - isto é, pessoa nas quais violentas excitações sexuais não
encontram descarga suficiente, não conseguem chegar a um final satisfatório -;
homens, por exemplo, enquanto estão noivos, aguardando o casamento, e mulheres
, cujos maridos são insuficientemente potentes ou executam o ato sexual, por
precaução, de modo incompleto ou truncado. Em tais circunstâncias, a excitação
libidinal desaparece e a ansiedade aparece em seu lugar, seja na forma de
ansiedade expectante, seja em ataques e equivalentes da ansiedade. A
interrupção do ato sexual, como preocupação, se praticado como regime
sexual, é causa tão freqüente de neurose de ansiedade em homens, mas mais
especialmente em mulheres, que, na prática médica, é aconselhável, nesses
casos, começar por investigar essa etiologia. Então se verificará, em inúmeras
ocasiões, que a neurose de ansiedade desaparece quando a irregularidade sexual
se interrompe.O fato de haver uma inter-relação entre o refreamento sexual e os
estados de ansiedade, pelo que sei, já não é mais posto em dúvida, nem sequer
por médicos que não têm contato algum com a psicanálise. Bem posso acreditar,
contudo, que se faça uma tentativa de inverter a relação e de apresentar o
ponto de vista de que as pessoas em questão são de tal modo, que já têm a
tendência ao estado de apreensão, e, por esse motivo, praticam o refreamento
também nos assuntos sexuais. Isto, porém, é decisivamente contradito pela
conduta das mulheres, cuja atividade sexual é de natureza essencialmente
passiva - ou seja, é determinada pela maneira como são tratadas pelo homem.
Quanto mais apaixonada é uma mulher - quanto mais, portanto, tiver disposição
para a relação sexual e mais capaz de ser satisfeita -, tanto mais certamente
reagirá como manifestações de ansiedade à impotência do homem ou ao coito
interrompido, ao passo que, no caso de mulheres frígidas ou sem muita libido,
esse mau trato desempenha um papel muito menos importante.Naturalmente, a
abstinência sexual, atualmente recomendada com tanta ênfase pelos médicos,
apenas tem a mesma importância na geração dos estados de ansiedade quando a
libido, impedida de encontrar uma descarga satisfatória, é correspondentemente
forte e não foi utilizada, em sua maior parte, pela sublimação. Na verdade,
sempre depende de fatores quantitativos decidir se o resultado haverá de ser ou
não a doença. Mesmo nos casos em que a questão não é a doença, mas sim a forma
assumida pelo caráter da pessoa, é fácil reconhecer que a restrição sexual
caminha de mãos dadas com algum tipo de ansiosidade e indecisão, ao passo que a
intrepidez e a ousadia atrevida trazem consigo um livre satisfação das
necessidades sexuais. Por mais que essas correspondências sejam modificadas e
complicadas por numerosas influências culturais, não obstante, para a média dos
seres humanos, permanece a verdade de que a ansiedade tem estreita vinculação
com a limitação sexual.Estou longe de lhes haver transmitido todas as
observações que falam a favor da relação genética que afirmei existir entre a
libido e a ansiedade. Entre outras, por exemplo, está a influência, exercida
sobre distúrbios ansiosos, de determinadas fases da vida, às quais, como no
caso da puberdade e na epóca a menopausa, se pode atribuir considerável aumento
na produção da libido. Também em alguns estados de excitação é possível
observar diretamente uma mistura de libido e ansiedade e a substituição final
da libido pela ansiedade. A impressão que se tem de todos esses fatos é dupla:
primeiro, o que está em questão é um acúmulo de libido impedida de ser
normalmente utilizada, e, em segundo lugar, que, nesse ponto, nos situamos
inteiramente na esfera dos processos somáticos. Não é possível, a princípio,
discernir como a ansiedade surge da libido; apenas podemos reconhecer que a
libido está ausente e que a ansiedade está em seu lugar.(b) Um segundo ponto de
referência pode ser encontrado na análise das psiconeuroses, e especialmente da
histeria. Temos visto que, nessa doença, a ansiedade freqüentemente aparece
junto com os sintomas; que, porém, também surge ansiedade desvinculada,
manifestada em forma de ataque ou como uma condição crônica. Os pacientes não
sabem dizer de que é que têm medo, e, com auxílio de uma elaboração secundária
inconfundível [ver em [1]], vinculam-no às primeiras fobias que lhes vêm à
mente - tais como medo de morrer, de enlouquecer ou de ter um ataque. Se a
situação, a partir da qual a ansiedade (ou os sintomas acompanhados de
ansiedade) surgiu, é submetida à análise, podemos, quase sempre, descobrir que
o curso normal dos eventos psíquicos deixou de ocorrer e foi substituído por
fenômenos de ansiedade. Podemos expressar isto de outro modo: construímos o
processo inconsciente, como ele teria sido se não houvesse experimentado
repressão alguma e tivesse prosseguido, sem ser tolhido, rumo à consciência.
[ver em [1]]. Esse processo ter-se-ia acompanhado de um afeto específico e
agora constatamos, para nossa surpresa, que esse afeto que acompanha o curso
normal dos acontecimentos, seja qual for sua qualidade própria, invariavelmente
é substituído por ansiedade, após a incidência da repressão. Assim, quando temos
diante de nós um estado de ansiedade histérico, seu correspondente inconsciente
pode ser um impulso de características semelhantes - ansiedade, vergonha,
embaraço - ou, com a mesma facilidade, uma definida excitação libidinal ou
agressiva, hostil, como raiva ou irritação. Portanto, a ansiedade constitui
moeda corrente universal pela qual é ou pode ser trocado qualquer impulso, se o
conteúdo ideativo vinculado a ele estiver sujeito a repressão.(c) Fazemos uma
terceira descoberta quando examinamos pacientes que sofrem de atos obsessivos e
que parecem notavelmente isentos de ansiedade. Se tentarmos impedir-lhes a
execução de seu ato obsessivo - o ato de lavar-se ou o ritual -, ou se eles
próprios arriscam-se a uma tentativa de abandonar uma de sua compulsões,
vêem-se compelidos pela mais terrível ansiedade a submeter-se à compulsão.
Podemos ver que a ansiedade estava encoberta pelo ato obsessivo e que este só
foi executado com o fito de evitar a ansiedade. Numa neurose obsessiva,
portanto, a ansiedade, que de outra forma se instalaria inevitavelmente, é
substituída pela formação de um sintoma; e, se voltarmos à histeria,
encontraremos uma relação semelhante: o resultado do processo de repressão é ou
a geração da ansiedade pura e simples; ou a ansiedade acompanhada pela formação
de um sintoma, ou a formação mais completa de um sintoma sem ansiedade. Assim,
pareceria não ser errado, em sentido abstrato, afirmar que em geral os sintomas
são formados para fugir a uma geração de ansiedade, de outro modo inevitável. Se
adotarmos esse ponto de vista, a ansiedade se coloca, por assim dizer, no
próprio centro de nosso interesse pelos problemas da neurose.Nossas observações
a respeito da neurose de angústia levaram-nos a concluir que a deflexão da
libido de seu emprego normal, que causa o desenvolvimento da ansiedade, se
passa na região dos processo somáticos [ver em [1]] e de histeria e de neurose obsessiva
apresentaram a conclusão adicional de que uma reflexão semelhante, com o mesmo
efeito, também pode ser o resultado de uma rejeição por parte das instâncias psíquicas.
Portanto, isto é tudo o que sabemos acerca da origem da ansiedade neurótica.
Parece ainda muito indefinido tudo isso, mas, por agora, não vejo onde
prosseguir. O segundo problema que nos colocamos - o de estabelecer uma conexão
entre a ansiedade realística, que corresponde a uma reação ao perigo - parece
ainda mais difícil de solucionar. Poder-se-ia supor que essas coisas fossem
muito dessemelhantes; e sequer temos meios de distinguir, em nossos sentimentos,
entre ansiedade realística e ansiedade neurótica.Finalmente chegamos à conexão
que estamos procurando se tomamos como nosso ponto de partida a oposição, que
tantas vezes afirmamos existir, entre o ego e a libido. Conforme sabemos, a
geração de ansiedade é a reação do ego ao perigo e o sinal para empreender a
fuga. [ver em [1].] Assim sendo, parece plausível supor que, na ansiedade
neurótica, o ego faz uma tentativa semelhante de fuga da exigência feita por
sua libido, que o ego trata este perigo interno como se fora um perigo externo.
Portanto, isto corresponderia à nossa expectativa [ver em [1] e [2]] de que,
onde se manifesta ansiedade, aí existe algo que se teme. Ma a analogia poderia
ser ampliada ainda mais. Assim como a tentativa de fuga de um perigo externo é
substituída pela adoção de uma atitude firme e de medidas apropriadas de
defesa, também a geração de ansiedade neurótica dá lugar à formação de
sintomas, e isto resulta em que a ansiedade seja vinculada.
A dificuldade de entender situa-se, agora, em
outra parte. A ansiedade, que significa uma fuga do ego para longe de sua
libido, segundo se supõe, deriva-se, em última análise, dessa mesma libido.
Isto é obscuro e sugere-nos não esquecermos que, afinal de contas, a libido de
uma pessoa é fundamentalmente algo seu e não pode ser posta em contraste com a
mesma pessoa, como se fosse algo externo. É a dinâmica topográfica da geração
da ansiedade que ainda é obscura para nós - a questão é saber que energias mentais
são produzidas nesse processo, e de que sistemas mentais elas derivam. Esta,
mais uma vez, é uma questão que não posso prometer responder: há, contudo duas
outras pistas que não devemos deixar de seguir, e, assim procedendo, mais uma
vez estaremos fazendo uso da observação direta e da investigação analítica para
auxiliar nossas indagações. Voltaremos à gênese da ansiedade em crianças e à
origem da ansiedade neurótica que se vincula às fobias.
O estado de apreensão em crianças constitui-se
em algo muito freqüente, e parece muito difícil distinguir se se trata de
ansiedade neurótica ou realística. Na verdade, o valor de tal distinção é posto
em dúvida pela conduta das crianças. Pois, de um lado, não nos surpreendemos se
uma criança se assusta com todos os estranhos ou com situações e coisas novas;
e muito facilmente justificamos essa reação como sendo devido à sua fragilidade
e ignorância. Assim, atribuímos às crianças uma forte tendência à ansiedade
realística e deveríamos considerá-la um dispositivo muito adequado se esse
estado de apreensão fosse, nelas, uma herança inata. As crianças, com isso,
estariam simplesmente repetindo o comportamento do homem pré-histórico e dos
povos primitivos atuais que, em conseqüência de sua ignorância e debilidade,
receiam todas as coisas novas e muitas coisas conhecidas que a nós não nos
causam mais ansiedade, atualmente. E isto se ajustaria perfeitamente à nossa
expectativa, se as fobias de crianças, pelo menos em parte, fossem as mesmas
que aquelas que podemos atribuir aos períodos primitivos do desenvolvimento
humano.
Por outro lado, não podemos menosprezar o fato
de que nem todas a crianças são ansiosas em igual intensidade, e de que é
precisamente as crianças que mostram especial pusilanimidade para com objetos e
em situações de toda espécie, que posteriormente vêm a se tornar neuróticas.
Assim, a tendência neurótica revela-se também por uma pronunciada tendência à
ansiedade realística; o estado de apreensão parece ser a coisa primária, e
chegamos à conclusão de que a razão por que as crianças e, depois, os
adolescentes e as adolescentes em crescimento, temem a magnitude de sua libido
reside em que, de fato, eles temem tudo. Dessa forma, seria desmentida a origem
da ansiedade na libido; e, se fossem examinadas as causas determinantes da
ansiedade realística, a coerência com os fatos conduziria ao ponto de vista
segundo o qual a consciência da própria fraqueza e desvalia - inferioridade,
segundo a terminologia de Adler -, quando se prolonga da infância à idade
adulta, é a base final das neuroses.Isto soa tão simples e sedutor, que até
exige nossa atenção. É verdade que implicaria um deslocamento do enigma do
estado neurótico. A existência continuada do sentimento de inferioridade - e,
portanto, daquilo que causa a ansiedade e a formação dos sintomas - parece tão
bem assegurada, que os itens que exigem uma explicação consistem, com efeito,
em saber o modo como, por exceção, pode advir aquilo que conhecemos como saúde.
No entanto, que coisa se revela a um exame cuidadoso do estado de apreensão das
crianças? Bem no início, o que as crianças temem são as pessoas
estranhas; as situações só se tornam importantes porque nelas se incluem
pessoas, e coisas impessoais não entram em conta, em absoluto, a não ser
posteriormente. Uma criança, contudo, não teme esses estranhos porque lhes
atribua más intenções e compare a sua fraqueza com a força deles, e, por
conseguinte, os considere um perigo para sua existência, sua segurança e sua
isenção de sofrimento. Uma criança assim desconfiada e amedrontada com o
instinto agressivo que domina o mundo constitui uma formulação teórica muito
mal fundada. Uma criança tem medo de um rosto estranho porque está habituada à
vista de uma figura familiar e amada - basicamente sua mãe. É seu
desapontamento e seu anelo pela mãe que se transformam em ansiedade - sua
libido, de fato, que se tornou inaplicável, não podendo, assim, ser mantida em
estado de suspensão, sendo descarregada sob forma de ansiedade. E dificilmente
pode tratar-se de uma casualidade o fato de, nessa situação que constitui o
protótipo da ansiedade de crianças, ocorrer uma repetição do fator determinante
do primeiro estado de ansiedade, durante o ato do nascimento - quer dizer, a
separação da mãe.
Em crianças, as primeiras fobias relativas a situações
são aquelas provocadas pela escuridão e pela solidão. A primeira destas
freqüentemente persiste por toda a vida; ambas estão envolvidas quando a
criança sente a ausência de alguma pessoa amada, que cuida dela - ou seja, sua
mãe. Enquanto encontrava-me no aposento ao lado, ouvi uma criança, com medo do
escuro, dizer em voz alta: ‘Mas fala comigo, titia. Estou com medo!’ ‘Por que?
De que adianta isso? Tu nem estás me vendo.’ A isto a criança respondeu: ‘Se
alguém fala, fica mais claro.’ Assim, um anelo sentido no escuro se
transforma em medo do escuro. Longe de tratar-se do caso de a ansiedade
neurótica ser apenas secundária e ser um caso especial de ansiedade realística,
vemos, pelo contrário, que, numa criancinha, algo que se comporta como
ansiedade realística compartilha seu aspecto essencial - a origem a partir da
libido não empregada - com a ansiedade neurótica. Parece que as crianças têm
pouca ansiedade realística verdadeira inata. Em todas as situações que,
posteriormente, podem tornar-se fatores determinantes de fobias (alturas,
pontes estreitas sobre a água, viagens de trem, navios), as crianças não
demonstram ansiedade; e, para dizer a verdade, quanto maior sua ignorância,
menos sua ansiedade. Teria sido muito bom se tivessem herdado mais desses
instintos de preservação da vida, porque tal circunstância teria facilitado em
muito a tarefa de se cuidar delas, de evitar que corram um perigo após outro. O
fato consiste em que as crianças inicialmente superestimam suas forças e se
comportam sem medo, por ignorarem os perigos. Correm à beira da água, sobem ao
peitoril da janela, brincam com objetos cortantes e com fogo - em suma, fazem
tudo o que é capaz de feri-las e de preocupar a quem delas está cuidando.
Quando, por fim, nelas desperta a ansiedade realística, tal resulta
inteiramente da educação; isso porque não se pode permitir-lhes que elas
próprias realizem as experiências de instrução.Portanto, haver crianças que
demoram um pouco para encontrar essa educação para a ansiedade, e que continuam
a ir ao encontro de perigos para os quais não haviam sido alertados, são
aspectos que se explicam suficientemente pelo fato de possuírem elas uma
quantidade maior de exigências libidinais inatas em sua constituição, ou de
terem sido prematuramente mimadas em excesso pela satisfação libidinal. Não é
de admirar se tais crianças vierem a contar-se, também, entre os futuros
neuróticos: conforme sabemos, o que mais facilita o desenvolvimento de uma
neurose é uma incapacidade de tolerar um considerável represamento da libido,
por um período maior de tempo. Os senhores observarão que, aqui, mais uma vez,
o fator constitucional mostra toda a sua influência - e esta, realmente, jamais
pensamos pôr em dúvida. Apenas ficamos de sobreaviso contra aqueles que, a
favor do fator constitucional, desprezam todos os demais requisitos, e
introduzem o fator constitucional em pontos onde os resultados combinados da
observação e da análise mostram que ele não cabe, ou deve situar-se em último
lugar.
Permitam-me sumarizar o que nossas observações
relativas ao estado de apreensão das crianças nos têm ensinado. A ansiedade
infantil tem escassa relação com a ansiedade realística, mas, por outro lado,
relaciona-se estreitamente com a ansiedade neurótica dos adultos. Assim como
esta, deriva-se da libido não-utilizada e substitui o objeto de amor ausente
por um objeto externo, ou por uma situação.
Os senhores ficarão satisfeitos ao ouvir que a
análise de fobias não apresenta muitas novidades mais, para ensinar-nos. Assim,
com elas acontece a mesma coisa que com a ansiedade de crianças; a libido não
utilizável é constantemente transformada em uma ansiedade aparentemente
realística; assim, um perigo externo insignificante é introduzido para
representar as exigências da libido. Não há nenhum motivo para admiração nessa
concordância [entre as fobias e a ansiedade de crianças], pois as fobias
infantis não são apenas o protótipo de fobias ulteriores, que classificamos
como ‘histeria de angústia’, mas, na realidade, são a sua precondição e seu
prelúdio. Toda fobia histérica remonta a uma ansiedade infantil e é continuação
da mesma, ainda que tenha um conteúdo diferente e deva, pois, receber nome
diverso. A diferença entre os dois distúrbios reside em seu mecanismo. A fim de
que a libido se transforme em ansiedade, já não basta, no caso de adultos, que
a libido se tenha tornado momentaneamente não-utilizável na forma de um anelo.
Os adultos há muito aprenderam a manter em suspenso essa libido ou a empregá-la
de algum outro modo. Se, entretanto, a libido pertence a um impulso psíquico
que esteve sujeito a repressão, então se restabelecem condições semelhantes às
que se observam numa criança em quem ainda não existe distinção entre
consciente e inconsciente; e, por meio da regressão à fobia infantil, abre-se
uma passagem, por assim dizer, através da qual pode realizar-se comodamente a
transformação da libido em ansiedade.
Conforme os senhores se recordarão, lidamos
extensamente com a regressão, mas, ao fazê-lo, sempre seguimos apenas as
vicissitudes da idéia a ser reprimida - de vez que isto, naturalmente, era mais
fácil de reconhecer e descrever. Sempre deixamos de lado a questão referente
àquilo que acontece ao afeto que estava vinculado à idéia reprimida; e apenas
agora verificamos [ver em [1]] que a vicissitude imediata desse afeto é ser ele
transformado em ansiedade, qualquer que seja a qualidade que, fora disso, ele
exibia no curso normal dos acontecimentos. Essa transformação do afeto é,
todavia, em grande escala a parte mais importante do processo de repressão. Não
é tão fácil falar a seu respeito, visto não poderemos afirmar a existência de
afetos inconscientes no mesmo sentido em que afirmamos a existência de idéias
inconscientes. Uma idéia permanece a mesma, exceto quanto a uma diferença, não
importa que seja idéia consciente ou inconsciente; podemos ajuizar que coisa
corresponde a uma idéia inconsciente. Um afeto é, contudo, um processo de
descarga e deve ser julgado muito diferentemente de uma idéia; o que
corresponde a ele, no inconsciente, não pode ser dito sem uma reflexão mais
profunda e sem esclarecimento de nossas hipóteses referentes aos processos
psíquicos. E isto não podemos empreender aqui. Entretanto, enfatizaremos a
impressão, que agora obtivemos, de que a geração da ansiedade está intimamente
vinculada ao sistema do inconsciente.Tenho afirmado que a transformação em
ansiedade - seria melhor dizer, descarga sob a forma de ansiedade - é o destino
imediato da libido quando sujeita à repressão. Devo acrescentar que esse
destino não é o único nem o definitivo. Nas neuroses, estão em ação processos
que se esforçam por vincular essa geração de ansiedade, e até mesmo conseguem
fazê-lo de diversas maneiras. Nas fobias, por exemplo, podem ser distinguidas
nitidamente duas fases do processo neurótico. A primeira diz respeito à
repressão e à modificação da libido em ansiedade, que então é vinculada a um
perigo externo. A segunda consiste em tomar todas as precauções e garantias,
mediante as quais se possa evitar todo contato com esse perigo, que é tratado
como a coisa externa que é. A repressão corresponde a uma tentativa, feita pelo
ego, de fugir da libido sentida como um perigo. Uma fobia pode ser comparada a
um entrincheiramento contra um perigo externo que agora representa a libido
temida. A fragilidade do sistema defensivo nas fobias reside, naturalmente, no
fato de a fortaleza, que foi tão fortificada em relação ao exterior, permanecer
tão vulnerável a um ataque vindo de dentro. Uma projeção do perigo da libido,
para fora, jamais consegue realizar-se com segurança. Por essa razão, em outras
neuroses outros sistemas de defesa são usados contra a possível geração de
ansiedade. Esta é uma parte muito interessante da psicologia das neuroses; mas,
infelizmente, levar-nos-ia muito longe e pressupõe um conhecimento
especialmente mais profundo. Acrescentei apenas mais uma coisa. Já lhes falei
[ver em [1] e [2]] a respeito da anticatexia utilizada pelo ego no processo de
repressão, e que deve ser permanentemente mantida, a fim de que a repressão
possa ter estabilidade. Essa anticatexia tem a função de completar as diversas
formas de defesa contra a geração de ansiedade, após a repressão.Retornemos às
fobias. Seguramente posso dizer que agora os senhores vêem como é inadequado
buscar simplesmente explicar seu conteúdo, não interessar-se em outra coisa
senão no modo como sucede esse ou aquele objeto, essa determinada situação ou
aquela outra, haver-se tornado o objeto da fobia. O conteúdo de uma fobia tem
mais ou menos tanta importância em relação à mesma, quanto a fisionomia
manifesta de um sonho tem em relação ao sonho. Deve-se admitir, com as
necessárias restrições, que, entre os conteúdos das fobias, há alguns que,
conforme insiste Stanley Hall [1914, ver pág. 399], são destinados a servir
como objetos de ansiedade devido à herança filogenética. Condiz com isto o fato
de que, realmente, muitos desses objetos de ansiedade só podem estabelecer sua
conexão com o perigo por meio de uma ligação simbólica.Assim, achamo-nos
convencidos de que o problema da ansiedade ocupa, na questão da psicologia das
neuroses, um lugar que pode justificadamente ser classificado como central.
Impressionou-nos intensamente a forma como a geração de ansiedade se vincula às
vicissitudes da libido e ao sistema do inconsciente. Existe apenas um ponto que
julgamos desconexo - uma lacuna em nossos pontos de vista: o fato único,
praticamente inegável, de que a ansiedade realística deve ser considerada
manifestação dos instintos de autopreservação do ego.
CONFERÊNCIA XXVI
A TEORIA DA LIBIDO E O NARCISISMO
SENHORAS E SENHORES:
Repetidas vezes (e, bem recentemente, mais uma
vez [ver em [1] e [2]]), tivemos de tratar da diferença entre os instintos do
ego e os instintos sexuais. Em primeiro lugar, a repressão nos mostrou que
esses dois instintos podem opor-se um ao outro, que os instintos sexuais são
ostensivamente reprimidos e são obrigados a encontrar satisfação por si mesmos,
por vias regressivas e indiretas, e que, com isso, eles são capazes de
encontrar compensação por haverem sido frustrados em sua inflexibilidade. A
seguir, verificamos que os dois tipos de instintos, desde o início,
relacionam-se diversamente com a Necessidade, a educadora [ver em [1]], de modo
que a sua trajetória evolutiva não é a mesma, e que não estabelecem a mesma relação
com o princípio de realidade. Por fim, pensamos haver reconhecido que os
instintos sexuais, mais do que os instintos do ego, têm estreitos laços a
vinculá-los ao estado afetivo de ansiedade - e essa conclusão parece incompleta
em apenas um importante aspecto. A fim de estabelecê-la com mais firmeza,
portanto, aduzo o fato ainda mais significativo de que, se a fome e a sede (os
dois instintos de autopreservação mais elementares) estão insatisfeitas, o
resultado nunca é a sua transformação em ansiedade, ao passo que a modificação
da libido insatisfeita em ansiedade é, conforme vimos, um dos fenômenos mais
bem conhecidos e mais freqüentemente observados.
Nosso direito de separar os instintos do ego
dos instintos sexuais não pode, sem dúvida, ser abalado: está implícito na
existência da vida sexual como atividade distinta do indivíduo. A única questão
é saber qual a importância que atribuiremos a essa separação, e quão
detalhadamente desejamos considerar a seu respeito. A resposta a essa questão,
todavia, se orientará pela medida em que podemos estabelecer o grau em que os
instintos sexuais se comportam, relativamente a suas manifestações somáticas e
mentais, de modo diferente dos outros instintos com os quais estamos
comparando-os; e pela importância de que se revestem as conseqüências
decorrentes dessas diferenças. Ademais, naturalmente, não temos motivo algum
para afirmar que existe entre os dois grupos de instintos uma diferença
essencial que não seja plenamente perceptível. Ambos se nos apresentam simplesmente
como designações de fontes de energia operante no indivíduo; e as discussões
referentes a saber se são fundamentalmente um só, ou essencialmente diferentes,
e saber quando, no caso de serem um só, vieram a separar-se um do outro, não
podem ser conduzidas com base na conotação dos termos, devendo-se, porém,
ater-se aos fatos biológicos subjacentes aos instintos. No momento atual,
sabemos muito pouco a respeito deles, e, ainda que soubéssemos mais, isto teria
pouca importância para nosso trabalho analítico. É, também, óbvio que obteremos
muito pouco proveito se, seguindo o exemplo de Jung, insistirmos na unidade
original de todos os instintos e dermos o nome de ‘libido’ à energia que se
manifesta em todos eles. De vez que artifício algum será capaz de eliminar da
vida mental a função sexual, ver-nos-emos obrigados, nesse caso, a falar em
libido sexual e assexual. O nome libido é, contudo, especialmente reservado
para designar as forças instintuais da vida sexual, conforme até aqui tem sido
nosso costume. (Cf. Jung. [1911-12].)Em minha opinião não é, por conseguinte,
de muita importância para a psicanálise saber até onde levamos a diferença,
indubitavelmente acertada, entre os instintos sexuais e os de autopreservação.
E não é a psicanálise que tem competência para responder à questão. A biologia,
no entanto, oferece diversas possibilidades sugestivas que falam em favor de
alguma importância em se fazer a distinção. Na verdade, a sexualidade é a única
função do organismo vivo que se estende além do indivíduo e se refere à relação
deste com sua espécie. É fato inequívoco que ela nem sempre, como as demais
funções do organismo individualizado, lhe traz vantagens, mas, em compensação
por um grau extraordinariamente elevado de prazer, ocasiona perigos que ameaçam
a vida do indivíduo e, amiúde, a destroem. Também é provável que sejam
necessários processos metabólicos muito especiais, diferentes de todos os
outros, a fim de se manter uma parte da vida individual à disposição de seus
descendentes. E, finalmente, o organismo individualizado, que propriamente se
considera como a coisa principal, e sua sexualidade como um meio, igual a outro
qualquer, de obter sua própria satisfação, é, do ponto de vista da biologia,
apenas um episódio numa sucessão de gerações, um fugaz acréscimo a um plasma
germinativo dotado de virtual imortalidade - como detentor temporário de um
legado que lhe sobreviverá.A explicação psicanalítica das neuroses, todavia,
não requer essas considerações de tão grande alcance. O rastreamento em separado
dos instintos sexuais e dos instintos do ego auxiliou-nos a encontrar a chave
para a compreensão do grupo das neuroses de transferências. Temos conseguido
remetê-los à situação básica na qual os instintos entraram em litígio com os
instintos de autopreservação ou, para expressá-lo em termos biológicos
(conquanto menos precisos), a uma situação em que um aspecto do ego, como um
organismo individualizado independente, entre em conflito com seu outro
aspecto, como um membro de um sucessão de gerações, Uma dissensão desse tipo
talvez possa ocorrer apenas em seres humanos, e, por esse motivo, falando
genericamente, a neurose pode constituir sua prerrogativa sobre os animais. O
excessivo desenvolvimento da libido dos seres humanos e - o que, talvez, se
torna possível precisamente em virtude disso - seu desenvolvimento de uma vida
mental ricamente complexa parecem haver criado os fatores determinados do
surgimento de um tal conflito. Torna-se logo evidente que estes são também os
fatores determinantes dos grandes progressos que os seres humanos fizeram para
além daquilo que têm em comum com os animais; de modo que sua susceptibilidade
à neurose seria somente o reverso de suas outras dotações. Estas são, contudo,
também apenas especulações que nos estão afastando de nossa tarefa imediata.Até
aqui tem-se constituído em premissa de nosso trabalho podermos distinguir os
instintos do ego dos instintos sexuais, por suas manifestações. Quanto às
neuroses de transferência, isso poder-se-ia efetuar sem dificuldade. As catexias
de energia que o ego dirige aos objetos de seus desejos sexuais, nós as
denominamos ‘libido’; todas as outras catexias, emanadas dos instintos de
autopreservação, denominamos ‘interesse’. Traçando a trajetória das catexias
libidinais, com suas taransformações e vicissitudes finais, podemos obter uma
primeira compreensão interna (insight) dos mecanismos das forças
mentais. Para esse propósito, as neuroses de transferência nos ofereceram o
material mais adequado. O ego, sua composição originária de diferentes
organizações e a formação e modo de funcionamento destas permaneceram, contudo,
ocultas para nós; e fomos levados a supor que só a análise de outros distúrbios
neuróticos seria capaz de nos proporcionar a necessária compreensão interna (insight).Em
épocas iniciais de nosso trabalho começamos a estender as observações
psicanalíticas a essas outras doenças. Já em 1908, Karl Abraham, após um
intercâmbio de idéias comigo, declarou que a principal característica da
demência precoce (que se contava entre as psicoses) era que nela a catexia
libidinal de objetos estava ausente. No entanto, aí surgiu a questão que
consistia em saber o que acontecia à libido nos pacientes com demência precoce,
retirada dos objetos. Abraham não hesitou em dar a resposta: ela se volta
novamente para o ego e esse retorno reflexivo é a fonte da megalomania
na demência precoce. A megalomania é, em todos os aspectos, comparável à
conhecida supervalorização sexual do objeto na vida erótica [normal]. Desse
modo, pela primeira vez chegamos a compreender um traço de uma doença psicótica
relacionando-o com a vida erótica normal.Posso dizer-lhes, de imediato, que
essas primeiras explicações de Abraham têm sido aceitas na psicanálise e se
tornaram a base de nossa atitude relativa às psicoses. Assim, aos poucos nos
familiarizamos com a noção de que a libido, que encontramos ligada aos objetos
e que é expressão de um esforço para obter satisfação em conexão com esses
objetos, também pode deixar os objetos e colocar o próprio ego da pessoa em
lugar deles: a essa noção foi-se firmando gradualmente, sempre com maior
coerência. O nome para essa forma de distribuir a libido - narcisismo -, nós o
tomamos de empréstimo de uma perversão descrita por Paul Näcke [1899], na qual
um adulto trata seu corpo com todos os mimos que usualmente são dedicados a um
objeto sexual externo.
A reflexão logo sugere que, se ocorre uma
fixação da libido ao próprio corpo e à personalidade da pessoa, em vez de se
fazer a um objeto, ela não pode constituir um evento excepcional ou trivial.
Pelo contrário, é provável que esse narcisismo constitui a situação universal e
original a partir da qual o amor objetal só se desenvolve posteriormente, sem
que, necessariamente, por esse motivo o narcisismo desapareça. Com efeito,
tivemos de recordar, a partir da história da evolução da libido objetal, que
muitos instintos sexuais começam encontrando satisfação no próprio corpo da
pessoa auto-eroticamente, conforme dizemos [ver em [1]] - e que essa
capacidade para o auto-erotismo é a base do atraso da sexualidade no processo
de educação no princípio de realidade [ver em [1]]. O auto-erotismo seria,
pois, a atividade sexual do estádio narcísico da distribuição da libido.
Para resumir o assunto, configuramos a relação
entre a libido do ego e a libido objetal numa forma tal que me possibilita
fazê-la compreensível para os senhores, usando de uma analogia extraída da
zoologia. Pensem nesses simplicíssimos organismos vivos [as amebas] que
consistem em um glóbulo, muito pouco diferenciado, de substância protoplásmica.
Eles emitem protrusões, conhecidas como pseudópodos, para dentro dos quais eles
fazem fluir a substância de seu corpo. São capazes, no entanto, de retrair
essas protrusões, novamente, e de se transformar de novo em um glóbulo.
Comparamos a emissão dessas protrusões, portanto, à emissão de libido em
direção aos objetos enquanto a massa principal de libido pode permanecer no
ego; e supomos que, em circunstâncias normais, a libido do ego pode ser
transformada, sem impedimento, em libido objetal, e que esta pode novamente ser
devolvida ao ego.Com o auxílio dessas idéias, agora podemos explicar numerosos
estados mentais, ou, para expressá-lo de modo mais modesto, descrevê-los em
termos da teoria da libido - estados que devemos considerar como pertencentes à
vida normal, tal como o comportamento psicológico de uma pessoa que está
apaixonada, ou de outra pessoa que passa por uma doença orgânica, ou, ainda, o
de outra em estado de sono. No que concerne ao estado de sono, supusemos que
ele se baseava em um retrair-se do mundo externo e no aceder ao desejo de
dormir [ver em [1]]. A atividade mental durante a noite, que se manifesta em
sonhos, realiza-se, conforme verificamos, em obediência a um desejo de dormir e
é, sobretudo, regida por motivos puramente egoístas [ver em [1]]. Podemos
acrescentar, agora na linha da teoria da libido, que o sono é um estado no qual
todas as catexias de objeto, tanto as libidinais como as egoísticas, são
abandonadas e retiradas para dentro do ego. Será que isto não lança uma nova
luz sobre o efeito restaurador do sono e sobre a natureza da fadiga em geral? O
quadro do isolamento bem-aventurado da vida intra-uterina que, no sono, toda
pessoa mais uma vez evoca diante de nós, a cada noite, completa-se, assim,
também em seu lado psíquico. Em uma pessoa que dorme, reconstitui-se o
primitivo estado de distribuição da libido - narcisismo total, no qual a libido
e o interesse do ego, ainda unidos e indiferenciáveis, habitam o ego
autosuficiente.Cabem, aqui, dois comentários. Primeiro, como distinguirmos os
conceitos de narcisismo e de egoísmo? Bem, o narcisismo, segundo penso, é o
complemento libidinal do egoísmo. Quando falamos em egoísmo, temos em vista
apenas a vantagem do indivíduo; quando falamos em narcisismo, também
estamos levando em consideração sua satisfação libidinal. Enquando motivos
práticos, ambos podem ser mantidos separados por uma distância considerável. É
possível ser absolutamente egoísta e, mesmo assim, manter poderosas catexias de
objeto, na medida em que a satisfação libidinal em relação ao objeto faz parte
das necessidades do ego. Nesse caso, o egoísmo procurará fazer com que o
esforço por obter um objeto não envolva prejuízo para o ego. É possível ser
egoísta e, ao mesmo tempo, ser desmesuradamente narcisista - isto é, ter muito
pouca necessidade de um objeto, seja para o propósito de satisfação sexual
direta, seja com relação a aspirações mais elevadas, derivadas da necessidade
sexual, que, às vezes, costumamos, sob o nome de ‘amor’, fazer contrastar com
‘sensualidade’. Em todas essas correlações, o egoísmo é aquilo que é evidente
por si mesmo e constante, ao passos que o narcisismo é o elemento variável. O
contrário do egoísmo, altruísmo, não coincide, enquanto conceito, com
catexia objetal libidinal, mas se distingue desta pela ausência de desejos de
satisfação sexual. Quando alguém está totalmente apaixonado, entretanto, o
altruísmo se superpõe à catexia objetal libidinal. Via de regra, o objeto
sexual atrai para si uma parte do narcisismo do ego, e isto se torna visível
naquilo que se conhece por ‘supervalorização sexual’ do objeto. [Ver acima, em
[1].] Se, ademais disso, existe uma transposição altruísta do egoísmo para o
objeto sexual, o objeto se torna extremamente poderoso; é como se ele tivesse
absorvido o ego.
Os senhores acharão reconfortante, segundo
penso, se, depois daquilo que constitui imagem seca da ciência, eu
apresentar-lhes uma representação poética do contraste econômico entre o
narcisismo e o estar apaixonado. Eis uma citação do West-östliche Diwan,
de Goethe:ZULEIKAO servo e o senhor vitorioso,Como o povo, confessam, se
indagados:Sorte suprema dos filhos da Terra,Só pode ser a personalidade.
A vida é p’ra viver, não se a recusa,Se em nós
mesmos equívocos não há;Ninguém pode escapar de algo à perda,Se seu ser se
mantém sem mutação.HATEM
É um fato, pode ser; assim o dizem;Mas noutra
senda, hoje, estão meus passos:A síntese da sorte e plenitudeSó em Zuleika
encontro, tão-somente.
De seu ser, em mim, o investimentoTorna meu eu
crescido e valioso;Se a mim, então, sua face recusasse,Num instante eu estarei
perdido.
Hatem, assim, seu fim encontraria;Eu, no
entanto, minha condição mudava;Me incorporava, veloz, àquele amanteQue ela,
desde agora, obsequiasse.
Meu segundo comentário é um suplemento à teoria
dos sonhos. Não podemos explicar a origem dos sonhos, a menos que adotemos a
hipótese de que o inconsciente reprimido alcançou determinadno grau de
independência do ego, de modo que ele não concorda com o desejo de dormir e
conserva suas catexias, mesmo quando todas as catexias objetais dependentes do
ego foram retiradas, a fim de facilitar o sono. Apenas assim conseguiremos
compreender como o inconsciente pode fazer uso da abolição ou da redução da
censura, que ocorre à noite, e consegue obter controle sobre os resíduos
diurnos, de forma a expressar um desejo onírico proibido a partir do material
desses resíduos diurnos. Por outro lado, pode ser que esses resíduos diurnos
tenham de agradecer a uma já existente conexão com o inconsciente reprimido,
por alguma resistência dos mesmos à retirada da libido determinada pelo desejo
de dormir. Portanto, a modo de suplemento, acrescentaremos esse aspecto,
dinamicamente importante, à nossa visão da formação dos sonhos.A doença
orgânica, a estimulação dolorosa ou a inflamação de um órgão criam a condição
que resulta nitidamente em um desligamento da libido, de seus objetos. A libido
que é retirada, é encontrada novamente no ego, como catexia aumentada da parte
doente do corpo. Na realidade, é possível arriscar a assertiva de que a
retirada da libido de seus objetos, nessas circunstâncias, é mais visível do
que o desvio do interesse egoísta em relação ao mundo externo. Isto parece nos
oferecer um caminho para ao compreensão da hipocondria, na qual um órgão, de
forma semelhante, atrai a atenção do ego, sem que, pelo menos na medida em que
podemos perceber, esse órgão esteja doente.Resistirei, contudo, à tentação de
estender-me mais nesse ponto, ou de discorrer sobre outras situações que podem
ser compreendidas ou descritas com a adoção da hipótese de que a libido objetal
pode retirar-se para dentro do ego - pois sou obrigado a refutar duas objeções
que, conforme sei, atraem agora sua atenção. Em primeiro lugar, os senhores
desejam chamar-me a prestar contas, pois, ao falar em sono, doença e situações
parecidas, invariavelmente tento separar a libido do interesse, instintos
sexuais de instintos do ego, ali onde um exame pode mostrar ser inteiramente
satisfatória a hipótese de uma energia única e uniforme que, sendo livremente
móvel, catexiza ora o objeto, ora o ego, em obediência a um ou a outro
instinto. E, em segundo lugar, os senhores desejam saber como posso
aventurar-me a lidar com o desligamento da libido de seu objeto como sendo a
origem de um estado patológico, quando uma transposição dessa categoria da
libido objetal para libido do ego (ou, mais genericamente, para energia do ego)
situa-se entre os processos normais da dinâmica mental, que se repetem
diariamente e a cada noite.Eis minha respostas. Sua primeira objeção parece
muito correta. Uma reflexão a respeito dos estados de sono, de doença e de
apaixonamento, provavelmente, em si, não nos teria levado jamais a distinguir
uma libido objetal, ou a distinguir libido de interesse. Mas, aí os senhores
estão desprezando as investigações pelas quais começamos e à luz das quais
vemos agora as situações mentais em questão. A diferenciação entre libido e
interesse - isto é, entre instintos sexuais e instintos de autopreservação - se
nos impôs através de nossa descoberta do conflito, do qual se originam as
neuroses de transferência. Desde então, não conseguimos abandonar tal
diferenciação. A hipótese de que a libido objetal se possa transformar em
libido do ego e, portanto, que temos de levar em conta uma libido do ego,
parece-nos, pois, ser a única que pode resolver o enigma daquilo que se
denomina de neuroses narcísicas - demência precoce, por exemplo - e explicar as
semelhanças e dessemelhanças entre elas e a histeria ou as obsessões. Estamos
agora aplicando à doença, ao sono e à paixão o que alhures verificamos estar
iniludivelmente estabelecido. Deveríamos prosseguir com aplicações dessa
natureza e verificar até onde elas nos conduzem. A única tese que não constitui
um precipitado imediato de nossa experiência analítica, é no sentido de que a
libido permanece libido, seja ela orientada para objetos, seja para o próprio
ego da pessoa, e de que ela jamais se transforma em interese egoísta, sendo que
o inverso também procede. Essa tese, no entanto, é equivalente à separação entre
instintos sexuais e instintos do ego, que já avaliamos sob um ponto de vista
crítico e a que continuaremos a aderir, por motivos heurísticos, até sua
possível falência.A segunda observação dos senhores também suscita uma questão
justificável; porém, está orientada para uma direção errônea. É verdade que uma
retirada da libido objetal para dentro do ego não é diretamente patogênica; na
realidade, conforme sabemos, ela se realiza todas as vezes antes de
adormecermos, para inverter-se quando despertamos. A ameba retira suas
protrusões, para, então, emiti-las novamente na primeira oportunidade.
Trata-se, porém, de algo bem diferente quando determinado processo muito
vigoroso força uma retirada da libido, dos objetos. Aqui, a libido que se
tornou narcísica não consegue retornar aos objetos, e essa interferência na
mobilidade da libido certamente se torna patogênica. Parece não ser tolerada
uma acumulação de libido narcísica além de um determinado nível. Podemos até
supor ter sido por essa mesma razão que se efetuaram originalmente essas
catexias objetais, que o ego foi obrigado a emitir sua libido, de forma a não
adoecer em conseqüência do represamento da mesma. Se constasse de nosso plano
aprofundarmo-nos mais na demência precoce, eu lhes demonstraria que o processo
que desliga a libido de seus objetos e bloqueia seu retorno a eles, é
estreitamente relacionado ao processo de repressão, devendo, assim, ser
considerado a sua contrapartida. Os senhores, sem dúvida, poderão, contudo,
situar-se em terreno conhecido quando verificam que os fatores determinantes
desse processo são quase idênticos - pelo que sabemos, atualmente - aos da
repressão. O conflito parece ser o mesmo e efetuar-se entre as mesmas forças.
Se o resultado é tão diferente, por exemplo, da histeria, o motivo só pode
estar na dependência de uma diferença na disposição inata. O ponto fraco no
desenvolvimento libidinal desses pacientes situa-se numa fase diferente; a
fixação determinante que, conforme os senhores se lembrarão [ver em [1]],
permite a irrupção que leva à formação dos sintomas, situa-se em outro lugar,
provavelmente na fase de narcisismo primitivo, ao qual a demência precoce
retorna em seu resultado final. É bem surpreendente que, no caso de todas as
neuroses narcísicas, temos de supor que os pontos de fixação da libido remontam
a fases muito anteriores do desenvolvimento, em comparação com o que se observa
na histeria e na neurose obsessiva. Todavia, conforme é de seu conhecimento, os
conceitos a que chegamos em nosso estudo das neuroses de transferência são
adequados para ajudar-nos a nos orientarmos nas neuroses narcísicas, que, na
prática, são tão mais graves. As semelhanças vão muito longe; no fundo, o campo
de fenômenos é o mesmo. E os senhores podem imaginar quão reduzida é a
perspectiva que tem alguém para examinar esses distúrbios (que pertencem à
esfera da psiquiatria), se não estiver preparado para essa tarefa por um
conhecimento analítico das neuroses de transferência.
O quadro clínico da demência precoce (que,
aliás, é muito mutável) não é determinado exclusivamente pelos sintomas que
emergem da retração da libido para longe de seus objetos, e de sua acumulação
no ego sob forma de libido narcísica. Uma grande parte é, antes, desempenhada
por outros fenômenos derivados dos esforços da libido no sentido de, novamente,
alcançar os objetos, portanto correspondendo a uma tentativa de reintegração ou
recuperação. Esses últimos sintomas são, na verdade, os mais notáveis e
ruidosos; mostram inequívoca similitude com a histeria ou, com menos freqüência,
com os da neurose obsessiva; porém, ainda assim diferem destas em todos os
sentidos. É como se, na demência precoce, a libido, em seus esforços por
alcançar novamente os objetos (isto é, as representações dos objetos), de fato
agarra-se alguma coisa desses objetos, que, por assim dizer, seria, no entanto,
apenas suas sombras - quero dizer, as representações verbais pertencentes aos
objetos. Não posso, agora, expressar mais coisas a esse respeito; acredito,
todavia, que esse comportamento da libido, a maneira como luta por encontrar
seu caminho de volta, nos possibilitou entender aquilo que realmente constitui
a diferença entre idéia consciente e idéia inconsciente.Acabo de conduzi-los à
região em que se espera venham a realizar-se os próximos progressos no trabalho
da análise [ver em [1]]. Porque nos aventuramos a trabalhar com o conceito de
libido do ego, as neuroses narcísicas se nos tornaram acessíveis; a tarefa que
nos espera é chegar a uma elucidação dinâmica desses distúrbios e, ao mesmo tempo,
completar nosso conhecimento da vida mental, conseguindo compreender o ego. A
psicologia do ego, que andamos investigando, não deve basear-se nos dados de
nossas autopercepções, mas sim (como no caso da libido) na análise dos
distúrbios e nas rupturas do ego. É provável que, quando tivermos conseguindo
realizar essa tarefa maior, teremos uma opinião modesta de nosso presente
conhecimento das vicissitudes da libido, que adquirimos no estudo das neuroses
de transferência. Até agora, contudo, não fizemos muito progesso. As neuroses
narcísicas dificilmente podem ser acometidas mediante a técnica que nos foi de
utilidade nas neuroses de transferência. Em breve os senhores saberão por quê.
[ver em [1], adiante.] Com elas, o que sempre acontece é, após avançarmos uma
curta distância, depararmos com um muro que nos força a parar. Nas neuroses de
transferência, como sabem, também nos defrontamos com barreiras de resistência,
mas conseguimos demoli-las, parte por parte. Nas neuroses narcísicas, a
resistência é intransponível; quando muito, somos capazes de lançar um olhar
perscrutador por cima do topo do muro e divisar o que se está passando no outro
lado. Nossos métodos técnicos, por conseguinte, devem ser substituídos por
outros; e nem sequer sabemos se seremos bem sucedidos na busca de um
substituto. Ainda assim, não nos falta material referente a tais pacientes.
Eles fazem um grande número de observações, ainda que não respondam às nossas
perguntas; provisoriamente compete-nos interpretar essas observações com auxílio
da compreensão que adquirimos com os sintomas das neuroses de transferência. A
concordância é suficientemente grande para nos garantir algum progresso
inicial. Resta ver até onde essa técnica nos levará.
Existem dificuldades adicionais que impedem
nosso avanço. Os distúrbios narcísicos e as psicoses relacionadas a eles só
podem ser decifrados por observadores formados no estudo analítico das neuroses
de transferência. Nossos psiquiatras, porém, não são candidatos à formação
psicanalítica, e nós, psicanalistas, vemos muito poucos casos psíquiátricos.
Primeiro será necessário que se forme uma geração de psiquiatras que tenha
passado pela escola da psicanálise como ciência preparatória. Um começo nesse
sentido está realizando-se, atualmente, na América, onde grande número de
psiquiatras influentes lecionam aos estudantes as teorias da psicanálise, e
onde os donos de instituições e os diretores de hospitais psiquiátricos
esforçam-se por observar seus pacientes em conformidade com essas teorias. Não
obstante, também por aqui temos logrado, vez e outra, lançar um olhar por sobre
o muro narcísico, e, no que se segue, lhes falarei um pouco daquilo que
pensamos haver descoberto.A forma de doença conhecida como paranóida, loucura
sistematizada crônica, ocupa uma posição não-estabelecida nas tentativas de
classificação feitas pela psiquiatria contemporânea. Entretanto, não há dúvida
quanto à sua grande afinidade com a demência precoce. Em certa época,
aventurei-me a sugerir que se devesse agrupar a paranóia e a demência precoce
sob a designação comum de ‘parafrenia’. As formas de paranóia são descritas,
segundo seus conteúdos, como megalomania, mania de perseguição, erotomania,
delírios de ciúme, e assim por diante. Da psiquiatria não haveremos de esperar
que ela nos venha a esclarecer muita coisa a esse respeito. Eis um exemplo de
um desses casos, embora seja, na realidade, um caso desatualizado e não de
muita valia - uma tentativa de derivar um sintoma de outro por meio de uma
racionalização: sugere-se que o paciente, devido a uma disposição primária,
acredita estar sendo perseguido e conclui, a partir dessa sua perseguição, que
ele deve ser alguém dotado de importância muito especial, com isto
desenvolvendo megalomania. Consoante nossa visão analítica, a megalomania é o
resultado direto de uma expansão do ego, devido à circunstância de se haverem
recolhido a ele as catexias objetais libidinais - um narcisismo secundário que
é um retorno do narcisismo infantil, primitivo, original. Entretanto, temos
feito algumas observações sobre mania de perseguição, que nos induziram a
seguir um determinado rumo. A primeira coisa que nos chamou a atenção foi, na
grande maioria dos casos, o perseguidor ser então do mesmo sexo que o paciente
perseguido. Isso ainda podia ser passível de uma explanação inocente; mas, em
alguns casos detidamente estudados, ficou claro que a pessoa do mesmo sexo a
quem o paciente mais amava, se tornara, a partir de sua doença, seu
perseguidor. Isto possibilitou um novo desenvolvimento, ou seja, a substituição
da pessoa amada, segundo a linha de semelhanças familiares, por alguma outra
pessoa - por exemplo, um pai por um professor ou por algum superior.
Experiências dessa natureza, em casos sempre mais numerosos, nos levaram a
concluir que a paranóia persecutória é a forma da doença na qual uma
pessoa se defende contra um impulso homossexual que se tornou por demais
intenso. A mudança de afeição em ódio, a qual, conforme já se sabe, pode
tornar-se séria ameaça à vida do objeto amado e odiado, corresponde, nesses
casos, à transformação dos impulsos libidinais em ansiedade, que é o resultado
constante do processo de repressão. Ouçam, por exemplo, este que é, aliás, o
caso mais recente de minhas observações nessa área.Um jovem médico teve de ser
expulso da cidade na qual vivia, porque ameaçara a vida do filho de um
professor universitário ali residente, o qual até então havia sido seu maior
amigo. Atribuía intenções realmente hostis e poderes demoníacos ao amigo de
antes, a quem considerava responsável por todas as desgraças que haviam
atingido sua família nos últimos anos, por toda má sorte, seja em sua casa,
seja em sua vida social. Isto, porém, não era tudo. Acreditava que esse mau
amigo e seu pai, o professor, haviam causado a guerra, também, e introduzido os
russos no país. Seu amigo havia merecido pagar com a vida milhares de vezes, e
nosso paciente se convencera de que a morte criminosa haveria de cessar com
todos os males. Assim mesmo, sua afeição por ele era ainda tão intensa, que lhe
paralisou a mão quando, em uma ocasião, teve a oportunidade de fulminar seu
inimigo com um tiro à queima-roupa. No decorrer das breves conversações que
tive com o paciente, constatou-se que sua amizade havia começado nos primeiros
tempos de escola. Uma vez, pelo menos, havia ultrapassado os limites da
amizade: uma noite, que os dois passaram juntos, tinha servido de ocasião para
uma relação sexual completa. Nosso paciente jamais havia conseguido estabelecer
relação emocional com mulheres que correspondesse a sua idade e à sua atraente
personalidade. Em certa época, esteve noivo de uma formosa jovem de boa posição
social; ela, contudo, rompera o noivado por achar que seu fiancé não
possuía qualquer afeição. Anos depois, sua doença irrompeu precisamente no
momento em que havia conseguido, pela primeira vez, satisfazer completamente
uma mulher. Quando essa mulher, numa atitude de gratidão e devoção, abraçou-o,
ele, subitamente, sentiu uma dor misteriosa que se situou no alto da cabeça
como aguda cutilada. Daí em diante, interpretou essa sensação como se uma
incisão estivesse sendo feita numa autópsia para expor seu cérebro. E como seu
amigo se havia tornado anatomopatologista, lentamente se apossou dele a idéia
de que só podia ter sido ele, o amigo, que lhe enviara essa última mulher para
seduzi-lo. Desse ponto em diante, seus olhos se abriram às demais perseguições,
das quais acreditava ter-se tornado vítima por meio das maquinações do amigo de
outros tempos.
Mas, que dizer dos casos em que o perseguidor
não é do mesmo sexo que o paciente, e que parecem, portanto, contradizer nossa
explicação de que são uma defesa contra a libido homossexual? Há pouco tempo,
tive oportunidade de examinar um caso assim, e pude derivar uma confirmação da
aparente contradição. Uma jovem, que acreditava estar sendo perseguida por um
homem com o qual tinha tido encontros amorosos em duas ocasiões, na realidade
tivera, inicialmente, um delírio dirigido contra uma mulher que podia ser
considerada uma substituta de sua mãe. Apenas após seu segundo encontro é que ela
deu o passo que consistiu em desvincular o delírio da mulher e transferi-lo
para o homem. Em princípio, portanto, a precondição de o perseguidor ser do
mesmo sexo que o paciente foi preenchida também nesse caso. Ao fazer uma queixa
a um advogado e a um médico, a paciente não fez qualquer menção a esse estádio
preliminar de seu delírio, e assim deu origem à aparência de contradição de
nossa explicação da paranóia. A escolha objetal homossexual situa-se
originalmente mais próxima do narcisismo, do que ocorre com a escolha
heterossexual. Quando se trata, pois, de repelir um impulso homossexual
indesejavelmente forte, torna-se sobremodo fácil o caminho de regresso ao
narcisismo. Até o momento, tive bem pouca oportunidade de falar-lhes acerca dos
fundamentos da vida erótica, até onde nós os descobrimos; e é muito tarde para
reparar essa omissão. O que posso enfatizar para os senhores, porém, é o
seguinte. A escolha objetal, o passo adiante no desenvolvimento da libido, que
se faz após o estádio narcísico, pode realizar-se segundo dois tipos
diferentes: um, segundo o tipo narcísico, no qual o próprio ego da
pessoa é substituído por um outro, que lhe é tão semelhante quanto possível; o
outro, segundo o tipo ligação, no qual as pessoas que se tornaram
valiosas, porque satisfizeram as outras necessidades vitais, são, também,
escolhidas como objetos pela libido. Uma intensa fixação ao tipo narcísico de
escolha objetal deve ser incluída na predisposição ao homossexualismo
manifesto.Os senhores estarão lembrados de que, em nosso primeiro encontro do
presente ano acadêmico, descrevi-lhes o caso de uma mulher que sofria de
delírios de ciúme [ver em [1]]. Agora que estamos tão próximos do final do ano,
os senhores sem dúvida gostariam de saber como os delírios são explicados pela
psicanálise. A esse respeito, porém, eu tenho a lhes dizer menos do que
esperam. O fato de que um delírio não pode ser abalado por argumentos lógicos
ou experiências reais explica-se do mesmo modo que no caso de uma obsessão -
por sua relação com o inconsciente, que é representado e mantido em sujeição
pelo delírio ou pela obsessão. A diferença entre os dois baseia-se na diferença
entre os aspectos topográfico e dinâmico das duas doenças.Como na paranóia,
também na melancolia (da qual, aliás, têm-se descrito muitas formas clínicas
diferentes) encontramos um ponto no qual se tornou possível obter alguma
compreensão interna (insight) da estrutura interna da doença.
Descobrimos que as autocensuras com que esses pacientes melancólicos se
atormentam a si mesmos da maneira mais impiedosa, aplicam-se, de fato, a outra
pessoa, o objeto sexual que perderam ou que se tornou sem valor para eles por
sua própria falha. Daí podemos concluir que o melancólico, na realidade,
retirou do objeto sua libido, mas que, por um processo que devemos chamar de
‘identificação narcísica’, o objeto se estabeleceu no ego, digamos, projetou-se
sobre o ego. (Aqui posso apenas fazer-lhes uma descrição figurada e não uma
exposição ordenada em linhas topográficas e dinâmicas.) o ego da pessoa então é
tratado à semelhança do objeto que foi abandonado e é submetido a todos os atos
de agressão e expressões de ódio vingativo, anteriormente dirigidos ao objeto.
A tendência do melancólico para o suicídio torna-se mais compreensível se
considerarmos que o ressentimento do paciente atinge de um só golpe seu próprio
ego e o objeto amado e odiado. Na melancolia, bem como em outros distúrbios
narcísicos, emerge, com acento especial, um traço particular na vida emocional
do paciente - aquilo que, de acordo com Bleuler, nos acostumamos a descrever
como ‘ambivalência’. Com isso queremos significar que estão sendo dirigidos à
mesma pessoa sentimentos contrários - amorosos e hostis. Infelizmente, não tive
possibilidade, no decurso destas conferências, de lhes falar mais coisas a
respeito dessa ambivalência emocional. [ver em [1].]Além da identificação
narcísica, existe um tipo de identificação histérica que há conhecíamos há
muito mais tempo. Desejaria que houvesse possibilidade de ilustrar para os
senhores as diferenças entre as duas formas mediante algumas descrições
minuciosas. Existe algo que posso lhes dizer a respeito das formas periódicas e
cíclicas da melancolia, que, tenho certeza, os senhores, gostarão de ouvir.
Isto porque, em circunstâncias favoráveis - tive experiência disso, por duas
vezes -, é possível, pelo tratamento analítico, evitar nos intervalos lúcidos o
retorno da condição mórbida na mesma disposição emocional ou na disposição
contrária. Com tais casos verificamos que, na melancolia e na mania, nos
defrontamos novamente com um método especial de abordar um conflito cujos
fatores determinantes subjacentes concordam precisamente com os de outras
neuroses. Os senhores podem imaginar quanto ainda a psicanálise tem a aprender
nesse campo de conhecimento.Também lhes disse [ver em [1] e [2]] que
esperávamos desse-nos a análise dos distúrbios narcísicos uma compreensão
interna (insight) da forma em que nosso ego é construído a partir de
diferentes instâncias. Já estabelecemos um começo, em um ponto. Partindo da
análise dos delírios de observação [‘Beobachtungswahn’], tiramos a
conclusão de que há realmente no ego uma instância que incessantemente observa,
critica e compara, e desse modo se contrapõe à outra parte do ego. Acreditamos,
por conseguinte, que o paciente nos está revelando uma verdade, ainda não
suficientemente valorizada, quando se queixa de estar sendo espionado e
observado em todos os seus passos e de que todos os seus pensamentos são
denunciados e criticados. Seu único erro consiste em considerar ele essa
incômoda capacidade como algo alheio a si próprio e colocado fora dele. Percebe
uma instância que assume o domínio do seu ego e que mede seu ego real e cada
uma de suas atividades mediantes um ego
ideal que ele, paciente, criou para si próprio no decorrer do seu
desenvolvimento. Cremos também que essa criação foi feita com a intenção de
restabelecer a auto-satisfação que estava vinculada ao narcisismo infantil
primário, mas que, desde então, sofreu assim tantas perturbações e mortificações.
Conhecemos a instância auto-observadora como o censor do ego, a consciência; é este que exerce a censura de
sonhos durante a noite, é dele que procedem as repressões aos inadmissíveis
impulsos plenos de desejos. Quando, nos delírios de referência, essa instância
censora se decompõe em suas partes, ela nos revela sua origem nas influências
dos pais, dos educadores e do ambiente social numa identificação com algumas
dessas figuras-modelo.Estas são algumas das descobertas que, até o momento,
foram obtidas da aplicação da psicanálise aos distúrbios narcísicos. Sem
dúvida, ainda são poucas e falta-lhes aquela precisão que só pode ser
conseguida a partir de um conhecimento íntimo estabelecido nesse novo campo.
Todas elas, devemo-las um uso do conceito de libido do ego ou libido narcísica,
com cujo auxílio podemos estender às neuroses narcísicas os pontos de vista que
se mostraram válidos para as neuroses de transferência. Todavia, agora os
senhores perguntarão se nos é possível conseguir subordinar todos os distúrbios
das doenças narcísicas e das psicoses à teoria da libido, considerar o fator
libidinal na vida mental universalmente culpado da causação da doença, e se não
devemos jamais atribuir a responsabilidade pela mesma a modificações no
funcionamento do instinto de autopreservação. Bem, senhoras e senhores,
parece-me que essa questão não requer uma resposta urgente e, principalmente,
que não está madura para um julgamento. Podemos confiantemente deixa-lá para
depois, na expectativa do progresso de nosso trabalho científico. Eu não me
surpreenderia se fosse verificado que o poder de produzir efeitos patogênicos
de fato constituísse uma prerrogativa dos instintos libidinais, de modo que a
teoria da libido pudesse celebrar seu triunfo por toda uma extensão que vai
desde a mais simples neurose ‘atual’ até a mais grave alienação da
personalidade. Afinal, sabemos que é uma faceta característica da libido ela
lutar contra uma sua submissão à realidade do universo - à Ananke [ver em [1]].
No entanto, considero extremamente provável que os instintos do ego são
arrastados secundariamente pela instigação patogênica da libido e levados a
perturbações funcionais. E não penso que seria um desastre para o rumo de
nossas pesquisas se aquilo que nos aguarda é a descoberta de que, nas psicoses
graves, os próprios instintos do ego perderam sua orientação, como fato
principal. O futuro dará a resposta - para os senhores, pelo menos.Entretanto,
permitam-me novamente retornar, por um momento, à ansiedade, para lançar uma
luz sobre um último ponto obscuro que ali deixamos. Disse [ver em [1]] que
existe algo não harmonizável com a relação (tão amplamente reconhecida, aliás)
entre ansiedade e libido: ou seja, o fato de que a ansiedade realística em face
de um perigo parece ser manifestação do instinto de autopreservação - o que,
afinal, dificilmente pode ser objeto de controvérsia. Como seria, então, se o
responsável pelo afeto de ansiedade não fossem os egoísticos instintos do ego,
mas a libido do ego? Afinal, o estado de ansiedade , em todos os casos, é
inadequado para fins práticos e sua inadequação se torna evidente quando atinge
um grau muito elevado. Em tais casos, interfere na ação, quer se trate de fuga,
ou de defesa, ação que é a única adequada e a única que serve à causa da
autopreservação. Portanto, se atribuímos a parte afetiva da ansiedade
realística à libido do ego e a ação concomitante ao instinto de
autopreservação, teremos eliminado a dificuldade teórica. Enfim, não acreditam
seriamente os senhores que alguém foge, porque sente ansiedade? Não. Sente-se
ansiedade e foge-se por um motivo comum, que é decorrente da percepção do
perigo. As pessoas que enfrentaram um grande perigo de morte, nos contam que
não sentiram medo, absolutamente, mas simplesmente agiram - por exemplo, que
apontaram o rifle para o animal feroz -, e que isso inquestionavelmente era o
mais adequado.
CONFERÊNCIA XXVII
TRANSFERÊNCIA
SENHORAS E SENHORES:
De vez que agora nos aproximamos do final de
nossas palestra, há uma expectativa especial que estará na mente dos senhores,
que não se permitiria frustrar-se. Sem dúvida, os senhores supõem que eu não
lhes teria mostrado todos os detalhes do tema da psicanálise apenas para os
abandonar, no fim, sem dizer uma palavra sobre terapia, na qual, em última
análise, se fundamenta a possibilidade de se exercer a psicanálise. Ademais,
este é um assunto que não posso ocultar dos senhores, pois aquilo que
aprenderem com relação a ele os capacitará a conhecer um fato novo, cuja ausência
faria com que a compreensão dos senhores acerca das doenças por nós
investigadas permanecesse muito incompleta.
Sei que não esperam eu iniciá-los na técnica,
com a qual a análise, para fins terapêuticos, haverá de ser efetuada. Os
senhores apenas desejam conhecer, de modo muito genérico, o método com que
opera o tratamento psicanalítico e, em linhas gerais, o que este realiza. E têm
o inquestionável direito de conhecer esse aspecto. Todavia, não o direi aos
senhores, mas insistirei em que o descubram por si mesmos.
Pensem nisto, senhores! Aprenderam tudo quanto
é essencial a respeito dos fatores determinantes do adoecer, bem como todos os
fatores que entram em jogo após o paciente haver adoecido. Onde darão
estes lugar a alguma influência terapêutica? Em primeiro lugar, existe a
disposição hereditária. Desta não falamos com muita freqüência, de vez que é
enfaticamente ressaltada a partir de outras direções, e não temos nada de novo
a dizer a respeito. Não suponham, porém, que a subestimamos; justamente como
terapeutas, chegamos a perceber com muita nitidez a sua força. De qualquer
modo, nada podemos fazer para modificá-la; também devemos considerá-la algo
estabelecido, que põe um limite aos nossos esforços. Depois, existe a
influência das experiências do início da infância, às quais costumamos conferir
importância na análise: elas pertencem ao passado e não podemos anulá-las. Vem,
a seguir, tudo aquilo que resumimos como ‘frustração real’ - os infortúnios da
vida dos quais se originam a falta de amor, pobreza, dissensões de família,
escolha mal feita de um companheiro no casamento, circunstâncias sociais
desfavoráveis , e a rigidez dos padrões éticos a cuja pressão o indivíduo está
sujeito. Aqui, para dizer a verdade, deveria haver mãos bastante para uma terapia
muito diferente, mas isso teria de pertencer ao tipo que o folclore vienense
atribuiu ao imperador José - a interferência benévola de um personagem poderoso
diante do qual as pessoas se inclinassem e as dificuldades desaparecessem. Mas,
quem somos nós, para adotar semelhante benevolência como instrumento de nossa
terapia? Pobres como somos, socialmente sem poderes, compelidos a ganhar a vida
com nossa atividade médica, não estamos sequer em condições de ampliar nossos
esforços até as pessoas sem recursos, como podem fazê-lo, afinal de contas,
outros médicos com outros métodos de tratamento. Nosso tratamento consome tempo
demasiado e é por demais trabalhoso para que isso se torne possível.
Entretanto, talvez os senhores estejam agarrando-se a um dos fatores que
mencionei, e acreditam que ali encontram o ponto no qual nossa influência possa
ser exercida. Se as restrições da ética, impostas pela sociedade, têm um papel
na privação imposta ao paciente, o tratamento pode, afinal, dar-lhe a coragem,
ou, quem sabe, a recomendação direta de desprezar essas barreiras e de
conseguir sua satisfação e a recuperação de sua saúde, embora, com isso,
desista de cumprir um ideal que a sociedade exalta, mas ao qual ela tão
raramente adere. Assim, o paciente tornar-se-á sadio por ‘viver uma vida
completa’, sexualmente. Isso, é verdade, projeta uma sombra por sobre o
tratamento analítico, porque esse não serviria à moralidade vigente. O que ele
der ao indivíduo, haverá tirado da comunidade.Mas, senhoras e senhores, quem lhes
forneceu informações tão errôneas? Uma recomendação ao paciente para ‘viver uma
vida completa’ sexualmente por certo não poderia desempenhar um papel no
tratamento analítico - no mínimo porque nós próprios declaramos que um
persistente conflito se realiza, no paciente, entre um impulso libidinal e a
repressão sexual, entre uma tendência sensual e uma tendência ascética. Esse
conflito não seria solucionado com ajudarmos uma dessas tendências a triunfar
sobre sua opositora. Vemos, na realidade, que nos neuróticos o ascetismo está
no poder; e a conseqüência é, justamente, a tendência sexual suprimida
encontrar uma vida através de sintomas. Se, ao contrário, formos assegurar a
vitória da sensualidade, então a repressão sexual, que foi posta de lado,
necessariamente haverá de ser substituída por sintomas. Nenhuma dessas duas
decisões alternativas poderia terminar com o conflito interno; em qualquer um
dos casos, uma pare do conflito ficaria insatisfeita. Há apenas poucos casos
nos quais o conflito é tão instável, que um fator desse, com o de o médico
tomar partido, possa decidi-lo; e tais casos efetivamente não necessitam do
tratamento analítico. Todo aquele em quem o médico poderia exercer tamanha
influência, teria encontrado a mesma saída sem o médico. Os senhores precisam
estar conscientes de que, se um homem jovem e abstinente se decide em favor de
relações sexuais ilícitas, ou se uma esposa insatisfeita procura alívio com
outro homem, essas pessoas, via de regra, não aguardaram a permissão de um
médico ou, mesmo, de seu analista.
Nesse consenso, as pessoas geralmente
negligenciam o ponto essencial - de que o conflito patogênico nos neuróticos
não deve ser confundido com uma luta normal entre dois impulsos mentais, ambos
em mesmo pé de igualdade. Em primeiro lugar, a dissensão se faz entre dois
poderes, um deles tendo irrompido até o estádio do que é pré-consciente ou
consciente, ao passo que o outro foi mantido reprimido no estádio inconsciente.
Por esse motivo, o conflito não pode ser conduzido a um desfecho; os
contendores não podem engalfinhar-se mais do que o fariam, vamos comparar
assim, um urso polar e uma baleia. Uma verdadeira decisão só pode ser obtida
quando ambos se encontrarem no mesmo chão. Penso que a única tarefa de nossa
terapia consiste em tornar isso possível.
Ademais disso, posso asegurar-lhes que estão
mal informados se supõem que o conselho e a orientação nos assuntos da vida
façam parte integral da influência analítica. Pelo contrário, na medida do
possível, evitando exercer o papel de menor desse tipo, e tudo o que procuramos
levar a efeito é, de preferência, que o paciente venha a tomar as decisões por
si mesmo. Também com vistas a esse propósito, exigimos do paciente que adie
para o término de seu tratamento quaisquer decisões relativas à escola de uma
profissão, encargos de negócios, casamento ou divórcio, e que só as ponha em
prática quando o tratamento estiver terminado. Devem admitir que tudo isso é
diferente daquilo que imaginavam. Apenas, no caso de algumas pessoas muito
jovens ou muito carentes de ajuda, ou instáveis, não conseguimos pôr em prática
a desejada limitação de nosso papel. Com elas, temos de combinar as funções de
médico e de educador; mas, sendo esta a situação, estamos muito cônscios de
nossa responsabilidade e nos conduzimos com a devida cautela.Os senhores, no
entanto, não devem, com base em minha veemência em defender-me da acusação de
que os neuróticos são encorajados, no tratamento analítico, a viver uma vida
plena - os senhores não devem concluir daí que os influenciamos em favor da
virtude convencional. Está muito longe de ser este o caso. É verdade que não
somos reformadores, mas apenas observadores; não obstante, não podemos deixar
de observar com olho crítico, e constatamos ser impossível tomar o partido da
moralidade sexual convencional ou ter em alto apreço a forma pela qual a
sociedade procura regulamentar na prática os problemas da vida sexual. Podemos
apresentar à sociedade um cálculo aproximado, segundo o qual aquilo que ela
descreve como sua moralidade exige um sacrifício que não vale a pena, e seus
procedimentos não se baseiam na honestidade e não demonstram sabedoria. Não
livramos dessas críticas os ouvidos dos pacientes, habituamo-los a emitir
pareceres isentos de preconceitos, tanto sobre assuntos sexuais como sobre
outros assuntos; e se, havendo-se tornado independentes após completado o
tratamento, os pacientes, mediante seu próprio julgamento, decidem por alguma
posição intermediária entre viver uma vida livre e uma vida de absoluto
ascetismo, sentimos nossa consciência tranqüila, seja qual for sua escolha.
Dizemos a nós próprios que todo aquele que conseguiu educar-se de modo a se
conduzir de acordo com a verdade referente a si mesmo, está permanentemente
protegido contra o perigo da imoralidade, conquanto seus padrões de moralidade
possam diferir, em determinados aspectos, daqueles vigentes na sociedade. Além
disso, devemos ter a cautela de não subestimar a importância do papel que
desempenha a questão da abstinência na influência que esta possa exercer nas
neuroses. Apenas em uma minoria de casos a situação patogênica da frustração e
o subseqüente represamento da libido podem chegar a seu fim pelo tipo de
relação sexual que se possa obter sem muita dificuldade.Assim, os senhores não
podem explicar o efeito terapêutico da psicanálise por meio da permissão para
uma vida sexual completa. Busquem, pois, por algo diferente. Imagino que,
enquanto rechaçava essa sugestão dos senhores, um comentário meu colocou-os no
caminho certo. Aquilo que empregamos sem dúvida deve ser a substituição do que
está inconsciente pelo que é consciente, a tradução daquilo que é inconsciente
para o que é consciente. Sim, é isso. Transformando a coisa inconsciente em
consciente, suspendemos as repressões, removemos as precondições para a
formação dos sintomas, transformamos o conflito patogênico em conflito normal,
para o qual deve ser possível, de algum modo, encontrar uma solução. Tudo o que
realizamos em um paciente é essa única modificação psíquica: a extensão em que
ela se efetua é a medida da ajuda que proporcionamos. Ali onde as repressões
(ou os processos psíquicos análogos) não podem ser desfeitos, nossa terapia não
tem nada a esperar.
Podemos expressar o objetivo de nossos esforços
em diversas fórmulas: tornar consciente o que é inconsciente, remover as
repressões, preencher lacunas da memória - tudo isso corresponde à mesma coisa.
Contudo, talvez os senhores fiquem insatisfeitos com essa formulação. Haviam
formado um quadro diferente do retorno à saúde de um paciente neurótico, o de
que, após submeter-se ao cansativo trabalho da psicanálise, eles se
transformaria em outro homem; mas o resultado total, assim parece, é que ele,
antes, tem menos coisas inconscientes e mais coisas conscientes do que tinha
anteriormente. O fato é que os senhores provavelmente estão subestimando a
importância de uma modificação interna dessa ordem. O neurótico realmente
curado tornou-se outro homem, embora, no fundo, naturalmente permaneceu o
mesmo; ou seja, tornou-se o que se teria tornado na melhor das hipóteses, sob
as condições mais favoráveis. Isso, porém, já é muita cosia. Se os senhores
passarem a ouvir atentamente tudo que deve ser feito e que esforços são
necessários para levar a cabo essa mudança aparentemente banal na vida mental
de um homem, sem dúvida começarão a perceber a importância dessa diferença em
níveis psíquicos.
Farei uma pequena digressão, para
perguntar-lhes se sabem o que significa uma terapia causal. É este o modo como
descrevemos um procedimento, que não considera como ponto de ataque os sintomas
de uma doença, mas se propõe remover suas causas. Pois bem, é então nosso
método analítico uma terapia causal, ou não? A resposta não é simples, mas
pode, talvez, dar-nos a oportunidade de perceber a inutilidade de uma pergunta
assim formulada. Na medida em que a terapia analítica não se propõe como sua
tarefa primeira remover os sintomas, ela se comporta como uma terapia causal.
Em outro aspecto, os senhores podem dizer, ela não o é. É que, há muito tempo
atrás, situamos a origem da seqüência das causas da doença, das repressões às
disposições instintuais, suas intensidades relativas na constituição e aos
desvios no curso de seu desenvolvimento. Supondo, agora, que fosse possível,
talvez, por algum meio químico interferir nesse mecanismo, aumentar ou diminuir
a quantidade de libido presente em determinada época ou reforçar um instinto à
custa de outro - tal coisa seria, então, uma terapia causal no verdadeiro
sentido da palavra, para qual nossa análise teria efetuado o indispensável trabalho
preliminar de reconhecimento. No momento atual, como sabem, não existe
semelhante método de influenciar os processos libidinais; com nossa terapia
psíquica, atacamos em conjunto diferentes pontos - não exatamente os pontos que
sabemos serem as raízes dos fenômenos, mas, ainda assim, bem distantes dos
sintomas; os pontos que se nos tornaram acessíveis devido a algumas
circunstâncias muito especiais.
O que, pois, devemos fazer a fim de substituir
o que é inconsciente, em nossos pacientes, por aquilo que é consciente? Houve
uma época em que pensávamos ser isto algo muito simples: tudo o que tínhamos de
fazer era descobrir esse material inconsciente e comunicá-lo ao paciente. Já
sabemos, porém, que este é um erro primário [ver em [1] e [2]]. O nosso
conhecimento acerca do material inconsciente não é equivalente ao conhecimento dele;
se lhe comunicarmos nosso conhecimento, ele não o receberá em lugar de seu
material inconsciente, mas ao lado do mesmo; e isso causará bem pouca
mudança no paciente. Devemos, de preferência, situar esse material inconsciente
topograficamente, devemos procurar, em sua memória, o lugar em que se tornou
inconsciente devido a uma repressão. A repressão deve ser eliminada - e a
seguir pode efetuar-se desimpedidamente a substituição do material consciente
pelo inconsciente. Como, pois, removemos uma repressão dessa espécie? A essa
altura, nossa tarefa entra numa segunda fase. Primeiro, a busca da repressão e,
depois, a remoção da resistência que mantém a repressão.
Como removemos a resistência? Da mesma forma:
descobrindo-a e mostrando-a ao paciente. Na realidade, também a resistência
deriva de uma repressão - da mesma repressão que nos esforçamos por solucionar,
ou de uma repressão que se realizou anteriormente. Foi provocada pela anticatexia,
que surgiu a fim de reprimir o impulso censurável. Assim, fazemos o mesmo que
tentamos fazer inicialmente: interpretar, descobrir, comunicar; mas, então,
estamos fazendo-o no lugar certo. A anticatexia ou a resistência não fazem
parte do inconsciente, e sim do ego, que é nosso colaborador, sendo-o, ainda
que não consciente. Como sabemos, aqui a palavra ‘inconsciente’ está sendo
usada em dois sentidos: por um lado, como fenômeno e, por outro, como sistema.
Esse fato parece muito difícil e obscuro; mas, não estará apenas repetindo o
que já dissemos em passagens precedentes? Há muito nos preparamos para isso.
Esperamos que essa resistência seja abandonada, e retiradas as anticatexias
quando nossa interpretação houver facultado o ego a reconhecê-la. Quais as
forças motrizes com que trabalhamos em um caso desses? Em primeiro lugar, com o
desejo de recuperação, do paciente, o qual o induziu a compartilhar conosco de
nosso trabalho em conjunto; e, em segundo lugar, com o auxílio de sua
inteligência, à qual fornecemos pontos de apoio através de nossa interpretação.
Sem dúvida é mais fácil a inteligência do paciente reconhecer a resistência e
encontrar a tradução correspondente àquilo que está reprimido se lhe tivermos
fornecido previamente as idéias orientadoras apropriadas. Se lhes digo: ‘Olhem
para o céu! Lá está um balão!’, o descobrirão com muito mais facilidade, do que
se lhes digo simplesmente para olhar para cima e procurar ver algo. Do mesmo
modo, um estudante que vê através de um microscópio, pela primeira vez, é
instruído por seu professor a respeito daquilo que irá enxergar; do outro modo,
ele não o verá, absolutamente, embora esteja ali e seja visível.
E agora, passemos aos fatos! Em numerosas
doenças nervosas - na histeria, nos estados de ansiedade, na neurose obsessiva
- nossa expectativa cumpre-se. Ao procurar assim a repressão, ao revelar as
resistências, ao assinalar o que está reprimido, conseguimos, com efeito,
cumprir nossa tarefa - isto é, vencer as resistências, remover a repressão e
transformar o material inconsciente em material consciente. Ao fazê-lo, obtemos
a mais vívida idéia da forma como uma violenta luta se trava na mente do
paciente ante cada resistência a vencer - uma luta mental normal, no
mesmo chão psicológico, entre os motivos que procuram manter a anticatexia e os
motivos que estão preparados para abandoná-la. Os primeiros são os antigos
motivos que, no passado, efetuaram a repressão; entre os últimos estão os
motivos surgidos recentemente, que, assim podemos esperar, decidirão o conflito
em nosso favor. Temos conseguido reviver o antigo conflito que levou à
repressão e submeter a revisão o processo que então foi decidido. O novo
material que nós aduzimos inclui, em primeiro lugar, o lembrete de que a
decisão anterior levou à doença, e a promessa de que um caminho diferente
levará à recuperação, inclui, em segundo lugar, a enorme modificação em todas a
circunstâncias, que se efetuou desde a época da rejeição original. Naquela
época, o ego era frágil, infantil e, talvez, pode ter tido razões para proibir,
por lhe parecerem um perigo as exigências da libido. Atualmente, o ego
tornou-se forte e experiente, e, sobretudo, tem à mão um aliado na figura
revivido em direção a um resultado melhor do que aquele que redundou em
repressão; e, como disse, na histeria, nas neuroses de ansiedade e obsessiva,
nosso êxito prova, em geral, que temos razão.
Existem, entretanto, outras formas de doença
nas quais, malgrado as condições sejam as mesmas, nossa conduta terapêutica
jamais obtém êxito. Nelas também tem-se verificado que houve um conflito básico
entre o ego e a libido, que acarretou a repressão - embora esse fato possa
necessitar de uma descrição topográfica diferente; nelas, ademais, é possível
determinar os pontos de vista do paciente, nos quais ocorreram as repressões;
utilizamos o mesmo procedimento, estamos prontos a fazer as mesmas promessas e
oferecer a mesma ajuda apresentando idéias orientadoras; e, também nesse ponto,
o tempo transcorrido entre as repressões e a época presente favorece um
resultado diferente para o conflito. Ainda assim, não conseguimos remover uma
única resistência ou suprimir uma única repressão. Esses pacientes, paranóicos,
melancólicos, sofredores de demência precoce, permanecem, de um modo geral,
intocados e impenetráveis ao tratamento psicanalítico. Qual seria a razão? Não
é falta de inteligência. Determinado nível de capacidade intelectual é,
naturalmente, exigido de nossos pacientes; e por certo não existe falta de
inteligência, por exemplo, nos extremamente sagazes portadores de paranóia
combinatória [ver em [1] e seg.]. E alguns dos outros motivos não parecem estar
ausentes. Assim o melancólicos possuem um grau muito elevado da consciência,
ausente nos paranóicos, de estarem doentes e de isto constituir o motivo por
sofrerem tanto; tal, contudo, não os torna mais acessíveis. Deparamos, aqui,
com um fato que não compreendemos, e que, portanto, nos faz duvidarmos de que
realmente compreendemos todos os fatores determinantes de nosso possível êxito
em outras neuroses.
Se prosseguimos dedicando-nos apenas aos nossos
neuróticos histéricos e obsessivos, logo deparamos com um segundo problema,
para o qual absolutamente não estamos preparados. Isto porque, após pequeno
lapso de tempo, não podemos deixar de constatar que esses pacientes se
comportam de maneira muito peculiar com relação a nós. Acreditávamos, para
dizer a verdade, que havíamos percebido todos os motivos envolvidos no
tratamento, que havíamos colocado em termos racionais, completamente, a
situação existente entre nós e os pacientes, de modo que esta pudesse ser
visualizada de imediato como se fora uma soma aritmética; não obstante, a
despeito de tudo isso, algo parece infiltrar-se furtivamente, algo que não foi
levado em conta em nossa soma. Essa novidade inesperada assume muitas formas, e
iniciarei descrevendo para os senhores as formas mais comuns e mais facilmente
compreensíveis sob as quais ela aparece.
Constatamos, pois, que o paciente, que deveria
não desejar outra coisa senão encontrar uma saída para seus penosos conflitos,
desenvolve especial interesse pela pessoa do médico. Tudo o que se relaciona ao
médico parece ser mais importante para ele, do que seus próprios assuntos, e
parece desviá-lo de sua própria doença. Durante algum tempo, por conseguinte,
as relações com ele se tornam muito agradáveis; o paciente é especialmente
amável, procura, sempre que possível, mostrar sua gratidão, revela refinamento
e méritos em seu modo de ser, que, talvez, não esperaríamos encontrar nele.
Ademais, a seguir o médico forma uma opinião favorável acerca do paciente e
aprecia a boa sorte que lhe possibilitou dar sua assistência a uma
personalidade de tanto valor. Tendo o médico oportunidade de conversar com os
parentes do paciente, fica sabendo da satisfação dele e constata que a afeição
é recíproca. Em casa, o paciente jamais se cansa de elogiar o médico e de
descobrir nele qualidades sempre novas.’Ele está entusiasmado com o senhor’,
dizem os parentes, ‘ele confia cegamente no senhor; tudo o que o senhor diz é
como uma revelação para ele’. Aqui e ali, alguém, dentro desse coro, tem visão
mais arguta e diz: ‘Está ficando maçante o jeito como ele só fala no senhor, e
tem nos lábios o nome do senhor o tempo todo.’
Esperemos que o médico seja suficientemente
modesto e possa atribuir o alto conceito em que o tem seu paciente, às
esperanças que possa causar neste e ao alargamento dos horizontes intelectuais
mediante esclarecimentos surpreendentes e liberalizantes que o tratamento traz
consigo. Nessas condições, a análise também faz bons progressos. O paciente
compreende aquilo que lhe é interpretado e se deixa absorver pelas tarefas que
o tratamento lhe propõe; o material mnêmico e as associações inundam-no em
quantidade, a justeza e adequação de suas interpretações são uma surpresa para
o médico, e este só pode observar com satisfação que este é um paciente que
aceita, de pronto, todas as inovações psicológicas inclinadas a provocar a mais
acerba contradição entre pessoas sadias no mundo externo. Ademais disso, as
relações cordiais que prevalecem durante o trabalho da análise acompanham-se de
uma melhora objetiva, que é reconhecida em todos os ângulos na doença do
paciente.
Entretanto, esse bom tempo não pode durar para
sempre. Um dia, nuvens aparecem. Surgem dificuldades no tratamento; o paciente
declara que nada mais lhe acode à mente. Dá a mais nítida impressão de não
estar mais interessado no trabalho, de estar, despreocupadamente, não
atribuindo mais importância às instruções que lhe foram dadas, no sentido de
dizer tudo o que lhe vem à cabeça e de não permitir que obstáculos críticos
impeçam de fazê-lo. Comporta-se como se estivesse fora do tratamento e como se
não tivesse feito esse acordo com o médico. Está visivelmente ocupado com algo,
mas pretende mantê-lo consigo próprio. Esta é uma situação perigosa para o
tratamento. Inequivocamente, estamos nos defrontando com uma formidável
resistência. Todavia, que aconteceu, capaz de explicar isto?
Ora, se pudermos esclarecer a situação,
verificaremos que a causa da dificuldade é haver o paciente transferido para o
médico intensos sentimentos de afeição, que nem se justificam pela conduta do
médico, nem pela situação que se criou durante o tratamento. A forma pela qual
essa afeição se expressa e os objetivos que ela tem em vista, dependem do curso
da relação pessoal entre as duas pessoas em questão. Se aqueles que se
encontram numa situação dessas, são uma jovem e um homem jovem, teremos a
impressão de se tratar de um caso normal de enamoramento; julgaremos
compreensível que uma jovem se apaixone por um homem, com quem ela pode estar
muito a sós e falar de coisas íntimas, e que tem a vantagem de ser para ela um
superior prestimoso; e provavelmente não notaremos o fato de que, de uma jovem
neurótica, deveríamos esperar de preferência um impedimento na sua capacidade
para o amor. Quanto mais as relações pessoais entre médico e paciente
divergirem desse caso hipotético, mais nos surpreenderemos ao encontrar, não
obstante, o mesmo relacionamento emocional repetindo-se constantemente. Isto
ainda é viável quando se trata de uma mulher que, infeliz no casamento, parece
estar tomada de violenta paixão por um médico ainda não comprometido, se se
dispõe a obter divórcio para ser dele, ou se, no caso de haver obstáculos
sociais, não chegar a manifestar qualquer hesitação em iniciar uma secreta liaison
com ele. Essas coisas acontecem também fora da psicanálise. Nessas
circunstâncias, contudo, ficamos atônitos ao ouvir de mulheres casadas e de
jovens declarações que conferem validade a uma atitude muito peculiar para com
o problema terapêutico: elas, dizem, sempre souberam que podiam curar-se
somente através do amor; e, antes que começasse o tratamento, haviam esperado
que, através dessa relação, iriam, afinal, ter assegurado aquilo que até então
a vida lhes tinha negado; somente com essa esperança é que haviam enfrentado
tantos problemas relativos ao tratamento e vencido todas as dificuldades de
comunicar seus pensamentos - e nós por nosso lado, podemos acrescentar: e tão
facilmente tinham compreendido aquilo que, de outro modo é tão difícil de
acreditar. Tal tipo de confissão, porém, nos surpreende: põe por terra todos os
nossos cálculos. Será que deixamos fora de nossas contas o item mais
importante?
Com efeito, quanto maior é nossa experiência, menor
nossa capacidade de resistir contra e fazermos essa correção, embora a
necessidade de fazê-la envergonhe nossas pretensões científicas. Nas primeiras
vezes, talvez se possa pensar que o tratamento analítico esbarrou numa
perturbação devido a um evento casual - isto é, um evento não desejado e não
provocado pelo tratamento. Quando, porém, semelhante vinculação amorosa por
parte do paciente em relação ao médico se repete com regularidade em cada novo
caso, quando surge sempre novamente sob as condições mais desfavoráveis e onde
existem incongruências positivamente esquisitas, até mesmo quando senhoras de
idade madura se apaixonam por homens de barba grisalha, até mesmo onde,
conforme julgamos, não há nada, de espécie alguma, capaz de atrair - então devemos
abandonar a idéia de uma perturbação casual e reconhecer que estamos lidando
com um fenômeno intimamente ligado à natureza da própria doença.
Esse novo fato que, portanto, admitimos com
tanta relutância, conhecemos como transferência. Com isso queremos dizer
uma transferência de sentimentos à pessoa do médico, de vez que não acreditamos
poder a situação no tratamento justificar o desenvolvimento de tais
sentimentos. Pelo contrário, suspeitamos que toda a presteza com que esses
sentimentos se manifestam deriva de alguma outro lugar, que eles já estavam
preparados no paciente e, com a oportunidade ensejada pelo tratamento
analítico, são transferidos para a pessoa do médico. A transferência pode
aparecer como uma apaixonada exigência de amor, ou sob formas mais moderadas;
em lugar de um desejo de ser amada, um jovem pode deixar emergir um desejo, em
relação a um homem, idoso, de ser recebida como filha predileta; o desejo
libidinal pode estar atenuado num propósito de amizade inseparável, mas
idealmente não-sensual. Algumas mulheres conseguem sublimar a transferência e
moldá-la até que atinja essa espécie de viabilidade; outras hão de expressá-la
em sua forma crua, original e, no geral, impossível. Mas, no fundo, é sempre a
mesma, e jamais permite que haja equívoco quanto à sua origem na mesma fonte.
Antes de nos perguntarmos onde situar esse novo
fato, completarei minha descrição desse quadro. Que acontece com os pacientes
masculinos? Com eles poder-se-ia ao menos esperar uma fuga da problemática
interferência causada pela diferença de sexo e pela atração sexual. Entretanto,
nossa resposta deve ser exatamente a mesma que para o caso de mulheres. Existe
a mesma vinculação ao médico, a mesma supervalorização das qualidades deste, a
mesma absorção dos seus interesses, o mesmo ciúme de qualquer pessoa mais
chegada a ele na vida real. As formas sublimadas de transferência são mais
freqüentes entre um homem e outro e as exigências sexuais diretas são raras, na
medida em que é incomum o homossexualismo manifesto, se comparado com as demais
formas em que esses componentes instintuais são empregados. Com seus pacientes
masculinos, mais amiúde do que com mulheres, o médico encontra uma forma de
expressão da transferência que parece, à primeira vista, contradizer todas as nossas
descrições anteriores - uma transferência hostil ou negativa.Devo
começar por esclarecer que uma transferência está presente no paciente desde o
começo do tratamento e, por algum tempo, é o mais poderoso móvel de seu
progresso. Dela não vemos indício algum, e com ela não temos por que nos
preocupar enquanto age a favor do trabalho conjunto da análise. Se, porém, se
transforma em resistência, devemos voltar-lhe nossa atenção e reconhecemos que
ela modifica sua relação para com o tratamento sob duas condições diferentes e
contrárias: primeira, se na forma de inclinação amorosa ela se torna tão
intensa e revela sinais de sua origem em uma necessidade sexual de modo tão
claro, que inevitavelmente provoca uma oposição interna a ela mesma; e,
segundo, se consiste em impulsos hostis em vez de afetuosos. Os sentimentos
hostis revelam-se, via de regra, mais tarde do que os sentimentos afetuosos, e
se ocultam atrás destes; sua presença simultânea apresenta um bom quadro da
ambivalência emocional [pág. 426-8] dominante na maioria de nossas relações
íntimas com outras pessoas. Os sentimentos hostis indicam, tal qual os
afetuosos, haver um vínculo afetivo, da mesma forma como o desafio, tanto como
a obediência, significa dependência, embora tendo à sua frente um sinal ‘menos’
em lugar de ‘mais’. Não podemos ter dúvidas de que os sentimentos hostis para
com o médico merecem ser chamados de ‘transferência’, pois a situação, no
tratamento, com muita razão não proporciona qualquer fundamento para sua
origem; essa inevitável visão da transferência negativa nos assegura, portanto,
que não estivemos equivocados em nosso julgamento acerca da transferência
positiva ou afetuosa.
Onde surge a transferência, que dificuldades
nos causa, como as superamos e que vantagens finalmente dela auferimos - estas
são questões que devem ser abordadas detalhadamente em um manual técnico de
análise, e hoje me referirei a elas apenas levemente. Para nós é impossível
ceder às exigências do paciente, decorrentes da transferência; seria absurdo se
as rejeitássemos de modo indelicado e, o que seria pior, indignados com elas.
Superamos a transferência mostrando ao paciente que seus sentimentos não se
originam da situação atual e não se aplicam à pessoa do médico, mas sim que
eles estão repetindo algo que lhe aconteceu anteriormente. Desse modo,
obrigamo-lo a transformar a repetição em lembrança. Por esse meio, a
transferência que, amorosa ou hostil, parecia de qualquer modo constituir a
maior ameaça ao tratamento, torna-se seu melhor instrumento, com cujo auxílio
os mais secretos compartimentos da vida mental podem ser abertos.Mas gostaria
de dizer-lhes algumas palavras para aliviar-lhes a surpresa que tiveram com a
emergência desse inesperado fenômeno. Devemos não esquecer que a doença do
paciente, que aceitamos para analisar, não é algo acabado e tornado rígido, mas
algo que ainda está crescendo e evoluindo como um organismo vivo. O início do
tratamento não põe um fim a essa evolução; quando, porém, o tratamento logra o
domínio sobre o paciente, ocorre a totalidade da produção de sua doença
concentrar-se em um único ponto - sua relação com o médico. Assim, a
transferência pode ser comparada à camada do câmbio de uma árvore, entre a
madeira e a casca, a partir do qual deriva a nova formação de tecidos e o aumento
da circunferência do tronco. Quando a transferência atingiu esse grau de
importância, o trabalho com as recordações do paciente retira-se bem para o
fundo da cena. Em conseqüência, não é incorreto dizer que já não mais nos
ocupamos da doença anterior do paciente, e sim de uma neurose recentemente
criada e transformada, que assumiu o lugar da anterior. Temos acompanhado essa
nova edição do distúrbio antigo desde seu início, temos observado sua origem e
seu crescimento e estamos especialmente aptos a nos situar dentro dele, de vez
que, por sermos seu objeto, estamos colocados em seu próprio centro. Todos os
sintomas de paciente abandonam seu significado original e assumem um novo
sentido que se refere à transferência; ou apenas tais sintomas persistem, por
serem capazes de sofrer essa transformação. Mas dominar essa neurose nova,
artificial, equivale a eliminar a doença inicialmente trazida ao tratamento -
equivale a realizar nossa tarefa terapêutica. Uma pessoa que se tornou normal e
livre da ação de impulsos instintuais reprimidos em sua relação com o médico,
assim permanecerá em sua própria vida, após o médico haver-se retirado dela.
A transferência possui essa importância
extraordinária e, para o tratamento, importância positivamente central, na histeria,
na histeria de angústia e na neurose obsessiva, que são, por esse motivo,
apropriadamente classificadas em conjunto sob o nome de ‘neuroses de
transferência’. Ninguém que tenha ganho uma impressão global do fato da
transferência, a partir de um trabalho analítico, poderá ainda duvidar da
natureza dos impulsos suprimidos que encontram expressão nos sintomas dessas
neuroses, e tampouco exigirá provas mais convincentes do caráter libidinal dos
mesmos. Pode-se dizer que nossa convicção da importância dos sintomas como
satisfações substitutivas da libido teve sua confirmação final só após a
inclusão da transferência.
Existem, assim, todos os motivos para que
aperfeiçoemos nossa descrição dinâmica anterior do processo terapêutico, e para
que o façamos harmonizar-se com essa nova aquisição. A fim de que o paciente
enfrente a luta do conflito normal com as resistências que lhe mostramos na
análise [ver em [1] e [2]], ele tem necessidade de um poderoso estímulo que
influenciará sua decisão no sentido que desejamos, levando à recuperação. De
outro modo, poderia acontecer que ele venha a optar em favor da repetição do
resultado anterior, e permitiria que aquilo que fora trazido à consciência
deslizasse novamente para a repressão. Nesse ponto, o que é decisivo em sua
luta não é sua compreensão interna (insight) intelectual - que nem é
suficientemente forte, nem suficientemente livre para uma tal realização -, mas
simples e unicamente a sua relação com o médico. Na medida em que sua
transferência leva um sinal ‘mais’, ela reveste seu médico de autoridade e se
transforma em crença nas suas comunicações e explicações. Na ausência de tal
transferência, ou se a transferência fosse negativa, o paciente jamais daria
sequer ouvidos ao médico e a seus argumentos. Aqui sua crença está repetindo a
história do seu próprio desenvolvimento; é um derivado do amor e, no princípio,
não precisa de argumentos. Apenas mais tarde ele permite suficiente espaço para
submetê-los a exame, desde que os argumentos sejam apresentados por quem ele
ama. Sem esses apoios, os argumentos perdem sua validade; e na vida da maioria
das pessoas esses argumentos jamais funcionam. Portanto, em geral um homem só é
acessível, também a partir do aspecto intelectual, desde que seja capaz de uma
catexia libidinal de objetos; e temos boas razões para reconhecer e temer no
montante de seu narcisismo uma barreira contra a possibilidade de ser
influenciado até mesmo pela melhor técnica analítica.Naturalmente, deve-se
atribuir a todas pessoa normal uma capacidade de dirigir catexias libidinais às
pessoas. A tendência à transferência nos neuróticos, da qual falei, é apenas um
aumento extraordinário dessa característica universal. Seria mesmo muito
estranho se um traço humano tão difundido e tão importante nunca tivesse sido
percebido nem valorizado. E de fato ele o foi. Bernheim, que tinha um
olho infalível, baseou sua teoria dos fenômenos hipnóticos na tese segundo a
qual toda pessoa, de alguma forma, é ‘sugestionável’. Sua sugestionabilidade
não era senão a tendência à transferência, concebida um tanto estreitamente,
por não incluir a transferência negativa. Mas Bernheim jamais pôde dizer o que
era realmente a sugestão e como ela surgia. Para ele, tratava-se de um fato
fundamental, cuja origem não conseguia esclarecer. Ele não sabia que sua ‘suggestibilité‘
dependia da sexualidade, da atividade da libido. E devemos dar-nos conta de
que, em nossa técnica, abandonamos a hipnose apenas para redescobrir as
sugestões na forma de transferência.Aqui faço uma pausa, e deixarei que tomem a
palavra; pois vejo uma objeção agitando-se nos senhores com tanta veemência,
que os tornaria incapazes de ouvir se não a expressassem em palavras: ‘Ah!
então, afinal, o senhor o admite! O senhor trabalha com auxílio da sugestão,
igualzinho aos hipnotizadores! É o que estávamos pensando há muito tempo. Mas,
então, por que o caminho indireto das recordações do passado, a descoberta do
inconsciente, a interpretação e a tradução retrospectiva das distorções - esse
imenso dispêndio de trabalho, de tempo e de dinheiro - quando a única coisa
eficaz, no final das contas, é apenas a sugestão? Por que o senhor não faz
sugestões diretas contra os sintomas, como o fazem os outros - honestos
hipnotizadores? Além dos mais, se o senhor procura desculpar-se por seu longo
rodeio usando por motivo o fato de o senhor ter realizado diversas descobertas
psicológicas importantes que são ocultas pela sugestão direta - qual a certeza,
agora, dessas descobertas? Não são elas resultado de sugestão, também, de
sugestão não-intencional? Não é possível que o senhor esteja impondo ao
paciente o que o senhor quer e o que parece correto para o senhor, também nessa
área?’O que os senhores me estão apresentando é extraordinariamente
interessante e deve ser respondido. Contudo, não posso fazê-lo hoje; falta-nos
tempo. Portanto, até nosso próximo encontro. Responder-lhe-ei, os senhores
verão. Hoje, porém, devo finalizar o que comecei. Prometi fazê-los entender,
mediante o auxílio do fato da transferência, por que nossos esforços terapêuticos
não têm êxito nas neuroses narcísicas.Posso explicá-lo em poucas palavras, e os
senhores verão com que simplicidade o enigma pode ser solucionado e como tudo
se ajusta bem. A observação mostra que aqueles que sofrem de neuroses
narcísicas não têm capacidade para a transferência ou apenas possuem traços
insuficientes da mesma. Eles rejeitam o médico, não com hostilidade, mas com
indiferença. Por esse motivo, tampouco podem ser influenciados pelo médico; o
que este lhes diz, deixa-os frios, não os impressiona; conseqüentemente, o
mecanismo de cura que efetuamos com outras pessoas - a revivescência do
conflito patogênico e a superação da resistência devido à regressão - neles não
pode ser executado. Permanecem como são. Amiúde, já empreenderam tentativas de
recuperação, por sua própria conta, que conduziram a resultados patológicos
[ver em [1]]. Isto não podemos modificar de forma alguma.Com base em nossas
impressões clínicas, temos sustentado que essa catexias objetais dos pacientes
devem ter sido abandonadas, e que sua libido objetal deve ter-se transformado
em libido do ego [ver em [1] e [2]]. Através dessa característica nós os
distinguimos do primeiro grupo de neurótico (os que sofrem de histeria,
histeria de angústia e neurose obsessiva). Essa suspeita agora se confirma pelo
seu comportamento frente aos nossos esforços de tratá-los. Não manifestam
transferência, e, por essa razão, são inacessíveis aos nossos esforços e não
podem ser curados por nós.
CONFERÊNCIA XXVIII
TERAPIA ANALÍTICA
SENHORAS E SENHORES:
Os senhores sabem de que iremos falar, hoje. Os
senhores perguntaram-me por que não utilizamos a sugestão direta na terapia
psicanalítica, de vez que admitimos que nossa influência se baseia
essencialmente na transferência - isto é, na sugestão; e acrescentaram a dúvida
quanto a saber se, em vista dessa predominância da sugestão, ainda temos o
direito de declarar que nossas descobertas psicológicas são objetivas. Prometi
que lhes daria uma resposta detalhada.
A sugestão direta é a sugestão dirigida contra
a manifestação dos sintomas; é uma luta entre nossa autoridade e os motivos da
doença. Nessa atuação, os senhores não se preocupam com esses motivos;
simplesmente pedem ao paciente para que suprima a manifestação desses motivos
nos sintomas. Não faz qualquer diferença essencial se os senhores colocam, ou
não, o paciente em hipnose. Bernheim, uma vez mais, com sua perspicácia
característica, afirmava que a sugestão era o elemento essencial nos fenômenos
do hipnotismo, que a própria hipnose já era um resultado da sugestão, um estado
sugerido; e ele preferia praticar a sugestão em estado de vigília, que pode
conseguir os mesmos efeitos da sugestão sob hipnose.Que prefeririam os senhores
ouvir em primeiro lugar, no tocante a essa questão: o que nos diz a experiência
ou o que nos dizem as formulações teóricas?Comecemos pela primeira. Fui
discípulo de Bernheim, a quem visitei em Nancy, em 1889, e cujo livro sobre a
sugestão traduzi para o alemão.
Pratiquei tratamento hipnótico por muito anos,
a princípio usando a sugestão proibitória, depois, combinando-a com o método de
Breuer, de fazer perguntas ao paciente. Portanto, posso falar dos resultados da
terapia hipnótica ou sugestiva baseado em larga experiência. Se, de acordo com
as palavras do antigo aforisma médico, uma terapia ideal deve ser rápida,
confiável e não desagradável para o paciente (‘cito, tuto, jucunde‘), o
método de Bernheim preenchia pelo menos dois desses requisitos. Podia ser
efetuado de modo muito mais rápido - ou, melhor, infinitamente mais rápido - do
que o tratamento analítico, e não causava nem dificuldades, nem desagrado ao
paciente. Para o médico, ele se tornava, a longo prazo, monótono: em
cada caso, proceder da mesma maneira, com o mesmo ritual, proibindo aos mais
variegados sintomas existirem, sem ser capaz de aprender nada de seu sentido e
significado. Era um trabalho braçal, não uma atividade científica, e lembrava
magia, encantamento, truque de prestidigitador. Isto, entretanto, podia não
pesar contra o interesse do paciente. Mas faltava a terceira qualidade: o
procedimento não era confiável em nenhum aspecto. Podia ser usado com um
paciente, mas não em outro; conseguia muita coisa com um e bem pouco, com
outro; e jamais se sabia por quê. Pior do que essa incerteza do procedimento
era a falta de permanência dos seus êxitos. Se, passado pouco tempo,
recebiam-se notícias do paciente, a antiga doença havia retornado, ou seu lugar
tomado por nova doença. Podia-se hipnotizar de novo o paciente. Nos bastidores,
porém, estava a advertência, dada por pessoas experientes, contra o risco de
roubar ao paciente sua autoconfiança pela hipnose freqüentes vezes repetida, e
de, assim, torná-lo um viciado dessa espécie de terapia como se fosse um
narcótico. É preciso reconhecer que, vez e outra, as coisa corriam inteiramente
segundo o que se desejava: após algumas tentativas, o êxito era completo e
permanente. As condições que determinavam tal resultado favorável, contudo,
permaneciam desconhecidas. Em certa oportunidade, uma condição mórbida grave de
uma mulher, que eu havia completamente eliminado por meio de determinado
tratamento hipnótico, retornou sem modificações após a paciente, sem qualquer
ação de minha parte, haver ficado aborrecida comigo; depois de uma
reconciliação, removi novamente o problema e com muito mais segurança; ainda
assim, tornou a voltar a sintomatologia depois que se desaveio comigo uma
segunda vez. Em outra ocasião, uma paciente, a quem eu havia ajudado
repetidamente a sair de estados neuróticos pela hipnose, subitamente, durante o
tratamento de uma situação especialmente renitente, lançou seus braços em volta
de meu pescoço, abraçando-me. Passado isso, querendo ou não, dificilmente se
poderia evitar investigar a questão referente à natureza e à origem da autoridade
que se tinha no tratamento sugestivo.Estas as experiências. Elas nos mostram
que, aos renunciarmos à sugestão direta, não estamos abandonando algo de valor
insubstituível. Acrescentemos, agora, a esse aspecto algumas reflexões. A
prática da terapia hipnótica exige muito pouco, tanto do paciente como do
médico. Ajusta-se magnificamente bem à idéia que a maioria dos médicos tem a
respeito das neuroses. O médico diz ao paciente neurótico: ‘Não há problema com
você, é só uma questão de nervos; assim, posso acabar com esse problema em dois
ou três minutos, só com algumas palavras.’ Mas nossa visão das leis da energia
é insultada com a noção de que é possível mover um grande peso com uma
insignificante aplicação de força, agindo diretamente, sem o auxílio externo de
algum dispositivo apropriado. Na medida em que se possam comparar as situações,
a experiência mostra que tal façanha tampouco se realiza com êxito nos casos de
neurose. No entanto, estou consciente de que esse argumento não é impugnável.
Existe uma coisa chamada ‘ação-gatilho’.À luz do conhecimento que adquiririmos
da psicanálise, podemos descrever a diferença entre tratamento hipnótico e
tratamento psicanalítico da seguinte maneira. O tratamento hipnótico procura
encobrir e dissimular algo existente na vida mental; o tratamento analítico
visa a expor e eliminar algo. O primeiro age como cosmético, o segundo, como
cirurgia. O primeiro utiliza-se da sugestão, a fim de proibir os sintomas:
fortalece as repressões, mas afora isso, deixa inalterados todos os processos
que levaram à formação dos sintomas. O tratamento analítico faz seu impacto
mais retrospectivamente, em direção às raízes, onde estão os conflitos que
originaram os sintomas, e utiliza a sugestão a fim de modificar o resultado
desses conflitos. O tratamento hipnótico deixa o paciente inerte e imodificado,
e, por esse motivo também, igualmente incapaz de resistir a alguma nova
oportunidade de adoecer. Um tratamento analítico exige do médico, assim como do
paciente, a realização de um trabalho sério, que é empregado para desfazer as
resistências internas. Através da superação dessas resistências, a vida mental
do paciente é modificada permanentemente, é elevada a um alto nível de evolução
e fica protegida contra novas possibilidades de adoecer. Esse trabalho de
superar as resistências constitui a função essencial do tratamento analítico; o
paciente tem de realizá-lo e o médico lhe possibilita fazê-lo com a ajuda da
sugestão, operando em um sentido educativo. Por esse motivo, o
tratamento psicanalítico tem sido apropriadamente qualificado como um tipo de pós-educação.Espero
ter-lhes esclarecido, agora, de que maneira nosso método de empregar
terapeuticamente a sugestão difere do único método possível no tratamento
hipnótico. Os senhores, partindo do fato de que a sugestão pode ter sua origem
na transferência, compreenderão, ademais, a incerteza que nos acometia na
terapia hipnótica, ao passo que o tratamento analítico se mantém previsível
dentro de seus limites. Ao utilizar a hipnose, dependemos do estado da
capacidade de transferência do paciente, sem sermos capazes de influenciar tal
estado. A transferência de uma pessoa a ser hipnotizada pode ser negativa, ou,
mais freqüentemente, ambivalente, ou a pessoa pode haver-se protegido contra
sua transferência adotando atitudes especiais; a esse respeito nada sabemos. Na
psicanálise, agimos sobre a própria transferência, deslindamos o que nela se
opõe ao tratamento, ajustamos o instrumento com o qual desejamos causar nosso
impacto. Assim, se nos torna possível auferir uma vantagem inteiramente nova do
poder da sugestão; ela passa para nossas mãos. O paciente não sugere a si mesmo
o que quer que seja que lhe agrade: guiamos sua sugestão na medida em que ele,
de algum modo, é acessível à sua influência.Contudo, agora os senhores, não
importa se denominamos a força motriz de nossa análise, de transferência ou de
sugestão, me dirão que há o risco de que a influência sobre o nosso paciente
possa tornar duvidosa a certeza objetiva de nossas descobertas. O que é vantajoso
para nossa terapia, é prejudicial às nossas pesquisas. Esta é a objeção mais
freqüentemente feita contra a psicanálise, e deve-se admitir que, embora
carente de fundamento, não pode ser rejeitada como não-racional. Se essa
objeção fosse justificada, a psicanálise não seria nada mais que uma forma de
tratamento sugestivo especialmente bem disfarçada e particularmente eficiente;
e deveríamos atribuir pouco peso a tudo o que ela nos diz sobre aquilo que
influencia nossas vidas, sobre a dinâmica da mente ou sobre o inconsciente. É
nisso que acreditam os nossos adversários; sobretudo, pensam que temos metido
na cabeça dos pacientes tudo a respeito da importância das experiências sexuais
- ou até mesmo essas mesmas experiências - depois que essas idéias criaram
corpo em nossa imaginação depravada. Tais acusações são contraditas por meio de
um apelo à experiência, com maior facilidade do que com a ajuda da teoria. Todo
aquele que tiver efetuado psicanálises, terá sido capaz de convencer-se, vezes
sem conta, de que é impossível, dessa forma, fazer sugestões a um paciente.
Naturalmente o médico não tem dificuldade de torná-lo um adepto de uma
determinada teoria, e então fazê-lo compartilhar de alguns erros seus. Nesse
aspecto, o paciente se comporta como qualquer outra pessoa - como um aluno -
mas tal coisa atinge apenas a sua inteligência, não sua doença. Afinal, seus
conflitos só se resolverão com êxito e suas resistências serão superadas, se as
idéias orientadoras que lhe dermos se coadunarem com o que nele é real. Tudo o
que, nas conjecturas do médico, é impreciso, vai sendo eliminado no decorrer da
análise; é preciso ser retirado e substituído por algo mais correto. Através de
uma técnica cuidadosa, esforçamo-nos por evitar a ocorrência de sucessos
prematuros devido à sugestão; mas, ainda que estes ocorram, não há prejuízo,
pois não nos satisfazemos com um sucesso inicial. Só consideramos que uma
análise esteja no seu término quando todas as obscuridades do caso tenham sido
elucidadas, as lacunas da memória preenchidas, e descobertas as causas
precipitantes das repressões. Os êxitos que assomam de imediato,
consideramo-los mais obstáculos do que auxílio ao trabalho da análise; e pomos
um fim a esses êxitos, resolvendo constantemente a transferência, na qual eles
se baseiam. É essa última característica que constitui a diferença fundamental
entre terapia analítica e terapia meramente sugestiva, e que livra os
resultados da análise da suspeita de serem sucessos devido à sugestão. Em
qualquer outro tipo de tratamento sugestivo, a transferência é cuidadosamente
preservada e mantida intocada; na análise, a própria transferencial é sujeita a
tratamento, e é dissecada em todas as formas sob as quais aparece. Ao final de
um tratamento analítico, a transferência deve estar, ela mesma, totalmente
resolvida; e se o sucesso então é obtido ou continua, ele não repousa na
sugestão, mas sim no fato de, mediante a sugestão, haver-se conseguido superar
as resistências internas e de haver-se efetuado uma modificação interna no paciente.
A aceitação de sugestões, em determinados
pontos, é, sem dúvida, desestimulada pelo fato de que, durante o tratamento,
estamos lutando incessantemente contra resistências capazes de transformar-se
em transferências negativas (hostis). E não devemos deixar de assinalar que
grande número de descobertas na análise, que de outro modo poderiam ser
suspeitas de serem produtos da sugestão, confirmam-se, uma a uma, a partir de
outra fonte irrepreensível. Nossos fiadores nesse caso são aqueles que sofrem
de demência precoce e paranóia, os quais, naturalmente, estão acima de qualquer
suspeita de serem influenciados pela sugestão. As traduções de símbolos e de
fantasias, que esses pacientes nos apresentam, e que neles irromperam na
consciência, coincidem fielmente com os resultados de nossas investigações
acerca do inconsciente dos que apresentam neurose de transferência; e, assim,
confirmam a correção objetiva de nossas interpretações, sobre a qual tantas
vezes se lançam dúvidas. Penso que os senhores não se desorientarão se, nesses
pontos, confiarem na análise.
Passo a completar minha descrição do mecanismo
de cura, revestindo-o com as fórmulas da teoria da libido. Um neurótico é
incapaz de aproveitar a vida e de ser eficiente - incapaz de aproveitar a vida
porque sua libido não se dirige a nenhum objeto real, e incapaz de ser
eficiente porque é obrigado a empregar grande quantidade de sua valiosa
energia, a fim de manter sua libido sob repressão e a fim de repelir seus
assaltos. Ele se tornaria sadio se o conflito entre seu ego e sua libido
chegasse ao fim, e se o ego mesmo tivesse novamente sua libido à sua
disposição. A tarefa terapêutica consiste, pois, em liberar a libido de suas
ligações atuais, subtraídas ao ego, e em torná-la novamente utilizável para o
ego. Onde então se situa a libido do neurótico? É fácil encontrá-la: está
ligada aos sintomas, o que a ela proporciona a única satisfação substitutiva
possível, na época. Portanto, devemos nos tornar senhores dos sintomas e
solucioná-los - o que é exatamente a mesma coisa que o paciente exige de nós. A
fim de solucionar os sintomas, devemos remontar às suas origens, devemos
reconstituir o conflito do qual eles surgiram e, com o auxílio das forças
motrizes que, no passado, não estavam à disposição do paciente, devemos
conduzir o conflito rumo a um resultado diferente. Essa revisão do processo de
repressão só pode ser realizado em parte, em relação aos traços mnêmicos dos
processos que conduziram à repressão. A parte decisiva do trabalho se consegue
criando na relação do paciente com o médico - na transferência - novas edições
dos antigos conflitos; nestas, o paciente gostaria de se comportar do mesmo
modo como o fez no passado, ao passo que nós, concentrando todas as forças
mentais disponíveis [do paciente], compelimo-lo a chegar a uma nova decisão.
Assim, a transferência torna-se o campo de batalha no qual todas as forças
mutuamente em choque se enfrentam.
Toda a libido, bem como tudo quanto a ela se
opõe, faz-se convergir unicamente para a relação com o médico. Nesse processo,
inevitavelmente os sintomas são despojados da libido. Em lugar da doença
verdadeira do seu paciente, surge a doença transferencial artificialmente
formada; em lugar dos diversos objetos irreais da libido, aparece um único
objeto e, mais uma vez, um objeto imaginário, na pessoa do médico. Com auxílio
da sugestão do médico, porém, a nova luta em torno desse objeto é guindada ao
mais elevado nível psíquico: realiza-se na forma de um conflito mental normal.
Como é evitada uma nova repressão, termina a desunião entre ego e libido e a
unidade mental da pessoa restaura-se. Quando a libido fica novamente liberada
do seu objeto temporário, representado pela pessoa do médico, não pode retornar
aos seus objetos anteriores, mas resta à disposição do ego. As forças contra as
quais estivemos lutando durante nosso trabalho de terapia são, por um lado, a
aversão do ego a determinadas inclinações da libido - uma aversão expressa na
tendência à repressão - e, por outro lado, a tenacidade ou adesividade da libido
[ver em [1]], à qual desagrada abandonar objetos que ela uma vez catexizou.
Assim, nosso trabalho terapêutico incide em
duas fases. Na primeira, toda a libido é retirada dos sintomas e colocada na
transferência, sendo aí concentrada; na segunda, trava-se a luta por esse novo
objeto e a libido é liberada dele. A modificação decisiva para um resultado
favorável é a eliminação da repressão nesse conflito reconstituído, de modo que
a libido não possa ser retirada do ego, novamente, pela fuga para o inconsciente.
Isto se torna possível pela mudança do ego realizada sob a influência da
sugestão do médico. Mediante o trabalho da interpretação, que transforma o que
é inconsciente em consciente, o ego se amplia à custa desse inconsciente; por
meio do conhecimento, ele se torna conciliador para com a libido e disposto a
conceder-lhe alguma satisfação, e sua recusa às exigências da libido diminui
mediante a possibilidade de derivar uma parte da mesma através da sublimação.
No tratamento, quanto mais os eventos coincidirem com esta descrição ideal,
maior será o sucesso da terapia psicanalítica. Seus parâmetros são determinados
pela falta de mobilidade da libido, que pode recusar-se a abandonar seus
objetos, e pela rigidez do narcisismo, a qual não permitirá que a transferência
para os objetos aumente além de determinados limites. Talvez possamos tornar
ainda mais clara a dinâmica do processo de cura, se eu lhes disser que retemos
a totalidade da libido que foi retirada do domínio do ego, atraindo uma parte
dela sobre nós próprios, mediante a transferência.
Não seria fora de propósito manifestar a
advertência de que, partindo da distribuição da libido durante o tratamento e
em conseqüência desta, não podemos tirar nenhuma conclusão acerca do modo como
a libido se distribuía durante a doença. Suponhamos que conseguimos conduzir um
caso a um desfecho favorável, restabelecendo e, depois, solucionando uma
intensa transferência paterna para o médico. Não seria correto concluir que o
paciente passara previamente por uma ligação semelhante de sua libido em
relação ao seu pai. Sua transferência paterna foi simplesmente o campo de
batalha no qual adquirimos o controle de sua libido; a libido do paciente se
dirigia para essa transferência a partir de outras posições. Um campo de batalha
não precisa necessariamente coincidir com uma das fortalezas-chave do inimigo.
A defesa de uma capital inimiga não precisa situar-se justamente em frente de
suas portas. Somente depois de novamente resolvida a transferência, podemos
reconstruir em nosso pensamento a distribuição de libido que prevalecera
durante a doença.
Do ponto de vista da teoria da libido, também,
podemos dizer uma última palavra sobre os sonhos. Os sonhos de um neurótico,
bem como suas parapraxias e suas associações livres referentes aos mesmos, nos
auxiliam a descobrir o sentido de seus sintomas e a revelar a maneira como sua
libido se distribui. Eles não mostram, na forma de uma realização de desejo,
quais impulsos plenos de desejos foram sujeitos à repressão e a quais objetos a
libido retirada do ego foi ligada. Por esse motivo, a interpretação dos sonhos
desempenha um papel importante em um tratamento psicanalítico, e, em alguns
casos, ela é, por longos períodos, o mais importante instrumento de nosso
trabalho. Já sabemos [ver em [1]] que o estado de sono, por si mesmo, leva a um
determinado afrouxamento das repressões. Um impulso reprimido, devido a essa
redução da pressão que pesa sobre ela, torna-se capaz de expressar-se muito
mais claramente num sonho, do que lhe é permitido expressar-se por um sintoma,
durante o dia. Portanto, o estudo dos sonhos torna-se o meio mais conveniente
de se obter acesso ao conhecimento do inconsciente reprimido, do qual faz parte
a libido retirada do ego.
Os sonhos dos neuróticos, contudo, não diferem,
em nenhum aspecto importante, dos sonhos de pessoas normais; é possível, de
fato, que estes não possam absolutamente ser diferenciados daqueles. Seria
absurdo fazer uma descrição dos sonhos de neuróticos que não pudesse também
aplicar-se aos sonhos de pessoas normais. Logo, podemos dizer que a diferença
entre neurose e saúde vigora apenas durante o dia; não se estende à vida
onírica. Somos obrigados a extrapolar para pessoas sadias diversas hipóteses
relativas aos neuróticos, em conseqüência do elo ente os sonhos destes e seus
sintomas. Não podemos negar que também as pessoas sadias possuem, em sua vida
mental, aquilo que, por si só, possibilita a formação tanto dos sonhos como dos
sintomas; e devemos concluir que também eles efetuaram repressões, que dispendem
determinada quantidade de energia a fim de mantê-las, que seu sistema
inconsciente oculta impulsos reprimidos ainda catexizados com energia, e que uma
parte de sua libido é retirada e deixa de estar à disposição do ego. Assim,
também uma pessoa sadia é virtualmente um neurótico; mas os sonhos parecem ser
os únicos sintomas que ela é capaz de formar. É verdade que, se alguém submete
a um exame mais atento sua vida desperta, descobre algo que contradiz essa
aparência - ou seja, que essa vida pretensamente sadia está marcada aqui e ali
por grande número de sintomas banais e destituídos de importância prática.
A distinção entre saúde nervosa e neurose
reduz-se, por conseguinte, a uma questão prática e é decidida pelo resultado,
isto é, a pessoa ter ou não ter um nível suficiente de capacidade para
aproveitar a vida e ser eficiente. Tal distinção provavelmente se atribui às
dimensões relativas das quantidades de energia que permanece livre e que é
ligada pela repressão; é de natureza quantitativa, não qualitativa. Não preciso
dizer-lhes que essa descoberta é a justificação teórica de nossa convicção de
que as neuroses são, em princípio, curáveis, apesar de se basearem na
disposição constitucional.A identidade dos sonhos de pessoas sadias e
neuróticas capacita-nos a inferir, pois, muita coisa referente à definição das
características de saúde. Mas, com relação aos sonhos propriamente ditos,
podemos fazer uma inferência adicional: não devemos desvinculá-los de sua
relação com os sintomas neuróticos, não devemos supor que sua natureza
essencial se esgota com a fórmula que os descreve como uma tradução de
pensamentos em uma forma arcaica de expressão [ver em [1]]; porém, devemos
supor que eles nos mostram distribuições da libido e catexias objetais que
realmente estão presentes.Em breve, chegaremos ao fim. Talvez os senhores
estejam desapontados porque, no tópico referente ao método psicanalítico de
tratamento, apenas lhes falei acerca da teoria e não a respeito das condições
que determinam se um tratamento deve ser empreendido, ou dos resultados que ele
produz. Não irei discorrer sobre nenhum dos dois: sobre o primeiro, porque não
é minha intenção dar-lhes instruções práticas acerca de como efetuar uma
psicanálise, e sobre o segundo, porque diversas razões me dissuadem de fazê-lo.
No início de nossas palestras [desse ano, ver em [1]], salientei o fato de que,
sob condições favoráveis; obtemos êxitos que nada ficam a dever aos mais
extraordinários êxitos da medicina interna; e, agora, posso acrescentar algo
mais: que eles não poderiam ter sido alcançados com nenhum outro método. Se
lhes fosse dizer mais do que isto, eu seria suspeito de tentar salientar as
altas vozes dos detratores por meio de autopromoção. Repetidamente tem sido
feita contra a psicanálise, por nossos ‘colegas’ médicos - até mesmo em
congressos públicos -, a ameaça de publicar uma coleção de fracassos e
resultados prejudiciais da análise e de abrir os olhos do público sofredor para
a falta de valor desse método de tratamento. Afora o caráter maldoso e difamante
de tal medida, ela, porém, não seria destinada a possibilitar de todas as
formas um julgamento correto sobre a eficácia terapêutica da análise. A terapia
analítica, conforme sabem, está em sua adolescência; levou longo tempo para
estabelecer sua técnica, e isto só pode ser feito no decorrer do trabalho e sob
a influência de crescente experiência. Em conseqüência das dificuldades de
ministrar ensino, o médico que é um iniciante na psicanálise apóia-se, em
escola maior que outros especialistas, em sua própria capacidade de ulterior
desenvolvimento, e os resultados desses primeiros anos jamais tornarão possível
julgar a eficácia da terapia analítica.Muitas tentativas de tratamento
malograram durante o período inicial da análise, porque foram empreendidas em
casos completamente inadequados ao método, casos que, hoje em dia, excluiríamos
com base em nossa atual visão das indicações para tratamento. Ademais, a essas
indicações, contudo, só se podia chegar pela experimentação. Naquela época, não
sabíamos a priori que a paranóia e a demência precoce, em suas formas
fortemente marcadas, eram inacessíveis, e tínhamos o direito de ensaiar o
método em todas as espécies de distúrbios. A maior parte dos insucessos
daqueles primeiros anos, porém, foi devida não à falha do médico ou à escolha
inadequada de pacientes, mas sim a condições externas desfavoráveis. Aqui temos
tratado apenas das resistências internas, as do paciente, que são inevitáveis e
podem ser superadas. As resistências externas emergentes das circunstâncias do
paciente, de seu ambiente, são de pouco interesse teórico, mas de maior
importância prática. O tratamento psicanalítico pode ser comparado a uma
operação cirúrgica e exigir, de modo similar, que seja efetuado sob condições
que serão as mais favoráveis para seu êxito. Os senhores conhecem as medidas de
precaução adotadas por um cirurgião: sala adequada, boa iluminação, auxiliares,
exclusão dos parentes do paciente, e assim por diante. Os senhores bem podem
imaginar, agora, quantas dessas operações teriam êxito se fossem realizadas na
presença de todos os membros da família do paciente, a enfiarem o nariz no
campo operatório e a clamarem em altos brados a cada incisão. Nos tratamentos
psicanalíticos, a intervenção dos parentes é perigo real e um perigo que não se
sabe como enfrentar. Está-se precavido contra as resistências internas do
paciente, que se sabe inevitáveis; mas como defender-se dessas resistências
externas? Nenhum tipo de explicação produz qualquer impressão nos parentes do
paciente; eles não podem ser induzidos a manter-se à distância de todo o
assunto, e não se pode fazer causa comum com eles, devido ao risco de perder a
confiança do paciente, o qual - com toda razão, naturalmente - espera que a
pessoa em quem depositou toda a sua confiança, fique do seu lado. Ninguém que
tenha alguma experiência das discórdias que tão seguidamente dividem uma
família, haverá de se surpreender, sendo um analista, ao constatar que os
parentes mais chegados ao paciente às vezes revelam menos interesse em sua
recuperação do que na permanência da doença. Quando, como tantas vezes
acontece, a neurose tem relação com os conflitos entre membros de uma família,
os membros sadios não hesitam muito tempo em escolher entre seus próprios
interesses e a recuperação daquele que está doente. Não será de admirar,
realmente, se um marido encara com desaprovação um tratamento no qual, conforme
ele acertadamente suspeita, será trazido à luz o catálogo interno de suas
mazelas. E nem haveremos de nos admirar em face disso; mas, nesse caso, não
podemos acusar-nos, se nosso esforços não obtêm êxito e o tratamento é
interrompido prematuramente, porque à resistência do marido se adiciona a de
sua esposa doente. Com efeito, havíamos, então, empreendido algo que, nas
circunstâncias vigentes, era irrealizável.
Em vez de relatar muitos casos, contar-lhe-ei a
história de apenas um deles, no qual, por motivos de sigilo médico, fui
condenado a desempenhar um papel sofrido. Empreendi o tratamento analítico -
isto já faz muitos anos - de uma jovem que por algum tempo tinha, devido à
ansiedade, sido incapaz de sair à rua ou de ficar só em casa. Aos poucos, a
paciente foi revelando que sua imaginação fora dominada por observações casuais
do relacionamento amoroso entre sua mãe e um endinheirado amigo da família.
Ela, porém, era tão desajeitada - ou tão sutil -, que deu à sua mãe uma pista
daquilo de que se estava falando nas sessões analíticas. Ela o fez, modificando
sua conduta para com a mãe, insistindo em ser protegida, unicamente por sua mãe,
de sua ansiedade de ficar só, e trancando a porta de saída à sua mãe, se esta
tentasse sair de casa. Sua mãe também tinha sido muito neurótica, no passado,
mas se havia curado, anos antes, em uma estação de águas. Para ser mais
preciso, ela havia travado conhecimento com o homem com o qual foi capaz de
iniciar uma relação que, de todos os modos, lhe agradava. As violentas
exigências da moça surpreenderam-na, e ela rapidamente compreendeu o
significado da ansiedade de sua filha: a jovem havia adoecido a fim de tornar
sua mãe prisioneira e roubar-lhe a liberdade de movimentos necessários às
relações com seu amante. A mãe prontamente tomou a decisão e pôs fim ao
detestável tratamento. A jovem foi levada a um sanatório para doenças nervosas
e, por muitos anos, era mostrada como ‘uma pobre vítima da psicanálise’. Todo
esse tempo, também, fui perseguido pela calúnia de responsabilidade pelo
infeliz fim do tratamento. Mantive-me em silêncio, pois julguei-me preso à
obrigação do sigilo médico. Muito tempo depois, soube, por um de meus colegas
que tinha visitado o sanatório e ali vira a jovem agorafóbica, que a liaison
entre sua mãe e o próprio amigo da família era um caso público e notório na
cidade, e que, nisto, provavelmente, era conivente o marido e pai. Assim, a
esse ‘segredo’ é que o tratamento tinha sido sacrificado.Nos anos anteriores à
guerra, quando pessoas chegadas de muitos países estrangeiros me fizeram
independente da simpatia ou antipatia de minha própria cidade, segui a regra de
não tomar um paciente em tratamento a menos que ele fosse sui juris,
não-dependente de quem quer que fosse, nas relações essenciais de sua vida. No
entanto, isto não é possível para todos os analistas. Talvez os senhores possam
concluir, de minha advertência contra os parentes, que os pacientes destinados
à psicanálise devam ser segregados de suas famílias, e que essa espécie de
tratamento deveria, por conseguinte, restringir-se a pessoas internadas em
hospitais para doenças nervosas. Nisto eu não poderia acompanhá-los, porém. É
muito mais vantajoso para os pacientes (na medida em que não estejam em uma
fase de grave exaustão) permanecerem, durante o tratamento, naquelas condições
em que têm de lutar contra as tarefas que os desafiam. Os parentes dos
pacientes, contudo, não devem anular essa vantagem, como sua conduta, e não
deveriam oferecer qualquer oposição hostil aos esforços do médico. Entretanto,
como se propõem os senhores influenciar, nesse sentido, fatores como estes que
nos são inacessíveis? E os senhores compreenderão, naturalmente, o quanto as
perspectivas de um tratamento são determinadas pelo milieu social do
paciente e pelo nível cultural de sua família.
Esse aspecto apresenta uma sombria perspectiva
para a eficiência da psicanálise como forma de terapia, não é mesmo? Ainda que
sejamos capazes de explicar a grande maioria de nossos fracassos, atribuindo-os
à interferência de fatores externos. Amigos da análise têm-nos aconselhado a
arrostar a ameaça de publicação de nossos insucessos com estatísticas de nossos
êxitos, alinhadas por nós próprios. Não concordo com isto. Assinalei que as
estatísticas são carentes de valor se os itens nelas agrupados são por demais
heterogêneos; e os casos de doença neurótica que tomamos em tratamento eram, de
fato, impossíveis de comparar, em uma grande variedade de aspectos. Além do
mais, o período de tempo que podia ser coberto era excessivamente curto para
possibilitar uma avaliação da durabilidade das curas. E era totalmente
impossível relatar muitos desses casos: referiam-se a pessoas que haviam
mantido em segredo tanto sua doença, como seu tratamento, e sua recuperação
igualmente devia ser mantida em segredo. O motivo mais forte para silenciar
está, contudo, na percepção de que, em matéria de terapia, as pessoas se
conduzem muito irracionalmente, de forma que não se tem a perspectiva de
realizar, junto delas, nada por meios racionais. Uma inovação terapêutica, ou é
recebida com entusiasmo delirante - como, por exemplo, quando Koch apresentou
ao público sua primeira tuberculina contra a tuberculose -, ou é tratada com
desconfiança profunda - como a vacina de Jenner, que foi realmente uma benção e
ainda hoje encontra opositores irreconciliáveis. Houve, evidentemente, um
preconceito contra a psicanálise. Se alguém tivesse curado um caso grave,
podia-se ouvir as pessoas dizerem: ‘Isso não prova nada. Ele podia ter-se
recuperado por si mesmo, nesse período.’ E quando uma paciente, que já havia
passado por quatro ciclos de depressão e mania, veio a ser tratada por mim
durante um intervalo subseqüente a um ataque de melancolia, entrando, três
semanas depois, numa fase de mania, todos os membros de sua família - e também
uma alta autoridade médica que foi solicitada para consulta - se convenceram de
que o novo ataque só podia ser o resultado de minha tentativa de análise. Nada
pode ser feito contra os preconceitos. Isto os senhores podem constatar
novamente, hoje em dia, nos preconceitos que cada grupo de nações em guerra
desenvolveu contra o outro. A coisa mais sensata a fazer é esperar e deixar
tais preconceitos aos efeitos da erosão do tempo. Um dia, as mesmas pessoas
começam a pensar acerca das mesmas coisas de uma maneira bem diferente de
antes; e a razão por que não pensavam dessa maneira, anteriormente, continua
sendo profundo mistério.
É possível que o preconceito contra o
tratamento analítico já esteja diminuindo. A constante difusão dos ensinamentos
analíticos, o crescente número de médicos exercendo a análise em diversos
países, parecem corroborar esse fato. Quando eu era um jovem médico,
encontrei-me em meio a uma tormenta de indignação semelhante, por parte dos
médicos, contra o tratamento pela sugestão hipnótica, que agora é apoiada, em
comparação com a análise, por pessoas de opiniões moderadas. O hipnotismo, no
entanto, não cumpriu sua promessa inicial como agente terapêutico. Nós,
psicanalistas, podemos declarar-nos seus legítimos herdeiros, e não esquecemos
quanto encorajamento e esclarecimento teórico lhe devemos. Os efeitos nocivos
atribuídos à psicanálise restringem-se essencialmente a passageiras
manifestações de um conflito exacerbado, se a análise é efetuada de modo
inábil, ou se é interrompida pelo meio. Os senhores ouviram uma exposição
daquilo que realizamos com nossos pacientes, e podem formar seu próprio juízo
quanto a saber se nossos esforços são destinados a produzir qualquer prejuízo
duradouro. O mau uso da análise é possível, em diversos sentidos; em especial,
a transferência é um instrumento perigoso nas mãos de um médico inescrupuloso.
Não há instrumento ou método médico que esteja garantido contra mau uso; se um
bisturi não corta, tampouco pode ser usado para curar.Terminei, senhoras e
senhores. É mais do que uma fórmula convencional das palavras o fato de eu
admitir que eu próprio estou profundamente consciente dos vários defeitos
existentes nas conferências que lhes proferi. Lamento, sobretudo, haver-lhes
tantas vezes prometido retornar posteriormente a tópicos que apenas mencionara
e, depois, não ter encontrado oportunidade de cumprir minha promessa. Assumi o
compromisso de dar-lhes uma descrição do assunto que ainda está incompleto e em
processo de evolução; e meu resumo condensado veio a mostrar-se incompleto. Em
alguns pontos, apresentei o material sobre o qual tirar uma conclusão, e depois
eu mesmo não cheguei à conclusão. Não poderia, contudo, pretender torná-los
peritos; apenas procurei dar-lhes estímulo e esclarecimento.