Freud - Obras Completas IV (parte 2)

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Capítulo II - O MÉTODO DE INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS: ANÁLISE DE UM SONHO MODELO

O título que escolhi para minha obra deixa claro quais das abordagens tradicionais do problema dos sonhos estou inclinado a seguir. O objetivo que estabeleci perante mim mesmo é demonstrar que os sonhos são passíveis de ser interpretados; e quaisquer contribuições que eu possa fazer para a solução dos problemas tratados no último capítulo só surgirão como subprodutos no decorrer da execução de minha tarefa propriamente dita. Meu pressuposto de que os sonhos podem ser interpretados coloca-me, de imediato, em oposição à teoria dominante sobre os sonhos e, de fato, a todas as teorias dos sonhos, com a única exceção da de Scherner [em [1]]; pois “interpretar” um sonho implica atribuir a ele um “sentido” - isto é, substituí-lo por algo que se ajuste à cadeia de nossos atos mentais como um elo dotado de validade e importância iguais ao restante. Como vimos, as teorias científicas dos sonhos não dão margem a nenhum problema com a interpretação dos mesmos, visto que, segundo o seu ponto de vista dessas teorias, o sonho não é absolutamente um ato mental, mas um processo somático que assinala sua ocorrência por indicações registradas no aparelho mental. A opinião leiga tem assumido uma atitude diferente ao longo dos tempos. Tem exercido seu direito inalienável de se comportar de forma incoerente; e, embora admitindo que os sonhos são ininteligíveis e absurdos, não consegue convencer-se a declarar que eles não têm importância alguma. Levada por algum sentimento obscuro, parece assumir que, a despeito de tudo, todo sonho tem um significado, embora oculto, que os sonhos se destinam a ocupar o lugar de algum outro processo de pensamento, e que para chegar a esse sentido oculto temos apenas de desfazer corretamente a substituição.
Assim, o mundo leigo se interessa, desde os tempos mais remotos, pela “interpretação” dos sonhos e, em suas tentativas de fazê-la, tem-se servido de dois métodos essencialmente diferentes.
O primeiro desses métodos considera o conteúdo do sonho como um todo e procura substituí-lo por outro conteúdo que seja inteligível e, em certos aspectos, análogo ao original. Essa é a interpretação “simbólica” dos sonhos, e cai inevitavelmente por terra quando se defronta com sonhos que são não apenas inteligíveis, mas também confusos. Um exemplo desse método pode ser observado na explicação do sonho do Faraó, proposta por José na Bíblia. As sete vacas gordas seguidas pelas sete vacas magras que devoraram as gordas - tudo isso era o substituto simbólico para uma profecia de sete anos de fome nas terras do Egito, que deveriam consumir tudo o que fosse produzido nos sete anos de abundância. A maioria dos sonhos artificiais criados pelos escritores de ficção destinam-se a esse tipo de interpretação simbólica; reproduzem os pensamentos do escritor sob um disfarce que se considera como estando em harmonia com as características reconhecidas dos sonhos. A idéia de os sonhos se relacionarem principalmente com o futuro e poderem predizê-lo - um vestígio da antiga importância profética dos sonhos - fornece uma razão para se transpor o sentido do sonho, quando se chega a tal sentido por meio da interpretação simbólica, para o tempo futuro. É obviamente impossível dar instruções sobre o método de se chegar a uma interpretação simbólica. O êxito deve ser uma questão de se esbarrar numa idéia inteligente, uma questão de intuição direta, e por esse motivo foi possível à interpretação dos sonhos por meio do simbolismo ser exaltada numa atividade artística que depende da posse de dons peculiares.
O segundo dos dois métodos populares de interpretação dos sonhos está longe de fazer tais afirmações. Poderia ser descrito como o método da “decifração”, pois trata os sonhos como uma espécie de criptografia em que cada signo pode ser traduzido por outro signo de significado conhecido, de acordo com o código fixo. Suponhamos, por exemplo, que eu tenha sonhado com uma carta e também com um funeral. Se consultar um “livro dos sonhos”, verificarei que “carta” deve traduzir-se por “transtorno”, e “funeral”, por “noivado”. Resta-me então vincular as palavras-chave que assim decifrei e, mais uma vez, transpor o resultado para o tempo futuro. Uma modificação interessante do processo de decifração, que até certo ponto corrige o caráter puramente mecânico de seu método de transposição, encontra-se no livro escrito sobre a interpretação dos sonhos [Oneirocritica] de Artemidoro de Daldis. Esse método leva em conta não apenas o conteúdo do sonho, mas também o caráter e situação do sonhador, de modo que um mesmo elemento onírico terá, para um homem rico, um homem casado ou, digamos, um orador, um sentido diferente do que tem para um homem pobre, um homem solteiro ou um negociante.  A essência do método de decifração reside, contudo, no fato de o trabalho de interpretação não ser aplicado ao sonho como um todo, mas a cada parcela independente do conteúdo do sonho, como se o sonho fosse um conglomerado geológico em que cada fragmento de rocha exigisse uma análise isolada. Não há dúvida de que a invenção do método interpretativo de decifração foi sugerida por sonhos desconexos e confusos.
Não se pode imaginar nem por um momento que qualquer dos dois métodos populares de interpretação dos sonhos possa ser empregado numa abordagem científica do assunto. O método simbólico é restrito em sua aplicação e impossível de formular em linhas gerais. No caso do método de decifração, tudo depende da confiabilidade do “código” - o livro dos sonhos -, e quanto a isso não temos nenhuma garantia. Assim, poderíamos sentir-nos tentados a concordar com os filósofos e psiquiatras e, à semelhança deles, descartar o problema da interpretação dos sonhos como uma tarefa puramente fantasiosa.
Mas descobri que não é bem assim. Fui levado a compreender que temos aqui, mais uma vez, um daqueles casos nada incomuns em que uma antiga crença popular, ciosamente guardada, parece estar mais próxima da verdade que o julgamento da ciência vigente em nossos dias. Devo afirmar que os sonhos realmente têm um sentido e que é possível ter-se um método científico para interpretá-los.
Meu conhecimento desse método foi obtido da seguinte maneira. Tenho-me empenhado há muitos anos (com um objetivo terapêutico em vista) em deslindar certas estruturas psicopatológicas - fobias histéricas, idéias obsessivas, e assim por diante. Com efeito, tenho-o feito desde que soube, por meio de uma importante comunicação de Josef Breuer, que, no tocante a essas estruturas (que são consideradas como sintomas patológicos), sua decomposição coincide com sua solução. (Cf. Breuer e Freud, 1895.) Quando esse tipo de representação patológica pode ser rastreado até os elementos da vida mental do paciente dos quais se originou, a representação ao mesmo tempo se desarticula, e o paciente fica livre dela. Considerando a impotência de nossos outros esforços terapêuticos e a natureza enigmática desses distúrbios, senti-me tentado a seguir a trilha apontada por Breuer, apesar de todas as dificuldades, até que se chegasse a uma explicação completa. Em outra ocasião, terei de discorrer longamente sobre a forma que esse procedimento acabou por assumir e sobre os resultados de meus esforços. Foi no decorrer desses estudos psicanalíticos que me deparei com a interpretação dos sonhos. Meus pacientes assumiam o compromisso de me comunicar todas as idéias ou pensamentos que lhes ocorressem em relação a um assunto específico; entre outras coisas, narravam-me seus sonhos, e assim me ensinaram que o sonho pode ser inserido na cadeia psíquica a ser retrospectivamente rastreada na memória a partir de uma idéia patológica. Faltava então apenas um pequeno passo para se tratar o próprio sonho como um sintoma e aplicar aos sonhos o método de interpretação que fora elaborado para os sintomas. Devemos ter em mira a promoção de duas mudanças nele: um aumento da atenção que ele dispensa a suas próprias percepções psíquicas e a eliminação da crítica pela qual ele normalmente filtra os pensamentos que lhe ocorrem. Para que ele possa concentrar sua atenção na observação de si mesmo, é conveniente que ele se coloque numa atitude repousante e feche os olhos. É necessário insistir explicitamente para que renuncie a qualquer crítica aos pensamentos que perceber. Dizemos-lhe, portanto, que o êxito da psicanálise depende de ele notar e relatar o que quer que lhe venha à cabeça, e de não cair no erro, por exemplo, de suprimir uma idéia por parecer-lhe sem importância ou irrelevante, ou por lhe parecer destituída de sentido. Ele deve adotar uma atitude inteiramente imparcial perante o que lhe ocorrer, pois é precisamente sua atitude crítica que é responsável por ele não conseguir, no curso habitual das coisas, chegar ao desejado deslindamento de seu sonho, ou de sua idéia obsessiva, ou seja lá o que for.
Tenho observado, em meu trabalho psicanalítico, que todo o estado de espírito de um homem que esteja refletindo é inteiramente diferente do de um homem que esteja observando seus próprios processos psíquicos. Na reflexão, há em funcionamento uma atividade psíquica a mais do que na mais atenta auto-observação, e isso é demonstrado, entre outras coisas, pelos olhares tensos e o cenho franzido da pessoa que esteja acompanhando suas reflexões, em contraste com a expressão repousada de um auto-observador. Em ambos os casos, a atenção deve ser concentrada, mas o homem que está refletindo exerce também sua faculdade crítica; isso o leva a rejeitar algumas das idéias que lhe ocorrem após percebê-las, a interromper outras abruptamente, sem seguir os fluxos de pensamento que elas lhe desvendariam, e a se comportar de tal forma em relação a mais outras que elas nunca chegam a se tornar conscientes e, por conseguinte, são suprimidas antes de serem percebidas. O auto-observador, por outro lado, só precisa dar-se o trabalho de suprimir sua faculdade crítica. Se tiver êxito nisso, virão a sua consciência inúmeras idéias que, de outro modo, ele jamais conseguiria captar. O material inédito assim obtido para sua autopercepção possibilita interpretar tanto suas idéias patológicas como suas estruturas oníricas. O que está em questão, evidentemente, é o estabelecimento de um estado psíquico que, em sua distribuição da energia psíquica (isto é, da atenção móvel), tem alguma analogia com o estado que precede o adormecimento - e, sem dúvida, também com a hipnose. Ao adormecermos, surgem “representações involuntárias”, graças ao relaxamento de certa atividade deliberada (e, sem dúvida também crítica) a que permitimos influenciar o curso de nossas representações enquanto estamos acordados. (Costumamos atribuir esse relaxamento à “fadiga”.) À medida que emergem, as representações involuntárias transformam-se em imagens visuais e acústicas. (Cf. as observações de Schleiermacher e outros, citados em [1] [e [2]].) No estado utilizado para a análise dos sonhos e das idéias patológicas, o paciente, de forma intencional e deliberada, abandona essa atividade e emprega a energia psíquica assim poupada (ou parte dela) para acompanhar com atenção os pensamentos involuntários que então emergem, e que - e nisso a situação difere da situação do adormecimento - retêm o caráter de representações. Dessa forma, as representações “involuntárias” são transformadas em “voluntárias”.
A adoção da atitude de espírito necessária perante idéias que parecem surgir “por livre e espontânea vontade”, bem como o abandono da função crítica que normalmente atua contra elas parecem ser difíceis de conseguir para algumas pessoas. Os “pensamentos involuntários” estão aptos a liberar uma resistência muito violenta, que procura impedir seu surgimento. A confiar no grande poeta e filósofo Friedrich Schiller, contudo, a criação poética deve exigir uma atitude exatamente semelhante. Num trecho de sua correspondência com Körner - temos que agradecer a Otto Rank por tê-la descoberto - Schiller (escrevendo em 1º de dezembro de 1788) responde à queixa que lhe faz o amigo a respeito da produtividade insuficiente: “O fundamento de sua queixa parece-me residir na restrição imposta por sua razão a sua imaginação. Tornarei minha idéia mais concreta por meio de um símile. Parece ruim e prejudicial para o trabalho criativo da mente que a Razão proceda a um exame muito rigoroso das idéias à medida que elas vão brotando - na própria entrada, por assim dizer. Encarado isoladamente, um pensamento pode parecer muito trivial ou muito absurdo, mas pode tornar-se importante em função de outro pensamento que suceda a ele, e, em conjunto com outros pensamentos que talvez pareçam igualmente absurdos, poderá vir a formar um elo muito eficaz. A Razão não pode formar qualquer opinião sobre tudo isso, a menos que retenha o pensamento por tempo suficiente para examiná-lo em conjunto com os outros. Por outro lado, onde existe uma mente criativa, a Razão - ao que me parece - relaxa sua vigilância sobre os portais, e as idéias entram precipitadamente, e só então ela as inspeciona e examina como um grupo. - Vocês, críticos, ou como quer que se denominem, ficam envergonhados ou assustados com as mentes verdadeiramente criativas, e cuja duração maior ou menor distingue o artista pensante do sonhador. Vocês se queixam de sua improdutividade porque rejeitam cedo demais e discriminam com excessivo rigor.”
Não obstante, o que Schiller descreve como o relaxamento da vigilância nos portais da Razão, a adoção de uma atitude de auto-observação acrítica, de modo algum é difícil. A maioria de meus pacientes a consegue após as primeiras instruções. Eu mesmo o faço de forma bem completa, ajudado pela anotação de minhas idéias à medida que elas me ocorrem. O volume de energia psíquica em que é possível reduzir a atividade crítica e aumentar a intensidade de auto-observação varia de modo considerável, conforme o assunto em que se esteja tentando fixar a atenção.
Nosso primeiro passo no emprego desse método nos ensina que o que devemos tomar como objeto de nossa atenção não é o sonho como um todo, mas partes separadas de seu conteúdo. Quando digo ao paciente ainda novato: “Que é que lhe ocorre em relação a esse sonho?”, seu horizonte mental costuma transformar-se num vazio. No entanto, se colocar diante dele o sonho fracionado, ele me dará uma série de associações para cada fração, que poderiam ser descritas como os “pensamentos de fundo” dessa parte específica do sonho. Assim, o método de interpretação dos sonhos que pratico já difere, nesse primeiro aspecto importante, do popular, histórico e legendário método de interpretação por meio do simbolismo, aproximando-se do segundo método, ou método de “decifração”. Como este, ele emprega a interpretação en détail e não en masse; como este, considera os sonhos, desde o início, como tendo um caráter múltiplo, como sendo conglomerados de formações psíquicas. [Ver em [1] e [2].]
No decorrer de minhas psicanálises de neuróticos já devo ter analisado mais de mil sonhos; mas não me proponho utilizar esse material nesta introdução à técnica e à teoria da interpretação do sonho. Além do fato de que essa alternativa estaria sujeita à objeção de que esses são sonhos de neuropatas, dos quais não se poderia extrair nenhuma inferência válida quanto aos sonhos das pessoas normais, há um outro motivo bem diferente que me impõe essa decisão. O assunto a que levam esses sonhos de meus pacientes e sempre, por certo, a história clínica subjacente a suas neuroses. Cada sonho exigiria portanto, uma longa introdução e uma investigação da natureza e dos determinantes etiológicos das psiconeuroses. Mas essas questões constituem novidades em si mesmas e são altamente desconcertantes, e desviaram a atenção do problema dos sonhos. Ao contrário, é minha intenção utilizar minha atual elucidação dos sonhos como um passo preliminar no sentido de resolver os problemas mais difíceis da psicologia das neuroses. Todavia, ao abir mão de meu material principal, os sonhos de meus pacientes neuróticos, não devo ser muito exigente quanto ao que me resta. Tudo o que resta são tais sonhos que me foram relatados de tempos em tempos por pessoas normais de minhas relações, e outros como os que foram citados como exemplos na literatura que trata da vida onírica. Infelizmente, porém, nenhum desses sonhos é acompanhado pela análise, sem a qual não posso descobrir o sentido de um sonho. Meu método não é tão cômodo quanto o método popular de decifração, que traduz qualquer parte isolada do conteúdo do sonho por meio de um código fixo. Pelo contrário, estou pronto a constatar que o mesmo fragmento de um conteúdo pode ocultar um sentido diferente quando ocorre em várias pessoas ou em vários contextos. Assim, dá-se que sou levado aos meus próprios sonhos, que oferecem um material abundante e conveniente, oriundo de uma pessoa mais ou menos normal e relacionado com múltiplas circunstâncias da vida cotidiana. É certo que depararei com dúvidas quanto à confiabilidade desse tipo de “auto-análises”, e hão de me dizer que elas deixam a porta aberta a conclusões arbitrárias. Em meu julgamento, a situação é de fato mais favorável no caso da auto-observação do que na observação de outras pessoas; seja como for, podemos fazer a experiência e verificar até que ponto a auto-análise nos leva na interpretação dos sonhos. Mas tenho outras dificuldades a superar, que estão dentro de mim mesmo. Há uma certa hesitação natural em revelar tantos fatos íntimos sobre nossa própria vida mental, e não pode haver qualquer garantia contra a interpretação errônea por parte dos estranhos. Mas deve ser possível vencertais hesitações. “Tout psychologiste”, escreve Delboeuf [1885], “est obligé de faire l’aveu même de ses faiblesses s’il croit par là jeter du jour sur quelque problème obscur.” E é correto presumir que também meus leitores logo verão seu interesse inicial nas indiscrições que estou fadado a cometer transformado num interessante mergulho nos problemas psicológicos sobre os quais elas lançam luz.
Por conseguinte, passarei a escolher um de meus próprios sonhos e, com base nele, demonstrarei meu método de interpretação. No caso de cada um desses sonhos, far-se-ão necessárias algumas observações à guisa de preâmbulo. - E agora devo pedir ao leitor que faça dos meus interesses os seus próprios por um período bastante longo, e que mergulhe comigo nos menores detalhes de minha vida, pois esse tipo de transferência é obrigatoriamente exigido por nosso interesse no sentido oculto dos sonhos.

PREÂMBULO
No verão de 1895, eu vinha prestando tratamento psicanalítico a uma jovem senhora que mantinha laços muito cordiais de amizade comigo e com minha família. É fácil compreender que uma relação mista como essa pode constituir uma fonte de muitos sentimentos conturbados no médico, em particular no psicoterapeuta. Embora o interesse pessoal do médico seja maior, sua autoridade é menor; qualquer fracasso traz uma ameaça à amizade há muito estabelecida com a família do paciente. Esse tratamento terminara com êxito parcial; a paciente ficara livre de sua angústia histérica, mas não perdera todos os sintomas somáticos. Nessa ocasião, eu ainda não discernia com muita clareza quais eram os critérios indicativos de que um caso clínico de histeria estava afinal encerrado, e havia proposto à paciente uma solução que ela não parecia disposta a aceitar. Enquanto estávamos nessa discordância, interrompemos o tratamento durante as férias de verão. - Certo dia, recebi a visita de um colega mais novo na profissão, um de meus mais velhos amigos, que estivera com minha paciente, Irma, e sua família, em sua casa de campo. Perguntei-lhe como a achara e ele me respondeu: “Está melhor, mas não inteiramente boa.” Tive consciência de que as palavras de meu amigo Otto, ou o tom em que as proferiu, me aborreceram. Imaginei ter identificado nelas uma recriminação como no sentido de que eu teria prometido demais à paciente; e, com ou sem razão, atribui o suposto fato de Otto estar tomando partido contra mim à influência dos parentes de minha paciente, que, como me parecia, nunca haviam olhado o tratamento com bons olhos. Entretanto, minha impressão desagradável não me ficou clara e não externei nenhum sinal dela. Na mesma noite, redigi o caso clínico de Irma, com a idéia de entregá-lo ao Dr. M. (um amigo comum que, na época, era a principal figura de nosso círculo), a fim de me justificar. Naquela noite (ou na manhã seguinte, como é mais provável), tive o seguinte sonho, que anotei logo ao acordar.

SONHO DE 23-24 DE JULHO DE 1895
Um grande salão - numerosos convidados a quem estávamos recebendo. - Entre eles estava Irma. No mesmo instante, puxei-a de lado, como que para responder a sua carta e repreendê-la por não ter ainda aceitado minha “solução”. Disse-lhe: “Se você ainda sente dores, é realmente apenas por culpa sua.” Respondeu ela: “Ah! se o senhor pudesse imaginar as dores que sinto agora na garganta, no estômago e no abdômen… - isto está me sufocando.” - Fiquei alarmado e olhei para ela. Parecia pálida e inchada. Pensei comigo mesmo que, afinal de contas, devia estar deixando de perceber algum distúrbio orgânico. Levei-a até a janela e examinei-lhe a garganta, e ela deu mostras de resistências, como fazem as mulheres com dentaduras postiças. Pensei comigo mesmo que realmente não havia necessidade de ela fazer aquilo. - Em seguida, ela abriu a boca como devia e, no lado direito, descobri uma grande placa branca; em outro lugar, vi extensascrostas cinza-esbranquiçadas sobre algumas notáveis estruturas recurvadas, que tinham evidentemente por modelo os ossos turbinados do nariz. - Chamei imediatamente o Dr. M., e ele repetiu o exame e o confirmou… O Dr. M. tinha uma aparência muito diferente da habitual; estava muito pálido, claudicava e tinha o queixo escanhoado… Meu amigo Otto estava também agora de pé ao lado dela, e meu amigo Leopold a auscultava através do corpete e dizia: “Ela tem uma área surda bem embaixo, à esquerda.” Indicou também que parte da pele do ombro esquerdo estava infiltrada. (Notei isso, tal como ele fizera, apenas do vestido.)… M. disse: “Não há dúvida de que é uma infecção, mas não tem importância; sobrevirá uma disenteria, e a toxina será eliminada.”… Tivemos também pronta consciência da origem da infecção. Não muito antes, quando ela não estava se sentindo bem, meu amigo Otto lhe aplicara uma injeção de um preparado de propil, propilos… ácido propiônico… trimetilamina (e eu via diante de mim a fórmula desse preparado, impressa em grossos caracteres)… Injeções como essas não deveriam ser aplicadas de forma tão impensada… E, provavelmente, a seringa não estava limpa.
Esse sonho tem uma vantagem sobre muitos outros. Ficou logo claro quais os fatos do dia anterior que haviam fornecido seu ponto de partida. Meu preâmbulo torna isso evidente. A notícia que Otto me dera sobre o estado de Irma e o caso clínico que eu me empenhara em redigir até altas horas da noite haviam continuado a ocupar minha atividade mental mesmo depois de eu adormecer. Não obstante, ninguém que tivesse apenas lido o preâmbulo e o próprio conteúdo do sonho poderia ter a menor idéia do que este significava. Eu mesmo não fazia nenhuma idéia. Fiquei atônito com os sintomas de que Irma se queixou comigo no sonho, já que não eram os mesmos pelos quais eu a havia tratado. Sorri ante a idéia absurda de uma injeção de ácido propiônico e ante as reflexões consoladoras do Dr. M. Em sua parte final, o sonho me pareceu mais obscuro e condensado do que no início. Para descobrir o sentido de tudo isso, foi necessário proceder a uma análise detalhada.

ANÁLISE
O salão - numerosos convidados a quem estávamos recebendo. Passávamos aquele verão em Bellevue, numa casa que se erguia sozinha numa das colinas contíguas a Kahlenberg. A casa fora anteriormente projetada como um local de entretenimento e, por conseguinte, suas salas de recepção eram inusitadamente altas e semelhantes a grandes salões. Foi em Bellevue que tive o sonho, poucos dias antes do aniversário de minha mulher. Na véspera, ela me dissera que esperava que alguns amigos, inclusive Irma, viessem visitar-nos no dia de seu aniversário. Assim, meu sonho estava prevendo essa ocasião: era aniversário de minha mulher, e diversos convidados, inclusive Irma, estavam sendo recebidos por nós no grande salão de Bellevue.
Repreendi Irma por não haver aceito minha solução; disse: “Se você ainda sente dores, a culpa é sua.” Poderia ter-lhe dito isso na vida de vigília, e talvez o tenha realmente feito. Era minha opinião, na época (embora desde então a tenha reconhecido como errada), que minha tarefa estava cumprida no momento em que eu informava ao paciente o sentido oculto de seus sintomas: não me considerava responsável por ele aceitar ou não a solução - embora fosse disso que dependia o sucesso. Devo a esse erro, que agora felizmente corrigi, o fato de minha vida ter-se tornado mais fácil numa ocasião em que, apesar de toda a minha inevitável ignorância, esperava-se que eu produzisse sucessos terapêuticos. - Notei, contudo, que as palavras que dirigi a Irma no sonho indicavam que eu estava especialmente aflito por não ser responsável pelas dores que ela ainda sentia. Se fossem culpa dela, não poderiam ser minha culpa. Seria possível que a finalidade do sonho tivesse esse sentido.
Queixa de Irma: dores na garganta, abdômen e estômago; isso a estava sufocando. As dores de estômago estavam entre os sintomas de minha paciente, mas não tinham muito destaque; ela se queixava mais de sensações de náusea e repulsa. As dores na garganta e no abdômen, assim como a constrição da garganta, quase não participavam de sua doença. Fiquei sem saber porque teria optado pela escolha desses sintomas no sonho, mas não pude pensar numa explicação no momento.
Ela parecia pálida e inchada. Minha paciente sempre tivera uma aparência corada. Comecei a desconfiar que ela estivesse substituindo outra pessoa.

Fiquei alarmado com a idéia de não haver percebido alguma doença orgânica. Isso, como bem se pode acreditar, constitui uma fonte perene de angústia para um especialista cuja clínica é quase que limitada a pacientes neuróticos e que tem o hábito de atribuir à histeria um grande número de sintomas que outros médicos tratam como orgânicos. Por outro lado, uma ligeira dúvida infiltrou-se em minha mente - vinda não sei de onde - no sentido de que meu receio não era inteiramente autêntico. Se as dores de Irma tivessem uma base orgânica, também nesse aspecto eu não poderia ser responsabilizado por sua cura; meu tratamento visava apenas a eliminar as dores histéricas. Ocorreu-me, de fato, que eu estava realmente desejando que tivesse havido um diagnóstico errado, pois, se assim fosse, a culpa por minha falta de êxito também estaria eliminada.
Levei-a até à janela para examinar-lhe a garganta. Ela mostrou alguma resistência, como fazem as mulheres com dentaduras postiças. Pensei comigo mesmo que realmente não havia necessidade de ela fazer aquilo. Eu nunca tivera nenhuma oportunidade de examinar a cavidade bucal de Irma. O que ocorreu no sonho fez-me lembrar um exame que eu efetuara algum tempo antes numa governanta: à primeira vista, ela parecera a imagem da beleza juvenil, mas, quando chegou o momento de abrir a boca, ela tomou providências para ocultar suas chapas. Isso levou a lembranças de outros médicos e de pequenos segredos revelados no decurso dos mesmos - sem que isso satisfizesse a nenhuma das partes. “Não havia realmente necessidade de ela fazer aquilo” tencionava, sem dúvida, em primeiro lugar, ser um cumprimento a Irma; mas desconfiei de que teria outro sentido além desse. (Quando se procede atentamente a uma análise, tem-se a sensação de haver ou não esgotado todos os pensamentos antecedentes esperáveis.) A forma pela qual Irma postou-se à janela me fez de repente recordar outra experiência. Irma tinha uma amiga íntima de quem eu fazia uma opinião muito elevada. Quando visitei essa senhora certa noite, encontrei-a perto de uma janela na situação reproduzida no sonho, e seu médico, o mesmo Dr. M., dissera que ela apresentava uma membrana diftérica. A figura do Dr. M. e a membrana reaparecem posteriormente no sonho. Ocorreu-me então que, nos últimos meses, eu tivera todos os motivos para supor que essa outra senhora também fosse histérica. Na verdade, a própria Irma me revelara involuntariamente esse fato. Que sabia eu de seu estado? Uma coisa, precisamente: que, tal como a Irma de meu sonho, ela sofria de sufocação histérica. Assim, no sonho, eu substituíra minha paciente por sua amiga. Recordei-me, então, de que muitas vezes me entretivera com a idéia de que também ela pudesse pedir-me que a aliviasse de seus sintomas. Eu próprio, contudo, julgara isso improvável,visto que ela era de natureza muito reservada. Era resistente, como apareceu no sonho. Outra razão era que não havia necessidade de ela fazer aquilo: até então, mostrara-se forte o bastante para manejar seu estado sem nenhuma ajuda externa. Restavam ainda algumas características que eu não podia atribuir nem a Irma, nem a sua amiga: pálida; inchada; dentes postiços. Os dentes postiços levaram-me à governanta que já mencionei; sentia-me agora inclinado a me contentar com dentes estragados. Pensei então numa outra pessoa à qual essas características poderiam estar aludindo. Mais uma vez, não se tratava de uma das minhas pacientes, nem eu gostaria de tê-la como tal, pois havia observado que ela ficava acanhada em minha presença e não achava que pudesse vir a ser uma paciente acessível. Era geralmente pálida, e certa vez, quando estava gozando de ótima saúde, parecera inchada. Portanto, eu estivera comparando minha paciente Irma com duas outras pessoas que também teriam sido resistentes ao tratamento. Qual poderia ter sido a razão de eu a haver trocado, no sonho, por sua amiga? Talvez fosse porque eu teria gostado de trocá-la: talvez sentisse mais simpatia por sua amiga, ou tivesse uma opinião mais elevada sobre a inteligência dela, pois Irma me parecera tola por não haver aceito minha solução. Sua amiga teria sido mais sensata, isto é, teria cedido mais depressa. Assim, teria aberto a boca como devia e me dito mais coisas do que Irma.
O que vi em sua garganta: uma placa branca e os ossos turbinados recobertos de crostas. A placa branca fez-me recordar a difterite e tudo mais da amiga de Irma, mas também uma doença grave de minha filha mais velha, quase dois anos antes, e o susto por que passei naqueles dias aflitivos. As crostas nos ossos turbinados fizeram-me recordar uma preocupação sobre meu próprio estado de saúde. Nessa época, eu vinha fazendo uso freqüente da cocaína para reduzir algumas incômodas inchações nasais, e ficara sabendo alguns dias antes que uma de minhas pacientes, que seguira meu exemplo,desenvolvera uma extensa necrose da membrana mucosa nasal. Eu fora o primeiro a recomendar o emprego da cocaína, em 1885, e essa recomendação trouxera sérias recriminações contra mim. O uso indevido dessa droga havia apressado a morte de um grande amigo meu. Isso ocorrera antes de 1895 [a data do sonho].
Chamei imediatamente o Dr. M., e ele repetiu o exame. Isso correspondia simplesmente à posição ocupada por M. em nosso círculo. Mas o “imediatamente” foi curioso o bastante para exigir uma explicação especial. Fez-me lembrar um evento trágico em minha clínica. Certa feita, eu havia provocado um grave estado tóxico numa paciente, receitando repetidamente o que, na época, era considerado um remédio inofensivo (sulfonal), e recorrera às pressas à assistência e ao apoio de meu colega mais experiente. Havia um detalhe adicional que confirmou a idéia de que eu tinha esse incidente em mente. Minha paciente - que sucumbiu ao veneno - tinha o mesmo nome que minha filha mais velha. Isso nunca me ocorrera antes, mas me pareceu agora quase que um ato de retaliação do destino. Era como se a substituição de uma pessoa por outra devesse prosseguir noutro sentido: esta Mathilde por aquela Mathilde, olho por olho e dente por dente. Era como se eu viesse coligindo todas as ocasiões de que podia me acusar como prova de falta de conscienciosidade médica.
O Dr. M. estava pálido, tinha o queixo bem escanhoado e claudicava ao andar. Isso era verdade apenas na medida em que sua aparência doentia costumava deixar aflitos os seus amigos. As duas outras características só podiam aplicar-se a outra pessoa. Pensei em meu irmão mais velho, que mora no exterior, tem o rosto escanhoado e com quem, se bem me recordo, o M. do sonho se parecia muito. Tínhamos recebido notícias, alguns dias antes, de que ele estava puxando de uma perna em virtude de uma infecção artrítica no quadril. Devia ter havido alguma razão, refleti, para que eu fundisse essas duas figuras numa só no sonho. Lembrei-me então de que tinha uma razão semelhante para estar mal-humorado com cada um deles: ambos haviam rejeitado certa sugestão que eu lhes fizera havia pouco tempo.

Meu amigo Otto estava agora de pé ao lado da paciente, e meu amigo Leopold a examinava e indicava que havia uma área surda bem abaixo, à esquerda. Meu amigo Leopold era também médico e parente de Otto. Como ambos se haviam especializado no mesmo ramo da medicina, era seu destino competirem um com o outro, e freqüentemente se traçavam comparações entre eles. Ambos haviam trabalhado como meus assistentes durante anos, quando eu ainda chefiava o departamento de neurologia para pacientes externos de um hospital infantil. Cenas como a representada no sonho muitas vezes ocorreram ali. Enquanto eu discutia o diagnóstico de um caso com Otto, Leopold examinava a criança mais uma vez e fazia alguma contribuição inesperada para nossa decisão. A diferença entre o caráter de ambos era como a existente entre o meirinho Bräsig e seu amigo Karl: um se destacava por sua rapidez, ao passo que o outro era lento, porém seguro. Se no sonho eu estabelecia um contraste entre Otto e o prudente Leopold, evidentemente o fazia em favor do segundo. A comparação era semelhante à que eu fazia entre minha desobediente paciente Irma e sua amiga, que eu considerava mais sensata do que ela. Percebia então outra das linhas ao longo das quais se ramificava a cadeia de pensamentos no sonho: da criança doente para o hospital infantil. - A área surda bem abaixo, à esquerda parecia-me coincidir em todos os detalhes com um caso específico em que Leopold me impressionara por sua meticulosidade. Tive também uma idéia vaga sobre algo da ordem de uma afecção metastática, mas isso também pode ter sido uma referência à paciente que eu gostaria de ter em lugar de Irma. Até onde eu pudera julgar, ela havia produzido uma imitação de tuberculose.
Uma parte da pele do ombro esquerdo estava infiltrada. Vi imediatamente que isso era o reumatismo em meu próprio ombro, que observo invariavelmente quando fico acordado até altas horas da noite. Além disso, as palavras do sonho eram muito ambíguas: “Notei isso, tal como ele…” Ou seja, notei-o em meu próprio corpo. Impressionou-me também o enunciado incomum: “uma parte da pele estava infiltrada”. Estamos habituados a falar em “infiltração póstero-superior esquerda”, o que se referia ao pulmão e, portanto, mais uma vez, à tuberculose.
Apesar de seu vestido. Isso, de qualquer modo, fora apenas uma interpolação. Naturalmente, costumávamos examinar as crianças no hospital despidas: e isso seria um contraste com a maneira como as pacientes adultas têm de ser examinadas. Lembrei que se dizia de um famoso clínico que ele jamais fizera um exame físico de seus pacientes a não ser através das roupas. Não consegui ver nada além disso. E francamente, não senti nenhum desejo de penetrar mais a fundo nesse ponto.
O Dr. M. disse: “É um infecção, mas não tem importância. Sobrevirá uma disenteria e a toxina será eliminada.” A princípio, isso me pareceu ridículo. Não obstante, como todo o resto, tinha de ser analisado com cuidado. Quando passei a investigar mais de perto, pareceu-me ter uma espécie de sentido, apesar de tudo. O que descobri na paciente foi uma difterite local. Lembrei-me de uma discussão, na época da doença de minha filha, sobre difterite e difteria, sendo esta a infecção geral que decorre da difterite local. Leopold indicara a presença de uma infecção geral dessa natureza a partir da existência de uma área surda, que assim poderia ser considerada como um foco metastático. Eu parecia pensar, é verdade, que essas metástases de fato não ocorrem com a difteria: aquilo me fazia pensar, ante, em piemia.
Não tem importância. Isso foi dito como consolo. Parecia ajustar-se da seguinte forma no contexto: o conteúdo da parte procedente do sonho fora que as dores de minha paciente eram decorrentes de uma grava infecção orgânica. Tive a sensação de que, dessa maneira, eu estava apenas tentando desviar a culpa de mim mesmo. O tratamento psicológico não podia ser responsabilizado pela persistência de dores diftéricas. Não obstante, experimentei uma sensação de constrangimento por ter inventado uma moléstia tão grave para Irma, apenas para me inocentar. Parecia cruel demais. Assim, precisava de uma certeza de que no fim tudo ficaria bem, e me pareceu que colocar as palavras de consolo precisamente na boca do Dr. M. não fora má escolha. Assim sendo, porém, eu estava adotando uma atitude superior em relação ao sonho, e isso, por si só exigia explicação.
E por que o consolo era tão disparatado?
Disenteria. Parecia haver alguma idéia teórica remota de que o material mórbido pode ser eliminado pelos intestinos. Seria possível que eu estivesse tentando zombar do espírito fértil do Dr. M. na produção de explicações artificiais e no estabelecimento de ligações patológicas inesperadas? Ocorreu-me então outra coisa relacionada com a disenteria. Alguns meses antes, eu aceitara o caso de um rapaz com extremas dificuldades associadas à defecação, que fora tratado por outros médicos como um caso de “anemia acompanhada de desnutrição”. Eu havia identificado o caso como histeria,mas não me sentira disposto a tentar nele meu tratamento psicoterápico e o mandara fazer uma viagem marítima. Alguns dias antes, recebera dele uma carta desesperadora, enviada do Egito, dizendo que ali tivera um novo ataque e que um médico declarara tratar-se de disenteria. Suspeitei que o diagnóstico fosse um erro, por parte de um clínico inexperiente que se deixara enganar pela histeria. Mas não pude deixar de me recriminar por haver colocado meu paciente numa situação em que poderia ter contraído algum mal orgânico além de seu distúrbio intestinal histérico. Além disso, “disenteria” não soa muito diferente de “difteria” - palavra de mau agouro que não ocorreu no sonho.
Sim, pensei comigo mesmo, devo ter zombado do Dr. M. por meio do prognóstico consolador: “Sobreviverá uma disenteria etc.”, pois voltou a me ocorrer que, anos antes, ele próprio me contara uma história divertida de natureza semelhante sobre outro médico. O Dr. M. fora convocado por ele para dar um parecer sobre um paciente gravemente enfermo, e se sentira obrigado a salientar, em virtude da visão muito otimista assumida por seu colega, que encontrara albumina na urina do paciente. O outro, porém, não se dera absolutamente por achado: “Não tem importância”, dissera, “a albumina logo será eliminada!” - Não pude mais sentir nenhuma dúvida, portanto, de que essa parte do sonho expressava desprezo pelos médicos que não conhecem a histeria. E, como que para confirmar isso, outra idéia cruzou-me a mente: “Será que o Dr. M. se apercebe de que os sintomas de sua paciente (a amiga de Irma) que dão margem ao fervor da tuberculose também têm uma base histérica? Terá ele identificado essa histeria? Ou será que se deixou levar por ela?”
Mas qual poderia ser minha motivação para tratar tão mal esse meu amigo? A questão era muito simples. O Dr. M. concordava tão pouco com minha “solução” quanto a própria Irma. Assim, nesse sonho eu já me havia vingado de duas pessoas: de Irma, com as palavras “Se você ainda sente dores, a culpa é toda sua”, e do Dr. M., com o enunciado do consolo absurdo que pus em sua boca.
Tivemos pronta consciência da origem da infecção. Esse conhecimento instantâneo no sonho foi notável. Só que, pouco antes, não tínhamos tido nenhum conhecimento disso, pois a infecção só foi revelada por Leopold.
Quando ela não estava se sentindo bem, meu amigo Otto lhe aplicara uma injeção. Otto efetivamente me contara que, durante sua curta estada com a família de Irma, fora chamado a um hotel das imediações para aplicar uma injeção em alguém que de repente se sentira mal. Essas injeções me fizeram recordar mais uma vez meu infeliz amigo que se envenenara com cocaína [ver em [1]]. Eu o havia aconselhado a só usar a droga internamente [isto é, por via oral], enquanto a morfina era retirada; mas ele de imediato se aplicara injeções de cocaína.
Um preparado de propil… propilos… ácido propiônico. Como teria eu chegado a pensar nisso? Na noite anterior, antes de eu redigir o caso clínico e ter o sonho, minha mulher abrira uma garrafa de licor na qual aparecia a palavra “Ananas” e que fora um presente de nosso amigo Otto, pois ele tem o hábito de dar presentes em todas as ocasiões possíveis. Seria de esperar, pensei comigo mesmo, que ele algum dia encontrasse uma esposa para curá-lo desse hábito. O licor exalava um cheiro tão acentuado de álcool amílico que me recusei a tocá-lo. Minha mulher sugeriu que déssemos a garrafa aos criados, mas eu - com prudência ainda maior - vetei a sugestão, acrescentando, com espírito filantrópico, que não havia necessidade de eles serem envenenados tampouco. O cheiro do álcool amílico (amil…) evidentemente avivou em minha mente a lembrança de toda a seqüência - propil, metil, e assim por diante - e isso explicava o preparado propílico no sonho. É verdade que efetuei uma substituição no processo: sonhei com propilo depois de ter cheirado amila. Mas as substituições dessa natureza talvez sejam válidas na química orgânica.
Trimetilamina. Vi a fórmula química dessa substância em meu sonho, o que testemunha um grande esforço por parte de minha memória. Além disso, a fórmula estava impressa em negrito, como se tivesse havido um desejo de dar ênfase a alguma parte do contexto como algo de importância muito especial. Para que era, então, que minha atenção deveria ser assim dirigida pela trimetilamina? Para uma conversa com um outro amigo, que há muitos anos se familiarizara com todos os meus escritos, durante a fase em que eram gerados, tal como eu me familiarizara com os dele. Na época, ele me havia confiado algumas idéias sobre a questão da química dos processos sexuais e mencionara, entre outras coisas, acreditar que um dos produtos do metabolismo sexual era a trimetilamina. Assim, essa substância me levava à sexualidade, fator ao qual eu atribuía máxima importância na origem dos distúrbios nervosos cuja cura era o meu objetivo. Minha paciente, Irma, era uma jovem viúva; se eu quisesse encontrar uma desculpa para o fracasso de meu tratamento em seu caso, aquilo a que melhor poderia recorrer era, sem dúvida, o fato de sua viuvez, que os amigos dela ficariam tão contentes em ver modificado. E de que modo quão estranho, pensei comigo, um sonho como esse se concatena! A outra mulher que eu tinha como paciente no sonho em lugar de Irma, era também uma jovem viúva.
Comecei a imaginar por que a fórmula de trimetilamina teria sido tão destacada no sonho. Numerosos assuntos importantes convergiam para aquela única palavra. A trimetilamina era uma alusão não só ao fator imensamente poderoso da sexualidade, como também a uma pessoa cuja concordância eu recordava com prazer sempre que me sentia isolado em minhas opiniões. Com certeza esse amigo, que desempenhou papel tão relevante em minha vida, deveria reaparecer em outros pontos desses fluxos de pensamentos. Sim, pois ele tinha um conhecimento especial das conseqüências das afecções do nariz e de suas cavidades acessórias, e chamara a atenção do mundo científico para algumas notáveis relações entre os ossos tribunais e os órgãos sexuais femininos. (Cf. as três estruturas recurvadas na garganta de Irma.) Eu tomara providências para que Irma fosse examinada por ele, para ver se suas dores gástricas poderiam ser de origem nasal. Mas ele próprio sofria de rinite supurativa, o que me causava angústia; e houve sem dúvida uma alusão a isso na piemia que me ocorreu vagamente em relação às metástases do sonho.
Injeções como essas não deveriam ser aplicadas de forma tão impensada. Aqui, uma acusação de irreflexão era feita diretamente contra meu amigo Otto. Pareceu-me recordar ter pensado em qualquer coisa da mesma natureza naquela tarde, quando as palavras e a expressão dele pareceram demonstrar que estava tomando partido contra mim. Fora uma idéia mais ou menos assim: “Com que facilidade os pensamentos dele são influenciados! Com que descaso ele tira conclusões apressadas!” - Independentemente disso, essa frase no sonho lembrou-me mais uma vez meu amigo morto, que com tanta pressa recorrera a injeções de cocaína. Como já tive ocasião de dizer, eu nunca havia considerado a idéia de que a droga fosse ministrada por injeções. Notei também que, ao acusar Otto de irreflexão no manuseio de substâncias químicas, eu estava mais uma vez aludindo a história da infeliz Mathilde, que dera margem à mesma acusação contra mim. Aqui, eu estava evidentemente reunindo exemplos de minha conscienciosidade, mas também do inverso.
E, provavelmente, a seringa não estava limpa. Essa era mais uma acusação contra Otto, porém derivada de uma fonte diferente. Ocorre que, na véspera, eu encontrara por acaso o filho de uma velhinha de oitenta e dois anos em que eu tinha de aplicar uma injeção de morfina duas vezes ao dia. No momento, ela se encontrava no campo e, disse-me o filho, estava sofrendo de flebite. Eu logo pensara que deveria ser uma infiltração provocada por uma seringa suja. Orgulhava-me do fato de, em dois anos, não haver causado uma única infiltração; empenhava-me constantemente em me certificar de que a seringa estava limpa. Em suma, eu era consciencioso. A flebite remeteu-me mais uma vez a minha mulher, que sofrera de trombose durante uma das vezes em que estava grávida, e então me vieram à lembrança três situações semelhantes, envolvendo minha esposa, Irma e a falecida Mathilde. A identidade dessas situações evidentemente me permitira, no sonho, substituir as três figuras entre si.
Acabo de concluir a interpretação do sonho. Enquanto a efetuava, tive certa dificuldade em manter à distância todas as idéias que estavam fadadas a ser provocadas pela comparação entre o conteúdo do sonho e os pensamentos ocultos por trás dele. Entrementes, compreendi o “sentido” do sonho. Tomei consciência de uma intenção posta em prática pelo sonho e que deveria ter sido meu motivo para sonhá-lo. O sonho realizou certos desejos provocados em mim pelos fatos da noite anterior (a notícia que me foi dada por Otto e minha redação do caso clínico.) Em outras palavras, a conclusão do sonho foi que eu não era responsável pela persistência das dores de Irma, mas sim Otto. De fato, Otto me aborrecera com suas observações sobre a cura incompleta de Irma, e o sonho me proporcionou minha vingança, devolvendo a reprimenda a ele. O sonho me eximiu da responsabilidade pelo estado de Irma, mostrando que este se devia a outros fatores - e produziu toda uma série de razões. O sonho representou um estado de coisas específico, tal como eu desejaria que fosse. Assim, seu conteúdo foi a realização de um desejo, e seu motivo foi um desejo.
Tudo isso saltou aos olhos. Mas, muitos dos detalhes do sonho também se tornaram inteligíveis para mim do ponto de vista da realização de desejos. Não só me vinguei de Otto por se apressar demais em seu tratamento médico (ao aplicar a injeção), como também me vinguei dele por ter-me dado o licor que tinha cheiro de álcool amílico. E, no sonho, encontrei uma expressão que ligava as duas reprimendas: a injeção era um preparado de propil. Isso não me satisfez, e levei minha vingança mais longe, estabelecendo um contraste entre ele e seu concorrente mais digno de confiança. Eu parecia estar dizendo: “Gosto mais dele que de você.” Mas Otto não foi a única pessoa a sofrer os efeitos da minha ira. Vinguei-me também de minha paciente desobediente, trocando-a por outra mais sensata e menos resistente. Também não permiti que o Dr. M. escapasse às conseqüências de sua contradição, mas lhe mostrei, por meio de uma alusão clara, que ele era um ignorante no assunto (“Sobrevirá uma disenteria, etc.”). Com efeito, eu parecia estar lhe voltando as costas para recorrer a alguém dotado de maiores conhecimentos (a meu amigo que me falara de trimetilamina), tal como me voltara de Irma para sua amiga e de Otto para Leopold. “Levem essa gente daqui! Em vez deles dêem-me três outros de minha escolha! Então ficarei livre dessas recriminações imerecidas!” A falta de fundamento das recriminações me foi provada no sonho de maneira extremamente complexa. Eu não merecia a culpa pelas dores de Irma, já que ela própria era culpada, por se recusar a aceitar minha solução. Eu não tinha nada a ver com as dores de Irma, já que eram de natureza orgânica e totalmente incuráveis pelo tratamento psicológico. As dores de Irma podiam ser satisfatoriamente explicadas por sua viuvez (cf. a trimetilamina), que eu não tinha meios de alterar. As dores de Irma tinham sido provocadas pelo fato de Otto ter-lhe aplicado, sem a devida cautela, uma injeção de uma droga inadequada - coisa que eu nunca teria feito. As dores de Irma eram o resultado de uma injeção com agulha suja, tal como a flebite da velhinha de quem eu cuidava - ao passo que eu nunca provoquei nenhum dano com minhas injeções. Notei, é verdade, que essas explicações das dores de Irma (que contribuíam para me isentar de culpa) não eram inteiramente compatíveis entre si e, a rigor, eram mutuamente excludentes. Toda a apelação - pois o sonho não passara disso - lembrava com nitidez a defesa apresentada pelo homem acusado por um de seus vizinhos de lhe haver devolvido danificada uma chaleira tomada de empréstimo. O acusado asseverou, em primeiro lugar, ter devolvido a chaleira em perfeitas condições; em segundo, que a chaleira tinha um buraco quando a tomara emprestada; e, em terceiro, que jamais pedira emprestada a chaleira a seu vizinho. Tanto melhor: se apenas uma dessas três linhas de defesa fosse aceita como válida, o homem teria de ser absolvido.
Alguns outros temas, que não estavam ligados de forma tão evidente a minha absolvição pela doença de Irma, desempenharam seu papel no sonho: a doença de minha filha e a da minha paciente do mesmo nome, o efeito prejudicial da cocaína, o distúrbio de meu paciente que se encontrava em viagem pelo Egito, minha preocupação com a saúde de minha mulher e de meu irmão e do Dr. M., meus próprios males físicos, e minha aflição por meu amigo ausente que sofria de rinite supurativa. Mas, ao considerar todas essas coisas, vi que podiam ser todas enfeixadas num único grupo de idéias e rotuladas, por assim dizer, como “interesse por minha própria saúde e pela saúde de outras pessoas - conscienciosidade profissional.” Veio-me à mente a obscura impressão desagradável que experimentara quando Otto me trouxe a notícia do estado de Irma. Esse grupo de idéias que haviam desempenhado um papel no sonho permitiu-me, retrospectivamente, traduzir em palavras aquela impressão passageira. Era como se ele me houvesse dito: “Você não leva seus deveres médicos com a devida seriedade. Você não é consciencioso; não cumpre o que se comprometeu a fazer.” A partir daí, foi como se esse grupo de idéias se tivesse colocado a minha disposição, para que eu pudesse apresentar provas de como eu era extremamente consciencioso, da profundidade com que me interessava pela saúde de meus parentes, amigos e pacientes. Foi um fato digno de nota que esse material tenha também incluído algumas lembranças desagradáveis, que mais davam apoio à acusação de meu amigo Otto do que a minha própria defesa. O material era, como se poderia dizer, imparcial; mas, não obstante, havia uma ligação inconfundível entre esse grupo mais amplo de pensamentos subjacentes ao sonho e o tema mais restrito do sonho, que me deu margem ao desejo de ser inocentado da doença de Irma.
Não tenho a pretensão de haver desvendado por completo o sentido desse sonho, nem de que sua interpretação esteja sem lacunas. Poderia dedicar muito mais tempo a ele, tirar dele outras informações e examinar novos problemas por ele levantados. Eu próprio conheço os pontos a partir dos quais outras linhas de raciocínio poderiam ser seguidas. Mas as considerações que surgem no caso de cada um de meus próprios sonhos me impedem de prosseguir em meu trabalho interpretativo. Se alguém se vir tentado a expressar uma condenação apressada de minha reticência, recomendo-lhe que faça a experiência de ser mais franco do que eu. No momento, estou satisfeito com a obtenção dessa parcela de novos conhecimentos. Se adotarmos o método de interpretação de sonhos que aqui indiquei, verificaremos que os sonhos têm mesmo um sentido e estão longe de constituir a expressão de uma atividade fragmentária do cérebro, como têm alegado as autoridades. Quando o trabalho de interpretação se conclui, percebemos que o sonho é a realização de um desejo.


Capítulo III - O SONHO É A REALIZAÇÃO DE UM DESEJO

Quando, após passarmos por um estreito desfiladeiro, de repente emergimos num trecho de terreno elevado, onde o caminho se divide e as mais belas vistas se desdobram por todos os lados, podemos parar por um momento e considerar em que direção deveremos começar a orientar nossos passos. É esse o nosso caso, agora que ultrapassamos a primeira interpretação de um sonho. Encontramo-nos em plena luz de uma súbita descoberta. Não se devem assemelhar os sonhos aos sons desregulados que saem de um instrumento musical atingido pelo golpe de alguma força externa, e não tocado pela mão de um instrumentista (ver em [1] [2]); eles não são destituídos de sentido, não são absurdos; não implicam que uma parcela de nossa reserva de representações esteja adormecida enquanto outra começa a despertar. Pelo contrário, são fenômenos psíquicos de inteira validade - realizações de desejos; podem ser inseridos na cadeia dos atos mentais inteligíveis de vigília; são produzidos por uma atividade mental altamente complexa.
Contudo, mal começamos a nos alegrar com essa descoberta, e já somos assaltados por uma torrente de questões. Se, como nos diz a interpretação dos sonhos, um sonho representa um desejo realizado, qual a origem da notável e enigmática forma em que se expressa a realização de um desejo? Por que alteração passaram os pensamentos oníricos antes de se transformarem no sonho manifesto que recordamos ao despertar? Como se dá essa alteração? Qual a fonte do material que se modificou, transformando-se em sonho? Qual a fonte das numerosas peculiaridades que se devem observar nos pensamentos oníricos - tais como, por exemplo, o fato de poderem ser mutuamente contraditórios? (Cf. a analogia da chaleira emprestada, em [1]). Pode um sonho dizer-nos algo de novo sobre nossos processos psíquicos internos? Pode seu conteúdo corrigir opiniões que sustentamos durante o dia?
Proponho que, por ora, deixemos de lado todas essas questões e sigamos mais adiante, ao longo de um trilha específica. Aprendemos que um sonho pode representar um desejo como realizado. Nossa primeira preocupação deve ser indagar se esta é uma característica universal dos sonhos, ou se, por acaso, terá sido meramente o conteúdo do sonho específico (o sonho da injeção de Irma) que foi o primeiro a ser por nós analisado. Pois, mesmo que estejamos dispostos a constatar que todo sonho tem um sentido e um valor psíquico, deve permanecer em aberto a possibilidade de que esse sentido não seja o mesmo em todos os sonhos. Nosso primeiro sonho foi a realização de um desejo; um segundo poderia revelar-se como um temor realizado; o conteúdo de um terceiro talvez fosse uma reflexão, ao passo que um quarto poderia apenas reproduzir uma lembrança. Encontramos outros sonhos impregnados de desejo, além desse? Ou será, talvez, que não há outros sonhos senão os sonhos relativos a desejo?
É fácil provar que os sonhos muitas vezes se revelam, sem qualquer disfarce, como realizações de desejos, de modo que talvez pareça surpreendente que a linguagem dos sonhos não tenha sido compreendida há muito tempo. Por exemplo, há um sonho que posso produzir em mim mesmo quantas vezes quiser - experimentalmente, por assim dizer. Se à noite eu comer anchovas ou azeitonas, ou qualquer outro alimento muito salgado, ficarei com sede de madrugada, e a sede me acordará. Mas meu despertar será precedido por um sonho, sempre com o mesmo conteúdo, ou seja, o de que estou bebendo. Sonho estar engolindo água em grandes goles, e ela tem delicioso sabor que nada senão uma bebida fresca pode igualar quando se está queimando de sede. Então acordo e tenho que tomar uma bebida de verdade. Esse sonho simples é ocasionado pela sede da qual me conscientizo ao acordar. A sede dá origem a um desejo de beber, e o sonho me mostra esse desejo realizado. Ao fazê-lo, ele executa uma função - que seria fácil adivinhar. Durmo bem e não costumo ser acordado por nenhuma necessidade física. Quando consigo aplacar minha sede sonhando que estou bebendo, não preciso despertar para saciá-la. Esse é, portanto, um sonho de conveniência. O sonhar toma o lugar da ação, como o faz muitas vezes em outras situações da vida. Infelizmente, minha necessidade de água para aplacar a sede não pode satisfazer-se num sonho da mesma forma que se satisfaz minha sede de vingança contra meu amigo Otto e o Dr. M.; mas a boa intenção está presente em ambos os casos. Não faz muito tempo, esse mesmo sonho meu exibiu algumas modificações. Eu já sentira sede antes mesmo de adormecer e esvaziara um copo d’água que estava na mesa ao lado da cama. Algumas horas depois, durante a madrugada, tive um novo ataque de sede, e isso teve resultados inconvenientes. Para me servir de água, eu teria de me levantar e apanhar o copo que estava na mesa ao lado da cama de minha esposa. Assim, tive um sonho apropriado, em que minha mulher me dava de beber de um vaso; esse vaso era uma urna cinerária etrusca que eu trouxera de uma viagem à Itália e da qual mais tarde me desfizera. Mas sua água tinha um sabor tão salgado (evidentemente por causa das cinzas da urna) que acordei. É de se notar a forma conveniente como tudo se organizava nesse sonhos. Visto que sua única finalidade era realizar um desejo, o sonho poderia ser completamente egoísta. O amor ao comodismo e à conveniência não é realmente compatível com a consideração pelas outras pessoas. A introdução da urna cinerária foi, provavelmente, outra realização de desejo. Eu lamentava que o vaso já não estivesse em meu poder - tal como o copo d’água na mesa de cabeceira de minha mulher estava fora de meu alcance. Também a urna, como suas cinzas, ajustava-se ao sabor salgado em minha boca, que já então se tornara mais forte e que eu sabia estar fadado a me acordar.
Esses sonhos de conveniência eram muito freqüentes em minha juventude. Tendo adquirido, desde quando consigo recordar, o hábito de trabalhar até altas horas da noite, sempre tive dificuldade de acordar cedo. Costumava então sonhar que me havia levantado e estava de pé ao lado do lavatório; passado algum tempo, já não conseguia disfarçar de mim mesmo o fato de que realmente ainda estava na cama, só que, nesse meio tempo, dormira um pouco mais. Um desses sonhos indolentes, expresso numa forma particularmente divertida e refinada, foi-me relatado por um jovem colega médico que parece partilhar de meu gosto pelo sono. A hospedeira de sua pensão, nas proximidades do hospital, tinha instruções rigorosas de acordá-lo na hora todas as manhãs, mas não era nada fácil cumpri-las. Certa manhã, o sonho parecia especialmente doce. A senhoria gritou através da porta: “Acorde, Herr Pepi! São horas de ir para o hospital!” Em resposta a isso, ele sonhou que estava deitado numa cama num quarto de hospital, e que havia um cartão acima do leito onde estava escrito: “Pepi H., estudante de medicina, idade: 22 anos.” Enquanto sonhava, ele dizia a si mesmo: “Como já estou no hospital, não há necessidade de ir até lá” - e, virando-se para o outro lado, continuou a dormir. Desse modo, ele confessou abertamente o motivo de seu sonho.
 Eis aqui outro sonho em que, mais uma vez, o estímulo produziu seu efeito durante o sono efetivo. Uma das minhas pacientes, que fora obrigada a se submeter a uma operação no maxilar, operação essa que tomara um rumo desfavorável, recebeu ordens dos médicos para usar um aparelho de resfriamento no lado do rosto, dia e noite. Logo que adormecia, porém, costumava pô-lo de lado. Um dia, depois de ela ter mais uma vez jogado o aparelho no chão, pediram-me que falasse sério com ela a esse respeito. “Dessa vez, realmente não pude evitar”, respondeu. “Foi por causa de um sonho que tive à noite. Sonhei que estava num camarote na ópera, e que estava apreciando muitíssimo o espetáculo. Mas Herr Karls Meyer estava na casa de saúde e se queixava amargamente de dores no maxilar. Assim, eu disse a mim mesma que, como não estava sentindo nenhuma dor, não precisava do aparelho; e joguei-o fora.” O sonho dessa pobre sofredora parece quase uma representação concreta de uma frase que às vezes se impõe às pessoas nas situações desagradáveis: “Devo dizer que eu poderia pensar em algo mais agradável do que isso.” O sonho dá uma imagem dessa coisa mais agradável. O Herr Karl Meyer para quem a autora do sonho transplantou suas dores era, dentre seus conhecidos, o rapaz mais insignificante que ela pôde lembrar.
A realização de desejos pode ser detectada com igual facilidade em alguns outros sonhos que colhi de pessoas normais. Um amigo meu, que conhece minha teoria dos sonhos e falou dela com sua mulher, disse-me certo dia: “Minha mulher pediu que eu lhe dissesse que ontem sonhou que estava menstruada. Você pode imaginar o que isso significa.” E eu realmente podia. O fato de essa jovem senhora ter sonhado que estava menstruada significava que suas regras não tinham vindo. Eu bem podia acreditar que ela ficaria satisfeita em continuar desfrutando um pouco mais de sua liberdade, antes de arcar com o fardo da maternidade. Foi uma maneira delicada de anunciar sua primeira gravidez. Outro amigo meu escreveu-me dizendo que, não muito tempo antes, sua mulher sonhara ter observados algumas manchas de leite na frente de seu vestido. Também esse foi um aviso de gravidez, mas não da primeira. A jovem mãe estava desejando que pudesse ter mais alimento para dar a seu segundo filho do que tivera para o primeiro.
Uma jovem mulher ficara isolada da sociedade por semanas a fio enquanto cuidava do filho durante uma doença infecciosa. Após a recuperação da criança, sonhou que estava numa festa onde, entre outros, conheceu Alphonse Daudet, Paul Bourget e Marcel Prévost; todos foram afabilíssimos com ela e muito divertidos. Todos esses autores se pareciam com seus retratos, exceto Marcel Prévost, cuja fotografia ela jamais vira; e ele se parecia com… o funcionário da desinfecção que fumigara o quarto do doente na véspera e que fora seu primeiro visitante após tanto tempo. Assim, parece possível fornecer uma tradução completa do sonho: “Já é hora de fazer alguma coisa mais divertida do que essa perpétua assistência a doentes.”
Esses exemplos talvez bastem para mostrar que os sonhos que só podem ser compreendidos como realizações de desejos e que trazem seu sentido estampado no rosto, sem nenhum disfarce, encontram-se sob as mais freqüentes e variadas condições. Em sua maioria, são sonhos simples e curtos, que apresentam um agradável contraste com as composições confusas e exuberantes que têm predominantemente atraído a atenção das autoridades. Não obstante, será compensador determo-nos por um momento nesse sonhos simples. É de esperar que encontremos as mais simples formas de sonhos nas crianças, já que não há dúvida alguma que suas produções psíquicas são menos complicadas que as dos adultos. A psicologia infantil, em minha opinião, está destinada a prestar à psicologia do adulto serviços tão úteis quanto os que a investigação da estrutura ou do desenvolvimento dos animais inferiores para a pesquisa da estrutura das classes superiores de animais. Poucos esforços deliberados foram feitos até agora para se utilizar a psicologia infantil com essa finalidade.
Os sonhos das crianças pequenas são freqüentemente pura realização de desejos e são, nesse caso, muito desinteressantes se comparados com os sonhos dos adultos. Não levantam problemas para serem solucionados, mas, por outro lado, são de inestimável importância para provar que, em sua natureza essencial, os sonhos representam realizações de desejos. Pude reunir alguns exemplos desses sonhos a partir de material fornecido por meus próprio filhos.
Tenho que agradecer a uma excursão que fizemos de Ausee à encantadora aldeia de Hallstatt, no verão de 1896, por dois sonhos: um deles foi de minha filha, que contava então oito anos e meio, e o outro, de seu irmão, de cinco anos e três meses. Devo explicar, à guisa de preâmbulo, que estávamos passando o verão na encosta de uma colina perto de Ausee, de onde, quando fazia bom tempo, descortinávamos uma esplêndida vista do Dachstein. A Cabana Simony era claramente visível por telescópio. As crianças fizeram repetidas tentativas de vê-la por meio desse instrumento - não sei dizer com que grau de sucesso. Antes de nossa excursão, eu dissera às crianças que Hallstatt ficava no sopé do Dachstein. Elas aguardaram o dia com grande expectativa. De Hallstatt caminhamos até o Echerntal, que deliciou as crianças com sua sucessão de paisagens cambiantes. Uma das crianças porém, o menino de cinco anos, foi aos poucos ficando inquieto. Toda vez que divisávamos uma nova montanha, ele perguntava se era o Dachstein, e eu tinha de dizer “Não, é apenas um dos contrafortes.” Depois de ter formulado a pergunta várias vezes, ele caiu em completo silêncio, recusando-se categoricamente a subir conosco a encosta íngreme que leva à cascata. Achei que estava cansado. Mas, na manhã seguinte, ele veio a mim com uma expressão radiante e disse: “Ontem à noite sonhei que estávamos na Cabana Simony.” Então eu o compreendi. Quando eu falara sobre o Dachstein, ele tinha esperado subir a montanha durante nossa excursão a Hallstatt e encontrar-se perto da cabana sobre a qual tanto se falara em relação ao telescópio. Mas, ao descobrir que estava sendo ludibriado com contrafortes e uma queda d’água, sentiu-se decepcionado e abatido. O sonho foi uma compensação. Tentei descobrir seus detalhes, mas eles eram escassos: “Você precisa galgar degraus durante seis horas” - o que correspondia ao que lhe haviam dito.
A mesma excursão despertou desejos também na menina de oito anos e meio - desejos que tiveram de ser satisfeitos num sonho. Tínhamos levado conosco para Hallstatt o filho de doze anos de nosso vizinho. Ele já era um galanteador de mão cheia, e havia sinais de ter granjeado a afeição da jovenzinha. Na manhã seguinte, ela me contou o seguinte sonho: “Imagine só! Sonhei que Emil fazia parte da família e chamava vocês de ‘Papai’ e ‘Mamãe’, e dormia conosco no quarto grande como os meninos. Aí, mamãe entrou e jogou um punhado de barras grandes de chocolate, embrulhadas em papel azul e verde, embaixo de nossas camas.” Os irmãos dela, que evidentemente não haviam herdado a faculdade de entender os sonhos, seguiram a orientação das autoridades e declararam que o sonho era absurdo. A própria menina defendeu pelo menos uma parte do sonho; e saber qual parte lança luz sobre a teoria das neuroses. “É claro que é absurdo Emil fazer parte da família; mas a parte sobre as barras de chocolate não é.” Era precisamente quanto a esse ponto que eu estava em dúvida, mas a mãe da menina deu-me então a explicação. No caminho da estação para casa, as crianças haviam parado em frente a uma máquina automática, da qual estavam habituadas a obter justamente aquele tipo de barras de chocolate, embrulhadas em brilhante papel metálico. Quiseram algumas, mas a mãe, com razão, decidira que o dia já havia realizado um número suficiente de desejos e deixara a realização desse a cargo do sonho. Eu não havia observado esse incidente. Mas a parte do sonho que fora censurada por minha filha imediatamente se tornou mais clara para mim. Eu mesmo ouvira meu bem-comportado hóspede dizer às crianças, no passeio, que esperassem até que Papai e Mamãe os alcançassem. O sonho da menina transformara esse parentesco temporário numa adoção permanente. Sua afeição ainda não podia visualizar quaisquer outras modalidades de companheirismo senão as que foram representadas no sonho, e que se baseavam em sua relação com os irmãos. Naturalmente, era impossível descobrir, sem lhe perguntar, por que as barras de chocolate foram atiradas embaixo da cama.
Um de meus amigos relatou-me um sonho muito semelhante ao do meu filho. Quem o teve foi uma menina de oito anos. O pai dessa menina saíra para uma caminhada com várias crianças até Dornbach, com a idéia de visitar a Cabana Rohrer. Como estivesse ficando tarde, porém, tinha voltado, prometendo às crianças compensar-lhes a decepção noutra oportunidade. A caminho de casa, passaram pelo marco que assinala a trilha que sobe até o Hameau. As crianças pediram então que as levassem até o Hameau; porém, mais uma vez, pela mesma razão, tiveram de ser consoladas com a promessa de outro dia. Na manhã seguinte, a menina de oito anos dirigiu-se ao pai e disse, com expressão satisfeita: “Papai, ontem à noite sonhei que o senhor foi com a gente à Cabana Rohrer e ao Hameau.” Em sua impaciência, ela previra a realização das promessas do pai.
Eis aqui um sonho igualmente direto, provocado pela beleza dos panoramas de Ausee em outra de minhas filhas, que contava então três anos e três meses. Ela atravessara o lago pela primeira vez e, para ela, a travessia fora curta demais: quando alcançamos o ponto de desembarque, não quis sair do barco e chorou amargamente. Na manhã seguinte, disse: “Ontem de noite fui para o lago.” Esperemos que sua travessia no sonho tenha sido de uma duração mais satisfatória.
Meu filho mais velho, então com oito anos, já tinha sonhos de ver suas fantasias realizadas: sonhou que estava andando de carruagem com Aquiles e que Diomedes era o condutor. Como se pode imaginar, ele ficara excitado, na véspera, com um livro sobre as lendas da Grécia, dado a sua irmã mais velha.
Caso me seja facultado incluir na categoria dos sonhos as palavras ditas pelas crianças durante o sono, posso citar, a esta altura, um dos sonhos mais infantis de toda a minha coleção. Minha filha mais nova, então com dezenove meses de idade, tivera um ataque de vômitos certa manhã e, como conseqüência, ficara sem alimento o dia inteiro. Na madrugada seguinte a esse dia de fome, nós a ouvimos exclamar excitadamente enquanto dormia: “Anna Freud, molangos, molangos silvestes, omelete pudim!” Naquela época, Anna tinha o hábito de usar seu próprio nome para expressar a idéia de se apossar de algo. O menu incluía perfeitamente tudo o que lhe devia parecer constituir uma refeição desejável. O fato de os morangos aparecerem nele em duas variedades era uma manifestação contra os regulamentos domésticos de saúde. Baseava-se no fato, que ela sem dúvida havia observado, de sua ama ter atribuído sua indisposição a uma indigestão de morangos. Assim, ela retaliou no sonho contra esse veredicto indesejável.
Embora tenhamos em alta conta a felicidade da infância, por ser ela ainda inocente de desejos sexuais, não nos devemos esquecer da fonte fértil de decepção e renúncia, e conseqüentemente de estímulo ao sonho, que pode ser proporcionada pelas duas outras grandes pulsões vitais. Eis aqui outro exemplo disso. Meu sobrinho, com um ano e dez meses, fora encarregado de me cumprimentar por meu aniversário e de me presentear com uma cesta de cerejas, que ainda estavam fora de estação nessa época do ano. Ele parece ter achado a tarefa difícil, pois ficava repetindo “Celejas nela”, mas era impossível induzi-lo a entregar o presente. Contudo, ele encontrou um meio de compensação. Estava habituado, todas as manhãs, a contar à mãe que tinha tido um sonho com o “soldado branco” - um oficial da guarda envergando sua túnica branca, que ele um dia ficara na rua a contemplar com admiração. No dia seguinte ao sacrifício do aniversário, ele acordou com uma notícia animadora, que só poderia ter-se originado num sonho: “Hermann comeu todas as celejas!”

Eu mesmo não sei com que sonham os animais. Mas um provérbio, para o qual minha atenção foi despertada por um de meus alunos, alega realmente saber. “Com que”, pergunta o provérbio, “sonham os gansos?” E responde: “Com milho”. Toda a teoria de que os sonhos são realizações de desejos se acha contida nessas duas frases.

Como se vê, poderíamos ter chegado mais depressa a nossa teoria do sentido oculto dos sonhos simplesmente observando o uso lingüístico. É verdade que a linguagem comum às vezes se refere aos sonhos com desprezo. (A frase “Träume sind Schäume” [Os sonhos são espuma] parece destinada a apoiar a apreciação científica dos sonhos.) Grosso modo, porém, o uso comum trata os sonhos, acima de tudo, como abençoados realizadores de desejos. Sempre que vemos nossas expectativas ultrapassadas por um acontecimento, exclamamos em nossa alegria: “Eu nunca teria imaginado tal coisa, nem mesmo em meus sonhos mais fantásticos!”


























Capítulo IV - A DISTORÇÃO NOS SONHOS

Se eu passar a afirmar que o sentido de todos os sonhos é a realização de um desejo, isto é, que não pode haver nenhum sonho senão os sonhos desejantes, desde já estou certo de que depararei com a mais categórica refutação a tal afirmativa.
“Não há nada de novo”, dirão, “na idéia de que alguns sonhos devam ser encarados como realizações de desejos; as autoridades assinalaram esse fato há muito tempo. Cf. Radestock (1879, 137 e seg.), Volkelt (1875, 110 e seg.), Purkinje (1846, 456), Tissié (1898, 70), Simon (1888, 42, a propósito dos sonhos de fome do Barão Trenck quando prisioneiro), e um trecho em Griesinger (1845, 89). Mas afirmar que não há outros sonhos senão os de realização de desejos constitui apenas mais uma generalização injustificável, embora felizmente fácil de refutar. Afinal de contas, ocorrem numerosos sonhos que contêm os mais penosos temas, mas nenhum sinal de qualquer realização de desejo. Eduard von Hartmann, o filósofo do pessimismo, é provavelmente quem mais se afasta da teoria da realização de desejos. Em sua Philosophie des Unbewussten (1890, 2, 344), escreve: ‘Quando se trata de sonhos, vemos todas as contrariedades da vida de vigília transportadas para o estado de sono; a única coisa que não encontramos é aquilo que pode, até certo ponto, reconciliar um homem culto com a vida - o prazer científico e artístico…’ Mas até mesmo observadores menos descontentes têm insistido em que a dor e o desprazer são mais comuns nos sonhos do que o prazer: por exemplo, Scholz (1893, 57), Volkelt (1875, 80) e outros. Com efeito, duas senhoras, Florence Hallam e Sarah Weed (1896, 499), chegaram realmente a dar expressão estatística, baseada num estudo de seus próprios sonhos, à preponderância do desprazer no sonho. Verificaram que 57,2% dos sonhos são ‘desagradáveis’ e apenas 28,6% decididamente ‘agradáveis’. E, afora esses sonhos, que levam para o sono as várias emoções penosas da vida, existem sonhos de angústia, em que o mais terrível de todos os sentimentos desprazerosos nos retém em suas garras até despertarmos. E as vítimas mais comuns desses sonhos de angústia são precisamente as crianças, cujos sonhos o senhor descreveu como indisfarçáveis realizações de desejos.”
De fato, parece que os sonhos de angústia tornam possível asseverar como proposição geral (baseada nos exemplos citados em meu último capítulo) que os sonhos são realizações de desejos; na verdade, eles parecem caracterizar tal proposição como um absurdo.
Não obstante, não há grande dificuldade em enfrentar essas objeções aparentemente irrefutáveis. É necessário apenas observar o fato de que minha teoria não se baseia numa consideração do conteúdo manifesto dos sonhos, mas se refere aos pensamentos que o trabalho de interpretação mostra estarem por trás dos sonhos. Devemos estabelecer um contraste entre os conteúdos manifesto e latente dos sonhos. Não há dúvida de que existem sonhos cujo conteúdo manifesto é de natureza extremamente aflitiva. Mas terá alguém tentado interpretar esses sonhos? Revelar os pensamentos latentes que se encontram por trás deles? Se não for assim, as duas objeções levantadas contra minha teoria são inconsistentes: é ainda possível que os sonhos aflitivos e os sonhos de angústia, uma vez interpretados, revelem-se como realizações de desejos.
Quando, no decorrer de um trabalho científico, deparamos com um problema de difícil solução, muitas vezes constitui uma boa medida tomar um segundo problema juntamente com o original - da mesma forma que é mais fácil quebrar duas nozes juntas do que cada uma em separado. Assim, não só nos defrontamos com a pergunta “Como podem os sonhos aflitivos e os sonhos de angústia ser realizações de desejos?”, como também nossas reflexões permitem-nos acrescentar uma segunda pergunta: “Por que é que os sonhos de conteúdo irrelevante, que mostram ser realizações de desejos, não expressam seu sentido sem disfarces?” Tomemos, por exemplo, o sonho da injeção de Irma, que abordei exaustivamente. Não foi, de modo algum, de natureza aflitiva, e a interpretação mostrou-o como exemplo marcante da realização de um desejo. Mas por que deveria ele precisar de qualquer interpretação? Por que não expressou diretamente o que queria dizer? À primeira vista, o sonho da injeção de Irma não dava nenhuma impressão de representar como realizado um desejo do sonhador. Meus leitores não terão tido tal impressão; mas nem eu a tive antes de haver efetuado a análise. Descrevamos esse comportamento dos sonhos, que tanto carece de explicação, como “o fenômeno da distorção dos sonhos”. Assim, nosso segundo problema é: qual a origem da distorção onírica?
É possível que nos ocorram de imediato diversas soluções possíveis para o problema, como por exemplo, que existe alguma incapacidade, durante o sono, para darmos expressão direta a nossos pensamentos oníricos. Mas a análise de certos sonhos nos força a adotar outra explicação para a distorção neles existente. Exemplificarei esse ponto por meio de outro sonho que tive. Mais uma vez, esse procedimento me envolverá numa multiplicidade de indiscrições, mas a elucidação minuciosa do problema compensará meu sacrifício pessoal.
PREÂMBULO. - Na primavera de 1897, soube que dois professores de nossa universidade me haviam recomendado para nomeação como professor extraordinarius. A notícia me surpreendeu e muito me alegrou, pois implicava o reconhecimento por dois homens eminentes, que não poderia ser atribuído a quaisquer considerações de ordem pessoal. Mas logo me preveni para não ligar ao fato nenhuma expectativa. Nos últimos anos, o Ministério desconsiderara esse tipo de recomendações, e vários de meus colegas, que eram mais velhos do que e pelo menos se igualavam a mim em termos de mérito, em vão vinham esperando por uma nomeação. Eu não tinha motivos para crer que viesse a ter melhor sorte. Determinei-me, portanto, a encarar o futuro como resignação. Até onde eu me conhecia, não era um homem ambicioso; vinha seguindo minha profissão com êxito gratificante, mesmo sem as vantagens proporcionadas por um título. Além disso, não havia meios de eu dizer que as uvas estavam verdes ou maduras: elas pendiam alto demais sobre minha cabeça.
Certa noite, recebi a visita de um amigo - um dos homens cujo exemplo eu tomara como advertência para mim. Por um tempo considerável, ele fora candidato à promoção ao cargo de professor, categoria que, em nossa sociedade, transforma o médico num semideus para seus pacientes. Menos resignado que eu, porém, ele tinha o hábito de ir de vez em quando cumprimentar o pessoal das repartições do Ministério, com vistas a promover seus interesses. Estivera fazendo uma dessas visitas pouco antes de vir ver-me. Contou-me que, nessa ocasião, pressionara o exaltado funcionário e lhe perguntara à queima-roupa se a demora de sua nomeação não se prendia, de fato, a considerações sectárias. A resposta fora que, em vista do atual estado de coisas, sem dúvida era verdade que, no momento, Sua Excelência não estava em condições, etc. etc. “Pelo menos sei onde estou agora”, concluíra meu amigo. Isso não foi novidade para mim, embora estivesse fadado a fortalecer seu sentimento de resignação, pois as mesmas considerações sectárias se aplicavam ao meu próprio caso.
Na manhã seguinte a essa visita, tive o seguinte sonho, que foi notável, entre outras coisas, por sua forma. Consistiu em dois pensamentos e duas imagens - sendo cada pensamento seguido por uma imagem. Entretanto, exporei aqui apenas a primeira metade do sonho, visto que a outra metade não tem nenhuma relação com a finalidade para a qual descrevo o sonho.
I… Meu amigo R. era meu tio. - Eu tinha por ele um grande sentimento de afeição.
II. Vi seu rosto diante de mim, um tanto modificado. Era como se tivesse sido repuxado no sentido do comprimento. Uma barba amarela que o circundava destacava-se de maneira especialmente nítida.
Seguiam-se as duas outras partes que omitirei - mais uma vez, uma idéia seguida de uma imagem.
A interpretação do sonho ocorreu da seguinte forma.
Quando, no decorrer da manhã, o sonho me veio à cabeça, ri alto e disse: “O sonho é absurdo!” Mas ele se recusava a ir embora e me seguiu o dia inteiro, até que finalmente, à noite, comecei a me repreender: “Se um de seus pacientes que estivesse interpretando um sonho não encontrasse nada melhor para dizer do que afirmar que ela era um absurdo, você o questionaria sobre isso e suspeitaria de que o sonho tinha por trás alguma história desagradável, da qual o paciente queria evitar conscientizar-se. Pois trate-se da mesma maneira. Sua opinião de que o sonho é absurdo significa apenas que você tem uma resistência interna contra a interpretação dele. Não se deixe despistar dessa maneira.” Assim, dei início à interpretação.
R. era meu tio.” Que poderia significar isso? Nunca tive mais do que um tio - o Tio Josef. Havia um história triste ligada a ele. Certa vez - há mais de trinta anos -, em sua ansiedade de ganhar dinheiro, ele se deixou envolver num tipo de transação que é severamente punido pela lei, e foi efetivamente castigado por isso. Meu pai, cujo cabelos se embranqueceram de tristeza em poucos dias, costumava sempre dizer que tio Josef não era um mau homem, mas apenas um tolo; essas eram suas palavras. De modo que, se meu amigo R. era meu Tio Josef, o que eu estava querendo dizer era que R. era um tolo. Difícil de acreditar e extremamente desagradável! - Mas havia o rosto que eu via no sonho, com suas feições alongadas e a barba amarela. Meu tio, de fato, tinha um rosto como aquele, alongado e emoldurado por uma bela barba loura. Meu amigo R. fora, a princípio, extremamente moreno; mas quando as pessoas de cabelos pretos começam a ficar grisalhas, elas pagam um tributo pelo esplendor de sua juventude. Fio por fio, sua barba negra começa a passar por uma desagradável mudança de cor: primeiro, para um castanho avermelhado, depois, para um castanho amarelado, e só então para um grisalho definitivo. A barba de meu amigo R. estava, naquela ocasião, passando por essa fase - e também, por coincidência, a minha própria, como eu havia observado com insatisfação. O rosto que vi no sonho era, ao mesmo tempo, o de meu amigo R. e o de meu tio. Era como uma das fotografias compostas por Galton. (Para ressaltar as semelhanças familiares, Galton costumava fotografar vários rostos na mesma chapa [1907, 6 e segs. e 221 e segs.]). Assim, não havia dúvida de que eu realmente queria dizer que meu amigo R. era um tolo - como meu Tio Josef.
Eu ainda não tinha nenhuma idéia sobre qual poderia ser a finalidade dessa comparação, contra a qual continuava a lutar. Ela não ia muito longe, afinal, já que meu tio era um criminoso, ao passo que meu amigo R. tinha um caráter sem mácula… salvo por uma multa que lhe fora imposta por ter derrubado um menino com sua bicicleta. Poderia eu ter tido esse crime em mente? Isso teria sido ridicularizar a comparação. Nesse ponto, lembrei-me de outra conversa que tivera alguns dias antes com outro colega, N., e agora que pensava nela, lembrei que fora o mesmo assunto. Eu havia encontrado N. na rua. Ele também fora recomendado para o cargo de professor. Ouvira falar da homenagem que me fora prestada e me deu seus parabéns por isso, mas eu, sem hesitar, recusei-me a aceitá-los. “Você é a última pessoa”, disse-lhe, “a fazer essa espécie de brincadeira; você sabe o quanto vale essa recomendação por sua própria experiência.” “Quem é que pode dizer?” respondeu ele - gracejando, ao que me pareceu; “havia uma coisa clara contra mim. Você não sabe que certa vez uma mulher abriu um processo judicial contra mim? Nem é preciso dizer que o caso foi arquivado. Foi uma tentativa ignominiosa de chantagem, e tive a maior dificuldade em evitar que a acusadora deixasse de ser punida. Mas talvez eles estejam usando isso no Ministério como desculpa para não me nomearem. Mas você tem um caráter impecável.” Isso me disse quem era o criminoso e, ao mesmo tempo, mostrou-me como o sonho devia ser interpretado e qual era sua finalidade. Meu Tio Josef representava meus dois colegas que não tinham sido nomeados para o cargo de professor - um como tolo, e o outro, como criminoso. Agora, eu também compreendia por que tinham sido representados sob esse aspecto. Se a nomeação de meus amigos R. e N. tinha sido adiada por motivos “sectários”, minha própria nomeação também era duvidosa; no entanto, se eu pudesse atribuir a rejeição de meus dois amigos a outras razões, que não se aplicavam a mim, minhas esperanças permaneceriam intocadas. Fora esse o método adotado por meu sonho: ele transformara um deles, R., num tolo, e o outro, N., num criminoso, ao passo que eu não era uma coisa nem outra; assim, já não tínhamos mais nada em comum; eu podia me regozijar com minha nomeação para o cargo de professor e podia evitar a penosa conclusão de que o relato de R. sobre o que lhe dissera o alto funcionário devia aplicar-se igualmente a mim.
Mas senti-me obrigado a levar ainda mais longe minha interpretação do sonho; senti que ainda não havia terminado de lidar satisfatoriamente com ele. Ainda estava inquieto com a despreocupação com que degradara dois respeitados colegas para manter aberto meu próprio acesso ao cargo de professor. No entanto, a insatisfação com minha conduta havia diminuído desde que eu me apercebera do valor que se deve atribuir às expressões nos sonhos. Eu estava pronto a negar com toda veemência que realmente considerasse R. um tolo e que de fato desacreditasse da história de N. sobre a chantagem. Tampouco acreditava que Irma tivesse de fato ficado gravemente enferma por haver recebido uma injeção do preparado de propil de Otto. Em ambos os casos, o que meus sonhos haviam expressado era apenas meu desejo de que fosse assim. A afirmação na qual meu desejo se materializara soava menos absurda no segundo sonho do que no primeiro; este usou mais habilmente os fatos reais em sua construção, tal como uma calúnia bem engendrada do tipo que faz com que as pessoas sintam que “há qualquer coisa nisso”. Afinal, um dos professores da própria faculdade de meu amigo R. votara contra ele, e meu amigo N. me fornecera inocentemente, ele próprio, o material para minhas difamações. Não obstante, devo repetir, o sonho me parecia requerer maior elucidação.
Recordei então que havia outra parte do sonho intocada pela interpretação. Depois de me ocorrer a idéia de que R. era meu tio, eu havia experimentado um caloroso sentimento de afeição por ele no sonho. De onde vinha esse sentimento? Naturalmente, eu nunca sentira nenhuma afeição por Tio Josef. Apreciava meu amigo R. e o estimara durante muitos anos, mas, se me dirigisse a ele e expressasse meus sentimentos em termos que se aproximassem do grau de afeto que sentira no sonho, não há nenhuma dúvida de que ele teria ficado perplexo. Minha afeição por ele pareceu-me artificial e exagerada - tal como o julgamento de suas qualidades intelectuais, que eu expressara ao fundir sua personalidade com a de meu tio, embora, nesse caso, o exagero tivesse corrido no sentido oposto. Mas uma nova percepção começou a despontar em mim. A afeição, no sonho, não dizia respeito ao conteúdo latente, aos pensamentos que estavam por trás do sonho; estava em contradição com eles e tinha o propósito de ocultar a verdadeira interpretação do sonho. E é provável que essa fosse precisamente sua raison d’être. Lembrei-me de minha resistência em proceder à interpretação, de quanto a havia odiado, e de como declarara que o sonho era puro absurdo. Meus tratamentos psicanalíticos ensinaram-me como se deve interpretar um repúdio dessa natureza: ele não tinha nenhum valor como julgamento, mas era simplesmente uma expressão de emoção. Quando minha filhinha não queria uma maçã que lhe era oferecida, afirmava que a maçã estava azeda sem havê-la provado. E, quando meus pacientes se comportavam como a menina, eu sabia que estavam preocupados com uma representação que desejavam recalcar. O mesmo se aplicava a meu sonho. Eu não queria interpretá-lo porque a interpretação encerrava algo que eu estava combatendo. Quando concluí a interpretação, entendi contra que estivera lutando - isto é, a afirmação de que R. era um tolo. A afeição que eu sentia por R. não podia provir dos pensamentos oníricos latentes, mas se originara, sem dúvida, dessa luta que eu travava. Se meu sonho estava distorcido nesse aspecto em relação a seu conteúdo latente - e distorcido pareceu oposto -, então a afeição manifesta no sonho atendera ao propósito dessa distorção. Em outras palavras, a distorção, nesse caso, mostrou ser deliberada e constituiu um meio de dissimulação. Meus pensamentos oníricos tinham incluído uma calúnia contra R. e, para que eu não pudesse notá-la, o que apareceu no sonho foi o oposto: um sentimento de afeição por ele.
Pareceu-me que essa seria uma descoberta de validade geral. É verdade que, como ficou demonstrado nos exemplos citados no Capítulo III, há alguns sonhos que são realizações indisfarçadas de desejos. Mas, nos casos em que a realização de desejo é irreconhecível, em que é disfarçada, deve ter havido alguma inclinação para se erguer uma defesa contra o desejo; e, graças a essa defesa, o desejo é incapaz de se expressar, a não ser de forma distorcida. Tentarei encontrar uma distorção semelhante de um ato psíquico na vida social. Onde podemos encontrar uma distorção semelhante de um ato físico na vida social? Somente quando há duas pessoas envolvidas, e uma das quais possui certo grau de poder que a segunda é obrigada a levar em consideração. Nesse caso, a segunda pessoa distorce seus atos psíquicos, ou, como se poderia dizer, dissimula. A polidez que pratico todos os dias é, numa grande medida, uma dissimulação desse tipo; e quando interpreto meus sonhos para meus leitores, sou obrigado a adotar distorções semelhantes. O poeta se queixa da necessidade dessas distorções, com as palavras:
Das Beste, was du wissen kannst,Darfst du den Buben doch nicht sagen.
Dificuldade semelhante enfrenta o autor político que tem verdades desagradáveis a dizer aos que estão no poder. Se as apresentar sem disfarces, as autoridades reprimirão suas palavras - depois de proferidas, no caso de um pronunciamento oral, mas de antemão, caso ele pretenda fazê-lo num texto impresso. O escritor tem de estar precavido contra a censura e, por causa dela, precisa atenuar e distorcer a expressão de sua opinião. Conforme o rigor e a sensibilidade da censura, ele se vê compelido a simplesmente abster-se de certas formas de ataque ou a falar por meio de alusões em vez de referências diretas, ou tem que ocultar seu pronunciamento objetável sob algum disfarce aparentemente inocente: por exemplo, pode descrever uma contenda entre dois mandarins do Império do Meio [na China], quando as pessoas que de fato tem em mente são autoridades de seu próprio país. Quanto mais rigorosa a censura, mais amplo será o disfarce e mais engenhoso também será o meio empregado para pôr o leitor no rastro do verdadeiro sentido.

O fato de os fenômenos da censura e da distorção onírica corresponderem uns aos outros nos mínimos detalhes justifica nossa pressuposição de que sejam similarmente determinados. Podemos, portanto, supor que os sonhos recebem sua forma em cada ser humano mediante a ação de duas forças psíquicas (ou podemos descrevê-las como correntes ou sistemas) e que uma dessas forças constrói o desejo que é expresso pelo sonho, enquanto a outra exerce uma censura sobre esse desejo onírico e, pelo emprego dessa censura, acarreta forçosamente uma distorção na expressão do desejo. Resta indagar sobre a natureza do poder desfrutado por sua segunda instância, que lhe permite exercer sua censura. Quando temos em mente que os pensamentos oníricos latentes não são conscientes antes de se proceder a uma análise, ao passo que o conteúdo manifesto do sonho é conscientemente lembrado, parece plausível supor que o privilégio fruído pela segunda instância seja o de permitir que os pensamentos penetrem na consciência. Nada, ao que parece, pode atingir a consciência a partir do primeiro sistema sem passar pela segunda instância; e a segunda instância não permite que passe coisa alguma sem exercer seus direitos e fazer as modificações que julgue adequadas no pensamento que busca acesso à consciência. A propósito, isso nos permite formar um quadro bem definido da “natureza essencial” da consciência: vemos o processo de conscientização de algo como um ato psíquico específico, distinto e independente do processo de formação de uma representação ou idéia; e encaramos a consciência como um órgão sensorial que percebe dados surgidos em outros lugares. É possível demonstrar que esses pressupostos básicos são absolutamente indispensáveis à psicopatologia. Devemos, porém, adiar nossas maiores considerações sobre eles para um estágio posterior. [Ver Capítulo VII, particularmente a Seção F, em [1]]
Aceitando-se esse quadro das duas instâncias psíquicas e de sua relação com a consciência, há uma completa analogia, na vida política, com a extraordinária afeição que senti em meu sonho por meu amigo R., que foi tratado com tanto desprezo durante a interpretação do sonho. Imaginemos uma sociedade em que esteja havendo uma luta entre um governante cioso de seu poder e uma opinião pública alerta. O povo está revoltado contra uma autoridade impopular e exige sua demissão. Mas o autocrata, para mostrar que não precisa levar em conta o desejo popular, escolhe esse momento para conferir uma alta honraria à citada autoridade, embora não haja nenhuma outra razão para fazê-lo. De maneira idêntica, minha segunda instância, que domina o acesso à consciência, distinguiu meu amigo R. com uma exibição de afeição excessiva, simplesmente porque os impulsos de desejo pertencentes ao primeiro sistema, por suas próprias razões particulares, para as quais estavam voltados naquele momento, resolveram condená-lo como um tolo.
Essas considerações talvez nos levem a achar que a interpretação dos sonhos poderá permitir-nos tirar, em relação à estrutura de nosso aparelho psíquico, as conclusões que em vão temos esperado da filosofia. Não pretendo, contudo, seguir essa linha de pensamento [adotada no Capítulo VII]; mas, tendo esclarecido a questão da distorção dos sonhos, voltarei ao problema de onde partimos. A questão levantada foi de que modo os sonhos com um conteúdo aflitivo podem decompor-se em realizações de desejos. Vemos agora que isso é possível, se a distorção do sonho tiver ocorrido e se o conteúdo penoso servir apenas para disfarçar algo que se deseja.Tendo em mente nosso pressuposto da existência de duas instâncias psíquicas, podemos ainda dizer que os sonhos aflitivos de fato encerram alguma coisa que é penosa para a segunda instância, mas que, ao mesmo tempo, realiza um desejo por parte da primeira instância. São sonhos de desejos, na medida em que todo sonho decorre da primeira instância: a relação da segunda instância com os sonhos é de natureza defensiva, e não criativa. Se nos limitássemos a considerar em que a segunda instância contribui para os sonhos, jamais conseguiríamos chegar a um entendimento deles: todas as charadas que as autoridades têm observado nos sonhos permaneceriam insolúveis.
O fato de os sonhos realmente terem um significado secreto que representa a realização de um desejo tem de ser provado novamente pela análise em cada caso específico. Escolherei, portanto, alguns sonhos com um conteúdo aflitivo e tentarei analisá-los. Alguns deles são sonhos de pacientes histéricos, que exigem extensos preâmbulos e uma incursão ocasional nos processos psíquicos característicos da histeria. Mas não posso escapar a esse agravamento das dificuldades de apresentar minha tese. [Ver em [1].]
Como já expliquei [em [1]], quando empreendo o tratamento analítico de um paciente psiconeurótico, seus sonhos são invariavelmente discutidos entre nós. No decurso dessas discussões, sou obrigado a dar-lhe todas as explicações psicológicas que permitiram a mim mesmo chegar a uma compreensão de seus sintomas. A partir daí, fico sujeito a uma crítica implacável, por certo não menos severa do que a que tenho de esperar dos membros de minha própria profissão. E meus pacientes invariavelmente contradizem minha asserção de que todos os sonhos são realizações de desejos. Eis aqui, portanto, alguns exemplos do material de sonhos apresentados contra mim como provas em contrário.
“O senhor sempre me diz”, começou uma inteligente paciente minha, “que o sonho é um desejo realizado.” Pois bem, vou lhe contar um sonho cujo tema foi exatamente o oposto - um sonho em que um de meus desejos não foi realizado. Como o senhor enquadra isso em sua teoria? Foi este o sonho:
Eu queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um pequeno salmão defumado. Pensei em sair e comprar alguma coisa, mas então me lembrei que era domingo à tarde e que todas as lojas estariam fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone estava com defeito. Assim, tive de abandonar meu desejo de oferecer uma ceia.”
Respondi, naturalmente, que a análise era a única forma de decidir quanto ao sentido do sonho, embora admitisse que, à primeira vista, ele se afigurava sensato e coerente e parecia ser o inverso da realização de um desejo. “Mas de que material decorreu o sonho? Como sabe, a instigação de um sonho é sempre encontrada nos acontecimentos da véspera.”

ANÁLISE. - O marido de minha paciente, um açougueiro atacadista, honesto e competente, comentara com ela, na véspera, que estava ficando muito gordo e que, por isso, pretendia começar um regime de emagrecimento. Propunha-se levantar cedo, fazer exercícios físicos, ater-se a uma dieta rigorosa e, acima de tudo, não aceitar mais convites para cear. - Ela acrescentou, rindo, que o marido, no lugar onde almoçava regularmente, tratava conhecimento com um pintor que o pressionara a lhe permitir que pintasse seu retrato, pois nunca vira feições tão expressivas. O marido, contudo, replicara, à sua maneira rude, que ficava muito agradecido, mas tinha a certeza de que o pintor preferiria parte do traseiro de uma bonita garota a todo o seu rosto. Ela estava muito apaixonada pelo marido e caçoava muito dele. Ela também implorara a ele que não lhe desse nenhum caviar.
Perguntei-lhe o que significava isso, e ela explicou que há muito tempo desejava comer um sanduíche de caviar todas as manhãs, mas relutava em fazer essa despesa. Naturalmente, o marido a deixara obtê-lo imediatamente, se ela lhe tivesse pedido. Mas, ao contrário, ela lhe pedira que não lhe desse caviar, para poder continuar a mexer com ele por causa disso.
Essa explicação me pareceu pouco convincente. Em geral, essas razões insuficientes ocultam motivos inconfessáveis. Fazem-nos lembrar os pacientes hipnotizados de Bernheim. Quando um deles executa uma sugestão pós-hipnótica e lhe perguntam por que está agindo daquela maneira, em vez de dizer que não tem a menor idéia, ele se sente compelido a inventar alguma razão obviamente insatisfatória. O mesmo, sem dúvida, se aplicava a minha paciente e ao caviar. Vi que ela fora obrigada a criar para si mesma um desejo não realizado na vida real, e o sonho representava essa renúncia posta em prática. Mas por que precisaria ela de um desejo não realizado?
As associações que ela apresentara até então não tinham sido suficientes para interpretar o sonho. Pressionei-a para que apresentasse outras. Após uma pausa curta, como a que corresponderia à superação de uma resistência, ela prosseguiu dizendo que, na véspera, visitara uma amiga de quem confessava ter ciúmes porque seu marido (de minha paciente) estava constantemente a elogiá-la. Felizmente, essa sua amiga é muito ossuda e magra, e o marido de minha paciente admira figuras mais cheinhas. Perguntei-lhe o que havia conversado com sua amiga magra. Naturalmente, respondeu, sobre o desejo dela de engordar um pouco. A amiga também lhe perguntara: “Quando é que você vai nos convidar para outro jantar? Os que você oferece são sempre ótimos.”
Agora o sentido do sonho estava claro, e pude dizer a minha paciente: “É como se, quando ela fez essa sugestão, a senhora tivesse dito a si mesma: ‘Pois sim! Vou convidá-la para comer em minha casa só para que você possa engordar e atrair meu marido ainda mais! Prefiro nunca mais oferecer um jantar.’ O que o sonho lhe disse foi que a senhora não podia oferecer nenhuma ceia, e assim estava realizando seu desejo de não ajudar sua amiga a ficar mais cheinha. O fato de que o que as pessoas comem nas festas as engorda lhe fora lembrado pela decisão de seu marido de não mais aceitar convites para jantar, em benefício de seu plano de emagrecer.” Só faltava agora alguma coincidência que confirmasse a solução. O salmão defumado do sonho ainda não fora explicado. “Como foi”, perguntei, “que a senhora chegou ao salmão que apareceu em seu sonho?” “Oh”, exclamou ela, “salmão defumado é o prato predileto de minha amiga!” Acontece que eu mesmo conheço a senhora em questão e posso afirmar o fato de que ela se ressente tanto de não comer salmão quanto minha paciente de não comer caviar.
O mesmo sonho admite uma outra interpretação, mais sutil, que de fato se torna inevitável se levarmos em conta um detalhe adicional. (As duas interpretações não são mutuamente contraditórias, mas ambas cobrem o mesmo terreno; constituem um bom exemplo do fato de que os sonhos, como todas as outras estruturas psicopatológicas, têm regularmente mais de um sentido.) Minha paciente, como se pode lembrar, ao mesmo tempo que estava ocupada com seu sonho de renúncia a um desejo, também tentava efetivar um desejo renunciado (pelo sanduíche de caviar) na vida real. Sua amiga também dera expressão a um desejo - de engordar -, e não seria de surpreender que minha paciente tivesse sonhado que o desejo de sua amiga não fora realizado, pois o próprio desejo de minha paciente era que o de sua amiga (engordar) não se realizasse. Mas, em vez disso, ela sonhou que um de seus próprios desejos não era realizado. Portanto, o sonho adquirirá nova interpretação se supusermos que a pessoa nele indicada não era ela mesma, e sim a amiga: que ela se colocara no lugar da amiga, ou, como poderíamos dizer, que se “identificara” com a amiga. Creio que ela de fato fizera isso, e a circunstância de ter efetivado um desejo renunciado na vida real foi prova dessa identificação.
Qual é o sentido da identificação histérica? Isso exige uma explicação um tanto extensa. A identificação é um fator altamente importante no mecanismo dos sintomas histéricos. Ela permite aos pacientes expressarem em seus sintomas não apenas suas próprias experiências, como também as de um grande número de outras pessoas: permite-lhes, por assim dizer, sofrer em nome de toda uma multidão de pessoas e desempenhar sozinhas todos os papéis de uma peça. Dirão que isso não passa da conhecida imitação histérica, da capacidade dos histéricos de imitarem quaisquer sintomas de outras pessoas que possam ter despertado sua atenção - solidariedade, por assim dizer, intensificada até o ponto da reprodução. Isso, porém, não faz mais do que indicar-nos a trilha percorrida pelo processo psíquico na imitação histérica. Essa trilha é diferente do ato mental que se processa ao longo dela. Este é um pouco mais complicado do que o quadro comum da imitação histérica; consiste na feitura inconsciente de uma inferência, como um exemplo deixará claro. Suponhamos que um médico esteja tratando de uma paciente sujeita a um tipo específico de espasmo numa enfermaria hospitalar, em meio a muitos outros pacientes. Ele não mostrará nenhuma surpresa se constatar, numa manhã, que essa forma específica de ataque histérico encontrou imitadores. Dirá apenas: “Os outros pacientes viram isso e o copiaram; é um caso de contágio psíquico.” Isso é verdade; mas o contágio psíquico ocorreu mais ou menos nos seguintes moldes: em geral, os pacientes sabem mais a respeito uns dos outros do que o médico sobre qualquer um deles; e uma vez terminada a visita do médico, eles voltam sua atenção para os companheiros. Imaginemos que essa paciente tenha tido seu ataque num determinado dia; ora, os outros descobrirão rapidamente que ele foi causado por uma carta recebida de casa, pelo reflorescimento de um romance infeliz, ou coisa semelhante. Sua solidariedade é despertada e eles fazem a seguinte inferência, embora ela não consiga penetrar na consciência: “Se uma causa como esta pode produzir um ataque assim, posso ter o mesmo tipo de ataque, já que tenho as mesmas razões para isso.” Se essa inferência fosse capaz de penetrar na consciência, é possível que desse margem a um medo de ter a mesma espécie de ataque. Mas, de fato, a inferência se processa numa região psíquica diferente e conseqüentemente resulta na concretização real do temido sintoma. Assim, a identificação não constitui uma simples imitação, mas uma assimilação baseada numa alegação etiológica semelhante; ela expressa uma semelhança e decorre de um elemento comum que permanece no inconsciente.
A identificação é empregada com mais freqüência na histeria para expressar um elemento sexual comum. Uma mulher histérica se identifica mais rapidamente - embora não exclusivamente - em seus sintomas com as pessoas com quem tenha tido relações sexuais, ou com as pessoas que tenham tido relações sexuais com as mesmas pessoas que ela. O uso da língua leva isso em conta, pois fala-se em duas pessoas apaixonadas como sendo “uma só”. Nas fantasias histéricas, tal como nos sonhos, é suficiente, para fins de identificação, que o sujeito tenha pensamentos sobre relações sexuais, sem que estas tenham necessariamente ocorrido na realidade. Assim, a paciente cujo sonho venho discutindo estava simplesmente seguindo as normas dos processos histéricos de pensamento ao expressar ciúme da amiga (que, aliás, ela própria sabia ser injustificado), ocupar seu lugar no sonho e identificar-se como ela por meio da criação de um sintoma - o desejo renunciado. O processo poderia expressar-se verbalmente da seguinte maneira: minha paciente colocou-se no lugar da amiga, no sonho, porque esta estava ocupando o lugar de minha paciente junto ao marido e porque ela (minha paciente) queria tomar o lugar da amiga no alto conceito em que o marido a tinha.
Uma contradição a minha teoria dos sonhos, produzida por outra de minhas pacientes (a mais sagaz de todas as que relatam seus sonhos), resolveu-se de maneira mais simples, porém com base no mesmo padrão, a saber, que a não-realização de um desejo significava a realização de outro. Certo dia, eu lhe estivera explicando que os sonhos são realizações de desejos. No dia seguinte, ela me trouxe um sonho em que estava viajando com a sogra até o lugar no campo onde iriam passar juntas as férias. Ora, eu sabia que ela se rebelara violentamente contra a idéia de passar o verão perto da sogra e que, poucos dias antes, conseguira evitar a temida proximidade reservando aposentos numa estação de veraneio muito distante. E agora, seu sonho desfizera a solução que ela havia desejado: não seria isso a mais contundente contradição possível de minha teoria de que, nos sonhos, os desejos são realizados? Sem dúvida; e bastou seguir a conseqüência lógica do sonho para chegar a sua interpretação. O sonho mostrou que eu estava errado. Logo, era seu desejo que eu estivesse errado, e seu sonho mostrou esse desejo realizado. Mas seu desejo de que eu estivesse errado, que se realizou em relação a suas férias de verão, dizia respeito, de fato, a um outro assunto mais sério. Pois, mais ou menos nessa época, eu havia inferido do material produzido em sua análise que, num período específico de sua vida, deveria ter ocorrido algo que foi relevante na determinação de sua doença. Ela contestara isso, visto não ter nenhuma lembrança de tal coisa, mas, logo depois, ficou provado que eu estava certo. Assim, seu desejo de que eu estivesse errado, que se transformou em seu sonho de passar as férias com a sogra, correspondia a um desejo bastante justificado de que os fatos de que ela não vinha conscientizando pela primeira vez nunca tivessem ocorrido.
Aventurei-me a interpretar - sem nenhuma análise, mas apenas por meio de um palpite - um pequeno episódio ocorrido com um amigo meu que freqüentara a mesma classe que eu durante todo o nosso curso secundário. Um dia, ele ouviu uma palestra que proferi perante um pequeno auditório sobre a idéia inédita de que os sonhos eram realizações de desejos. Foi para casa e sonhou que perdera todos os seus casos (ele era advogado), e depois me contestou nesse assunto. Fugi à questão, dizendo-lhe que, afinal de contas, não se podem ganhar todos os casos. Mas pensei comigo mesmo: “Considerando que, por oito anos a fio, sentei-me no banco da frente como primeiro da classe, enquanto ele ficava ali pelo meio, ele dificilmente pode deixar de alimentar um desejo, remanescente de seus tempos de escola, de que mais dia menos dia, eu venha a me tornar um completo fracasso.”
Um sonho de natureza mais sombria foi também apresentado contra mim por uma paciente como objeção à teoria dos sonhos de desejo.
A paciente, um moça de pouca idade, assim começou: “Como o senhor deve estar lembrado, minha irmã só tem agora um menino - Karl; ela perdeu o filho mais velho, Otto, quando eu ainda morava com ela. Otto era meu favorito; de certa forma, eu o criei. Também gosto do menorzinho, mas, é claro, nem de longe tanto quanto gostava do que morreu. Então, ontem à noite, sonhei que via Karl morto diante de mim. Estava deitado em seu caixãozinho, com as mãos postas e velas a seu redor - de fato, exatamente como o pequeno Otto, cuja morte foi um golpe tão forte para mim. Agora me diga: que pode significar isso? O senhor me conhece. Será que sou uma pessoa tão má a ponto de desejar que minha irmã perca o único filho que ainda tem? Ou será que o sonho significa que eu preferiria que Karl estivesse morto, em vez de Otto, de quem eu gostava muito mais?”
Assegurei-lhe que esta última interpretação estava fora de cogitação. E, depois de refletir um pouco, pude dar-lhe a interpretação correta do sonho, posteriormente confirmada por ela. Pude fazê-lo porque estava familiarizado com toda a história prévia da autora do sonho.
Essa moça ficara órfã em tenra idade e fora criada na casa de uma irmã muito mais velha. Entre os amigos que freqüentavam a casa, havia um homem que deixou uma impressão duradoura em seu coração. Por algum tempo, pareceu que suas relações mal admitidas com ele levariam ao casamento, mas esse desenlace feliz foi reduzido a cinzas pela irmã, cujos motivos jamais foram plenamente explicados. Depois do rompimento, esse homem deixou de freqüentar a casa e, pouco depois da morte do pequeno Otto, para quem ela voltara sua afeição neste ínterim, minha paciente fixou residência própria sozinha. Não conseguiu, contudo, libertar-se de seu apego pelo amigo da irmã. Seu orgulho ordenava que o evitasse, mas ela não conseguiu transferir seu amor para nenhum dos outros admiradores que se apresentaram posteriormente. Sempre que se anunciava que o objeto de suas afeições, que era por profissão um homem de letras, ia proferir uma palestra em algum lugar, ela estava invariavelmente na platéia; e aproveitava todas as oportunidades possíveis de contemplá-lo à distância em campo neutro. Lembrei-me de que ela me dissera, na véspera, que o Professor iria a um certo concerto, e que ela pretendia ir também para ter o prazer de dar uma olhadela nele mais uma vez. Isso ocorrera na véspera do sonho, e o concerto iria realizar-se no dia em que ela o relatou a mim. Foi-me portanto fácil construir a interpretação correta, e perguntei-lhe se podia pensar em alguma coisa que tivesse acontecido após a morte do pequeno Otto. Ela respondeu de pronto: “Naturalmente; o Professor veio visitar-nos de novo depois de uma longa ausência e eu o vi mais uma vez ao lado do caixão do pequeno Otto.” Isso era exatamente o que eu esperava, e interpretei o sonho desta forma: “Se o outro menino morresse agora, aconteceria a mesma coisa. Você passaria o dia com sua irmã, e o Professor certamente viria apresentar seus pêsames, de modo que você o veria mais uma vez nas mesmas condições que na outra ocasião. O sonho significa apenas seu desejo de vê-lo mais uma vez, um desejo contra o qual você vem lutando internamente. Sei que você tem na bolsa uma entrada para o concerto de hoje. Seu sonho foi um sonho de impaciência: antecipou em algumas horas a visão que você vai ter dele hoje.”
A fim de ocultar seu desejo, ela evidentemente escolhera uma situação em que tais desejos costumam ser suprimidos, na situação em que se está tão repleto de tristeza que não se tem nenhum pensamento amoroso. Contudo, é bem possível que, mesmo na situação real da qual o sonho foi uma réplica exata, junto ao caixão do menino mais velho a quem ela amara ainda mais, talvez ela não tenha podido suprimir seus ternos sentimentos pelo visitante que estivera ausente por tanto tempo.
Um sonho semelhante de outra paciente recebeu uma explicação diferente. Quando jovem ela se destacara por sua inteligência viva e sua disposição alegre; e essas características ainda podiam ser observadas, pelo menos nas idéias que lhe ocorriam durante o tratamento. No decorrer de um sonho um tanto longo, essa senhora imaginou ver sua única filha, de quinze anos de idade, morta “numa caixa”. Estava parcialmente inclinada a utilizar essa cena como uma objeção à teoria da realização dos desejos, embora ela própria suspeitasse de que o detalhe da “caixa” devia estar apontando para outra visão do sonho. No decorrer da análise, ela lembrou que, numa reunião na noite anterior, falara-se um pouco sobre a palavra inglesa “box” e as várias formas pelas quais se poderia traduzi-la em alemão - tais como “Schachtel” [“caixa”] “Loge” [“camarote de teatro”], Kasten [arca], “Ohrfeige” [“murro no ouvido”], e assim por diante. Outras partes do mesmo sonho nos permitiram descobrir ainda que ela havia pensado que “box”, em inglês, se relacionava mesmo com o “Büchse” [“receptáculo”] em alemão, e que depois fora atormentada pela lembrança de que “Büchse” é empregado como termo vulgar para designar os órgãos genitais femininos. Fazendo uma certa concessão aos limites de seus conhecimentos de anatomia topográfica, poder-se-ia presumir, portanto, que a criança que jazia na caixa significava um embrião no útero. Após ter sido esclarecida quanto a esse ponto, ela não mais negou que a imagem onírica correspondesse a um desejo seu. Como tantas jovens casadas, ela não ficara nada satisfeita ao engravidar, e, mais de uma vez, tinha-se permitido desejar que a criança que trazia no ventre morresse. De fato, num acesso de cólera após uma cena violenta com o marido, ela batera com os punhos cerrados no próprio corpo para atingir a criança lá dentro. Dessa forma, a criança morta era de fato a realização de um desejo, mas de um desejo que fora posto de lado quinze anos antes. Dificilmente se pode ficar admirado com o fato de um desejo realizado após uma demora tão prolongada não ser reconhecido. Muitas coisas haviam mudado nesse intervalo. [1]
Terei de voltar ao grupo de sonhos a que pertencem os dois últimos exemplos (sonhos que tratam da morte de parentes a quem o sonhador é afeiçoado) quando vier a considerar os sonhos “típicos” [em [1]]. Poderei então mostrar, mediante outros exemplos, que, apesar de seu conteúdo não desejado, todos esses sonhos devem ser interpretados como realizações de desejos.
Devo o sonho seguinte não a um paciente, mas a um inteligente jurista de minhas relações. Ele o narrou a mim, mais uma vez, para me impedir de fazer uma generalização apressada da teoria dos sonhos de desejos. “Sonhei”, disse meu informante, “que chegava a minha casa de braço dado com uma senhora. Havia uma carruagem fechada em frente à casa e um homem dirigiu-se a mim, mostrou-me suas credenciais de policial e me solicitou que o acompanhasse. Pedi-lhe que me concedesse algum tempo para pôr meus negócios em ordem. Será que o senhor acha que eu tenho um desejo de ser preso?” - Naturalmente que não, não pude deixar de concordar. O senhor sabe por acaso sob que acusação foi preso? - “Sim, por infanticídio, creio eu.” - Infanticídio? Mas por certo o senhor sabe que esse é um crime que só pode ser praticado por uma mãe contra um recém-nascido, não sabe? - “É verdade.”2 - E em que circunstâncias o senhor teve o sonho? Que aconteceu na noite anterior? - “Preferiria não lhe dizer. É um assunto delicado.” - Mesmo assim, terei de ouvi-lo; caso contrário, teremos de desistir da idéia de interpretar o sonho. - “Muito bem; então, escute. Ontem não passei a noite em casa, e sim com uma dama que significa muito para mim. Ao acordarmos pela manhã, houve outro contato entre nós, depois do qual dormi novamente e tive o sonho que lhe descrevi.” - Ela é casada? - “É.” - E o senhor não quer ter um filho com ela, não é verdade? “Ah, não; isso poderia nos denunciar.” - Então o senhor não pratica o coito normal? - “Tomo a precaução de retirar antes da ejaculação.” - Acho que posso presumir que o senhor usou esse expediente várias vezes durante a noite, e que depois de repeti-lo pela manhã sentiu-se um pouco inseguro sobre tê-lo executado com êxito. - “É possível, sem dúvida.” - Nesse caso, seu sonho foi a realização de um desejo. Tranqüilizou-o com a idéia de que o senhor não havia gerado uma criança, ou, o que dá no mesmo, que matara uma criança. Os elos intermediários são fáceis de apontar. O senhor deve estar lembrado de que, alguns dias atrás, falávamos das dificuldades do casamento, e de como é incoerente que não haja nenhuma objeção a que se pratique o coito de modo a não permitir que ocorra a fertilização, ao passo que qualquer interferência depois que o óvulo e o sêmen se unem e um feto é formado é punida como crime. Depois disso, lembramos a controvérsia medieval sobre o momento exato em que a alma penetra no feto, já que é apenas depois disso que o conceito de assassinato se torna aplicável. Sem dúvida, o senhor também conhece o tétrico poema de Lenau [“Das tote Glück”] em que o assassinato de crianças e a prevenção da natalidade são igualados. - “O curioso é que pensei em Lenau esta manhã, por mero acaso, ao que me pareceu.” - Um eco posterior de seu sonho. E agora posso mostrar-lhe outra realização incidental de desejo contida em seu sonho. O senhor chegou em casa de braços dados com a dama. Logo, estava levando-a para casa, em vez de passar a noite na casa dela, como fez na realidade. É possível que haja mais de uma razão para que a realização do desejo que constitui o cerne do sonho tenha-se disfarçado de forma tão desagradável. Talvez o senhor tenha ficado sabendo, por meu artigo sobre a etiologia da neurose de angústia [Freud, 1895b], que considero o coitus interruptus como um dos fatores etiológicos no desenvolvimento da angústia neurótica, não é? Seria condizente com isso que, depois de praticar o ato sexual várias vezes dessa maneira, o senhor ficasse com um mal-estar que depois se transformaria num elemento da construção de seu sonho. Além disso, o senhor utilizou esse mal-estar para ajudar a disfarçar a realização do desejo. [Ver em [1].] A propósito, sua referência ao infanticídio não foi explicada. Como é que o senhor foi dar com esse crime especificamente feminino? - “Tenho de admitir que, alguns anos atrás, vi-me envolvido numa ocorrência desse tipo. Fui responsável pela tentativa de uma moça de evitar a conseqüência de uma ligação amorosa comigo por meio de um aborto. Nada tive a ver com o fato de ela pôr em prática sua intenção, mas, por muito tempo, senti-me naturalmente muito nervoso com a idéia de que a história viesse a público.” - Compreendo perfeitamente. Essa lembrança fornece uma segunda razão pela qual o senhor deve ter-se preocupado com a suspeita de que seu expediente pudesse não ter funcionado. [1]
Um jovem médico que me ouviu descrever esse sonho durante um ciclo de palestras deve ter ficado muito impressionado com ele, pois imediatamente o reproduziu, aplicando o mesmo padrão de pensamento a outro tema. Um dia antes, ele entregara sua declaração de imposto de renda, que havia preenchido com perfeita honestidade, pois tinha muito pouco a declarar. Então, sonhou que um conhecido seu foi procurá-lo após sair de uma reunião de membros da comissão de impostos e informou-o de que, embora não se tivesse levantado qualquer objeção a nenhuma das outras declarações, a dele provocara suspeitas generalizadas e uma pesada multa lhe fora imposta. O sonho foi uma realização precariamente disfarçada de seu desejo de ser conhecido como um médico possuidor de grande renda. Isso faz lembrar a célebre história da moça que foi aconselhada a não aceitar um certo pretendente, porque ele tinha um gênio violento e por certo iria espancá-la se se casassem. “Ah, se ele já tivesse começado a me espancar!”, respondeu ela. Seu desejo de se casar era tão intenso que estava disposta a aceitar, de quebra, essa ameaça de aborrecimento, chegando mesmo a transformá-la num desejo.
Os sonhos muito freqüentes, que parecem contradizer minha teoria, por terem como tema a frustração de um desejo ou a ocorrência de algo claramente indesejado, podem ser reunidos sob o título de “sonhos com o oposto do desejo”. Se esses sonhos forem considerados como um todo, parece-me possível buscar sua origem em dois princípios; ainda não mencionei um deles, embora desempenhe um papel relevante não apenas nos sonhos das pessoas, como também em suas vidas. Uma das duas forças propulsoras que levam a esses sonhos é o desejo de que eu esteja errado. Tais sonhos aparecem regularmente no curso de meus tratamentos, quando um paciente se encontra num estado de resistência a mim; e posso contar como quase certo provocar um deles depois de explicar a um paciente, pela primeira vez, minha teoria de que os sonhos são realizações de desejos. A rigor, é de se esperar que a mesma coisa aconteça com alguns dos leitores frustrados num sonho, caso seu desejo de que eu esteja errado possa se realizar.
Esse mesmo ponto é ilustrado por um último sonho dessa natureza que citarei aqui, obtido de uma paciente em tratamento. Foi o sonho de uma moça que tivera êxito em sua luta para continuar seu tratamento comigo, contrariando a vontade dos parentes e dos especialistas cujas opiniões tinham sido consultadas. Sonhou que seus familiares a haviam proibido de continuar a me consultar. Lembrou-me então a promessa que eu lhe fizera de, se necessário, continuar o tratamento sem honorários. A isso, respondi: “Não posso fazer nenhuma concessão em questões de dinheiro.” É preciso admitir que não foi fácil identificar a realização de desejo nesse exemplo. Mas, em todos esses casos, descobre-se um segundo enigma cuja solução ajuda a desvendar o primeiro. Qual a origem das palavras que ela pôs em minha boca? Naturalmente, eu não lhe dissera nada semelhante, mas um de seus irmãos - o que maior influência exercia sobre ela - tivera a gentileza de me atribuir esse sentimento. O sonho, portanto, pretendia provar que o irmão dela estava certo. E não era apenas em seus sonhos que ela insistia em que ele tinha razão; a mesma idéia dominava toda a sua vida e era o motivo de sua doença.
Um sonho que parece à primeira vista trazer dificuldades especiais para a teoria da realização de desejos foi sonhado e interpretado por um médico, e relatado por August Stärcke (1911): “Vi em meu dedo indicador esquerdo o primeiro indício [Primäraffekt] de sífilis na falange terminal.” A consideração de que, independentemente do conteúdo indesejado do sonho, ele parece claro e coerente, poderia dissuadir-nos de analisá-lo. No entanto, se estivermos dispostos a enfrentar o trabalho envolvido, descobriremos que “Primäraffekt” era equivalente a uma “prima affectio” (um primeiro amor), e que a úlcera repelente veio a representar, para citar as palavras de Stärcke, “realizações de desejos com uma alta carga emocional”.
O segundo motivo para os sonhos com o oposto do desejo é tão óbvio que é fácil deixá-lo passar despercebido, como eu mesmo fiz por tempo considerável. Há um componente masoquista na constituição sexual de muitas pessoas, que decorre da inversão de um componente agressivo e sádico em seu oposto. Aqueles que encontram prazer não na inflição de dor física a eles, mas na humilhação e na tortura mental, podem ser descritos como “masoquistas mentais”. Percebe-se de imediato que essas pessoas podem ter sonhos com o oposto do desejo e sonhos desprazerosos que são, ainda assim, realizações de desejos, pois satisfazem suas inclinações masoquistas. Citarei um desses sonhos, produzido por um rapaz que, em sua meninice, havia atormentado imensamente seu irmão mais velho, por quem tinha um apego homossexual. Tendo seu caráter passado por uma modificação fundamental, ele teve o seguinte sonho, dividido em três partes: I. Seu irmão mais velho estava mexendo com ele. II. Dois homens se acariciavam com um objetivo homossexual. III. Seu irmão vendera o negócio cujo diretor ele próprio aspirava tornar-se. Ele despertou deste último sonho com sentimentos extremamente aflitivos. Não obstante, tratava-se de um sonho masoquista de desejo e poderia ser traduzido assim: “Seria bem feito para mim se meu irmão me confrontasse com essa venda, como punição por todos os tormentos que ele teve de aturar de mim.”
Espero que os exemplos anteriores sejam suficientes (até que se levante a próxima objeção) para fazer com que pareça plausível que mesmo os sonhos de conteúdo aflitivo devem ser interpretados como realizações de desejos. Ninguém, tampouco, há de considerar mera coincidência que a interpretação desses sonhos nos tenha feito deparar, todas as vezes, com tópicos sobre os quais as pessoas relutam em falar ou pensar. Os sentimento aflitivo provocado por esses sonhos é idêntico à repugnância que tende (em geral com êxito) a nos impedir de discutir ou mencionar tais tópicos, e que cada um de nós tem de superar quando, apesar disso, sente-se compelido a penetrar neles. Mas o sentimento de desprazer que assim se repete nos sonhos não nega a existência de um desejo. Todos têm desejos que prefeririam não revelar a outras pessoas, e desejos que não admitem nem sequer perante si mesmos. Por outro lado, é justificável ligarmos o caráter desprazeroso de todos esses sonhos com o fato da distorção onírica. E é justificável concluirmos que esses sonhos são distorcidos, e que a realização de desejo neles contida é disfarçada a ponto de se tornar irreconhecível, precisamente em vista da repugnância que se sente pelo tema do sonho ou pelo desejo dele derivado, bem como da intenção de recalcá-los. Demonstra-se, assim, que a distorção do sonho é de fato um ato da censura. Estaremos levando em conta tudo o que foi trazido à luz por nossa análise dos sonhos desprazerosos se fizermos a seguinte modificação na fórmula com que procuramos expressar a natureza dos sonhos: o sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo (suprimido ou recalcado.)
Resta examinar os sonhos de angústia como uma subespécie particular dos sonhos de conteúdo aflitivo. A idéia de considerá-los como sonhos impregna dos de desejo encontrará muito pouca receptividade por parte dos não esclarecidos. Não obstante, posso abordar os sonhos de angústia muito sucintamente neste ponto. Eles não nos apresentam um novo aspecto do problema dos sonhos; aquilo com que nos confrontam é toda a questão da angústia neurótica. A angústia que sentimos num sonho é apenas aparentemente explicada pelo conteúdo do sonho. Se submetermos o conteúdo do sonho à análise, verificaremos que a angústia do sonho não se justifica melhor pelo conteúdo do sonho do que, digamos, a angústia de uma fobia se justifica pela representação com que se relaciona a fobia. Sem dúvida é verdade, por exemplo, que é possível cair de uma janela, e portanto há razão para se exercer certo grau de cautela nas proximidades de uma janela; mas não vemos por que a angústia sentida a esse respeito numa fobia deva ser tão grande e persiga o paciente muito além da oportunidade de sua ocorrência. Assim, constatamos que a mesma coisa pode ser validamente afirmada em relação à fobia e aos sonhos de angústia: em ambos os casos, a angústia está apenas superficialmente ligada à representação que a acompanha; ela se origina em outra fonte.
Já que existe estreita ligação entre a angústia nos sonhos e nas neuroses, ao examinar a primeira precisarei referir-me à última. Num trabalho sucinto sobre a neurose de angústia (Freud, 1895b), argumentei há algum tempo que a angústia neurótica se origina da vida sexual e corresponde à libido que se desviou de sua finalidade e não encontrou aplicação. Desde então, essa fórmula tem resistido à prova do tempo, permitindo-nos agora inferir dela que os sonhos de angústia são sonhos de conteúdo sexual cuja respectiva libido se transformou em angústia. Haverá oportunidade, mais adiante, de fundamentar essa assertiva na análise dos sonhos de alguns pacientes neuróticos. Também no decurso de mais uma tentativa de chegar a uma teoria dos sonhos, terei oportunidades de examinar mais uma vez os determinantes dos sonhos de angústia e sua compatibilidade com a teoria de realização de desejos.

Capítulo V - O MATERIAL E AS FONTES DOS SONHOS

Quando a análise do sonho da injeção de Irma nos mostrou que um sonho poderia ser a realização de um desejo, nosso interesse foi a princípio inteiramente absorvido pela questão de saber se teríamos chegado a uma característica universal dos sonhos e sufocamos temporariamente nossa curiosidade sobre quaisquer outros problemas científicos que pudessem surgir durante o trabalho de interpretação. Tendo seguido um caminho até o fim, podemos agora voltar sobre nossos passos e escolher outro ponto de partida para nossas incursões através dos problemas da vida onírica: por ora, podemos deixar de lado o tópico da realização de desejos, embora ainda estejamos longe de tê-lo esgotado.
Agora que a aplicação de nosso método para a interpretação dos sonhos nos permite descobrir neles um conteúdo latente, que é muito mais significativo do que seu conteúdo manifesto, surge de imediato a tarefa premente de reexaminar um por um os vários problemas levantados pelos sonhos, para ver se não estaremos agora em condições que pareciam inabordáveis enquanto só tínhamos conhecimento do conteúdo manifesto.
No primeiro capítulo, apresentei um relato pormenorizado dos pontos de vista das autoridades sobre a relação dos sonhos com a vida de vigília [Seção A] sobre a origem do material dos sonhos [Seção C]. Sem dúvida, meus leitores se recordarão também das três características da memória nos sonhos [Seção B], tão freqüentemente comentadas, porém nunca explicadas:
(1) Os sonhos mostram uma clara preferência pelas impressões dos dias imediatamente anteriores [em [1] e seg.]. Cf. Robert [1886, 46], Strümpell [1877, 39], Hildebrandt [1875, 11] e Hallam e Weed [1896, 410 e seg.].
(2) Fazem sua escolha com base em diferentes princípios de nossa memória de vigília, já que não relembram o que é essencial e importante, mas o que é acessório e despercebido. [Ver em [1]]
(3) Têm à sua disposição as impressões mais primitivas da nossa infância e até fazem surgir detalhes desse período de nossa vida que, mais uma vez, parecem-nos triviais e que, em nosso estado de vigília, acreditamos terem caído no esquecimento há muito tempo. [Ver em [1]]

(A) MATERIAL RECENTE E IRRELEVANTE NOS SONHOS

Se examinar minha própria experiência com a questão da origem dos elementos incluídos no conteúdo dos sonhos, deverei começar pela afirmação de que, em todo sonho, é possível encontrar um ponto de contato com as experiências do dia anterior. Essa visão é confirmada por cada um dos sonhos que investigo, sejam eles meus ou de qualquer outra pessoa. Tendo em mente esse fato, posso, ocasionalmente, começar a interpretação de um sonho procurando o acontecimento da véspera que o acionou; em muitos casos, de fato, isso constitui o método mais fácil.
 Nos dois sonhos que analisei pormenorizadamente em meus últimos capítulos (o sonho da injeção de Irma e o de meu tio de barba amarela, a relação com o dia anterior é tão evidente que não exige nenhum outro comentário. Mas, para mostrar a regularidade com que se pode identificar essa ligação, percorrerei os registros de meus próprios sonhos e darei alguns exemplos. Citarei apenas o suficiente do sonho para indicar a fonte que estamos procurando:
(1) Eu estava visitando uma casa à qual tinha dificuldade em ter acesso…; nesse ínterim, deixava uma senhora ESPERANDO.
Fonte: Eu tivera uma conversa com uma parenta na noite anterior, na qual lhe dissera que ela teria que esperar por uma compra que desejava fazer até… etc.
(2) Eu tinha escrito uma MONOGRAFIA sobre uma certa espécie (indistinta) de planta.
Fonte: Naquela manhã eu vira uma monografia sobre o gênero Ciclâmen na vitrina de uma livraria. [Ver em [1]]
(3) Eu via duas mulheres na rua, MÃE E FILHA, sendo a segunda uma paciente minha.
Fonte: Uma de minhas pacientes me explicara, na noite anterior, as dificuldades que sua mãe vinha antepondo à continuação de seu tratamento.

(4) Fiz na livraria de S. e R. a assinatura de um periódico que custava VINTE FLORINS por ano.
Fonte: Minha mulher me lembrara na véspera que eu ainda lhe devia vinte florins para as despesas semanais da casa.
(5) Recebi UMA COMUNICAÇÃO do COMITÊ Social Democrata, tratando-me como se eu fosse um MEMBRO.
Fonte: Eu havia recebido comunicações, simultaneamente, do Comitê de Eleições Liberais e do Conselho da Liga Humanitária, sendo que deste último órgão eu era de fato um membro.
(6) Um homem de pé em UM PENHASCO NO MEIO DO MAR, À MANEIRA DE BÖCKLIN.
Fonte: Dreyfus na Île du Diable; eu recebera notícias, ao mesmo tempo, de meus parentes na Inglaterra, etc.
Pode-se levantar a questão de determinar se o ponto de contato com o sonho são invariavelmente os acontecimentos do dia imediatamente anterior, ou se ele pode remontar a impressões oriundas de um período bem mais extenso do passado mais recente. É improvável que essa questão envolva qualquer assunto de importância teórica; não obstante, estou inclinado a decidir em prol da exclusividade das solicitações do dia imediatamente anterior ao sonho - ao qual me referirei como o “dia do sonho”. Sempre que se afigura, a princípio, que a fonte de um sonho foi uma impressão de dois ou três dias antes, a pesquisa mais detida tem-me convencido de que a impressão foi lembrada na véspera, e assim tem sido possível demonstrar que uma reprodução da impressão, ocorrida no dia precedente, poderia ser inserida entre o dia do acontecimento original e o momento do sonho; além disso, tem sido possível indicar a eventualidade do dia anterior que teria levado à lembrança da impressão mais antiga.
Por outro lado, não me sinto convencido de que haja qualquer intervalo regular de importância biológica entre a impressão diurna instigadora e seu ressurgimento no sonho (Swoboda, 1904, mencionou um intervalo inicial de dezoito horas a esse respeito.)

Havelock Ellis [1911, 224], que também dispensou certa atenção a esse ponto, declara ter sido incapaz de encontrar qualquer periodicidade dessa ordem em seus sonhos, apesar de tê-la procurado. Ele registra um sonho em que estava na Espanha e desejava ir a um lugar chamado Daraus, Varaus ou Zaraus. Ao acordar, não pôde lembrar-se de nenhum topônimo semelhante e pôs o sonho de lado. Alguns meses depois, descobriu que Zaraus era, na verdade, o nome de uma estação na linha entre San Sebastian e Bilbao, pela qual seu trem havia passado 250 dias antes de ele ter o sonho.
Creio, portanto, que o agente instigador de todo sonho encontra-se entre as experiências sobre as quais ainda não se “consultou o travesseiro”. Assim, as relações entre o conteúdo de um sonho e as impressões do passado mais recente (com a única exceção do dia imediatamente anterior à noite do sonho) não diferem sob nenhum aspecto de suas relações com as impressões que datam de qualquer período mais remoto. Os sonhos podem selecionar seu material de qualquer parte da vida do sonhador, contanto que haja uma linha de pensamento ligando a experiência do dia do sonho (as impressões “recentes”) com as mais antigas.
Mas por que essa preferência pelas impressões recentes? Teremos alguma idéia sobre esse ponto, se submetermos um dos sonhos da série que acabo de citar [em [1]] a uma análise mais completa. Para essa finalidade, escolherei o

SONHO DA MONOGRAFIA DE BOTÂNICA
Eu escrevera uma monografia sobre certa planta. O livro estava diante de mim e, no momento, eu virava uma página dobrada que continha uma prancha colorida. Encadernado com cada exemplar havia um espécime seco de planta, como se tivesse sido retirado de um herbário.

ANÁLISE
Naquela manhã, eu vira um novo livro na vitrina de uma livraria, trazendo o título O Gênero Ciclâmen - evidentemente uma monografia sobre essa planta.
Os ciclâmens, refleti, eram as flores prediletas de minha mulher e me repreendi por lembrar-me tão raramente de levar flores para ela, que era o que lhe agradava. - A questão de “levar flores” lembrou-me um episódio que eu repetira recentemente para um círculo de amigos e que havia usado como prova em favor de minha teoria de que o esquecimento é, com muita freqüência, determinado por um objetivo inconsciente, e que sempre permite que se deduzam as intenções secretas da pessoa que esquece. Uma jovem estava habituada a receber um buquê de flores do marido em seu aniversário. Certo ano, esse símbolo da afeição dele deixou de se manifestar e ela irrompeu em pranto. O marido chegou em casa e não teve nenhuma idéia da razão por que ela estava chorando, até que ela lhe disse que era o dia de seu aniversário. Ele levou a mão à cabeça e exclamou: “Sinto muito, mas eu havia esquecido por completo! Vou sair agora mesmo para buscar suas flores”. Mas não houve meio de consolá-la, pois ela reconheceu que o esquecimento do marido era uma prova de que ela já não ocupava o mesmo lugar de antes em seus pensamentos. - Essa senhora, Sra. L., encontrara minha mulher dois dias antes de eu ter o sonho, dissera-lhe que estava se sentindo muito bem e perguntara por mim. Alguns anos antes, ela me procurara para tratamento.
Comecei então outra vez. Certa feita, recordei-me, eu realmente havia escrito algo da natureza de uma monografia sobre uma planta, a saber, uma dissertação sobre a planta da coca [Freud, 1884e], que atraíra atenção de Karl Koller para as propriedades anestésicas da cocaína. Eu mesmo havia indicado essa aplicação do alcalóide em meu artigo publicado, mas não fora suficientemente rigoroso para levar o assunto adiante. Isso me fez lembrar que, na manhã do dia após o sonho - não tivera tempo de interpretá-lo senão à noite - eu havia pensado na cocaína, numa espécie de devaneio. Se algum dia tivessa glaucoma, pensei, iria até Berlim e me faria operar, incógnito, na casa de meu amigo [Fliess], por um cirurgião recomendado por ele. O cirurgião que me operasse, que não teria nenhuma idéia de minha identidade, vangloriar-se-ia mais uma vez das facilidades com que essas operações podiam ser realizadas desde a introdução da cocaína, e eu não daria a menor indicação de que eu próprio tivera participação na descoberta. Essa fantasia me levara a reflexões de como é difícil para um médico, no final das contas, procurar tratamento para si próprio com seus colegas de profissão. O cirurgião oftalmologista de Berlim não me conheceria, e eu poderia pagar seus honorários como qualquer outra pessoa. Só depois de me haver lembrado desse devaneio foi que compreendi que a lembrança de um evento específico jaz por trás do mesmo. Logo após a descoberta de Koller, meu pai fora na verdade atacado de glaucoma; um amigo meu, o Dr. Konigstein, cirurgião oftalmologista, o havia operado, enquanto o Dr. Koller se encarregara da anestesia de cocaína e comentara o fato de que esse caso reunira todos os três homens que haviam participado da introdução da cocaína.
Meus pensamentos prosseguiram então até o momento em que eu me lembrara pela última vez dessa questão da cocaína. Fora alguns dias antes,quando eu examinava um exemplar de um Festchrift em que alunos reconhecidos tinham celebrado o jubileu de seu professor e diretor do laboratório. Entre as pretensões de dinstinção do laboratório enumeradas nesse livro vira uma menção do fato de que Koller ali fizera sua descoberta das propriedades anestésicas da cocaína. Percebi então, subitamente, que meu sonho estava ligado a um acontecimento da noite anterior. Eu voltara para casa a pé justamente com o Dr. Konigstein e conversara com ele sobre um assunto que nunca deixa de provocar minhas emoções sempre que é levantado. Enquanto conversava com ele no saguão de entrada, o Professor Gartner [Jardineiro] e a esposa vieram juntar-se a nós, e não pude deixar de felicitar ambos por sua aparência florescente. Mas o Professor Gartner era um dos autores do Festschrift que acabo de mencionar, e é bem possível que me tenha feito lembrar dele. Além disso, a Sra. L., cujo desapontamento no aniversário descrevi anteriormente, foi mencionada - embora, é verdade, apenas em relação a outro assunto - em minha conversa com o Dr. Konigstein.
Faria uma tentativa de interpretar também os outros determinantes do conteúdo do sonho. Havia um espécime seco da planta incluído na monografia, como se ela fosse um herbário. Isso me levou a uma recordação de minha escola secundária. Nosso diretor, certa vez, reuniu os meninos das classes mais adiantadas e confiou-lhes o herbário da escola para ser examinado e limpo. Alguns vermezinhos - traças de livros - tinham penetrado nele. Parece que o diretor não confiava muito em minha ajuda, pois entregou-me apenas algumas folhas. Estas, como ainda me lembro, compreendiam algumas Crucíferas. Eu nunca tivera o contato especialmente íntimo com a botânica. Em meu exame preliminar de botânica, também recebi uma Crucífera para identificar - e não consegui fazê-lo. Minhas perspectivas não teriam sido muito brilhantes, se eu não tivesse podido contar com meus conhecimentos teóricos. Passei das Crucíferas para as Compostas. Ocorreu-me que as alcachofras eram Compostas e que, na verdade, eu poderia com justiça chamá-las de minhas flores favoritas. Sendo mais generosa do que eu, minha mulher muitas vezes me trazia do mercado essas minhas flores favoritas.
Vi diante de mim a monografia que eu esperava. Também isso me remeteu a alguma coisa. Eu recebera na véspera uma carta de meu amigo [Fliess] de Berlim em que ele demonstrara sua capacidade de visualização: “Estou extremamente ocupado com seu livro dos sonhos. Vejo-o concluído diante de mim e vejo a mim mesmo virando-lhe as páginas. Como invejei nele esse dom de vidente! Se ao menos eu pudesse vê-lo concluído diante de mim!
A prancha colorida dobrada. Quando estudante de medicina, eu era vítima constante de um impulso de só aprender as coisas em monografias. Apesar de meus recursos limitados, consegui adquirir muitos volumes das atas de sociedades médicas e ficava fascinado com suas pranchas coloridas. Orgulhava-me de minha ânsia de perfeição. Ao começar eu mesmo a publicar trabalhos, vira-me obrigado a fazer meus próprios desenhos para ilustrá-los, e lembrei-me que um deles tinha saído tão ruim que um colega, brincalhão, zombara de mim por causa disso. Seguiu-se então - e não pude compreender bem como - uma lembrança da minha meninice. Certa vez, meu pai se divertira ao entregar um livro com pranchas coloridas (um relato de uma viagem pela Pérsia) a mim e a minha irmã mais velha para que o destruíssemos. Nada fácil de justificar do ponto de vista educativo! Nessa época, eu tinha cinco anos de idade e minha irmã ainda não fizera três, e a imagem de nós dois, jubilosamente reduzindo o livro a frangalhos (folha por folha, como uma alcachofra, percebi-me dizendo), foi quase a única lembrança plástica que guardei desse período de minha vida. Depois, quando me tornei estudante, desenvolvi a paixão de colecionar e possuir livros, que era análoga a minha predileção por estudar em monografias: um passatempo favorito. (A idéia de “favorito” já surgira em relação aos ciclâmens e às alcachofras.) Eu me tornara uma traça de livros (cf. herbário). Desde que me entendo por gente, sempre liguei essa minha primeira paixão à lembrança infantil que mencionei aqui. Ou melhor, eu tinha reconhecido que a cena infantil era uma “lembrança encobridora” para minhas posteriores propensões bibliófilas. E cedo descobri, é claro, que as paixões muitas vezes levam à dor. Quando tinha dezessete anos, contraí uma dívida um tanto vultosa com meu livreiro e não tinha nada com que fazer face a ela; e meu pai teve dificuldade em aceitar como desculpa que minhas inclinações poderiam ter tomado um rumo pior. A recordação dessa experiência dos anos posteriores de minha juventude me fez lembrar imediatamente a conversa com meu amigo, o Dr. Königstein, pois no decurso dela havíamos discutido a mesma questão de eu ser criticado por ficar absorto demais em meus passatempos favoritos.
Por motivos que não nos interessam, não prosseguirei na interpretação desse sonho, indicando simplesmente a direção por ela tomada. No decorrer do trabalho de análise, lembrei-me de minha conversa com o Dr. Königstein e fui conduzido a ela a partir de mais de uma direção. Quando levo em conta os assuntos abordados nessa conversa, o sentido do sonho se me torna inteligível. Todos os fluxos de pensamento que partem do sonho - as idéias sobre as flores favoritas de minha esposa e minhas, sobre a cocaína, sobre a dificuldade do tratamento médico entre colegas, sobre minha preferência por estudar monografias e sobre minha negligência para com certos ramos da ciência, como a botânica -, todos esses fluxos de pensamento, quando levados adiante, acabavam por conduzir a uma ou outra das numerosas ramificações de minha conversa com o Dr. Königstein. Mais uma vez, o sonho, como o que analisamos primeiro - o sonho da injeção de Irma -, revela ser da natureza de uma autojustificação, uma defesa em favor de meus próprios direitos. Na verdade, ele levou o assunto levantando no primeiro sonho um estágio adiante e o examinou com referência ao material novo que surgira no intervalo entre os dois sonhos. Mesmo a forma aparentemente irrelevante de que se revestiu o sonho mostra ter tido importância. O que ela quis dizer foi: “Afinal de contas, sou o homem que escreveu o valioso e memorável trabalho (sobre a cocaína)”, tal como eu dissera a meu favor no primeiro sonho: “Sou um estudioso esforçado e consciencioso.” Em ambos os casos, aquilo em que eu insistia era: “Posso permitir-me fazer isto.” Não há necessidade, porém, de eu levar a interpretação do sonho mais adiante, já que meu único objetivo ao relatá-lo foi ilustrar, por meio de um exemplo, a relação entre o conteúdo de um sonho e a experiência da véspera que o provocou. Enquanto eu me apercebia apenas do conteúdo manifesto do sonho, ele pareceu estar relacionado somente com o único evento do dia do sonho. Mas, uma vez efetuada a análise, surgiu uma segunda fonte do sonho em outra experiência do mesmo dia. A primeira dessas duas impressões com que o sonho se ligou era irrelevante, um fato secundário: eu vira um livro numa vitrina cujo título atraíra por um momento minha atenção, mas cujo assunto dificilmente me interessaria. A segunda experiência tivera um alto grau de importância psíquica: eu mantivera uma boa hora de conversa animada com meu amigo oftalmologista, no decorrer da qual lhe dera algumas informações que estavam fadadas a afetar de perto a nós dois, e tinham-se avivado em mim algumas lembranças que me haviam despertado a atenção para uma grande variedade de tensões internas em minha própria mente. Além disso, a conversa fora interrompida antes de sua conclusão por causa dos conhecidos que se juntaram a nós.
Devemos agora perguntar qual foi a relação das duas impressões do dia do sonho entre si e com o sonho da noite subseqüente. No conteúdo manifesto do sonho, só se fez alusão à impressão irrelevante, o que parece confirmar a idéia de que os sonhos têm uma preferência por captar detalhes sem importância da vida de vigília. Todas as correntes da interpretação, por outro lado, levaram à impressão importante, àquela que justificadamente agitara meus sentimentos. Se o sentido do sonho for julgado, como certamente só pode ser, por seu conteúdo latente, tal como relevado pela análise, um fato novo e significativo é inesperadamente trazido à luz. O enigma de por que os sonhos se interessam apenas por fragmentos sem valor da vida de vigília parece haver perdido todo o seu significado; tampouco é possível continuar a sustentar que a vida de vigília não é levada adiante dos sonhos e que estes são, portanto, uma atividade psíquica desperdiçada num material descabido. O inverso é verdadeiro: nossos pensamentos oníricos são dominados pelo mesmo material que nos ocupou durante o dia e só nos damos o trabalho de sonhar com as coisas que nos deram motivo para reflexão durante o dia.
Por que é então que, embora a causa de meu sonho tenha sido uma impressão diurna pela qual eu fora justificadamente agitado, sonhei, na realidade, com uma coisa irrelevante? A explicação mais óbvia, sem dúvida, é que, mais uma vez, estamos diante de um dos fenômenos da distorção onírica, que em meu último capítulo liguei a uma força psíquica atuando como censura. Minha lembrança da monografia sobre o gênero Clicâmen serviria, assim, à finalidade de constituir uma alusão à conversa com meu amigo, tal como o “salmão defumado” do sonho com a ceia abandonada [em [1]] servira de alusão à idéia da sonhadora sobre sua amiga. A única questão prende-se aos elos intermediários que permitiram à impressão da monografia servir de alusão à conversa com o oftalmologista, considerando que, à primeira vista, não há nenhuma ligação óbvia entre elas. No exemplo da ceia que não se concretizou, a ligação foi dada imediatamente: sendo o prato predileto da amiga, o “salmão defumado” constituiu um integrante imediato do grupo de representações que tinham probabilidade de ser despertadas na mente da sonhadora pela personalidade de sua amiga. Neste último exemplo, houve duas impressões soltas que, à primeira vista, só tinham em comum o fato de terem ocorrido no mesmo dia: eu vira a monografia pela manhã e tivera a conversa na mesma noite. A análise permitiu-nos solucionar o problema da seguinte maneira: tais ligações,quando não estão presentes em primeiro lugar, são retrospectivamente urdidas entre o conteúdo de representações de uma impressão e o de outra. Já chamei atenção para os elos intermediários no presente caso através das palavras que grifei em meu relatório da análise. Se não tivesse havido quaisquer influências de outro setor, a representação da monografia sobre a Ciclâmen teria apenas conduzido, imagino eu, à idéia de ele ser a flor favorita de minha mulher e, possivelmente, também ao buquê ausente da Sra. L. É-me difícil imaginar que esses pensamentos de fundo teriam sido suficientes para evocar um sonho. Como nos diz o texto de Hamlet:
Senhor, para dizer-nos isso era supérfluo Que algum fantasma deixasse a sepultura.”
Mas, vejam bem, foi-me lembrado na análise que o homem que interrompeu nossa conversa se chamava Gärtner [Jardineiro] e que eu havia pensado que sua mulher tinha uma aparência florescente. E mesmo ao escrever estas palavras, recordo-me que uma de minhas pacientes, que tinha o encantador nome de Flora, foi por algum tempo o pivô de nossa discussão. Esses devem ter sido os elos intermediários, decorrentes do grupo de experiências daquele dia, a irrelevante e a estimulante. Estabeleceu-se a seguir um outro conjunto de ligações - as que cercam a idéia da cocaína, que tinha todo o direito de servir como elo entre a figura do Dr. Königstein e uma monografia sobre botânica que eu havia escrito; e essas ligações fortaleceram a fusão entre os dois grupos de representações, de modo que se tornou possível a parte de uma experiência servir de alusão à outra.
Estou preparado para ver essa explicação ser alvo de ataques, sob a alegação de ser arbitrária ou artificial. O que, poderão perguntar, teria acontecido se o Professor Gärtner e sua esposa de aparência florescente não tivessem vindo ao nosso encontro, ou se a paciente sobre a qual falávamos se chamasse Anna em vez de Flora? A resposta é simples. Se essas cadeias de pensamento tivessem estado ausentes, outras, sem dúvida, teriam sido escolhidas. É bastante fácil construir tais cadeias, como demonstram os trocadilhos e as charadas que as pessoas fazem todos os dias para seu divertimento. O reino dos chistes não conhece fronteiras. Ou, indo um passo além, se não tivesse havido nenhuma possibilidade de forjar elos intermediários suficientes entre as duas impressões, o sonho simplesmente teria sido diferente. Outra impressão irrelevante do mesmo dia - pois torrentes dessas impressões penetram em nossa mente e são depois esquecidas - teria tomado o lugar da “monografia” no sonho, estabelecido um elo com o assunto da conversa e servido para representá-lo no conteúdo do sonho. Visto que a monografia, e não qualquer outra idéia, foi na verdade escolhida para servir a essa função, devemos supor que ela era a mais adequada à ligação. Não é necessário seguirmos o exemplo de Hänschen Schlau, de Lessing, e nos surpreendermos ante o fato de que “somente os ricos são os que têm mais dinheiro.”
Um processo biológico pelo qual, segundo nossa exposição, as experiências irrelevantes tomam o lugar das psiquicamente significativas, não pode deixar de despertar suspeita e espanto. Será nossa tarefa, num capítulo posterior [Capítulo VI, Seção B, em [1] e segs.] tornar mais inteligíveis as peculiaridades dessa operação aparentemente irracional. Nesse momento, estamos apenas interessados nos efeitos de um processo cuja realidade vi-me compelido a presumir mediante observações inumeráveis e regularmente recorrentes feitas na análise dos sonhos. O que ocorre seria algo da natureza de um “deslocamento” - de ênfase psíquica, talvez? - por meio de elos intermediários; desse modo, representações que originalmente só tinham uma carga fraca de intensidade recebem a carga de representações que eram originalmente mais intensamentecatexizadas”, e acabam por adquirir força suficiente para lhes permitir forçar entrada na consciência. Tais deslocamentos não constituem nenhuma surpresa para nós quando se trata de lidar com quantidades de afeto ou com as atividades motoras em geral. Quando uma solteirona solitária transfere sua afeição para os animais, ou um solteirão se torna um entusiástico colecionador, quando um soldado defende um pedaço se torna um entusiástico colecionador, quando um soldado defende um pedaço de pano colorido - uma bandeira - com o sangue de suas veias, quando alguns segundos de pressão extra num aperto de mão significam a bem-aventurança para o enamorado, ou quando, em Otelo, um lenço perdido desencadeia uma explosão de cólera - todos esses são exemplos de deslocamento psíquicos aos quais não fazemos nenhuma objeção. Mas, quando ouvimos dizer que uma decisão quanto ao que alcançará nossa consciência e ao que será mantido fora dela - o que pensaremos, em suma - foi tomada da mesma forma e com base nos mesmo princípios, ficamos com a impressão de um evento patológico; e quando essas coisas acontecem na vida de vigília, nós as classificamos de erros de pensamento. Anteciparei as conclusões a que seremos posteriormente conduzidos para sugerir que o processo psíquico que vimos em ação no deslocamento onírico, muito embora não possa ser classificado de perturbação patológica, difere do normal e deve ser considerado um processo de natureza mais primária. [Ver mais adiante, Capítulo VII, Seção E, em [1]]
Assim, o fato de o conteúdo dos sonhos incluir restos de experiências triviais deve ser explicado como uma manifestação da distorção onírica (por deslocamento); e cabe lembrar que chegamos à conclusão de que a distorção onírica seria o produto de uma censura que opera na passagem entre duas atividades físicas. É de se esperar que a análise de um sonho revele regularmente sua fonte de verdadeira e psiquicamente significativa na vida de vigília, embora a ênfase se tenha deslocado da lembrança dessa fonte para a de uma fonte irrelevante. Essa explicação nos coloca em completo conflito com a teoria de Robert [em [1]], que deixa de ter qualquer serventia para nós. Pois o fato que Robert se propõe explicar é um fato inexistente. Sua aceitação dele repousa num mal-entendido, em sua não-substituição do conteúdo aparente dos sonhos por seu significado real. E existe ainda outra objeção que se pode levantar contra a teoria de Robert. Se fosse realmente da alçada dos sonhos aliviar nossa memória das “sobras” das lembranças diurnas através de uma atividade psíquica especial, nosso sono seria mais atormentado e mais trabalhoso do que nossa vida mental quando estamos acordados. E isso porque o número de impressões irrelevantes contra as quais nossa memória precisaria ser protegida é, sem sombra de dúvida, imensamente grande: a noite não seria longa o bastante para lidar com tal massa. É muito mais provável que o processo de esquecimento das impressões irrelevantes prossiga sem a intervenção ativa de nossas forças psíquicas.
Não obstante, não nos devemos apressar em deixar de lado as idéias de Robert sem maior consideração. [Ver em [1]] Ainda não explicamos o fato de uma das impressões irrelevantes da vida de vigília, uma impressão que data, além disso, do dia precedente ao sonho, contribuir invariavelmente para o conteúdo do sonho. As ligações entre essa impressão e a verdadeira fonte do sonho no inconsciente nem sempre estão prontas para uso; como vimos, elas só podem ser estabelecidas retrospectivamente, no decurso do trabalho do sonho, com vistas, por assim dizer, a tornar viável o deslocamento pretendido. Portanto, deve haver alguma força imperativa no sentido de se estabelecerem ligações precisamente com uma impressão recente,embora irrelevante, e esta deve possuir algum atributo que a torne especialmente adequada para esse fim. Se assim não fosse, seria igualmente fácil para os pensamentos oníricos deslocar sua ênfase para algum componente sem importância em seu próprio círculo de representações.
As seguintes observações poderão ajudar-nos a elucidar esse ponto. Se no decorrer de um único dia tivermos duas ou mais experiências adequadas à provocação de um sonho, este fará uma referência conjunta a elas como um todo único; ele é forçado a combiná-las numa unidade. Eis aqui um exemplo. Numa tarde de verão, entrei num compartimento de um vagão de trem onde encontrei dois conhecidos que eram estranhos um ao outro. Um deles era um eminente colega médico, e outro era membro de uma família ilustre com a qual eu mantinha relações profissionais. Apresentei os dois cavalheiros um ao outro, mas, durante toda a longa viagem, eles conduziram sua conversa tomando-me como intermediário, do modo que logo me vi discutindo vários assuntos alternadamente, primeiro com um e depois com o outro. Pedi a meu amigo médico que usasse sua influência em prol de um nosso conhecido comum que estava iniciando sua clínica. O médico respondeu que estava convencido da capacidade do rapaz, mas que sua aparência provinciana lhe dificultaria o acesso às famílias da classe alta, ao qual retruquei que essa era exatamente a razão pela qual ele necessitava de uma ajuda influente. Voltando-me para meu outro companheiro de viagem, perguntei pela saúde de sua tia - mãe de um de meus pacientes -, que na ocasião estava gravemente enferma. Na noite seguinte, sonhei que o jovem em cujo benefício eu intercedera estava sentado numa elegante sala de estar, em meio a um grupo seleto, composto de todas as pessoas ilustres e ricas que eu conhecia, e que, com a desenvoltura de um homem de sociedade, proferia uma oração fúnebre pela velha senhora (que, no meu sonho, já havia falecido), tia de meu segundo companheiro de viagem. (Devo confessar que não me dava muito bem com essa senhora.) Assim, meu sonho, mais uma vez, elaborava ligações entre os dois conjuntos de impressões do dia anterior e os combinara numa única situação.
Muitas experiências como essas levam-me a afirmar que o trabalho do sonho está sujeito a uma espécie de exigência de combinar todas as fontes que agiram como estímulos ao sonho numa única unidade no próprio sonho.

Passarei agora à questão de investigar se a fonte investigadora de um sonho, revelada pela análise, tem de ser, invariavelmente, um fato recente (e significativo), ou se uma experiência interna, isto é, a lembrança de um fato psiquicamente importante - um fluxo de pensamentos -, pode assumir o papel de instigadora do sonho. A resposta, baseada num grande número de análises, é decididamente favorável à segunda alternativa. O sonho pode ser instigado por um processo interno que se tornou, por assim dizer, um fato recente, graças à atividade do pensamento durante o dia anterior.
Este parece ser o momento apropriado para enumerar as diferentes condições às quais constatamos que as fontes dos sonhos estão sujeitas. A fonte de um sonho pode ser:
(a) uma experiência recente e psiquicamente significativa, que é diretamente representada no sonho, ou
(b) várias experiências recentes e significativas, combinadas numa única unidade pelo sonho, ou
(c) uma ou mais experiências recentes e significativas, representadas no conteúdo do sonho pela menção a uma experiência contemporânea, mas irrelevante, ou
(d) uma experiência significativa interna (por exemplo, um lembrança ou um fluxo de idéias), que é, nesse caso, invariavelmente representada no sonho por uma menção a uma impressão recente, irrelevante.
Veremos que, na interpretação dos sonhos, uma condição é sempre atendida: um componente do conteúdo do sonho é a repetição de uma impressão recente do dia anterior. Essa impressão a ser representada no sonho pode pertencer, ela própria, ao círculo de representações que cercam o verdadeiro instigador do sonho - quer como parte essencial ou insignificante dele - ou pode provir do campo de uma impressão irrelevante vinculada às idéias que cercam o instigador do sonho por elos mais ou menos numerosos. A aparente multiplicidade das condições dominantes é, na verdade, apenas dependente das alternativas entre um deslocamento ter ou não ocorrido; e vale a pena ressaltar que nos é facultado, por essas alternativas, explicar a gama contrastes entre os diferentes sonhos, com a mesma facilidade com que a teoria médica encontra uma possibilidade de fazê-lo através de sua hipótese de células cerebrais que vão do estado parcial ao estado total de vigília (Ver em [1])
Convém ainda observar, se considerarmos esses quatro casos possíveis, que um elemento psíquico que seja significativo, mas não recente (por exemplo, uma seqüência de idéias ou uma lembrança), pode ser substituído, para fins de formação de um sonho, por um elemento que seja recente mas irrelevante, bastando para isso que duas condições sejam satisfeitas: (1) o conteúdo do sonho deve estar ligado a uma experiência recente, e (2) o instigador do sonho deve permanecer como um processo psiquicamente significativo. Apenas num único caso - o caso (a) - essas duas condições são satisfeitas por uma mesma e única impressão. Deve-se notar, além disso, que as impressões irrelevantes que são passíveis de ser utilizadas para a construção de um sonho, enquanto recentes, perdem essa capacidade tão logo ficam um dia (ou, no máximo, alguns dias) mais velhas. Disso devemos concluir que o caráter recente de uma impressão lhe confere uma espécie de valor psíquico para fins de construção do sonho, que equivale, de certo modo, ao valor das lembranças ou seqüências de idéias emocionalmente carregadas. A base do valor assim conferido às impressões recentes no tocante à construção dos sonhos só se tornará clara no decurso de nossas discussões psicológicas subseqüentes.
Quanto a isso, aliás, notaremos que podem ocorrer modificações em nosso material mnêmico de representações durante a noite, sem que sejam observadas por nossa consciência. Somos freqüentemente aconselhados, antes de tomarmos uma decisão final sobre algum assunto, a “consultar o travesseiro”, e esse conselho é obviamente justificado. Mas aqui, passamos da psicologia dos sonhos para a do sono, e esta não é a última ocasião em que seremos tentados a fazê-lo.

Entretanto, é possível levantar uma objeção que ameaça perturbar estas últimas conclusões. Se as impressões irrelevantes só podem penetrar num sonho desde que sejam recentes, como é o que o conteúdo dos sonhos abrange também elementos de um período mais antigo da vida, os quais, na época em que eram recentes, não possuíam, para empregar as palavras de Strümpell [1877, 40 e seg.], nenhum valor psíquico, e portanto deveriam ter sido esquecidos há muito tempo - em outras palavras, elementos que não são nem novos nem psiquicamente significativos?
Pode-se tratar plenamente dessa objeção mediante uma referência às descobertas da psicanálise dos neuróticos. A explicação é que o deslocamento que substitui o material psiquicamente importante por material irrelevante (tanto nos sonhos como no pensamento) já ocorreu, nesses casos, no período primitivo de vida em questão, e desde então se fixou na memória. Esses elementos específicos, que eram originalmente irrelevantes, já não o são agora, a partir do momento em que assumiram (por meio do deslocamento) o valor do material psiquicamente significativo. Nada que tenha realmente continuado a ser irrelevante pode ser reproduzido num sonho.
O leitor concluirá acertadamente, com base nos argumentos anteriores, que estou afirmando não existirem instigadores oníricos irrelevantes - e, por conseguinte, que não há sonhos “inocentes”. São essas, no sentido mais estrito e mais absoluto, minhas opiniões - se deixar de lado os sonhos das crianças e, talvez, breves reações, nos sonhos, a sensações experimentadas durante a noite. Afora isso, o que sonhamos é manifestamente reconhecível como psiquicamente significativo, ou é distorcido e não pode ser julgado até que o sonho tenha sido interpretado, depois do que se verificará mais uma vez ser ele significativo. Os sonhos nunca dizem respeito a trivialidades: não permitimos que nosso sono seja perturbado por tolices. Os sonhos aparentemente inocentes revelam ser justamente o inverso quando nos damos ao trabalho de analisá-los. São, se é que posso dizê-lo, lobos na pele do cordeiro. Dado que esse é outro ponto em que posso esperar que me contradigam, e já que me apraz contar com uma oportunidade de mostrar a distorção onírica em ação, selecionarei alguns sonhos “inocentes” de meu registros e os submeterei à análise.

I

Uma jovem inteligente e culta, reservada e retraída em seu comportamento, relatou o seguinte: Sonhei que chegava tarde demais ao mercado e não conseguia nada nem do açougueiro, nem da mulher que vende legumes. Um sonho inocente, sem dúvida; mas os sonhos não são tão simples assim, de modo que pedi que ela o narrasse com maiores detalhes. Imediatamente, fez-me o seguinte relato: Sonhou que estava indo ao mercado com a cozinheira, que carregava a cesta. Depois de ter pedido algo, o açougueiro lhe disse: “Isso também é bom”. Ela rejeitou a oferta e se dirigiu à vendedora de legumes, que tentou fazê-la comprar um legume estranho que estava atado em molhos; mas era de cor negra. Disse ela: “Não reconheço isso; não vou levá-lo.”
A ligação do sonho com o dia anterior era bem direta. Ela realmente fora ao mercado tarde demais e nada conseguira. A situação pareceu amoldar-se à frase “Die Fleischbank war schon geschlossen” [“o açougue estava fechado”.] Fiquei alerta: não era essa, ou antes, seu oposto, uma descrição vulgar de certa espécie de descuido nos trajes de um homem? Mas a própria sonhadora não empregou a frase; talvez tivesse evitado empregá-la. Esforcemo-nos, então, por chegar a uma interpretação dos detalhes do sonho.
Quando alguma coisa num sonho tem o caráter de discurso direto, isto é, quando é dita ou ouvida e não simplesmente pensada (e é fácil, em geral, estabelecer a distinção com segurança), então isso provém de algo realmente falado na vida de vigília - embora, por certo, esse algo seja meramente alterado e, mais especialmente, desligado de seu contexto. Ao fazer uma interpretação, um dos métodos consiste em partir desse tipo de expressões orais. Qual seria, então, a origem da observação do açougueiro “Isso não se consegue mais”? A resposta é que ela proviera de mim mesmo. Alguns dias antes, eu havia explicado à paciente que as primeiras lembranças da infância “não se conseguiam mais como tais”, mas eram substituídas, na análise, por “transferências” e sonhos. Portanto, eu era o açougueiro, e ela estava rejeitando essas transferências de velhos hábitos de pensar e sentir para o presente. - Novamente, qual seria a origem de sua própria observação no sonho: “Não reconheço isso; não vou levá-lo”? Para fins da análise, isso teve de ser fracionado. “Não reconheço isso” era algo que ela dissera na véspera à cozinheira, com quem tivera uma alteração; mas naquele momento, ela prosseguira: “Comporte-se direito!” Nesse ponto ocorrera claramente um deslocamento. Dentre as duas frases que empregara com a cozinheira, ela havia escolhido a que era insignificante para inclusão no sonho. Mas somente a frase suprimida, “Comporte-se direito!”, é que se enquadrava no restante do conteúdo do sonho: essas teriam sido as palavras adequadas para se usar se alguém se aventurasse a fazer sugestões impróprias e se esquecesse de “fechar seu açougue”. As alusões subjacentes ao incidente com a vendedora de legumes foram mais uma confirmação de que nossa interpretação estava na pista certa. Um legume vendido em molho (atado no sentido do comprimento, como a paciente acrescentou depois), e também negro, só poderia ser uma combinação onírica de aspargo e rabanetes (espanhóis) negros. Nenhuma pessoa sagaz de qualquer dos sexos pedirá uma interpretação sobre os aspargos. Mas o outro legume - “Schwarzer Rettig” [“rabanete negro”] - pode ser entendido como uma exclamação - “Schwarzer, rett’ dich!” [“Negrinho! Dê o fora!”] -; por conseguinte, também ela parece sugerir o mesmo tema sexual de que suspeitáramos desde o início, quando nos sentimos inclinados a introduzir a expressão sobre o açougue estar fechado no relato original do sonho. Não precisamos investigar agora o sentido integral do sonho. Isso, pelo menos, está bem claro: ele tinha um sentido, e este estava longe de ser inocente.

II

Eis aqui outro sonho inocente, tido pela mesma paciente, e que em certo sentido se correlaciona com o anterior. O marido perguntou-lhe: “Você não acha que devemos mandar afinar o piano?” E ela respondeu: “Não vale a pena; de qualquer maneira, os martelos precisam de restauração.”
Mais uma vez, isso foi a repetição de um fato real do dia anterior. O marido lhe fizera essa pergunta e ela dera uma resposta dessa ordem. Mas qual seria a explicação para ela ter sonhado com isso? Ela me disse que o piano era um caixa velha e repulsiva, que fazia um barulho horroroso, que pertencia ao marido desde antes do casamento e assim por diante. Mas a chave da solução só foi dada por estas palavras suas: “Não vale a pena.” Estas derivavam de uma visita que ela fizera na véspera a uma amiga. Haviam-lhe sugerido que tirasse o casaco, mas ela recusara com as seguintes palavras: “Muito obrigada, mas não vale a pena;, só posso ficar por alguns minutos.” Enquanto ela me dizia isso, lembrei-me de que, durante a análise do dia anterior, ela de repente segurara o casaco, do qual um dos botões se desabotoara. Era como estivesse dizendo: “Por favor, não olhe; não vale a pena.” Da mesma forma, a “caixa” [“Kasten”] era um substituto de “peito”, “caixa torácica” [“Brustkasten”]; e a interpretação do sonho nos levou de volta, imediatamente, à época de seu desenvolvimento físico na puberdade, quando ela começara a ficar insatisfeita com seu corpo. Dificilmente podemos duvidar de que tenha reconduzido a tempos ainda mais remotos, se levarmos em conta o termo “repulsivo” e o “barulho horroroso”, e se nos lembrarmos de quantas vezes - tanto nos doubles entendres como nos sonhos - os hemisférios menores do corpo da mulher são usados, quer como contrastes, quer como substitutos, em lugar dos maiores.

III

Interromperei esta série por um momento para inserir um breve sonho inocente produzido por um rapaz. Ele sonhou que estava novamente vestindo seu sobretudo de inverno, o que era uma coisa terrível. A razão aparente desse sonho fora um súbito retorno do tempo frio. Se examinarmos mais de perto, porém, observaremos que as duas pequenas partes que compõem o sonho não estão em completa harmonia, pois o que poderia haver de “terrível” em vestir um sobretudo pesado ou grosso no frio? Além disso, a inocência do sonho foi decisivamente abalada pela primeira associação que ocorreu ao sonhado na análise. Lembrou-se de que uma dama lhe confiara, na véspera, que seu filho mais novo devia sua existência a um preservativo rasgado. Com base nisso, ele pôde reconstruir seus pensamentos. Um preservativo fino era perigoso, mas um preservativo grosso era ruim. O preservativo foi adequadamente representado como um sobretudo, visto que nos enfiamos em ambos. Mas uma eventualidade como a que a dama lhe descrevera certamente seria “terrível” para um homem solteiro.
E agora voltemos a nossa inocente sonhadora.

IV

Ela estava colocando uma vela num castiçal, mas a vela se quebrou de modo que não ficava de pé adequadamente. As colegas de sua escola disseram que ela era desajeitada, mas a diretora disse que não era culpa dela.
Mais uma vez, a causa do sonho fora um fato real. No dia anterior, ela realmente pusera uma vela num castiçal, embora esta não se quebrasse. Certo simbolismo transparente estava sendo utilizado nesse sonho. Uma vela é um objeto que pode excitar os órgãos genitais femininos e, quando está quebrada, de modo que não possa ficar de pé adequadamente, significa que o homem é impotente. (“Não era culpa dela.”) Mas poderia uma jovem cuidadosamenteeducada, que fora poupada do impacto de tudo o que fosse feio, ter sabido que uma vela podia ser usada para esse fim? Casualmente, ela pôde indicar como foi que obteve essa informação. Certa feita, quando estavam num barco a remo no Reno, outra embarcação com alguns estudantes passaram por eles. Estavam muito animados e cantavam, ou antes, gritavam, uma canção:
Wenn die Königin von Schweden,Bei geschlossenen FensterlädenMit Apollokerzen
Ou ela não conseguiu ouvir ou não intendeu a última palavra, e teve de pedir ao marido que lhe desse a explicação necessária. O verso foi substituído no conteúdo do sonho por uma recordação inocente de alguma tarefa que ela executara desajeitadamente quando estava na escola, e a substituição foi possibilitada graças ao elemento comum postigos fechados. A ligação entre os temas masturbação e impotência é bastante óbvia. O “Apolo” do conteúdo latente desse sonho ligava-o a um sonho anterior em que aparecia a virgem Palas. Nada inocente, portanto.

V

Para que não fiquemos tentados, com demasiada facilidade, a tirar dos sonhos conclusões sobre a vida real do sonhador, acrescentarei mais um sonho da mesma paciente, que de novo tem uma aparência inocente. “Sonhei,” disse ela, “com o que realmente fiz ontem: enchi tanto uma maleta de livros que tive dificuldade em fechá-la, e sonhei exatamente com o que aconteceu mesmo.” Nesse exemplo, a própria narradora colocou a ênfase principal na consonância entre o sonho e a realidade. [Ver em [1] e [2]-[3].] Todas essas opiniões e comentários sobre um sonho, embora consigam um lugar no pensamento de vigília, são invariavelmente, na verdade, parte do conteúdo latente do sonho, como veremos confirmado por outros exemplos mais adiante [em [1]] O que nos foi dito, portanto, é que aquilo que o sonho descrevia tinha realmente acontecido na véspera. Ocuparia muito espaço explicar como foi que me ocorreu a idéia de utilizar a língua inglesa na interpretação. Bata dizer que, mais uma vez, o que estava em questão era uma “caixinha” (cf. o sonho da criança morta na “caixa”, [em [1]]), que estava tão cheia que não se podia pôr mais nada nela. De qualquer modo, nada mau desta vez.
Em todos esses sonhos “inocentes”, o motivo da censura é, obviamente, o fator sexual. Esse, porém, é um assunto de importância primordial que tenho de deixar de lado.

(B) O MATERIAL INFANTIL COMO FONTE DOS SONHOS

Como todos os outros autores nesse assunto, com exceção de Robert, assinalei como terceira peculiaridade do conteúdo dos sonhos poder ele incluir impressões que remontam à primeira infância e que não parecem ser acessíveis à memória de vigília. Naturalmente, é difícil determinar com que raridade ou freqüência isso ocorre, visto que a origem dos elementos oníricos em questão não é reconhecida após o despertar. A prova de que aquilo com que estamos lidando são impressões da infância deve, portanto, ser estabelecida por meio de indícios externos, e é raro haver oportunidade de fazê-lo. Um exemplo particularmente convincente é o apresentado por Maury [1878, 143 e seg., citado em [1]], sobre o homem que um dia tomou a decisão de revisitar sua terra natal após uma ausência de mais de vinte anos. Durante a noite que antecedeu a partida, sonhou que estava num lugar inteiramente desconhecido e que ali encontrava na rua um homem desconhecido e conversara com ele. Ao chegar a casa, verificou que o lugar desconhecido era real e ficava bem nas imediações de sua cidade natal, e que o homem desconhecido do sonho vinha a ser um amigo de seu pai, já falecido, que ainda morava lá. Essa foi uma prova conclusiva de que, em sua infância, ele vira tanto o homem como o lugar. Esse sonho também deve ser interpretado como um sonho de impaciência, tal como da moça que tinha uma entrada de teatro na bolsa (em [1]), o da criança cujo pai lhe prometera levá-la a uma excursão até o Hameau (em [1]) e sonhos semelhantes. Os motivos que levaram os autores dos sonhos a reproduzirem uma impressão específica de sua infância, e não qualquer outra, não podem, é claro, ser descobertos sem uma análise.
Alguém que freqüentou um de meus ciclos de palestras e que se gabava de que seus sonhos muito raramente sofriam distorção relatou-me que, não fazia muito tempo, sonhara ver seu antigo tutor na cama com a babá que estivera com sua família até os seus onze anos de idade. No sonho, ele identificara o local onde ocorreu a cena. Seu interesse tinha sido despertado e ele contara o sonho a seu irmão mais velho, que rindo, confirmou a veracidade do que ele havia sonhado. O irmão se lembrava muito bem daquilo, pois tinha seis anos na época. Os amantes tinham o hábito de embriagar o menino mais velho com cerveja, sempre que as circunstâncias eram favoráveis às relações sexuais durante a noite. O menino mais novo -o sonhador -, que contava então três anos de idade e dormia no quarto com a ama, não era considerado um empecilho. [Ver também em [1].]
Há outra maneira de se estabelecer com certeza, sem a assistência da interpretação, que um sonho contém elementos da infância. É quando o sonho é do tipo que se chama “recorrente”, isto é, quando se teve o sonho pela primeira vez na infância e depois ele reaparece constantemente, de tempos em tempos, durante o sono adulto. Posso acrescentar aos exemplos conhecidos desses sonhos alguns de meus próprios registros, embora eu mesmo nunca tenha experimentado um deles. Um médico de trinta e poucos anos relatou-me que, desde os primórdios de sua infância até a época atual, um leão amarelo aparecia freqüentemente em seus sonhos; e pôde fornecer uma descrição minuciosa dele. Esse leão de seus sonhos surgiu um dia em forma concreta, como um enfeite de porcelana há muito desaparecido. O rapaz soube, então, por intermédio da mãe, que esse objeto fora seu brinquedo predileto durante a primeira infância, embora ele próprio houvesse esquecido desse fato.
Se passarmos agora do conteúdo manifesto dos sonhos para os pensamentos oníricos que só a análise revela, constataremos, para nosso espanto, que as experiências da infância também desempenham seu papel em sonhos cujo conteúdo jamais levaria alguém a supô-lo. Devo um exemplo particularmente agradável e instrutivo de um sonho dessa natureza ao meu respeitado colega do leão amarelo. Após ler a narrativa de Nansen sobre sua expedição polar, ele sonhou que estava num campo de gelo e aplicava ao bravo explorador tratamento galvânico contra um ataque de ciática do qual ele estava sofrendo. No processo de análise do sonho, ele pensou numa história que datava de sua infância, a qual, aliás, foi a única coisa a tornar o sonho inteligível. Um belo dia, quando tinha três ou quatro anos, ele ouvira os mais velhos conversarem sobre viagens de descobrimento e perguntara ao pai se aquilo era uma doença grave. Evidentemente, confundira “Reisen” [“viagens”] com “Reissen” [“cólicas”], e seus irmãos e irmãs providenciaram para que ele jamais esquecesse esse erro embaraçoso.
Houve um exemplo semelhante disso quando, no transcurso de minha análise do sonho da monografia sobre o gênero Ciclâmen [ver em [1]], tropecei na lembrança infantil de meu pai, quando eu era um garoto de cinco anos, dando-me um livro ilustrado com pranchas coloridas para que eu o destruísse. Talvez se possa pôr em dúvida se essa lembrança realmente desempenhou algum papel na determinação da forma assumida pelo conteúdo do sonho, ou se, antes, não terá sido o processo de análise que estruturou subseqüentemente a ligação. Mas os elos associativos abundantes e entrelaçados justificam nossa aceitação da primeira alternativa: ciclâmen - flor favorita - prato predileto - alcachofras; desmantelar como a uma alcachofra, folha por folha (expressão que ecoa constantemente em nossos ouvidos em relação ao desmembramento paulatino do Império Chinês) - herbário - traças de livros, cujo alimento favorito são os livros. Além disso, posso assegurar a meus leitores que o sentido último do sonho, que não revelei, está intimamente relacionado com o assunto da cena infantil.
No caso de outro grupo de sonhos, demonstra-nos a análise que o desejo real que instigou o sonho e cuja realização é representada pelo sonho provém da infância; de modo que, para nossa surpresa, verificamos que a criança e seus impulsos continuam vivos no sonho.
Neste ponto, retomarei mais uma vez a interpretação de um sonho que já verificamos ser instrutivo - o sonho em que meu amigo R. era meu tio. [Ver em [1]] Acompanhamos sua interpretação até o ponto de reconhecer nitidamente, como uma de suas motivações, meu desejo de ser nomeado para o cargo de professor, e explicamos a afeição que senti no sonho por meu amigo R. como um produto de oposição e revolta contra as calúnias a meus dois colegas contidas nos pensamentos oníricos. O sonho foi meu mesmo; portanto, posso prosseguir sua análise dizendo que meus sentimentos ainda não estavam satisfeitos com a solução até então alcançada. Eu sabia que minha opinião de vigília sobre os colegas que foram tão maltratados nos pensamentos oníricos teria sido bem diferente; e a força de meu desejo de não partilhar do destino deles na questão da indicação evidenciava-se-me como insuficiente para explicar a contradição entre minhas avaliações deles no estado de vigília e no sonho. Se fosse realmente verdade que minha ânsia de que se dirigissem a mim por um título diferente era tão forte assim, isso mostrava uma ambição patológica que eu não reconhecia em mim mesmo e que acreditava ser-me estranha. Eu não saberia dizer como as outras pessoas que acreditavam conhecer-me iriam julgar-me a esse respeito. Talvez eu fosse realmente ambicioso; mas, sendo assim, minha ambição há muito se transferira para objetos bem diferentes do título e do posto de professor extraordinarius.
Qual, então, poderia ter sido a origem da ambição que produziu o sonho em mim? Nesse ponto, recordei-me de uma história que ouvira muitas vezes em minha infância. Na época de meu nascimento, uma velha camponesa profetizara à minha orgulhosa mãe que, com seu primeiro filho, ela havia trazido ao mundo um grande homem. Essas profecias devem ser muito comuns: existem inúmeras mães cheias de expectativas felizes e inúmeras velhas camponesas e outras do gênero que compensam a perda de seu poder de controle sobre as coisas do mundo atual concentrando-o no futuro. Nem teria a profetisa nada a perder com o que disse. Teria sido esta origem de minha sede de grandeza? Mas isso me fez recordar outra experiência, que datava dos últimos anos de minha infância, e que oferecia uma explicação ainda melhor. Meus pais tinham o hábito, quando eu era um menino de onze ou doze anos, de levar-me ao Prater. Uma noite, quando lá estávamos sentados num restaurante, nossa atenção fora atraída por um homem que ia de mesa em mesa e, mediante uma pequena esmola, improvisava uma composição poética sobre qualquer tópico que lhe fosse apresentado. Mandaram-me trazer o poeta à nossa mesa e ele mostrou sua gratidão ao mensageiro. Antes de perguntar qual seria o tema escolhido, dedicou-me algumas linhas, tendo sua inspiração declarado que, quando eu crescesse, provavelmente seria um Ministro do Gabinete. Eu ainda me lembrava muito bem da impressão que essa segunda profecia me havia causado. Aqueles eram os tempos do Ministério “Bürger. Pouco antes, meu pai levara para casa retratos desses profissionais da classe média - Herbst, Giskra, Unger, Berger e os demais - e nós havíamos iluminado a casa em homenagem a eles. Havia até mesmo alguns judeus entre eles. Assim, dali por diante, todo estudante judeu aplicado levava a pasta de Ministro do Gabinete em sua sacola. Os eventos daquele período sem dúvida tiveram alguma relação com o fato de que, até pouco antes de meu ingresso na Universidade, fora minha intenção estudar Direito, e só no último momento é que eu mudara de opinião. A carreira ministerial está definitivamente barrada aos médicos. Mas agora, voltemos a meu sonho. Comecei a compreender que meu sonho me conduzira do melancólico presente às animadoras esperanças dos dias do Ministério “Bürger”, que o desejo que ele fizera o máximo por realizar remontava àqueles tempos. Ao maltratar meus dois eminentes e eruditos colegas por serem judeus, e ao tratar um deles como simplório e o outro como criminoso, estava comportando-me como se eu fosse o Ministro, colocara-me no lugar do Ministro. Virando a mesa sobre Sua Excelência com vingança! Ele se recusara a me nomear professor extraordinarius, e eu me desforrara no sonho, tomando-lhe o lugar.
Em outro exemplo tornou-se evidente que, embora o desejo que instigou o sonho fosse um desejo atual, ele recebera um poderoso reforço de lembranças que se estendia a épocas muito distantes da infância. O que tenho em mente é uma série de sonhos que se baseiam num anseio de visitar Roma. Ainda por muito tempo, sem dúvida, terei de continuar a satisfazer esse anseio em meus sonhos, pois, na estação do ano em que me é possível viajar, a permanência em Roma deve ser evitada por motivos de saúde. Por exemplo, sonhei certa vez que contemplava, da janela de um vagão de trem, o Tibre e a Ponte Sant’Angelo. O trem começou a se afastar e ocorreu-me que eu mal havia posto os pés na cidade. O panorama que vi em meu sonho fora tirado de uma famosa gravura que eu vislumbrara por um momento na véspera, na sala de estar de um de meus pacientes. Noutra ocasião, alguém me levava ao alto de uma colina e me mostrava Roma meio envolta em brumas; estava tão distante que fiquei surpreso por ter dela uma visão tão clara. Havia mais coisas no conteúdo desse sonho do que me sinto disposto a descrever com pormenores, mas o tema da “terra prometida vista de longe” era óbvio nele. A cidade que assim vi pela primeira vez, imersa em brumas, era… Lübeck; e o protótipo da colina ficava em… Gleichenberg. Num terceiro sonho, eu finalmente chegara a Roma, como o próprio sonho me informou, mas fiquei desapontado ao constatar que o cenário estava longe de ter um caráter urbano. Havia um estreito regato de águas negras; numa de suas margens havia penhascos negros e, na outra, pradarias com grandes flores brancas. Notei um certo Herr Zucker (que eu conhecia ligeiramente) e decidi perguntar-lhe o caminho para a cidade. Eu estava claramente fazendo uma vã tentativa de ver, em meu sonho, uma cidade que jamais vira na vida de vigília. Decompondo a paisagem do sonho em seus elementos, verifiquei que as flores brancas me levavam a Ravenna, que eu tinha visitado e que, pelo menos por algum tempo, suplantara Roma como capital da Itália. Nos pântanos ao redor de Ravenna encontramos belíssimos lírios que cresciam em águas negras. Como tínhamos tido grande dificuldades de retirá-los da água, o sonho os fez crescer em pradarias, como os narcisos em nossa própria Aussee. O penhasco negro, tão próximo da água, lembrou-me nitidamente o vale Tepl, perto de Karlsbad. “Karlsbad” permitiu-me explicar o curioso detalhe de eu haver perguntado o caminho a Herr Zucker. O material de que se tecia o sonho incluía, nesse ponto, duas daquelas jocosas anedotas judaicas que contêm tão profunda e por vezes amarga sabedoria mundana, e que tanto apreciamos citar em nossas conversas e cartas. Eis a primeira: a história da “constituição”. Um judeu sem dinheiro metera-se furtivamente, sem passagem, no expresso para Karlsbad. Foi apanhado, e toda vez que os bilhetes eram conferidos, ele era retirado do trem e tratado cada vez mais com maior severidade. Numa das estações de sua via dolorosa, encontrou-se com um conhecido que lhe perguntou para onde estava viajando. “Para Karlsbad”, foi sua resposta, “se minha constituição puder agüentar.” Minha lembrança passou então para outra história: a de um judeu que não sabia falar francês e a quem havia recomendado que, quando chegasse a Paris, perguntasse o caminho para a rue Richelieu. A própria Paris fora, durante muitos anos, outra meta dos meus anseios; e a sensação de bem-aventurança com que pela primeira vez pisei em suas calçadas me pareceu uma garantia de outros de meus desejos seriam também realizados. “Perguntar o caminho”, além disso, era uma alusão direta a Roma, já que é bem sabido que todos os caminhos levam até lá. Da mesma forma, o nome Zucker [açúcar] constituía novamente uma alusão a Karlsbad, pois temos o hábito de recomendar o tratamento lá para qualquer pessoa que sofra do mal constitucional do diabetes. A instigação desse sonho fora uma proposta feita por meu amigo de Berlim de que nos encontrássemos em Praga na Páscoa. O que ali iríamos debater teria incluído algo com uma outra relação com “açúcar” e “diabetes”.
Um quarto sonho, que ocorreu logo depois do último, levou-me a Roma mais uma vez. Eu via a esquina de uma rua diante de mim e ficava surpreso por encontrar tantos cartazes em alemão ali afixados. Eu escrevera a meu amigo na véspera, com uma visão profética, dizendo achar que Praga talvez não fosse um lugar agradável para as perambulações de um alemão. Assim, o sonho expressou, ao mesmo tempo, o desejo de encontrá-lo em Roma, em vez de uma cidade boêmia, e um desejo, que provavelmente remontava aos meus dias de estudante, de que a língua alemã fosse mais tolerada em Praga. Aliás, devo ter compreendido o tcheco nos primeiros anos de minha infância, pois nasci numa pequena cidade da Morávia com uma população eslava. Uma canção de ninar tcheca, que ouvi quando tinha dezessete anos, fixou-se em minha memória com tal facilidade que até hoje posso repeti-la, embora não tenha nenhuma idéia do que significa. Assim, também não faltavam ligações com meus primeiros anos de infância nesses sonhos.
Foi em minha última viagem à Itália, que, entre outros lugares, me fez passar pelo Lago Trasimene, que finalmente - depois de ter visto o Tibre e de ter retornado com tristeza quando me encontrava apenas cinqüenta milhas de Roma - descobri de que maneira meu anseio pela cidade eterna fora reforçado por impressões de minha mocidade. Eu estava no processo de elaborar um plano para contornar Roma no ano seguinte e ir até Nápoles, quando me ocorreu uma frase que devo ter lido em um de nossos autores clássicos : “Qual dos dois, pode-se argumentar, andou de um lado para outro em seu gabinete com maior impaciência, depois de ter elaborado seu plano de ir a Roma - Winckelmann, o Vice-Comandantee, ou Aníbal, o Comandante-em Chefe?” Na realidade, eu vinha seguindo as pegadas de Aníbal. Como ele, estava destinado a não ver Roma; e também ele se deslocara para a Campagna quando todos os esperavam em Roma. Mas Aníbal, com quem eu viera a me assemelhar nesses aspectos, fora o herói predileto de meus últimos tempos de ginásio. Como tantos meninos daquela idade, eu simpatizara, nas Guerras Púnicas, não com os romanos, mas com os cartagineses. E quando nas séries mais avançadas comecei a compreender pela primeira vez o que significava pertencer a uma raça estrangeira, e os sentimentos anti-semitas entre os outros rapazes me advertiram de que eu precisava assumir uma posição definida, a figura do general semita elevou-se ainda mais em meu conceito. Para minha mente juvenil, Aníbal e Roma simbolizavam o conflito entre a tenacidade dos judeus e a organização da Igreja Católica. E a importância crescente dos efeitos do movimento anti-semita em nossa vida emocional ajudou a fixar as idéias e sentimentos daqueles primeiros anos. Assim, o desejo de ir a Roma se transformara, em minha vida onírica, num disfarce e num símbolo para muitos outros desejos apaixonados. Sua realização seria perseguida com toda a perseverança e unidade de propósitos do cartaginês, embora se afigurasse, no momento, tão pouco favorecida pelo destino quanto fora o desejo de Aníbal, durante toda a sua vida, de entrar em Roma.
Nesse ponto, fui novamente confrontado com o evento de minha juventude, cuja força ainda era demonstrada em todas essas emoções e em todos esses sonhos. Eu devia ter dez ou doze anos quando meu pai começou a me levar com ele em suas caminhadas e a me revelar, em suas conversas, seus pontos de vista sobre as coisas do mundo em que vivemos. Foi assim que, numa dessas ocasiões, ele me contou uma história para me mostrar quão melhores eram as coisas então do que tinham sido nos seus dias. “Quando eu era jovem”, disse ele, “fui dar um passeio num sábado pelas ruas da cidade onde você nasceu; estava bem vestido e usava um novo gorro de pele. Um cristão dirigiu-se a mim e, de um só golpe, atirou meu gorro na lama e gritou: ‘Judeu! saia da calçada!’ - “E o que fez o senhor?”, perguntei-lhe. “Desci da calçada e apanhei meu gorro”, foi sua resposta mansa. Isso me pareceu uma conduta pouco heróica por parte do homem grande e forte que segurava o garotinho pela mão. Contrastei essa situação com outra que se ajustava melhor aos meus sentimentos: a cena em que o pai de Aníbal, Amílcar Barca, fez seu filho jurar perante o altar da casa que se vingaria dos romanos. Desde essa época Aníbal ocupava um lugar em minhas fantasias.
Creio poder remontar às origens de meu entusiasmo pelo general cartaginês recuando mais um passo em minha infância; portanto, mais uma vez, seria apenas questão da transferência de uma relação emocional já formada para um novo objeto. Um dos primeiros livros em que pus as mãos depois que aprendi a ler foi a história do Consulado e do Império, de Thiers. Ainda me lembro de quando colocava etiquetas com os nomes dos marechais de Napoleão nas costas achatadas de meus soldadinhos de madeira. E, naquela época, meu favorito manifesto já era Massena (ou, para dar ao nome sua forma judaica, Manasseh). (Sem dúvida, essa preferência era também parcialmente explicável pelo fato de o meu aniversário cair no mesmo dia que o dele, exatamente cem anos depois.) O próprio Napoleão se assemelha a Aníbal, por terem ambos atravessado os Alpes. É possível até que o desenvolvimento desse ideal marcial possa ser remetido a uma época ainda mais remota de minha infância: a época em que, com a idade de três anos, eu tinha uma estreita relação, às vezes amistosa, mas às vezes hostil, com um menino um ano mais velho que eu, e aos desejos que essa relação deve ter suscitado no mais fraco de nós dois.
Quanto mais alguém se aprofunda na análise de um sonho, com mais freqüência chega ao rastro das experiências infantis que desempenharam seu papel entre as fontes do conteúdo latente desse sonho.
Já vimos (em [1]) que é muito raro um sonho reproduzir as recordações de tal maneira que elas constituam, sem abreviação ou modificação, a totalidade de seu conteúdo manifesto. Não obstante, há alguns exemplos indubitáveis da ocorrência disso e posso acrescentar mais alguns, novamente, relacionados com cenas de infância. Apresentou-se a um de meus pacientes num sonho uma reprodução quase não distorcida de um episódio sexual, que foi prontamente reconhecida como uma lembrança verdadeira. Sua recordação do evento, de fato, nunca se perdera por completo na vida de vigília, embora tivesse sido muito obscurecida, e sua revivescência foi conseqüência do trabalho previamente executado na análise. Aos doze anos, o sonhador fora visitar um colega de escola que estava acamado, e este, provavelmente num movimento acidental, descobriu o corpo. À vista dos órgãos do amigo, meu paciente foi tomado por uma espécie de compulsão e também se descobriu, segurando o pênis do outro. O amigo olhou-o com indignação e assombro, ao que ele, tomado de grande embaraço, largou-o. Essa cena se repetiu num sonho vinte e três anos depois, incluindo todos os pormenores de seus sentimentos na época. Modificou-se, porém, no sentido de que o sonhador assumiu o papel passivo em vez do ativo, enquanto a figura de seu colega de escola foi substituída por alguém pertencente a sua vida contemporânea. [Ver em [1].]
É verdade que, de modo geral, a cena da infância só é representada no conteúdo manifesto do sonho por uma alusão, e ela se tem de chegar por uma interpretação do sonho. Tais exemplos, quando registrados não trazem grande convicção, visto que, via de regra, não existe nenhuma outra prova da ocorrência dessas experiências da infância: quando remontam a uma idade muito prematura, elas já não são reconhecidas como lembranças. A justificação geral para que se infira a ocorrência dessas experiências infantis a partir dos sonhos é proporcionada por toda uma série de fatores do trabalho suficientemente fidedignos. Se eu registrar algumas dessas experiências infantis arrancadas de seu contexto para fins de interpretação dos sonhos, talvez, elas causem uma fraca impressão, especialmente por eu não poder citar todo o material em que se basearam as interpretações. Não obstante, não permitirei que isso me impeça de relatá-las.

I

Todos os sonhos de uma de minhas pacientes se caracterizavam por ela estar sempre “apressada”: estava sempre com uma pressa enorme de chegar a algum lugar a tempo de não perder um trem, e assim por diante. Num dos sonhos, ela ia visitar uma amiga; a mãe lhe disse que tomasse um táxi e que não fosse a pé, mas, em vez disso, ela saiu correndo e ficou levando tombos. - O material que surgiu na análise levou a lembranças de correr de um lado para outro e de fazer travessuras na infância (o leitor sabe o que os vienenses chamam de “eine Hetz” [“uma investida”, “uma corrida furiosa”]). Um sonho específico relembrou o jogo infantil predileto de dizer uma frase, “Die Kuh rannte, bis sie fiel” [“A vaca correu até cair”] tão depressa que ela soa como se fosse uma única palavra [disparatada] - outra corridinha, na verdade. Todas essas correrias inocentes com as amiguinhas foram lembradas porque tomavam o lugar de outras menos inocentes.

II

Eis aqui o sonho de outra paciente: Ela estava numa grande sala em que havia toda sorte de máquinas, tal como imaginava que seria um instituto ortopédico. Disseram-lhe que eu não dispunha de tempo e que ela teria que receber o tratamento junto com outros cinco. Ela se recusou, porém, e não queria deitar-se na cama - ou lá o que fosse - que se destinava a ela. Ficou no canto e esperou que eu lhe dissesse que não era verdade. Entrementes, os outros riam dela e diziam que essa era a sua maneira de “ir levando”. - Simultaneamente, era como se ela estivesse fazendo uma porção de quadradinhos.
A primeira parte do conteúdo desse sonho relacionava-se com o tratamento e era uma transferência para mim. A segunda parte encerrava uma alusão a uma cena da infância. As duas partes estavam ligadas pela menção à cama.
O instituto ortopédico remontava a uma observação feita por mim, na qual eu comparara o tratamento, tanto em sua extensão quanto em sua natureza, a um tratamento ortopédico. Quando comecei seu tratamento, vira-me compelido a dizer-lhe que, no momento, não dispunha de muito tempo para ela, embora depois pudesse dedicar-lhe uma hora inteira diariamente. Isso mexera com sua antiga sensibilidade, que constitui um traço predominante do caráter das crianças inclinadas à histeria: elas são insaciáveis em matéria de amor. Minha paciente fora a caçula de uma família de seis filhos (donde junto com outras cinco) e tinha sido, portanto, a favorita do pai; mesmo assim, parece ter sentido que seu adorado pai lhe dedicava muito pouco de seu tempo e sua atenção. - Sua espera de que eu lhe dissesse que não era verdade teve a seguinte origem: um jovem aprendiz de alfaiate levara-lhe um vestido e ela lhe dera o dinheiro em pagamento. Depois, perguntara ao marido se, caso o menino perdesse o dinheiro, ela teria que pagá-lo novamente. O marido, para implicar com ela, dissera-lhe que sim. (A implicância no sonho.) Ela continuou a perguntar-lhe repetidas vezes e esperou que ele dissesse, afinal, que não era verdade. Foi então possível inferir que, no conteúdo latente do sonho, ocorrera-lhe a idéia de saber se ela teria que me pagar o dobro caso eu lhe dispensasse o dobro do tempo - idéia que ela considerou avara ou suja. (A falta de asseio na infância é muitas vezes substituída nos sonhos pela avareza por dinheiro; o elo entre as duas é a palavra “sujo”.) Se todo o trecho sobre esperar que eu dissesse etc., pretendia ser, no sonho, um circunlóquio relativo ao termo “sujo”, então o fato de ela “ficar de pé no canto” e “não se deitar na cama” combinava com o termo, na qualidade de componentes de uma cena de infância: uma cena em que ela sujara a cama e fora punida tendo de ficar de pé num canto, com a ameaça de que o pai não a amaria mais e de que os irmãos e irmãs se ririam dela, e assim por diante. - Os quadradinhos relacionavam-se com sua sobrinha, que lhe mostrara o truque aritmético de dispor algarismos em nove quadrados (creio que isso está certo), de tal modo que eles somam quinze em todas as direções.

III

Um homem sonhou o seguinte: Viu dois meninos brigando - filhos de tanoeiros, a julgar pelas ferramentas que se achavam por perto. Um dos meninos jogou o outro por terra; o que foi derrubado usava brincos de pedras azuis. Ele correu em direção ao atacante com sua bengala erguida, para castigá-lo. Este correu em busca de proteção até uma mulher que estava de pé junto a uma cerca de madeira, como se fosse a mãe dele. Era uma mulher da classe operária e estava de costas para o sonhador. Finalmente, ela se voltou e dirigiu-lhe um olhar terrível, de modo que ele fugiu apavorado. Via-se a carne vermelha de suas pálpebras inferiores à mostra.
O sonho utilizara copiosamente eventos triviais do dia anterior. Ele de fato vira dois meninos na rua, um dos quais derrubou o outro no chão. Quando ele se precipitou para impedir a briga, ambos saíram correndo. - Filhos de tanoeiros. Isso só foi explicado por um sonho subseqüente, no qual ele empregou a expressão “arrancando o fundo de um barril”. - A partir de sua experiência, ele achava que brincos de pedras azuis eram basicamente usados por prostitutas. Ocorreu-lhe então um verso de um conhecido poema burlesco sobre dois meninos: “O outro menino chamava-se Marie” (isto é, era uma menina). - A mulher de pé. Após a cena com os dois meninos, ele fora fazer uma caminhada pelas margens do Danúbio e aproveitara a solidão do lugar para urinar numa cerca de madeira. Mais adiante, uma senhora idosa respeitavelmentemente trajada sorrira para ele de maneira muito amigável e quisera dar-lhe seu cartão de visita. Visto que a mulher do sonho estava de pé na mesmo posição que ele ao urinar, devia tratar-se de uma mulher urinando. Isso coincide com sua aparência terrível e com a carne vermelha à mostra, que só poderia relacionar-se com a abertura dos órgãos genitais causada pela posição abaixada. Isso, visto em sua infância, reapareceu numa lembrança posterior como “carne viva” - como uma ferida.
O sonho combinou duas oportunidades que ela tivera, quando menino, de ver os órgãos genitais de garotinhas: quando foram derrubadas no chão e quando estava urinando. E, da outra parte do contexto, emergiu uma lembrança de ele ser castigado ou ameaçado por seu pai pela curiosidade sexual que demonstrara nessas ocasiões.

IV

Por trás do seguinte sonho (produzido por uma senhora idosa) havia toda uma gama de lembranças da infância, combinadas da melhor forma possível numa única fantasia.
Ela saiu numa grande pressa para tratar de alguns assuntos. No Graben, caiu de joelhos, como estivesse inteiramente alquebrada. Grande número de pessoas reuniu-se em torno dela, especialmente condutores de táxis, mas ninguém a ajudou a levantar-se. Ela fez várias tentativas vãs, e deste ter finalmente alcançado êxito, pois foi posta num táxi que iria levá-la para casa. Alguém atirou uma cesta grande e muito carregada (como uma cesta de compras) pela janela depois que ela entrou.
Essa era a mesma senhora que sempre se sentia “apressada” em seus sonhos, tal como havia corrido e feito traquinagens quando criança. [Ver em [1].] A primeira cena do sonho derivava, evidentemente, da visão de um cavalo caído; da mesma forma, o termo “alquebrada” referia-se a corrida de cavalos. Em sua juventude, ela cavalgara, e, sem dúvida, quando era ainda mais nova, tinha realmente sido um cavalo. O cair relacionava-se com uma lembrança da primeira infância, ligada ao filho de dezessete anos do porteiro da casa, que caíra na rua com um ataque epilético e fora levado para casa numa carruagem. Ela, naturalmente, apenas ouvira falar sobre isso, mas a idéia dos ataques epiléticos (da “doença das quedas”) dominara sua imaginação e, mais tarde,influenciara a forma assumida por seus próprios ataques histéricos. - Quando uma mulher sonha que está caindo, isso tem quase invariavelmente uma conotação sexual: ela se imagina como uma “mulher decaída”. Este sonho, em particular, praticamente não deixou qualquer margem para dúvidas, já que o local onde minha paciente caiu foi o Graben, uma parte de Viena que é notória como área de prostituição. A cesta de compras [Korb] levou a mais de uma interpretação. Fê-la lembrar-se de numerosas recusas [Körbe] que fizera a seus pretendentes, bem como das que ela própria se queixava de ter recebido posteriormente. Isso também estava ligado ao fato de que ninguém a ajudou a levantar-se, o que ela mesma explicou como uma recusa. A cesta de compras lembrou-lhe ainda fantasias que já haviam surgido em sua análise, nas quais ela era casada com alguém de condição social muito inferior à sua e tinha de fazer as compras de mercado ela própria. E, finalmente, a cesta podia servir como marca de uma criada. Nesse ponto, surgiram outras lembranças da infância. Em primeiro lugar, de uma cozinheira que fora despedida por furto, e que caíra de joelhos e suplicara para ser perdoada. Ela própria tinha doze anos naquela época. Depois, de uma empregada que fora despedida por causa de um caso amoroso com o cocheiro da família (que, aliás, casou-se com ela depois). Assim, essa lembrança era também uma das fontes dos cocheiros (condutores) do sonho (que, ao contrário do cocheiro real, não soergueram a mulher decaída). Restava explicar o fato de a cesta ser atirada depois que ela entrou pela janela. Isso a fez lembrar-se de despachar bagagens a serem enviadas por trem, do costume rural de os namorados subirem e entrarem pela janela de suas namoradas, e de outros pequenos episódios de sua vida no campo: de como um cavalheiro lançara algumas ameixas azuis e uma senhora pela janela de seu quarto, e de como sua própria irmã mais nova se assustara com o idiota da aldeia olhando por sua janela. Uma lembrança obscura de seus dez anos de idade começou então a emergir, de uma babá do interior que se entregara a cenas amorosas (das quais a menina poderia ter visto algo) com um dos criados da casa, e que, juntamente com seu amante, tinha sido mandada embora, posta para fora (o oposto da imagem onírica “atirada para dentro”) - uma história de que já nos havíamos aproximado partindo de várias outras direções. A bagagem ou mala de um criado é desdenhosamente designada, em Viena, como “sete ameixas”: “arrume suas sete ameixas e dê o fora!”

Meus registros naturalmente abrangem uma grande coletânea de sonhos de pacientes cuja análise levou a impressões infantis obscuras ou inteiramente esquecidas, muitas vezes remontando aos três primeiros anos de vida. Mas seria inseguro aplicar quaisquer conclusões extraídas delas aos sonhos em geral. As pessoas em questão eram, na totalidade dos casos, neuróticas, e em particular, histéricas; e é possível que o papel desempenhado pelas cenas infantis em seus sonhos fosse determinado pela natureza de sua neurose, e não pela natureza dos sonhos. Não obstante, ao analisar meus próprios sonhos - e, afinal, não o estou fazendo por causa de nenhum sintoma patológico gritante -, ocorre com freqüência não inferior que, no conteúdo latente de um sonho, deparo inesperadamente com uma cena de infância, e imediatamente toda uma série de meus sonhos se vincula com associações que se ramificam de alguma experiência de minha infância. Já dei alguns exemplos disso [Ver em [1]-[2]], e terei outros a dar em conexão com uma variedade de aspectos. Talvez eu não possa encerrar melhor esta seção do que relatando um ou dois sonhos meus em que ocasiões recentes e experiências há muito esquecidas da infância se uniram como fontes do sonho.

I

Fatigado e faminto após uma viagem, fui dormir, e as principais necessidades vitais começaram a anunciar sua presença em meu sono. Tive o seguinte sonho:
Entrei numa cozinha à procura de pudim. Lá havia três mulheres de pé; uma delas era a estalajadeira e revolvia algo na mão, como se estivesse fazendo Knödel [bolinhos de massa]. Ela respondeu que eu devia esperar até que ela estivesse pronta. (Essas não foram palavras claras verbalmente enunciadas.) Fiquei impaciente e saí com um sentimento de ofensa. Vesti um sobretudo. Mas o primeiro que experimentei era longo demais para mim. Tirei-o, bastante surpreso ao verificar que era forrado de pele. O segundo que vesti tinha uma longa tira com um desenho turco gravado. Um estranho de rosto alongado e barbicha pontuda apareceu e tentou impedir-me de vesti-lo, dizendo que era dele. Mostrei-lhe então que era todo bordado com um desenho turco. Ele perguntou: “Que têm os (desenhos, galões… ) turcos a ver com o sonho?” Mas, em seguida, ficamos muito amáveis um com o outro.
Quando comecei a analisar esse sonho, pensei inesperadamente no primeiro romance que li (quando contava treze anos, talvez); aliás, comecei no fim do primeiro volume. Nunca soube o nome do romance ou de seu autor; mas guardo uma viva lembrança de seu final. O herói enlouqueceu e ficava a chamar pelos nomes das três mulheres que haviam trazido maior felicidade e dor para sua vida. Um desses nomes era Pélagie. Eu ainda não tinha nenhuma idéia de onde levaria essa lembrança na análise. Em relação às três mulheres, pensei nas três Parcas que fiam o destino do homem, e soube que uma das três mulheres - a estalajadeira do sonho - era a mãe que dá a vida, e além disso (como no meu próprio caso), dá à criatura viva seu primeiro alimento. O amor e a fome, refleti, reúnem-se no seio de uma mulher. Um rapaz que era grande admirador da beleza feminina falava, certa vez - assim diz a história -, da bonita ama-de-leite que o amamentara quando ele era bebê: “Lamento”, observou ele, “não ter aproveitado melhor aquela oportunidade.” Eu tinha o hábito de citar essa anedota para explicar o fator da “ação retardada” no mecanismo das psiconeuroses. Uma das Parcas, portanto, esfregava as palmas das mãos como se estivesse fazendo bolinhos de massa: estranha ocupação para uma Parca, e que exigia uma explicação. Esta foi fornecida por outra lembrança anterior de minha infância. Quando tinha seis anos de idade e recebi de minha mãe as primeiras lições, esperava-se que eu acreditasse que éramos todos feitos de barro, e portanto, ao barro deveríamos retornar. Isso não me convinha e expressei dúvidas sobre a doutrina. Ao que então minha mãe esfregou as palmas das mãos - exatamente como fazia ao preparar bolinhos de massa, só que não havia massa entre elas - e me mostrou as escamas enegrecidas de epidermis produzidas pela fricção como prova de que éramos feitos de barro. Meu assombro ante essa demonstração visual não teve limites, e aceitarei a crença que posteriormente iria ouvir expressa nas palavras: Du bist der natur einen Tod schuldig.” Assim, foram realmente as Parcas que encontrei na cozinha ao entrar nela - como tantas vezes fizera na infância quando sentia fome, enquanto minha mãe, de pé junto ao fogo, me advertia de que eu devia esperar até que o jantar ficasse pronto. - E agora, quanto aos bolinhos de massa - os Knödel! Pelo menos um dos meus professores na Universidade - e precisamente aquele a quem devo meus conhecimentos histológicos (por exemplo, da epidermis) - se lembraria infalivelmente, de uma pessoa de nome Knödl, contra quem fora obrigado a mover um processo por plagiar seus escritos. A idéia de plágio - de apropriar-se do que quer que se possa, muito na qual eu era tratado como se fosse o ladrão que há algum tempo praticava suas atividades de furtar sobretudos nas salas de conferências. Eu havia anotado a palavra “plagiar” sem pensar nela, por ter-me ocorrido; mas então observei que ela podia estabelecer uma ponte [Brücke] entre diferentes partes do conteúdo manifesto do sonho. Uma cadeia de associações (Pélagie - plagiar - plagióstomos ou tubarões [Haifische] - a bexiga natatória de um peixe [Fischblase]) ligou o antigo romance com o caso de Knödl e com os sobretudos, que se referiam claramente a dispositivos empregados na técnica sexual [ver em [1]]. (Cf. os sonhos aliterativos de Maury [em [1]].) Sem dúvida, era uma cadeia de idéias muito artificial e sem sentido, mas eu nunca poderia tê-la construído na vida de vigília, a menos que já tivesse sido construída pelo trabalho do sonho. E, como se a necessidade de estabelecer ligações forçadas não considerasse nada sagrado, o nome honrado de Brücke(cf. a ponte verbal acima) lembrou-me o Instituto em que passei as horas mais felizes de minha vida estudantil, livre de todos os outros desejos -
So wird’s Euch an der Weisheit Brüsten
Mit jedem Tage mehr gelüsten
- em completo contraste com os desejos que agora me atormentavam em meu sonhos. Finalmente, veio-me à lembrança outro professor muito respeitado - seu nome, Fleischl [“Fleisch” = “carne”], tal como Knödl, soava como algo para comer - e uma cena lastimável em que as escamas de epiderme desempenhavam certo papel (minha mãe e a estalajadeira), bem como a loucura (o romance) e uma droga do dispensário que elimina a fome: a cocaína.
Poderia continuar a seguir as intricadas seqüências de idéias dentro dessa linha e explicar completamente a parte do sonho que ainda não analisei; mas devo desistir neste ponto, porque o sacrifício pessoal exigido seria grande demais. Apanharei apenas um dos fios da meada, que está apto a nos levar diretamente a um dos pensamentos do sonho subjacentes a essa confusão. O estranho de rosto alongado e barba pontuda que tentou impedir que eu vestisse o sobretudo tinhas as feições de um lojista de Spalato, de quem minha mulher comprara diversos artigos turcos. Chamava-se Popovi, nome equívoco sobre o qual um escritor humorístico, Stettenheim, já fez um comentário sugestivo: “Ele me disse o nome e, enrubescendo, pressionou minha mão.” Mais uma vez, apanhei-me fazendo mau uso de um nome, como já fizera com Pélagie, Knödl, Brücke e Fleischl. Seria difícil negar que brincar com nomes dessa maneira era uma espécie de travessura infantil. Mas, se eu me entregava a isso, era como um ato de retaliação, pois meu próprio nome fora alvo de gracejos leves como esses em incontáveis ocasiões. Goethe, lembrei-me, comentara em algum lugar a sensibilidade das pessoas em relação a seus nomes: como parecemos transformarmo-nos neles como se fossem nossa própria pele. Ele dissera isso à propos de um verso escrito sobre seu nome por Herder:
“Der du von Göttern abstammst, von Gothen oder vom Kote.” -

“So seid ihr Götterbilder auch zu Staub”.
Notei que minha digressão sobre o tema do uso incorreto dos nomes estava apenas levando a essa queixa. Mas devo fazer uma interrupção aqui. - A compra que minha mulher fez em Spalato lembrou-me uma outra compra, feita em Cattaro, em relação à qual eu fora cauteloso demais, de modo que perdi uma oportunidade de fazer ótimas aquisições. (Cf. a oportunidade não aproveitada com a ama-de-leite.) Pois uma das idéias que minha fome introduziu no sonho foi esta: “Nunca se deve desprezar uma oportunidade, mas sempre tomar o que se pode, mesmo quando isso implica praticar um pequeno delito. Nunca se deve desprezar uma oportunidade, já que a vida é curta, e a morte, inevitável.” Uma vez que essa lição de “carpe diem” tinha, entre outros sentidos, uma conotação sexual, e uma vez que o desejo que ela expressava não se detinha a idéia de agir mal, ele tinha motivos para temer a censura e foi obrigado a se ocultar atrás de um sonho. Toda sorte de pensamentos de sentido contrário encontraram então expressão: lembranças de uma época em que o sonhador se contentava com um alimento espiritual, idéias restritivas de todo tipo, e até ameaças dos mais revoltantes castigos sexuais.

II

O sonho seguinte exige um preâmbulo bastante longo:
Eu me dirigia à Estação Oeste [em Viena] a fim de tomar o trem para passar minhas férias de verão em Aussee, mas havia chegado à plataforma enquanto um trem anterior, que ia para Ischl, ainda se encontrava na estação. Lá, vira o Conde Thum, que mais uma vez ia a Ischl para ter uma audiência com o Imperador. Embora estivesse chovendo, ele chegara numa carruagem aberta. Passara direto pela entrada que dava acesso aos Trens Locais. O fiscal de bilhetes no portão não o havia reconhecido e tentara pedir-lhe o bilhete, mas o conde o afastara com um breve e abrupto movimento da mão, sem lhe dar qualquer explicação. Depois que o trem para Ischl partiu, eu deveria de direito deixar novamente a plataforma e retornar à sala de espera, e tive certa dificuldade de arranjar as coisas de modo que me permitissem permanecer na plataforma. Passara o tempo vigiando atentamente, para ver se aparecia alguém que tentasse conseguir um compartimento reservado utilizando alguma espécie de “pistolão”. Pretendia, nesse caso, protestar energicamente, isto é, reivindicar direitos iguais. Entrementes, estivera cantarolando uma melodia que reconheci como sendo a ária de Fígaro em La Nozze di Figaro:

Se vuol ballare, signor contino,
Se vuol ballare, signor contino,
Il chitarino le suonerò

(É um pouco duvidoso que alguma outra pessoa pudesse reconhecer a melodia.)
A noite inteira eu me sentira animado e com espírito combativo. Mexera com meu garçom e com o cocheiro do táxi - sem, espero, tê-los melindrado. E agora, toda sorte de idéias insolentes e revolucionárias me passavam pela cabeça, combinando com as palavras de Fígaro e com minhas lembranças da comédia de Beaumarchais que eu vira encenada pela Comédie française. Pensei na frase sobre os grandes cavalheiros que se tinham dado ao trabalho de nascer, e no droit du Seigneur que o Conde Almaviva tentou exercer sobre Susanna. Pensei também em como nossos maliciosos jornalistas da oposição faziam piadas com o nome do Conde Thum, chamando-o, em vez disso, de “Conde Nichtsthun”. Não que eu o invejasse. Ele estava a caminho de uma audiência espinhosa com o Imperador, enquanto eu era o verdadeiro Conde Faz-Nada - de partida para minhas férias. Seguiu-se toda sorte de projetos agradáveis para as férias. Nesse momento, chegou à plataforma um cavalheiro que reconheci como sendo um inspetor de exames médicos do governo, o qual, por suas atividades nessa função, ganhara o lisonjeiro apelido de “parceiro de soneca do Governo” Pediu que lhe arranjassem um meio-compartimento de primeira classe em virtude de seu cargo oficial, e ouvi um ferroviário dizer a outro: “Onde devemos pôr o cavalheiro com o meio-bilhete de primeira classe?” Esse, pensei com meus botões, era um belo exemplo de privilégio; afinal, eu tinha pago o preço integral de uma passagem de primeira classe. E de fato obtive um compartimento, mas não um vagão com corredor, de modo que não haveria um toalete disponível durante a noite. Queixei-me com um funcionário sem conseguir nenhum êxito, mas espicacei-o sugerindo que, de qualquer modo, ele devia mandar fazer um buraco no chão do compartimento para atender às possíveis necessidades dos passageiros. E, de fato, acordei às quinze para as três da madrugada com grande vontade de urinar, depois de ter tido seguinte sonhos:
Uma multidão de pessoas, uma reunião de estudantes. - Um conde (Thum or Taaffe
) estava falando. Foi desafiado a dizer algo sobre os alemãs, e declarou, com um gesto desdenhoso, que a flor predileta deles era a unha-de-cavalo, e pôs uma espécie de folha deteriorada - ou melhor, o esqueleto amassado de uma folha - em sua lapela. Enfureci-me - então me enfureci, embora ficasse surpreso por tomar essa atitude.
(A seguir, de maneira menos distinta:) Era como se eu estivesse na Aula, as entradas estavam fechadas por cordões de isolamento e tínhamos que fugir. Abri caminho por um série de salas lindamente mobiliadas, evidentemente dependências ministeriais ou públicas, com móveis estofados numa cor entre o marrom e o violeta; por fim, cheguei a um corredor onde estava sentada uma zeladora, uma mulher corpulenta e idosa. Evitei dirigir-lhe a palavra, mas, evidentemente, ela achou que eu tinha o direito de passar, pois perguntou se devia acompanhar-me com o candeeiro. Indiquei-lhe, com uma palavra ou um gesto, que ela devia parar na escadaria, e achei que estava sendo muito astuto por evitar assim a fiscalização na saída. Cheguei ao térreo e encontrei um caminho ascendente estreito e íngreme, pelo qual segui.
(Tornando-se indistinto novamente)… Era como se o segundo problema fosse sair da cidade, tal como o primeiro fora sair de casa. Eu estava num tílburi e ordenei ao cocheiro que me levasse a uma estação. “Não posso ir com o senhor ao longo de própria linha férrea”, disse eu, depois de ele ter levantado alguma objeção, como se eu o tivesse fatigado demais. Era como se eu já tivesse viajado com ele parte da distância que normalmente se percorre de trem. As estações estavam fechadas por cordões de isolamento. Fiquei sem saber se deveria ir para Krems ou Znaim, mas refleti que a Corte estaria residindo lá, de modo que me resolvi em favor de Graz ou algum lugar assim. Estava agora sentado no compartimento, que era como um vagão da Stadtbahn [a ferrovia suburbana]; e em minha lapela eu trazia um objeto singular pregueado e alongado, e ao lado dele algumas violetas de cor castanho-violeta feitas de um material rígido. Isso impressionava muito as pessoas. (Nesse ponto, a cena se interrompeu.)
Eu estava de novo em frente à estação, mas dessa vez em companhia de um cavalheiro idoso. Pensei num plano para permanecer incógnito, e então vi que esse plano já fora posto em prática. Era como se pensar e experimentar fossem uma coisa só. Ele parecia ser cego, pelo menos de um olho, e eu lhe entreguei um urinol de vidro para homens (que tivemos de comprar ou tínhamos comprado na cidade). Logo, eu era enfermeiro e tinha de dar-lhe o urinol porque ele era cego. Se o condutor nos visse assim, por certo nos deixaria sair sem reparar em nós. Aqui, a atitude do homem e de seu pênis urinando apareceram em forma plástica. (Foi nesse ponto que acordei, sentido necessidade de urinar.)
O sonho como um todo dá a impressão de ser da ordem de uma fantasia em que o sonhador foi reconduzido ao ano da Revolução de 1848. Algumas lembranças desse ano me tinham sido recordadas pelo Jubileu [do Imperador Francisco José] em 1898, bem como uma curta viagem que eu fizera ao Wachau, no decorrer da qual visitara Emmersdorf, o local de retiro do líder estudantil Fischhof, a quem certos elementos do conteúdo manifesto do sonho talvez aludissem. Minhas associações levaram-me então à Inglaterra e à casa de meu irmão ali. Ele costumava mexer freqüentemente com sua mulher com as palavras “Cinqüenta Anos Atrás” (extraídas do título de um dos poemas de Lorde Tennyson), que seus filhos costumavam corrigir por “quinze anos atrás”. Essa fantasia revolucionária, contudo, que derivara de idéias despertadas em mim ao ver o Conde Thum, era como a fachada de uma igreja italiana, no sentido de não ter nenhuma relação orgânica com a estrutura por trás dela. Mas diferia dessas fachadas por ser desordenada e cheia de lacunas, e pelo fato de partes da construção interna terem irrompido nela em muitos pontos.
A primeira situação do sonho era um amálgama de várias cenas que posso isolar. A atitude insolente adotada pelo Conde no sonho foi copiada de uma cena em meu curso secundário quando eu tinha quinze anos. Havíamos tramado uma conspiração contra um professor impopular e ignorante, cuja mola mestre fora um de meus colegas de escola, que desde aquela época parecia ter adotado Henrique VII da Inglaterra como seu modelo. A liderança do ataque principal foi outorgada a mim, e o sinal para a revolta aberta seria um debate sobre a importância do Danúbio para a Áustria (cf. o Wachau). Um de nossos colegas de conspiração era o único aristocrata da turma, que, em vista do notável comprimento de seus membros, era chamado “a Girafa”.Ele estava de pé, como o conde em meu sonho, depois de ser repreendido pelo tirano da escola, o professor de língua alemã. A flor predileta e o colocar em sua lapela algo da natureza de uma flor (que por último me fez pensar numas orquídeas que eu levara no mesmo dia para uma amiga, e também numa rosa-de-Jericó) eram um esplêndido lembrete da cena de uma das peças históricas de Shakespeare [3 Henrique VI, I, 1] que representava o início das Guerras das Rosas Vermelhas e Brancas. (A menção a Henrique VIII abriu caminho para essa lembrança.) - A partir desse ponto, foi apenas um passo para os cravos vermelhos e brancos. (Dois pequenos dísticos, um em alemão e o outro em espanhol, insinuaram-se na análise nesse ponto:

Rosen, Tulpen, Nelken,
alle Blumen welken.

Isabelita, no llores,
.que se marchitan la flores.

O aparecimento de um dístico espanhol reconduziu ao Fígaro.) Aqui em Viena, os cravos brancos tinham-se tornado um emblema do anti-semitismo, e os vermelhos, dos Social-Democratas. Por trás disso havia a lembrança de uma provocação anti-semita durante uma viagem de trem pelos belos campos da Saxônia (cf. Anglo-Saxão). - A terceira cena que contribuiu para a formação da primeira situação do sonho datava de meus primeiros tempos de estudante. Houve um debate num clube alemão de estudantes sobre a relação entre a filosofia e as ciências naturais. Eu era um jovem imaturo, cheio de teorias materialistas, e me lancei à frente para dar expressão a um ponto de vista extremamente unilateral. A isto, alguém que era mais velho que eu e meu superior, alguém que desde então tem demonstrado sua habilidade para liderar homens e organizar grandes grupos (e que também, aliás, tem um nome derivado do Reino Animal), levantou-se e nos passou uma boa descomputura: também ele, disse-nos, havia alimentado porcos em sua juventude e voltara arrependido à casa de seu pai. Enfureci-me (como no sonho) e repliquei rudemente [“saugrob”, literalmente “grosso como um suíno”], dizendo que, como agora sabia que ele tinha alimentado porcos na juventude, já não ficava surpreso com o tom de seus discursos. (No sonho, eu ficava surpreso com minha atitude nacionalista germânica [em [1]].) Houve uma comoção geral e fui conclamado por muitos dos presentes a retirar minhas observações, mas recusei-me a fazê-lo. O homem que eu insultara era sensato demais para considerar o incidente um desafio, e deixou que o assunto morresse.
Os demais elementos dessa primeira situação do sonho derivavam de camadas mais profundas. Qual o significado do pronunciamento do Conde sobre a unha-de-cavalo? Para encontrar a resposta, segui uma série de associações: unha-de-cavalo [“Huflattich”, literalmente “alface do casco”] - alface - salada - cão-de-manjedoura [“Salathund”, literalmente, “cão-da-salada”]. Aqui estava uma coleção de xingamentos: “Gir-affe” [“Affe” corresponde, em alemão, a “macaco”], “suíno”, “cachorro” - e eu poderia ter chegado a “burro”, se tivesse feito um desvio por outro nome e insultado mais outro professor acadêmico. Além disso, traduzi “unha-de-cavalo” - não sei se acertada ou erroneamente - pelo francês pisse-en-lit. Essa informação derivava do Germinal, de Zola, no qual se mandava uma criança colher essa planta para fazer salada. O termo francês para “cão” - “chien” - me fez lembrar a função principal (“chier”, em francês, comparado com “piser” para a função secundária). Breve, pensei, eu teria coligido exemplos de imprioridades nos três estados da matéria - sólido, líquido e gasoso -, pois esse mesmo livro, Germinal, que muito tinha a ver com a revolução iminente, continha um relato de uma espécie muito peculiar de competição - para a produção de uma excreção gasosa conhecida pelo nome de flatus. Vi então que o caminho que levava a flatus fora preparado com grande antecedência: de flores, passando pelo dístico espanhol, Isabelita, Isabel e Fernão, Henrique VIII, história inglesa, até a Armada que navegou contra a Inglaterra e após cuja derrota cunhou-se uma medalha com a inscrição Flavit et dissipati sunt”, pois a tempestade dispersara a esquadra espanhola. Eu havia pensado, meio seriamente, em usar essas palavras como epígrafe do capítulo sobre “Terapia”, se algum dia chegasse a ponto de produzir um relato pormenorizado de minha teoria e tratamento da histeria.
Passando agora ao segundo episódio do sonho, estou impossibilitado de lidar com ele com tantos detalhes - em consideração à censura. Ocorre que eu estava me colocando no lugar de um exaltado personagem daqueles tempos revolucionários, que também tivera uma aventura com uma águia [Adler] e que se diz ter sofrido de incontinência intestinal, e assim por diante. Pensei comigo mesmo que não havia justificativa para eu passar pela censura nesse ponto, muito embora a maior parte da história me tivesse sido narrada por um Hofrat (um consiliarius aulicus [conselheiro da corte] - cf. Aula). A sucessão de aposentos públicos do sonho provinha do carro-salão de Sua Excelência, que eu conseguira vislumbrar. Mas as “salas” [Zimmer] também significavam “mulheres” [Frauenzimmer], como ocorre com freqüência nos sonhos- nesse caso, “mulheres públicas”. Na figura zeladora eu estava mostrando minha falta de gratidão para com uma espirituosa senhora de idade e retribuindo mal sua hospitalidade e as muitas boas histórias que ouvira quando me hospedei em sua casa. - A alusão ao candeeiro remontava a Grillparzer, que introduziu um encantador episódio de natureza semelhante, pelo qual ele passara na realidade, em sua tragédia sobre Hero e Leandro, Des Meeres und der Liebe Wellen [“As Ondas do Mar e do Amor”] - a Armada e a tempestade.[1]

Devo também abster-me de qualquer análise pormenorizada dos dois episódios restantes do sonho. Simplesmente selecionarei os elementos que conduzem às duas cenas de infância exclusivamente em função das quais embarquei no exame desse sonho. Pode-se suspeitar, com justa razão, que o que me obriga a fazer essa supressão é o material sexual; mas não há necessidade de nos contentarmos com essa explicação. Afinal, há muitas coisas de que se tem que fazer segredo para outras pessoas, mas das quais não se guarda nenhum segredo para si próprio; e a questão aqui não é a razão por que sou obrigado a ocultar a solução, mas diz respeito aos motivos da censura interna que esconderam de mim o verdadeiro conteúdo do sonho. Por isso, devo explicar que a análise desses três [últimos] episódios do sonho mostrou que eles eram gabolices impertinentes, produtos de uma megalomania absurda que há muito havia sido suprimida de minha vida de vigília, e algumas de suas ramificações haviam até mesmo acedido ao conteúdo manifesto do sonho (por exemplo, “achei que estava sendo muito astuto”), e a qual, aliás, explicava meu exuberante bom humor na noite que antecedeu o sonho. A presunção se estendia a todas as esferas; por exemplo, a menção a Graz remontava à expressão de gíria “qual é o preço de Graz?”, que externa a auto-satisfação de uma pessoa que se sente extremamente bem de vida. O primeiro episódio do sonho pode também ser incluído entre as fanfarronices por quem quer que tenha em mente o incomparável relato do grande Rabelais sobre a vida e os atos de Gargântua e seu filho Pantagruel.
Eis o material relativo à duas cenas de infância que prometi a meus leitores. Eu havia comprado uma mala nova para a viagem, de cor castanho-violeta. Esta cor aparece mais de uma vez no sonho: as violetas de tom castanho-violeta feitas de material rígido e, ao lado delas, uma coisa conhecida por Mädchenfänger” [“pega-moças”] - e os móveis dos aposentos ministeriais. As crianças geralmente acreditam que as pessoas ficam impressionadas com qualquer coisa nova. A seguinte cena de minha infância que me foi descrita, e minha lembrança da descrição tomou o lugar da recordação da própria cena: parece que, quando tinha dois anos, eu ainda molhava a cama ocasionalmente, e quando era repreendido por isso, consolava meu pai prometendo comprar-lhe uma bela cama nova e vermelha em N., a mais próxima cidade com alguma importância. Essa fora a origem da oração entre parênteses do sonho, no sentido de que tínhamos comprado ou tivemos de comprar o urinol na cidade: um sujeito deve cumprir suas promessas.(Note-se, também, a justaposição simbólica do urinol masculino e da mala ou caixa feminina. [Ver em [1]-[2]]) Essa minha promessa exibia toda a megalomania da infância. Já nos deparamos com o importante papel desempenhado nos sonhos pelas dificuldades das crianças em relação à micção (cf. o sonho relatado em [1]). Também já tomamos conhecimento, pela psicanálise de sujeitos neuróticos, da íntima relação entre o urinar na cama e o traço de caráter da ambição.
Quando eu contava sete ou oito anos, houve outra cena doméstica da qual me lembro com muita clareza. Uma noite, antes de ir dormir, desprezei as normas formuladas pelo decoro e obedeci aos apelos da natureza no quarto de meus pais, na presença deles. No decorrer de sua reprimenda, meu pai deixou escapar as seguintes palavras: “Esse menino não vai dar para nada.” Isso deve ter sido um golpe terrível para minha ambição, pois ainda há referências a essa cena recorrendo constantemente em meus sonhos, e estão sempre ligadas a uma enumeração de minhas realizações e sucessos, como se eu quisesse dizer: “Estão vendo, eu dei para alguma coisa.” Essa cena, portanto, forneceu o material para o episódio final do sonho, no qual - por vingança, é claro - os papéis foram invertidos. O homem mais velho (claramente meu pai, pois a cegueira num olho se referia a seu glaucoma unilateral) agora urinava diante de mim, tal como eu urinara na presença dele em minha infância. Na referência a seu glaucoma eu o fazia lembrar-se da cocaína, que o havia ajudado na operação [Ver em [1]] como se, dessa maneira, eu tivesse mantido minha promessa. Além disso, estava me divertindo à sua custa; tinha de entregar-lhe o urinol porque ele era cego e me deleitava com as alusões a minhas descobertas ligadas à teoria da histeria, das quais me sentia muito orgulhoso.[1]
As duas cenas de micção de minha infância estavam de qualquer modo, estreitamente ligadas ao tema da megalomania; mas sua emergência enquanto eu viajava para Aussee foi ainda auxiliada pela circunstância fortuita de que não havia um toalete contíguo a meu compartimento e de que eu tinha motivos para prever a dificuldade que de fato surgiu ao amanhecer. Despertei com as sensações de uma necessidade física. Poder-se-ia, penso eu, ficar inclinado a supor que essas sensações tinham sido o verdadeiro agente provocador do sonho, mas prefiro adotar outro ponto de vista, a saber, o de que o desejo de urinar só foi despertado pelos pensamentos do sonho. É muito raro eu ser perturbado em meu sono por necessidades físicas de qualquer natureza, sobretudo no horário em que acordei nessa ocasião, às quinze para as três da madrugada. E talvez possa refutar uma outra objeção observando que em outras viagens, realizadas em condições mais confortáveis, raramente senti necessidade de urinar quando acordava cedo. Mas, seja como for, não haverá nenhum mal em deixar esse ponto não solucionado. [1]
Minhas experiências ao analisar sonhos chamaram ainda atenção para o fato de que as seqüências de idéias que remontam à mais remota infância partem até mesmo de sonhos que parecem, à primeira vista, ter sido inteiramente interpretados, visto que suas fontes e seu desejo instigador são descobertos sem dificuldade. Vi-me, portanto, obrigado a perguntar a mim mesmo se essa característica não seria precondição essencial do sonhar. Enunciado em termos gerais, isso implicaria que todo sonho estaria ligado, em seu conteúdo manifesto, a experiências recentes, e, em seu conteúdo latente, às experiências mais antigas. E de fato pude mostrar, em minha análise da histeria, que essas experiências antigas permanecem recentes no sentido próprio do termo, até o presente imediato. Ainda é extremamente difícil demonstrar a verdade dessa suspeita, e terei de voltar, com respeito a outra questão (Capítulo VII [em [1]]), a um exame do provável papel desempenhado pelas experiências primitivas da infância na formação dos sonhos.
Das três características da memória nos sonhos, enumeradas no início deste capítulo, uma - preferência pelo material não-essencial no conteúdo dos sonhos - foi satisfatoriamente esclarecida ao se remontar sua origem à distorção dos sonhos. Pudemos confirmar a existência das outras duas - a ênfase no material recente e no material infantil - mas não pudemos explicá-las com base nos motivos que levam a sonhar. Essas duas características, cuja explicação e apreciação ainda não foram descobertas, devem ser conservadas em mente. Seu lugar apropriado deve ser buscado alhures - quer na psicologia do estado de sono, quer no exame da estrutura do aparelho mental, em que nos envolveremos posteriormente, depois que tivermoscompreendido que a interpretação dos sonhos é como uma janela pela qual podemos vislumbrar o interior desse aparelho. [Ver Capítulo VII.]
Existe, contudo, outra inferência decorrente destas últimas análises de sonhos, para a qual chamarei a atenção imediatamente. Os sonhos muitas vezes parecem ter mais de um sentido. Não só, como mostraram nossos exemplos, podem abranger várias realizações de desejos, uma ao lado da outra, como também pode haver uma sucessão de sentidos ou realizações de desejos superpostos uns aos outros, achando-se na base a realização de um desejo que data da primeira infância. E aqui surge mais uma vez a questão de verificar se não seria mais correto asseverar que isso ocorre “invariavelmente”, e não “freqüentemente”.

(C) AS FONTES SOMÁTICAS DOS SONHOS

Se tentarmos interessar um leigo culto nos problemas dos sonhos e, com esse propósito em vista, lhe perguntarmos quais são, em sua opinião, as fontes das quais eles surgem, veremos, de modo geral, que ele se sente seguro de possuir a resposta para essa parte da pergunta. Ele pensa imediatamente nos efeitos produzidos na construção dos sonhos pelos distúrbios ou dificuldades digestivas - “os sonhos decorrem da indigestão” [ver em [1]] -, pelas posturas acidentalmente assumidas pelo corpo e por outros pequenos incidentes durante o sono. Nunca lhe parece ocorrer que, uma vez levados em conta todos esses fatores, ainda reste algo que precise de explicação.
Já examinei longamente, no capítulo de abertura (Seção C), o papel atribuído pelos autores científicos às fontes somáticas de estimulação na formação dos sonhos; basta-me, portanto, recordar aqui apenas os resultados dessa investigação. Verificamos que se distinguiam três espécies diferentes de fontes somáticas de estimulação: os estímulos sensoriais objetivos provenientes de objetos externos, os estados internos de excitação dos órgãos sensoriais com base apenas subjetiva, e os estímulos somáticos provenientes do interior do corpo. Percebemos, além disso, que as autoridades se inclinavam a colocar em segundo plano, ou a excluir inteiramente, quaisquer possíveis fontes psíquicas dos sonhos, comparadas a esses estímulos somáticos (ver em [1]). Em nosso exame das afirmações feitas em prol das fontes somáticas de estimulação, chegamos às seguintes conclusões. A importância das excitações objetivas dos órgãos sensoriais (consistindo, em parte, de estímulos fortuitos durante o sono e, em parte, de excitações que não podem deixar de influenciar nem mesmo uma mente adormecida) é estabelecida a partir de numerosas observações e foi confirmada experimentalmente (ver em [1]). O papel desempenhado pelas excitações sensoriais subjetivas parece ser demonstrado pela recorrência de imagens sensoriais hipnagógicas nos sonhos (ver em [1] e segs.). E por fim, parece que, embora seja impossível provar que as imagens e representações que ocorrem em nossos sonhos são atribuíveis aos estímulos somáticos internos no grau em que se afirmou que isso se dá, essa origem, ainda assim, encontra apoio na influência universalmente reconhecida que exercem em nossos sonhos os estados de excitação de nossos órgãos digestivos, urinários e sexuais [ver em [1]]
Assim, ao que parece, a “estimulação nervosa” e a “estimulação somática” seriam as fontes somáticas dos sonhos - isto é, segundo muitos autores, sua única fonte.
Por outro lado, já encontramos diversas manifestações de dúvida que pareciam implicar uma crítica não à correção, é verdade, mas à suficiência da teoria da estimulação somática.
Por mais seguros de sua base concreta que se sentissem os defensores dessa teoria - especialmente no que concerne aos estímulos acidentais e externos, já que estes podem ser detectados no conteúdo dos sonhos sem qualquer dificuldade - nenhum deles pôde deixar de perceber que é impossível atribuir a profusão de material de representações dos sonhos apenas aos estímulos nervosos externos. A Srta. Mary Whiton Calkins (1893, 312) examinou seus próprios sonhos e os de uma outra pessoa durante seis semanas com essa questão em mente. Verificou que em apenas 13,2% e 6,7 % deles, respectivamente, foi possível traçar o elemento de percepção sensorial externa; ao passo que, dos casos do conjunto de sonhos, apenas dois eram decorrentes de sensações orgânicas. Temos aqui a confirmação estatística daquilo que fui levado a suspeitar a partir de um exame apressado de minhas próprias experiências.
Já se propôs muitas vezes separar os “sonhos devido à estimulação nervosa” de outras formas de sonhos,como uma subespécie que foi completamente investigada. Assim, Spitta [1882, 233] divide os sonhos em “sonhos devidos à estimulação nervosa” e “sonhos devido à associação”. Essa solução, todavia, estava fadada a permanecer insatisfatória enquanto fosse impossível demonstrar o elo entre as fontes somáticas de um sonho e seu conteúdo de representações. Assim, além da primeira objeção - a freqüência insuficiente das fontes externas de estimulação -, havia uma segunda - a explicação insuficiente dos sonhos proporcionada por essas fontes. Temos o direito de esperar que os defensores dessa teoria nos dêem explicações sobre dois pontos: primeiro, por que é que o estímulo externo de um sonho não é percebido em sua verdadeira natureza, sendo invariavelmente mal interpretado (cf. os sonhos provocados pelo despertador em [1]); e segundo, por que é que a reação da mente perceptiva a esses estímulos mal interpretados leva a resultados de uma variedade tão imprevisível.
A título de resposta a essas questões, Strümpell (1877, 108 e seg.) nos diz que, como a mente se retrai do mundo externo durante o sono, ela é incapaz de dar uma interpretação correta aos estímulos sensoriais objetivos e é obrigada a construir ilusões com base no que é, em muitos aspectos, uma impressão indeterminada. Para citar suas próprias palavras: “Tão logo uma sensação ou um complexo de sensações, ou um sentimento, ou um processo psíquico de qualquer espécie surge na mente durante o sono, como resultado de um estímulo nervoso externo ou interno, e isso é percebido pela mente, esse processo convoca imagens sensoriais do círculo de experiências deixadas na mente pelo estado de vigília - ou seja, percepções anteriores - que são puras ou se fazem acompanhar de seus valores psíquicos apropriados. O processo se cerca, por assim dizer, de um número maior ou menor de imagens desse tipo e, através delas, a impressão derivada do estímulo adquire seu valor psíquico. Falamos aqui (como costumamos fazer no caso do comportamento de vigília) sobre a mente adormecida ‘interpretar’ as impressões causadas pelo estímulo nervoso. O resultado dessa interpretação é o que chamamos de um ‘sonho devido à estimulação nervosa’, isto é, um sonho cujos componentes são determinados por um estímulo nervoso que produz seus efeitos psíquicos na mente segundo as leis da reprodução.” [Ver em [1], [2] e [3].]
Wundt [1874, 656 e seg.] está dizendo algo essencialmente idêntico a essa teoria ao afirmar que as representações que ocorrem nos sonhos derivam, pelo menos em sua maior parte, de estímulos sensoriais, incluindo especialmente as sensações cenestésicas, e são, por esse motivo, principalmente ilusões imaginativas e, provavelmente apenas em pequeno grau, representações mnêmicas puras intensificadas até assumirem a forma de alucinações. [Ver em [1]] Strümpell (1877, 84) descobriu um símile adequado para a relação que subsiste nessa teoria entre os conteúdos de um sonho e seus estímulos, ao escrever que “é como se os dez dedos de um homem que nada sabe de música vagassem sobre o teclado de um piano” [Ver em [1] e [2]]. Assim, um sonho não é, segundo essa visão, um fenômeno mental baseado em motivos psíquicos, e sim o resultado de um estímulo psicológico que se expressa em sintomas físicos, pois o aparato sobre o qual o estímulo incide não é capaz de outra forma de expressão. Uma pressuposição similar também está subjacente, por exemplo, à famosa analogia por meio da qual Meynert tentou explicar as idéias obsessivas: a analogia de um mostrador de relógio no qual certos algarismos sobressaem por estarem estampados de maneira mais proeminentemente do que os demais.
Por mais popular que se tenha tornado a teoria da estimulação somática dos sonhos, e por mais atraente que ela possa parecer, seu ponto fraco é facilmente demonstrado. Todo estímulo somático onírico que exija que o aparelho mental adormecido o interprete por meio da construção de uma ilusão pode dar origem a um número ilimitado de tais tentativas de interpretação - isto é, pode ser representado no conteúdo do sonho por uma imensa variedade de representações. Mas a teoria proposta por Strümpell e Wundt é incapaz de produzir qualquer motivo que reja a relação entre um estímulo externo e a representação onírica escolhida para sua interpretação - isto é, é incapaz de explicar o que Lipps (1883, 170) chama de a “notável escolha freqüentemente feita” por esses estímulos “no curso de sua atividade produtiva”. Outras objeções foram ainda levantadas contra a pressuposição em que se baseia toda a teoria da ilusão - a pressuposição de que a mente adormecida é incapaz de reconhecer a verdadeira natureza dos estímulos sensoriais objetivos. Burdach, o fisiologista, mostrou-nos há muito tempo que, mesmo no sono, a mente é perfeitamente capaz de interpretar de maneira correta as impressões sensoriais que a alcançaram e de reagir segundo essa interpretação correta; lembrou ele o fato de que determinadas impressões sensoriais que parecem importantes para aquele que dorme podem ser execetadas da negligência geral a que tais impressões ficam sujeitas durante o sono (como no caso da mãe que está amamentando ou da ama-de-leite em relação à criança sob sua responsabilidade), e que é mais certo uma pessoa adormecida ser acordada pelo som de seu próprio nome do que por alguma impressão auditiva indiferente - tudo isso implicando que a mente diferencia as sensações durante o sono (Ver em [1]). Burdach então inferiu dessas observações que o que devemos presumir durante o estado de sono não é uma falta de interesse neles. Os mesmos argumentos usados por Burdach em 1830 foram novamente apresentados por Lipps, sem qualquer modificação, em 1883, em sua crítica à teoria da estimulação somática. Assim, a mente parece comportar-se como o adormecido da anedota. Quando alguém lhe perguntou se estava dormindo, ele respondeu “Não”. Mas quando o interlocutor prosseguiu dizendo “Então empreste-me dez florins”, ele se refugiou num subterfúgio e respondeu: “Estou dormindo”.
A insuficiência da teoria da estimulação somática dos sonhos pode ser demonstrada de outras maneiras. A observação mostra que os estímulos externos não me compelem necessariamente a sonhar, muito embora tais estímulos apareçam no conteúdo de meu sonho se e quando chego de fato a sonhar. Vamos supor, digamos, que eu seja submetido a um estímulo táctil enquanto estiver dormindo. Uma multiplicidade de reações diferentes estará então aberta diante de mim. Posso desprezar o estímulo e, ao acordar, constatar, por exemplo, que minha perna está descoberta ou que há alguma pressão em meu braço; a patologia fornece exemplos bastante numerosos em que vários estímulos sensoriais e motores poderosamente excitantes permanecem sem efeito durante o sono. Ou então, posso ficar ciente da sensação em meu sono - posso ficar ciente dela, como se diz, “através” de meu sono (que é o que acontece, via de regra, no caso dos estímulos dolorosos), mas sem que se transforme a dor num sonho. E, em terceiro lugar, posso reagir ao estímulo acordando para livrar-me dele. É somente como a quarta possibilidade que o estímulo nervoso pode levar-me a sonhar. Contudo, as outras possibilidades se concretizam pelo menos com a mesma freqüência desta última, - a de construir um sonho. E isso não poderia acontecer, a menos que o motivo para sonhar estive em outra parte que não fontes somáticas de estimulação.
Alguns outros autores - Scherner [1861] e o filósofo Volkelt [1875], que adorou os pontos de vista de Scherner - fizeram uma estimativa justa das lacunas que aqui indiquei na explicação dos sonhos como devidas à estimulação somática. Esses autores tentaram definir com mais precisão as atividades mentais que levam à produção de imagens oníricas tão diversificadas a partir dos estímulos somáticos; em outras palavras, eles buscaram considerar uma atividade psíquica. [Ver em [1]] Scherner não apenas retratou as características psíquicas reveladas na produção dos sonhos em termos carregados de sentimento poético e resplandecentes de vida; ele acreditava, também, ter descoberto o princípio segundo o qual a mente lida com os estímulos a ela apresentados. Em sua opinião, o trabalho do sonho, quando a imaginação é libertada dos grilhões diurnos, procura dar uma representação simbólica da natureza do órgão do qual provém o estímulo e da natureza do próprio estímulo. Assim, ele fornece uma espécie de “livro do sonho” para servir como guia para a interpretação dos sonhos, que possibilita deduzir das imagens oníricas inferências sobre as sensações somáticas, o estado dos órgãos e o caráter dos estímulos em questão. “Assim, a imagem de um gato expressa um estado irritadiço, mau humor e a imagem de um pão macio e de coloração clara representa a nudez física.” [Volkelt, 1875, 32.] O corpo humano como um todo é retratado pela imaginação onírica como uma casa, e os diferentes órgãos do corpo, como partes de uma casa. Nos “sonhos com um estímulo dental”, um saguão de entrada com teto alto e abobadado corresponde à cavidade oral, e uma escadaria, à descida da garganta até o esôfago. “Nos sonhos devido às dores de cabeça, o alto da cabeça é representado pelo teto de um quarto coberto de aranhas repulsivas, semelhantes a sapos.” [Ibid., em [1]] Uma multiplicidade desses símbolos é empregada pelos sonhos para representar o mesmo órgão. “Assim, o pulmão, no ato de respirar, será simbolicamente representado por uma fornalha chamejante, com as labaredas crepitando com um som semelhante ao da passagem de ar; o coração será representado por caixas ou cestas vazias, e a bexiga, por objetos redondos em forma de sacos, ou, mais geralmente, por objetos ocos.” [Ibid., 34] “É de suma importância o fato de que, ao final de um sonho, o órgão em causa ou sua função, com freqüência, é abertamente revelado, e via de regra, em relação ao próprio corpo sonhador. Assim, um sonho com um estímulo dental normalmente termina com o sonhador visualizando a si mesmo ao arrancar um dente da boca.” [Ibid., 35.]
Não se pode dizer que essa teoria da interpretação dos sonhos tenha sido recebida de maneira muito favorável por outros autores do ramo. Sua característica principal parece ser sua extravagância; e tem havido hesitação até mesmo em reconhecer a justificação que, na minha opinião, ela pode reivindicar. Como se terá percebido, ela envolve uma revivescência da interpretação dos sonhos por meio do simbolismo - o mesmo método que era empregado na Antiguidade, com a exceção de que o campo de onde se extraem as interpretações fica restrito aos limites do corpo humano. Sua falta de qualquer técnica de interpretação que possa ser cientificamente apreendida talvez reduza em muito a aplicação da teoria de Scherner. Ela parece dar margem a interpretações arbitrárias, sobretudo porque, também em seu caso, o mesmo estímulo pode ser representado no conteúdo onírico de inúmeras maneiras diferentes. Assim, até mesmo o discípulo de Scherner, Volkelt, viu-se impossibilitado de confirmar a idéia de que o corpo era representado por uma casa. Objeções também estão fadadas a provir do fato de que, mais uma vez, a mente fica sobrecarregada com o trabalho do sonho como uma função inútil e sem objetivo; pois, segundo a teoria que estamos examinando, a mente se contenta em fazer fantasias sobre o estímulo de que se ocupa, sem o mais remoto indício de qualquer coisa da ordem de uma eliminação do estímulo.
Há uma crítica em particular, no entanto, que é gravemente prejudicial à teoria de Scherner sobre a simbolização dos estímulos somáticos. Esses estímulos estão sempre presentes, e geralmente se afirma que a mente é mais acessível a eles durante o sono do que quando desperta. É difícil entender, então, por que é que a mente não sonha continuamente a noite inteira e, na verdade, por que não sonha todas as noites com todos os órgãos. Pode-se fazer uma tentativa de evitar essa crítica, acrescentando-se a condição adicional de que, para suscitar a atividade onírica, é necessário que excitações especiais provenham dos olhos, ouvidos, dentes, intestinos etc. Mas surge então a dificuldade de provar a natureza objetiva de tais aumentos de estímulo - o que só é possível num pequeno número de casos. Se os sonhos de voar são uma simbolização da subida e descida dos lobos dos pulmões [ver em [1]], então, como Strümpell [1877, 119] já assinalou, esses sonhos teriam de ser muito mais freqüentes do que são, ou seria necessário provar um aumento da atividade respiratória no decorrer deles. Há uma terceira possibilidade, que é a mais provável de todas, qual seja, a de que talvez haja motivos especiais temporariamente atuantes dirigindo a atenção para sensações viscerais que estão presentes de maneira uniforme em todos os momentos. Essa possibilidade, entretanto, leva-nos além do alcance da teoria de Scherner.
O valor dos pontos de vista expostos por Scherner e Volkelt está no fato de eles chamarem atenção para diversas características do conteúdo dos sonhos que exigem explicação e parecem prometer novas descobertas. É perfeitamente verdadeiro que os sonhos contêm simbolizações de órgãos e funções do corpo, e que a presença de água num sonho com freqüência assinala um estímulo urinário, e que os órgãos genitais masculinos podem ser representados por um bastão erguido ou uma coluna, e assim por diante. No caso dos sonhos em que o campo visual fica repleto de movimento e cores vivas, em contraste com a insipidez de outros sonhos, dificilmente se poderá deixar de interpretá-los como “sonhos com um estímulo visual”; tampouco se pode contestar o papel desempenhado pelas ilusões no caso dos sonhos que se caracterizam por ruídos e confusão de vozes. Scherner [2861, 167] relata um sonho com duas fileiras de meninos bonitos e louros, postados um de frente ao outro ao longo de uma ponte, que se atacam entre si e então retornam à posição original, até que finalmente o sonhador se viu sentado numa ponte, arrancando um dente enorme de sua boca. De maneira semelhante, Volkelt [1875, 52] relata um sonho em que pareciam duas fileiras de gavetas num armário e que, mais uma vez, terminou com o sonhador arrancando um dente. Formações oníricas como essas, que são registradas em grande número pelos dois autores, impedem que descartemos a teoria de Scherner como uma invenção inútil sem procurarmos seu cerne de verdade. [Ver em [1].] A tarefa que nos confronta, portanto, é encontrar outro tipo de explicação para a suposta simbolização do que se alega um estímulo dental. [1]
Durante toda esta discussão da teoria das fontes somáticas dos sonhos, abstive-me de usar o argumento baseado em minha análise dos sonhos. Se ele puder ser confirmado, através de um procedimento não empregado por outros autores em seu material onírico, que os sonhos possuem um valor próprio como atos psíquicos, o de que os desejos são o motivo de sua concentração e que as experiências do dia anterior fornecem o material imediato para seu conteúdo, qualquer outra teoria dos sonhos que despreze um procedimento de pesquisa tão importante e que, por conseguinte, represente os sonhos como uma reação psíquica inútil e enigmática a estímulos somáticos estará condenada, sem necessidade maior de críticas específicas. De outra forma - e isso parece bastante improvável - teria de haver duas espécies bem diferentes de sonhos, um das quais só eu pude observar, e outra que só pôde ser percebida pelos autores mais antigos. Resta apenas, portanto, encontrar em minha teoria dos sonhos um lugar para os fatos em que se baseia a atual teoria da estimulação somática dos sonhos.
Já demos o primeiro passo nessa direção ao propor a tese (ver em [1]) de que o trabalho do sonho está sujeito à exigência de combinar em uma unidade os estímulos ao sonhar que estiverem simultaneamente em ação. Verificamos que, quando duas ou mais experiências capazes de criar uma impressão são deixadas pelo dia anterior, os desejos delas derivados se combinam num único sonho, e, de modo similar, que a impressão psiquicamente significativa e as experiências irrelevantes da véspera são reunidas no material onírico, sempre desde que seja possível estabelecer entre elas representações comunicantes. Assim, o sonho parece ser uma reação a tudo o que está simultaneamente presente na mente adormecida como material correntemente ativo. Até onde analisamos o material dos sonhos, vimo-lo como uma coletânea de resíduos psíquicos e traços mnêmicos, à qual (em virtude da preferência mostrada por material recente e infantil) fomos levados a atribuir uma qualidade até aqui indefinível de ser “correntemente ativo”. Podemos por isso antever, sem grandes dificuldades, o que acontecerá se um material nosso, sob a forma de sensações, for acrescentado durante o sono a essas lembranças correntemente ativas. É também graças ao fato de serem correntemente ativas que essas excitações sensoriais são importantes para o sonho; elas se unem ao outro material psíquico correntemente ativo para fornecer aquilo que é usado para a construção do sonho. Em outras palavras, os estímulos que surgem durante o sono são os conhecidos “restos diurnos” psíquicos. Essa combinação não precisa ocorrer; como já assinalei, há mais de uma maneira de reagir a um estímulo somático durante o sono. Quando ela efetivamente ocorre, isso significa que foi possível encontrar, para servir de conteúdo do sonho, um material de representações de tal ordem que é capaz de representar ambos os tipos de fontes do sonho: a somática e a psíquica.
A natureza essencial do sonho não é alterada pelo fato de se acrescentar material somático a suas fontes psíquicas: o sonho continua a ser a realização de um desejo, não importa de que maneira a expressão dessa realização de desejo seja determinada pelo material correntemente ativo.
Estou disposto a abrir espaço, neste ponto, para a atuação de diversos fatores especiais que podem emprestar uma importância variável aos estímulos externos em relação aos sonhos. A meu ver, é uma combinação de fatores individuais fisiológicos e fortuitos, produzidos pelas circunstâncias do momento, que determina como uma pessoa se comportará nos casos específicos de uma estimulação objetiva relativamente intensa durante o sono. A profundidade habitual ou acidental de seu sono, tomada em conjunto com a intensidade do estímulo, possibilitará, num caso, que ela suprima o estímulo, para que seu sono não seja interrompido e, noutro caso, obrigá-la-á a acordar ou estimulará uma tentativa de superar o estímulo incorporando-o num sonho. De acordo com essas várias combinações possíveis, os estímulos objetivos externos encontrarão expressão nos sonhos com maior ou menor freqüência em uma pessoa do que em outra. No meu próprio caso, como tenho um sono excelente e me recuso obstinadamente a permitir que qualquer coisa o perturbe, é muito raro as causas externas de excitação conseguirem penetrar em meus sonhos; ao passo que as motivações psíquicas obviamente me fazem sonhar com muita facilidade. De fato, só anotei um único sonho em que uma fonte objetiva e dolorosa de estímulo é reconhecível, e será muito instrutivo examinar o efeito externo produzido neste sonho em particular.
Eu montava um cavalo cinzento, a princípio tímida e desajeitadamente, como se apenas me reclinasse sobre ele. Encontrei um de meus colegas, P., que montava ereto um cavalo, envergando um terno de tweed, e que chamou minha atenção para alguma coisa (provavelmente minha maneira incorreta de sentar). Comecei então a me sentir sentado com firmeza e conforto cada vez maiores em meu cavalo muito inteligente, e percebi que me sentia inteiramente à vontade ali. Minha sela era uma espécie de almofadão, que preenchia completamente o espaço entre o pescoço e a garupa do animal. Assim, passei a cavalgar bem no meio de dois carros de transportes. Depois de cavalgar um pouco rua acima, voltei-me e tentei desmontar, primeiro diante de uma capelinha aberta que ficava de frente para a rua. Depois, desmontei realmente diante de outra capela que ficava perto da primeira. Meu hotel ficava na mesma rua; eu poderia ter deixado o cavalo ir até lá sozinho, mas preferi guiá-lo até aquele ponto. Era como se eu fosse ficar envergonhado por chegar lá a cavalo. Um engraxate estava em pé diante do hotel; mostrou-me um bilhete que fora encontrado e riu de mim por causa dele. No bilhete estava escrito, duplamente sublinhado: “Sem comida”, e depois outra observação (indistinta) como “Sem trabalho”, juntamente com uma idéia vaga de que eu estava numa cidade estranha e não estava trabalhando.
Ninguém suporia, à primeira vista, que esse sonho se tivesse originado sob a influência, ou antes, sob a compulsão de um estímulo doloroso. Mas, desde alguns dias antes, eu vinha sofrendo de furúnculos que transformavam cada momento numa tortura; e por fim, surgira um furúnculo do tamanho de uma maçã na base do meu escroto, o que me acusava a mais intolerável dor a cada passo que eu dava. Lassidão febril, perda de apetite e o trabalho árduo que, não obstante, eu continuava a fazer - tudo isso se combinara com a dor para me deixar deprimido. Eu estava impossibilitado de cumprir adequadamente minhas funções de médico. Havia, porém, uma atividade para a qual, dada a natureza e a situação de meu problema, eu estaria certamente menos apto do que para qualquer outra, e esta era - montar a cavalo. E foi precisamente essa a atividade em que o sonho me colocou: ele foi a mais enérgica negação de minha doença que se poderia imaginar. Na verdade não sei montar, nem tive, com exceção deste, sonhos com cavalgadas. Só me sentei num cavalo uma vez na vida, e mesmo assim, sem sela, e não gostei. Nesse sonho, porém, eu cavalgava como se não tivesse um furúnculo em meu períneo - ou melhor, porque eu não queria ter um. Minha sela, a julgar por sua descrição, era o cataplasma que me tornara possível adormecer. Sob sua influência mitigante, eu provavelmente não estivera consciente de minha dor nas primeiras horas de sono. As sensações dolorosas então se apresentaram e intentaram despertar-me; nesse ponto o sonho chegou e disse suavemente: “Não! Continue a dormir! Não há necessidade de acordar. Você não tem furúnculos, pois está andando a cavalo, e com certeza não poderia cavalgar se tivesse um furúnculo bem nesse lugar.” E o sonho foi bem-sucedido. A dor foi silenciada e continuei a dormir.

Mas o sonho não se contentou em “eliminar por sugestão” meu furúnculo pela insistência obstinada numa representação que era incompatível com ele, e em proceder com o delírio alucinatório da mãe que perdera o filho ou do comerciante cujos prejuízos tinham acabado com sua fortuna. Os detalhes da sensação que estava sendo repudiada e da imagem empregada para reprimir essa sensação também serviram ao sonho como meio de ligar à situação onírica outro material que estava correntemente ativo em minha mente e dar representação a esse material. Eu montava um cavalo cinzento, cor esta que correspondia precisamente à cor de pimenta-e-sal [mesclada de preto e branco] da roupa que meu colega P. estava usando na última vez em que o encontrei no interior. A causa de meus furúnculos fora atribuída à ingestão de alimentos muito condimentados - uma etiologia que era ao menos preferível ao açúcar [diabetes] que também poderia ocorrer no contexto dos furúnculos. Meu amigo P. gostava de ficar a cavaleiro em relação a mim desde que me tirara uma de minhas pacientes com quem eu havia conseguido alguns efeitos notáveis. (No sonho, eu começava cavalgando tangencialmente - como o feito de um cavaleiro habilidoso.) Mas, na realidade, tal como o cavalo na anedota do cavaleiro de domingo, essa paciente me levara para onde se sentia inclinada. Assim, o cavalo adquiriu o significado simbólico de uma paciente. (No sonho, ele era muito inteligente.) “Eu me sentia inteiramente à vontade lá” referia-se à posição que eu ocupara na casa dessa paciente antes de ser substituído por P. Não muito antes, um de meus poucos protetores entre os principais médicos desta cidade me observara, com relação a essa mesma casa: “Você me dá a impressão de estar firme na sela lá.” Era um feito notável, também, poder prosseguir em meu trabalho psicoterápico durante oito ou dez horas por dia enquanto estava sentindo tanta dor. Mas eu sabia que não poderia prosseguir por muito tempo em meu trabalho peculiarmente difícil, a menos que estivesse com perfeita saúde física; e meu sonho estava repleto de alusões sombrias à situação em que me encontraria nesse eventualidade. (O bilhete que os neurastênicos trazem com eles para mostrar ao médico: sem dinheiro, sem trabalho.) Mais adiante na interpretação, vi que o trabalho do sonho conseguira descobrir um caminho da situação desejante de cavalgar para algumas cenas de rixas de minha tenra infância que devem ter ocorrido entre mim e um sobrinho meu, um ano mais velho, que agora vivia na Inglaterra. [Ver em [1].] Além disso, o sonho tirara alguns de seus elementos de minhas viagens pela Itália: a rua do sonho era composta de impressões de Verona e Siena. Uma interpretação ainda mais profunda levou a pensamentos oníricos sexuais, e lembrei-me do sentido que as referências à Itália pareciam ter nos sonhos de uma paciente que nunca visitara aquele adorável país: “gen Italien” [para a Itália] - “Genitalien” [genitais]; e isso também estava ligado à casa em que eu precedera meu amigo P. como médico, assim como à situação de meu furúnculo.
Num outro sonho consegui êxito semelhante em rechaçar uma ameaça de interrupção de meu sono, vinda desta feita de um estímulo sensorial. Nesse caso, todavia, foi apenas por acaso que pude descobrir o elo entre o sonho e seu estímulo acidental, e assim compreender o sonho. Numa manhã em pleno verão, enquanto estava hospedado numa cidade montanhosa de veraneio no Tirol, acordei sabendo ter sonhado que o Papa havia morrido. Não consegui interpretar esse sonho - um sonho não-visual - e só me lembrei, como parte de sua base, de ter lido um jornal, pouco tempo antes, que Sua Santidade estava sofrendo de uma ligeira indisposição. Durante a manhã, contudo, minha mulher me perguntou se eu ouvira o barulho terrível feito pelo repicar dos sinos naquela manhã. Eu nem sequer o percebera, mas então compreendi meu sonho. Ele fora uma reação, por parte de minha necessidade de dormir, ao barulho com que os pios tiroleses haviam tentado acordar-me. Eu me vingara deles extraindo a inferência que formou o conteúdo do sonho, e então continuara a dormir sem dar maior atenção ao barulho.
Os sonhos citados nos capítulos anteriores incluíram diversos que poderiam servir de exemplos da elaboração desses chamados estímulos nervosos. Meu sonho de beber água em grandes goles [em [1]] é um exemplo. O estímulo somático foi, aparentemente, sua única fonte, e o desejo derivado da sensação (isto é, a sede) pareceu ser sua única motivação. Dá-se um caso semelhante com outros sonhos simples em que um estímulo somático parece, por si só, capaz de construir um desejo. O sonho da paciente que afastou do rosto o aparelho resfriador durante a noite [em [1]] apresenta um método incomum de reagir a um estímulo doloroso com uma realização de desejo:foi como se a paciente conseguisse ficar temporariamente em analgesia, ao tempo em que atribuía suas dores a outrem.
Meu sonho com as três Parcas [em [1]] foi claramente um sonho de fome. Mas conseguiu desviar o desejo de nutrição para o anseio infantil pelo seio materno e se valeu de um desejo inocente como anteparo para um desejo mais sério, que não podia ser tão abertamente exibido. Meu sonho sobre o Conde Thun [em [1]] mostrou como uma necessidade física acidental pode ser vinculada aos mais intensos impulsos mentais (mas, ao mesmo tempo, os mais intensamente suprimidos.) E um caso como o relatado por Garnier (1872, 1, 476), de como o Primeiro Cônsul incorporou o barulho da explosão de uma bomba num sonho de batalha antes de despertar dele [em [1]] revela com clareza bastante especial a natureza do único motivo que leva a atividade mental a se ocupar de sensações durante o sono. Um jovem advogado, recém-saído de seu primeiro processo importante de falência, adormecendo certa tarde, comportou-se exatamente da mesma forma que o grande Napoleão. Teve um sonho com um certo G. Reich, de Husyatin [uma cidade de Galícia], que conhecera durante um caso de falência; o nome “Husyatin” continuou a se impor a sua atenção até que ele acordou e viu que sua mulher (que sofria de um catarro brônquico) estava tendo um violento acesso de tosse [em alemão, “husten”].
Comparemos esse sonho de Napoleão I (que, aliás, era dono de um sono extremamente profundo) com o do estudante sonolento que foi acordado por sua senhoria e informado de que era hora de ir para o hospital, e que passou a sonhar que estava numa cama do hospital e continuou a dormir, sob o pretexto de que, já que estava no hospital, não havia necessidade de se levantar e ir até lá [em [1]]. Este último sonho foi claramente um sonho de conveniência. O sonhador admitiu uma motivação para sonhar sem nenhum disfarce; mas, ao mesmo tempo, deixou escapar um dos segredos dos sonhos em geral. Todos os sonhos são, num certo sentido, sonhos de conveniência; servem à finalidade de prolongar o sono, em vez de acordar. Os sonhos são GUARDIÃES do sono, e não perturbadores dele. Teremos oportunidade, mais adiante, de justificar essa visão deles em relação aos fatores despertadores de ordem psíquica [ver em [1]], mas já estamos em condições de mostrar que ela é aplicável ao papel desempenhado pelos estímulos externos objetivos. Ou a mente não presta a mínima atenção às oportunidades de sensações durante o sono - caso possa fazê-lo a despeito da intensidade dos estímulos e da importância que sabe possuírem; ou se vale de um sonho para negar os estímulos; ou, em terceiro lugar, se for obrigada a reconhecê-los, busca uma interpretação deles que transforme a sensação correntemente ativa em parte integrante de uma situação que seja desejada e compatível com o dormir. A sensação correntemente ativa é incorporada no sonho para ser despojada de realidade. Napoleão pôde continuar a dormir - com a convicção de que o que estava tentando perturbá-lo era apenas uma lembrança onírica do ribombar dos canhões de Arcole.
Assim, o desejo de dormir (no qual o ego consciente se concentra e que, justamente com a censura do sonho e a “elaboração secundária” que mencionarei adiante [em [1]], representa a contribuição do ego consciente para o sonhar), deve, na totalidade dos casos, ser reconhecido como um dos motivos da formação dos sonhos, e todo sonho bem-sucedido é uma realização desse desejo. Examinaremos num outro ponto [em [1]] as relações existentes entre esse desejo universal, invariavelmente presente e imutável de dormir e os demais desejos, dos quais ora um ora outro é realizado pelo conteúdo do sonho. Mas encontramos no desejo de dormir o fator capaz de preencher a lacuna na teoria de Strümpell e Wundt [em [1]] e de explicar a maneira perversa e caprichosa como são interpretados os estímulos externos. A interpretação correta, que a mente adormecida é perfeitamente capaz de fazer, envolveria um interesse ativo e exigiria que o sono fosse interrompido; por essa razão, dentre todas as interpretações possíveis, só são admitidas aquelas que são compatíveis com a censura absoluta exercida pelo desejo de dormir. “Ele é rouxinol e não a cotovia”, pois, se fosse a cotovia, isso significaria o término da noite dos amantes. Entre as interpretações do estímulo que são assim admissíveis, seleciona-se então aquela que pode proporcionar o melhor vínculo com os impulsos desejantes que se ocultam na mente. Assim, tudo é inequivocamente determinado e nada fica por conta da decisão arbitrária. A interpretação errônea não é uma ilusão, e sim, como se poderia dizer, uma evasão. Aqui, porém, mais uma vez, tal como quando, em obediência à censura do sonho,uma substituição é efetuada por deslocamento, temos de admitir que estamos diante de um ato que se desvia dos processos psíquicos normais.
Quando os estímulos nervosos externos e os estímulos somáticos internos são suficientemente intensos para forçar a atenção psíquica para eles, então - desde que seu resultado seja sonhar e não acordar - eles servem como um ponto fixo para a formação de um sonho, um núcleo em seu material; busca-se então uma realização de desejo que corresponda a esse núcleo, tal como (ver anteriormente [em [1]]) se buscam representações intermediárias entre dois estímulos psíquicos do sonho. Nesta medida, é verdade que, em diversos sonhos, o conteúdo onírico é ditado pelo elemento somático. Nesse exemplo extremo, é possível até que um desejo que não esteja de fato correntemente ativo seja invocado para fins de construção de um sonho. O sonho, porém, não tem outra alternativa senão representar um desejo na situação de ter sido realizado; ele enfrenta, por assim dizer, o problema de procurar um desejo que possa representar-se como realizado pela sensação correntemente ativa. Quando esse material imediato é de natureza dolorosa ou aflitiva, isso não significa necessariamente que não possa ser utilizado para a construção de um sonho. A mente tem a seu dispor desejos cuja realização produz desprazer. Isso parece autocontraditório, mas torna-se inteligível quando levamos em conta a presença de duas instâncias psíquicas e uma censura entre elas.
Como vimos, há na mente desejos “recalcados” que pertencem ao primeiro sistema e a cuja realização se opõe o segundo sistema. Ao afirmar que tais desejos existem, não estou fazendo uma declaração histórica no sentido de que eles tenham existido um dia e tenham sido abolidos mais tarde. A teoria do recalcamento, que é essencial ao estudo das psiconeuroses, afirma que esses desejos recalcados ainda existem - embora haja uma inibição simultânea que os contém. O uso lingüístico atinge o alvo ao falar da “supressão” [isto é, “sub-pressão”] desses impulsos. Os arranjos psíquicos que facultam a esses impulsos imporem sua realização continuam a existir e a funcionar perfeitamente. Na eventualidade, contudo, de um desejo recalcado desse tipo ser levado a efeito, e de sua inibição pelo segundo sistema (o sistema que é admissível à consciência) ser derrotada, essa derrota encontra expressão como desprazerosa. Concluindo: são sensações de natureza desprazerosa provenientes de fontes somáticas, o trabalho do sonho utiliza essa ocorrência para representar - sujeita à continuidade da censura em maior ou menor grau - a realização de algum desejo que é normalmente suprimido.
É esse estado de coisas que possibilita um grupo de sonhos de angústia - estruturas oníricas desfavoráveis do ponto de vista da teoria da realização de desejo. Um segundo grupo revela um mecanismo diferente, pois a angústia nos sonhos pode ser de natureza psiconeurótica: pode originar-se de excitações psicossexuais - caso em que a angústia corresponde à libido recalcada. Quando isso ocorre, a angústia, como a totalidade do sonho de angústia, tem a significação de um sintoma neurótico, e nos aproximamos do limite em que a finalidade de realização de desejo dos sonhos cai por terra. [Ver em [1] e [2]] Mas há alguns sonhos de angústias [- os do primeiro grupo -] em que o sentimento de angústia é somaticamente determinado - quando, por exemplo, dá-se uma dificuldade de respiração devida a doenças pulmonares ou cardíacas; - e, em tais casos, a angústia é explorada a fim de contribuir para a realização, sob a forma de sonhos, de desejos energicamente suprimidos, que se fossem sonhados por motivos psíquicos, levariam a uma libertação semelhante de angústia. Mas não há dificuldade em conciliar esses dois grupos aparentemente diferentes. Em ambos os grupos de sonhos, há dois fatores psíquicos envolvidos: uma inclinação para um afeto e um conteúdo de representações; e estes se relacionam intimamente entre si. Quando um deles está correntemente ativo, evoca o outro, mesmo num sonho; num dos casos, a angústia somaticamente determinada evoca o conteúdo de representações suprimindo, e no outro o conteúdo de representações, com sua concomitante excitação sexual, livre de repressão, evoca uma liberação de angústia. Podemos dizer que, no primeiro caso, um afeto somaticamente determinado recebe uma interpretação psíquica; ao passo que, no outro caso, embora o todo seja psiquicamente determinado, o conteúdo que fora suprimido é facilmente substituído por uma interpretação somática apropriada à angústia. As dificuldades que tudo isso oferece à nossa compreensão pouco têm a ver com os sonhos: surgem do fato de estarmos aqui tocando no problema da produção da angústia e no problema do recalcamento.
Não há dúvida de que a cenestesia física [ou sensibilidade geral difusa, ver em [1]] está entre os estímulos somáticos internos capazes de ditar o conteúdo dos sonhos. Ela pode fazer isso, não no sentido de poder proporcionar o conteúdo do sonho, mas no sentido de ser capaz de impor aos pensamentos oníricos uma escolha do material a ser representado no conteúdo, ao destacar parte do material como sendo adequado à sua própria natureza e reter uma outra parte. Afora isso, aos resíduos psíquicos que têm influência tão importante nos sonhos. Essa disposição geral pode persistir inalterada no sonho ou pode ser dominada, e assim, caso seja desprazerosa, pode ser transformada em seu oposto.
Portanto, em minha opinião, as fontes somáticas de estimulação durante o sono (isto é, as sensações durante o sono), a menos que sejam de intensidade incomum, desempenham na formação dos sonhos papel semelhante ao desempenhado pelas impressões recentes, mas irrelevantes, deixadas pelo dia anterior. Ou seja, creio que elas são introduzidas para ajudar na formação de um sonho caso se ajustem apropriadamente ao conteúdo de representações derivado das fontes psíquicas do sonho, mas não de outra forma. São tratadas como um material barato e sempre à mão, que é empregado sempre que necessário, em contraste com um material precioso que determina, ele próprio, o modo como deverá ser empregado. Quando, para adotar um símile, um patrono das artes leva a um artista uma pedra rara, como um pedaço de ônix, e lhe pede que crie uma obra de arte com ela, o tamanho da pedra, sua cor e suas marcas ajudam a decidir que cabeça ou que cena será nela representada. Ao passo que, no caso de um material uniforme e abundante, tal como o mármore ou o arenito, o artista simplesmente segue uma idéia que se apresente em sua própria mente. É só dessa maneira, ao que me parece, que podemos explicar o fato de o conteúdo onírico proporcionado por estímulos somáticos de intensidade não incomum deixar de aparecer em todos os sonhos ou todas as noites. [Ver em [1].]
Talvez eu possa ilustrar melhor o que quero dizer com um exemplo, que além disso reconduzirá à interpretação do sonho.
Um dia, eu vinha tentando descobrir qual poderia ser o significado das sensações de estar inibido, de estar grudado no lugar, de não poder fazer alguma coisa, e assim por diante, que ocorrem com tanta freqüência nos sonhos e se relacionam tão de perto com os sentimentos de angústia. Naquela noite, tive o seguinte sonho:
Eu estava vestido de forma muito incompleta e subia as escadas de um apartamento térreo para um andar mais alto. Subia três degraus de cada vez e estava encantado com minha agilidade. De repente, vi uma criada descendo as escadas - isto é, vindo em minha direção. Fiquei envergonhado e tentei apressar-me, e neste ponto instalou-se a sensação de estar inibido: eu estava colado aos degraus e incapaz de sair do lugar.
ANÁLISE. - A situação do sonho é extraída da realidade cotidiana. Ocupo dois pavimentos de uma casa em Viena, que se ligam apenas pela escada pública. Meu consultório e meu gabinete ficam no primeiro andar, e minhas acomodações domésticas, um pavimento acima. Quando, tarde da noite, termino meu trabalho, no andar inferior, subo as escadas para meu quarto. Na noite anterior à do sonho, eu realmente fizera um pequeno trajeto com a roupa meio desalinhada - isto é, tinha retirado o colarinho, a gravata e os punhos. No sonho, isso tinha sido transformado num grau maior de desalinho, mas, como sempre, indeterminado. [Ver em [1]] Geralmente, subo as escadas de dois em dois ou de três em três degraus; e isto foi reconhecido no próprio sonho como uma realização de desejo: a facilidade com que eu conseguia isso me tranqüilizava quanto ao funcionamento do meu coração. Ademais, esse método de subir escadas fora um contraste efetivo com a inibição da segunda metade do sonho. Mostrou-me - o que não precisava de comprovação - que os sonhos não encontram nenhuma dificuldade em representar atos motores realizados com perfeição. (Basta recordarmos os sonhos de estar voando.)
As escadas que eu subia, no entanto, não eram as de minha casa. De início, deixei de percebê-lo, e somente a identidade da pessoa que encontrei esclareceu-me qual era o local pretendido. Essa pessoa era a criada da senhora que eu visitava duas vezes ao dia a fim de lhe aplicar injeções [ver em [1]]; e as escadas eram também exatamente como as de sua casa, que eu tinha de subir duas vezes por dia.
Ora, como entraram em meu sonho essas escadas e essa figura feminina? O sentimento de vergonha por não estar completamente vestido é, sem dúvida, de natureza sexual; mas a criada com quem sonhei era mais velha do que eu, era grosseira e estava longe de ser atraente. A única resposta que me ocorreu para o problema foi esta: quando fazia minhas visitas matutinas a essa casa, eu costumava, em geral, ser tomado por um desejo de tossir ao subir a escadaria, e o produto de minha expectoração caía na escada, pois em nenhum dos pavimentos havia uma escarradeira; e a idéia que eu tinha era que a limpeza das escadas não deveria ser mantida à minha custa, e sim possibilitada pela instalação de uma escarradeira. A zeladora, uma mulher igualmente idosa e grosseira (mas com instintos de limpeza, como eu estava pronto a admitir), encarava a questão de modo diferente. Ela ficava à minha espera para ver se mais uma vez eu me serviria livremente da escada e, quando constatava que eu o fizera, eu costumava ouvi-la resmungar em tom audível; e por vários dias depois disso, ela omitia o cumprimento habitual quando nos encontrávamos. Na véspera do sonho, o grupo de zeladoria recebera reforço sob a forma da criada. Como sempre, eu havia concluído minha rápida visita à paciente, quando a criada me interceptou no saguão e observou: “O senhor podia ter limpado os sapatos, doutor, antes de entrar na sala hoje. O senhor tornou a sujar todo o tapete vermelho com os pés.” Esta era a única razão para o aparecimento da escadaria e da criada em meu sonho.
Havia uma conexão interna entre subir as escadas correndo e cuspir nos degraus. Tanto a faringite como os problemas cardíacos são considerados castigos pelo vício do fumo. E, em virtude desse hábito, minha reputação de zelo não era das melhores em minha própria casa, quanto mais na outra; por isso as duas se fundiram no sonho.
Devo aplicar a continuação de minha interpretação deste sonho até que possa explicar a origem do sonho típico de estar incompletamente vestido. Assinalei apenas, como conclusão provisória a ser tirada do presente sonho, que uma sensação de movimento inibido nos sonhos é produzida sempre que o contexto específico a requer. A causa dessa parte do conteúdo do sonho não pode ter sido a ocorrência de alguma modificação especial em meus poderes de movimentação durante o sono, já que apenas um momento antes eu me vira (quase como que para confirmar esse fato) subindo agilmente os degraus.

(D) SONHOS TÍPICOS

Em geral, não estamos em condições de interpretar um sonho de outra pessoa, a menos que ela se disponha a nos comunicar os pensamentos inconscientes que estão por trás do conteúdo do sonho. A aplicabilidade prática de nosso método de interpretar sonhos fica, por conseguinte, severamente restrita. Vimos que, como regra geral, cada pessoa tem liberdade de construir seu mundo onírico segundo suas peculiaridades individuais e assim torná-lo ininteligível para outras pessoas. Parece agora, contudo, que, em completo contraste com isto, há um certo número de sonhos que quase todo o mundo tem da mesma forma e que estamos acostumados a presumir que tenham o mesmo sentido para todos. Além disso, há um interesse especial ligado a esses sonhos típicos porque, presumivelmente, eles decorrem das mesmas fontes em todos os casos e, assim, parecem particularmente aptos a esclarecer as fontes dos sonhos.
É, portanto, com expectativas muito particulares que tentaremos aplicar nossa técnica de interpretação de sonhos típicos; e é com grande relutância que temos de confessar que nossa arte desaponta nossas expectativas precisamente em relação a esse material. Ao tentarmos interpretar um sonho típico, o sonhador, em geral, deixa de produzir as associações que em outros casos nos levariam a compreendê-lo, ou então suas associações tornam-se obscuras e insuficientes, de modo que não conseguimos resolver nosso problema com sua ajuda. Veremos, numa parte posterior deste trabalho [Seção E do Capítulo VI, em [1]], por que isso se dá e como podemos compensar esse defeito em nossa técnica. Meus leitores também descobrirão o motivo por que, neste ponto, só posso abordar alguns membros do grupo de sonhos típicos e preciso adiar meu exame dos demais até esse ponto ulterior de minha análise. [Ver em [1]][2]]

(D1) SONHOS EMBARAÇOSOS DE ESTAR DESPIDO

Os sonhos de estar nu ou insuficientemente vestido na presença de estranhos ocorre, por vezes, com a característica adicional de haver completa ausência de um sentimento como o de vergonha por parte do sonhador. Interessam-nos aqui, entretanto, apenas os sonhos de estar nu em que de fato se sente vergonha e embaraço e se faz uma tentativa de fugir ou esconder-se, sendo-se então dominado por uma estranha inibição que impede os movimentos e faz o sujeito sentir-se incapaz de alterar sua constrangedora situação.Somente com este acompanhamento é que o sonho é típico; sem ele, a essência de seu tema pode ser incluída em todas as variedades de contexto ou pode ser adornada com acompanhamentos individuais. Sua essência [em sua forma típica] está num sentimento aflitivo da ordem da vergonha e no fato de que se deseja ocultar a nudez, em geral pela locomoção, mas se constata estar impossibilitado de fazê-lo. Creio que a grande maioria de meus leitores já terá estado nessa situação em sonho.
A natureza do desalinho envolvido, usualmente, está longe de ser clara. O sonhador pode dizer “eu estava de camisola”, mas esta raramente é uma imagem nítida. O tipo de desalinho costuma ser tão vago que a descrição se expressa como uma alternativa: “Eu estava de camisola ou de anágua.” Em geral, a falha na toalete do sonhador não é tão grave que pareça justificar a vergonha a que dá origem. No caso de um homem que tenha usado o uniforme do Imperador, a nudez é freqüentemente substituída por alguma quebra do regulamento sobre os uniformes: “eu caminhava pela rua sem meu sabre e vi alguns oficiais vindo em minha direção”, ou “Eu estava sem a gravata”, ou ainda, “Eu estava usando calças civis” e assim por diante.
As pessoas em cuja presença o sonhador sente vergonha são quase sempre estranhos, com traços indeterminados. No sonho típico, nunca se dá o caso de a roupa que causa tanto embaraço suscitar objeções ou sequer serpercebida pelos espectadores. Ao contrário, elas adotam expressões faciais indiferentes ou (como observei num sonho particularmente claro) solenes e tensas. Este é um ponto sugestivo.
O embaraço do sonhador e a indiferença dos espectadores oferecem-nos, quando vistos em conjunto, uma daquelas contradições tão comuns nos sonhos. Afinal de contas, estaria mais de acordo com os sentimentos do sonhador que os estranhos o olhassem com assombro e escárnio ou com indignação. Mas essa característica objetável da situação foi, a meu ver, descartada pela realização do desejo, enquanto alguma força conduziu à retenção das demais características; e duas partes do sonho ficam, conseqüentemente, em desarmonia uma com a outra. Possuímos uma prova interessante de que o sonho, na forma em que aparece - parcialmente distorcido pela realização do desejo -. não foi corretamente entendido. Pois ele se tornou a base de um conto de fadas com que todos estamos familiarizados na versão de Hans Andersen - A Roupa Nova do Imperador -, e que foi recentemente posto em versos por Ludwig Fulda em seu [“conto de fadas dramático”] O Talismã. O conto de Hans Andersen relata-nos como dois impostores tecem para o Imperador um traje dispendioso que, segundo eles, só seria visível para as pessoas de virtude e lealdade. O Imperador sai com essa vestimenta invisível e todos os espectadores, intimados pelo poder do tecido de atuar como uma pedra de toque, fingem não notar a nudez do Imperador.
É esta exatamente a situação de nosso sonho. Não chega a ser precipitado presumir que a ininteligibilidade do conteúdo do sonho, tal como ele existe na lembrança, o tenha levado a ser remodelado sob uma forma destinada a dar sentido à situação. Essa situação, todavia, é privada no processo de seu significado original e empregada em usos diferentes. Mas, como veremos adiante, é comum ao pensamento consciente de um segundo sistema psíquico compreender mal o conteúdo de um sonho dessa maneira, e esse mal-entendido deve ser considerado um dos fatores na determinação da forma final assumida pelos sonhos. Ademais, veremos que mal-entendidos semelhantes (que ocorrem, mais uma vez, dentro de uma mesma personalidade psíquica) desempenham papel preponderante na construção das obsessões e fobias.

No caso de nosso sonho, estamos em condições de indicar o material em que se baseia a má interpretação. O impostor é o sonho e o Imperador é o próprio sonhador; o propósito moralizador do sonho revela um conhecimento obscuro do fato de que o conteúdo onírico latente diz respeito a desejos proibidos que foram vítimas do recalcamento. Pois o contexto em que esse tipo de sonhos aparece durante minhas análises de neuróticos não deixa dúvida de que eles se baseiam em lembranças da mais tenra infância. Somente na nossa infância é que somos vistos em trajes inadequados, tanto por membros de nossa família como por estranhos - babás, criadas e visitas; e é só então que não sentimos vergonha de nossa nudez. Podemos observar como o despir-se tem um efeito quase excitante em muitas crianças, mesmo em seus anos posteriores, em vez de fazê-las sentir-se envergonhadas. Elas riem, pulam e se dão palmadas, enquanto a mãe ou quem quer que esteja presente as reprova e diz: “Uh, que escândalo! Vocês nunca devem fazer isso!” As crianças freqüentemente manifestam um desejo de se exibirem. É difícil passarmos por um vilarejo do interior em nossa parte do mundo sem encontrarmos um criança de dois ou três anos levantando a camisinha diante de nós - em nossa homenagem, talvez. Um de meus pacientes guarda uma lembrança consciente de uma cena de seus oito anos quando, na hora de dormir, quis ir dançar no quarto ao lado - onde dormia sua irmãzinha -, vestindo seu camisão, mas foi impedido por sua babá. Na história da mais tenra infância dos neuróticos, um importante papel é desempenhado pela exposição a crianças do sexo oposto; na paranóia, os delírios de estar sendo observado ao vestir-se e despir-se encontram sua origem nesse tipo de experiências, ao passo que, entre as pessoas que permanecerem no estágio da perversão, há uma categoria na qual esse impulso infantil alcança o nível de um sintoma - a categoria dos “exibicionistas”.
Quando voltamos os olhos para esse período isento de vergonha na infância, ele nos parece um paraíso; e o próprio Paraíso nada mais é do que uma fantasia grupal da infância do indivíduo. Por isso é que a humanidade vivia nua no Paraíso, sem que um sentisse vergonha na presença do outro; até que chegou um momento em que a vergonha e a angústia despertaram, seguiu-se a expulsão e tiveram início a vida sexual e as tarefas da atividadecultural. Mas podemos reconquistar esse Paraíso todas as noites em nossos sonhos. Já expressei [em [1]] a suspeita de que as impressões da primeira infância (isto é, desde a época pré-histórica até aproximadamente o final do terceiro ano de vida) lutam por alcançar sua reprodução, por sua própria natureza independente, talvez, de seu conteúdo real, e que sua repetição constitui a realização de um desejo. Portanto, os sonhos de estar despido são sonhos de exibição.
O núcleo de um sonho de exibição situa-se na figura do próprio sonhador (não como era em criança, mas tal como aparece no presente) e em seu traje inadequado (que emerge indistintamente, seja em virtude de camadas superpostas de inúmeras lembranças posteriores de estar desalinhado, seja como decorrência da censura). Acrescentaram-se a isso as figuras das pessoas em cuja presença o sonhador se sente envergonhado. Não sei de nenhum caso em que os espectadores reais da cena infantil de exibição tenham aparecido no sonho; o sonho raramente é uma lembrança simples. Curiosamente, as pessoas a quem era dirigido nosso interesse sexual na infância são omitidas de todas as reproduções que ocorrem nos sonhos, na histeria e na neurose obsessiva. É só na paranóia que esses espectadores reaparecem e, embora permaneçam invisíveis, sua presença é inferida com um convicção fanática. O que toma o lugar deles nos sonhos - “uma porção de estranhos” que não prestam a menor atenção ao espetáculo oferecido - não é nada mais, nada menos, do que o contrário imaginário do único indivíduo conhecido diante de quem o sonhador se expunha. Aliás, “uma porção de estranhos” aparece com freqüência nos sonhos em muitos outros contextos, representando sempre o oposto imaginário do “sigilo”. É de se observar que, até na paranóia, quando se restaura o estado de coisas original, essa inversão no oposto é observada. O sujeito sente que já não está sozinho, não tem nenhuma dúvida de estar sendo observado, mas os observadores são “uma porção de estranhos” cuja identidade permanece curiosamente vaga.

Além disso, o recalcamento desempenha um papel nos sonhos de exibição, pois a aflição experimentada nesses sonhos é uma reação, por parte do segundo sistema, ao fato de o conteúdo da cena de exibição ter encontrado expressão a despeito do veto imposto a ele. Para que se evitasse a aflição, a cena nunca deveria ser revivida.
Voltaremos posteriormente [em [1]] à sensação de estar inibido. Ela serve admiravelmente, nos sonhos, para representar um conflito da vontade ou uma negativa. O objetivo inconsciente requer que a exibição continue; a censura exige que ela cesse.
Não há dúvida de que os vínculos entre nossos sonhos típicos, os contos de fadas e o material de outros tipos de literatura criativa não são pouco nem acidentais. Por vezes acontece que o olhar penetrante de um escritor criativo tenha uma compreensão analítica do processo de transformação do qual ele não costuma ser mais do que o instrumento. Quando isso se dá, ele pode seguir o processo em sentido inverso e, desse modo, identificar a origem do texto imaginativo num sonho. Um de meus amigos chamou-me a atenção para a seguinte passagem de Der grüne Heinrich, de Gottfried Keller [Parte III, Capítulo 2]: “Espero, meu caro Lee, que você jamais aprenda por experiência própria a verdade peculiar e maliciosa dos apuros de Ulisses quando apareceu, nu e coberto de lama, diante dos sonhos de Nausícaa e suas servas! Devo eu dizer-lhe como isso pode acontecer? Vejamos o nosso exemplo. Se você estiver vagando por terras estranhas, longe de sua pátria e de tudo que lhe é caro, se tiver visto e ouvido muitas coisas, conhecido a tristeza e a inquietação, e se sentir desolado e desesperançado, então infalivelmente sonhará, uma noite, que está se aproximando de casa; você a verá resplandecente e iluminada nas mais vivas cores, e as mais doces, mais caras e mais amadas formas se encaminharão oem sua direção. Então, subitamente, você perceberá que está em trapos, nu e empoeirado. Será tomado de indizível vergonha e terror, tentará encontrar abrigo e se esconder, e acordará banhado em suor. Este, enquanto respirarem os homens será o sonho do viajante infeliz; e Homero evocou a imagem de seus apuros da mais profunda e eterna natureza do homem.”
A mais profunda e eterna natureza do homem, em cuja evocação nos seus ouvintes o poeta está acostumado a confiar, reside nos impulsos da mente que têm suas raízes numa infância que desde então se tornou pré-histórica. Os desejos suprimidos e proibidos da infância irrompem no sonho por trás dos desejos irrepreensíveis do exilado que são capazes de penetrar na consciência; e é pior isso que o sonho que encontra expressão concreta na lenda de Nausícaa termina, de hábito, com um sonho de angústia.

Meu próprio sonho (registrado em [1]) de correr escada acima e de logo depois sentir-me colado aos degraus foi igualmente um sonho de exibição, já que traz as marcas essenciais desses sonhos. Deve ser possível, portanto, buscar sua origem em experiências ocorridas durante minha infância, e se estas puderam ser descobertas, elas nos possibilitarão julgar até que ponto o comportamento da criada em relação a mim - sua acusação de eu ter sujado o tapete - contribuiu para dar-lhe seu lugar em meu sonho. Casualmente, posso fornecer os pormenores necessários. Numa psicanálise, aprende-se a interpretar a proximidade temporal como representiva de um vínculo temático. [Ver em [1].] Duas idéias que ocorrem em seqüência imediata e sem qualquer conexão aparente são, de fato, parte de uma só unidade que tem de ser descoberta, exatamente do mesmo modo que, seu eu escrever seqüencialmente um “a” e um “b”, eles terão de ser pronunciados como uma única sílaba, “ab”. O mesmo se aplica aos sonhos. O sonho da escadaria a que me referi foi um de uma série. Como esse sonho em particular estava cercado pelos demais, deveria estar versando sobre o mesmo assunto. Ora, esses outros sonhos baseavam-se na lembrança de uma babá a cujos cuidados estive entregue desde alguma data em minha mais tenra infância até os dois anos e meio. Chego até a guardar dela uma obscura lembrança consciente. Segundo o que me contou minha mãe há não muito tempo, ela era velha e feia, mas muito perspicaz e eficiente. Do que posso inferir de meus próprios sonhos, o tratamento que ela dispensava não era sempre excessivo em amabilidades, e suas palavras podiam ser ríspidas se eu deixasse de atingir o padrão de limpeza exigido. E assim, a criada, uma vez que tomara a si a tarefa de dar prosseguimento a esse trabalho educacional, adquiriu o direito de ser tratada, em meu sonho, como uma reencarnação da velha babá pré-histórica. É razoável supor que o menino amasse a velha que lhe ensinava essas lições, apesar do tratamento ríspido que ela lhe dispensava. [1]

 (D2) SONHOS SOBRE A MORTE DE PESSOAS QUERIDAS

Outro grupo de sonhos que podem ser qualificados de típicos são os que contêm a morte de um parente amado - por exemplo, de um dos pais, de um irmão ou irmã ou de um filho. Duas classes desses sonhos devem ser distinguidas de imediato: aqueles em que o sonhador não é afetado pela tristeza e, ao acordar, fica atônito ante sua falta de sentimentos, e aqueles em que o sonhador fica profundamente abalado com essa morte e pode até chorar amargamente durante o sono.
Não precisamos examinar os sonhos da primeira dessas classes, pois não há justificativa para que eles sejam considerados “típicos”. Se os analisarmos, veremos que têm um sentido diverso do sentido aparente e que se destinam a ocultar algum outro desejo. Assim foi o sonho da tia que viu o único filho da irmã deitado em seu caixão. (Ver em [1].) Aquilo não significava que ela desejasse ver o sobrinhozinho morto; como vimos, ocultava meramente o desejo de ver uma determinada pessoa que ela um dia encontrara, depois de um intervalo similarmente longo, junto ao caixão de um outro sobrinho. Esse desejo, que foi o verdadeiro conteúdo do sonho, não dava margem à tristeza e, por conseguinte, nenhuma tristeza foi sentida no sonho. Convém notar que o afeto vivenciado no sonho pertence a seu conteúdo latente, e não ao conteúdo manifesto, e que o conteúdo afetivo do sonho permaneceu intocado pela distorção que se apoderou de seu conteúdo de representações.
Muito diferentes são os sonhos da outra classe - aqueles em que o sonhador imagina a morte de um ente querido e fica, ao mesmo tempo, dolorosamente afetado. O sentido desses sonhos, como indica seu conteúdo, é um desejo de que a pessoa em questão venha a morrer. E, como devo esperar que os sentimentos de todos os meus leitores e os de quaisquer outras pessoas que tenham tido sonhos similares se rebelem contra minha afirmativa, devo tentar fundamentar minhas provas disso na mais ampla base possível.
Já examinei um sonho que nos ensinou que os desejos representados nos sonhos como realizados nem sempre são desejos atuais. Podem também ser desejos do passado, que foram abandonados, recobertos por outros e recalcados, e aos quais temos de atribuir uma espécie de existência prolongada apenas em função de sua reemergência num sonho. Eles não estão mortos em nosso sentido da palavra, mas são apenas como as sombras da Odisséia,que despertavam para alguma espécie de vida tão logo provavam sangue. No sonho da criança morta na “caixa” (em [1]-[2]), o que estava em jogo era um desejo que fora imediato quinze anos antes, e que foi francamente admitido como existente naquela época. Posso acrescentar - e talvez isso não deixe de ter uma relação com a teoria dos sonhos - que mesmo por trás desse desejo havia uma lembrança da mais remota infância da sonhadora. Quando era pequenina - a data exata não pôde ser fixada com certeza -, ela ouviu dizer que sua mãe caíra em profunda depressão durante a gravidez da qual ela foi o fruto, e que havia desejado ardentemente que a criança que trazia no ventre pudesse morrer. Quando a própria sonhadora cresceu e engravidou, simplesmente seguiu o exemplo da mãe.
Quando alguém sonha, com todos os sinais de dor, que seu pai, mãe, irmãos ou irmã morreu, eu jamais usaria esse sonho como prova de que ele deseja a morte dessa pessoa no presente. A teoria dos sonhos não exige tanto assim; ela se satisfaz com a inferência de que essa morte foi desejada numa outra ocasião durante a infância do sonhador. Temo, porém, que essa ressalva não apazigüe os opositores; eles negarão qualquer possibilidade de terem jamais nutrido essa idéia, com a mesma energia com que insistem em que não abrigam nenhum desejo dessa natureza agora. Devo, por isso, reconstruir parte da vida mental desaparecida das crianças com base na evidência do presente.
Consideremos, primeiro, a relação das crianças com seus irmãos e irmãs. Não sei por que pressupomos que essa relação deva ser amorosa, pois os exemplos de hostilidade entre irmãos e irmãs adultos impõe-se à experiência de todos, e é freqüente podermos estabelecer o ato de que essa desunião se originou na infância ou sempre existiu. Mas é também verdade que inúmeros adultos, que mantêm relações afetuosas com seus irmãos e irmãs e estão prontos a apoiá-los hoje, passaram sua infância em relações quase ininterruptas de inimizade com eles. O filho mais velho maltrata o mais novo, fala mal dele e rouba-lhe os brinquedos, ao passo que o mais novo se consome num ódio impotente contra o mais velho, a quem inveja e teme, ou enfrenta seu opressor com os primeiros sinais do amor à liberdade e com um senso de justiça. Seus pais queixam-se de que as crianças não se dão bem, mas não conseguem descobrir por quê. É fácil perceber que o caráter até mesmo de uma criança boa não é o que desejaríamos encontrar num adulto. As criançassão completamente egoístas; sentem suas necessidades intensamente e lutam de maneira impiedosa para satisfazê-las - especialmente contra os rivais, outras crianças, e, acima de qualquer outra coisa, contra seus irmãos e irmãs. Mas nem por isso chamamos uma criança de “má”: chamamo-la de “levada”; ela é mais responsável por seus malfeitos em nosso julgamento do que ante os olhos da lei. E é certo que seja assim, pois podemos esperar que, antes do fim do período que consideramos como infância, os impulsos altruístas e a moralidade despertem no pequenino egoísta e (para usar os termos de Meynert [por exemplo, 1892, em [1]]) um ego secundário se superponha ao primário e o iniba. É verdade, sem dúvida, que a moral não se instala simultaneamente ao longo de todo o processo e que a extensão da infância amoral varia nos diferentes indivíduos. Quando essa moral deixa de se desenvolver , gostamos de falar em “degeneração”, embora estejamos de fato diante de uma inibição do desenvolvimento. Depois de já ter sido recoberto pelo desenvolvimento posterior, o caráter primário pode ainda ser exposto, pelo menos em parte, nos casos de doença histérica. Há uma semelhança realmente impressionante entre o que se conhece como caráter histérico e o caráter de uma criança levada. A neurose obsessiva, ao contrário, corresponde a uma supermoralidade imposta como um peso de reforço aos primeiros sinais do caráter primário.
Muitas pessoas, portanto, que amam seus irmãos e irmãs e se sentiriam desoladas se eles morressem, abrigam desejos maléficos contra eles em seu inconsciente, datando de épocas anteriores; e estes são passíveis de se realizarem nos sonhos.
É de particular interesse, contudo, observar o comportamento das criancinhas de até dois ou três anos, ou um pouco mais velhas, para com seus irmãos e irmãs menores. Havia, por exemplo, o caso de uma criança que até então fora filha única; e eis que lhe dizem que a cegonha trouxe um novo bebê. Ela examina o recém-chegado de alto a baixo e declara decisivamente: “A cegonha pode levar ele embora de novo!” Sou seriamente de opinião que uma criança é capaz de fazer uma estimativa justa dos contratempos que teráde esperar nas mãos do pequeno estranho. Uma senhora conhecida minha, que hoje se dá muito bem com uma irmã quatro anos mais nova, contou-me que recebeu a notícia da chegada desta com a seguinte ressalva: “Mas mesmo assim não vou dar a ela minha boina vermelha.” Mesmo que só mais tarde a criança venha a compreender a situação, sua hostilidade datará desse momento. Sei de um caso em que uma menininha de menos de três anos tentou estrangular um bebê em seu berço por achar que sua presença contínua não lhe fazia bem. As crianças nessa época da vida são capazes de ciúmes com diversos graus de intensidade e evidência. Do mesmo modo, na eventualidade de a irmãzinha de fato desaparecer após algum tempo, a criança mais velha verá toda a afeição da casa novamente concentrada nela. Se, depois disso, a cegonha trouxer mais um outro bebê, é bastante lógico que o pequeno favorito alimente o desejo de que seu novo competidor tenha o mesmo destino do primeiro, para que ele próprio possa ser tão feliz quanto era originalmente e durante o intervalo. Normalmente, é claro, é essa atitude de uma criança para com o indefeso recém-nascido.
Os sentimentos hostis para com os irmãos e irmãs devem ser muito mais freqüentes na infância do que é capaz de perceber o olhar distraído do observador adulto.
No caso de meus próprios filhos, que surgiram uns aos outros em rápida sucessão, perdi a oportunidade de fazer esse tipo de observações; mas estou agora compensando essa negligência através da observação de um sobrinhozinho cuja dominação autocrática foi abalada, após uma duração de quinze meses, pelo aparecimento de um rival. É verdade que estou informado de que o rapazinho se comporta da maneira mais cavalheiresca para com sua irmãzinha, de que beija sua mão e a afaga; mas pude convencer-me de que, antes mesmo do final de seu segundo ano, ele se valeu de seus poderes de fala para criticar alguém a quem não podia deixar de considerar supérfluo. Sempre que a conversa se voltava para ela, ele costumava intervir e exclamar com petulância: “Muito f’acota, muito f’acota!” Durante os últimos meses, o crescimento da neném fez progressos suficientes para colocá-la fora do alcance desse motivo específico de desprezo, e o garotinho encontrou outra base para sua afirmação de que ela não merece tanta atenção assim: em todas as ocasiões propícias, ele chama atenção para o fato de que ela não tem dentes. Todos nos lembramos de como a filha mais velha de outra irmã minha, que era então uma menina de seis anos, passou meia hora insistindo junto a cada uma de suas tias, sucessivamente, para que concordassem com ela: “Lucie ainda não entende isso, não é?”, ficava a perguntar. Lucie era sua rival - dois anos e meio mais nova do que ela.
Em nenhuma de minhas pacientes, para citar um exemplo, deixei de esbarrar nesse sonho com a morte de um irmão ou de uma irmã, correspondendo a um aumento da hostilidade. Só encontrei uma única exceção, e foi fácil interpretá-la como uma confirmação da regra. Numa ocasião, durante uma sessão analítica, explicava esse assunto a uma senhora, já que, em vista de seu sintoma, a discussão do tema me parecia relevante. Para meu assombro, ela respondeu nunca ter tido um desse sonhos. Entretanto, ocorreu-lhe outro sonho que, aparentemente, não tinha nenhuma relação com o assunto - um sonho que ela tivera primeira vez quando estava com quatro anos e era ainda a caçula da família, e que havia sonhado repetidamente desde então: “Uma multidão de crianças - todas suas irmãs e irmãos, e primos de ambos os sexos - brincava ruidosamente num campo. De repente, todas criaram asas, voaram para longe e desapareceram. Ela não tinha nenhuma idéia do sentido desse sonho, mas não é difícil reconhecer que, em sua forma original, ele fora um sonho sobre a morte de todos os seus irmãos e irmãs, e só fora ligeiramente influenciado pela censura. Posso ousar sugerir a seguinte análise. Por ocasião da morte de um membro dessa multidão de crianças (nesse exemplo, os filhos de dois irmãos tinham sido criados juntos como uma só família), a sonhadora, que ainda não completara quatro anos na época, deve ter perguntado a algum adulto sensato o que acontecia com as crianças quando elas morriam. A resposta deve ter sido: “Elas criam asas e viram anjinhos.” No sonho que se seguiu a essa informação, todos os irmãos e irmãs da sonhadora tinham asas como pequenos anjos e - é este o ponto principal - voavam para longe. Nossa pequena antiacida ficou só, por mais estranho que isso parecesse: a única sobrevivente do grupo inteiro! É improvável que estejamos errados em supor que o fato de as crianças brincarem ruidosamente num campo antes de voarem para longe aponta para as borboletas. É como se a menina tivesse sido levada, pela mesma cadeia de idéias dos povos da Antiguidade, a imaginar a alma com asas de borboleta.
Neste ponto, alguém talvez interrompa: “Admitindo-se que as crianças tenham impulsos hostis em relação a seus irmãos e irmãs, como pode a mente de uma criança chegar a tal extremo de depravação, a ponto de desejar a morte de seus rivais ou de coleguinhas mais fortes do que ela, como se a pena de morte fosse a única punição para todos os crimes?” Quem quer que fale assim terá deixado de levar em conta que a idéia infantil de estar “morto” pouco tem em comum com a nossa, a não ser por essa palavra. As crianças nada sabem dos horrores da decomposição que as pessoas adultas acham tão difícil de tolerar, como é provado por todos os mitos de uma vida futura. O medo da morte não tem nenhum sentido para uma criança; daí ela brincar com a palavra terrível e usá-la como ameaça contra algum coleguinha: “Se você fizer isso de novo, você vai morrer, como Franz!” Entrementes, a pobre mãe estremece e se lembra, talvez, de que a maior parte da raça humana não consegue sobreviver aos anos de infância. Foi efetivamente possível a um menino, que tinha mais de oito anos nessa época, dizer a sua mãe, ao voltar de uma visita ao Museu de História Natural: “Gosto tanto de você, Mamãe! Quando você morrer, vou mandar empalhá-la neste quarto, para poder ver você o tempo todo”. Como é pequena a semelhança entre a idéia que uma criança faz da morte e a nossa!
Para as crianças que, além disso, são poupadas da visão de cenas de sofrimento que precedem a morte, estar “morto” significa aproximadamente o mesmo que ter “ido embora” - ter deixado de incomodar os sobreviventes. A criança não estabelece nenhuma distinção quanto ao modo como essa ausência é provocada: se é devido a uma viagem, a uma demissão, a uma eparação ou à morte. Quando, durante a fase pré-histórica de uma criança, sua babá é despedida, e quando logo depois que sua mãe morre, esses dois eventos se sobrepõem numa série única em sua memória, como é revelado pela análise. Quando as pessoas estão ausentes, as crianças não sentem falta delas com grande intensidade; muitas mães aprenderam isso, para sua tristeza, quando, após ficarem longe de casa por algumas semanas nas férias de verão, são recebidas, na volta, com a notícia de que nem uma só vez os filhos perguntaram por Mamãe. Quando a mãe realmente viaja para “aquele país inexplorado de cujas fronteiras nenhum viajante regressa”, de início, parecem esquecê-la, e só depois é que começam a lembrar-se da mãe morta.
Assim, quando uma criança tem motivos para desejar a ausência de outra, nada há que a impeça de dar a seu desejo a forma da morte da outra criança. E a reação psíquica aos sonhos que contêm desejos de morte prova que, apesar do conteúdo diferente desses desejos no caso das crianças, eles são, não obstante, de uma maneira ou de outra, idênticos aos desejos expressos nos mesmos termos pelos adultos.
Mas, se os desejos de morte de uma criança contra seus irmãos e irmãs são explicados pelo egoísmo infantil que a faz considerá-los seus rivais, como iremos explicar seus desejos de morte contra seus pais, que a cercam de amor e suprem suas necessidades, e cuja preservação esse mesmo egoísmo deveria levá-la a desejar?
Uma solução para essa dificuldade é fornecida pela observação de que os sonhos com a morte de pais se aplicam com freqüência preponderante ao genitor do mesmo sexo do sonhador, isto é, que os homens sonham predominantemente com a morte do pai, e as mulheres, com a morte da mãe. Não posso afirmar que isso ocorra universalmente, mas a preponderância no sentido que indiquei é tão evidente que precisa ser explicada por um fator de importância geral. Dito sem rodeios, é como se uma preferência sexual se fizesse sentir numa tenra idade: como se os meninos olhassem o pai, e as meninas a mãe como seus rivais no amor, rivais cuja eliminação não poderia deixar de trazer-lhes vantagens.
Antes que essa idéia seja rejeitada como monstruosa, é conveniente, também nesse caso, considerar as relações reais vigentes - desta vez, entre pais e filhos. Devemos distinguir entre o que os padrões culturais de devoção filial exigem dessa relação e o que a observação cotidiana mostra ser a realidade. Mais de uma causa de hostilidade se esconde na relação entre pais e filhos - uma relação que propicia as mais amplas oportunidades de surgimento de desejos que não podem passar pela censura.
Consideremos, primeiramente, a relação entre pai e filho. A sacralidade que atribuímos aos mandamentos explicitados no Decálogo tem toldado, penso eu, nossa capacidade de perceber os atos reais. Mal parecemos ousar observar que a maior parte da humanidade desobedece o Quinto Mandamento. Tanto nas camadas mais baixas como nos retratos mais elevados da sociedade humana, a devoção filial tem o hábito de ceder a outros interesses. As obscuras informações que nos são trazidas pela mitologia e pelas lendas das eras primitivas da sociedade humana fornecem-nos uma imagem desagradável do poder despótico do pai e da crueldade com que ele o usava. Cronos devorou seus filhos, tal como o javali devora as crias da javalina, enquanto Zeus castrou o pai, fazendo-se rei em seu lugar. Quanto mais irrestrita era a autoridade paterna na família antiga, mais precisava o filho, como seu sucessor predestinado, descobrir-se na posição de um inimigo, e mais impaciente devia ficar para tornar-se chefe, ele próprio, através da morte do pai. Mesmo em nossas famílias de classe média, os pais se inclinam, via de regra, a recusar a seus filhos a independência e os meios necessários para obtê-la, fomentando assim o crescimento do germe de hostilidade e que é inerente à sua relação. Um médico estará freqüentemente em condição de notar como a tristeza de um filho pela morte do pai não consegue suprimir sua satisfação por ter finalmente conquistado sua liberdade. Em nossa sociedade de hoje, os pais tendem a se agarrar desesperadamente ao que resta de uma potestas patris familias agora tristemente antiquada; e o autor que, como Ibsen, destaca em seu escritos a luta memorial entre pais e filhos pode ter certeza de produzir um efeito.
As causas de conflito entre filha e mãe surgem quando a filha começa a crescer e ansiar por liberdade sexual, mas se descobre sob a tutela da mãe, enquanto esta, por outo lado, é advertida pelo crescimento da filha de que é chegado o momento em que ela própria deve abandonar suas apropriações à satisfação sexual.
Tudo isso fica patente aos olhos de todos. Mas não nos ajuda em nosso esforço de explicar os sonhos com a morte dos pais em pessoas cuja devoção a eles foi irrepreensivelmente estabelecida há muito tempo. As discussões precedentes, além disso, ter-nos-ão preparado para saber que o desejo de morte contra os pais remonta à primeira infância.
Essa suposição confirmada, com uma certeza que não deixa margem a dúvidas, no caso dos psiconeuróticos, quando sujeitos à análise. Com eles aprendemos que os desejos sexuais de uma criança - se é que, em seu estágio embrionário, eles mereçam ser chamados assim - despertam muito cedo, e que o primeiro amor da menina é por seu pai, enquanto os primeiros desejos infantis do menino são pela mãe. Por conseguinte, o pai se transforma num rival pertubador para o menino, e a mãe, para a menina; e já demonstrei, no caso dos irmãos e irmãs, com que facilidade esses sentimentos podem levar a um desejo de morte. Também os pais dão mostras, em geral, da parcialidade sexual: uma predileção natural costuma fazer com que o homem tenda a mimar excessivamente suas filhinhas, enquanto sua mulher toma o partido dos filhos homens, muito embora os dois, quando seu julgamento não é perturbado pela magia do sexo, mantenham uma rigorosa fiscalização sobre a educação dos filhos. A criança está perfeitamente ciente dessa parcialidade e se volta contra aquele de seus pais que se opõe a demonstrá-la. Ser amada por um adulto não traz para a criança apenas a satisfação de uma necessidade especial; significa igualmente que ele conseguirá o que quiser também em todos os demais aspectos. Assim, ele estará seguindo sua própria pulsão sexual e, ao mesmo tempo, conferindo um novo vigor à inclinação demonstrada por seus pais, se sua escolha entre eles coincidir com a deles.
Os sinais dessas preferências infantis, em sua maior parte, passam despercebidos; no entanto, alguns deles podem ser observados mesmo depois dos primeiros anos da infância. Uma menina de oito anos a quem conheço, quando sua mãe é chamada a se afastar da mesa, aproveita essa ocasião para proclamar-se sua sucessora: “Agora, eu vou ser a Mamãe. Você quer mais verduras, Karl? Então se sirva!” e assim por diante. Uma menina de quatro anos, particularmente dotada e esperta, em quem esse dado da psicologia infantil é especialmente visível, declarou com toda franqueza: Mamãe agora pode ir embora. Aí Papai vai ter que casar comigo e eu vou ser mulher dele.” O fato de tal desejo ocorrer numa criança não é absolutamente incompatível com o estar ternamente ligada à mãe. Um menino a quem se permite que durma ao lado da mãe enquanto o pai está fora de casa, mas que tem de voltar para o quarto das crianças e para alguma pessoa de quem gosta muito menos tão logo o pai retorna, pode facilmente começar a formar um desejo de que o pai esteja sempre ausente, de modo que ele próprio possa conservar seu lugar ao lado da querida e adorável Mamãezinha. Uma maneira óbvia de concretizar esse desejo seria se o pai estivesse morto, pois a criança aprendeu uma coisa com a experiência - a saber, que as pessoas “mortas”, como o Vovô, estão sempre ausentes e nunca mais voltam.
Embora essas observações sobre crianças pequenas se ajustem perfeitamente à interpretação que propus, elas não transmitem uma convicção tão completa quanto a que é imposta ao médico pelas psicanálises de neuróticos adultos. No segundo caso, os sonhos do tipo que estamos considerando são introduzidos na análise num contexto tal que é impossível evitar interpretá-los como sonhos de realização de desejos.
Certo dia, uma de minhas pacientes se achava num estado aflito e choroso. “Nunca mais quero rever meus parentes”, disse ela; “eles devem achar que sou horrível.” Prosseguiu então, quase sem transição alguma, dizendo que se lembrava de um sonho, embora, naturalmente, não tivesse nenhuma idéia do que ele significava. Quando tinha quatro anos, ela sonhara que um lince ou uma raposa estava andando no telhado; então alguma coisa caíra, ou ela havia caído; e depois, sua mãe fora levada para fora de casa, morta - e ela chorou amargamente. Eu lhe disse que esse sonho devia significar que, quando criança, ela teria desejado ver a mãe morta, e devia ser por causa do sonho que ela achava que seus parentes deviam julgá-la horrível. Mal acabei de dizer isso, ela forneceu um material que lançou luz sobre o sonho. “Olho de lince” era um xingamento que lhe fora dirigido por um moleque de rua quando ela era muito pequena. Quando tinha três anos de idade, uma telha caíra na cabeça de sua mãe, fazendo-a sangrar abundantemente.
Tive certa vez a oportunidade de proceder a um estudo pormenorizado de uma jovem que passara por uma multiplicidade de condições psíquicas. Sua doença começou com um estado de excitação confusional durante o qual ela exibiu uma aversão toda especial pela mãe, batendo nela e tratando-a com grosseria toda vez que ela se aproximava de sua cama, ao passo que, nesse mesmo período, mostrava-se dócil e afetuosa para com uma irmã muitos anos mais velha que ela. Seguiu-se um estado em que ela ficou lúcida, mas um tanto apática e sofrendo de um sono muito agitado. Foi durante essa fase que comecei a tratá-la e a analisar seus sonhos. Um imenso número desses sonhos dizia respeito, com maior ou menor grau de disfarce, à morte da mãe: numa ocasião, ela comparecia ao enterro de uma velha; noutra, ela e a irmã estavam sentadas à mesa, trajadas de luto. Não havia nenhuma dúvida quanto ao sentido desses sonhos. À medida que seu estado foi melhorando ainda mais, surgiram fobias histéricas. A mais torturante delas era o medo de que algo pudesse ter acontecido à sua mãe. A moça era obrigada a correr para casa, de onde quer que estivesse, para se convencer de que a mãe ainda estava viva. Este caso, considerado em conjunto com o que eu havia aprendido de outras fontes, foi muito instrutivo: exibia, traduzidos, por assim dizer, em diferentes línguas, os vários modos pelos quais o aparelho psíquico reagiu a uma mesma representação excitante. No estado confusional, no qual, segundo creio, a segunda instância psíquica foi dominada pela primeira, que é normalmente suprimida, sua hostilidade inconsciente para com a mãe encontrou uma poderosa expressão motora. Quando se instalou o estado mais calmo, reprimida a rebelião e restebelecido o domínio da censura, a única região acessível em que sua hostilidade poderia realizar o desejo da morte da mãe era a região do sonho. Quando um estado normal se estabeleceu ainda mais firmemente, levou à confirmação de sua preocupação exagerada com a mãe, como uma contra-reação histérica e um fenômeno defensivo. Em vista disso, já não é difícil compreender por que as moças histéricas são tantas vezes apegadas a suas mães com um afeto tão exagerado.

Numa outra ocasião, tive oportunidade de aceder a uma compreensão profunda da mente inconsciente de um rapaz cuja vida se tornara quase impossível em virtude de uma neurose obsessiva. Ele estava impossibilitado de sair à rua porque era torturado pelo medo de matar toda pessoa que encontrasse. Passava seus dias preparando um álibi para a eventualidade de ser acusado de um dos assassinatos cometidos na cidade. Desnecessário acrescentar que era um homem de moral e educação igualmente elevadas. A análise (que, aliás, o levou a recuperar-se) mostrou que a base dessa torturante obsessão era um impulso de assassinar seu pai extremamente severo. Esse impulso, para surpresa dele, fora conscientemente expressado quando ele tinha sete anos, mas se originara, é claro, numa fase muito anterior de sua infância. Após a penosa doença e a morte do pai, surgiram no paciente as auto-recriminações obsessivas - ele contava então 31 anos -, tomando a forma de uma fobia transferida para estranhos. Não se podia confiar, achava ele, em que uma pessoa capaz de querer empurrar o próprio pai para o precipício, do alto de uma montanha, fosse respeitar as vidas daqueles com quem tivesse uma relação menos estreita; ele tinha toda a razão de se fechar em seu quarto. [1]
Em minha experiência, que já é extensa, o papel principal na vida mental de todas as crianças que depois se tornam psiconeuróticas é desempenhado por seus pais. Apaixonar-se por um dos pais e odiar o outro figuram entre os componentes essenciais do acervo de impulsos psíquicos que se formam nessa época e que é tão importante na determinação dos sintomas da neurose posterior. Não é minha crença, todavia, que os psiconeuróticos difiram acentuadamente, nesse aspectos, dos outros seres humanos que permanecem normais - isto é, que eles sejam capazes de criar algo absolutamente novo e peculiar a eles próprios. É muito mais provável - e isto é confirmado por observações ocasionais de crianças normais -, que eles se diferenciem apenas por exibirem, numa escala ampliada, sentimentos de amor e ódio pelos pais, os quais ocorrem de maneira a menos óbvia e intensa nas mentes da maioria das crianças.
Essa descoberta é confirmada por uma lenda da Antiguidade clássica que chegou até nós: uma lenda cujo poder profundo e universal de comover só pode ser compreendido se a hipótese que propus com respeito à psicologia infantil tiver validade igualmente universal. O que tenho em mente é a lenda do Rei Édipo e a tragédia de Sófocles que traz o seu nome.

Édipo, filho de Laio, Rei de Tebas, e de Jocasta, foi enjeitado quando criança porque um oráculo advertira Laio de que a criança ainda por nascer seria o assassino de seu pai. A criança foi salva e cresceu como príncipe numa corte estrangeira, até que, em dúvida quanto a sua origem, também ele interrogou o oráculo e foi alertado para evitar sua cidade, já que estava predestinado a assassinar seu pai e receber sua mãe em casamento. Na estrada que o levava para longe do local que ele acreditara ser seu lar, encontrou-se com o Rei Laio e o matou numa súbita rixa. Em seguida dirigiu-se a Tebas e decifrou o enigma apresentado pela Esfinge que lhe barrava o caminho. Por gratidão, os tebanos fizeram-no rei e lhe deram a mão de Jocasta em casamento. Ele reinou por muito tempo com paz e honra, e aquela que, sem que ele o soubesse, era sua mãe, deu-lhe dois filhos e duas filhas. Por fim, então, irrompeu uma peste e os tebanos mais uma vez consultaram o oráculo. É nesse ponto que se inicia a tragédia de Sófocles. Os mensageiros trazem de volta a resposta de que a peste cessará quando o assassino de Laio tiver sido expulso do país.
Mas ele, onde está ele? Onde se há de ler agoraO desbotado registro dessa culpa de outrora?
A ação da peça não consiste em nada além do processo de revelação, com engenhosos adiamentos e sensação sempre crescente - um processo que pode ser comparado ao trabalho de uma psicanálise - de que o próprio Édipo é o assassino de Laio, mas também de que é o filho do homem assassinado e de Jocasta. Estarrecido ante o ato abominável que inadvertidamente perpetrara, Édipo cega a si próprio e abandona o lar. A predição do oráculo fora cumprida.
Oedipus Rex é o que se conhece como uma tragédia do destino. Diz-se que seu efeito trágico reside no contraste entre a suprema vontade dos deuses e as vãs tentativas da humanidade de escapar ao mal que a ameaça. A lição que, segundo se afirma, o espectador profundamente comovido deve extrair da tragédia é a submissão à vontade divina e o reconhecimento de sua própria impotência. Os dramaturgos modernos, por conseguinte, tentaram alcançar um efeito trágico semelhante, tecendo o mesmo contraste num enredo inventado por eles mesmos. Mas os espectadores ficaram a contemplar, impassíveis, enquanto uma praga ou um vaticínio oracular se realizava apesar de todos os esforços de algum homem inocente: as tragédias do destino posteriores falharam em seu efeito.

Se Oedipus Rex comove tanto uma platéia moderna quanto fazia com a platéia grega da época, a explicação só pode ser que seu efeito não está no contraste entre o destino e a vontade humana, mas deve ser procurado na natureza específica do material com que esse contraste é exemplificado. Deve haver algo que faz uma voz dentro de nós ficar pronta a reconhecer a força compulsiva do destino no Oedipus, ao passo que podemos descartar como meramente arbitrários os desígnios do tipo formulado em die Ahnfrau [de Grillparzer] ou em outras modernas tragédias do destino. E há realmente um fator dessa natureza envolvido na história do Rei Édipo. Seu destino comove-nos apenas porque poderia ter sido o nosso - porque o oráculo lançou sobre nós, antes de nascermos, a mesma maldição que caiu sobre ele. É destino de todos nós, talvez, dirigir nosso primeiro impulso sexual para nossa mãe, e nosso primeiro ódio e primeiro desejo assassino, para nosso pai. Nossos sonhos nos convencem de que é isso o que se verifica. O Rei Édipo, que assassinou Laio, seu pai, e se casou com Jocasta, sua mãe, simplesmente nos mostra a realização de nossos próprios desejos infantis. Contudo, mais afortunados que ele, entrementes conseguimos, na medida em que não nos tenhamos tornado psiconeuróticos, desprender nossos impulsos sexuais de nossas mães e esquecer nosso ciúme de nossos pais. Ali está alguém em quem esses desejos primevos de nossa infância foram realizados, e dele recuamos com toda a força do recalcamento pelo qual esses desejos, desde aquela época, foram contidos dentro de nós. Enquanto traz à luz, à medida que desvenda o passado, a culpa de Édipo, o poeta nos compele, ao mesmo tempo, a reconhecer nossa própria alma secreta, onde esses mesmos impulsos, embora suprimidos, ainda podem ser encontrados. O contraste com que nos confronta o coro final -

Fitai de Édipo o horror,
Dele que o obscuro enigma desvendou, mais nobre e sapiente vencedor. Alto no céu sua ‘estrela se acendeu, ansiada e irradiante de esplendor: Ei-lo que em mar de angústia submergiu, calcado sob a vaga em seu furor.

-tem o impacto de uma advertência a nós mesmos e a nosso orgulho, nós que, desde nossa infância, tornamo-nos tão sábios e tão poderosos ante nossos próprios olhos. Como Édipo, vivemos na ignorância desses desejos repugnantes à moral, que nos foram impostos pela Natureza; e após sua revelação, é bem possível que todos busquemos fechar os olhos às cenas de nossa infância.
Há uma indicação inconfundível no texto da própria tragédia de Sofocles, de que a lenda de Édipo brotou de algum material onírico primitivo que tinha como conteúdo a aflitiva perturbação da relação de uma criança com seus pais, em virtude dos primeiros sobressaltos da sexualidade. Num ponto em que Édipo, embora não tenha sido ainda esclarecido, começa a se sentir perturbado por sua recordação do oráculo, Jocasta o consola fazendo referência a um sonho que muitas pessoas têm, ainda que, na opinião dela, não tenha nenhuma sentido:

Muito homem desde outrora em sonhos tem deitado
Com aquela que o gerou. Menos se aborrece
Quem com tais presságios sua alma não perturba.

Hoje, tal como outrora, muitos homens sonham ter relações sexuais com suas mães, e mencionarm esse fato com indignação e assombro. Essa é claramente a chave da tragédia e o complemento do sonho de o pai do sonhador estar morto. A história de Édipo é a reação da imaginação a esses dois sonhos típicos. E, assim como esses sonhos, quando produzidos por adultos, são acompanhados por sentimentos de repulsa, também a lenda precisa incluir horror e autopunição. Sua modificação adicional se origina, mais uma vez, numa mal concebida elaboração secundária do material, que procurou explorá-la para fins teológicos. (Cf. o material onírico dos sonhos de exibição, em [1]) A tentativa de harmonizar a onipotência divina com a responsabilidade humana deve, naturalmente, falhar em relação a esse tema, tal como em relação a qualquer outro.
Outra das grandes criações da poesia trágica, o Hamlet de Shakespeare, tem suas raízes no mesmo solo que Oedipus Rex. Mas o tratamento modificado do mesmo material revela toda a diferença na vida mental dessas duas épocas, bastante separadas, da civilização: o avanço secular do recalcamento na vida emocional da espécie humana. No Oedipus, a fantasia infantil imaginária que subjaz ao texto é abertamente exposta e realizada, como o seria num sonho. Em Hamlet ela permanece recalcada; e - tal como no caso de uma neurose - só ficamos cientes de sua existência através de suas conseqüências inibidoras. Estranhamente, o efeito esmagador produzido por essa tragédia mais moderna revelou-se compatível com o fato de as pessoas permanecerem em completa ignorância quanto ao caráter do herói. A peça se alicerça nas hesitações de Hamlet em cumprir a tarefa de vingança que lhe é atribuída; mas seu texto não oferece nenhuma razão ou motivo para essas hesitações, e uma imensa variedade de tentivas de interpretá-las falhou na obtenção de qualquer resultado. Segundo a visão que se originou em Goethe e é ainda hoje predominante, Hamlet representa o tipo de homem cujo poder de ação direta é paralisado por um desenvolvimento excessivo do intelecto. (Ele está “amarelecido, com a palidez do pensamento”.) Segundo outra visão, o dramaturgo tentou retratar um caráter patologicamente indeciso, que poderia ser classificado de neurastênico. O enredo do drama nos mostra, contudo, que Hamlet está longe de ser representado como uma pessoa incapaz de adotar qualquer atitude. Vemo-lo fazer isso em duas ocasiões: primeiro, num súbito rompante de cólera, quando trespassa com a espada o curioso que escuta a conversa por trás da tapeçaria, e em segundo lugar, de maneira premeditada e até ardilosa, quando, com toda a insensibilidade de um príncipe da Renascença, envia os dois cortesãos à morte que fora planejada para ele mesmo. O que é, então, que o impede de cumprir a tarefa imposta pelo fantasma do pai? A resposta, mais uma vez, está na natureza peculiar da tarefa. Hamlet é capaz de fazer qualquer coisa - salvo vingar-se do homem que eliminou seu pai e tomou o lugar deste junto a sua mãe, o homem que lhe mostra os desejos recalcados de sua própria infância realizados. Desse modo, o ódio que deveria impeli-lo à vingança é nele substituído por auto-recriminações, por escrúpulos de consciência que o fazem lembrar que ele próprio, literalmente, não é melhor do que o pecador a quem deve punir. Aqui traduzi em termos conscientes o que se destinava a permanecer inconsciente na mente de Hamlet; e, se alguém se inclinar a chamá-lo de histérico, só poderei aceitar esse fato como algo que está implícito em minha interpretação. A aversão pela sexualidade expressa por Hamlet em sua conversa com Ofélia ajusta-se muito bem a isto: a mesma aversão que iria apossar-se da mente do poeta em escala cada vez maior durante os anos que se seguiram, e que alcançou sua expressão máxima em Timon de Atenas. Pois, naturalmente, só pode ser a própria mente do poeta que nos confronta em Hamlet. Observo num livro sobre Shakespeare, de Georg Brandes (1896), uma declaração de que Hamlet foi escrito logo após a morte do pai de Shakespeare (em 1601), isto é, sob o impacto imediato de sua perda e, como bem podemos presumir, enquanto seus sentimentos infantis sobre o pai tinham sido recentemente revividos. Sabe-se também que o próprio filho de Shakespeare, que morreu em tenra idade, trazia o nome de “Hamnet”, que é idêntico a “Hamlet”. Assim como Hamlet versa sobre a relação entre um filho e seus pais, Macbeth (escrito aproximadamente no mesmo período) aborda o tema da falta de filhos. Entretanto, assim como todos os sintomas neuróticos e, no que tange a esse aspecto, todos os sonhos são passíveis de ser “superinterpretados”, e na verdade precisam sê-lo, se pretendermos compreendê-los na íntegra, também todos os textos genuinamente criativos são o produto de mais de um motivo único e mais de um único impulso na mente do poeta, e são passíveis de mais de uma interpretação. No que escrevi, tentei apenas interpretar a camada mais profunda dos impulsos anímicos do escritor criativo. [1]

Não posso abandonar o tema dos sonhos típicos sobre a morte de parentes queridos sem acrescentar mais algumas palavras, para lançar luz sobre sua importância para a teoria dos sonhos em geral. Nesses sonhos, encontramos realizada a situação extremamente incomum de um pensamento onírico formado por um desejo recalcado que foge inteiramente à censura e passa para o sonho sem modificação. Deve haver fatores especiais em ação para possibilitar esse fato, e creio que a ocorrência desses sonhos é facilitada por dois desses fatores. Em primeiro lugar, nenhum desejo parece mais distante de nós do que este: “não poderíamos nem sonhar” - assim acreditamos - em desejar uma coisa dessas. Por essa razão, a censura do sonho não está armada para enfrentar tal monstruosidade, da mesma forma que o código penal de Sólon não continha nenhuma punição para o parricídio. Em segundo lugar, nesse caso o desejo recalcado e insuspeitado coincide parcialmente, com extrema freqüência, com um resíduo do dia anterior sob a forma de uma preocupação com a segurança da pessoa em questão. Essa preocupação só consegue penetrar no sonho valendo-se do desejo correspondente, enquanto o desejo pode disfarçar-se por trás da preocupação que se tornou ativa durante o dia. [ver em [1]] Podemos inclinar-nos a pensar que as coisas são mais simples do que isso e que o sujeito simplesmente dá continuidade, durante a noite e nos sonhos, àquilo que esteve revolvendo na mente durante o dia; nesse caso, porém, estaremos deixando os sonhos da morte de pessoas que são caras ao sonhador inteiramente no ar e sem qualquer ligação com nossa explicação dos sonhos em geral, e assim nos estaremos apegando, sem nenhuma necessidade, a um enigma perfeitamente passível de solução.
É também instrutivo considerar a relação desses sonhos com os sonhos de angústia. Nos sonhos que vimos examinando, um desejo recalcado encontrou um meio de fugir à censura - e à distorção que a censura implica. O resultado invariável disso é que se experimentam sentimentos dolorosos no sonho. Da mesma forma, os sonhos de angústia só ocorrem quando a censura é total ou parcialmente subjugada; e, por outro lado, a subjugação da censura é facilitada nos casos em que a angústia já foi produzida como uma sensação imediata decorrente de fontes somáticas. [Ver em [1]] Assim, podemos ver claramente a finalidade para a qual a censura exerce sua função e promove a distorção dos sonhos: ela o faz para impedir a produção de angústia ou de outras formas de afeto aflitivo.

Falei acima [em [1]-[2]] sobre o egoísmo da mente das crianças, e posso agora acrescentar, com a sugestão de uma possível ligação entre os dois fatos, que os sonhos têm a mesma característica. Todos eles são inteiramente egoístas: o ego amado aparece em todos eles, muito embora possa estar disfarçado. Os desejos que neles se realizam são invariavelmente desejos do ego, e, quando um sonho parece ter sido provocado por um interesse altruísta, estamos apenas sendo enganados pelas aparências. Eis aqui algumas análises de exemplos que parecem contradizer essa afirmação.

I

Uma criança com menos de quatro anos de idade contou ter sonhado que vira um prato enorme com um grande pedaço de carne assada e legumes. De repente, toda a carne foi comida - inteira e sem ser destrinchada. Ela não viu a pessoa que a comeu.
Quem teria sido a pessoa desconhecida cujo suntuoso banquete de carne constitui o tema do sonho do menininho? Suas experiências durante o dia do sonho devem esclarecer-nos sobre o assunto. Por ordem médica, ele fora submetido a uma dieta de leite nos últimos dias. Na noite do dia do sonho ele se mostrara travesso e, como castigo, fora mandado para a cama sem jantar. Ele já havia passado por essa cura pela fome numa ocasião anterior e se portara com muita bravura. Sabia que não conseguiria nada, mas não se permitia demonstrar, nem mesmo por uma única palavra, que estava com fome. A educação já começara a surtir efeito nele: encontrou expressão em seu sonho, que exibe o início da distorção onírica. Não há nenhuma dúvida de que a pessoa cujos desejos eram visados nessa generosa refeição - de carne, ainda por cima - era ele próprio. Mas, como sabia que isso não lhe era permitido, ele não se aventurou a sentar-se pessoalmente para desfrutar a refeição, como fazem as crianças famintas nos sonhos. (Cf. o sonho de minha filhinha Anna com os morangos, em [1]-[2].) A pessoa que se serviu da refeição permaneceu no anonimato.

II

Sonhei, certa noite, que via na vitrina de uma livraria um novo volume de uma das séries de monografias para conhecedores que tenho o hábito de comprar - monografias sobre grandes artistas, sobre história mundial, sobre cidades famosas etc. A nova série era intitulada “Oradores Famosos” ou “Discursos”, e seu primeiro volume trazia o nome do Dr. Lecher.
Quando vim a analisar isso, pareceu-me improvável que devesse preocupar-me, em meus sonhos, com a fama do Dr. Lecher, o orador ininterrupto do grupo dos obstrucionistas do Partido Nacionalista Alemão no Parlamento. O caso foi que, alguns dias antes, eu recebera alguns pacientes novos para tratamento psicológico, e agora estava obrigado a falar durante dez ou doze horas todos os dias. Assim, eu próprio é que era o orador ininterrupto.

III

De outra feita, sonhei que um homem conhecido meu, que fazia parte do pessoal da Universidade, me dizia: “Meu filho, o Míope.” Seguiu-se então um diálogo constituído por curtas observações e réplicas. Depois disso, houve ainda um terceiro fragmento do sonho no qual figurávamos eu próprio e meus filhos. No que dizia respeito ao conteúdo latente do sonho, o Professor M. e seu filho eram testas-de-ferro - um mero anteparo para encobrir a mim e a meu filho mais velho. Terei de voltar a este sonho mais adiante, em virtude de outra de suas características. [Ver em [1]]

IV
O sonho que se segue constitui outro exemplo de sentimentos egoístas realmente baixos, ocultos por trás de uma preocupação afetiva.
Meu amigo Otto parecia doente. Seu rosto estava marrom e ele tinha olhos esbugalhados.
Otto é meu médico de família, e devo-lhe mais do que tenho esperança de algum dia poder retribuir: ele tem cuidado da saúde de meus filhos há muitos anos, tem tratado deles com êxito quando adoecem e, além disso, sempre que as circunstâncias lhe dão uma desculpa, tem-lhes dado presentes. [Ver em [1].] Ele nos visitara no dia do sonho, e minha mulher havia comentado que ele parecia fatigado e tenso. Naquela noite, tive meu sonho, que a apresentou com alguns dos sinais da doença de Basedow [de Graves]. Quem quer que interprete este sonho sem considerar minhas normas concluirá que eu estava preocupado com a saúde de meu amigo e que essa preocupação foi concretizada no sonho. Isso não apenas contradiria minha afirmação de que os sonhos são realizações de desejos, como também minha outra afirmação de que eles só são acessíveis a impulsos egoístas. Mas eu gostaria que alguém que interpretasse o sonho dessa forma tivesse a bondade de me explicar por que meus temores por Otto levaram à doença de Basedow - um diagnóstico para o qual sua aparência real não dá o menor fundamento. Minha análise, por outro lado, trouxe à tona o seguinte material, oriundo de uma ocorrência de seis anos antes. Num grupinho que incluía o Professor R., seguíamos de carruagem em completa escuridão pela floresta de N., que ficava a algumas horas de viagem do lugar onde estávamos passando nossas férias de verão. O cocheiro, que não estava inteiramente sóbrio, lançou-nos, com veículo e tudo, num barranco, e foi apenas por sorte que todos escapamos ilesos. Fomos obrigados, contudo, a passar a noite numa estalagem vizinha, onde a notícia do acidente nos trouxe grande dose de solidariedade. Um cavalheiro com sinais inconfundíveis da doença de Basedow - aliás, exatamente como no sonho, apenas com a descoloração castanha da pele do rosto e os olhos esbugalhados, mas sem bócio - colocou-se à nossa inteira disposição e perguntou o que poderia fazer por nós. O Professor R. respondeu, à sua maneira incisiva: “Nada, a não ser me emprestar um camisolão de dormir.” Ao que o gentil cavalheiro retrucou: “Lamento, mas não posso fazer isso”, e deixou o aposento.
À medida que continuei com minha análise, ocorreu-me que Basedow era não só o nome de um médico, mas também o de um famoso educador. (Em meu estado de vigília eu já não me sentia tão seguro disso.) Mas meu amigo Otto era a pessoa a quem eu pedira que cuidasse da educação física de meus filhos, especialmente na época da puberdade (daí o camisolão de dormir), caso alguma coisa me acontecesse. Ao atribuir a meu amigo Otto, no sonho, os sintomas de nosso nobre auxiliador, eu estava evidentemente dizendo que, se alguma coisa me acontecesse, ele faria tão pouco pelas crianças quanto o Barão L. fizera naquela ocasião, apesar de suas amáveis ofertas de assistência. Isso parece ser prova suficiente do substrato egoísta do sonho.
Mas onde encontrar sua realização de desejo? Não em eu me vingar de meu amigo Otto, cujo destino parece ser o de sofrer maus-tratos em meus sonhos, mas na consideração seguinte. Ao mesmo tempo que, no sonho, representei Otto como o Barão L., identifiquei-me com outra pessoa, a saber, o Professor R., pois, assim como na história, R. fizera um pedido ao Barão L., eu também fizera um pedido a Otto. E esta é a questão. O Professor R., com quem eu realmente não me arriscaria a me comparar à maneira comum, assemelhava-se a mim no sentido de ter seguido um rumo independente fora do mundo acadêmico, e só obtivera seu merecido título na velhice. Assim, mais uma vez, eu estava querendo ser Professor! De fato, as próprias palavras “na velhice” eram uma realização de desejo, pois implicavam que eu viveria o bastante para ver meus filhos atravessarem a época da puberdade. [1]

 (D3) OUTROS SONHOS TÍPICOS

Não tenho nenhuma experiência própria de outras espécies de sonhos típicos, nas quais o sonhador se descobre voando em pleno ar, com o acompanhamento de sensações agradáveis, ou se vê caindo, com sensações de angústia; e o que quer que tenha a dizer sobre o assunto se origina de psicanálise. As informações proporcionadas por estas últimas forçam-me a concluir que também esses sonhos reproduzem impressões da infância; isto é, eles se relacionam com jogos que envolvem movimento, que são extraordinariamente atraentes para as crianças. Não existe um único tio que não tenha mostrado a uma criança como voar, precipitando-se pela sala com ela nos braços estendidos, ou que não tenha brincado de deixá-la cair, balançando-a nos joelhos e de repente esticando as pernas, ou levantando-a bem alto e então fingindo que vai deixá-la cair. As crianças se deliciam com tais experiências e nunca se cansam de pedir que elas sejam repetidas, especialmente se houver nelas algo que provoque um pequeno susto ou uma tontura. Anos depois, elas repetem essas experiências nos sonhos; nestes, porém, elas deixam de fora as mãos que as sustinham, de modo que flutuam ou caem sem apoio. O prazer que as crianças pequenas experimentam nas brincadeiras desse tipo (bem como nos balanços e gangorras) é bem conhecido, e quando elas passam a ver façanhas acrobáticas num circo, sua lembrança de tais brincadeiras é revivida. Os ataques histéricos nos meninos às vezes consistem meramente em reproduções de façanhas dessa espécie, executadas com grande habilidade. Não é incomum que esses jogos de movimento, embora inocentes em si, dêem lugar a sensações sexuais. As “travessuras”[“Hetzen”] infantis, se é que posso empregar uma palavra que comumente descreve todas essas atividades, são o que se repete nos sonhos de voar, cair, sentir tonteiras e assim por diante, enquanto as sensações prazerosas ligadas a essas experiências são transformadas em angústia. Com bastante freqüência, porém, como toda mãe sabe, as travessuras entre as crianças realmente terminam em brigas e lágrimas.
Assim, tenho bons motivos para rejeitar a teoria de que o que provoca os sonhos de voar e cair é o estado de nossas sensações tácteis durante o sono, ou as sensações de movimento de nossos pulmões etc. [Ver em [1]] A meu ver, essas sensações são reproduzidas, elas próprias, como parte da lembrança a que remonta o sonho, isto é, são parte do conteúdo do sonho, e não sua fonte.
Não posso, contudo, esconder de mim mesmo que sou incapaz de fornecer qualquer explicação completa sobre essa classe de sonhos típicos. Meu material deixou-me em apuros precisamente neste ponto. Devo, entretanto, insistir na afirmação geral de que todas as sensações tácteis e motoras que ocorrem nesses sonhos típicos são evocadas tão logo se verifica qualquer motivo psíquico para utilizá-las, e podem ser desprezadas quando não surge tal necessidade deles. [Ver em [1].] Sou também de opinião que a relação desses sonhos com as experiências infantis foi estabelecida com certeza a partir das indicações que obtive nas análises de psiconeuróticos. Não sei dizer, porém, que outros significados podem ligar-se à lembrança dessas sensações no curso de fases posteriores da vida - significados diferentes, talvez, em cada caso individual, apesar da aparência típica dos sonhos; e gostaria de poder preencher essa lacuna mediante uma análise cuidadosa de exemplos claros. Se alguém se sentir surpreso com o fato de, a despeito da freqüência precisamente dos sonhos de voar, cair, extrair dentes etc., eu estar me queixando de falta de material sobre esse tópico específico, devo explicar que eu mesmo não tive nenhum sonho dessa natureza desde que voltei minha atenção para o tema da interpretação dos sonhos. Ademais, os sonhos dos neuróticos, dos quais de outro modo eu me poderia valer, nem sempre podem ser interpretados - não, pelo menos, em muitos casos, de modo a revelarem a totalidade de seu sentido oculto; uma força psíquica particular, que se relacionou com a estruturação original da neurose e que é mais uma vez acionada quando se fazem tentativas de solucioná-la, impede-nos de interpretar esses sonhos até seu último segredo.

(D4) SONHOS COM EXAMES

Quem quer que tenha passado pelo vestibular no final de seus estudos escolares queixa-se da obstinação com que é perseguido por sonhos angustiantes de ter sido reprovado, ou de ser obrigado a refazer o exame etc. No caso dos que obtiveram um grau universitário, esse sonho típico é substituído por outro que os representa como tendo fracassado em seus Exames Universitários Finais; e é em vão que fazem objeções, mesmo enquanto ainda estão adormecidos, de que há anos vêm exercendo a medicina ou trabalhando como conferencistas da Universidade ou como chefes de escritório. As lembranças inextirpáveis dos castigos que sofremos por nossas más ações na infância tornam-se ativas em nós mais uma vez e se ligam aos dois pontos cruciais de nossos estudos - o “die irae, dies illa” de nossos exames mais duros. A “angústia de prestar exames” dos neuróticos deve sua intensificação a esses mesmos medos infantis. Quando deixamos de ser estudantes, nossos castigos já não nos são infligidos por nossos pais ou por aqueles que nos criaram, ou, posteriormente, por nossos professores. As implacáveis cadeias causais da vida real se encarregam de nossa educação ulterior, e passamos a sonhar com o Vestibular ou com os Exames Finais (e quem não tremeu nessas ocasiões, mesmo que estivesse bem preparado para as provas?) sempre que, tendo feito algo errado ou deixado de fazer alguma coisa de maneira apropriada, esperamos ser punidos por esse acontecimento - em suma, sempre que sentimos o fardo da responsabilidade.
Por uma explicação adicional sobre os sonhos com exames tenho de agradecer a um experiente colega [Stekel], que certa vez declarou, numa reunião científica, que, ao que ele soubesse, os sonhos com o Vestibular só ocorriam nas pessoas que tinham sido aprovadas, e nunca nas que foramreprovadas nele. Ao que parece, portanto, os sonhos de angústia referentes a exames (os quais, como já foi confirmado repetidas vezes, surgem quando o sonhador tem alguma responsabilidade pela frente no dia seguinte e teme que haja um fiasco) procuram alguma ocasião do passado em que uma grande angústia se tenha revelado injustificada e tenha sido desmentida pelos acontecimentos. Esse, portanto, seria um exemplo notável de o conteúdo de um sonho ser mal interpretado pela instância de vigília. [Ver em [1].] O que é considerado um protesto indignado contra o sonho - “Mas eu já sou médico, etc.!” - seria, na realidade, o consolo trazido pelo sonho, e seu enunciado por conseguinte, seria: “Não tenha medo do amanhã! Pense só em como você estava ansioso antes do Vestibular e, no entanto, nada lhe aconteceu. Você já é médico (etc.)!” E a angústia que é atribuída ao sonho decorreria, na realidade, dos restos diurnos.
Os testes a que tenho submetido essa explicação com respeito a mim mesmo e a outras pessoas, embora não tenham sido suficientemente numerosos, têm confirmado sua validade. Por exemplo, eu próprio fui reprovado em Medicina Forense em meus Exames Finais, mas nunca tive de enfrentar essa matéria nos sonhos, ao passo que, com muito freqüência, fui examinado em Botânica, Zoologia ou Química. Fiz prova dessas matérias com uma ansiedade bastante justificada, mas, fosse pela graça do destino ou dos examinadores, escapei à punição. Em meus sonhos com provas escolares, sou invariavelmente examinado em História, na qual me saí brilhantemente - embora apenas, é verdade, porque [no exame oral] meu bondoso mestre (o benfeitor de um olho só de outro sonho, ver em [1]) não deixou de notar que, no papel que lhe devolvi com as perguntas, eu havia riscado com a unha a questão do meio entre as três formuladas, para avisá-lo que não insistisse naquela pergunta específica. Um de meus pacientes, que resolvera não fazer o Vestibular na primeira vez, mas depois foi aprovado nele, e que em seguida foi reprovado em seu exame para o exército, não tendo jamais obtido uma patente, contou-me que sonha com freqüência com o primeiro desses exames, mas nunca com o segundo.

A interpretação dos sonhos com exames enfrenta a dificuldade a que já me referi como sendo característica da maioria dos sonhos típicos [em [1]]. Só raramente o material que o sonhador nos fornece nas associações é suficiente para interpretarmos o sonho. Somente reunindo um número considerável de exemplos desses sonhos é que poderemos chegar a uma melhor compreensão deles. Não faz muito tempo cheguei à conclusão de que a objeção “Você já é médico, (etc)!” não apenas oculta um consolo, como também significa uma recriminação. Esta seria: “Você já está muito velho agora, com uma idade muito avançada, mas ainda continua a fazer essas coisas estúpidas e infantis.” Essa mescla de autocrítica e consolo corresponderia, assim, ao conteúdo latente dos sonhos com exames. Sendo assim, não supreenderia que as auto-recriminações por ser “estúpido” e “infantil” nestes últimos exemplos se referissem à repetição de atos sexuais repreensíveis.
Wilhelm Stekel, que propôs a primeira interpretação dos sonhos com o Vestibular [“Matura”], era de opinião que eles estavam regularmente relacionados com provas sexuais e com a maturidade sexual. Minha experiência tem muitas vezes confirmado seu ponto de vista. [1]



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