Capítulo II - O MÉTODO DE INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS: ANÁLISE DE UM
SONHO MODELO
O título que escolhi para minha obra deixa claro quais das
abordagens tradicionais do problema dos sonhos estou inclinado a seguir. O
objetivo que estabeleci perante mim mesmo é demonstrar que os sonhos são
passíveis de ser interpretados; e quaisquer contribuições que eu possa fazer
para a solução dos problemas tratados no último capítulo só surgirão como
subprodutos no decorrer da execução de minha tarefa propriamente dita. Meu
pressuposto de que os sonhos podem ser interpretados coloca-me, de imediato, em
oposição à teoria dominante sobre os sonhos e, de fato, a todas as teorias dos
sonhos, com a única exceção da de Scherner [em [1]]; pois “interpretar” um
sonho implica atribuir a ele um “sentido” - isto é, substituí-lo por algo que
se ajuste à cadeia de nossos atos mentais como um elo dotado de validade e
importância iguais ao restante. Como vimos, as teorias científicas dos sonhos
não dão margem a nenhum problema com a interpretação dos mesmos, visto que,
segundo o seu ponto de vista dessas teorias, o sonho não é absolutamente um ato
mental, mas um processo somático que assinala sua ocorrência por indicações
registradas no aparelho mental. A opinião leiga tem assumido uma atitude
diferente ao longo dos tempos. Tem exercido seu direito inalienável de se comportar
de forma incoerente; e, embora admitindo que os sonhos são ininteligíveis e
absurdos, não consegue convencer-se a declarar que eles não têm importância
alguma. Levada por algum sentimento obscuro, parece assumir que, a despeito de
tudo, todo sonho tem um significado, embora oculto, que os sonhos se destinam a
ocupar o lugar de algum outro processo de pensamento, e que para chegar a esse
sentido oculto temos apenas de desfazer corretamente a substituição.
Assim, o mundo leigo se interessa, desde os
tempos mais remotos, pela “interpretação” dos sonhos e, em suas tentativas de
fazê-la, tem-se servido de dois métodos essencialmente diferentes.
O primeiro desses métodos considera o conteúdo
do sonho como um todo e procura substituí-lo por outro conteúdo que seja
inteligível e, em certos aspectos, análogo ao original. Essa é a interpretação
“simbólica” dos sonhos, e cai inevitavelmente por terra quando se
defronta com sonhos que são não apenas inteligíveis, mas também confusos. Um
exemplo desse método pode ser observado na explicação do sonho do Faraó,
proposta por José na Bíblia. As sete vacas gordas seguidas pelas sete vacas
magras que devoraram as gordas - tudo isso era o substituto simbólico para uma
profecia de sete anos de fome nas terras do Egito, que deveriam consumir tudo o
que fosse produzido nos sete anos de abundância. A maioria dos sonhos
artificiais criados pelos escritores de ficção destinam-se a esse tipo de
interpretação simbólica; reproduzem os pensamentos do escritor sob um disfarce
que se considera como estando em harmonia com as características reconhecidas
dos sonhos. A idéia de os sonhos se relacionarem principalmente com o
futuro e poderem predizê-lo - um vestígio da antiga importância profética dos
sonhos - fornece uma razão para se transpor o sentido do sonho, quando se chega
a tal sentido por meio da interpretação simbólica, para o tempo futuro. É
obviamente impossível dar instruções sobre o método de se chegar a uma
interpretação simbólica. O êxito deve ser uma questão de se esbarrar numa
idéia inteligente, uma questão de intuição direta, e por esse motivo foi
possível à interpretação dos sonhos por meio do simbolismo ser exaltada numa
atividade artística que depende da posse de dons peculiares.
O segundo dos dois métodos populares de interpretação
dos sonhos está longe de fazer tais afirmações. Poderia ser descrito como o
método da “decifração”, pois trata os sonhos como uma espécie de
criptografia em que cada signo pode ser traduzido por outro signo de
significado conhecido, de acordo com o código fixo. Suponhamos, por exemplo,
que eu tenha sonhado com uma carta e também com um funeral. Se consultar um
“livro dos sonhos”, verificarei que “carta” deve traduzir-se por “transtorno”,
e “funeral”, por “noivado”. Resta-me então vincular as palavras-chave que assim
decifrei e, mais uma vez, transpor o resultado para o tempo futuro. Uma
modificação interessante do processo de decifração, que até certo ponto corrige
o caráter puramente mecânico de seu método de transposição, encontra-se no
livro escrito sobre a interpretação dos sonhos [Oneirocritica] de Artemidoro
de Daldis. Esse método leva em conta não apenas o conteúdo do sonho, mas
também o caráter e situação do sonhador, de modo que um mesmo elemento onírico
terá, para um homem rico, um homem casado ou, digamos, um orador, um sentido
diferente do que tem para um homem pobre, um homem solteiro ou um
negociante. A essência do método de
decifração reside, contudo, no fato de o trabalho de interpretação não ser
aplicado ao sonho como um todo, mas a cada parcela independente do conteúdo do
sonho, como se o sonho fosse um conglomerado geológico em que cada fragmento de
rocha exigisse uma análise isolada. Não há dúvida de que a invenção do
método interpretativo de decifração foi sugerida por sonhos desconexos e
confusos.
Não se pode imaginar nem por um momento que
qualquer dos dois métodos populares de interpretação dos sonhos possa ser
empregado numa abordagem científica do assunto. O método simbólico é restrito
em sua aplicação e impossível de formular em linhas gerais. No caso do método
de decifração, tudo depende da confiabilidade do “código” - o livro dos sonhos
-, e quanto a isso não temos nenhuma garantia. Assim, poderíamos sentir-nos
tentados a concordar com os filósofos e psiquiatras e, à semelhança deles,
descartar o problema da interpretação dos sonhos como uma tarefa puramente
fantasiosa.
Mas descobri que não é bem assim. Fui levado a
compreender que temos aqui, mais uma vez, um daqueles casos nada incomuns em
que uma antiga crença popular, ciosamente guardada, parece estar mais próxima
da verdade que o julgamento da ciência vigente em nossos dias. Devo afirmar que
os sonhos realmente têm um sentido e que é possível ter-se um método científico
para interpretá-los.
Meu conhecimento desse método foi obtido da
seguinte maneira. Tenho-me empenhado há muitos anos (com um objetivo
terapêutico em vista) em deslindar certas estruturas psicopatológicas - fobias
histéricas, idéias obsessivas, e assim por diante. Com efeito, tenho-o feito
desde que soube, por meio de uma importante comunicação de Josef Breuer, que,
no tocante a essas estruturas (que são consideradas como sintomas patológicos),
sua decomposição coincide com sua solução. (Cf. Breuer e Freud, 1895.)
Quando esse tipo de representação patológica pode ser rastreado até os
elementos da vida mental do paciente dos quais se originou, a representação ao
mesmo tempo se desarticula, e o paciente fica livre dela. Considerando a
impotência de nossos outros esforços terapêuticos e a natureza enigmática desses
distúrbios, senti-me tentado a seguir a trilha apontada por Breuer, apesar de
todas as dificuldades, até que se chegasse a uma explicação completa. Em outra
ocasião, terei de discorrer longamente sobre a forma que esse procedimento
acabou por assumir e sobre os resultados de meus esforços. Foi no decorrer
desses estudos psicanalíticos que me deparei com a interpretação dos sonhos.
Meus pacientes assumiam o compromisso de me comunicar todas as idéias ou
pensamentos que lhes ocorressem em relação a um assunto específico; entre
outras coisas, narravam-me seus sonhos, e assim me ensinaram que o sonho pode
ser inserido na cadeia psíquica a ser retrospectivamente rastreada na memória a
partir de uma idéia patológica. Faltava então apenas um pequeno passo para se
tratar o próprio sonho como um sintoma e aplicar aos sonhos o método de
interpretação que fora elaborado para os sintomas. Devemos ter em mira a
promoção de duas mudanças nele: um aumento da atenção que ele dispensa a suas
próprias percepções psíquicas e a eliminação da crítica pela qual ele
normalmente filtra os pensamentos que lhe ocorrem. Para que ele possa
concentrar sua atenção na observação de si mesmo, é conveniente que ele se
coloque numa atitude repousante e feche os olhos. É necessário insistir
explicitamente para que renuncie a qualquer crítica aos pensamentos que
perceber. Dizemos-lhe, portanto, que o êxito da psicanálise depende de ele
notar e relatar o que quer que lhe venha à cabeça, e de não cair no erro, por
exemplo, de suprimir uma idéia por parecer-lhe sem importância ou irrelevante,
ou por lhe parecer destituída de sentido. Ele deve adotar uma atitude
inteiramente imparcial perante o que lhe ocorrer, pois é precisamente sua
atitude crítica que é responsável por ele não conseguir, no curso habitual das
coisas, chegar ao desejado deslindamento de seu sonho, ou de sua idéia
obsessiva, ou seja lá o que for.
Tenho observado, em meu trabalho psicanalítico,
que todo o estado de espírito de um homem que esteja refletindo é inteiramente
diferente do de um homem que esteja observando seus próprios processos
psíquicos. Na reflexão, há em funcionamento uma atividade psíquica a mais do
que na mais atenta auto-observação, e isso é demonstrado, entre outras coisas,
pelos olhares tensos e o cenho franzido da pessoa que esteja acompanhando suas
reflexões, em contraste com a expressão repousada de um auto-observador. Em
ambos os casos, a atenção deve ser concentrada, mas o homem que está
refletindo exerce também sua faculdade crítica; isso o leva a rejeitar
algumas das idéias que lhe ocorrem após percebê-las, a interromper outras
abruptamente, sem seguir os fluxos de pensamento que elas lhe desvendariam, e a
se comportar de tal forma em relação a mais outras que elas nunca chegam a se
tornar conscientes e, por conseguinte, são suprimidas antes de serem
percebidas. O auto-observador, por outro lado, só precisa dar-se o trabalho de
suprimir sua faculdade crítica. Se tiver êxito nisso, virão a sua consciência
inúmeras idéias que, de outro modo, ele jamais conseguiria captar. O material
inédito assim obtido para sua autopercepção possibilita interpretar tanto suas
idéias patológicas como suas estruturas oníricas. O que está em questão,
evidentemente, é o estabelecimento de um estado psíquico que, em sua distribuição
da energia psíquica (isto é, da atenção móvel), tem alguma analogia com o
estado que precede o adormecimento - e, sem dúvida, também com a hipnose. Ao
adormecermos, surgem “representações involuntárias”, graças ao relaxamento de
certa atividade deliberada (e, sem dúvida também crítica) a que permitimos
influenciar o curso de nossas representações enquanto estamos acordados.
(Costumamos atribuir esse relaxamento à “fadiga”.) À medida que emergem, as
representações involuntárias transformam-se em imagens visuais e acústicas.
(Cf. as observações de Schleiermacher e outros, citados em [1] [e [2]].)
No estado utilizado para a análise dos sonhos e das idéias patológicas, o
paciente, de forma intencional e deliberada, abandona essa atividade e emprega
a energia psíquica assim poupada (ou parte dela) para acompanhar com atenção os
pensamentos involuntários que então emergem, e que - e nisso a situação difere
da situação do adormecimento - retêm o caráter de representações. Dessa
forma, as representações “involuntárias” são transformadas em “voluntárias”.
A adoção da atitude de espírito
necessária perante idéias que parecem surgir “por livre e espontânea vontade”,
bem como o abandono da função crítica que normalmente atua contra elas parecem
ser difíceis de conseguir para algumas pessoas. Os “pensamentos involuntários”
estão aptos a liberar uma resistência muito violenta, que procura impedir seu
surgimento. A confiar no grande poeta e filósofo Friedrich Schiller, contudo, a
criação poética deve exigir uma atitude exatamente semelhante. Num trecho de
sua correspondência com Körner - temos que agradecer a Otto Rank por tê-la
descoberto - Schiller (escrevendo em 1º de dezembro de 1788) responde à queixa
que lhe faz o amigo a respeito da produtividade insuficiente: “O fundamento de
sua queixa parece-me residir na restrição imposta por sua razão a sua
imaginação. Tornarei minha idéia mais concreta por meio de um símile. Parece
ruim e prejudicial para o trabalho criativo da mente que a Razão proceda a um
exame muito rigoroso das idéias à medida que elas vão brotando - na própria
entrada, por assim dizer. Encarado isoladamente, um pensamento pode parecer
muito trivial ou muito absurdo, mas pode tornar-se importante em função de
outro pensamento que suceda a ele, e, em conjunto com outros pensamentos que
talvez pareçam igualmente absurdos, poderá vir a formar um elo muito eficaz. A
Razão não pode formar qualquer opinião sobre tudo isso, a menos que retenha o
pensamento por tempo suficiente para examiná-lo em conjunto com os outros. Por
outro lado, onde existe uma mente criativa, a Razão - ao que me parece - relaxa
sua vigilância sobre os portais, e as idéias entram precipitadamente, e só
então ela as inspeciona e examina como um grupo. - Vocês, críticos, ou como
quer que se denominem, ficam envergonhados ou assustados com as mentes
verdadeiramente criativas, e cuja duração maior ou menor distingue o artista
pensante do sonhador. Vocês se queixam de sua improdutividade porque rejeitam
cedo demais e discriminam com excessivo rigor.”
Não obstante, o que Schiller descreve como o
relaxamento da vigilância nos portais da Razão, a adoção de uma atitude de
auto-observação acrítica, de modo algum é difícil. A maioria de meus pacientes
a consegue após as primeiras instruções. Eu mesmo o faço de forma bem completa,
ajudado pela anotação de minhas idéias à medida que elas me ocorrem. O volume
de energia psíquica em que é possível reduzir a atividade crítica e aumentar a
intensidade de auto-observação varia de modo considerável, conforme o assunto
em que se esteja tentando fixar a atenção.
Nosso primeiro passo no emprego desse método
nos ensina que o que devemos tomar como objeto de nossa atenção não é o sonho
como um todo, mas partes separadas de seu conteúdo. Quando digo ao paciente
ainda novato: “Que é que lhe ocorre em relação a esse sonho?”, seu horizonte
mental costuma transformar-se num vazio. No entanto, se colocar diante dele o
sonho fracionado, ele me dará uma série de associações para cada fração, que
poderiam ser descritas como os “pensamentos de fundo” dessa parte específica do
sonho. Assim, o método de interpretação dos sonhos que pratico já difere, nesse
primeiro aspecto importante, do popular, histórico e legendário método de
interpretação por meio do simbolismo, aproximando-se do segundo método, ou
método de “decifração”. Como este, ele emprega a interpretação en détail
e não en masse; como este, considera os sonhos, desde o início, como
tendo um caráter múltiplo, como sendo conglomerados de formações psíquicas.
[Ver em [1] e [2].]
No decorrer de minhas psicanálises de
neuróticos já devo ter analisado mais de mil sonhos; mas não me proponho
utilizar esse material nesta introdução à técnica e à teoria da interpretação
do sonho. Além do fato de que essa alternativa estaria sujeita à objeção de que
esses são sonhos de neuropatas, dos quais não se poderia extrair nenhuma
inferência válida quanto aos sonhos das pessoas normais, há um outro motivo bem
diferente que me impõe essa decisão. O assunto a que levam esses sonhos de meus
pacientes e sempre, por certo, a história clínica subjacente a suas neuroses.
Cada sonho exigiria portanto, uma longa introdução e uma investigação da
natureza e dos determinantes etiológicos das psiconeuroses. Mas essas questões
constituem novidades em si mesmas e são altamente desconcertantes, e desviaram
a atenção do problema dos sonhos. Ao contrário, é minha intenção utilizar
minha atual elucidação dos sonhos como um passo preliminar no sentido de
resolver os problemas mais difíceis da psicologia das neuroses. Todavia, ao
abir mão de meu material principal, os sonhos de meus pacientes neuróticos, não
devo ser muito exigente quanto ao que me resta. Tudo o que resta são tais
sonhos que me foram relatados de tempos em tempos por pessoas normais de minhas
relações, e outros como os que foram citados como exemplos na literatura que
trata da vida onírica. Infelizmente, porém, nenhum desses sonhos é acompanhado
pela análise, sem a qual não posso descobrir o sentido de um sonho. Meu método
não é tão cômodo quanto o método popular de decifração, que traduz qualquer
parte isolada do conteúdo do sonho por meio de um código fixo. Pelo contrário,
estou pronto a constatar que o mesmo fragmento de um conteúdo pode ocultar um
sentido diferente quando ocorre em várias pessoas ou em vários contextos.
Assim, dá-se que sou levado aos meus próprios sonhos, que oferecem um material
abundante e conveniente, oriundo de uma pessoa mais ou menos normal e
relacionado com múltiplas circunstâncias da vida cotidiana. É certo que
depararei com dúvidas quanto à confiabilidade desse tipo de “auto-análises”, e
hão de me dizer que elas deixam a porta aberta a conclusões arbitrárias. Em meu
julgamento, a situação é de fato mais favorável no caso da auto-observação
do que na observação de outras pessoas; seja como for, podemos fazer a
experiência e verificar até que ponto a auto-análise nos leva na interpretação
dos sonhos. Mas tenho outras dificuldades a superar, que estão dentro de mim
mesmo. Há uma certa hesitação natural em revelar tantos fatos íntimos sobre
nossa própria vida mental, e não pode haver qualquer garantia contra a
interpretação errônea por parte dos estranhos. Mas deve ser possível vencertais
hesitações. “Tout psychologiste”, escreve Delboeuf [1885], “est obligé de
faire l’aveu même de ses faiblesses s’il croit par là jeter du jour sur quelque
problème obscur.” E é correto presumir que também meus leitores logo
verão seu interesse inicial nas indiscrições que estou fadado a cometer
transformado num interessante mergulho nos problemas psicológicos sobre os
quais elas lançam luz.
Por conseguinte, passarei a escolher um de meus
próprios sonhos e, com base nele, demonstrarei meu método de interpretação. No
caso de cada um desses sonhos, far-se-ão necessárias algumas observações à
guisa de preâmbulo. - E agora devo pedir ao leitor que faça dos meus interesses
os seus próprios por um período bastante longo, e que mergulhe comigo nos
menores detalhes de minha vida, pois esse tipo de transferência é
obrigatoriamente exigido por nosso interesse no sentido oculto dos sonhos.
PREÂMBULO
No verão de 1895, eu vinha prestando tratamento
psicanalítico a uma jovem senhora que mantinha laços muito cordiais de amizade
comigo e com minha família. É fácil compreender que uma relação mista como essa
pode constituir uma fonte de muitos sentimentos conturbados no médico, em
particular no psicoterapeuta. Embora o interesse pessoal do médico seja maior,
sua autoridade é menor; qualquer fracasso traz uma ameaça à amizade há muito
estabelecida com a família do paciente. Esse tratamento terminara com êxito
parcial; a paciente ficara livre de sua angústia histérica, mas não perdera
todos os sintomas somáticos. Nessa ocasião, eu ainda não discernia com muita
clareza quais eram os critérios indicativos de que um caso clínico de histeria
estava afinal encerrado, e havia proposto à paciente uma solução que ela não
parecia disposta a aceitar. Enquanto estávamos nessa discordância,
interrompemos o tratamento durante as férias de verão. - Certo dia, recebi a
visita de um colega mais novo na profissão, um de meus mais velhos amigos, que
estivera com minha paciente, Irma, e sua família, em sua casa de campo.
Perguntei-lhe como a achara e ele me respondeu: “Está melhor, mas não
inteiramente boa.” Tive consciência de que as palavras de meu amigo Otto, ou o
tom em que as proferiu, me aborreceram. Imaginei ter identificado nelas uma
recriminação como no sentido de que eu teria prometido demais à paciente; e,
com ou sem razão, atribui o suposto fato de Otto estar tomando partido contra mim
à influência dos parentes de minha paciente, que, como me parecia, nunca haviam
olhado o tratamento com bons olhos. Entretanto, minha impressão desagradável
não me ficou clara e não externei nenhum sinal dela. Na mesma noite, redigi o
caso clínico de Irma, com a idéia de entregá-lo ao Dr. M. (um amigo comum que,
na época, era a principal figura de nosso círculo), a fim de me justificar. Naquela
noite (ou na manhã seguinte, como é mais provável), tive o seguinte sonho, que
anotei logo ao acordar.
SONHO DE 23-24 DE JULHO DE 1895
Um grande salão - numerosos convidados a quem
estávamos recebendo. - Entre eles estava Irma. No mesmo instante, puxei-a de
lado, como que para responder a sua carta e repreendê-la por não ter ainda
aceitado minha “solução”. Disse-lhe: “Se você ainda sente dores, é realmente
apenas por culpa sua.” Respondeu ela: “Ah! se o senhor pudesse imaginar as
dores que sinto agora na garganta, no estômago e no abdômen… - isto está me
sufocando.” - Fiquei alarmado e olhei para ela. Parecia pálida e
inchada. Pensei comigo mesmo que, afinal de contas, devia estar deixando de
perceber algum distúrbio orgânico. Levei-a até a janela e examinei-lhe a
garganta, e ela deu mostras de resistências, como fazem as mulheres com
dentaduras postiças. Pensei comigo mesmo que realmente não havia necessidade de
ela fazer aquilo. - Em seguida, ela abriu a boca como devia e, no lado direito,
descobri uma grande placa branca; em outro lugar, vi extensascrostas
cinza-esbranquiçadas sobre algumas notáveis estruturas recurvadas, que tinham
evidentemente por modelo os ossos turbinados do nariz. - Chamei imediatamente o
Dr. M., e ele repetiu o exame e o confirmou… O Dr. M. tinha uma aparência muito
diferente da habitual; estava muito pálido, claudicava e tinha o queixo
escanhoado… Meu amigo Otto estava também agora de pé ao lado dela, e meu amigo
Leopold a auscultava através do corpete e dizia: “Ela tem uma área surda bem
embaixo, à esquerda.” Indicou também que parte da pele do ombro esquerdo estava
infiltrada. (Notei isso, tal como ele fizera, apenas do vestido.)… M. disse:
“Não há dúvida de que é uma infecção, mas não tem importância; sobrevirá uma
disenteria, e a toxina será eliminada.”… Tivemos também pronta consciência da
origem da infecção. Não muito antes, quando ela não estava se sentindo bem, meu
amigo Otto lhe aplicara uma injeção de um preparado de propil, propilos… ácido
propiônico… trimetilamina (e eu via diante de mim a fórmula desse preparado,
impressa em grossos caracteres)… Injeções como essas não deveriam ser aplicadas
de forma tão impensada… E, provavelmente, a seringa não estava limpa.
Esse sonho tem uma vantagem sobre muitos
outros. Ficou logo claro quais os fatos do dia anterior que haviam fornecido
seu ponto de partida. Meu preâmbulo torna isso evidente. A notícia que Otto me
dera sobre o estado de Irma e o caso clínico que eu me empenhara em redigir até
altas horas da noite haviam continuado a ocupar minha atividade mental mesmo
depois de eu adormecer. Não obstante, ninguém que tivesse apenas lido o
preâmbulo e o próprio conteúdo do sonho poderia ter a menor idéia do que este
significava. Eu mesmo não fazia nenhuma idéia. Fiquei atônito com os sintomas
de que Irma se queixou comigo no sonho, já que não eram os mesmos pelos quais
eu a havia tratado. Sorri ante a idéia absurda de uma injeção de ácido
propiônico e ante as reflexões consoladoras do Dr. M. Em sua parte final, o
sonho me pareceu mais obscuro e condensado do que no início. Para descobrir o
sentido de tudo isso, foi necessário proceder a uma análise detalhada.
ANÁLISE
O salão - numerosos convidados a quem estávamos
recebendo.
Passávamos aquele verão em Bellevue, numa casa que se erguia sozinha numa
das colinas contíguas a Kahlenberg. A casa fora anteriormente projetada
como um local de entretenimento e, por conseguinte, suas salas de recepção eram
inusitadamente altas e semelhantes a grandes salões. Foi em Bellevue que tive o
sonho, poucos dias antes do aniversário de minha mulher. Na véspera, ela me
dissera que esperava que alguns amigos, inclusive Irma, viessem visitar-nos no
dia de seu aniversário. Assim, meu sonho estava prevendo essa ocasião: era
aniversário de minha mulher, e diversos convidados, inclusive Irma, estavam
sendo recebidos por nós no grande salão de Bellevue.
Repreendi Irma por não haver aceito minha
solução; disse: “Se você ainda sente dores, a culpa é sua.” Poderia ter-lhe dito
isso na vida de vigília, e talvez o tenha realmente feito. Era minha opinião,
na época (embora desde então a tenha reconhecido como errada), que minha tarefa
estava cumprida no momento em que eu informava ao paciente o sentido oculto de
seus sintomas: não me considerava responsável por ele aceitar ou não a solução
- embora fosse disso que dependia o sucesso. Devo a esse erro, que agora
felizmente corrigi, o fato de minha vida ter-se tornado mais fácil numa ocasião
em que, apesar de toda a minha inevitável ignorância, esperava-se que eu
produzisse sucessos terapêuticos. - Notei, contudo, que as palavras que dirigi
a Irma no sonho indicavam que eu estava especialmente aflito por não ser
responsável pelas dores que ela ainda sentia. Se fossem culpa dela, não
poderiam ser minha culpa. Seria possível que a finalidade do sonho tivesse esse
sentido.
Queixa de Irma: dores na garganta, abdômen e
estômago; isso a estava sufocando. As dores de estômago estavam entre os
sintomas de minha paciente, mas não tinham muito destaque; ela se queixava mais
de sensações de náusea e repulsa. As dores na garganta e no abdômen, assim como
a constrição da garganta, quase não participavam de sua doença. Fiquei sem
saber porque teria optado pela escolha desses sintomas no sonho, mas não pude
pensar numa explicação no momento.
Ela parecia pálida e inchada. Minha paciente sempre
tivera uma aparência corada. Comecei a desconfiar que ela estivesse
substituindo outra pessoa.
Fiquei alarmado com a idéia de não haver
percebido alguma doença orgânica. Isso, como bem se pode acreditar, constitui
uma fonte perene de angústia para um especialista cuja clínica é quase que
limitada a pacientes neuróticos e que tem o hábito de atribuir à histeria um
grande número de sintomas que outros médicos tratam como orgânicos. Por outro
lado, uma ligeira dúvida infiltrou-se em minha mente - vinda não sei de onde -
no sentido de que meu receio não era inteiramente autêntico. Se as dores de
Irma tivessem uma base orgânica, também nesse aspecto eu não poderia ser
responsabilizado por sua cura; meu tratamento visava apenas a eliminar as dores
histéricas. Ocorreu-me, de fato, que eu estava realmente desejando
que tivesse havido um diagnóstico errado, pois, se assim fosse, a culpa por
minha falta de êxito também estaria eliminada.
Levei-a até à janela para examinar-lhe a
garganta. Ela mostrou alguma resistência, como fazem as mulheres com dentaduras
postiças. Pensei comigo mesmo que realmente não havia necessidade de ela fazer
aquilo.
Eu nunca tivera nenhuma oportunidade de examinar a cavidade bucal de Irma. O
que ocorreu no sonho fez-me lembrar um exame que eu efetuara algum tempo antes
numa governanta: à primeira vista, ela parecera a imagem da beleza juvenil,
mas, quando chegou o momento de abrir a boca, ela tomou providências para
ocultar suas chapas. Isso levou a lembranças de outros médicos e de pequenos
segredos revelados no decurso dos mesmos - sem que isso satisfizesse a nenhuma
das partes. “Não havia realmente necessidade de ela fazer aquilo”
tencionava, sem dúvida, em primeiro lugar, ser um cumprimento a Irma; mas
desconfiei de que teria outro sentido além desse. (Quando se procede
atentamente a uma análise, tem-se a sensação de haver ou não esgotado todos os
pensamentos antecedentes esperáveis.) A forma pela qual Irma postou-se à janela
me fez de repente recordar outra experiência. Irma tinha uma amiga íntima de
quem eu fazia uma opinião muito elevada. Quando visitei essa senhora certa
noite, encontrei-a perto de uma janela na situação reproduzida no sonho, e seu
médico, o mesmo Dr. M., dissera que ela apresentava uma membrana diftérica. A
figura do Dr. M. e a membrana reaparecem posteriormente no sonho. Ocorreu-me
então que, nos últimos meses, eu tivera todos os motivos para supor que essa
outra senhora também fosse histérica. Na verdade, a própria Irma me revelara
involuntariamente esse fato. Que sabia eu de seu estado? Uma coisa,
precisamente: que, tal como a Irma de meu sonho, ela sofria de sufocação
histérica. Assim, no sonho, eu substituíra minha paciente por sua amiga.
Recordei-me, então, de que muitas vezes me entretivera com a idéia de que
também ela pudesse pedir-me que a aliviasse de seus sintomas. Eu próprio,
contudo, julgara isso improvável,visto que ela era de natureza muito reservada.
Era resistente, como apareceu no sonho. Outra razão era que não havia
necessidade de ela fazer aquilo: até então, mostrara-se forte o bastante
para manejar seu estado sem nenhuma ajuda externa. Restavam ainda algumas
características que eu não podia atribuir nem a Irma, nem a sua amiga: pálida;
inchada; dentes postiços. Os dentes postiços levaram-me à governanta que já
mencionei; sentia-me agora inclinado a me contentar com dentes estragados.
Pensei então numa outra pessoa à qual essas características poderiam estar
aludindo. Mais uma vez, não se tratava de uma das minhas pacientes, nem eu
gostaria de tê-la como tal, pois havia observado que ela ficava acanhada em minha
presença e não achava que pudesse vir a ser uma paciente acessível. Era
geralmente pálida, e certa vez, quando estava gozando de ótima saúde, parecera
inchada. Portanto, eu estivera comparando minha paciente Irma com duas
outras pessoas que também teriam sido resistentes ao tratamento. Qual poderia
ter sido a razão de eu a haver trocado, no sonho, por sua amiga? Talvez fosse
porque eu teria gostado de trocá-la: talvez sentisse mais simpatia por
sua amiga, ou tivesse uma opinião mais elevada sobre a inteligência dela, pois
Irma me parecera tola por não haver aceito minha solução. Sua amiga teria sido
mais sensata, isto é, teria cedido mais depressa. Assim, teria aberto a
boca como devia e me dito mais coisas do que Irma.
O que vi em sua garganta: uma placa branca e os
ossos turbinados recobertos de crostas. A placa branca fez-me recordar a difterite e
tudo mais da amiga de Irma, mas também uma doença grave de minha filha mais
velha, quase dois anos antes, e o susto por que passei naqueles dias aflitivos.
As crostas nos ossos turbinados fizeram-me recordar uma preocupação sobre meu
próprio estado de saúde. Nessa época, eu vinha fazendo uso freqüente da cocaína
para reduzir algumas incômodas inchações nasais, e ficara sabendo alguns dias
antes que uma de minhas pacientes, que seguira meu exemplo,desenvolvera uma
extensa necrose da membrana mucosa nasal. Eu fora o primeiro a recomendar o
emprego da cocaína, em 1885, e essa recomendação trouxera sérias
recriminações contra mim. O uso indevido dessa droga havia apressado a morte de
um grande amigo meu. Isso ocorrera antes de 1895 [a data do sonho].
Chamei imediatamente o Dr. M., e ele repetiu o
exame.
Isso correspondia simplesmente à posição ocupada por M. em nosso círculo. Mas
o “imediatamente” foi curioso o bastante para exigir uma explicação
especial. Fez-me lembrar um evento trágico em minha clínica. Certa feita,
eu havia provocado um grave estado tóxico numa paciente, receitando
repetidamente o que, na época, era considerado um remédio inofensivo
(sulfonal), e recorrera às pressas à assistência e ao apoio de meu colega mais
experiente. Havia um detalhe adicional que confirmou a idéia de que eu tinha
esse incidente em mente. Minha paciente - que sucumbiu ao veneno - tinha o
mesmo nome que minha filha mais velha. Isso nunca me ocorrera antes, mas me
pareceu agora quase que um ato de retaliação do destino. Era como se a
substituição de uma pessoa por outra devesse prosseguir noutro sentido: esta
Mathilde por aquela Mathilde, olho por olho e dente por dente. Era como se eu
viesse coligindo todas as ocasiões de que podia me acusar como prova de falta
de conscienciosidade médica.
O Dr. M. estava pálido, tinha o queixo bem
escanhoado e claudicava ao andar. Isso era verdade apenas na medida em que sua
aparência doentia costumava deixar aflitos os seus amigos. As duas outras
características só podiam aplicar-se a outra pessoa. Pensei em meu irmão mais
velho, que mora no exterior, tem o rosto escanhoado e com quem, se bem me
recordo, o M. do sonho se parecia muito. Tínhamos recebido notícias, alguns
dias antes, de que ele estava puxando de uma perna em virtude de uma infecção
artrítica no quadril. Devia ter havido alguma razão, refleti, para que eu
fundisse essas duas figuras numa só no sonho. Lembrei-me então de que tinha uma
razão semelhante para estar mal-humorado com cada um deles: ambos haviam
rejeitado certa sugestão que eu lhes fizera havia pouco tempo.
Meu amigo Otto estava agora de pé ao lado da
paciente, e meu amigo Leopold a examinava e indicava que havia uma área surda
bem abaixo, à esquerda. Meu amigo Leopold era também médico e parente de Otto.
Como ambos se haviam especializado no mesmo ramo da medicina, era seu destino
competirem um com o outro, e freqüentemente se traçavam comparações entre eles.
Ambos haviam trabalhado como meus assistentes durante anos, quando eu ainda
chefiava o departamento de neurologia para pacientes externos de um hospital
infantil. Cenas como a representada no sonho muitas vezes ocorreram ali.
Enquanto eu discutia o diagnóstico de um caso com Otto, Leopold examinava a
criança mais uma vez e fazia alguma contribuição inesperada para nossa decisão.
A diferença entre o caráter de ambos era como a existente entre o meirinho Bräsig
e seu amigo Karl: um se destacava por sua rapidez, ao passo que o outro era
lento, porém seguro. Se no sonho eu estabelecia um contraste entre Otto e o
prudente Leopold, evidentemente o fazia em favor do segundo. A comparação era
semelhante à que eu fazia entre minha desobediente paciente Irma e sua amiga,
que eu considerava mais sensata do que ela. Percebia então outra das linhas ao
longo das quais se ramificava a cadeia de pensamentos no sonho: da criança
doente para o hospital infantil. - A área surda bem abaixo, à esquerda
parecia-me coincidir em todos os detalhes com um caso específico em que Leopold
me impressionara por sua meticulosidade. Tive também uma idéia vaga sobre algo
da ordem de uma afecção metastática, mas isso também pode ter sido uma
referência à paciente que eu gostaria de ter em lugar de Irma. Até onde eu
pudera julgar, ela havia produzido uma imitação de tuberculose.
Uma parte da pele do ombro esquerdo estava
infiltrada.
Vi imediatamente que isso era o reumatismo em meu próprio ombro, que observo
invariavelmente quando fico acordado até altas horas da noite. Além disso, as
palavras do sonho eram muito ambíguas: “Notei isso, tal como ele…” Ou
seja, notei-o em meu próprio corpo. Impressionou-me também o enunciado incomum:
“uma parte da pele estava infiltrada”. Estamos habituados a falar em “infiltração
póstero-superior esquerda”, o que se referia ao pulmão e, portanto, mais uma
vez, à tuberculose.
Apesar de seu vestido. Isso, de qualquer
modo, fora apenas uma interpolação. Naturalmente, costumávamos examinar as
crianças no hospital despidas: e isso seria um contraste com a maneira como as
pacientes adultas têm de ser examinadas. Lembrei que se dizia de um famoso
clínico que ele jamais fizera um exame físico de seus pacientes a não ser
através das roupas. Não consegui ver nada além disso. E francamente, não senti
nenhum desejo de penetrar mais a fundo nesse ponto.
O Dr. M. disse: “É um infecção, mas não tem
importância. Sobrevirá uma disenteria e a toxina será eliminada.” A princípio, isso me
pareceu ridículo. Não obstante, como todo o resto, tinha de ser analisado com
cuidado. Quando passei a investigar mais de perto, pareceu-me ter uma espécie
de sentido, apesar de tudo. O que descobri na paciente foi uma difterite local.
Lembrei-me de uma discussão, na época da doença de minha filha, sobre difterite
e difteria, sendo esta a infecção geral que decorre da difterite local. Leopold
indicara a presença de uma infecção geral dessa natureza a partir da existência
de uma área surda, que assim poderia ser considerada como um foco metastático.
Eu parecia pensar, é verdade, que essas metástases de fato não ocorrem com a
difteria: aquilo me fazia pensar, ante, em piemia.
Não tem importância. Isso foi dito como
consolo. Parecia ajustar-se da seguinte forma no contexto: o conteúdo da parte
procedente do sonho fora que as dores de minha paciente eram decorrentes de uma
grava infecção orgânica. Tive a sensação de que, dessa maneira, eu estava
apenas tentando desviar a culpa de mim mesmo. O tratamento psicológico não
podia ser responsabilizado pela persistência de dores diftéricas. Não obstante,
experimentei uma sensação de constrangimento por ter inventado uma moléstia tão
grave para Irma, apenas para me inocentar. Parecia cruel demais. Assim,
precisava de uma certeza de que no fim tudo ficaria bem, e me pareceu que
colocar as palavras de consolo precisamente na boca do Dr. M. não fora má
escolha. Assim sendo, porém, eu estava adotando uma atitude superior em relação
ao sonho, e isso, por si só exigia explicação.
E por que o consolo era tão disparatado?
Disenteria. Parecia haver alguma idéia teórica
remota de que o material mórbido pode ser eliminado pelos intestinos. Seria
possível que eu estivesse tentando zombar do espírito fértil do Dr. M. na
produção de explicações artificiais e no estabelecimento de ligações
patológicas inesperadas? Ocorreu-me então outra coisa relacionada com a
disenteria. Alguns meses antes, eu aceitara o caso de um rapaz com extremas
dificuldades associadas à defecação, que fora tratado por outros médicos como
um caso de “anemia acompanhada de desnutrição”. Eu havia identificado o caso
como histeria,mas não me sentira disposto a tentar nele meu tratamento
psicoterápico e o mandara fazer uma viagem marítima. Alguns dias antes,
recebera dele uma carta desesperadora, enviada do Egito, dizendo que ali tivera
um novo ataque e que um médico declarara tratar-se de disenteria. Suspeitei que
o diagnóstico fosse um erro, por parte de um clínico inexperiente que se
deixara enganar pela histeria. Mas não pude deixar de me recriminar por haver
colocado meu paciente numa situação em que poderia ter contraído algum mal
orgânico além de seu distúrbio intestinal histérico. Além disso,
“disenteria” não soa muito diferente de “difteria” - palavra de mau agouro que
não ocorreu no sonho.
Sim, pensei comigo mesmo, devo ter zombado do
Dr. M. por meio do prognóstico consolador: “Sobreviverá uma disenteria etc.”,
pois voltou a me ocorrer que, anos antes, ele próprio me contara uma história
divertida de natureza semelhante sobre outro médico. O Dr. M. fora convocado
por ele para dar um parecer sobre um paciente gravemente enfermo, e se sentira
obrigado a salientar, em virtude da visão muito otimista assumida por seu
colega, que encontrara albumina na urina do paciente. O outro, porém, não se dera
absolutamente por achado: “Não tem importância”, dissera, “a albumina
logo será eliminada!” - Não pude mais sentir nenhuma dúvida, portanto, de que
essa parte do sonho expressava desprezo pelos médicos que não conhecem a
histeria. E, como que para confirmar isso, outra idéia cruzou-me a mente: “Será
que o Dr. M. se apercebe de que os sintomas de sua paciente (a amiga de Irma)
que dão margem ao fervor da tuberculose também têm uma base histérica? Terá ele
identificado essa histeria? Ou será que se deixou levar por ela?”
Mas qual poderia ser minha motivação para
tratar tão mal esse meu amigo? A questão era muito simples. O Dr. M. concordava
tão pouco com minha “solução” quanto a própria Irma. Assim, nesse sonho eu já
me havia vingado de duas pessoas: de Irma, com as palavras “Se você ainda sente
dores, a culpa é toda sua”, e do Dr. M., com o enunciado do consolo absurdo que
pus em sua boca.
Tivemos pronta consciência da origem da
infecção.
Esse conhecimento instantâneo no sonho foi notável. Só que, pouco antes, não
tínhamos tido nenhum conhecimento disso, pois a infecção só foi revelada por
Leopold.
Quando ela não estava se sentindo bem, meu
amigo Otto lhe aplicara uma injeção. Otto efetivamente me contara que, durante sua
curta estada com a família de Irma, fora chamado a um hotel das imediações para
aplicar uma injeção em alguém que de repente se sentira mal. Essas injeções me
fizeram recordar mais uma vez meu infeliz amigo que se envenenara com cocaína
[ver em [1]]. Eu o havia aconselhado a só usar a droga internamente
[isto é, por via oral], enquanto a morfina era retirada; mas ele de imediato se
aplicara injeções de cocaína.
Um preparado de propil… propilos… ácido
propiônico.
Como teria eu chegado a pensar nisso? Na noite anterior, antes de eu redigir o
caso clínico e ter o sonho, minha mulher abrira uma garrafa de licor na qual
aparecia a palavra “Ananas” e que fora um presente de nosso amigo Otto,
pois ele tem o hábito de dar presentes em todas as ocasiões possíveis. Seria
de esperar, pensei comigo mesmo, que ele algum dia encontrasse uma esposa para
curá-lo desse hábito. O licor exalava um cheiro tão acentuado de álcool
amílico que me recusei a tocá-lo. Minha mulher sugeriu que déssemos a garrafa
aos criados, mas eu - com prudência ainda maior - vetei a sugestão,
acrescentando, com espírito filantrópico, que não havia necessidade de eles
serem envenenados tampouco. O cheiro do álcool amílico (amil…) evidentemente
avivou em minha mente a lembrança de toda a seqüência - propil, metil, e assim
por diante - e isso explicava o preparado propílico no sonho. É verdade que
efetuei uma substituição no processo: sonhei com propilo depois de ter cheirado
amila. Mas as substituições dessa natureza talvez sejam válidas na química
orgânica.
Trimetilamina. Vi a fórmula química dessa substância
em meu sonho, o que testemunha um grande esforço por parte de minha memória.
Além disso, a fórmula estava impressa em negrito, como se tivesse havido um
desejo de dar ênfase a alguma parte do contexto como algo de importância muito especial.
Para que era, então, que minha atenção deveria ser assim dirigida pela
trimetilamina? Para uma conversa com um outro amigo, que há muitos anos se
familiarizara com todos os meus escritos, durante a fase em que eram gerados,
tal como eu me familiarizara com os dele. Na época, ele me havia confiado
algumas idéias sobre a questão da química dos processos sexuais e mencionara,
entre outras coisas, acreditar que um dos produtos do metabolismo sexual era a
trimetilamina. Assim, essa substância me levava à sexualidade, fator ao qual eu
atribuía máxima importância na origem dos distúrbios nervosos cuja cura era o
meu objetivo. Minha paciente, Irma, era uma jovem viúva; se eu quisesse
encontrar uma desculpa para o fracasso de meu tratamento em seu caso, aquilo a
que melhor poderia recorrer era, sem dúvida, o fato de sua viuvez, que os
amigos dela ficariam tão contentes em ver modificado. E de que modo quão
estranho, pensei comigo, um sonho como esse se concatena! A outra mulher que eu
tinha como paciente no sonho em lugar de Irma, era também uma jovem viúva.
Comecei a imaginar por que a fórmula de
trimetilamina teria sido tão destacada no sonho. Numerosos assuntos importantes
convergiam para aquela única palavra. A trimetilamina era uma alusão não só ao
fator imensamente poderoso da sexualidade, como também a uma pessoa cuja
concordância eu recordava com prazer sempre que me sentia isolado em minhas
opiniões. Com certeza esse amigo, que desempenhou papel tão relevante em minha
vida, deveria reaparecer em outros pontos desses fluxos de pensamentos. Sim,
pois ele tinha um conhecimento especial das conseqüências das afecções do nariz
e de suas cavidades acessórias, e chamara a atenção do mundo científico para
algumas notáveis relações entre os ossos tribunais e os órgãos sexuais
femininos. (Cf. as três estruturas recurvadas na garganta de Irma.) Eu
tomara providências para que Irma fosse examinada por ele, para ver se suas
dores gástricas poderiam ser de origem nasal. Mas ele próprio sofria de rinite
supurativa, o que me causava angústia; e houve sem dúvida uma alusão a isso na
piemia que me ocorreu vagamente em relação às metástases do sonho.
Injeções como essas não deveriam ser aplicadas
de forma tão impensada. Aqui, uma acusação de irreflexão era feita diretamente contra
meu amigo Otto. Pareceu-me recordar ter pensado em qualquer coisa da mesma
natureza naquela tarde, quando as palavras e a expressão dele pareceram
demonstrar que estava tomando partido contra mim. Fora uma idéia mais ou menos
assim: “Com que facilidade os pensamentos dele são influenciados! Com que
descaso ele tira conclusões apressadas!” - Independentemente disso, essa frase
no sonho lembrou-me mais uma vez meu amigo morto, que com tanta pressa
recorrera a injeções de cocaína. Como já tive ocasião de dizer, eu nunca havia
considerado a idéia de que a droga fosse ministrada por injeções. Notei também
que, ao acusar Otto de irreflexão no manuseio de substâncias químicas, eu
estava mais uma vez aludindo a história da infeliz Mathilde, que dera margem à mesma
acusação contra mim. Aqui, eu estava evidentemente reunindo exemplos de minha
conscienciosidade, mas também do inverso.
E, provavelmente, a seringa não estava limpa. Essa era mais uma
acusação contra Otto, porém derivada de uma fonte diferente. Ocorre que, na
véspera, eu encontrara por acaso o filho de uma velhinha de oitenta e dois anos
em que eu tinha de aplicar uma injeção de morfina duas vezes ao dia. No
momento, ela se encontrava no campo e, disse-me o filho, estava sofrendo de
flebite. Eu logo pensara que deveria ser uma infiltração provocada por uma
seringa suja. Orgulhava-me do fato de, em dois anos, não haver causado uma
única infiltração; empenhava-me constantemente em me certificar de que a
seringa estava limpa. Em suma, eu era consciencioso. A flebite remeteu-me mais
uma vez a minha mulher, que sofrera de trombose durante uma das vezes em que
estava grávida, e então me vieram à lembrança três situações semelhantes,
envolvendo minha esposa, Irma e a falecida Mathilde. A identidade dessas situações
evidentemente me permitira, no sonho, substituir as três figuras entre si.
Acabo de concluir a interpretação do sonho. Enquanto a efetuava,
tive certa dificuldade em manter à distância todas as idéias que estavam
fadadas a ser provocadas pela comparação entre o conteúdo do sonho e os
pensamentos ocultos por trás dele. Entrementes, compreendi o “sentido” do
sonho. Tomei consciência de uma intenção posta em prática pelo sonho e que
deveria ter sido meu motivo para sonhá-lo. O sonho realizou certos desejos
provocados em mim pelos fatos da noite anterior (a notícia que me foi dada por
Otto e minha redação do caso clínico.) Em outras palavras, a conclusão do sonho
foi que eu não era responsável pela persistência das dores de Irma, mas sim
Otto. De fato, Otto me aborrecera com suas observações sobre a cura incompleta
de Irma, e o sonho me proporcionou minha vingança, devolvendo a reprimenda a
ele. O sonho me eximiu da responsabilidade pelo estado de Irma, mostrando que
este se devia a outros fatores - e produziu toda uma série de razões. O sonho
representou um estado de coisas específico, tal como eu desejaria que fosse. Assim,
seu conteúdo foi a realização de um desejo, e seu motivo foi um desejo.
Tudo isso saltou aos olhos. Mas, muitos dos
detalhes do sonho também se tornaram inteligíveis para mim do ponto de vista da
realização de desejos. Não só me vinguei de Otto por se apressar demais em seu
tratamento médico (ao aplicar a injeção), como também me vinguei dele por
ter-me dado o licor que tinha cheiro de álcool amílico. E, no sonho, encontrei
uma expressão que ligava as duas reprimendas: a injeção era um preparado de
propil. Isso não me satisfez, e levei minha vingança mais longe, estabelecendo
um contraste entre ele e seu concorrente mais digno de confiança. Eu parecia
estar dizendo: “Gosto mais dele que de você.” Mas Otto não foi a
única pessoa a sofrer os efeitos da minha ira. Vinguei-me também de minha
paciente desobediente, trocando-a por outra mais sensata e menos resistente.
Também não permiti que o Dr. M. escapasse às conseqüências de sua contradição,
mas lhe mostrei, por meio de uma alusão clara, que ele era um ignorante no
assunto (“Sobrevirá uma disenteria, etc.”). Com efeito, eu parecia estar
lhe voltando as costas para recorrer a alguém dotado de maiores conhecimentos
(a meu amigo que me falara de trimetilamina), tal como me voltara de Irma para
sua amiga e de Otto para Leopold. “Levem essa gente daqui! Em vez deles dêem-me
três outros de minha escolha! Então ficarei livre dessas recriminações imerecidas!”
A falta de fundamento das recriminações me foi provada no sonho de maneira
extremamente complexa. Eu não merecia a culpa pelas dores de Irma, já
que ela própria era culpada, por se recusar a aceitar minha solução. Eu
não tinha nada a ver com as dores de Irma, já que eram de natureza orgânica e
totalmente incuráveis pelo tratamento psicológico. As dores de Irma podiam ser
satisfatoriamente explicadas por sua viuvez (cf. a trimetilamina), que eu
não tinha meios de alterar. As dores de Irma tinham sido provocadas pelo fato
de Otto ter-lhe aplicado, sem a devida cautela, uma injeção de uma droga
inadequada - coisa que eu nunca teria feito. As dores de Irma eram o
resultado de uma injeção com agulha suja, tal como a flebite da velhinha de
quem eu cuidava - ao passo que eu nunca provoquei nenhum dano com minhas
injeções. Notei, é verdade, que essas explicações das dores de Irma (que
contribuíam para me isentar de culpa) não eram inteiramente compatíveis entre
si e, a rigor, eram mutuamente excludentes. Toda a apelação - pois o sonho não
passara disso - lembrava com nitidez a defesa apresentada pelo homem acusado
por um de seus vizinhos de lhe haver devolvido danificada uma chaleira tomada
de empréstimo. O acusado asseverou, em primeiro lugar, ter devolvido a chaleira
em perfeitas condições; em segundo, que a chaleira tinha um buraco quando a
tomara emprestada; e, em terceiro, que jamais pedira emprestada a chaleira a
seu vizinho. Tanto melhor: se apenas uma dessas três linhas de defesa fosse
aceita como válida, o homem teria de ser absolvido.
Alguns outros temas, que não estavam ligados de
forma tão evidente a minha absolvição pela doença de Irma, desempenharam seu
papel no sonho: a doença de minha filha e a da minha paciente do mesmo nome, o
efeito prejudicial da cocaína, o distúrbio de meu paciente que se encontrava em
viagem pelo Egito, minha preocupação com a saúde de minha mulher e de meu irmão
e do Dr. M., meus próprios males físicos, e minha aflição por meu amigo ausente
que sofria de rinite supurativa. Mas, ao considerar todas essas coisas, vi que
podiam ser todas enfeixadas num único grupo de idéias e rotuladas, por assim
dizer, como “interesse por minha própria saúde e pela saúde de outras pessoas -
conscienciosidade profissional.” Veio-me à mente a obscura impressão
desagradável que experimentara quando Otto me trouxe a notícia do estado de
Irma. Esse grupo de idéias que haviam desempenhado um papel no sonho
permitiu-me, retrospectivamente, traduzir em palavras aquela impressão
passageira. Era como se ele me houvesse dito: “Você não leva seus deveres
médicos com a devida seriedade. Você não é consciencioso; não cumpre o que se
comprometeu a fazer.” A partir daí, foi como se esse grupo de idéias se tivesse
colocado a minha disposição, para que eu pudesse apresentar provas de como eu
era extremamente consciencioso, da profundidade com que me interessava pela
saúde de meus parentes, amigos e pacientes. Foi um fato digno de nota que esse
material tenha também incluído algumas lembranças desagradáveis, que mais davam
apoio à acusação de meu amigo Otto do que a minha própria defesa. O material
era, como se poderia dizer, imparcial; mas, não obstante, havia uma ligação
inconfundível entre esse grupo mais amplo de pensamentos subjacentes ao sonho e
o tema mais restrito do sonho, que me deu margem ao desejo de ser inocentado da
doença de Irma.
Não tenho a pretensão de haver desvendado por
completo o sentido desse sonho, nem de que sua interpretação esteja sem
lacunas. Poderia dedicar muito mais tempo a ele, tirar dele outras informações
e examinar novos problemas por ele levantados. Eu próprio conheço os pontos a
partir dos quais outras linhas de raciocínio poderiam ser seguidas. Mas as
considerações que surgem no caso de cada um de meus próprios sonhos me impedem
de prosseguir em meu trabalho interpretativo. Se alguém se vir tentado a
expressar uma condenação apressada de minha reticência, recomendo-lhe que faça
a experiência de ser mais franco do que eu. No momento, estou satisfeito com a
obtenção dessa parcela de novos conhecimentos. Se adotarmos o método de
interpretação de sonhos que aqui indiquei, verificaremos que os sonhos têm
mesmo um sentido e estão longe de constituir a expressão de uma atividade
fragmentária do cérebro, como têm alegado as autoridades. Quando o
trabalho de interpretação se conclui, percebemos que o sonho é a realização de
um desejo.
Capítulo III - O SONHO É A REALIZAÇÃO DE UM DESEJO
Quando, após passarmos por um estreito
desfiladeiro, de repente emergimos num trecho de terreno elevado, onde o
caminho se divide e as mais belas vistas se desdobram por todos os lados,
podemos parar por um momento e considerar em que direção deveremos começar a
orientar nossos passos. É esse o nosso caso, agora que ultrapassamos a primeira
interpretação de um sonho. Encontramo-nos em plena luz de uma súbita
descoberta. Não se devem assemelhar os sonhos aos sons desregulados que saem de
um instrumento musical atingido pelo golpe de alguma força externa, e não
tocado pela mão de um instrumentista (ver em [1] [2]); eles não são destituídos
de sentido, não são absurdos; não implicam que uma parcela de nossa reserva de
representações esteja adormecida enquanto outra começa a despertar. Pelo
contrário, são fenômenos psíquicos de inteira validade - realizações de desejos;
podem ser inseridos na cadeia dos atos mentais inteligíveis de vigília; são
produzidos por uma atividade mental altamente complexa.
Contudo, mal começamos a nos alegrar com essa
descoberta, e já somos assaltados por uma torrente de questões. Se, como nos
diz a interpretação dos sonhos, um sonho representa um desejo realizado, qual a
origem da notável e enigmática forma em que se expressa a realização de um
desejo? Por que alteração passaram os pensamentos oníricos antes de se
transformarem no sonho manifesto que recordamos ao despertar? Como se dá essa
alteração? Qual a fonte do material que se modificou, transformando-se em
sonho? Qual a fonte das numerosas peculiaridades que se devem observar nos
pensamentos oníricos - tais como, por exemplo, o fato de poderem ser mutuamente
contraditórios? (Cf. a analogia da chaleira emprestada, em [1]). Pode um sonho
dizer-nos algo de novo sobre nossos processos psíquicos internos? Pode seu
conteúdo corrigir opiniões que sustentamos durante o dia?
Proponho que, por ora, deixemos de lado todas
essas questões e sigamos mais adiante, ao longo de um trilha específica.
Aprendemos que um sonho pode representar um desejo como realizado. Nossa
primeira preocupação deve ser indagar se esta é uma característica universal dos
sonhos, ou se, por acaso, terá sido meramente o conteúdo do sonho específico (o
sonho da injeção de Irma) que foi o primeiro a ser por nós analisado. Pois,
mesmo que estejamos dispostos a constatar que todo sonho tem um sentido e um
valor psíquico, deve permanecer em aberto a possibilidade de que esse sentido
não seja o mesmo em todos os sonhos. Nosso primeiro sonho foi a realização de
um desejo; um segundo poderia revelar-se como um temor realizado; o conteúdo de
um terceiro talvez fosse uma reflexão, ao passo que um quarto poderia apenas
reproduzir uma lembrança. Encontramos outros sonhos impregnados de desejo, além
desse? Ou será, talvez, que não há outros sonhos senão os sonhos relativos a
desejo?
É fácil provar que os sonhos muitas vezes se
revelam, sem qualquer disfarce, como realizações de desejos, de modo que talvez
pareça surpreendente que a linguagem dos sonhos não tenha sido compreendida há
muito tempo. Por exemplo, há um sonho que posso produzir em mim mesmo quantas
vezes quiser - experimentalmente, por assim dizer. Se à noite eu comer anchovas
ou azeitonas, ou qualquer outro alimento muito salgado, ficarei com sede de
madrugada, e a sede me acordará. Mas meu despertar será precedido por um sonho,
sempre com o mesmo conteúdo, ou seja, o de que estou bebendo. Sonho estar
engolindo água em grandes goles, e ela tem delicioso sabor que nada senão uma
bebida fresca pode igualar quando se está queimando de sede. Então acordo e
tenho que tomar uma bebida de verdade. Esse sonho simples é ocasionado pela sede
da qual me conscientizo ao acordar. A sede dá origem a um desejo de beber, e o
sonho me mostra esse desejo realizado. Ao fazê-lo, ele executa uma função - que
seria fácil adivinhar. Durmo bem e não costumo ser acordado por nenhuma
necessidade física. Quando consigo aplacar minha sede sonhando que estou
bebendo, não preciso despertar para saciá-la. Esse é, portanto, um sonho de
conveniência. O sonhar toma o lugar da ação, como o faz muitas vezes em outras
situações da vida. Infelizmente, minha necessidade de água para aplacar a sede
não pode satisfazer-se num sonho da mesma forma que se satisfaz minha sede de
vingança contra meu amigo Otto e o Dr. M.; mas a boa intenção está presente em
ambos os casos. Não faz muito tempo, esse mesmo sonho meu exibiu algumas
modificações. Eu já sentira sede antes mesmo de adormecer e esvaziara um copo
d’água que estava na mesa ao lado da cama. Algumas horas depois, durante a
madrugada, tive um novo ataque de sede, e isso teve resultados inconvenientes.
Para me servir de água, eu teria de me levantar e apanhar o copo que estava na
mesa ao lado da cama de minha esposa. Assim, tive um sonho apropriado, em que
minha mulher me dava de beber de um vaso; esse vaso era uma urna cinerária
etrusca que eu trouxera de uma viagem à Itália e da qual mais tarde me
desfizera. Mas sua água tinha um sabor tão salgado (evidentemente por causa das
cinzas da urna) que acordei. É de se notar a forma conveniente como tudo se
organizava nesse sonhos. Visto que sua única finalidade era realizar um desejo,
o sonho poderia ser completamente egoísta. O amor ao comodismo e à conveniência
não é realmente compatível com a consideração pelas outras pessoas. A
introdução da urna cinerária foi, provavelmente, outra realização de desejo. Eu
lamentava que o vaso já não estivesse em meu poder - tal como o copo d’água na
mesa de cabeceira de minha mulher estava fora de meu alcance. Também a urna,
como suas cinzas, ajustava-se ao sabor salgado em minha boca, que já então se
tornara mais forte e que eu sabia estar fadado a me acordar.
Esses sonhos de conveniência eram muito
freqüentes em minha juventude. Tendo adquirido, desde quando consigo recordar,
o hábito de trabalhar até altas horas da noite, sempre tive dificuldade de
acordar cedo. Costumava então sonhar que me havia levantado e estava de pé ao
lado do lavatório; passado algum tempo, já não conseguia disfarçar de mim mesmo
o fato de que realmente ainda estava na cama, só que, nesse meio tempo, dormira
um pouco mais. Um desses sonhos indolentes, expresso numa forma particularmente
divertida e refinada, foi-me relatado por um jovem colega médico que parece
partilhar de meu gosto pelo sono. A hospedeira de sua pensão, nas proximidades
do hospital, tinha instruções rigorosas de acordá-lo na hora todas as manhãs,
mas não era nada fácil cumpri-las. Certa manhã, o sonho parecia especialmente
doce. A senhoria gritou através da porta: “Acorde, Herr Pepi! São horas
de ir para o hospital!” Em resposta a isso, ele sonhou que estava deitado numa
cama num quarto de hospital, e que havia um cartão acima do leito onde estava
escrito: “Pepi H., estudante de medicina, idade: 22 anos.” Enquanto sonhava,
ele dizia a si mesmo: “Como já estou no hospital, não há necessidade de
ir até lá” - e, virando-se para o outro lado, continuou a dormir. Desse modo,
ele confessou abertamente o motivo de seu sonho.
Eis aqui
outro sonho em que, mais uma vez, o estímulo produziu seu efeito durante o sono
efetivo. Uma das minhas pacientes, que fora obrigada a se submeter a uma
operação no maxilar, operação essa que tomara um rumo desfavorável, recebeu
ordens dos médicos para usar um aparelho de resfriamento no lado do rosto, dia
e noite. Logo que adormecia, porém, costumava pô-lo de lado. Um dia, depois de
ela ter mais uma vez jogado o aparelho no chão, pediram-me que falasse sério
com ela a esse respeito. “Dessa vez, realmente não pude evitar”, respondeu.
“Foi por causa de um sonho que tive à noite. Sonhei que estava num camarote na
ópera, e que estava apreciando muitíssimo o espetáculo. Mas Herr Karls
Meyer estava na casa de saúde e se queixava amargamente de dores no maxilar.
Assim, eu disse a mim mesma que, como não estava sentindo nenhuma dor, não
precisava do aparelho; e joguei-o fora.” O sonho dessa pobre sofredora parece
quase uma representação concreta de uma frase que às vezes se impõe às pessoas
nas situações desagradáveis: “Devo dizer que eu poderia pensar em algo mais
agradável do que isso.” O sonho dá uma imagem dessa coisa mais agradável. O Herr
Karl Meyer para quem a autora do sonho transplantou suas dores era, dentre seus
conhecidos, o rapaz mais insignificante que ela pôde lembrar.
A realização de desejos pode ser detectada com
igual facilidade em alguns outros sonhos que colhi de pessoas normais. Um amigo
meu, que conhece minha teoria dos sonhos e falou dela com sua mulher, disse-me
certo dia: “Minha mulher pediu que eu lhe dissesse que ontem sonhou que estava
menstruada. Você pode imaginar o que isso significa.” E eu realmente podia. O
fato de essa jovem senhora ter sonhado que estava menstruada significava que
suas regras não tinham vindo. Eu bem podia acreditar que ela ficaria satisfeita
em continuar desfrutando um pouco mais de sua liberdade, antes de arcar com o
fardo da maternidade. Foi uma maneira delicada de anunciar sua primeira
gravidez. Outro amigo meu escreveu-me dizendo que, não muito tempo antes, sua
mulher sonhara ter observados algumas manchas de leite na frente de seu
vestido. Também esse foi um aviso de gravidez, mas não da primeira. A jovem mãe
estava desejando que pudesse ter mais alimento para dar a seu segundo filho do
que tivera para o primeiro.
Uma jovem mulher ficara isolada da sociedade
por semanas a fio enquanto cuidava do filho durante uma doença infecciosa. Após
a recuperação da criança, sonhou que estava numa festa onde, entre outros,
conheceu Alphonse Daudet, Paul Bourget e Marcel Prévost; todos foram
afabilíssimos com ela e muito divertidos. Todos esses autores se pareciam com seus
retratos, exceto Marcel Prévost, cuja fotografia ela jamais vira; e ele se
parecia com… o funcionário da desinfecção que fumigara o quarto do doente na
véspera e que fora seu primeiro visitante após tanto tempo. Assim, parece
possível fornecer uma tradução completa do sonho: “Já é hora de fazer alguma
coisa mais divertida do que essa perpétua assistência a doentes.”
Esses exemplos talvez bastem para mostrar que
os sonhos que só podem ser compreendidos como realizações de desejos e que
trazem seu sentido estampado no rosto, sem nenhum disfarce, encontram-se sob as
mais freqüentes e variadas condições. Em sua maioria, são sonhos simples e
curtos, que apresentam um agradável contraste com as composições confusas e
exuberantes que têm predominantemente atraído a atenção das autoridades. Não
obstante, será compensador determo-nos por um momento nesse sonhos simples. É
de esperar que encontremos as mais simples formas de sonhos nas crianças,
já que não há dúvida alguma que suas produções psíquicas são menos complicadas
que as dos adultos. A psicologia infantil, em minha opinião, está destinada a
prestar à psicologia do adulto serviços tão úteis quanto os que a investigação
da estrutura ou do desenvolvimento dos animais inferiores para a pesquisa da
estrutura das classes superiores de animais. Poucos esforços deliberados foram
feitos até agora para se utilizar a psicologia infantil com essa finalidade.
Os sonhos das crianças pequenas são freqüentemente
pura realização de desejos e são, nesse caso, muito desinteressantes se
comparados com os sonhos dos adultos. Não levantam problemas para serem
solucionados, mas, por outro lado, são de inestimável importância para provar
que, em sua natureza essencial, os sonhos representam realizações de desejos.
Pude reunir alguns exemplos desses sonhos a partir de material fornecido por
meus próprio filhos.
Tenho que agradecer a uma excursão que fizemos
de Ausee à encantadora aldeia de Hallstatt, no verão de 1896, por dois
sonhos: um deles foi de minha filha, que contava então oito anos e meio, e o
outro, de seu irmão, de cinco anos e três meses. Devo explicar, à guisa de
preâmbulo, que estávamos passando o verão na encosta de uma colina perto de
Ausee, de onde, quando fazia bom tempo, descortinávamos uma esplêndida vista do
Dachstein. A Cabana Simony era claramente visível por telescópio. As crianças
fizeram repetidas tentativas de vê-la por meio desse instrumento - não sei
dizer com que grau de sucesso. Antes de nossa excursão, eu dissera às crianças
que Hallstatt ficava no sopé do Dachstein. Elas aguardaram o dia com grande
expectativa. De Hallstatt caminhamos até o Echerntal, que deliciou as crianças
com sua sucessão de paisagens cambiantes. Uma das crianças porém, o menino de
cinco anos, foi aos poucos ficando inquieto. Toda vez que divisávamos uma nova
montanha, ele perguntava se era o Dachstein, e eu tinha de dizer “Não, é apenas
um dos contrafortes.” Depois de ter formulado a pergunta várias vezes, ele caiu
em completo silêncio, recusando-se categoricamente a subir conosco a encosta
íngreme que leva à cascata. Achei que estava cansado. Mas, na manhã seguinte,
ele veio a mim com uma expressão radiante e disse: “Ontem à noite sonhei que
estávamos na Cabana Simony.” Então eu o compreendi. Quando eu falara sobre o
Dachstein, ele tinha esperado subir a montanha durante nossa excursão a
Hallstatt e encontrar-se perto da cabana sobre a qual tanto se falara em
relação ao telescópio. Mas, ao descobrir que estava sendo ludibriado com
contrafortes e uma queda d’água, sentiu-se decepcionado e abatido. O sonho foi
uma compensação. Tentei descobrir seus detalhes, mas eles eram escassos: “Você
precisa galgar degraus durante seis horas” - o que correspondia ao que lhe
haviam dito.
A mesma excursão despertou desejos também na
menina de oito anos e meio - desejos que tiveram de ser satisfeitos num sonho.
Tínhamos levado conosco para Hallstatt o filho de doze anos de nosso vizinho.
Ele já era um galanteador de mão cheia, e havia sinais de ter granjeado a
afeição da jovenzinha. Na manhã seguinte, ela me contou o seguinte sonho:
“Imagine só! Sonhei que Emil fazia parte da família e chamava vocês de ‘Papai’
e ‘Mamãe’, e dormia conosco no quarto grande como os meninos. Aí, mamãe entrou
e jogou um punhado de barras grandes de chocolate, embrulhadas em papel azul e
verde, embaixo de nossas camas.” Os irmãos dela, que evidentemente não haviam
herdado a faculdade de entender os sonhos, seguiram a orientação das
autoridades e declararam que o sonho era absurdo. A própria menina defendeu
pelo menos uma parte do sonho; e saber qual parte lança luz sobre a
teoria das neuroses. “É claro que é absurdo Emil fazer parte da família; mas a
parte sobre as barras de chocolate não é.” Era precisamente quanto a esse ponto
que eu estava em dúvida, mas a mãe da menina deu-me então a explicação. No
caminho da estação para casa, as crianças haviam parado em frente a uma máquina
automática, da qual estavam habituadas a obter justamente aquele tipo de barras
de chocolate, embrulhadas em brilhante papel metálico. Quiseram algumas, mas a
mãe, com razão, decidira que o dia já havia realizado um número suficiente de
desejos e deixara a realização desse a cargo do sonho. Eu não havia observado
esse incidente. Mas a parte do sonho que fora censurada por minha filha
imediatamente se tornou mais clara para mim. Eu mesmo ouvira meu bem-comportado
hóspede dizer às crianças, no passeio, que esperassem até que Papai e Mamãe os
alcançassem. O sonho da menina transformara esse parentesco temporário numa
adoção permanente. Sua afeição ainda não podia visualizar quaisquer outras
modalidades de companheirismo senão as que foram representadas no sonho, e que
se baseavam em sua relação com os irmãos. Naturalmente, era impossível
descobrir, sem lhe perguntar, por que as barras de chocolate foram atiradas
embaixo da cama.
Um de meus amigos relatou-me um sonho muito
semelhante ao do meu filho. Quem o teve foi uma menina de oito anos. O pai
dessa menina saíra para uma caminhada com várias crianças até Dornbach,
com a idéia de visitar a Cabana Rohrer. Como estivesse ficando tarde, porém,
tinha voltado, prometendo às crianças compensar-lhes a decepção noutra
oportunidade. A caminho de casa, passaram pelo marco que assinala a trilha que
sobe até o Hameau. As crianças pediram então que as levassem até o Hameau;
porém, mais uma vez, pela mesma razão, tiveram de ser consoladas com a promessa
de outro dia. Na manhã seguinte, a menina de oito anos dirigiu-se ao pai e
disse, com expressão satisfeita: “Papai, ontem à noite sonhei que o senhor foi
com a gente à Cabana Rohrer e ao Hameau.” Em sua impaciência, ela previra a
realização das promessas do pai.
Eis aqui um sonho igualmente direto, provocado
pela beleza dos panoramas de Ausee em outra de minhas filhas, que contava então
três anos e três meses. Ela atravessara o lago pela primeira vez e, para ela, a
travessia fora curta demais: quando alcançamos o ponto de desembarque, não quis
sair do barco e chorou amargamente. Na manhã seguinte, disse: “Ontem de noite
fui para o lago.” Esperemos que sua travessia no sonho tenha sido de uma
duração mais satisfatória.
Meu filho mais velho, então com oito anos, já
tinha sonhos de ver suas fantasias realizadas: sonhou que estava andando de
carruagem com Aquiles e que Diomedes era o condutor. Como se pode imaginar, ele
ficara excitado, na véspera, com um livro sobre as lendas da Grécia, dado a sua
irmã mais velha.
Caso me seja facultado incluir na categoria dos
sonhos as palavras ditas pelas crianças durante o sono, posso citar, a esta
altura, um dos sonhos mais infantis de toda a minha coleção. Minha filha mais
nova, então com dezenove meses de idade, tivera um ataque de vômitos certa
manhã e, como conseqüência, ficara sem alimento o dia inteiro. Na madrugada
seguinte a esse dia de fome, nós a ouvimos exclamar excitadamente enquanto
dormia: “Anna Freud, molangos, molangos silvestes, omelete pudim!” Naquela
época, Anna tinha o hábito de usar seu próprio nome para expressar a idéia de
se apossar de algo. O menu incluía perfeitamente tudo o que lhe devia parecer
constituir uma refeição desejável. O fato de os morangos aparecerem nele em
duas variedades era uma manifestação contra os regulamentos domésticos de
saúde. Baseava-se no fato, que ela sem dúvida havia observado, de sua ama
ter atribuído sua indisposição a uma indigestão de morangos. Assim, ela
retaliou no sonho contra esse veredicto indesejável.
Embora tenhamos em alta conta a felicidade da
infância, por ser ela ainda inocente de desejos sexuais, não nos devemos
esquecer da fonte fértil de decepção e renúncia, e conseqüentemente de estímulo
ao sonho, que pode ser proporcionada pelas duas outras grandes pulsões
vitais. Eis aqui outro exemplo disso. Meu sobrinho, com um ano e dez meses,
fora encarregado de me cumprimentar por meu aniversário e de me presentear com
uma cesta de cerejas, que ainda estavam fora de estação nessa época do ano. Ele
parece ter achado a tarefa difícil, pois ficava repetindo “Celejas nela”, mas
era impossível induzi-lo a entregar o presente. Contudo, ele encontrou um meio
de compensação. Estava habituado, todas as manhãs, a contar à mãe que tinha
tido um sonho com o “soldado branco” - um oficial da guarda envergando sua
túnica branca, que ele um dia ficara na rua a contemplar com admiração. No dia
seguinte ao sacrifício do aniversário, ele acordou com uma notícia animadora,
que só poderia ter-se originado num sonho: “Hermann comeu todas as celejas!”
Eu mesmo não sei com que sonham os animais. Mas
um provérbio, para o qual minha atenção foi despertada por um de meus alunos,
alega realmente saber. “Com que”, pergunta o provérbio, “sonham os gansos?” E
responde: “Com milho”. Toda a teoria de que os sonhos são realizações de
desejos se acha contida nessas duas frases.
Como se vê, poderíamos ter chegado mais
depressa a nossa teoria do sentido oculto dos sonhos simplesmente observando o
uso lingüístico. É verdade que a linguagem comum às vezes se refere aos sonhos
com desprezo. (A frase “Träume sind Schäume” [Os sonhos são espuma]
parece destinada a apoiar a apreciação científica dos sonhos.) Grosso modo,
porém, o uso comum trata os sonhos, acima de tudo, como abençoados realizadores
de desejos. Sempre que vemos nossas expectativas ultrapassadas por um
acontecimento, exclamamos em nossa alegria: “Eu nunca teria imaginado tal
coisa, nem mesmo em meus sonhos mais fantásticos!”
Capítulo IV - A DISTORÇÃO NOS SONHOS
Se eu passar a afirmar que o sentido de todos
os sonhos é a realização de um desejo, isto é, que não pode haver nenhum sonho
senão os sonhos desejantes, desde já estou certo de que depararei com a mais
categórica refutação a tal afirmativa.
“Não há nada de novo”, dirão, “na idéia de que alguns
sonhos devam ser encarados como realizações de desejos; as autoridades
assinalaram esse fato há muito tempo. Cf. Radestock (1879, 137 e seg.), Volkelt
(1875, 110 e seg.), Purkinje (1846, 456), Tissié (1898, 70), Simon (1888, 42, a
propósito dos sonhos de fome do Barão Trenck quando prisioneiro), e um trecho
em Griesinger (1845, 89). Mas afirmar que não há outros sonhos senão os de
realização de desejos constitui apenas mais uma generalização injustificável,
embora felizmente fácil de refutar. Afinal de contas, ocorrem numerosos sonhos
que contêm os mais penosos temas, mas nenhum sinal de qualquer realização de
desejo. Eduard von Hartmann, o filósofo do pessimismo, é provavelmente quem
mais se afasta da teoria da realização de desejos. Em sua Philosophie des
Unbewussten (1890, 2, 344), escreve: ‘Quando se trata de sonhos, vemos
todas as contrariedades da vida de vigília transportadas para o estado de sono;
a única coisa que não encontramos é aquilo que pode, até certo ponto,
reconciliar um homem culto com a vida - o prazer científico e artístico…’ Mas
até mesmo observadores menos descontentes têm insistido em que a dor e o
desprazer são mais comuns nos sonhos do que o prazer: por exemplo, Scholz
(1893, 57), Volkelt (1875, 80) e outros. Com efeito, duas senhoras, Florence
Hallam e Sarah Weed (1896, 499), chegaram realmente a dar expressão estatística,
baseada num estudo de seus próprios sonhos, à preponderância do desprazer no
sonho. Verificaram que 57,2% dos sonhos são ‘desagradáveis’ e apenas 28,6%
decididamente ‘agradáveis’. E, afora esses sonhos, que levam para o sono as
várias emoções penosas da vida, existem sonhos de angústia, em que o mais
terrível de todos os sentimentos desprazerosos nos retém em suas garras até
despertarmos. E as vítimas mais comuns desses sonhos de angústia são
precisamente as crianças, cujos sonhos o senhor descreveu como indisfarçáveis
realizações de desejos.”
De fato, parece que os sonhos de angústia
tornam possível asseverar como proposição geral (baseada nos exemplos citados
em meu último capítulo) que os sonhos são realizações de desejos; na verdade,
eles parecem caracterizar tal proposição como um absurdo.
Não obstante, não há grande dificuldade em
enfrentar essas objeções aparentemente irrefutáveis. É necessário apenas
observar o fato de que minha teoria não se baseia numa consideração do conteúdo
manifesto dos sonhos, mas se refere aos pensamentos que o trabalho de
interpretação mostra estarem por trás dos sonhos. Devemos estabelecer um
contraste entre os conteúdos manifesto e latente dos sonhos.
Não há dúvida de que existem sonhos cujo conteúdo manifesto é de natureza
extremamente aflitiva. Mas terá alguém tentado interpretar esses sonhos?
Revelar os pensamentos latentes que se encontram por trás deles? Se não for
assim, as duas objeções levantadas contra minha teoria são inconsistentes: é
ainda possível que os sonhos aflitivos e os sonhos de angústia, uma vez
interpretados, revelem-se como realizações de desejos.
Quando, no decorrer de um trabalho científico,
deparamos com um problema de difícil solução, muitas vezes constitui uma boa
medida tomar um segundo problema juntamente com o original - da mesma forma que
é mais fácil quebrar duas nozes juntas do que cada uma em separado. Assim, não
só nos defrontamos com a pergunta “Como podem os sonhos aflitivos e os sonhos
de angústia ser realizações de desejos?”, como também nossas reflexões
permitem-nos acrescentar uma segunda pergunta: “Por que é que os sonhos de
conteúdo irrelevante, que mostram ser realizações de desejos, não expressam seu
sentido sem disfarces?” Tomemos, por exemplo, o sonho da injeção de Irma, que
abordei exaustivamente. Não foi, de modo algum, de natureza aflitiva, e a
interpretação mostrou-o como exemplo marcante da realização de um desejo. Mas
por que deveria ele precisar de qualquer interpretação? Por que não expressou
diretamente o que queria dizer? À primeira vista, o sonho da injeção de Irma
não dava nenhuma impressão de representar como realizado um desejo do sonhador.
Meus leitores não terão tido tal impressão; mas nem eu a tive antes de haver
efetuado a análise. Descrevamos esse comportamento dos sonhos, que tanto carece
de explicação, como “o fenômeno da distorção dos sonhos”. Assim, nosso segundo
problema é: qual a origem da distorção onírica?
É possível que nos ocorram de imediato diversas
soluções possíveis para o problema, como por exemplo, que existe alguma
incapacidade, durante o sono, para darmos expressão direta a nossos pensamentos
oníricos. Mas a análise de certos sonhos nos força a adotar outra explicação
para a distorção neles existente. Exemplificarei esse ponto por meio de outro sonho
que tive. Mais uma vez, esse procedimento me envolverá numa multiplicidade de
indiscrições, mas a elucidação minuciosa do problema compensará meu sacrifício
pessoal.
PREÂMBULO. - Na primavera de 1897, soube que dois professores de
nossa universidade me haviam recomendado para nomeação como professor
extraordinarius. A notícia me surpreendeu e muito me alegrou, pois
implicava o reconhecimento por dois homens eminentes, que não poderia ser
atribuído a quaisquer considerações de ordem pessoal. Mas logo me preveni para
não ligar ao fato nenhuma expectativa. Nos últimos anos, o Ministério
desconsiderara esse tipo de recomendações, e vários de meus colegas, que eram
mais velhos do que e pelo menos se igualavam a mim em termos de mérito, em vão
vinham esperando por uma nomeação. Eu não tinha motivos para crer que viesse a
ter melhor sorte. Determinei-me, portanto, a encarar o futuro como resignação.
Até onde eu me conhecia, não era um homem ambicioso; vinha seguindo minha
profissão com êxito gratificante, mesmo sem as vantagens proporcionadas por um
título. Além disso, não havia meios de eu dizer que as uvas estavam verdes ou
maduras: elas pendiam alto demais sobre minha cabeça.
Certa noite, recebi a visita de um amigo - um
dos homens cujo exemplo eu tomara como advertência para mim. Por um tempo
considerável, ele fora candidato à promoção ao cargo de professor, categoria
que, em nossa sociedade, transforma o médico num semideus para seus pacientes.
Menos resignado que eu, porém, ele tinha o hábito de ir de vez em quando
cumprimentar o pessoal das repartições do Ministério, com vistas a promover
seus interesses. Estivera fazendo uma dessas visitas pouco antes de vir ver-me.
Contou-me que, nessa ocasião, pressionara o exaltado funcionário e lhe
perguntara à queima-roupa se a demora de sua nomeação não se prendia, de fato,
a considerações sectárias. A resposta fora que, em vista do atual estado de
coisas, sem dúvida era verdade que, no momento, Sua Excelência não estava em
condições, etc. etc. “Pelo menos sei onde estou agora”, concluíra meu amigo.
Isso não foi novidade para mim, embora estivesse fadado a fortalecer seu
sentimento de resignação, pois as mesmas considerações sectárias se aplicavam
ao meu próprio caso.
Na manhã seguinte a essa visita, tive o
seguinte sonho, que foi notável, entre outras coisas, por sua forma. Consistiu
em dois pensamentos e duas imagens - sendo cada pensamento seguido por uma
imagem. Entretanto, exporei aqui apenas a primeira metade do sonho, visto que a
outra metade não tem nenhuma relação com a finalidade para a qual descrevo o
sonho.
I… Meu amigo R. era meu tio. - Eu tinha por
ele um grande sentimento de afeição.
II. Vi seu rosto diante de mim, um tanto
modificado. Era como se tivesse sido repuxado no sentido do comprimento. Uma
barba amarela que o circundava destacava-se de maneira especialmente nítida.
Seguiam-se as duas outras partes que omitirei -
mais uma vez, uma idéia seguida de uma imagem.
A interpretação do sonho ocorreu da seguinte
forma.
Quando, no decorrer da manhã, o sonho me veio à
cabeça, ri alto e disse: “O sonho é absurdo!” Mas ele se recusava a ir embora e
me seguiu o dia inteiro, até que finalmente, à noite, comecei a me repreender:
“Se um de seus pacientes que estivesse interpretando um sonho não encontrasse
nada melhor para dizer do que afirmar que ela era um absurdo, você o
questionaria sobre isso e suspeitaria de que o sonho tinha por trás alguma
história desagradável, da qual o paciente queria evitar conscientizar-se. Pois
trate-se da mesma maneira. Sua opinião de que o sonho é absurdo significa
apenas que você tem uma resistência interna contra a interpretação dele. Não se
deixe despistar dessa maneira.” Assim, dei início à interpretação.
“R. era meu tio.” Que poderia significar
isso? Nunca tive mais do que um tio - o Tio Josef. Havia um história
triste ligada a ele. Certa vez - há mais de trinta anos -, em sua ansiedade de
ganhar dinheiro, ele se deixou envolver num tipo de transação que é severamente
punido pela lei, e foi efetivamente castigado por isso. Meu pai, cujo cabelos
se embranqueceram de tristeza em poucos dias, costumava sempre dizer que tio
Josef não era um mau homem, mas apenas um tolo; essas eram suas palavras. De
modo que, se meu amigo R. era meu Tio Josef, o que eu estava querendo dizer era
que R. era um tolo. Difícil de acreditar e extremamente desagradável! - Mas
havia o rosto que eu via no sonho, com suas feições alongadas e a barba
amarela. Meu tio, de fato, tinha um rosto como aquele, alongado e emoldurado
por uma bela barba loura. Meu amigo R. fora, a princípio, extremamente moreno;
mas quando as pessoas de cabelos pretos começam a ficar grisalhas, elas pagam
um tributo pelo esplendor de sua juventude. Fio por fio, sua barba negra começa
a passar por uma desagradável mudança de cor: primeiro, para um castanho
avermelhado, depois, para um castanho amarelado, e só então para um grisalho
definitivo. A barba de meu amigo R. estava, naquela ocasião, passando por essa
fase - e também, por coincidência, a minha própria, como eu havia observado com
insatisfação. O rosto que vi no sonho era, ao mesmo tempo, o de meu amigo R. e
o de meu tio. Era como uma das fotografias compostas por Galton. (Para
ressaltar as semelhanças familiares, Galton costumava fotografar vários rostos
na mesma chapa [1907, 6 e segs. e 221 e segs.]). Assim, não havia dúvida de que
eu realmente queria dizer que meu amigo R. era um tolo - como meu Tio Josef.
Eu ainda não tinha nenhuma idéia sobre qual
poderia ser a finalidade dessa comparação, contra a qual continuava a lutar.
Ela não ia muito longe, afinal, já que meu tio era um criminoso, ao passo que
meu amigo R. tinha um caráter sem mácula… salvo por uma multa que lhe fora
imposta por ter derrubado um menino com sua bicicleta. Poderia eu ter tido esse
crime em mente? Isso teria sido ridicularizar a comparação. Nesse ponto,
lembrei-me de outra conversa que tivera alguns dias antes com outro colega, N.,
e agora que pensava nela, lembrei que fora o mesmo assunto. Eu havia encontrado
N. na rua. Ele também fora recomendado para o cargo de professor. Ouvira falar
da homenagem que me fora prestada e me deu seus parabéns por isso, mas eu, sem
hesitar, recusei-me a aceitá-los. “Você é a última pessoa”, disse-lhe, “a fazer
essa espécie de brincadeira; você sabe o quanto vale essa recomendação por sua
própria experiência.” “Quem é que pode dizer?” respondeu ele - gracejando, ao
que me pareceu; “havia uma coisa clara contra mim. Você não sabe que
certa vez uma mulher abriu um processo judicial contra mim? Nem é preciso dizer
que o caso foi arquivado. Foi uma tentativa ignominiosa de chantagem, e tive a
maior dificuldade em evitar que a acusadora deixasse de ser punida. Mas talvez
eles estejam usando isso no Ministério como desculpa para não me nomearem. Mas você
tem um caráter impecável.” Isso me disse quem era o criminoso e, ao mesmo
tempo, mostrou-me como o sonho devia ser interpretado e qual era sua
finalidade. Meu Tio Josef representava meus dois colegas que não tinham sido
nomeados para o cargo de professor - um como tolo, e o outro, como criminoso.
Agora, eu também compreendia por que tinham sido representados sob esse
aspecto. Se a nomeação de meus amigos R. e N. tinha sido adiada por motivos
“sectários”, minha própria nomeação também era duvidosa; no entanto, se eu
pudesse atribuir a rejeição de meus dois amigos a outras razões, que não se
aplicavam a mim, minhas esperanças permaneceriam intocadas. Fora esse o método
adotado por meu sonho: ele transformara um deles, R., num tolo, e o outro, N.,
num criminoso, ao passo que eu não era uma coisa nem outra; assim, já
não tínhamos mais nada em comum; eu podia me regozijar com minha nomeação para
o cargo de professor e podia evitar a penosa conclusão de que o relato de R.
sobre o que lhe dissera o alto funcionário devia aplicar-se igualmente a mim.
Mas senti-me obrigado a levar ainda mais longe
minha interpretação do sonho; senti que ainda não havia terminado de lidar
satisfatoriamente com ele. Ainda estava inquieto com a despreocupação com que
degradara dois respeitados colegas para manter aberto meu próprio acesso ao
cargo de professor. No entanto, a insatisfação com minha conduta havia
diminuído desde que eu me apercebera do valor que se deve atribuir às
expressões nos sonhos. Eu estava pronto a negar com toda veemência que
realmente considerasse R. um tolo e que de fato desacreditasse da história de
N. sobre a chantagem. Tampouco acreditava que Irma tivesse de fato ficado
gravemente enferma por haver recebido uma injeção do preparado de propil de
Otto. Em ambos os casos, o que meus sonhos haviam expressado era apenas meu
desejo de que fosse assim. A afirmação na qual meu desejo se materializara
soava menos absurda no segundo sonho do que no primeiro; este usou mais
habilmente os fatos reais em sua construção, tal como uma calúnia bem
engendrada do tipo que faz com que as pessoas sintam que “há qualquer coisa
nisso”. Afinal, um dos professores da própria faculdade de meu amigo R. votara
contra ele, e meu amigo N. me fornecera inocentemente, ele próprio, o material
para minhas difamações. Não obstante, devo repetir, o sonho me parecia requerer
maior elucidação.
Recordei então que havia outra parte do sonho
intocada pela interpretação. Depois de me ocorrer a idéia de que R. era meu
tio, eu havia experimentado um caloroso sentimento de afeição por ele no sonho.
De onde vinha esse sentimento? Naturalmente, eu nunca sentira nenhuma afeição
por Tio Josef. Apreciava meu amigo R. e o estimara durante muitos anos, mas, se
me dirigisse a ele e expressasse meus sentimentos em termos que se aproximassem
do grau de afeto que sentira no sonho, não há nenhuma dúvida de que ele teria
ficado perplexo. Minha afeição por ele pareceu-me artificial e exagerada - tal
como o julgamento de suas qualidades intelectuais, que eu expressara ao fundir
sua personalidade com a de meu tio, embora, nesse caso, o exagero
tivesse corrido no sentido oposto. Mas uma nova percepção começou a despontar
em mim. A afeição, no sonho, não dizia respeito ao conteúdo latente, aos
pensamentos que estavam por trás do sonho; estava em contradição com eles e
tinha o propósito de ocultar a verdadeira interpretação do sonho. E é provável
que essa fosse precisamente sua raison d’être. Lembrei-me de minha
resistência em proceder à interpretação, de quanto a havia odiado, e de como
declarara que o sonho era puro absurdo. Meus tratamentos psicanalíticos
ensinaram-me como se deve interpretar um repúdio dessa natureza: ele não tinha
nenhum valor como julgamento, mas era simplesmente uma expressão de emoção.
Quando minha filhinha não queria uma maçã que lhe era oferecida, afirmava que a
maçã estava azeda sem havê-la provado. E, quando meus pacientes se comportavam
como a menina, eu sabia que estavam preocupados com uma representação que
desejavam recalcar. O mesmo se aplicava a meu sonho. Eu não queria
interpretá-lo porque a interpretação encerrava algo que eu estava combatendo.
Quando concluí a interpretação, entendi contra que estivera lutando - isto é, a
afirmação de que R. era um tolo. A afeição que eu sentia por R. não podia
provir dos pensamentos oníricos latentes, mas se originara, sem dúvida, dessa
luta que eu travava. Se meu sonho estava distorcido nesse aspecto em relação a
seu conteúdo latente - e distorcido pareceu oposto -, então a afeição manifesta
no sonho atendera ao propósito dessa distorção. Em outras palavras, a
distorção, nesse caso, mostrou ser deliberada e constituiu um meio de dissimulação.
Meus pensamentos oníricos tinham incluído uma calúnia contra R. e, para que eu
não pudesse notá-la, o que apareceu no sonho foi o oposto: um sentimento de
afeição por ele.
Pareceu-me que essa seria uma descoberta de
validade geral. É verdade que, como ficou demonstrado nos exemplos citados no
Capítulo III, há alguns sonhos que são realizações indisfarçadas de desejos.
Mas, nos casos em que a realização de desejo é irreconhecível, em que é
disfarçada, deve ter havido alguma inclinação para se erguer uma defesa contra
o desejo; e, graças a essa defesa, o desejo é incapaz de se expressar, a não
ser de forma distorcida. Tentarei encontrar uma distorção semelhante de um ato
psíquico na vida social. Onde podemos encontrar uma distorção semelhante de um
ato físico na vida social? Somente quando há duas pessoas envolvidas, e uma das
quais possui certo grau de poder que a segunda é obrigada a levar em
consideração. Nesse caso, a segunda pessoa distorce seus atos psíquicos, ou,
como se poderia dizer, dissimula. A polidez que pratico todos os dias é, numa
grande medida, uma dissimulação desse tipo; e quando interpreto meus sonhos
para meus leitores, sou obrigado a adotar distorções semelhantes. O poeta se
queixa da necessidade dessas distorções, com as palavras:
Das
Beste, was du wissen kannst,Darfst du den Buben doch nicht sagen.
Dificuldade semelhante enfrenta o autor
político que tem verdades desagradáveis a dizer aos que estão no poder. Se as
apresentar sem disfarces, as autoridades reprimirão suas palavras - depois de
proferidas, no caso de um pronunciamento oral, mas de antemão, caso ele
pretenda fazê-lo num texto impresso. O escritor tem de estar precavido
contra a censura e, por causa dela, precisa atenuar e distorcer a expressão
de sua opinião. Conforme o rigor e a sensibilidade da censura, ele se vê
compelido a simplesmente abster-se de certas formas de ataque ou a falar por
meio de alusões em vez de referências diretas, ou tem que ocultar seu
pronunciamento objetável sob algum disfarce aparentemente inocente: por
exemplo, pode descrever uma contenda entre dois mandarins do Império do Meio
[na China], quando as pessoas que de fato tem em mente são autoridades de seu
próprio país. Quanto mais rigorosa a censura, mais amplo será o disfarce e
mais engenhoso também será o meio empregado para pôr o leitor no rastro do
verdadeiro sentido.
O fato de os fenômenos da censura e da
distorção onírica corresponderem uns aos outros nos mínimos detalhes justifica
nossa pressuposição de que sejam similarmente determinados. Podemos, portanto,
supor que os sonhos recebem sua forma em cada ser humano mediante a ação de
duas forças psíquicas (ou podemos descrevê-las como correntes ou sistemas) e
que uma dessas forças constrói o desejo que é expresso pelo sonho, enquanto a
outra exerce uma censura sobre esse desejo onírico e, pelo emprego dessa
censura, acarreta forçosamente uma distorção na expressão do desejo. Resta
indagar sobre a natureza do poder desfrutado por sua segunda instância, que lhe
permite exercer sua censura. Quando temos em mente que os pensamentos oníricos
latentes não são conscientes antes de se proceder a uma análise, ao passo que o
conteúdo manifesto do sonho é conscientemente lembrado, parece plausível supor
que o privilégio fruído pela segunda instância seja o de permitir que os
pensamentos penetrem na consciência. Nada, ao que parece, pode atingir a
consciência a partir do primeiro sistema sem passar pela segunda instância; e a
segunda instância não permite que passe coisa alguma sem exercer seus direitos
e fazer as modificações que julgue adequadas no pensamento que busca acesso à
consciência. A propósito, isso nos permite formar um quadro bem definido da
“natureza essencial” da consciência: vemos o processo de conscientização de
algo como um ato psíquico específico, distinto e independente do processo de
formação de uma representação ou idéia; e encaramos a consciência como um órgão
sensorial que percebe dados surgidos em outros lugares. É possível demonstrar
que esses pressupostos básicos são absolutamente indispensáveis à
psicopatologia. Devemos, porém, adiar nossas maiores considerações sobre eles
para um estágio posterior. [Ver Capítulo VII, particularmente a Seção F, em
[1]]
Aceitando-se esse quadro das duas instâncias
psíquicas e de sua relação com a consciência, há uma completa analogia, na vida
política, com a extraordinária afeição que senti em meu sonho por meu amigo R.,
que foi tratado com tanto desprezo durante a interpretação do sonho. Imaginemos
uma sociedade em que esteja havendo uma luta entre um governante cioso de seu
poder e uma opinião pública alerta. O povo está revoltado contra uma autoridade
impopular e exige sua demissão. Mas o autocrata, para mostrar que não precisa
levar em conta o desejo popular, escolhe esse momento para conferir uma alta
honraria à citada autoridade, embora não haja nenhuma outra razão para fazê-lo.
De maneira idêntica, minha segunda instância, que domina o acesso à
consciência, distinguiu meu amigo R. com uma exibição de afeição excessiva,
simplesmente porque os impulsos de desejo pertencentes ao primeiro sistema, por
suas próprias razões particulares, para as quais estavam voltados naquele
momento, resolveram condená-lo como um tolo.
Essas considerações talvez nos levem a achar
que a interpretação dos sonhos poderá permitir-nos tirar, em relação à
estrutura de nosso aparelho psíquico, as conclusões que em vão temos esperado
da filosofia. Não pretendo, contudo, seguir essa linha de pensamento [adotada
no Capítulo VII]; mas, tendo esclarecido a questão da distorção dos sonhos,
voltarei ao problema de onde partimos. A questão levantada foi de que modo os
sonhos com um conteúdo aflitivo podem decompor-se em realizações de desejos.
Vemos agora que isso é possível, se a distorção do sonho tiver ocorrido e se o
conteúdo penoso servir apenas para disfarçar algo que se deseja.Tendo em mente
nosso pressuposto da existência de duas instâncias psíquicas, podemos ainda dizer
que os sonhos aflitivos de fato encerram alguma coisa que é penosa para a segunda
instância, mas que, ao mesmo tempo, realiza um desejo por parte da primeira
instância. São sonhos de desejos, na medida em que todo sonho decorre da
primeira instância: a relação da segunda instância com os sonhos é de natureza defensiva,
e não criativa. Se nos limitássemos a considerar em que a segunda
instância contribui para os sonhos, jamais conseguiríamos chegar a um
entendimento deles: todas as charadas que as autoridades têm observado nos
sonhos permaneceriam insolúveis.
O fato de os sonhos realmente terem um
significado secreto que representa a realização de um desejo tem de ser provado
novamente pela análise em cada caso específico. Escolherei, portanto, alguns sonhos
com um conteúdo aflitivo e tentarei analisá-los. Alguns deles são sonhos de
pacientes histéricos, que exigem extensos preâmbulos e uma incursão ocasional
nos processos psíquicos característicos da histeria. Mas não posso escapar a
esse agravamento das dificuldades de apresentar minha tese. [Ver em [1].]
Como já expliquei [em [1]], quando empreendo o
tratamento analítico de um paciente psiconeurótico, seus sonhos são
invariavelmente discutidos entre nós. No decurso dessas discussões, sou
obrigado a dar-lhe todas as explicações psicológicas que permitiram a mim mesmo
chegar a uma compreensão de seus sintomas. A partir daí, fico sujeito a uma
crítica implacável, por certo não menos severa do que a que tenho de esperar
dos membros de minha própria profissão. E meus pacientes invariavelmente
contradizem minha asserção de que todos os sonhos são realizações de desejos.
Eis aqui, portanto, alguns exemplos do material de sonhos apresentados contra
mim como provas em contrário.
“O senhor sempre me diz”, começou uma
inteligente paciente minha, “que o sonho é um desejo realizado.” Pois bem, vou
lhe contar um sonho cujo tema foi exatamente o oposto - um sonho em que um de
meus desejos não foi realizado. Como o senhor enquadra isso em sua
teoria? Foi este o sonho:
“Eu queria oferecer uma ceia, mas não tinha
nada em casa além de um pequeno salmão defumado. Pensei em sair e comprar
alguma coisa, mas então me lembrei que era domingo à tarde e que todas as lojas
estariam fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o
telefone estava com defeito. Assim, tive de abandonar meu desejo de oferecer
uma ceia.”
Respondi, naturalmente, que a análise era a
única forma de decidir quanto ao sentido do sonho, embora admitisse que, à
primeira vista, ele se afigurava sensato e coerente e parecia ser o inverso da
realização de um desejo. “Mas de que material decorreu o sonho? Como sabe, a
instigação de um sonho é sempre encontrada nos acontecimentos da véspera.”
ANÁLISE. - O marido de minha paciente, um açougueiro atacadista,
honesto e competente, comentara com ela, na véspera, que estava ficando muito
gordo e que, por isso, pretendia começar um regime de emagrecimento.
Propunha-se levantar cedo, fazer exercícios físicos, ater-se a uma dieta
rigorosa e, acima de tudo, não aceitar mais convites para cear. - Ela
acrescentou, rindo, que o marido, no lugar onde almoçava regularmente, tratava
conhecimento com um pintor que o pressionara a lhe permitir que pintasse seu
retrato, pois nunca vira feições tão expressivas. O marido, contudo,
replicara, à sua maneira rude, que ficava muito agradecido, mas tinha a certeza
de que o pintor preferiria parte do traseiro de uma bonita garota a todo o seu
rosto. Ela estava muito apaixonada pelo marido e caçoava muito dele. Ela
também implorara a ele que não lhe desse nenhum caviar.
Perguntei-lhe o que significava isso, e ela
explicou que há muito tempo desejava comer um sanduíche de caviar todas as
manhãs, mas relutava em fazer essa despesa. Naturalmente, o marido a deixara
obtê-lo imediatamente, se ela lhe tivesse pedido. Mas, ao contrário, ela lhe
pedira que não lhe desse caviar, para poder continuar a mexer com ele
por causa disso.
Essa explicação me pareceu pouco convincente.
Em geral, essas razões insuficientes ocultam motivos inconfessáveis. Fazem-nos
lembrar os pacientes hipnotizados de Bernheim. Quando um deles executa uma
sugestão pós-hipnótica e lhe perguntam por que está agindo daquela maneira, em
vez de dizer que não tem a menor idéia, ele se sente compelido a inventar
alguma razão obviamente insatisfatória. O mesmo, sem dúvida, se aplicava a
minha paciente e ao caviar. Vi que ela fora obrigada a criar para si mesma um
desejo não realizado na vida real, e o sonho representava essa renúncia posta
em prática. Mas por que precisaria ela de um desejo não realizado?
As associações que ela apresentara até então
não tinham sido suficientes para interpretar o sonho. Pressionei-a para que
apresentasse outras. Após uma pausa curta, como a que corresponderia à
superação de uma resistência, ela prosseguiu dizendo que, na véspera, visitara
uma amiga de quem confessava ter ciúmes porque seu marido (de minha paciente)
estava constantemente a elogiá-la. Felizmente, essa sua amiga é muito ossuda e
magra, e o marido de minha paciente admira figuras mais cheinhas. Perguntei-lhe
o que havia conversado com sua amiga magra. Naturalmente, respondeu, sobre o
desejo dela de engordar um pouco. A amiga também lhe perguntara: “Quando é que
você vai nos convidar para outro jantar? Os que você oferece são sempre
ótimos.”
Agora o sentido do sonho estava claro, e pude
dizer a minha paciente: “É como se, quando ela fez essa sugestão, a senhora
tivesse dito a si mesma: ‘Pois sim! Vou convidá-la para comer em minha casa só
para que você possa engordar e atrair meu marido ainda mais! Prefiro nunca mais
oferecer um jantar.’ O que o sonho lhe disse foi que a senhora não podia
oferecer nenhuma ceia, e assim estava realizando seu desejo de não ajudar sua
amiga a ficar mais cheinha. O fato de que o que as pessoas comem nas festas as
engorda lhe fora lembrado pela decisão de seu marido de não mais aceitar
convites para jantar, em benefício de seu plano de emagrecer.” Só faltava agora
alguma coincidência que confirmasse a solução. O salmão defumado do sonho ainda
não fora explicado. “Como foi”, perguntei, “que a senhora chegou ao salmão que
apareceu em seu sonho?” “Oh”, exclamou ela, “salmão defumado é o prato
predileto de minha amiga!” Acontece que eu mesmo conheço a senhora em questão e
posso afirmar o fato de que ela se ressente tanto de não comer salmão quanto
minha paciente de não comer caviar.
O mesmo sonho admite uma outra interpretação,
mais sutil, que de fato se torna inevitável se levarmos em conta um detalhe
adicional. (As duas interpretações não são mutuamente contraditórias, mas ambas
cobrem o mesmo terreno; constituem um bom exemplo do fato de que os sonhos,
como todas as outras estruturas psicopatológicas, têm regularmente mais de um
sentido.) Minha paciente, como se pode lembrar, ao mesmo tempo que estava
ocupada com seu sonho de renúncia a um desejo, também tentava efetivar um
desejo renunciado (pelo sanduíche de caviar) na vida real. Sua amiga também
dera expressão a um desejo - de engordar -, e não seria de surpreender que
minha paciente tivesse sonhado que o desejo de sua amiga não fora realizado,
pois o próprio desejo de minha paciente era que o de sua amiga (engordar) não
se realizasse. Mas, em vez disso, ela sonhou que um de seus próprios
desejos não era realizado. Portanto, o sonho adquirirá nova interpretação se
supusermos que a pessoa nele indicada não era ela mesma, e sim a amiga: que ela
se colocara no lugar da amiga, ou, como poderíamos dizer, que se “identificara”
com a amiga. Creio que ela de fato fizera isso, e a circunstância de ter
efetivado um desejo renunciado na vida real foi prova dessa identificação.
Qual é o sentido da identificação histérica?
Isso exige uma explicação um tanto extensa. A identificação é um fator
altamente importante no mecanismo dos sintomas histéricos. Ela permite aos
pacientes expressarem em seus sintomas não apenas suas próprias experiências,
como também as de um grande número de outras pessoas: permite-lhes, por assim
dizer, sofrer em nome de toda uma multidão de pessoas e desempenhar sozinhas
todos os papéis de uma peça. Dirão que isso não passa da conhecida imitação
histérica, da capacidade dos histéricos de imitarem quaisquer sintomas de
outras pessoas que possam ter despertado sua atenção - solidariedade, por assim
dizer, intensificada até o ponto da reprodução. Isso, porém, não faz mais do
que indicar-nos a trilha percorrida pelo processo psíquico na imitação
histérica. Essa trilha é diferente do ato mental que se processa ao longo dela.
Este é um pouco mais complicado do que o quadro comum da imitação histérica;
consiste na feitura inconsciente de uma inferência, como um exemplo deixará
claro. Suponhamos que um médico esteja tratando de uma paciente sujeita a um
tipo específico de espasmo numa enfermaria hospitalar, em meio a muitos outros
pacientes. Ele não mostrará nenhuma surpresa se constatar, numa manhã, que essa
forma específica de ataque histérico encontrou imitadores. Dirá apenas: “Os
outros pacientes viram isso e o copiaram; é um caso de contágio psíquico.” Isso
é verdade; mas o contágio psíquico ocorreu mais ou menos nos seguintes moldes:
em geral, os pacientes sabem mais a respeito uns dos outros do que o médico
sobre qualquer um deles; e uma vez terminada a visita do médico, eles voltam
sua atenção para os companheiros. Imaginemos que essa paciente tenha tido seu
ataque num determinado dia; ora, os outros descobrirão rapidamente que ele foi
causado por uma carta recebida de casa, pelo reflorescimento de um romance
infeliz, ou coisa semelhante. Sua solidariedade é despertada e eles fazem a
seguinte inferência, embora ela não consiga penetrar na consciência: “Se uma
causa como esta pode produzir um ataque assim, posso ter o mesmo tipo de
ataque, já que tenho as mesmas razões para isso.” Se essa inferência fosse
capaz de penetrar na consciência, é possível que desse margem a um medo
de ter a mesma espécie de ataque. Mas, de fato, a inferência se processa numa
região psíquica diferente e conseqüentemente resulta na concretização real do
temido sintoma. Assim, a identificação não constitui uma simples imitação, mas
uma assimilação baseada numa alegação etiológica semelhante; ela
expressa uma semelhança e decorre de um elemento comum que permanece no
inconsciente.
A identificação é empregada com mais freqüência
na histeria para expressar um elemento sexual comum. Uma mulher
histérica se identifica mais rapidamente - embora não exclusivamente - em seus
sintomas com as pessoas com quem tenha tido relações sexuais, ou com as pessoas
que tenham tido relações sexuais com as mesmas pessoas que ela. O uso da língua
leva isso em conta, pois fala-se em duas pessoas apaixonadas como sendo “uma
só”. Nas fantasias histéricas, tal como nos sonhos, é suficiente, para fins de
identificação, que o sujeito tenha pensamentos sobre relações sexuais,
sem que estas tenham necessariamente ocorrido na realidade. Assim, a paciente
cujo sonho venho discutindo estava simplesmente seguindo as normas dos
processos histéricos de pensamento ao expressar ciúme da amiga (que, aliás, ela
própria sabia ser injustificado), ocupar seu lugar no sonho e identificar-se
como ela por meio da criação de um sintoma - o desejo renunciado. O processo
poderia expressar-se verbalmente da seguinte maneira: minha paciente colocou-se
no lugar da amiga, no sonho, porque esta estava ocupando o lugar de minha
paciente junto ao marido e porque ela (minha paciente) queria tomar o lugar da
amiga no alto conceito em que o marido a tinha.
Uma contradição a minha teoria dos sonhos,
produzida por outra de minhas pacientes (a mais sagaz de todas as que relatam
seus sonhos), resolveu-se de maneira mais simples, porém com base no mesmo
padrão, a saber, que a não-realização de um desejo significava a realização de
outro. Certo dia, eu lhe estivera explicando que os sonhos são realizações de
desejos. No dia seguinte, ela me trouxe um sonho em que estava viajando com a
sogra até o lugar no campo onde iriam passar juntas as férias. Ora, eu sabia
que ela se rebelara violentamente contra a idéia de passar o verão perto da
sogra e que, poucos dias antes, conseguira evitar a temida proximidade reservando
aposentos numa estação de veraneio muito distante. E agora, seu sonho desfizera
a solução que ela havia desejado: não seria isso a mais contundente contradição
possível de minha teoria de que, nos sonhos, os desejos são realizados? Sem
dúvida; e bastou seguir a conseqüência lógica do sonho para chegar a sua
interpretação. O sonho mostrou que eu estava errado. Logo, era seu desejo
que eu estivesse errado, e seu sonho mostrou esse desejo realizado. Mas seu
desejo de que eu estivesse errado, que se realizou em relação a suas férias de
verão, dizia respeito, de fato, a um outro assunto mais sério. Pois, mais ou
menos nessa época, eu havia inferido do material produzido em sua análise que,
num período específico de sua vida, deveria ter ocorrido algo que foi relevante
na determinação de sua doença. Ela contestara isso, visto não ter nenhuma
lembrança de tal coisa, mas, logo depois, ficou provado que eu estava certo.
Assim, seu desejo de que eu estivesse errado, que se transformou em seu sonho
de passar as férias com a sogra, correspondia a um desejo bastante justificado
de que os fatos de que ela não vinha conscientizando pela primeira vez nunca
tivessem ocorrido.
Aventurei-me a interpretar - sem nenhuma
análise, mas apenas por meio de um palpite - um pequeno episódio ocorrido com
um amigo meu que freqüentara a mesma classe que eu durante todo o nosso curso
secundário. Um dia, ele ouviu uma palestra que proferi perante um pequeno
auditório sobre a idéia inédita de que os sonhos eram realizações de desejos. Foi
para casa e sonhou que perdera todos os seus casos (ele era advogado), e
depois me contestou nesse assunto. Fugi à questão, dizendo-lhe que, afinal de
contas, não se podem ganhar todos os casos. Mas pensei comigo mesmo:
“Considerando que, por oito anos a fio, sentei-me no banco da frente como
primeiro da classe, enquanto ele ficava ali pelo meio, ele dificilmente pode
deixar de alimentar um desejo, remanescente de seus tempos de escola, de que
mais dia menos dia, eu venha a me tornar um completo fracasso.”
Um sonho de natureza mais sombria foi também
apresentado contra mim por uma paciente como objeção à teoria dos sonhos de
desejo.
A paciente, um moça de pouca idade, assim
começou: “Como o senhor deve estar lembrado, minha irmã só tem agora um menino
- Karl; ela perdeu o filho mais velho, Otto, quando eu ainda morava com ela.
Otto era meu favorito; de certa forma, eu o criei. Também gosto do menorzinho,
mas, é claro, nem de longe tanto quanto gostava do que morreu. Então, ontem à
noite, sonhei que via Karl morto diante de mim. Estava deitado em seu
caixãozinho, com as mãos postas e velas a seu redor - de fato, exatamente como
o pequeno Otto, cuja morte foi um golpe tão forte para mim. Agora me diga:
que pode significar isso? O senhor me conhece. Será que sou uma pessoa tão má a
ponto de desejar que minha irmã perca o único filho que ainda tem? Ou será que
o sonho significa que eu preferiria que Karl estivesse morto, em vez de Otto,
de quem eu gostava muito mais?”
Assegurei-lhe que esta última interpretação
estava fora de cogitação. E, depois de refletir um pouco, pude dar-lhe a
interpretação correta do sonho, posteriormente confirmada por ela. Pude fazê-lo
porque estava familiarizado com toda a história prévia da autora do sonho.
Essa moça ficara órfã em tenra idade e fora
criada na casa de uma irmã muito mais velha. Entre os amigos que freqüentavam a
casa, havia um homem que deixou uma impressão duradoura em seu coração. Por
algum tempo, pareceu que suas relações mal admitidas com ele levariam ao
casamento, mas esse desenlace feliz foi reduzido a cinzas pela irmã, cujos
motivos jamais foram plenamente explicados. Depois do rompimento, esse homem
deixou de freqüentar a casa e, pouco depois da morte do pequeno Otto, para quem
ela voltara sua afeição neste ínterim, minha paciente fixou residência própria
sozinha. Não conseguiu, contudo, libertar-se de seu apego pelo amigo da irmã.
Seu orgulho ordenava que o evitasse, mas ela não conseguiu transferir seu amor
para nenhum dos outros admiradores que se apresentaram posteriormente. Sempre
que se anunciava que o objeto de suas afeições, que era por profissão um homem
de letras, ia proferir uma palestra em algum lugar, ela estava invariavelmente
na platéia; e aproveitava todas as oportunidades possíveis de contemplá-lo à
distância em campo neutro. Lembrei-me de que ela me dissera, na véspera, que o
Professor iria a um certo concerto, e que ela pretendia ir também para ter o
prazer de dar uma olhadela nele mais uma vez. Isso ocorrera na véspera do
sonho, e o concerto iria realizar-se no dia em que ela o relatou a mim. Foi-me
portanto fácil construir a interpretação correta, e perguntei-lhe se podia
pensar em alguma coisa que tivesse acontecido após a morte do pequeno Otto. Ela
respondeu de pronto: “Naturalmente; o Professor veio visitar-nos de novo depois
de uma longa ausência e eu o vi mais uma vez ao lado do caixão do pequeno
Otto.” Isso era exatamente o que eu esperava, e interpretei o sonho desta
forma: “Se o outro menino morresse agora, aconteceria a mesma coisa. Você
passaria o dia com sua irmã, e o Professor certamente viria apresentar seus
pêsames, de modo que você o veria mais uma vez nas mesmas condições que na
outra ocasião. O sonho significa apenas seu desejo de vê-lo mais uma vez, um
desejo contra o qual você vem lutando internamente. Sei que você tem na bolsa
uma entrada para o concerto de hoje. Seu sonho foi um sonho de impaciência:
antecipou em algumas horas a visão que você vai ter dele hoje.”
A fim de ocultar seu desejo, ela evidentemente
escolhera uma situação em que tais desejos costumam ser suprimidos, na situação
em que se está tão repleto de tristeza que não se tem nenhum pensamento
amoroso. Contudo, é bem possível que, mesmo na situação real da qual o sonho
foi uma réplica exata, junto ao caixão do menino mais velho a quem ela amara
ainda mais, talvez ela não tenha podido suprimir seus ternos sentimentos pelo
visitante que estivera ausente por tanto tempo.
Um sonho semelhante de outra paciente recebeu
uma explicação diferente. Quando jovem ela se destacara por sua inteligência
viva e sua disposição alegre; e essas características ainda podiam ser
observadas, pelo menos nas idéias que lhe ocorriam durante o tratamento. No
decorrer de um sonho um tanto longo, essa senhora imaginou ver sua única filha,
de quinze anos de idade, morta “numa caixa”. Estava parcialmente inclinada a
utilizar essa cena como uma objeção à teoria da realização dos desejos, embora
ela própria suspeitasse de que o detalhe da “caixa” devia estar apontando para
outra visão do sonho. No decorrer da análise, ela lembrou que, numa reunião
na noite anterior, falara-se um pouco sobre a palavra inglesa “box” e as
várias formas pelas quais se poderia traduzi-la em alemão - tais como “Schachtel”
[“caixa”] “Loge” [“camarote de teatro”], Kasten [arca], “Ohrfeige”
[“murro no ouvido”], e assim por diante. Outras partes do mesmo sonho nos
permitiram descobrir ainda que ela havia pensado que “box”, em inglês, se
relacionava mesmo com o “Büchse” [“receptáculo”] em alemão, e que depois
fora atormentada pela lembrança de que “Büchse” é empregado como termo
vulgar para designar os órgãos genitais femininos. Fazendo uma certa concessão
aos limites de seus conhecimentos de anatomia topográfica, poder-se-ia
presumir, portanto, que a criança que jazia na caixa significava um embrião no
útero. Após ter sido esclarecida quanto a esse ponto, ela não mais negou que a
imagem onírica correspondesse a um desejo seu. Como tantas jovens casadas, ela
não ficara nada satisfeita ao engravidar, e, mais de uma vez, tinha-se
permitido desejar que a criança que trazia no ventre morresse. De fato, num
acesso de cólera após uma cena violenta com o marido, ela batera com os punhos
cerrados no próprio corpo para atingir a criança lá dentro. Dessa forma, a
criança morta era de fato a realização de um desejo, mas de um desejo que fora
posto de lado quinze anos antes. Dificilmente se pode ficar admirado com o fato
de um desejo realizado após uma demora tão prolongada não ser reconhecido.
Muitas coisas haviam mudado nesse intervalo. [1]
Terei de voltar ao grupo de sonhos a que
pertencem os dois últimos exemplos (sonhos que tratam da morte de parentes a
quem o sonhador é afeiçoado) quando vier a considerar os sonhos “típicos” [em
[1]]. Poderei então mostrar, mediante outros exemplos, que, apesar de seu
conteúdo não desejado, todos esses sonhos devem ser interpretados como
realizações de desejos.
Devo o sonho seguinte não a um paciente, mas a
um inteligente jurista de minhas relações. Ele o narrou a mim, mais uma vez,
para me impedir de fazer uma generalização apressada da teoria dos sonhos de
desejos. “Sonhei”, disse meu informante, “que chegava a minha casa de
braço dado com uma senhora. Havia uma carruagem fechada em frente à casa e um
homem dirigiu-se a mim, mostrou-me suas credenciais de policial e me
solicitou que o acompanhasse. Pedi-lhe que me concedesse algum tempo para pôr
meus negócios em ordem. Será que o senhor acha que eu tenho um desejo de
ser preso?” - Naturalmente que não, não pude deixar de concordar. O senhor sabe
por acaso sob que acusação foi preso? - “Sim, por infanticídio, creio eu.” -
Infanticídio? Mas por certo o senhor sabe que esse é um crime que só pode ser
praticado por uma mãe contra um recém-nascido, não sabe? - “É verdade.”2 - E em
que circunstâncias o senhor teve o sonho? Que aconteceu na noite anterior? -
“Preferiria não lhe dizer. É um assunto delicado.” - Mesmo assim, terei de
ouvi-lo; caso contrário, teremos de desistir da idéia de interpretar o sonho. -
“Muito bem; então, escute. Ontem não passei a noite em casa, e sim com uma dama
que significa muito para mim. Ao acordarmos pela manhã, houve outro contato
entre nós, depois do qual dormi novamente e tive o sonho que lhe descrevi.” -
Ela é casada? - “É.” - E o senhor não quer ter um filho com ela, não é verdade?
“Ah, não; isso poderia nos denunciar.” - Então o senhor não pratica o coito
normal? - “Tomo a precaução de retirar antes da ejaculação.” - Acho que posso
presumir que o senhor usou esse expediente várias vezes durante a noite, e que
depois de repeti-lo pela manhã sentiu-se um pouco inseguro sobre tê-lo
executado com êxito. - “É possível, sem dúvida.” - Nesse caso, seu sonho foi a
realização de um desejo. Tranqüilizou-o com a idéia de que o senhor não havia
gerado uma criança, ou, o que dá no mesmo, que matara uma criança. Os elos
intermediários são fáceis de apontar. O senhor deve estar lembrado de que,
alguns dias atrás, falávamos das dificuldades do casamento, e de como é
incoerente que não haja nenhuma objeção a que se pratique o coito de modo a não
permitir que ocorra a fertilização, ao passo que qualquer interferência depois
que o óvulo e o sêmen se unem e um feto é formado é punida como crime. Depois
disso, lembramos a controvérsia medieval sobre o momento exato em que a alma
penetra no feto, já que é apenas depois disso que o conceito de assassinato se
torna aplicável. Sem dúvida, o senhor também conhece o tétrico poema de Lenau
[“Das tote Glück”] em que o assassinato de crianças e a prevenção da natalidade
são igualados. - “O curioso é que pensei em Lenau esta manhã, por mero acaso,
ao que me pareceu.” - Um eco posterior de seu sonho. E agora posso mostrar-lhe
outra realização incidental de desejo contida em seu sonho. O senhor chegou em
casa de braços dados com a dama. Logo, estava levando-a para casa, em
vez de passar a noite na casa dela, como fez na realidade. É possível que haja
mais de uma razão para que a realização do desejo que constitui o cerne do
sonho tenha-se disfarçado de forma tão desagradável. Talvez o senhor tenha
ficado sabendo, por meu artigo sobre a etiologia da neurose de angústia [Freud,
1895b], que considero o coitus interruptus como um dos fatores
etiológicos no desenvolvimento da angústia neurótica, não é? Seria condizente
com isso que, depois de praticar o ato sexual várias vezes dessa maneira, o
senhor ficasse com um mal-estar que depois se transformaria num elemento da
construção de seu sonho. Além disso, o senhor utilizou esse mal-estar para
ajudar a disfarçar a realização do desejo. [Ver em [1].] A propósito, sua referência
ao infanticídio não foi explicada. Como é que o senhor foi dar com esse crime
especificamente feminino? - “Tenho de admitir que, alguns anos atrás, vi-me
envolvido numa ocorrência desse tipo. Fui responsável pela tentativa de uma
moça de evitar a conseqüência de uma ligação amorosa comigo por meio de um
aborto. Nada tive a ver com o fato de ela pôr em prática sua intenção, mas, por
muito tempo, senti-me naturalmente muito nervoso com a idéia de que a história
viesse a público.” - Compreendo perfeitamente. Essa lembrança fornece uma
segunda razão pela qual o senhor deve ter-se preocupado com a suspeita de que
seu expediente pudesse não ter funcionado. [1]
Um jovem médico que me ouviu descrever esse
sonho durante um ciclo de palestras deve ter ficado muito impressionado com
ele, pois imediatamente o reproduziu, aplicando o mesmo padrão de pensamento a
outro tema. Um dia antes, ele entregara sua declaração de imposto de renda, que
havia preenchido com perfeita honestidade, pois tinha muito pouco a declarar. Então,
sonhou que um conhecido seu foi procurá-lo após sair de uma reunião de
membros da comissão de impostos e informou-o de que, embora não se tivesse
levantado qualquer objeção a nenhuma das outras declarações, a dele provocara
suspeitas generalizadas e uma pesada multa lhe fora imposta. O sonho foi
uma realização precariamente disfarçada de seu desejo de ser conhecido como um
médico possuidor de grande renda. Isso faz lembrar a célebre história da moça
que foi aconselhada a não aceitar um certo pretendente, porque ele tinha um
gênio violento e por certo iria espancá-la se se casassem. “Ah, se ele já
tivesse começado a me espancar!”, respondeu ela. Seu desejo de se casar era tão
intenso que estava disposta a aceitar, de quebra, essa ameaça de aborrecimento,
chegando mesmo a transformá-la num desejo.
Os sonhos muito freqüentes, que parecem
contradizer minha teoria, por terem como tema a frustração de um desejo ou a
ocorrência de algo claramente indesejado, podem ser reunidos sob o título de
“sonhos com o oposto do desejo”. Se esses sonhos forem considerados como um
todo, parece-me possível buscar sua origem em dois princípios; ainda não
mencionei um deles, embora desempenhe um papel relevante não apenas nos sonhos
das pessoas, como também em suas vidas. Uma das duas forças propulsoras que
levam a esses sonhos é o desejo de que eu esteja errado. Tais sonhos
aparecem regularmente no curso de meus tratamentos, quando um paciente se
encontra num estado de resistência a mim; e posso contar como quase certo
provocar um deles depois de explicar a um paciente, pela primeira vez, minha
teoria de que os sonhos são realizações de desejos. A rigor, é de se
esperar que a mesma coisa aconteça com alguns dos leitores frustrados num
sonho, caso seu desejo de que eu esteja errado possa se realizar.
Esse mesmo ponto é ilustrado por um último
sonho dessa natureza que citarei aqui, obtido de uma paciente em tratamento.
Foi o sonho de uma moça que tivera êxito em sua luta para continuar seu
tratamento comigo, contrariando a vontade dos parentes e dos especialistas
cujas opiniões tinham sido consultadas. Sonhou que seus familiares a haviam
proibido de continuar a me consultar. Lembrou-me então a promessa que eu lhe
fizera de, se necessário, continuar o tratamento sem honorários. A isso,
respondi: “Não posso fazer nenhuma concessão em questões de dinheiro.” É
preciso admitir que não foi fácil identificar a realização de desejo nesse
exemplo. Mas, em todos esses casos, descobre-se um segundo enigma cuja solução
ajuda a desvendar o primeiro. Qual a origem das palavras que ela pôs em minha
boca? Naturalmente, eu não lhe dissera nada semelhante, mas um de seus irmãos -
o que maior influência exercia sobre ela - tivera a gentileza de me atribuir
esse sentimento. O sonho, portanto, pretendia provar que o irmão dela estava
certo. E não era apenas em seus sonhos que ela insistia em que ele tinha razão;
a mesma idéia dominava toda a sua vida e era o motivo de sua doença.
Um sonho que parece à primeira vista
trazer dificuldades especiais para a teoria da realização de desejos foi
sonhado e interpretado por um médico, e relatado por August Stärcke (1911): “Vi
em meu dedo indicador esquerdo o primeiro indício [Primäraffekt] de sífilis na
falange terminal.” A consideração de que, independentemente do conteúdo
indesejado do sonho, ele parece claro e coerente, poderia dissuadir-nos de
analisá-lo. No entanto, se estivermos dispostos a enfrentar o trabalho
envolvido, descobriremos que “Primäraffekt” era equivalente a uma “prima
affectio” (um primeiro amor), e que a úlcera repelente veio a representar,
para citar as palavras de Stärcke, “realizações de desejos com uma alta carga
emocional”.
O segundo motivo para os sonhos com o oposto do
desejo é tão óbvio que é fácil deixá-lo passar despercebido, como eu mesmo
fiz por tempo considerável. Há um componente masoquista na constituição
sexual de muitas pessoas, que decorre da inversão de um componente agressivo e
sádico em seu oposto. Aqueles que encontram prazer não na inflição de dor física
a eles, mas na humilhação e na tortura mental, podem ser descritos como
“masoquistas mentais”. Percebe-se de imediato que essas pessoas podem ter
sonhos com o oposto do desejo e sonhos desprazerosos que são, ainda assim,
realizações de desejos, pois satisfazem suas inclinações masoquistas. Citarei
um desses sonhos, produzido por um rapaz que, em sua meninice, havia
atormentado imensamente seu irmão mais velho, por quem tinha um apego
homossexual. Tendo seu caráter passado por uma modificação fundamental, ele
teve o seguinte sonho, dividido em três partes: I. Seu irmão mais velho
estava mexendo com ele. II. Dois homens se acariciavam com um objetivo
homossexual. III. Seu irmão vendera o negócio cujo diretor ele próprio aspirava
tornar-se. Ele despertou deste último sonho com sentimentos extremamente
aflitivos. Não obstante, tratava-se de um sonho masoquista de desejo e poderia
ser traduzido assim: “Seria bem feito para mim se meu irmão me confrontasse com
essa venda, como punição por todos os tormentos que ele teve de aturar de mim.”
Espero que os exemplos anteriores sejam
suficientes (até que se levante a próxima objeção) para fazer com que pareça
plausível que mesmo os sonhos de conteúdo aflitivo devem ser interpretados como
realizações de desejos. Ninguém, tampouco, há de considerar mera coincidência que
a interpretação desses sonhos nos tenha feito deparar, todas as vezes, com
tópicos sobre os quais as pessoas relutam em falar ou pensar. Os sentimento
aflitivo provocado por esses sonhos é idêntico à repugnância que tende (em geral
com êxito) a nos impedir de discutir ou mencionar tais tópicos, e que cada um
de nós tem de superar quando, apesar disso, sente-se compelido a penetrar
neles. Mas o sentimento de desprazer que assim se repete nos sonhos não nega a
existência de um desejo. Todos têm desejos que prefeririam não revelar a outras
pessoas, e desejos que não admitem nem sequer perante si mesmos. Por outro
lado, é justificável ligarmos o caráter desprazeroso de todos esses sonhos com
o fato da distorção onírica. E é justificável concluirmos que esses sonhos são
distorcidos, e que a realização de desejo neles contida é disfarçada a ponto de
se tornar irreconhecível, precisamente em vista da repugnância que se sente
pelo tema do sonho ou pelo desejo dele derivado, bem como da intenção de
recalcá-los. Demonstra-se, assim, que a distorção do sonho é de fato um ato da
censura. Estaremos levando em conta tudo o que foi trazido à luz por nossa
análise dos sonhos desprazerosos se fizermos a seguinte modificação na fórmula
com que procuramos expressar a natureza dos sonhos: o sonho é uma
realização (disfarçada) de um desejo (suprimido ou recalcado.)
Resta examinar os sonhos de angústia como uma
subespécie particular dos sonhos de conteúdo aflitivo. A idéia de considerá-los
como sonhos impregna dos de desejo encontrará muito pouca receptividade por
parte dos não esclarecidos. Não obstante, posso abordar os sonhos de angústia
muito sucintamente neste ponto. Eles não nos apresentam um novo aspecto do
problema dos sonhos; aquilo com que nos confrontam é toda a questão da angústia
neurótica. A angústia que sentimos num sonho é apenas aparentemente
explicada pelo conteúdo do sonho. Se submetermos o conteúdo do sonho à análise,
verificaremos que a angústia do sonho não se justifica melhor pelo conteúdo do
sonho do que, digamos, a angústia de uma fobia se justifica pela representação
com que se relaciona a fobia. Sem dúvida é verdade, por exemplo, que é
possível cair de uma janela, e portanto há razão para se exercer certo grau de
cautela nas proximidades de uma janela; mas não vemos por que a angústia
sentida a esse respeito numa fobia deva ser tão grande e persiga o paciente
muito além da oportunidade de sua ocorrência. Assim, constatamos que a
mesma coisa pode ser validamente afirmada em relação à fobia e aos sonhos de
angústia: em ambos os casos, a angústia está apenas superficialmente ligada à
representação que a acompanha; ela se origina em outra fonte.
Já que existe estreita ligação entre a angústia
nos sonhos e nas neuroses, ao examinar a primeira precisarei referir-me à
última. Num trabalho sucinto sobre a neurose de angústia (Freud, 1895b),
argumentei há algum tempo que a angústia neurótica se origina da vida sexual e
corresponde à libido que se desviou de sua finalidade e não encontrou aplicação.
Desde então, essa fórmula tem resistido à prova do tempo, permitindo-nos agora
inferir dela que os sonhos de angústia são sonhos de conteúdo sexual cuja
respectiva libido se transformou em angústia. Haverá oportunidade, mais
adiante, de fundamentar essa assertiva na análise dos sonhos de alguns
pacientes neuróticos. Também no decurso de mais uma tentativa de chegar a
uma teoria dos sonhos, terei oportunidades de examinar mais uma vez os
determinantes dos sonhos de angústia e sua compatibilidade com a teoria de
realização de desejos.
Capítulo V - O MATERIAL E AS FONTES DOS SONHOS
Quando a análise do sonho da injeção de Irma
nos mostrou que um sonho poderia ser a realização de um desejo, nosso interesse
foi a princípio inteiramente absorvido pela questão de saber se teríamos
chegado a uma característica universal dos sonhos e sufocamos temporariamente
nossa curiosidade sobre quaisquer outros problemas científicos que pudessem
surgir durante o trabalho de interpretação. Tendo seguido um caminho até o fim,
podemos agora voltar sobre nossos passos e escolher outro ponto de partida para
nossas incursões através dos problemas da vida onírica: por ora, podemos deixar
de lado o tópico da realização de desejos, embora ainda estejamos longe de
tê-lo esgotado.
Agora que a aplicação de nosso método para a
interpretação dos sonhos nos permite descobrir neles um conteúdo latente,
que é muito mais significativo do que seu conteúdo manifesto, surge de
imediato a tarefa premente de reexaminar um por um os vários problemas
levantados pelos sonhos, para ver se não estaremos agora em condições que
pareciam inabordáveis enquanto só tínhamos conhecimento do conteúdo manifesto.
No primeiro capítulo, apresentei um relato
pormenorizado dos pontos de vista das autoridades sobre a relação dos sonhos
com a vida de vigília [Seção A] sobre a origem do material dos sonhos [Seção
C]. Sem dúvida, meus leitores se recordarão também das três características da
memória nos sonhos [Seção B], tão freqüentemente comentadas, porém nunca explicadas:
(1) Os sonhos mostram uma clara preferência
pelas impressões dos dias imediatamente anteriores [em [1] e seg.]. Cf. Robert [1886, 46], Strümpell [1877, 39], Hildebrandt [1875, 11] e
Hallam e Weed [1896, 410 e seg.].
(2) Fazem sua escolha com base em diferentes
princípios de nossa memória de vigília, já que não relembram o que é essencial
e importante, mas o que é acessório e despercebido. [Ver em [1]]
(3) Têm à sua disposição as impressões mais
primitivas da nossa infância e até fazem surgir detalhes desse período de nossa
vida que, mais uma vez, parecem-nos triviais e que, em nosso estado de vigília,
acreditamos terem caído no esquecimento há muito tempo. [Ver em [1]]
(A) MATERIAL RECENTE E
IRRELEVANTE NOS SONHOS
Se examinar minha própria experiência com a
questão da origem dos elementos incluídos no conteúdo dos sonhos, deverei
começar pela afirmação de que, em todo sonho, é possível encontrar um ponto de
contato com as experiências do dia anterior. Essa visão é confirmada por cada
um dos sonhos que investigo, sejam eles meus ou de qualquer outra pessoa. Tendo
em mente esse fato, posso, ocasionalmente, começar a interpretação de um sonho
procurando o acontecimento da véspera que o acionou; em muitos casos, de fato,
isso constitui o método mais fácil.
Nos dois
sonhos que analisei pormenorizadamente em meus últimos capítulos (o sonho da
injeção de Irma e o de meu tio de barba amarela, a relação com o dia anterior é
tão evidente que não exige nenhum outro comentário. Mas, para mostrar a
regularidade com que se pode identificar essa ligação, percorrerei os registros
de meus próprios sonhos e darei alguns exemplos. Citarei apenas o suficiente do
sonho para indicar a fonte que estamos procurando:
(1) Eu estava visitando uma casa à qual
tinha dificuldade em ter acesso…; nesse ínterim, deixava uma senhora
ESPERANDO.
Fonte: Eu tivera uma conversa com uma parenta na
noite anterior, na qual lhe dissera que ela teria que esperar por uma compra
que desejava fazer até… etc.
(2) Eu tinha escrito uma MONOGRAFIA sobre
uma certa espécie (indistinta) de planta.
Fonte: Naquela manhã eu vira uma monografia
sobre o gênero Ciclâmen na vitrina de uma livraria. [Ver em [1]]
(3) Eu via duas mulheres na rua, MÃE E
FILHA, sendo a segunda uma paciente minha.
Fonte: Uma de minhas pacientes me explicara, na
noite anterior, as dificuldades que sua mãe vinha antepondo à
continuação de seu tratamento.
(4) Fiz na livraria de S. e R. a assinatura
de um periódico que custava VINTE FLORINS por ano.
Fonte: Minha mulher me lembrara na véspera que eu
ainda lhe devia vinte florins para as despesas semanais da casa.
(5) Recebi UMA COMUNICAÇÃO do
COMITÊ Social Democrata, tratando-me como se eu fosse um MEMBRO.
Fonte: Eu havia recebido comunicações,
simultaneamente, do Comitê de Eleições Liberais e do Conselho da Liga
Humanitária, sendo que deste último órgão eu era de fato um membro.
(6) Um homem de pé em UM PENHASCO NO
MEIO DO MAR, À MANEIRA DE BÖCKLIN.
Fonte: Dreyfus na Île du Diable; eu recebera notícias,
ao mesmo tempo, de meus parentes na Inglaterra, etc.
Pode-se levantar a questão de determinar se o
ponto de contato com o sonho são invariavelmente os acontecimentos do dia imediatamente
anterior, ou se ele pode remontar a impressões oriundas de um período bem mais
extenso do passado mais recente. É improvável que essa questão envolva qualquer
assunto de importância teórica; não obstante, estou inclinado a decidir em prol
da exclusividade das solicitações do dia imediatamente anterior ao sonho - ao
qual me referirei como o “dia do sonho”. Sempre que se afigura, a princípio,
que a fonte de um sonho foi uma impressão de dois ou três dias antes, a
pesquisa mais detida tem-me convencido de que a impressão foi lembrada na
véspera, e assim tem sido possível demonstrar que uma reprodução da impressão,
ocorrida no dia precedente, poderia ser inserida entre o dia do acontecimento
original e o momento do sonho; além disso, tem sido possível indicar a
eventualidade do dia anterior que teria levado à lembrança da impressão mais
antiga.
Por outro lado, não me sinto
convencido de que haja qualquer intervalo regular de importância biológica
entre a impressão diurna instigadora e seu ressurgimento no sonho (Swoboda,
1904, mencionou um intervalo inicial de dezoito horas a esse respeito.)
Havelock Ellis [1911, 224], que também dispensou
certa atenção a esse ponto, declara ter sido incapaz de encontrar qualquer
periodicidade dessa ordem em seus sonhos, apesar de tê-la procurado. Ele
registra um sonho em que estava na Espanha e desejava ir a um lugar chamado
Daraus, Varaus ou Zaraus. Ao acordar, não pôde lembrar-se de nenhum topônimo
semelhante e pôs o sonho de lado. Alguns meses depois, descobriu que Zaraus
era, na verdade, o nome de uma estação na linha entre San Sebastian e Bilbao,
pela qual seu trem havia passado 250 dias antes de ele ter o sonho.
Creio, portanto, que o agente instigador de
todo sonho encontra-se entre as experiências sobre as quais ainda não se
“consultou o travesseiro”. Assim, as relações entre o conteúdo de um sonho e as
impressões do passado mais recente (com a única exceção do dia imediatamente
anterior à noite do sonho) não diferem sob nenhum aspecto de suas relações com
as impressões que datam de qualquer período mais remoto. Os sonhos podem
selecionar seu material de qualquer parte da vida do sonhador, contanto que
haja uma linha de pensamento ligando a experiência do dia do sonho (as
impressões “recentes”) com as mais antigas.
Mas por que essa preferência pelas impressões
recentes? Teremos alguma idéia sobre esse ponto, se submetermos um dos sonhos
da série que acabo de citar [em [1]] a uma análise mais completa. Para essa
finalidade, escolherei o
SONHO DA MONOGRAFIA DE BOTÂNICA
Eu escrevera uma monografia sobre certa planta.
O livro estava diante de mim e, no momento, eu virava uma página dobrada que
continha uma prancha colorida. Encadernado com cada exemplar havia um espécime
seco de planta, como se tivesse sido retirado de um herbário.
ANÁLISE
Naquela manhã, eu vira um novo livro na vitrina
de uma livraria, trazendo o título O Gênero Ciclâmen - evidentemente uma
monografia sobre essa planta.
Os ciclâmens, refleti, eram as flores
prediletas de minha mulher e me repreendi por lembrar-me tão raramente de levar
flores para ela, que era o que lhe agradava. - A questão de “levar
flores” lembrou-me um episódio que eu repetira recentemente para um círculo
de amigos e que havia usado como prova em favor de minha teoria de que o
esquecimento é, com muita freqüência, determinado por um objetivo inconsciente,
e que sempre permite que se deduzam as intenções secretas da pessoa que
esquece. Uma jovem estava habituada a receber um buquê de flores do marido
em seu aniversário. Certo ano, esse símbolo da afeição dele deixou de se
manifestar e ela irrompeu em pranto. O marido chegou em casa e não teve nenhuma
idéia da razão por que ela estava chorando, até que ela lhe disse que era o dia
de seu aniversário. Ele levou a mão à cabeça e exclamou: “Sinto muito, mas eu
havia esquecido por completo! Vou sair agora mesmo para buscar suas flores”.
Mas não houve meio de consolá-la, pois ela reconheceu que o esquecimento do
marido era uma prova de que ela já não ocupava o mesmo lugar de antes em seus
pensamentos. - Essa senhora, Sra. L., encontrara minha mulher dois dias antes
de eu ter o sonho, dissera-lhe que estava se sentindo muito bem e perguntara
por mim. Alguns anos antes, ela me procurara para tratamento.
Comecei então outra vez. Certa feita,
recordei-me, eu realmente havia escrito algo da natureza de uma monografia
sobre uma planta, a saber, uma dissertação sobre a planta da coca
[Freud, 1884e], que atraíra atenção de Karl Koller para as propriedades
anestésicas da cocaína. Eu mesmo havia indicado essa aplicação do alcalóide
em meu artigo publicado, mas não fora suficientemente rigoroso para levar o
assunto adiante. Isso me fez lembrar que, na manhã do dia após o sonho -
não tivera tempo de interpretá-lo senão à noite - eu havia pensado na cocaína,
numa espécie de devaneio. Se algum dia tivessa glaucoma, pensei, iria até
Berlim e me faria operar, incógnito, na casa de meu amigo [Fliess], por um
cirurgião recomendado por ele. O cirurgião que me operasse, que não teria
nenhuma idéia de minha identidade, vangloriar-se-ia mais uma vez das
facilidades com que essas operações podiam ser realizadas desde a introdução da
cocaína, e eu não daria a menor indicação de que eu próprio tivera participação
na descoberta. Essa fantasia me levara a reflexões de como é difícil para um
médico, no final das contas, procurar tratamento para si próprio com seus
colegas de profissão. O cirurgião oftalmologista de Berlim não me conheceria, e
eu poderia pagar seus honorários como qualquer outra pessoa. Só depois de me
haver lembrado desse devaneio foi que compreendi que a lembrança de um evento
específico jaz por trás do mesmo. Logo após a descoberta de Koller, meu pai
fora na verdade atacado de glaucoma; um amigo meu, o Dr. Konigstein, cirurgião
oftalmologista, o havia operado, enquanto o Dr. Koller se encarregara da
anestesia de cocaína e comentara o fato de que esse caso reunira todos os três
homens que haviam participado da introdução da cocaína.
Meus pensamentos prosseguiram então até o
momento em que eu me lembrara pela última vez dessa questão da cocaína. Fora
alguns dias antes,quando eu examinava um exemplar de um Festchrift
em que alunos reconhecidos tinham celebrado o jubileu de seu professor e
diretor do laboratório. Entre as pretensões de dinstinção do laboratório
enumeradas nesse livro vira uma menção do fato de que Koller ali fizera sua
descoberta das propriedades anestésicas da cocaína. Percebi então, subitamente,
que meu sonho estava ligado a um acontecimento da noite anterior. Eu voltara
para casa a pé justamente com o Dr. Konigstein e conversara com ele sobre um
assunto que nunca deixa de provocar minhas emoções sempre que é levantado.
Enquanto conversava com ele no saguão de entrada, o Professor Gartner
[Jardineiro] e a esposa vieram juntar-se a nós, e não pude deixar de felicitar
ambos por sua aparência florescente. Mas o Professor Gartner era um dos
autores do Festschrift que acabo de mencionar, e é bem possível que me
tenha feito lembrar dele. Além disso, a Sra. L., cujo desapontamento no
aniversário descrevi anteriormente, foi mencionada - embora, é verdade, apenas
em relação a outro assunto - em minha conversa com o Dr. Konigstein.
Faria uma tentativa de interpretar também os
outros determinantes do conteúdo do sonho. Havia um espécime seco da planta
incluído na monografia, como se ela fosse um herbário. Isso me levou a
uma recordação de minha escola secundária. Nosso diretor, certa vez, reuniu os
meninos das classes mais adiantadas e confiou-lhes o herbário da escola para
ser examinado e limpo. Alguns vermezinhos - traças de livros - tinham
penetrado nele. Parece que o diretor não confiava muito em minha ajuda, pois
entregou-me apenas algumas folhas. Estas, como ainda me lembro, compreendiam
algumas Crucíferas. Eu nunca tivera o contato especialmente íntimo com a
botânica. Em meu exame preliminar de botânica, também recebi uma Crucífera para
identificar - e não consegui fazê-lo. Minhas perspectivas não teriam sido muito
brilhantes, se eu não tivesse podido contar com meus conhecimentos teóricos.
Passei das Crucíferas para as Compostas. Ocorreu-me que as alcachofras eram
Compostas e que, na verdade, eu poderia com justiça chamá-las de minhas flores
favoritas. Sendo mais generosa do que eu, minha mulher muitas vezes me
trazia do mercado essas minhas flores favoritas.
Vi diante de mim a monografia que eu
esperava. Também isso me remeteu a alguma coisa. Eu recebera na véspera uma
carta de meu amigo [Fliess] de Berlim em que ele demonstrara sua capacidade de
visualização: “Estou extremamente ocupado com seu livro dos sonhos. Vejo-o
concluído diante de mim e vejo a mim mesmo virando-lhe as páginas”.
Como invejei nele esse dom de vidente! Se ao menos eu pudesse vê-lo concluído
diante de mim!
A prancha colorida dobrada. Quando estudante de
medicina, eu era vítima constante de um impulso de só aprender as coisas em monografias.
Apesar de meus recursos limitados, consegui adquirir muitos volumes das atas de
sociedades médicas e ficava fascinado com suas pranchas coloridas.
Orgulhava-me de minha ânsia de perfeição. Ao começar eu mesmo a publicar
trabalhos, vira-me obrigado a fazer meus próprios desenhos para ilustrá-los, e
lembrei-me que um deles tinha saído tão ruim que um colega, brincalhão, zombara
de mim por causa disso. Seguiu-se então - e não pude compreender bem como - uma
lembrança da minha meninice. Certa vez, meu pai se divertira ao entregar um
livro com pranchas coloridas (um relato de uma viagem pela Pérsia) a mim
e a minha irmã mais velha para que o destruíssemos. Nada fácil de justificar do
ponto de vista educativo! Nessa época, eu tinha cinco anos de idade e minha
irmã ainda não fizera três, e a imagem de nós dois, jubilosamente reduzindo o
livro a frangalhos (folha por folha, como uma alcachofra, percebi-me
dizendo), foi quase a única lembrança plástica que guardei desse período de
minha vida. Depois, quando me tornei estudante, desenvolvi a paixão de
colecionar e possuir livros, que era análoga a minha predileção por estudar em
monografias: um passatempo favorito. (A idéia de “favorito” já
surgira em relação aos ciclâmens e às alcachofras.) Eu me tornara uma traça
de livros (cf. herbário). Desde que me entendo por gente, sempre liguei
essa minha primeira paixão à lembrança infantil que mencionei aqui. Ou melhor,
eu tinha reconhecido que a cena infantil era uma “lembrança encobridora” para
minhas posteriores propensões bibliófilas. E cedo descobri, é claro, que as
paixões muitas vezes levam à dor. Quando tinha dezessete anos, contraí uma
dívida um tanto vultosa com meu livreiro e não tinha nada com que fazer face a
ela; e meu pai teve dificuldade em aceitar como desculpa que minhas inclinações
poderiam ter tomado um rumo pior. A recordação dessa experiência dos anos
posteriores de minha juventude me fez lembrar imediatamente a conversa com meu
amigo, o Dr. Königstein, pois no decurso dela havíamos discutido a mesma
questão de eu ser criticado por ficar absorto demais em meus passatempos
favoritos.
Por motivos que não nos interessam, não
prosseguirei na interpretação desse sonho, indicando simplesmente a direção por
ela tomada. No decorrer do trabalho de análise, lembrei-me de minha conversa
com o Dr. Königstein e fui conduzido a ela a partir de mais de uma direção.
Quando levo em conta os assuntos abordados nessa conversa, o sentido do sonho
se me torna inteligível. Todos os fluxos de pensamento que partem do sonho - as
idéias sobre as flores favoritas de minha esposa e minhas, sobre a cocaína,
sobre a dificuldade do tratamento médico entre colegas, sobre minha preferência
por estudar monografias e sobre minha negligência para com certos ramos da ciência,
como a botânica -, todos esses fluxos de pensamento, quando levados adiante,
acabavam por conduzir a uma ou outra das numerosas ramificações de minha
conversa com o Dr. Königstein. Mais uma vez, o sonho, como o que analisamos
primeiro - o sonho da injeção de Irma -, revela ser da natureza de uma
autojustificação, uma defesa em favor de meus próprios direitos. Na verdade,
ele levou o assunto levantando no primeiro sonho um estágio adiante e o
examinou com referência ao material novo que surgira no intervalo entre os dois
sonhos. Mesmo a forma aparentemente irrelevante de que se revestiu o sonho
mostra ter tido importância. O que ela quis dizer foi: “Afinal de contas, sou o
homem que escreveu o valioso e memorável trabalho (sobre a cocaína)”, tal como
eu dissera a meu favor no primeiro sonho: “Sou um estudioso esforçado e
consciencioso.” Em ambos os casos, aquilo em que eu insistia era: “Posso
permitir-me fazer isto.” Não há necessidade, porém, de eu levar a interpretação
do sonho mais adiante, já que meu único objetivo ao relatá-lo foi ilustrar, por
meio de um exemplo, a relação entre o conteúdo de um sonho e a experiência da
véspera que o provocou. Enquanto eu me apercebia apenas do conteúdo manifesto
do sonho, ele pareceu estar relacionado somente com o único evento do
dia do sonho. Mas, uma vez efetuada a análise, surgiu uma segunda fonte
do sonho em outra experiência do mesmo dia. A primeira dessas duas impressões
com que o sonho se ligou era irrelevante, um fato secundário: eu vira um livro
numa vitrina cujo título atraíra por um momento minha atenção, mas cujo assunto
dificilmente me interessaria. A segunda experiência tivera um alto grau de
importância psíquica: eu mantivera uma boa hora de conversa animada com meu
amigo oftalmologista, no decorrer da qual lhe dera algumas informações que
estavam fadadas a afetar de perto a nós dois, e tinham-se avivado em mim
algumas lembranças que me haviam despertado a atenção para uma grande variedade
de tensões internas em minha própria mente. Além disso, a conversa fora
interrompida antes de sua conclusão por causa dos conhecidos que se juntaram a
nós.
Devemos agora perguntar qual foi a relação das
duas impressões do dia do sonho entre si e com o sonho da noite subseqüente. No
conteúdo manifesto do sonho, só se fez alusão à impressão irrelevante, o
que parece confirmar a idéia de que os sonhos têm uma preferência por captar
detalhes sem importância da vida de vigília. Todas as correntes da
interpretação, por outro lado, levaram à impressão importante, àquela que
justificadamente agitara meus sentimentos. Se o sentido do sonho for julgado,
como certamente só pode ser, por seu conteúdo latente, tal como relevado pela
análise, um fato novo e significativo é inesperadamente trazido à luz. O enigma
de por que os sonhos se interessam apenas por fragmentos sem valor da vida de
vigília parece haver perdido todo o seu significado; tampouco é possível
continuar a sustentar que a vida de vigília não é levada adiante dos sonhos e
que estes são, portanto, uma atividade psíquica desperdiçada num material
descabido. O inverso é verdadeiro: nossos pensamentos oníricos são dominados
pelo mesmo material que nos ocupou durante o dia e só nos damos o trabalho de
sonhar com as coisas que nos deram motivo para reflexão durante o dia.
Por que é então que, embora a causa de meu
sonho tenha sido uma impressão diurna pela qual eu fora justificadamente
agitado, sonhei, na realidade, com uma coisa irrelevante? A explicação mais
óbvia, sem dúvida, é que, mais uma vez, estamos diante de um dos fenômenos da
distorção onírica, que em meu último capítulo liguei a uma força psíquica
atuando como censura. Minha lembrança da monografia sobre o gênero Clicâmen
serviria, assim, à finalidade de constituir uma alusão à conversa com
meu amigo, tal como o “salmão defumado” do sonho com a ceia abandonada [em [1]]
servira de alusão à idéia da sonhadora sobre sua amiga. A única questão
prende-se aos elos intermediários que permitiram à impressão da monografia
servir de alusão à conversa com o oftalmologista, considerando que, à primeira
vista, não há nenhuma ligação óbvia entre elas. No exemplo da ceia que não se
concretizou, a ligação foi dada imediatamente: sendo o prato predileto da
amiga, o “salmão defumado” constituiu um integrante imediato do grupo de representações
que tinham probabilidade de ser despertadas na mente da sonhadora pela
personalidade de sua amiga. Neste último exemplo, houve duas impressões soltas
que, à primeira vista, só tinham em comum o fato de terem ocorrido no mesmo
dia: eu vira a monografia pela manhã e tivera a conversa na mesma noite. A
análise permitiu-nos solucionar o problema da seguinte maneira: tais
ligações,quando não estão presentes em primeiro lugar, são retrospectivamente
urdidas entre o conteúdo de representações de uma impressão e o de outra. Já
chamei atenção para os elos intermediários no presente caso através das
palavras que grifei em meu relatório da análise. Se não tivesse havido
quaisquer influências de outro setor, a representação da monografia sobre a
Ciclâmen teria apenas conduzido, imagino eu, à idéia de ele ser a flor favorita
de minha mulher e, possivelmente, também ao buquê ausente da Sra. L. É-me
difícil imaginar que esses pensamentos de fundo teriam sido suficientes para
evocar um sonho. Como nos diz o texto de Hamlet:
“Senhor, para dizer-nos isso era supérfluo
Que algum fantasma deixasse a sepultura.”
Mas, vejam bem, foi-me lembrado na análise que
o homem que interrompeu nossa conversa se chamava Gärtner [Jardineiro] e que eu
havia pensado que sua mulher tinha uma aparência florescente. E mesmo ao
escrever estas palavras, recordo-me que uma de minhas pacientes, que tinha o
encantador nome de Flora, foi por algum tempo o pivô de nossa discussão.
Esses devem ter sido os elos intermediários, decorrentes do grupo de
experiências daquele dia, a irrelevante e a estimulante. Estabeleceu-se a
seguir um outro conjunto de ligações - as que cercam a idéia da cocaína, que
tinha todo o direito de servir como elo entre a figura do Dr. Königstein e uma
monografia sobre botânica que eu havia escrito; e essas ligações fortaleceram a
fusão entre os dois grupos de representações, de modo que se tornou possível a
parte de uma experiência servir de alusão à outra.
Estou preparado para ver essa explicação ser
alvo de ataques, sob a alegação de ser arbitrária ou artificial. O que, poderão
perguntar, teria acontecido se o Professor Gärtner e sua esposa de aparência
florescente não tivessem vindo ao nosso encontro, ou se a paciente sobre a qual
falávamos se chamasse Anna em vez de Flora? A resposta é simples. Se essas
cadeias de pensamento tivessem estado ausentes, outras, sem dúvida, teriam sido
escolhidas. É bastante fácil construir tais cadeias, como demonstram os
trocadilhos e as charadas que as pessoas fazem todos os dias para seu divertimento.
O reino dos chistes não conhece fronteiras. Ou, indo um passo além, se não
tivesse havido nenhuma possibilidade de forjar elos intermediários suficientes
entre as duas impressões, o sonho simplesmente teria sido diferente. Outra
impressão irrelevante do mesmo dia - pois torrentes dessas impressões penetram
em nossa mente e são depois esquecidas - teria tomado o lugar da “monografia”
no sonho, estabelecido um elo com o assunto da conversa e servido para
representá-lo no conteúdo do sonho. Visto que a monografia, e não qualquer
outra idéia, foi na verdade escolhida para servir a essa função, devemos supor
que ela era a mais adequada à ligação. Não é necessário seguirmos o exemplo de
Hänschen Schlau, de Lessing, e nos surpreendermos ante o fato de que “somente
os ricos são os que têm mais dinheiro.”
Um processo biológico pelo qual, segundo nossa
exposição, as experiências irrelevantes tomam o lugar das psiquicamente
significativas, não pode deixar de despertar suspeita e espanto. Será nossa
tarefa, num capítulo posterior [Capítulo VI, Seção B, em [1] e segs.] tornar
mais inteligíveis as peculiaridades dessa operação aparentemente irracional.
Nesse momento, estamos apenas interessados nos efeitos de um processo
cuja realidade vi-me compelido a presumir mediante observações inumeráveis e
regularmente recorrentes feitas na análise dos sonhos. O que ocorre seria algo
da natureza de um “deslocamento” - de ênfase psíquica, talvez? - por meio de
elos intermediários; desse modo, representações que originalmente só tinham uma
carga fraca de intensidade recebem a carga de representações que eram
originalmente mais intensamente “catexizadas”, e acabam por
adquirir força suficiente para lhes permitir forçar entrada na consciência.
Tais deslocamentos não constituem nenhuma surpresa para nós quando se trata de
lidar com quantidades de afeto ou com as atividades motoras em geral.
Quando uma solteirona solitária transfere sua afeição para os animais, ou um
solteirão se torna um entusiástico colecionador, quando um soldado defende um
pedaço se torna um entusiástico colecionador, quando um soldado defende um
pedaço de pano colorido - uma bandeira - com o sangue de suas veias, quando
alguns segundos de pressão extra num aperto de mão significam a bem-aventurança
para o enamorado, ou quando, em Otelo, um lenço perdido desencadeia uma
explosão de cólera - todos esses são exemplos de deslocamento psíquicos aos
quais não fazemos nenhuma objeção. Mas, quando ouvimos dizer que uma decisão
quanto ao que alcançará nossa consciência e ao que será mantido fora dela - o
que pensaremos, em suma - foi tomada da mesma forma e com base nos mesmo
princípios, ficamos com a impressão de um evento patológico; e quando essas
coisas acontecem na vida de vigília, nós as classificamos de erros de
pensamento. Anteciparei as conclusões a que seremos posteriormente conduzidos
para sugerir que o processo psíquico que vimos em ação no deslocamento onírico,
muito embora não possa ser classificado de perturbação patológica, difere do
normal e deve ser considerado um processo de natureza mais primária.
[Ver mais adiante, Capítulo VII, Seção E, em [1]]
Assim, o fato de o conteúdo dos sonhos incluir
restos de experiências triviais deve ser explicado como uma manifestação da
distorção onírica (por deslocamento); e cabe lembrar que chegamos à conclusão
de que a distorção onírica seria o produto de uma censura que opera na passagem
entre duas atividades físicas. É de se esperar que a análise de um sonho revele
regularmente sua fonte de verdadeira e psiquicamente significativa na vida de
vigília, embora a ênfase se tenha deslocado da lembrança dessa fonte para a de
uma fonte irrelevante. Essa explicação nos coloca em completo conflito com a
teoria de Robert [em [1]], que deixa de ter qualquer serventia para nós. Pois o
fato que Robert se propõe explicar é um fato inexistente. Sua aceitação dele
repousa num mal-entendido, em sua não-substituição do conteúdo aparente
dos sonhos por seu significado real. E existe ainda outra objeção que se
pode levantar contra a teoria de Robert. Se fosse realmente da alçada dos
sonhos aliviar nossa memória das “sobras” das lembranças diurnas através de uma
atividade psíquica especial, nosso sono seria mais atormentado e mais trabalhoso
do que nossa vida mental quando estamos acordados. E isso porque o número de
impressões irrelevantes contra as quais nossa memória precisaria ser protegida
é, sem sombra de dúvida, imensamente grande: a noite não seria longa o bastante
para lidar com tal massa. É muito mais provável que o processo de esquecimento
das impressões irrelevantes prossiga sem a intervenção ativa de nossas forças
psíquicas.
Não obstante, não nos devemos apressar em
deixar de lado as idéias de Robert sem maior consideração. [Ver em [1]] Ainda
não explicamos o fato de uma das impressões irrelevantes da vida de vigília,
uma impressão que data, além disso, do dia precedente ao sonho, contribuir
invariavelmente para o conteúdo do sonho. As ligações entre essa impressão e a
verdadeira fonte do sonho no inconsciente nem sempre estão prontas para uso;
como vimos, elas só podem ser estabelecidas retrospectivamente, no decurso do trabalho
do sonho, com vistas, por assim dizer, a tornar viável o deslocamento
pretendido. Portanto, deve haver alguma força imperativa no sentido de se
estabelecerem ligações precisamente com uma impressão recente,embora
irrelevante, e esta deve possuir algum atributo que a torne especialmente
adequada para esse fim. Se assim não fosse, seria igualmente fácil para os
pensamentos oníricos deslocar sua ênfase para algum componente sem importância
em seu próprio círculo de representações.
As seguintes observações poderão ajudar-nos a
elucidar esse ponto. Se no decorrer de um único dia tivermos duas ou mais
experiências adequadas à provocação de um sonho, este fará uma referência
conjunta a elas como um todo único; ele é forçado a combiná-las numa unidade.
Eis aqui um exemplo. Numa tarde de verão, entrei num compartimento de um vagão
de trem onde encontrei dois conhecidos que eram estranhos um ao outro. Um deles
era um eminente colega médico, e outro era membro de uma família ilustre com a
qual eu mantinha relações profissionais. Apresentei os dois cavalheiros um ao
outro, mas, durante toda a longa viagem, eles conduziram sua conversa
tomando-me como intermediário, do modo que logo me vi discutindo vários
assuntos alternadamente, primeiro com um e depois com o outro. Pedi a meu amigo
médico que usasse sua influência em prol de um nosso conhecido comum que estava
iniciando sua clínica. O médico respondeu que estava convencido da capacidade
do rapaz, mas que sua aparência provinciana lhe dificultaria o acesso às
famílias da classe alta, ao qual retruquei que essa era exatamente a razão pela
qual ele necessitava de uma ajuda influente. Voltando-me para meu outro
companheiro de viagem, perguntei pela saúde de sua tia - mãe de um de meus
pacientes -, que na ocasião estava gravemente enferma. Na noite seguinte,
sonhei que o jovem em cujo benefício eu intercedera estava sentado numa
elegante sala de estar, em meio a um grupo seleto, composto de todas as pessoas
ilustres e ricas que eu conhecia, e que, com a desenvoltura de um homem de
sociedade, proferia uma oração fúnebre pela velha senhora (que, no meu sonho,
já havia falecido), tia de meu segundo companheiro de viagem. (Devo confessar
que não me dava muito bem com essa senhora.) Assim, meu sonho, mais uma vez,
elaborava ligações entre os dois conjuntos de impressões do dia anterior e os
combinara numa única situação.
Muitas experiências como essas levam-me a
afirmar que o trabalho do sonho está sujeito a uma espécie de exigência de
combinar todas as fontes que agiram como estímulos ao sonho numa única unidade
no próprio sonho.
Passarei agora à questão de investigar se a
fonte investigadora de um sonho, revelada pela análise, tem de ser,
invariavelmente, um fato recente (e significativo), ou se uma experiência
interna, isto é, a lembrança de um fato psiquicamente importante - um
fluxo de pensamentos -, pode assumir o papel de instigadora do sonho. A
resposta, baseada num grande número de análises, é decididamente favorável à
segunda alternativa. O sonho pode ser instigado por um processo interno que se
tornou, por assim dizer, um fato recente, graças à atividade do pensamento durante
o dia anterior.
Este parece ser o momento apropriado para
enumerar as diferentes condições às quais constatamos que as fontes dos sonhos
estão sujeitas. A fonte de um sonho pode ser:
(a) uma experiência recente e
psiquicamente significativa, que é diretamente representada no sonho, ou
(b) várias experiências recentes e
significativas, combinadas numa única unidade pelo sonho, ou
(c) uma ou mais experiências recentes
e significativas, representadas no conteúdo do sonho pela menção a uma
experiência contemporânea, mas irrelevante, ou
(d) uma experiência significativa
interna (por exemplo, um lembrança ou um fluxo de idéias), que é, nesse caso, invariavelmente
representada no sonho por uma menção a uma impressão recente, irrelevante.
Veremos que, na interpretação dos sonhos, uma
condição é sempre atendida: um componente do conteúdo do sonho é a repetição de
uma impressão recente do dia anterior. Essa impressão a ser representada no
sonho pode pertencer, ela própria, ao círculo de representações que cercam o
verdadeiro instigador do sonho - quer como parte essencial ou insignificante
dele - ou pode provir do campo de uma impressão irrelevante vinculada às idéias
que cercam o instigador do sonho por elos mais ou menos numerosos. A aparente
multiplicidade das condições dominantes é, na verdade, apenas dependente das
alternativas entre um deslocamento ter ou não ocorrido; e vale a pena ressaltar
que nos é facultado, por essas alternativas, explicar a gama contrastes entre
os diferentes sonhos, com a mesma facilidade com que a teoria médica encontra
uma possibilidade de fazê-lo através de sua hipótese de células cerebrais que
vão do estado parcial ao estado total de vigília (Ver em [1])
Convém ainda observar, se considerarmos esses
quatro casos possíveis, que um elemento psíquico que seja significativo, mas
não recente (por exemplo, uma seqüência de idéias ou uma lembrança), pode ser
substituído, para fins de formação de um sonho, por um elemento que seja
recente mas irrelevante, bastando para isso que duas condições sejam
satisfeitas: (1) o conteúdo do sonho deve estar ligado a uma experiência
recente, e (2) o instigador do sonho deve permanecer como um processo
psiquicamente significativo. Apenas num único caso - o caso (a) - essas
duas condições são satisfeitas por uma mesma e única impressão. Deve-se notar,
além disso, que as impressões irrelevantes que são passíveis de ser utilizadas
para a construção de um sonho, enquanto recentes, perdem essa capacidade tão
logo ficam um dia (ou, no máximo, alguns dias) mais velhas. Disso devemos
concluir que o caráter recente de uma impressão lhe confere uma espécie de
valor psíquico para fins de construção do sonho, que equivale, de certo modo,
ao valor das lembranças ou seqüências de idéias emocionalmente carregadas. A
base do valor assim conferido às impressões recentes no tocante à construção
dos sonhos só se tornará clara no decurso de nossas discussões psicológicas
subseqüentes.
Quanto a isso, aliás, notaremos que podem
ocorrer modificações em nosso material mnêmico de representações durante a
noite, sem que sejam observadas por nossa consciência. Somos freqüentemente
aconselhados, antes de tomarmos uma decisão final sobre algum assunto, a
“consultar o travesseiro”, e esse conselho é obviamente justificado. Mas aqui,
passamos da psicologia dos sonhos para a do sono, e esta não é a última ocasião
em que seremos tentados a fazê-lo.
Entretanto, é possível levantar uma objeção que
ameaça perturbar estas últimas conclusões. Se as impressões irrelevantes só
podem penetrar num sonho desde que sejam recentes, como é o que o conteúdo dos
sonhos abrange também elementos de um período mais antigo da vida, os quais, na
época em que eram recentes, não possuíam, para empregar as palavras de
Strümpell [1877, 40 e seg.], nenhum valor psíquico, e portanto deveriam ter
sido esquecidos há muito tempo - em outras palavras, elementos que não são nem
novos nem psiquicamente significativos?
Pode-se tratar plenamente dessa objeção
mediante uma referência às descobertas da psicanálise dos neuróticos. A
explicação é que o deslocamento que substitui o material psiquicamente
importante por material irrelevante (tanto nos sonhos como no pensamento) já
ocorreu, nesses casos, no período primitivo de vida em questão, e desde então
se fixou na memória. Esses elementos específicos, que eram originalmente
irrelevantes, já não o são agora, a partir do momento em que assumiram (por
meio do deslocamento) o valor do material psiquicamente significativo. Nada que
tenha realmente continuado a ser irrelevante pode ser reproduzido num
sonho.
O leitor concluirá acertadamente, com base nos
argumentos anteriores, que estou afirmando não existirem instigadores oníricos
irrelevantes - e, por conseguinte, que não há sonhos “inocentes”. São essas, no
sentido mais estrito e mais absoluto, minhas opiniões - se deixar de lado os
sonhos das crianças e, talvez, breves reações, nos sonhos, a sensações
experimentadas durante a noite. Afora isso, o que sonhamos é manifestamente
reconhecível como psiquicamente significativo, ou é distorcido e não pode ser
julgado até que o sonho tenha sido interpretado, depois do que se verificará
mais uma vez ser ele significativo. Os sonhos nunca dizem respeito a
trivialidades: não permitimos que nosso sono seja perturbado por tolices.
Os sonhos aparentemente inocentes revelam ser justamente o inverso quando nos
damos ao trabalho de analisá-los. São, se é que posso dizê-lo, lobos na pele do
cordeiro. Dado que esse é outro ponto em que posso esperar que me contradigam,
e já que me apraz contar com uma oportunidade de mostrar a distorção onírica em
ação, selecionarei alguns sonhos “inocentes” de meu registros e os submeterei à
análise.
I
Uma jovem inteligente e culta, reservada e
retraída em seu comportamento, relatou o seguinte: Sonhei que chegava tarde
demais ao mercado e não conseguia nada nem do açougueiro, nem da mulher que
vende legumes. Um sonho inocente, sem dúvida; mas os sonhos não são tão
simples assim, de modo que pedi que ela o narrasse com maiores detalhes.
Imediatamente, fez-me o seguinte relato: Sonhou que estava indo ao mercado
com a cozinheira, que carregava a cesta. Depois de ter pedido algo, o
açougueiro lhe disse: “Isso também é bom”. Ela rejeitou a oferta e se dirigiu à
vendedora de legumes, que tentou fazê-la comprar um legume estranho que estava
atado em molhos; mas era de cor negra. Disse ela: “Não reconheço isso;
não vou levá-lo.”
A ligação do sonho com o dia anterior era bem
direta. Ela realmente fora ao mercado tarde demais e nada conseguira. A
situação pareceu amoldar-se à frase “Die Fleischbank war schon geschlossen”
[“o açougue estava fechado”.] Fiquei alerta: não era essa, ou antes, seu
oposto, uma descrição vulgar de certa espécie de descuido nos trajes de um
homem? Mas a própria sonhadora não empregou a frase; talvez tivesse evitado
empregá-la. Esforcemo-nos, então, por chegar a uma interpretação dos detalhes
do sonho.
Quando alguma coisa num sonho tem o caráter de
discurso direto, isto é, quando é dita ou ouvida e não simplesmente pensada (e
é fácil, em geral, estabelecer a distinção com segurança), então isso provém de
algo realmente falado na vida de vigília - embora, por certo, esse algo seja
meramente alterado e, mais especialmente, desligado de seu contexto. Ao fazer uma
interpretação, um dos métodos consiste em partir desse tipo de expressões
orais. Qual seria, então, a origem da observação do açougueiro “Isso não se
consegue mais”? A resposta é que ela proviera de mim mesmo. Alguns dias
antes, eu havia explicado à paciente que as primeiras lembranças da infância “não
se conseguiam mais como tais”, mas eram substituídas, na análise, por
“transferências” e sonhos. Portanto, eu era o açougueiro, e ela
estava rejeitando essas transferências de velhos hábitos de pensar e sentir
para o presente. - Novamente, qual seria a origem de sua própria observação no
sonho: “Não reconheço isso; não vou levá-lo”? Para fins da análise, isso
teve de ser fracionado. “Não reconheço isso” era algo que ela dissera na
véspera à cozinheira, com quem tivera uma alteração; mas naquele momento, ela
prosseguira: “Comporte-se direito!” Nesse ponto ocorrera claramente um
deslocamento. Dentre as duas frases que empregara com a cozinheira, ela havia
escolhido a que era insignificante para inclusão no sonho. Mas somente a frase suprimida,
“Comporte-se direito!”, é que se enquadrava no restante do conteúdo do
sonho: essas teriam sido as palavras adequadas para se usar se alguém se
aventurasse a fazer sugestões impróprias e se esquecesse de “fechar seu
açougue”. As alusões subjacentes ao incidente com a vendedora de legumes foram
mais uma confirmação de que nossa interpretação estava na pista certa. Um
legume vendido em molho (atado no sentido do comprimento, como a paciente
acrescentou depois), e também negro, só poderia ser uma combinação onírica de
aspargo e rabanetes (espanhóis) negros. Nenhuma pessoa sagaz de qualquer dos
sexos pedirá uma interpretação sobre os aspargos. Mas o outro legume - “Schwarzer
Rettig” [“rabanete negro”] - pode ser entendido como uma exclamação - “Schwarzer,
rett’ dich!” [“Negrinho! Dê o fora!”] -; por conseguinte, também ela
parece sugerir o mesmo tema sexual de que suspeitáramos desde o início, quando
nos sentimos inclinados a introduzir a expressão sobre o açougue estar fechado
no relato original do sonho. Não precisamos investigar agora o sentido
integral do sonho. Isso, pelo menos, está bem claro: ele tinha um
sentido, e este estava longe de ser inocente.
II
Eis aqui outro sonho inocente, tido pela mesma
paciente, e que em certo sentido se correlaciona com o anterior. O marido
perguntou-lhe: “Você não acha que devemos mandar afinar o piano?” E ela
respondeu: “Não vale a pena; de qualquer maneira, os martelos precisam de
restauração.”
Mais uma vez, isso foi a repetição de um fato
real do dia anterior. O marido lhe fizera essa pergunta e ela dera uma resposta
dessa ordem. Mas qual seria a explicação para ela ter sonhado com isso? Ela
me disse que o piano era um caixa velha e repulsiva, que fazia um
barulho horroroso, que pertencia ao marido desde antes do casamento
e assim por diante. Mas a chave da solução só foi dada por estas palavras suas:
“Não vale a pena.” Estas derivavam de uma visita que ela fizera na véspera a
uma amiga. Haviam-lhe sugerido que tirasse o casaco, mas ela recusara com as
seguintes palavras: “Muito obrigada, mas não vale a pena;, só posso
ficar por alguns minutos.” Enquanto ela me dizia isso, lembrei-me de que,
durante a análise do dia anterior, ela de repente segurara o casaco, do qual um
dos botões se desabotoara. Era como estivesse dizendo: “Por favor, não olhe; não
vale a pena.” Da mesma forma, a “caixa” [“Kasten”] era um substituto
de “peito”, “caixa torácica” [“Brustkasten”]; e a interpretação do sonho
nos levou de volta, imediatamente, à época de seu desenvolvimento físico na puberdade,
quando ela começara a ficar insatisfeita com seu corpo. Dificilmente podemos
duvidar de que tenha reconduzido a tempos ainda mais remotos, se levarmos em
conta o termo “repulsivo” e o “barulho horroroso”, e se nos
lembrarmos de quantas vezes - tanto nos doubles entendres como nos
sonhos - os hemisférios menores do corpo da mulher são usados, quer como
contrastes, quer como substitutos, em lugar dos maiores.
III
Interromperei esta série por um momento para
inserir um breve sonho inocente produzido por um rapaz. Ele sonhou que estava
novamente vestindo seu sobretudo de inverno, o que era uma coisa terrível.
A razão aparente desse sonho fora um súbito retorno do tempo frio. Se
examinarmos mais de perto, porém, observaremos que as duas pequenas partes que
compõem o sonho não estão em completa harmonia, pois o que poderia haver de
“terrível” em vestir um sobretudo pesado ou grosso no frio? Além disso, a
inocência do sonho foi decisivamente abalada pela primeira associação que
ocorreu ao sonhado na análise. Lembrou-se de que uma dama lhe confiara, na
véspera, que seu filho mais novo devia sua existência a um preservativo
rasgado. Com base nisso, ele pôde reconstruir seus pensamentos. Um preservativo
fino era perigoso, mas um preservativo grosso era ruim. O preservativo foi
adequadamente representado como um sobretudo, visto que nos enfiamos em ambos.
Mas uma eventualidade como a que a dama lhe descrevera certamente seria
“terrível” para um homem solteiro.
E agora voltemos a nossa inocente sonhadora.
IV
Ela estava colocando uma vela num castiçal, mas
a vela se quebrou de modo que não ficava de pé adequadamente. As colegas de sua
escola disseram que ela era desajeitada, mas a diretora disse que não era culpa
dela.
Mais uma vez, a causa do sonho fora um fato
real. No dia anterior, ela realmente pusera uma vela num castiçal, embora esta
não se quebrasse. Certo simbolismo transparente estava sendo utilizado nesse
sonho. Uma vela é um objeto que pode excitar os órgãos genitais femininos e,
quando está quebrada, de modo que não possa ficar de pé adequadamente,
significa que o homem é impotente. (“Não era culpa dela.”) Mas poderia
uma jovem cuidadosamenteeducada, que fora poupada do impacto de tudo o que
fosse feio, ter sabido que uma vela podia ser usada para esse fim? Casualmente,
ela pôde indicar como foi que obteve essa informação. Certa feita, quando
estavam num barco a remo no Reno, outra embarcação com alguns estudantes
passaram por eles. Estavam muito animados e cantavam, ou antes, gritavam, uma
canção:
Wenn
die Königin von Schweden,Bei geschlossenen FensterlädenMit Apollokerzen…
Ou ela não conseguiu ouvir ou não intendeu a
última palavra, e teve de pedir ao marido que lhe desse a explicação
necessária. O verso foi substituído no conteúdo do sonho por uma recordação
inocente de alguma tarefa que ela executara desajeitadamente quando estava na
escola, e a substituição foi possibilitada graças ao elemento comum postigos
fechados. A ligação entre os temas masturbação e impotência é bastante
óbvia. O “Apolo” do conteúdo latente desse sonho ligava-o a um sonho anterior
em que aparecia a virgem Palas. Nada inocente, portanto.
V
Para que não fiquemos tentados, com demasiada
facilidade, a tirar dos sonhos conclusões sobre a vida real do sonhador,
acrescentarei mais um sonho da mesma paciente, que de novo tem uma aparência
inocente. “Sonhei,” disse ela, “com o que realmente fiz ontem: enchi
tanto uma maleta de livros que tive dificuldade em fechá-la, e sonhei
exatamente com o que aconteceu mesmo.” Nesse exemplo, a própria narradora
colocou a ênfase principal na consonância entre o sonho e a realidade. [Ver em
[1] e [2]-[3].] Todas essas opiniões e comentários sobre um sonho, embora
consigam um lugar no pensamento de vigília, são invariavelmente, na verdade,
parte do conteúdo latente do sonho, como veremos confirmado por outros exemplos
mais adiante [em [1]] O que nos foi dito, portanto, é que aquilo que o sonho
descrevia tinha realmente acontecido na véspera. Ocuparia muito espaço explicar
como foi que me ocorreu a idéia de utilizar a língua inglesa na interpretação.
Bata dizer que, mais uma vez, o que estava em questão era uma “caixinha” (cf. o
sonho da criança morta na “caixa”, [em [1]]), que estava tão cheia que não se
podia pôr mais nada nela. De qualquer modo, nada mau desta vez.
Em todos esses sonhos “inocentes”, o motivo da
censura é, obviamente, o fator sexual. Esse, porém, é um assunto de importância
primordial que tenho de deixar de lado.
(B) O MATERIAL INFANTIL COMO FONTE
DOS SONHOS
Como todos os outros autores nesse assunto, com
exceção de Robert, assinalei como terceira peculiaridade do conteúdo dos sonhos
poder ele incluir impressões que remontam à primeira infância e que não parecem
ser acessíveis à memória de vigília. Naturalmente, é difícil determinar com que
raridade ou freqüência isso ocorre, visto que a origem dos elementos oníricos
em questão não é reconhecida após o despertar. A prova de que aquilo com que
estamos lidando são impressões da infância deve, portanto, ser estabelecida por
meio de indícios externos, e é raro haver oportunidade de fazê-lo. Um exemplo
particularmente convincente é o apresentado por Maury [1878, 143 e seg., citado
em [1]], sobre o homem que um dia tomou a decisão de revisitar sua terra natal
após uma ausência de mais de vinte anos. Durante a noite que antecedeu a
partida, sonhou que estava num lugar inteiramente desconhecido e que ali
encontrava na rua um homem desconhecido e conversara com ele. Ao chegar a casa,
verificou que o lugar desconhecido era real e ficava bem nas imediações de sua
cidade natal, e que o homem desconhecido do sonho vinha a ser um amigo de seu
pai, já falecido, que ainda morava lá. Essa foi uma prova conclusiva de que, em
sua infância, ele vira tanto o homem como o lugar. Esse sonho também deve ser
interpretado como um sonho de impaciência, tal como da moça que tinha uma
entrada de teatro na bolsa (em [1]), o da criança cujo pai lhe prometera
levá-la a uma excursão até o Hameau (em [1]) e sonhos semelhantes. Os motivos
que levaram os autores dos sonhos a reproduzirem uma impressão específica de
sua infância, e não qualquer outra, não podem, é claro, ser descobertos sem uma
análise.
Alguém que freqüentou um de meus ciclos de
palestras e que se gabava de que seus sonhos muito raramente sofriam distorção
relatou-me que, não fazia muito tempo, sonhara ver seu antigo tutor na cama
com a babá que estivera com sua família até os seus onze anos de idade. No
sonho, ele identificara o local onde ocorreu a cena. Seu interesse tinha sido
despertado e ele contara o sonho a seu irmão mais velho, que rindo, confirmou a
veracidade do que ele havia sonhado. O irmão se lembrava muito bem daquilo,
pois tinha seis anos na época. Os amantes tinham o hábito de embriagar o menino
mais velho com cerveja, sempre que as circunstâncias eram favoráveis às
relações sexuais durante a noite. O menino mais novo -o sonhador -, que contava
então três anos de idade e dormia no quarto com a ama, não era considerado um
empecilho. [Ver também em [1].]
Há outra maneira de se estabelecer com certeza,
sem a assistência da interpretação, que um sonho contém elementos da infância.
É quando o sonho é do tipo que se chama “recorrente”, isto é, quando se teve o
sonho pela primeira vez na infância e depois ele reaparece constantemente, de
tempos em tempos, durante o sono adulto. Posso acrescentar aos exemplos
conhecidos desses sonhos alguns de meus próprios registros, embora eu mesmo
nunca tenha experimentado um deles. Um médico de trinta e poucos anos
relatou-me que, desde os primórdios de sua infância até a época atual, um leão
amarelo aparecia freqüentemente em seus sonhos; e pôde fornecer uma descrição
minuciosa dele. Esse leão de seus sonhos surgiu um dia em forma concreta, como
um enfeite de porcelana há muito desaparecido. O rapaz soube, então, por
intermédio da mãe, que esse objeto fora seu brinquedo predileto durante a
primeira infância, embora ele próprio houvesse esquecido desse fato.
Se passarmos agora do conteúdo manifesto dos
sonhos para os pensamentos oníricos que só a análise revela, constataremos,
para nosso espanto, que as experiências da infância também desempenham seu
papel em sonhos cujo conteúdo jamais levaria alguém a supô-lo. Devo um exemplo
particularmente agradável e instrutivo de um sonho dessa natureza ao meu
respeitado colega do leão amarelo. Após ler a narrativa de Nansen sobre sua
expedição polar, ele sonhou que estava num campo de gelo e aplicava ao bravo
explorador tratamento galvânico contra um ataque de ciática do qual ele estava
sofrendo. No processo de análise do sonho, ele pensou numa história que datava
de sua infância, a qual, aliás, foi a única coisa a tornar o sonho inteligível.
Um belo dia, quando tinha três ou quatro anos, ele ouvira os mais velhos
conversarem sobre viagens de descobrimento e perguntara ao pai se aquilo era
uma doença grave. Evidentemente, confundira “Reisen” [“viagens”] com “Reissen”
[“cólicas”], e seus irmãos e irmãs providenciaram para que ele jamais
esquecesse esse erro embaraçoso.
Houve um exemplo semelhante disso quando, no
transcurso de minha análise do sonho da monografia sobre o gênero Ciclâmen [ver
em [1]], tropecei na lembrança infantil de meu pai, quando eu era um garoto de
cinco anos, dando-me um livro ilustrado com pranchas coloridas para que eu o destruísse.
Talvez se possa pôr em dúvida se essa lembrança realmente desempenhou algum
papel na determinação da forma assumida pelo conteúdo do sonho, ou se, antes,
não terá sido o processo de análise que estruturou subseqüentemente a ligação.
Mas os elos associativos abundantes e entrelaçados justificam nossa aceitação
da primeira alternativa: ciclâmen - flor favorita - prato predileto -
alcachofras; desmantelar como a uma alcachofra, folha por folha (expressão que
ecoa constantemente em nossos ouvidos em relação ao desmembramento paulatino do
Império Chinês) - herbário - traças de livros, cujo alimento favorito são os
livros. Além disso, posso assegurar a meus leitores que o sentido último do
sonho, que não revelei, está intimamente relacionado com o assunto da cena
infantil.
No caso de outro grupo de sonhos, demonstra-nos
a análise que o desejo real que instigou o sonho e cuja realização é
representada pelo sonho provém da infância; de modo que, para nossa surpresa, verificamos
que a criança e seus impulsos continuam vivos no sonho.
Neste ponto, retomarei mais uma vez a
interpretação de um sonho que já verificamos ser instrutivo - o sonho em que
meu amigo R. era meu tio. [Ver em [1]] Acompanhamos sua interpretação até o
ponto de reconhecer nitidamente, como uma de suas motivações, meu desejo de ser
nomeado para o cargo de professor, e explicamos a afeição que senti no sonho
por meu amigo R. como um produto de oposição e revolta contra as calúnias a
meus dois colegas contidas nos pensamentos oníricos. O sonho foi meu mesmo;
portanto, posso prosseguir sua análise dizendo que meus sentimentos ainda não
estavam satisfeitos com a solução até então alcançada. Eu sabia que minha
opinião de vigília sobre os colegas que foram tão maltratados nos pensamentos
oníricos teria sido bem diferente; e a força de meu desejo de não partilhar do
destino deles na questão da indicação evidenciava-se-me como insuficiente para
explicar a contradição entre minhas avaliações deles no estado de vigília e no
sonho. Se fosse realmente verdade que minha ânsia de que se dirigissem a mim
por um título diferente era tão forte assim, isso mostrava uma ambição
patológica que eu não reconhecia em mim mesmo e que acreditava ser-me estranha.
Eu não saberia dizer como as outras pessoas que acreditavam conhecer-me iriam
julgar-me a esse respeito. Talvez eu fosse realmente ambicioso; mas, sendo
assim, minha ambição há muito se transferira para objetos bem diferentes do
título e do posto de professor extraordinarius.
Qual, então, poderia ter sido a origem da
ambição que produziu o sonho em mim? Nesse ponto, recordei-me de uma história
que ouvira muitas vezes em minha infância. Na época de meu nascimento, uma
velha camponesa profetizara à minha orgulhosa mãe que, com seu primeiro filho,
ela havia trazido ao mundo um grande homem. Essas profecias devem ser muito
comuns: existem inúmeras mães cheias de expectativas felizes e inúmeras velhas
camponesas e outras do gênero que compensam a perda de seu poder de controle
sobre as coisas do mundo atual concentrando-o no futuro. Nem teria a profetisa
nada a perder com o que disse. Teria sido esta origem de minha sede de
grandeza? Mas isso me fez recordar outra experiência, que datava dos últimos
anos de minha infância, e que oferecia uma explicação ainda melhor. Meus pais
tinham o hábito, quando eu era um menino de onze ou doze anos, de levar-me ao Prater.
Uma noite, quando lá estávamos sentados num restaurante, nossa atenção fora
atraída por um homem que ia de mesa em mesa e, mediante uma pequena esmola,
improvisava uma composição poética sobre qualquer tópico que lhe fosse
apresentado. Mandaram-me trazer o poeta à nossa mesa e ele mostrou sua gratidão
ao mensageiro. Antes de perguntar qual seria o tema escolhido, dedicou-me
algumas linhas, tendo sua inspiração declarado que, quando eu crescesse,
provavelmente seria um Ministro do Gabinete. Eu ainda me lembrava muito bem da
impressão que essa segunda profecia me havia causado. Aqueles eram os tempos do
Ministério “Bürger”. Pouco antes, meu pai levara para casa
retratos desses profissionais da classe média - Herbst, Giskra, Unger, Berger e
os demais - e nós havíamos iluminado a casa em homenagem a eles. Havia até
mesmo alguns judeus entre eles. Assim, dali por diante, todo estudante judeu
aplicado levava a pasta de Ministro do Gabinete em sua sacola. Os eventos
daquele período sem dúvida tiveram alguma relação com o fato de que, até pouco
antes de meu ingresso na Universidade, fora minha intenção estudar Direito, e
só no último momento é que eu mudara de opinião. A carreira ministerial está
definitivamente barrada aos médicos. Mas agora, voltemos a meu sonho. Comecei a
compreender que meu sonho me conduzira do melancólico presente às animadoras
esperanças dos dias do Ministério “Bürger”, que o desejo que ele fizera
o máximo por realizar remontava àqueles tempos. Ao maltratar meus dois
eminentes e eruditos colegas por serem judeus, e ao tratar um deles como
simplório e o outro como criminoso, estava comportando-me como se eu fosse o
Ministro, colocara-me no lugar do Ministro. Virando a mesa sobre Sua Excelência
com vingança! Ele se recusara a me nomear professor extraordinarius,
e eu me desforrara no sonho, tomando-lhe o lugar.
Em outro exemplo tornou-se evidente que, embora
o desejo que instigou o sonho fosse um desejo atual, ele recebera um poderoso
reforço de lembranças que se estendia a épocas muito distantes da infância. O
que tenho em mente é uma série de sonhos que se baseiam num anseio de visitar
Roma. Ainda por muito tempo, sem dúvida, terei de continuar a satisfazer esse
anseio em meus sonhos, pois, na estação do ano em que me é possível viajar, a
permanência em Roma deve ser evitada por motivos de saúde. Por exemplo,
sonhei certa vez que contemplava, da janela de um vagão de trem, o Tibre e a
Ponte Sant’Angelo. O trem começou a se afastar e ocorreu-me que eu mal havia
posto os pés na cidade. O panorama que vi em meu sonho fora tirado de uma
famosa gravura que eu vislumbrara por um momento na véspera, na sala de estar
de um de meus pacientes. Noutra ocasião, alguém me levava ao alto de uma colina
e me mostrava Roma meio envolta em brumas; estava tão distante que fiquei
surpreso por ter dela uma visão tão clara. Havia mais coisas no conteúdo desse
sonho do que me sinto disposto a descrever com pormenores, mas o tema da “terra
prometida vista de longe” era óbvio nele. A cidade que assim vi pela primeira
vez, imersa em brumas, era… Lübeck; e o protótipo da colina ficava em… Gleichenberg.
Num terceiro sonho, eu finalmente chegara a Roma, como o próprio sonho me
informou, mas fiquei desapontado ao constatar que o cenário estava longe de ter
um caráter urbano. Havia um estreito regato de águas negras; numa de suas
margens havia penhascos negros e, na outra, pradarias com grandes flores
brancas. Notei um certo Herr Zucker (que eu conhecia ligeiramente) e
decidi perguntar-lhe o caminho para a cidade. Eu estava claramente fazendo
uma vã tentativa de ver, em meu sonho, uma cidade que jamais vira na vida de
vigília. Decompondo a paisagem do sonho em seus elementos, verifiquei que as
flores brancas me levavam a Ravenna, que eu tinha visitado e que, pelo menos
por algum tempo, suplantara Roma como capital da Itália. Nos pântanos ao redor
de Ravenna encontramos belíssimos lírios que cresciam em águas negras. Como
tínhamos tido grande dificuldades de retirá-los da água, o sonho os fez crescer
em pradarias, como os narcisos em nossa própria Aussee. O penhasco negro, tão
próximo da água, lembrou-me nitidamente o vale Tepl, perto de Karlsbad. “Karlsbad”
permitiu-me explicar o curioso detalhe de eu haver perguntado o caminho a Herr
Zucker. O material de que se tecia o sonho incluía, nesse ponto, duas
daquelas jocosas anedotas judaicas que contêm tão profunda e por vezes amarga
sabedoria mundana, e que tanto apreciamos citar em nossas conversas e cartas.
Eis a primeira: a história da “constituição”. Um judeu sem dinheiro
metera-se furtivamente, sem passagem, no expresso para Karlsbad. Foi
apanhado, e toda vez que os bilhetes eram conferidos, ele era retirado do trem
e tratado cada vez mais com maior severidade. Numa das estações de sua via
dolorosa, encontrou-se com um conhecido que lhe perguntou para onde estava
viajando. “Para Karlsbad”, foi sua resposta, “se minha constituição puder
agüentar.” Minha lembrança passou então para outra história: a de um judeu que
não sabia falar francês e a quem havia recomendado que, quando chegasse a
Paris, perguntasse o caminho para a rue Richelieu. A própria Paris fora,
durante muitos anos, outra meta dos meus anseios; e a sensação de
bem-aventurança com que pela primeira vez pisei em suas calçadas me pareceu uma
garantia de outros de meus desejos seriam também realizados. “Perguntar o
caminho”, além disso, era uma alusão direta a Roma, já que é bem sabido
que todos os caminhos levam até lá. Da mesma forma, o nome Zucker
[açúcar] constituía novamente uma alusão a Karlsbad, pois temos o hábito
de recomendar o tratamento lá para qualquer pessoa que sofra do mal constitucional
do diabetes. A instigação desse sonho fora uma proposta feita por meu amigo
de Berlim de que nos encontrássemos em Praga na Páscoa. O que ali iríamos
debater teria incluído algo com uma outra relação com “açúcar” e “diabetes”.
Um quarto sonho, que ocorreu logo depois do
último, levou-me a Roma mais uma vez. Eu via a esquina de uma rua diante de mim
e ficava surpreso por encontrar tantos cartazes em alemão ali afixados. Eu escrevera a meu
amigo na véspera, com uma visão profética, dizendo achar que Praga talvez não
fosse um lugar agradável para as perambulações de um alemão. Assim, o sonho
expressou, ao mesmo tempo, o desejo de encontrá-lo em Roma, em vez de uma
cidade boêmia, e um desejo, que provavelmente remontava aos meus dias de
estudante, de que a língua alemã fosse mais tolerada em Praga. Aliás, devo ter
compreendido o tcheco nos primeiros anos de minha infância, pois nasci numa
pequena cidade da Morávia com uma população eslava. Uma canção de ninar tcheca,
que ouvi quando tinha dezessete anos, fixou-se em minha memória com tal
facilidade que até hoje posso repeti-la, embora não tenha nenhuma idéia do que
significa. Assim, também não faltavam ligações com meus primeiros anos de
infância nesses sonhos.
Foi em minha última viagem à Itália, que, entre
outros lugares, me fez passar pelo Lago Trasimene, que finalmente - depois de
ter visto o Tibre e de ter retornado com tristeza quando me encontrava apenas
cinqüenta milhas de Roma - descobri de que maneira meu anseio pela cidade
eterna fora reforçado por impressões de minha mocidade. Eu estava no processo
de elaborar um plano para contornar Roma no ano seguinte e ir até Nápoles,
quando me ocorreu uma frase que devo ter lido em um de nossos autores
clássicos : “Qual dos dois, pode-se argumentar, andou de um lado para outro
em seu gabinete com maior impaciência, depois de ter elaborado seu plano de ir
a Roma - Winckelmann, o Vice-Comandantee, ou Aníbal, o Comandante-em Chefe?” Na
realidade, eu vinha seguindo as pegadas de Aníbal. Como ele, estava destinado a
não ver Roma; e também ele se deslocara para a Campagna quando todos os
esperavam em Roma. Mas Aníbal, com quem eu viera a me assemelhar nesses
aspectos, fora o herói predileto de meus últimos tempos de ginásio. Como tantos
meninos daquela idade, eu simpatizara, nas Guerras Púnicas, não com os romanos,
mas com os cartagineses. E quando nas séries mais avançadas comecei a
compreender pela primeira vez o que significava pertencer a uma raça
estrangeira, e os sentimentos anti-semitas entre os outros rapazes me
advertiram de que eu precisava assumir uma posição definida, a figura do
general semita elevou-se ainda mais em meu conceito. Para minha mente juvenil,
Aníbal e Roma simbolizavam o conflito entre a tenacidade dos judeus e a
organização da Igreja Católica. E a importância crescente dos efeitos do
movimento anti-semita em nossa vida emocional ajudou a fixar as idéias e
sentimentos daqueles primeiros anos. Assim, o desejo de ir a Roma se
transformara, em minha vida onírica, num disfarce e num símbolo para muitos
outros desejos apaixonados. Sua realização seria perseguida com toda a
perseverança e unidade de propósitos do cartaginês, embora se afigurasse, no
momento, tão pouco favorecida pelo destino quanto fora o desejo de Aníbal,
durante toda a sua vida, de entrar em Roma.
Nesse ponto, fui novamente confrontado com o
evento de minha juventude, cuja força ainda era demonstrada em todas essas
emoções e em todos esses sonhos. Eu devia ter dez ou doze anos quando meu pai
começou a me levar com ele em suas caminhadas e a me revelar, em suas
conversas, seus pontos de vista sobre as coisas do mundo em que vivemos. Foi
assim que, numa dessas ocasiões, ele me contou uma história para me mostrar
quão melhores eram as coisas então do que tinham sido nos seus dias. “Quando eu
era jovem”, disse ele, “fui dar um passeio num sábado pelas ruas da cidade onde
você nasceu; estava bem vestido e usava um novo gorro de pele. Um cristão
dirigiu-se a mim e, de um só golpe, atirou meu gorro na lama e gritou: ‘Judeu!
saia da calçada!’ - “E o que fez o senhor?”, perguntei-lhe. “Desci da calçada e
apanhei meu gorro”, foi sua resposta mansa. Isso me pareceu uma conduta pouco
heróica por parte do homem grande e forte que segurava o garotinho pela mão.
Contrastei essa situação com outra que se ajustava melhor aos meus sentimentos:
a cena em que o pai de Aníbal, Amílcar Barca, fez seu filho jurar
perante o altar da casa que se vingaria dos romanos. Desde essa época Aníbal
ocupava um lugar em minhas fantasias.
Creio poder remontar às origens de meu
entusiasmo pelo general cartaginês recuando mais um passo em minha infância;
portanto, mais uma vez, seria apenas questão da transferência de uma relação
emocional já formada para um novo objeto. Um dos primeiros livros em que pus as
mãos depois que aprendi a ler foi a história do Consulado e do Império, de
Thiers. Ainda me lembro de quando colocava etiquetas com os nomes dos
marechais de Napoleão nas costas achatadas de meus soldadinhos de madeira. E,
naquela época, meu favorito manifesto já era Massena (ou, para dar ao nome sua
forma judaica, Manasseh). (Sem dúvida, essa preferência era também
parcialmente explicável pelo fato de o meu aniversário cair no mesmo dia que o
dele, exatamente cem anos depois.) O próprio Napoleão se assemelha a
Aníbal, por terem ambos atravessado os Alpes. É possível até que o
desenvolvimento desse ideal marcial possa ser remetido a uma época ainda mais
remota de minha infância: a época em que, com a idade de três anos, eu tinha
uma estreita relação, às vezes amistosa, mas às vezes hostil, com um menino um
ano mais velho que eu, e aos desejos que essa relação deve ter suscitado no
mais fraco de nós dois.
Quanto mais alguém se aprofunda na análise de
um sonho, com mais freqüência chega ao rastro das experiências infantis que
desempenharam seu papel entre as fontes do conteúdo latente desse sonho.
Já vimos (em [1]) que é muito raro um sonho
reproduzir as recordações de tal maneira que elas constituam, sem abreviação ou
modificação, a totalidade de seu conteúdo manifesto. Não obstante, há
alguns exemplos indubitáveis da ocorrência disso e posso acrescentar mais
alguns, novamente, relacionados com cenas de infância. Apresentou-se a um de
meus pacientes num sonho uma reprodução quase não distorcida de um episódio
sexual, que foi prontamente reconhecida como uma lembrança verdadeira. Sua
recordação do evento, de fato, nunca se perdera por completo na vida de
vigília, embora tivesse sido muito obscurecida, e sua revivescência foi
conseqüência do trabalho previamente executado na análise. Aos doze anos, o
sonhador fora visitar um colega de escola que estava acamado, e este, provavelmente
num movimento acidental, descobriu o corpo. À vista dos órgãos do amigo, meu
paciente foi tomado por uma espécie de compulsão e também se descobriu,
segurando o pênis do outro. O amigo olhou-o com indignação e assombro, ao que
ele, tomado de grande embaraço, largou-o. Essa cena se repetiu num sonho vinte
e três anos depois, incluindo todos os pormenores de seus sentimentos na época.
Modificou-se, porém, no sentido de que o sonhador assumiu o papel passivo em
vez do ativo, enquanto a figura de seu colega de escola foi substituída por
alguém pertencente a sua vida contemporânea. [Ver em [1].]
É verdade que, de modo geral, a cena da
infância só é representada no conteúdo manifesto do sonho por uma alusão, e ela
se tem de chegar por uma interpretação do sonho. Tais exemplos, quando
registrados não trazem grande convicção, visto que, via de regra, não existe
nenhuma outra prova da ocorrência dessas experiências da infância: quando
remontam a uma idade muito prematura, elas já não são reconhecidas como lembranças.
A justificação geral para que se infira a ocorrência dessas experiências
infantis a partir dos sonhos é proporcionada por toda uma série de fatores do
trabalho suficientemente fidedignos. Se eu registrar algumas dessas
experiências infantis arrancadas de seu contexto para fins de interpretação dos
sonhos, talvez, elas causem uma fraca impressão, especialmente por eu não poder
citar todo o material em que se basearam as interpretações. Não obstante, não
permitirei que isso me impeça de relatá-las.
I
Todos os sonhos de uma de minhas pacientes se
caracterizavam por ela estar sempre “apressada”: estava sempre com uma pressa
enorme de chegar a algum lugar a tempo de não perder um trem, e assim por
diante. Num dos sonhos, ela ia visitar uma amiga; a mãe lhe disse que
tomasse um táxi e que não fosse a pé, mas, em vez disso, ela saiu correndo e
ficou levando tombos. - O material que surgiu na análise levou a lembranças
de correr de um lado para outro e de fazer travessuras na
infância (o leitor sabe o que os vienenses chamam de “eine Hetz” [“uma
investida”, “uma corrida furiosa”]). Um sonho específico relembrou o jogo
infantil predileto de dizer uma frase, “Die Kuh rannte, bis sie fiel”
[“A vaca correu até cair”] tão depressa que ela soa como se fosse uma única
palavra [disparatada] - outra corridinha, na verdade. Todas essas
correrias inocentes com as amiguinhas foram lembradas porque tomavam o lugar de
outras menos inocentes.
II
Eis aqui o sonho de outra paciente: Ela
estava numa grande sala em que havia toda sorte de máquinas, tal como imaginava
que seria um instituto ortopédico. Disseram-lhe que eu não dispunha de tempo e
que ela teria que receber o tratamento junto com outros cinco. Ela se recusou,
porém, e não queria deitar-se na cama - ou lá o que fosse - que se destinava a
ela. Ficou no canto e esperou que eu lhe dissesse que não era verdade.
Entrementes, os outros riam dela e diziam que essa era a sua maneira de “ir
levando”. - Simultaneamente, era como se ela estivesse fazendo uma porção de
quadradinhos.
A primeira parte do conteúdo desse sonho
relacionava-se com o tratamento e era uma transferência para mim. A segunda
parte encerrava uma alusão a uma cena da infância. As duas partes estavam
ligadas pela menção à cama.
O instituto ortopédico remontava a uma
observação feita por mim, na qual eu comparara o tratamento, tanto em sua
extensão quanto em sua natureza, a um tratamento ortopédico. Quando
comecei seu tratamento, vira-me compelido a dizer-lhe que, no momento, não
dispunha de muito tempo para ela, embora depois pudesse dedicar-lhe uma
hora inteira diariamente. Isso mexera com sua antiga sensibilidade, que
constitui um traço predominante do caráter das crianças inclinadas à histeria:
elas são insaciáveis em matéria de amor. Minha paciente fora a caçula de uma
família de seis filhos (donde junto com outras cinco) e tinha sido,
portanto, a favorita do pai; mesmo assim, parece ter sentido que seu adorado
pai lhe dedicava muito pouco de seu tempo e sua atenção. - Sua espera de que
eu lhe dissesse que não era verdade teve a seguinte origem: um jovem
aprendiz de alfaiate levara-lhe um vestido e ela lhe dera o dinheiro em
pagamento. Depois, perguntara ao marido se, caso o menino perdesse o dinheiro,
ela teria que pagá-lo novamente. O marido, para implicar com ela,
dissera-lhe que sim. (A implicância no sonho.) Ela continuou a
perguntar-lhe repetidas vezes e esperou que ele dissesse, afinal, que não
era verdade. Foi então possível inferir que, no conteúdo latente do sonho,
ocorrera-lhe a idéia de saber se ela teria que me pagar o dobro caso eu lhe
dispensasse o dobro do tempo - idéia que ela considerou avara ou suja. (A
falta de asseio na infância é muitas vezes substituída nos sonhos pela avareza
por dinheiro; o elo entre as duas é a palavra “sujo”.) Se todo o trecho
sobre esperar que eu dissesse etc., pretendia ser, no sonho, um
circunlóquio relativo ao termo “sujo”, então o fato de ela “ficar de pé no
canto” e “não se deitar na cama” combinava com o termo, na qualidade
de componentes de uma cena de infância: uma cena em que ela sujara a cama e
fora punida tendo de ficar de pé num canto, com a ameaça de que o pai não a
amaria mais e de que os irmãos e irmãs se ririam dela, e assim por diante. - Os
quadradinhos relacionavam-se com sua sobrinha, que lhe mostrara o truque
aritmético de dispor algarismos em nove quadrados (creio que isso está certo),
de tal modo que eles somam quinze em todas as direções.
III
Um homem sonhou o seguinte: Viu dois meninos
brigando - filhos de tanoeiros, a julgar pelas ferramentas que se achavam por
perto. Um dos meninos jogou o outro por terra; o que foi derrubado usava
brincos de pedras azuis. Ele correu em direção ao atacante com sua bengala
erguida, para castigá-lo. Este correu em busca de proteção até uma mulher que
estava de pé junto a uma cerca de madeira, como se fosse a mãe dele. Era uma
mulher da classe operária e estava de costas para o sonhador. Finalmente, ela
se voltou e dirigiu-lhe um olhar terrível, de modo que ele fugiu apavorado.
Via-se a carne vermelha de suas pálpebras inferiores à mostra.
O sonho utilizara copiosamente eventos triviais
do dia anterior. Ele de fato vira dois meninos na rua, um dos quais derrubou o
outro no chão. Quando ele se precipitou para impedir a briga, ambos saíram
correndo. - Filhos de tanoeiros. Isso só foi explicado por um sonho
subseqüente, no qual ele empregou a expressão “arrancando o fundo de um
barril”. - A partir de sua experiência, ele achava que brincos de pedras
azuis eram basicamente usados por prostitutas. Ocorreu-lhe então um verso
de um conhecido poema burlesco sobre dois meninos: “O outro menino
chamava-se Marie” (isto é, era uma menina). - A mulher de pé. Após a
cena com os dois meninos, ele fora fazer uma caminhada pelas margens do Danúbio
e aproveitara a solidão do lugar para urinar numa cerca de madeira. Mais
adiante, uma senhora idosa respeitavelmentemente trajada sorrira para ele de
maneira muito amigável e quisera dar-lhe seu cartão de visita. Visto que a
mulher do sonho estava de pé na mesmo posição que ele ao urinar, devia
tratar-se de uma mulher urinando. Isso coincide com sua aparência
terrível e com a carne vermelha à mostra, que só poderia relacionar-se
com a abertura dos órgãos genitais causada pela posição abaixada. Isso, visto
em sua infância, reapareceu numa lembrança posterior como “carne viva” -
como uma ferida.
O sonho combinou duas oportunidades que ela
tivera, quando menino, de ver os órgãos genitais de garotinhas: quando foram
derrubadas no chão e quando estava urinando. E, da outra parte do
contexto, emergiu uma lembrança de ele ser castigado ou ameaçado por seu
pai pela curiosidade sexual que demonstrara nessas ocasiões.
IV
Por trás do seguinte sonho (produzido por uma
senhora idosa) havia toda uma gama de lembranças da infância, combinadas da
melhor forma possível numa única fantasia.
Ela saiu numa grande pressa para tratar de
alguns assuntos. No Graben, caiu de joelhos, como estivesse inteiramente
alquebrada. Grande número de pessoas reuniu-se em torno dela, especialmente
condutores de táxis, mas ninguém a ajudou a levantar-se. Ela fez várias
tentativas vãs, e deste ter finalmente alcançado êxito, pois foi posta num táxi
que iria levá-la para casa. Alguém atirou uma cesta grande e muito carregada
(como uma cesta de compras) pela janela depois que ela entrou.
Essa era a mesma senhora que sempre se sentia
“apressada” em seus sonhos, tal como havia corrido e feito traquinagens quando
criança. [Ver em [1].] A primeira cena do sonho derivava, evidentemente, da
visão de um cavalo caído; da mesma forma, o termo “alquebrada”
referia-se a corrida de cavalos. Em sua juventude, ela cavalgara, e, sem
dúvida, quando era ainda mais nova, tinha realmente sido um cavalo. O cair
relacionava-se com uma lembrança da primeira infância, ligada ao filho de
dezessete anos do porteiro da casa, que caíra na rua com um ataque epilético e
fora levado para casa numa carruagem. Ela, naturalmente, apenas ouvira
falar sobre isso, mas a idéia dos ataques epiléticos (da “doença das quedas”)
dominara sua imaginação e, mais tarde,influenciara a forma assumida por seus
próprios ataques histéricos. - Quando uma mulher sonha que está caindo, isso
tem quase invariavelmente uma conotação sexual: ela se imagina como uma “mulher
decaída”. Este sonho, em particular, praticamente não deixou qualquer
margem para dúvidas, já que o local onde minha paciente caiu foi o Graben, uma
parte de Viena que é notória como área de prostituição. A cesta de
compras [Korb] levou a mais de uma interpretação. Fê-la lembrar-se de
numerosas recusas [Körbe] que fizera a seus pretendentes, bem como
das que ela própria se queixava de ter recebido posteriormente. Isso também
estava ligado ao fato de que ninguém a ajudou a levantar-se, o que ela
mesma explicou como uma recusa. A cesta de compras lembrou-lhe ainda fantasias
que já haviam surgido em sua análise, nas quais ela era casada com alguém de
condição social muito inferior à sua e tinha de fazer as compras de mercado ela
própria. E, finalmente, a cesta podia servir como marca de uma criada. Nesse
ponto, surgiram outras lembranças da infância. Em primeiro lugar, de uma
cozinheira que fora despedida por furto, e que caíra de joelhos e
suplicara para ser perdoada. Ela própria tinha doze anos naquela época. Depois,
de uma empregada que fora despedida por causa de um caso amoroso com o cocheiro
da família (que, aliás, casou-se com ela depois). Assim, essa lembrança era
também uma das fontes dos cocheiros (condutores) do sonho (que, ao
contrário do cocheiro real, não soergueram a mulher decaída). Restava explicar
o fato de a cesta ser atirada depois que ela entrou pela janela. Isso a
fez lembrar-se de despachar bagagens a serem enviadas por trem,
do costume rural de os namorados subirem e entrarem pela janela de suas
namoradas, e de outros pequenos episódios de sua vida no campo: de como um
cavalheiro lançara algumas ameixas azuis e uma senhora pela janela
de seu quarto, e de como sua própria irmã mais nova se assustara com o idiota
da aldeia olhando por sua janela. Uma lembrança obscura de seus dez anos
de idade começou então a emergir, de uma babá do interior que se entregara a
cenas amorosas (das quais a menina poderia ter visto algo) com um dos criados
da casa, e que, juntamente com seu amante, tinha sido mandada embora, posta
para fora (o oposto da imagem onírica “atirada para dentro”) - uma
história de que já nos havíamos aproximado partindo de várias outras direções.
A bagagem ou mala de um criado é desdenhosamente designada, em Viena, como “sete
ameixas”: “arrume suas sete ameixas e dê o fora!”
Meus registros naturalmente abrangem uma grande
coletânea de sonhos de pacientes cuja análise levou a impressões infantis
obscuras ou inteiramente esquecidas, muitas vezes remontando aos três primeiros
anos de vida. Mas seria inseguro aplicar quaisquer conclusões extraídas delas
aos sonhos em geral. As pessoas em questão eram, na totalidade dos casos,
neuróticas, e em particular, histéricas; e é possível que o papel desempenhado
pelas cenas infantis em seus sonhos fosse determinado pela natureza de sua neurose,
e não pela natureza dos sonhos. Não obstante, ao analisar meus próprios sonhos
- e, afinal, não o estou fazendo por causa de nenhum sintoma patológico
gritante -, ocorre com freqüência não inferior que, no conteúdo latente de um
sonho, deparo inesperadamente com uma cena de infância, e imediatamente toda
uma série de meus sonhos se vincula com associações que se ramificam de alguma
experiência de minha infância. Já dei alguns exemplos disso [Ver em [1]-[2]], e
terei outros a dar em conexão com uma variedade de aspectos. Talvez eu não
possa encerrar melhor esta seção do que relatando um ou dois sonhos meus em que
ocasiões recentes e experiências há muito esquecidas da infância se uniram como
fontes do sonho.
I
Fatigado e faminto após uma viagem, fui dormir,
e as principais necessidades vitais começaram a anunciar sua presença em meu
sono. Tive o seguinte sonho:
Entrei numa cozinha à procura de pudim. Lá
havia três mulheres de pé; uma delas era a estalajadeira e revolvia algo na
mão, como se estivesse fazendo Knödel [bolinhos de massa]. Ela respondeu que eu
devia esperar até que ela estivesse pronta. (Essas não foram palavras claras
verbalmente enunciadas.) Fiquei impaciente e saí com um sentimento de
ofensa. Vesti um sobretudo. Mas o primeiro que experimentei era longo demais
para mim. Tirei-o, bastante surpreso ao verificar que era forrado de pele. O
segundo que vesti tinha uma longa tira com um desenho turco gravado. Um
estranho de rosto alongado e barbicha pontuda apareceu e tentou impedir-me de
vesti-lo, dizendo que era dele. Mostrei-lhe então que era todo bordado com um
desenho turco. Ele perguntou: “Que têm os (desenhos, galões… ) turcos a ver com
o sonho?” Mas, em seguida, ficamos muito amáveis um com o outro.
Quando comecei a analisar esse sonho, pensei
inesperadamente no primeiro romance que li (quando contava treze anos, talvez);
aliás, comecei no fim do primeiro volume. Nunca soube o nome do romance ou de
seu autor; mas guardo uma viva lembrança de seu final. O herói enlouqueceu e
ficava a chamar pelos nomes das três mulheres que haviam trazido maior
felicidade e dor para sua vida. Um desses nomes era Pélagie. Eu ainda
não tinha nenhuma idéia de onde levaria essa lembrança na análise. Em relação
às três mulheres, pensei nas três Parcas que fiam o destino do homem, e soube
que uma das três mulheres - a estalajadeira do sonho - era a mãe que dá a vida,
e além disso (como no meu próprio caso), dá à criatura viva seu primeiro
alimento. O amor e a fome, refleti, reúnem-se no seio de uma mulher. Um rapaz
que era grande admirador da beleza feminina falava, certa vez - assim diz a
história -, da bonita ama-de-leite que o amamentara quando ele era bebê:
“Lamento”, observou ele, “não ter aproveitado melhor aquela oportunidade.” Eu
tinha o hábito de citar essa anedota para explicar o fator da “ação retardada”
no mecanismo das psiconeuroses. Uma das Parcas, portanto, esfregava as
palmas das mãos como se estivesse fazendo bolinhos de massa: estranha ocupação
para uma Parca, e que exigia uma explicação. Esta foi fornecida por outra
lembrança anterior de minha infância. Quando tinha seis anos de idade e recebi
de minha mãe as primeiras lições, esperava-se que eu acreditasse que éramos
todos feitos de barro, e portanto, ao barro deveríamos retornar. Isso não me
convinha e expressei dúvidas sobre a doutrina. Ao que então minha mãe esfregou
as palmas das mãos - exatamente como fazia ao preparar bolinhos de massa, só
que não havia massa entre elas - e me mostrou as escamas enegrecidas de epidermis
produzidas pela fricção como prova de que éramos feitos de barro. Meu assombro
ante essa demonstração visual não teve limites, e aceitarei a crença que
posteriormente iria ouvir expressa nas palavras: “Du bist der natur einen
Tod schuldig.” Assim, foram realmente as Parcas que encontrei na
cozinha ao entrar nela - como tantas vezes fizera na infância quando sentia
fome, enquanto minha mãe, de pé junto ao fogo, me advertia de que eu devia
esperar até que o jantar ficasse pronto. - E agora, quanto aos bolinhos de
massa - os Knödel! Pelo menos um dos meus professores na Universidade -
e precisamente aquele a quem devo meus conhecimentos histológicos (por exemplo,
da epidermis) - se lembraria infalivelmente, de uma pessoa de nome Knödl,
contra quem fora obrigado a mover um processo por plagiar seus escritos.
A idéia de plágio - de apropriar-se do que quer que se possa, muito na qual eu
era tratado como se fosse o ladrão que há algum tempo praticava suas atividades
de furtar sobretudos nas salas de conferências. Eu havia anotado a palavra
“plagiar” sem pensar nela, por ter-me ocorrido; mas então observei que ela
podia estabelecer uma ponte [Brücke] entre diferentes partes do conteúdo
manifesto do sonho. Uma cadeia de associações (Pélagie - plagiar - plagióstomos
ou tubarões [Haifische] - a bexiga natatória de um peixe [Fischblase])
ligou o antigo romance com o caso de Knödl e com os sobretudos, que se referiam
claramente a dispositivos empregados na técnica sexual [ver em [1]]. (Cf. os
sonhos aliterativos de Maury [em [1]].) Sem dúvida, era uma cadeia de idéias
muito artificial e sem sentido, mas eu nunca poderia tê-la construído na vida
de vigília, a menos que já tivesse sido construída pelo trabalho do sonho. E,
como se a necessidade de estabelecer ligações forçadas não considerasse nada
sagrado, o nome honrado de Brücke(cf. a ponte verbal acima)
lembrou-me o Instituto em que passei as horas mais felizes de minha vida
estudantil, livre de todos os outros desejos -
So
wird’s Euch an der Weisheit Brüsten
Mit jedem Tage mehr gelüsten
- em completo contraste com os desejos que
agora me atormentavam em meu sonhos. Finalmente, veio-me à lembrança
outro professor muito respeitado - seu nome, Fleischl [“Fleisch” =
“carne”], tal como Knödl, soava como algo para comer - e uma cena lastimável em
que as escamas de epiderme desempenhavam certo papel (minha mãe e a
estalajadeira), bem como a loucura (o romance) e uma droga do dispensário
que elimina a fome: a cocaína.
Poderia continuar a seguir as intricadas
seqüências de idéias dentro dessa linha e explicar completamente a parte do
sonho que ainda não analisei; mas devo desistir neste ponto, porque o
sacrifício pessoal exigido seria grande demais. Apanharei apenas um dos fios da
meada, que está apto a nos levar diretamente a um dos pensamentos do sonho subjacentes
a essa confusão. O estranho de rosto alongado e barba pontuda que tentou
impedir que eu vestisse o sobretudo tinhas as feições de um lojista de Spalato,
de quem minha mulher comprara diversos artigos turcos. Chamava-se
Popovi, nome equívoco sobre o qual um escritor humorístico, Stettenheim,
já fez um comentário sugestivo: “Ele me disse o nome e, enrubescendo,
pressionou minha mão.” Mais uma vez, apanhei-me fazendo mau uso de um nome,
como já fizera com Pélagie, Knödl, Brücke e Fleischl. Seria difícil negar que
brincar com nomes dessa maneira era uma espécie de travessura infantil. Mas, se
eu me entregava a isso, era como um ato de retaliação, pois meu próprio nome
fora alvo de gracejos leves como esses em incontáveis ocasiões. Goethe,
lembrei-me, comentara em algum lugar a sensibilidade das pessoas em relação a
seus nomes: como parecemos transformarmo-nos neles como se fossem nossa própria
pele. Ele dissera isso à propos de um verso escrito sobre seu
nome por Herder:
“Der
du von Göttern abstammst, von Gothen oder vom Kote.” -
“So
seid ihr Götterbilder auch zu Staub”.
Notei que minha digressão sobre o tema do uso
incorreto dos nomes estava apenas levando a essa queixa. Mas devo fazer uma
interrupção aqui. - A compra que minha mulher fez em Spalato lembrou-me uma
outra compra, feita em Cattaro, em relação à qual eu fora cauteloso demais,
de modo que perdi uma oportunidade de fazer ótimas aquisições. (Cf. a
oportunidade não aproveitada com a ama-de-leite.) Pois uma das idéias que minha
fome introduziu no sonho foi esta: “Nunca se deve desprezar uma oportunidade,
mas sempre tomar o que se pode, mesmo quando isso implica praticar um pequeno
delito. Nunca se deve desprezar uma oportunidade, já que a vida é curta, e a
morte, inevitável.” Uma vez que essa lição de “carpe diem” tinha, entre
outros sentidos, uma conotação sexual, e uma vez que o desejo que ela
expressava não se detinha a idéia de agir mal, ele tinha motivos para temer a
censura e foi obrigado a se ocultar atrás de um sonho. Toda sorte de pensamentos
de sentido contrário encontraram então expressão: lembranças de uma
época em que o sonhador se contentava com um alimento espiritual, idéias
restritivas de todo tipo, e até ameaças dos mais revoltantes castigos sexuais.
II
O sonho seguinte exige um preâmbulo bastante
longo:
Eu me dirigia à Estação Oeste [em Viena] a fim
de tomar o trem para passar minhas férias de verão em Aussee, mas havia chegado
à plataforma enquanto um trem anterior, que ia para Ischl, ainda se encontrava
na estação. Lá, vira o Conde Thum, que mais uma vez ia a Ischl para ter
uma audiência com o Imperador. Embora estivesse chovendo, ele chegara numa
carruagem aberta. Passara direto pela entrada que dava acesso aos Trens Locais.
O fiscal de bilhetes no portão não o havia reconhecido e tentara pedir-lhe o
bilhete, mas o conde o afastara com um breve e abrupto movimento da mão, sem
lhe dar qualquer explicação. Depois que o trem para Ischl partiu, eu deveria de
direito deixar novamente a plataforma e retornar à sala de espera, e tive certa
dificuldade de arranjar as coisas de modo que me permitissem permanecer na
plataforma. Passara o tempo vigiando atentamente, para ver se aparecia alguém
que tentasse conseguir um compartimento reservado utilizando alguma espécie de
“pistolão”. Pretendia, nesse caso, protestar energicamente, isto é, reivindicar
direitos iguais. Entrementes, estivera cantarolando uma melodia que reconheci
como sendo a ária de Fígaro em La Nozze di Figaro:
Se
vuol ballare, signor contino,
Se
vuol ballare, signor contino,
Il chitarino le suonerò
(É um pouco duvidoso que alguma outra pessoa
pudesse reconhecer a melodia.)
A noite inteira eu me sentira animado e com
espírito combativo. Mexera com meu garçom e com o cocheiro do táxi - sem,
espero, tê-los melindrado. E agora, toda sorte de idéias insolentes e
revolucionárias me passavam pela cabeça, combinando com as palavras de Fígaro e
com minhas lembranças da comédia de Beaumarchais que eu vira encenada pela Comédie
française. Pensei na frase sobre os grandes cavalheiros que se tinham dado
ao trabalho de nascer, e no droit du Seigneur que o Conde Almaviva
tentou exercer sobre Susanna. Pensei também em como nossos maliciosos
jornalistas da oposição faziam piadas com o nome do Conde Thum, chamando-o, em
vez disso, de “Conde Nichtsthun”. Não que eu o invejasse. Ele estava a
caminho de uma audiência espinhosa com o Imperador, enquanto eu era o
verdadeiro Conde Faz-Nada - de partida para minhas férias. Seguiu-se toda sorte
de projetos agradáveis para as férias. Nesse momento, chegou à plataforma um
cavalheiro que reconheci como sendo um inspetor de exames médicos do governo, o
qual, por suas atividades nessa função, ganhara o lisonjeiro apelido de “parceiro
de soneca do Governo” Pediu que lhe arranjassem um meio-compartimento de
primeira classe em virtude de seu cargo oficial, e ouvi um ferroviário dizer a
outro: “Onde devemos pôr o cavalheiro com o meio-bilhete de primeira classe?”
Esse, pensei com meus botões, era um belo exemplo de privilégio; afinal, eu
tinha pago o preço integral de uma passagem de primeira classe. E de fato
obtive um compartimento, mas não um vagão com corredor, de modo que não haveria
um toalete disponível durante a noite. Queixei-me com um funcionário sem
conseguir nenhum êxito, mas espicacei-o sugerindo que, de qualquer modo, ele
devia mandar fazer um buraco no chão do compartimento para atender às possíveis
necessidades dos passageiros. E, de fato, acordei às quinze para as três da
madrugada com grande vontade de urinar, depois de ter tido seguinte sonhos:
Uma multidão de pessoas, uma reunião de
estudantes. - Um conde (Thum or Taaffe
) estava falando. Foi desafiado a dizer algo
sobre os alemãs, e declarou, com um gesto desdenhoso, que a flor predileta
deles era a unha-de-cavalo, e pôs uma espécie de folha deteriorada - ou melhor,
o esqueleto amassado de uma folha - em sua lapela. Enfureci-me - então me
enfureci, embora ficasse surpreso por tomar essa atitude.
(A seguir, de maneira menos distinta:) Era
como se eu estivesse na Aula, as entradas estavam fechadas por cordões
de isolamento e tínhamos que fugir. Abri caminho por um série de salas
lindamente mobiliadas, evidentemente dependências ministeriais ou públicas, com
móveis estofados numa cor entre o marrom e o violeta; por fim, cheguei a um
corredor onde estava sentada uma zeladora, uma mulher corpulenta e idosa.
Evitei dirigir-lhe a palavra, mas, evidentemente, ela achou que eu tinha o
direito de passar, pois perguntou se devia acompanhar-me com o candeeiro. Indiquei-lhe,
com uma palavra ou um gesto, que ela devia parar na escadaria, e achei que
estava sendo muito astuto por evitar assim a fiscalização na saída. Cheguei ao
térreo e encontrei um caminho ascendente estreito e íngreme, pelo qual segui.
(Tornando-se indistinto novamente)… Era como
se o segundo problema fosse sair da cidade, tal como o primeiro fora sair de
casa. Eu estava num tílburi e ordenei ao cocheiro que me levasse a uma estação.
“Não posso ir com o senhor ao longo de própria linha férrea”, disse eu, depois
de ele ter levantado alguma objeção, como se eu o tivesse fatigado demais. Era
como se eu já tivesse viajado com ele parte da distância que normalmente se
percorre de trem. As estações estavam fechadas por cordões de isolamento.
Fiquei sem saber se deveria ir para Krems ou Znaim, mas refleti que a
Corte estaria residindo lá, de modo que me resolvi em favor de Graz ou algum
lugar assim. Estava agora sentado no compartimento, que era como um vagão da
Stadtbahn [a ferrovia suburbana]; e em minha lapela eu trazia um objeto
singular pregueado e alongado, e ao lado dele algumas violetas de cor
castanho-violeta feitas de um material rígido. Isso impressionava muito as
pessoas. (Nesse ponto, a cena se interrompeu.)
Eu estava de novo em frente à estação, mas
dessa vez em companhia de um cavalheiro idoso. Pensei num plano para permanecer
incógnito, e então vi que esse plano já fora posto em prática. Era como se
pensar e experimentar fossem uma coisa só. Ele parecia ser cego, pelo menos de
um olho, e eu lhe entreguei um urinol de vidro para homens (que tivemos de
comprar ou tínhamos comprado na cidade). Logo, eu era enfermeiro e tinha de
dar-lhe o urinol porque ele era cego. Se o condutor nos visse assim, por certo
nos deixaria sair sem reparar em nós. Aqui, a atitude do homem e de seu pênis
urinando apareceram em forma plástica. (Foi nesse ponto que acordei, sentido
necessidade de urinar.)
O sonho como um todo dá a impressão de ser da
ordem de uma fantasia em que o sonhador foi reconduzido ao ano da Revolução de
1848. Algumas lembranças desse ano me tinham sido recordadas pelo Jubileu [do
Imperador Francisco José] em 1898, bem como uma curta viagem que eu fizera ao Wachau,
no decorrer da qual visitara Emmersdorf, o local de retiro do líder
estudantil Fischhof, a quem certos elementos do conteúdo manifesto do sonho
talvez aludissem. Minhas associações levaram-me então à Inglaterra e à casa de
meu irmão ali. Ele costumava mexer freqüentemente com sua mulher com as
palavras “Cinqüenta Anos Atrás” (extraídas do título de um dos poemas de
Lorde Tennyson), que seus filhos costumavam corrigir por “quinze anos
atrás”. Essa fantasia revolucionária, contudo, que derivara de idéias
despertadas em mim ao ver o Conde Thum, era como a fachada de uma igreja
italiana, no sentido de não ter nenhuma relação orgânica com a estrutura por
trás dela. Mas diferia dessas fachadas por ser desordenada e cheia de lacunas,
e pelo fato de partes da construção interna terem irrompido nela em muitos
pontos.
A primeira situação do sonho era um amálgama de
várias cenas que posso isolar. A atitude insolente adotada pelo Conde no sonho
foi copiada de uma cena em meu curso secundário quando eu tinha quinze anos.
Havíamos tramado uma conspiração contra um professor impopular e ignorante,
cuja mola mestre fora um de meus colegas de escola, que desde aquela época
parecia ter adotado Henrique VII da Inglaterra como seu modelo. A
liderança do ataque principal foi outorgada a mim, e o sinal para a revolta
aberta seria um debate sobre a importância do Danúbio para a Áustria (cf. o
Wachau). Um de nossos colegas de conspiração era o único aristocrata da
turma, que, em vista do notável comprimento de seus membros, era chamado “a
Girafa”.Ele estava de pé, como o conde em meu sonho, depois de ser repreendido
pelo tirano da escola, o professor de língua alemã. A flor predileta
e o colocar em sua lapela algo da natureza de uma flor (que por último
me fez pensar numas orquídeas que eu levara no mesmo dia para uma amiga, e
também numa rosa-de-Jericó) eram um esplêndido lembrete da cena de uma
das peças históricas de Shakespeare [3 Henrique VI, I, 1] que representava o
início das Guerras das Rosas Vermelhas e Brancas. (A menção a
Henrique VIII abriu caminho para essa lembrança.) - A partir desse ponto, foi
apenas um passo para os cravos vermelhos e brancos. (Dois pequenos dísticos, um
em alemão e o outro em espanhol, insinuaram-se na análise nesse
ponto:
Rosen,
Tulpen, Nelken,
alle
Blumen welken.
Isabelita,
no llores,
.que
se marchitan la flores.
O aparecimento de um dístico espanhol
reconduziu ao Fígaro.) Aqui em Viena, os cravos brancos tinham-se tornado um
emblema do anti-semitismo, e os vermelhos, dos Social-Democratas. Por trás
disso havia a lembrança de uma provocação anti-semita durante uma viagem de
trem pelos belos campos da Saxônia (cf. Anglo-Saxão). - A
terceira cena que contribuiu para a formação da primeira situação do sonho
datava de meus primeiros tempos de estudante. Houve um debate num clube alemão
de estudantes sobre a relação entre a filosofia e as ciências naturais. Eu era
um jovem imaturo, cheio de teorias materialistas, e me lancei à frente para dar
expressão a um ponto de vista extremamente unilateral. A isto, alguém que
era mais velho que eu e meu superior, alguém que desde então tem demonstrado
sua habilidade para liderar homens e organizar grandes grupos (e que também,
aliás, tem um nome derivado do Reino Animal), levantou-se e nos passou
uma boa descomputura: também ele, disse-nos, havia alimentado porcos em sua
juventude e voltara arrependido à casa de seu pai. Enfureci-me (como
no sonho) e repliquei rudemente [“saugrob”, literalmente “grosso como um
suíno”], dizendo que, como agora sabia que ele tinha alimentado porcos
na juventude, já não ficava surpreso com o tom de seus discursos. (No
sonho, eu ficava surpreso com minha atitude nacionalista germânica [em
[1]].) Houve uma comoção geral e fui conclamado por muitos dos presentes a
retirar minhas observações, mas recusei-me a fazê-lo. O homem que eu insultara
era sensato demais para considerar o incidente um desafio, e deixou que
o assunto morresse.
Os demais elementos dessa primeira situação do
sonho derivavam de camadas mais profundas. Qual o significado do pronunciamento
do Conde sobre a unha-de-cavalo? Para encontrar a resposta, segui uma série de
associações: unha-de-cavalo [“Huflattich”, literalmente “alface do
casco”] - alface - salada - cão-de-manjedoura [“Salathund”,
literalmente, “cão-da-salada”]. Aqui estava uma coleção de xingamentos:
“Gir-affe” [“Affe” corresponde, em alemão, a “macaco”], “suíno”, “cachorro” - e
eu poderia ter chegado a “burro”, se tivesse feito um desvio por outro nome e
insultado mais outro professor acadêmico. Além disso, traduzi “unha-de-cavalo”
- não sei se acertada ou erroneamente - pelo francês “pisse-en-lit”.
Essa informação derivava do Germinal, de Zola, no qual se mandava uma
criança colher essa planta para fazer salada. O termo francês para “cão”
- “chien” - me fez lembrar a função principal (“chier”, em
francês, comparado com “piser” para a função secundária). Breve,
pensei, eu teria coligido exemplos de imprioridades nos três estados da matéria
- sólido, líquido e gasoso -, pois esse mesmo livro, Germinal, que muito
tinha a ver com a revolução iminente, continha um relato de uma espécie muito
peculiar de competição - para a produção de uma excreção gasosa conhecida pelo
nome de flatus. Vi então que o caminho que levava a flatus
fora preparado com grande antecedência: de flores, passando pelo dístico
espanhol, Isabelita, Isabel e Fernão, Henrique VIII, história inglesa,
até a Armada que navegou contra a Inglaterra e após cuja derrota
cunhou-se uma medalha com a inscrição “Flavit et dissipati sunt”,
pois a tempestade dispersara a esquadra espanhola. Eu havia pensado, meio
seriamente, em usar essas palavras como epígrafe do capítulo sobre “Terapia”,
se algum dia chegasse a ponto de produzir um relato pormenorizado de minha
teoria e tratamento da histeria.
Passando agora ao segundo episódio do sonho,
estou impossibilitado de lidar com ele com tantos detalhes - em consideração à
censura. Ocorre que eu estava me colocando no lugar de um exaltado personagem
daqueles tempos revolucionários, que também tivera uma aventura com uma águia [Adler]
e que se diz ter sofrido de incontinência intestinal, e assim por diante.
Pensei comigo mesmo que não havia justificativa para eu passar pela
censura nesse ponto, muito embora a maior parte da história me tivesse sido
narrada por um Hofrat (um consiliarius aulicus [conselheiro da corte] -
cf. Aula). A sucessão de aposentos públicos do sonho provinha do
carro-salão de Sua Excelência, que eu conseguira vislumbrar. Mas as “salas”
[Zimmer] também significavam “mulheres” [Frauenzimmer], como
ocorre com freqüência nos sonhos- nesse caso, “mulheres públicas”. Na
figura zeladora eu estava mostrando minha falta de gratidão para com uma
espirituosa senhora de idade e retribuindo mal sua hospitalidade e as muitas
boas histórias que ouvira quando me hospedei em sua casa. - A alusão ao
candeeiro remontava a Grillparzer, que introduziu um encantador episódio
de natureza semelhante, pelo qual ele passara na realidade, em sua tragédia
sobre Hero e Leandro, Des Meeres und der Liebe Wellen [“As Ondas do Mar
e do Amor”] - a Armada e a tempestade.[1]
Devo também abster-me de qualquer análise
pormenorizada dos dois episódios restantes do sonho. Simplesmente
selecionarei os elementos que conduzem às duas cenas de infância exclusivamente
em função das quais embarquei no exame desse sonho. Pode-se suspeitar, com
justa razão, que o que me obriga a fazer essa supressão é o material sexual;
mas não há necessidade de nos contentarmos com essa explicação. Afinal, há
muitas coisas de que se tem que fazer segredo para outras pessoas, mas das
quais não se guarda nenhum segredo para si próprio; e a questão aqui não é a razão
por que sou obrigado a ocultar a solução, mas diz respeito aos motivos da
censura interna que esconderam de mim o verdadeiro conteúdo do sonho.
Por isso, devo explicar que a análise desses três [últimos] episódios do sonho
mostrou que eles eram gabolices impertinentes, produtos de uma megalomania
absurda que há muito havia sido suprimida de minha vida de vigília, e algumas
de suas ramificações haviam até mesmo acedido ao conteúdo manifesto do sonho
(por exemplo, “achei que estava sendo muito astuto”), e a qual, aliás,
explicava meu exuberante bom humor na noite que antecedeu o sonho. A presunção
se estendia a todas as esferas; por exemplo, a menção a Graz remontava à
expressão de gíria “qual é o preço de Graz?”, que externa a auto-satisfação de
uma pessoa que se sente extremamente bem de vida. O primeiro episódio do sonho
pode também ser incluído entre as fanfarronices por quem quer que tenha em
mente o incomparável relato do grande Rabelais sobre a vida e os atos de
Gargântua e seu filho Pantagruel.
Eis o material relativo à duas cenas de
infância que prometi a meus leitores. Eu havia comprado uma mala nova
para a viagem, de cor castanho-violeta. Esta cor aparece mais de uma vez
no sonho: as violetas de tom castanho-violeta feitas de material rígido
e, ao lado delas, uma coisa conhecida por “Mädchenfänger”
[“pega-moças”] - e os móveis dos aposentos ministeriais. As crianças
geralmente acreditam que as pessoas ficam impressionadas com qualquer
coisa nova. A seguinte cena de minha infância que me foi descrita, e
minha lembrança da descrição tomou o lugar da recordação da própria cena:
parece que, quando tinha dois anos, eu ainda molhava a cama
ocasionalmente, e quando era repreendido por isso, consolava meu pai
prometendo comprar-lhe uma bela cama nova e vermelha em N., a mais
próxima cidade com alguma importância. Essa fora a origem da oração entre
parênteses do sonho, no sentido de que tínhamos comprado ou tivemos de
comprar o urinol na cidade: um sujeito deve cumprir suas
promessas.(Note-se, também, a justaposição simbólica do urinol masculino e da
mala ou caixa feminina. [Ver em [1]-[2]]) Essa minha promessa exibia toda a
megalomania da infância. Já nos deparamos com o importante papel desempenhado
nos sonhos pelas dificuldades das crianças em relação à micção (cf. o sonho
relatado em [1]). Também já tomamos conhecimento, pela psicanálise de
sujeitos neuróticos, da íntima relação entre o urinar na cama e o traço de
caráter da ambição.
Quando eu contava sete ou oito anos, houve
outra cena doméstica da qual me lembro com muita clareza. Uma noite, antes de
ir dormir, desprezei as normas formuladas pelo decoro e obedeci aos apelos da
natureza no quarto de meus pais, na presença deles. No decorrer de sua
reprimenda, meu pai deixou escapar as seguintes palavras: “Esse menino não vai
dar para nada.” Isso deve ter sido um golpe terrível para minha ambição, pois
ainda há referências a essa cena recorrendo constantemente em meus sonhos, e
estão sempre ligadas a uma enumeração de minhas realizações e sucessos, como se
eu quisesse dizer: “Estão vendo, eu dei para alguma coisa.” Essa cena,
portanto, forneceu o material para o episódio final do sonho, no qual - por
vingança, é claro - os papéis foram invertidos. O homem mais velho (claramente
meu pai, pois a cegueira num olho se referia a seu glaucoma unilateral)
agora urinava diante de mim, tal como eu urinara na presença dele em minha
infância. Na referência a seu glaucoma eu o fazia lembrar-se da cocaína, que o
havia ajudado na operação [Ver em [1]] como se, dessa maneira, eu tivesse
mantido minha promessa. Além disso, estava me divertindo à sua custa; tinha de
entregar-lhe o urinol porque ele era cego e me deleitava com as alusões a
minhas descobertas ligadas à teoria da histeria, das quais me sentia muito orgulhoso.[1]
As duas cenas de micção de minha infância
estavam de qualquer modo, estreitamente ligadas ao tema da megalomania; mas sua
emergência enquanto eu viajava para Aussee foi ainda auxiliada pela
circunstância fortuita de que não havia um toalete contíguo a meu compartimento
e de que eu tinha motivos para prever a dificuldade que de fato surgiu ao
amanhecer. Despertei com as sensações de uma necessidade física. Poder-se-ia,
penso eu, ficar inclinado a supor que essas sensações tinham sido o verdadeiro
agente provocador do sonho, mas prefiro adotar outro ponto de vista, a saber, o
de que o desejo de urinar só foi despertado pelos pensamentos do sonho. É muito
raro eu ser perturbado em meu sono por necessidades físicas de qualquer
natureza, sobretudo no horário em que acordei nessa ocasião, às quinze para as
três da madrugada. E talvez possa refutar uma outra objeção observando que em
outras viagens, realizadas em condições mais confortáveis, raramente senti
necessidade de urinar quando acordava cedo. Mas, seja como for, não haverá
nenhum mal em deixar esse ponto não solucionado. [1]
Minhas experiências ao analisar sonhos chamaram
ainda atenção para o fato de que as seqüências de idéias que remontam à mais
remota infância partem até mesmo de sonhos que parecem, à primeira vista, ter
sido inteiramente interpretados, visto que suas fontes e seu desejo instigador
são descobertos sem dificuldade. Vi-me, portanto, obrigado a perguntar a mim
mesmo se essa característica não seria precondição essencial do sonhar.
Enunciado em termos gerais, isso implicaria que todo sonho estaria ligado, em
seu conteúdo manifesto, a experiências recentes, e, em seu conteúdo latente, às
experiências mais antigas. E de fato pude mostrar, em minha análise da
histeria, que essas experiências antigas permanecem recentes no sentido próprio
do termo, até o presente imediato. Ainda é extremamente difícil demonstrar a
verdade dessa suspeita, e terei de voltar, com respeito a outra questão
(Capítulo VII [em [1]]), a um exame do provável papel desempenhado pelas
experiências primitivas da infância na formação dos sonhos.
Das três características da memória nos sonhos,
enumeradas no início deste capítulo, uma - preferência pelo material
não-essencial no conteúdo dos sonhos - foi satisfatoriamente esclarecida ao se
remontar sua origem à distorção dos sonhos. Pudemos confirmar a existência das
outras duas - a ênfase no material recente e no material infantil - mas não
pudemos explicá-las com base nos motivos que levam a sonhar. Essas duas características,
cuja explicação e apreciação ainda não foram descobertas, devem ser conservadas
em mente. Seu lugar apropriado deve ser buscado alhures - quer na psicologia do
estado de sono, quer no exame da estrutura do aparelho mental, em que nos
envolveremos posteriormente, depois que tivermoscompreendido que a
interpretação dos sonhos é como uma janela pela qual podemos vislumbrar o
interior desse aparelho. [Ver Capítulo VII.]
Existe, contudo, outra inferência decorrente
destas últimas análises de sonhos, para a qual chamarei a atenção
imediatamente. Os sonhos muitas vezes parecem ter mais de um sentido. Não só,
como mostraram nossos exemplos, podem abranger várias realizações de desejos,
uma ao lado da outra, como também pode haver uma sucessão de sentidos ou
realizações de desejos superpostos uns aos outros, achando-se na base a
realização de um desejo que data da primeira infância. E aqui surge mais uma
vez a questão de verificar se não seria mais correto asseverar que isso ocorre
“invariavelmente”, e não “freqüentemente”.
(C) AS FONTES SOMÁTICAS DOS
SONHOS
Se tentarmos interessar um leigo culto nos
problemas dos sonhos e, com esse propósito em vista, lhe perguntarmos quais
são, em sua opinião, as fontes das quais eles surgem, veremos, de modo geral,
que ele se sente seguro de possuir a resposta para essa parte da pergunta. Ele
pensa imediatamente nos efeitos produzidos na construção dos sonhos pelos
distúrbios ou dificuldades digestivas - “os sonhos decorrem da indigestão” [ver
em [1]] -, pelas posturas acidentalmente assumidas pelo corpo e por outros
pequenos incidentes durante o sono. Nunca lhe parece ocorrer que, uma vez
levados em conta todos esses fatores, ainda reste algo que precise de
explicação.
Já examinei longamente, no capítulo de abertura
(Seção C), o papel atribuído pelos autores científicos às fontes somáticas de
estimulação na formação dos sonhos; basta-me, portanto, recordar aqui apenas os
resultados dessa investigação. Verificamos que se distinguiam três espécies
diferentes de fontes somáticas de estimulação: os estímulos sensoriais
objetivos provenientes de objetos externos, os estados internos de excitação
dos órgãos sensoriais com base apenas subjetiva, e os estímulos somáticos
provenientes do interior do corpo. Percebemos, além disso, que as autoridades
se inclinavam a colocar em segundo plano, ou a excluir inteiramente, quaisquer
possíveis fontes psíquicas dos sonhos, comparadas a esses estímulos
somáticos (ver em [1]). Em nosso exame das afirmações feitas em prol das fontes
somáticas de estimulação, chegamos às seguintes conclusões. A importância das
excitações objetivas dos órgãos sensoriais (consistindo, em parte, de
estímulos fortuitos durante o sono e, em parte, de excitações que não podem
deixar de influenciar nem mesmo uma mente adormecida) é estabelecida a partir
de numerosas observações e foi confirmada experimentalmente (ver em [1]). O
papel desempenhado pelas excitações sensoriais subjetivas parece ser
demonstrado pela recorrência de imagens sensoriais hipnagógicas nos sonhos (ver
em [1] e segs.). E por fim, parece que, embora seja impossível provar que as
imagens e representações que ocorrem em nossos sonhos são atribuíveis aos
estímulos somáticos internos no grau em que se afirmou que isso se dá,
essa origem, ainda assim, encontra apoio na influência universalmente
reconhecida que exercem em nossos sonhos os estados de excitação de nossos
órgãos digestivos, urinários e sexuais [ver em [1]]
Assim, ao que parece, a “estimulação nervosa” e
a “estimulação somática” seriam as fontes somáticas dos sonhos - isto é,
segundo muitos autores, sua única fonte.
Por outro lado, já encontramos diversas
manifestações de dúvida que pareciam implicar uma crítica não à correção,
é verdade, mas à suficiência da teoria da estimulação somática.
Por mais seguros de sua base concreta que se
sentissem os defensores dessa teoria - especialmente no que concerne aos
estímulos acidentais e externos, já que estes podem ser detectados no conteúdo
dos sonhos sem qualquer dificuldade - nenhum deles pôde deixar de perceber que
é impossível atribuir a profusão de material de representações dos sonhos
apenas aos estímulos nervosos externos. A Srta. Mary Whiton Calkins (1893, 312)
examinou seus próprios sonhos e os de uma outra pessoa durante seis semanas com
essa questão em mente. Verificou que em apenas 13,2% e 6,7 % deles,
respectivamente, foi possível traçar o elemento de percepção sensorial externa;
ao passo que, dos casos do conjunto de sonhos, apenas dois eram decorrentes de
sensações orgânicas. Temos aqui a confirmação estatística daquilo que fui
levado a suspeitar a partir de um exame apressado de minhas próprias
experiências.
Já se propôs muitas vezes separar os “sonhos
devido à estimulação nervosa” de outras formas de sonhos,como uma subespécie
que foi completamente investigada. Assim, Spitta [1882, 233] divide os sonhos
em “sonhos devidos à estimulação nervosa” e “sonhos devido à associação”. Essa
solução, todavia, estava fadada a permanecer insatisfatória enquanto fosse
impossível demonstrar o elo entre as fontes somáticas de um sonho e seu
conteúdo de representações. Assim, além da primeira objeção - a freqüência
insuficiente das fontes externas de estimulação -, havia uma segunda - a
explicação insuficiente dos sonhos proporcionada por essas fontes. Temos o
direito de esperar que os defensores dessa teoria nos dêem explicações sobre
dois pontos: primeiro, por que é que o estímulo externo de um sonho não é
percebido em sua verdadeira natureza, sendo invariavelmente mal interpretado
(cf. os sonhos provocados pelo despertador em [1]); e segundo, por que é que a
reação da mente perceptiva a esses estímulos mal interpretados leva a
resultados de uma variedade tão imprevisível.
A título de resposta a essas questões,
Strümpell (1877, 108 e seg.) nos diz que, como a mente se retrai do mundo
externo durante o sono, ela é incapaz de dar uma interpretação correta aos
estímulos sensoriais objetivos e é obrigada a construir ilusões com base no que
é, em muitos aspectos, uma impressão indeterminada. Para citar suas próprias
palavras: “Tão logo uma sensação ou um complexo de sensações, ou um sentimento,
ou um processo psíquico de qualquer espécie surge na mente durante o sono, como
resultado de um estímulo nervoso externo ou interno, e isso é percebido pela mente,
esse processo convoca imagens sensoriais do círculo de experiências deixadas na
mente pelo estado de vigília - ou seja, percepções anteriores - que são puras
ou se fazem acompanhar de seus valores psíquicos apropriados. O processo se
cerca, por assim dizer, de um número maior ou menor de imagens desse tipo e,
através delas, a impressão derivada do estímulo adquire seu valor psíquico.
Falamos aqui (como costumamos fazer no caso do comportamento de vigília) sobre
a mente adormecida ‘interpretar’ as impressões causadas pelo estímulo nervoso.
O resultado dessa interpretação é o que chamamos de um ‘sonho devido à
estimulação nervosa’, isto é, um sonho cujos componentes são determinados por
um estímulo nervoso que produz seus efeitos psíquicos na mente segundo as leis
da reprodução.” [Ver em [1], [2] e [3].]
Wundt [1874, 656 e seg.] está dizendo algo
essencialmente idêntico a essa teoria ao afirmar que as representações que
ocorrem nos sonhos derivam, pelo menos em sua maior parte, de estímulos
sensoriais, incluindo especialmente as sensações cenestésicas, e são, por esse
motivo, principalmente ilusões imaginativas e, provavelmente apenas em pequeno
grau, representações mnêmicas puras intensificadas até assumirem a forma de
alucinações. [Ver em [1]] Strümpell (1877, 84) descobriu um símile adequado
para a relação que subsiste nessa teoria entre os conteúdos de um sonho e seus
estímulos, ao escrever que “é como se os dez dedos de um homem que nada sabe de
música vagassem sobre o teclado de um piano” [Ver em [1] e [2]]. Assim, um
sonho não é, segundo essa visão, um fenômeno mental baseado em motivos
psíquicos, e sim o resultado de um estímulo psicológico que se expressa em
sintomas físicos, pois o aparato sobre o qual o estímulo incide não é capaz de
outra forma de expressão. Uma pressuposição similar também está subjacente, por
exemplo, à famosa analogia por meio da qual Meynert tentou explicar as
idéias obsessivas: a analogia de um mostrador de relógio no qual certos
algarismos sobressaem por estarem estampados de maneira mais proeminentemente
do que os demais.
Por mais popular que se tenha tornado a teoria
da estimulação somática dos sonhos, e por mais atraente que ela possa parecer,
seu ponto fraco é facilmente demonstrado. Todo estímulo somático onírico que
exija que o aparelho mental adormecido o interprete por meio da construção de
uma ilusão pode dar origem a um número ilimitado de tais tentativas de
interpretação - isto é, pode ser representado no conteúdo do sonho por uma
imensa variedade de representações. Mas a teoria proposta por Strümpell e Wundt é
incapaz de produzir qualquer motivo que reja a relação entre um estímulo
externo e a representação onírica escolhida para sua interpretação - isto é, é
incapaz de explicar o que Lipps (1883, 170) chama de a “notável escolha
freqüentemente feita” por esses estímulos “no curso de sua atividade
produtiva”. Outras objeções foram ainda levantadas contra a pressuposição em
que se baseia toda a teoria da ilusão - a pressuposição de que a mente
adormecida é incapaz de reconhecer a verdadeira natureza dos estímulos
sensoriais objetivos. Burdach, o fisiologista, mostrou-nos há muito tempo que,
mesmo no sono, a mente é perfeitamente capaz de interpretar de maneira correta
as impressões sensoriais que a alcançaram e de reagir segundo essa
interpretação correta; lembrou ele o fato de que determinadas impressões
sensoriais que parecem importantes para aquele que dorme podem ser execetadas
da negligência geral a que tais impressões ficam sujeitas durante o sono (como
no caso da mãe que está amamentando ou da ama-de-leite em relação à criança sob
sua responsabilidade), e que é mais certo uma pessoa adormecida ser acordada
pelo som de seu próprio nome do que por alguma impressão auditiva indiferente -
tudo isso implicando que a mente diferencia as sensações durante o sono (Ver em
[1]). Burdach então inferiu dessas observações que o que devemos presumir
durante o estado de sono não é uma falta de interesse neles. Os mesmos
argumentos usados por Burdach em 1830 foram novamente apresentados por Lipps,
sem qualquer modificação, em 1883, em sua crítica à teoria da estimulação
somática. Assim, a mente parece comportar-se como o adormecido da anedota.
Quando alguém lhe perguntou se estava dormindo, ele respondeu “Não”. Mas quando
o interlocutor prosseguiu dizendo “Então empreste-me dez florins”, ele se
refugiou num subterfúgio e respondeu: “Estou dormindo”.
A insuficiência da teoria da estimulação
somática dos sonhos pode ser demonstrada de outras maneiras. A observação
mostra que os estímulos externos não me compelem necessariamente a sonhar,
muito embora tais estímulos apareçam no conteúdo de meu sonho se e quando chego
de fato a sonhar. Vamos supor, digamos, que eu seja submetido a um estímulo
táctil enquanto estiver dormindo. Uma multiplicidade de reações diferentes
estará então aberta diante de mim. Posso desprezar o estímulo e, ao acordar,
constatar, por exemplo, que minha perna está descoberta ou que há alguma
pressão em meu braço; a patologia fornece exemplos bastante numerosos em que vários
estímulos sensoriais e motores poderosamente excitantes permanecem sem efeito
durante o sono. Ou então, posso ficar ciente da sensação em meu sono - posso
ficar ciente dela, como se diz, “através” de meu sono (que é o que acontece,
via de regra, no caso dos estímulos dolorosos), mas sem que se transforme a dor
num sonho. E, em terceiro lugar, posso reagir ao estímulo acordando para
livrar-me dele. É somente como a quarta possibilidade que o estímulo
nervoso pode levar-me a sonhar. Contudo, as outras possibilidades se
concretizam pelo menos com a mesma freqüência desta última, - a de construir um
sonho. E isso não poderia acontecer, a menos que o motivo para sonhar estive em
outra parte que não fontes somáticas de estimulação.
Alguns outros autores - Scherner [1861] e o
filósofo Volkelt [1875], que adorou os pontos de vista de Scherner - fizeram
uma estimativa justa das lacunas que aqui indiquei na explicação dos sonhos
como devidas à estimulação somática. Esses autores tentaram definir com mais
precisão as atividades mentais que levam à produção de imagens oníricas tão
diversificadas a partir dos estímulos somáticos; em outras palavras, eles
buscaram considerar uma atividade psíquica. [Ver em [1]] Scherner não apenas
retratou as características psíquicas reveladas na produção dos sonhos em
termos carregados de sentimento poético e resplandecentes de vida; ele
acreditava, também, ter descoberto o princípio segundo o qual a mente lida com
os estímulos a ela apresentados. Em sua opinião, o trabalho do sonho, quando a
imaginação é libertada dos grilhões diurnos, procura dar uma representação simbólica
da natureza do órgão do qual provém o estímulo e da natureza do próprio
estímulo. Assim, ele fornece uma espécie de “livro do sonho” para servir como
guia para a interpretação dos sonhos, que possibilita deduzir das imagens
oníricas inferências sobre as sensações somáticas, o estado dos órgãos e o
caráter dos estímulos em questão. “Assim, a imagem de um gato expressa um
estado irritadiço, mau humor e a imagem de um pão macio e de coloração clara
representa a nudez física.” [Volkelt, 1875, 32.] O corpo humano como um todo é
retratado pela imaginação onírica como uma casa, e os diferentes órgãos do
corpo, como partes de uma casa. Nos “sonhos com um estímulo dental”, um saguão
de entrada com teto alto e abobadado corresponde à cavidade oral, e uma
escadaria, à descida da garganta até o esôfago. “Nos sonhos devido às dores de
cabeça, o alto da cabeça é representado pelo teto de um quarto coberto de
aranhas repulsivas, semelhantes a sapos.” [Ibid., em [1]] Uma multiplicidade
desses símbolos é empregada pelos sonhos para representar o mesmo órgão.
“Assim, o pulmão, no ato de respirar, será simbolicamente representado por uma
fornalha chamejante, com as labaredas crepitando com um som semelhante ao da
passagem de ar; o coração será representado por caixas ou cestas vazias, e a
bexiga, por objetos redondos em forma de sacos, ou, mais geralmente, por
objetos ocos.” [Ibid., 34] “É de suma importância o fato de que, ao final de um
sonho, o órgão em causa ou sua função, com freqüência, é abertamente revelado,
e via de regra, em relação ao próprio corpo sonhador. Assim, um sonho com um
estímulo dental normalmente termina com o sonhador visualizando a si mesmo ao
arrancar um dente da boca.” [Ibid., 35.]
Não se pode dizer que essa teoria da
interpretação dos sonhos tenha sido recebida de maneira muito favorável por
outros autores do ramo. Sua característica principal parece ser sua
extravagância; e tem havido hesitação até mesmo em reconhecer a justificação
que, na minha opinião, ela pode reivindicar. Como se terá percebido, ela
envolve uma revivescência da interpretação dos sonhos por meio do simbolismo
- o mesmo método que era empregado na Antiguidade, com a exceção de que o campo
de onde se extraem as interpretações fica restrito aos limites do corpo humano.
Sua falta de qualquer técnica de interpretação que possa ser cientificamente
apreendida talvez reduza em muito a aplicação da teoria de Scherner. Ela parece
dar margem a interpretações arbitrárias, sobretudo porque, também em seu caso,
o mesmo estímulo pode ser representado no conteúdo onírico de inúmeras maneiras
diferentes. Assim, até mesmo o discípulo de Scherner, Volkelt, viu-se
impossibilitado de confirmar a idéia de que o corpo era representado por uma
casa. Objeções também estão fadadas a provir do fato de que, mais uma vez, a
mente fica sobrecarregada com o trabalho do sonho como uma função inútil e sem
objetivo; pois, segundo a teoria que estamos examinando, a mente se contenta em
fazer fantasias sobre o estímulo de que se ocupa, sem o mais remoto indício de
qualquer coisa da ordem de uma eliminação do estímulo.
Há uma crítica em particular, no entanto, que é
gravemente prejudicial à teoria de Scherner sobre a simbolização dos estímulos
somáticos. Esses estímulos estão sempre presentes, e geralmente se afirma que a
mente é mais acessível a eles durante o sono do que quando desperta. É difícil
entender, então, por que é que a mente não sonha continuamente a noite inteira
e, na verdade, por que não sonha todas as noites com todos os órgãos. Pode-se
fazer uma tentativa de evitar essa crítica, acrescentando-se a condição
adicional de que, para suscitar a atividade onírica, é necessário que
excitações especiais provenham dos olhos, ouvidos, dentes, intestinos
etc. Mas surge então a dificuldade de provar a natureza objetiva de tais
aumentos de estímulo - o que só é possível num pequeno número de casos. Se os
sonhos de voar são uma simbolização da subida e descida dos lobos dos pulmões
[ver em [1]], então, como Strümpell [1877, 119] já assinalou, esses sonhos
teriam de ser muito mais freqüentes do que são, ou seria necessário provar um
aumento da atividade respiratória no decorrer deles. Há uma terceira
possibilidade, que é a mais provável de todas, qual seja, a de que talvez haja
motivos especiais temporariamente atuantes dirigindo a atenção para sensações
viscerais que estão presentes de maneira uniforme em todos os momentos. Essa
possibilidade, entretanto, leva-nos além do alcance da teoria de Scherner.
O valor dos pontos de vista expostos por
Scherner e Volkelt está no fato de eles chamarem atenção para diversas
características do conteúdo dos sonhos que exigem explicação e parecem prometer
novas descobertas. É perfeitamente verdadeiro que os sonhos contêm
simbolizações de órgãos e funções do corpo, e que a presença de água num sonho
com freqüência assinala um estímulo urinário, e que os órgãos genitais
masculinos podem ser representados por um bastão erguido ou uma coluna, e assim
por diante. No caso dos sonhos em que o campo visual fica repleto de movimento
e cores vivas, em contraste com a insipidez de outros sonhos, dificilmente se
poderá deixar de interpretá-los como “sonhos com um estímulo visual”; tampouco
se pode contestar o papel desempenhado pelas ilusões no caso dos sonhos que se
caracterizam por ruídos e confusão de vozes. Scherner [2861, 167] relata um
sonho com duas fileiras de meninos bonitos e louros, postados um de frente ao
outro ao longo de uma ponte, que se atacam entre si e então retornam à posição
original, até que finalmente o sonhador se viu sentado numa ponte, arrancando
um dente enorme de sua boca. De maneira semelhante, Volkelt [1875, 52] relata
um sonho em que pareciam duas fileiras de gavetas num armário e que, mais uma
vez, terminou com o sonhador arrancando um dente. Formações oníricas como
essas, que são registradas em grande número pelos dois autores, impedem que
descartemos a teoria de Scherner como uma invenção inútil sem procurarmos seu
cerne de verdade. [Ver em [1].] A tarefa que nos confronta, portanto, é
encontrar outro tipo de explicação para a suposta simbolização do que se alega
um estímulo dental. [1]
Durante toda esta discussão da teoria das
fontes somáticas dos sonhos, abstive-me de usar o argumento baseado em minha
análise dos sonhos. Se ele puder ser confirmado, através de um procedimento não
empregado por outros autores em seu material onírico, que os sonhos possuem um
valor próprio como atos psíquicos, o de que os desejos são o motivo de sua
concentração e que as experiências do dia anterior fornecem o material imediato
para seu conteúdo, qualquer outra teoria dos sonhos que despreze um
procedimento de pesquisa tão importante e que, por conseguinte, represente os
sonhos como uma reação psíquica inútil e enigmática a estímulos somáticos
estará condenada, sem necessidade maior de críticas específicas. De outra forma
- e isso parece bastante improvável - teria de haver duas espécies bem
diferentes de sonhos, um das quais só eu pude observar, e outra que só
pôde ser percebida pelos autores mais antigos. Resta apenas, portanto,
encontrar em minha teoria dos sonhos um lugar para os fatos em que se baseia a
atual teoria da estimulação somática dos sonhos.
Já demos o primeiro passo nessa direção ao propor
a tese (ver em [1]) de que o trabalho do sonho está sujeito à exigência de
combinar em uma unidade os estímulos ao sonhar que estiverem simultaneamente em
ação. Verificamos que, quando duas ou mais experiências capazes de criar uma
impressão são deixadas pelo dia anterior, os desejos delas derivados se
combinam num único sonho, e, de modo similar, que a impressão psiquicamente
significativa e as experiências irrelevantes da véspera são reunidas no
material onírico, sempre desde que seja possível estabelecer entre elas
representações comunicantes. Assim, o sonho parece ser uma reação a tudo o que
está simultaneamente presente na mente adormecida como material correntemente
ativo. Até onde analisamos o material dos sonhos, vimo-lo como uma coletânea de
resíduos psíquicos e traços mnêmicos, à qual (em virtude da preferência
mostrada por material recente e infantil) fomos levados a atribuir uma
qualidade até aqui indefinível de ser “correntemente ativo”. Podemos por isso
antever, sem grandes dificuldades, o que acontecerá se um material nosso, sob a
forma de sensações, for acrescentado durante o sono a essas lembranças
correntemente ativas. É também graças ao fato de serem correntemente ativas que
essas excitações sensoriais são importantes para o sonho; elas se unem ao outro
material psíquico correntemente ativo para fornecer aquilo que é usado para a
construção do sonho. Em outras palavras, os estímulos que surgem durante o sono
são os conhecidos “restos diurnos” psíquicos. Essa combinação não precisa
ocorrer; como já assinalei, há mais de uma maneira de reagir a um estímulo
somático durante o sono. Quando ela efetivamente ocorre, isso significa
que foi possível encontrar, para servir de conteúdo do sonho, um material de
representações de tal ordem que é capaz de representar ambos os tipos de fontes
do sonho: a somática e a psíquica.
A natureza essencial do sonho não é alterada
pelo fato de se acrescentar material somático a suas fontes psíquicas: o sonho
continua a ser a realização de um desejo, não importa de que maneira a
expressão dessa realização de desejo seja determinada pelo material
correntemente ativo.
Estou disposto a abrir espaço, neste ponto,
para a atuação de diversos fatores especiais que podem emprestar uma
importância variável aos estímulos externos em relação aos sonhos. A meu ver, é
uma combinação de fatores individuais fisiológicos e fortuitos, produzidos
pelas circunstâncias do momento, que determina como uma pessoa se comportará
nos casos específicos de uma estimulação objetiva relativamente intensa durante
o sono. A profundidade habitual ou acidental de seu sono, tomada em conjunto
com a intensidade do estímulo, possibilitará, num caso, que ela suprima o
estímulo, para que seu sono não seja interrompido e, noutro caso, obrigá-la-á a
acordar ou estimulará uma tentativa de superar o estímulo incorporando-o num
sonho. De acordo com essas várias combinações possíveis, os estímulos objetivos
externos encontrarão expressão nos sonhos com maior ou menor freqüência em uma
pessoa do que em outra. No meu próprio caso, como tenho um sono excelente e me
recuso obstinadamente a permitir que qualquer coisa o perturbe, é muito raro as
causas externas de excitação conseguirem penetrar em meus sonhos; ao passo que
as motivações psíquicas obviamente me fazem sonhar com muita facilidade. De
fato, só anotei um único sonho em que uma fonte objetiva e dolorosa de estímulo
é reconhecível, e será muito instrutivo examinar o efeito externo produzido
neste sonho em particular.
Eu montava um cavalo cinzento, a princípio tímida
e desajeitadamente, como se apenas me reclinasse sobre ele. Encontrei um de
meus colegas, P., que montava ereto um cavalo, envergando um terno de tweed, e
que chamou minha atenção para alguma coisa (provavelmente minha maneira
incorreta de sentar). Comecei então a me sentir sentado com firmeza e conforto
cada vez maiores em meu cavalo muito inteligente, e percebi que me sentia
inteiramente à vontade ali. Minha sela era uma espécie de almofadão, que
preenchia completamente o espaço entre o pescoço e a garupa do animal. Assim,
passei a cavalgar bem no meio de dois carros de transportes. Depois de cavalgar
um pouco rua acima, voltei-me e tentei desmontar, primeiro diante de uma
capelinha aberta que ficava de frente para a rua. Depois, desmontei realmente
diante de outra capela que ficava perto da primeira. Meu hotel ficava na mesma
rua; eu poderia ter deixado o cavalo ir até lá sozinho, mas preferi guiá-lo até
aquele ponto. Era como se eu fosse ficar envergonhado por chegar lá a cavalo.
Um engraxate estava em pé diante do hotel; mostrou-me um bilhete que fora
encontrado e riu de mim por causa dele. No bilhete estava escrito, duplamente
sublinhado: “Sem comida”, e depois outra observação (indistinta) como
“Sem trabalho”, juntamente com uma idéia vaga de que eu estava numa cidade
estranha e não estava trabalhando.
Ninguém suporia, à primeira vista, que esse
sonho se tivesse originado sob a influência, ou antes, sob a compulsão de um
estímulo doloroso. Mas, desde alguns dias antes, eu vinha sofrendo de furúnculos
que transformavam cada momento numa tortura; e por fim, surgira um furúnculo do
tamanho de uma maçã na base do meu escroto, o que me acusava a mais intolerável
dor a cada passo que eu dava. Lassidão febril, perda de apetite e o trabalho
árduo que, não obstante, eu continuava a fazer - tudo isso se combinara com a
dor para me deixar deprimido. Eu estava impossibilitado de cumprir
adequadamente minhas funções de médico. Havia, porém, uma atividade para a
qual, dada a natureza e a situação de meu problema, eu estaria certamente menos
apto do que para qualquer outra, e esta era - montar a cavalo. E foi
precisamente essa a atividade em que o sonho me colocou: ele foi a mais
enérgica negação de minha doença que se poderia imaginar. Na verdade não sei
montar, nem tive, com exceção deste, sonhos com cavalgadas. Só me sentei num
cavalo uma vez na vida, e mesmo assim, sem sela, e não gostei. Nesse sonho,
porém, eu cavalgava como se não tivesse um furúnculo em meu períneo - ou
melhor, porque eu não queria ter um. Minha sela, a julgar por sua
descrição, era o cataplasma que me tornara possível adormecer. Sob sua
influência mitigante, eu provavelmente não estivera consciente de minha dor nas
primeiras horas de sono. As sensações dolorosas então se apresentaram e intentaram
despertar-me; nesse ponto o sonho chegou e disse suavemente: “Não! Continue a
dormir! Não há necessidade de acordar. Você não tem furúnculos, pois está
andando a cavalo, e com certeza não poderia cavalgar se tivesse um furúnculo
bem nesse lugar.” E o sonho foi bem-sucedido. A dor foi silenciada e continuei
a dormir.
Mas o sonho não se contentou em “eliminar por
sugestão” meu furúnculo pela insistência obstinada numa representação que era
incompatível com ele, e em proceder com o delírio alucinatório da mãe que
perdera o filho ou do comerciante cujos prejuízos tinham acabado com sua
fortuna.
Os detalhes da sensação que estava sendo repudiada e da imagem empregada para
reprimir essa sensação também serviram ao sonho como meio de ligar à situação
onírica outro material que estava correntemente ativo em minha mente e
dar representação a esse material. Eu montava um cavalo cinzento, cor
esta que correspondia precisamente à cor de pimenta-e-sal [mesclada de
preto e branco] da roupa que meu colega P. estava usando na última vez em que o
encontrei no interior. A causa de meus furúnculos fora atribuída à ingestão de
alimentos muito condimentados - uma etiologia que era ao menos
preferível ao açúcar [diabetes] que também poderia ocorrer no contexto
dos furúnculos. Meu amigo P. gostava de ficar a cavaleiro em relação a
mim desde que me tirara uma de minhas pacientes com quem eu havia conseguido
alguns efeitos notáveis. (No sonho, eu começava cavalgando
tangencialmente - como o feito de um cavaleiro habilidoso.) Mas, na
realidade, tal como o cavalo na anedota do cavaleiro de domingo, essa
paciente me levara para onde se sentia inclinada. Assim, o cavalo adquiriu o
significado simbólico de uma paciente. (No sonho, ele era muito inteligente.)
“Eu me sentia inteiramente à vontade lá” referia-se à posição que eu
ocupara na casa dessa paciente antes de ser substituído por P. Não muito antes,
um de meus poucos protetores entre os principais médicos desta cidade me
observara, com relação a essa mesma casa: “Você me dá a impressão de estar
firme na sela lá.” Era um feito notável, também, poder prosseguir em meu
trabalho psicoterápico durante oito ou dez horas por dia enquanto estava
sentindo tanta dor. Mas eu sabia que não poderia prosseguir por muito tempo em
meu trabalho peculiarmente difícil, a menos que estivesse com perfeita saúde
física; e meu sonho estava repleto de alusões sombrias à situação em que me
encontraria nesse eventualidade. (O bilhete que os neurastênicos trazem
com eles para mostrar ao médico: sem dinheiro, sem trabalho.) Mais
adiante na interpretação, vi que o trabalho do sonho conseguira descobrir um
caminho da situação desejante de cavalgar para algumas cenas de rixas de minha
tenra infância que devem ter ocorrido entre mim e um sobrinho meu, um ano mais
velho, que agora vivia na Inglaterra. [Ver em [1].] Além disso, o sonho tirara
alguns de seus elementos de minhas viagens pela Itália: a rua do sonho era
composta de impressões de Verona e Siena. Uma interpretação ainda mais profunda
levou a pensamentos oníricos sexuais, e lembrei-me do sentido que as
referências à Itália pareciam ter nos sonhos de uma paciente que nunca visitara
aquele adorável país: “gen Italien” [para a Itália] - “Genitalien”
[genitais]; e isso também estava ligado à casa em que eu precedera meu amigo P.
como médico, assim como à situação de meu furúnculo.
Num outro sonho consegui êxito
semelhante em rechaçar uma ameaça de interrupção de meu sono, vinda desta feita
de um estímulo sensorial. Nesse caso, todavia, foi apenas por acaso que pude
descobrir o elo entre o sonho e seu estímulo acidental, e assim compreender o
sonho. Numa manhã em pleno verão, enquanto estava hospedado numa cidade
montanhosa de veraneio no Tirol, acordei sabendo ter sonhado que o Papa
havia morrido. Não consegui interpretar esse sonho - um sonho não-visual -
e só me lembrei, como parte de sua base, de ter lido um jornal, pouco tempo
antes, que Sua Santidade estava sofrendo de uma ligeira indisposição. Durante a
manhã, contudo, minha mulher me perguntou se eu ouvira o barulho terrível feito
pelo repicar dos sinos naquela manhã. Eu nem sequer o percebera, mas então
compreendi meu sonho. Ele fora uma reação, por parte de minha necessidade de
dormir, ao barulho com que os pios tiroleses haviam tentado acordar-me. Eu me
vingara deles extraindo a inferência que formou o conteúdo do sonho, e então
continuara a dormir sem dar maior atenção ao barulho.
Os sonhos citados nos capítulos anteriores
incluíram diversos que poderiam servir de exemplos da elaboração desses
chamados estímulos nervosos. Meu sonho de beber água em grandes goles [em [1]]
é um exemplo. O estímulo somático foi, aparentemente, sua única fonte, e o
desejo derivado da sensação (isto é, a sede) pareceu ser sua única motivação.
Dá-se um caso semelhante com outros sonhos simples em que um estímulo somático
parece, por si só, capaz de construir um desejo. O sonho da paciente que
afastou do rosto o aparelho resfriador durante a noite [em [1]] apresenta um
método incomum de reagir a um estímulo doloroso com uma realização de
desejo:foi como se a paciente conseguisse ficar temporariamente em analgesia,
ao tempo em que atribuía suas dores a outrem.
Meu sonho com as três Parcas [em [1]] foi
claramente um sonho de fome. Mas conseguiu desviar o desejo de nutrição para o
anseio infantil pelo seio materno e se valeu de um desejo inocente como
anteparo para um desejo mais sério, que não podia ser tão abertamente exibido.
Meu sonho sobre o Conde Thun [em [1]] mostrou como uma necessidade física
acidental pode ser vinculada aos mais intensos impulsos mentais (mas, ao mesmo
tempo, os mais intensamente suprimidos.) E um caso como o relatado por Garnier
(1872, 1, 476), de como o Primeiro Cônsul incorporou o barulho da explosão de
uma bomba num sonho de batalha antes de despertar dele [em [1]] revela com
clareza bastante especial a natureza do único motivo que leva a atividade
mental a se ocupar de sensações durante o sono. Um jovem advogado,
recém-saído de seu primeiro processo importante de falência, adormecendo certa
tarde, comportou-se exatamente da mesma forma que o grande Napoleão. Teve um
sonho com um certo G. Reich, de Husyatin [uma cidade de Galícia], que
conhecera durante um caso de falência; o nome “Husyatin” continuou a se impor a
sua atenção até que ele acordou e viu que sua mulher (que sofria de um catarro
brônquico) estava tendo um violento acesso de tosse [em alemão, “husten”].
Comparemos esse sonho de Napoleão I (que,
aliás, era dono de um sono extremamente profundo) com o do estudante sonolento
que foi acordado por sua senhoria e informado de que era hora de ir para o
hospital, e que passou a sonhar que estava numa cama do hospital e continuou a
dormir, sob o pretexto de que, já que estava no hospital, não havia necessidade
de se levantar e ir até lá [em [1]]. Este último sonho foi claramente um sonho
de conveniência. O sonhador admitiu uma motivação para sonhar sem nenhum
disfarce; mas, ao mesmo tempo, deixou escapar um dos segredos dos sonhos em
geral. Todos os sonhos são, num certo sentido, sonhos de conveniência; servem à
finalidade de prolongar o sono, em vez de acordar. Os sonhos são
GUARDIÃES do sono, e não perturbadores dele. Teremos oportunidade, mais
adiante, de justificar essa visão deles em relação aos fatores despertadores de
ordem psíquica [ver em [1]], mas já estamos em condições de mostrar que
ela é aplicável ao papel desempenhado pelos estímulos externos objetivos. Ou a
mente não presta a mínima atenção às oportunidades de sensações durante o sono
- caso possa fazê-lo a despeito da intensidade dos estímulos e da importância
que sabe possuírem; ou se vale de um sonho para negar os estímulos; ou, em
terceiro lugar, se for obrigada a reconhecê-los, busca uma interpretação deles
que transforme a sensação correntemente ativa em parte integrante de uma
situação que seja desejada e compatível com o dormir. A sensação correntemente
ativa é incorporada no sonho para ser despojada de realidade. Napoleão
pôde continuar a dormir - com a convicção de que o que estava tentando
perturbá-lo era apenas uma lembrança onírica do ribombar dos canhões de Arcole.
Assim, o desejo de dormir (no qual o ego
consciente se concentra e que, justamente com a censura do sonho e a
“elaboração secundária” que mencionarei adiante [em [1]], representa
a contribuição do ego consciente para o sonhar), deve, na totalidade dos casos,
ser reconhecido como um dos motivos da formação dos sonhos, e todo sonho
bem-sucedido é uma realização desse desejo. Examinaremos num
outro ponto [em [1]] as relações existentes entre esse desejo universal, invariavelmente
presente e imutável de dormir e os demais desejos, dos quais ora um ora outro é
realizado pelo conteúdo do sonho. Mas encontramos no desejo de dormir o fator
capaz de preencher a lacuna na teoria de Strümpell e Wundt [em [1]] e de
explicar a maneira perversa e caprichosa como são interpretados os estímulos
externos. A interpretação correta, que a mente adormecida é perfeitamente capaz
de fazer, envolveria um interesse ativo e exigiria que o sono fosse
interrompido; por essa razão, dentre todas as interpretações possíveis, só são
admitidas aquelas que são compatíveis com a censura absoluta exercida pelo
desejo de dormir. “Ele é rouxinol e não a cotovia”, pois, se fosse a
cotovia, isso significaria o término da noite dos amantes. Entre as interpretações
do estímulo que são assim admissíveis, seleciona-se então aquela que pode
proporcionar o melhor vínculo com os impulsos desejantes que se ocultam na
mente. Assim, tudo é inequivocamente determinado e nada fica por conta da
decisão arbitrária. A interpretação errônea não é uma ilusão, e sim, como se
poderia dizer, uma evasão. Aqui, porém, mais uma vez, tal como quando, em
obediência à censura do sonho,uma substituição é efetuada por deslocamento,
temos de admitir que estamos diante de um ato que se desvia dos processos
psíquicos normais.
Quando os estímulos nervosos externos e os
estímulos somáticos internos são suficientemente intensos para forçar a atenção
psíquica para eles, então - desde que seu resultado seja sonhar e não
acordar - eles servem como um ponto fixo para a formação de um sonho, um núcleo
em seu material; busca-se então uma realização de desejo que corresponda a esse
núcleo, tal como (ver anteriormente [em [1]]) se buscam representações
intermediárias entre dois estímulos psíquicos do sonho. Nesta medida, é verdade
que, em diversos sonhos, o conteúdo onírico é ditado pelo elemento somático.
Nesse exemplo extremo, é possível até que um desejo que não esteja de fato
correntemente ativo seja invocado para fins de construção de um sonho. O sonho,
porém, não tem outra alternativa senão representar um desejo na situação de ter
sido realizado; ele enfrenta, por assim dizer, o problema de procurar um desejo
que possa representar-se como realizado pela sensação correntemente ativa.
Quando esse material imediato é de natureza dolorosa ou aflitiva, isso não
significa necessariamente que não possa ser utilizado para a construção de um
sonho. A mente tem a seu dispor desejos cuja realização produz desprazer. Isso
parece autocontraditório, mas torna-se inteligível quando levamos em conta a
presença de duas instâncias psíquicas e uma censura entre elas.
Como vimos, há na mente desejos “recalcados”
que pertencem ao primeiro sistema e a cuja realização se opõe o segundo
sistema. Ao afirmar que tais desejos existem, não estou fazendo uma declaração
histórica no sentido de que eles tenham existido um dia e tenham sido abolidos
mais tarde. A teoria do recalcamento, que é essencial ao estudo das
psiconeuroses, afirma que esses desejos recalcados ainda existem -
embora haja uma inibição simultânea que os contém. O uso lingüístico atinge o
alvo ao falar da “supressão” [isto é, “sub-pressão”] desses impulsos. Os
arranjos psíquicos que facultam a esses impulsos imporem sua realização
continuam a existir e a funcionar perfeitamente. Na eventualidade, contudo, de
um desejo recalcado desse tipo ser levado a efeito, e de sua inibição pelo
segundo sistema (o sistema que é admissível à consciência) ser derrotada, essa
derrota encontra expressão como desprazerosa. Concluindo: são sensações de
natureza desprazerosa provenientes de fontes somáticas, o trabalho do sonho
utiliza essa ocorrência para representar - sujeita à continuidade da censura em
maior ou menor grau - a realização de algum desejo que é normalmente suprimido.
É esse estado de coisas que possibilita um
grupo de sonhos de angústia - estruturas oníricas desfavoráveis do ponto de
vista da teoria da realização de desejo. Um segundo grupo revela um mecanismo
diferente, pois a angústia nos sonhos pode ser de natureza psiconeurótica: pode
originar-se de excitações psicossexuais - caso em que a angústia corresponde à
libido recalcada. Quando isso ocorre, a angústia, como a totalidade do sonho de
angústia, tem a significação de um sintoma neurótico, e nos aproximamos do
limite em que a finalidade de realização de desejo dos sonhos cai por terra.
[Ver em [1] e [2]] Mas há alguns sonhos de angústias [- os do primeiro grupo -]
em que o sentimento de angústia é somaticamente determinado - quando, por
exemplo, dá-se uma dificuldade de respiração devida a doenças pulmonares ou
cardíacas; - e, em tais casos, a angústia é explorada a fim de contribuir para
a realização, sob a forma de sonhos, de desejos energicamente suprimidos, que
se fossem sonhados por motivos psíquicos, levariam a uma libertação
semelhante de angústia. Mas não há dificuldade em conciliar esses dois grupos
aparentemente diferentes. Em ambos os grupos de sonhos, há dois fatores
psíquicos envolvidos: uma inclinação para um afeto e um conteúdo de
representações; e estes se relacionam intimamente entre si. Quando um deles
está correntemente ativo, evoca o outro, mesmo num sonho; num dos casos, a
angústia somaticamente determinada evoca o conteúdo de representações
suprimindo, e no outro o conteúdo de representações, com sua concomitante
excitação sexual, livre de repressão, evoca uma liberação de angústia. Podemos
dizer que, no primeiro caso, um afeto somaticamente determinado recebe uma
interpretação psíquica; ao passo que, no outro caso, embora o todo seja psiquicamente
determinado, o conteúdo que fora suprimido é facilmente substituído por uma
interpretação somática apropriada à angústia. As dificuldades que tudo isso
oferece à nossa compreensão pouco têm a ver com os sonhos: surgem do fato de
estarmos aqui tocando no problema da produção da angústia e no problema do
recalcamento.
Não há dúvida de que a cenestesia física [ou
sensibilidade geral difusa, ver em [1]] está entre os estímulos somáticos
internos capazes de ditar o conteúdo dos sonhos. Ela pode fazer isso, não no
sentido de poder proporcionar o conteúdo do sonho, mas no sentido de ser capaz
de impor aos pensamentos oníricos uma escolha do material a ser representado no
conteúdo, ao destacar parte do material como sendo adequado à sua própria
natureza e reter uma outra parte. Afora isso, aos resíduos psíquicos que têm
influência tão importante nos sonhos. Essa disposição geral pode persistir
inalterada no sonho ou pode ser dominada, e assim, caso seja desprazerosa, pode
ser transformada em seu oposto.
Portanto, em minha opinião, as fontes somáticas
de estimulação durante o sono (isto é, as sensações durante o sono), a menos
que sejam de intensidade incomum, desempenham na formação dos sonhos papel
semelhante ao desempenhado pelas impressões recentes, mas irrelevantes,
deixadas pelo dia anterior. Ou seja, creio que elas são introduzidas para
ajudar na formação de um sonho caso se ajustem apropriadamente ao conteúdo de
representações derivado das fontes psíquicas do sonho, mas não de outra forma.
São tratadas como um material barato e sempre à mão, que é empregado sempre que
necessário, em contraste com um material precioso que determina, ele próprio, o
modo como deverá ser empregado. Quando, para adotar um símile, um patrono das
artes leva a um artista uma pedra rara, como um pedaço de ônix, e lhe pede que
crie uma obra de arte com ela, o tamanho da pedra, sua cor e suas marcas ajudam
a decidir que cabeça ou que cena será nela representada. Ao passo que, no caso
de um material uniforme e abundante, tal como o mármore ou o arenito, o artista
simplesmente segue uma idéia que se apresente em sua própria mente. É só
dessa maneira, ao que me parece, que podemos explicar o fato de o conteúdo
onírico proporcionado por estímulos somáticos de intensidade não incomum deixar
de aparecer em todos os sonhos ou todas as noites. [Ver em [1].]
Talvez eu possa ilustrar melhor o que quero
dizer com um exemplo, que além disso reconduzirá à interpretação do sonho.
Um dia, eu vinha tentando descobrir qual
poderia ser o significado das sensações de estar inibido, de estar grudado no
lugar, de não poder fazer alguma coisa, e assim por diante, que ocorrem com
tanta freqüência nos sonhos e se relacionam tão de perto com os sentimentos de
angústia. Naquela noite, tive o seguinte sonho:
Eu estava vestido de forma muito incompleta e
subia as escadas de um apartamento térreo para um andar mais alto. Subia três
degraus de cada vez e estava encantado com minha agilidade. De repente, vi uma
criada descendo as escadas - isto é, vindo em minha direção. Fiquei
envergonhado e tentei apressar-me, e neste ponto instalou-se a sensação de
estar inibido: eu estava colado aos degraus e incapaz de sair do lugar.
ANÁLISE. - A situação do sonho é extraída da
realidade cotidiana. Ocupo dois pavimentos de uma casa em Viena, que se ligam
apenas pela escada pública. Meu consultório e meu gabinete ficam no primeiro
andar, e minhas acomodações domésticas, um pavimento acima. Quando, tarde da
noite, termino meu trabalho, no andar inferior, subo as escadas para meu quarto.
Na noite anterior à do sonho, eu realmente fizera um pequeno trajeto com a
roupa meio desalinhada - isto é, tinha retirado o colarinho, a gravata e os
punhos. No sonho, isso tinha sido transformado num grau maior de desalinho,
mas, como sempre, indeterminado. [Ver em [1]] Geralmente, subo as escadas de
dois em dois ou de três em três degraus; e isto foi reconhecido no próprio
sonho como uma realização de desejo: a facilidade com que eu conseguia isso me
tranqüilizava quanto ao funcionamento do meu coração. Ademais, esse método de
subir escadas fora um contraste efetivo com a inibição da segunda metade do
sonho. Mostrou-me - o que não precisava de comprovação - que os sonhos não
encontram nenhuma dificuldade em representar atos motores realizados com perfeição.
(Basta recordarmos os sonhos de estar voando.)
As escadas que eu subia, no entanto, não eram
as de minha casa. De início, deixei de percebê-lo, e somente a identidade da
pessoa que encontrei esclareceu-me qual era o local pretendido. Essa pessoa era
a criada da senhora que eu visitava duas vezes ao dia a fim de lhe aplicar
injeções [ver em [1]]; e as escadas eram também exatamente como as de sua casa,
que eu tinha de subir duas vezes por dia.
Ora, como entraram em meu sonho essas escadas e
essa figura feminina? O sentimento de vergonha por não estar completamente
vestido é, sem dúvida, de natureza sexual; mas a criada com quem sonhei era
mais velha do que eu, era grosseira e estava longe de ser atraente. A única
resposta que me ocorreu para o problema foi esta: quando fazia minhas visitas
matutinas a essa casa, eu costumava, em geral, ser tomado por um desejo de
tossir ao subir a escadaria, e o produto de minha expectoração caía na escada,
pois em nenhum dos pavimentos havia uma escarradeira; e a idéia que eu tinha
era que a limpeza das escadas não deveria ser mantida à minha custa, e sim
possibilitada pela instalação de uma escarradeira. A zeladora, uma mulher
igualmente idosa e grosseira (mas com instintos de limpeza, como eu estava
pronto a admitir), encarava a questão de modo diferente. Ela ficava à minha
espera para ver se mais uma vez eu me serviria livremente da escada e, quando
constatava que eu o fizera, eu costumava ouvi-la resmungar em tom audível; e
por vários dias depois disso, ela omitia o cumprimento habitual quando nos
encontrávamos. Na véspera do sonho, o grupo de zeladoria recebera reforço sob a
forma da criada. Como sempre, eu havia concluído minha rápida visita à
paciente, quando a criada me interceptou no saguão e observou: “O senhor podia
ter limpado os sapatos, doutor, antes de entrar na sala hoje. O senhor tornou a
sujar todo o tapete vermelho com os pés.” Esta era a única razão para o
aparecimento da escadaria e da criada em meu sonho.
Havia uma conexão interna entre subir as
escadas correndo e cuspir nos degraus. Tanto a faringite como os problemas
cardíacos são considerados castigos pelo vício do fumo. E, em virtude desse
hábito, minha reputação de zelo não era das melhores em minha própria casa,
quanto mais na outra; por isso as duas se fundiram no sonho.
Devo aplicar a continuação de minha
interpretação deste sonho até que possa explicar a origem do sonho típico de
estar incompletamente vestido. Assinalei apenas, como conclusão provisória a
ser tirada do presente sonho, que uma sensação de movimento inibido nos sonhos
é produzida sempre que o contexto específico a requer. A causa dessa parte
do conteúdo do sonho não pode ter sido a ocorrência de alguma modificação
especial em meus poderes de movimentação durante o sono, já que apenas um
momento antes eu me vira (quase como que para confirmar esse fato) subindo
agilmente os degraus.
(D) SONHOS TÍPICOS
Em geral, não estamos em condições de
interpretar um sonho de outra pessoa, a menos que ela se disponha a nos
comunicar os pensamentos inconscientes que estão por trás do conteúdo do sonho.
A aplicabilidade prática de nosso método de interpretar sonhos fica, por
conseguinte, severamente restrita. Vimos que, como regra geral, cada pessoa tem
liberdade de construir seu mundo onírico segundo suas peculiaridades
individuais e assim torná-lo ininteligível para outras pessoas. Parece agora,
contudo, que, em completo contraste com isto, há um certo número de sonhos que
quase todo o mundo tem da mesma forma e que estamos acostumados a presumir que
tenham o mesmo sentido para todos. Além disso, há um interesse especial ligado
a esses sonhos típicos porque, presumivelmente, eles decorrem das mesmas fontes
em todos os casos e, assim, parecem particularmente aptos a esclarecer as
fontes dos sonhos.
É, portanto, com expectativas muito
particulares que tentaremos aplicar nossa técnica de interpretação de sonhos
típicos; e é com grande relutância que temos de confessar que nossa arte
desaponta nossas expectativas precisamente em relação a esse material. Ao
tentarmos interpretar um sonho típico, o sonhador, em geral, deixa de produzir
as associações que em outros casos nos levariam a compreendê-lo, ou então suas
associações tornam-se obscuras e insuficientes, de modo que não conseguimos
resolver nosso problema com sua ajuda. Veremos, numa parte posterior deste
trabalho [Seção E do Capítulo VI, em [1]], por que isso se dá e como podemos
compensar esse defeito em nossa técnica. Meus leitores também descobrirão o
motivo por que, neste ponto, só posso abordar alguns membros do grupo de sonhos
típicos e preciso adiar meu exame dos demais até esse ponto ulterior de minha
análise. [Ver em [1]][2]]
(D1) SONHOS EMBARAÇOSOS DE ESTAR
DESPIDO
Os sonhos de estar nu ou insuficientemente
vestido na presença de estranhos ocorre, por vezes, com a característica
adicional de haver completa ausência de um sentimento como o de vergonha por
parte do sonhador. Interessam-nos aqui, entretanto, apenas os sonhos de estar
nu em que de fato se sente vergonha e embaraço e se faz uma tentativa de
fugir ou esconder-se, sendo-se então dominado por uma estranha inibição que
impede os movimentos e faz o sujeito sentir-se incapaz de alterar sua
constrangedora situação.Somente com este acompanhamento é que o sonho é típico;
sem ele, a essência de seu tema pode ser incluída em todas as variedades de
contexto ou pode ser adornada com acompanhamentos individuais. Sua essência [em
sua forma típica] está num sentimento aflitivo da ordem da vergonha e no fato
de que se deseja ocultar a nudez, em geral pela locomoção, mas se constata
estar impossibilitado de fazê-lo. Creio que a grande maioria de meus leitores
já terá estado nessa situação em sonho.
A natureza do desalinho envolvido, usualmente,
está longe de ser clara. O sonhador pode dizer “eu estava de camisola”, mas
esta raramente é uma imagem nítida. O tipo de desalinho costuma ser tão vago
que a descrição se expressa como uma alternativa: “Eu estava de camisola ou de
anágua.” Em geral, a falha na toalete do sonhador não é tão grave que pareça justificar
a vergonha a que dá origem. No caso de um homem que tenha usado o uniforme do
Imperador, a nudez é freqüentemente substituída por alguma quebra do
regulamento sobre os uniformes: “eu caminhava pela rua sem meu sabre e vi
alguns oficiais vindo em minha direção”, ou “Eu estava sem a gravata”, ou
ainda, “Eu estava usando calças civis” e assim por diante.
As pessoas em cuja presença o sonhador sente
vergonha são quase sempre estranhos, com traços indeterminados. No sonho
típico, nunca se dá o caso de a roupa que causa tanto embaraço suscitar
objeções ou sequer serpercebida pelos espectadores. Ao contrário, elas adotam
expressões faciais indiferentes ou (como observei num sonho particularmente
claro) solenes e tensas. Este é um ponto sugestivo.
O embaraço do sonhador e a indiferença dos
espectadores oferecem-nos, quando vistos em conjunto, uma daquelas contradições
tão comuns nos sonhos. Afinal de contas, estaria mais de acordo com os
sentimentos do sonhador que os estranhos o olhassem com assombro e escárnio ou
com indignação. Mas essa característica objetável da situação foi, a meu ver,
descartada pela realização do desejo, enquanto alguma força conduziu à retenção
das demais características; e duas partes do sonho ficam, conseqüentemente, em
desarmonia uma com a outra. Possuímos uma prova interessante de que o sonho, na
forma em que aparece - parcialmente distorcido pela realização do desejo -. não
foi corretamente entendido. Pois ele se tornou a base de um conto de fadas com
que todos estamos familiarizados na versão de Hans Andersen - A Roupa Nova
do Imperador -, e que foi recentemente posto em versos por Ludwig Fulda
em seu [“conto de fadas dramático”] O Talismã. O conto de Hans Andersen
relata-nos como dois impostores tecem para o Imperador um traje dispendioso
que, segundo eles, só seria visível para as pessoas de virtude e lealdade. O
Imperador sai com essa vestimenta invisível e todos os espectadores, intimados
pelo poder do tecido de atuar como uma pedra de toque, fingem não notar a nudez
do Imperador.
É esta exatamente a situação de nosso sonho.
Não chega a ser precipitado presumir que a ininteligibilidade do conteúdo do
sonho, tal como ele existe na lembrança, o tenha levado a ser remodelado sob
uma forma destinada a dar sentido à situação. Essa situação, todavia, é privada
no processo de seu significado original e empregada em usos diferentes. Mas,
como veremos adiante, é comum ao pensamento consciente de um segundo sistema
psíquico compreender mal o conteúdo de um sonho dessa maneira, e esse mal-entendido
deve ser considerado um dos fatores na determinação da forma final assumida
pelos sonhos. Ademais, veremos que mal-entendidos semelhantes (que ocorrem,
mais uma vez, dentro de uma mesma personalidade psíquica) desempenham papel
preponderante na construção das obsessões e fobias.
No caso de nosso sonho, estamos em condições de
indicar o material em que se baseia a má interpretação. O impostor é o sonho e
o Imperador é o próprio sonhador; o propósito moralizador do sonho revela um
conhecimento obscuro do fato de que o conteúdo onírico latente diz respeito a
desejos proibidos que foram vítimas do recalcamento. Pois o contexto em que
esse tipo de sonhos aparece durante minhas análises de neuróticos não deixa
dúvida de que eles se baseiam em lembranças da mais tenra infância. Somente
na nossa infância é que somos vistos em trajes inadequados, tanto por membros
de nossa família como por estranhos - babás, criadas e visitas; e é só então
que não sentimos vergonha de nossa nudez. Podemos observar como o despir-se
tem um efeito quase excitante em muitas crianças, mesmo em seus anos
posteriores, em vez de fazê-las sentir-se envergonhadas. Elas riem, pulam e se
dão palmadas, enquanto a mãe ou quem quer que esteja presente as reprova e diz:
“Uh, que escândalo! Vocês nunca devem fazer isso!” As crianças freqüentemente
manifestam um desejo de se exibirem. É difícil passarmos por um vilarejo do
interior em nossa parte do mundo sem encontrarmos um criança de dois ou três
anos levantando a camisinha diante de nós - em nossa homenagem, talvez. Um de
meus pacientes guarda uma lembrança consciente de uma cena de seus oito anos
quando, na hora de dormir, quis ir dançar no quarto ao lado - onde dormia sua
irmãzinha -, vestindo seu camisão, mas foi impedido por sua babá. Na história
da mais tenra infância dos neuróticos, um importante papel é desempenhado pela
exposição a crianças do sexo oposto; na paranóia, os delírios de estar sendo
observado ao vestir-se e despir-se encontram sua origem nesse tipo de
experiências, ao passo que, entre as pessoas que permanecerem no estágio da
perversão, há uma categoria na qual esse impulso infantil alcança o nível de um
sintoma - a categoria dos “exibicionistas”.
Quando voltamos os olhos para esse período
isento de vergonha na infância, ele nos parece um paraíso; e o próprio Paraíso
nada mais é do que uma fantasia grupal da infância do indivíduo. Por isso é que
a humanidade vivia nua no Paraíso, sem que um sentisse vergonha na presença do
outro; até que chegou um momento em que a vergonha e a angústia despertaram,
seguiu-se a expulsão e tiveram início a vida sexual e as tarefas da
atividadecultural. Mas podemos reconquistar esse Paraíso todas as noites em
nossos sonhos. Já expressei [em [1]] a suspeita de que as impressões da
primeira infância (isto é, desde a época pré-histórica até aproximadamente o
final do terceiro ano de vida) lutam por alcançar sua reprodução, por sua
própria natureza independente, talvez, de seu conteúdo real, e que sua
repetição constitui a realização de um desejo. Portanto, os sonhos de estar
despido são sonhos de exibição.
O núcleo de um sonho de exibição situa-se na
figura do próprio sonhador (não como era em criança, mas tal como aparece no
presente) e em seu traje inadequado (que emerge indistintamente, seja em virtude
de camadas superpostas de inúmeras lembranças posteriores de estar desalinhado,
seja como decorrência da censura). Acrescentaram-se a isso as figuras das
pessoas em cuja presença o sonhador se sente envergonhado. Não sei de nenhum
caso em que os espectadores reais da cena infantil de exibição tenham aparecido
no sonho; o sonho raramente é uma lembrança simples. Curiosamente, as pessoas a
quem era dirigido nosso interesse sexual na infância são omitidas de todas as
reproduções que ocorrem nos sonhos, na histeria e na neurose obsessiva. É só na
paranóia que esses espectadores reaparecem e, embora permaneçam invisíveis, sua
presença é inferida com um convicção fanática. O que toma o lugar deles nos
sonhos - “uma porção de estranhos” que não prestam a menor atenção ao
espetáculo oferecido - não é nada mais, nada menos, do que o contrário
imaginário do único indivíduo conhecido diante de quem o sonhador se expunha.
Aliás, “uma porção de estranhos” aparece com freqüência nos sonhos em muitos
outros contextos, representando sempre o oposto imaginário do “sigilo”. É
de se observar que, até na paranóia, quando se restaura o estado de coisas
original, essa inversão no oposto é observada. O sujeito sente que já não está
sozinho, não tem nenhuma dúvida de estar sendo observado, mas os observadores
são “uma porção de estranhos” cuja identidade permanece curiosamente vaga.
Além disso, o recalcamento desempenha um papel
nos sonhos de exibição, pois a aflição experimentada nesses sonhos é uma
reação, por parte do segundo sistema, ao fato de o conteúdo da cena de exibição
ter encontrado expressão a despeito do veto imposto a ele. Para que se evitasse
a aflição, a cena nunca deveria ser revivida.
Voltaremos posteriormente [em [1]] à sensação
de estar inibido. Ela serve admiravelmente, nos sonhos, para representar um
conflito da vontade ou uma negativa. O objetivo inconsciente requer que a
exibição continue; a censura exige que ela cesse.
Não há dúvida de que os vínculos entre nossos
sonhos típicos, os contos de fadas e o material de outros tipos de literatura
criativa não são pouco nem acidentais. Por vezes acontece que o olhar
penetrante de um escritor criativo tenha uma compreensão analítica do processo
de transformação do qual ele não costuma ser mais do que o instrumento. Quando
isso se dá, ele pode seguir o processo em sentido inverso e, desse modo,
identificar a origem do texto imaginativo num sonho. Um de meus amigos
chamou-me a atenção para a seguinte passagem de Der grüne Heinrich, de
Gottfried Keller [Parte III, Capítulo 2]: “Espero, meu caro Lee, que você
jamais aprenda por experiência própria a verdade peculiar e maliciosa
dos apuros de Ulisses quando apareceu, nu e coberto de lama, diante dos sonhos
de Nausícaa e suas servas! Devo eu dizer-lhe como isso pode acontecer? Vejamos
o nosso exemplo. Se você estiver vagando por terras estranhas, longe de sua
pátria e de tudo que lhe é caro, se tiver visto e ouvido muitas coisas,
conhecido a tristeza e a inquietação, e se sentir desolado e desesperançado,
então infalivelmente sonhará, uma noite, que está se aproximando de casa; você
a verá resplandecente e iluminada nas mais vivas cores, e as mais doces, mais
caras e mais amadas formas se encaminharão oem sua direção. Então, subitamente,
você perceberá que está em trapos, nu e empoeirado. Será tomado de indizível
vergonha e terror, tentará encontrar abrigo e se esconder, e acordará banhado
em suor. Este, enquanto respirarem os homens será o sonho do viajante infeliz;
e Homero evocou a imagem de seus apuros da mais profunda e eterna natureza do
homem.”
A mais profunda e eterna natureza do homem, em
cuja evocação nos seus ouvintes o poeta está acostumado a confiar, reside nos
impulsos da mente que têm suas raízes numa infância que desde então se tornou
pré-histórica. Os desejos suprimidos e proibidos da infância irrompem no sonho
por trás dos desejos irrepreensíveis do exilado que são capazes de penetrar na
consciência; e é pior isso que o sonho que encontra expressão concreta na lenda
de Nausícaa termina, de hábito, com um sonho de angústia.
Meu próprio sonho (registrado em [1]) de correr
escada acima e de logo depois sentir-me colado aos degraus foi igualmente um
sonho de exibição, já que traz as marcas essenciais desses sonhos. Deve ser
possível, portanto, buscar sua origem em experiências ocorridas durante minha
infância, e se estas puderam ser descobertas, elas nos possibilitarão julgar
até que ponto o comportamento da criada em relação a mim - sua acusação de eu
ter sujado o tapete - contribuiu para dar-lhe seu lugar em meu sonho.
Casualmente, posso fornecer os pormenores necessários. Numa psicanálise,
aprende-se a interpretar a proximidade temporal como representiva de um vínculo
temático. [Ver em [1].] Duas idéias que ocorrem em seqüência imediata e sem qualquer
conexão aparente são, de fato, parte de uma só unidade que tem de ser
descoberta, exatamente do mesmo modo que, seu eu escrever seqüencialmente um “a”
e um “b”, eles terão de ser pronunciados como uma única sílaba, “ab”.
O mesmo se aplica aos sonhos. O sonho da escadaria a que me referi foi um de
uma série. Como esse sonho em particular estava cercado pelos demais, deveria
estar versando sobre o mesmo assunto. Ora, esses outros sonhos baseavam-se na
lembrança de uma babá a cujos cuidados estive entregue desde alguma data em
minha mais tenra infância até os dois anos e meio. Chego até a guardar dela uma
obscura lembrança consciente. Segundo o que me contou minha mãe há não muito
tempo, ela era velha e feia, mas muito perspicaz e eficiente. Do que posso
inferir de meus próprios sonhos, o tratamento que ela dispensava não era sempre
excessivo em amabilidades, e suas palavras podiam ser ríspidas se eu deixasse
de atingir o padrão de limpeza exigido. E assim, a criada, uma vez que tomara a
si a tarefa de dar prosseguimento a esse trabalho educacional, adquiriu o
direito de ser tratada, em meu sonho, como uma reencarnação da velha babá
pré-histórica. É razoável supor que o menino amasse a velha que lhe ensinava
essas lições, apesar do tratamento ríspido que ela lhe dispensava. [1]
(D2) SONHOS SOBRE A MORTE DE PESSOAS QUERIDAS
Outro grupo de sonhos que podem ser
qualificados de típicos são os que contêm a morte de um parente amado - por
exemplo, de um dos pais, de um irmão ou irmã ou de um filho. Duas classes
desses sonhos devem ser distinguidas de imediato: aqueles em que o sonhador não
é afetado pela tristeza e, ao acordar, fica atônito ante sua falta de
sentimentos, e aqueles em que o sonhador fica profundamente abalado com essa
morte e pode até chorar amargamente durante o sono.
Não precisamos examinar os sonhos da primeira
dessas classes, pois não há justificativa para que eles sejam considerados
“típicos”. Se os analisarmos, veremos que têm um sentido diverso do sentido
aparente e que se destinam a ocultar algum outro desejo. Assim foi o sonho da
tia que viu o único filho da irmã deitado em seu caixão. (Ver em [1].) Aquilo
não significava que ela desejasse ver o sobrinhozinho morto; como vimos,
ocultava meramente o desejo de ver uma determinada pessoa que ela um dia
encontrara, depois de um intervalo similarmente longo, junto ao caixão de um
outro sobrinho. Esse desejo, que foi o verdadeiro conteúdo do sonho, não dava
margem à tristeza e, por conseguinte, nenhuma tristeza foi sentida no sonho. Convém
notar que o afeto vivenciado no sonho pertence a seu conteúdo latente, e não ao
conteúdo manifesto, e que o conteúdo afetivo do sonho permaneceu
intocado pela distorção que se apoderou de seu conteúdo de representações.
Muito diferentes são os sonhos da outra classe
- aqueles em que o sonhador imagina a morte de um ente querido e fica, ao mesmo
tempo, dolorosamente afetado. O sentido desses sonhos, como indica seu
conteúdo, é um desejo de que a pessoa em questão venha a morrer. E, como devo
esperar que os sentimentos de todos os meus leitores e os de quaisquer outras
pessoas que tenham tido sonhos similares se rebelem contra minha afirmativa,
devo tentar fundamentar minhas provas disso na mais ampla base possível.
Já examinei um sonho que nos ensinou que os
desejos representados nos sonhos como realizados nem sempre são desejos atuais.
Podem também ser desejos do passado, que foram abandonados, recobertos por
outros e recalcados, e aos quais temos de atribuir uma espécie de existência
prolongada apenas em função de sua reemergência num sonho. Eles não estão
mortos em nosso sentido da palavra, mas são apenas como as sombras da
Odisséia,que despertavam para alguma espécie de vida tão logo provavam sangue.
No sonho da criança morta na “caixa” (em [1]-[2]), o que estava em jogo era um
desejo que fora imediato quinze anos antes, e que foi francamente admitido como
existente naquela época. Posso acrescentar - e talvez isso não deixe de ter uma
relação com a teoria dos sonhos - que mesmo por trás desse desejo havia uma lembrança
da mais remota infância da sonhadora. Quando era pequenina - a data exata não
pôde ser fixada com certeza -, ela ouviu dizer que sua mãe caíra em profunda
depressão durante a gravidez da qual ela foi o fruto, e que havia desejado
ardentemente que a criança que trazia no ventre pudesse morrer. Quando a
própria sonhadora cresceu e engravidou, simplesmente seguiu o exemplo da mãe.
Quando alguém sonha, com todos os sinais de
dor, que seu pai, mãe, irmãos ou irmã morreu, eu jamais usaria esse sonho como prova
de que ele deseja a morte dessa pessoa no presente. A teoria dos sonhos
não exige tanto assim; ela se satisfaz com a inferência de que essa morte foi
desejada numa outra ocasião durante a infância do sonhador. Temo, porém, que
essa ressalva não apazigüe os opositores; eles negarão qualquer possibilidade
de terem jamais nutrido essa idéia, com a mesma energia com que insistem
em que não abrigam nenhum desejo dessa natureza agora. Devo, por isso,
reconstruir parte da vida mental desaparecida das crianças com base na
evidência do presente.
Consideremos, primeiro, a relação das crianças
com seus irmãos e irmãs. Não sei por que pressupomos que essa relação deva ser
amorosa, pois os exemplos de hostilidade entre irmãos e irmãs adultos impõe-se
à experiência de todos, e é freqüente podermos estabelecer o ato de que essa
desunião se originou na infância ou sempre existiu. Mas é também verdade que
inúmeros adultos, que mantêm relações afetuosas com seus irmãos e irmãs e estão
prontos a apoiá-los hoje, passaram sua infância em relações quase ininterruptas
de inimizade com eles. O filho mais velho maltrata o mais novo, fala mal dele e
rouba-lhe os brinquedos, ao passo que o mais novo se consome num ódio impotente
contra o mais velho, a quem inveja e teme, ou enfrenta seu opressor com os
primeiros sinais do amor à liberdade e com um senso de justiça. Seus pais
queixam-se de que as crianças não se dão bem, mas não conseguem descobrir por
quê. É fácil perceber que o caráter até mesmo de uma criança boa não é o que desejaríamos
encontrar num adulto. As criançassão completamente egoístas; sentem suas
necessidades intensamente e lutam de maneira impiedosa para satisfazê-las -
especialmente contra os rivais, outras crianças, e, acima de qualquer outra
coisa, contra seus irmãos e irmãs. Mas nem por isso chamamos uma criança de
“má”: chamamo-la de “levada”; ela é mais responsável por seus malfeitos em
nosso julgamento do que ante os olhos da lei. E é certo que seja assim, pois
podemos esperar que, antes do fim do período que consideramos como infância, os
impulsos altruístas e a moralidade despertem no pequenino egoísta e (para usar
os termos de Meynert [por exemplo, 1892, em [1]]) um ego secundário se
superponha ao primário e o iniba. É verdade, sem dúvida, que a moral não se instala
simultaneamente ao longo de todo o processo e que a extensão da infância amoral
varia nos diferentes indivíduos. Quando essa moral deixa de se desenvolver ,
gostamos de falar em “degeneração”, embora estejamos de fato diante de uma
inibição do desenvolvimento. Depois de já ter sido recoberto pelo
desenvolvimento posterior, o caráter primário pode ainda ser exposto, pelo
menos em parte, nos casos de doença histérica. Há uma semelhança realmente
impressionante entre o que se conhece como caráter histérico e o caráter de uma
criança levada. A neurose obsessiva, ao contrário, corresponde a uma
supermoralidade imposta como um peso de reforço aos primeiros sinais do caráter
primário.
Muitas pessoas, portanto, que amam seus irmãos
e irmãs e se sentiriam desoladas se eles morressem, abrigam desejos maléficos
contra eles em seu inconsciente, datando de épocas anteriores; e estes são
passíveis de se realizarem nos sonhos.
É de particular interesse, contudo, observar o
comportamento das criancinhas de até dois ou três anos, ou um pouco mais
velhas, para com seus irmãos e irmãs menores. Havia, por exemplo, o caso de
uma criança que até então fora filha única; e eis que lhe dizem que a cegonha
trouxe um novo bebê. Ela examina o recém-chegado de alto a baixo e declara
decisivamente: “A cegonha pode levar ele embora de novo!” Sou seriamente de
opinião que uma criança é capaz de fazer uma estimativa justa dos contratempos
que teráde esperar nas mãos do pequeno estranho. Uma senhora conhecida minha,
que hoje se dá muito bem com uma irmã quatro anos mais nova, contou-me que
recebeu a notícia da chegada desta com a seguinte ressalva: “Mas mesmo assim
não vou dar a ela minha boina vermelha.” Mesmo que só mais tarde a criança
venha a compreender a situação, sua hostilidade datará desse momento. Sei de um
caso em que uma menininha de menos de três anos tentou estrangular um bebê em
seu berço por achar que sua presença contínua não lhe fazia bem. As crianças
nessa época da vida são capazes de ciúmes com diversos graus de intensidade e
evidência. Do mesmo modo, na eventualidade de a irmãzinha de fato desaparecer
após algum tempo, a criança mais velha verá toda a afeição da casa novamente
concentrada nela. Se, depois disso, a cegonha trouxer mais um outro bebê, é
bastante lógico que o pequeno favorito alimente o desejo de que seu novo
competidor tenha o mesmo destino do primeiro, para que ele próprio possa ser
tão feliz quanto era originalmente e durante o intervalo. Normalmente, é
claro, é essa atitude de uma criança para com o indefeso recém-nascido.
Os sentimentos hostis para com os irmãos e
irmãs devem ser muito mais freqüentes na infância do que é capaz de perceber o
olhar distraído do observador adulto.
No caso de meus próprios filhos, que surgiram
uns aos outros em rápida sucessão, perdi a oportunidade de fazer esse tipo de
observações; mas estou agora compensando essa negligência através da observação
de um sobrinhozinho cuja dominação autocrática foi abalada, após uma duração de
quinze meses, pelo aparecimento de um rival. É verdade que estou informado de
que o rapazinho se comporta da maneira mais cavalheiresca para com sua
irmãzinha, de que beija sua mão e a afaga; mas pude convencer-me de que, antes
mesmo do final de seu segundo ano, ele se valeu de seus poderes de fala para
criticar alguém a quem não podia deixar de considerar supérfluo. Sempre que
a conversa se voltava para ela, ele costumava intervir e exclamar com
petulância: “Muito f’acota, muito f’acota!” Durante os últimos meses, o
crescimento da neném fez progressos suficientes para colocá-la fora do alcance
desse motivo específico de desprezo, e o garotinho encontrou outra base para
sua afirmação de que ela não merece tanta atenção assim: em todas as ocasiões
propícias, ele chama atenção para o fato de que ela não tem dentes. Todos
nos lembramos de como a filha mais velha de outra irmã minha, que era então uma
menina de seis anos, passou meia hora insistindo junto a cada uma de suas tias,
sucessivamente, para que concordassem com ela: “Lucie ainda não entende isso, não
é?”, ficava a perguntar. Lucie era sua rival - dois anos e meio mais nova do
que ela.
Em nenhuma de minhas pacientes, para citar um
exemplo, deixei de esbarrar nesse sonho com a morte de um irmão ou de uma irmã,
correspondendo a um aumento da hostilidade. Só encontrei uma única exceção, e
foi fácil interpretá-la como uma confirmação da regra. Numa ocasião, durante
uma sessão analítica, explicava esse assunto a uma senhora, já que, em vista de
seu sintoma, a discussão do tema me parecia relevante. Para meu assombro, ela
respondeu nunca ter tido um desse sonhos. Entretanto, ocorreu-lhe outro sonho
que, aparentemente, não tinha nenhuma relação com o assunto - um sonho que ela
tivera primeira vez quando estava com quatro anos e era ainda a caçula da
família, e que havia sonhado repetidamente desde então: “Uma multidão de
crianças - todas suas irmãs e irmãos, e primos de ambos os sexos - brincava
ruidosamente num campo. De repente, todas criaram asas, voaram para longe e
desapareceram. Ela não tinha nenhuma idéia do sentido desse sonho, mas não
é difícil reconhecer que, em sua forma original, ele fora um sonho sobre a
morte de todos os seus irmãos e irmãs, e só fora ligeiramente influenciado pela
censura. Posso ousar sugerir a seguinte análise. Por ocasião da morte de um
membro dessa multidão de crianças (nesse exemplo, os filhos de dois irmãos
tinham sido criados juntos como uma só família), a sonhadora, que ainda não
completara quatro anos na época, deve ter perguntado a algum adulto sensato o
que acontecia com as crianças quando elas morriam. A resposta deve ter sido:
“Elas criam asas e viram anjinhos.” No sonho que se seguiu a essa informação,
todos os irmãos e irmãs da sonhadora tinham asas como pequenos anjos e - é este
o ponto principal - voavam para longe. Nossa pequena antiacida ficou só, por
mais estranho que isso parecesse: a única sobrevivente do grupo inteiro! É
improvável que estejamos errados em supor que o fato de as crianças brincarem
ruidosamente num campo antes de voarem para longe aponta para as
borboletas. É como se a menina tivesse sido levada, pela mesma cadeia de idéias
dos povos da Antiguidade, a imaginar a alma com asas de borboleta.
Neste ponto, alguém talvez interrompa:
“Admitindo-se que as crianças tenham impulsos hostis em relação a seus irmãos e
irmãs, como pode a mente de uma criança chegar a tal extremo de depravação, a
ponto de desejar a morte de seus rivais ou de coleguinhas mais fortes do
que ela, como se a pena de morte fosse a única punição para todos os crimes?”
Quem quer que fale assim terá deixado de levar em conta que a idéia infantil de
estar “morto” pouco tem em comum com a nossa, a não ser por essa palavra. As
crianças nada sabem dos horrores da decomposição que as pessoas adultas acham
tão difícil de tolerar, como é provado por todos os mitos de uma vida futura. O
medo da morte não tem nenhum sentido para uma criança; daí ela brincar com a
palavra terrível e usá-la como ameaça contra algum coleguinha: “Se você fizer
isso de novo, você vai morrer, como Franz!” Entrementes, a pobre mãe estremece
e se lembra, talvez, de que a maior parte da raça humana não consegue
sobreviver aos anos de infância. Foi efetivamente possível a um menino, que
tinha mais de oito anos nessa época, dizer a sua mãe, ao voltar de uma visita
ao Museu de História Natural: “Gosto tanto de você, Mamãe! Quando você morrer,
vou mandar empalhá-la neste quarto, para poder ver você o tempo todo”. Como
é pequena a semelhança entre a idéia que uma criança faz da morte e a nossa!
Para as crianças que, além disso, são poupadas
da visão de cenas de sofrimento que precedem a morte, estar “morto” significa
aproximadamente o mesmo que ter “ido embora” - ter deixado de incomodar os
sobreviventes. A criança não estabelece nenhuma distinção quanto ao modo
como essa ausência é provocada: se é devido a uma viagem, a uma demissão, a uma
eparação ou à morte. Quando, durante a fase pré-histórica de uma criança,
sua babá é despedida, e quando logo depois que sua mãe morre, esses dois
eventos se sobrepõem numa série única em sua memória, como é revelado pela
análise. Quando as pessoas estão ausentes, as crianças não sentem falta delas
com grande intensidade; muitas mães aprenderam isso, para sua tristeza, quando,
após ficarem longe de casa por algumas semanas nas férias de verão, são
recebidas, na volta, com a notícia de que nem uma só vez os filhos perguntaram
por Mamãe. Quando a mãe realmente viaja para “aquele país inexplorado de cujas
fronteiras nenhum viajante regressa”, de início, parecem esquecê-la, e só
depois é que começam a lembrar-se da mãe morta.
Assim, quando uma criança tem motivos para
desejar a ausência de outra, nada há que a impeça de dar a seu desejo a forma
da morte da outra criança. E a reação psíquica aos sonhos que contêm desejos
de morte prova que, apesar do conteúdo diferente desses desejos no caso das
crianças, eles são, não obstante, de uma maneira ou de outra, idênticos aos
desejos expressos nos mesmos termos pelos adultos.
Mas, se os desejos de morte de uma criança
contra seus irmãos e irmãs são explicados pelo egoísmo infantil que a faz
considerá-los seus rivais, como iremos explicar seus desejos de morte contra
seus pais, que a cercam de amor e suprem suas necessidades, e cuja preservação
esse mesmo egoísmo deveria levá-la a desejar?
Uma solução para essa dificuldade é fornecida
pela observação de que os sonhos com a morte de pais se aplicam com freqüência
preponderante ao genitor do mesmo sexo do sonhador, isto é, que os homens
sonham predominantemente com a morte do pai, e as mulheres, com a morte da mãe.
Não posso afirmar que isso ocorra universalmente, mas a preponderância no
sentido que indiquei é tão evidente que precisa ser explicada por um fator de
importância geral. Dito sem rodeios, é como se uma preferência sexual se
fizesse sentir numa tenra idade: como se os meninos olhassem o pai, e as
meninas a mãe como seus rivais no amor, rivais cuja eliminação não poderia
deixar de trazer-lhes vantagens.
Antes que essa idéia seja rejeitada como
monstruosa, é conveniente, também nesse caso, considerar as relações reais
vigentes - desta vez, entre pais e filhos. Devemos distinguir entre o que os
padrões culturais de devoção filial exigem dessa relação e o que a observação
cotidiana mostra ser a realidade. Mais de uma causa de hostilidade se esconde
na relação entre pais e filhos - uma relação que propicia as mais amplas
oportunidades de surgimento de desejos que não podem passar pela censura.
Consideremos, primeiramente, a relação entre
pai e filho. A sacralidade que atribuímos aos mandamentos explicitados no
Decálogo tem toldado, penso eu, nossa capacidade de perceber os atos reais. Mal
parecemos ousar observar que a maior parte da humanidade desobedece o Quinto
Mandamento. Tanto nas camadas mais baixas como nos retratos mais elevados da
sociedade humana, a devoção filial tem o hábito de ceder a outros interesses.
As obscuras informações que nos são trazidas pela mitologia e pelas lendas das
eras primitivas da sociedade humana fornecem-nos uma imagem desagradável do
poder despótico do pai e da crueldade com que ele o usava. Cronos devorou
seus filhos, tal como o javali devora as crias da javalina, enquanto Zeus
castrou o pai, fazendo-se rei em seu lugar. Quanto mais irrestrita era a
autoridade paterna na família antiga, mais precisava o filho, como seu sucessor
predestinado, descobrir-se na posição de um inimigo, e mais impaciente devia
ficar para tornar-se chefe, ele próprio, através da morte do pai. Mesmo em
nossas famílias de classe média, os pais se inclinam, via de regra, a recusar a
seus filhos a independência e os meios necessários para obtê-la, fomentando
assim o crescimento do germe de hostilidade e que é inerente à sua relação. Um
médico estará freqüentemente em condição de notar como a tristeza de um filho
pela morte do pai não consegue suprimir sua satisfação por ter finalmente
conquistado sua liberdade. Em nossa sociedade de hoje, os pais tendem a se
agarrar desesperadamente ao que resta de uma potestas patris familias
agora tristemente antiquada; e o autor que, como Ibsen, destaca em seu escritos
a luta memorial entre pais e filhos pode ter certeza de produzir um efeito.
As causas de conflito entre filha e mãe surgem
quando a filha começa a crescer e ansiar por liberdade sexual, mas se descobre
sob a tutela da mãe, enquanto esta, por outo lado, é advertida pelo crescimento
da filha de que é chegado o momento em que ela própria deve abandonar suas
apropriações à satisfação sexual.
Tudo isso fica patente aos olhos de todos. Mas
não nos ajuda em nosso esforço de explicar os sonhos com a morte dos pais em
pessoas cuja devoção a eles foi irrepreensivelmente estabelecida há muito
tempo. As discussões precedentes, além disso, ter-nos-ão preparado para saber
que o desejo de morte contra os pais remonta à primeira infância.
Essa suposição confirmada, com uma certeza que
não deixa margem a dúvidas, no caso dos psiconeuróticos, quando sujeitos à
análise. Com eles aprendemos que os desejos sexuais de uma criança - se é
que, em seu estágio embrionário, eles mereçam ser chamados assim - despertam
muito cedo, e que o primeiro amor da menina é por seu pai, enquanto os
primeiros desejos infantis do menino são pela mãe. Por conseguinte, o pai se
transforma num rival pertubador para o menino, e a mãe, para a menina; e já
demonstrei, no caso dos irmãos e irmãs, com que facilidade esses sentimentos
podem levar a um desejo de morte. Também os pais dão mostras, em geral, da
parcialidade sexual: uma predileção natural costuma fazer com que o homem tenda
a mimar excessivamente suas filhinhas, enquanto sua mulher toma o partido dos
filhos homens, muito embora os dois, quando seu julgamento não é perturbado
pela magia do sexo, mantenham uma rigorosa fiscalização sobre a educação dos
filhos. A criança está perfeitamente ciente dessa parcialidade e se volta
contra aquele de seus pais que se opõe a demonstrá-la. Ser amada por um adulto
não traz para a criança apenas a satisfação de uma necessidade especial;
significa igualmente que ele conseguirá o que quiser também em todos os demais
aspectos. Assim, ele estará seguindo sua própria pulsão sexual e, ao mesmo
tempo, conferindo um novo vigor à inclinação demonstrada por seus pais, se sua
escolha entre eles coincidir com a deles.
Os sinais dessas preferências infantis, em sua
maior parte, passam despercebidos; no entanto, alguns deles podem ser
observados mesmo depois dos primeiros anos da infância. Uma menina de oito anos
a quem conheço, quando sua mãe é chamada a se afastar da mesa, aproveita essa
ocasião para proclamar-se sua sucessora: “Agora, eu vou ser a Mamãe.
Você quer mais verduras, Karl? Então se sirva!” e assim por diante. Uma menina
de quatro anos, particularmente dotada e esperta, em quem esse dado da
psicologia infantil é especialmente visível, declarou com toda franqueza: Mamãe
agora pode ir embora. Aí Papai vai ter que casar comigo e eu vou ser mulher
dele.” O fato de tal desejo ocorrer numa criança não é absolutamente
incompatível com o estar ternamente ligada à mãe. Um menino a quem se permite
que durma ao lado da mãe enquanto o pai está fora de casa, mas que tem de voltar
para o quarto das crianças e para alguma pessoa de quem gosta muito menos tão
logo o pai retorna, pode facilmente começar a formar um desejo de que o pai
esteja sempre ausente, de modo que ele próprio possa conservar seu lugar
ao lado da querida e adorável Mamãezinha. Uma maneira óbvia de concretizar esse
desejo seria se o pai estivesse morto, pois a criança aprendeu uma coisa com a
experiência - a saber, que as pessoas “mortas”, como o Vovô, estão sempre
ausentes e nunca mais voltam.
Embora essas observações sobre crianças
pequenas se ajustem perfeitamente à interpretação que propus, elas não
transmitem uma convicção tão completa quanto a que é imposta ao médico pelas
psicanálises de neuróticos adultos. No segundo caso, os sonhos do tipo que
estamos considerando são introduzidos na análise num contexto tal que é
impossível evitar interpretá-los como sonhos de realização de desejos.
Certo dia, uma de minhas pacientes se achava
num estado aflito e choroso. “Nunca mais quero rever meus parentes”, disse ela;
“eles devem achar que sou horrível.” Prosseguiu então, quase sem transição
alguma, dizendo que se lembrava de um sonho, embora, naturalmente, não tivesse
nenhuma idéia do que ele significava. Quando tinha quatro anos, ela sonhara que
um lince ou uma raposa estava andando no telhado; então alguma coisa
caíra, ou ela havia caído; e depois, sua mãe fora levada para fora de casa,
morta - e ela chorou amargamente. Eu lhe disse que esse sonho devia
significar que, quando criança, ela teria desejado ver a mãe morta, e devia ser
por causa do sonho que ela achava que seus parentes deviam julgá-la horrível.
Mal acabei de dizer isso, ela forneceu um material que lançou luz sobre o
sonho. “Olho de lince” era um xingamento que lhe fora dirigido por um moleque
de rua quando ela era muito pequena. Quando tinha três anos de idade, uma telha
caíra na cabeça de sua mãe, fazendo-a sangrar abundantemente.
Tive certa vez a oportunidade de proceder a um
estudo pormenorizado de uma jovem que passara por uma multiplicidade de
condições psíquicas. Sua doença começou com um estado de excitação confusional
durante o qual ela exibiu uma aversão toda especial pela mãe, batendo nela e
tratando-a com grosseria toda vez que ela se aproximava de sua cama, ao passo
que, nesse mesmo período, mostrava-se dócil e afetuosa para com uma irmã muitos
anos mais velha que ela. Seguiu-se um estado em que ela ficou lúcida, mas um
tanto apática e sofrendo de um sono muito agitado. Foi durante essa fase que
comecei a tratá-la e a analisar seus sonhos. Um imenso número desses sonhos
dizia respeito, com maior ou menor grau de disfarce, à morte da mãe: numa
ocasião, ela comparecia ao enterro de uma velha; noutra, ela e a irmã estavam
sentadas à mesa, trajadas de luto. Não havia nenhuma dúvida quanto ao sentido desses
sonhos. À medida que seu estado foi melhorando ainda mais, surgiram fobias
histéricas. A mais torturante delas era o medo de que algo pudesse ter
acontecido à sua mãe. A moça era obrigada a correr para casa, de onde quer que
estivesse, para se convencer de que a mãe ainda estava viva. Este caso,
considerado em conjunto com o que eu havia aprendido de outras fontes, foi
muito instrutivo: exibia, traduzidos, por assim dizer, em diferentes línguas,
os vários modos pelos quais o aparelho psíquico reagiu a uma mesma
representação excitante. No estado confusional, no qual, segundo creio, a
segunda instância psíquica foi dominada pela primeira, que é normalmente
suprimida, sua hostilidade inconsciente para com a mãe encontrou uma poderosa
expressão motora. Quando se instalou o estado mais calmo, reprimida a
rebelião e restebelecido o domínio da censura, a única região acessível em que
sua hostilidade poderia realizar o desejo da morte da mãe era a região do
sonho. Quando um estado normal se estabeleceu ainda mais firmemente, levou à
confirmação de sua preocupação exagerada com a mãe, como uma contra-reação
histérica e um fenômeno defensivo. Em vista disso, já não é difícil compreender
por que as moças histéricas são tantas vezes apegadas a suas mães com um afeto
tão exagerado.
Numa outra ocasião, tive oportunidade de aceder
a uma compreensão profunda da mente inconsciente de um rapaz cuja vida se
tornara quase impossível em virtude de uma neurose obsessiva. Ele estava
impossibilitado de sair à rua porque era torturado pelo medo de matar toda
pessoa que encontrasse. Passava seus dias preparando um álibi para a
eventualidade de ser acusado de um dos assassinatos cometidos na cidade.
Desnecessário acrescentar que era um homem de moral e educação igualmente
elevadas. A análise (que, aliás, o levou a recuperar-se) mostrou que a base
dessa torturante obsessão era um impulso de assassinar seu pai extremamente
severo. Esse impulso, para surpresa dele, fora conscientemente expressado
quando ele tinha sete anos, mas se originara, é claro, numa fase muito anterior
de sua infância. Após a penosa doença e a morte do pai, surgiram no paciente as
auto-recriminações obsessivas - ele contava então 31 anos -, tomando a forma de
uma fobia transferida para estranhos. Não se podia confiar, achava ele, em que
uma pessoa capaz de querer empurrar o próprio pai para o precipício, do alto de
uma montanha, fosse respeitar as vidas daqueles com quem tivesse uma relação
menos estreita; ele tinha toda a razão de se fechar em seu quarto. [1]
Em minha experiência, que já é extensa, o papel
principal na vida mental de todas as crianças que depois se tornam
psiconeuróticas é desempenhado por seus pais. Apaixonar-se por um dos pais e
odiar o outro figuram entre os componentes essenciais do acervo de impulsos
psíquicos que se formam nessa época e que é tão importante na determinação dos
sintomas da neurose posterior. Não é minha crença, todavia, que os
psiconeuróticos difiram acentuadamente, nesse aspectos, dos outros seres
humanos que permanecem normais - isto é, que eles sejam capazes de criar algo
absolutamente novo e peculiar a eles próprios. É muito mais provável - e isto é
confirmado por observações ocasionais de crianças normais -, que eles se
diferenciem apenas por exibirem, numa escala ampliada, sentimentos de amor e
ódio pelos pais, os quais ocorrem de maneira a menos óbvia e intensa nas mentes
da maioria das crianças.
Essa descoberta é confirmada por uma lenda da
Antiguidade clássica que chegou até nós: uma lenda cujo poder profundo e
universal de comover só pode ser compreendido se a hipótese que propus com
respeito à psicologia infantil tiver validade igualmente universal. O que tenho
em mente é a lenda do Rei Édipo e a tragédia de Sófocles que traz o seu nome.
Édipo, filho de Laio, Rei de Tebas, e de
Jocasta, foi enjeitado quando criança porque um oráculo advertira Laio de que a
criança ainda por nascer seria o assassino de seu pai. A criança foi salva e
cresceu como príncipe numa corte estrangeira, até que, em dúvida quanto a sua
origem, também ele interrogou o oráculo e foi alertado para evitar sua cidade,
já que estava predestinado a assassinar seu pai e receber sua mãe em casamento.
Na estrada que o levava para longe do local que ele acreditara ser seu lar,
encontrou-se com o Rei Laio e o matou numa súbita rixa. Em seguida dirigiu-se a
Tebas e decifrou o enigma apresentado pela Esfinge que lhe barrava o caminho.
Por gratidão, os tebanos fizeram-no rei e lhe deram a mão de Jocasta em
casamento. Ele reinou por muito tempo com paz e honra, e aquela que, sem que
ele o soubesse, era sua mãe, deu-lhe dois filhos e duas filhas. Por fim, então,
irrompeu uma peste e os tebanos mais uma vez consultaram o oráculo. É nesse
ponto que se inicia a tragédia de Sófocles. Os mensageiros trazem de volta a resposta
de que a peste cessará quando o assassino de Laio tiver sido expulso do país.
Mas ele, onde está ele? Onde se há de
ler agoraO desbotado registro dessa culpa de outrora?
A ação da peça não consiste em nada além do
processo de revelação, com engenhosos adiamentos e sensação sempre crescente -
um processo que pode ser comparado ao trabalho de uma psicanálise - de que o
próprio Édipo é o assassino de Laio, mas também de que é o filho do homem
assassinado e de Jocasta. Estarrecido ante o ato abominável que
inadvertidamente perpetrara, Édipo cega a si próprio e abandona o lar. A
predição do oráculo fora cumprida.
Oedipus Rex é o que se conhece como uma tragédia do
destino. Diz-se que seu efeito trágico reside no contraste entre a suprema
vontade dos deuses e as vãs tentativas da humanidade de escapar ao mal que a
ameaça. A lição que, segundo se afirma, o espectador profundamente comovido
deve extrair da tragédia é a submissão à vontade divina e o reconhecimento de
sua própria impotência. Os dramaturgos modernos, por conseguinte, tentaram
alcançar um efeito trágico semelhante, tecendo o mesmo contraste num enredo
inventado por eles mesmos. Mas os espectadores ficaram a contemplar,
impassíveis, enquanto uma praga ou um vaticínio oracular se realizava apesar de
todos os esforços de algum homem inocente: as tragédias do destino posteriores
falharam em seu efeito.
Se Oedipus Rex comove tanto uma platéia
moderna quanto fazia com a platéia grega da época, a explicação só pode ser que
seu efeito não está no contraste entre o destino e a vontade humana, mas deve
ser procurado na natureza específica do material com que esse contraste é
exemplificado. Deve haver algo que faz uma voz dentro de nós ficar pronta a
reconhecer a força compulsiva do destino no Oedipus, ao passo que
podemos descartar como meramente arbitrários os desígnios do tipo formulado em die
Ahnfrau [de Grillparzer] ou em outras modernas tragédias do destino. E há
realmente um fator dessa natureza envolvido na história do Rei Édipo. Seu
destino comove-nos apenas porque poderia ter sido o nosso - porque o oráculo
lançou sobre nós, antes de nascermos, a mesma maldição que caiu sobre ele. É
destino de todos nós, talvez, dirigir nosso primeiro impulso sexual para nossa
mãe, e nosso primeiro ódio e primeiro desejo assassino, para nosso pai. Nossos
sonhos nos convencem de que é isso o que se verifica. O Rei Édipo, que
assassinou Laio, seu pai, e se casou com Jocasta, sua mãe, simplesmente nos
mostra a realização de nossos próprios desejos infantis. Contudo, mais
afortunados que ele, entrementes conseguimos, na medida em que não nos tenhamos
tornado psiconeuróticos, desprender nossos impulsos sexuais de nossas mães e
esquecer nosso ciúme de nossos pais. Ali está alguém em quem esses desejos
primevos de nossa infância foram realizados, e dele recuamos com toda a força
do recalcamento pelo qual esses desejos, desde aquela época, foram contidos
dentro de nós. Enquanto traz à luz, à medida que desvenda o passado, a culpa de
Édipo, o poeta nos compele, ao mesmo tempo, a reconhecer nossa própria alma
secreta, onde esses mesmos impulsos, embora suprimidos, ainda podem ser
encontrados. O contraste com que nos confronta o coro final -
Fitai de Édipo o horror,
Dele que o obscuro enigma desvendou,
mais nobre e sapiente vencedor. Alto no céu sua ‘estrela se acendeu, ansiada e
irradiante de esplendor: Ei-lo que em mar de angústia submergiu, calcado sob a
vaga em seu furor.
-tem o impacto de uma advertência a nós mesmos
e a nosso orgulho, nós que, desde nossa infância, tornamo-nos tão sábios e tão
poderosos ante nossos próprios olhos. Como Édipo, vivemos na ignorância
desses desejos repugnantes à moral, que nos foram impostos pela Natureza; e
após sua revelação, é bem possível que todos busquemos fechar os olhos às cenas
de nossa infância.
Há uma indicação inconfundível no texto da
própria tragédia de Sofocles, de que a lenda de Édipo brotou de algum material
onírico primitivo que tinha como conteúdo a aflitiva perturbação da relação de
uma criança com seus pais, em virtude dos primeiros sobressaltos da
sexualidade. Num ponto em que Édipo, embora não tenha sido ainda esclarecido,
começa a se sentir perturbado por sua recordação do oráculo, Jocasta o consola
fazendo referência a um sonho que muitas pessoas têm, ainda que, na opinião
dela, não tenha nenhuma sentido:
Muito homem desde outrora em sonhos tem
deitado
Com aquela que o gerou. Menos se
aborrece
Quem com tais presságios sua alma não
perturba.
Hoje, tal como outrora, muitos homens sonham
ter relações sexuais com suas mães, e mencionarm esse fato com indignação e
assombro. Essa é claramente a chave da tragédia e o complemento do sonho de o
pai do sonhador estar morto. A história de Édipo é a reação da imaginação a
esses dois sonhos típicos. E, assim como esses sonhos, quando produzidos por
adultos, são acompanhados por sentimentos de repulsa, também a lenda precisa
incluir horror e autopunição. Sua modificação adicional se origina, mais uma
vez, numa mal concebida elaboração secundária do material, que procurou
explorá-la para fins teológicos. (Cf. o material onírico dos sonhos de
exibição, em [1]) A tentativa de harmonizar a onipotência divina com a
responsabilidade humana deve, naturalmente, falhar em relação a esse tema, tal
como em relação a qualquer outro.
Outra das grandes criações da poesia trágica, o
Hamlet de Shakespeare, tem suas raízes no mesmo solo que Oedipus Rex.
Mas o tratamento modificado do mesmo material revela toda a diferença na vida
mental dessas duas épocas, bastante separadas, da civilização: o avanço secular
do recalcamento na vida emocional da espécie humana. No Oedipus, a
fantasia infantil imaginária que subjaz ao texto é abertamente exposta e
realizada, como o seria num sonho. Em Hamlet ela permanece recalcada; e
- tal como no caso de uma neurose - só ficamos cientes de sua existência
através de suas conseqüências inibidoras. Estranhamente, o efeito esmagador
produzido por essa tragédia mais moderna revelou-se compatível com o fato de as
pessoas permanecerem em completa ignorância quanto ao caráter do herói. A peça
se alicerça nas hesitações de Hamlet em cumprir a tarefa de vingança que lhe é
atribuída; mas seu texto não oferece nenhuma razão ou motivo para essas
hesitações, e uma imensa variedade de tentivas de interpretá-las falhou na
obtenção de qualquer resultado. Segundo a visão que se originou em Goethe e é
ainda hoje predominante, Hamlet representa o tipo de homem cujo poder de ação
direta é paralisado por um desenvolvimento excessivo do intelecto. (Ele está
“amarelecido, com a palidez do pensamento”.) Segundo outra visão, o dramaturgo
tentou retratar um caráter patologicamente indeciso, que poderia ser
classificado de neurastênico. O enredo do drama nos mostra, contudo, que Hamlet
está longe de ser representado como uma pessoa incapaz de adotar qualquer
atitude. Vemo-lo fazer isso em duas ocasiões: primeiro, num súbito rompante de
cólera, quando trespassa com a espada o curioso que escuta a conversa por trás
da tapeçaria, e em segundo lugar, de maneira premeditada e até ardilosa,
quando, com toda a insensibilidade de um príncipe da Renascença, envia os dois
cortesãos à morte que fora planejada para ele mesmo. O que é, então, que o
impede de cumprir a tarefa imposta pelo fantasma do pai? A resposta, mais uma
vez, está na natureza peculiar da tarefa. Hamlet é capaz de fazer qualquer
coisa - salvo vingar-se do homem que eliminou seu pai e tomou o lugar deste
junto a sua mãe, o homem que lhe mostra os desejos recalcados de sua própria
infância realizados. Desse modo, o ódio que deveria impeli-lo à vingança é nele
substituído por auto-recriminações, por escrúpulos de consciência que o fazem
lembrar que ele próprio, literalmente, não é melhor do que o pecador a quem
deve punir. Aqui traduzi em termos conscientes o que se destinava a permanecer
inconsciente na mente de Hamlet; e, se alguém se inclinar a chamá-lo de
histérico, só poderei aceitar esse fato como algo que está implícito em minha
interpretação. A aversão pela sexualidade expressa por Hamlet em sua conversa
com Ofélia ajusta-se muito bem a isto: a mesma aversão que iria apossar-se da
mente do poeta em escala cada vez maior durante os anos que se seguiram, e que
alcançou sua expressão máxima em Timon de Atenas. Pois, naturalmente, só
pode ser a própria mente do poeta que nos confronta em Hamlet. Observo num
livro sobre Shakespeare, de Georg Brandes (1896), uma declaração de que Hamlet
foi escrito logo após a morte do pai de Shakespeare (em 1601), isto é, sob o
impacto imediato de sua perda e, como bem podemos presumir, enquanto seus
sentimentos infantis sobre o pai tinham sido recentemente revividos. Sabe-se
também que o próprio filho de Shakespeare, que morreu em tenra idade, trazia o
nome de “Hamnet”, que é idêntico a “Hamlet”. Assim como Hamlet versa
sobre a relação entre um filho e seus pais, Macbeth (escrito
aproximadamente no mesmo período) aborda o tema da falta de filhos. Entretanto,
assim como todos os sintomas neuróticos e, no que tange a esse aspecto, todos
os sonhos são passíveis de ser “superinterpretados”, e na verdade precisam
sê-lo, se pretendermos compreendê-los na íntegra, também todos os textos
genuinamente criativos são o produto de mais de um motivo único e mais de um
único impulso na mente do poeta, e são passíveis de mais de uma interpretação.
No que escrevi, tentei apenas interpretar a camada mais profunda dos impulsos
anímicos do escritor criativo. [1]
Não posso abandonar o tema dos sonhos típicos
sobre a morte de parentes queridos sem acrescentar mais algumas palavras, para
lançar luz sobre sua importância para a teoria dos sonhos em geral. Nesses
sonhos, encontramos realizada a situação extremamente incomum de um pensamento
onírico formado por um desejo recalcado que foge inteiramente à censura e passa
para o sonho sem modificação. Deve haver fatores especiais em ação para
possibilitar esse fato, e creio que a ocorrência desses sonhos é facilitada por
dois desses fatores. Em primeiro lugar, nenhum desejo parece mais distante de
nós do que este: “não poderíamos nem sonhar” - assim acreditamos - em
desejar uma coisa dessas. Por essa razão, a censura do sonho não está armada
para enfrentar tal monstruosidade, da mesma forma que o código penal de Sólon
não continha nenhuma punição para o parricídio. Em segundo lugar, nesse caso o
desejo recalcado e insuspeitado coincide parcialmente, com extrema freqüência,
com um resíduo do dia anterior sob a forma de uma preocupação com a
segurança da pessoa em questão. Essa preocupação só consegue penetrar no sonho
valendo-se do desejo correspondente, enquanto o desejo pode disfarçar-se por
trás da preocupação que se tornou ativa durante o dia. [ver em [1]] Podemos
inclinar-nos a pensar que as coisas são mais simples do que isso e que o
sujeito simplesmente dá continuidade, durante a noite e nos sonhos, àquilo que
esteve revolvendo na mente durante o dia; nesse caso, porém, estaremos deixando
os sonhos da morte de pessoas que são caras ao sonhador inteiramente no ar e
sem qualquer ligação com nossa explicação dos sonhos em geral, e assim nos
estaremos apegando, sem nenhuma necessidade, a um enigma perfeitamente passível
de solução.
É também instrutivo considerar a relação desses
sonhos com os sonhos de angústia. Nos sonhos que vimos examinando, um desejo
recalcado encontrou um meio de fugir à censura - e à distorção que a censura
implica. O resultado invariável disso é que se experimentam sentimentos
dolorosos no sonho. Da mesma forma, os sonhos de angústia só ocorrem quando a
censura é total ou parcialmente subjugada; e, por outro lado, a subjugação da
censura é facilitada nos casos em que a angústia já foi produzida como uma
sensação imediata decorrente de fontes somáticas. [Ver em [1]] Assim, podemos
ver claramente a finalidade para a qual a censura exerce sua função e promove a
distorção dos sonhos: ela o faz para impedir a produção de angústia ou de
outras formas de afeto aflitivo.
Falei acima [em [1]-[2]] sobre o egoísmo da
mente das crianças, e posso agora acrescentar, com a sugestão de uma possível
ligação entre os dois fatos, que os sonhos têm a mesma característica. Todos
eles são inteiramente egoístas: o ego amado aparece em todos eles, muito
embora possa estar disfarçado. Os desejos que neles se realizam são
invariavelmente desejos do ego, e, quando um sonho parece ter sido provocado
por um interesse altruísta, estamos apenas sendo enganados pelas aparências.
Eis aqui algumas análises de exemplos que parecem contradizer essa afirmação.
I
Uma criança com menos de quatro anos de idade
contou ter sonhado que vira um prato enorme com um grande pedaço de carne
assada e legumes. De repente, toda a carne foi comida - inteira e sem ser
destrinchada. Ela não viu a pessoa que a comeu.
Quem teria sido a pessoa desconhecida cujo
suntuoso banquete de carne constitui o tema do sonho do menininho? Suas
experiências durante o dia do sonho devem esclarecer-nos sobre o assunto. Por
ordem médica, ele fora submetido a uma dieta de leite nos últimos dias. Na
noite do dia do sonho ele se mostrara travesso e, como castigo, fora mandado
para a cama sem jantar. Ele já havia passado por essa cura pela fome numa
ocasião anterior e se portara com muita bravura. Sabia que não conseguiria
nada, mas não se permitia demonstrar, nem mesmo por uma única palavra, que
estava com fome. A educação já começara a surtir efeito nele: encontrou
expressão em seu sonho, que exibe o início da distorção onírica. Não há nenhuma
dúvida de que a pessoa cujos desejos eram visados nessa generosa refeição - de
carne, ainda por cima - era ele próprio. Mas, como sabia que isso não lhe era
permitido, ele não se aventurou a sentar-se pessoalmente para desfrutar a
refeição, como fazem as crianças famintas nos sonhos. (Cf. o sonho de minha
filhinha Anna com os morangos, em [1]-[2].) A pessoa que se serviu da refeição
permaneceu no anonimato.
II
Sonhei, certa noite, que via na vitrina de uma
livraria um novo volume de uma das séries de monografias para conhecedores que
tenho o hábito de comprar - monografias sobre grandes artistas, sobre história
mundial, sobre cidades famosas etc. A nova série era intitulada “Oradores
Famosos” ou “Discursos”, e seu primeiro volume trazia o nome do Dr. Lecher.
Quando vim a analisar isso, pareceu-me improvável
que devesse preocupar-me, em meus sonhos, com a fama do Dr. Lecher, o orador
ininterrupto do grupo dos obstrucionistas do Partido Nacionalista Alemão no
Parlamento. O caso foi que, alguns dias antes, eu recebera alguns pacientes
novos para tratamento psicológico, e agora estava obrigado a falar durante dez
ou doze horas todos os dias. Assim, eu próprio é que era o orador ininterrupto.
III
De outra feita, sonhei que um homem conhecido
meu, que fazia parte do pessoal da Universidade, me dizia: “Meu filho, o
Míope.” Seguiu-se então um diálogo constituído por curtas observações e
réplicas. Depois disso, houve ainda um terceiro fragmento do sonho no qual
figurávamos eu próprio e meus filhos. No que dizia respeito ao conteúdo latente
do sonho, o Professor M. e seu filho eram testas-de-ferro - um mero anteparo
para encobrir a mim e a meu filho mais velho. Terei de voltar a este sonho mais
adiante, em virtude de outra de suas características. [Ver em [1]]
IV
O sonho que se segue constitui outro exemplo de
sentimentos egoístas realmente baixos, ocultos por trás de uma preocupação
afetiva.
Meu amigo Otto parecia doente. Seu rosto estava
marrom e ele tinha olhos esbugalhados.
Otto é meu médico de família, e devo-lhe mais
do que tenho esperança de algum dia poder retribuir: ele tem cuidado da saúde
de meus filhos há muitos anos, tem tratado deles com êxito quando adoecem e,
além disso, sempre que as circunstâncias lhe dão uma desculpa, tem-lhes dado
presentes. [Ver em [1].] Ele nos visitara no dia do sonho, e minha mulher havia
comentado que ele parecia fatigado e tenso. Naquela noite, tive meu sonho, que
a apresentou com alguns dos sinais da doença de Basedow [de Graves].
Quem quer que interprete este sonho sem considerar minhas normas concluirá que
eu estava preocupado com a saúde de meu amigo e que essa preocupação foi
concretizada no sonho. Isso não apenas contradiria minha afirmação de que os
sonhos são realizações de desejos, como também minha outra afirmação de que
eles só são acessíveis a impulsos egoístas. Mas eu gostaria que alguém que
interpretasse o sonho dessa forma tivesse a bondade de me explicar por que meus
temores por Otto levaram à doença de Basedow - um diagnóstico para o qual sua
aparência real não dá o menor fundamento. Minha análise, por outro lado, trouxe
à tona o seguinte material, oriundo de uma ocorrência de seis anos antes. Num
grupinho que incluía o Professor R., seguíamos de carruagem em completa
escuridão pela floresta de N., que ficava a algumas horas de viagem do lugar
onde estávamos passando nossas férias de verão. O cocheiro, que não estava
inteiramente sóbrio, lançou-nos, com veículo e tudo, num barranco, e foi apenas
por sorte que todos escapamos ilesos. Fomos obrigados, contudo, a passar a
noite numa estalagem vizinha, onde a notícia do acidente nos trouxe grande dose
de solidariedade. Um cavalheiro com sinais inconfundíveis da doença de Basedow
- aliás, exatamente como no sonho, apenas com a descoloração castanha da pele
do rosto e os olhos esbugalhados, mas sem bócio - colocou-se à nossa inteira
disposição e perguntou o que poderia fazer por nós. O Professor R. respondeu, à
sua maneira incisiva: “Nada, a não ser me emprestar um camisolão de dormir.” Ao
que o gentil cavalheiro retrucou: “Lamento, mas não posso fazer isso”, e deixou
o aposento.
À medida que continuei com minha análise,
ocorreu-me que Basedow era não só o nome de um médico, mas também o de um
famoso educador. (Em meu estado de vigília eu já não me sentia tão seguro
disso.) Mas meu amigo Otto era a pessoa a quem eu pedira que cuidasse da
educação física de meus filhos, especialmente na época da puberdade (daí o
camisolão de dormir), caso alguma coisa me acontecesse. Ao atribuir a meu
amigo Otto, no sonho, os sintomas de nosso nobre auxiliador, eu estava
evidentemente dizendo que, se alguma coisa me acontecesse, ele faria tão pouco
pelas crianças quanto o Barão L. fizera naquela ocasião, apesar de suas amáveis
ofertas de assistência. Isso parece ser prova suficiente do substrato egoísta
do sonho.
Mas onde encontrar sua realização de desejo? Não
em eu me vingar de meu amigo Otto, cujo destino parece ser o de sofrer
maus-tratos em meus sonhos, mas na consideração seguinte. Ao mesmo tempo
que, no sonho, representei Otto como o Barão L., identifiquei-me com outra
pessoa, a saber, o Professor R., pois, assim como na história, R. fizera um
pedido ao Barão L., eu também fizera um pedido a Otto. E esta é a questão. O
Professor R., com quem eu realmente não me arriscaria a me comparar à maneira
comum, assemelhava-se a mim no sentido de ter seguido um rumo independente fora
do mundo acadêmico, e só obtivera seu merecido título na velhice. Assim, mais
uma vez, eu estava querendo ser Professor! De fato, as próprias palavras “na
velhice” eram uma realização de desejo, pois implicavam que eu viveria o
bastante para ver meus filhos atravessarem a época da puberdade. [1]
(D3) OUTROS SONHOS TÍPICOS
Não tenho nenhuma experiência própria de outras
espécies de sonhos típicos, nas quais o sonhador se descobre voando em pleno
ar, com o acompanhamento de sensações agradáveis, ou se vê caindo, com
sensações de angústia; e o que quer que tenha a dizer sobre o assunto se
origina de psicanálise. As informações proporcionadas por estas últimas forçam-me
a concluir que também esses sonhos reproduzem impressões da infância; isto é,
eles se relacionam com jogos que envolvem movimento, que são
extraordinariamente atraentes para as crianças. Não existe um único tio que não
tenha mostrado a uma criança como voar, precipitando-se pela sala com ela nos
braços estendidos, ou que não tenha brincado de deixá-la cair, balançando-a nos
joelhos e de repente esticando as pernas, ou levantando-a bem alto e então
fingindo que vai deixá-la cair. As crianças se deliciam com tais experiências e
nunca se cansam de pedir que elas sejam repetidas, especialmente se houver
nelas algo que provoque um pequeno susto ou uma tontura. Anos depois, elas
repetem essas experiências nos sonhos; nestes, porém, elas deixam de fora as
mãos que as sustinham, de modo que flutuam ou caem sem apoio. O prazer que
as crianças pequenas experimentam nas brincadeiras desse tipo (bem como nos
balanços e gangorras) é bem conhecido, e quando elas passam a ver façanhas
acrobáticas num circo, sua lembrança de tais brincadeiras é revivida. Os
ataques histéricos nos meninos às vezes consistem meramente em reproduções de
façanhas dessa espécie, executadas com grande habilidade. Não é incomum que
esses jogos de movimento, embora inocentes em si, dêem lugar a sensações
sexuais. As “travessuras”[“Hetzen”] infantis, se é que posso
empregar uma palavra que comumente descreve todas essas atividades, são o que
se repete nos sonhos de voar, cair, sentir tonteiras e assim por diante,
enquanto as sensações prazerosas ligadas a essas experiências são transformadas
em angústia. Com bastante freqüência, porém, como toda mãe sabe, as travessuras
entre as crianças realmente terminam em brigas e lágrimas.
Assim, tenho bons motivos para rejeitar a
teoria de que o que provoca os sonhos de voar e cair é o estado de nossas
sensações tácteis durante o sono, ou as sensações de movimento de nossos
pulmões etc. [Ver em [1]] A meu ver, essas sensações são reproduzidas, elas
próprias, como parte da lembrança a que remonta o sonho, isto é, são parte do conteúdo
do sonho, e não sua fonte.
Não posso, contudo, esconder de mim mesmo que
sou incapaz de fornecer qualquer explicação completa sobre essa classe de
sonhos típicos.
Meu material deixou-me em apuros precisamente neste ponto. Devo, entretanto,
insistir na afirmação geral de que todas as sensações tácteis e motoras que
ocorrem nesses sonhos típicos são evocadas tão logo se verifica qualquer motivo
psíquico para utilizá-las, e podem ser desprezadas quando não surge tal
necessidade deles. [Ver em [1].] Sou também de opinião que a relação desses
sonhos com as experiências infantis foi estabelecida com certeza a partir das
indicações que obtive nas análises de psiconeuróticos. Não sei dizer, porém,
que outros significados podem ligar-se à lembrança dessas sensações no curso de
fases posteriores da vida - significados diferentes, talvez, em cada caso
individual, apesar da aparência típica dos sonhos; e gostaria de poder
preencher essa lacuna mediante uma análise cuidadosa de exemplos claros. Se
alguém se sentir surpreso com o fato de, a despeito da freqüência precisamente
dos sonhos de voar, cair, extrair dentes etc., eu estar me queixando de falta
de material sobre esse tópico específico, devo explicar que eu mesmo não tive
nenhum sonho dessa natureza desde que voltei minha atenção para o tema da interpretação
dos sonhos. Ademais, os sonhos dos neuróticos, dos quais de outro modo eu me
poderia valer, nem sempre podem ser interpretados - não, pelo menos, em muitos
casos, de modo a revelarem a totalidade de seu sentido oculto; uma força
psíquica particular, que se relacionou com a estruturação original da neurose e
que é mais uma vez acionada quando se fazem tentativas de solucioná-la,
impede-nos de interpretar esses sonhos até seu último segredo.
(D4) SONHOS COM EXAMES
Quem quer que tenha passado pelo vestibular no
final de seus estudos escolares queixa-se da obstinação com que é perseguido
por sonhos angustiantes de ter sido reprovado, ou de ser obrigado a refazer o
exame etc. No caso dos que obtiveram um grau universitário, esse sonho típico é
substituído por outro que os representa como tendo fracassado em seus Exames
Universitários Finais; e é em vão que fazem objeções, mesmo enquanto ainda
estão adormecidos, de que há anos vêm exercendo a medicina ou trabalhando como
conferencistas da Universidade ou como chefes de escritório. As lembranças
inextirpáveis dos castigos que sofremos por nossas más ações na infância
tornam-se ativas em nós mais uma vez e se ligam aos dois pontos cruciais de
nossos estudos - o “die irae, dies illa” de nossos exames mais duros. A
“angústia de prestar exames” dos neuróticos deve sua intensificação a esses
mesmos medos infantis. Quando deixamos de ser estudantes, nossos castigos já
não nos são infligidos por nossos pais ou por aqueles que nos criaram, ou,
posteriormente, por nossos professores. As implacáveis cadeias causais da vida
real se encarregam de nossa educação ulterior, e passamos a sonhar com o
Vestibular ou com os Exames Finais (e quem não tremeu nessas ocasiões, mesmo
que estivesse bem preparado para as provas?) sempre que, tendo feito algo
errado ou deixado de fazer alguma coisa de maneira apropriada, esperamos ser
punidos por esse acontecimento - em suma, sempre que sentimos o fardo da
responsabilidade.
Por uma explicação adicional sobre os sonhos
com exames
tenho de agradecer a um experiente colega [Stekel], que certa vez declarou,
numa reunião científica, que, ao que ele soubesse, os sonhos com o Vestibular
só ocorriam nas pessoas que tinham sido aprovadas, e nunca nas que
foramreprovadas nele. Ao que parece, portanto, os sonhos de angústia referentes
a exames (os quais, como já foi confirmado repetidas vezes, surgem quando o
sonhador tem alguma responsabilidade pela frente no dia seguinte e teme que
haja um fiasco) procuram alguma ocasião do passado em que uma grande angústia
se tenha revelado injustificada e tenha sido desmentida pelos acontecimentos.
Esse, portanto, seria um exemplo notável de o conteúdo de um sonho ser mal
interpretado pela instância de vigília. [Ver em [1].] O que é considerado um
protesto indignado contra o sonho - “Mas eu já sou médico, etc.!” - seria, na
realidade, o consolo trazido pelo sonho, e seu enunciado por conseguinte,
seria: “Não tenha medo do amanhã! Pense só em como você estava ansioso antes do
Vestibular e, no entanto, nada lhe aconteceu. Você já é médico (etc.)!” E a
angústia que é atribuída ao sonho decorreria, na realidade, dos restos diurnos.
Os testes a que tenho submetido essa explicação
com respeito a mim mesmo e a outras pessoas, embora não tenham sido
suficientemente numerosos, têm confirmado sua validade. Por exemplo, eu próprio
fui reprovado em Medicina Forense em meus Exames Finais, mas nunca tive de
enfrentar essa matéria nos sonhos, ao passo que, com muito freqüência, fui
examinado em Botânica, Zoologia ou Química. Fiz prova dessas matérias com uma
ansiedade bastante justificada, mas, fosse pela graça do destino ou dos
examinadores, escapei à punição. Em meus sonhos com provas escolares, sou
invariavelmente examinado em História, na qual me saí brilhantemente - embora
apenas, é verdade, porque [no exame oral] meu bondoso mestre (o benfeitor de um
olho só de outro sonho, ver em [1]) não deixou de notar que, no papel que lhe
devolvi com as perguntas, eu havia riscado com a unha a questão do meio entre
as três formuladas, para avisá-lo que não insistisse naquela pergunta
específica. Um de meus pacientes, que resolvera não fazer o Vestibular na
primeira vez, mas depois foi aprovado nele, e que em seguida foi reprovado em
seu exame para o exército, não tendo jamais obtido uma patente, contou-me que
sonha com freqüência com o primeiro desses exames, mas nunca com o segundo.
A interpretação dos sonhos com exames enfrenta
a dificuldade a que já me referi como sendo característica da maioria dos
sonhos típicos
[em [1]]. Só raramente o material que o sonhador nos fornece nas associações é
suficiente para interpretarmos o sonho. Somente reunindo um número considerável
de exemplos desses sonhos é que poderemos chegar a uma melhor compreensão
deles. Não faz muito tempo cheguei à conclusão de que a objeção “Você já é
médico, (etc)!” não apenas oculta um consolo, como também significa uma
recriminação. Esta seria: “Você já está muito velho agora, com uma idade muito
avançada, mas ainda continua a fazer essas coisas estúpidas e infantis.” Essa
mescla de autocrítica e consolo corresponderia, assim, ao conteúdo latente dos
sonhos com exames. Sendo assim, não supreenderia que as auto-recriminações por
ser “estúpido” e “infantil” nestes últimos exemplos se referissem à repetição
de atos sexuais repreensíveis.
Wilhelm Stekel, que propôs a primeira
interpretação dos sonhos com o Vestibular [“Matura”], era de opinião que
eles estavam regularmente relacionados com provas sexuais e com a maturidade
sexual. Minha experiência tem muitas vezes confirmado seu ponto de vista. [1]
Parte 1 - Parte 2 - Parte 3