Perverso e Psicanálise

Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.)  no.26 Rio de Janeiro jun. 2013


TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS


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O que responde o psicanalista sobre a perversão?



What does psychoanalyst answer about perversion?





Maria Helena Martinho





RESUMO

Esse texto aborda a perversão a partir dos fundamentos teórico-clínicos de Freud e Lacan, destaca o movimento lógico que delimita a perversão na obra freudiana e verifica uma convergência nas teses de ambos os autores, no que se refere à diferenciação entre a perversidade e a perversão como estrutura clínica. O texto salienta que as práticas de gozo perverso não determinam a estrutura perversa. O matema da fantasia sadiana, forjado por Lacan, é tomado para demonstrar a Verleugnung freudiana, o modo que os sujeitos perversos encontram para lidar com castração da mãe/mulher. As fórmulas quânticas da sexuação, formuladas por Lacan, são utilizadas para evidenciar que a diferença entre a neurose e a perversão se explicita na estratégia de gozo que o sujeito utiliza na relação com o seu parceiro. Esse texto convoca a comunidade analítica ao debate uma vez que enuncia os impasses da clínica.

Palavras-chave: Perversão, Desmentido, Gozo.

ABSTRACT

Departing from Freud's and Lacan's theoretical-clinical fundaments, the article discusses perversion, highlighting the logical move which marks perversion in Freud's work and verifying a convergence in the propositions of both authors with regard to the differentiation between perversity and perversion as a clinical structure. The text argues that practices of perverted jouissance do not determine the perverse structure. The mathema of sadian fantasy, forged by Lacan, is taken to demonstrate the Freudian Verleugnung, the way perverse subjects find in order to deal with castration of the mother/wife. The quantic formulae of sexuation, conceived by Lacan, are used to put to evidence the fact that the difference between neurosis and perversion becomes explicit in the strategy of jouissance that the subject uses in the relationship with his/her partner. This text invites the analytical community to debate, once it expresses the deadlocks of the clinic.

Keywords: Perversion, Denial, Jouissance.




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Durante um século de psicanálise muito se produziu sobre neurose e psicose. Entretanto, isto não se passa da mesma forma com a perversão. Esta parece que ficou um pouco à margem na literatura psicanalítica. Fico me indagando qual a razão disso: a complexidade do tema? A pouca incidência de sujeitos perversos na clínica? Por que os psicanalistas se esquivam de falar sobre a perversão? Haveria um "não querer saber nada disso" sobre a perversão? Diante desse cenário interrogo: o que responde o psicanalista sobre a perversão?

Freud, a meu ver, respondeu a essa indagação em três tempos lógicos de sua obra. Parafraseando a modulação do tempo forjada por Lacan, pode-se dizer que: o primeiro tempo – O instante do olhar – reflete o momento em que Freud vê algo de diferente daquilo que a comunidade científica daquela época apregoava em relação à perversão. Esse primeiro tempo se apresenta claramente delineado no extraordinário texto de 1905, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, no qual Freud distingue com clareza a perversidade da perversão sexual encontrada em todo ser humano. Nesse texto, Freud reconhece que "a disposição às perversões é a disposição originária e universal da pulsão sexual dos seres humanos" (p. 211).

O segundo – O tempo para compreender – é marcado por um momento de virada que provoca uma reviravolta em todo o desenvolvimento teórico do pensamento analítico no que se refere à neurose e à perversão. Esse tempo se evidencia em um estudo de 1919, sobre a gênese das perversões, intitulado "Bate-se numa criança: uma contribuição ao conhecimento da gênese das perversões sexuais", a partir do qual Freud compreende que a fantasia de espancamento e outras fixações perversas análogas são precipitadas do complexo de Édipo, cicatrizes deixadas pelo processo que expirou.

O terceiro tempo – O momento de concluir – introduz um novo desenvolvimento metapsicológico na obra freudiana. Nesse tempo, baseando-se em novas observações clínicas, Freud amplia as suas concepções acerca do fetichismo com a publicação de um texto excepcional, intitulado Fetichismo (1927), no qual faz, pela primeira vez com clareza, a correlação entre a perversão fetichista e um mecanismo próprio de defesa contra a castração: a Verleugnung. Nesse tempo, a perversão ganha o status de categoria clínica, fazendo série com a neurose e com a psicose.

A releitura que Lacan faz da obra de Freud nos auxilia a compreender esses três tempos da seguinte maneira: no primeiro, Três ensaios, é um divisor de águas, ressalta que os traços de perversão que Freud descobriu na neurose desvelam apenas a natureza do gozo do sujeito e não a sua estrutura clínica. No segundo, Bate-se numa criança, a fantasia assume para Freud a estrutura irredutível de um enunciado gramatical cuja gênese se liga à história do sujeito. Lacan considera que foi por meio da análise da fantasia de espancamento que Freud fez a perversão entrar em sua verdadeira dialética analítica. No terceiro tempo, Fetichismo, Lacan isola o termo Verleugnung na obra freudiana, e a partir das descobertas de Freud, pode dar à Verleugnung um estatuto próprio que define o mecanismo da perversão.

Verifica-se que há uma convergência nas teses de Freud e de Lacan sobre a perversão: o gozo perverso não define o perverso de estrutura, posto que este é o gozo de cada ser falante. Freud e Lacan nos ensinam que diagnosticar um sujeito perverso é bem mais sutil do que apenas dizer que basta um cenário de gozo perverso para que se esteja diante de um perverso. Um psicanalista não deve, portanto, definir uma estrutura no nível da fenomenologia dos sintomas; ele deve identificar como o cenário de gozo na fantasia se coloca em relação ao desejo inconsciente, pois o que diferencia a estrutura neurótica da perversa é a posição que o sujeito ocupa diante do Outro na fantasia, no jogo entre o sujeito e o seu parceiro.

Sendo assim, vejamos como Lacan escreve a fantasia neurótica, em seu grafo do desejo: $◊a, onde se lê um sujeito dividido pelo significante, que está em fading diante do objeto. Digamos que, quando se escreve nesta ordem, aquele que fantasia está em fading, o que significa, a eclipse do sujeito, momento de síncope do sujeito. A elaboração desse matema permite indagar: qual seria a posição que o neurótico ocupa na fantasia, em um ato dito perverso? Lacan demonstra que o neurótico está sempre do lado do sujeito dividido, sujeito do desejo. Se todo sujeito deseja a partir de sua referência ao falo, objeto do desejo por definição, a seta que vai do $ (no lado homem) até a (no lado mulher) descreve o fato que ao desejar, todo sujeito desejante independentemente de seu sexo biológico, está do lado homem. Ele visa reencontrar no lugar de seu parceiro o objeto a, causa de seu desejo. Representado nas fórmulas quânticas da sexuação, o sujeito referido ao falo enquanto falta, busca o objeto de sua fantasia. E a causa do desejo, ele visa enquanto Outro sexo. "Só lhe é dado atingir seu parceiro sexual, que é o Outro, por intermédio disso, de ele ser a causa de seu desejo" (LACAN, 1972-1973, p. 108), já que, para o macho – (LACAN, 1972-1973, p. 98, sic) –, o objeto a faz "o papel do que vem em lugar do parceiro que falta [e é em que constitui] o que costumamos ver surgir também no lugar do real, isto é, a fantasia" (LACAN, 1972-1973, p. 85). Ou seja, na relação do sujeito para com o parceiro do desejo, as fórmulas quânticas da sexuação retomam o desenvolvimento que Lacan (1966-1967) fizera ao proferir em seu seminário sobre a lógica da fantasia, que a fantasia se compõe de $◊a – todas as relações do sujeito com o objeto a. O homem, diz Lacan, crê que aborda a mulher, mas o que ele aborda é a causa do desejo dele (a). "Aí está o ato de amor. Fazer amor é poesia. Mas, há um mundo entre a poesia e o ato. O ato de amor é a perversão polimorfa do macho" (LACAN, 1972-1973, p. 98). Dois seminários depois, Lacan confirma e conclui que esse é o sintoma do homem. Se A Mulher não existe – ela é sempre não toda –, no lugar dela o homem vai colocar "uma mulher", como um sintoma.

E o sujeito perverso? Qual seria a posição que ele ocupa na fantasia, em seu ato perverso? Para responder a essa questão faz-se necessário tomarmos o matema da fantasia sadiana – protótipo da perversão – forjado, por Lacan, em Kant com Sade (1963, p. 786).






Nesse matema verifica-se que Lacan escreve a fantasia perversa de forma inversa: a◊$. O matema da fantasia sadiana nos leva à verificação de que o sujeito do desejo ($), em seu ato perverso está no lugar de a (objeto mais-de-gozar), movido por uma vontade de gozo (V). Daí, se dirige ao seu parceiro para dividi-lo ($), provocando nele horror e surpresa, ou seja, fazendo com que ele se depare com a falta, com a castração e, ao mesmo tempo, extraindo da sua divisão o sujeito do bruto prazer (S), revelando uma verdade que lhe é desconhecida, um gozo que é pura pulsão de morte, um para além do princípio do prazer, S ().

Vê-se assim, que o sujeito perverso desvela a sua maneira particular de se relacionar com o mal-estar da castração. O perverso ilustra que a Verleugnung designada por Freud é correlata ao matema lacaniano da perversão, ao nível de ($→ S). Na medida em que põe em jogo ao mesmo tempo a falta, a divisão do parceiro, a sua castração ($) e um prazer referido ao falo enquanto ele não falta, o desmentido da castração (S).

Ao rever as fórmulas quânticas da sexuação, forjadas por Lacan (1972-1973), me dei conta de que estas poderiam me servir como um valioso instrumento para diferenciar o gozo perverso do gozo do perverso. Verifiquei que para representar o gozo perverso bastava transpor o matema da fantasia neurótica – forjado no grafo do desejo – para as fórmulas da sexuação; assim como para representar o gozo do perverso bastava transpor o matema da fantasia perversa – encontrada em "Kant com Sade" – para as mesmas fórmulas.

Na representação do gozo perverso a seta que vai do $ até a demonstra que o homem, que está todo na função fálica, tem por parceiro o objeto a da fantasia. Encontrei aqui a perversão universal, ou seja, o objeto a da fantasia no lugar do Outro sexo. Este é o gozo que a psiquiatria tinha definido, de forma equívoca, como sendo o gozo do perverso. Na verdade, foi daí que tudo começou. Quando Freud percebeu que havia uma correlação da neurose com as perversões. Desde Freud, podemos dizer que essa perversão universal (FREUD, 1905, p. 211) está no cerne da fantasia, o que não deixa de ter relação com a observação de Lacan de que toda sexualidade humana é perversa (1975-1976, p. 149). Na realidade, a perversão universal implica colocar o objeto a da fantasia no lugar do Outro sexo.






Para demonstrar a representação do gozo do perverso, verifiquei que bastaria inverter a posição da seta que representa a fantasia neurótica. Melhor dizendo, se a seta plantada ali, originalmente por Lacan, fosse invertida, ou seja, se ela fosse posicionada saindo de a até $, teríamos o matema da fantasia sadiana – protótipo da estrutura perversa –, e assim, poderíamos demonstrar que o sujeito perverso, ao contrário do neurótico, não está na posição de sujeito, no todo-fálico, mas na posição de a, no não-todo fálico, como objeto causa de gozo para o Outro, como instrumento do gozo do Outro. A seta disposta dessa maneira auxiliaria a demonstrar que o perverso força o seu parceiro a fazer uma coalescência, não entre S () e a, mas entre o a e o sujeito bruto do prazer (S). Como dito, o perverso remove a barra do sujeito (S), levando-o a obter um gozo obscuro (LACAN, 1963) – a → $ → S.






Em O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro (1968-1969, p. 252), Lacan já havia constatado que o objeto a se apresenta de maneira totalmente diferente na neurose e na perversão. Na neurose, o objeto a se apresenta no nível do narcisismo secundário, sob a característica de captura imaginária. Por essa razão, para o neurótico há com o seu parceiro uma relação de complemento. O neurótico é aquele que sempre quer fazer Um com o seu parceiro. Freud já havia ensinado que para o neurótico, no amor, há uma reciprocidade, uma simetria; quem ama quer ser amado, o amor, intrinsecamente narcísico, faz Um. Já na perversão, ao contrário, há com o seu parceiro, uma relação de suplemento. O perverso é aquele que quer oferecer ao seu parceiro aquilo que ele acha que lhe falta: o gozo.

Na estrutura perversa verifica-se que não há simetria entre o sujeito perverso e seus parceiros, não há uma complementaridade. O perverso age no nível do Outro e da reposição nele do objeto a, olhar ou voz, como suplemento. No sadismo e no masoquismo, observa-se que o perverso se insere na falta do Outro () como objeto a, mais-de-gozar, voz, para extrair do parceiro um gozo que para ele era desconhecido. Em suas fantasias perversas os sujeitos vêm ilustrar a correlação existente entre a pulsão invocante e a pulsão sádica. No voyeurismo e no exibicionismo observa-se que o perverso se insere na falta do Outro () como objeto a, mais-de-gozar, olhar, para extrair do parceiro um gozo que ele próprio desconhece. Em suas fantasias perversas os sujeitos vêm ilustrar a correlação entre a pulsão escópica, o voyeurismo e o exibicionismo.

Pode-se verificar que há vários tipos de perversões. A lista das perversões se baseia de forma muito aproximada à lista das pulsões. Contudo, essa não é uma razão para imaginarmos que a perversão seja simplesmente a pulsão desenfreada, fora de controle. Sem dúvida, há perversão voyeurista, exibicionista, sádica e masoquista, mas não é a natureza da pulsão que faz a perversão; a natureza da pulsão pertence ao registro da perversão universal. O determinante de uma estrutura clínica não se situa do lado do gozo, mas do lado do sujeito.

O que responde o psicanalista sobre a perversão? As obras de Freud e de Lacan desvelam que a complexidade que se presentifica na perversão exige do psicanalista não somente uma extrema sutileza e precisão, como também, o desafia em sua práxis e em sua ética: a ética do desejo.



Referências

FREUD, S. (1905). Tres ensayos de teoría sexual. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2005. v. 7, p. 109-225.

______. (1919). Pegan a un niño. Contribución al conocimiento de la génesis de las perversiones sexuales. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2006. v. 17, p. 173-201.

______. (1927). Fetichismo. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2004. v. 21, p. 141-152.

LACAN, J. (1957-1958). O Seminário – livro 5: As formações do inconsciente. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999. 531p.

______. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In_____: Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998, p. 591-653.

______. (1963). Kant com Sade. In: ______: Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998, p. 776-807.

______. (1968-1969). O Seminário – livro 16: de um Outro ao outro. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. 412p.

______. (1972-1973). O Seminário – livro 20: mais, ainda. Tradução M. D. Magno. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985. 201p.





Recebido: 15/02/2013 
Aprovado: 24/02/2013

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-157X2013000100011

MARTINHO, Maria Helena. O que responde o psicanalista sobre a perversão?. Stylus (Rio J.),  Rio de Janeiro ,  n. 26, p. 101-107, jun.  2013 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-157X2013000100011&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  21  jan.  2017.