Transtornos afetivos

Revista Brasileira de Psiquiatria
Print version ISSN 1516-4446On-line version ISSN 1809-452X
Rev. Bras. Psiquiatr. vol.22  s.2 São Paulo Dec. 2000

http://dx.doi.org/10.1590/S1516-44462000000600007 


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Transtornos afetivos



Lee Fu Ia, Eliana Curatolob e Sonia Friedrichc

aServiço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (SEPIA-IPq-HCFMUSP). bDepartamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Mogi das Cruzes. cProfessora do Curso de Pós-graduação em Psiquiatria do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Publico Estadual (IAMSPE)




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Introdução

Existe uma tendência natural de se pensar na infância como um período feliz, livre de preocupações ou de responsabilidades, mas as pesquisas têm mostrado que as crianças também sofrem de depressão.1

Sentimentos de tristeza em função de perdas ou manifestações de raiva decorrentes de frustração são na maioria das vezes reações afetivas normais e passageiras e não requerem tratamento. Porém, dependendo da intensidade, da persistência e da presença de outros sintomas concomitantes, a tristeza e a irritabilidade podem ser indícios de quadros afetivos em crianças e adolescentes.

A irritabilidade é um sintoma inespecífico, podendo ser encontrada em indivíduos normais. No entanto, esta se torna patológica quando qualquer estímulo é sentido como perturbador e a criança ou adolescente apresenta hiper-reatividade de característica desagradável, hostil e eventualmente agressiva.2

Alterações do humor com um forte componente de irritação, amargura, desgosto ou agressividade constituem quadros disfóricos que podem estar presentes nos transtornos afetivos.2 Provavelmente, por estarem em desenvolvimento, as crianças não têm capacidade para compreender o que acontece internamente e, com freqüência, apresentam comportamento agressivo.3,4

As súbitas mudanças de comportamento na criança e no adolescente, não justificadas por fatores de estresse, são de extrema importância para o diagnóstico dos transtornos afetivos. Crianças, antes adequadas e adaptadas socialmente, passam a apresentar condutas irritáveis, destrutivas e agressivas, com a violação de regras sociais anteriormente aceitas.3 Esse comportamento pode ser decorrente de alterações de humor do tipo disfórico.

Nas disforias encontradas no cotidiano, sem uma conotação psiquiátrica e como resposta afetiva aos eventos diários, observa-se a brevidade do quadro e o não comprometimento das condutas adaptativas, diversamente do que é encontrado nos quadros depressivos.4

Os transtornos afetivos interferem na vida da criança e do adolescente, prejudicando de modo importante seu rendimento escolar e seu relacionamento familiar e social.


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Transtornos de ajustamento com humor depressivo

Existe um consenso na psiquiatria de que, sob certas circunstâncias, o estresse pode causar psicopatologia.5 Os sinais e sintomas apresentados pelas crianças em resposta a estressores físicos e psicossociais são de grande importância para o estudo das patologias psiquiátricas, principalmente com relação ao transtorno de ajustamento (TA). A intensidade do estressor e o grau de vulnerabilidade da criança determinarão se o TA irá se desenvolver ou não; inicialmente não há como prever o aparecimento do TA.

O TA com humor depressivo é comum em crianças e ligeiramente menos comum entre os adolescentes,6 e o critério diagnóstico exige que os sintomas devem desenvolver-se dentro de um período de três meses após a ocorrência do evento estressor.7

A característica essencial do TA é o desenvolvimento de sintomas emocionais ou comportamentais significativos em resposta a um ou mais estressores psicossociais identificáveis. A importância clínica da reação é indicada por um acentuado sofrimento, que excede o que seria esperado, dada a natureza do estressor, ou por um prejuízo significativo no funcionamento social, profissional ou acadêmico.

Segundo a definição da Classificação Internacional de Doenças ¾ décima versão (CID-10), o TA agudo deve resolver-se dentro de seis meses após o desaparecimento do estressor.7 De acordo com a CID-10, o TA crônico ou reação depressiva prolongada (F. 43.21) indica a persistência dos sintomas por mais de seis meses, porém não excedendo dois anos.7 A mesma classificação faz um apontamento importante referindo que, nas crianças, os fenômenos regressivos, tais como enurese noturna, falar de modo infantil ou chupar o dedo, são freqüentemente parte do padrão sintomatológico.7 Ambos os sistemas, CID-107 e DSM-IV,8 referem que o TA pode se apresentar com humor depressivo, misto de ansiedade e depressão ou ainda com perturbação mista das emoções e da conduta.

O diagnóstico de TA com humor depressivo exige o predomínio de sintomas tais como tristeza, choro e sentimentos de desesperança. O diagnóstico diferencial é amplo, no sentido de excluir não apenas transtornos do humor, como depressão maior, transtorno bipolar ou distimia, mas também luto sem complicação.6

Um estudo desenvolvido por Kovacs9 refere que 33% das crianças diagnosticadas com diabetes mellitus insulina-dependente desenvolveram TA com humor depressivo dentro dos três primeiros meses logo após o conhecimento da doença e o início do tratamento com injeções de insulina. Estudos que avaliaram crianças vítimas de desastres causados por fenômenos da natureza também revelaram que um terço das crianças desenvolveram o mesmo tipo de TA.9

O termo "depressão situacional" considerado por Fichtner,10 corresponde a reações depressivas que podem ser encontradas no decorrer do desenvolvimento normal de uma criança. As situações traumáticas desencadeadas por intensificação do estresse ou por perdas significativas, como separação dos pais, nascimento de um irmão, ou também situações de mudanças, podem ser fatores desencadeantes para o quadro de TA com humor depressivo nas crianças.10 O TA com humor depressivo pode levar ao fracasso escolar, com baixa auto-estima, ansiedade, insônia, queixas somáticas, inapetência, cansaço e perda dos interesses habituais como esporte e lazer. Esse quadro, associado a muita expectativa dos pais, tende a prolongar a reação depressiva devido a um efeito cumulativo de estresse.

Apesar do TA ser conceituado como um transtorno transitório, a criança necessita de um acompanhamento, porque o TA poderá evoluir para um quadro de depressão prolongado e de intensidade variada, ou poderá se repetir na vigência de novos estressores.11


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Distimia

Distimia significa etimologicamente "mal-humorado", referindo-se a um temperamento inclinado à melancolia.12 Como conceber uma criança assim? Onde estará a alegria de viver que as pessoas desejam ver no rosto das crianças? No entanto, até nos contos infantis encontra-se um anão chamado Zangado, que apega-se à Branca de Neve como os outros, apesar de tão mal humorado. Ele tem as mesmas necessidades dos outros anões, mas o que se vê e o que chama a atenção é que ele não parece estar feliz.

Esta patologia é vista como uma depressão crônica, na qual os pacientes apresentam diversos sintomas depressivos de pouca intensidade se comparada à depressão maior. Tem início insidioso, começando muitas vezes na infância ou adolescência, com curso prolongado, persistindo eventualmente durante toda a vida do indivíduo.13,14 A distimia em crianças pode ter um curso crônico, com episódios de depressão maior ao longo da vida.

A vida de uma criança pode ser muito penosa ao se considerar a presença de um quadro distímico. Os critérios diagnósticos de distimia são os mesmos para crianças, adolescentes e adultos (CID-10,7 DSM-IV8). O diagnóstico de distimia na criança requer humor deprimido ou irritável (o humor irritável é mais comum nas crianças do que nos adultos) presente quase todos os dias, acompanhado de pelo menos dois dos seguintes sintomas: apetite aumentado ou diminuído; sono aumentado ou diminuído; fadiga; baixa auto-estima; dificuldade de concentração ou de tomar decisões; e sentimentos de desesperança.9 Para se fazer o diagnóstico de distimia, os sintomas devem causar intenso sofrimento ou prejuízo em áreas importantes de seu funcionamento (interação social, rendimento escolar e outras).9

Há na literatura referência a adultos distímicos como "aristocratas do sofrer", mas também pode-se observar crianças que não se contentam com nada e se mostram infelizes cronicamente.

Caso ilustrativo 1

Menino de oito anos que chora muitas vezes ao dia por motivos que seriam considerados banais por outras crianças; sente-se sozinho e considera-se sem amigos; sente-se inadequado e inferior aos colegas e costuma ser ridicularizado por outras crianças; já pensou em se matar, mas diz que não seria capaz de fazê-lo; é bastante indeciso e sempre foi medroso, desde os primeiros anos de vida. Apresenta inteligência acima da média, porém não utiliza todo o seu potencial e às vezes tem dificuldade de entender perguntas simples. Com o nascimento da irmã, atualmente com dois meses, apresentou ciúmes e revelou seu sofrimento ao excluir-se do desenho que fez de sua família.

Se os adultos distímicos não se dão conta que estão com uma doença, o que se falar de uma criança.

Caso ilustrativo 2

Um caso raro de uma menina de 6 anos que pediu para ir ao médico dos sentimentos, pois percebia que algo não estava bem consigo, embora não soubesse colocar claramente o que sentia. Com ajuda da terapeuta, pôde dizer que estava sofrendo por circunstâncias existenciais; de tão raro é que não se pode esquecê-la.


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Depressão maior

Sabe-se hoje que a idade de uma criança e o grau de desenvolvimento psíquico exercem papel importante nos sintomas e nas manifestações clínicas de depressão.15-16 Antes da aquisição de linguagem verbal, uma criança manifesta depressão pela expressão facial, pela postura corporal e pela falta de resposta aos estímulos visuais e verbais.17 As crianças, quando deprimidas, podem apresentar humor irritadiço ou instável. Enquanto umas têm explosões descontroladas, outras aparentam estarem tristes e choram à toa. A perda de interesses nas atividades de lazer fica evidente; as crianças não têm iniciativa de brincar e queixam-se sempre de estar entediadas por não saber do que brincar. Em algumas crianças deprimidas ocorre indiferença afetiva, com pouca reação para estímulos positivos ou negativos.17,18 As queixas inespecíficas e vagas de dores cabeça, musculares ou abdominais são freqüentes e constituem uma das características de depressão nessa faixa etária, além de cansaço excessivo ou falta de energia.18 Freqüentemente têm dificuldade para adquirir o peso esperado para a idade, mas algumas podem ter aumento do apetite e engordar demais. As queixas de pesadelos ou de despertar noturno são freqüentes, assim como insônias acompanhadas de ansiedade ou rituais noturnos. Agitação psicomotora ou hiperatividade são freqüentes nessas crianças com controle precário de impulsos. O aumento de distraibilidade e a dificuldade de memorização são comuns e levam a uma piora do desempenho escolar.18,19

Os adolescentes deprimidos relatam sentimentos depressivos ou mostram aumento de irritabilidade e de hostilidade. A falta de esperança e a sensação de que as coisas jamais mudarão podem levá-los a apresentar tentativas de suicídio. Insônia ou hipersonia, alteração de apetite e de peso, perda de energia e desinteresse em atividades de lazer disponíveis aparecem de formas variadas. Isolamento social, sensibilidade exagerada à rejeição ou fracasso e pouca expectativa em relação ao futuro também são freqüentes. O uso abusivo de álcool e drogas psicoativas pode ser freqüente em adolescentes deprimidos e muitas vezes são resultantes de tentativas de automedicação para alívio do sofrimento.20

Os pensamentos suicidas ou de morte geralmente estão presentes em todas as faixas etárias. As crianças relatam sentimentos de que devem ser punidas ou pensamentos de que seria melhor morrer, mas tentativas de suicídios são menos freqüentes nessa faixa etária e mais freqüentes na adolescência.20

Utiliza-se os mesmos critérios diagnósticos para crianças, adolescentes e adultos. Entretanto, o reconhecimento e diagnóstico de depressão são mais difíceis na infância e adolescência, principalmente porque crianças e adolescentes podem ter dificuldade em reconhecer e nomear seu próprios sentimentos.18

Aproximadamente 50% dos casos de transtornos afetivos têm como comorbidade algum tipo de transtorno de ansiedade. A associação desses dois transtornos é tão intensa que sintomas de ansiedade na infância podem ser sinal preditivo mais eficiente para depressão do que para transtornos de ansiedade.19,21 A presença de sintomas de ansiedade pode prevalecer sobre sintomas depressivos, principalmente em meninos.16,19

Adolescentes do sexo feminino têm maior risco de desenvolver depressão do que os do sexo masculino.20 Em casos de depressão na infância, observa-se história familiar de depressão com início precoce.20 Estressores psicossociais, presença simultânea de outros transtornos psiquiátricos ou doenças crônicas como diabetes são fatores de risco para desenvolvimento de depressão em crianças e adolescentes.


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Episódio de mania

Historicamente, episódios de mania na infância e na adolescência sempre foram questionados e, portanto, subdiagnosticados.19,21 Aproximadamente 21% de adolescentes com depressão evoluem para transtorno bipolar21 e os casos de início precoce geralmente sugerem herança genética.23

Diferentemente de adultos, cujos sintomas são episódicos, crianças freqüentemente apresentam mudanças rápidas de humor e podem alternar depressão e mania várias vezes em um mesmo dia.19,21

A criança em mania tem aumento de irritabilidade, com humor instável, sendo comum momentos de choro isolados. Pode se auto-agredir e ser agressiva com outros. É inquieta, fala muito mais rápido do que de costume, apresenta distraibilidade acentuada e pode ter redução da necessidade de dormir. Pode apresentar pensamentos fantasiosos e de grandeza, como o de possuir poderes mágicos, sofrendo acidentes por acreditar fielmente nesses poderes. Os sintomas alucinatórios e delirantes são mais comuns na adolescência.19 Pela semelhança do quadro de hipomania com o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), a confusão entre esses dois transtornos é freqüente.23

Na adolescência, os quadros de mania começam a assemelhar-se aos dos adultos. O humor exaltado é mais perceptível, mas pode existir uma combinação de humor exaltado e depressivo. Os adolescentes podem apresentar logorréia, fuga de idéias e idéias de grandeza. Há diminuição do sono e o comportamento pode ser bizarro e extravagante. Os sintomas psicóticos são mais freqüentes do que na fase adulta e o diagnóstico diferencial com a esquizofrenia muitas vezes é difícil.19

Assim como na depressão, os critérios diagnósticos de mania são os mesmos para crianças, adolescentes e adultos. Entretanto, o reconhecimento e o diagnóstico dos episódios de mania encontram-se dificultados devido à sua semelhança com síndromes psicóticas e transtorno da conduta.18
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Tratamento

O tratamento do paciente com transtornos afetivos inicia-se com uma avaliação detalhada para afastar possíveis causas orgânicas para o aparecimento dos sintomas. Também se deve obter dados sobre o comportamento da criança em casa e na escola. O diagnóstico preciso é fundamental para conduzir à terapêutica adequada. A psicoterapia da criança e a orientação para pais e professores são sempre necessárias. Muitas vezes recomenda-se a terapia familiar para diminuir a angústia da criança e da família. Com relação à medicação, deve-se estudar cada caso individualmente.

Nos casos de transtornos de ajustamento com humor depressivo, distimia e depressão maior, pode-se usar antidepressivos tricíclicos como imipramina, clormipramina, maprotilina, amitriptilina ou nortriptilina. Todos já são de uso comum na infância e tanto a substância como os efeitos colaterais são bastante conhecidos. Deve-se começar com doses baixas e o aumento deve ser gradual. Os efeitos colaterais são semelhantes aos observados em adultos, devendo ser dada especial atenção ao monitoramento cardíaco.22

Os inibidores seletivos da recaptura de serotonina (ISRS) aprovados nos Estados Unidos pelo Food and Drug Administration (FDA) para uso em crianças são o cloridrato de sertralina e a fluoxetina. Essas drogas apresentam bons resultados e poucos efeitos colaterais. Outros ISRS, como o citalopram, a paroxetina e os ISRS de ação mista, como a venlafaxina, também têm sido utilizados.22

O carbonato de lítio, a carbamazepina e o ácido valpróico podem favorecer a estabilização do humor e a melhora da irritabilidade nos casos de transtorno bipolar. São medicações consagradas no meio médico, mas deve-se ficar bastante atento às avaliações clínicas e laboratoriais prévias ao uso desses medicamentos.

A obrigatoriedade das avaliações clínicas e laboratoriais tem por objetivo afastar a possibilidade de diagnósticos diferenciais e, também, de traçar um perfil basal para futuros exames periódicos de controle, lembrando que alguns medicamentos apresentam efeitos colaterais intoleráveis para certos pacientes, assim como efeitos adversos de leucopenia (carbamazepina), hipotireoidismo (lítio), cardiotoxicidade (lítio) e patologias da condução cardíaca (antidepressivos tricíclicos).24 A dosagem sérica deve ser verificada sempre que possível.


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Conclusão

Os transtornos afetivos podem ocorrer na infância e na adolescência. O diagnóstico e o tratamento precoces podem mudar o futuro de uma criança, evitando prejuízos ao desenvolvimento e favorecendo a elaboração de vivências relacionadas aos transtornos afetivos.



Referências

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Correspondência: Lee Fu I 
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FU I, Lee; CURATOLO, Eliana; FRIEDRICH, Sonia. Transtornos afetivos. Rev. Bras. Psiquiatr.,  São Paulo ,  v. 22, supl. 2, p. 24-27,  Dec.  2000 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462000000600007&lng=en&nrm=iso>. access on  23  Jan.  2017.  http://dx.doi.org/10.1590/S1516-44462000000600007.