Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. v.61 n.1 Rio de Janeiro abr. 2009
ARTIGO
The psychosis from Lacan to Freud
Sueli Rodrigues BurgarelliI; Jésus SantiagoII
IUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Brasil
IIUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
Este trabalho interessa-se particularmente pelas formulações freudianas inaugurais, nas quais as psicoses são teorizadas a partir de pressupostos relativos às neuroses. As diversas especificidades do sujeito psicótico parecem não ter sido diretamente contempladas nessas formulações. Os impasses que afetam a aplicabilidade da noção de recalque para o estabelecimento de uma clínica diferencial entre os campos da neurose e da psicose foram enfatizados. As elaborações contidas em O seminário, livro 2 e livro 3 de Lacan são empregadas como recurso para uma formalização possível de tais impasses, concernentes às primeiras formulações freudianas sobre o mecanismo psíquico das psicoses. A tese da autonomia do significante com relação ao significado na produção de significação foi crucial para a explicitação das dificuldades que impediram que o momento fundador da obra de Freud tivesse êxito na elucidação metapsicológica do mecanismo específico da psicose.
Palavras-chave: Psicose; Neurose; Recalque; Simbólico; Imaginário.
ABSTRACT
The work contemplates a particular interest for the initial Freudian formulation, were psychosis so theorized as parting from assumptions concerning neurosis. The many specific features of a psychotic subject seem to haven't been contemplated in these formulations. The applicable dilemmas of the concept of repression for the establishment of a differing clinic among neurosis and psychosis were emphasized. The elaborations presented in Books 2 and 3 of The Seminar of Lacan were used as a resource for a possible formalization of those dilemmas on initial Freud formulations over the psychosis psychological mechanism. The thesis of the significant autonomy over the meaning in the production of meaning going to crucial in order to explain the difficulties that prevented the success in the founding moment of Freud's work in the metapsychological elucidation of the psychosis specific mechanism.
Keywords: APsychosis; Neurosis; Repression ; Symbolic; Imaginary.
O presente texto pretende apresentar o trabalho investigativo que deu ensejo à escrita da dissertação de Mestrado intitulada Impasses e dificuldades nas formulações freudianas inaugurais sobre as psicoses: uma abordagem retroativa de Lacan a Freud (BURGARELLI, S. R.; SANTIAGO, J., 2007). Antes de passarmos à apresentação propriamente dita desse trabalho, cabe tecermos algumas considerações preliminares que concernem ao trabalho do pesquisador, particularmente ao fato de uma investigação ser composta de dificuldades, de retomadas e de recomeços. Importa ressaltar que o trabalho investigativo, caso se disponha a captar o inusitado que se reveste de novidade científica, acaba por tomar caminhos tortuosos, pois se trata, nesse contexto, de um saber que não se entrega facilmente às primeiras intuições. Por isso, é preciso certa dose de persistência para não recuar diante das obnubilações que, por vezes, permeiam o trabalho do pesquisador. Nesses momentos, importa considerar que tais pontos de impasse se devem à necessidade de retomar e reconsiderar o percurso da investigação proposta. Não se deve perder de vista que é justamente o processo de indagar que alimenta uma investigação. As respostas apenas emergem como efeitos dessa ênfase no desejo de interrogar.
A pesquisa teve início a partir de um interesse pronunciado pela abordagem psicanalítica da psicose e por sua especificidade em relação à neurose. O fato de a psicose suscitar, ao mesmo tempo, fascínio e desprezo nas pessoas ditas ''normais'' foi tomado como indicativo da existência de algo na especificidade de seu mecanismo capaz de atrair e repelir. É lugar-comum a consideração de que a teoria psicanalítica não é efeito do interesse de Freud pela psicose. Parte considerável do avanço teórico por ele empreendido deveu-se a investigações realizadas prioritariamente no campo das neuroses. Toda elaboração conceitual necessita de um ponto de partida; o freudiano foi a histeria - e o recalque, por conseguinte. Esta constatação esteve presente desde o início da pesquisa e funcionou como o pano de fundo sobre o qual se ergueu a hipótese subjacente ao trabalho investigativo, qual seja, afirmar que Freud esbarrou em impasses significativos em sua teorização sobre a especificidade do mecanismo psíquico da psicose em função do arsenal conceitual com que pôde contar, marcado pela noção de recalque e por descobertas relativas ao campo da neurose1.
Mostrou-se possível verificar que, nos textos freudianos nos quais se situam as primeiras formulações sobre a psicose, o ponto de vista a partir do qual as investigações são levadas a cabo é determinado pela especificidade do mecanismo do recalque. Ou seja, a maneira como Freud concebeu a psicose nos momentos mais iniciais de sua teorização traz a marca de seu interesse privilegiado pelo mecanismo psíquico da neurose. É sabido que Freud tomou a histeria como inspiração inicial para o princípio de suas teorizações. Seu interesse pela psicose, nos momentos mais iniciais de sua produção teórica, pode ser considerado, portanto, tributário desse interesse peculiar pela histeria2. A idiossincrasia estrutural da psicose, portanto, parece estar quase completamente ausente em tais formulações.
A despeito do fato de as teorizações freudianas sobre a psicose terem sofrido modificações ao longo do tempo, todas partilham dos pressupostos oriundos de estudos sobre as neuroses. Ainda que tenha vislumbrado elementos indicativos de especificidades no mecanismo psíquico das psicoses3, Freud insistiu, por muito tempo, em teorizá-las a partir de referências advindas de suas formulações sobre a neurose. Ele não foi capaz de formular, precisamente, o mecanismo psíquico da psicose; não concebeu uma especificidade da estrutura subjetiva do psicótico, muito embora tenha, por vezes, vislumbrado elementos capazes de conduzir a elaborações nesse sentido4. Não formalizando a especificidade de tal mecanismo, não pôde recomendar o tratamento analítico para casos de psicose. Nessa perspectiva, estranho seria se ele tivesse alcançado sucesso em tratar a psicose segundo os parâmetros da neurose, pois seríamos forçados a admitir que o tratamento se processaria por algum tipo de ''neurotização'' do psicótico.
O interesse inicial da investigação foi circunscrever os impasses com os quais Freud se deparou no que se refere ao avanço de suas formulações sobre a especificidade do mecanismo da psicose. Trata-se, portanto, de uma questão epistemológica pertencente ao âmbito do que pode ser designado metapsicologia freudiana da psicose. A lógica da retroação configurou-se como ferramenta útil à investigação, pois a ideia de que Freud, em suas formulações sobre a psicose, esbarrou em impasses significativos sustenta-se na constatação de que Lacan, valendo-se do legado freudiano, avançou na teorização e no tratamento da psicose pela Psicanálise. E isso a despeito da dificuldade de Freud em teorizá-la para além da especificidade do mecanismo do recalque. Mas a contribuição de Lacan para a teoria psicanalítica da psicose só foi possível porque ele reconheceu em Freud (precisamente, na análise do caso Schreber) um esforço inicial nesse sentido. Não se trata, portanto, de opor a teorização lacaniana à teorização freudiana. A indicação da forclusão do Nome-do-Pai como mecanismo específico da psicose não se sustenta em uma oposição à especificidade do mecanismo psíquico da neurose, mas antes em um interesse genuíno pela ampliação da abrangência da teoria psicanalítica, a partir da referência freudiana. Por isso, pareceu profícuo realizar, a partir da teoria lacaniana da psicose, uma retomada das formulações freudianas sobre o assunto, no intuito de buscar indícios no texto de Freud capazes de esclarecer o que estava em questão na sua dificuldade de considerar a psicose em sua especificidade estrutural.
A primeira tentativa de esclarecimento foi representada pela consideração de que Lacan teve acesso à linguística estrutural, algo com que Freud não pôde contar. A vantagem aí subentendida refere-se ao fato de ele ter concebido o significante em sua assimetria com relação ao significado, tendo efetuado a inversão do algoritmo saussuriano do signo linguístico5, conferindo primazia ao significante. A partir disso, trouxe para o primeiro plano a ideia de que a experiência psicanalítica diz respeito a uma prevalência do significante em relação ao significado na produção de significação.
O estudo de O seminário, livro 3: as psicoses permitiu entender que a teoria do significante se configura, para a Psicanálise, como condição de visibilidade da especificidade do mecanismo psíquico da psicose. A concepção lacaniana da forclusão do Nome-do-Pai6 somente é apresentada após um estudo sistemático sobre a equivocidade que acompanha o funcionamento da linguagem nos seres falantes. O psicótico põe às claras a ruptura entre significante e significado, e os efeitos da linguagem sobre o sujeito humano são assim evidenciados. Somente uma consideração minuciosa do modo próprio de funcionamento do simbólico pode, portanto, permitir a apreensão do mecanismo específico da psicose.
Segundo Lacan (1956-1985, p. 140), apenas a duplicidade fundamental do significante e do significado permite conceber o que seja o determinismo psicanalítico. O significante é aquilo que fornece o invólucro da significação, polarizando-a e estruturando-a; por isso, para apreender o que está em questão na experiência analítica, é preciso conhecer a ordem própria do significante e de suas propriedades (LACAN, 1956-1985, p. 295).E esta distinção significante-significado justifica-se particularmente pela consideração das psicoses (LACAN, 1956-1985, p. 223). Nas palavras de Lacan (1956-1985, p. 167), ''a promoção, a valorização na psicose dos fenômenos de linguagem é para nós o mais fecundo dos ensinamentos''. Em suma, a tese da autonomia do significante com relação ao significado na produção de significação assumiu um lugar decisivo para a explicitação das dificuldades que impediram que o momento fundador da obra de Freud tivesse êxito na elucidação metapsicológica do mecanismo específico da psicose.
Para Lacan, na psicose está em questão uma progressiva ocupação psicológica do significante. Mas, para entender isso, é preciso considerar a relação do sujeito com o significante e com os distintos registros da alteridade, o outro imaginário e o Outro simbólico7. Na neurose, a estruturação do conjunto do aparelho significante é determinante para os fenômenos que aí se apresentam, pois o significante é aquilo com o que se exprime o significado desaparecido. Por esta razão, ao chamar a atenção para o significante, Lacan (1956-1985, p. 252) retorna ao ponto de partida da descoberta freudiana. E, também na fenomenologia da psicose, é impossível desconhecer a originalidade do significante, pois o que há de tangível aí concerne à abordagem, pelo sujeito, de um significante como tal, e à impossibilidade dessa abordagem (LACAN, 1956-1985, p. 360). Entretanto, muito embora a lógica do significante se apresente como indispensável para a elucidação dos mecanismos psíquicos tanto da neurose quanto da psicose, não é possível promover uma equivalência entre os dois campos. Lacan (1956-1985, p. 227) afirma que
A noção da realidade, tal como a fazemos intervir na análise, supõe essa trama, essas nervuras de significantes. Isso não é novo. Está perpetuamente implicado no discurso analítico, mas jamais isolado como tal. Isso poderia não ter inconveniente, mas tem, por exemplo, no que se escreve sobre as psicoses. Tratando-se das psicoses, invocam os mesmos mecanismos [...] que a respeito das neuroses [...]. Contenta-se com os mesmos efeitos de significação. Aí está o erro. Daí a necessidade de nos determos na existência da estrutura do significante como tal, e, em resumo, tal como ele existe na psicose. [...] a psicose [...] provém essencialmente de algo que se situa ao nível das relações do sujeito com o significante.
A análise e a extração rigorosa de consequências da assimetria entre significante e significado, fruto do interesse de Lacan pela linguística estrutural, permitiram a ele colocar em evidência a arbitrariedade do signo, o descolamento da significação em relação ao significado. Esta descontinuidade introduziu um intervalo que colocou em destaque a hiância entre os registros imaginário e simbólico. Lacan, em O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da Psicanálise, ao delimitar tal hiância, criou uma chave de leitura para a obra freudiana. Para o autor (LACAN, 1956-1985, p. 138), no fenômeno representado pela relação inter-humana há duas dimensões diferenciadas, que se enlaçam continuamente e que se confundem no fenômeno: a do imaginário e a do simbólico. Mas considerar que elas se fundem em uma só constitui grave equívoco, pois, dessa forma, chega-se a um tipo de comunicação mágica, que serve de base à teorização de muitas experiências que culminam com uma multiplicidade de erros teóricos e técnicos.
Ao longo das quatro etapas do pensamento de Freud, citadas por Lacan em O seminário, livro 2(1955-1985, p. 137), as dificuldades e os impasses com os quais ele se deparou, ali ressaltados, são reproduzidos a cada vez em uma disposição modificada. Lacan persegue, a fim de permitir o surgimento da autonomia da ordem própria daquilo com que Freud se defrontou e se esforçou por formalizar, as mesmas antinomias presentes em sua obra, que podem ser percebidas sob formas transmutadas. Trata-se da ordem simbólica em suas estruturas próprias e em seu dinamismo, em sua forma particular de intervir, impondo sua economia autônoma à vivência do ser humano. Lacan (1955-1985, p. 150) designa a originalidade da descoberta freudiana por meio disso: Freud localiza e delimita, na experiência humana, um ponto exterior que não está no homem, mas alhures. À medida que sua obra se desenvolve, ele se vê constantemente convocado a restaurar esse ponto excêntrico. E Lacan procura reencontrar no texto freudiano as etapas de tal progresso.
Há uma falha entre o elemento intuitivo (dual) e o elemento simbólico (ternário), sendo que, na coerência que o discurso apresenta, há passagem de um plano intuitivo de ligação a um plano simbólico de ligação. No plano intuitivo ou imaginário funciona a reminiscência, a forma eterna. Para Lacan (1955-1985, p. 28), a introdução da função simbólica na realidade constitui um 'forçamento', pois essa função não é completamente homogênea à função imaginária. O princípio do prazer não equivale à adaptação, pois o registro biológico, dominado pela função imaginária, é diferente do registro humano, no qual prevalece a função simbólica. E a questão trabalhada por Lacan em O seminário, livro 2, surge exatamente da confusão entre esses dois registros (LACAN, 1955-1985, p. 36).
Na perspectiva lacaniana, para conceber a função designada por Freud como ''eu'', e para ler a metapsicologia freudiana conservando a originalidade de seu criador, é indispensável distinguir os planos e as relações que ganham expressão nos termos simbólico, imaginário e real. Este cuidado objetiva conservar o sentido da experiência de análise, considerada uma experiência simbólica particularmente pura. O eu é uma função imaginária, mas esta função, no homem, é distinta do que ela é no conjunto da natureza. Lacan (1955-1985, p. 53-54) evidencia que a grande descoberta da Psicanálise tem a ver com isso: com relação à vida da espécie, há no homem uma fissura, uma perturbação profunda da relação vital. Nas suas palavras,
[Freud] quis, a qualquer preço, salvar um dualismo, no momento em que este dualismo estava derretendo-se entre suas mãos, e quando o eu, a libido, etc., tudo isso formava uma espécie de vasto todo que nos trazia de volta a uma filosofia da natureza. Este dualismo nada mais é do que aquilo de que falo quando dou destaque à autonomia do simbólico. Isso, Freud nunca o formulou. Para fazer com que vocês o entendam, preciso de uma crítica e de uma exegese do seu texto. (LACAN, 1955-1985, p. 54).
A intersubjetividade dual é carregada de miragens: olhar para o outro e crer que ele pensa o que estamos pensando constitui erro crasso, e é preciso partir disso. A ''eficácia simbólica'', destacada por Lacan (1955-1985, p. 239), implica certa inércia, característica do sujeito do inconsciente. O além do princípio do prazer expressa-se por meio da compulsão à repetição, de uma insistência repetitiva e significativa. Para Lacan (1955-1985, p. 259), trata-se de uma função que se encontra na raiz da linguagem. E, ao tentar entender o que significa 'automatismo de repetição', ao procurar conferir um sentido a esta expressão, o autor francês (LACAN, 1955-1985, p. 160) acabou por apreender a duplicidade das relações do simbólico e do imaginário.
A cibernética, para Lacan (1955-1985, p. 381-382), evidencia que, na experiência humana, o papel desempenhado pelo imaginário não pode ser desvinculado da função simbólica. Os primeiros símbolos decorrem de certas imagens prevalentes, mas esse imaginário não pode ser considerado homogêneo ao simbólico. A cibernética coloca em evidência a diferença da ordem simbólica e da ordem imaginária: existe uma dificuldade extrema em traduzir, em termos cibernéticos, a coaptação das boas formas. Aquilo que, na natureza, é boa forma, no simbólico é má forma. Há distinção essencial dos planos imaginário e simbólico, e uma inércia do imaginário que embaralha o discurso do sujeito, sendo que o exercício da análise pretende dissipar esta confusão imaginária, restituindo ao discurso seu sentido de discurso.
A novidade da descoberta freudiana é que o ser humano não domina a linguagem primordial: ele foi introduzido nessa engrenagem, e aí se encontra preso. Ele não é senhor em sua própria casa, pois se integra em algo que reina por meio de suas combinações. Lacan (1955-1985, p. 383-384) chamou a atenção para o fato de que o homem se encontra inserido em um primitivo simbolismo que se distingue das representações imaginárias. E é aí que algo dele precisa fazer-se reconhecer. Mas isso, conforme o ensinamento de Freud, está recalcado. E o recalcado sempre insiste, pede para ser.
Lacan distinguiu os registros imaginário e simbólico na experiência humana, e isso repercutiu na sua produção teórica. Freud, por sua vez, parece, em alguns momentos, não ter explorado a contento a importância de tal distinção8. Por exemplo, em seu texto de 1924 (FREUD, 1969), ele atribuiu às fantasias o mesmo papel na neurose e na psicose, qual seja o de fornecer os materiais ou o padrão para a reconstrução da nova realidade. Mas não percebeu que neuróticos e psicóticos, muito embora extraiam, ambos, vantagens da estabilidade do imaginário, recorrem de maneira radicalmente diferente a este registro, pois os neuróticos dispõem de mediação simbólica, o que não acontece com os psicóticos. Lacan parece ter se interessado pelo simbólico a fim de depurar a obra freudiana de seus excessos imaginários. Em O seminário, livro 2,ele lança mão da diferença ali apresentada entre 'je' e 'moi' a fim de distinguir o sujeito do inconsciente (articulado à função simbólica) do eu (função imaginária). Esse Seminário contém um exame e uma crítica da noção de eu na teoria de Freud, e pode ser considerado uma tentativa de Lacan no sentido de minimizar os efeitos de pregnância imaginária que parasitam a obra freudiana.
Na investigação aqui apresentada, o primeiro esboço de resposta foi sustentado pela constatação de certa indiferenciação, nas formulações freudianas, entre as estruturas neurótica e psicótica. Por exemplo, nas publicações anteriores a A interpretação dos sonhos(1900), a paranóia e a psicose alucinatória são, ao lado das histerias, das obsessões e das fobias, consideradas neuroses de defesa. Nos Estudos sobre histeria(1893),Freud utiliza a expressão ''psicose histérica'' para designar quadros de histeria aguda no período de produção mais ativa de sintomas. Mais tarde, após a formulação do conceito de narcisismo, parece que ele pretende, via teoria da libido, alojar em sua teoria das neuroses de transferência os assuntos que dizem respeito às agora denominadas ''afecções narcísicas''. A princípio, portanto, Freud concebeu a psicose como inscrita no campo delimitado pelo mecanismo do recalque, valendo-se do conceito de defesa; posteriormente, a teoria da libido foi a via de acesso escolhida para o desenvolvimento de suas teorizações sobre a psicose, ainda a partir de pressupostos concernentes ao estudo das neuroses.
Apesar de reconhecer uma especificidade na atuação da defesa na psicose alucinatória, qual seja a de ser mais poderosa e bem-sucedida que nas histerias, obsessões e fobias9, Freud não avançou, naquele momento, em suas formulações a partir desta referência. Não se trata, portanto, de reduzir a noção de defesa ao mecanismo do recalque, mas de indicar que, apesar de ter percebido tal especificidade da defesa na psicose alucinatória, Freud não explorou, a partir dessa constatação, a especificidade do mecanismo psíquico da psicose. Algo dessa especificidade apresentou-se, novamente, para Freud, em momentos ulteriores, não contemplados na investigação aqui apresentada em função do privilégio concedido à retomada apenas das formulações freudianas inaugurais.
A leitura dos textos freudianos selecionados como relevantes10 permitiu considerar que a relativa indiferenciação estrutural entre neurose e psicose manifesta-se de maneira prevalente apenas nas formulações freudianas mais iniciais. Constatar este fato permitiu delimitar o objeto de estudo do trabalho investigativo: as formulações freudianas inaugurais11, que passaram, então, a configurar o material sobre o qual a análise retroativa, a partir das contribuições de Lacan, seria efetuada.
No curso da investigação, a relativa indiferenciação, anteriormente constatada entre os campos da neurose e da psicose, foi retomada. Contudo, considerou-se que essa indiferenciação relacionava-se a outra, também presente nesse momento da elaboração teórica de Freud: aquela que diz respeito aos registros imaginário e simbólico. Mas esta elaboração logo esbarrou em uma dificuldade significativa: delimitar os dois registros em Freud. Por se tratar de uma verdadeira novidade introduzida por Lacan, a organização da experiência humana em três registros denominados real, simbólico e imaginário não encontra equivalente evidente nas formulações freudianas, sobretudo nas inaugurais. Talvez a própria dificuldade de discernir o imaginário do simbólico nessas formulações de Freud possa ser tomada como indício convincente da indiferenciação entre os dois registros nesse momento de sua elaboração teórica. Mas a demonstração dessa hipótese afigurou-se muito complicada, sendo necessário recorrer a considerações suplementares.
A partir disso, evidenciou-se a ideia de que talvez esta indistinção entre os registros simbólico e imaginário, nas formulações freudianas inaugurais, pudesse ser enunciada nos termos de uma coexistência de elementos indicativos de uma novidade fulgurante, qual seja a incidência do funcionamento simbólico sobre o ser falante e de elementos ligados ao modo de funcionamento próprio do imaginário, em que prevalece a correspondência ponto a ponto. A demonstração da hipótese da coexistência, nas formulações freudianas inaugurais, de elementos simbólicos (porta-vozes da novidade introduzida por Freud) e de elementos imaginários (representantes do apego ao já estabelecido, caracterizado pela possibilidade de relação, isenta de equívocos, denominado para os efeitos desse trabalho pregnância imaginária) afigurou-se possível.
Parece que Freud percebeu o modo próprio de funcionamento do simbólico. A importância atribuída, desde o início de sua obra, aos fenômenos de linguagem atesta esta afirmação. Contudo, parece também que, em função de uma pregnância imaginária presente em suas primeiras formulações sobre o aparelho psíquico, ele não pôde formalizar a contento esse modo autônomo de funcionamento do simbólico. Por isso a discussão aqui apresentada pretendeu contemplar essa tensão entre a intuição freudiana da autonomia do funcionamento do registro simbólico, por um lado, e a dificuldade de formalizar isso, em função de um apego ao imaginário, por outro. Neste ponto, uma hipótese suplementar apresentou-se: aquilo que Jean-Claude Milner (1996) designou ''anticopernicianismo de estrutura'' pode estar na base do que sustenta o apego ao imaginário dual em detrimento do simbólico ternário.
Para Milner (1996, p. 46), este anticopernicianismo é recorrente e está ligado ao eu, que é de estrutura, é apenas o nome dado à função do imaginário. Além disso, o autor afirma que ''paralelamente, o anticopernicianismo é de estrutura, porque o eu e o imaginário, por sua própria lei, privilegiam toda boa forma'' (MILNER, 1996, p. 47). A afirmação freudiana de que a Psicanálise fere o eu e de que é exatamente isso o que a remete a Copérnico foi retomada por Milner (1996, p. 54-55), que acrescenta que, para compreender Freud, é preciso ter clareza de que o narcisismo corresponde a uma demanda de exceção para si mesmo. E, no contexto da descoberta freudiana, a hipótese do inconsciente apresentou-se como afirmação da inexistência das exceções convocadas para satisfazer o narcisismo, encarnadas, naquele momento, no eu e na consciência. Milner (1996, p. 111) afirma que
O problema geral da psicanálise é, lembremos, que exista pensamento que não corresponda aos critérios imaginários e qualitativos do pensamento (coerência, terceiro excluído, discursividade, negação, etc.; em suma: Aristóteles). [...] A psicanálise deve, portanto, construir uma teoria do pensamento, que integre, [...], como uma propriedade constitutiva, o pensamento disjunto das regulações imaginárias.
No trabalho investigativo, buscou-se elucidar como Freud produziu saber sobre a psicose, assim como os efeitos dessa maneira de teorizar. Nesse particular, o intuito da pesquisa foi nitidamente epistêmico. A especificidade do percurso foi dada pelo interesse primordial pelos impasses diante dos quais Freud se deteve em suas formulações sobre o mecanismo específico da psicose. Tornou-se evidente que, inicialmente, ele teorizou a psicose recorrendo ao mesmo arsenal conceitual utilizado para o esclarecimento e tratamento dos sintomas neuróticos. O objetivo que delineou o foco de interesse do trabalho de escrita da dissertação pode ser assim enunciado: mostrar em que medida as diversas especificidades do sujeito psicótico não foram diretamente contempladas nessas formulações freudianas inaugurais. Os impasses encontrados na aplicabilidade da noção de recalque, própria ao mecanismo causal das neuroses, foram particularmente enfatizados.
As formulações freudianas mais arcaicas sobre as psicoses, incluídas as duas primeiras formulações sobre o funcionamento do aparelho psíquico, foram cuidadosamente estudadas. A partir da retomada que Lacan, em O seminário, livro 2, empreendeu do ''Projeto para uma psicologia científica''(1985-1955, p. 123-158), as elaborações freudianas sobre o primeiro esquema do aparelho psíquico foram consideradas. Estas funcionaram como solo fecundo em que as concepções freudianas se desenvolveram, o que justifica o interesse por elas, a despeito do fato de, nesse momento, a distinção nosográfica entre neurose e psicose não interessar a Freud.
Em outras publicações, consideradas pré-psicanalíticas, essa distinção parece ocupá-lo. Contudo, os distúrbios psicóticos foram considerados com base em uma nosografia tributária do conceito de defesa, elemento causal responsável pela etiologia dos casos tanto de neurose quanto de psicose. A submissão das neuroses e das psicoses ao fator etiológico comum da defesa evidencia o fato de que Freud procurou, nesse momento inicial, esclarecimentos sobre as duas estruturas em uma mesma base comum, qual seja aquela constituída pelos conhecimentos oriundos de seu interesse peculiar pela histeria e pelo mecanismo do recalque.
A partir de A interpretação dos sonhos (1900),a psicose passou a ser concebida em sua articulação com os processos psíquicos atuantes nos sonhos. Freud identificou em ação, nas formações oníricas, processos irracionais de pensamento, diante dos quais ficou bastante surpreso. Muito embora não tenha se dedicado a teorizar a psicose nesse momento, Freud se viu compelido a abordar assuntos relativos a esse campo, desde que se deparou com analogias quase surpreendentes entre as formações oníricas e as doenças mentais. No segundo esquema freudiano do aparelho psíquico, apresentado no capítulo VII dessa publicação de 1900, foram identificadas modificações, no que concerne à passagem da primeira concepção do aparelho psíquico (presente no ''Projeto para uma psicologia científica'') para a segunda. Tais modificações foram consideradas decorrentes do esforço de teorização, presente em A interpretação dos sonhos, do modo próprio de funcionamento do simbólico.
A elucidação, em termos freudianos, da especificidade do mecanismo da psicose não foi possível a contento. Freud esbarrou em impasses significativos, e isso parece guardar relações com dificuldades na tentativa de ampliação da noção de recalque como solução etiológica para as diferentes psiconeuroses. Sendo assim, mostrou-se profícuo realizar um rastreamento da formulação de tal noção, no intuito de procurar identificar, nesse processo, elementos indicativos da pregnância imaginária que parece marcar as formulações freudianas inaugurais. Buscou-se articular este apego ao imaginário com as noções de obstáculo epistemológico, propostas por Bachelard (1938-1996), e de anticopernicianismo de estrutura, de Jean-Claude Milner (1996).
Nas formulações freudianas mais incipientes, encontram-se elementos que permitem argumentar em favor de uma percepção antecipada, da parte de Freud, daqueles aspectos posteriormente desenvolvidos por Lacan, a partir de sua apropriação da linguística estrutural, a fim de sustentar a articulação entre fenômenos do âmbito da Psicanálise e fenômenos de linguagem. Foi possível constatar a competência de Freud para perceber e teorizar a incidência dos efeitos do funcionamento simbólico nos seres humanos, a despeito do fato de ele não ter podido contar com um instrumental conceitual capaz de permitir a extração radical das consequências disso.
Pode-se dizer que o ''retorno a Freud'', empreendido por Lacan, pretendeu restituir ao inconsciente sua dimensão simbólica, que se encontrava soterrada pela ênfase exagerada posta sobre as relações objetais. Da indistinção, e mesmo sobreposição, entre os registros imaginário e simbólico decorrem efeitos nocivos para a teoria e para a técnica psicanalítica. Lacan sentiu-se, a partir de 1950, convocado a colocar em evidência a descontinuidade do discurso do inconsciente, a fim de contrapor isso com a unidade imaginária do eu. Na espécie humana, a prevalência da má forma caracteriza o registro imaginário, que não se dá sem o simbólico. Há uma hiância intransponível entre esses dois registros, e este é o lugar em que veio se aninhar a Psicanálise. Desde o início, a despeito das limitações impostas pela atmosfera intelectual prevalente no momento da produção teórica de Freud, o que se destacou, na teoria psicanalítica, foi a recorrente incisão de uma hiância do simbólico na unidade imaginária. Ou seja, Freud não recuou diante do esforço de captar formalmente essa hiância do simbólico.
O que foi denominado pregnância imaginária parece impedir as manifestações do modo de funcionamento do registro simbólico: a autonomia do significante em relação ao significado na produção de significação. Ao destacar a presença desse apego ao imaginário nas formulações freudianas inaugurais, não se pretendeu destituir este registro de sua importância, e tampouco considerar que seu modo próprio de funcionamento deva ser evitado. O imaginário só se configura como algo pernicioso por meio de um apego exagerado ao seu modo típico de funcionamento: a prevalência do ''dois'', da correspondência ponto a ponto, em detrimento da consideração da lógica ternária. Em tal situação, a incidência do funcionamento simbólico, ou do registro do ''três'', fica escamoteada pela crença absoluta na correspondência biunívoca. Ou seja, encontra-se extremamente prejudicada a possibilidade de extrair do modo específico de funcionamento simbólico suas consequências e efeitos.
Freud, em suas formulações teóricas inaugurais, não estava em condições de distinguir, a contento, os registros imaginário e simbólico, sendo que isso parece guardar relações com sua maneira de teorizar a psicose nesse momento de sua obra, ou seja, a partir do mecanismo do recalque, conforme concebido para as neuroses. A ele não foi possível elucidar e formalizar a especificidade do mecanismo da psicose em relação à neurose, muito embora suas teorizações tenham, muitas vezes, apontado a direção na qual tal especificidade deveria ser buscada. A conclusão a que o trabalho aqui apresentado chegou pode ser assim enunciada: estabelecer a especificidade da psicose em relação à neurose exigiria, da parte de Freud, a distinção estrita entre os campos simbólico e imaginário12.
Ao longo do desenvolvimento da teoria freudiana, principalmente a partir dos artigos metapsicológicos e da virada sinalizada pela publicação de Além do princípio do prazer (1920), a indistinção entre os registros simbólico e imaginário foi diminuindo. Por conseguinte, a indiferenciação entre os campos da neurose e da psicose também foi. Não deve ser sem razões que as formulações freudianas sobre a psicose ganharam consistência à medida que sua teorização avançou, sobretudo após a formalização do conceito de narcisismo13. Constatou-se, na obra freudiana, certa indiferenciação entre os campos da neurose e da psicose, e também entre os registros imaginário e simbólico, que se desfaz, paulatinamente, com o passar do tempo e com a complexificação das hipóteses de Freud. Os escritos anteriores a 1900 trazem a marca do excesso destas indiferenciações. Foi possível perceber que elas, a princípio bastante salientes, foram se tornando cada vez menos preponderantes. A publicação de A interpretação dos sonhos (1900), escrito em que o simbólico, como tal, foi inicialmente teorizado, marcou uma virada importantíssima para a evolução do pensamento freudiano e da teoria psicanalítica.
A empreitada de Freud rumo à elucidação do funcionamento psíquico esbarrou em impasses que inviabilizaram a formalização teórica da especificidade do mecanismo da psicose. Vale ressaltar que não se trata, da parte de Freud, de um desconhecimento das especificidades que distinguem neurose e psicose. Ocorre que, nos momentos mais iniciais de sua teorização, seu interesse privilegia a clínica da neurose, de maneira que as especificidades da psicose, muito embora não sejam desconsideradas, apareçam sempre submetidas a comparações com aquilo que se apresenta na neurose. A complexificação das hipóteses e dos conceitos freudianos parece ter ampliado as possibilidades de neurose e psicose serem consideradas a partir das especificidades que marcam cada um desses modos de funcionamento psíquico.
As dificuldades na teorização freudiana sobre a especificidade do mecanismo psicótico parecem guardar relações com o fato de a noção de recalque não ter sido suficiente para explicar a etiologia da psicose. Isso restou não esclarecido na obra freudiana, sobretudo nos anos anteriores à análise do caso Schreber. Mas essa limitação da noção de recalque para a elucidação do mecanismo específico da psicose em nada diminui a relevância da descoberta freudiana do inconsciente e o elevado potencial subversivo que a acompanha. O esforço de elaboração conceitual de algo nunca antes formalizado merece reconhecimento e valor. Além disso, toda produção de saber já traz em si a marca da sua limitação, e as lacunas que aí se inscrevem acabam por evidenciar a presença do saber inconsciente na própria tessitura do saber formalizado. Afinal, saberes ilimitados pertencem ao reino do ideal.
REFERÊNCIAS
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BURGARELLI, S. R.; SANTIAGO, J. Impasses e dificuldades nas formulações freudianas inaugurais sobre as psicoses: uma abordagem retroativa de Lacan a Freud. 2007, 117 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Psicanalíticos) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.
DOR, J. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
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LACAN, J. O seminário,livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1954-55-1985.
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MILNER, J. C. A obra clara: Lacan, a ciência e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
RABINOVITCH, S. A foraclusão: presos do lado de fora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
Endereço para correspondência:
Sueli Rodrigues Burgarelli
E-mail:sburgarelli@yahoo.com.br
Jésus Santiago
E-mail:santiago.bhe@terra.com.br
Submetido em: 24/07/2008
Revisado em: 20/11/2008
Aprovado em: 25/11/2008
1 O fato de Freud ter tomado o mecanismo de defesa neurótico (o recalque) como referência inicial não inviabilizou suas pesquisas no campo das psicoses. Nossa investigação evidenciou a presença, nas formulações freudianas mais iniciais sobre a psicose, de alguns impasses associados ao fato de o mecanismo neurótico ter sido tomado como referência. Contudo, à medida que a teorização freudiana avança, suas formulações sobre a psicose ganham consistência. Por exemplo, no artigo metapsicológico sobre o recalcamento(1915), em que os três tempos do recalque são indicados, o primeiro tempo (o recalque originário) opera a distinção entre neurose e psicose. O próprio Lacan valeu-se dessa referência, ao sugerir a forclusão do Nome-do-Pai como o mecanismo que faz falhar a operação da metáfora paterna, inviabilizando o recalcamento originário, e a consequente fundação do inconsciente. Contudo, o artigo metapsicológico citado pertence a um momento da elaboração teórica de Freud não contemplado pela pesquisa aqui apresentada.
2 Tomar a neurose como ''modelo'' para o estudo da psicose foi estratégia a qual não apenas Freud recorreu. Lacan, na primeira parte de seu ensino, também concebeu a psicose a partir da referência fornecida pela neurose, ou seja, como decorrente da falta do significante Nome-do-Pai. Nessa perspectiva, o sujeito é tomado como efeito da articulação significante, como sendo determinado por ela. Contudo, após 1975, a via aberta pela consideração do gozo conduziu Lacan a uma nova perspectiva que, em lugar de anular a anterior, soma-se a ela: para além do assujeitamento à autonomia da ordem simbólica, é possível servir-se de tal ordem para gozar, sendo que essa possibilidade se oferece a todos, neuróticos, psicóticos ou perversos.
3 Por exemplo, no artigo sobre as neuropsicoses de defesa, datado de 1894, ao postular uma defesa mais poderosa e bem-sucedida na psicose alucinatória.
4 Pode-se afirmar que a especificidade do mecanismo da psicose foi objeto do interesse freudiano. A postulação da Verwerfung como repúdio à realidade é indicativo desse fato. Contudo, como nos lembra Rabinovitch (2001, p. 15), tratava-se, para Freud, de um uso comum do termo alemão. Quem alçou a Verwerfung freudiana ao estatuto de conceito e de conceito específico da psicose foi Lacan, quando passou a chamá-la de ''forclusão do Nome-do-Pai''.
5 Tal inversão refere-se à apropriação, da parte de Lacan, da linguística estrutural de Ferdinand de Saussure, conforme se pode consultar em Lacan (1998, p. 496-533). Ainda sobre a inversão do algoritmo saussuriano do signo linguístico, nos Escritos, ver as páginas 469-471. A supremacia do significante sobre o significado evidencia-se como efeito de tal inversão. A esse respeito, podem-se encontrar esclarecimentos nos Escritos, nas páginas 31-35, 695 e 712; em O seminário, livro 3: as psicoses(LACAN, 1985-1956) nas páginas 140 (significante e sintoma); 192-193 (significante e inconsciente); 205 (significante e trama simbólica); 216 (significante e Complexo de Édipo) e 223 (distinção significante/significado justificada pela consideração das psicoses).
6 Para esclarecimentos sobre esse conceito forjado por Lacan, além da referência a O seminário, livro 3: as psicoses (LACAN, 1985-1956), sugere-se consultar, para um contato introdutório, Dor (1992). Para uma articulação mais elaborada, que relaciona o mecanismo da forclusão do Nome-do-Pai à estruturação do aparelho psíquico conforme definida por Freud na Carta 52 e aos mecanismos de defesa (para Freud) ou às negações constitutivas do sujeito (para Lacan), consultar Rabinovitch (2001).
7 Lacan, em O seminário, livro 2, esforçou-se para evidenciar a distinção entre os registros imaginário e simbólico, buscando, dessa forma, destacar a especificidade da experiência analítica, considerada uma experiência simbólica particularmente pura. Os distintos registros da alteridade - outro e Outro - inserem-se nessa perspectiva. Para considerações sobre o assunto, em O seminário, livro 2, citado, consultar a parte intitulada ''Para além do imaginário, o simbólico, ou do pequeno ao grande outro'', Lições XV a XXI (LACAN, p. 221-342). Podem-se consultar, ainda, formulações sobre a especificidade da função simbólica: p. 44, 46, 66, 381-383, 398, e da ordem simbólica: p. 150, 170. Sobre a especificidade da função imaginária do ser humano: p. 53-56, 155-156, 389. A tese do descentramento do sujeito em relação ao Eu é especificamente abordada nas páginas 62-63, 79-81, 151, 190. Considerações sobre o estádio do espelho também contribuem para a elucidação da distinção em questão e podem ser encontradas nas páginas 69, 74, 211, 401-405. Para finalizar, é possível ainda encontrar, neste Seminário, articulações entre o registro simbólico e a máquina, passando por considerações sobre o além do princípio do prazer, nas páginas 99, 101-102, 116-119. As elaborações presentes em O seminário, livro 3,são desdobramentos do trabalho empreendido no Seminário anterior. Por isso também contêm formulações sobre a distinção entre os registros da alteridade. Para elaborações a respeito da especificidade do Outro, ver: p. 62, 78-79, 89-90, 308-309, além da Lição III (p. 39-54). Esclarecimentos sobre a especificidade do outro imaginário são encontrados na Lição VII (p. 106-120) e nas páginas 169-170. Pode-se consultar ainda, para esclarecimentos sobre o esquema L de Lacan (utilizado, entre outras coisas, para operar a distinção entre o Outro simbólico e o outro imaginário), as páginas 22, 23, 68, 185 e 186. A distinção Outro/outro é elucidada nas páginas 286 e 287. Finalmente, para uma breve articulação entre os distintos registros da alteridade (Outro/outro) e a psicose, consultar a página 252.
8 Tal afirmação não deve ser tomada no sentido de que Freud tenha negligenciado a diferença entre os registros imaginário e simbólico, mas que tal distinção, nos momentos mais iniciais de sua teorização, apresenta-se de maneira menos evidente. A interpretação dos sonhos (1900) constitui-se como o primeiro grande esforço de teorização da autonomia da ordem simbólica. Nessa perspectiva, pode-se afirmar, ainda, que o texto ''Sobre o narcisismo: uma introdução'' (1914) embasou a teorização freudiana sobre o registro imaginário, e que o ''Além do princípio do prazer'' (1920) forneceu a referência para as investigações sobre o real.
9 Cf. Artigo ''As neuropsicoses de defesa'', de 1894.
10 ''Tal seleção foi realizada considerando-se a evolução das formulações de Freud e a crescente complexidade de suas hipóteses concernentes à psicose.
11 Foram consideradas ''inaugurais'' as formulações freudianas sobre a psicose que integram as publicações pré-psicanalíticas (anteriores a 1900) e aquelas presentes em A interpretação dos sonhos (1900).
12 A extração mais rigorosa das consequências desta conclusão permanece como objeto para outro trabalho.
13 Tal conceito foi fundamental para a pesquisa lacaniana das psicoses, tendo funcionado como ponto de partida para sua tese de Doutorado, na qual o caso Aimée foi estudado. Sua importância para as formulações freudianas da psicose não foram, contudo, diretamente contempladas no estudo que deu ensejo ao presente artigo. As formulações freudianas anteriores a 1900 foram privilegiadas, já que a relativa indiferenciação entre os campos da neurose e da psicose manifesta-se, de maneira prevalente, nessas publicações. Considerações sobre a importância do conceito de narcisismo para a obra freudiana podem ser encontradas em O seminário, livro 2 (LACAN, 1955-1985), nas páginas 155 e 407.
14 Esta informação já foi dada anteriormente.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672009000100014
BURGARELLI, Sueli Rodrigues; SANTIAGO, Jésus. A psicose de Lacan a Freud. Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro , v. 61, n. 1, p. 143-152, abr. 2009 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672009000100014&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 31 dez. 2016.