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Primeiras
Publicações Psicanalíticas
VOLUME III
(1893-1899)
Dr. Sigmund Freud
PREFÁCIO AOS
ESCRITOS BREVES DE FREUD
1893-1906 (1906)
NOTA
DO EDITOR INGLÊS
PREFÁCIO A SAMMLUNG
KLEINER SCHRIFTEN ZUR NEUROSENLEHRE AUS DEN JAHREN
1893-1906
(a)EDIÇÕES ALEMÃS:
1906 S.K.S.N., 1, iii. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
1925 G.S., 1, 241-2.
1952 G.W., 1,
557-8.
Esta tradução do
prefácio por James Strachey parece ser a primeira em inglês.
O
livro que leva esse prefácio foi o primeiro dos cinco volumes-coletâneas de
artigos breves de Freud, tendo os demais aparecido em 1909, 1913, 1918 e 1922.
O presente volume da Standard Edition inclui a maior parte do conteúdo
dessa primeira coletânea. Entretanto, o primeiro dos artigos em francês, que
compara a paralisia orgânica com a histérica (1893c), foi incluído no Volume I
da Standard Edition, como pertencendo quase inteiramente à fase
pré-psicanalítica. Do mesmo modo, seus três últimos itens (dois artigos que
figuram nos volumes de Loewenfeld, 1904a e 1906a, e o artigo “Sobre a
Psicoterapia”, 1905a), que têm data posterior aos demais, serão encontrados no
Volume VII da Standard Edition. Além do mais, a “Comunicação Preliminar”
(1893a), reimpressa em Estudos sobre a Histeria (1895d), está incluída
no Volume II da Standard Edition, não se repetindo aqui. No entanto, seu
lugar é tomado por uma conferência (1893h) recentemente descoberta,
contemporânea da “Comunicação Preliminar” e cobrindo o mesmo campo, da qual há
uma transcrição estenografada corrigida por Freud. Este volume contém ainda
dois artigos que Freud omitira de sua coletânea: a discussão sobre o
esquecimento (1898b), depois desenvolvida no primeiro capítulo de Sobre a
Psicopatologia da Vida Cotidiana, e o artigo sobre as “Lembranças
Encobridoras” (1899a). Inclui também a lista das sinopses dos primeiros
trabalhos de Freud (1897b), elaboradas por ele mesmo com vistas a sua pretensão
ao cargo de Professor.
Em
razão da precedência dada por Freud, entre esses artigos, a seu obituário de
Charcot, parece adequado introduzir o presente volume da Standard Edition
com uma reprodução da fotografia autografada com que Charcot o presenteou
quando ele deixou Paris em fevereiro de 1886.
PREFÁCIO
DE FREUD À COLETÂNEA DOS ESCRITOS BREVES SOBRE A TEORIA DAS NEUROSES DE 1893 A
1906
Atendendo
a muitas solicitações que me têm chegado, decidi apresentar a meus colegas, em
forma de coletânea, os pequenos trabalhos sobre as neuroses que venho
publicando desde 1893. Consistem em quatorze artigos curtos, que em sua maior
parte têm o caráter de comunicações preliminares, publicados em boletins
científicos ou em periódicos médicos - três deles em francês. Os dois últimos
(XIII e XIV), que apresentam em termos sucintos minha atual posição quanto à
etiologia e ao tratamento das neuroses, foram extraídos dos conhecidos volumes
de Loewenfeld, Die psychischen Zwangserscheinungen |Sintomas Psíquicos
Obsessivos|, 1904, e da 4ª edição de Sexualleben und Nervenleiden |Vida
Sexual e Doença Nervosa|, 1906, e foram escritos por mim a pedido de seu autor,
que é meu amigo. |Ver em. [1].|
Esta
coletânea serve como introdução e suplemento a minhas publicações de maior
envergadura versando sobre os mesmos tópicos - Estudos sobre a Histeria
(com o Dr. J. Breuer), 1895; A Interpretação dos Sonhos, 1900; Sobre
a Psicopatologia da Vida Cotidiana, 1901 e 1904; O Chiste e sua Relação
com o Inconsciente, 1905; Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade,
1905; e Fragmento da Análise de um Caso de Histeria, 1905. O fato de ter
posto meu Obituário de J.-M. Charcot à frente desta coletânea de artigos de
minha autoria deve ser considerado não apenas como o resgate de uma dívida de
gratidão, mas também como um marco do ponto em que meu próprio trabalho se
separa do trabalho do mestre.
Nenhuma
pessoa familiarizada com o processo de desenvolvimento do saber humano ficará
surpresa ao constatar que, neste ínterim, ultrapassei algumas das opiniões aqui
expressas, ao mesmo tempo que venho modificando outras. Não obstante, consegui
manter inalterada a maior parte delas e, de fato, não senti necessidade de
eliminar coisa alguma como totalmente errônea ou completamente desprezível.
CHARCOT (1893)
NOTA
DO EDITOR INGLÊS
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1893 Wien.
med. Wschr., 43 (37), 1513-20. (9 de setembro).
1906 S.K.S.N.,
1, 1-13. (1911, 2ª ed.;
1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
1925 G.S.,
1, 243-57.
1952 G.W., 1,
21-35.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
“Charcot”
1924 C.P., 1,
9-23. (Trad. de J.
Bernays.)
Incluído (Nº XXII) na
coleção de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud elaborada por ele mesmo
(1897b). A presente tradução é baseada na de 1924.
De
outubro de 1885 a fevereiro de 1886, Freud trabalhou na Salpêtrière, em Paris,
sob a direção de Charcot. Esse foi o ponto crucial de sua carreira, pois foi
durante esse período que seu interesse transferiu-se da neuropatologia para a
psicopatologia - da ciência física para a psicologia. Ainda que outros fatores
mais profundos possam ter interferido na mudança, o determinante imediato foi,
sem sombra de dúvida, a personalidade de Charcot. Como escreveu ele a sua
futura esposa, logo após ter chegado a Paris (em 24 de novembro de 1885). “Acho
que estou mudando muito. Vou dizer-lhe detalhadamente o que me está afetando.
Charcot, que é um dos maiores médicos e um homem cujo senso comum tem um toque
de gênio, está simplesmente desarraigando minhas metas e opiniões. Por vezes,
saio de suas aulas como se estivesse saindo da Notre Dame, com uma nova idéia
de perfeição. Mas ele me exaure; quando me afasto, não sinto mais nenhuma
vontade de trabalhar em minhas próprias bobagens; há três dias inteiros não
faço qualquer trabalho, e não tenho nenhum sentimento de culpa. Meu cérebro
está saciado, como se eu tivesse passado uma noite no teatro. Se a semente
frutificará algum dia, não sei; o que sei é que ninguém jamais me afetou dessa
maneira...”
Este
obituário, escrito poucos dias após a morte de Charcot, é uma evidência
adicional da enorme admiração de Freud por ele, admiração que não perdeu até o
fim de sua vida. Os ditos de Charcot afloram constantemente nos textos de Freud
e, em todos os relatos de seu próprio desenvolvimento, nunca foi esquecido o
papel desempenhado por Charcot.
Embora
este seja o mais longo estudo de Freud sobre ele, dois ou três outros trabalhos
podem complementá-lo: o relatório oficial de Freud às autoridades da
Universidade de Viena sobre o curso de seus estudos em Paris (1956a |1886|),
fonte de parte do material de tal obituário; a “História do Movimento
Psicanalítico” (1914d), Standard Edition, Vol. XIV, (ver em [1]), o Estudo
Autobiográfico (1925d), ibid., Vol. XX ( 12-4), e também o primeiro volume
da biografia de Ernest Jones (1953, 202-5).
CHARCOT
A 16
de agosto deste ano, J,-M. Charcot morreu subitamente, sem dor ou doença, após
uma vida de felicidade e fama. Nele, prematuramente, a jovem ciência
neurológica perdeu seu maior líder, os neurologistas de todos os países
perderam seu grande mestre e a França perdeu um de seus mais destacados
cidadãos. Tinha apenas sessenta e oito anos; sua força física e seu vigor
mental, ao lado das esperanças que ele expressava tão abertamente, pareciam
prometer-lhe a longevidade de que desfrutaram não poucos dos intelectuais deste
século. Os nove volumes imponentes de suas Oeuvres complètes, em que
seus discípulos reuniram suas contribuições à medicina e à neuropatologia, suas
Leçons du mardi, os relatórios anuais de sua clínica no Salpêtrière, e
outros trabalhos mais - todas essas publicações permanecerão preciosas para a
ciência e para seus alunos; mas não podem substituir o homem, que tinha ainda
muito mais a dar e a ensinar, e de cuja pessoa e cujos textos ninguém jamais se
aproximou sem que aprendesse alguma coisa.
Seu
grande sucesso trazia-lhe um honesto e humaníssimo prazer, e ele gostava de
conversar sobre o começo de sua trajetória e sobre o caminho já percorrido. Sua
curiosidade científica, dizia, cedo fora despertada, quando ele era ainda um
jovem interne, pelo abundante material apresentado pelos fatos da
neuropatologia, material sequer compreendido àquele tempo. Nessa época, sempre
que fazia a ronda com o médico-assistente num dos departamentos do Salpêtrière
(instituição hospitalar encarregada de mulheres), em meio a toda a profusão de
paralisias, espasmos e convulsões para os quais, há quarenta anos, não havia
nome nem compreensão, ele dizia: “Faudrait y retourner et y rester”; e
manteve sua palavra. Quando se tornou médecin des hôpitaux,
imediatamente providenciou seu ingresso num dos departamentos de pacientes
nervosos do Salpêtrière. Tendo-o conseguido, lá permaneceu, ao invés de fazer o
que se permitia aos médicos franceses - transferir-se, em sucessão regular, de
um departamento para outro e de hospital para hospital, mudando ao mesmo tempo
de especialidade.
Assim,
sua primeira impressão e a resolução daí resultante foram decisivas para a
totalidade de seu desenvolvimento ulterior. Dispor de um grande número de
pacientes nervosos crônicos permitiu-lhe utilizar seus próprios dotes
especiais. Não era Charcot um homem dado a reflexões excessivas, um pensador:
tinha, antes, a natureza de um artista - era, como ele mesmo dizia, um “visuel”,
um homem que vê. Eis o que nos falou sobre seu método de trabalho. Costumava
olhar repetidamente as coisas que não compreendia, para aprofundar sua
impressão delas dia-a-dia, até que subitamente a compreensão raiava nele. Em
sua visão mental, o aparente caos apresentado pela repetição contínua dos
mesmos sintomas cedia então lugar à ordem: os novos quadros nosológicos
emergiam, caracterizados pela combinação constante de certos grupos de
sintomas. Os casos extremos e completos, os “tipos”, podiam ser destacados com
a ajuda de uma espécie de planejamento esquemático e, tomando esses tipos como
ponto de partida, a mente podia viajar pela longa série de casos mal definidos
- as “formes frustes” - que, bifurcando-se a partir de um ou outro traço
característico do tipo, desvaneciam-se na indistinção. Ele chamava essa espécie
de trabalho intelectual, no qual ninguém o igualava, de “nosografia prática”, e
se orgulhava dele. Podia-se ouvi-lo dizer que a maior satisfação humana era ver
alguma coisa nova - isto é, reconhecê-la como nova; e insistia repetidamente na
dificuldade e na importância dessa espécie de “visão”. Costumava indagar por
que, na medicina, as pessoas enxergavam apenas o que tinham aprendido a ver.
Falava em como era maravilhoso que alguém pudesse subitamente ver coisas novas
- novos estados de doença - provavelmente tão velhas quanto a raça humana, e em
como tinha que confessar a si mesmo que via agora nas enfermarias hospitalares
inúmeras coisas que lhe haviam passado despercebidas durante trinta anos. Não é
preciso falar a nenhum médico a respeito da riqueza de formas que a
neuropatologia adquiriu através dele, nem do aumento de precisão e segurança de
diagnóstico que suas observações tornaram possível. Mas um aluno que passasse
com ele muitas horas, acompanhando-o nas inspeções das enfermarias do
Salpêtrière - aquele museu de fatos clínicos cujos nomes e características
peculiares, em sua maior parte, provieram dele -, haveria de se lembrar de
Cuvier, cuja estátua, erguendo-se em frente do Jardin des Plantes, exibe esse
grande entendedor e descritor do mundo animal cercado por uma multidão de
figuras animais; ou então se lembraria do mito de Adão, que, diante das
criaturas do Paraíso que Deus lhe trouxera para serem distinguidas e nomeadas,
deve ter experimentado no mais alto grau o prazer intelectual que Charcot tanto
louvava, que Deus lhe trouxera para serem distinguidas e nomeadas, deve ter
experimentado no mais alto grau o prazer intelectual que Charcot tanto louvava.
De
fato, Charcot era infatigável na defesa dos direitos do trabalho puramente
clínico, que consiste em observar e ordenar as coisas, contrariando as
usurpações da medicina teórica. Em certa ocasião, éramos um pequeno grupo de
estudantes estrangeiros que, educados na tradição da fisiologia acadêmica
alemã, esgotávamos sua paciência com nossas dúvidas quanto às suas inovações
clínicas. “Mas isso não pode ser verdade”, objetou um de nós, “pois contradiz a
teoria de Young-Helmholtz”. Ele não retrucou com um “tanto pior para a teoria;
primeiro os fatos clínicos”, ou qualquer outra expressão no mesmo sentido;
disse-nos, entretanto, uma coisa que nos causou enorme impressão: “La
théorie, c’est bon, mas ça n’empêche pas d’exister.”
Por
muitos anos Charcot ocupou a Cátedra de Anatomia Patológica em Paris, tendo
prosseguido, voluntariamente e como ocupação secundária, em seus estudos e
cursos de neuropatologia, que rapidamente o tornaram famoso tanto no exterior
quanto na França. Foi um acaso fortuito para a neuropatologia que o mesmo homem
pudesse encarregar-se do desempenho de duas funções: por um lado, criou a
descrição nosológica através da observação clínica e, por outro, demonstrou que
as mesmas mudanças anatômicas subjaziam à doença, quer esta aparecesse como
típica, quer como forme fruste. O êxito desse método anátomo-clínico de
Charcot é amplamente reconhecido no campo das doenças nervosas orgânicas -
tabe, esclerose múltipla, esclerose amiotrófica lateral etc. Freqüentemente
foram necessários anos de espera paciente antes que se pudesse comprovar a
presença da mutação orgânica nessas moléstias crônicas que não são diretamente
fatais, e somente num hospital para casos incuráveis, como era o Salpêtrière,
seria possível manter os pacientes em observação por períodos tão longos de
tempo. Charcot fez a primeira demonstração desse gênero antes de se encarregar
de um departamento. Quando era ainda estudante, aconteceu-lhe contratar uma
criada que sofria de um tremor singular e não conseguia arranjar colocação
devido à sua falta de jeito. Charcot reconheceu em seu estado uma paralysie
choréiforme, enfermidade que já fora descrita por Duchenne, mas cujo
fundamento era desconhecido. Charcot conservou essa curiosa criada, embora ela
lhe custasse, no correr dos anos, uma pequena fortuna em pratos e travessas.
Quando ela finalmente faleceu, ele estava em condições de demonstrar, a partir
desse caso, que a paralysie choréiforme era a expressão clínica da
esclerose cérebro-espinhal múltipla.
A
anatomia patológica deve servir à neuropatologia de duas maneiras. Além de
demonstrar a presença de uma alteração mórbida, deve estabelecer a localização
dessa mudança; e todos sabemos que, nas duas últimas décadas, a segunda dessas
tarefas foi a que despertou maior interesse, sendo a mais ativamente
empreendida. Charcot desempenhou também nessa empresa um papel extremamente
destacado, embora as descobertas pioneiras não tenham sido feitas por ele. De
início ele seguiu a trilha de nosso compatriota Türck, que se diz ter vivido e
pesquisado em relativo isolamento entre nós. Quando emergiram as duas grandes
inovações - as experiências de estimulação de Hitzig-Fritsch e as descobertas
de Flechsig sobre o desenvolvimento da medula espinhal - que anunciaram uma
nova época no nosso conhecimento da “localização das doenças nervosas”, as
aulas de Charcot sobre esse assunto desempenharam o maior e mais importante
papel na aproximação entre as novas teorias e o trabalho clínico, tornando-as
frutíferas para este. No que concerne especialmente à relação do aparelho
somático muscular com a área motora do cérebro humano, posso lembrar ao leitor
o longo período de tempo durante o qual estiveram em questão a natureza mais
exata dessa relação, assim como sua topografia. (Haveria uma representação
comum de ambas as extremidades nas mesmas áreas? Ou haveria uma representação
da extremidade superior na circunvolução central anterior e da extremidade
inferior na posterior - isto é, uma disposição vertical?) Afinal, as contínuas
observações clínicas e as experiências com estimulação e extirpação em
pacientes vivos, durante operações cirúrgicas, decidiram a questão em favor da
concepção de Charcot e Pitres, segundo a qual o terço médio das circunvoluções
centrais serve principalmente à representação do braço, enquanto o terço
superior e a porção medial servem à da perna - ou seja, a disposição da área
motora é horizontal.
Uma
enumeração das contribuições isoladas de Charcot não nos capacitaria a
demonstrar sua importância para a neuropatologia, pois durante as duas últimas
décadas não houve tema, qualquer que fosse sua importância, em cuja formulação
e discussão a escola do Salpêtrière não tivesse uma significativa participação;
e a “escola do Salpêtrière” era, naturalmente, o próprio Charcot, que, com a
riqueza de sua experiência, a transparente clareza de suas exposições e a
plasticidade de suas descrições, era facilmente reconhecível em todas as
publicações da escola. Do círculo de jovens que ele assim reuniu a seu redor e
transformou em participantes de suas pesquisas, alguns acabaram adquirindo uma
consciência da própria individualidade e conseguiram uma reputação brilhante.
Vez por outra, acontecia mesmo a um deles apresentar ao mestre uma asserção que
parecia a este mais engenhosa que correta; ele então retorquia com grande
sarcasmo em suas conversas e preleções, mas sem causar nenhum prejuízo à
relação afetuosa que mantinha com o aluno. De fato, Charcot deixa atrás de si
uma legião de discípulos cuja qualidade intelectual e cujas realizações
constituem, até agora, uma garantia de que o estudo e a prática da
neuropatologia em Paris tão cedo não descerão do alto nível a que Charcot os
conduziu.
Em
Viena, temos tido freqüentes oportunidades de reconhecer que o valor
intelectual de um professor não se combina necessariamente com a influência
pessoal direta que ele possa exercer sobre os mais jovens, levando à criação de
uma grande e importante escola. Se Charcot foi muito mais afortunado a este
respeito, devemos atribuir isso às qualidades pessoais do homem - à magia que
emanava de sua aparência e de sua voz, à cordial franqueza que caracterizava
seu trato social, tão logo suas relações com alguém transpunham a etapa de
constrangimento inicial, à boa vontade com que punha tudo à disposição de seus
discípulos e à sua perene lealdade para com eles. As horas que passava em suas
enfermarias eram horas de companheirismo e de troca de idéias com a totalidade
de sua equipe médica. Lá, nunca se isolava dela. O mais jovem dos médicos
recém-graduados, percorrendo as enfermarias, tinha oportunidade de observá-lo
em seu trabalho e podia interrompê-lo; e a mesma liberdade era desfrutada pelos
estudantes estrangeiros, que, nos últimos anos, nunca estavam ausentes de suas
rondas hospitalares. E, por fim, nas noites em que Madame Charcot, auxiliada
por uma filha altamente dotada e cada vez mais parecida com o pai, recebia uma
seleta sociedade, os convidados encontravam os discípulos e assistentes médicos,
sempre presentes, como parte da família.
Em
1882 ou 1883, as circunstâncias da vida e do trabalho de Charcot assumiram sua
forma final. As pessoas haviam-se apercebido de que as atividades desse homem
faziam parte do patrimônio da “gloire” nacional, que, após a lastimável
guerra de 1870-1, era ainda mais zelosamente guardado. O governo, à frente do
qual se achava Gambetta, um velho amigo de Charcot, criou para ele uma Cátedra
de Neuropatologia na Faculdade de Medicina (para que ele pudesse abandonar a Cátedra
de Anatomia Patológica) e também uma clínica, com departamentos científicos
auxiliares, no Salpêtrière. “Le service de M. Charcot” agora incluía,
além das antigas enfermarias para enfermas crônicas, vários consultórios
clínicos onde também eram recebidos pacientes masculinos, um amplo ambulatório
para pacientes externos - a “consultation externe” -, um laboratório
histológico, um museu, um departamento eletroterapêutico, um departamento de
olhos e ouvidos e um estúdio fotográfico especial. Todas essas coisas eram
múltiplas maneiras de manter os antigos discípulos e assistentes
permanentemente ligados à clínica, em postos seguros. Os edifícios de dois
andares, com sua aparência desgastada pelo tempo e seus pátios internos,
lembravam vivamente ao estrangeiro nosso Allgemeines Krankenhaus, mas
sem dúvida a semelhança não ia além disso. “Aqui pode não ser bonito”, dizia
Charcot ao mostrar seus domínios a um visitante, “mas há espaço para fazer tudo
o que se quiser.”
Charcot
estava bem no auge de sua vida quando essas inúmeras facilidades para o ensino
e a pesquisa foram postas à sua disposição. Era um trabalhador infatigável e,
creio eu, sempre o mais ocupado de todo o instituto. Suas consultas
particulares, às quais ocorriam pacientes “de Samarcândia e das Antilhas”, não
conseguiam afastá-lo de suas atividades de ensino ou de suas pesquisas. Sem
dúvida, essa multidão não o procurava exclusivamente por ele ser um descobridor
famoso, mas também por ser um grande médico e filantropo, que sempre achava a
solução dos problemas e era capaz de dar bons palpites nos casos em que o
estado atual da ciência não lhe permitia saber. Freqüentemente o
censuraram por seu método terapêutico, que, com sua multiplicidade de receitas,
não podia deixar de ofender as consciências racionalistas. Mas ele estava
apenas dando continuidade aos procedimentos correntes naquela época e lugar,
sem se iludir muito quanto a sua eficácia. Contudo, não era pessimista em suas
expectativas terapêuticas, e repetidamente se mostrava pronto a experimentar
novos métodos de tratamento em sua clínica: os êxitos pouco duradouros destes
teriam explicação em outro lugar.
Como
professor, Charcot era positivamente fascinante. Cada uma de suas aulas era uma
pequena obra de arte em construção e composição; era perfeita na forma e tão
marcante que, pelo resto do dia, não conseguíamos expulsar de nossos ouvidos o
som de suas palavras nem de nossas mentes a idéia que ele demonstrara. Raras
vezes fazia demonstrações com pacientes isolados; antes, expunha uma série de
casos similares ou contrastantes e comparava-os entre si. Na sala em que dava
suas aulas havia um quadro do “cidadão” Pinel removendo as correntes dos pobres
loucos do Salpêtrière. O Salpêtrière, que testemunhara tantos horrores durante
a Revolução, foi também cenário da mais humana de todas as revoluções. Nessas
aulas, o próprio Mestre Charcot causava uma curiosa impressão. Ele, que noutras
ocasiões borbulhava de vivacidade e bom humor, e que tinha sempre uma
brincadeira nos lábios, parecia então sério e solene com seu pequeno barrete de
veludo verde; de fato, chegava mesmo a parecer mais velho. Sua voz soava
abrandada. Quase conseguíamos compreender por que os estranhos
mal-intencionados criticavam toda a exposição como sendo teatral. Os que assim
falavam estavam sem dúvida acostumados à natureza amorfa das conferências
clínicas alemãs, ou então se esqueciam de que Charcot dava apenas uma
aula por semana e, portanto, podia prepará-la cuidadosamente.
Nessa
exposição formal, em que tudo estava preparado e todas as coisas tinham que ter
seu lugar, Charcot indubitavelmente seguia uma tradição profundamente
enraizada; mas sentia também necessidade de apresentar a sua audiência um
quadro menos esmerado de suas atividades. Esse propósito era cumprido por sua clínica
de pacientes externos, da qual se encarregava pessoalmente nas chamadas “leçons
du mardi”. Ali levantara casos que lhe eram completamente desconhecidos;
expunha-se a todas as casualidades de um exame, a todos os erros de uma
primeira investigação; ocasionalmente, punha de lado sua autoridade e admitia,
num caso, que não conseguia chegar a qualquer diagnóstico, e noutro, que fora
enganado pelas aparências; e nunca parecia maior à sua audiência do que nos
momentos em que, fornecendo o mais detalhado relato de seus processos de
pensamento e mostrando a máxima franqueza sobre suas dúvidas e hesitações,
procurava estreitar dessa forma a distância entre professor e aluno. A
publicação dessas aulas improvisadas, dadas nos anos de 1887 e 1888, primeiro
em francês e agora também em alemão, ampliou também imensuravelmente o círculo
de seus admiradores; nunca antes um trabalho de neuropatologia alcançou tanto
sucesso quanto esse junto ao público médico.
Mais
ou menos na época em que a clínica foi fundada e em que ele abandonou a cátedra
de Anatomia Patológica, houve uma mudança no sentido das investigações
científicas de Charcot, fato ao qual devemos o melhor de seu trabalho. Ele
declarou que a teoria das doenças nervosas orgânicas estava então bastante
completa e começou a voltar sua atenção quase exclusivamente para a histeria,
que assim se tornou de imediato o foco do interesse geral. Esta, a mais
enigmática de todas as doenças nervosas, para cuja avaliação a medicina ainda
não achara nenhum ângulo de enfoque aproveitável, acabara então de cair no mais
completo descrédito, e esse descrédito se estendia não só aos pacientes, mas
também aos médicos que se interessassem pela neurose. Sustentava-se que na
histeria qualquer coisa era possível e não se dava crédito aos histéricos em
relação a nada. A primeira coisa feita pelo trabalho de Charcot foi a
restauração da dignidade desse tópico. Pouco a pouco, as pessoas abandonaram o
sorriso desdenhoso com que uma paciente podia ter certeza de ser recebida
naquele tempo. Ela não era mais necessariamente uma simuladora de doença, pois
Charcot jogara todo o peso de sua autoridade em favor da autenticidade e
objetividade dos fenômenos histéricos. Charcot repetira, em menor escala, o ato
de libertação em cuja memória o retrato de Pinel pendia da parede da sala de
conferências do Salpêtrière. Uma vez abandonado o temor cego de ser feito de
tolo por algum infortunado paciente - medo que até então bloqueara o caminho de
um estudo sério da neurose -, podia-se levantar a questão de qual método de
abordagem levaria mais rapidamente à solução do problema. Um observador sem
nenhum preconceito poderia chegar a esta conclusão: se encontro alguém num
estado tal que manifesta todos os sintomas de um afeto doloroso - chorando,
gritando e se enfurecendo -, parece provável a conclusão de que está ocorrendo
nele um processo mental cuja expressão apropriada são estes fenômenos físicos.
Uma pessoa saudável, se indagada, estaria em condições de dizer que impressão a
estava atormentando; o histérico, porém, responderia que não sabe. Logo
surgiria o problema de saber como é que um paciente histérico é dominado por um
afeto em relação a cuja causa afirma nada saber. Se nos ativermos a nossa
conclusão de que deve existir um processo psíquico correspondente, e se,
ainda assim, acreditarmos no paciente quando ele o nega; se reunirmos as
múltiplas indicações de que o paciente se comporta como se de fato soubesse
disso; e se penetrarmos na história da vida do paciente e descobrirmos
alguma ocasião, algum trauma, que pudesse evocar de maneira adequada exatamente
aquelas expressões de sentimento - então tudo apontará para uma solução: a
paciente se acha num estado de ânimo especial em que todas as suas impressões,
ou suas lembranças das mesmas, não mais se mantêm reunidas numa cadeia
associativa, um estado de ânimo em que é possível a uma lembrança expressar seu
afeto através de fenômenos somáticos, sem que o grupo dos outros processos
mentais, o eu, tome conhecimento disso ou possa interferir para evitá-lo. Se tivéssemos
evocado a conhecida diferença psicológica entre o sono e a vigília, a
estranheza de nossa hipótese talvez parecesse menor. Ninguém deve objetar que a
teoria de uma divisão (splitting) da consciência como solução para o
enigma da histeria seja demasiado remota para impressionar um observador
destreinado e imparcial, pois, na realidade, ao declarar a possessão demoníaca
como causa dos fenômenos histéricos, a Idade Média escolheu essa solução; seria
apenas uma questão de trocar a terminologia religiosa daquela era obscurantista
e supersticiosa pela linguagem científica de nossos dias.
Charcot,
entretanto, não seguiu esse caminho para uma explicação da histeria, embora se
valesse copiosamente dos relatos remanescentes de julgamentos de bruxas e de
casos de possessão, a fim de mostrar que as manifestações da neurose naquela
época eram idênticas às de hoje. Ele tratou a histeria como sendo apenas mais
um tópico da neuropatologia; forneceu uma descrição completa de seus fenômenos,
demonstrou que estes tinham suas próprias leis e regularidades, e mostrou como
reconhecer os sintomas que possibilitam a feitura de um diagnóstico de
histeria. As mais trabalhosas investigações, iniciadas por ele mesmo e por seus
discípulos, estenderam-se aos distúrbios histéricos da sensibilidade da pele e
dos tecidos mais profundos, ao comportamento dos órgãos dos sentidos e às
peculiaridades das contraturas e paralisias histéricas, dos distúrbios tróficos
e das alterações do metabolismo. Descreveram-se as muitas formas diferentes do
ataque histérico e delineou-se um plano esquemático, retratando a configuração
típica do grande ataque histérico |“grande hystérie”| como ocorrendo em
quatro estágios, o que permitiu rastrear os ataques “menores” comumente
observados |“petite hystérie”| até essa mesma configuração típica.
Estudaram-se também a localização e a freqüência da ocorrência das chamadas
“zonas histerogênicas”, e a relação destas com os ataques, e assim por diante.
Uma vez que se chegou a todas essas informações sobre as manifestações da
histeria, fez-se uma quantidade de descobertas surpreendentes. Descobriu-se que
a histeria nos homens, especialmente nos da classe trabalhadora, era muito mais
freqüente do que se esperava; demonstrou-se convincentemente que certos estados
atribuídos à intoxicação alcoólica ou ao envenenamento por chumbo eram de
natureza histérica; foi possível incluir na histeria um conjunto de afecções
até então não compreendidas nem classificadas; e nos casos em que a neurose se
juntara a outros distúrbios de modo a formar quadros complexos, foi possível
distinguir o papel desempenhado pela histeria. As investigações de maior
alcance foram aquelas votadas às doenças nervosas decorrentes de traumas graves
- as “neuroses traumáticas” -, a respeito das quais os pontos de vista ainda
são controvertidos e em relação às quais Charcot propusera com êxito os
argumentos a favor da histeria.
Depois
que as últimas extensões do conceito de histeria levaram com tanta freqüência a
uma rejeição do diagnóstico etiológico, tornou-se necessário esmiuçar a
etiologia da própria histeria. Charcot propôs uma fórmula simples para esta:
devia-se considerar a hereditariedade como causa única. Conseqüentemente, a
histeria seria uma forma de degeneração, um membro da “famille névropathique”.
Todos os outros fatores etiológicos desempenhariam o papel de causas
incidentais, de “agents provocateurs”.
Naturalmente,
a construção desse grande edifício não foi alcançada sem oposição violenta. Mas
foi a oposição estéril de uma velha geração que não queria ter suas convicções
mudadas. Os neuropatologistas mais jovens, inclusive os da Alemanha, aceitaram
os ensinamentos de Charcot em maior ou menor grau. O próprio Charcot estava
absolutamente certo de que suas teorias sobre a histeria triunfariam. Quando se
objetou que os quatro estágios da histeria, a histeria masculina etc., não eram
observáveis fora da França, ele indicou por quanto tempo essas coisas haviam
passado despercebidas para ele próprio, e disse uma vez mais que a histeria era
a mesma em todas as épocas e lugares. Era muito sensível à acusação de que a
França era uma nação muito mais neurótica que qualquer outra e de que a
histeria era uma espécie de mau hábito nacional; e ficou muito satisfeito
quando o artigo “Sobre um Caso de Epilepsia Reflexa”, que versava sobre o caso
de um granadeiro prussiano, permitiu-lhe fazer um diagnóstico mais abrangente
da histeria.
A
certa altura de seu trabalho, Charcot elevou-se a um nível mais alto até mesmo
do que o de seu tratamento usual da histeria. O passo que deu também lhe
assegurou para sempre a fama de ter sido o primeiro a explicar a histeria.
Enquanto estava empenhado no estudo das paralisias histéricas decorrentes de
traumas, teve a idéia de reproduzir artificialmente essas paralisias, que antes
diferenciara das orgânicas com todo cuidado. Para esse propósito, utilizou
pacientes histéricos que colocava em estado de sonambulismo, hipnotizando-os.
Teve êxito em provar, através de uma sólida cadeia de argumentos, que essas
paralisias eram o resultado de idéias que tinham dominado o cérebro do paciente
em momentos de disposição especial. Desse modo, o mecanismo de um fenômeno
histérico foi explicado pela primeira vez. Essa amostra incomparavelmente
arguta de investigação clínica foi depois retomada por seu discípulo, Pierre
Janet, assim como por Breuer e outros, que desenvolveram a partir dela uma
teoria da neurose que coincidia com a visão medieval - depois de eles terem
substituído o “demônio” da fantasia clerical por uma fórmula psicológica.
O
interesse de Charcot pelos fenômenos hipnóticos nos pacientes histéricos levou
a enormes avanços nessa importante área de fatos até então negligenciados e
desprezados, pois o peso de seu nome pôs fim de uma vez por todas a qualquer
dúvida sobre a realidade das manifestações hipnóticas. Mas a abordagem
exclusivamente nosográfica adotada na escola do Salpêtrière não foi suficiente
para um assunto puramente psicológico. A limitação do estudo da hipnose aos
pacientes histéricos, a diferenciação entre grande e pequeno hipnotismo, a
hipótese sobre os três estágios da “grande hipnose” e a caracterização desses
estágios por fenômenos somáticos - tudo isso declinou no conceito dos
contemporâneos de Charcot, quando Bernheim, discípulo de Liébeault, passou a
elaborar a teoria do hipnotismo a partir de fundamentos psicológicos mais
abrangentes e a fazer da sugestão o ponto central da hipnose. Os opositores do
hipnotismo, satisfeitos em poder ocultar sua falta de experiência pessoal por
trás de um apelo à autoridade, são os únicos que ainda se prendem às asserções
de Charcot e gostam de tirar proveito de uma declaração feita por ele em seus
últimos anos, na qual negava à hipnose qualquer valor como método terapêutico.
Além
disso, as teorias etiológicas sustentadas por Charcot em sua doutrina da “famille
névropathique”, base de todo o seu conceito dos distúrbios nervosos,
requererá brevemente, sem dúvida, um minucioso exame e algumas retificações. A
tal ponto Charcot superestimou a hereditariedade como agente causativo, que não
deixou espaço algum para a aquisição da doença nervosa. À sífilis conferiu
apenas um modesto lugar entre os “agents provocateurs”; tampouco fez uma
distinção suficientemente clara entre as afecções nervosas orgânicas e as
neuroses, tanto no que toca a sua etiologia como no que toca a outros aspectos.
É inevitável que o avanço da ciência, na medida em que aumenta nosso
conhecimento, deva ao mesmo tempo reduzir o valor de inúmeras coisas que
Charcot nos ensinou; mas nem os tempos mutáveis nem as concepções mutáveis
podem diminuir a reputação do homem que - na França e em toda parte - estamos
hoje pranteando.
VIENA,
agosto de 1893.
SOBRE O MECANISMO
PSÍQUICO DOS FENÔMENOS HISTÉRICOS: UMA CONFERÊNCIA (1893)
NOTA
DO EDITOR INGLÊS
ÜBER DEN PSYCHISCHEN MECHANISMUS
HYSTERISCHER
PHAENOMENE
(a) EDIÇÃO ALEMÃ:
1893 Wien.
med. Presse, 34 (4), 121-6 e (5), 165-7. (22 e 29 de janeiro).
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
“On the
Psychical Mechanism of Hysterical Phenomena”
1956 Int.
J. Psycho-Anal., 37 (1), 8-13. (Trad. de James Strachey.)
O
original alemão parece nunca ter sido reeditado. A presente tradução é uma
versão levemente corrigida da de 1956.
O
original alemão é encabeçado pelas palavras “Pelo Dr. Josef Breuer e Dr. Sigm. Freud de Viena”. Na verdade, porém, está é uma transcrição
estenografada de uma conferência proferida por Freud e por este revista. Embora
verse sobre o mesmo assunto (e freqüentemente em termos similares) da famosa
“Comunicação Preliminar” (1893a), que tem seu lugar próprio no Volume II da Standard
Edition no início dos Estudos sobre a Histeria (1895d), esta
conferência apresenta todos os indícios de ser um trabalho apenas de Freud.
A
“Comunicação Preliminar” de Breuer e Freud foi publicada num periódico de
Berlim, o Neurologisches Zentralblatt, em duas partes, a 1º e a 15 de
janeiro de 1893. (Imediatamente depois foi republicada em Viena no Wiener
medizinische Blaetter de 19 e 26 janeiro.) A conferência aqui publicada foi
profetizada por Freud numa reunião do Clube Médico de Viena em 11 de janeiro -
isto é, antes que a segunda parte da “Comunicação Preliminar” fosse publicada.
Talvez
o aspecto mais notável desta conferência seja a predominância do fator
traumático entre as causas presumíveis da histeria. Isso constitui,
naturalmente, uma prova da força da influência de Charcot sobre as idéias de
Freud. A mudança em direção ao reconhecimento do papel desempenhado pelas
“moções pulsionais” estava ainda no futuro.
SOBRE
O MECANISMO PSÍQUICO DOS FENÔMENOS HISTÉRICOS
Senhores:
Venho hoje a sua presença com o objetivo de informá-los sobre um trabalho cuja
primeira parte já foi publicada no Zentralblatt für Neurologie, assinada
por Josef Breuer e por mim. Como se pode depreender do título do trabalho, ele
versa sobre a patogênese dos sintomas histéricos e sugere que as razões
imediatas do desenvolvimento dos sintomas histéricos devem ser buscadas na
esfera da vida psíquica.
Antes
de passar ao conteúdo deste trabalho conjunto, entretanto, devo esclarecer a
posição que ele ocupa, bem como nomear o autor e a descoberta que, ao menos em
substância, tomamos como ponto de partida, embora nossa contribuição tenha-se
desenvolvido de modo bastante independente.
Como
os senhores sabem, todos os modernos avanços na compreensão e no conhecimento
da histeria derivam do trabalho de Charcot. Na primeira metade dos anos
oitenta, Charcot começou a voltar sua atenção para a “neurose maior”, que é
como os franceses chamam a histeria. Numa série de pesquisas, ele obteve êxito
em provar a presença de regularidades e leis onde as observações clínicas
insuficientes ou apáticas de outras pessoas viam apenas simulação de doença ou
uma intrigante falta de conformidade à regra. Pode-se afirmar, com segurança,
que tudo o que se tem aprendido de inédito sobre a histeria nos últimos anos
procede, direta ou indiretamente, de suas sugestões. Contudo, entre os
numerosos trabalhos de Charcot, nenhum a meu ver é mais valioso do que aquele
onde nos ensinou a compreender as paralisias traumáticas que aparecem na
histeria; e como este é precisamente o trabalho que o nosso vem continuar,
espero que os senhores me permitam apresentar-lhes esse assunto, uma vez mais,
com algum detalhe.
Consideraremos
o caso de uma pessoa sujeita a um trauma, sem antes ter estado doente e,
talvez, mesmo sem ter qualquer predisposição hereditária. O trauma deve
satisfazer a certas condições. Deve ser grave - isto é, ser de uma espécie que
envolva a idéia de perigo mortal, de uma ameaça à vida. Mas não deve ser grave
no sentido de pôr termo à atividade psíquica. De outra forma, não produziria o
resultado que esperamos dele. Assim, por exemplo, não deve envolver concussão
cerebral ou qualquer ferimento realmente sério. Além disso, o trauma deve ter
uma relação especial com alguma parte do corpo. Suponhamos que uma pesada tora
de madeira caia sobre o ombro de um trabalhador. O golpe o derruba, mas ele
logo verifica que nada ocorreu e vai para casa com uma ligeira contusão.
Passadas algumas semanas ou meses, ele acorda certa manhã e observa que o braço
submetido ao trauma pende flácido e paralisado, embora, no intervalo, que
poderíamos chamar de período de incubação, ele o tenha utilizado perfeitamente
bem. Se se tratar de um caso típico, é possível que sobrevenham ataques
peculiares - que, depois de uma aura, o sujeito desfaleça repentinamente, fique
muito agitado e se torne delirante: e, se falar em seu delírio, sua fala talvez
mostre que a cena do acidente está sendo repetida nele, acrescida talvez de
vários quadros imaginários. O que estará acontecendo aqui? Como se deve
explicar esse fenômeno?
Charcot
explica o processo reproduzindo-o, induzindo artificialmente o paciente à
paralisia. Para promover isso, ele precisa de um paciente que já se encontre
num estado histérico; requer ainda o estado de hipnose e o método da sugestão.
Ele hipnotiza profundamente um paciente desse tipo e então golpeia seu braço
levemente. O braço pende; fica paralisado e exibe precisamente os mesmos
sintomas que ocorrem na paralisia traumática espontânea. O golpe também pode
ser substituído por uma sugestão verbal direta: “Veja! Seu braço está
paralisado!” Também nesse caso a paralisia apresenta as mesmas características.
Tentemos
comparar os dois casos: de um lado, um trauma, de outro, uma sugestão
traumática. O resultado final, a paralisia, é exatamente o mesmo em ambos os
casos. Se o trauma num deles pode ser substituído, no outro, por uma sugestão
verbal, é plausível supor que uma idéia dessa natureza seja responsável pelo
desenvolvimento da paralisia também no caso de paralisia traumática espontânea.
E, de fato, muitos pacientes relatam que, no momento do trauma, tiveram
realmente a sensação de que seu braço estava esmagado. Se assim for, é
realmente possível considerar o trauma como equivalente completo da sugestão
verbal. Entretanto, para completar a analogia, requer-se um terceiro fator.
Para que a idéia “seu braço está paralisado” pudesse provocar uma paralisia no
paciente, seria necessário que ele estivesse em estado hipnótico. Mas o
trabalhador não se achava em estado hipnótico. Ainda assim, podemos presumir
que se encontrasse num estado de espírito especial durante o trauma; e Charcot
se inclina a equiparar esse afeto com o estado de hipnose artificialmente
induzido. Sendo assim, a paralisia traumática espontânea fica completamente explicada
e se torna paralela à paralisia produzida por sugestão; e a gênese do sintoma é
determinada de modo inequívoco pelas circunstâncias do trauma.
Além
disso, Charcot repetiu a mesma experiência a fim de explicar as contraturas e
dores que aparecem na histeria traumática; em minha opinião, dificilmente
haverá algum outro ponto em que sua compreensão da histeria tenha avançado mais
profundamente. Todavia, sua análise não vai adiante: não ficamos sabendo como
são gerados os outros sintomas e, acima de tudo, não aprendemos como os
sintomas histéricos aparecem na histeria comum, não-traumática.
Aproximadamente
na mesma época, senhores, em que Charcot assim lançava luz sobre as paralisias
histerotraumáticas, o Dr. Breuer, entre 1880 e 1882, empreendia o tratamento
médico de uma jovem senhora que - com uma etiologia não-traumática - fora
acometida de uma histeria aguda e complicada (acompanhada de paralisias,
contraturas, distúrbios da fala e da visão e toda sorte de peculiaridades
psíquicas) enquanto tratava de seu pai enfermo. Esse caso conservará um lugar
importante na história da histeria, já que foi o primeiro em que um médico teve
êxito em elucidar todos os sintomas do estado histérico, desvendando a origem
de cada sintoma e descobrindo, ao mesmo tempo, os meios de fazer cada sintoma
desaparecer. Podemos dizer que foi o primeiro caso de histeria a se tornar
inteligível. O Dr. Breuer guardou para si as conclusões derivadas desse caso
até certificar-se de que não se tratava de um caso isolado. Depois de retornar,
em 1886, de um curso com Charcot, comecei a fazer, com a constante cooperação
do Dr. Breuer, observações detalhadas sobre um número bastante grande de
pacientes histéricos, examinando-os a partir desse ponto de vista; descobri
então que o comportamento dessa primeira paciente fora de fato típico e que as
inferências justificadas por aquele caso podiam ser estendidas a um número
considerável de pacientes histéricos, se não a todos.
Nosso
material consistia em casos da histeria comum, isto é, não-traumática. Nosso
procedimento era a consideração de cada sintoma, em separado, e a indagação das
circunstâncias em que ele tinha aparecido pela primeira vez; esforçávamos-nos,
desse modo, por chegar a uma idéia clara da causa precipitante que talvez
tivesse determinado aquele sintoma. Mas não se deve supor que essa seja uma
tarefa simples. Para começar, quando interrogamos os pacientes dentro dessa
orientação, em geral não obtemos nenhuma resposta. Num pequeno grupo de casos,
os pacientes têm suas razões para não dizer o que sabem. Em um número maior de
casos, porém, os pacientes não têm qualquer noção do contexto de seus sintomas.
O método pelo qual se consegue alguma coisa é árduo. É assim: os pacientes
devem ser colocados em hipnose e então indagados sobre a origem de algum
sintoma particular - quando apareceu e o que lembram em conexão com ele.
Enquanto se acham nesse estado, a memória, que não lhes era acessível no estado
de vigília, retorna. Assim aprendemos, para dizê-lo em termos grosseiros, que
há uma experiência afetivamente marcante por trás da maioria dos fenômenos da
histeria, se não de todos; e mais, que essa experiência é de tal ordem que
torna imediatamente inteligível o sintoma com que se relaciona, mostrando uma
vez mais, por conseguinte, que o sintoma é inequivocamente determinado. Se os
senhores me permitem comparar essa experiência afetivamente marcante com a
grande experiência traumática subjacente à histeria traumática, posso desde já
formular a primeira tese a que chegamos: “Há uma analogia total entre a
paralisia traumática e a histeria comum, não-traumática”. A única diferença
é que, na primeira, há um grande trauma em ação, ao passo que, na segunda
raramente há um único evento principal a ser assinalado, operando antes
uma série de impressões afetivas - toda uma história de sofrimentos. Mas não é
nada forçado equiparar essa história, que aparece como o fator determinante nos
pacientes histéricos, ao acidente que ocorre na histeria traumática, pois hoje
não restam dúvidas de que, mesmo no caso do grande trauma mecânico da histeria
traumática, o que produz o resultado não é o fator mecânico, mas o afeto de
terror, o trauma psíquico. A primeira coisa que se deduz disso,
portanto, é que o padrão da histeria traumática, tal como exposto por Charcot nas
paralisias histéricas, aplica-se de maneira geral a todos os fenômenos
histéricos, ou pelo menos à sua grande maioria. Na totalidade dos casos, aquilo
com que temos de lidar é a atuação de traumas psíquicos, que determinam
inequivocamente a natureza dos sintomas emergentes.
Apresentarei
agora aos senhores alguns exemplos disso. Primeiro, vejamos um caso de
ocorrência de contraturas. Durante todo o período de sua doença, a paciente de
Breuer, que já mencionei, exibia uma contratura do braço direito. Durante a
hipnose, veio à tona o fato de que, algum tempo antes de adoecer, ela fora
submetida ao seguinte trauma: estava sentada, semi-adormecida, ao lado do leito
de seu pai enfermo; seu braço direito pendia sobre as costas da cadeira e ficou
dormente. Nesse momento, ela teve uma alucinação apavorante; tentou afastá-la
com um movimento do braço, mas foi incapaz de fazê-lo. Ela lhe deu um susto
violento, mas, de momento, o assunto terminou por ali. Só quando da irrupção da
histeria é que se instalou a contratura do braço. Em outra paciente, observei
que a fala era interrompida por um “estalido” peculiar da língua, semelhante ao
grito de um tetraz-das-serras. Eu já me familiarizara há meses com esse sintoma
e o encarava como um tique. Só quando me ocorreu perguntar-lhe sob hipnose
sobre a origem dele foi que descobri que o ruído aparecera primeiramente em
duas ocasiões. Em cada uma destas, ela tomara a firme decisão de se manter
absolutamente silenciosa. Isso lhe ocorreu, numa das vezes, ao cuidar de um de
seus filhos, que estava seriamente doente. (Tratar de pessoas doentes é um
fator que freqüentemente atua na etiologia da histeria.) A criança adormecera e
ela se havia determinado não fazer qualquer barulho que pudesse acordá-la. Mas
o medo de fazer barulho transformou-se efetivamente na produção de um ruído -
um exemplo de “contravontade histérica”; ela apertou os lábios e fez o estalido
com a língua. Muitos anos depois, o mesmo sintoma se manifestou uma segunda
vez, novamente numa ocasião em que ela decidira ficar absolutamente quieta, e
desde então havia persistido. Muitas vezes, uma única causa precipitante não
basta para fixar um sintoma; mas, quando esse mesmo sintoma aparece
reiteradamente, acompanhado por um afeto específico, torna-se fixado e crônico.
Um dos
sintomas mais comuns da histeria é a combinação de anorexia e vômito. Sei de um
grande número de casos em que a ocorrência desse sintoma é explicada de maneira
bastante simples. Assim, numa paciente o vômito persistiu depois de ela ter
lido uma carta humilhante pouco antes de uma refeição e ter ficado
violentamente nauseada com isso. Em outros casos, a repulsa pela comida pode
ser claramente relacionada ao fato de que; graças à instituição da “mesa
comum”, uma pessoa pode ser compelida a fazer uma refeição em companhia de
alguém que detesta. A repulsa é então transferida da pessoa para os alimentos.
A mulher com o tique, que mencionei há pouco, era particularmente interessante
a esse respeito. Comia excepcionalmente pouco e apenas sob pressão. Ela me informou,
sob hipnose, que uma série de traumas psíquicos havia acabado por produzir esse
sintoma de repulsa à comida. Quando era ainda criança, sua mãe, muito severa,
insistia para que ela comesse toda a carne que tivesse deixado no almoço duas
horas depois, quando a carne estava fria e a gordura, toda congelada. Ela o
fazia com enorme asco e guardou a lembrança disso; mais tarde, quando já não
estava sujeita a essa punição, sentia regularmente enjôo na hora das refeições.
Dez anos depois, costumava sentar-se à mesa com um parente tuberculoso que
escarrava constantemente, durante as refeições, numa escarradeira postada do
outro lado da mesa. Pouco tempo depois, foi obrigada a partilhar suas refeições
com um parente que ela sabia ser portador de uma doença contagiosa. Também a
paciente de Breuer comportou-se por algum tempo como se sofresse de hidrofobia.
Durante a hipnose, revelou-se que ela uma vez surpreendera um cachorro bebendo
água em um copo seu.
A
insônia ou o sono perturbado são também sintomas usualmente passíveis de uma
explicação extremamente precisa. Assim, por anos a fio uma mulher jamais
conseguia dormir antes da seis da manhã. Durante muito tempo, dormira num
quarto contíguo ao do marido doente, que costumava levantar-se às seis horas.
Depois desse horário, ela podia dormir tranqüilamente; e voltou a se comportar
da mesma maneira muito anos depois, durante uma doença histérica. Outro caso
foi o de um paciente histérico que vinha dormindo pessimamente nos últimos doze
anos. Sua insônia, porém, era de um tipo muito especial. No verão, dormia
esplendidamente, mas no inverno, muito mal; e em novembro dormia
particularmente mal. Não tinha a menor idéia do fator responsável por isso. A
investigação revelou que num mês de novembro, doze anos antes, ele passara
muitas noites em claro velando junto ao leito de seu filho, que estava acamado
com difteria.
A
paciente de Breuer, a quem me tenho referido com tanta freqüência, forneceu um
exemplo de distúrbio da fala. Por um longo período de sua doença, falava apenas
inglês e não conseguia falar nem entender o alemão. Esse sintoma remeteu a um
evento que ocorrera antes da irrupção da doença. Em certa ocasião, em estado de
grande angústia, ela tentara rezar mas não conseguira encontrar as palavras.
Finalmente, ocorreram-lhe algumas palavras de uma prece infantil em inglês. Ao
adoecer, posteriormente, o inglês tornou-se a única língua que dominava.
A
determinação do sintoma pelo trauma psíquico não é tão transparente em todos os
casos. Freqüentemente, só encontramos o que se pode descrever como uma relação
“simbólica” entre a causa determinante e o sintoma histérico. Isso se aplica
especialmente às dores. Uma paciente, por exemplo, sofria de dores penetrantes
entre as sobrancelhas. A razão era que uma vez, quando criança, sua avó lhe
dirigira um olhar inquisitório, “penetrante”. A mesma paciente sofreu por algum
tempo dores violentas no calcanhar direito, para as quais não havia explicação.
Essas dores, ficou-se sabendo, estavam ligadas a uma idéia que ocorrera à
paciente quando esta aparecera pela primeira vez em sociedade. Ficara dominada
pelo medo de não “acertar o passo” naquele meio. Tais simbolizações foram
empregadas por muitos pacientes num enorme conjunto das chamadas nevralgias e
dores. É como se houvesse a intenção de expressar o estado mental através de um
estado físico; e o uso lingüístico fornece uma ponte pela qual isso pode ser
efetuado. No caso, entretanto, daqueles que são afinal os sintomas típicos da
histeria - tais como hemianestesia, restrição do campo visual, convulsões
epileptiformes etc. - não se pode demonstrar um mecanismo psíquico dessa ordem.
Por outro lado, pode-se fazê-lo freqüentemente com respeito às zonas
histerógenas.
Esses
exemplos, que escolhi entre inúmeras observações, parecem provar que os
fenômenos da histeria comum podem ser seguramente considerados como seguindo o
mesmo modelo da histeria traumática, e que, portanto, toda histeria pode ser
encarada como histeria traumática, no sentido de que implica um trauma psíquico
e de que todo fenômeno histérico é determinado pela natureza do trauma.
A
questão adicional a que então se deveria responder refere-se à natureza da
conexão causal entre o fator determinante que tenhamos descoberto durante a
hipnose e o fenômeno que persiste posteriormente como sintoma crônico. Essa
conexão pode ser de vários tipos. Pode ser da espécie que descreveríamos como
fator “desencadeante”. Por exemplo, quando alguém com predisposição à
tuberculose recebe um golpe no joelho, em conseqüência do qual se desenvolve uma
inflamação tuberculosa na junta, o golpe é uma simples causa desencadeante. Mas
não é isso que ocorre na histeria. Há uma outra espécie de causação - a saber,
a causação direta. Podemos elucidá-la tendo por base o quadro de um
corpo estranho, que continua a atuar incessantemente como causa estimulante de
doença até nos livrarmos dele. Cessante causa cessat effectus. A
observação de Breuer mostra-nos que há uma conexão deste segundo tipo entre o
trauma psíquico e o fenômeno histérico, pois Breuer aprendeu com sua primeira
paciente que a tentativa de descobrir a causa determinante de um sintoma era,
ao mesmo tempo, uma manobra terapêutica. O momento em que o médico desvenda a
ocasião da primeira ocorrência do sintoma e a razão de seu aparecimento é
também o momento em que o sintoma se desfaz. Quando, por exemplo, o sintoma
apresentado pelo paciente consiste em dores, e quando lhe indagamos sob hipnose
sobre sua origem, ele evoca uma série de lembranças ligadas a elas. Se
conseguirmos suscitar nele uma lembrança realmente vívida e se ele vir as
coisas diante de si com toda a sua realidade original, observaremos que está
completamente dominado por algum afeto. E se então o compelirmos a exprimir
verbalmente esse afeto, verificaremos que, ao mesmo tempo em que ele manifesta
esse afeto violento, o fenômeno de suas dores desponta marcantemente uma vez
mais e, daí por diante, o sintoma, em seu caráter crônico, desaparece. Assim se
passaram os fatos em todos os exemplos que mencionei. Foi interessante notar
que a lembrança desse acontecimento específico era extraordinariamente mais
vívida que a lembrança de quaisquer outros, e que o afeto concomitante era tão
intenso, talvez, quanto o fora no momento da ocorrência efetiva do evento. Só
restava supor que o trauma psíquico de fato continua a atuar no sujeito e
sustenta o fenômeno histérico, sendo eliminado tão logo o paciente fala sobre
ele.
Como
acabei de dizer, quando, de acordo com nosso procedimento, se chega ao trauma
psíquico fazendo perguntas ao paciente sob hipnose, descobre-se que a lembrança
envolvida é excepcionalmente forte e preserva a totalidade de seu afeto. A
questão que agora se coloca é de que modo um evento ocorrido há tanto tempo -
talvez dez ou vinte anos - pode continuar exercendo poder sobre o sujeito, e
como foi que tais lembranças não foram submetidas ao processos de desgaste e
esquecimento.
Com o
objetivo de responder a essa questão, eu gostaria de começar por alguns
comentários sobre as condições que regem o desgaste dos conteúdos de nossa vida
representativa. Partiremos de uma tese que pode ser formulada nos seguintes
termos. Quando uma pessoa experimenta uma impressão psíquica, alguma coisa em
seu sistema nervoso, que chamaremos provisoriamente de soma de excitação,
aumenta. Ora, em todo indivíduo existe uma tendência a tornar a diminuir essa
soma de excitação, a fim de preservar a saúde. O aumento da soma de excitação
ocorre por vias sensoriais, e sua diminuição, por vias motoras. Assim, podemos
dizer que quando alguma coisa atinge alguém, esse alguém reage de maneira
motora. Podemos agora afirmar com segurança que depende dessa reação o quanto
restará de uma impressão psíquica inicial. Consideremos isso em relação a um
exemplo específico. Suponhamos que um homem seja insultado, esmurrado, ou qualquer
coisa desse gênero. Esse trauma psíquico está ligado a um aumento da soma de
excitação de seu sistema nervoso. Surge então instintivamente uma inclinação a
diminuir de imediato a excitação aumentada. Ele revida a ofensa, e então
sente-se melhor; talvez tenha reagido adequadamente - isto é, talvez se haja
livrado de tanto quanto foi introduzido nele. Ora, essa reação pode assumir
várias formas. Para os aumentos muito ligeiros da excitação, as alterações
corporais talvez sejam suficientes: chorar, insultar, esbravejar etc. Quanto
mais intenso o trauma, maior a reação suficiente. A reação mais adequada,
entretanto, é sempre uma tomada de atitude. Mas como observou espirituosamente
um escrito inglês, o primeiro homem a desfechar contra seu inimigo um insulto,
em vez de uma lança, foi o fundador da civilização. Portanto, as palavras são
substitutas das ações e, em alguns casos (por exemplo, na confissão) as únicas
substitutas. Dessa maneira, paralelamente à reação adequada, há aquela que é
menos adequada. Quando, porém, não há nenhuma reação a um trauma
psíquico, a lembrança dele preserva o afeto que lhe coube originalmente. Assim,
quando alguém que foi insultado não pode vingar o insulto com um golpe
retaliatório ou uma ofensa verbal, surge a possibilidade de que a lembrança
desse evento torne a evocar nele o afeto originalmente presente. Um insulto
revidado, mesmo que apenas com palavras, é recordado de maneira muito diversa
de outro que tenha sido forçosamente aceito; e o uso lingüístico descreve
caracteristicamente o insulto sofrido em silêncio como uma “mortificação” |“Kraenkung”,
literalmente, “adoecimento”|. Assim, quando por qualquer motivo não pode haver
reação a um trauma psíquico, ele retém seu afeto original, e quando a pessoa
não consegue livrar-se do acréscimo de estímulo através de sua “ab-reação”,
deparamos com a possibilidade de que o evento em questão permaneça como um
trauma psíquico. A propósito, um mecanismo psíquico sadio tem outros métodos de
lidar com o afeto de um trauma psíquico mesmo que lhe sejam negadas a reação
motora e a reação por palavras - a saber, elaborando-o associativamente e
produzindo idéias contrastantes. Mesmo que a pessoa insultada não retribua o
golpe, nem retruque com uma grosseira, ela pode ainda assim reduzir o afeto
ligado ao insulto pela evocação de idéias contrastantes, tais como a de seu
valor pessoal, da indignidade de seu inimigo, e assim por diante. Quer um homem
sadio lide com o insulto de um modo ou de outro, ele sempre consegue chegar ao
resultado de que o afeto originalmente intenso em sua memória acabe perdendo a
intensidade e finalmente, tendo perdido seu afeto, a lembrança caia vítima do
esquecimento e do processo de desgaste.
Ora,
descobrimos que não há nos pacientes histéricos nada além de impressões que não
perderam seu afeto e cuja lembrança permaneceu vívida. Daí decorre, portanto,
que essas lembranças dos pacientes histéricos, que se tornaram patogênicas,
ocupam uma posição excepcional com respeito ao processo de desgaste; e a
observação mostra que, no caso de todos os eventos que se tornaram
determinantes dos fenômenos histéricos, estamos lidando com traumas psíquicos
que não foram totalmente ab-reagidos, ou completamente tratados. Podemos, pois,
afirmar que os pacientes histéricos sofrem de traumas psíquicos
incompletamente ab-reagidos.
Constatamos
dois grupos de condições sob as quais as lembranças se tornaram patogênicas. No
primeiro, as lembranças a que se podem vincular os fenômenos histéricos têm
como conteúdo representações que envolveram um trauma tão grande que o sintoma
nervoso não teve forças para manipulá-lo de nenhuma forma, ou representações às
quais foi vedada a reação por motivos sociais (isso se aplica amiúde à vida
conjugal); ou, por fim, o sujeito pode simplesmente recusar-se a reagir, pode
não querer reagir ao trauma psíquico. Neste último caso, o conteúdo dos
delírios histéricos freqüentemente revela ser o próprio círculo de
representações que o paciente em seu estado normal rejeitou, inibiu e suprimiu
com todas as suas forças. (Por exemplo, ocorrem blasfêmias e representações
eróticas nos delírios histéricos de freiras.) No entanto, num segundo grupo de
casos, a razão da ausência de reação não está no teor do trauma psíquico, mas
em outras circunstâncias, pois é muito freqüente constatarmos que o conteúdo e
os fatores determinantes dos fenômenos histéricos são eventos em si mesmos
bastante triviais, mas que adquiriram alta significação pelo fato de terem
ocorrido em momentos especialmente importantes, quando a predisposição do paciente
havia aumentado patologicamente. Por exemplo, o afeto de pavor pode assomar no
curso de algum outro afeto intenso e por isso adquirir enorme importância. Os
estados dessa ordem são de curta duração e estão, por assim dizer, isolados do
resto da vida mental do sujeito. Enquanto se encontra num estado de
auto-hipnose como esse, ele não consegue livrar-se associativamente de uma
representação que lhe ocorra, tal como faria estando acordado. Depois de
considerável experiência com esses fenômenos, julgamos provável que em toda
histeria estejamos lidando com um rudimento do que é chamado “double
conscience” - consciência dupla - e que o fenômeno básico da histeria seja
uma tendência para tal dissociação e, com ela, para a emergência de estados da
consciência anormais, que propomos chamar de “hipnóides”.
Consideremos
agora a maneira como funciona nossa terapia. Ela se coaduna com um dos mais
ardentes desejos humanos - o desejo de poder refazer alguma coisa. Alguém
experimentou um trauma psíquico sem reação suficiente a ele. Nós o levamos a
experimentá-lo de novo, dessa vez sob hipnose, e o forçamos a completar sua
reação. Assim ele pode livrar-se do afeto ligado à representação que estava,
por assim dizer, “estrangulado”, e uma vez feito isso, põe-se termo à atuação
da representação. Desse modo, curamos não a histeria, mas alguns de seus
sintomas individuais, fazendo com que uma reação incompleta se conclua.
Os
senhores, portanto, não devem supor que se tenha tirado disso um enorme
proveito para a terapêutica da histeria. A histeria, como as neuroses, tem
causas mais profundas; e são essas causas mais profundas que estabelecem
limites, muitas vezes bem apreciáveis, ao sucesso de nosso tratamento.
AS NEUROPSICOSES DE
DEFESA
(1894)
DIE
ABWEHR-NEUROPSYCHOSEN
(a)EDIÇÕES ALEMÃS:
1894 Neurol.
Zbl., 13 (10), 362-4, e (11), 402-9. (15 de maio e 1º de junho).
1906 S.K.S.N., l, 45-59. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª
ed.)
1925 G.S., l,
290-305.
1952 G.W., l,
59-74.
(b)TRADUÇÕES
INGLESAS:
“The
Defense Neuro-Psychoses”
1909 S.P.H., 121-32. (Trad. de A. A. Brill.) (1912, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.)
“The
Defence Neuro-Psychoses”
1924 C.P.,
l, 59-75. (Trad. de
J. Rickman.)
Incluído
(Nº XXIX) na coletânea das sinopses dos primeiros trabalhos de Freud, elaborada
por ele mesmo (1897b). A presente tradução, com o título modificado, baseia-se
na de 1924
Quando
Freud terminou este artigo, em janeiro de 1894, passara-se um ano desde o
aparecimento de seu último trabalho psicopatológico - a “Comunicação
Preliminar”, escrita juntamente com Breuer. (As únicas exceções foram o artigo
sobre as paralisias histéricas, planejado e rascunhado anos antes, e o
obituário de Charcot). E mais um ano haveria de passar antes que quaisquer
outros fossem publicados. No entanto, os anos de 1893 e 1894 estiveram longe de
ser ociosos. Em 1893, Freud estava ainda produzindo intenso trabalho
neurológico, enquanto, em 1894, preparava sua contribuição aos Estudos sobre
a Histeria. Mas durante esses dois anos, como podemos constatar por suas
cartas a Fliess, ele estava profundamente engajado na investigação daquilo que
então afastara completamente a neurologia de seu foco de interesse - os
problemas das neuroses. Esses problemas enquadravam-se em dois grupos bastante
distintos, respectivamente relacionados com o que mais tarde se tornaria
conhecido (ver em. [1], adiante) como as “neuroses atuais” e as
“psiconeuroses”. Freud não se sentiu preparado para publicarcoisa alguma sobre
as primeiras - a neurastenia e os estados de angústia - até o início de 1895. Quanto
à histeria e às obsessões, porém, já estava apto a demarcar o campo, daí
resultando o presente artigo.
Aqui,
é claro, ele tinha ainda um profundo débito para com Charcot e Breuer;
entretanto, é possível detectar também um primeiro surgimento de muito do que
se iria transformar numa parte essencial de suas próprias concepções. Por
exemplo, embora a teoria da defesa tivesse sido mencionada muito brevemente na
“Comunicação Preliminar”, ela é aqui longamente discutida pela primeira vez. O
próprio termo “defesa” ocorre aqui pela primeira vez (ver em. [1]), o mesmo
ocorrendo com “conversão” (ver em. [1]) e “fuga para a psicose” (ver em. [1]).
A importância do papel desempenhado pela sexualidade começa a emergir (ver em.
[1]); alude-se à questão da natureza do “inconsciente” (ver em. [1]). Talvez o
mais importante seja, na segunda seção, o levantamento de toda a teoria
fundamental da catexia e sua possibilidade de deslocamento e, no penúltimo
parágrafo do artigo, a clara enunciação da hipótese em que se baseou o esquema
de Freud. Uma discussão mais completa desse primeiro surgimento das concepções
teóricas fundamentais de Freud aparece no Apêndice do Editor Inglês a este
artigo, ver. [1] e segs., adiante.
AS
NEUROPSICOSES DE DEFESA (TENTATIVA DE FORMULAÇÃO DE UMA TEORIA DA HISTERIA
ADQUIRIDA, DE MUITAS FOBIAS E OBSESSÕES E DE CERTAS PSICOSES ALUCINATÓRIAS)
Depois
de fazer um estudo detalhado de diversos pacientes nervosos que sofriam de
fobias e obsessões, cheguei a uma tentativa de explicação desses sintomas; e
isso me permitiu, posteriormente, chegar com êxito à origem desse tipo de
representações patológicas em casos novos e diferentes. Minha explicação,
portanto, me parece merecer publicação e um exame mais detido. Simultaneamente
a essa “teoria psicológica das fobias e obsessões", minha observação dos
pacientes resultou numa contribuição à teoria da histeria ou, antes, numa
modificação dela, que parece levar em conta uma importante característica comum
à histeria e às neuroses que acabo de mencionar. Além disso, tive a
oportunidade de discernir o que sem dúvida constitui uma forma de doença mental
e descobri, ao mesmo tempo, que o ponto de vista que eu adotara provisoriamente
estabelecia uma conexão inteligível entre essas psicoses e as duas neuroses em
questão. Ao final deste artigo, formularei uma hipótese de trabalho da qual me
vali em todos os três casos.
I
Comecemos
pela modificação que a teoria da neurose histérica me parece reclamar.
Desde
o esplêndido trabalho realizado por Pierre Janet, Josef Breuer e outros,
pode-se considerar geralmente aceito que a síndrome da histeria, tanto quanto é
inteligível até o momento, justifica a suposição de que haja uma divisão da
consciência, acompanhada da formação de grupos psíquicos separados. As opiniões, entretanto, estão menos
firmadasno que concerne à origem dessa divisão da consciência e ao papel
desempenhado por essa característica na estrutura da neurose histérica.
De
acordo com a teoria de Janet (1892-4 e 1893), a divisão da consciência é um
traço primário da alteração mental na histeria. Baseia-se numa deficiência
inata da capacidade de síntese psíquica, na estreiteza do “campo da consciência
(champ de la conscience)”, que, na forma de um estigma psíquico,
evidencia a degeneração dos indivíduos histéricos.
Contrapondo-se
à concepção de Janet, que me parece passível de uma multiplicidade de objeções,
existe a posição proposta por Breuer em nossa comunicação conjunta (Breuer e
Freud, 1893). Segundo ele, “a base e condição sine qua non da histeria”
é a ocorrência de estados de consciência peculiares, semelhantes ao sonho, com
uma capacidade de associação restrita, para os quais propôs o nome de “estados
hipnóides”. Nesse caso, a divisão da consciência é secundária e adquirida:
ocorre porque as representações que emergem nos estados hipnóides são excluídas
da comunicação associativa com o resto do conteúdo da consciência.
Estou
agora em condições de fornecer provas de duas outras formas extremas de
histeria, nas quais é impossível considerar a divisão da consciência como
primária, no sentido de Janet. Na primeira dessas |duas outras| formas, pude
repetidas vezes demonstrar que a divisão do conteúdo da consciência resulta
de um ato voluntário do paciente; ou seja, é promovida por um esforço de
vontade cujo motivo pode ser especificado. Com isso, é claro, não pretendo
dizer que o paciente tencione provocar uma divisão da sua consciência. A
intenção dele é outra, mas, em vez de alcançar seu objetivo, produz uma divisão
da consciência.
Na
terceira forma de histeria, que demonstramos através de uma análise psíquica,
de pacientes inteligentes, a divisão da consciência desempenha um papel
insignificante, ou talvez nulo. Trata-se dos casos em que aconteceu apenas uma
falta de reação aos estímulos traumáticos, e que podem, conseqüentemente, ser
resolvidos e curados por “ab-reação”. Estas são as “histerias de retenção”
puras.No que tange à conexão com as fobias e obsessões, tratarei apenas da
segunda forma da histeria. Por motivos que logo ficarão claros, vou chamar essa
forma de “histeria de defesa”, usando tal nome para distingui-la da
histeria hipnóide e da histeria de retenção. Posso também,
provisoriamente, apresentar meus casos de histeria de defesa “adquirida”, já
que neles não se tratava nem de uma grave tara hereditária nem de uma atrofia
degenerativa individual.
Esses
pacientes que analisei, portanto, gozaram de boa saúde mental até o momento em
que houve uma ocorrência de incompatibilidade em sua vida representativa
- isto é, até que seu eu se confrontou com uma experiência, uma representação
ou um sentimento que suscitaram um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu
esquecê-lo, pois não confiava em sua capacidade de resolver a contradição entre
a representação incompatível e seu eu por meio da atividade de pensamento.
Nas
mulheres, esse tipo de representações incompatíveis assoma principalmente no
campo da experiência e das sensações sexuais; e as pacientes conseguem recordar
com toda a precisão desejável seus esforços defensivos, sua intenção de
“expulsar aquilo para longe”, de não pensar no assunto, de suprimi-lo. Darei
alguns exemplos, facilmente multiplicáveis, extraídos de minha própria
observação: o caso de uma moça que se culpava porque, enquanto cuidava do pai
doente, pensara num rapaz que lhe causara uma leve impressão erótica; o caso de
uma governanta que se apaixonara pelo patrão e resolvera expulsar essa
inclinação de sua mente por parecer-lhe incompatível com seu orgulho; e assim
por diante.
Não
posso, naturalmente, afirmar que um esforço voluntário de eliminar da mente
coisas desse tipo seja um ato patológico, nem sei dizer se e de que modo o
esquecimento intencional é bem-sucedido nas pessoas que, sob as mesmas
influências psíquicas, permanecem saudáveis. Sei apenas que esse tipo de
“esquecimento” não funcionou nos pacientes que analisei, mas levou a várias
reações patológicas que produziram ou a histeria, ou uma obsessão, ou uma
psicose alucinatória. A capacidade de promover um desses estados - que estão
todos ligados a uma divisão da consciência - através de um esforço voluntário
desse tipo deve ser considerada como manifestação de uma disposição patológica,
embora esta não seja necessariamente idêntica à “degeneração” individual ou
hereditária.
Quanto
ao trajeto entre o esforço voluntário do paciente e o surgimento do sintoma
neurótico, formei uma opinião que pode ser expressa, em termos das abstrações
psicológicas correntes, mais ou menos da seguinte maneira. A tarefa que o eu se
impõe, em sua atitude defensiva, de tratar a representação incompatível como “non-arrivé”,
simplesmente não pode ser realizada por ele. Tanto o traço mnêmico como o afeto
ligado à representação lá estão de uma vez por todas e não podem ser
erradicados. Mas uma realização aproximada da tarefa se dá quando o eu
transforma essa representação poderosa numa representação fraca,
retirando-lhe o afeto - a soma de excitação - do qual está carregada. A
representação fraca não tem então praticamente nenhuma exigência a fazer ao
trabalho da associação. Mas a soma de excitação desvinculada dela tem que
ser utilizada de alguma outra forma.
Até
esse ponto, os processos observados na histeria, nas fobias e nas obsessões são
os mesmos; daí por diante, seus caminhos divergem. Na histeria, a representação
incompatível é tornada inócua pela transformação de sua soma de excitação em
alguma coisa somática. Para isso eu gostaria de propor o nome de conversão.
A
conversão pode ser total ou parcial. Ela opera ao longo da linha de inervação
motora ou sensorial relacionada - intimamente ou mais
frouxamente
- com a experiência traumática. Desse modo o ego consegue libertar-se da
contradição com a qual é confrontado; em contrapartida, porém, sobrecarrega-se
com um símbolo mnêmico que se aloja na consciência como uma espécie de
parasita, quer sob a forma de uma inervação motora insolúvel,quer como uma
sensação alucinatória constantemente recorrente, que persiste até que ocorra
uma conversão na direção oposta. Conseqüentemente, o traço mnêmico da idéia
recalcada não é, afinal, dissolvido; daí por diante, forma o núcleo de um
segundo grupo psíquico.
Acrescentarei
apenas mais algumas palavras a essa concepção dos processos psicofísicos na
histeria. Uma vez formado tal núcleo para uma expulsão (splitting-off)
histérica num “momento traumático”, ele passa a ser aumentado em outros
momentos (que poderiam ser chamados “momentos auxiliares”), sempre que a
chegada de uma nova impressão da mesma espécie consegue uma ruptura na barreira
erigida pela vontade, suprindo a representação enfraquecida de um afeto
renovado e restabelecendo provisoriamente o elo associativo entre os dois
grupos psíquicos, até que uma nova conversão estabeleça uma defesa. A
distribuição da excitação assim ensejada na histeria usualmente se revela uma
distribuição instável. A excitação, forçada a escoar-se por um canal impróprio
(pela inervação somática) vez por outra reencontra o caminho de volta para a
representação da qual se destacou, e compele então o sujeito a elaborar a
representação associativamente ou a livrar-se dela em ataques histéricos - como
vemos no conhecido contraste entre os ataques e os sintomas crônicos. A
operação do método catártico de Breuer consiste em promover deliberadamente a
recondução da excitação da esfera somática para a psíquica, e assim a resolução
da contradição, através da atividade de pensamento e da descarga da excitação
por meio da fala. Se a divisão da consciência que ocorre na histeria adquirida
se baseia num ato voluntário, temos então uma explicação surpreendentemente
simples para o notável fato de a hipnose ampliar regularmente a consciência
restrita do histérico e permitir acesso ao grupo psíquico que foi expelido (split
off). Na verdade, sabemos ser uma peculiaridade de todos os estados
similares ao sono que eles suspendam a distribuição da excitação em que se
baseia a “vontade” da personalidade consciente.
Assim,
vemos que o fator característico da histeria não é a divisão da consciência,
mas a capacidade de conversão, e podemos aduzir, como parte
importante da predisposição para a histeria - predisposição ainda desconhecida
em outros aspectos -, uma aptidão psicofísica para transpor enormes somas de
excitação para a inervação somática.
Essa
aptidão, por si só, não exclui a saúde psíquica, e só conduz à histeria quando
há uma incompatibilidade psíquica ou um acúmulo de excitação. Ao adotarmos essa
visão, Breuer e eu nos aproximamos das conhecidas definições da histeria feitas
por Oppenheim e Strümpell e divergimos da concepção de Janet, que atribui
demasiada importância à divisão da consciência em sua caracterização da
histeria. A apresentação aqui fornecida pode sustentar a pretensão de ter
tornado inteligível a conexão entre a conversão e a divisão histérica da
consciência.
II
Quando
alguém com predisposição à neurose carece da aptidão para a conversão, mas, ainda
assim, parece rechaçar uma representação incompatível, dispõe-se a separá-la de
seu afeto, esse afeto fica obrigado a permanecerna esfera psíquica. A
representação, agora enfraquecida, persiste ainda na consciência, separada de
qualquer associação. Mas seu afeto, tornado livre, liga-se a outras
representações que não são incompatíveis em si mesmas, e graças a essa “falsa
ligação”, tais representações se transformam em representações obsessivas.
Essa é, em poucas palavras, a teoria psicológica das obsessões e fobias,
mencionada no início deste artigo.
Indicarei
agora quais dos vários elementos explicitados nessa teoria podem ser
diretamente demonstrados e quais foram supridos por mim. O que se pode
demonstrar diretamente, além do produto final do processo - a obsessão -, é, em
primeiro lugar, a fonte do afeto agora colocado numa falsa ligação. Em todos os
casos que analisei, era a vida sexual do sujeito que havia despertado um
afeto aflitivo, precisamente da mesma natureza do ligado à sua obsessão. Teoricamente,
não é impossível que esse afeto possa às vezes emergir em outras áreas;
resta-me apenas relatar que, até o momento, não deparei com nenhuma outra
origem. Ademais, é fácil verificar que é precisamente a vida sexual que traz em
si as mais numerosas oportunidades para o surgimento de representações
incompatíveis.
Além
disso, as mais inequívocas declarações dos pacientes evidenciam o esforço de
vontade e a tentativa de defesa enfatizados pela teoria; e pelo menos num bom
número de casos os próprios pacientes informam-nos que sua fobia ou obsessão
apareceu pela primeira vez depois que um esforço de vontade aparentemente
atingiu seu objetivo com êxito. “Certa vez me aconteceu uma coisa muito
desagradável, e tentei com muito empenho afastá-la de mim e não pensar mais
nisso. Finalmente, consegui, mas aí me apareceu essa outra coisa, de que não
pude livrar-me desde então.” Foi com essas palavras que uma paciente confirmou
os pontos principais da teoria que aqui desenvolvi.
Nem
todos os que sofrem de obsessões têm uma idéia tão clara assim sobre sua
origem. Em geral, quando se chama a atenção do paciente, para a representação
primitiva, de natureza sexual, a resposta é: “Não pode provir daí. Nunca pensei
muito nisso. Por um momento fiquei assustado, mas logo desviei o pensamento e,
desde então, isso nunca mais me perturbou.” Nessa freqüente objeção temos a
prova de que a obsessão representa um substituto ou sucedâneo da representação
sexual incompatível, tendo tomado seu lugar na consciência.
Entre
o esforço voluntário do paciente, que consegue recalcar a representação sexual
inaceitável, e o surgimento da representação obsessiva, que, embora tendo pouca
intensidade em si mesma, está agora suprida |ver em. [1]| de um afeto
incompreensivelmente forte, subsiste o hiato que a teoria aqui desenvolvida
busca preencher. A separação da representação sexual de seu afeto e a ligação
deste com outra representação - adequada, mas não incompatível - são processos
que ocorrem fora da consciência. Pode-se apenas presumir sua existência, mas
não prová-la através de qualquer análise clínico-psicológica. |Cf. em [1].|
Talvez fosse mais correto dizer que tais processos não são absolutamente de
natureza psíquica, e sim processos físicos cujas conseqüências psíquicas se
apresentam como se de fato tivesse ocorrido o que se expressa pelos termos
“separação entre a representação e seu afeto” e “falsa ligação” deste último.
Junto
aos casos que mostram uma seqüência entre uma representação sexual incompatível
e uma representação obsessiva, encontramos vários outros em que as
representações obsessivas e as representações sexuais de caráter aflitivo
ocorrem simultaneamente.
Não
será muito satisfatório chamar estas últimas de “representações obsessivas
sexuais”, pois falta-lhes um traço essencial das representações obsessivas:
elas se mostram perfeitamente justificadas, ao passo que o caráter aflitivo das
representações obsessivas comuns é um problema tanto para o médico quanto para
o paciente. Até onde tenho podido explorar o terreno nos casos desse tipo, o
que ocorre é que uma defesa perpétua vai-se erigindo contra representações
sexuais que reemergem continuamente - ou seja, um trabalho que ainda não chegou
a sua conclusão.
Já
que os pacientes estão cônscios da origem sexual de suas obsessões,
freqüentemente as mantêm em segredo. Quando chegam a se queixar delas, costumam
expressar seu espanto por estarem sujeitos ao afeto em questão - por sentirem
angústia, ou terem certos impulsos, e assim por diante. Ao médico experiente,
pelo contrário, o afeto parece justificado e compreensível; o que ele acha
notável é apenas que um afeto desse tipo esteja ligado a uma representação que
não o merece. O afeto da obsessão, em outras palavras, parece-lhe estar desalojado
ou transposto, e se tiver aceito o que se disse nestas páginas, ele poderá,
em diversos casos de obsessões, retraduzi-las em termos sexuais.
Para
fornecer essa conexão secundária ao afeto liberado, pode-se utilizar qualquer
representação que, por sua natureza, possa unir-se a um afeto da qualidade
em questão, ou que tenha com a representação incompatível certas relações que a
façam parecer adequada como substituta dela. Assim, por exemplo, a angústia
liberada cuja origem sexual não deva ser lembrada pelo paciente irá apoderar-se
das fobias primárias comuns da espécie humana, relacionadas com animais,
tempestades, escuridão, e assim por diante, ou de coisas inequivocamente
associadas, de um modo ou de outro, com o que é sexual - tais como a micção, a
defecação ou, de um modo geral, a sujeira e o contágio.
O eu
leva muito menos vantagem escolhendo a transposição do afeto como método de
defesa do que escolhendo a conversão histérica da excitação psíquica em
inervação somática. O afeto de que o eu sofre permanece como antes, inalterado
e não diminuído, com a única diferença de que a representação incompatível é
abafada e isolada da memória. As representações recalcadas, como no outro caso,
formam o núcleo de um segundo grupo psíquico, que, acredito, é acessível mesmo
sem a ajuda da hipnose. Se as fobias e obsessões são desacompanhadas dos
notáveis sintomas que caracterizam a formação de um grupo psíquico independente
na histeria, isto é sem dúvida porque, em seu caso, toda a alteração permaneceu
na esfera psíquica, e a relação entre a excitação psíquica e a inervação
somática não sofreu qualquer mudança.
Para
ilustrar o que foi dito sobre as obsessões, darei alguns exemplos que suponho
serem típicos:
(1)
Uma jovem sofria auto-recriminações obsessivas. Quando lia alguma coisa nos
jornais sobre falsificadores de moedas, ocorria-lhe a idéia de que também ela
produzira dinheiro falso; se uma pessoa desconhecida cometia um assassinato,
perguntava-se ansiosamente se não teria sido ela a autora daquela ação. Ao
mesmo tempo, estava perfeitamente cônscia do disparate dessas acusações
obsessivas. Por algum tempo, esse sentimento de culpa adquiriu tal ascendência
sobre ela que suas capacidades críticas ficaram embotadas e ela se acusou
perante seus parentes e seu médico de ter realmente cometido todos esses crimes.
(Eis um exemplo de psicose por simples intensificação - uma “Überwaeltigungspsychose”
uma psicose em que o eu é subjugado. Um minucioso interrogatório revelou então
a fonte de onde brotava seu sentimento de culpa. Estimulada por uma sensação
voluptuosa casual, ela se deixara induzir por uma amiga a se masturbar, e
praticara a masturbação durante anos, inteiramente consciente de sua má ação,
que era acompanhada das mais violentas, embora inúteis, auto-recriminações. Um
excesso a que se entregara depois de ir a um baile havia produzido a
intensificação que levou à psicose. Depois de alguns meses de tratamento e da
mais estrita vigilância, a jovem se recuperou.
(2)
Uma outra moça sofria de um pavor de ser dominada pela necessidade de urinar e
de ser incapaz de evitar molhar-se, desde a ocasião em que uma necessidade
desse tipo de fato a obrigara a sair de um salão de concerto durante a
apresentação. Pouco a pouco, essa fobia a deixara completamente incapaz de se
divertir ou de freqüentar a sociedade. Só se sentia bem ao saber que havia um
toalete próximo e acessível, que ela poderia atingir discretamente. Não havia
sombra de nenhuma enfermidade orgânica que pudesse justificar essa desconfiança
em seu poder de controlar a bexiga; quando ela estava em casa, em condições
tranqüilas, ou à noite, a necessidade de urinar não assomava. Um exame
detalhado mostrou que a necessidade ocorrera primeiramente nas seguintes
circunstâncias: no salão de concerto, um cavalheiro ao qual ela não era
indiferente tomara assento não longe dela. A moça começou a pensar nele e a
imaginar-se sentada a seu lado, como sua esposa. Durante esse devaneio erótico,
teve a sensação corporal que é comparável à ereção masculina e que, no caso
dela - não sei se é sempre assim -, terminava com uma leve necessidade de
urinar. Ficou então muito aterrorizada pela sensação sexual (à qual estava
normalmente acostumada), pois tomara a resolução interna de combater aquela
preferência específica, assim como qualquer outra que pudesse sentir; no
momento seguinte, o afeto se transferira para a necessidade concomitante de
urinar e a compelira, depois de agoniada luta, a deixar o recinto. Em sua vida
corriqueira, ela era tão pudica que experimentava intenso horror por qualquer
coisa relacionada a sexo e não podia contemplar a idéia de vir a casar-se um
dia. Por outro lado, era tão hiperestésica sexualmente que, durante qualquer
devaneio erótico, ao qual se abandonava prontamente, a mesma sensação
voluptuosa aparecia. Em todas as ocasiões a ereção era acompanhada pela
necessidade de urinar, embora sem produzir-lhe qualquer impressão até a cena no
salão de concerto. O tratamento levou-a a um controle quase completo de sua
fobia.
(3)
Uma jovem esposa, que tivera apenas um filho em cinco anos de casamento,
queixou-se a mim de sentir um impulso obsessivo de se atirar pela janela, ou de
uma sacada, e queixou-se também de um temor de apunhalar seu filho, temor que a
acometia quando via uma faca afiada. Admitiu que raramente havia relações
sexuais conjugais, sempre sujeitas a precauções contra a concepção, mas afirmou
não sentir falta delas por não ser de natureza sensual. Nesse ponto,
aventurei-me a dizer-lhe que, à vista de um homem, ocorriam-lhe representações
eróticas e que, por isso, ela perdera a confiança em si própria e se
considerava uma pessoa depravada, capaz de qualquer coisa. A tradução da
representação obsessiva em termos sexuais foi um êxito. Em lágrimas, ela
imediatamente confessou a precariedade de seu casamento, há muito ocultada; e
me comunicou também, mais tarde, representações angustiantes de caráter sexual
inalterado, tais como a sensação freqüentíssima de que alguma coisa a forçava
por sob sua saia.
Tenho-me
valido desse tipo de observações em meu trabalho terapêutico, reconduzindo a
atenção dos pacientes com fobias e obsessões às representações sexuais
recalcadas, a despeito de todos os seus protestos, e, sempre que possível,
estancando as fontes de onde tais representações provieram. Não posso,
naturalmente, afirmar que todas as fobias e obsessões emergem do modo
que aqui caracterizei. Em primeiro lugar, minha experiência delas inclui apenas
um número limitado de casos, em comparação com a freqüência dessas neuroses; e,
em segundo lugar, eu mesmo estou ciente de que nem todos esses sintomas
“psicastênicos”, como os chama Janet, são equivalentes. Existem, por exemplo,
fobias puramente histéricas. Penso, contudo, que será possível mostrar a
presença do mecanismo de transposição do afeto na maioria das fobias e
obsessões, e portanto insisto em que essas neuroses, que são encontradas
isoladamente com tanta freqüência quanto combinadas com a histeria ou a
neurastenia, não devem ser indiscriminadamente misturadas com a neurastenia
comum, para cujos sintomas básicos não há nenhum fundamento para se pressupor
um mecanismo psíquico.
III
Em
ambos os casos até aqui considerados, a defesa contra a representação
incompatível foi efetuada separando-a de seu afeto; a representação em si
permaneceu na consciência, ainda que enfraquecida e isolada. Há, entretanto,
uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela, o eu rejeita a
representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a
representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir do momento em que
isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose que só pode ser qualificada como
“confusão alucinatória”. Um único exemplo pode servir para ilustrar essa
asserção:
Uma
moça devotara a um homem sua primeira afeição impulsiva e acreditava firmemente
que ele lhe retribuía o amor. Na verdade, estava enganada; o rapaz tinha
motivos diferentes para visitar sua casa. Não faltaram decepções. A princípio,
a jovem se defendeu delas, fazendo uma conversão histérica das experiências em
questão, e assim preservou sua crença de que um dia ele pediria sua mão. Ao
mesmo tempo, porém, sentia-se doente e infeliz, porque a conversão fora
incompleta e ela deparava-se continuamente com novas impressões dolorosas. Por
fim, num estado de grande tensão, aguardou a chegada dele em determinado dia,
que era de celebração familiar. Mas o dia passou e ele não apareceu. Quando
todos os trens em que ele poderia vir já tinham chegado e partido, ela entrou
num estado de confusão alucinatória: ele chegara, ela ouviu sua voz no jardim,
desceu às pressas, de camisola, para recebê-lo. Daquele dia em diante, durante
dois meses, ela viveu um sonho encantador cujo conteúdo era que ele estava
presente, ao seu lado, e tudo voltara a ser como antes (antes da época das decepções
que ela rechaçara com tanto empenho). Sua histeria e seu desânimo foram
superados. Durante a enfermidade, ela silenciou sobre todo o período final de
dúvida e sofrimento; ficava feliz desde que não fosse perturbada, e só explodia
de ódio quando alguma norma de conduta reiterada pelos que a rodeavam vinha
atrapalhá-la em algo que lhe parecia ser uma decorrência lógica de seu
abençoado sonho. Essa psicose, que fora ininteligível na época, foi explicada
dez anos depois com a ajuda de uma análise hipnótica.|cf.em [1]|.
O
fato para o qual desejo agora chamar atenção é que o conteúdo de uma psicose
alucinatória desse tipo consiste precisamente na acentuação da representação
que era ameaçada pela causa precipitante do desencadeamento da doença.
Portanto, é justificável dizer que o eu rechaçou a representação incompatível
através de uma fuga para a psicose. O processo pelo qual isso é conseguido
escapa, mais uma vez, à autopercepção do sujeito, assim como escapa à análise
psicológico-clínica. Deve ser encarado como a expressão de uma predisposição
patológica de grau bastante alto e pode ser descrito mais ou menos como se
segue. O eu rompe com a representação incompatível; esta, porém, fica
inseparavelmente ligada a um fragmento da realidade, de modo que, à medida que
o eu obtém esse resultado, também ele se desliga, total e parcialmente, da
realidade. Em minha opinião, este último evento é a condição sob a qual as
representações do sujeito recebem a vividez das alucinações; assim, quando a
defesa consegue ser levada a termo, ele se encontra num estado de confusão
alucinatória.
Disponho
apenas de muito poucas análises de psicoses dessa natureza. Penso, entretanto,
que deparamos aqui com um tipo de enfermidade psíquica muito freqüentemente
empregada, pois em nenhum manicômio faltam exemplos que podem ser considerados
análogos - a mãe que adoeceu pela perda de seu bebê e que agora embala
incessantemente um pedaço de madeira nos braços, ou a noiva rejeitada que,
adornada com seus trajes nupciais, espera durante anos pelo noivo.
Talvez
não seja supérfluo assinalar que os três métodos de defesa aqui descritos e,
juntamente com eles, as três formas de doença a que levam esses métodos podem
combinar-se numa mesma pessoa. O aparecimento simultâneo de fobias e sintomas
histéricos, freqüentemente observado na prática, é um dos fatores que
dificultam uma separação nítida entre a histeria e as outras neuroses e que
tornam necessária a postulação da categoria de “neuroses mistas”. É verdade que
a confusão alucinatória nem sempre é compatível com a persistência da histeria
nem das obsessões, de um modo geral. Por outro lado, não é raro uma psicose de
defesa irromper episodicamente no decurso de uma neurose histérica ou mista.
Gostaria,
por fim, de me deter por um momento na hipótese de trabalho que utilizei nesta
exposição das neuroses de defesa. Refiro-me ao conceito de que, nas funções
mentais, deve-se distinguir algo - uma carga de afeto ou soma de excitação -
que possui todas as características de uma quantidade (embora não tenhamos
meios de medi-la) passível de aumento, diminuição, deslocamento e descarga, e
que se espalha sobre os traços mnêmicos das representações como uma carga
elétrica espalhada pela superfície de um corpo.
Essa
hipótese, que aliás já está subjacente a nossa teoria da “ab-reação” na
“Comunicação Preliminar” (1893a), pode ser aplicada no mesmo sentido que os
físicos aplicam a hipótese de um fluxo de energia elétrica. Ela é
provisoriamente justificada por sua utilidade na coordenação e explicação de
uma grande variedade de estados psíquicos.
VIENA,
fim de janeiro de 1894.
APÊNDICE:
O SURGIMENTO DAS HIPÓTESES FUNDAMENTAIS DE FREUD
Com
esse primeiro artigo sobre as neuropsicoses de defesa, Freud deu expressão
pública, se não direta, ao menos implicitamente, a muitas das noções teóricas
mais fundamentais sobre as quais se baseou todo o seu trabalho posterior. Não
se deve esquecer que o artigo foi escrito em janeiro de 1894 - um ano após a
publicação da “Comunicação Preliminar” e um ano antes da conclusão da seção principal
dos Estudos sobre a Histeria e das contribuições teóricas de Breuer para
aquele volume. À época em que escreveu o artigo, portanto, Freud estava
profundamente envolvido em sua primeira série de investigações psicológicas.
Destas começavam a emergir diversas inferências clínicas e, por trás delas,
algumas hipóteses mais gerais que emprestariam coerência às descobertas
clínicas. Mas foi somente passados mais seis meses após a publicação dos Estudos
sobre a Histeria - no outono de 1895 - que Freud fez uma primeira tentativa
de exposição sistemática de suas concepções teóricas; e tal tentativa (o
“Projeto para uma Psicologia Científica”) foi deixada incompleta e não
publicada por seu autor. Só viu a luz do dia em 1950, mais de meio século
depois. Nesse intervalo, o estudante interessado nas concepções teóricas
freudianas tinha que captar o que pudesse das descrições descontínuas, e por
vezes obscuras, fornecidas por Freud em vários pontos posteriores de sua
carreira. Além disso, sua única discussão extensa de suas teorias em anos
posteriores - os artigos metapsicológicos de 1915 - sobreviveu apenas de forma
truncada: sete dos doze artigos desapareceram completamente.
Em
sua “História do Movimento Psicanalítico” (1914d), Freud declarou que “a teoria
do recalcamento”, ou defesa, para dar-lhe seu nome alternativo, “é a pedra
angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise” (Edição Standard
Brasileira, Vol. XIV, ver em [1], IMAGO Editora, 1974). O termo “defesa”
realmente ocorre pela primeira vez no presente artigo (ver em [1]), e é aqui
que a teoria recebe sua primeira consideração efetiva, embora uma ou duas
frases lhe tivessem sido dedicadas na “Comunicação Preliminar” (Edição Standard
Brasileira, Vol. II, ver em [1], 3ª edição, IMAGO, 1995) e na “Conferência”
(ver em [1] deste volume).
Entretanto,
a própria hipótese clínica da defesa era necessariamente baseada em
pressuposições mais gerais, uma das quais é especificada no penúltimo parágrafo
deste artigo (ver em [1]). Essa pressuposição pode ser convenientemente
designada (embora o nome provenha de data um pouco posterior) como teoria da
“catexia” (“Besetzung”). Talvez não haja nenhuma outra passagem, nos
escritos publicados de Freud, em que ele reconheça tão explicitamente a
necessidade dessa que constitui a mais fundamental de todas as suas hipóteses:
“nas funções mentais, deve-se distinguir algo - uma carga de afeto ou soma de
excitação - que possui todas as características de uma quantidade… passível de
aumento, diminuição, deslocamento e descarga…” A noção de “quantidade
deslocável” estivera implícita, é claro, em todas as suas discussões teóricas
anteriores. Como ele próprio indica nessa mesma passagem, ela estava subjacente
à teoria da ab-reação; foi a base necessária do princípio da constância (que
logo será discutido); estava implícita sempre que Freud utilizava expressões
como “carregado com uma soma de excitação” (ver em [1]), “suprido com uma carga
de afeto” (1893c), “suprido de energia” (1895b), - predecessoras do que logo se
converteria no termo padrão “catexizado”. Já no prefácio a sua primeira
tradução de Bernheim (1888-9) ele falara em “deslocamentos da excitabilidade no
sistema nervoso”.
Esse
último exemplo traz-nos à mente, entretanto, uma complicação adicional. Pouco
mais de dezoito meses após escrever o presente artigo, Freud enviou a Fliess o
notável fragmento conhecido como o “Projeto”, já mencionado acima. Ali a
hipótese da catexia é, pela primeira e última vez, integralmente discutida. Mas
essa discussão completa traz claramente à luz algo que é esquecido com
demasiada facilidade. Durante todo esse período Freud parece ter considerado os
processos de catexização como eventos materiais. Em seu “Projeto”, duas
pressuposições básicas foram explicitadas. A primeira era a da validade da
então recente descoberta histológica de que o sistema nervoso consistia em
cadeias de neurônios; a segunda era a idéia de que a excitação dos neurônios
devia ser considerada como “uma quantidade sujeita às leis gerais do
movimento”. Combinando essas duas pressuposições, “chegamos à idéia de um
neurônio ‘catexizado’, cheio de determinada quantidade, embora em outras
ocasiões possa estar vazio” (“Projeto”, Parte I, Seção 2). Entretanto, embora a
catexia fosse assim definida primariamente como um evento neurológico, a
situação não era tão simples. Até muito pouco tempo antes, o interesse de Freud
estivera centrado na neurologia, e agora que seus pensamentos estavam sendo
cada vez mais desviados para a psicologia, era natural que seu primeiro esforço
fosse o de conciliar esses dois interesses. Acreditava ele que devia ser
possível postular os fatos da psicologia em termos neurológicos, e seus
esforços nesse sentido culminaram precisamente no “Projeto”. A tentativa
falhou; o “Projeto” foi abandonado; e nos anos que se seguiram, pouco mais se
ouviu sobre a base neurológica dos eventos psicológicos, exceto (como veremos
adiante, ver em [1] e seg.) em conexão com o problema das “neuroses atuais”.
Contudo, esse repúdio não envolveu nenhuma revolução maciça. O fato, sem
dúvida, é que as formulações e hipóteses apresentadas por Freud em termos
neurológicos tinham sido efetivamente elaboradas com vistas mais do que
parciais aos eventos psicológicos; e quando chegou o momento de abandonar a
neurologia, verificou-se que a maior parte do material teórico podia ser
entendida como aplicável - a rigor, mais convincentemente aplicável - a
fenômenos puramente mentais.
Essas
considerações aplicam-se ao conceito de “catexia”, que apresentou um sentido
inteiramente não-físico em todos os escritos posteriores de Freud, inclusive o
sétimo capítulo teórico de A Interpretação dos Sonhos (1900a).
Aplicam-se também à hipótese posterior que utiliza o conceito de catexia de que
ficou mais tarde conhecida como “princípio da constância”. Também esta começou
como uma hipótese aparentemente fisiológica. O princípio é definido no
“Projeto” (Parte I, Seção I) como “princípio da inércia neuronal, que afirma
que os neurônios tendem a se desfazer da quantidade”. Foi formulado em termos
psicológicos vinte e cinco anos depois, em Além do Princípio do Prazer
(1920g), como se segue: “O aparelho mental se esforça por manter a quantidade
de excitação nele presente tão baixa quanto possível, ou, pelo menos, por
mantê-la constante.” (Edição Standard
Brasileira, Vol. XVIII, pág. [1], IMAGO Editora, 1976). Esse princípio
não é explicitamente estabelecido no presente artigo, embora esteja implícito
em vários pontos. Já fora mencionado na conferência sobre a “Comunicação
Preliminar” (1893h, ver em [1]), embora não na própria “Comunicação
Preliminar”, e no artigo em francês sobre as paralisias histéricas (1893c).
Fora também formulado com muita clareza num rascunho postumamente publicado da
“Comunicação Preliminar” (1940d), datado de “Fim de novembro de 1892”, e
citado, antes disso ainda, numa carta de Freud a Breuer datada de 29 de junho
de 1892 (1941a), assim como, indiretamente, numa das notas de rodapé de Freud a
sua tradução de um volume das Leçons du Mardi, de Charcot (Freud,
1892-94, 107). Nos anos posteriores, o princípio foi repetidamente discutido:
por exemplo, por Breuer em sua contribuição teórica aos Estudos sobre a
Histeria - (1895d), Edição Standard Brasileira, Vol. II, ver em [1]
e [2], 3ª edição, IMAGO, 1995, e por Freud em “Os Instintos (Pulsões) e
suas Vicissitudes” (1915c), ibid., Vol. XIV, ver em [1], [2] e [3], ibid.,
1974; e em Além do Princípio do Prazer (1920g), Vol. XVIII, ver em [1].,
[2] e [3] e seg., ibid., 1976, onde ele lhe deu pela primeira vez a nova
denominação de “princípio do Nirvana”.
O
princípio do prazer, não menos fundamental que o princípio da constância no
arsenal psicológico de Freud, está igualmente presente neste artigo, embora
mais uma vez apenas implicitamente. A princípio, Freud considerou os dois
princípios intimamente ligados, e talvez idênticos. No “Projeto” (Parte I,
Seção 8), escreveu: “Já que temos certo conhecimento de uma tendência da vida
psíquica a evitar o desprazer, ficamos tentados a identificá-la com a tendência
primária à inércia. Nesse caso, o desprazer coincidiria com um aumento
do nível da quantidade… O prazer corresponderia à sensação de descarga.”
Só muito mais tarde, em “O Problema Econômico do Masoquismo” (1924c), é que
Freud demonstrou a necessidade de distinguir os dois princípios (Vol. XIX, ver
em [1], [2] e [3], IMAGO Editora, 1976). O curso das alterações na visão de
Freud sobre essa questão é detalhadamente acompanhado numa nota de rodapé do
Editor inglês ao artigo metapsicológico sobre “Os Instintos (Pulsões) e
suas Vicissitudes” (1915c), Vol. XIV, ver em [1] e [2]., IMAGO Editora, 1974.
Pode-se
levantar a questão adicional de até que ponto essas hipóteses fundamentais eram
específicas de Freud e até que ponto derivaram de outras influências. Muitas
fontes possíveis têm sido sugeridas - Helmholtz, Herbart, Fechner e Meynert,
entre outros. Este, contudo, não é o lugar para se introduzir uma questão tão
abrangente. Basta dizer que Ernest Jones a examinou exaustivamente no primeiro
volume de sua biografia de Freud (1953, 405-15).
Cabe
dizer algumas palavras sobre um ponto que se destaca particularmente do
penúltimo parágrafo deste artigo - a aparente equivalência dos termos “carga de
afeto (Affektbetrag)” e “soma de excitação (Erregungssumme)”.
Estará Freud utilizando tais palavras como sinônimos? A descrição que faz dos
afetos na Conferência XXV de suas Conferências Introdutórias (1916-17) e
seu uso da palavra na Seção III do artigo sobre “O Inconsciente” (1915e), assim
como numerosas outras passagens mostram que em geral ele atribuía a “afeto”
aproximadamente o mesmo sentido que costumamos dar a “sentimento” ou “emoção”.
“Excitação”, por outro lado, é um dos vários termos que ele parece usar para
descrever a desconhecida energia da “catexia”. No “Projeto”, como vimos, ele a
chama simplesmente de “quantidade. Em outros trechos, utiliza termos como
“intensidade psíquica” ou “energia pulsional”. “Soma de excitação” remonta a
sua menção ao princípio da constância na carta a Breuer de junho de 1892.
Assim, os dois termos parecem não ser sinônimos. Essa opinião é
confirmada por uma passagem de Breuer no capítulo teórico dos Estudos sobre
a Histeria, onde ele fornece razões para a suposição de que os afetos
“acompanham um aumento da excitação”, implicando com isso que se trata de duas
coisas diferentes (Edição Standard Brasileira, Vol. II, ver em [1], 3ª
edição, IMAGO, 1995). Tudo isso pareceria bastante claro, não fosse por uma
passagem no artigo metapsicológico sobre o “Recalcamento” (1915d), Vol. XIV,
ver em [1] e segs., IMAGO Editora, 1974. Trata-se da passagem em que Freud
mostra que o “representante psíquico” de uma pulsão consiste em dois elementos
que têm destinos bem diferentes sob a ação do recalcamento. Um desses elementos
é a representação ou grupo de representações catexizadas, e o outro é a energia
pulsional nelas investida. “Para esse outro elemento do representante psíquico
a expressão carga afetiva tem sido genericamente adotada”. Algumas
frases adiante e em vários outros pontos, ele se refere a esse elemento como
“fator quantitativo”, mas depois, ainda um pouco além, volta a falar nele como
“carga de afeto”. À primeira vista, Freud pareceria estar tratando afeto e
energia psíquica como noções sinônimas. Mas esse afinal não pode ser o caso, já
que exatamente na mesma passagem ele menciona como um possível destino da
pulsão “a transformação em afetos… das energias psíquicas das pulsões” (Edição Standard
Brasileira, Vol. XIV, ver em [1], IMAGO Editora, 1974).
A
explicação da aparente ambigüidade parece residir na concepção subjacente de
Freud sobre a natureza dos afetos. Sua formulação mais clara talvez seja a que
se encontra na terceira seção do artigo sobre “O Inconsciente” (1915e), Edição Standard
Brasileira, Vol. XIV, ver em [1] e [2], IMAGO Editora, 1974, onde Freud declara
que os afetos “correspondem a processos de descarga cujas manifestações finais
são percebidas como sentimentos”. De modo similar, na Conferência XXV das Conferências
Introdutórias, ele indaga o que é um afeto “no sentido dinâmico” e
prossegue: “Um afeto inclui, em primeiro lugar, determinadas inervações ou
descargas motoras e, em segundo lugar, certos sentimentos; estes são de dois
tipos: as percepções das ações motoras ocorridas e os sentimentos diretos de
prazer e desprazer, que, como se costuma dizer, dão ao afeto seu tom predominante.”
E, por último, no artigo sobre “O Recalcamento”, do qual partimos, ele escreve
que a carga de afeto “corresponde à pulsão na medida em que esta… encontra
expressão, proporcional a sua quantidade, em processos que são vivenciados como
afetos”.
Assim,
é provavelmente correto supor que Freud considerasse a “carga de afeto” como
uma manifestação particular da “soma de excitação”. Sem dúvida, é verdade que o
afeto era o que estava usualmente envolvido nos casos de histeria e neuroses
obsessivas que constituíram o principal interesse de Freud no período inicial.
Por essa razão, ele tendia, nessa época, a descrever a “quantidade deslocável”
como uma carga de afeto, em vez de descrevê-la, em termos mais gerais, como uma
excitação; e esse hábito parece ter persistido mesmo nos artigos
metapsicológicos, onde uma diferenciação mais precisa poderia ter contribuído
para a clareza de sua tese.
OBSESSÕES E FOBIAS:
SEU MECANISMO PSÍQUICO E SUA ETIOLOGIA (1895 |1894|)
NOTA
DO EDITOR INGLÊS
OBSESSIONS ET PHOBIES
(LEUR MÉCANISME
PSYCHIQUE ET LEUR ÉTIOLOGIE)
(a) EDIÇÕES EM
FRANCÊS:
1895 Rev. Neurol.,
3 (2), 33-8. (30 de janeiro).
1906 S.K.S.N.,
1, 86-93. (1911, 2ª
ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
1925 G.S.,
l, 334-42.
1952 G.W., l,
345-53.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
“Obsessions
and Phobias”
1924 C.P.,
l, 128-37. (Trad.
de M. Meyer.)
Incluído
(nº XXX) na coletânea de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud elaborada
por ele mesmo (1897b). O original está em francês. A presente tradução é uma
versão consideravelmente revista da publicada em 1924. Uma tradução alemã, de
A.Schiff, sob o título “Zwangsvorstellungen und Phobien”, foi publicada em Wien.
klin. Rundsch., 9 (17), 262-3 e (18), 276-8, a 28 de abril de 5 de maio de
1895.
Embora
este artigo tenha sido publicado quinze dias após o primeiro artigo sobre a
neurose de angústia (1895b), foi escrito anteriormente, pois há aqui uma
referência (ver em [1]) ao artigo sobre a neurose de angústia como algo que
Freud esperava escrever no futuro, e há naquele uma referência ao presente
artigo (ver em [1], adiante).
A
primeira parte deste artigo é pouco mais que uma repetição da Seção II do
primeiro artigo sobre “As Neuropsicoses de Defesa” (1894a), tratando das
obsessões. A última parte, relativa às fobias, é discutida no Apêndice do
Editor inglês (ver em [1] [2]).
Este
é um dos três artigos que Freud escreveu em francês por volta dessa época; o
primeiro (1893c), que versa sobre a distinção entre paralisias orgânicas e
histéricas, será encontrado no primeiro volume da Edição Standard, e o
restante neste volume, em [1] e segs. Em um ou dois casos, os termos franceses
selecionados pelo próprio Freud como versões dos termos alemães interessam ao
tradutor inglês. Assim, ele sempre traduz “Zwangsvorstellung” pelo
francês “obsession”. Isso deve dissipar qualquer sentimento inquietante
de que a versão inglesa adequada devesse ser “representação compulsiva” ou
coisa semelhante. De fato, parece não ter havido nenhum equivalente em alemão
para a palavra francesa e inglesa até que Krafft-Ebing introduziu “Zwangsvorstellung”
em 1867 (cf. Loewenfeld, 1904, 8). A palavra inglesa “obsession”, no
sentido de idéia fixa, remonta pelo menos ao século XVII. Do mesmo modo, Freud
traduz “Zwangsneurose” pelo francês “névrose d’obsessions”. O alemão
“Angstneurose” é por ele vertido por “névrose d’angoise”;
entretanto, em pelo menos um ponto (ver em [1]), ele traduz “Angst” por
“anxieté”, palavra francesa com a mesma conotação da inglesa “anxiety”
(Ver em [1] e seg.). Outra palavra que Freud usa com enorme freqüência em seus
escritos desse período é “unvertraeglich”, aplicada às representações
recalcadas na histeria ou descartadas de outras maneiras na neurose obsessiva.
Há uma boa dose de má vontade em aceitar essa palavra como significando “incompatível”.
Existe outra palavra alemã com apenas uma letra a menos, “unetraeglich”,
que significa “intolerável”. Esta última ocorre algumas vezes, provavelmente
por erro de impressão, nas edições alemãs (cf. em [1]), e o termo “intolerável”
foi adotado como tradução uniforme na maior parte do primeiro volume dos Collected
Papers de 1924. As dúvidas quanto ao sentido pretendido por Freud parecem
ter sido dirimidas pelo equivalente francês escolhido por ele - “inconciliable”.
Pode-se
acrescentar que, no Volume I das Gesammelte Werke (publicado em 1952),
no início do primeiro desses artigos em francês (que é o que foi incluído no
Volume I da Edição Standard), lê-se a seguinte nota de rodapé: “Nos três
artigos em francês, o texto original foi revisto e corrigido no que concerne
aos erros de impressão e erros de francês, embora se tenha respeitado
estritamente o sentido.” A maioria das alterações assim efetuadas é puramente
verbal, e conseqüentemente não afetou a tradução inglesa. Em alguns casos,
porém, neste artigo e no que é reproduzido mais adiante (ver em [1] e segs.),
talvez se possa pensar que as modificações foram mais além, embora em duas
delas (ver em [1] e [2]) a versão de 1952 de fato remonte à que consta da
publicação periódica original. Ao decidir sobre os casos duvidosos, deve-se ter
em mente que o próprio Freud muito provavelmente leu por inteiro as
reimpressões de 1906 e de 1925, já que acrescentou novas notas de rodapé a esta
última (cf. em [1]). As versões de 1906 são as que adotamos usualmente no
texto. Em todos os casos fornece-se a alternativa numa nota de rodapé.
OBSESSÕES
E FOBIAS: SEU MECANISMO PSÍQUICO E SUA ETIOLOGIA
Começarei
por questionar duas afirmações que têm sido freqüentemente repetidas a respeito
das síndromes de “obsessões” e “fobias”. Deve-se dizer, em primeiro lugar, que
elas ano podem ser incluídas na neurastenia propriamente dita, já que os
pacientes afligidos por esses sintomas são ora neurastênicos, ora não o são; e,
em segundo lugar, ano temos justificativa para encará-las como efeito de
degeneração mental, pois são encontradas em pessoas ano mais degeneradas do que
a maioria dos neuróticos em geral, e porque às vezes elas se recuperam e outras
vezes conseguimos até mesmo curá-las.
As
obsessões e as fobias são neuroses distintas, com mecanismo e etiologia
específicos, que consegui demonstrar num certo número de casos e que, segundo
espero, se revelarão semelhantes num número de casos novos.
Quanto
à classificação do assunto, proponho, em primeiro lugar, excluir um grupo de obsessões
intensas que nada mais são do que lembranças, imagens inalteradas de eventos
importantes. Como exemplo, posso citar a obsessão de Pascal: ele sempre achava
estar vendo um abismo a sua esquerda, “depois de quase ter sido atirado no Sena
em seu coche”. Tais obsessões e fobias, que podem ser chamadas de traumáticas,
estão ligadas aos sintomas da histeria.
A
parte esse grupo, devemos distinguir: (a) as obsessões verdadeiras; (b) as
fobias. A diferença essencial entre elas é a seguinte:
Dois
correspondentes são encontrados em toda obsessão: (1) uma representação que se
impõe ao paciente; (2) um estado emocional associado. Ora, no grupo das fobias,
esse estado emocional é sempre de “angústia”, ao passo que, nas obsessões
verdadeiras, outros estados emocionais, como a dúvida, o remorso ou a raiva,
podem ocorrer tanto quanto a angústia. Tentarei primeiramente explicar o
mecanismo psicológico, realmente notável, das obsessões verdadeiras - um
mecanismo bem diferente do das fobias.
I
Em
muitas obsessões verdadeiras, é evidente que o principal é o estado emocional,
já que este permanece inalterado, enquanto a representação a ele associada
varia. A jovem do Caso 1 citado adiante, por exemplo, sentia um certo grau de
remorso por toda sorte de razões - por ter cometido um furto, por ter
maltratado as irmãs, por ter fabricado dinheiro falso etc. As pessoas que
duvidam têm muitas dúvidas simultânea ou sucessivamente. É o estado emocional
que permanece constante nelas; a representação muda. Em outros casos, a representação
também parece fixada, como no Caso 4, da menina que perseguia os empregados da
casa com um ódio incompreensível, embora modificando constantemente o objeto
individual.
Ora,
uma cuidadosa análise psicológica desses casos mostra que o estado emocional,
como tal, é sempre justificado. A moça do Caso 1, que sofria de remorso,
tinha boas razões para isso; a mulher do Caso 3, que duvidava de sua capacidade
de resistência à tentação, sabia muito bem por quê. A moça do Caso 4, que
detestava os criados, tinha bons motivos para se queixar etc. Só que - e é
nessas duas características que reside a marca patológica - (1) o estado
emocional persiste indefinidamente e (2) a representação associada não é
mais a representação apropriada original, relacionada com a etiologia da
obsessão, mas uma representação que a substitui, um sucedâneo dela.
A
prova disso é o fato de que sempre conseguimos descobrir, na história prévia do
paciente, no início da obsessão, a representação original que foi
substituída. Todas as representações substituídas têm atributos comuns; elas
correspondem a experiências realmente penosas na vida sexual do sujeito, que
ele se esforça por esquecer. Consegue meramente substituir a representação
incompatível por uma outra, mal adaptada para se associar com o estado
emocional, o qual, por sua vez, permanece inalterado. É essa mésalliance
entre o estado emocional e a representação associada que explica os disparates
tão característicos das obsessões.
Passo
agora a apresentar minhas observações, e concluirei com uma tentativa de
explicação teórica.
Caso 1. Uma jovem censurava-se por coisas que sabia
serem absurdas: por ter roubado, fabricado dinheiro falso, por envolver-se numa
conspiração etc., conforme o que tivesse lido durante o dia.
Reinstauração
da representação substituída:
Ela se recriminava pela masturbação que vinha praticando em segredo, sem
conseguir abandoná-la. Foi curada por uma cuidadosa vigilância, que a impediu
de se masturbar.
Caso 2. Um rapaz, estudante de medicina, sofria de
obsessão análoga. Recriminava-se por toda sorte de atos imorais: por ter matado
o primo, violado a irmã, ateado fogo a uma casa etc. Chegou ao ponto de ter que
se voltar na rua para ver se ano tinha assassinado a última pessoa a passar por
ele.
Reinstauração: Ficara muito afetado pela leitura, num livro
paramédico, de que a masturbação, na qual era viciado, destruía a moral das
pessoas.
Caso 3. Várias mulheres queixaram-se de um impulso
obsessivo de se atirarem pela janela, ferirem seus filhos com facas, tesouras
etc.
Reinstauração: Obsessões baseadas em tentações típicas.
Tratava-se de mulheres que, inteiramente insatisfeitas com seus casamentos,
tinham de lutar contra os desejos e idéias voluptuosas que constantemente as
perturbavam à visão de outros homens.
Caso 4. Uma moça perfeitamente sadia e muito
inteligente exibia um ódio incontrolável pelos empregados de sua casa. Este
fora deflagrado em conexão com uma criada impertinente e se transferia de
criada para criada, a ponto de tornar o serviço doméstico impossível. O
sentimento era uma mistura de ódio e repugnância. Ela se justificava dizendo
que a grosseria dessas moças arruinava sua representação do amor.
Reinstauração: Essa moça fora testemunha involuntária de uma
cena de amor em que sua mãe tomara parte. Escondera o rosto, tapara os ouvidos
e fizera o máximo para esquecer a cena, pois ela a repugnava e teria tornado
impossível sua permanência com a mãe, a quem ela amava ternamente. Teve êxito
em seus esforços, mas a raiva pela maculação de sua representação do amor
persistiu dentro dela, e esse estado emocional logo se ligou à representação de
alguma pessoa que assumisse o lugar de sua mãe.
Caso 5. Uma jovem se isolara quase completamente
por causa de um medo obsessivo da incontinência urinária. Não podia mais sair
de seu quarto ou receber visitas sem ter urinado inúmeras vezes. Quando estava
em casa ou inteiramente só, o medo não a perturbava.
Reinstauração: Tratava-se de obsessão baseada na tentação ou
na desconfiança. Ela não desconfiava de sua bexiga, mas de sua resistência aos
impulsos eróticos. A origem da obsessão mostra-o claramente. Uma vez, no
teatro, vendo um homem que a atraía, ela sentiu um desejo erótico, acompanhado
(como as poluções espontâneas nas mulheres sempre o são) de um desejo de urinar.
Foi obrigada a deixar o teatro e, a partir desse momento, viu-se presa do medo
de experimentar a mesma sensação, mas o desejo de urinar substituíra o desejo
erótico. Ficou completamente curada.
Embora
os casos que enumerei mostrem graus variáveis de complexidade, têm em comum o
seguinte: a representação original (incompatível) foi substituída por outra
representação, a representação substituta. Nos casos que acrescento agora, a
representação original foi substituída, mas não por outra representação - foi
substituída por atos ou impulsos que serviram originalmente como medidas de alívio
ou como procedimentos protetores, e que são agora grotescamente
associados a um estado emocional que não lhes é adequado, mas que permaneceu
inalterado e continuou a ser tão justificável quanto em sua origem.
Caso 6. Aritmomania obsessiva. - Uma mulher
via-se na obrigação de contar as tábuas do assoalho, os degraus da escada etc.,
atos estes que praticava num ridículo estado de angústia.
Reinstauração: Ela começara a contar para desviar sua mente
das representações obsessivas (de tentação). Conseguira fazê-lo, mas o impulso
de contar substituíra a obsessão original.
Caso 7. Preocupação e especulação obsessivas.
- Uma mulher sofria de ataques dessa obsessão, que só cessavam quando ela
adoecia, cedendo então lugar a temores hipocondríacos. O tema de sua
preocupação era sempre uma parte ou função de seu corpo; por exemplo a
respiração: “Por que preciso respirar? Suponhamos que eu não queira respirar”
etc.
Reinstauração: Logo no princípio ela sofrera do medo de
enlouquecer - fobia hipocondríaca bastante comum entre mulheres não satisfeitas
por seus maridos, como era seu caso. Para se assegurar de que não estava
louca, de que estava ainda de posse de suas faculdades mentais, começara a
se fazer perguntas e a se interessar por problemas sérios. Isso inicialmente a
acalmara, mas, com o tempo, o hábito da especulação substituiu a fobia. Por
mais de quinze anos, alternaram-se nela períodos de medo (patofobia) e de
especulação obsessiva.
Caso 8. Folie du doute. - Vários casos
mostraram os sintomas típicos dessa obsessão, mas foram explicados de forma
muito simples. Essa pessoas tinha sofrido ou sofriam ainda de várias obsessões,
e o conhecimento de que essas obsessões haviam perturbado todos os seus atos e
interrompido muitas vezes o curso de seu pensamento provocava uma dúvida
legítima quanto à confiabilidade de sua memória. Todos já tivemos nossa
confiança abalada, já fomos forçados a reler uma carta ou refazer um cálculo,
quando nossa atenção é dispersada várias vezes durante a realização desse ato.
A dúvida é um resultado bastante lógico na presença de obsessões.
Caso 9. Folie du doute. (Hesitação.) - A
moça do Caso 4 se tornara extremamente vagarosa na execução de todos os seus
atos cotidianos, em especial na de sua toalete. Levava horas para amarrar os
sapatos ou limpar as unhas. A guisa de explicação, dizia que não conseguia
fazer sua toalete enquanto as representações obsessivas ocupavam sua mente, nem
imediatamente após. Assim, acostumara-se a esperar um intervalo definido depois
de cada retorno da representação obsessiva.
Caso 10. Folie du doute. (Medo de pedacinhos de
papel.) - Uma jovem sofria de escrúpulos após ter escrito uma carta; ao
mesmo tempo, juntava todos os pedaços de papel que enxergava. Explicou esse
fato confessando um amor que antes se recusara a admitir. Em conseqüência da
repetição constante do nome de seu amado, fora dominada pelo medo de que esse
nome pudesse ter-lhe escapado da pena, de que pudesse tê-lo escrito em algum
pedaço de papel num momento de introspecção.
Caso 11. Misofobia |Medo de sujeira.|
- Uma mulher lavava suas mãos constantemente e só tocava os trincos das portas
com os cotovelos.
Reinstauração: É o caso de Lady Macbeth. A lavagem era
simbólica, destinada a substituir pela pureza física a pureza moral que ela
lastimava ter perdido. Atormentavam-na os remorsos pela infidelidade conjugal,
cuja lembrança ela resolvera banir da mente. Além disso, costumava lavar seus
órgãos genitais.
No
que tange à teoria desse processo de substituição, ficarei contente em
responder a três perguntas que aqui surgem:
(1)Como
se produz a substituição?
Ela
parece ser expressão de uma predisposição mental específica herdada. De
qualquer forma, a “hereditariedade similar” é encontrada com bastante
freqüência nos casos obsessivos, assim como na histeria. O paciente do Caso 2,
por exemplo, contou-me que seu pai sofrera de sintomas semelhantes. Certa vez,
o rapaz me apresentou a um primo em primeiro grau que tinha obsessões e um tic
convulsif, e à filha de sua irmã, de 11 anos, que já dava sinais de
obsessões (provavelmente de remorso).
(2)Qual
o motivo da substituição?
Penso
que ele pode ser considerado como um ato de defesa (Abwehr) do ego
contra a representação incompatível. Entre meus pacientes há alguns que se
recordam do esforço deliberado de banir a representação ou recordação aflitiva
do campo da consciência. (Ver Casos 3, 4 e 11). Em outros casos, a expulsão da
representação incompatível é processada de modo inconsciente, que não deixa
nenhum traço na memória do paciente.
(3)Por
que o estado emocional associado com a representação obsessiva persiste
indefinidamente, em vez de se dissipar como outros estados de nosso eu?
Essa
questão pode ser respondida com referência à teoria da gênese dos sintomas
histéricos, desenvolvida por Breuer e por mim. Aqui observarei apenas que, pelo
próprio fato da substituição, torna-se impossível o desaparecimento do estado
emocional.
II
Além
desses dois grupos de obsessões verdadeiras, há a classe de “fobias”, que deve
ser agora considerada. Já mencionei a grande diferença entre obsessões e
fobias: nestas últimas, a emoção é sempre de angústia, de medo. Poderia
acrescentar que as obsessões são variadas e mais especializadas, enquanto as fobias
aso mais monótonas e típicas. Mas essa distinção não é de importância capital.
Entre
as fobias, é também possível diferenciar dois grupos, conforme a natureza do
objeto temido: (1) fobias comuns, medo exagerado de coisas que todos detestam
ou temem em alguma medida, tais como a noite, a solidão, a morte, as doenças,
os perigos em geral, as cobras etc.; (2) fobias contingentes, medo de condições
especiais que não inspiram medo ao homem normal: por exemplo, agorafobia e as
outras fobias da locomoção. É interessante notar que essas fobias não têm o
traço obsessivo que caracteriza as verdadeiras obsessões e as fobias comuns. O
estado emocional só aparece, nesses casos, em condições especiais, que o
paciente evita cuidadosamente.
O
mecanismo das fobias é totalmente diferente do das obsessões. A substituição
não é mais o traço predominante nas primeiras; a análise psicológica não revela
nelas nenhuma representação incompatível substituída. Nunca se encontra nada
além do estado emocional de angústia, que, por uma espécie de processo
seletivo, traz à tona todas as representações adequadas para se tornarem alvo
de uma fobia. No caso da agorafobia etc., encontramos freqüentemente a
recordação de um ataque de angústia; e o que o paciente de fato teme é a
ocorrência de tal ataque nas condições especiais em que acredita não poder
escapar dele.
A
angústia pertinente a esse estado emocional, que subjaz a todas as fobias, não
deriva de qualquer lembrança; bem podemos imaginar qual seja a fonte dessa
poderosa condição do sistema nervoso.
Espero
pode demonstrar, em outra ocasião, que há motivos para se distinguir uma
neurose especial, a “neurose de angústia”. cujo principal sintoma é esse estado
emocional. Enumerarei então seus vários sintomas e insistirei sobre a
necessidade de diferenciar essa neurose da neurastenia, com a qual é agora
confundida. As fobias, portanto, fazem parte da neurose de angústia,
e aso quase sempre acompanhadas por outros sintomas do mesmo grupo.
Tanto
quanto posso perceber, também a neurose de angústia tem uma origem sexual,
mas não se prende a representações extraídas da vida sexual; para dizê-lo com
propriedade, não tem qualquer mecanismo psíquico. Sua causa específica é a
acumulação de tensão sexual produzida pela abstinência ou pela excitação sexual
não consumada (usando o termo como fórmula geral para os efeitos do coitus
reservatus, da impotência relativa do marido, da excitação não satisfeita
dos noivos, da abstinência forçada etc.).
É
nessas condições, extremamente freqüentes na sociedade moderna, especialmente
entre as mulheres, que se desenvolve a neurose de angústia (da qual as fobias
aso uma manifestação psíquica).
Para
concluir, posso assinalar que é possível coexistirem combinações de uma fobia
com uma obsessão propriamente dita, e essa é de fato uma ocorrência muito
freqüente. Podemos constatar que uma fobia se desenvolvera no início da doença
como um sintoma de neurose de angústia. A representação que constitui a fobia e
que é associada ao estado de medo pode ser substituída por outra representação,
ou melhor, pelo procedimento protetor que parecia aliviar o medo. O Caso
7 (especulação obsessiva) fornece um nítido exemplo desse grupo: uma fobia
acompanhada de uma obsessão substitutiva verdadeira.
APENDICE:
AS CONCEPÇÕES DE FREUD SOBRE AS FOBIAS
A
mais antiga abordagem feita por Freud do problema das fobias foi seu primeiro
artigo sobre as psiconeuroses de defesa (1894a); tratou-o de modo bem mais
completo, um ano depois, na segunda seção do presente artigo, e voltou a aludir
a ele no primeiro artigo sobre a neurose de angústia (1895b), escrito logo
depois. Em todas essas primeiras discussões das fobias não é difícil detectar
alguma incerteza; de fato, numa outra breve referência à questão, no segundo
artigo sobre a neurose de angústia (1895f), Freud qualifica de “obscuro” o
mecanismo das fobias (ver em [1] e [2]). No primeiro desses artigos ele
atribuíra o mesmo mecanismo à maioria das fobias e obsessões" (ver em
[1]), excetuando as “fobias puramente histéricas” (ver em [1]) e “o grupo de
fobias típicas das quais um modelo é a agorafobia” (ver em [1]. nota de rodapé
1). Essa última distinção, que ocorre pela primeira vez numa nota de rodapé,
iria revelar-se crucial, pois implicava uma distinção entre fobias de base
psíquica e fobias (as “típicas”) sem qualquer base psíquica. Assim, essa
distinção se ligava à separação entre o que seria posteriormente conhecido como
psiconeuroses e “neuroses atuais” (ver adiante, ver em [1]). Nesses primeiros
artigos, entretanto, a distinção não era consistentemente traçada. Dessa forma,
no presente artigo, ela parece ser feita não entre dois grupos diferentes de
fobias (como no texto mais antigo), mas entre, de um lado, as “obsessões” (de
base psíquica) e, de outro, as “fobias” (sem base psíquica) sendo estas últimas
declaradas “parte da neurose de angústia” (ver em [1], [2], [3] e [4]). Aqui,
entretanto, o quadro se confunde pela divisão adicional das fobias em dois
grupos, de acordo com a natureza de seus objetos (ver em [1]), e também pela
discriminação (como no primeiro artigo) de uma outra classe de fobias “que
poderiam se chamadas de traumáticas” e que estão “ligadas aos sintomas da
histeria” (ver em [1]). Além disso, no artigo sobre neurose de angústia, a
principal distinção não se referia às obsessões e fobias, como aqui, porém,
mais uma vez, à distinção entre as fobias pertencentes à neurose obsessiva e as
pertencentes à neurose de angústia (ver em [1] e [2]), se bem que, ainda uma
vez, a distinção se estabelecesse entre a presença e a ausência de uma base
psíquica. Nesses artigos, portanto, permaneceram certos vínculos indeterminados
entre as fobias, a histeria, as obsessões e a neurose de angústia.
Com
exceção de pouquíssimas alusões aqui e ali, o tema das fobias parece não ter
sido discutido por Freud, após o presente grupo de artigos, durante quase
quinze anos. Então, no caso clínico do “Pequeno Hans” (1909b), deu-se o
primeiro passo em direção ao esclarecimento desses pontos obscuros com a
introdução de uma nova entidade clínica - a “histeria de angústia” (Edição Standard
Brasileira, Vol. X, ver em [1], [2] e [3]). Naquele texto Freud observou que as
fobias “devem ser consideradas apenas como síndromes que podem fazer parte de
várias neuroses, e não precisamos classificá-las como um processo patológico
independente”; e propôs então o nome “histeria de angústia” para um tipo
específico de fobia cujo mecanismo se assemelhava ao da histeria. Foi nesse
caso clínico e no caso posterior do “Homem dos Lobos” (1918b |1914|) que Freud
forneceu sua mais completa descrição clínica das fobias - ocorrendo ambas,
naturalmente, em crianças. Um pouco mais tarde, em seus artigos
metapsicológicos sobre “O Recalcamento” e “O Inconsciente” (1915d e e), ele
entrou numa discussão detalhada da metapsicologia do mecanismo que produz as
fobias, quer relacionadas à histeria ou à neurose obsessiva (Edição Standard
Brasileira, Vol. XIV, ver em [1], [2], [3], [4] e [1], [2], [3], [4], [5],
IMAGO Editora, 1974). Restou, porém, o problema das fobias “típicas” da neurose
de angústia, que remonta ao primeiro do presente conjunto de artigos. Aqui,
como vimos, toda a questão das “neuroses atuais” estava envolvida; e esta só
seria inteiramente elucidada ainda mais tarde, em Inibição, Sintoma e
Angústia (1926d), cujo núcleo é um reexame das fobias do “Pequeno Hans” e
do “Homem dos Lobos”.
SOBRE OS FUNDAMENTOS PARA DESTACAR DA NEURASTENIA UMA SÍNDROME
ESPECÍFICA DENOMINADA NEUROSE DE ANGÚSTIA (1895 |1894|)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ÜBER DIE
BERECHTIGUNG, VON DER NEURASTHENIE EINEN BESTIMMTEN SYMPTOMENKOMPLEX ALS
“ANGSTNEUROSE” ABZUTRENNEN
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1895 Neurol. Zbl.,
14 (2), 50-66. (15 de janeiro.)
1906 S.K.S.N.,
1, 60-85. (1911, 2ª
ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
1925 G.S.,
l, 306-33.
1952 G.W., l,
315-42.
(b) TRADUÇÕES
INGLESAS:
“On the
Right to Separate from Neurasthenia a Definite Symptom-Complex as ‘Anxiety
Neurosis’"
1909 S.P.H., 133-54. (Trad. de A.A. Brill.) (1912, 2ª ed.; 1920.; 3ª ed.)
“The
Justification for Detaching from Neurasthenia a Particular Symptom-Complex as
‘Anxiety Neurosis’"
1924 C.P., l,
76-106. (Trad. de
J. Rickman.)
Incluído
(Nº XXXII) na coletânea de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud, elaborada
por ele mesmo (1897b). A presente tradução, com um novo título, baseia-se na de
1924.
Pode-se
considerar este artigo como o primeiro trecho de uma pista que percorreu, com
mais de uma bifurcação e mais de um retorno acentuado, a totalidade dos
escritos de Freud. Entretanto, como se verifica pela lista de trabalhos sobre a
angústia impressa como apêndice a Inibição, Sintoma e Angústia (1926d)
(Edição Standard Brasileira, Vol. XX, ver em [1], IMAGO Editora, 1976),
este não é, estritamente falando, o início da pista. Ele foi precedido de
várias partidas exploratórias em forma de rascunhos submetidos por Freud a
Wilhelm Fliess (particularmente os Rascunhos A, B e E). Assim, na Seção II do
Rascunho B, datado de 8 de fevereiro de 1893 (Freud, 1950a), já estão resumidos
alguns dos principais pontos do presente artigo. Em especial, insiste-se na necessidade
de “destacar” da neurastenia a neurose de angústia, e muitos dos sintomas são
enumerados exatamente como aqui. Por outro lado, esse Rascunho não contém
nenhuma indicação da etiologia mais profunda da neurose tal como proposta aqui
- o acúmulo de excitação sexual que não consegue encontrar descarga no campo
psíquico. Para isso temos que recorrer ao Rascunho E, onde a teoria é formulada
na íntegra, talvez até com mais clareza do que adiante. Infelizmente, o
Rascunho E não está datado. Os editores da correspondência com Fliess
atribuem-lhe, por razões não muito convincentes, a data de junho de l894; mas,
seja como for, é evidente que ele deve ter sido escrito antes, e não muito
antes, deste artigo. Alguns dos pontos obscuros aqui encontrados são esclarecidos
pelo Rascunho E, assim como pelo Rascunho G (também sem data, mas com certeza
contemporâneo do presente trabalho), que inclui um notável diagrama retratando
as idéias de Freud sobre o mecanismo do processo sexual.
É
também recomendável ter em mente, ao ler esses primeiros artigos, que Freud,
nessa época, estava profundamente empenhado numa tentativa de formular os dados
da psicologia em termos neurológicos - tentativa que culminou em seu abortado
“Projeto para uma Psicologia Científica” (1950a, escrito no outono de 1895,
poucos meses após esses Rascunhos, mas, como eles, só postumamente publicado) e
que, daí por diante, soçobrou inteiramente. (Cf. em [1].) Freud ainda não
adotara por completo a hipótese da existência de processos mentais inconscientes
(como se observa numa frase de seu artigo anterior sobre “As Neuropsicoses de
Defesa”, ver em [1]). Assim, neste artigo, ele faz uma distinção entre
“excitação sexual somática”, de um lado, e “libido sexual ou desejo psíquico”,
de outro (ver em [1]). A “libido” é encarada como algo exclusivamente
“psíquico”, embora, mais uma vez, ainda não pareça ter havido uma distinção
clara entre “psíquico” e “consciente”. É interessante notar que na sinopse
deste artigo, escrita pelo próprio Freud apenas dois anos depois (1897b), ver
em [1] e [2], adiante, ele evidentemente já aceita a concepção de libido como
algo potencialmente inconsciente, e escreve: “A angústia neurótica é a libido
sexual transformada.”
Seja
quais forem os termos em que expressou essa teoria, porém, Freud a sustentou
durante quase toda a vida, ainda que com várias complicações restritivas.
Quanto à longa série de opiniões mutáveis que estavam por vir, um apanhado será
feito na Introdução do Editor inglês (no Vol. XX da Edição Standard) ao
último dos principais trabalhos de Freud sobre o assunto: Inibição, Sintoma
e Angústia (1926d). Nesse intervalo, porém, Freud se viu frente a uma
controvérsia imediata com um colega cético - e psiquiatra Loewenfeld, de
Munique -, da qual resultou o estudo que se segue a este.
SOBRE
OS FUNDAMENTOS PARA DESTACAR DA NEURASTENIA UMA SÍNDROME ESPECIFICA DENOMINADA
NEUROSE DE ANGUSTIA
|INTRODUÇÃO|
É
difícil fazer qualquer afirmação de validade geral sobre a neurastenia, na
medida em que usemos esse nome para abranger todas as coisas que Beard incluiu
nele. Em minha opinião, a neuropatologia só terá a ganhar se fizermos uma
tentativa de separar da neurastenia propriamente dita todos os distúrbios
neuróticos em que, por um lado, os sintomas estão mais firmemente ligados entre
si do que aos sintomas típicos da neurastenia (tais como pressão intracraniana,
irritação espinhal e dispepsia com flatulência e constipação), e que, por outro
lado, exibem diferenças essenciais, em sua etiologia e mecanismo, em relação à
neurose neurastênica típica. Se aceitarmos esse plano, logo obteremos um quadro
bastante uniforme da neurastenia. Estaremos então em condições de diferenciar
da neurastenia genuína, mais nitidamente do que tem sido possível até aqui,
várias pseudoneurastenias (tais como o quadro clínico da neurose reflexa nasal,
organicamente determinada, os distúrbios nervosos das caquexias e
arteriosclerose, os estágios preliminares de paralisia geral dos loucos, e
algumas psicoses). Além disso, será possível - como propôs Moebius - eliminar
alguns dos status nervosi |estados nervosos| de indivíduos
hereditariamente degenerados; e também descobriremos razões pelas quais várias
neuroses hoje descritas como neurastenia - em particular, as neuroses de
natureza periódica ou intermitente - devem, antes, ser incluídas na melancolia.
Contudo, a mais notável de todas as mudanças será introduzida se decidirmos
destacar da neurastenia a síndrome que proponho descrever nas próximas páginas
e que satisfaz de modo especialmente completo as condições estabelecidas acima.
Clinicamente, os sintomas dessa síndrome relacionam-se de modo muito mais
estreito entre si do que com os da neurastenia genuína (isto é, freqüentemente
aparecem juntos e substituem uns aos outros no curso da enfermidade); e tanto a
etiologia como o mecanismo dessa neurose são fundamentalmente diferentes da
etiologia e do mecanismo da neurastenia genuína, tal como esta será
caracterizada depois de efetuada a referida separação.
Chamo
essa síndrome de “neurose de angústia” porque todos os seus componentes podem
ser agrupados em torno do sintoma principal da angústia, pois cada um deles
mantém com esta última uma relação definida. Eu acreditava que essa concepção
dos sintomas da neurose de angústia se tivesse originado em mim, até que me
chegou às mãos um interessante artigo de E. Hecker (1893) onde encontrei a
mesma interpretação, exposta com toda a clareza e completude que se poderia
desejar. Entretanto, embora Hecker reconheça certos sintomas como equivalentes
ou como rudimentos de um ataque de angústia, não os separa do campo da
neurastenia como me proponho fazer. Mas isso se deve, evidentemente, ao fato de
ele não ter levado em consideração a diferença entre os determinantes
etiológicos nos dois casos. Quando esta diferença é reconhecida, não há mais
necessidade de designar os sintomas de angústia pelo mesmo nome dos legítimos
sintomas neurastênicos, pois o objetivo principal de postular o que de outra
maneira seria um nome arbitrário é facilitar a enunciação de asserções gerais.
I - A SINTOMATOLOGIA CLÍNICA DA NEUROSE DE ANGÚSTIA
O que
denomino “neurose de angústia” pode ser observado numa forma rudimentar ou
totalmente desenvolvida, tanto isoladamente como combinada com outras neuroses.
Naturalmente, são os casos até certo ponto completos e ao mesmo tempo isolados
que sustentam de maneira especial a impressão de que a neurose de angústia é
uma entidade clínica. Em outros casos em que a síndrome corresponde a uma
“neurose mista”, defrontamo-nos com a tarefa de distinguir e separar os
sintomas que não pertencem à neurastenia ou à histeria etc., mas à neurose de
angústia.
O
quadro clínico da neurose de angústia abrange os seguintes sintomas:
(1)Irritabilidade
geral. Este é um sintoma nervoso comum e, como tal, pertence a outros status
nervosi. Menciono-o aqui porque aparece invariavelmente na neurose de
angústia e é teoricamente importante. A irritabilidade aumentada aponta sempre
para um acúmulo de excitação ou uma incapacidade de tolerar tal acúmulo - isto
é, para um acúmulo absoluto ou relativo de excitação. Uma das
manifestações dessa irritabilidade aumentada me parece merecer menção especial;
refiro-me à hiperestesia auditiva, a uma hipersensibilidade ao ruído -
um sintoma indubitavelmente explicável pela íntima relação inata entre as
impressões auditivas e o pavor. A hiperestesia auditiva revela-se
freqüentemente como sendo causa de insônia, da qual mais de uma forma pertence
à neurose de angústia.
(2)Expectativa
angustiada. Não conheço melhor maneira de descrever o que tenho em mente
senão por esse nome e acrescentando alguns exemplos. Por exemplo, uma mulher
que sofre de expectativa angustiada pensará numa pneumonia fatal a cada vez que
seu marido tossir quando estiver resfriado, e com os olhos da imaginação
assistirá à passagem do funeral dele; se, dirigindo-se a sua casa, observar
duas pessoas paradas à porta da frente, não poderá evitar a idéia de que um de
seus filhos caiu da janela; quando ouve baterem à porta, imagina que sejam
notícias da morte de alguém, e assim por diante - sendo que, em todas essas
ocasiões, não há nenhum fundamento específico para exagerar uma mera
possibilidade.
Naturalmente,
a expectativa angustiada se esmaece e se transforma imperceptivelmente na
angústia normal, compreendendo tudo o que se costuma qualificar de ansiedade -
ou tendência a adotar uma visão pessimista das coisas; no entanto, em qualquer
oportunidade ela ultrapassa a angústia plausível dessa natureza e é
freqüentemente reconhecida pelo próprio paciente como uma espécie de compulsão.
Para uma das formas da expectativa angustiada - a que se relaciona com a saúde
do próprio sujeito - podemos reservar o velho termo hipocondria. O auge
alcançado pela hipocondria nem sempre é paralelo à expectativa angustiada
geral; requer como precondição a existência de parestesias e sensações
corporais aflitivas. Assim, a hipocondria é a forma preferida pelos
neurastênicos genuínos quando estes caem presa da neurose de angústia, como
ocorre com freqüência.
Outra
expressão da expectativa angustiada é sem dúvida encontrada na inclinação para
a angústia moral, o escrúpulo e o pedantismo - uma inclinação muitas
vezes presente em pessoas com uma dose de sensibilidade moral maior que de
costume e que, da mesma forma, varia desde o normal até uma forma exagerada de mania
de duvidar.
A
expectativa angustiada é o sintoma nuclear da neurose. Também revela
abertamente uma parte da teoria da neurose. Talvez possamos dizer que existe
nesses casos um quantum de angústia em estado de livre flutuação, o
qual, quando há uma expectativa, controla a escolha das representações e está
sempre pronto a se ligar a qualquer conteúdo representativo adequado.
(3)Mas
a ansiedade - que, embora fique latente a maior parte do tempo no que concerne
à consciência, está constantemente à espreita no fundo - tem outros meios de se
expressar, além desse. Pode irromper subitamente na consciência sem ter sido
despertada por uma seqüência de representações, provocando assim um ataque de
angústia. Esse tipo de ataque de angústia pode consistir apenas no sentimento
de angústia, sem nenhuma representação associada, ou ser acompanhado da
interpretação que estiver mais à mão, tal como representações de extinção da
vida, ou de um acesso, ou de uma ameaça de loucura; ou então algum tipo de
parestesia (similar à aura histérica pode combinar-se com o sentimento de
angústia, ou, finalmente, o sentimento de angústia pode estar ligado ao
distúrbio de uma ou mais funções corporais - tais como a respiração, a
atividade cardíaca, a inervação vasomotora, ou a atividade glandular. Dessa
combinação o paciente seleciona ora um fator particular, ora outro. Queixa-se
de “espasmos do coração”, “dificuldade de respirar”, “inundações de suor”,
“fome devoradora”, e coisas semelhantes; e, em sua descrição, o sentimento de
angústia freqüentemente recua para o segundo plano ou é mencionado de modo
bastante irreconhecível, como um “sentir-se mal”, “não estar à vontade”, e
assim por diante.
(4)Ora,
um fato interessante e de importância desde a perspectiva do diagnóstico é que
a proporção em que esses elementos se misturam num ataque de angústia varia em
grau notável, e que quase todos os sintomas concomitantes podem constituir o
ataque isoladamente, assim como o pode a própria angústia. Há, por conseguinte,
ataques de angústia rudimentares e equivalentes de ataques de angústia,
todos provavelmente com a mesma significação, exibindo uma grande riqueza de
formas até aqui pouco estudada. Um exame mais detalhado desses estados larvares
de angústia (como Hecker |1893| os chama) e de sua diferenciação diagnóstica
dos outros ataques logo se tornará uma tarefa necessária para os
neuropatologistas.
Incluo
aqui uma lista que inclui apenas as formas de ataques de angústia que me são
conhecidas:
(a)Ataques
de angústia acompanhados por distúrbios da atividade cardíaca, tais como
palpitação, seja com arritmia transitória ou com taquicardia de duração mais
longa, que pode terminar num grave enfraquecimento do coração e que nem sempre
é facilmente diferenciável da afecção cardíaca orgânica; e ainda a pseudo-angina
do peito - um assunto delicado em termos de diagnóstico!
(b)Ataques
de angústia acompanhados por distúrbios respiratórios, várias formas de
dispnéia nervosa, acessos semelhando asma e similares. Gostaria de enfatizar
que mesmo esses ataques nem sempre vêm acompanhados de angústia reconhecível.
(c)Acessos
de suor, geralmente à noite.
(d)Acessos
de tremores e calafrios, muito facilmente confundidos com ataques
histéricos.
(e)Acessos
de fome devoradora, freqüentemente acompanhados de vertigem.
(f)Diarréia
sobrevindo em acessos.
(g)Acessos
de vertigem locomotora.
(h)Acessos
do que se conhece como congestões, incluindo praticamente tudo o que tem
sido denominado de neurastenia vasomotora.
(i)Acessos
de parestesias. (Estes, porém, raramente ocorrem sem angústia ou uma
sensação semelhante de mal-estar.)
(5)O acordar
em pânico à noite (o pavor nocturnus dos adultos), que em geral se
combina com angústia, dispnéia, suores etc., muitas vezes nada mais é do que
uma variante do ataque de angústia. Esse distúrbio é determinante de uma
segunda forma de insônia dentro do campo da neurose de angústia. |Cf. em [1].|
Além disso, estou convencido de que o pavor nocturnus das crianças
também exibe uma forma que pertence à neurose de angústia. O traço de histeria
existente nele, a ligação da angústia à reprodução de uma experiência
apropriada ou de um sonho, dá ao pavor nocturnus infantil a aparência de
alguma coisa especial. O pavor, porém, também pode emergir em forma
pura, sem qualquer sonho ou alucinação repetitiva.
(6)A
“vertigem” ocupa um lugar preeminente no grupo de sintomas da neurose de
angústia. Em sua forma mais branda, sua melhor descrição é a de “tonteira”; em
suas manifestações mais intensas, como os “acessos de vertigens” (com ou sem
angústia), deve ser classificada entre os sintomas mais graves da neurose. A
vertigem da neurose de angústia não é rotatória nem afeta especialmente certos
planos ou direções, como a vertigem de Ménière. Pertence à classe da vertigem
locomotora ou coordenatória, tal como a vertigem da paralisia oculomotora.
Consiste num estado específico de mal-estar, acompanhado por sensações de que o
solo oscila, as pernas cedem e é impossível manter-se em pé por mais tempo;
enquanto isso, as pernas pesam como chumbo e tremem, ou os joelhos se dobram.
Essa vertigem nunca leva a quedas. Por outro lado, gostaria de esclarecer que
esse tipo de acesso de vertigem pode ser substituído por um desmaio profundo.
Outros estados da natureza do desmaio que ocorre na neurose de angústia parecem
depender do colapso cardíaco.
Os
acessos de vertigem não raro são acompanhados pelo pior tipo de angústia,
freqüentemente combinada com distúrbios cardíacos e respiratórios. De acordo
com minhas observações, as vertigens produzidas pela altitude, pelas montanhas
e precipícios participam com freqüência da neurose de angústia. Além disso, não
estou certo se não seria também correto reconhecer, ao lado destas, uma vertigo
a stomacho laeso |de origem gástrica|.
(7)Com
base, por um lado, na ansiedade crônica (expectativa angustiada) e, por outro,
uma tendência a ataques de angústia acompanhados de vertigem, dois grupos de
fobias típicas se desenvolvem, relacionando-se o primeiro com riscos
fisiológicos gerais e o segundo com a locomoção. Pertencem ao primeiro grupo o
medo de cobras, tempestades, escuridão, vermes, e assim por diante, assim como
o típico escrúpulo moral excessivo e algumas formas da mania de duvidar. Aqui,
a angústia disponível é empregada simplesmente para reforçar aversões que estão
instintivamente implantadas em todas as pessoas. Em geral, porém, uma fobia que
atue de modo obsessivo só é formada se se acrescentar a ela a recordação de uma
experiência em que a angústia tenha podido manifestar-se - como, por exemplo,
depois de o paciente ter vivenciado uma tempestade ao desabrigo. É um erro
tentar explicar tais casos como simples persistência de impressões fortes; o
que torna essas experiências importantes, e sua lembrança duradoura, é, afinal,
apenas a angústia que pôde emergir no momento |da experiência| e que, da mesma
maneira, pode emergir agora. Em outras palavras, tais impressões só permanecem
poderosas em pessoas com “expectativa angustiada”.
O
outro grupo inclui a agorafobia, com todas as suas formas acessórias,
todas caracterizadas por sua relação com a locomoção. Muitas vezes constatamos
que essa fobia se baseia num acesso de vertigem que a precedeu; não penso,
porém, que se possa postular tal acesso na totalidade dos casos.
Ocasionalmente, constatamos que, após um primeiro acesso de vertigem sem
angústia,a locomoção ainda continua possível sem restrição, embora, daí por
diante, seja constantemente acompanhada de uma sensação de vertigem; mas vemos
que, em certas condições - como estar sozinho ou numa rua estreita -, a
locomoção fica impossibilitada quando a angústia vem somar-se ao acesso de
vertigem.
A
relação dessas fobias com as fobias da neurose obsessiva, cujo mecanismo
esclareci num artigo anterior deste periódico, é da espécie que se segue. O que
elas têm em comum é que, em ambas, uma representação torna-se obsessiva em
decorrência de estar ligada a um afeto disponível. O mecanismo de transposição
do afeto, portanto, é válido em ambos os tipos de fobia. Contudo, nas
fobias da neurose de angústia (1) esse afeto tem sempre a mesma tonalidade, que
é a da angústia; e (2) o afeto não se origina numa representação recalcada,
revelando-se não adicionalmente redutível pela análise psicológica, nem
equacionável pela psicoterapia. Portanto, o mecanismo da substituição
não é válido para as fobias da neurose de angústia.
Ambas
as espécies de fobias (e também as obsessões) freqüentemente aparecem lado a
lado, embora as fobias atípicas, baseadas nas obsessões, não precisem
brotar, necessariamente, do solo da neurose de angústia. Um mecanismo muito
freqüente e aparentemente complicado ocorre quando, no que era originalmente
uma simples fobia pertencente a uma neurose de angústia, o conteúdo dessa fobia
é substituído por outra representação de modo que o substituto é subseqüente
à fobia. Geralmente, o que mais se emprega como substituições são as “medidas
protetoras” originalmente usadas para combater a fobia. Por exemplo, a “mania
especulativa” é suscitada a partir dos esforços do sujeito para provar que ele
não é louco, como lhe afirma sua fobia hipocondríaca; as hesitações e a dúvida,
e mais ainda as repetições da folie du doute |mania de duvidar| emergem
de uma dúvida justificável quanto à certeza do curso do próprio pensamento, já
que se está cônscio do persistente distúrbio deste por representações de tipo
obsessivo, e assim por diante. Portanto, podemos afirmar que também muitas das
síndromes da neurose obsessiva, como a folie du doute e outras
semelhantes, devem ser consideradas, clínica, se não conceitualmente, como
pertencentes à neurose de angústia.
(8)As
atividades digestivas sofrem apenas alguns distúrbios na neurose de angústia;
mas estes são característicos. Sensações como uma inclinação ao vômito e náusea
não são raras, e o sintoma da fome devoradora pode, isoladamente ou em conjunto
com outros sintomas (como as congestões), suscitar um ataque de angústia
rudimentar. Como mudança crônica, análoga à expectativa angustiada, encontramos
uma disposição à diarréia, o que tem ocasionado os mais estranhos erros de
diagnóstico. Se não me engano, foi para essa diarréia que Moebius (1894) chamou
a atenção recentemente num pequeno artigo. Suspeito ainda que a diarréia
reflexa de Peyer, que ele deriva de distúrbios da próstata (Peyer, 1893), nada
mais é que essa diarréia da neurose de angústia. A ilusão de uma relação reflexa
é criada porque os mesmos sintomas que atuam na etiologia da neurose de
angústia atuam na deflagração de tais afecções da próstata e distúrbios
semelhantes.
O
comportamento do aparelho gastrintestinal na neurose de angústia apresenta um
agudo contraste com a influência da neurastenia nessas funções. Os casos mistos
mostram com freqüência a familiar “alternância entre diarréia e constipação”.
Análoga a essa diarréia é a necessidade de urinar que ocorre na neurose de
angústia.
(9)As
parestesias que podem acompanhar os acessos de vertigem ou angústia são
interessantes porque, tal como as sensações da aura histérica, associam-se numa
seqüência definida, embora eu considere que essas associações, contrariamente
às histéricas, são atípicas e mutáveis. Outra similaridade com a histeria é
fornecida pelo fato de que, na neurose de angústia, ocorre uma espécie de conversão
para sensações corporais que pode facilmente passar despercebida - por exemplo,
para os músculos reumáticos. Grande número do que se conhece como indivíduos
reumáticos - que, além disso, se pode demonstrar serem reumáticos -
sofre, na realidade, de neurose de angústia. Ao lado desse aumento da
sensibilidade à dor, tenho também observado em muitos casos de neurose de
angústia uma tendência às alucinações; e estas não podem ser
interpretadas como histéricas.
(10)Vários
dos sintomas que mencionei, que acompanham ou substituem um ataque de angústia,
aparecem também sob forma crônica. Nesse caso, são ainda menos fáceis de
reconhecer, pois a sensação ansiosa que os acompanha é menos clara que num
ataque de angústia. Isso se aplica particularmente à diarréia, à vertigem e às
parestesias. Assim como um acesso de vertigens pode ser substituído por um
desmaio, a vertigem crônica pode ser substituídapor uma sensação permanente de
grande fraqueza, lassidão e assim por diante.
II - INCIDÊNCIA E ETIOLOGIA DA NEUROSE DE ANGÚSTIA
Em
alguns casos de neurose de angústia não se descobre absolutamente nenhuma
etiologia. Vale notar que, em tais casos, raramente há dificuldade em se
estabelecerem provas de uma grave tara hereditária.
Mas
quando há fundamentos para se considerar a neurose como adquirida, uma
cuidadosa investigação orientada nesse sentido revela que um conjunto de
perturbações e influências da vida sexual são os fatores etiológicos
atuantes. Estes, à primeira vista, parecem de natureza variada, mas logo
revelam o caráter comum que explica por que têm um efeito similar no sistema
nervoso. Além disso, fazem-se presentes, isoladamente ou em conjunto com outras
perturbações de tipo banal (“stock”) às quais podemos atribuir um efeito
de contribuição. Essa etiologia sexual da neurose de angústia pode ser
demonstrada com tão esmagadora freqüência que me arrisco, no âmbito deste
pequeno artigo, a desconsiderar os casos em que a etiologia é duvidosa ou
diferente.
A fim
de que as condições etiológicas sob as quais ocorre a neurose de angústia
possam ser apresentadas com maior precisão, será recomendável considerarmos
separadamente homens e mulheres. Nas mulheres - deixando de lado, por ora, sua
predisposição inata - a neurose de angústia ocorre nos seguintes casos:
(a) Como angústia virginal ou angústia
nas adolescentes. Inúmeras observações inequívocas me têm demonstrado que a
neurose de angústia pode ser produzida, nas meninas que se aproximam da
maturidade, por seu primeiro contato com o problema do sexo, por qualquer
revelação mais ou menos repentina de algo até então escondido - por exemplo,
pela visão do ato sexual ou por conversas ou leituras sobre esse assunto. Tal
neurose de angústia combina-se com a histeria de maneira quase típica.
(b)
Como angústia da recém-casada. As jovens casadas que permaneceram
anestésicas durante suas primeiras coabitações não raro adoecem de neurose de
angústia, que volta a desaparecer tão logo a anestesia cede lugar à
sensibilidade normal. Já que a maioria das jovens esposas continua saudável
quanto há uma anestesia inicial desse tipo, deduz-se daí que, a fim de que esse
gênero de angústia possa emergir, outros determinantes são requeridos, e eu os
mencionarei mais adiante.
(c)
Como angústia nas mulheres cujos maridos sofrem de ejaculação precoce ou de
potência marcantemente enfraquecida; e (d) cujos maridos praticam o
coito interrompido ou reservatus. Esses casos |(c) e (i)|
integram uma mesma classe, pois, analisando um grande número de exemplos, é
fácil nos convencermos de que eles dependem simplesmente de a mulher obter ou
não satisfação no coito. Se não, deparamos com a condição da gênese de uma
neurose de angústia. Por outro lado, ela escapa da neurose quando o marido que
sofre de ejaculação precoce consegue repetir o coito imediatamente com maior
sucesso. O coitus reservatus através do condom não é nocivo à mulher,
desde que esta seja rapidamente excitável e o marido, muito potente; de outro
modo, essa espécie de intercurso preventivo não é menos nociva que as demais. O
coito interrompido é quase sempre prejudicial. Para a mulher, porém, só o é
quando o marido o pratica descuidadamente - isto é, quando interrompe a relação
tão logo ele se aproxima da emissão, sem se importar com o curso da
excitação nela. Quando, por outro lado, o marido aguarda a satisfação da
mulher, o coito corresponde a uma relação normal para ela, mas ele
padecerá de neurose de angústia. Coligi e analisei um grande número de
observações em que estas asserções se fundamentam.
(e)
A neurose de angústia ocorre também como angústia em viúvas e mulheres
voluntariamente abstinentes, não raro numa combinação típica com
representações obsessivas; e
(f)
Como angústia no climatério, durante o último grande aumento da
necessidade sexual.
Os
casos (c), (d) e (e) abarcam as condições em que a neurose
de angústia no sexo feminino surge de maneira mais freqüente e rápida,
independentemente da predisposição hereditária. É com referência a esses casos
curáveis e adquiridos - que tentarei mostrar que as perturbações sexuais neles
descobertas são, na realidade, o fator etiológico da neurose.
Antes
de fazê-lo, entretanto, discutirei os determinantes sexuais da neurose de
angústia nos homens. Proponho distinguir os seguintes grupos todos os
quais têm analogias nas mulheres:
(a)
Angústia em homens voluntariamente abstinentes, freqüentemente combinada
com sintomas de defesa (idéias obsessivas, histeria). Os motivos
responsáveis pela abstinência voluntária implicam que muitas pessoas com
predisposição hereditária, excêntricas etc., incluem-se nessa categoria.
(b)
Angústia em homens em estado de excitação não consumada (por exemplo,
durante o período do noivado) ou naqueles que (por medo das conseqüências da
relação sexual) se contentam em tocar ou contemplar as mulheres. Esse grupo de
determinantes - os quais, aliás, podem aplicar-se sem alterações ao outro sexo
(durante o noivado ou em situações onde se evita a relação sexual) - fornece os
casos mais puros da neurose.
(c)
Angústia em homens que praticam o coito interrompido. Como se disse, este é
nocivo à mulher quando praticado sem respeito a sua satisfação; mas é
nocivo ao homem quando este, para proporcionar-lhe satisfação, dirige
voluntariamente o coito e adia a emissão. Desse modo, torna-se inteligível por
que, quando um casal pratica o coito interrompido, em geral apenas um
dos parceiros adoece. Nos homens, além disso, é raro o coito interrompido
produzir uma neurose de angústia pura; em geral, produz uma mistura de neurose
de angústia e neurastenia.
(d)
Angústia em homens senescentes. Há homens que têm um climatério,
como as mulheres, e que desenvolvem uma neurose de angústia nessa ocasião de
potência decrescente e crescente libido.
Finalmente,
devo acrescentar dois outros casos que se aplicam a ambos os sexos:
()As
pessoas que, em decorrência de praticarem a masturbação, tornaram-se
neurastênicas, caem vítimas da neurose de angústia tão logo abandonam sua forma
de satisfação sexual. Tais pessoas tornaram-se particularmente incapazes de
tolerar a abstinência.
Devo
assinalar aqui, como um dado importante para a compreensão da neurose de
angústia, que qualquer desenvolvimento pronunciado dessa afecção só ocorre
entre os homens que continuaram potentes ou entre as mulheres que não são
anestésicas. Entre os neuróticos cuja potência já foi severamente comprometida
pela masturbação, a neurose de angústia resultante da abstinência é muito leve
e geralmente restrita à hipocondria e à vertigem crônica branda. A maioria das
mulheres, de fato, deve ser considerada “potente”; a mulher realmente impotente
- isto é, realmente anestésica - é similarmente pouco suscetível à neurose de
angústia e tolera notavelmente bem as perturbações que descrevi.
Neste
artigo, ainda não me agradaria discutir até que ponto, além disso, é
justificável postularmos qualquer relação constante entre determinados fatores
etiológicos e determinados sintomas no complexo da neurose de angústia.
() A
última das condições etiológicas que tenho a apresentar parece, à primeira
vista, não ser de natureza sexual. A neurose de angústia também emerge - em
ambos os sexos - como resultado do fator de sobrecarga de trabalho ou esforço
exaustivo - como, por exemplo, após noites em claro, atendimento a pessoas
doentes, ou mesmo após enfermidades graves.
A
principal objeção a meu postulado de uma etiologia sexual na neurose de
angústia terá, provavelmente, o seguinte cunho: as condições anormais de vida
sexual do tipo que descrevi são constatadas com tão grande freqüência que
estamos fadados a encontrá-las sempre que procurarmos por elas. Sua presença
nos casos de neurose de angústia que enumerei não prova, portanto, que nelas
tenhamos descoberto a etiologia da neurose. Ademais, o número de pessoas que
praticam o coito interrompido e coisas semelhantes é incomparavelmente maior
que o número das pessoas afligidas pela neurose de angústia, e a grande maioria
das primeiras tolera muito bem essa perturbação.
A
isso devo responder, em primeiro lugar, que, considerando a freqüência
admitidamente enorme das neuroses, sobretudo da neurose de angústia, por certo
não seria correto esperar encontrar para elas um fator etiológico de ocorrência
rara; em segundo lugar, que um postulado de patologia é efetivamente
atendido quando, numa investigação etiológica, é possível demonstrar que a presença
de um fator etiológico é mais freqüente do que seus efeitos, já que, para que
estes ocorram, talvez seja preciso que existam outras condições adicionais
(tais como predisposição, soma de elementos etiológicos específicos, ou reforço
por meio de outros fatores banais); e ainda, que uma dissecção detalhada de
casos adequados de neurose de angústia comprova sem sombra de dúvida a
importância do fator sexual. Aqui, entretanto, vou restringir-me ao fator
etiológico isolado do coito interrompido, ressaltando certas observações que o
confirmam.
(1)Quando
uma neurose de angústia ainda não se estabeleceu numa jovem casada, aparecendo
apenas em acessos isolados e logo desaparecendo espontaneamente, é possível
demonstrar que cada um desses acessos da neurose é atribuível a um coito de
satisfação deficiente. Dois dias após essa experiência - ou, no caso de pessoas
de pouca resistência, no dia seguinte -, o ataque de angústia ou de vertigem
aparece regularmente, trazendo em sua esteira outros sintomas da neurose. Tudo
isso torna a desaparecer, desde que a relação conjugal seja relativamente rara.
Um eventual afastamento do marido de casa, ou uma temporada nas montanhas que
exija uma separação do casal têm bom efeito. O tratamento ginecológico a que se
costuma recorrer é benéfico porque, enquanto dura, a relação sexual é suspensa.
Curiosamente, o sucesso do tratamento local é apenas transitório: a neurose se
instala de novo na montanha, tão logo o marido inicia também suas férias, e
assim por diante. Quando, na qualidade de médico que compreenda essa etiologia,
providencia-se a substituição do coito interrompido por uma relação sexual
normal - num caso em que a neurose ainda não se tenha estabelecido - obtém-se
uma prova terapêutica da afirmação que fiz. A angústia menor é eliminada
e - a menos que haja uma nova causa do mesmo tipo - não retorna.
(2)Nas
anamneses de muitos casos de neurose de angústia descobrimos, tanto em homens
como em mulheres, uma notável oscilação na intensidade de suas manifestações e,
a rigor, nas alternâncias de todo esse estado. Um ano, dirão eles, foi quase
inteiramente bom, enquanto o ano seguinte foi terrível; numa dada ocasião a melhoria
pareceu dever-se a um tratamento específico, que, no entanto, revelou-se inútil
no ataque seguinte; e assim por diante. Se indagarmos o número e a seqüência
dos filhos e compararmos esse registro do casamento com a história peculiar da
neurose, chegaremos à simples conclusão de que os períodos de melhora ou de boa
saúde coincidiram com as gestações da esposa, durante as quais, é claro, não
havia mais necessidade do coito com medidas preventivas. O marido beneficiou-se
do tratamento depois do qual soube que sua mulher estava grávida - quer o tenha
recebido do Pastor Kneipp ou de um estabelecimento hidropático.
(3)A
anamnese dos pacientes freqüentemente revela que os sintomas da neurose de
angústia, em algum período definido, sucederam-se aos sintomas de alguma outra
neurose - talvez da neurastenia - e assumiram seu lugar. Nesses casos, pode-se
mostrar com grande regularidade que, pouco antes dessa alteração do quadro,
ocorrera uma mudança correspondente na forma do fator sexual nocivo.
As
observações desse tipo, que podem ser multiplicadas à vontade, decididamente
impõem ao médico uma etiologia sexual para certa categoria de casos. E outros
casos, que de outra forma permaneceriam ininteligíveis, podem ao menos ser
compreendidos e classificados sem incongruência, empregando-se tal etiologia
como chave. Tenho em mente os inúmeros casos em que, de fato, acha-se presente
tudo o que encontramos na categoria anterior - de um lado, as manifestações da
neurose de angústia e, de outro, o fator específico do coito interrompido -,
mas em que algo mais também se introduz: a saber, um longo intervalo entre a
etiologia presumida e a eclosão de seus efeitos, e talvez também fatores
etiológicos que não sejam de natureza sexual. Tome-se, por exemplo, um homem
que, ao receber a notícia da morte do pai, tem um ataque cardíaco e, a partir
desse momento, cai vítima de uma neurose de angústia. O caso não é
compreensível, pois, até então, o homem não era neurótico. A morte do pai, que
tinha idade bastante avançada, não ocorreu em circunstâncias nada especiais, e
havemos de admitir que o falecimento normal e esperado de um pai idoso não é
uma daquelas experiências que costumam fazer com que um adulto saudável adoeça.
Talvez a análise etiológica se torne mais clara se eu acrescentar que esse
homem vinha praticando o coito interrompido há onze anos, com a devida
consideração pela satisfação de sua mulher. Os sintomas clínicos são, no
mínimo, exatamente iguais aos que aparecem em outras pessoas logo após uma
breve perturbação sexual da mesma espécie, e sem a interpolação de qualquer
outro trauma. Uma avaliação similar deve ser feita do caso de uma mulher cuja
neurose de angústia eclodiu após a perda de um filho, ou do caso do estudante
cujos estudos preparatórios para o exame final foram perturbados por uma
neurose de angústia. Penso que, também nesses casos, o efeito não é explicável
pela etiologia aparente. Não se fica necessariamente “sobrecarregado” pelo
estudo, e uma mãe saudável costuma reagir apenas com uma tristeza normal à
perda de um filho. Acima de tudo, entretanto, eu teria esperado que o
estudante, em conseqüência de sua sobrecarga de trabalho, adquirisse
cefalastenia, e a mãe, em conseqüência de sua aflição, histeria. O fato de
ambos terem sido dominados pela neurose de angústia leva-me a atribuir
importância ao fato de a mãe ter praticado por oito anos o coito conjugal
interrompido e ao fato de o estudante ter tido, durante três anos, um ardente
caso amoroso com uma jovem “respeitável” cuja gravidez ele precisara evitar.
Essas
considerações levam-nos à conclusão de que a perturbação sexual específica do
coito interrompido, mesmo que não consiga, por sua própria conta, provocar uma
neurose de angústia no sujeito, ao menos o predispõe a adquiri-la. A
neurose de angústia eclode tão logo se adiciona ao efeito latente do fator
específico o efeito de outra perturbação banal. Esta última pode atuar
quantitativamente no sentido do fator específico, mas não pode substituí-lo
qualitativamente. O fator específico permanece sempre decisivo quanto à forma
tomada pela neurose. Espero poder provar essa asserção concernente à etiologia
das neuroses de maneira também mais abrangente.
Além
disso, estes últimos comentários contêm uma suposição que não é em si mesma
improvável, no sentido de que uma perturbação sexual como o coito interrompido
passa a vigorar por soma. É preciso um tempo mais ou menos longo - dependendo
da disposição individual e de quaisquer outras deficiências hereditárias do
sistema nervoso - para que o efeito dessa soma se torne visível. De fato, os
indivíduos que aparentemente toleram sem prejuízo o coito interrompido ficam
por ele predispostos aos distúrbios da neurose de angústia, seja após um trauma
corriqueiro que, em condições normais, não seria suficiente para isso; do mesmo
modo, por meio da soma, um alcoólatra crônico desenvolverá finalmente uma
cirrose ou alguma outra doença, ou ainda, por influência de uma febre, cairá
vítima de um delírio.
III - PRIMEIROS PASSOS EM DIREÇÃO A UMA TEORIA DA NEUROSE DE ANGÚSTIA
A discussão
teórica que se segue arroga-se apenas o valor de uma primeira e tateante
tentativa; a crítica que se faça dela não deve afetar a aceitação dos fatos
que apresentamos acima. Além disso, a avaliação dessa “teoria da neurose de
angústia” é ainda mais dificultada por ser ela apenas um fragmento de uma
explicação mais abrangente das neuroses.
O que
dissemos até aqui sobre a neurose de angústia já fornece alguns pontos de
partida para obtermos um discernimento do mecanismo dessa neurose. Em primeiro
lugar, havia nossa suspeita de que estávamos diante de um acúmulo de excitação
|ver em [1]|; e havia ainda o fato extremamente importante de que não se podia
atribuir a nenhuma origem psíquica a angústia que subjaz aos sintomas
clínicos da neurose. Tal origem existiria, por exemplo, se ficasse constatado
que a neurose de angústia se baseava num único ou repetido terror justificável,
e que este supriria desde então a fonte da pronta disposição do sujeito para a
angústia. Mas não é assim. A histeria ou uma neurose traumática podem ser
adquiridas a partir de um único susto, mas nunca a neurose de angústia. Já que
o coito interrompido ocupa lugar tão preeminente entre as causas da neurose de
angústia, julguei, a princípio, que a fonte da angústia contínua pudesse residir
no medo, reiterado a cada vez que o ato sexual é praticado, de que a técnica
falhasse e daí resultasse a concepção. Contudo, descobri que esse sentimento,
durante o coito interrompido, tanto no homem como na mulher, em nada influencia
a gênese da neurose de angústia; que as mulheres basicamente indiferentes à
conseqüência de uma possível concepção são tão suscetíveis à neurose quanto as
que estremecem ante essa possibilidade; e que tudo depende simplesmente de qual
dos parceiros renuncia à satisfação nessa técnica sexual.
Outro
ponto de partida é fornecido pela observação, não mencionada até aqui, de que,
em grandes grupos de casos, a neurose de angústia é acompanhada por um
decréscimo extremamente acentuado da libido sexual, ou desejo psíquico,
de modo que, quando se diz aos pacientes que suas queixas decorrem de
“satisfação insuficiente”, eles respondem regularmente que isso é impossível,
pois justamente agora toda a sua necessidade sexual se extinguiu. Todas essas
indicações - de que estamos diante de um acúmulo de excitação; de que a
angústia, provavelmente correspondente a essa excitação acumulada, é de origem
somática, de modo que o que se está acumulando é uma excitação somática;
e ainda, de que essa excitação somática é de natureza sexual é acompanhada por
um decréscimo da participação psíquica nos processos sexuais -, todas
essas indicações, dizia eu, levam-nos a esperar que o mecanismo da neurose
de angústia deva ser buscado numa deflexão da excitação sexual somática da
esfera psíquica e no conseqüente emprego anormal dessa excitação.
Esse
conceito do mecanismo da neurose de angústia poderá ser esclarecido se
aceitarmos a seguinte concepção do processo sexual, que se aplica, em primeiro
lugar, aos homens. No organismo masculino sexualmente maduro produz-se a
excitação sexual somática - provavelmente de forma contínua - e,
periodicamente, ela se torna um estímulo para a psique. Para firmarmos nossas
idéias quanto a esse ponto, acrescentarei, por meio de uma interpolação, que
essa excitação somática se manifesta como uma pressão nas paredes das vesículas
seminais, que são revestidas de terminações nervosas; assim, essa excitação
visceral se desenvolve continuamente, mas tem que atingir uma certa altura para
poder vencer a resistência da via de condução intermediária até o córtex
cerebral e expressar-se como um estímulo psíquico. Depois que isso acontece,
entretanto, o grupo de representações sexuais presente na psique fica suprido
de energia e passa a existir um estado psíquico de tensão libidinal que traz em
si uma ânsia de eliminar essa tensão. Uma descarga psíquica desse gênero só é
possível por meio do que chamarei de ação específica ou adequada.
Essa ação adequada consiste, quanto à pulsão sexual masculina, num complicado
ato reflexo raquidiano que promove a descarga das terminações nervosas, e em
todas as preparações psíquicas que têm que ser feitas para acionar esse
reflexo. Qualquer coisa que não a ação adequada seria infrutífera, pois, uma
vez que a excitação sexual somática atinja seu valor limite, ela se converte
continuamente em excitação psíquica, e é positivamente preciso que ocorra algo
que liberte as terminações nervosas da carga de pressão sobre elas - algo que,
por conseguinte, elimine a totalidade da excitação somática existente e permita
à via de condução subcortical restabelecer sua resistência. Abstenho-me de
descrever de maneira similar situações mais complicadas do processo sexual.
Afirmarei apenas que, em essência, essa fórmula é também aplicável às mulheres,
a despeito da confusão introduzida no problema por todos os retardamentos e
tolhimentos artificiais da pulsão sexual feminina. Também nas mulheres devemos
postular uma excitação sexual somática e um estado em que essa excitação se
transforma num estímulo psíquico - libido - e provoca a ânsia da ação
específica a que está ligada a sensação voluptuosa. No que se refere às
mulheres, porém, não estamos em condições de dizer qual é o processo análogo ao
relaxamento da tensão das vesículas seminais.
Podemos
incluir no âmbito dessa descrição do processo sexual não apenas a etiologia da
neurose de angústia, mas também a da neurastenia genuína. A neurastenia surge
sempre que a descarga adequada (a ação adequada) é substituída por uma menos
adequada - por exemplo, quando o coito normal, praticado nas condições mais
favoráveis, é substituído pela masturbação ou pela emissão espontânea. A
neurose de angústia, por outro lado, é produto de todos os fatores que impedem
a excitação sexual somática de ser psiquicamente elaborada. As manifestações da
neurose de angústia aparecem quando a excitação somática que foi desviada da
psique é subcorticalmente despendida em reações totalmente inadequadas.
Tentarei
agora descobrir se as condições etiológicas da neurose de angústia estabelecida
acima |ver em [1] e segs.| exibem a característica comum que acabo de lhes
atribuir. O primeiro fator etiológico que postulei para os homens foi a
abstinência intencional |ver em [1]|. A abstinência consiste no refreamento da
ação específica que ordinariamente decorre da libido. Esse refreamento pode ter
duas conseqüências. Em primeiro lugar, a excitação somática se acumula; é então
desviada por outros canais, que se mostram mais promissores em termos de
descarga do que a via que passa pela psique. Assim, a libido termina por
soçobrar e a excitação se manifesta subcorticalmente como angústia. Em segundo
lugar, quando a libido não diminui, ou quando a excitação somática é
despendida, numa espécie de atalho, em emissões, ou quando, por ser forçado a
recuar, a excitação realmente cessa, segue-se toda sorte de coisas que não uma
neurose de angústia. A abstinência,portanto, leva à neurose de angústia da
maneira acima descrita. Mas ela é também o fator atuante em seu segundo grupo
etiológico, o da excitação não consumada |ver em [1]|. Meu terceiro grupo, o do
coitus reservatus com consideração pela mulher |ibid.|, atua por meio de
um distúrbio da prontidão psíquica do homem para o processo sexual, na medida
em que introduz, juntamente à tarefa de manejar o afeto sexual, uma outra tarefa
psíquica de cunho defletor. Em conseqüência dessa deflexão psíquica, mais uma
vez, a libido desaparece gradualmente e o curso subseqüente das coisas é o
mesmo que no caso da abstinência. A angústia na senectude (o climatério
masculino) |ver em [1]| requer outra explicação. Aqui não há diminuição da
libido; no entanto, como no climatério feminino, ocorre um aumento tão grande
na produção de excitação somática que a psique se mostra relativamente
insuficiente para manejá-lo.
As
condições etiológicas aplicáveis às mulheres podem ser incluídas no contexto de
meu esquema sem maiores dificuldades do que no caso dos homens. A angústia
virginal |ver em [1] [2]| é um exemplo particularmente claro, pois aqui os
grupos de representações aos quais a excitação sexual somática deveria ligar-se
ainda não estão suficientemente desenvolvidos. Na mulher recém-casada
anestésica |ver em [1]|, a angústia só aparece quando as primeiras coabitações
despertam uma quantidade suficiente de excitação somática. Quando faltam as indicações
locais de tal excitamento (sensações espontâneas de estimulação, desejo de
urinar, e assim por diante), a angústia também fica ausente. O caso da
ejaculação precoce e do coito interrompido |ibid.| pode ser explicado tal como
nos homens, isto é, o desejo libidinal do ato psiquicamente insatisfatório
desaparece gradualmente, enquanto a excitação despertada durante o ato é
despendida subcorticalmente. A alienação entre as esferas psíquica e
somática no rumo tomado pela excitação sexual é mais prontamente estabelecida
nas mulheres que nos homens. Os casos de viuvez e abstinência voluntária, e
também os do climatério |ver em [1] e segs.| são tratados do mesmo modo em
ambos os sexos; contudo, no que se refere à abstinência, não há dúvida de que,
no caso das mulheres, existe ainda a questão do recalcamento intencional do
círculo às representações sexuais, à qual a mulher abstinente deve estar atenta
com freqüência em sua luta contra a tentação. O horror que, na época da
menopausa, a mulher em processo de envelhecimento sente diante do aumento
indevido de sua libido pode agir de maneira semelhante.
As
duas últimas condições etiológicas de nossa lista parecem enquadrar-se sem
dificuldade. A tendência à angústia nos masturbadores que se tornaram
neurastênicos |vr em [1]| é explicada pelo fato de que lhes é muito fácil
passarem a um estado de “abstinência” depois de se terem acostumado por tanto
tempo a descarregar até mesmo a menor quantidade de excitação somática, por
mais deficiente que seja essa descarga. Finalmente, o último caso - a gênese da
neurose de angústia por meio de doença grave, sobrecarga de trabalho, cuidado
exaustivo com doentes etc. |ibid.| - encontra uma interpretação fácil ao ser
relacionado com os efeitos do coito interrompido. Aqui, a psique, graças a sua
deflexão, pareceria não mais ser capaz de manejar a excitação somática, tarefa
esta em que, como sabemos, ela está continuamente engajada. Estamos cientes de
que uma libido de nível baixo pode soçobrar nessas condições, e temos aí um bom
exemplo de neurose que, embora não apresente nenhuma etiologia sexual,
apresenta, entretanto, um mecanismo sexual.
A
concepção aqui desenvolvida retrata os sintomas da neurose de angústia como
sendo, em certo sentido, substitutos da ação específica omitida posteriormente
à excitação sexual. Para sustentar ainda mais essa concepção, posso indicar
que, também na copulação normal, a excitação é despendida, entre outras coisas,
na respiração acelerada, palpitação, transpiração, congestão, e assim por
diante. Nos correspondentes ataques de angústia de nossa neurose,
defrontamo-nos com a dispnéia, as palpitações etc., da copulação, numa forma
isolada e exagerada.
E
possível formular mais uma questão. Por que motivo, nessas condições de
insuficiência psíquica para manejar a excitação sexual, o sistema nervoso se
descobre no peculiar estado afetivo de angústia? Pode-se sugerir uma
resposta como se segue. A psique é invadida pelo afeto de angústia
quando se sente incapaz de lidar, por meio de uma reação apropriada, com uma
tarefa (um perigo) vinda de fora; e fica presa de uma neurose de
angústia quando se percebe incapaz de equilibrar a excitação (sexual) vinda de
dentro - em outras palavras, ela se comporta como se estivesse
projetando tal excitação para fora. O afeto e a neurose a ele
correspondente estão firmemente inter-relacionados. O primeiro é uma reação a
uma excitação exógena, e a segunda, uma reação à excitação endógena análoga. O
afeto é um estado que passa rapidamente, enquanto a neurose é um estado
crônico, porque, enquanto a excitação exógena age num único impacto, a
excitação endógena atua como uma força constante. Na neurose, o sistema
nervoso reage a uma fonte de excitação que é interna, enquanto, no afeto
correspondente, ele reage contra uma fonte análoga de excitação que é externa.
IV - RELAÇÃO COM OUTRAS NEUROSES
Há
ainda algumas palavras a dizer sobre as relações da neurose de angústia com as
outras neuroses, no que se refere a seu desencadeamento e suas conexões
internas.
Os
casos mais puros da neurose de angústia costumam ser os mais marcantes. São
encontrados em indivíduos jovens e sexualmente potentes, com etiologia não
dividida e doença que não data de muito tempo.
Mais
freqüentemente, porém, os sintomas de angústia ocorrem ao mesmo tempo que - e
em combinação com - os sintomas de neurastenia, histeria, obsessões ou
melancolia. Se permitíssemos que uma mistura clínica como essa impedisse nosso
reconhecimento da neurose de angústia como entidade independente, deveríamos
também, logicamente, abandonar uma vez mais a separação tão arduamente
conseguida entre a histeria e a neurastenia.
No
intuito de analisar as “neuroses mistas” posso afirmar esta importante verdade:
onde quer que ocorra uma neurose mista, será possível descobrir uma mistura
de várias etiologias específicas.
Uma
multiplicidade de fatores etiológicos como esses, que determinam uma neurose
mista, pode ocorrer de maneira puramente fortuita. Por exemplo, uma nova
perturbação pode acrescentar seus efeitos aos de um fator nocivo já existente.
Assim, uma mulher que sempre foi histérica pode começar, a certa altura de seu
casamento, a vivenciar o coitus reservatus; adquirirá então uma neurose
de angústia em acréscimo a sua histeria. Ou ainda, um homem que antes se
masturbava e que se tornou neurastênico pode ficar noivo e ser sexualmente
excitado por sua noiva; a sua neurastenia virá juntar-se então uma nova neurose
de angústia.
Em
outros casos, a multiplicidade de fatores etiológicos de modo algum é fortuita;
um dos fatores desencadeia a atuação de outro. Por exemplo, uma mulher com quem
o marido pratica o coitus reservatus sem consideração pela satisfação
dela pode sentir-se compelida a se masturbar, a fim de eliminar a excitação
aflitiva que se segue a tal ato; como resultado, produzirá não apenas uma
neurose de angústia pura e simples, mas uma neurose de angústia acompanhada por
sintomas de neurastenia. Outra mulher que sofra desse mesmo fator nocivo pode
ter que lutar contra as imagens lascivas de que tenta defender-se, e assim
adquirirá, por intermédio do coito interrompido, tanto obsessões quanto uma
neurose de angústia. Finalmente, em decorrência do coito interrompido, uma
terceira mulher pode perder sua afeição pelo marido e sentir-se atraída por
outro homem, circunstância que será cuidadosamente mantida em segredo; em
conseqüência, ela apresentará uma mistura de neurose de angústia e histeria.
Numa
terceira categoria de neuroses mistas, a interligação dos sintomas é ainda mais
íntima, no sentido de que o mesmo determinante etiológico provoca, regular e
simultaneamente, ambas as neuroses. Assim, por exemplo, a súbita revelação
sexual que vimos estar presente na angústia virginal sempre dá origem também à
histeria |assim como à neurose de angústia|; a imensa maioria dos casos de
abstinência voluntária liga-se desde o início com idéias obsessivas
verdadeiras; o coito interrompido nos homens nunca me pareceu capaz de provocar
uma neurose de angústia pura, mas sempre uma mistura desta com a neurastenia.
Com
base nessas considerações, parece que devemos ainda distinguir as condições
etiológicas de desencadeamento da neurose e seus fatores etiológicos
específicos. As primeiras - por exemplo, o coito interrompido, a masturbação ou
a abstinência - são ainda ambíguas, e cada qual pode produzir diferentes
neuroses. Apenas os fatores etiológicos que nelas podem ser identificados, tais
como a descarga inadequada, a insuficiência psíquica ou a defesa acompanhada
de substituição, têm uma relação específica e inambígua com a etiologia de
cada uma das principais neuroses.
No
que concerne a sua natureza íntima, a neurose de angústia apresenta as mais
interessantes concordâncias e diferenças em relação às outras neuroses
principais, especialmente a neurastenia e a histeria. Partilha com a
neurastenia uma característica essencial - a saber, a de que a fonte da
excitação, a causa precipitante do distúrbio, reside no campo somático, e não
no psíquico,como ocorre na histeria e na neurose obsessiva. Em outros aspectos,
constatamos, antes, uma espécie de antítese entre os sintomas da neurose de
angústia e os da neurastenia, que poderia evidenciar-se em rótulos como
“acúmulo de excitação” e “empobrecimento da excitação”. Essa antítese não
impede que as duas neuroses se misturem; mesmo assim, porém, transparece no
fato de que as formas mais extremas de cada uma das neuroses são também, em
ambos os casos, as mais puras.
A
sintomatologia da histeria e a da neurose de angústia mostram muitos pontos em
comum, que ainda não foram suficientemente considerados. O aparecimento dos
sintomas, seja sob forma crônica ou em ataques, as parestesias, agrupadas como
auras, as hiperestesias e pontos de pressão que são encontrados em certos
substitutos do ataque de angústia (na dispnéia e nos ataques cardíacos), a
intensificação, pela conversão, de dores que talvez tenham justificação
orgânica - estes e outros traços que as duas doenças têm em comum permitem até
a suspeita de que uma parcela nada insignificante do que se atribui à histeria
poderia, com maior justiça, ser posta na conta da neurose de angústia. Quando
se penetra no mecanismo das duas neuroses, tanto quanto foi possível
descobri-lo até aqui, vêm à tona certos aspectos que sugerem que a neurose de
angústia é, realmente, o equivalente somático da histeria. Tanto na segunda
como na primeira há um acúmulo de excitação (que talvez seja a base da
similaridade entre os sintomas que mencionamos). Tanto na segunda como na
primeira constatamos uma insuficiência psíquica, em conseqüência da qual
surgem processos somáticos anormais. E ainda, tanto na segunda como na
primeira, em vez de uma elaboração psíquica da excitação, há um desvio dela
para o campo somático; a diferença está apenas em que, na neurose de angústia,
a excitação, em cujo deslocamento a neurose se expressa, é puramente somática
(excitação sexual somática), ao passo que, na histeria, ela é psíquica
(provocada por um conflito). Assim, não surpreende que a histeria e a neurose
de angústia se combinem regularmente uma com a outra, como se vê na “angústia
virginal” ou na “histeria sexual”, e que a histeria simplesmente tome de
empréstimo à neurose de angústia vários sintomas, e assim por diante. Essas
relações íntimas da neurose de angústia com a histeria fornecem, além disso, um
novo argumento para se insistir em destacar a neurose de angústia da
neurastenia, pois, se essa separação não for admitida, também ficaremos
impossibilitados de continuar a manter a distinção entre neurastenia e
histeria, que obtivemos com tanto trabalho e que é tão indispensável para a
teoria das neuroses.
VIENA,
dezembro de 1894.
APÊNDICE:
O TERMO ANGST E SUA TRADUÇÃO INGLESA
Há
pelo menos três passagens em que Freud discute as várias nuanças semânticas
expressas pela palavra alemã “Angst” e pelos cognatos “Furcht” e
“Schreck”. Embora ele acentue o elemento antecipatório e a ausência de
objeto em “Angst”, as distinções que traça não são inteiramente
convincentes e o uso real que faz do termo está longe de obedecer-lhes
invariavelmente. E isso não chega a surpreender, de vez que “Angst” é
uma palavra usada comumente na fala alemã usual, não sendo de forma alguma
exclusivamente um termo técnico psiquiátrico. Ocasionalmente, pode ser
traduzida por qualquer uma dentre meia dúzia de palavras inglesas igualmente
comuns - “fear” |medo|, “fright” |pavor ou susto|, “alarm”
|sobressalto| e assim por diante -, sendo, portanto, muito pouco prático
fixarmo-nos num único termo inglês como sua tradução exclusiva. Entretanto, “Angst”
aparece com freqüência como termo psiquiátrico (particularmente em combinações
como “Angstneurose” ou “Angstanfall”) e, nessas ocasiões, um
equivalente técnico inglês parece fazer-se necessário. A palavra
universalmente, e talvez infelizmente, adotada para esse fim foi “anxiety”
- infelizmente, já que “anxiety” tem também um sentido corrente de
emprego cotidiano, que tem apenas uma remota conexão com qualquer dos usos do
alemão “Angst”. Há, entretanto, um consagrado uso psiquiátrico, ou ao
menos médico, do termo inglês “anxiety”, que remonta (como nos diz o Oxford
Dictionary) à metade do século XVII. Com efeito, o uso psiquiátrico das
duas palavras traz à luz suas origens paralelas. “Angst” é aparentado a
“eng”, palavra alemã que designa “estreito”, “restrito”; “anxiety”
deriva do latim “angere”, “estrangular” ou “apertar”, “estreitar”; em
ambos os casos, a referência é aos sentimentos asfixiantes que caracterizam as
formas graves do estado psicológico em questão. Um estado ainda mais agudo é
descrito em inglês pela palavra “anguish”, que tem a mesma derivação; e
convém notar que Freud, em seus artigos em francês, usa a palavra aparentada “angoisse”
(assim como seu sinônimo “anxieté”) para traduzir o alemão “Angst”.
(Ver em [1].)
O
tradutor inglês é assim levado a uma solução de compromisso: deve usar “anxiety”
nas acepções técnicas ou semitécnicas e, em outros trechos, escolher qualquer
outra palavra do inglês corriqueiro que pareça mais apropriada. Aliás, a
solução adotada em muitas das primeiras traduções de Freud, substituindo “Angst”
por “ansiedade mórbida”, parece especialmente impensada. Um dos principais
problemas teóricos discutidos por Freud é precisamente se, e nesse caso, por
que a “Angst” é ora patológica ora normal. (Ver, por exemplo, o Adendo B
a Inibição, Sintoma e Angústia, Edição Standard Brasileira, Vol.
XX, pág. 189 e segs., IMAGO, Editora, 1976.)
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