Freud - Obras Completas III





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Primeiras Publicações Psicanalíticas


VOLUME III
(1893-1899)

Dr. Sigmund Freud



PREFÁCIO AOS ESCRITOS BREVES DE FREUD
1893-1906 (1906)


NOTA DO EDITOR INGLÊS

PREFÁCIO A SAMMLUNG KLEINER SCHRIFTEN ZUR NEUROSENLEHRE AUS DEN JAHREN
1893-1906

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:
1906 S.K.S.N., 1, iii. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
1925 G.S.,  1, 241-2.
1952 G.W., 1, 557-8.

Esta tradução do prefácio por James Strachey parece ser a primeira em inglês.

O livro que leva esse prefácio foi o primeiro dos cinco volumes-coletâneas de artigos breves de Freud, tendo os demais aparecido em 1909, 1913, 1918 e 1922. O presente volume da Standard Edition inclui a maior parte do conteúdo dessa primeira coletânea. Entretanto, o primeiro dos artigos em francês, que compara a paralisia orgânica com a histérica (1893c), foi incluído no Volume I da Standard Edition, como pertencendo quase inteiramente à fase pré-psicanalítica. Do mesmo modo, seus três últimos itens (dois artigos que figuram nos volumes de Loewenfeld, 1904a e 1906a, e o artigo “Sobre a Psicoterapia”, 1905a), que têm data posterior aos demais, serão encontrados no Volume VII da Standard Edition. Além do mais, a “Comunicação Preliminar” (1893a), reimpressa em Estudos sobre a Histeria (1895d), está incluída no Volume II da Standard Edition, não se repetindo aqui. No entanto, seu lugar é tomado por uma conferência (1893h) recentemente descoberta, contemporânea da “Comunicação Preliminar” e cobrindo o mesmo campo, da qual há uma transcrição estenografada corrigida por Freud. Este volume contém ainda dois artigos que Freud omitira de sua coletânea: a discussão sobre o esquecimento (1898b), depois desenvolvida no primeiro capítulo de Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, e o artigo sobre as “Lembranças Encobridoras” (1899a). Inclui também a lista das sinopses dos primeiros trabalhos de Freud (1897b), elaboradas por ele mesmo com vistas a sua pretensão ao cargo de Professor.
Em razão da precedência dada por Freud, entre esses artigos, a seu obituário de Charcot, parece adequado introduzir o presente volume da Standard Edition com uma reprodução da fotografia autografada com que Charcot o presenteou quando ele deixou Paris em fevereiro de 1886.




PREFÁCIO DE FREUD À COLETÂNEA DOS ESCRITOS BREVES SOBRE A TEORIA DAS NEUROSES DE 1893 A 1906

Atendendo a muitas solicitações que me têm chegado, decidi apresentar a meus colegas, em forma de coletânea, os pequenos trabalhos sobre as neuroses que venho publicando desde 1893. Consistem em quatorze artigos curtos, que em sua maior parte têm o caráter de comunicações preliminares, publicados em boletins científicos ou em periódicos médicos - três deles em francês. Os dois últimos (XIII e XIV), que apresentam em termos sucintos minha atual posição quanto à etiologia e ao tratamento das neuroses, foram extraídos dos conhecidos volumes de Loewenfeld, Die psychischen Zwangserscheinungen |Sintomas Psíquicos Obsessivos|, 1904, e da 4ª edição de Sexualleben und Nervenleiden |Vida Sexual e Doença Nervosa|, 1906, e foram escritos por mim a pedido de seu autor, que é meu amigo. |Ver em. [1].|
Esta coletânea serve como introdução e suplemento a minhas publicações de maior envergadura versando sobre os mesmos tópicos - Estudos sobre a Histeria (com o Dr. J. Breuer), 1895; A Interpretação dos Sonhos, 1900; Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, 1901 e 1904; O Chiste e sua Relação com o Inconsciente, 1905; Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, 1905; e Fragmento da Análise de um Caso de Histeria, 1905. O fato de ter posto meu Obituário de J.-M. Charcot à frente desta coletânea de artigos de minha autoria deve ser considerado não apenas como o resgate de uma dívida de gratidão, mas também como um marco do ponto em que meu próprio trabalho se separa do trabalho do mestre.
Nenhuma pessoa familiarizada com o processo de desenvolvimento do saber humano ficará surpresa ao constatar que, neste ínterim, ultrapassei algumas das opiniões aqui expressas, ao mesmo tempo que venho modificando outras. Não obstante, consegui manter inalterada a maior parte delas e, de fato, não senti necessidade de eliminar coisa alguma como totalmente errônea ou completamente desprezível.




CHARCOT (1893)


NOTA DO EDITOR INGLÊS

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1893 Wien. med. Wschr., 43 (37), 1513-20. (9 de setembro).
1906 S.K.S.N., 1, 1-13. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
1925 G.S., 1, 243-57.
1952 G.W., 1, 21-35.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:
“Charcot”
1924 C.P., 1, 9-23. (Trad. de J. Bernays.)

Incluído (Nº XXII) na coleção de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud elaborada por ele mesmo (1897b). A presente tradução é baseada na de 1924.

De outubro de 1885 a fevereiro de 1886, Freud trabalhou na Salpêtrière, em Paris, sob a direção de Charcot. Esse foi o ponto crucial de sua carreira, pois foi durante esse período que seu interesse transferiu-se da neuropatologia para a psicopatologia - da ciência física para a psicologia. Ainda que outros fatores mais profundos possam ter interferido na mudança, o determinante imediato foi, sem sombra de dúvida, a personalidade de Charcot. Como escreveu ele a sua futura esposa, logo após ter chegado a Paris (em 24 de novembro de 1885). “Acho que estou mudando muito. Vou dizer-lhe detalhadamente o que me está afetando. Charcot, que é um dos maiores médicos e um homem cujo senso comum tem um toque de gênio, está simplesmente desarraigando minhas metas e opiniões. Por vezes, saio de suas aulas como se estivesse saindo da Notre Dame, com uma nova idéia de perfeição. Mas ele me exaure; quando me afasto, não sinto mais nenhuma vontade de trabalhar em minhas próprias bobagens; há três dias inteiros não faço qualquer trabalho, e não tenho nenhum sentimento de culpa. Meu cérebro está saciado, como se eu tivesse passado uma noite no teatro. Se a semente frutificará algum dia, não sei; o que sei é que ninguém jamais me afetou dessa maneira...”
Este obituário, escrito poucos dias após a morte de Charcot, é uma evidência adicional da enorme admiração de Freud por ele, admiração que não perdeu até o fim de sua vida. Os ditos de Charcot afloram constantemente nos textos de Freud e, em todos os relatos de seu próprio desenvolvimento, nunca foi esquecido o papel desempenhado por Charcot.
Embora este seja o mais longo estudo de Freud sobre ele, dois ou três outros trabalhos podem complementá-lo: o relatório oficial de Freud às autoridades da Universidade de Viena sobre o curso de seus estudos em Paris (1956a |1886|), fonte de parte do material de tal obituário; a “História do Movimento Psicanalítico” (1914d), Standard Edition, Vol. XIV, (ver em [1]), o Estudo Autobiográfico (1925d), ibid., Vol. XX ( 12-4), e também o primeiro volume da biografia de Ernest Jones (1953, 202-5).

CHARCOT

A 16 de agosto deste ano, J,-M. Charcot morreu subitamente, sem dor ou doença, após uma vida de felicidade e fama. Nele, prematuramente, a jovem ciência neurológica perdeu seu maior líder, os neurologistas de todos os países perderam seu grande mestre e a França perdeu um de seus mais destacados cidadãos. Tinha apenas sessenta e oito anos; sua força física e seu vigor mental, ao lado das esperanças que ele expressava tão abertamente, pareciam prometer-lhe a longevidade de que desfrutaram não poucos dos intelectuais deste século. Os nove volumes imponentes de suas Oeuvres complètes, em que seus discípulos reuniram suas contribuições à medicina e à neuropatologia, suas Leçons du mardi, os relatórios anuais de sua clínica no Salpêtrière, e outros trabalhos mais - todas essas publicações permanecerão preciosas para a ciência e para seus alunos; mas não podem substituir o homem, que tinha ainda muito mais a dar e a ensinar, e de cuja pessoa e cujos textos ninguém jamais se aproximou sem que aprendesse alguma coisa.
Seu grande sucesso trazia-lhe um honesto e humaníssimo prazer, e ele gostava de conversar sobre o começo de sua trajetória e sobre o caminho já percorrido. Sua curiosidade científica, dizia, cedo fora despertada, quando ele era ainda um jovem interne, pelo abundante material apresentado pelos fatos da neuropatologia, material sequer compreendido àquele tempo. Nessa época, sempre que fazia a ronda com o médico-assistente num dos departamentos do Salpêtrière (instituição hospitalar encarregada de mulheres), em meio a toda a profusão de paralisias, espasmos e convulsões para os quais, há quarenta anos, não havia nome nem compreensão, ele dizia: “Faudrait y retourner et y rester”; e manteve sua palavra. Quando se tornou médecin des hôpitaux, imediatamente providenciou seu ingresso num dos departamentos de pacientes nervosos do Salpêtrière. Tendo-o conseguido, lá permaneceu, ao invés de fazer o que se permitia aos médicos franceses - transferir-se, em sucessão regular, de um departamento para outro e de hospital para hospital, mudando ao mesmo tempo de especialidade.
Assim, sua primeira impressão e a resolução daí resultante foram decisivas para a totalidade de seu desenvolvimento ulterior. Dispor de um grande número de pacientes nervosos crônicos permitiu-lhe utilizar seus próprios dotes especiais. Não era Charcot um homem dado a reflexões excessivas, um pensador: tinha, antes, a natureza de um artista - era, como ele mesmo dizia, um “visuel”, um homem que vê. Eis o que nos falou sobre seu método de trabalho. Costumava olhar repetidamente as coisas que não compreendia, para aprofundar sua impressão delas dia-a-dia, até que subitamente a compreensão raiava nele. Em sua visão mental, o aparente caos apresentado pela repetição contínua dos mesmos sintomas cedia então lugar à ordem: os novos quadros nosológicos emergiam, caracterizados pela combinação constante de certos grupos de sintomas. Os casos extremos e completos, os “tipos”, podiam ser destacados com a ajuda de uma espécie de planejamento esquemático e, tomando esses tipos como ponto de partida, a mente podia viajar pela longa série de casos mal definidos - as “formes frustes” - que, bifurcando-se a partir de um ou outro traço característico do tipo, desvaneciam-se na indistinção. Ele chamava essa espécie de trabalho intelectual, no qual ninguém o igualava, de “nosografia prática”, e se orgulhava dele. Podia-se ouvi-lo dizer que a maior satisfação humana era ver alguma coisa nova - isto é, reconhecê-la como nova; e insistia repetidamente na dificuldade e na importância dessa espécie de “visão”. Costumava indagar por que, na medicina, as pessoas enxergavam apenas o que tinham aprendido a ver. Falava em como era maravilhoso que alguém pudesse subitamente ver coisas novas - novos estados de doença - provavelmente tão velhas quanto a raça humana, e em como tinha que confessar a si mesmo que via agora nas enfermarias hospitalares inúmeras coisas que lhe haviam passado despercebidas durante trinta anos. Não é preciso falar a nenhum médico a respeito da riqueza de formas que a neuropatologia adquiriu através dele, nem do aumento de precisão e segurança de diagnóstico que suas observações tornaram possível. Mas um aluno que passasse com ele muitas horas, acompanhando-o nas inspeções das enfermarias do Salpêtrière - aquele museu de fatos clínicos cujos nomes e características peculiares, em sua maior parte, provieram dele -, haveria de se lembrar de Cuvier, cuja estátua, erguendo-se em frente do Jardin des Plantes, exibe esse grande entendedor e descritor do mundo animal cercado por uma multidão de figuras animais; ou então se lembraria do mito de Adão, que, diante das criaturas do Paraíso que Deus lhe trouxera para serem distinguidas e nomeadas, deve ter experimentado no mais alto grau o prazer intelectual que Charcot tanto louvava, que Deus lhe trouxera para serem distinguidas e nomeadas, deve ter experimentado no mais alto grau o prazer intelectual que Charcot tanto louvava.
De fato, Charcot era infatigável na defesa dos direitos do trabalho puramente clínico, que consiste em observar e ordenar as coisas, contrariando as usurpações da medicina teórica. Em certa ocasião, éramos um pequeno grupo de estudantes estrangeiros que, educados na tradição da fisiologia acadêmica alemã, esgotávamos sua paciência com nossas dúvidas quanto às suas inovações clínicas. “Mas isso não pode ser verdade”, objetou um de nós, “pois contradiz a teoria de Young-Helmholtz”. Ele não retrucou com um “tanto pior para a teoria; primeiro os fatos clínicos”, ou qualquer outra expressão no mesmo sentido; disse-nos, entretanto, uma coisa que nos causou enorme impressão: “La théorie, c’est bon, mas ça n’empêche pas d’exister.”
Por muitos anos Charcot ocupou a Cátedra de Anatomia Patológica em Paris, tendo prosseguido, voluntariamente e como ocupação secundária, em seus estudos e cursos de neuropatologia, que rapidamente o tornaram famoso tanto no exterior quanto na França. Foi um acaso fortuito para a neuropatologia que o mesmo homem pudesse encarregar-se do desempenho de duas funções: por um lado, criou a descrição nosológica através da observação clínica e, por outro, demonstrou que as mesmas mudanças anatômicas subjaziam à doença, quer esta aparecesse como típica, quer como forme fruste. O êxito desse método anátomo-clínico de Charcot é amplamente reconhecido no campo das doenças nervosas orgânicas - tabe, esclerose múltipla, esclerose amiotrófica lateral etc. Freqüentemente foram necessários anos de espera paciente antes que se pudesse comprovar a presença da mutação orgânica nessas moléstias crônicas que não são diretamente fatais, e somente num hospital para casos incuráveis, como era o Salpêtrière, seria possível manter os pacientes em observação por períodos tão longos de tempo. Charcot fez a primeira demonstração desse gênero antes de se encarregar de um departamento. Quando era ainda estudante, aconteceu-lhe contratar uma criada que sofria de um tremor singular e não conseguia arranjar colocação devido à sua falta de jeito. Charcot reconheceu em seu estado uma paralysie choréiforme, enfermidade que já fora descrita por Duchenne, mas cujo fundamento era desconhecido. Charcot conservou essa curiosa criada, embora ela lhe custasse, no correr dos anos, uma pequena fortuna em pratos e travessas. Quando ela finalmente faleceu, ele estava em condições de demonstrar, a partir desse caso, que a paralysie choréiforme era a expressão clínica da esclerose cérebro-espinhal múltipla.
A anatomia patológica deve servir à neuropatologia de duas maneiras. Além de demonstrar a presença de uma alteração mórbida, deve estabelecer a localização dessa mudança; e todos sabemos que, nas duas últimas décadas, a segunda dessas tarefas foi a que despertou maior interesse, sendo a mais ativamente empreendida. Charcot desempenhou também nessa empresa um papel extremamente destacado, embora as descobertas pioneiras não tenham sido feitas por ele. De início ele seguiu a trilha de nosso compatriota Türck, que se diz ter vivido e pesquisado em relativo isolamento entre nós. Quando emergiram as duas grandes inovações - as experiências de estimulação de Hitzig-Fritsch e as descobertas de Flechsig sobre o desenvolvimento da medula espinhal - que anunciaram uma nova época no nosso conhecimento da “localização das doenças nervosas”, as aulas de Charcot sobre esse assunto desempenharam o maior e mais importante papel na aproximação entre as novas teorias e o trabalho clínico, tornando-as frutíferas para este. No que concerne especialmente à relação do aparelho somático muscular com a área motora do cérebro humano, posso lembrar ao leitor o longo período de tempo durante o qual estiveram em questão a natureza mais exata dessa relação, assim como sua topografia. (Haveria uma representação comum de ambas as extremidades nas mesmas áreas? Ou haveria uma representação da extremidade superior na circunvolução central anterior e da extremidade inferior na posterior - isto é, uma disposição vertical?) Afinal, as contínuas observações clínicas e as experiências com estimulação e extirpação em pacientes vivos, durante operações cirúrgicas, decidiram a questão em favor da concepção de Charcot e Pitres, segundo a qual o terço médio das circunvoluções centrais serve principalmente à representação do braço, enquanto o terço superior e a porção medial servem à da perna - ou seja, a disposição da área motora é horizontal.
Uma enumeração das contribuições isoladas de Charcot não nos capacitaria a demonstrar sua importância para a neuropatologia, pois durante as duas últimas décadas não houve tema, qualquer que fosse sua importância, em cuja formulação e discussão a escola do Salpêtrière não tivesse uma significativa participação; e a “escola do Salpêtrière” era, naturalmente, o próprio Charcot, que, com a riqueza de sua experiência, a transparente clareza de suas exposições e a plasticidade de suas descrições, era facilmente reconhecível em todas as publicações da escola. Do círculo de jovens que ele assim reuniu a seu redor e transformou em participantes de suas pesquisas, alguns acabaram adquirindo uma consciência da própria individualidade e conseguiram uma reputação brilhante. Vez por outra, acontecia mesmo a um deles apresentar ao mestre uma asserção que parecia a este mais engenhosa que correta; ele então retorquia com grande sarcasmo em suas conversas e preleções, mas sem causar nenhum prejuízo à relação afetuosa que mantinha com o aluno. De fato, Charcot deixa atrás de si uma legião de discípulos cuja qualidade intelectual e cujas realizações constituem, até agora, uma garantia de que o estudo e a prática da neuropatologia em Paris tão cedo não descerão do alto nível a que Charcot os conduziu.
Em Viena, temos tido freqüentes oportunidades de reconhecer que o valor intelectual de um professor não se combina necessariamente com a influência pessoal direta que ele possa exercer sobre os mais jovens, levando à criação de uma grande e importante escola. Se Charcot foi muito mais afortunado a este respeito, devemos atribuir isso às qualidades pessoais do homem - à magia que emanava de sua aparência e de sua voz, à cordial franqueza que caracterizava seu trato social, tão logo suas relações com alguém transpunham a etapa de constrangimento inicial, à boa vontade com que punha tudo à disposição de seus discípulos e à sua perene lealdade para com eles. As horas que passava em suas enfermarias eram horas de companheirismo e de troca de idéias com a totalidade de sua equipe médica. Lá, nunca se isolava dela. O mais jovem dos médicos recém-graduados, percorrendo as enfermarias, tinha oportunidade de observá-lo em seu trabalho e podia interrompê-lo; e a mesma liberdade era desfrutada pelos estudantes estrangeiros, que, nos últimos anos, nunca estavam ausentes de suas rondas hospitalares. E, por fim, nas noites em que Madame Charcot, auxiliada por uma filha altamente dotada e cada vez mais parecida com o pai, recebia uma seleta sociedade, os convidados encontravam os discípulos e assistentes médicos, sempre presentes, como parte da família.
Em 1882 ou 1883, as circunstâncias da vida e do trabalho de Charcot assumiram sua forma final. As pessoas haviam-se apercebido de que as atividades desse homem faziam parte do patrimônio da “gloire” nacional, que, após a lastimável guerra de 1870-1, era ainda mais zelosamente guardado. O governo, à frente do qual se achava Gambetta, um velho amigo de Charcot, criou para ele uma Cátedra de Neuropatologia na Faculdade de Medicina (para que ele pudesse abandonar a Cátedra de Anatomia Patológica) e também uma clínica, com departamentos científicos auxiliares, no Salpêtrière. “Le service de M. Charcot” agora incluía, além das antigas enfermarias para enfermas crônicas, vários consultórios clínicos onde também eram recebidos pacientes masculinos, um amplo ambulatório para pacientes externos - a “consultation externe” -, um laboratório histológico, um museu, um departamento eletroterapêutico, um departamento de olhos e ouvidos e um estúdio fotográfico especial. Todas essas coisas eram múltiplas maneiras de manter os antigos discípulos e assistentes permanentemente ligados à clínica, em postos seguros. Os edifícios de dois andares, com sua aparência desgastada pelo tempo e seus pátios internos, lembravam vivamente ao estrangeiro nosso Allgemeines Krankenhaus, mas sem dúvida a semelhança não ia além disso. “Aqui pode não ser bonito”, dizia Charcot ao mostrar seus domínios a um visitante, “mas há espaço para fazer tudo o que se quiser.”
Charcot estava bem no auge de sua vida quando essas inúmeras facilidades para o ensino e a pesquisa foram postas à sua disposição. Era um trabalhador infatigável e, creio eu, sempre o mais ocupado de todo o instituto. Suas consultas particulares, às quais ocorriam pacientes “de Samarcândia e das Antilhas”, não conseguiam afastá-lo de suas atividades de ensino ou de suas pesquisas. Sem dúvida, essa multidão não o procurava exclusivamente por ele ser um descobridor famoso, mas também por ser um grande médico e filantropo, que sempre achava a solução dos problemas e era capaz de dar bons palpites nos casos em que o estado atual da ciência não lhe permitia saber. Freqüentemente o censuraram por seu método terapêutico, que, com sua multiplicidade de receitas, não podia deixar de ofender as consciências racionalistas. Mas ele estava apenas dando continuidade aos procedimentos correntes naquela época e lugar, sem se iludir muito quanto a sua eficácia. Contudo, não era pessimista em suas expectativas terapêuticas, e repetidamente se mostrava pronto a experimentar novos métodos de tratamento em sua clínica: os êxitos pouco duradouros destes teriam explicação em outro lugar.
Como professor, Charcot era positivamente fascinante. Cada uma de suas aulas era uma pequena obra de arte em construção e composição; era perfeita na forma e tão marcante que, pelo resto do dia, não conseguíamos expulsar de nossos ouvidos o som de suas palavras nem de nossas mentes a idéia que ele demonstrara. Raras vezes fazia demonstrações com pacientes isolados; antes, expunha uma série de casos similares ou contrastantes e comparava-os entre si. Na sala em que dava suas aulas havia um quadro do “cidadão” Pinel removendo as correntes dos pobres loucos do Salpêtrière. O Salpêtrière, que testemunhara tantos horrores durante a Revolução, foi também cenário da mais humana de todas as revoluções. Nessas aulas, o próprio Mestre Charcot causava uma curiosa impressão. Ele, que noutras ocasiões borbulhava de vivacidade e bom humor, e que tinha sempre uma brincadeira nos lábios, parecia então sério e solene com seu pequeno barrete de veludo verde; de fato, chegava mesmo a parecer mais velho. Sua voz soava abrandada. Quase conseguíamos compreender por que os estranhos mal-intencionados criticavam toda a exposição como sendo teatral. Os que assim falavam estavam sem dúvida acostumados à natureza amorfa das conferências clínicas alemãs, ou então se esqueciam de que Charcot dava apenas uma aula por semana e, portanto, podia prepará-la cuidadosamente.
Nessa exposição formal, em que tudo estava preparado e todas as coisas tinham que ter seu lugar, Charcot indubitavelmente seguia uma tradição profundamente enraizada; mas sentia também necessidade de apresentar a sua audiência um quadro menos esmerado de suas atividades. Esse propósito era cumprido por sua clínica de pacientes externos, da qual se encarregava pessoalmente nas chamadas “leçons du mardi”. Ali levantara casos que lhe eram completamente desconhecidos; expunha-se a todas as casualidades de um exame, a todos os erros de uma primeira investigação; ocasionalmente, punha de lado sua autoridade e admitia, num caso, que não conseguia chegar a qualquer diagnóstico, e noutro, que fora enganado pelas aparências; e nunca parecia maior à sua audiência do que nos momentos em que, fornecendo o mais detalhado relato de seus processos de pensamento e mostrando a máxima franqueza sobre suas dúvidas e hesitações, procurava estreitar dessa forma a distância entre professor e aluno. A publicação dessas aulas improvisadas, dadas nos anos de 1887 e 1888, primeiro em francês e agora também em alemão, ampliou também imensuravelmente o círculo de seus admiradores; nunca antes um trabalho de neuropatologia alcançou tanto sucesso quanto esse junto ao público médico.
Mais ou menos na época em que a clínica foi fundada e em que ele abandonou a cátedra de Anatomia Patológica, houve uma mudança no sentido das investigações científicas de Charcot, fato ao qual devemos o melhor de seu trabalho. Ele declarou que a teoria das doenças nervosas orgânicas estava então bastante completa e começou a voltar sua atenção quase exclusivamente para a histeria, que assim se tornou de imediato o foco do interesse geral. Esta, a mais enigmática de todas as doenças nervosas, para cuja avaliação a medicina ainda não achara nenhum ângulo de enfoque aproveitável, acabara então de cair no mais completo descrédito, e esse descrédito se estendia não só aos pacientes, mas também aos médicos que se interessassem pela neurose. Sustentava-se que na histeria qualquer coisa era possível e não se dava crédito aos histéricos em relação a nada. A primeira coisa feita pelo trabalho de Charcot foi a restauração da dignidade desse tópico. Pouco a pouco, as pessoas abandonaram o sorriso desdenhoso com que uma paciente podia ter certeza de ser recebida naquele tempo. Ela não era mais necessariamente uma simuladora de doença, pois Charcot jogara todo o peso de sua autoridade em favor da autenticidade e objetividade dos fenômenos histéricos. Charcot repetira, em menor escala, o ato de libertação em cuja memória o retrato de Pinel pendia da parede da sala de conferências do Salpêtrière. Uma vez abandonado o temor cego de ser feito de tolo por algum infortunado paciente - medo que até então bloqueara o caminho de um estudo sério da neurose -, podia-se levantar a questão de qual método de abordagem levaria mais rapidamente à solução do problema. Um observador sem nenhum preconceito poderia chegar a esta conclusão: se encontro alguém num estado tal que manifesta todos os sintomas de um afeto doloroso - chorando, gritando e se enfurecendo -, parece provável a conclusão de que está ocorrendo nele um processo mental cuja expressão apropriada são estes fenômenos físicos. Uma pessoa saudável, se indagada, estaria em condições de dizer que impressão a estava atormentando; o histérico, porém, responderia que não sabe. Logo surgiria o problema de saber como é que um paciente histérico é dominado por um afeto em relação a cuja causa afirma nada saber. Se nos ativermos a nossa conclusão de que deve existir um processo psíquico correspondente, e se, ainda assim, acreditarmos no paciente quando ele o nega; se reunirmos as múltiplas indicações de que o paciente se comporta como se de fato soubesse disso; e se penetrarmos na história da vida do paciente e descobrirmos alguma ocasião, algum trauma, que pudesse evocar de maneira adequada exatamente aquelas expressões de sentimento - então tudo apontará para uma solução: a paciente se acha num estado de ânimo especial em que todas as suas impressões, ou suas lembranças das mesmas, não mais se mantêm reunidas numa cadeia associativa, um estado de ânimo em que é possível a uma lembrança expressar seu afeto através de fenômenos somáticos, sem que o grupo dos outros processos mentais, o eu, tome conhecimento disso ou possa interferir para evitá-lo. Se tivéssemos evocado a conhecida diferença psicológica entre o sono e a vigília, a estranheza de nossa hipótese talvez parecesse menor. Ninguém deve objetar que a teoria de uma divisão (splitting) da consciência como solução para o enigma da histeria seja demasiado remota para impressionar um observador destreinado e imparcial, pois, na realidade, ao declarar a possessão demoníaca como causa dos fenômenos histéricos, a Idade Média escolheu essa solução; seria apenas uma questão de trocar a terminologia religiosa daquela era obscurantista e supersticiosa pela linguagem científica de nossos dias.
Charcot, entretanto, não seguiu esse caminho para uma explicação da histeria, embora se valesse copiosamente dos relatos remanescentes de julgamentos de bruxas e de casos de possessão, a fim de mostrar que as manifestações da neurose naquela época eram idênticas às de hoje. Ele tratou a histeria como sendo apenas mais um tópico da neuropatologia; forneceu uma descrição completa de seus fenômenos, demonstrou que estes tinham suas próprias leis e regularidades, e mostrou como reconhecer os sintomas que possibilitam a feitura de um diagnóstico de histeria. As mais trabalhosas investigações, iniciadas por ele mesmo e por seus discípulos, estenderam-se aos distúrbios histéricos da sensibilidade da pele e dos tecidos mais profundos, ao comportamento dos órgãos dos sentidos e às peculiaridades das contraturas e paralisias histéricas, dos distúrbios tróficos e das alterações do metabolismo. Descreveram-se as muitas formas diferentes do ataque histérico e delineou-se um plano esquemático, retratando a configuração típica do grande ataque histérico |“grande hystérie”| como ocorrendo em quatro estágios, o que permitiu rastrear os ataques “menores” comumente observados |“petite hystérie”| até essa mesma configuração típica. Estudaram-se também a localização e a freqüência da ocorrência das chamadas “zonas histerogênicas”, e a relação destas com os ataques, e assim por diante. Uma vez que se chegou a todas essas informações sobre as manifestações da histeria, fez-se uma quantidade de descobertas surpreendentes. Descobriu-se que a histeria nos homens, especialmente nos da classe trabalhadora, era muito mais freqüente do que se esperava; demonstrou-se convincentemente que certos estados atribuídos à intoxicação alcoólica ou ao envenenamento por chumbo eram de natureza histérica; foi possível incluir na histeria um conjunto de afecções até então não compreendidas nem classificadas; e nos casos em que a neurose se juntara a outros distúrbios de modo a formar quadros complexos, foi possível distinguir o papel desempenhado pela histeria. As investigações de maior alcance foram aquelas votadas às doenças nervosas decorrentes de traumas graves - as “neuroses traumáticas” -, a respeito das quais os pontos de vista ainda são controvertidos e em relação às quais Charcot propusera com êxito os argumentos a favor da histeria.
Depois que as últimas extensões do conceito de histeria levaram com tanta freqüência a uma rejeição do diagnóstico etiológico, tornou-se necessário esmiuçar a etiologia da própria histeria. Charcot propôs uma fórmula simples para esta: devia-se considerar a hereditariedade como causa única. Conseqüentemente, a histeria seria uma forma de degeneração, um membro da “famille névropathique”. Todos os outros fatores etiológicos desempenhariam o papel de causas incidentais, de “agents provocateurs”.
Naturalmente, a construção desse grande edifício não foi alcançada sem oposição violenta. Mas foi a oposição estéril de uma velha geração que não queria ter suas convicções mudadas. Os neuropatologistas mais jovens, inclusive os da Alemanha, aceitaram os ensinamentos de Charcot em maior ou menor grau. O próprio Charcot estava absolutamente certo de que suas teorias sobre a histeria triunfariam. Quando se objetou que os quatro estágios da histeria, a histeria masculina etc., não eram observáveis fora da França, ele indicou por quanto tempo essas coisas haviam passado despercebidas para ele próprio, e disse uma vez mais que a histeria era a mesma em todas as épocas e lugares. Era muito sensível à acusação de que a França era uma nação muito mais neurótica que qualquer outra e de que a histeria era uma espécie de mau hábito nacional; e ficou muito satisfeito quando o artigo “Sobre um Caso de Epilepsia Reflexa”, que versava sobre o caso de um granadeiro prussiano, permitiu-lhe fazer um diagnóstico mais abrangente da histeria.
A certa altura de seu trabalho, Charcot elevou-se a um nível mais alto até mesmo do que o de seu tratamento usual da histeria. O passo que deu também lhe assegurou para sempre a fama de ter sido o primeiro a explicar a histeria. Enquanto estava empenhado no estudo das paralisias histéricas decorrentes de traumas, teve a idéia de reproduzir artificialmente essas paralisias, que antes diferenciara das orgânicas com todo cuidado. Para esse propósito, utilizou pacientes histéricos que colocava em estado de sonambulismo, hipnotizando-os. Teve êxito em provar, através de uma sólida cadeia de argumentos, que essas paralisias eram o resultado de idéias que tinham dominado o cérebro do paciente em momentos de disposição especial. Desse modo, o mecanismo de um fenômeno histérico foi explicado pela primeira vez. Essa amostra incomparavelmente arguta de investigação clínica foi depois retomada por seu discípulo, Pierre Janet, assim como por Breuer e outros, que desenvolveram a partir dela uma teoria da neurose que coincidia com a visão medieval - depois de eles terem substituído o “demônio” da fantasia clerical por uma fórmula psicológica.
O interesse de Charcot pelos fenômenos hipnóticos nos pacientes histéricos levou a enormes avanços nessa importante área de fatos até então negligenciados e desprezados, pois o peso de seu nome pôs fim de uma vez por todas a qualquer dúvida sobre a realidade das manifestações hipnóticas. Mas a abordagem exclusivamente nosográfica adotada na escola do Salpêtrière não foi suficiente para um assunto puramente psicológico. A limitação do estudo da hipnose aos pacientes histéricos, a diferenciação entre grande e pequeno hipnotismo, a hipótese sobre os três estágios da “grande hipnose” e a caracterização desses estágios por fenômenos somáticos - tudo isso declinou no conceito dos contemporâneos de Charcot, quando Bernheim, discípulo de Liébeault, passou a elaborar a teoria do hipnotismo a partir de fundamentos psicológicos mais abrangentes e a fazer da sugestão o ponto central da hipnose. Os opositores do hipnotismo, satisfeitos em poder ocultar sua falta de experiência pessoal por trás de um apelo à autoridade, são os únicos que ainda se prendem às asserções de Charcot e gostam de tirar proveito de uma declaração feita por ele em seus últimos anos, na qual negava à hipnose qualquer valor como método terapêutico.
Além disso, as teorias etiológicas sustentadas por Charcot em sua doutrina da “famille névropathique”, base de todo o seu conceito dos distúrbios nervosos, requererá brevemente, sem dúvida, um minucioso exame e algumas retificações. A tal ponto Charcot superestimou a hereditariedade como agente causativo, que não deixou espaço algum para a aquisição da doença nervosa. À sífilis conferiu apenas um modesto lugar entre os “agents provocateurs”; tampouco fez uma distinção suficientemente clara entre as afecções nervosas orgânicas e as neuroses, tanto no que toca a sua etiologia como no que toca a outros aspectos. É inevitável que o avanço da ciência, na medida em que aumenta nosso conhecimento, deva ao mesmo tempo reduzir o valor de inúmeras coisas que Charcot nos ensinou; mas nem os tempos mutáveis nem as concepções mutáveis podem diminuir a reputação do homem que - na França e em toda parte - estamos hoje pranteando.

VIENA, agosto de 1893.



SOBRE O MECANISMO PSÍQUICO DOS FENÔMENOS HISTÉRICOS: UMA CONFERÊNCIA (1893)


NOTA DO EDITOR INGLÊS

ÜBER DEN PSYCHISCHEN MECHANISMUS
HYSTERISCHER PHAENOMENE

(a) EDIÇÃO ALEMÃ:
1893 Wien. med. Presse, 34 (4), 121-6 e (5), 165-7. (22 e 29 de janeiro).

(b) TRADUÇÃO INGLESA:
“On the Psychical Mechanism of Hysterical Phenomena”
1956 Int. J. Psycho-Anal., 37 (1), 8-13. (Trad. de James Strachey.)

O original alemão parece nunca ter sido reeditado. A presente tradução é uma versão levemente corrigida da de 1956.
O original alemão é encabeçado pelas palavras “Pelo Dr. Josef Breuer e Dr. Sigm. Freud de Viena”. Na verdade, porém, está é uma transcrição estenografada de uma conferência proferida por Freud e por este revista. Embora verse sobre o mesmo assunto (e freqüentemente em termos similares) da famosa “Comunicação Preliminar” (1893a), que tem seu lugar próprio no Volume II da Standard Edition no início dos Estudos sobre a Histeria (1895d), esta conferência apresenta todos os indícios de ser um trabalho apenas de Freud.
A “Comunicação Preliminar” de Breuer e Freud foi publicada num periódico de Berlim, o Neurologisches Zentralblatt, em duas partes, a 1º e a 15 de janeiro de 1893. (Imediatamente depois foi republicada em Viena no Wiener medizinische Blaetter de 19 e 26 janeiro.) A conferência aqui publicada foi profetizada por Freud numa reunião do Clube Médico de Viena em 11 de janeiro - isto é, antes que a segunda parte da “Comunicação Preliminar” fosse publicada.
Talvez o aspecto mais notável desta conferência seja a predominância do fator traumático entre as causas presumíveis da histeria. Isso constitui, naturalmente, uma prova da força da influência de Charcot sobre as idéias de Freud. A mudança em direção ao reconhecimento do papel desempenhado pelas “moções pulsionais” estava ainda no futuro.


SOBRE O MECANISMO PSÍQUICO DOS FENÔMENOS HISTÉRICOS

Senhores: Venho hoje a sua presença com o objetivo de informá-los sobre um trabalho cuja primeira parte já foi publicada no Zentralblatt für Neurologie, assinada por Josef Breuer e por mim. Como se pode depreender do título do trabalho, ele versa sobre a patogênese dos sintomas histéricos e sugere que as razões imediatas do desenvolvimento dos sintomas histéricos devem ser buscadas na esfera da vida psíquica.
Antes de passar ao conteúdo deste trabalho conjunto, entretanto, devo esclarecer a posição que ele ocupa, bem como nomear o autor e a descoberta que, ao menos em substância, tomamos como ponto de partida, embora nossa contribuição tenha-se desenvolvido de modo bastante independente.
Como os senhores sabem, todos os modernos avanços na compreensão e no conhecimento da histeria derivam do trabalho de Charcot. Na primeira metade dos anos oitenta, Charcot começou a voltar sua atenção para a “neurose maior”, que é como os franceses chamam a histeria. Numa série de pesquisas, ele obteve êxito em provar a presença de regularidades e leis onde as observações clínicas insuficientes ou apáticas de outras pessoas viam apenas simulação de doença ou uma intrigante falta de conformidade à regra. Pode-se afirmar, com segurança, que tudo o que se tem aprendido de inédito sobre a histeria nos últimos anos procede, direta ou indiretamente, de suas sugestões. Contudo, entre os numerosos trabalhos de Charcot, nenhum a meu ver é mais valioso do que aquele onde nos ensinou a compreender as paralisias traumáticas que aparecem na histeria; e como este é precisamente o trabalho que o nosso vem continuar, espero que os senhores me permitam apresentar-lhes esse assunto, uma vez mais, com algum detalhe.
Consideraremos o caso de uma pessoa sujeita a um trauma, sem antes ter estado doente e, talvez, mesmo sem ter qualquer predisposição hereditária. O trauma deve satisfazer a certas condições. Deve ser grave - isto é, ser de uma espécie que envolva a idéia de perigo mortal, de uma ameaça à vida. Mas não deve ser grave no sentido de pôr termo à atividade psíquica. De outra forma, não produziria o resultado que esperamos dele. Assim, por exemplo, não deve envolver concussão cerebral ou qualquer ferimento realmente sério. Além disso, o trauma deve ter uma relação especial com alguma parte do corpo. Suponhamos que uma pesada tora de madeira caia sobre o ombro de um trabalhador. O golpe o derruba, mas ele logo verifica que nada ocorreu e vai para casa com uma ligeira contusão. Passadas algumas semanas ou meses, ele acorda certa manhã e observa que o braço submetido ao trauma pende flácido e paralisado, embora, no intervalo, que poderíamos chamar de período de incubação, ele o tenha utilizado perfeitamente bem. Se se tratar de um caso típico, é possível que sobrevenham ataques peculiares - que, depois de uma aura, o sujeito desfaleça repentinamente, fique muito agitado e se torne delirante: e, se falar em seu delírio, sua fala talvez mostre que a cena do acidente está sendo repetida nele, acrescida talvez de vários quadros imaginários. O que estará acontecendo aqui? Como se deve explicar esse fenômeno?
Charcot explica o processo reproduzindo-o, induzindo artificialmente o paciente à paralisia. Para promover isso, ele precisa de um paciente que já se encontre num estado histérico; requer ainda o estado de hipnose e o método da sugestão. Ele hipnotiza profundamente um paciente desse tipo e então golpeia seu braço levemente. O braço pende; fica paralisado e exibe precisamente os mesmos sintomas que ocorrem na paralisia traumática espontânea. O golpe também pode ser substituído por uma sugestão verbal direta: “Veja! Seu braço está paralisado!” Também nesse caso a paralisia apresenta as mesmas características.
Tentemos comparar os dois casos: de um lado, um trauma, de outro, uma sugestão traumática. O resultado final, a paralisia, é exatamente o mesmo em ambos os casos. Se o trauma num deles pode ser substituído, no outro, por uma sugestão verbal, é plausível supor que uma idéia dessa natureza seja responsável pelo desenvolvimento da paralisia também no caso de paralisia traumática espontânea. E, de fato, muitos pacientes relatam que, no momento do trauma, tiveram realmente a sensação de que seu braço estava esmagado. Se assim for, é realmente possível considerar o trauma como equivalente completo da sugestão verbal. Entretanto, para completar a analogia, requer-se um terceiro fator. Para que a idéia “seu braço está paralisado” pudesse provocar uma paralisia no paciente, seria necessário que ele estivesse em estado hipnótico. Mas o trabalhador não se achava em estado hipnótico. Ainda assim, podemos presumir que se encontrasse num estado de espírito especial durante o trauma; e Charcot se inclina a equiparar esse afeto com o estado de hipnose artificialmente induzido. Sendo assim, a paralisia traumática espontânea fica completamente explicada e se torna paralela à paralisia produzida por sugestão; e a gênese do sintoma é determinada de modo inequívoco pelas circunstâncias do trauma.
Além disso, Charcot repetiu a mesma experiência a fim de explicar as contraturas e dores que aparecem na histeria traumática; em minha opinião, dificilmente haverá algum outro ponto em que sua compreensão da histeria tenha avançado mais profundamente. Todavia, sua análise não vai adiante: não ficamos sabendo como são gerados os outros sintomas e, acima de tudo, não aprendemos como os sintomas histéricos aparecem na histeria comum, não-traumática.
Aproximadamente na mesma época, senhores, em que Charcot assim lançava luz sobre as paralisias histerotraumáticas, o Dr. Breuer, entre 1880 e 1882, empreendia o tratamento médico de uma jovem senhora que - com uma etiologia não-traumática - fora acometida de uma histeria aguda e complicada (acompanhada de paralisias, contraturas, distúrbios da fala e da visão e toda sorte de peculiaridades psíquicas) enquanto tratava de seu pai enfermo. Esse caso conservará um lugar importante na história da histeria, já que foi o primeiro em que um médico teve êxito em elucidar todos os sintomas do estado histérico, desvendando a origem de cada sintoma e descobrindo, ao mesmo tempo, os meios de fazer cada sintoma desaparecer. Podemos dizer que foi o primeiro caso de histeria a se tornar inteligível. O Dr. Breuer guardou para si as conclusões derivadas desse caso até certificar-se de que não se tratava de um caso isolado. Depois de retornar, em 1886, de um curso com Charcot, comecei a fazer, com a constante cooperação do Dr. Breuer, observações detalhadas sobre um número bastante grande de pacientes histéricos, examinando-os a partir desse ponto de vista; descobri então que o comportamento dessa primeira paciente fora de fato típico e que as inferências justificadas por aquele caso podiam ser estendidas a um número considerável de pacientes histéricos, se não a todos.
Nosso material consistia em casos da histeria comum, isto é, não-traumática. Nosso procedimento era a consideração de cada sintoma, em separado, e a indagação das circunstâncias em que ele tinha aparecido pela primeira vez; esforçávamos-nos, desse modo, por chegar a uma idéia clara da causa precipitante que talvez tivesse determinado aquele sintoma. Mas não se deve supor que essa seja uma tarefa simples. Para começar, quando interrogamos os pacientes dentro dessa orientação, em geral não obtemos nenhuma resposta. Num pequeno grupo de casos, os pacientes têm suas razões para não dizer o que sabem. Em um número maior de casos, porém, os pacientes não têm qualquer noção do contexto de seus sintomas. O método pelo qual se consegue alguma coisa é árduo. É assim: os pacientes devem ser colocados em hipnose e então indagados sobre a origem de algum sintoma particular - quando apareceu e o que lembram em conexão com ele. Enquanto se acham nesse estado, a memória, que não lhes era acessível no estado de vigília, retorna. Assim aprendemos, para dizê-lo em termos grosseiros, que há uma experiência afetivamente marcante por trás da maioria dos fenômenos da histeria, se não de todos; e mais, que essa experiência é de tal ordem que torna imediatamente inteligível o sintoma com que se relaciona, mostrando uma vez mais, por conseguinte, que o sintoma é inequivocamente determinado. Se os senhores me permitem comparar essa experiência afetivamente marcante com a grande experiência traumática subjacente à histeria traumática, posso desde já formular a primeira tese a que chegamos: “Há uma analogia total entre a paralisia traumática e a histeria comum, não-traumática”. A única diferença é que, na primeira, há um grande trauma em ação, ao passo que, na segunda raramente há um único evento principal a ser assinalado, operando antes uma série de impressões afetivas - toda uma história de sofrimentos. Mas não é nada forçado equiparar essa história, que aparece como o fator determinante nos pacientes histéricos, ao acidente que ocorre na histeria traumática, pois hoje não restam dúvidas de que, mesmo no caso do grande trauma mecânico da histeria traumática, o que produz o resultado não é o fator mecânico, mas o afeto de terror, o trauma psíquico. A primeira coisa que se deduz disso, portanto, é que o padrão da histeria traumática, tal como exposto por Charcot nas paralisias histéricas, aplica-se de maneira geral a todos os fenômenos histéricos, ou pelo menos à sua grande maioria. Na totalidade dos casos, aquilo com que temos de lidar é a atuação de traumas psíquicos, que determinam inequivocamente a natureza dos sintomas emergentes.
Apresentarei agora aos senhores alguns exemplos disso. Primeiro, vejamos um caso de ocorrência de contraturas. Durante todo o período de sua doença, a paciente de Breuer, que já mencionei, exibia uma contratura do braço direito. Durante a hipnose, veio à tona o fato de que, algum tempo antes de adoecer, ela fora submetida ao seguinte trauma: estava sentada, semi-adormecida, ao lado do leito de seu pai enfermo; seu braço direito pendia sobre as costas da cadeira e ficou dormente. Nesse momento, ela teve uma alucinação apavorante; tentou afastá-la com um movimento do braço, mas foi incapaz de fazê-lo. Ela lhe deu um susto violento, mas, de momento, o assunto terminou por ali. Só quando da irrupção da histeria é que se instalou a contratura do braço. Em outra paciente, observei que a fala era interrompida por um “estalido” peculiar da língua, semelhante ao grito de um tetraz-das-serras. Eu já me familiarizara há meses com esse sintoma e o encarava como um tique. Só quando me ocorreu perguntar-lhe sob hipnose sobre a origem dele foi que descobri que o ruído aparecera primeiramente em duas ocasiões. Em cada uma destas, ela tomara a firme decisão de se manter absolutamente silenciosa. Isso lhe ocorreu, numa das vezes, ao cuidar de um de seus filhos, que estava seriamente doente. (Tratar de pessoas doentes é um fator que freqüentemente atua na etiologia da histeria.) A criança adormecera e ela se havia determinado não fazer qualquer barulho que pudesse acordá-la. Mas o medo de fazer barulho transformou-se efetivamente na produção de um ruído - um exemplo de “contravontade histérica”; ela apertou os lábios e fez o estalido com a língua. Muitos anos depois, o mesmo sintoma se manifestou uma segunda vez, novamente numa ocasião em que ela decidira ficar absolutamente quieta, e desde então havia persistido. Muitas vezes, uma única causa precipitante não basta para fixar um sintoma; mas, quando esse mesmo sintoma aparece reiteradamente, acompanhado por um afeto específico, torna-se fixado e crônico.
Um dos sintomas mais comuns da histeria é a combinação de anorexia e vômito. Sei de um grande número de casos em que a ocorrência desse sintoma é explicada de maneira bastante simples. Assim, numa paciente o vômito persistiu depois de ela ter lido uma carta humilhante pouco antes de uma refeição e ter ficado violentamente nauseada com isso. Em outros casos, a repulsa pela comida pode ser claramente relacionada ao fato de que; graças à instituição da “mesa comum”, uma pessoa pode ser compelida a fazer uma refeição em companhia de alguém que detesta. A repulsa é então transferida da pessoa para os alimentos. A mulher com o tique, que mencionei há pouco, era particularmente interessante a esse respeito. Comia excepcionalmente pouco e apenas sob pressão. Ela me informou, sob hipnose, que uma série de traumas psíquicos havia acabado por produzir esse sintoma de repulsa à comida. Quando era ainda criança, sua mãe, muito severa, insistia para que ela comesse toda a carne que tivesse deixado no almoço duas horas depois, quando a carne estava fria e a gordura, toda congelada. Ela o fazia com enorme asco e guardou a lembrança disso; mais tarde, quando já não estava sujeita a essa punição, sentia regularmente enjôo na hora das refeições. Dez anos depois, costumava sentar-se à mesa com um parente tuberculoso que escarrava constantemente, durante as refeições, numa escarradeira postada do outro lado da mesa. Pouco tempo depois, foi obrigada a partilhar suas refeições com um parente que ela sabia ser portador de uma doença contagiosa. Também a paciente de Breuer comportou-se por algum tempo como se sofresse de hidrofobia. Durante a hipnose, revelou-se que ela uma vez surpreendera um cachorro bebendo água em um copo seu.
A insônia ou o sono perturbado são também sintomas usualmente passíveis de uma explicação extremamente precisa. Assim, por anos a fio uma mulher jamais conseguia dormir antes da seis da manhã. Durante muito tempo, dormira num quarto contíguo ao do marido doente, que costumava levantar-se às seis horas. Depois desse horário, ela podia dormir tranqüilamente; e voltou a se comportar da mesma maneira muito anos depois, durante uma doença histérica. Outro caso foi o de um paciente histérico que vinha dormindo pessimamente nos últimos doze anos. Sua insônia, porém, era de um tipo muito especial. No verão, dormia esplendidamente, mas no inverno, muito mal; e em novembro dormia particularmente mal. Não tinha a menor idéia do fator responsável por isso. A investigação revelou que num mês de novembro, doze anos antes, ele passara muitas noites em claro velando junto ao leito de seu filho, que estava acamado com difteria.
A paciente de Breuer, a quem me tenho referido com tanta freqüência, forneceu um exemplo de distúrbio da fala. Por um longo período de sua doença, falava apenas inglês e não conseguia falar nem entender o alemão. Esse sintoma remeteu a um evento que ocorrera antes da irrupção da doença. Em certa ocasião, em estado de grande angústia, ela tentara rezar mas não conseguira encontrar as palavras. Finalmente, ocorreram-lhe algumas palavras de uma prece infantil em inglês. Ao adoecer, posteriormente, o inglês tornou-se a única língua que dominava.
A determinação do sintoma pelo trauma psíquico não é tão transparente em todos os casos. Freqüentemente, só encontramos o que se pode descrever como uma relação “simbólica” entre a causa determinante e o sintoma histérico. Isso se aplica especialmente às dores. Uma paciente, por exemplo, sofria de dores penetrantes entre as sobrancelhas. A razão era que uma vez, quando criança, sua avó lhe dirigira um olhar inquisitório, “penetrante”. A mesma paciente sofreu por algum tempo dores violentas no calcanhar direito, para as quais não havia explicação. Essas dores, ficou-se sabendo, estavam ligadas a uma idéia que ocorrera à paciente quando esta aparecera pela primeira vez em sociedade. Ficara dominada pelo medo de não “acertar o passo” naquele meio. Tais simbolizações foram empregadas por muitos pacientes num enorme conjunto das chamadas nevralgias e dores. É como se houvesse a intenção de expressar o estado mental através de um estado físico; e o uso lingüístico fornece uma ponte pela qual isso pode ser efetuado. No caso, entretanto, daqueles que são afinal os sintomas típicos da histeria - tais como hemianestesia, restrição do campo visual, convulsões epileptiformes etc. - não se pode demonstrar um mecanismo psíquico dessa ordem. Por outro lado, pode-se fazê-lo freqüentemente com respeito às zonas histerógenas.
Esses exemplos, que escolhi entre inúmeras observações, parecem provar que os fenômenos da histeria comum podem ser seguramente considerados como seguindo o mesmo modelo da histeria traumática, e que, portanto, toda histeria pode ser encarada como histeria traumática, no sentido de que implica um trauma psíquico e de que todo fenômeno histérico é determinado pela natureza do trauma.
A questão adicional a que então se deveria responder refere-se à natureza da conexão causal entre o fator determinante que tenhamos descoberto durante a hipnose e o fenômeno que persiste posteriormente como sintoma crônico. Essa conexão pode ser de vários tipos. Pode ser da espécie que descreveríamos como fator “desencadeante”. Por exemplo, quando alguém com predisposição à tuberculose recebe um golpe no joelho, em conseqüência do qual se desenvolve uma inflamação tuberculosa na junta, o golpe é uma simples causa desencadeante. Mas não é isso que ocorre na histeria. Há uma outra espécie de causação - a saber, a causação direta. Podemos elucidá-la tendo por base o quadro de um corpo estranho, que continua a atuar incessantemente como causa estimulante de doença até nos livrarmos dele. Cessante causa cessat effectus. A observação de Breuer mostra-nos que há uma conexão deste segundo tipo entre o trauma psíquico e o fenômeno histérico, pois Breuer aprendeu com sua primeira paciente que a tentativa de descobrir a causa determinante de um sintoma era, ao mesmo tempo, uma manobra terapêutica. O momento em que o médico desvenda a ocasião da primeira ocorrência do sintoma e a razão de seu aparecimento é também o momento em que o sintoma se desfaz. Quando, por exemplo, o sintoma apresentado pelo paciente consiste em dores, e quando lhe indagamos sob hipnose sobre sua origem, ele evoca uma série de lembranças ligadas a elas. Se conseguirmos suscitar nele uma lembrança realmente vívida e se ele vir as coisas diante de si com toda a sua realidade original, observaremos que está completamente dominado por algum afeto. E se então o compelirmos a exprimir verbalmente esse afeto, verificaremos que, ao mesmo tempo em que ele manifesta esse afeto violento, o fenômeno de suas dores desponta marcantemente uma vez mais e, daí por diante, o sintoma, em seu caráter crônico, desaparece. Assim se passaram os fatos em todos os exemplos que mencionei. Foi interessante notar que a lembrança desse acontecimento específico era extraordinariamente mais vívida que a lembrança de quaisquer outros, e que o afeto concomitante era tão intenso, talvez, quanto o fora no momento da ocorrência efetiva do evento. Só restava supor que o trauma psíquico de fato continua a atuar no sujeito e sustenta o fenômeno histérico, sendo eliminado tão logo o paciente fala sobre ele.
Como acabei de dizer, quando, de acordo com nosso procedimento, se chega ao trauma psíquico fazendo perguntas ao paciente sob hipnose, descobre-se que a lembrança envolvida é excepcionalmente forte e preserva a totalidade de seu afeto. A questão que agora se coloca é de que modo um evento ocorrido há tanto tempo - talvez dez ou vinte anos - pode continuar exercendo poder sobre o sujeito, e como foi que tais lembranças não foram submetidas ao processos de desgaste e esquecimento.
Com o objetivo de responder a essa questão, eu gostaria de começar por alguns comentários sobre as condições que regem o desgaste dos conteúdos de nossa vida representativa. Partiremos de uma tese que pode ser formulada nos seguintes termos. Quando uma pessoa experimenta uma impressão psíquica, alguma coisa em seu sistema nervoso, que chamaremos provisoriamente de soma de excitação, aumenta. Ora, em todo indivíduo existe uma tendência a tornar a diminuir essa soma de excitação, a fim de preservar a saúde. O aumento da soma de excitação ocorre por vias sensoriais, e sua diminuição, por vias motoras. Assim, podemos dizer que quando alguma coisa atinge alguém, esse alguém reage de maneira motora. Podemos agora afirmar com segurança que depende dessa reação o quanto restará de uma impressão psíquica inicial. Consideremos isso em relação a um exemplo específico. Suponhamos que um homem seja insultado, esmurrado, ou qualquer coisa desse gênero. Esse trauma psíquico está ligado a um aumento da soma de excitação de seu sistema nervoso. Surge então instintivamente uma inclinação a diminuir de imediato a excitação aumentada. Ele revida a ofensa, e então sente-se melhor; talvez tenha reagido adequadamente - isto é, talvez se haja livrado de tanto quanto foi introduzido nele. Ora, essa reação pode assumir várias formas. Para os aumentos muito ligeiros da excitação, as alterações corporais talvez sejam suficientes: chorar, insultar, esbravejar etc. Quanto mais intenso o trauma, maior a reação suficiente. A reação mais adequada, entretanto, é sempre uma tomada de atitude. Mas como observou espirituosamente um escrito inglês, o primeiro homem a desfechar contra seu inimigo um insulto, em vez de uma lança, foi o fundador da civilização. Portanto, as palavras são substitutas das ações e, em alguns casos (por exemplo, na confissão) as únicas substitutas. Dessa maneira, paralelamente à reação adequada, há aquela que é menos adequada. Quando, porém, não há nenhuma reação a um trauma psíquico, a lembrança dele preserva o afeto que lhe coube originalmente. Assim, quando alguém que foi insultado não pode vingar o insulto com um golpe retaliatório ou uma ofensa verbal, surge a possibilidade de que a lembrança desse evento torne a evocar nele o afeto originalmente presente. Um insulto revidado, mesmo que apenas com palavras, é recordado de maneira muito diversa de outro que tenha sido forçosamente aceito; e o uso lingüístico descreve caracteristicamente o insulto sofrido em silêncio como uma “mortificação” |“Kraenkung”, literalmente, “adoecimento”|. Assim, quando por qualquer motivo não pode haver reação a um trauma psíquico, ele retém seu afeto original, e quando a pessoa não consegue livrar-se do acréscimo de estímulo através de sua “ab-reação”, deparamos com a possibilidade de que o evento em questão permaneça como um trauma psíquico. A propósito, um mecanismo psíquico sadio tem outros métodos de lidar com o afeto de um trauma psíquico mesmo que lhe sejam negadas a reação motora e a reação por palavras - a saber, elaborando-o associativamente e produzindo idéias contrastantes. Mesmo que a pessoa insultada não retribua o golpe, nem retruque com uma grosseira, ela pode ainda assim reduzir o afeto ligado ao insulto pela evocação de idéias contrastantes, tais como a de seu valor pessoal, da indignidade de seu inimigo, e assim por diante. Quer um homem sadio lide com o insulto de um modo ou de outro, ele sempre consegue chegar ao resultado de que o afeto originalmente intenso em sua memória acabe perdendo a intensidade e finalmente, tendo perdido seu afeto, a lembrança caia vítima do esquecimento e do processo de desgaste.     
Ora, descobrimos que não há nos pacientes histéricos nada além de impressões que não perderam seu afeto e cuja lembrança permaneceu vívida. Daí decorre, portanto, que essas lembranças dos pacientes histéricos, que se tornaram patogênicas, ocupam uma posição excepcional com respeito ao processo de desgaste; e a observação mostra que, no caso de todos os eventos que se tornaram determinantes dos fenômenos histéricos, estamos lidando com traumas psíquicos que não foram totalmente ab-reagidos, ou completamente tratados. Podemos, pois, afirmar que os pacientes histéricos sofrem de traumas psíquicos incompletamente ab-reagidos.
Constatamos dois grupos de condições sob as quais as lembranças se tornaram patogênicas. No primeiro, as lembranças a que se podem vincular os fenômenos histéricos têm como conteúdo representações que envolveram um trauma tão grande que o sintoma nervoso não teve forças para manipulá-lo de nenhuma forma, ou representações às quais foi vedada a reação por motivos sociais (isso se aplica amiúde à vida conjugal); ou, por fim, o sujeito pode simplesmente recusar-se a reagir, pode não querer reagir ao trauma psíquico. Neste último caso, o conteúdo dos delírios histéricos freqüentemente revela ser o próprio círculo de representações que o paciente em seu estado normal rejeitou, inibiu e suprimiu com todas as suas forças. (Por exemplo, ocorrem blasfêmias e representações eróticas nos delírios histéricos de freiras.) No entanto, num segundo grupo de casos, a razão da ausência de reação não está no teor do trauma psíquico, mas em outras circunstâncias, pois é muito freqüente constatarmos que o conteúdo e os fatores determinantes dos fenômenos histéricos são eventos em si mesmos bastante triviais, mas que adquiriram alta significação pelo fato de terem ocorrido em momentos especialmente importantes, quando a predisposição do paciente havia aumentado patologicamente. Por exemplo, o afeto de pavor pode assomar no curso de algum outro afeto intenso e por isso adquirir enorme importância. Os estados dessa ordem são de curta duração e estão, por assim dizer, isolados do resto da vida mental do sujeito. Enquanto se encontra num estado de auto-hipnose como esse, ele não consegue livrar-se associativamente de uma representação que lhe ocorra, tal como faria estando acordado. Depois de considerável experiência com esses fenômenos, julgamos provável que em toda histeria estejamos lidando com um rudimento do que é chamado “double conscience” - consciência dupla - e que o fenômeno básico da histeria seja uma tendência para tal dissociação e, com ela, para a emergência de estados da consciência anormais, que propomos chamar de “hipnóides”.
Consideremos agora a maneira como funciona nossa terapia. Ela se coaduna com um dos mais ardentes desejos humanos - o desejo de poder refazer alguma coisa. Alguém experimentou um trauma psíquico sem reação suficiente a ele. Nós o levamos a experimentá-lo de novo, dessa vez sob hipnose, e o forçamos a completar sua reação. Assim ele pode livrar-se do afeto ligado à representação que estava, por assim dizer, “estrangulado”, e uma vez feito isso, põe-se termo à atuação da representação. Desse modo, curamos não a histeria, mas alguns de seus sintomas individuais, fazendo com que uma reação incompleta se conclua.
Os senhores, portanto, não devem supor que se tenha tirado disso um enorme proveito para a terapêutica da histeria. A histeria, como as neuroses, tem causas mais profundas; e são essas causas mais profundas que estabelecem limites, muitas vezes bem apreciáveis, ao sucesso de nosso tratamento.




AS NEUROPSICOSES DE DEFESA
(1894)


DIE ABWEHR-NEUROPSYCHOSEN

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:
1894 Neurol. Zbl., 13 (10), 362-4, e (11), 402-9. (15 de maio e 1º de junho).
1906 S.K.S.N., l, 45-59. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
1925 G.S., l, 290-305.
1952 G.W., l, 59-74.

(b)TRADUÇÕES INGLESAS:
“The Defense Neuro-Psychoses”
1909 S.P.H., 121-32. (Trad. de A. A. Brill.) (1912, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.)
“The Defence Neuro-Psychoses”
1924 C.P., l, 59-75. (Trad. de J. Rickman.)

Incluído (Nº XXIX) na coletânea das sinopses dos primeiros trabalhos de Freud, elaborada por ele mesmo (1897b). A presente tradução, com o título modificado, baseia-se na de 1924
Quando Freud terminou este artigo, em janeiro de 1894, passara-se um ano desde o aparecimento de seu último trabalho psicopatológico - a “Comunicação Preliminar”, escrita juntamente com Breuer. (As únicas exceções foram o artigo sobre as paralisias histéricas, planejado e rascunhado anos antes, e o obituário de Charcot). E mais um ano haveria de passar antes que quaisquer outros fossem publicados. No entanto, os anos de 1893 e 1894 estiveram longe de ser ociosos. Em 1893, Freud estava ainda produzindo intenso trabalho neurológico, enquanto, em 1894, preparava sua contribuição aos Estudos sobre a Histeria. Mas durante esses dois anos, como podemos constatar por suas cartas a Fliess, ele estava profundamente engajado na investigação daquilo que então afastara completamente a neurologia de seu foco de interesse - os problemas das neuroses. Esses problemas enquadravam-se em dois grupos bastante distintos, respectivamente relacionados com o que mais tarde se tornaria conhecido (ver em. [1], adiante) como as “neuroses atuais” e as “psiconeuroses”. Freud não se sentiu preparado para publicarcoisa alguma sobre as primeiras - a neurastenia e os estados de angústia - até o início de 1895. Quanto à histeria e às obsessões, porém, já estava apto a demarcar o campo, daí resultando o presente artigo.
Aqui, é claro, ele tinha ainda um profundo débito para com Charcot e Breuer; entretanto, é possível detectar também um primeiro surgimento de muito do que se iria transformar numa parte essencial de suas próprias concepções. Por exemplo, embora a teoria da defesa tivesse sido mencionada muito brevemente na “Comunicação Preliminar”, ela é aqui longamente discutida pela primeira vez. O próprio termo “defesa” ocorre aqui pela primeira vez (ver em. [1]), o mesmo ocorrendo com “conversão” (ver em. [1]) e “fuga para a psicose” (ver em. [1]). A importância do papel desempenhado pela sexualidade começa a emergir (ver em. [1]); alude-se à questão da natureza do “inconsciente” (ver em. [1]). Talvez o mais importante seja, na segunda seção, o levantamento de toda a teoria fundamental da catexia e sua possibilidade de deslocamento e, no penúltimo parágrafo do artigo, a clara enunciação da hipótese em que se baseou o esquema de Freud. Uma discussão mais completa desse primeiro surgimento das concepções teóricas fundamentais de Freud aparece no Apêndice do Editor Inglês a este artigo, ver. [1] e segs., adiante.

AS NEUROPSICOSES DE DEFESA (TENTATIVA DE FORMULAÇÃO DE UMA TEORIA DA HISTERIA ADQUIRIDA, DE MUITAS FOBIAS E OBSESSÕES E DE CERTAS PSICOSES ALUCINATÓRIAS)

Depois de fazer um estudo detalhado de diversos pacientes nervosos que sofriam de fobias e obsessões, cheguei a uma tentativa de explicação desses sintomas; e isso me permitiu, posteriormente, chegar com êxito à origem desse tipo de representações patológicas em casos novos e diferentes. Minha explicação, portanto, me parece merecer publicação e um exame mais detido. Simultaneamente a essa “teoria psicológica das fobias e obsessões", minha observação dos pacientes resultou numa contribuição à teoria da histeria ou, antes, numa modificação dela, que parece levar em conta uma importante característica comum à histeria e às neuroses que acabo de mencionar. Além disso, tive a oportunidade de discernir o que sem dúvida constitui uma forma de doença mental e descobri, ao mesmo tempo, que o ponto de vista que eu adotara provisoriamente estabelecia uma conexão inteligível entre essas psicoses e as duas neuroses em questão. Ao final deste artigo, formularei uma hipótese de trabalho da qual me vali em todos os três casos.

I

Comecemos pela modificação que a teoria da neurose histérica me parece reclamar.
Desde o esplêndido trabalho realizado por Pierre Janet, Josef Breuer e outros, pode-se considerar geralmente aceito que a síndrome da histeria, tanto quanto é inteligível até o momento, justifica a suposição de que haja uma divisão da consciência, acompanhada da formação de grupos psíquicos separados.  As opiniões, entretanto, estão menos firmadasno que concerne à origem dessa divisão da consciência e ao papel desempenhado por essa característica na estrutura da neurose histérica.
De acordo com a teoria de Janet (1892-4 e 1893), a divisão da consciência é um traço primário da alteração mental na histeria. Baseia-se numa deficiência inata da capacidade de síntese psíquica, na estreiteza do “campo da consciência (champ de la conscience)”, que, na forma de um estigma psíquico, evidencia a degeneração dos indivíduos histéricos.
Contrapondo-se à concepção de Janet, que me parece passível de uma multiplicidade de objeções, existe a posição proposta por Breuer em nossa comunicação conjunta (Breuer e Freud, 1893). Segundo ele, “a base e condição sine qua non da histeria” é a ocorrência de estados de consciência peculiares, semelhantes ao sonho, com uma capacidade de associação restrita, para os quais propôs o nome de “estados hipnóides”. Nesse caso, a divisão da consciência é secundária e adquirida: ocorre porque as representações que emergem nos estados hipnóides são excluídas da comunicação associativa com o resto do conteúdo da consciência.
Estou agora em condições de fornecer provas de duas outras formas extremas de histeria, nas quais é impossível considerar a divisão da consciência como primária, no sentido de Janet. Na primeira dessas |duas outras| formas, pude repetidas vezes demonstrar que a divisão do conteúdo da consciência resulta de um ato voluntário do paciente; ou seja, é promovida por um esforço de vontade cujo motivo pode ser especificado. Com isso, é claro, não pretendo dizer que o paciente tencione provocar uma divisão da sua consciência. A intenção dele é outra, mas, em vez de alcançar seu objetivo, produz uma divisão da consciência.
Na terceira forma de histeria, que demonstramos através de uma análise psíquica, de pacientes inteligentes, a divisão da consciência desempenha um papel insignificante, ou talvez nulo. Trata-se dos casos em que aconteceu apenas uma falta de reação aos estímulos traumáticos, e que podem, conseqüentemente, ser resolvidos e curados por “ab-reação”. Estas são as “histerias de retenção” puras.No que tange à conexão com as fobias e obsessões, tratarei apenas da segunda forma da histeria. Por motivos que logo ficarão claros, vou chamar essa forma de “histeria de defesa”, usando tal nome para distingui-la da histeria hipnóide e da histeria de retenção. Posso também, provisoriamente, apresentar meus casos de histeria de defesa “adquirida”, já que neles não se tratava nem de uma grave tara hereditária nem de uma atrofia degenerativa individual.
Esses pacientes que analisei, portanto, gozaram de boa saúde mental até o momento em que houve uma ocorrência de incompatibilidade em sua vida representativa - isto é, até que seu eu se confrontou com uma experiência, uma representação ou um sentimento que suscitaram um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo, pois não confiava em sua capacidade de resolver a contradição entre a representação incompatível e seu eu por meio da atividade de pensamento.
Nas mulheres, esse tipo de representações incompatíveis assoma principalmente no campo da experiência e das sensações sexuais; e as pacientes conseguem recordar com toda a precisão desejável seus esforços defensivos, sua intenção de “expulsar aquilo para longe”, de não pensar no assunto, de suprimi-lo. Darei alguns exemplos, facilmente multiplicáveis, extraídos de minha própria observação: o caso de uma moça que se culpava porque, enquanto cuidava do pai doente, pensara num rapaz que lhe causara uma leve impressão erótica; o caso de uma governanta que se apaixonara pelo patrão e resolvera expulsar essa inclinação de sua mente por parecer-lhe incompatível com seu orgulho; e assim por diante.
Não posso, naturalmente, afirmar que um esforço voluntário de eliminar da mente coisas desse tipo seja um ato patológico, nem sei dizer se e de que modo o esquecimento intencional é bem-sucedido nas pessoas que, sob as mesmas influências psíquicas, permanecem saudáveis. Sei apenas que esse tipo de “esquecimento” não funcionou nos pacientes que analisei, mas levou a várias reações patológicas que produziram ou a histeria, ou uma obsessão, ou uma psicose alucinatória. A capacidade de promover um desses estados - que estão todos ligados a uma divisão da consciência - através de um esforço voluntário desse tipo deve ser considerada como manifestação de uma disposição patológica, embora esta não seja necessariamente idêntica à “degeneração” individual ou hereditária.
Quanto ao trajeto entre o esforço voluntário do paciente e o surgimento do sintoma neurótico, formei uma opinião que pode ser expressa, em termos das abstrações psicológicas correntes, mais ou menos da seguinte maneira. A tarefa que o eu se impõe, em sua atitude defensiva, de tratar a representação incompatível como “non-arrivé”, simplesmente não pode ser realizada por ele. Tanto o traço mnêmico como o afeto ligado à representação lá estão de uma vez por todas e não podem ser erradicados. Mas uma realização aproximada da tarefa se dá quando o eu transforma essa representação poderosa numa representação fraca, retirando-lhe o afeto - a soma de excitação - do qual está carregada. A representação fraca não tem então praticamente nenhuma exigência a fazer ao trabalho da associação. Mas a soma de excitação desvinculada dela tem que ser utilizada de alguma outra forma.
Até esse ponto, os processos observados na histeria, nas fobias e nas obsessões são os mesmos; daí por diante, seus caminhos divergem. Na histeria, a representação incompatível é tornada inócua pela transformação de sua soma de excitação em alguma coisa somática. Para isso eu gostaria de propor o nome de conversão.
A conversão pode ser total ou parcial. Ela opera ao longo da linha de inervação motora ou sensorial relacionada - intimamente ou mais
frouxamente - com a experiência traumática. Desse modo o ego consegue libertar-se da contradição com a qual é confrontado; em contrapartida, porém, sobrecarrega-se com um símbolo mnêmico que se aloja na consciência como uma espécie de parasita, quer sob a forma de uma inervação motora insolúvel,quer como uma sensação alucinatória constantemente recorrente, que persiste até que ocorra uma conversão na direção oposta. Conseqüentemente, o traço mnêmico da idéia recalcada não é, afinal, dissolvido; daí por diante, forma o núcleo de um segundo grupo psíquico.
Acrescentarei apenas mais algumas palavras a essa concepção dos processos psicofísicos na histeria. Uma vez formado tal núcleo para uma expulsão (splitting-off) histérica num “momento traumático”, ele passa a ser aumentado em outros momentos (que poderiam ser chamados “momentos auxiliares”), sempre que a chegada de uma nova impressão da mesma espécie consegue uma ruptura na barreira erigida pela vontade, suprindo a representação enfraquecida de um afeto renovado e restabelecendo provisoriamente o elo associativo entre os dois grupos psíquicos, até que uma nova conversão estabeleça uma defesa. A distribuição da excitação assim ensejada na histeria usualmente se revela uma distribuição instável. A excitação, forçada a escoar-se por um canal impróprio (pela inervação somática) vez por outra reencontra o caminho de volta para a representação da qual se destacou, e compele então o sujeito a elaborar a representação associativamente ou a livrar-se dela em ataques histéricos - como vemos no conhecido contraste entre os ataques e os sintomas crônicos. A operação do método catártico de Breuer consiste em promover deliberadamente a recondução da excitação da esfera somática para a psíquica, e assim a resolução da contradição, através da atividade de pensamento e da descarga da excitação por meio da fala. Se a divisão da consciência que ocorre na histeria adquirida se baseia num ato voluntário, temos então uma explicação surpreendentemente simples para o notável fato de a hipnose ampliar regularmente a consciência restrita do histérico e permitir acesso ao grupo psíquico que foi expelido (split off). Na verdade, sabemos ser uma peculiaridade de todos os estados similares ao sono que eles suspendam a distribuição da excitação em que se baseia a “vontade” da personalidade consciente.
Assim, vemos que o fator característico da histeria não é a divisão da consciência, mas a capacidade de conversão, e podemos aduzir, como parte importante da predisposição para a histeria - predisposição ainda desconhecida em outros aspectos -, uma aptidão psicofísica para transpor enormes somas de excitação para a inervação somática.
Essa aptidão, por si só, não exclui a saúde psíquica, e só conduz à histeria quando há uma incompatibilidade psíquica ou um acúmulo de excitação. Ao adotarmos essa visão, Breuer e eu nos aproximamos das conhecidas definições da histeria feitas por Oppenheim e Strümpell e divergimos da concepção de Janet, que atribui demasiada importância à divisão da consciência em sua caracterização da histeria. A apresentação aqui fornecida pode sustentar a pretensão de ter tornado inteligível a conexão entre a conversão e a divisão histérica da consciência.

II

Quando alguém com predisposição à neurose carece da aptidão para a conversão, mas, ainda assim, parece rechaçar uma representação incompatível, dispõe-se a separá-la de seu afeto, esse afeto fica obrigado a permanecerna esfera psíquica. A representação, agora enfraquecida, persiste ainda na consciência, separada de qualquer associação. Mas seu afeto, tornado livre, liga-se a outras representações que não são incompatíveis em si mesmas, e graças a essa “falsa ligação”, tais representações se transformam em representações obsessivas. Essa é, em poucas palavras, a teoria psicológica das obsessões e fobias, mencionada no início deste artigo.
Indicarei agora quais dos vários elementos explicitados nessa teoria podem ser diretamente demonstrados e quais foram supridos por mim. O que se pode demonstrar diretamente, além do produto final do processo - a obsessão -, é, em primeiro lugar, a fonte do afeto agora colocado numa falsa ligação. Em todos os casos que analisei, era a vida sexual do sujeito que havia despertado um afeto aflitivo, precisamente da mesma natureza do ligado à sua obsessão. Teoricamente, não é impossível que esse afeto possa às vezes emergir em outras áreas; resta-me apenas relatar que, até o momento, não deparei com nenhuma outra origem. Ademais, é fácil verificar que é precisamente a vida sexual que traz em si as mais numerosas oportunidades para o surgimento de representações incompatíveis.

Além disso, as mais inequívocas declarações dos pacientes evidenciam o esforço de vontade e a tentativa de defesa enfatizados pela teoria; e pelo menos num bom número de casos os próprios pacientes informam-nos que sua fobia ou obsessão apareceu pela primeira vez depois que um esforço de vontade aparentemente atingiu seu objetivo com êxito. “Certa vez me aconteceu uma coisa muito desagradável, e tentei com muito empenho afastá-la de mim e não pensar mais nisso. Finalmente, consegui, mas aí me apareceu essa outra coisa, de que não pude livrar-me desde então.” Foi com essas palavras que uma paciente confirmou os pontos principais da teoria que aqui desenvolvi.
Nem todos os que sofrem de obsessões têm uma idéia tão clara assim sobre sua origem. Em geral, quando se chama a atenção do paciente, para a representação primitiva, de natureza sexual, a resposta é: “Não pode provir daí. Nunca pensei muito nisso. Por um momento fiquei assustado, mas logo desviei o pensamento e, desde então, isso nunca mais me perturbou.” Nessa freqüente objeção temos a prova de que a obsessão representa um substituto ou sucedâneo da representação sexual incompatível, tendo tomado seu lugar na consciência.
Entre o esforço voluntário do paciente, que consegue recalcar a representação sexual inaceitável, e o surgimento da representação obsessiva, que, embora tendo pouca intensidade em si mesma, está agora suprida |ver em. [1]| de um afeto incompreensivelmente forte, subsiste o hiato que a teoria aqui desenvolvida busca preencher. A separação da representação sexual de seu afeto e a ligação deste com outra representação - adequada, mas não incompatível - são processos que ocorrem fora da consciência. Pode-se apenas presumir sua existência, mas não prová-la através de qualquer análise clínico-psicológica. |Cf. em [1].| Talvez fosse mais correto dizer que tais processos não são absolutamente de natureza psíquica, e sim processos físicos cujas conseqüências psíquicas se apresentam como se de fato tivesse ocorrido o que se expressa pelos termos “separação entre a representação e seu afeto” e “falsa ligação” deste último.
Junto aos casos que mostram uma seqüência entre uma representação sexual incompatível e uma representação obsessiva, encontramos vários outros em que as representações obsessivas e as representações sexuais de caráter aflitivo ocorrem simultaneamente.
Não será muito satisfatório chamar estas últimas de “representações obsessivas sexuais”, pois falta-lhes um traço essencial das representações obsessivas: elas se mostram perfeitamente justificadas, ao passo que o caráter aflitivo das representações obsessivas comuns é um problema tanto para o médico quanto para o paciente. Até onde tenho podido explorar o terreno nos casos desse tipo, o que ocorre é que uma defesa perpétua vai-se erigindo contra representações sexuais que reemergem continuamente - ou seja, um trabalho que ainda não chegou a sua conclusão.
Já que os pacientes estão cônscios da origem sexual de suas obsessões, freqüentemente as mantêm em segredo. Quando chegam a se queixar delas, costumam expressar seu espanto por estarem sujeitos ao afeto em questão - por sentirem angústia, ou terem certos impulsos, e assim por diante. Ao médico experiente, pelo contrário, o afeto parece justificado e compreensível; o que ele acha notável é apenas que um afeto desse tipo esteja ligado a uma representação que não o merece. O afeto da obsessão, em outras palavras, parece-lhe estar desalojado ou transposto, e se tiver aceito o que se disse nestas páginas, ele poderá, em diversos casos de obsessões, retraduzi-las em termos sexuais.
Para fornecer essa conexão secundária ao afeto liberado, pode-se utilizar qualquer representação que, por sua natureza, possa unir-se a um afeto da qualidade em questão, ou que tenha com a representação incompatível certas relações que a façam parecer adequada como substituta dela. Assim, por exemplo, a angústia liberada cuja origem sexual não deva ser lembrada pelo paciente irá apoderar-se das fobias primárias comuns da espécie humana, relacionadas com animais, tempestades, escuridão, e assim por diante, ou de coisas inequivocamente associadas, de um modo ou de outro, com o que é sexual - tais como a micção, a defecação ou, de um modo geral, a sujeira e o contágio.
O eu leva muito menos vantagem escolhendo a transposição do afeto como método de defesa do que escolhendo a conversão histérica da excitação psíquica em inervação somática. O afeto de que o eu sofre permanece como antes, inalterado e não diminuído, com a única diferença de que a representação incompatível é abafada e isolada da memória. As representações recalcadas, como no outro caso, formam o núcleo de um segundo grupo psíquico, que, acredito, é acessível mesmo sem a ajuda da hipnose. Se as fobias e obsessões são desacompanhadas dos notáveis sintomas que caracterizam a formação de um grupo psíquico independente na histeria, isto é sem dúvida porque, em seu caso, toda a alteração permaneceu na esfera psíquica, e a relação entre a excitação psíquica e a inervação somática não sofreu qualquer mudança.
Para ilustrar o que foi dito sobre as obsessões, darei alguns exemplos que suponho serem típicos:
(1) Uma jovem sofria auto-recriminações obsessivas. Quando lia alguma coisa nos jornais sobre falsificadores de moedas, ocorria-lhe a idéia de que também ela produzira dinheiro falso; se uma pessoa desconhecida cometia um assassinato, perguntava-se ansiosamente se não teria sido ela a autora daquela ação. Ao mesmo tempo, estava perfeitamente cônscia do disparate dessas acusações obsessivas. Por algum tempo, esse sentimento de culpa adquiriu tal ascendência sobre ela que suas capacidades críticas ficaram embotadas e ela se acusou perante seus parentes e seu médico de ter realmente cometido todos esses crimes. (Eis um exemplo de psicose por simples intensificação - uma “Überwaeltigungspsychose” uma psicose em que o eu é subjugado. Um minucioso interrogatório revelou então a fonte de onde brotava seu sentimento de culpa. Estimulada por uma sensação voluptuosa casual, ela se deixara induzir por uma amiga a se masturbar, e praticara a masturbação durante anos, inteiramente consciente de sua má ação, que era acompanhada das mais violentas, embora inúteis, auto-recriminações. Um excesso a que se entregara depois de ir a um baile havia produzido a intensificação que levou à psicose. Depois de alguns meses de tratamento e da mais estrita vigilância, a jovem se recuperou.
(2) Uma outra moça sofria de um pavor de ser dominada pela necessidade de urinar e de ser incapaz de evitar molhar-se, desde a ocasião em que uma necessidade desse tipo de fato a obrigara a sair de um salão de concerto durante a apresentação. Pouco a pouco, essa fobia a deixara completamente incapaz de se divertir ou de freqüentar a sociedade. Só se sentia bem ao saber que havia um toalete próximo e acessível, que ela poderia atingir discretamente. Não havia sombra de nenhuma enfermidade orgânica que pudesse justificar essa desconfiança em seu poder de controlar a bexiga; quando ela estava em casa, em condições tranqüilas, ou à noite, a necessidade de urinar não assomava. Um exame detalhado mostrou que a necessidade ocorrera primeiramente nas seguintes circunstâncias: no salão de concerto, um cavalheiro ao qual ela não era indiferente tomara assento não longe dela. A moça começou a pensar nele e a imaginar-se sentada a seu lado, como sua esposa. Durante esse devaneio erótico, teve a sensação corporal que é comparável à ereção masculina e que, no caso dela - não sei se é sempre assim -, terminava com uma leve necessidade de urinar. Ficou então muito aterrorizada pela sensação sexual (à qual estava normalmente acostumada), pois tomara a resolução interna de combater aquela preferência específica, assim como qualquer outra que pudesse sentir; no momento seguinte, o afeto se transferira para a necessidade concomitante de urinar e a compelira, depois de agoniada luta, a deixar o recinto. Em sua vida corriqueira, ela era tão pudica que experimentava intenso horror por qualquer coisa relacionada a sexo e não podia contemplar a idéia de vir a casar-se um dia. Por outro lado, era tão hiperestésica sexualmente que, durante qualquer devaneio erótico, ao qual se abandonava prontamente, a mesma sensação voluptuosa aparecia. Em todas as ocasiões a ereção era acompanhada pela necessidade de urinar, embora sem produzir-lhe qualquer impressão até a cena no salão de concerto. O tratamento levou-a a um controle quase completo de sua fobia.
(3) Uma jovem esposa, que tivera apenas um filho em cinco anos de casamento, queixou-se a mim de sentir um impulso obsessivo de se atirar pela janela, ou de uma sacada, e queixou-se também de um temor de apunhalar seu filho, temor que a acometia quando via uma faca afiada. Admitiu que raramente havia relações sexuais conjugais, sempre sujeitas a precauções contra a concepção, mas afirmou não sentir falta delas por não ser de natureza sensual. Nesse ponto, aventurei-me a dizer-lhe que, à vista de um homem, ocorriam-lhe representações eróticas e que, por isso, ela perdera a confiança em si própria e se considerava uma pessoa depravada, capaz de qualquer coisa. A tradução da representação obsessiva em termos sexuais foi um êxito. Em lágrimas, ela imediatamente confessou a precariedade de seu casamento, há muito ocultada; e me comunicou também, mais tarde, representações angustiantes de caráter sexual inalterado, tais como a sensação freqüentíssima de que alguma coisa a forçava por sob sua saia.
Tenho-me valido desse tipo de observações em meu trabalho terapêutico, reconduzindo a atenção dos pacientes com fobias e obsessões às representações sexuais recalcadas, a despeito de todos os seus protestos, e, sempre que possível, estancando as fontes de onde tais representações provieram. Não posso, naturalmente, afirmar que todas as fobias e obsessões emergem do modo que aqui caracterizei. Em primeiro lugar, minha experiência delas inclui apenas um número limitado de casos, em comparação com a freqüência dessas neuroses; e, em segundo lugar, eu mesmo estou ciente de que nem todos esses sintomas “psicastênicos”, como os chama Janet, são equivalentes. Existem, por exemplo, fobias puramente histéricas. Penso, contudo, que será possível mostrar a presença do mecanismo de transposição do afeto na maioria das fobias e obsessões, e portanto insisto em que essas neuroses, que são encontradas isoladamente com tanta freqüência quanto combinadas com a histeria ou a neurastenia, não devem ser indiscriminadamente misturadas com a neurastenia comum, para cujos sintomas básicos não há nenhum fundamento para se pressupor um mecanismo psíquico.

III

Em ambos os casos até aqui considerados, a defesa contra a representação incompatível foi efetuada separando-a de seu afeto; a representação em si permaneceu na consciência, ainda que enfraquecida e isolada. Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela, o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose que só pode ser qualificada como “confusão alucinatória”. Um único exemplo pode servir para ilustrar essa asserção:
Uma moça devotara a um homem sua primeira afeição impulsiva e acreditava firmemente que ele lhe retribuía o amor. Na verdade, estava enganada; o rapaz tinha motivos diferentes para visitar sua casa. Não faltaram decepções. A princípio, a jovem se defendeu delas, fazendo uma conversão histérica das experiências em questão, e assim preservou sua crença de que um dia ele pediria sua mão. Ao mesmo tempo, porém, sentia-se doente e infeliz, porque a conversão fora incompleta e ela deparava-se continuamente com novas impressões dolorosas. Por fim, num estado de grande tensão, aguardou a chegada dele em determinado dia, que era de celebração familiar. Mas o dia passou e ele não apareceu. Quando todos os trens em que ele poderia vir já tinham chegado e partido, ela entrou num estado de confusão alucinatória: ele chegara, ela ouviu sua voz no jardim, desceu às pressas, de camisola, para recebê-lo. Daquele dia em diante, durante dois meses, ela viveu um sonho encantador cujo conteúdo era que ele estava presente, ao seu lado, e tudo voltara a ser como antes (antes da época das decepções que ela rechaçara com tanto empenho). Sua histeria e seu desânimo foram superados. Durante a enfermidade, ela silenciou sobre todo o período final de dúvida e sofrimento; ficava feliz desde que não fosse perturbada, e só explodia de ódio quando alguma norma de conduta reiterada pelos que a rodeavam vinha atrapalhá-la em algo que lhe parecia ser uma decorrência lógica de seu abençoado sonho. Essa psicose, que fora ininteligível na época, foi explicada dez anos depois com a ajuda de uma análise hipnótica.|cf.em [1]|.
O fato para o qual desejo agora chamar atenção é que o conteúdo de uma psicose alucinatória desse tipo consiste precisamente na acentuação da representação que era ameaçada pela causa precipitante do desencadeamento da doença. Portanto, é justificável dizer que o eu rechaçou a representação incompatível através de uma fuga para a psicose. O processo pelo qual isso é conseguido escapa, mais uma vez, à autopercepção do sujeito, assim como escapa à análise psicológico-clínica. Deve ser encarado como a expressão de uma predisposição patológica de grau bastante alto e pode ser descrito mais ou menos como se segue. O eu rompe com a representação incompatível; esta, porém, fica inseparavelmente ligada a um fragmento da realidade, de modo que, à medida que o eu obtém esse resultado, também ele se desliga, total e parcialmente, da realidade. Em minha opinião, este último evento é a condição sob a qual as representações do sujeito recebem a vividez das alucinações; assim, quando a defesa consegue ser levada a termo, ele se encontra num estado de confusão alucinatória.
Disponho apenas de muito poucas análises de psicoses dessa natureza. Penso, entretanto, que deparamos aqui com um tipo de enfermidade psíquica muito freqüentemente empregada, pois em nenhum manicômio faltam exemplos que podem ser considerados análogos - a mãe que adoeceu pela perda de seu bebê e que agora embala incessantemente um pedaço de madeira nos braços, ou a noiva rejeitada que, adornada com seus trajes nupciais, espera durante anos pelo noivo.
Talvez não seja supérfluo assinalar que os três métodos de defesa aqui descritos e, juntamente com eles, as três formas de doença a que levam esses métodos podem combinar-se numa mesma pessoa. O aparecimento simultâneo de fobias e sintomas histéricos, freqüentemente observado na prática, é um dos fatores que dificultam uma separação nítida entre a histeria e as outras neuroses e que tornam necessária a postulação da categoria de “neuroses mistas”. É verdade que a confusão alucinatória nem sempre é compatível com a persistência da histeria nem das obsessões, de um modo geral. Por outro lado, não é raro uma psicose de defesa irromper episodicamente no decurso de uma neurose histérica ou mista.
Gostaria, por fim, de me deter por um momento na hipótese de trabalho que utilizei nesta exposição das neuroses de defesa. Refiro-me ao conceito de que, nas funções mentais, deve-se distinguir algo - uma carga de afeto ou soma de excitação - que possui todas as características de uma quantidade (embora não tenhamos meios de medi-la) passível de aumento, diminuição, deslocamento e descarga, e que se espalha sobre os traços mnêmicos das representações como uma carga elétrica espalhada pela superfície de um corpo.
Essa hipótese, que aliás já está subjacente a nossa teoria da “ab-reação” na “Comunicação Preliminar” (1893a), pode ser aplicada no mesmo sentido que os físicos aplicam a hipótese de um fluxo de energia elétrica. Ela é provisoriamente justificada por sua utilidade na coordenação e explicação de uma grande variedade de estados psíquicos.

VIENA, fim de janeiro de 1894.

APÊNDICE: O SURGIMENTO DAS HIPÓTESES FUNDAMENTAIS DE FREUD

Com esse primeiro artigo sobre as neuropsicoses de defesa, Freud deu expressão pública, se não direta, ao menos implicitamente, a muitas das noções teóricas mais fundamentais sobre as quais se baseou todo o seu trabalho posterior. Não se deve esquecer que o artigo foi escrito em janeiro de 1894 - um ano após a publicação da “Comunicação Preliminar” e um ano antes da conclusão da seção principal dos Estudos sobre a Histeria e das contribuições teóricas de Breuer para aquele volume. À época em que escreveu o artigo, portanto, Freud estava profundamente envolvido em sua primeira série de investigações psicológicas. Destas começavam a emergir diversas inferências clínicas e, por trás delas, algumas hipóteses mais gerais que emprestariam coerência às descobertas clínicas. Mas foi somente passados mais seis meses após a publicação dos Estudos sobre a Histeria - no outono de 1895 - que Freud fez uma primeira tentativa de exposição sistemática de suas concepções teóricas; e tal tentativa (o “Projeto para uma Psicologia Científica”) foi deixada incompleta e não publicada por seu autor. Só viu a luz do dia em 1950, mais de meio século depois. Nesse intervalo, o estudante interessado nas concepções teóricas freudianas tinha que captar o que pudesse das descrições descontínuas, e por vezes obscuras, fornecidas por Freud em vários pontos posteriores de sua carreira. Além disso, sua única discussão extensa de suas teorias em anos posteriores - os artigos metapsicológicos de 1915 - sobreviveu apenas de forma truncada: sete dos doze artigos desapareceram completamente.
Em sua “História do Movimento Psicanalítico” (1914d), Freud declarou que “a teoria do recalcamento”, ou defesa, para dar-lhe seu nome alternativo, “é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise” (Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, ver em [1], IMAGO Editora, 1974). O termo “defesa” realmente ocorre pela primeira vez no presente artigo (ver em [1]), e é aqui que a teoria recebe sua primeira consideração efetiva, embora uma ou duas frases lhe tivessem sido dedicadas na “Comunicação Preliminar” (Edição Standard Brasileira, Vol. II, ver em [1], 3ª edição, IMAGO, 1995) e na “Conferência” (ver em [1] deste volume).
Entretanto, a própria hipótese clínica da defesa era necessariamente baseada em pressuposições mais gerais, uma das quais é especificada no penúltimo parágrafo deste artigo (ver em [1]). Essa pressuposição pode ser convenientemente designada (embora o nome provenha de data um pouco posterior) como teoria da “catexia” (“Besetzung”). Talvez não haja nenhuma outra passagem, nos escritos publicados de Freud, em que ele reconheça tão explicitamente a necessidade dessa que constitui a mais fundamental de todas as suas hipóteses: “nas funções mentais, deve-se distinguir algo - uma carga de afeto ou soma de excitação - que possui todas as características de uma quantidade… passível de aumento, diminuição, deslocamento e descarga…” A noção de “quantidade deslocável” estivera implícita, é claro, em todas as suas discussões teóricas anteriores. Como ele próprio indica nessa mesma passagem, ela estava subjacente à teoria da ab-reação; foi a base necessária do princípio da constância (que logo será discutido); estava implícita sempre que Freud utilizava expressões como “carregado com uma soma de excitação” (ver em [1]), “suprido com uma carga de afeto” (1893c), “suprido de energia” (1895b), - predecessoras do que logo se converteria no termo padrão “catexizado”. Já no prefácio a sua primeira tradução de Bernheim (1888-9) ele falara em “deslocamentos da excitabilidade no sistema nervoso”.
Esse último exemplo traz-nos à mente, entretanto, uma complicação adicional. Pouco mais de dezoito meses após escrever o presente artigo, Freud enviou a Fliess o notável fragmento conhecido como o “Projeto”, já mencionado acima. Ali a hipótese da catexia é, pela primeira e última vez, integralmente discutida. Mas essa discussão completa traz claramente à luz algo que é esquecido com demasiada facilidade. Durante todo esse período Freud parece ter considerado os processos de catexização como eventos materiais. Em seu “Projeto”, duas pressuposições básicas foram explicitadas. A primeira era a da validade da então recente descoberta histológica de que o sistema nervoso consistia em cadeias de neurônios; a segunda era a idéia de que a excitação dos neurônios devia ser considerada como “uma quantidade sujeita às leis gerais do movimento”. Combinando essas duas pressuposições, “chegamos à idéia de um neurônio ‘catexizado’, cheio de determinada quantidade, embora em outras ocasiões possa estar vazio” (“Projeto”, Parte I, Seção 2). Entretanto, embora a catexia fosse assim definida primariamente como um evento neurológico, a situação não era tão simples. Até muito pouco tempo antes, o interesse de Freud estivera centrado na neurologia, e agora que seus pensamentos estavam sendo cada vez mais desviados para a psicologia, era natural que seu primeiro esforço fosse o de conciliar esses dois interesses. Acreditava ele que devia ser possível postular os fatos da psicologia em termos neurológicos, e seus esforços nesse sentido culminaram precisamente no “Projeto”. A tentativa falhou; o “Projeto” foi abandonado; e nos anos que se seguiram, pouco mais se ouviu sobre a base neurológica dos eventos psicológicos, exceto (como veremos adiante, ver em [1] e seg.) em conexão com o problema das “neuroses atuais”. Contudo, esse repúdio não envolveu nenhuma revolução maciça. O fato, sem dúvida, é que as formulações e hipóteses apresentadas por Freud em termos neurológicos tinham sido efetivamente elaboradas com vistas mais do que parciais aos eventos psicológicos; e quando chegou o momento de abandonar a neurologia, verificou-se que a maior parte do material teórico podia ser entendida como aplicável - a rigor, mais convincentemente aplicável - a fenômenos puramente mentais.
Essas considerações aplicam-se ao conceito de “catexia”, que apresentou um sentido inteiramente não-físico em todos os escritos posteriores de Freud, inclusive o sétimo capítulo teórico de A Interpretação dos Sonhos (1900a). Aplicam-se também à hipótese posterior que utiliza o conceito de catexia de que ficou mais tarde conhecida como “princípio da constância”. Também esta começou como uma hipótese aparentemente fisiológica. O princípio é definido no “Projeto” (Parte I, Seção I) como “princípio da inércia neuronal, que afirma que os neurônios tendem a se desfazer da quantidade”. Foi formulado em termos psicológicos vinte e cinco anos depois, em Além do Princípio do Prazer (1920g), como se segue: “O aparelho mental se esforça por manter a quantidade de excitação nele presente tão baixa quanto possível, ou, pelo menos, por mantê-la constante.” (Edição Standard  Brasileira, Vol. XVIII, pág. [1], IMAGO Editora, 1976). Esse princípio não é explicitamente estabelecido no presente artigo, embora esteja implícito em vários pontos. Já fora mencionado na conferência sobre a “Comunicação Preliminar” (1893h, ver em [1]), embora não na própria “Comunicação Preliminar”, e no artigo em francês sobre as paralisias histéricas (1893c). Fora também formulado com muita clareza num rascunho postumamente publicado da “Comunicação Preliminar” (1940d), datado de “Fim de novembro de 1892”, e citado, antes disso ainda, numa carta de Freud a Breuer datada de 29 de junho de 1892 (1941a), assim como, indiretamente, numa das notas de rodapé de Freud a sua tradução de um volume das Leçons du Mardi, de Charcot (Freud, 1892-94, 107). Nos anos posteriores, o princípio foi repetidamente discutido: por exemplo, por Breuer em sua contribuição teórica aos Estudos sobre a Histeria - (1895d), Edição Standard Brasileira, Vol. II, ver em [1] e [2], 3ª edição, IMAGO, 1995, e por Freud em “Os Instintos (Pulsões) e suas Vicissitudes” (1915c), ibid., Vol. XIV, ver em [1], [2] e [3], ibid., 1974; e em Além do Princípio do Prazer (1920g), Vol. XVIII, ver em [1]., [2] e [3] e seg., ibid., 1976, onde ele lhe deu pela primeira vez a nova denominação de “princípio do Nirvana”.
O princípio do prazer, não menos fundamental que o princípio da constância no arsenal psicológico de Freud, está igualmente presente neste artigo, embora mais uma vez apenas implicitamente. A princípio, Freud considerou os dois princípios intimamente ligados, e talvez idênticos. No “Projeto” (Parte I, Seção 8), escreveu: “Já que temos certo conhecimento de uma tendência da vida psíquica a evitar o desprazer, ficamos tentados a identificá-la com a tendência primária à inércia. Nesse caso, o desprazer coincidiria com um aumento do nível da quantidade… O prazer corresponderia à sensação de descarga.” Só muito mais tarde, em “O Problema Econômico do Masoquismo” (1924c), é que Freud demonstrou a necessidade de distinguir os dois princípios (Vol. XIX, ver em [1], [2] e [3], IMAGO Editora, 1976). O curso das alterações na visão de Freud sobre essa questão é detalhadamente acompanhado numa nota de rodapé do Editor inglês ao artigo metapsicológico sobre “Os Instintos (Pulsões) e suas Vicissitudes” (1915c), Vol. XIV, ver em [1] e [2]., IMAGO Editora, 1974.
Pode-se levantar a questão adicional de até que ponto essas hipóteses fundamentais eram específicas de Freud e até que ponto derivaram de outras influências. Muitas fontes possíveis têm sido sugeridas - Helmholtz, Herbart, Fechner e Meynert, entre outros. Este, contudo, não é o lugar para se introduzir uma questão tão abrangente. Basta dizer que Ernest Jones a examinou exaustivamente no primeiro volume de sua biografia de Freud (1953, 405-15).
Cabe dizer algumas palavras sobre um ponto que se destaca particularmente do penúltimo parágrafo deste artigo - a aparente equivalência dos termos “carga de afeto (Affektbetrag)” e “soma de excitação (Erregungssumme)”. Estará Freud utilizando tais palavras como sinônimos? A descrição que faz dos afetos na Conferência XXV de suas Conferências Introdutórias (1916-17) e seu uso da palavra na Seção III do artigo sobre “O Inconsciente” (1915e), assim como numerosas outras passagens mostram que em geral ele atribuía a “afeto” aproximadamente o mesmo sentido que costumamos dar a “sentimento” ou “emoção”. “Excitação”, por outro lado, é um dos vários termos que ele parece usar para descrever a desconhecida energia da “catexia”. No “Projeto”, como vimos, ele a chama simplesmente de “quantidade. Em outros trechos, utiliza termos como “intensidade psíquica” ou “energia pulsional”. “Soma de excitação” remonta a sua menção ao princípio da constância na carta a Breuer de junho de 1892. Assim, os dois termos parecem não ser sinônimos. Essa opinião é confirmada por uma passagem de Breuer no capítulo teórico dos Estudos sobre a Histeria, onde ele fornece razões para a suposição de que os afetos “acompanham um aumento da excitação”, implicando com isso que se trata de duas coisas diferentes (Edição Standard Brasileira, Vol. II, ver em [1], 3ª edição, IMAGO, 1995). Tudo isso pareceria bastante claro, não fosse por uma passagem no artigo metapsicológico sobre o “Recalcamento” (1915d), Vol. XIV, ver em [1] e segs., IMAGO Editora, 1974. Trata-se da passagem em que Freud mostra que o “representante psíquico” de uma pulsão consiste em dois elementos que têm destinos bem diferentes sob a ação do recalcamento. Um desses elementos é a representação ou grupo de representações catexizadas, e o outro é a energia pulsional nelas investida. “Para esse outro elemento do representante psíquico a expressão carga afetiva tem sido genericamente adotada”. Algumas frases adiante e em vários outros pontos, ele se refere a esse elemento como “fator quantitativo”, mas depois, ainda um pouco além, volta a falar nele como “carga de afeto”. À primeira vista, Freud pareceria estar tratando afeto e energia psíquica como noções sinônimas. Mas esse afinal não pode ser o caso, já que exatamente na mesma passagem ele menciona como um possível destino da pulsão “a transformação em afetos… das energias psíquicas das pulsões” (Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, ver em [1], IMAGO Editora, 1974).
A explicação da aparente ambigüidade parece residir na concepção subjacente de Freud sobre a natureza dos afetos. Sua formulação mais clara talvez seja a que se encontra na terceira seção do artigo sobre “O Inconsciente” (1915e), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, ver em [1] e [2], IMAGO Editora, 1974, onde Freud declara que os afetos “correspondem a processos de descarga cujas manifestações finais são percebidas como sentimentos”. De modo similar, na Conferência XXV das Conferências Introdutórias, ele indaga o que é um afeto “no sentido dinâmico” e prossegue: “Um afeto inclui, em primeiro lugar, determinadas inervações ou descargas motoras e, em segundo lugar, certos sentimentos; estes são de dois tipos: as percepções das ações motoras ocorridas e os sentimentos diretos de prazer e desprazer, que, como se costuma dizer, dão ao afeto seu tom predominante.” E, por último, no artigo sobre “O Recalcamento”, do qual partimos, ele escreve que a carga de afeto “corresponde à pulsão na medida em que esta… encontra expressão, proporcional a sua quantidade, em processos que são vivenciados como afetos”.
Assim, é provavelmente correto supor que Freud considerasse a “carga de afeto” como uma manifestação particular da “soma de excitação”. Sem dúvida, é verdade que o afeto era o que estava usualmente envolvido nos casos de histeria e neuroses obsessivas que constituíram o principal interesse de Freud no período inicial. Por essa razão, ele tendia, nessa época, a descrever a “quantidade deslocável” como uma carga de afeto, em vez de descrevê-la, em termos mais gerais, como uma excitação; e esse hábito parece ter persistido mesmo nos artigos metapsicológicos, onde uma diferenciação mais precisa poderia ter contribuído para a clareza de sua tese.


OBSESSÕES E FOBIAS: SEU MECANISMO PSÍQUICO E SUA ETIOLOGIA (1895 |1894|)


NOTA DO EDITOR INGLÊS

OBSESSIONS ET PHOBIES
(LEUR MÉCANISME PSYCHIQUE ET LEUR ÉTIOLOGIE)

(a) EDIÇÕES EM FRANCÊS:
1895 Rev. Neurol., 3 (2), 33-8. (30 de janeiro).
1906 S.K.S.N., 1, 86-93. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
1925 G.S., l, 334-42.
1952 G.W., l, 345-53.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:
“Obsessions and Phobias”
1924 C.P., l, 128-37. (Trad. de M. Meyer.)

Incluído (nº XXX) na coletânea de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud elaborada por ele mesmo (1897b). O original está em francês. A presente tradução é uma versão consideravelmente revista da publicada em 1924. Uma tradução alemã, de A.Schiff, sob o título “Zwangsvorstellungen und Phobien”, foi publicada em Wien. klin. Rundsch., 9 (17), 262-3 e (18), 276-8, a 28 de abril de 5 de maio de 1895.

Embora este artigo tenha sido publicado quinze dias após o primeiro artigo sobre a neurose de angústia (1895b), foi escrito anteriormente, pois há aqui uma referência (ver em [1]) ao artigo sobre a neurose de angústia como algo que Freud esperava escrever no futuro, e há naquele uma referência ao presente artigo (ver em [1], adiante).
A primeira parte deste artigo é pouco mais que uma repetição da Seção II do primeiro artigo sobre “As Neuropsicoses de Defesa” (1894a), tratando das obsessões. A última parte, relativa às fobias, é discutida no Apêndice do Editor inglês (ver em [1] [2]).
Este é um dos três artigos que Freud escreveu em francês por volta dessa época; o primeiro (1893c), que versa sobre a distinção entre paralisias orgânicas e histéricas, será encontrado no primeiro volume da Edição Standard, e o restante neste volume, em [1] e segs. Em um ou dois casos, os termos franceses selecionados pelo próprio Freud como versões dos termos alemães interessam ao tradutor inglês. Assim, ele sempre traduz “Zwangsvorstellung” pelo francês “obsession”. Isso deve dissipar qualquer sentimento inquietante de que a versão inglesa adequada devesse ser “representação compulsiva” ou coisa semelhante. De fato, parece não ter havido nenhum equivalente em alemão para a palavra francesa e inglesa até que Krafft-Ebing introduziu “Zwangsvorstellung” em 1867 (cf. Loewenfeld, 1904, 8). A palavra inglesa “obsession”, no sentido de idéia fixa, remonta pelo menos ao século XVII. Do mesmo modo, Freud traduz “Zwangsneurose” pelo francês “névrose d’obsessions”. O alemão “Angstneurose” é por ele vertido por “névrose d’angoise”; entretanto, em pelo menos um ponto (ver em [1]), ele traduz “Angst” por “anxieté”, palavra francesa com a mesma conotação da inglesa “anxiety” (Ver em [1] e seg.). Outra palavra que Freud usa com enorme freqüência em seus escritos desse período é “unvertraeglich”, aplicada às representações recalcadas na histeria ou descartadas de outras maneiras na neurose obsessiva. Há uma boa dose de má vontade em aceitar essa palavra como significando “incompatível”. Existe outra palavra alemã com apenas uma letra a menos, “unetraeglich”, que significa “intolerável”. Esta última ocorre algumas vezes, provavelmente por erro de impressão, nas edições alemãs (cf. em [1]), e o termo “intolerável” foi adotado como tradução uniforme na maior parte do primeiro volume dos Collected Papers de 1924. As dúvidas quanto ao sentido pretendido por Freud parecem ter sido dirimidas pelo equivalente francês escolhido por ele - “inconciliable”.
Pode-se acrescentar que, no Volume I das Gesammelte Werke (publicado em 1952), no início do primeiro desses artigos em francês (que é o que foi incluído no Volume I da Edição Standard), lê-se a seguinte nota de rodapé: “Nos três artigos em francês, o texto original foi revisto e corrigido no que concerne aos erros de impressão e erros de francês, embora se tenha respeitado estritamente o sentido.” A maioria das alterações assim efetuadas é puramente verbal, e conseqüentemente não afetou a tradução inglesa. Em alguns casos, porém, neste artigo e no que é reproduzido mais adiante (ver em [1] e segs.), talvez se possa pensar que as modificações foram mais além, embora em duas delas (ver em [1] e [2]) a versão de 1952 de fato remonte à que consta da publicação periódica original. Ao decidir sobre os casos duvidosos, deve-se ter em mente que o próprio Freud muito provavelmente leu por inteiro as reimpressões de 1906 e de 1925, já que acrescentou novas notas de rodapé a esta última (cf. em [1]). As versões de 1906 são as que adotamos usualmente no texto. Em todos os casos fornece-se a alternativa numa nota de rodapé.

OBSESSÕES E FOBIAS: SEU MECANISMO PSÍQUICO E SUA ETIOLOGIA

Começarei por questionar duas afirmações que têm sido freqüentemente repetidas a respeito das síndromes de “obsessões” e “fobias”. Deve-se dizer, em primeiro lugar, que elas ano podem ser incluídas na neurastenia propriamente dita, já que os pacientes afligidos por esses sintomas são ora neurastênicos, ora não o são; e, em segundo lugar, ano temos justificativa para encará-las como efeito de degeneração mental, pois são encontradas em pessoas ano mais degeneradas do que a maioria dos neuróticos em geral, e porque às vezes elas se recuperam e outras vezes conseguimos até mesmo curá-las.
As obsessões e as fobias são neuroses distintas, com mecanismo e etiologia específicos, que consegui demonstrar num certo número de casos e que, segundo espero, se revelarão semelhantes num número de casos novos.
Quanto à classificação do assunto, proponho, em primeiro lugar, excluir um grupo de obsessões intensas que nada mais são do que lembranças, imagens inalteradas de eventos importantes. Como exemplo, posso citar a obsessão de Pascal: ele sempre achava estar vendo um abismo a sua esquerda, “depois de quase ter sido atirado no Sena em seu coche”. Tais obsessões e fobias, que podem ser chamadas de traumáticas, estão ligadas aos sintomas da histeria.
A parte esse grupo, devemos distinguir: (a) as obsessões verdadeiras; (b) as fobias. A diferença essencial entre elas é a seguinte:
Dois correspondentes são encontrados em toda obsessão: (1) uma representação que se impõe ao paciente; (2) um estado emocional associado. Ora, no grupo das fobias, esse estado emocional é sempre de “angústia”, ao passo que, nas obsessões verdadeiras, outros estados emocionais, como a dúvida, o remorso ou a raiva, podem ocorrer tanto quanto a angústia. Tentarei primeiramente explicar o mecanismo psicológico, realmente notável, das obsessões verdadeiras - um mecanismo bem diferente do das fobias.

I

Em muitas obsessões verdadeiras, é evidente que o principal é o estado emocional, já que este permanece inalterado, enquanto a representação a ele associada varia. A jovem do Caso 1 citado adiante, por exemplo, sentia um certo grau de remorso por toda sorte de razões - por ter cometido um furto, por ter maltratado as irmãs, por ter fabricado dinheiro falso etc. As pessoas que duvidam têm muitas dúvidas simultânea ou sucessivamente. É o estado emocional que permanece constante nelas; a representação muda. Em outros casos, a representação também parece fixada, como no Caso 4, da menina que perseguia os empregados da casa com um ódio incompreensível, embora modificando constantemente o objeto individual.
Ora, uma cuidadosa análise psicológica desses casos mostra que o estado emocional, como tal, é sempre justificado. A moça do Caso 1, que sofria de remorso, tinha boas razões para isso; a mulher do Caso 3, que duvidava de sua capacidade de resistência à tentação, sabia muito bem por quê. A moça do Caso 4, que detestava os criados, tinha bons motivos para se queixar etc. Só que - e é nessas duas características que reside a marca patológica - (1) o estado emocional persiste indefinidamente e (2) a representação associada não é mais a representação apropriada original, relacionada com a etiologia da obsessão, mas uma representação que a substitui, um sucedâneo dela.
A prova disso é o fato de que sempre conseguimos descobrir, na história prévia do paciente, no início da obsessão, a representação original que foi substituída. Todas as representações substituídas têm atributos comuns; elas correspondem a experiências realmente penosas na vida sexual do sujeito, que ele se esforça por esquecer. Consegue meramente substituir a representação incompatível por uma outra, mal adaptada para se associar com o estado emocional, o qual, por sua vez, permanece inalterado. É essa mésalliance entre o estado emocional e a representação associada que explica os disparates tão característicos das obsessões.
Passo agora a apresentar minhas observações, e concluirei com uma tentativa de explicação teórica.
Caso 1. Uma jovem censurava-se por coisas que sabia serem absurdas: por ter roubado, fabricado dinheiro falso, por envolver-se numa conspiração etc., conforme o que tivesse lido durante o dia.
Reinstauração da representação substituída: Ela se recriminava pela masturbação que vinha praticando em segredo, sem conseguir abandoná-la. Foi curada por uma cuidadosa vigilância, que a impediu de se masturbar.
Caso 2. Um rapaz, estudante de medicina, sofria de obsessão análoga. Recriminava-se por toda sorte de atos imorais: por ter matado o primo, violado a irmã, ateado fogo a uma casa etc. Chegou ao ponto de ter que se voltar na rua para ver se ano tinha assassinado a última pessoa a passar por ele.
Reinstauração: Ficara muito afetado pela leitura, num livro paramédico, de que a masturbação, na qual era viciado, destruía a moral das pessoas.
Caso 3. Várias mulheres queixaram-se de um impulso obsessivo de se atirarem pela janela, ferirem seus filhos com facas, tesouras etc.
Reinstauração: Obsessões baseadas em tentações típicas. Tratava-se de mulheres que, inteiramente insatisfeitas com seus casamentos, tinham de lutar contra os desejos e idéias voluptuosas que constantemente as perturbavam à visão de outros homens.
Caso 4. Uma moça perfeitamente sadia e muito inteligente exibia um ódio incontrolável pelos empregados de sua casa. Este fora deflagrado em conexão com uma criada impertinente e se transferia de criada para criada, a ponto de tornar o serviço doméstico impossível. O sentimento era uma mistura de ódio e repugnância. Ela se justificava dizendo que a grosseria dessas moças arruinava sua representação do amor.
Reinstauração: Essa moça fora testemunha involuntária de uma cena de amor em que sua mãe tomara parte. Escondera o rosto, tapara os ouvidos e fizera o máximo para esquecer a cena, pois ela a repugnava e teria tornado impossível sua permanência com a mãe, a quem ela amava ternamente. Teve êxito em seus esforços, mas a raiva pela maculação de sua representação do amor persistiu dentro dela, e esse estado emocional logo se ligou à representação de alguma pessoa que assumisse o lugar de sua mãe.
Caso 5. Uma jovem se isolara quase completamente por causa de um medo obsessivo da incontinência urinária. Não podia mais sair de seu quarto ou receber visitas sem ter urinado inúmeras vezes. Quando estava em casa ou inteiramente só, o medo não a perturbava.
Reinstauração: Tratava-se de obsessão baseada na tentação ou na desconfiança. Ela não desconfiava de sua bexiga, mas de sua resistência aos impulsos eróticos. A origem da obsessão mostra-o claramente. Uma vez, no teatro, vendo um homem que a atraía, ela sentiu um desejo erótico, acompanhado (como as poluções espontâneas nas mulheres sempre o são) de um desejo de urinar. Foi obrigada a deixar o teatro e, a partir desse momento, viu-se presa do medo de experimentar a mesma sensação, mas o desejo de urinar substituíra o desejo erótico. Ficou completamente curada.
Embora os casos que enumerei mostrem graus variáveis de complexidade, têm em comum o seguinte: a representação original (incompatível) foi substituída por outra representação, a representação substituta. Nos casos que acrescento agora, a representação original foi substituída, mas não por outra representação - foi substituída por atos ou impulsos que serviram originalmente como medidas de alívio ou como procedimentos protetores, e que são agora grotescamente associados a um estado emocional que não lhes é adequado, mas que permaneceu inalterado e continuou a ser tão justificável quanto em sua origem.
Caso 6. Aritmomania obsessiva. - Uma mulher via-se na obrigação de contar as tábuas do assoalho, os degraus da escada etc., atos estes que praticava num ridículo estado de angústia.
Reinstauração: Ela começara a contar para desviar sua mente das representações obsessivas (de tentação). Conseguira fazê-lo, mas o impulso de contar substituíra a obsessão original.
Caso 7. Preocupação e especulação obsessivas. - Uma mulher sofria de ataques dessa obsessão, que só cessavam quando ela adoecia, cedendo então lugar a temores hipocondríacos. O tema de sua preocupação era sempre uma parte ou função de seu corpo; por exemplo a respiração: “Por que preciso respirar? Suponhamos que eu não queira respirar” etc.
Reinstauração: Logo no princípio ela sofrera do medo de enlouquecer - fobia hipocondríaca bastante comum entre mulheres não satisfeitas por seus maridos, como era seu caso. Para se assegurar de que não estava louca, de que estava ainda de posse de suas faculdades mentais, começara a se fazer perguntas e a se interessar por problemas sérios. Isso inicialmente a acalmara, mas, com o tempo, o hábito da especulação substituiu a fobia. Por mais de quinze anos, alternaram-se nela períodos de medo (patofobia) e de especulação obsessiva.
Caso 8. Folie du doute. - Vários casos mostraram os sintomas típicos dessa obsessão, mas foram explicados de forma muito simples. Essa pessoas tinha sofrido ou sofriam ainda de várias obsessões, e o conhecimento de que essas obsessões haviam perturbado todos os seus atos e interrompido muitas vezes o curso de seu pensamento provocava uma dúvida legítima quanto à confiabilidade de sua memória. Todos já tivemos nossa confiança abalada, já fomos forçados a reler uma carta ou refazer um cálculo, quando nossa atenção é dispersada várias vezes durante a realização desse ato. A dúvida é um resultado bastante lógico na presença de obsessões.
Caso 9. Folie du doute. (Hesitação.) - A moça do Caso 4 se tornara extremamente vagarosa na execução de todos os seus atos cotidianos, em especial na de sua toalete. Levava horas para amarrar os sapatos ou limpar as unhas. A guisa de explicação, dizia que não conseguia fazer sua toalete enquanto as representações obsessivas ocupavam sua mente, nem imediatamente após. Assim, acostumara-se a esperar um intervalo definido depois de cada retorno da representação obsessiva.
Caso 10. Folie du doute. (Medo de pedacinhos de papel.) - Uma jovem sofria de escrúpulos após ter escrito uma carta; ao mesmo tempo, juntava todos os pedaços de papel que enxergava. Explicou esse fato confessando um amor que antes se recusara a admitir. Em conseqüência da repetição constante do nome de seu amado, fora dominada pelo medo de que esse nome pudesse ter-lhe escapado da pena, de que pudesse tê-lo escrito em algum pedaço de papel num momento de introspecção.
Caso 11. Misofobia |Medo de sujeira.| - Uma mulher lavava suas mãos constantemente e só tocava os trincos das portas com os cotovelos.
Reinstauração: É o caso de Lady Macbeth. A lavagem era simbólica, destinada a substituir pela pureza física a pureza moral que ela lastimava ter perdido. Atormentavam-na os remorsos pela infidelidade conjugal, cuja lembrança ela resolvera banir da mente. Além disso, costumava lavar seus órgãos genitais.
No que tange à teoria desse processo de substituição, ficarei contente em responder a três perguntas que aqui surgem:
(1)Como se produz a substituição?
Ela parece ser expressão de uma predisposição mental específica herdada. De qualquer forma, a “hereditariedade similar” é encontrada com bastante freqüência nos casos obsessivos, assim como na histeria. O paciente do Caso 2, por exemplo, contou-me que seu pai sofrera de sintomas semelhantes. Certa vez, o rapaz me apresentou a um primo em primeiro grau que tinha obsessões e um tic convulsif, e à filha de sua irmã, de 11 anos, que já dava sinais de obsessões (provavelmente de remorso).
(2)Qual o motivo da substituição?
Penso que ele pode ser considerado como um ato de defesa (Abwehr) do ego contra a representação incompatível. Entre meus pacientes há alguns que se recordam do esforço deliberado de banir a representação ou recordação aflitiva do campo da consciência. (Ver Casos 3, 4 e 11). Em outros casos, a expulsão da representação incompatível é processada de modo inconsciente, que não deixa nenhum traço na memória do paciente.
(3)Por que o estado emocional associado com a representação obsessiva persiste indefinidamente, em vez de se dissipar como outros estados de nosso eu?
Essa questão pode ser respondida com referência à teoria da gênese dos sintomas histéricos, desenvolvida por Breuer e por mim. Aqui observarei apenas que, pelo próprio fato da substituição, torna-se impossível o desaparecimento do estado emocional.

II

Além desses dois grupos de obsessões verdadeiras, há a classe de “fobias”, que deve ser agora considerada. Já mencionei a grande diferença entre obsessões e fobias: nestas últimas, a emoção é sempre de angústia, de medo. Poderia acrescentar que as obsessões são variadas e mais especializadas, enquanto as fobias aso mais monótonas e típicas. Mas essa distinção não é de importância capital.
Entre as fobias, é também possível diferenciar dois grupos, conforme a natureza do objeto temido: (1) fobias comuns, medo exagerado de coisas que todos detestam ou temem em alguma medida, tais como a noite, a solidão, a morte, as doenças, os perigos em geral, as cobras etc.; (2) fobias contingentes, medo de condições especiais que não inspiram medo ao homem normal: por exemplo, agorafobia e as outras fobias da locomoção. É interessante notar que essas fobias não têm o traço obsessivo que caracteriza as verdadeiras obsessões e as fobias comuns. O estado emocional só aparece, nesses casos, em condições especiais, que o paciente evita cuidadosamente.
O mecanismo das fobias é totalmente diferente do das obsessões. A substituição não é mais o traço predominante nas primeiras; a análise psicológica não revela nelas nenhuma representação incompatível substituída. Nunca se encontra nada além do estado emocional de angústia, que, por uma espécie de processo seletivo, traz à tona todas as representações adequadas para se tornarem alvo de uma fobia. No caso da agorafobia etc., encontramos freqüentemente a recordação de um ataque de angústia; e o que o paciente de fato teme é a ocorrência de tal ataque nas condições especiais em que acredita não poder escapar dele.
A angústia pertinente a esse estado emocional, que subjaz a todas as fobias, não deriva de qualquer lembrança; bem podemos imaginar qual seja a fonte dessa poderosa condição do sistema nervoso.
Espero pode demonstrar, em outra ocasião, que há motivos para se distinguir uma neurose especial, a “neurose de angústia”. cujo principal sintoma é esse estado emocional. Enumerarei então seus vários sintomas e insistirei sobre a necessidade de diferenciar essa neurose da neurastenia, com a qual é agora confundida. As fobias, portanto, fazem parte da neurose de angústia, e aso quase sempre acompanhadas por outros sintomas do mesmo grupo.
Tanto quanto posso perceber, também a neurose de angústia tem uma origem sexual, mas não se prende a representações extraídas da vida sexual; para dizê-lo com propriedade, não tem qualquer mecanismo psíquico. Sua causa específica é a acumulação de tensão sexual produzida pela abstinência ou pela excitação sexual não consumada (usando o termo como fórmula geral para os efeitos do coitus reservatus, da impotência relativa do marido, da excitação não satisfeita dos noivos, da abstinência forçada etc.).
É nessas condições, extremamente freqüentes na sociedade moderna, especialmente entre as mulheres, que se desenvolve a neurose de angústia (da qual as fobias aso uma manifestação psíquica).
Para concluir, posso assinalar que é possível coexistirem combinações de uma fobia com uma obsessão propriamente dita, e essa é de fato uma ocorrência muito freqüente. Podemos constatar que uma fobia se desenvolvera no início da doença como um sintoma de neurose de angústia. A representação que constitui a fobia e que é associada ao estado de medo pode ser substituída por outra representação, ou melhor, pelo procedimento protetor que parecia aliviar o medo. O Caso 7 (especulação obsessiva) fornece um nítido exemplo desse grupo: uma fobia acompanhada de uma obsessão substitutiva verdadeira.

APENDICE: AS CONCEPÇÕES DE FREUD SOBRE AS FOBIAS

A mais antiga abordagem feita por Freud do problema das fobias foi seu primeiro artigo sobre as psiconeuroses de defesa (1894a); tratou-o de modo bem mais completo, um ano depois, na segunda seção do presente artigo, e voltou a aludir a ele no primeiro artigo sobre a neurose de angústia (1895b), escrito logo depois. Em todas essas primeiras discussões das fobias não é difícil detectar alguma incerteza; de fato, numa outra breve referência à questão, no segundo artigo sobre a neurose de angústia (1895f), Freud qualifica de “obscuro” o mecanismo das fobias (ver em [1] e [2]). No primeiro desses artigos ele atribuíra o mesmo mecanismo à maioria das fobias e obsessões" (ver em [1]), excetuando as “fobias puramente histéricas” (ver em [1]) e “o grupo de fobias típicas das quais um modelo é a agorafobia” (ver em [1]. nota de rodapé 1). Essa última distinção, que ocorre pela primeira vez numa nota de rodapé, iria revelar-se crucial, pois implicava uma distinção entre fobias de base psíquica e fobias (as “típicas”) sem qualquer base psíquica. Assim, essa distinção se ligava à separação entre o que seria posteriormente conhecido como psiconeuroses e “neuroses atuais” (ver adiante, ver em [1]). Nesses primeiros artigos, entretanto, a distinção não era consistentemente traçada. Dessa forma, no presente artigo, ela parece ser feita não entre dois grupos diferentes de fobias (como no texto mais antigo), mas entre, de um lado, as “obsessões” (de base psíquica) e, de outro, as “fobias” (sem base psíquica) sendo estas últimas declaradas “parte da neurose de angústia” (ver em [1], [2], [3] e [4]). Aqui, entretanto, o quadro se confunde pela divisão adicional das fobias em dois grupos, de acordo com a natureza de seus objetos (ver em [1]), e também pela discriminação (como no primeiro artigo) de uma outra classe de fobias “que poderiam se chamadas de traumáticas” e que estão “ligadas aos sintomas da histeria” (ver em [1]). Além disso, no artigo sobre neurose de angústia, a principal distinção não se referia às obsessões e fobias, como aqui, porém, mais uma vez, à distinção entre as fobias pertencentes à neurose obsessiva e as pertencentes à neurose de angústia (ver em [1] e [2]), se bem que, ainda uma vez, a distinção se estabelecesse entre a presença e a ausência de uma base psíquica. Nesses artigos, portanto, permaneceram certos vínculos indeterminados entre as fobias, a histeria, as obsessões e a neurose de angústia.
Com exceção de pouquíssimas alusões aqui e ali, o tema das fobias parece não ter sido discutido por Freud, após o presente grupo de artigos, durante quase quinze anos. Então, no caso clínico do “Pequeno Hans” (1909b), deu-se o primeiro passo em direção ao esclarecimento desses pontos obscuros com a introdução de uma nova entidade clínica - a “histeria de angústia” (Edição Standard Brasileira, Vol. X, ver em [1], [2] e [3]). Naquele texto Freud observou que as fobias “devem ser consideradas apenas como síndromes que podem fazer parte de várias neuroses, e não precisamos classificá-las como um processo patológico independente”; e propôs então o nome “histeria de angústia” para um tipo específico de fobia cujo mecanismo se assemelhava ao da histeria. Foi nesse caso clínico e no caso posterior do “Homem dos Lobos” (1918b |1914|) que Freud forneceu sua mais completa descrição clínica das fobias - ocorrendo ambas, naturalmente, em crianças. Um pouco mais tarde, em seus artigos metapsicológicos sobre “O Recalcamento” e “O Inconsciente” (1915d e e), ele entrou numa discussão detalhada da metapsicologia do mecanismo que produz as fobias, quer relacionadas à histeria ou à neurose obsessiva (Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, ver em [1], [2], [3], [4] e [1], [2], [3], [4], [5], IMAGO Editora, 1974). Restou, porém, o problema das fobias “típicas” da neurose de angústia, que remonta ao primeiro do presente conjunto de artigos. Aqui, como vimos, toda a questão das “neuroses atuais” estava envolvida; e esta só seria inteiramente elucidada ainda mais tarde, em Inibição, Sintoma e Angústia (1926d), cujo núcleo é um reexame das fobias do “Pequeno Hans” e do “Homem dos Lobos”.



SOBRE OS FUNDAMENTOS PARA DESTACAR DA NEURASTENIA UMA SÍNDROME ESPECÍFICA DENOMINADA NEUROSE DE ANGÚSTIA (1895 |1894|)


NOTA DO EDITOR INGLÊS

ÜBER DIE BERECHTIGUNG, VON DER NEURASTHENIE EINEN BESTIMMTEN SYMPTOMENKOMPLEX ALS “ANGSTNEUROSE” ABZUTRENNEN

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1895 Neurol. Zbl., 14 (2), 50-66. (15 de janeiro.)
1906 S.K.S.N., 1, 60-85. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
1925 G.S., l, 306-33.
1952 G.W., l, 315-42.

(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
“On the Right to Separate from Neurasthenia a Definite Symptom-Complex as ‘Anxiety Neurosis’"
1909 S.P.H., 133-54. (Trad. de A.A. Brill.) (1912, 2ª ed.; 1920.; 3ª ed.)
“The Justification for Detaching from Neurasthenia a Particular Symptom-Complex as ‘Anxiety Neurosis’"
1924 C.P., l, 76-106. (Trad. de J. Rickman.)

Incluído (Nº XXXII) na coletânea de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud, elaborada por ele mesmo (1897b). A presente tradução, com um novo título, baseia-se na de 1924.
Pode-se considerar este artigo como o primeiro trecho de uma pista que percorreu, com mais de uma bifurcação e mais de um retorno acentuado, a totalidade dos escritos de Freud. Entretanto, como se verifica pela lista de trabalhos sobre a angústia impressa como apêndice a Inibição, Sintoma e Angústia (1926d) (Edição Standard Brasileira, Vol. XX, ver em [1], IMAGO Editora, 1976), este não é, estritamente falando, o início da pista. Ele foi precedido de várias partidas exploratórias em forma de rascunhos submetidos por Freud a Wilhelm Fliess (particularmente os Rascunhos A, B e E). Assim, na Seção II do Rascunho B, datado de 8 de fevereiro de 1893 (Freud, 1950a), já estão resumidos alguns dos principais pontos do presente artigo. Em especial, insiste-se na necessidade de “destacar” da neurastenia a neurose de angústia, e muitos dos sintomas são enumerados exatamente como aqui. Por outro lado, esse Rascunho não contém nenhuma indicação da etiologia mais profunda da neurose tal como proposta aqui - o acúmulo de excitação sexual que não consegue encontrar descarga no campo psíquico. Para isso temos que recorrer ao Rascunho E, onde a teoria é formulada na íntegra, talvez até com mais clareza do que adiante. Infelizmente, o Rascunho E não está datado. Os editores da correspondência com Fliess atribuem-lhe, por razões não muito convincentes, a data de junho de l894; mas, seja como for, é evidente que ele deve ter sido escrito antes, e não muito antes, deste artigo. Alguns dos pontos obscuros aqui encontrados são esclarecidos pelo Rascunho E, assim como pelo Rascunho G (também sem data, mas com certeza contemporâneo do presente trabalho), que inclui um notável diagrama retratando as idéias de Freud sobre o mecanismo do processo sexual.
É também recomendável ter em mente, ao ler esses primeiros artigos, que Freud, nessa época, estava profundamente empenhado numa tentativa de formular os dados da psicologia em termos neurológicos - tentativa que culminou em seu abortado “Projeto para uma Psicologia Científica” (1950a, escrito no outono de 1895, poucos meses após esses Rascunhos, mas, como eles, só postumamente publicado) e que, daí por diante, soçobrou inteiramente. (Cf. em [1].) Freud ainda não adotara por completo a hipótese da existência de processos mentais inconscientes (como se observa numa frase de seu artigo anterior sobre “As Neuropsicoses de Defesa”, ver em [1]). Assim, neste artigo, ele faz uma distinção entre “excitação sexual somática”, de um lado, e “libido sexual ou desejo psíquico”, de outro (ver em [1]). A “libido” é encarada como algo exclusivamente “psíquico”, embora, mais uma vez, ainda não pareça ter havido uma distinção clara entre “psíquico” e “consciente”. É interessante notar que na sinopse deste artigo, escrita pelo próprio Freud apenas dois anos depois (1897b), ver em [1] e [2], adiante, ele evidentemente já aceita a concepção de libido como algo potencialmente inconsciente, e escreve: “A angústia neurótica é a libido sexual transformada.”
Seja quais forem os termos em que expressou essa teoria, porém, Freud a sustentou durante quase toda a vida, ainda que com várias complicações restritivas. Quanto à longa série de opiniões mutáveis que estavam por vir, um apanhado será feito na Introdução do Editor inglês (no Vol. XX da Edição Standard) ao último dos principais trabalhos de Freud sobre o assunto: Inibição, Sintoma e Angústia (1926d). Nesse intervalo, porém, Freud se viu frente a uma controvérsia imediata com um colega cético - e psiquiatra Loewenfeld, de Munique -, da qual resultou o estudo que se segue a este.

SOBRE OS FUNDAMENTOS PARA DESTACAR DA NEURASTENIA UMA SÍNDROME ESPECIFICA DENOMINADA NEUROSE DE ANGUSTIA

|INTRODUÇÃO|

É difícil fazer qualquer afirmação de validade geral sobre a neurastenia, na medida em que usemos esse nome para abranger todas as coisas que Beard incluiu nele. Em minha opinião, a neuropatologia só terá a ganhar se fizermos uma tentativa de separar da neurastenia propriamente dita todos os distúrbios neuróticos em que, por um lado, os sintomas estão mais firmemente ligados entre si do que aos sintomas típicos da neurastenia (tais como pressão intracraniana, irritação espinhal e dispepsia com flatulência e constipação), e que, por outro lado, exibem diferenças essenciais, em sua etiologia e mecanismo, em relação à neurose neurastênica típica. Se aceitarmos esse plano, logo obteremos um quadro bastante uniforme da neurastenia. Estaremos então em condições de diferenciar da neurastenia genuína, mais nitidamente do que tem sido possível até aqui, várias pseudoneurastenias (tais como o quadro clínico da neurose reflexa nasal, organicamente determinada, os distúrbios nervosos das caquexias e arteriosclerose, os estágios preliminares de paralisia geral dos loucos, e algumas psicoses). Além disso, será possível - como propôs Moebius - eliminar alguns dos status nervosi |estados nervosos| de indivíduos hereditariamente degenerados; e também descobriremos razões pelas quais várias neuroses hoje descritas como neurastenia - em particular, as neuroses de natureza periódica ou intermitente - devem, antes, ser incluídas na melancolia. Contudo, a mais notável de todas as mudanças será introduzida se decidirmos destacar da neurastenia a síndrome que proponho descrever nas próximas páginas e que satisfaz de modo especialmente completo as condições estabelecidas acima. Clinicamente, os sintomas dessa síndrome relacionam-se de modo muito mais estreito entre si do que com os da neurastenia genuína (isto é, freqüentemente aparecem juntos e substituem uns aos outros no curso da enfermidade); e tanto a etiologia como o mecanismo dessa neurose são fundamentalmente diferentes da etiologia e do mecanismo da neurastenia genuína, tal como esta será caracterizada depois de efetuada a referida separação.
Chamo essa síndrome de “neurose de angústia” porque todos os seus componentes podem ser agrupados em torno do sintoma principal da angústia, pois cada um deles mantém com esta última uma relação definida. Eu acreditava que essa concepção dos sintomas da neurose de angústia se tivesse originado em mim, até que me chegou às mãos um interessante artigo de E. Hecker (1893) onde encontrei a mesma interpretação, exposta com toda a clareza e completude que se poderia desejar. Entretanto, embora Hecker reconheça certos sintomas como equivalentes ou como rudimentos de um ataque de angústia, não os separa do campo da neurastenia como me proponho fazer. Mas isso se deve, evidentemente, ao fato de ele não ter levado em consideração a diferença entre os determinantes etiológicos nos dois casos. Quando esta diferença é reconhecida, não há mais necessidade de designar os sintomas de angústia pelo mesmo nome dos legítimos sintomas neurastênicos, pois o objetivo principal de postular o que de outra maneira seria um nome arbitrário é facilitar a enunciação de asserções gerais.

I - A SINTOMATOLOGIA CLÍNICA DA NEUROSE DE ANGÚSTIA

O que denomino “neurose de angústia” pode ser observado numa forma rudimentar ou totalmente desenvolvida, tanto isoladamente como combinada com outras neuroses. Naturalmente, são os casos até certo ponto completos e ao mesmo tempo isolados que sustentam de maneira especial a impressão de que a neurose de angústia é uma entidade clínica. Em outros casos em que a síndrome corresponde a uma “neurose mista”, defrontamo-nos com a tarefa de distinguir e separar os sintomas que não pertencem à neurastenia ou à histeria etc., mas à neurose de angústia.
O quadro clínico da neurose de angústia abrange os seguintes sintomas:
(1)Irritabilidade geral. Este é um sintoma nervoso comum e, como tal, pertence a outros status nervosi. Menciono-o aqui porque aparece invariavelmente na neurose de angústia e é teoricamente importante. A irritabilidade aumentada aponta sempre para um acúmulo de excitação ou uma incapacidade de tolerar tal acúmulo - isto é, para um acúmulo absoluto ou relativo de excitação. Uma das manifestações dessa irritabilidade aumentada me parece merecer menção especial; refiro-me à hiperestesia auditiva, a uma hipersensibilidade ao ruído - um sintoma indubitavelmente explicável pela íntima relação inata entre as impressões auditivas e o pavor. A hiperestesia auditiva revela-se freqüentemente como sendo causa de insônia, da qual mais de uma forma pertence à neurose de angústia.
(2)Expectativa angustiada. Não conheço melhor maneira de descrever o que tenho em mente senão por esse nome e acrescentando alguns exemplos. Por exemplo, uma mulher que sofre de expectativa angustiada pensará numa pneumonia fatal a cada vez que seu marido tossir quando estiver resfriado, e com os olhos da imaginação assistirá à passagem do funeral dele; se, dirigindo-se a sua casa, observar duas pessoas paradas à porta da frente, não poderá evitar a idéia de que um de seus filhos caiu da janela; quando ouve baterem à porta, imagina que sejam notícias da morte de alguém, e assim por diante - sendo que, em todas essas ocasiões, não há nenhum fundamento específico para exagerar uma mera possibilidade.
Naturalmente, a expectativa angustiada se esmaece e se transforma imperceptivelmente na angústia normal, compreendendo tudo o que se costuma qualificar de ansiedade - ou tendência a adotar uma visão pessimista das coisas; no entanto, em qualquer oportunidade ela ultrapassa a angústia plausível dessa natureza e é freqüentemente reconhecida pelo próprio paciente como uma espécie de compulsão. Para uma das formas da expectativa angustiada - a que se relaciona com a saúde do próprio sujeito - podemos reservar o velho termo hipocondria. O auge alcançado pela hipocondria nem sempre é paralelo à expectativa angustiada geral; requer como precondição a existência de parestesias e sensações corporais aflitivas. Assim, a hipocondria é a forma preferida pelos neurastênicos genuínos quando estes caem presa da neurose de angústia, como ocorre com freqüência.
Outra expressão da expectativa angustiada é sem dúvida encontrada na inclinação para a angústia moral, o escrúpulo e o pedantismo - uma inclinação muitas vezes presente em pessoas com uma dose de sensibilidade moral maior que de costume e que, da mesma forma, varia desde o normal até uma forma exagerada de mania de duvidar.
A expectativa angustiada é o sintoma nuclear da neurose. Também revela abertamente uma parte da teoria da neurose. Talvez possamos dizer que existe nesses casos um quantum de angústia em estado de livre flutuação, o qual, quando há uma expectativa, controla a escolha das representações e está sempre pronto a se ligar a qualquer conteúdo representativo adequado.
(3)Mas a ansiedade - que, embora fique latente a maior parte do tempo no que concerne à consciência, está constantemente à espreita no fundo - tem outros meios de se expressar, além desse. Pode irromper subitamente na consciência sem ter sido despertada por uma seqüência de representações, provocando assim um ataque de angústia. Esse tipo de ataque de angústia pode consistir apenas no sentimento de angústia, sem nenhuma representação associada, ou ser acompanhado da interpretação que estiver mais à mão, tal como representações de extinção da vida, ou de um acesso, ou de uma ameaça de loucura; ou então algum tipo de parestesia (similar à aura histérica pode combinar-se com o sentimento de angústia, ou, finalmente, o sentimento de angústia pode estar ligado ao distúrbio de uma ou mais funções corporais - tais como a respiração, a atividade cardíaca, a inervação vasomotora, ou a atividade glandular. Dessa combinação o paciente seleciona ora um fator particular, ora outro. Queixa-se de “espasmos do coração”, “dificuldade de respirar”, “inundações de suor”, “fome devoradora”, e coisas semelhantes; e, em sua descrição, o sentimento de angústia freqüentemente recua para o segundo plano ou é mencionado de modo bastante irreconhecível, como um “sentir-se mal”, “não estar à vontade”, e assim por diante.
(4)Ora, um fato interessante e de importância desde a perspectiva do diagnóstico é que a proporção em que esses elementos se misturam num ataque de angústia varia em grau notável, e que quase todos os sintomas concomitantes podem constituir o ataque isoladamente, assim como o pode a própria angústia. Há, por conseguinte, ataques de angústia rudimentares e equivalentes de ataques de angústia, todos provavelmente com a mesma significação, exibindo uma grande riqueza de formas até aqui pouco estudada. Um exame mais detalhado desses estados larvares de angústia (como Hecker |1893| os chama) e de sua diferenciação diagnóstica dos outros ataques logo se tornará uma tarefa necessária para os neuropatologistas.
Incluo aqui uma lista que inclui apenas as formas de ataques de angústia que me são conhecidas:
(a)Ataques de angústia acompanhados por distúrbios da atividade cardíaca, tais como palpitação, seja com arritmia transitória ou com taquicardia de duração mais longa, que pode terminar num grave enfraquecimento do coração e que nem sempre é facilmente diferenciável da afecção cardíaca orgânica; e ainda a pseudo-angina do peito - um assunto delicado em termos de diagnóstico!
(b)Ataques de angústia acompanhados por distúrbios respiratórios, várias formas de dispnéia nervosa, acessos semelhando asma e similares. Gostaria de enfatizar que mesmo esses ataques nem sempre vêm acompanhados de angústia reconhecível.
(c)Acessos de suor, geralmente à noite.
(d)Acessos de tremores e calafrios, muito facilmente confundidos com ataques histéricos.
(e)Acessos de fome devoradora, freqüentemente acompanhados de vertigem.
(f)Diarréia sobrevindo em acessos.
(g)Acessos de vertigem locomotora.
(h)Acessos do que se conhece como congestões, incluindo praticamente tudo o que tem sido denominado de neurastenia vasomotora.
(i)Acessos de parestesias. (Estes, porém, raramente ocorrem sem angústia ou uma sensação semelhante de mal-estar.)
(5)O acordar em pânico à noite (o pavor nocturnus dos adultos), que em geral se combina com angústia, dispnéia, suores etc., muitas vezes nada mais é do que uma variante do ataque de angústia. Esse distúrbio é determinante de uma segunda forma de insônia dentro do campo da neurose de angústia. |Cf. em [1].| Além disso, estou convencido de que o pavor nocturnus das crianças também exibe uma forma que pertence à neurose de angústia. O traço de histeria existente nele, a ligação da angústia à reprodução de uma experiência apropriada ou de um sonho, dá ao pavor nocturnus infantil a aparência de alguma coisa especial. O pavor, porém, também pode emergir em forma pura, sem qualquer sonho ou alucinação repetitiva.
(6)A “vertigem” ocupa um lugar preeminente no grupo de sintomas da neurose de angústia. Em sua forma mais branda, sua melhor descrição é a de “tonteira”; em suas manifestações mais intensas, como os “acessos de vertigens” (com ou sem angústia), deve ser classificada entre os sintomas mais graves da neurose. A vertigem da neurose de angústia não é rotatória nem afeta especialmente certos planos ou direções, como a vertigem de Ménière. Pertence à classe da vertigem locomotora ou coordenatória, tal como a vertigem da paralisia oculomotora. Consiste num estado específico de mal-estar, acompanhado por sensações de que o solo oscila, as pernas cedem e é impossível manter-se em pé por mais tempo; enquanto isso, as pernas pesam como chumbo e tremem, ou os joelhos se dobram. Essa vertigem nunca leva a quedas. Por outro lado, gostaria de esclarecer que esse tipo de acesso de vertigem pode ser substituído por um desmaio profundo. Outros estados da natureza do desmaio que ocorre na neurose de angústia parecem depender do colapso cardíaco.
Os acessos de vertigem não raro são acompanhados pelo pior tipo de angústia, freqüentemente combinada com distúrbios cardíacos e respiratórios. De acordo com minhas observações, as vertigens produzidas pela altitude, pelas montanhas e precipícios participam com freqüência da neurose de angústia. Além disso, não estou certo se não seria também correto reconhecer, ao lado destas, uma vertigo a stomacho laeso |de origem gástrica|.
(7)Com base, por um lado, na ansiedade crônica (expectativa angustiada) e, por outro, uma tendência a ataques de angústia acompanhados de vertigem, dois grupos de fobias típicas se desenvolvem, relacionando-se o primeiro com riscos fisiológicos gerais e o segundo com a locomoção. Pertencem ao primeiro grupo o medo de cobras, tempestades, escuridão, vermes, e assim por diante, assim como o típico escrúpulo moral excessivo e algumas formas da mania de duvidar. Aqui, a angústia disponível é empregada simplesmente para reforçar aversões que estão instintivamente implantadas em todas as pessoas. Em geral, porém, uma fobia que atue de modo obsessivo só é formada se se acrescentar a ela a recordação de uma experiência em que a angústia tenha podido manifestar-se - como, por exemplo, depois de o paciente ter vivenciado uma tempestade ao desabrigo. É um erro tentar explicar tais casos como simples persistência de impressões fortes; o que torna essas experiências importantes, e sua lembrança duradoura, é, afinal, apenas a angústia que pôde emergir no momento |da experiência| e que, da mesma maneira, pode emergir agora. Em outras palavras, tais impressões só permanecem poderosas em pessoas com “expectativa angustiada”.
O outro grupo inclui a agorafobia, com todas as suas formas acessórias, todas caracterizadas por sua relação com a locomoção. Muitas vezes constatamos que essa fobia se baseia num acesso de vertigem que a precedeu; não penso, porém, que se possa postular tal acesso na totalidade dos casos. Ocasionalmente, constatamos que, após um primeiro acesso de vertigem sem angústia,a locomoção ainda continua possível sem restrição, embora, daí por diante, seja constantemente acompanhada de uma sensação de vertigem; mas vemos que, em certas condições - como estar sozinho ou numa rua estreita -, a locomoção fica impossibilitada quando a angústia vem somar-se ao acesso de vertigem.
A relação dessas fobias com as fobias da neurose obsessiva, cujo mecanismo esclareci num artigo anterior deste periódico, é da espécie que se segue. O que elas têm em comum é que, em ambas, uma representação torna-se obsessiva em decorrência de estar ligada a um afeto disponível. O mecanismo de transposição do afeto, portanto, é válido em ambos os tipos de fobia. Contudo, nas fobias da neurose de angústia (1) esse afeto tem sempre a mesma tonalidade, que é a da angústia; e (2) o afeto não se origina numa representação recalcada, revelando-se não adicionalmente redutível pela análise psicológica, nem equacionável pela psicoterapia. Portanto, o mecanismo da substituição não é válido para as fobias da neurose de angústia.
Ambas as espécies de fobias (e também as obsessões) freqüentemente aparecem lado a lado, embora as fobias atípicas, baseadas nas obsessões, não precisem brotar, necessariamente, do solo da neurose de angústia. Um mecanismo muito freqüente e aparentemente complicado ocorre quando, no que era originalmente uma simples fobia pertencente a uma neurose de angústia, o conteúdo dessa fobia é substituído por outra representação de modo que o substituto é subseqüente à fobia. Geralmente, o que mais se emprega como substituições são as “medidas protetoras” originalmente usadas para combater a fobia. Por exemplo, a “mania especulativa” é suscitada a partir dos esforços do sujeito para provar que ele não é louco, como lhe afirma sua fobia hipocondríaca; as hesitações e a dúvida, e mais ainda as repetições da folie du doute |mania de duvidar| emergem de uma dúvida justificável quanto à certeza do curso do próprio pensamento, já que se está cônscio do persistente distúrbio deste por representações de tipo obsessivo, e assim por diante. Portanto, podemos afirmar que também muitas das síndromes da neurose obsessiva, como a folie du doute e outras semelhantes, devem ser consideradas, clínica, se não conceitualmente, como pertencentes à neurose de angústia.
(8)As atividades digestivas sofrem apenas alguns distúrbios na neurose de angústia; mas estes são característicos. Sensações como uma inclinação ao vômito e náusea não são raras, e o sintoma da fome devoradora pode, isoladamente ou em conjunto com outros sintomas (como as congestões), suscitar um ataque de angústia rudimentar. Como mudança crônica, análoga à expectativa angustiada, encontramos uma disposição à diarréia, o que tem ocasionado os mais estranhos erros de diagnóstico. Se não me engano, foi para essa diarréia que Moebius (1894) chamou a atenção recentemente num pequeno artigo. Suspeito ainda que a diarréia reflexa de Peyer, que ele deriva de distúrbios da próstata (Peyer, 1893), nada mais é que essa diarréia da neurose de angústia. A ilusão de uma relação reflexa é criada porque os mesmos sintomas que atuam na etiologia da neurose de angústia atuam na deflagração de tais afecções da próstata e distúrbios semelhantes.
O comportamento do aparelho gastrintestinal na neurose de angústia apresenta um agudo contraste com a influência da neurastenia nessas funções. Os casos mistos mostram com freqüência a familiar “alternância entre diarréia e constipação”. Análoga a essa diarréia é a necessidade de urinar que ocorre na neurose de angústia.
(9)As parestesias que podem acompanhar os acessos de vertigem ou angústia são interessantes porque, tal como as sensações da aura histérica, associam-se numa seqüência definida, embora eu considere que essas associações, contrariamente às histéricas, são atípicas e mutáveis. Outra similaridade com a histeria é fornecida pelo fato de que, na neurose de angústia, ocorre uma espécie de conversão para sensações corporais que pode facilmente passar despercebida - por exemplo, para os músculos reumáticos. Grande número do que se conhece como indivíduos reumáticos - que, além disso, se pode demonstrar serem reumáticos - sofre, na realidade, de neurose de angústia. Ao lado desse aumento da sensibilidade à dor, tenho também observado em muitos casos de neurose de angústia uma tendência às alucinações; e estas não podem ser interpretadas como histéricas.
(10)Vários dos sintomas que mencionei, que acompanham ou substituem um ataque de angústia, aparecem também sob forma crônica. Nesse caso, são ainda menos fáceis de reconhecer, pois a sensação ansiosa que os acompanha é menos clara que num ataque de angústia. Isso se aplica particularmente à diarréia, à vertigem e às parestesias. Assim como um acesso de vertigens pode ser substituído por um desmaio, a vertigem crônica pode ser substituídapor uma sensação permanente de grande fraqueza, lassidão e assim por diante.




II - INCIDÊNCIA E ETIOLOGIA DA NEUROSE DE ANGÚSTIA

Em alguns casos de neurose de angústia não se descobre absolutamente nenhuma etiologia. Vale notar que, em tais casos, raramente há dificuldade em se estabelecerem provas de uma grave tara hereditária.
Mas quando há fundamentos para se considerar a neurose como adquirida, uma cuidadosa investigação orientada nesse sentido revela que um conjunto de perturbações e influências da vida sexual são os fatores etiológicos atuantes. Estes, à primeira vista, parecem de natureza variada, mas logo revelam o caráter comum que explica por que têm um efeito similar no sistema nervoso. Além disso, fazem-se presentes, isoladamente ou em conjunto com outras perturbações de tipo banal (“stock”) às quais podemos atribuir um efeito de contribuição. Essa etiologia sexual da neurose de angústia pode ser demonstrada com tão esmagadora freqüência que me arrisco, no âmbito deste pequeno artigo, a desconsiderar os casos em que a etiologia é duvidosa ou diferente.
A fim de que as condições etiológicas sob as quais ocorre a neurose de angústia possam ser apresentadas com maior precisão, será recomendável considerarmos separadamente homens e mulheres. Nas mulheres - deixando de lado, por ora, sua predisposição inata - a neurose de angústia ocorre nos seguintes casos:
 (a) Como angústia virginal ou angústia nas adolescentes. Inúmeras observações inequívocas me têm demonstrado que a neurose de angústia pode ser produzida, nas meninas que se aproximam da maturidade, por seu primeiro contato com o problema do sexo, por qualquer revelação mais ou menos repentina de algo até então escondido - por exemplo, pela visão do ato sexual ou por conversas ou leituras sobre esse assunto. Tal neurose de angústia combina-se com a histeria de maneira quase típica.
(b) Como angústia da recém-casada. As jovens casadas que permaneceram anestésicas durante suas primeiras coabitações não raro adoecem de neurose de angústia, que volta a desaparecer tão logo a anestesia cede lugar à sensibilidade normal. Já que a maioria das jovens esposas continua saudável quanto há uma anestesia inicial desse tipo, deduz-se daí que, a fim de que esse gênero de angústia possa emergir, outros determinantes são requeridos, e eu os mencionarei mais adiante.
(c) Como angústia nas mulheres cujos maridos sofrem de ejaculação precoce ou de potência marcantemente enfraquecida; e (d) cujos maridos praticam o coito interrompido ou reservatus. Esses casos |(c) e (i)| integram uma mesma classe, pois, analisando um grande número de exemplos, é fácil nos convencermos de que eles dependem simplesmente de a mulher obter ou não satisfação no coito. Se não, deparamos com a condição da gênese de uma neurose de angústia. Por outro lado, ela escapa da neurose quando o marido que sofre de ejaculação precoce consegue repetir o coito imediatamente com maior sucesso. O coitus reservatus através do condom não é nocivo à mulher, desde que esta seja rapidamente excitável e o marido, muito potente; de outro modo, essa espécie de intercurso preventivo não é menos nociva que as demais. O coito interrompido é quase sempre prejudicial. Para a mulher, porém, só o é quando o marido o pratica descuidadamente - isto é, quando interrompe a relação tão logo ele se aproxima da emissão, sem se importar com o curso da excitação nela. Quando, por outro lado, o marido aguarda a satisfação da mulher, o coito corresponde a uma relação normal para ela, mas ele padecerá de neurose de angústia. Coligi e analisei um grande número de observações em que estas asserções se fundamentam.
(e) A neurose de angústia ocorre também como angústia em viúvas e mulheres voluntariamente abstinentes, não raro numa combinação típica com representações obsessivas; e
(f) Como angústia no climatério, durante o último grande aumento da necessidade sexual.
Os casos (c), (d) e (e) abarcam as condições em que a neurose de angústia no sexo feminino surge de maneira mais freqüente e rápida, independentemente da predisposição hereditária. É com referência a esses casos curáveis e adquiridos - que tentarei mostrar que as perturbações sexuais neles descobertas são, na realidade, o fator etiológico da neurose.
Antes de fazê-lo, entretanto, discutirei os determinantes sexuais da neurose de angústia nos homens. Proponho distinguir os seguintes grupos todos os quais têm analogias nas mulheres:
(a) Angústia em homens voluntariamente abstinentes, freqüentemente combinada com sintomas de defesa (idéias obsessivas, histeria). Os motivos responsáveis pela abstinência voluntária implicam que muitas pessoas com predisposição hereditária, excêntricas etc., incluem-se nessa categoria.
(b) Angústia em homens em estado de excitação não consumada (por exemplo, durante o período do noivado) ou naqueles que (por medo das conseqüências da relação sexual) se contentam em tocar ou contemplar as mulheres. Esse grupo de determinantes - os quais, aliás, podem aplicar-se sem alterações ao outro sexo (durante o noivado ou em situações onde se evita a relação sexual) - fornece os casos mais puros da neurose.
(c) Angústia em homens que praticam o coito interrompido. Como se disse, este é nocivo à mulher quando praticado sem respeito a sua satisfação; mas é nocivo ao homem quando este, para proporcionar-lhe satisfação, dirige voluntariamente o coito e adia a emissão. Desse modo, torna-se inteligível por que, quando um casal pratica o coito interrompido, em geral apenas um dos parceiros adoece. Nos homens, além disso, é raro o coito interrompido produzir uma neurose de angústia pura; em geral, produz uma mistura de neurose de angústia e neurastenia.
(d) Angústia em homens senescentes. Há homens que têm um climatério, como as mulheres, e que desenvolvem uma neurose de angústia nessa ocasião de potência decrescente e crescente libido.
Finalmente, devo acrescentar dois outros casos que se aplicam a ambos os sexos:
()As pessoas que, em decorrência de praticarem a masturbação, tornaram-se neurastênicas, caem vítimas da neurose de angústia tão logo abandonam sua forma de satisfação sexual. Tais pessoas tornaram-se particularmente incapazes de tolerar a abstinência.
Devo assinalar aqui, como um dado importante para a compreensão da neurose de angústia, que qualquer desenvolvimento pronunciado dessa afecção só ocorre entre os homens que continuaram potentes ou entre as mulheres que não são anestésicas. Entre os neuróticos cuja potência já foi severamente comprometida pela masturbação, a neurose de angústia resultante da abstinência é muito leve e geralmente restrita à hipocondria e à vertigem crônica branda. A maioria das mulheres, de fato, deve ser considerada “potente”; a mulher realmente impotente - isto é, realmente anestésica - é similarmente pouco suscetível à neurose de angústia e tolera notavelmente bem as perturbações que descrevi.
Neste artigo, ainda não me agradaria discutir até que ponto, além disso, é justificável postularmos qualquer relação constante entre determinados fatores etiológicos e determinados sintomas no complexo da neurose de angústia.
() A última das condições etiológicas que tenho a apresentar parece, à primeira vista, não ser de natureza sexual. A neurose de angústia também emerge - em ambos os sexos - como resultado do fator de sobrecarga de trabalho ou esforço exaustivo - como, por exemplo, após noites em claro, atendimento a pessoas doentes, ou mesmo após enfermidades graves.
A principal objeção a meu postulado de uma etiologia sexual na neurose de angústia terá, provavelmente, o seguinte cunho: as condições anormais de vida sexual do tipo que descrevi são constatadas com tão grande freqüência que estamos fadados a encontrá-las sempre que procurarmos por elas. Sua presença nos casos de neurose de angústia que enumerei não prova, portanto, que nelas tenhamos descoberto a etiologia da neurose. Ademais, o número de pessoas que praticam o coito interrompido e coisas semelhantes é incomparavelmente maior que o número das pessoas afligidas pela neurose de angústia, e a grande maioria das primeiras tolera muito bem essa perturbação.
A isso devo responder, em primeiro lugar, que, considerando a freqüência admitidamente enorme das neuroses, sobretudo da neurose de angústia, por certo não seria correto esperar encontrar para elas um fator etiológico de ocorrência rara; em segundo lugar, que um postulado de patologia é efetivamente atendido quando, numa investigação etiológica, é possível demonstrar que a presença de um fator etiológico é mais freqüente do que seus efeitos, já que, para que estes ocorram, talvez seja preciso que existam outras condições adicionais (tais como predisposição, soma de elementos etiológicos específicos, ou reforço por meio de outros fatores banais); e ainda, que uma dissecção detalhada de casos adequados de neurose de angústia comprova sem sombra de dúvida a importância do fator sexual. Aqui, entretanto, vou restringir-me ao fator etiológico isolado do coito interrompido, ressaltando certas observações que o confirmam.
(1)Quando uma neurose de angústia ainda não se estabeleceu numa jovem casada, aparecendo apenas em acessos isolados e logo desaparecendo espontaneamente, é possível demonstrar que cada um desses acessos da neurose é atribuível a um coito de satisfação deficiente. Dois dias após essa experiência - ou, no caso de pessoas de pouca resistência, no dia seguinte -, o ataque de angústia ou de vertigem aparece regularmente, trazendo em sua esteira outros sintomas da neurose. Tudo isso torna a desaparecer, desde que a relação conjugal seja relativamente rara. Um eventual afastamento do marido de casa, ou uma temporada nas montanhas que exija uma separação do casal têm bom efeito. O tratamento ginecológico a que se costuma recorrer é benéfico porque, enquanto dura, a relação sexual é suspensa. Curiosamente, o sucesso do tratamento local é apenas transitório: a neurose se instala de novo na montanha, tão logo o marido inicia também suas férias, e assim por diante. Quando, na qualidade de médico que compreenda essa etiologia, providencia-se a substituição do coito interrompido por uma relação sexual normal - num caso em que a neurose ainda não se tenha estabelecido - obtém-se uma prova terapêutica da afirmação que fiz. A angústia menor é eliminada e - a menos que haja uma nova causa do mesmo tipo - não retorna.
(2)Nas anamneses de muitos casos de neurose de angústia descobrimos, tanto em homens como em mulheres, uma notável oscilação na intensidade de suas manifestações e, a rigor, nas alternâncias de todo esse estado. Um ano, dirão eles, foi quase inteiramente bom, enquanto o ano seguinte foi terrível; numa dada ocasião a melhoria pareceu dever-se a um tratamento específico, que, no entanto, revelou-se inútil no ataque seguinte; e assim por diante. Se indagarmos o número e a seqüência dos filhos e compararmos esse registro do casamento com a história peculiar da neurose, chegaremos à simples conclusão de que os períodos de melhora ou de boa saúde coincidiram com as gestações da esposa, durante as quais, é claro, não havia mais necessidade do coito com medidas preventivas. O marido beneficiou-se do tratamento depois do qual soube que sua mulher estava grávida - quer o tenha recebido do Pastor Kneipp ou de um estabelecimento hidropático.
(3)A anamnese dos pacientes freqüentemente revela que os sintomas da neurose de angústia, em algum período definido, sucederam-se aos sintomas de alguma outra neurose - talvez da neurastenia - e assumiram seu lugar. Nesses casos, pode-se mostrar com grande regularidade que, pouco antes dessa alteração do quadro, ocorrera uma mudança correspondente na forma do fator sexual nocivo.
As observações desse tipo, que podem ser multiplicadas à vontade, decididamente impõem ao médico uma etiologia sexual para certa categoria de casos. E outros casos, que de outra forma permaneceriam ininteligíveis, podem ao menos ser compreendidos e classificados sem incongruência, empregando-se tal etiologia como chave. Tenho em mente os inúmeros casos em que, de fato, acha-se presente tudo o que encontramos na categoria anterior - de um lado, as manifestações da neurose de angústia e, de outro, o fator específico do coito interrompido -, mas em que algo mais também se introduz: a saber, um longo intervalo entre a etiologia presumida e a eclosão de seus efeitos, e talvez também fatores etiológicos que não sejam de natureza sexual. Tome-se, por exemplo, um homem que, ao receber a notícia da morte do pai, tem um ataque cardíaco e, a partir desse momento, cai vítima de uma neurose de angústia. O caso não é compreensível, pois, até então, o homem não era neurótico. A morte do pai, que tinha idade bastante avançada, não ocorreu em circunstâncias nada especiais, e havemos de admitir que o falecimento normal e esperado de um pai idoso não é uma daquelas experiências que costumam fazer com que um adulto saudável adoeça. Talvez a análise etiológica se torne mais clara se eu acrescentar que esse homem vinha praticando o coito interrompido há onze anos, com a devida consideração pela satisfação de sua mulher. Os sintomas clínicos são, no mínimo, exatamente iguais aos que aparecem em outras pessoas logo após uma breve perturbação sexual da mesma espécie, e sem a interpolação de qualquer outro trauma. Uma avaliação similar deve ser feita do caso de uma mulher cuja neurose de angústia eclodiu após a perda de um filho, ou do caso do estudante cujos estudos preparatórios para o exame final foram perturbados por uma neurose de angústia. Penso que, também nesses casos, o efeito não é explicável pela etiologia aparente. Não se fica necessariamente “sobrecarregado” pelo estudo, e uma mãe saudável costuma reagir apenas com uma tristeza normal à perda de um filho. Acima de tudo, entretanto, eu teria esperado que o estudante, em conseqüência de sua sobrecarga de trabalho, adquirisse cefalastenia, e a mãe, em conseqüência de sua aflição, histeria. O fato de ambos terem sido dominados pela neurose de angústia leva-me a atribuir importância ao fato de a mãe ter praticado por oito anos o coito conjugal interrompido e ao fato de o estudante ter tido, durante três anos, um ardente caso amoroso com uma jovem “respeitável” cuja gravidez ele precisara evitar.
Essas considerações levam-nos à conclusão de que a perturbação sexual específica do coito interrompido, mesmo que não consiga, por sua própria conta, provocar uma neurose de angústia no sujeito, ao menos o predispõe a adquiri-la. A neurose de angústia eclode tão logo se adiciona ao efeito latente do fator específico o efeito de outra perturbação banal. Esta última pode atuar quantitativamente no sentido do fator específico, mas não pode substituí-lo qualitativamente. O fator específico permanece sempre decisivo quanto à forma tomada pela neurose. Espero poder provar essa asserção concernente à etiologia das neuroses de maneira também mais abrangente.
Além disso, estes últimos comentários contêm uma suposição que não é em si mesma improvável, no sentido de que uma perturbação sexual como o coito interrompido passa a vigorar por soma. É preciso um tempo mais ou menos longo - dependendo da disposição individual e de quaisquer outras deficiências hereditárias do sistema nervoso - para que o efeito dessa soma se torne visível. De fato, os indivíduos que aparentemente toleram sem prejuízo o coito interrompido ficam por ele predispostos aos distúrbios da neurose de angústia, seja após um trauma corriqueiro que, em condições normais, não seria suficiente para isso; do mesmo modo, por meio da soma, um alcoólatra crônico desenvolverá finalmente uma cirrose ou alguma outra doença, ou ainda, por influência de uma febre, cairá vítima de um delírio.

III - PRIMEIROS PASSOS EM DIREÇÃO A UMA TEORIA DA NEUROSE DE ANGÚSTIA

A discussão teórica que se segue arroga-se apenas o valor de uma primeira e tateante tentativa; a crítica que se faça dela não deve afetar a aceitação dos fatos que apresentamos acima. Além disso, a avaliação dessa “teoria da neurose de angústia” é ainda mais dificultada por ser ela apenas um fragmento de uma explicação mais abrangente das neuroses.
O que dissemos até aqui sobre a neurose de angústia já fornece alguns pontos de partida para obtermos um discernimento do mecanismo dessa neurose. Em primeiro lugar, havia nossa suspeita de que estávamos diante de um acúmulo de excitação |ver em [1]|; e havia ainda o fato extremamente importante de que não se podia atribuir a nenhuma origem psíquica a angústia que subjaz aos sintomas clínicos da neurose. Tal origem existiria, por exemplo, se ficasse constatado que a neurose de angústia se baseava num único ou repetido terror justificável, e que este supriria desde então a fonte da pronta disposição do sujeito para a angústia. Mas não é assim. A histeria ou uma neurose traumática podem ser adquiridas a partir de um único susto, mas nunca a neurose de angústia. Já que o coito interrompido ocupa lugar tão preeminente entre as causas da neurose de angústia, julguei, a princípio, que a fonte da angústia contínua pudesse residir no medo, reiterado a cada vez que o ato sexual é praticado, de que a técnica falhasse e daí resultasse a concepção. Contudo, descobri que esse sentimento, durante o coito interrompido, tanto no homem como na mulher, em nada influencia a gênese da neurose de angústia; que as mulheres basicamente indiferentes à conseqüência de uma possível concepção são tão suscetíveis à neurose quanto as que estremecem ante essa possibilidade; e que tudo depende simplesmente de qual dos parceiros renuncia à satisfação nessa técnica sexual.
Outro ponto de partida é fornecido pela observação, não mencionada até aqui, de que, em grandes grupos de casos, a neurose de angústia é acompanhada por um decréscimo extremamente acentuado da libido sexual, ou desejo psíquico, de modo que, quando se diz aos pacientes que suas queixas decorrem de “satisfação insuficiente”, eles respondem regularmente que isso é impossível, pois justamente agora toda a sua necessidade sexual se extinguiu. Todas essas indicações - de que estamos diante de um acúmulo de excitação; de que a angústia, provavelmente correspondente a essa excitação acumulada, é de origem somática, de modo que o que se está acumulando é uma excitação somática; e ainda, de que essa excitação somática é de natureza sexual é acompanhada por um decréscimo da participação psíquica nos processos sexuais -, todas essas indicações, dizia eu, levam-nos a esperar que o mecanismo da neurose de angústia deva ser buscado numa deflexão da excitação sexual somática da esfera psíquica e no conseqüente emprego anormal dessa excitação.
Esse conceito do mecanismo da neurose de angústia poderá ser esclarecido se aceitarmos a seguinte concepção do processo sexual, que se aplica, em primeiro lugar, aos homens. No organismo masculino sexualmente maduro produz-se a excitação sexual somática - provavelmente de forma contínua - e, periodicamente, ela se torna um estímulo para a psique. Para firmarmos nossas idéias quanto a esse ponto, acrescentarei, por meio de uma interpolação, que essa excitação somática se manifesta como uma pressão nas paredes das vesículas seminais, que são revestidas de terminações nervosas; assim, essa excitação visceral se desenvolve continuamente, mas tem que atingir uma certa altura para poder vencer a resistência da via de condução intermediária até o córtex cerebral e expressar-se como um estímulo psíquico. Depois que isso acontece, entretanto, o grupo de representações sexuais presente na psique fica suprido de energia e passa a existir um estado psíquico de tensão libidinal que traz em si uma ânsia de eliminar essa tensão. Uma descarga psíquica desse gênero só é possível por meio do que chamarei de ação específica ou adequada. Essa ação adequada consiste, quanto à pulsão sexual masculina, num complicado ato reflexo raquidiano que promove a descarga das terminações nervosas, e em todas as preparações psíquicas que têm que ser feitas para acionar esse reflexo. Qualquer coisa que não a ação adequada seria infrutífera, pois, uma vez que a excitação sexual somática atinja seu valor limite, ela se converte continuamente em excitação psíquica, e é positivamente preciso que ocorra algo que liberte as terminações nervosas da carga de pressão sobre elas - algo que, por conseguinte, elimine a totalidade da excitação somática existente e permita à via de condução subcortical restabelecer sua resistência. Abstenho-me de descrever de maneira similar situações mais complicadas do processo sexual. Afirmarei apenas que, em essência, essa fórmula é também aplicável às mulheres, a despeito da confusão introduzida no problema por todos os retardamentos e tolhimentos artificiais da pulsão sexual feminina. Também nas mulheres devemos postular uma excitação sexual somática e um estado em que essa excitação se transforma num estímulo psíquico - libido - e provoca a ânsia da ação específica a que está ligada a sensação voluptuosa. No que se refere às mulheres, porém, não estamos em condições de dizer qual é o processo análogo ao relaxamento da tensão das vesículas seminais.
Podemos incluir no âmbito dessa descrição do processo sexual não apenas a etiologia da neurose de angústia, mas também a da neurastenia genuína. A neurastenia surge sempre que a descarga adequada (a ação adequada) é substituída por uma menos adequada - por exemplo, quando o coito normal, praticado nas condições mais favoráveis, é substituído pela masturbação ou pela emissão espontânea. A neurose de angústia, por outro lado, é produto de todos os fatores que impedem a excitação sexual somática de ser psiquicamente elaborada. As manifestações da neurose de angústia aparecem quando a excitação somática que foi desviada da psique é subcorticalmente despendida em reações totalmente inadequadas.
Tentarei agora descobrir se as condições etiológicas da neurose de angústia estabelecida acima |ver em [1] e segs.| exibem a característica comum que acabo de lhes atribuir. O primeiro fator etiológico que postulei para os homens foi a abstinência intencional |ver em [1]|. A abstinência consiste no refreamento da ação específica que ordinariamente decorre da libido. Esse refreamento pode ter duas conseqüências. Em primeiro lugar, a excitação somática se acumula; é então desviada por outros canais, que se mostram mais promissores em termos de descarga do que a via que passa pela psique. Assim, a libido termina por soçobrar e a excitação se manifesta subcorticalmente como angústia. Em segundo lugar, quando a libido não diminui, ou quando a excitação somática é despendida, numa espécie de atalho, em emissões, ou quando, por ser forçado a recuar, a excitação realmente cessa, segue-se toda sorte de coisas que não uma neurose de angústia. A abstinência,portanto, leva à neurose de angústia da maneira acima descrita. Mas ela é também o fator atuante em seu segundo grupo etiológico, o da excitação não consumada |ver em [1]|. Meu terceiro grupo, o do coitus reservatus com consideração pela mulher |ibid.|, atua por meio de um distúrbio da prontidão psíquica do homem para o processo sexual, na medida em que introduz, juntamente à tarefa de manejar o afeto sexual, uma outra tarefa psíquica de cunho defletor. Em conseqüência dessa deflexão psíquica, mais uma vez, a libido desaparece gradualmente e o curso subseqüente das coisas é o mesmo que no caso da abstinência. A angústia na senectude (o climatério masculino) |ver em [1]| requer outra explicação. Aqui não há diminuição da libido; no entanto, como no climatério feminino, ocorre um aumento tão grande na produção de excitação somática que a psique se mostra relativamente insuficiente para manejá-lo.
As condições etiológicas aplicáveis às mulheres podem ser incluídas no contexto de meu esquema sem maiores dificuldades do que no caso dos homens. A angústia virginal |ver em [1] [2]| é um exemplo particularmente claro, pois aqui os grupos de representações aos quais a excitação sexual somática deveria ligar-se ainda não estão suficientemente desenvolvidos. Na mulher recém-casada anestésica |ver em [1]|, a angústia só aparece quando as primeiras coabitações despertam uma quantidade suficiente de excitação somática. Quando faltam as indicações locais de tal excitamento (sensações espontâneas de estimulação, desejo de urinar, e assim por diante), a angústia também fica ausente. O caso da ejaculação precoce e do coito interrompido |ibid.| pode ser explicado tal como nos homens, isto é, o desejo libidinal do ato psiquicamente insatisfatório desaparece gradualmente, enquanto a excitação despertada durante o ato é despendida subcorticalmente. A alienação entre as esferas psíquica e somática no rumo tomado pela excitação sexual é mais prontamente estabelecida nas mulheres que nos homens. Os casos de viuvez e abstinência voluntária, e também os do climatério |ver em [1] e segs.| são tratados do mesmo modo em ambos os sexos; contudo, no que se refere à abstinência, não há dúvida de que, no caso das mulheres, existe ainda a questão do recalcamento intencional do círculo às representações sexuais, à qual a mulher abstinente deve estar atenta com freqüência em sua luta contra a tentação. O horror que, na época da menopausa, a mulher em processo de envelhecimento sente diante do aumento indevido de sua libido pode agir de maneira semelhante.
As duas últimas condições etiológicas de nossa lista parecem enquadrar-se sem dificuldade. A tendência à angústia nos masturbadores que se tornaram neurastênicos |vr em [1]| é explicada pelo fato de que lhes é muito fácil passarem a um estado de “abstinência” depois de se terem acostumado por tanto tempo a descarregar até mesmo a menor quantidade de excitação somática, por mais deficiente que seja essa descarga. Finalmente, o último caso - a gênese da neurose de angústia por meio de doença grave, sobrecarga de trabalho, cuidado exaustivo com doentes etc. |ibid.| - encontra uma interpretação fácil ao ser relacionado com os efeitos do coito interrompido. Aqui, a psique, graças a sua deflexão, pareceria não mais ser capaz de manejar a excitação somática, tarefa esta em que, como sabemos, ela está continuamente engajada. Estamos cientes de que uma libido de nível baixo pode soçobrar nessas condições, e temos aí um bom exemplo de neurose que, embora não apresente nenhuma etiologia sexual, apresenta, entretanto, um mecanismo sexual.
A concepção aqui desenvolvida retrata os sintomas da neurose de angústia como sendo, em certo sentido, substitutos da ação específica omitida posteriormente à excitação sexual. Para sustentar ainda mais essa concepção, posso indicar que, também na copulação normal, a excitação é despendida, entre outras coisas, na respiração acelerada, palpitação, transpiração, congestão, e assim por diante. Nos correspondentes ataques de angústia de nossa neurose, defrontamo-nos com a dispnéia, as palpitações etc., da copulação, numa forma isolada e exagerada.
E possível formular mais uma questão. Por que motivo, nessas condições de insuficiência psíquica para manejar a excitação sexual, o sistema nervoso se descobre no peculiar estado afetivo de angústia? Pode-se sugerir uma resposta como se segue. A psique é invadida pelo afeto de angústia quando se sente incapaz de lidar, por meio de uma reação apropriada, com uma tarefa (um perigo) vinda de fora; e fica presa de uma neurose de angústia quando se percebe incapaz de equilibrar a excitação (sexual) vinda de dentro - em outras palavras, ela se comporta como se estivesse projetando tal excitação para fora. O afeto e a neurose a ele correspondente estão firmemente inter-relacionados. O primeiro é uma reação a uma excitação exógena, e a segunda, uma reação à excitação endógena análoga. O afeto é um estado que passa rapidamente, enquanto a neurose é um estado crônico, porque, enquanto a excitação exógena age num único impacto, a excitação endógena atua como uma força constante. Na neurose, o sistema nervoso reage a uma fonte de excitação que é interna, enquanto, no afeto correspondente, ele reage contra uma fonte análoga de excitação que é externa.

IV - RELAÇÃO COM OUTRAS NEUROSES

Há ainda algumas palavras a dizer sobre as relações da neurose de angústia com as outras neuroses, no que se refere a seu desencadeamento e suas conexões internas.
Os casos mais puros da neurose de angústia costumam ser os mais marcantes. São encontrados em indivíduos jovens e sexualmente potentes, com etiologia não dividida e doença que não data de muito tempo.
Mais freqüentemente, porém, os sintomas de angústia ocorrem ao mesmo tempo que - e em combinação com - os sintomas de neurastenia, histeria, obsessões ou melancolia. Se permitíssemos que uma mistura clínica como essa impedisse nosso reconhecimento da neurose de angústia como entidade independente, deveríamos também, logicamente, abandonar uma vez mais a separação tão arduamente conseguida entre a histeria e a neurastenia.
No intuito de analisar as “neuroses mistas” posso afirmar esta importante verdade: onde quer que ocorra uma neurose mista, será possível descobrir uma mistura de várias etiologias específicas.
Uma multiplicidade de fatores etiológicos como esses, que determinam uma neurose mista, pode ocorrer de maneira puramente fortuita. Por exemplo, uma nova perturbação pode acrescentar seus efeitos aos de um fator nocivo já existente. Assim, uma mulher que sempre foi histérica pode começar, a certa altura de seu casamento, a vivenciar o coitus reservatus; adquirirá então uma neurose de angústia em acréscimo a sua histeria. Ou ainda, um homem que antes se masturbava e que se tornou neurastênico pode ficar noivo e ser sexualmente excitado por sua noiva; a sua neurastenia virá juntar-se então uma nova neurose de angústia.
Em outros casos, a multiplicidade de fatores etiológicos de modo algum é fortuita; um dos fatores desencadeia a atuação de outro. Por exemplo, uma mulher com quem o marido pratica o coitus reservatus sem consideração pela satisfação dela pode sentir-se compelida a se masturbar, a fim de eliminar a excitação aflitiva que se segue a tal ato; como resultado, produzirá não apenas uma neurose de angústia pura e simples, mas uma neurose de angústia acompanhada por sintomas de neurastenia. Outra mulher que sofra desse mesmo fator nocivo pode ter que lutar contra as imagens lascivas de que tenta defender-se, e assim adquirirá, por intermédio do coito interrompido, tanto obsessões quanto uma neurose de angústia. Finalmente, em decorrência do coito interrompido, uma terceira mulher pode perder sua afeição pelo marido e sentir-se atraída por outro homem, circunstância que será cuidadosamente mantida em segredo; em conseqüência, ela apresentará uma mistura de neurose de angústia e histeria.
Numa terceira categoria de neuroses mistas, a interligação dos sintomas é ainda mais íntima, no sentido de que o mesmo determinante etiológico provoca, regular e simultaneamente, ambas as neuroses. Assim, por exemplo, a súbita revelação sexual que vimos estar presente na angústia virginal sempre dá origem também à histeria |assim como à neurose de angústia|; a imensa maioria dos casos de abstinência voluntária liga-se desde o início com idéias obsessivas verdadeiras; o coito interrompido nos homens nunca me pareceu capaz de provocar uma neurose de angústia pura, mas sempre uma mistura desta com a neurastenia.
Com base nessas considerações, parece que devemos ainda distinguir as condições etiológicas de desencadeamento da neurose e seus fatores etiológicos específicos. As primeiras - por exemplo, o coito interrompido, a masturbação ou a abstinência - são ainda ambíguas, e cada qual pode produzir diferentes neuroses. Apenas os fatores etiológicos que nelas podem ser identificados, tais como a descarga inadequada, a insuficiência psíquica ou a defesa acompanhada de substituição, têm uma relação específica e inambígua com a etiologia de cada uma das principais neuroses.
No que concerne a sua natureza íntima, a neurose de angústia apresenta as mais interessantes concordâncias e diferenças em relação às outras neuroses principais, especialmente a neurastenia e a histeria. Partilha com a neurastenia uma característica essencial - a saber, a de que a fonte da excitação, a causa precipitante do distúrbio, reside no campo somático, e não no psíquico,como ocorre na histeria e na neurose obsessiva. Em outros aspectos, constatamos, antes, uma espécie de antítese entre os sintomas da neurose de angústia e os da neurastenia, que poderia evidenciar-se em rótulos como “acúmulo de excitação” e “empobrecimento da excitação”. Essa antítese não impede que as duas neuroses se misturem; mesmo assim, porém, transparece no fato de que as formas mais extremas de cada uma das neuroses são também, em ambos os casos, as mais puras.
A sintomatologia da histeria e a da neurose de angústia mostram muitos pontos em comum, que ainda não foram suficientemente considerados. O aparecimento dos sintomas, seja sob forma crônica ou em ataques, as parestesias, agrupadas como auras, as hiperestesias e pontos de pressão que são encontrados em certos substitutos do ataque de angústia (na dispnéia e nos ataques cardíacos), a intensificação, pela conversão, de dores que talvez tenham justificação orgânica - estes e outros traços que as duas doenças têm em comum permitem até a suspeita de que uma parcela nada insignificante do que se atribui à histeria poderia, com maior justiça, ser posta na conta da neurose de angústia. Quando se penetra no mecanismo das duas neuroses, tanto quanto foi possível descobri-lo até aqui, vêm à tona certos aspectos que sugerem que a neurose de angústia é, realmente, o equivalente somático da histeria. Tanto na segunda como na primeira há um acúmulo de excitação (que talvez seja a base da similaridade entre os sintomas que mencionamos). Tanto na segunda como na primeira constatamos uma insuficiência psíquica, em conseqüência da qual surgem processos somáticos anormais. E ainda, tanto na segunda como na primeira, em vez de uma elaboração psíquica da excitação, há um desvio dela para o campo somático; a diferença está apenas em que, na neurose de angústia, a excitação, em cujo deslocamento a neurose se expressa, é puramente somática (excitação sexual somática), ao passo que, na histeria, ela é psíquica (provocada por um conflito). Assim, não surpreende que a histeria e a neurose de angústia se combinem regularmente uma com a outra, como se vê na “angústia virginal” ou na “histeria sexual”, e que a histeria simplesmente tome de empréstimo à neurose de angústia vários sintomas, e assim por diante. Essas relações íntimas da neurose de angústia com a histeria fornecem, além disso, um novo argumento para se insistir em destacar a neurose de angústia da neurastenia, pois, se essa separação não for admitida, também ficaremos impossibilitados de continuar a manter a distinção entre neurastenia e histeria, que obtivemos com tanto trabalho e que é tão indispensável para a teoria das neuroses.

VIENA, dezembro de 1894.

APÊNDICE: O TERMO ANGST E SUA TRADUÇÃO INGLESA

Há pelo menos três passagens em que Freud discute as várias nuanças semânticas expressas pela palavra alemã “Angst” e pelos cognatos “Furcht” e “Schreck”. Embora ele acentue o elemento antecipatório e a ausência de objeto em “Angst”, as distinções que traça não são inteiramente convincentes e o uso real que faz do termo está longe de obedecer-lhes invariavelmente. E isso não chega a surpreender, de vez que “Angst” é uma palavra usada comumente na fala alemã usual, não sendo de forma alguma exclusivamente um termo técnico psiquiátrico. Ocasionalmente, pode ser traduzida por qualquer uma dentre meia dúzia de palavras inglesas igualmente comuns - “fear” |medo|, “fright” |pavor ou susto|, “alarm” |sobressalto| e assim por diante -, sendo, portanto, muito pouco prático fixarmo-nos num único termo inglês como sua tradução exclusiva. Entretanto, “Angst” aparece com freqüência como termo psiquiátrico (particularmente em combinações como “Angstneurose” ou “Angstanfall”) e, nessas ocasiões, um equivalente técnico inglês parece fazer-se necessário. A palavra universalmente, e talvez infelizmente, adotada para esse fim foi “anxiety” - infelizmente, já que “anxiety” tem também um sentido corrente de emprego cotidiano, que tem apenas uma remota conexão com qualquer dos usos do alemão “Angst”. Há, entretanto, um consagrado uso psiquiátrico, ou ao menos médico, do termo inglês “anxiety”, que remonta (como nos diz o Oxford Dictionary) à metade do século XVII. Com efeito, o uso psiquiátrico das duas palavras traz à luz suas origens paralelas. “Angst” é aparentado a “eng”, palavra alemã que designa “estreito”, “restrito”; “anxiety” deriva do latim “angere”, “estrangular” ou “apertar”, “estreitar”; em ambos os casos, a referência é aos sentimentos asfixiantes que caracterizam as formas graves do estado psicológico em questão. Um estado ainda mais agudo é descrito em inglês pela palavra “anguish”, que tem a mesma derivação; e convém notar que Freud, em seus artigos em francês, usa a palavra aparentada “angoisse” (assim como seu sinônimo “anxieté”) para traduzir o alemão “Angst”. (Ver em [1].)
O tradutor inglês é assim levado a uma solução de compromisso: deve usar “anxiety” nas acepções técnicas ou semitécnicas e, em outros trechos, escolher qualquer outra palavra do inglês corriqueiro que pareça mais apropriada. Aliás, a solução adotada em muitas das primeiras traduções de Freud, substituindo “Angst” por “ansiedade mórbida”, parece especialmente impensada. Um dos principais problemas teóricos discutidos por Freud é precisamente se, e nesse caso, por que a “Angst” é ora patológica ora normal. (Ver, por exemplo, o Adendo B a Inibição, Sintoma e Angústia, Edição Standard Brasileira, Vol. XX, pág. 189 e segs., IMAGO, Editora, 1976.)


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