Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál v.43 n.2 São Paulo jun. 2009
ARTIGOS
Pulsão, com pulsão, compulsão1
Pulsión, con pulsión, compulsión
Pulsion and compulsion
Cláudio Laks Eizirik2
Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre
Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal - Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Endereço para correspondência
RESUMO
O autor revisa os conceitos de pulsão e de compulsão à repetição, e examina de uma perspectiva metapsicológica, de uma perspectiva clínica e de uma perspectiva institucional as possibilidades do predomínio da compulsão à repetição ou dos movimentos com pulsão. Destaca, nos três âmbitos, o contraste entre as tendências a uma repetição monótona e compulsória e os movimentos renovadores e criativos que podem contribuir para a vitalidade da psicanálise.
Palavras-chave: Pulsão; Compulsão à repetição; Psicanálise contemporânea.
RESUMEN
El autor examina los conceptos de pulsión y de compulsión de manera repetida, analizando una perspectiva meta-psicología, de una perspectiva clínica y de una perspectiva institucional las posibilidades del predominio de la compulsión a la repetición o de los movimientos de con pulsión. Esta destacado en tres formas el contraste entre las tendencias a una repetición monótona y compulsoria y los movimientos de renovación creativos que pueden ayudar en la vitalidad del psicoanálisis.
Palabras clave: Pulsión; Compulsión a la repetición; Psicoanálisis contemporáneo.
ABSTRACT
The author revises the concept of drive and repetition compulsion and examines them from meta-psychological, clinical and institutional points of views. He stresses in these three realms the contrast between the predominance of a monotonous and compulsory repetition and renewing and creative movements that can contribute to the vitality of psychoanalysis.
Keywords: Drive; Repetition compulsion; Contemporary psychoanalysis.
Ao agradecer o amável convite da Diretoria da FEBRAPSI para falar nesta abertura de seu XXII Congresso Brasileiro de Psicanálise, não posso deixar de ver neste ato a dupla presença das duas possivelmente principais acepções que mobilizarão os psicanalistas brasileiros aqui presentes nos próximos dias: por um lado, uma discreta compulsão à repetição, pois é a terceira vez que me é concedida esta honrosa tarefa, e, por outro, a presença de fortes laços afetivos, decorrentes de uma recíproca carga pulsional que não só nos une – à nossa FEBRAPSI e a mim – como também expressa a intensa teia de relações emocionais e institucionais que nos últimos anos, de forma sem precedentes, tem feito a IPA e a FEBRAPSI caminharem lado a lado em defesa das mesmas teses, posturas, iniciativas e de um forte investimento libidinal no nosso objeto compartilhado de amor, que é a psicanálise.
Como já referi numa breve nota sobre o tema, ele pode ser lido de várias formas, entre elas uma visão de nosso momento cultural, de certa maneira dominado pela pulsão, ou uma alusão aos comportamentos compulsivos que marcam muitas das chamadas patologias atuais, ou, ainda, um convite a refletirmos sobre o trajeto irrecusável da pulsão e seu primado na vida psíquica. O título, portanto, é suficientemente aberto e convida à leitura de cada psicanalista que estará participando deste congresso.
O que fazer, por exemplo, com a pulsão na clínica psicanalítica? Quais os limites, a extensão, a profundidade com que iremos acompanhar seu trajeto na vida mental e no campo analítico? E como fica a questão ao longo do ciclo vital de cada analista? Como recebemos, reagimos a, interpretamos, toleramos as distintas expressões pulsionais quando somos jovens, maduros ou velhos analistas? Como acompanhamos as distintas expressões da sexualidade humana e as infindáveis tramas da paixão que nos são dadas testemunhar e participar em nossa prática clínica? (Eizirik, 2008)
Penso que uma das áreas mais interessantes e potencialmente capazes de estabelecer diferenças entre as distintas maneiras de abordar o fato clínico está justamente na forma como nos posicionamos face à presença da pulsão no campo analítico e na vida do paciente. Se adotamos uma posição em que se privilegia um olhar mais freudiano e francês contemporâneo, teremos que responder à pergunta de Green sobre a presença da sexualidade na psicanálise, de forma afirmativa. Se nos posicionamos a partir de uma perspectiva na linha kleiniana-bioniana-meltzeriana, estaremos mais atentos aos estados sexuais da mente, e, se seguirmos as sugestões mais recentes de Ferro, atentaremos ao acasalamento mental entre analista e paciente. E se, ainda, estivermos atentos a essas duas versões e suas possíveis gradações intermediárias, poderemos encontrar distintas formas de abordar a questão da pulsão no trabalho clínico, inclusive com inclusões de aspectos parciais de cada abordagem, o que talvez seja um traço prevalente na clínica psicanalítica praticada no Brasil.
Feitas essas observações preliminares, seguirei através de três etapas esta comunicação: a primeira, revisando os conceitos com uma certa pretensão metapsicológica; a segunda, mais ligada à clínica e, a terceira, com um breve olhar sobre nossa vida institucional. Nesses três âmbitos, procurarei olhar para as duas acepções que destaquei no início: a dimensão da compulsão e aquela que pretende pensar com pulsão.
Revisando o percurso deste conceito central, num texto que utilizarei como referência, Roudinesco e Plon (1998) destacam que a noção de pulsão (Trieb) já está presente nas concepções da doença mental e de seu tratamento pela psiquiatria alemã do século XIX, preocupada com a questão da sexualidade.
O conceito de pulsão está estreitamente ligado aos de libido e narcisismo, bem como as transformações destes, constituindo tais conceitos os três grandes eixos da teoria freudiana da sexualidade.
Em sua correspondência com Fliess e no “Projeto para uma psicologia científica” (1895/1977), Freud desenvolveu a ideia de uma libido psíquica, forma de energia que situou na origem da atividade humana. Já então fazia uma distinção entre esse “impulso”, cuja origem interna seria irrefreável pelo indivíduo, e as excitações externas, das quais ele podia fugir ou se esquivar. Freud atribuía a histeria a uma causa sexual traumática, consequência de uma sedução sofrida na infância.
A partir de 1897, quando abandonou essa teoria, Freud empenhou-se em reformular sua visão da sexualidade, mas manteve a ideia de que a sua repressão era a causa de um conflito psíquico que conduzia à neurose.
A ideia de uma sexualidade infantil tornou-se explícita em 1898. “A sexualidade na etiologia das neuroses” deu-lhe oportunidade para a refutação da tese de uma predisposição neuropática particular, baseada na indicação de uma degenerescência geral, e Freud insistiu no fato de que a etiologia da neurose não podia residir senão nas experiências vividas na infância e, com caráter exclusivo, nas impressões concernentes à vida sexual. Considerou um erro desprezar a vida sexual das crianças, que, segundo ele, são capazes de todas as realizações sexuais psíquicas e de numerosas realizações somáticas. Depois de assinalar que essas experiências sexuais infantis só desenvolviam a essência de sua ação em períodos posteriores da maturação, Freud esclareceu que no intervalo entre a experiência dessas impressões e sua reprodução, não só o aparelho sexual somático, mas também o aparelho psíquico passam por um desenvolvimento considerável, e é por isso que da influência dessas experiências sexuais precoces resulta uma reação psíquica anormal, e aparecem formações psicopatológicas.
Baseado no material clínico de suas análises Freud constatou que a sexualidade nem sempre aparecia explicitamente nos sonhos e nas fantasias, surgindo, muitas vezes, sob disfarces que era preciso saber decifrar. Por isso ele foi levado a estudar as aberrações, as perversões sexuais e as origens da sexualidade, isto é, a sexualidade infantil.
Foi na versão inicial dos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” que Freud recorreu pela primeira vez à palavra pulsão. Num trecho acrescentado em 1910, forneceu uma definição geral que, em sua essência, não sofreria nenhuma modificação: considerou pulsão a representação psíquica de uma fonte endossomática de estimulações que fluem continuamente, em contraste com a estimulação produzida por excitações esporádicas e externas. A pulsão, portanto, seria um dos conceitos da demarcação entre o psíquico e o somático. Desde a primeira edição dos “Três ensaios...”, o que está em questão é essencialmente a pulsão sexual, cuja caracterização ilustra a revolução que Freud impôs à concepção dominante da sexualidade, fosse ela a do senso comum ou da sexologia. Para ele, a pulsão sexual, diferente do instinto sexual, não se reduz às simples atividades sexuais que costumam ser descritas com seus objetivos e seus objetos, mas é um impulso do qual a libido constitui energia.
A pulsão sexual não existe como tal, mas assume a forma de um conjunto de pulsões parciais, as quais é importante não confundir com as pulsões classificadas por categoria.
A natureza sexual das pulsões parciais, cuja soma constitui a base da sexualidade infantil, define-se, num primeiro momento, por um processo de apoio em outras atividades somáticas, ligadas a zonas específicas do corpo, as quais, dessa maneira, adquirem estatuto de zonas erógenas. Desta forma, a satisfação da necessidade de nutrição, obtida por meio do sugar, é uma fonte de prazer, e os lábios constituem uma zona erógena, origem de uma pulsão parcial. Num segundo momento, essa pulsão parcial, cujo caráter sexual é ligado ao processo de erotização da zona corporal considerada, separa-se de seu objeto de apoio para se tornar autônoma. Passa a funcionar de maneira autoerótica. Essa referência do autoerotismo constitui a fase preparatória do que Freud chamaria, alguns anos depois, de narcisismo primário, resultante da convergência das pulsões parciais para o ego inteiro, e não mais para uma zona corporal específica. Posteriormente, a pulsão sexual encontra sua unidade por meio da satisfação genital e da função da procriação.
Nos “Três ensaios...”, Freud estabelece uma distinção entre as pulsões sexuais e as outras, ligadas à satisfação de necessidades primárias. Cinco anos depois, em “A concepção psicanalítica psicogênica da visão”, formula seu primeiro dualismo pulsional, opondo as pulsões sexuais, cuja energia é de ordem libidinal, às pulsões de autoconservação, que têm por objetivo a conservação do indivíduo.
No texto “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico” Freud (1911/1980) distribui esses dois grupos pulsionais de acordo com as modalidades de funcionamento do aparelho psíquico: as pulsões sexuais encontram-se sob o domínio do princípio do prazer, enquanto as de autoconservação ficam a serviço do desenvolvimento psíquico determinado pelo princípio da realidade.
Em 1914, o conceito de narcisismo subverteu esse dualismo. A partir de suas próprias observações sobre as psicoses e da leitura dos trabalhos de Bleuler, Abraham e Kraepelin, Freud constatou que nessas expressões patológicas estamos na presença de uma retirada da libido dos objetos externos e de uma reversão dessa libido para o ego, que assim se transforma, ele próprio, em objeto de amor. Essa reformulação, portanto, consistiu numa redistribuição das pulsões sexuais, por um lado colocadas no ego – daí a denominação libido do ego (ou libido narcísica) – e, por outro, nos objetos externos, portanto, a denominação libido objetal.
Aos poucos, essa nova concepção se impôs. Freud manifestou explicitamente, em “Sobre o narcisismo: uma introdução”, que a distinção, na libido, de uma parte que é específica do ego e outra que se liga aos objetos, constitui a consequência irrecusável de uma primeira hipótese que separava as pulsões sexuais e as pulsões do ego.
Em 1915, Freud apresentou em “Os instintos e suas vicissitudes”, uma recapitulação dos conhecimentos adquiridos a propósito do conceito de pulsão, o qual esclareceu que, apesar de ser “ainda bastante confuso”, nem por isso deixava de ser indispensável. Freud recordou, inicialmente, o caráter limítrofe (entre o psíquico e o somático) da pulsão, representante psíquico das excitações provenientes do corpo e que chegam ao psiquismo. Em seguida, descreveu as quatro características da pulsão: a “força” ou “pressão”, o “alvo”, o “objeto” e a “fonte”.
Esse texto de 1915, porém, deu também oportunidade a uma nova elaboração sobre o “devir das pulsões sexuais”. Freud conservou o dispositivo teórico baseado no dualismo, mas ainda não avaliava a dimensão da mudança que estava realizando e que levaria à oposição entre libido do ego e libido do objeto. Por isso, supôs que um estudo aprofundado das psiconeuroses narcísicas, como as esquizofrenias, levasse a modificar essa formulação e, ao mesmo tempo, a agrupar de outra maneira as pulsões originárias.
As pulsões sexuais, como se sabe, podem ter quatro destinos: a inversão, a reversão para a própria pessoa, a repressão e a sublimação. Nesse contexto, Freud abordou os dois primeiros destinos e deixou de lado a sublimação. Quanto à repressão, dedicou-lhe um texto específico em sua coletânea sobre a metapsicologia.
Analisando a inversão da pulsão em seu contrário, ele distinguiu dois casos ilustrativos. No primeiro, exemplificado pela oposição sadismo/masoquismo e voyeurismo/exibicionismo, a inversão se efetua quanto ao alvo. O segundo, ilustrado pela transformação do amor em ódio, diz respeito à inversão do conteúdo. Este último exemplo dá origem à observação de que o ódio pode ser reduzido à imagem invertida do amor. Sem dúvida, há que se postular, a esse respeito, a existência de uma configuração mais antiga do que o amor, o que viria a ser, alguns anos depois, a pulsão de morte. A análise da reversão da pulsão para a própria pessoa permite a Freud discernir a relação entre o sadismo e o masoquismo, então visto como a reversão de um sadismo originário.
Em 1920, em “Além do princípio do prazer”, Freud instaurou um novo dualismo pulsional, opondo as pulsões de vida às pulsões de morte. A repercussão foi imensa, tanto por seus efeitos no pensamento filosófico do século XX quanto pelas polêmicas e pelas rejeições que essa tese provocaria no movimento psicanalítico.
Esta nova elaboração conceitual tinha um caráter especulativo, frequentemente denunciado como uma falha por seus adversários. De minha parte, penso que uma tendência à marcha da insensatez na espécie humana, conforme a historiadora Barbara Tuchman, oferece abundante material ilustrativo para a presença da pulsão de morte, o que podemos observar também nos dias de hoje. Mas foi a partir da observação da compulsão à repetição que Freud pensou em teorizar aquilo que chamou de pulsão de morte. De origem inconsciente, e, portanto, difícil de controlar, essa compulsão leva a pessoa a se colocar repetitivamente em situações dolorosas, repetições de experiências antigas. Mesmo que não se possa eliminar qualquer vestígio de satisfação libidinal desse processo, o que contribui para torná-lo difícil de observar em estado puro, o simples princípio de prazer não pode explicá-lo.
Assim, Freud reconheceu um caráter “demoníaco” nessa compulsão à repetição, que comparou à tendência à agressão reconhecida por Adler em 1908. Naquela época, entretanto, ele se recusava a levá-la em conta, embora a análise do Pequeno Hans lhe houvesse demonstrado sua existência. Freud relacionou-a igualmente com a tendência destrutiva que havia identificado em seus estudos sobre o masoquismo. O estabelecimento de uma relação entre essas observações e a constatação de ordem filosófica de que a vida é inevitavelmente precedida por um estado de não vida, conduziu Freud à hipótese de que existe uma pulsão cuja finalidade, como ele a exprimiu no “Esboço de psicanálise” (1940 [1938]), é reconduzir o que está vivo ao estado inorgânico. A pulsão de morte tornou-se, assim, o protótipo da pulsão, à medida que a especificidade pulsional reside nesse movimento regressivo de retorno a um estado anterior. Mas a pulsão de morte não poderia ser localizada, ou sequer isolada, com exceção, talvez, como é esclarecido em “O ego e o id”, da experiência da melancolia. Por outro lado, Freud sublinhou em 1933, nas “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise”, que a pulsão de morte não pode estar ausente de nenhum processo de vida: ela se confronta permanentemente com Eros, as pulsões da vida, reunião das pulsões sexuais e das pulsões antes agrupadas sob o rótulo de pulsões do ego. Da ação conjunta e oposta desses dois grupos de pulsões, pulsões de morte e pulsões de vida, provêm as manifestações da vida, às quais a morte vem pôr termo.
Apesar das objeções e da oposição, Freud nunca se deixou impressionar. Destacou em 1926 em “Inibições, Sintomas e Ansiedade”, que a doutrina das pulsões era uma área obscura, até mesmo para a psicanálise e reivindicou essa opacidade com uma característica de pulsão. “A teoria das pulsões, é por assim dizer, nossa mitologia”, afirmou em 1933. “As pulsões são seres míticos, magníficos em sua imprecisão” (p. 119 da Conferência n. 32 de Freud). É compreensível, portanto, que os críticos que alegavam em particular a falta de provas empíricas para validar a existência de uma pulsão de morte, tenham parecido incoerentes e o tenham levado a afirmar em “O mal-estar na cultura” que não compreendia a razão de continuarmos cegos para a ubiqüidade da agressão e da destruição não erotizadas, deixando de lhes dar o lugar que merecem na interpretação dos fenômenos vitais. Em 1937 Freud tornou a afirmar, em “Análise terminável e interminável”, que à simples evocação do masoquismo, das resistências terapêuticas ou da culpa neurótica bastava afirmar a presença de uma força na vida anímica à qual, com base em seus objetivos, chamamos pulsão de agressão ou de destruição, e que consideramos derivada da originária pulsão de morte da matéria animada.
Os autores posteriores não foram unânimes em sua rejeição da última elaboração da teoria das pulsões. Assim, Melanie Klein efetuou uma inversão do segundo dualismo pulsional, considerando que as pulsões de morte participam da origem da vida, tanto na vertente da relação de objeto quanto na do organismo. No que concerne ao organismo, as pulsões de morte contribuem, por intermédio da angústia, para instalar o sujeito na posição depressiva.
Conforme descrevem Roudinesco e Plon (1998), Lacan considerou a pulsão um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, separou a elaboração freudiana de suas bases biológicas e insistiu no caráter constante do movimento da pulsão, um movimento arrítmico que a distingue de todas as concepções funcionais. A abordagem lacaniana da pulsão, assim, inscreve-se numa abordagem do inconsciente em termos de manifestação da falta e do não realizado. Nessas condições, a pulsão é considerada na categoria do real.
Lacan desenvolveu a ideia de que a pulsão é sempre parcial. Esse termo deve ser entendido, aqui, num sentido mais geral do que o encontrado por Freud. Adotando o termo objeto parcial, proveniente de Abraham e de Melanie Klein, Lacan introduziu dois novos objetos pulsionais além das fezes e do seio: a voz e o olhar, e deu-lhes um nome: objetos do desejo.
Numa obra recente, Green (2007) revisa e ilustra a ubiquidade e a relevância da pulsão de morte para entender não só as psicopatologias como as violências da cultura contemporânea.
No que se refere à compulsão à repetição, seguindo a revisão de Roudinesco e Plon, Freud e Breuer já haviam frisado a importância da repetição em sua abordagem da histeria, ao falarem da rememoração de um sofrimento moral ligado a um antigo trauma, e concluíram com o célebre aforismo que é de reminiscências que sofrem os histéricos.
O termo compulsão foi empregado por Freud numa carta a Fliess de 7 de fevereiro de 1894. Nessa ele falou da sua dificuldade de ligar a neurose obsessiva à sexualidade ilustrando-a com um caso clínico a propósito do qual falou em “micção compulsiva”.
Em seu “Projeto para uma psicologia científica”, Freud desenvolveu a ideia de facilitação, na qual podemos discernir os primórdios da compulsão à repetição: algumas quantidades de energia conseguem transpor as barreiras de contato, com isso ocasionando uma dor, mas também abrindo uma passagem que tenderá a se tornar permanente e, como tal, fonte de prazer, apesar da dor sistematicamente reavivada.
Quando em sua carta a Fliess de 6 de dezembro de 1896, Freud definiu pela primeira vez sua concepção do aparelho psíquico e descreveu as superestruturas das “neuropsicoses sexuais”, ele constatou a necessidade de ir mais longe e explicar a razão de incidentes sexuais, que geram prazer no momento de sua produção, poderem provocar desprazer em certas pessoas quando de seu reaparecimento sob a forma de lembranças, embora, em outros, produzam as compulsões.
A ideia de uma repetição inexorável, passível de ser assimilada à do destino, foi contemporânea da descoberta do Édipo, que ele participou a Fliess na carta de 15 de outubro de 1897.
Freud (1914a/1980) começou a fazer da compulsão à repetição um objeto autônomo de sua reflexão em “Recordar, repetir e elaborar”. De uma análise para outra, identificou a permanência dessa compulsão à repetição: ela estaria ligada à transferência, mesmo não constituindo a totalidade da transferência. Ela é uma maneira de o paciente se lembrar, maneira ainda mais insistente à medida que ele resiste a uma rememoração cuja conotação sexual lhe desperta vergonha.
Em “Além do princípio de prazer”, observando fatos do cotidiano, como seu neto brincando incansavelmente de atirar um carretel por cima da grade do berço e em seguida apanhá-lo de volta, puxando-o pelo barbante e pontuando seus gestos com duas exclamações, Fort (saiu) e Da (voltou), e também observando as neuroses de guerra, nas quais os pacientes não cessam de reviver episódios dolorosos, Freud aprofundou sua reflexão. Se essas formas de compulsão à repetição eram realmente o aspecto assumido pelo retorno do reprimido, era impossível sustentar que obedecessem unicamente à busca do prazer: com efeito, restava uma espécie de resíduo que escapava a essa determinação, um “mais-além do princípio de prazer”. Assim, foi levado a desenvolver o que ele mesmo reconheceu ser uma especulação, porém uma especulação a que jamais renunciaria. Essa compulsão, essa força pulsional que produz a repetição da dor, traduz a impossibilidade de escapar de um movimento de regressão, quer seu conteúdo seja desprazeroso ou não. Esse movimento regressivo levou, por recorrência, a postular a existência de uma tendência para um retorno à origem, ao estado de repouso absoluto, ao estado de não vida, àquele estado anterior à vida que pressupõe a passagem pela morte.
Conforme a postura que adotaram diante do conceito de pulsão de morte, os analistas freudianos atribuíram maior ou menor importância à ideia de compulsão à repetição, que constitui as premissas daquele.
Lacan fez da repetição um dos “quatro conceitos fundamentais da psicanálise” (1964) e observou que a repetição inconsciente nunca é uma repetição no sentido habitual de reprodução do idêntico: a repetição é o movimento, ou melhor, a pulsação que subjaz à busca de um objeto, de uma coisa sempre situada além desta ou aquela coisa particular e, por isso mesmo, impossível de atingir. Por exemplo, é impossível reviver uma impressão vivida por ocasião de uma primeira experiência.
Conforme destacam Roudinesco e Plon (1998), Lacan distingue duas ordens de repetição, as quais analisa numa perspectiva aristotélica: por um lado, a tiquê, encontro dominado pelo acaso – de certo modo, ela é o contrário do kairos, o encontro que ocorre no “momento oportuno” – e que podemos assimilar ao trauma, ao choque imprevisível e incontrolável. Esse encontro só pode ser simbolizado, esvaziado ou domesticado por meio da fala, e sua repetição traduz a busca dessa simbolização. Isso porque, se esta permite escapar à lembrança do trauma, ela só pode consumar-se ao revivê-lo ininterruptamente, como um pesadelo, na fantasia ou no sonho.
Mais recentemente, numa bela conferência proferida no Congresso de Berlim, André Green (2007) examinou a relação entre compulsão à repetição e o princípio do prazer, procurando demonstrar que a compulsão à repetição pode ser encontrada também em material distante da atuação. Utilizando um exemplo clínico, salienta a qualidade alucinatória do ato de relembrar como efeito da negação e não da repressão. Revisa suas contribuições às noções de ligação e desligamento e mostra como difere de Freud quanto a essas noções. Diz Green que, para Freud, o processo primário é uma expressão de desligamento. Visto de uma perspectiva mais moderna, contudo, na qual as pulsões são consideradas menos elementares e a organização pulsional está presente desde o início, o próprio conceito de ligação pulsional também está presente nesse estágio. Portanto, é uma forma de atividade primitiva intensificada pela organização pulsional, antes mesmo da passagem do processo primário a secundário. Em outras palavras, o desligamento está relacionado a mecanismos muito primitivos e é uma das expressões da falha que impedem o acesso ao princípio do prazer-desprazer.
Green destaca ainda uma nova maneira de visualizar a organização pulsional, decorrente do contato que hoje temos com pacientes que apresentam transtornos de personalidade borderline e constelações psicossomáticas, o que nos permite considerar a atividade pulsional como mais organizada do que Freud podia perceber. Examinando a seguir a relação da compulsão à repetição com o princípio do prazer, Green sugere que este não é, de modo algum, um princípio básico. Antes, é frágil, delicado, como destacara Freud em “Mais além...”. Parece que, mudando para o modelo da segunda tópica, Freud estava interessado não só na descrição de uma atividade mais primitiva que o inconsciente, mas numa espécie de modo indomado de funcionamento. E, acrescenta, se o princípio do prazer é inexorável, as pulsões destrutivas parecem sê-lo ainda mais quando não estão fusionadas com a pulsão de vida. È como se a organização psíquica mais antiga, aquela que nunca pode ser domada, fosse a das pulsões destrutivas. Em suma, para Green, se a compulsão à repetição é demoníaca, isto parece decorrer de sua natureza narcísica, que está fadada a se repetir infinitamente. O princípio do prazer se origina de uma evolução na resposta do objeto e pode afinal se tornar inexorável, perdendo sua qualidade de nos salvaguardar, de agir como guardião da nossa sobrevivência, e acabar se tornando um aliado da compulsão à repetição. Mas, em geral, ele age do lado de Eros para preservar nossa vida e lutar contra as pulsões destrutivas, que ocorrem, em sua maior parte, do lado da repetição.
Assim sendo, temos de um lado o trajeto da pulsão no aparelho psíquico, e de outro a compulsão à repetição, que responde por uma série de patologias sobre as quais não me deterei neste momento, pois o programa de nosso congresso evidencia uma pletora de trabalhos sobre cada uma delas.
Referi-me antes à presença desses dois seres, a pulsão e a compulsão à repetição, na clínica analítica.
Um dos temas que sempre me fascina é a presença da compulsão à repetição na mente e no trabalho clínico de analistas de distintas latitudes. Se lemos, por exemplo, sucessivos trabalhos de nossos principais autores, ou se acompanhamos o trabalho clínico de colegas com uma certa tendência teórica que se mantém, podemos observar o trabalho da compulsão à repetição, que pode muitas vezes estabelecer baluartes que militam contra o progresso da construção conjunta que se supõe deva existir em cada campo analítico. O elemento surpresa, que deve permitir ao analista não ser sempre previsível, pode estar ausente de uma análise que siga determinada linha teórica que pode se tornar conhecida e controlável pelo paciente. Por outro lado, estudar e aprofundar um conhecimento analítico pode ser tarefa exaustiva, que desanima mentes mais novidadeiras, afeitas muitas vezes aos autores de ocasião, aos modismos, ou até mesmo a uma necessidade de agradar ou emular autores que possam ser vistos como a bola da vez. Difícil é a posição do analista, e de sua mente, face à pletora de ideias e teorias que se mostram fascinantes ou plausíveis. Deve mover-se, para usar uma metáfora que os mais jovens talvez estranhem, entre a Scylla das teorias consagradas e seguras e o Carybdys dos novos freuds de ocasião, que parecem tudo explicar com aparentes novos e inesperados insights. E, no entanto, se ficamos, por exemplo, fixados ao conceito de transferência como apenas a clássica formulação do pós-escrito do caso Dora, corremos o risco de não perceber que na análise, como na vida, não há só repetição, e cada dia de trabalho ou cada sessão analítica pode nos surpreender com um novo fato clínico, uma nova versão, um novo sonho ou algo que emergiu da repressão, ou ainda que foi construído conjuntamente com o analista. Ainda no caso Dora, falando sobre o segredo que o paciente quer e não quer revelar, Freud diz que ele deseja sair por todos os poros, seja falado ou expresso por atos, mas para ser percebido é preciso ter olhos e ouvidos para ver e escutar. Curiosamente, isto ecoa uma linha de um ilustre habitante da paisagem carioca de outras épocas, Olavo Bilac, ao dizer que só quem ama pode ter ouvidos capazes de ouvir e entender estrelas.
Estamos, pois, novamente, entre uma posição com pulsão e outra dominada pela compulsão à repetição. A quem ou ao que ama o analista? Alguns dirão que se espera que ame a verdade, mas afinal em que consiste a verdade? Como identificá-la? Qual versão a expressa melhor? E quantas possíveis verdades podem existir? Talvez seja mais prudente dizer que o analista ama o método analítico, e através dele pode desenvolver certo amor ao paciente, e ao trabalho conjunto que com ele desenvolve.
À medida que se encontre excessivamente comprometido com uma teoria, uma escola, uma instituição, uma posição de suposto saber, o risco que corre (ou seja, o risco que corremos) é o de buscar certa verdade que siga por essas linhas, por esse caminho já percorrido, pelas jogadas já jogadas em jogos anteriores.
Neste sentido, estará ao lado da compulsão à repetição, e muitas vezes o sentimento de monotonia, falta de movimento, coisa parada, desânimo e desesperança que constituem baluartes construídos no campo analítico e que às vezes são atribuídos à ação silenciosa da pulsão de morte pode contar com a poderosa contribuição de uma mente analítica que não ousa sair do conhecido.
Por outro lado, se é capaz de ouvir outras vozes além das já conhecidas, por exemplo, poderá buscar “esse passo que vai sem esmagar as plantas no campo de batalha, à procura de sítios, segredos, episódios não contados em livro, de que apenas o vento, as folhas, a formiga reconhecem o talhe”, como sugere aquele formidável mineiro que está sentado para sempre em bronze de frente ao mar em Copacabana. E com isto poderá (poderemos) aspirar àquela misteriosa função da criatividade conforme descreve Meltzer. Neste caso estaremos mais ao lado da pulsão de vida e de suas tramas e construções que podem assumir formas e expressões surpreendentes e inesperadas.
No que se refere às instituições psicanalíticas, penso que oferecem um fascinante campo de observação, desde seus primórdios, como podemos acompanhar estudando a história do movimento psicanalítico. Dentre inúmeros relatos, o livro de Phillis Grosskurt, O círculo secreto é um eloquente testemunho das tortuosas relações e dos movimentos pessoais e institucionais dos pioneiros e de como a transferência desempenha um poderoso papel em todos os níveis. Recentemente estive no congresso europeu de psicanálise, em Bruxelas, e em sua abertura, Serge Frisch, presidente da Sociedade Belga, apresentou um interessante relato da história de sua sociedade, mostrando como situações traumáticas se repetiram ao longo do tempo e motivaram os rumos científicos e as relações com a sociedade- mãe. Destacou que, como analistas, estamos impregnados pelo inconsciente, estruturados pelo inconsciente da instituição à qual pertencemos, mas que existe bem antes de nós. Podemos então tornar-nos depositários de elementos de um inconsciente grupal, em que determinados aspectos não foram adequadamente elaborados e metabolizados pelo grupo e permanecem enquistados como objetos brutos que são passados de uma geração a outra. Retrospectivamente, cabe a cada um de nós, a cada geração pensar, revisitar e tentar modificar essas impregnações inconscientes e reconstruir a ordem geracional. Ficou evidente a presença da compulsão à repetição, o que penso poder ser identificado se olhamos para a evolução de cada instituição em particular. Em que medida estamos condenados a repetir o que foi um dia vivido por nossos antecessores, e em que medida podemos criar novas formas de convivência?
Em que medida poderemos estimular e impulsionar as novas gerações de analistas a assumir posições de liderança e ocupar mais espaços científicos e em que medida teremos que repetir fórmulas e pessoas?
Sendo impossível generalizar, face à complexidade de cada história, podemos, no entanto, observar muitas vezes movimentos pendulares, em que tendências à renovação, à criação de novos espaços e a um diálogo mais aberto e fluido com a cultura e outros saberes se alterna com movimentos regressivos, de volta a fórmulas antigas, numa compulsão à repetição do conhecido, do sabido, do já vivido, do já sentido.
Desta forma, também ao nível institucional oscilamos entre a compulsão à repetição e uma possível vida com pulsão.
Dentre tantas maneiras de expressar essas complexas tramas, talvez de novo encontremos na arte sua melhor formulação. Graças a Fernando Rocha cheguei a estas palavras de Guimarães Rosa:
Todo caminho da gente é resvaloso
Mas também, cair não prejudica – nada demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!…
O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí
Afrouxa, sossega e depois desinquieta
O que ela quer da gente é coragem.
Referências
Eizirik, C. L. (2008). Compulsão. Febrapsi Notícias, XII ( 37): 16.
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Endereço para correspondência
Cláudio Laks Eizirik
Rua Marquês do Pombal, 783/307
90540-001 Porto Alegre, RS
E-mail: ceizirik.ez@terra.com.br
Recebido em: 15.6.2009
Aceito em: 28.6.2009
1 Conferência de Abertura do XXII Congresso Brasileiro de Psicanálise, Rio de Janeiro, 29 de abril de 2009.
2 Membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA. Professor Associado do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
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