Freud - Obras Completas V (parte2)

continuação da Parte1


(B) REGRESSÃO

Tendo agora rechaçado as objeções levantadas contra nós, ou tendo pelo menos indicado onde se acham nossas armas defensivas, não mais devemos adiar a tarefa de abordar as investigações psicológicas para as quais nos vimos preparando há tanto tempo. Resumamos os principais resultados de nossa investigação até onde ela nos levou. Os sonhos são atos psíquicos tão importantes quanto quaisquer outros; sua força propulsora é, na totalidade dos casos, um desejo que busca realizar-se; o fato de não serem reconhecíveis como desejos, bem como suas múltiplas peculiaridades e absurdos, devem-se à influência da censura psíquica a que foram submetidos durante o processo de sua formação; à parte a necessidade de fugir a essa censura, outros fatores que contribuíram para sua formação foram a exigência de condensação de seu material psíquico, a consideração a sua representabilidade em imagens sensoriais e - embora não invariavelmente - a demanda de que a estrutura do sonho possua uma fachada racional e inteligível. Cada uma dessas proposições abre caminho para novas especulações e postulados psicológicos; a relação recíproca entre o desejo que é a força propulsora do sonho e as quatro condições a que está sujeita sua formação, bem como as inter-relações entre essas condições, precisam ser investigadas; e cabe assinalar o lugar dos sonhos na concatenação da vida anímica.
Foi com vistas a nos relembrar os problemas ainda por solucionar que iniciei este capítulo com o relato de um sonho. Não houve dificuldade em interpretá-lo - o sonho da criança que se estava queimando -, muito embora sua interpretação não fosse dada integralmente segundo nosso sentido. Levantei a questão do motivo por que o sonhador o produzira, em vez de acordar, e reconheci que um de seus motivos fora o desejo de representar o filho como ainda vivo. Nossas discussões ulteriores mostrarão que um outro desejo também teve participação nisso. [Ver adiante, em [1].] Assim, em primeiro lugar, foi em nome da realização de um desejo que o processo de pensamento durante o sono transformou-se num sonho.
Se eliminarmos a realização de desejo, veremos que resta apenas um aspecto para distinguir as duas formas de ocorrência psíquica. O pensamento onírico teria sido: “Vejo um clarão vindo do quarto onde jaz o cadáver. Talvez uma vela tenha caído e meu filho esteja ardendo!” O sonho reproduziu essas reflexões inalteradas, mas representou-as numa situação que erarealmente atual e podia ser percebida pelos sentidos como uma experiência de vigília. Temos aqui a característica psicológica mais geral e mais notável do processo de sonhar: um pensamento, geralmente um pensamento sobre algo desejado, objetiva-se no sonho, é representado como uma cena, ou, segundo nos parece, é vivenciado.
Como então explicar essa peculiaridade característica do trabalho do sonho, ou, para formular a pergunta em termos mais modestos, como descobrir um lugar para ele na trama dos processos psíquicos?
Se examinarmos o assunto mais de perto, observaremos que dois aspectos quase independentes ressaltam como característicos da forma assumida por esse sonho. Um deles é o fato de o pensamento ser representado como uma situação imediata em que o “talvez” é omitido, e o outro é o fato de que o pensamento se transforma em imagens visuais e em fala.
Nesse sonho específico, a modificação feita nos pensamentos pela colocação da expectativa por eles expressa no presente do indicativo talvez não pareça particularmente notável. Isso se deve ao que só se pode descrever como o papel inusitadamente secundário desempenhado nesse sonho pela realização de desejo. Consideremos, em vez dele, um outro em que o desejo onírico não se tenha distanciado dos pensamentos de vigília transportados para o sono - o sonho da injeção da Irma, por exemplo [em [1]]. Neste, o pensamento onírico representado estava no optativo. “Oxalá Otto fosse responsável pela doença de Irma!” O sonho recalcou o optativo e o substituiu por um presente direto: “Sim, Otto é responsável pela doença de Irma”. Esta, portanto, é a primeira das transformações promovidas nos pensamentos oníricos até mesmo por um sonho isento de distorções. Não precisamos estender-nos nessa primeira peculiaridade dos sonhos. Podemos abordá-la chamando a atenção para as fantasias conscientes - os devaneios - que tratam seu conteúdo de representações exatamente do mesmo modo. Enquanto o Sr. Joyeuse, de Daudet, vagava sem trabalho pelas ruas de Paris (embora suas filhas acreditassem que ele tinha um emprego e estava sentado em seu escritório), sonhava com acontecimentos que pudessem trazer-lhe algum auxílio influente e levá-lo a encontrar emprego - e sonhava no presente do indicativo. Assim, os sonhos se valem do presente da mesmamaneira e com o mesmo direito que os devaneios. O presente é o tempo em que os desejos se representam como realizados.
Mas os sonhos diferem dos devaneios em sua segunda característica, ou seja, no fato de seu conteúdo de representações transmudar-se de pensamentos em imagens sensoriais a que se dá crédito e que parecem ser vivenciadas. Devo acrescentar desde já que nem todos os sonhos apresentam essa transformação da representação em imagem sensorial. Há sonhos que consistem apenas em pensamentos, mas aos quais não se pode, por causa disso, negar a natureza essencial de sonhos. Meu sonho do “Autodidasker” - a fantasia diurna com o Professor N. [em [1]] - foi um desses; incluiu poucos elementos sensoriais a mais do que se eu tivesse pensado seu conteúdo durante o dia. E em todo sonho razoavelmente longo há elementos que, diversamente dos demais, não recebem forma sensorial, mas são simplesmente pensados ou sabidos, tal como estamos acostumados a pensar ou saber as coisas na vida de vigília. Cabe também lembrar aqui que não é apenas nos sonhos que ocorrem essas transformações das representações em imagens sensoriais: elas são também encontradas nas alucinações e visões, que podem aparecer como entidades independentes, por assim dizer, na saúde, ou como sintomas nas psiconeuroses. Em suma, a relação que estamos agora examinando não é, de modo algum, uma relação exclusiva. Não obstante, persiste o fato de que essa característica dos sonhos, quando presente, aparece-nos como a mais notável, a tal ponto que nos seria impossível imaginar o mundo onírico sem ela. Para chegarmos a entendê-la, porém, temos de embarcar numa discussão que nos levará a extensas divagações.
Como ponto de partida de nossa investigação, gostaria de destacar uma dentre as muitas observações feitas sobre a teoria do sonhar por aqueles que escrevem sobre o assunto. No curso de um breve exame do tema dos sonhos, o grande Fechner (1889, 2, 520-1) expressa a idéia de que a cena de ação dos sonhos é diferente da cena da vida representacional de vigília. [Ver em [1].] Esta é a única hipótese que torna inteligíveis as particularidades especiais da vida onírica. [1]
O que nos é apresentado com essas palavras é a idéia de uma localização psíquica. Desprezarei por completo o fato de que o aparelho anímico em queestamos aqui interessados é-nos também conhecido sob a forma de uma preparação anatômica, e evitarei cuidadosamente a tentação de determinar essa localização psíquica como se fosse anatômica. Permanecerei no campo psicológico, e proponho simplesmente seguir a sugestão de visualizarmos o instrumento que executa nossas funções anímicas como semelhante a um microscópio composto, um aparelho fotográfico ou algo desse tipo. Com base nisso, a localização psíquica corresponderá a um ponto no interior do aparelho em que se produz um dos estágios preliminares da imagem. No microscópio e no telescópio, como sabemos, estes ocorrem, em parte, em pontos ideais, em regiões em que não se situa nenhum componente tangível do aparelho. Não vejo necessidade de me desculpar pelas imperfeições desta ou de qualquer imagem semelhante. Essas analogias visam apenas a nos assistir em nossa tentativa de tornar inteligíveis as complicações do funcionamento psíquico, dissecando essa função e atribuindo suas operações singulares aos diversos componentes do aparelho. Ao que me consta, não se fez até hoje a experiência de utilizar esse método de dissecação com o fito de investigar a maneira como se compõe o instrumento anímico e não vejo nele mal algum. A meu ver, é lícito darmos livre curso a nossas especulações, desde que preservemos a frieza de nosso juízo e não tomemos os andaimes pelo edifício. E uma vez que, em nossa primeira abordagem de algo desconhecido, tudo de que precisamos é o auxílio de algumas representações provisórias, darei preferência, inicialmente, às hipóteses de caráter mais tosco e mais concreto.
Por conseguinte, retrataremos o aparelho psíquico como um instrumento composto a cujos componentes daremos o nome de “instâncias”, ou (em prol de uma clareza maior) “sistemas”. Pode-se prever, em seguida, que esses sistemas talvez mantenham entre si uma relação espacial constante, do mesmo modo que os vários sistemas de lentes de um telescópio se dispõem uns atrás dos outros. A rigor, não há necessidade da hipótese de que os sistemas psíquicos realmente se disponham numa ordem espacial. Bastaria que uma ordem fixa fosse estabelecida pelo fato de, num determinado processo psíquico, a excitação atravessar os sistemas numa dada seqüência temporal. Em outros processos, a seqüência talvez seja diferente, e essa éuma possibilidade que deixaremos em aberto. Para sermos breves, doravante nos referiremos aos componentes do aparelho como “sistemas-y”.
A primeira coisa a nos saltar aos olhos é que esse aparelho, composto de sistemas-y, tem um sentido ou direção. Toda a nossa atividade psíquica parte de estímulos (internos ou externos) e termina em inervações. Por conseguinte, atribuiremos ao aparelho uma extremidade sensorial e uma extremidade motora. Na extremidade sensorial, encontra-se um sistema que recebe as percepções; na extremidade motora, outro, que abre as comportas da atividade motora. Os processos psíquicos, em geral, transcorrem da extremidade perceptual para a extremidade motora. Portanto, o quadro esquemático mais geral do aparelho psíquico pode ser assim representado (Fig. 1):
 
Fig. 1
Isso, contudo, não faz mais do que atender a um requisito com que há muito estamos familiarizados, ou seja, que o aparelho psíquico deve construir-se como um aparelho reflexo. Os processos reflexos continuam a ser o modelo de todas as funções psíquicas.
A seguir, temos razões para introduzir uma primeira diferenciação na extremidade sensorial. Em nosso aparelho psíquico, permanece um traço das percepções que incidem sobre ele. A este podemos descrever como “traços mnêmicos”, e à função que com ele se relaciona damos o nome de “memória”. Se levamos a sério nosso projeto de ligar os processos psíquicos a sistemas, os traços mnêmicos só podem consistir em modificações permanentes dos elementos dos sistemas. Mas, como já foi assinalado em outro texto, há dificuldades óbvias em se supor que um mesmo sistema possa reter fielmente as modificações de seus elementos e, apesar disso, permanecer perpetuamente aberto à recepção de novas oportunidades de modificação. Assim, de acordo com o princípio que norteia nosso experimento, atribuiremos essas duas funções a sistemas diferentes. Suporemos que um sistema logo na parte frontal do aparelho recebe os estímulos perceptivos, mas nãopreserva nenhum traço deles, e portanto, não tem memória, enquanto, por trás dele, há um segundo sistema que transforma as excitações momentâneas do primeiro em traços permanentes. O quadro esquemático de nosso aparelho psíquico seria então o seguinte (Fig. 2):
Fig. 2
É fato conhecido que retemos permanentemente algo mais do que o simples conteúdo das percepções que incidem sobre o sistema Pcpt. Nossas percepções acham-se mutuamente ligadas em nossa memória - antes de mais nada, segundo a simultaneidade de sua ocorrência. Referimo-nos a esse fato como “associação”. Assim, fica claro que, se o sistema Pcpt. não tem nenhuma memória, ele não pode reter nenhum traço associativo; os elementos isolados do Pcpt. ficariam intoleravelmente impedidos de desempenhar sua função se o remanescente de uma ligação anterior exercesse alguma influência nas novas percepções. Portanto, devemos presumir que a base da associação está nos sistemas mnêmicos. A associação consistiria, assim, no fato de que, em decorrência de uma diminuição das resistências e do estabelecimento de vias de facilitação, a excitação é mais prontamente transmitida de um primeiro elemento Mnem. para um segundo do que para um terceiro.
Um exame mais detido nos indicará a necessidade de supormos a existência não de um, mais de diversos elementos Mnem., nos quais uma única excitação, transmitida pelos Pcpt., deixa fixada uma variedade de registros diferentes. O primeiro desses sistemas Mnem. conterá, naturalmente, o registro da associação por simultaneidade temporal, ao passo que o mesmo material perceptivo será disposto nos sistemas posteriores em função de outros tipos de coincidência, de maneira que um desses sistemas posteriores, por exemplo, registrará relações de similaridade, e assim por diante, no que concerne aos outros. Naturalmente, seria perda de tempo tentar pôr em palavras a importância psíquica de um desses sistemas. Seu caráter residiria nos pormenores íntimos de suas relações com os diferentes elementosdo material bruto da memória, isto é - se pudermos apontar para uma teoria de tipo mais radical -, nos graus de resistência de condução erguida contra a passagem da excitação proveniente desses elementos.
Cabe-me intercalar aqui uma observação de natureza geral que talvez tenha implicações importantes. É o sistema Pcpt., desprovido da capacidade de reter modificações, e, portanto, sem memória, que supre nossa consciência de toda a multiplicidade das qualidades sensoriais. Por outro lado, nossas lembranças - sem excetuar as que estão mais profundamente gravadas em nossa psique - são inconscientes em si mesmas. Podem tornar-se conscientes, mas não há dúvida de que produzem todos os seus efeitos quando em estado inconsciente. O que descrevemos como nosso “caráter” baseia-se nos traços mnêmicos de nossas impressões; e além disso, as impressões que maior efeito causaram em nós - as de nossa primeira infância - são precisamente as que quase nunca se tornam conscientes. Mas, quando as lembranças voltam a se tornar conscientes, não exibem nenhuma qualidade sensorial, ou mostram uma qualidade sensorial ínfima se comparadas às percepções. Haveria um esclarecimento extremamente promissor sobre as condições que regem a excitação dos neurônios se fosse possível confirmar que, nos sistemas-y, a memória e a qualidade que caracteriza a consciência são mutuamente exclusivas.
Os pressupostos até aqui apresentados acerca da estruturação do aparelho psíquico em sua extremidade sensorial foram formulados sem referência aos sonhos ou às informações psicológicas que deles pudemos inferir. As provas fornecidas pelos sonhos, contudo, hão de ajudar-nos a compreender outra parte do aparelho. Vimos [ver em [1]] que só nos foi possível explicar a formação dos sonhos arriscando a hipótese de existirem duas instâncias psíquicas, uma das quais submeteria a atividade da outra a uma crítica que envolveria sua exclusão da consciência. A instância crítica, concluímos, tem uma relação mais estreita com a consciência do que a instância criticada, situando-se como uma tela entre esta última e a consciência. Ademais, encontramos razões [em [1]] para identificar a instância crítica com a instância que dirige nossa vida de vigília e determina nossas ações voluntárias e conscientes. Se, de acordo com nossas suposições, substituirmos essas instâncias por sistemas, nossa última conclusão deverá levar-nos a situar o sistema crítico na extremidade motora do aparelho. Introduziremos agora esses dois sistemas em nosso quadro esquemático e lhes daremos nomes para expressar sua relação com a consciência (Fig. 3):
 
Fig. 3
Descreveremos o último dos sistemas situados na extremidade motora como o “pré-consciente”, para indicar que os processos excitatórios nele ocorridos podem penetrar na consciência sem maiores empecilhos, desde que certas condições sejam satisfeitas: por exemplo, que eles atinjam certo grau de intensidade, que a função que só se pode descrever como “atenção” esteja distribuída de uma dada maneira [ver em [1]], etc. Este é, ao mesmo tempo, o sistema que detém a chave do movimento voluntário. Descreveremos o sistema que está por trás dele como “o inconsciente”, pois este não tem acesso à consciência senão através do pré-consciente, ao passar pelo qual seu processo excitatório é obrigado a submeter-se a modificações. [1]

Em qual desses sistemas, portanto, devemos situar o impulso para a formação dos sonhos? Para simplificar, no sistema Ics. É verdade que, no decorrer de nossas discussões posteriores, veremos que isso não é inteiramente exato e que o processo de formação dos sonhos é obrigado a ligar-se a pensamentos oníricos pertencentes ao sistema pré-consciente. [Ver em [1].] Entretanto, quando considerarmos o desejo onírico, descobriremos que a força propulsora da formação dos sonhos é fornecida pelo Ics. [em [1]] e, devido a este último fator, tomaremos o sistema inconsciente como ponto de partida da formação do sonho. Como todas as outras estruturas de pensamento, esse instigador do sonho se esforçará por avançar para o Pcs. e, a partir daí, ganhar acesso à consciência.
A experiência nos mostra que essa via que passa pelo pré-consciente para chegar à consciência é barrada aos pensamentos oníricos durante o dia através da censura imposta pela resistência. Durante a noite, eles conseguem obter acesso à consciência, mas surge a questão de determinar como o fazem e graças a que modificação. Se o que permite aos pensamentos oníricos conseguir isso fosse o fato de haver durante a noite, uma diminuição da resistência que guarda a fronteira entre o inconsciente e o pré-consciente, teríamos sonhos que seriam da ordem das idéias e não possuiriam o caráter alucinatório em que ora estamos interessados. Assim, a diminuição da censura entre os dois sistemas, Ics. e Pcs., só pode explicar sonhos formados como o do “Autodidasker”, e não sonhos como o do menino que estava queimando, que tomamos como ponto de partida de nossas investigações.
A única maneira pela qual podemos descrever o que acontece nos sonhos alucinatórios é dizendo que a excitação se move em direção retrocedente. Em vez de se propagar para a extremidade motora do aparelho, ela se movimenta no sentido da extremidade sensorial e, por fim, atinge o sistema perceptivo. Se descrevermos como “progressiva” a direção tomada pelos processos psíquicos que brotam do inconsciente durante a vida de vigília, poderemos dizer que os sonhos têm um caráter “regressivo”.

Essa regressão é pois, indubitavelmente, uma das características psicológicas do processo onírico, mas devemos lembrar que ela não ocorre apenas nos sonhos. A rememoração deliberada e outros processos constitutivos de nosso pensamento normal envolvem um movimento retrocedente do aparelho psíquico, retornando de um ato complexo de representação para a matéria-prima dos traços subjacentes. No estado de vigília, contudo, esse movimento retrocedente nunca se estende além das imagens mnêmicas; não consegue produzir uma revivescência alucinatória das imagens perceptivas. Por que as coisas se dão de outro modo nos sonhos? Quando consideramos o trabalho de condensação nos sonhos, fomos levados a supor que as intensidades ligadas às representações podem ser completamente transferidas pelo trabalho do sonho de uma representação para outra [em [1]]. Provavelmente, é essa alteração do processo psíquico normal que torna possível a catexia do sistema Pcpt. na direção inversa, partindo dos pensamentos, até se atingir o nível de completa vividez sensorial.
Não nos devemos iludir, exagerando a importância dessas considerações. Não fizemos mais do que dar nome a um fenômeno inexplicável. Falamos em “regressão” quando, num sonho, uma representação é retransformada na imagem sensorial de que originalmente derivou. Mas até mesmo esse passo requer uma justificação. Qual é o sentido dessa nomenclatura, se não nos ensina nada de novo? Creio que o nome “regressão” nos é útil na medida em que liga um fato que já nos era conhecido a nosso quadro esquemático, no qual se deu ao aparelho psíquico um sentido ou direção. E é nesse ponto que esse quadro começa a recompensar-nos por havê-lo construído. É que o exame dele, sem qualquer reflexão adicional, revela outra característica da formação dos sonhos. Se encararmos o processo onírico como uma regressão que ocorre em nosso hipotético aparelho anímico, chegaremos sem demora à explicação do fato empiricamente comprovado de que todas as relações lógicas pertencentes aos pensamentos oníricos desaparecem durante a atividade onírica, ou só conseguem expressar-se com dificuldade [em [1]]. Segundo nosso quadro esquemático, essas relações não estão contidas nos primeiros sistemas Mnem., mas em sistemas posteriores; e, havendo regressão, elas perderiam necessariamente qualquer meio de expressar-se,exceto por imagens perceptivas. Na regressão, a trama dos pensamentos oníricos decompõe-se em sua matéria-prima.
Qual é a modificação que possibilita uma regressão que não pode ocorrer durante o dia? Quanto a esse ponto, temos de contentar-nos com algumas conjeturas. Sem dúvida, trata-se de alterações nas catexias de energia ligadas aos diferentes sistemas, alterações estas que aumentam ou diminuem a facilidade com que tais sistemas podem ser atravessados pelo processo excitatório. Mas, num aparelho desse tipo, efeitos idênticos da passagem das excitações poderiam ser produzidos por mais de um modo. Nossos primeiros pensamentos voltam-se, naturalmente, para o estado de sono e as mudanças de catexia por ele promovidas na extremidade sensorial do aparelho. Durante o dia, há uma corrente contínua que flui do sistema y das percepções em direção à atividade motora, mas essa corrente cessa à noite e não pode mais constituir obstáculo a uma corrente de excitação que flua em sentido oposto. Aqui parecemos ter a “exclusão do mundo exterior” que algumas autoridades encaram como a explicação teórica das características psicológicas dos sonhos. (Ver em [1])
No entanto, ao explicar a regressão nos sonhos, devemos ter em mente as regressões que também ocorrem nos estados patológicos de vigília, e, nesse contexto, a explicação há pouco fornecida nos deixa em apuros. É que, nesses casos, a regressão ocorre a despeito de uma corrente sensorial que flui ininterruptamente em direção progressiva. Minha explicação para as alucinações da histeria e da paranóia e para as visões nos sujeitos mentalmente normais é que elas de fato constituem regressões - isto é, pensamentos transformados em imagens -, mas os únicos pensamentos a sofrerem essa transformação são os que se ligam intimamente a lembranças que foram suprimidas ou permaneceram inconscientes.
Por exemplo, um de meus pacientes histéricos mais jovens, um menino de doze anos, era impedido de adormecer por “rostos verdes com olhos vermelhos”, que o aterrorizavam. A fonte desse fenômeno era a lembrança suprimida, embora consciente em certa época, de um menino que ele via com freqüência quatro anos antes. Esse menino havia-lhe apresentado um quadro alarmante das conseqüências dos maus hábitos das crianças, inclusive o da masturbação - hábito pelo qual meu paciente agora se censurava a posteriori [nachträglich]. Sua mãe lhe assinalara, na ocasião, que esse menino malcomportado tinha o rosto esverdeado e olhos vermelhos (isto é, avermelhados). Era essa a origem de sua assombração, cujo único propósito, aliás, era relembrar-lhe outra das predições de sua mãe - a de que esses meninos tornam-se idiotas, não conseguem aprender nada na escola e morrem cedo.Meu pequeno paciente já havia cumprido parte dessa profecia, pois não estava fazendo progressos na escola e, como mostrou seu relato dos pensamentos involuntários que lhe ocorriam, estava aterrorizado com a outra parte. Posso acrescentar que, ao cabo de pouco tempo, o tratamento resultou em ele poder dormir, no desaparecimento de seu nervosismo e em seu recebimento de uma menção honrosa ao término do ano letivo.
Nesse mesmo contexto, quero explicar uma visão que me foi descrita por outro paciente histérico (uma mulher de quarenta anos) como havendo acontecido antes de seu adoecimento. Certa manhã ela abriu os olhos e viu seu irmão no quarto, embora, como sabia, ele estivesse de fato num manicômio. Seu filhinho dormia na cama ao lado dela. Para impedir que o menino levasse um susto e entrasse em convulsões ao ver o tio, ela puxou o lençol sobre o rosto dele, ao que a aparição se dissipou. Essa visão era uma versão modificada de uma lembrança da infância dessa senhora e, embora fosse consciente, estava intimamente relacionada com todo o seu material inconsciente. Sua babá lhe contara que sua mãe (que morrera muito jovem, quando minha paciente tinha apenas dezoito meses de idade) havia sofrido de convulsões epilépticas ou histéricas que remontavam a um susto que lhe causara seu irmão (o tio de minha paciente), ao aparecer-lhe fantasiado de fantasma, com um lençol sobre a cabeça. Assim, a visão continha os mesmos elementos da lembrança: o aparecimento do irmão, o lençol, o susto e seus resultados. Entretanto, os elementos se haviam ordenado num contexto diferente e foram transferidos para outras figuras. O motivo manifesto da visão, ou dos pensamentos que ela substituía, era a preocupação de que seu filhinho viesse a seguir os passos do tio, com quem tinha grande semelhança física.
Nenhum dos dois exemplos que citei é inteiramente desvinculado do estado do sono e, por essa razão, talvez não sejam muito apropriados para comprovar o que pretendo. Desse modo, remeto o leitor a minha análise de uma mulher que sofria de paranóia alucinatória (Freud, 1896d [Parte III]) e aos resultados de meus estudos ainda não publicados sobre a psicologia das psiconeuroses para que se comprove que, nesses casos de transformação regressiva dos pensamentos, não devemos desprezar a influência de lembranças, principalmente infantis, que tenham sido suprimidas ou permanecido inconscientes. Os pensamentos vinculados a esse tipo de lembrança, e cuja expressão é proibida pela censura, são, por assim dizer,atraídos pela lembrança para a regressão, como a forma de representação em que a própria lembrança se inscreve. Posso também lembrar que um dos resultados a que se chegou nos Estudos sobre a Histeria [Breuer e Freud, 1895 - p. ex., no primeiro caso clínico de Breuer] foi que, quando era possível trazer à consciência cenas infantis (quer fossem lembranças ou fantasias), elas eram vistas como alucinações e só perdiam essa característica no processo de serem comunicadas. Além disso, é comumente sabido que, mesmo nas pessoas cuja memória não é normalmente do tipo visual, as recordações mais primitivas da infância conservam até idade avançada o caráter de vividez sensorial.
Se agora tivermos presente o enorme papel desempenhado nos pensamentos oníricos pelas experiências infantis ou pelas fantasias nelas baseadas, a freqüência com que os fragmentos delas ressurgem no conteúdo do sonho, e quão amiúde os próprios desejos oníricos derivam delas, não poderemos descartar a probabilidade de que, também nos sonhos, a transformação dos pensamentos em imagens visuais seja, em parte, resultante da atração que as lembranças expressas sob forma visual e ávidas de uma revivescência exercem sobre os pensamentos desligados da consciência e que lutam por encontrar expressão. Desse ponto de vista, o sonho poderia ser descrito como substituto de uma cena infantil, modificada por transferir-se para uma experiência recente. A cena infantil é incapaz de promover sua própria revivescência e tem de se contentar em retornar como sonho.
Essa indicação do modo como as cenas infantis (ou suas reproduções como fantasias) funcionam, em certo sentido, como modelos para o conteúdo dos sonhos afasta a necessidade de uma das hipóteses formuladas por Scherner e seus seguidores acerca das fontes internas de estimulação. Scherner [1861] supõe que, quando os sonhos exibem elementos visuais particularmente vívidos ou particularmente abundantes, acha-se presente um estado de “estímulo visual”, isto é, de excitação interna do órgão da visão [ver em [1]]. Não precisamos contestar essa hipótese, e podemos contentar-nos em presumir que esse estado de excitação se aplique simplesmente ao sistema perceptivo psíquico do órgão visual: entretanto, podemos ainda assinalar que o estado de excitação visual que foi criado por uma lembrança, que ele é uma revivescência de uma excitação visual que foi originalmente imediata. Não posso apresentar, de minha própria experiência, nenhum bom exemplo de lembrança infantil produtora desse tipo de resultado. Meus sonhos, em geral, são menos ricos de elementos sensoriais do que sou levado a supor que ocorra com outras pessoas. Todavia, no caso do mais vívido e belo sonho que tive nos últimos anos, pude facilmente rastrear a clarezaalucinatória do conteúdo do sonho até as qualidades sensoriais de impressões recentes ou bastante recentes. Em [1], registrei um sonho em que o azul escuro da água, o castanho da fumaça que saía das chaminés do navio e o marrom e vermelho escuros dos prédios deixaram em mim profunda impressão. Esse sonho, pelo menos, deveria ter sua origem atribuída a algum estímulo visual. O que teria levado meu órgão visual a esse estado de estimulação? Uma impressão recente, que estava ligada a diversas outras mais antigas. As cores que vi eram, em primeiro lugar, as de um jogo de tijolos de armar com que, no dia anterior ao sonho, meus filhos haviam erguido um lindo prédio e o tinham exibido para minha admiração. Os tijolos grandes eram do mesmo vermelho escuro e os pequenos, dos mesmos tons azul e castanho. Isso estava associado com impressões cromáticas de minhas últimas viagens pela Itália: o belo azul do Isonzo e das lagoas e o castanho do Carso. A beleza das cores do sonho era apenas uma repetição de algo visto em minha lembrança.
Reunamos o que já descobrimos sobre a peculiar propensão dos sonhos a refundir seu conteúdo de representações em imagens sensoriais. Não explicamos esse aspecto do trabalho do sonho e não fomos buscar sua origem em quaisquer leis psicológicas conhecidas, mas antes o destacamos como algo que sugere implicações desconhecidas e o caracterizamos pela palavra “regressivo”. Formulamos a concepção de que, com toda probabilidade, essa regressão, onde quer que ocorra, é efeito da resistência que se opõe ao avanço de um pensamento para a consciência pela via normal, e de uma atração simultânea exercida sobre o pensamento pela presença de lembranças dotadas de grande força sensorial. No caso dos sonhos, a regressão talvez seja ainda facilitada pela cessação da corrente progressiva que emana durante o dia dos órgãos dos sentidos; noutras formas de regressão, a ausência desse fator auxiliar precisa ser compensada por uma intensificação dos outros motivos para ela. Tampouco devemos esquecer de observar que nesses casos patológicos de regressão, bem como nos sonhos, o processo de transferênciade energia deve diferir do que existe nas regressões que ocorrem na vida anímica normal, uma vez que, nos primeiros, esse processo possibilita uma completa catexia alucinatória dos sistemas perceptivos. O que descrevemos em nossa análise do trabalho do sonho como “consideração à representabilidade” poderia ser vinculado à atração seletiva exercida pelas cenas visualmente relembradas em que os pensamentos oníricos tocam.
Convém ainda observar [1] que a regressão desempenha na teoria da formação dos sintomas neuróticos um papel não menos importante que na dos sonhos. Assim, cabe distinguir três tipos de regressão: (a) regressão tópica, no sentido do quadro esquemático dos sistemas-y que explicamos atrás; (b) regressão temporal, na medida em que se trata de um retorno a estruturas psíquicas mais antigas; e (c) regressão formal, onde os métodos primitivos de expressão e representação tomam o lugar dos métodos habituais. No fundo, porém, todos esses três tipos de regressão constituem um só e, em geral, ocorrem juntos, pois o que é mais antigo no tempo é mais primitivo na forma e, na tópica psíquica, fica mais perto da extremidade perceptiva. [Cf. Freud, 1917d, onde essa frase recebe uma ressalva.]
Tampouco podemos abandonar o tema da regressão nos sonhos [1] sem formular em palavras uma noção que já nos ocorreu repetidamente e que ressurgirá com intensidade renovada quando tivermos penetrado mais a fundo no estudo das psiconeuroses, a saber; que o sonhar é, em seu conjunto, um exemplo de regressão à condição mais primitiva do sonhador, uma revivescência de sua infância, das moções pulsionais que a dominaram e dos métodos de expressão de que ele dispunha nessa época. Por trás dessa infância do indivíduo é-nos prometida uma imagem da infância filogenética - uma imagem do desenvolvimento da raça humana, do qual o desenvolvimento do indivíduo é, de fato, uma recapitulação abreviada, influenciada pelas circunstâncias fortuitas da vida. Podemos calcular quão apropriada é a asserção de Nietzsche de que, nos sonhos, “acha-se em ação alguma primitiva relíquia da humanidade que agora já mal podemos alcançar por via direta”; e podemos esperar que a análise dos sonhos nos conduza a um conhecimento da herança arcaica do homem, daquilo que lhe é psiquicamente inato. Os sonhos e as neuroses parecem ter preservado mais antigüidades anímicas do que imaginaríamos possível, de modo que a psicanálisepode reclamar para si um lugar de destaque entre as ciências que se interessam pela reconstrução dos mais antigos e obscuros períodos dos primórdios da raça humana.
É bem possível que esta primeira parte de nosso estudo psicológico dos sonhos nos deixe um sentimento de insatisfação. Mas podemos consolar-nos com a idéia de que fomos obrigados a construir nosso caminho nas trevas. Se não estamos inteiramente errados, outras linhas de abordagem hão de levar-nos aproximadamente a essa mesma região, e então poderá vir um tempo em que nos sintamos mais à vontade nela.

(C) REALIZAÇÃO DE DESEJOS

O sonho da criança em chamas, no início deste capítulo, dá-nos uma grata oportunidade de apreciar as dificuldades com que se defronta a teoria da realização de desejos. Sem dúvida nos terá surpreendido a todos saber que os sonhos não passam de realizações de desejos, e não apenas em virtude da contradição trazida pelos sonhos de angústia. Quando a análise nos revelou pela primeira vez que por trás dos sonhos se ocultavam um sentido e um valor psíquico, achávamo-nos, sem dúvida, inteiramente despreparados para descobrir que esse sentido era de caráter tão uniforme. Segundo a definição precisa mas insuficiente de Aristóteles, o sonho é o pensamento que persiste (desde que estejamos adormecidos) no estado de sono. [Ver em [1].] Uma vez, portanto, que nosso pensamento diurno produz atos psíquicos de tipos tão variados - juízos, inferências, negações, expectativas, intenções, etc. - por que seria ele, durante a noite, obrigado a restringir-se apenas à produção de desejos? Não haverá, ao contrário, numerosos sonhos que nos mostram outra sorte de atos psíquicos - preocupações, por exemplo - transmudados em forma de sonho? E acaso o sonho com que iniciamos este capítulo (um sonho muito particularmente transparente) não foi precisamente desse tipo? Quando o clarão de luz incidiu sobre os olhos do pai adormecido, ele chegou à preocupada conclusão de que uma vela havia caído e poderia ter incendiado o cadáver. Transformou essa conclusão num sonho, revestindo-a do aspecto de uma situação sensorial e no tempo presente. Que papel terá desempenhado nisso a realização de desejos? Acaso podemos deixar de ver nisso a influência predominante de um pensamento que persistiu da vida de vigília ou foi estimulado por uma nova impressão sensorial? Tudo isso é fato e nos compele a examinar mais de perto o papel desempenhado nos sonhos pela realização de desejo e a importância dos pensamentos da vigília que persistem no sono.
Já fomos levados pela própria realização de desejo a dividir os sonhos em dois grupos. Encontramos alguns sonhos que se apresentavam abertamente como realizações de desejo e outros em que essa realização era irreconhecível e freqüentemente disfarçada por todos os meios possíveis. Nestes últimos percebemos a atuação da censura onírica. Foi sobretudo nas crianças que encontramos sonhos de desejo não distorcidos; embora breves,os sonhos francamente de desejo pareceram (e enfatizo esta ressalva) ocorrer também nos adultos.
Podemos indagar em seguida de onde se originam os desejos que se realizam nos sonhos. Que possibilidades contrastantes ou que alternativas temos em mente ao levantar esta questão? Penso ser o contraste entre a vida diurna conscientemente percebida e uma atividade psíquica que permanece inconsciente e da qual só nos damos conta à noite. Posso distinguir três origens possíveis para tal desejo: (1) É possível que ele tenha sido despertado durante o dia e, por motivos externos, não tenha sido satisfeito; nesse caso, um desejo reconhecido do qual o sujeito não se ocupou fica pendente para a noite. (2) É possível que tenha surgido durante o dia, mas tenha sido repudiado; nesse caso, o que fica pendente é um desejo de que a pessoa não se ocupou, mas que foi suprimido. (3) Ele pode não ter nenhuma ligação com a vida diurna e ser um daqueles desejos que só à noite emergem da parte suprimida da psique e se tornam ativos em nós. Se nos voltarmos de novo para nosso quadro esquemático do aparelho psíquico, localizaremos os desejos do primeiro tipo no sistema Pcs.; suporemos que os desejos do segundo tipo terão sido forçados a recuar [zurückdrängen] do sistema Pcs. para o Ics., único lugar onde continuam a existir, se é que o fazem; e concluiremos que as moções de desejo [Wunchsregung] do terceiro tipo são inteiramente incapazes de transpor o sistema Ics. Surge então a questão de saber se os desejos oriundos dessas diferentes fontes são de igual importância para os sonhos e se possuem igual poder para instigá-los.
Se, para responder a essa questão, voltarmos os olhos para os sonhos de que dispomos, logo nos lembraremos de que é preciso acrescentar uma quarta fonte dos desejos oníricos, ou seja, as moções de desejo atuais que surgem durante a noite (por exemplo, as estimuladas pela sede ou pelas necessidades sexuais). Em seguida, formularemos a opinião de que o lugar de origem de um desejo onírico provavelmente não tem nenhuma influência em sua capacidade de provocar um sonho. Vêm-me à lembrança o sonho da menininha que prolongou um passeio pelo lago, interrompido durante o dia, e os outros sonhos infantis que registrei. [Ver em [1]] Eles foram explicados como devidos a desejos não realizados, mas também não suprimidos, do dia anterior. São extremamente numerosos os exemplos em que um desejo suprimido durante o dia encontra vazão num sonho. Acrescentarei um outro exemplo muito simples desta classe. A sonhadora era uma senhora que gostava muito de troçar das pessoas e uma de suas amigas, uma mulher mais moça que ela, acabara de ficar noiva. Durante o dia inteiro, seus conhecidos lhe haviam perguntado se ela conhecia o rapaz e o que pensava dele. Elarespondera apenas com elogios, com os quais havia silenciado seu juízo real, pois de bom grado teria dito a verdade - que ele era um “Dutzendmensch” [literalmente, um “homem às dúzias”, um tipo muito comum de pessoa - gente como ele aparecia às dúzias]. Naquela noite, ela sonhou que lhe faziam a mesma pergunta e que respondia com a fórmula: “Em caso de repetição de pedidos, basta mencionar o número”. Por fim, mediante numerosas análises, ficamos sabendo que, sempre que um sonho sofre distorção, o desejo brotou do inconsciente e foi um desejo que não pôde ser percebido durante o dia. Assim, à primeira vista, todos os desejos parecem ter igual importância e igual poder nos sonhos.
Não posso oferecer aqui nenhuma prova de que, não obstante, a verdade é outra, mas posso dizer que me sinto muito inclinado a supor que os desejos oníricos sejam mais estritamente determinados. É verdade que os sonhos das crianças provam, fora de qualquer dúvida, que um desejo não trabalhado durante o dia pode agir como instigador do sonho. Mas não se deve esquecer que se trata do desejo de uma criança, de uma moção de desejo com a intensidade própria das crianças. Considero altamente duvidoso que, no caso de um adulto, um desejo não realizado durante o dia pudesse ser intenso o bastante para produzir um sonho. Ao contrário, parece-me que, com o controle progressivo exercido sobre nossa vida pulsional pela atividade do pensamento, ficamos cada vez mais inclinados a renunciar, por ser inútil, à formação ou retenção de desejos tão intensos quanto os que as crianças conhecem. É possível que haja diferenças individuais a esse respeito e que algumas pessoas conservem por mais tempo que outras um tipo infantil de processo anímico, tal como existem diferenças similares no tocante à diminuição do modo de representação originário, que é por imagens muito vívidas. Em geral, porém, penso que um desejo não realizado que tenha ficado pendente do dia anterior não basta, no caso de um adulto, para produzir um sonho. Admito prontamente que uma moção de desejo originária do consciente possa contribuir para a instigação de um sonho, mas é provável que não faça mais do que isso. O sonho não se materializaria se o desejo pré-consciente não tivesse êxito em encontrar reforço de outro lugar.
Do inconsciente, bem entendido. É minha suposição que um desejo consciente só consegue tornar-se instigador do sonho quando logra despertar um desejo inconsciente do mesmo teor e dele obter reforço. Segundo indicações provenientes da psicanálise das neuroses, considero que esses desejos inconscientes estão sempre em estado de alerta, prontos a qualquer momento para buscar o meio de se expressarem quando surge a oportunidade de se aliarem a uma moção do consciente e transferirem sua grande intensidade para a intensidade menor desta última. Assim, fica a aparência de que apenas o desejo consciente se haveria realizado no sonho, e só alguma pequena peculiaridade na configuração do sonho serve de indicador para nos colocar na pista do poderoso aliado oriundo do inconsciente. Esses desejos de nosso inconsciente, sempre em estado de alerta e, por assim dizer, imortais, fazem lembrar os legendários Titãs, esmagados desde os tempos primordiais pelo peso maciço das montanhas que um dia foram arremessadas sobre eles pelos deuses vitoriosos e que ainda são abaladas de tempos em tempos pela convulsão de seus membros. Mas esses desejos, mantidos sob recalcamento, são eles próprios de origem infantil, como nos ensina a pesquisa psicológica das neuroses. Assim, eu proporia pôr de lado a afirmativa feita há pouco [em [1]], de que a procedência dos desejos oníricos é indiferente, e substituí-la por outra com o seguinte teor: o desejo que é representado num sonho tem de ser um desejo infantil. No caso dos adultos, ele se origina do Ics.; no caso das crianças, onde ainda não há divisão ou censura entre o Pcs. e o Ics., ou onde essa divisão se está apenas instituindo gradualmente, trata-se de um desejo não realizado e não recalcado da vida de vigília. Estou ciente de que não se pode provar que esta asserção tenha validade universal, mas é possível provar que ela se sustenta com freqüência, até mesmo em casos onde não se suspeitaria disso, e não pode ser contestada enquanto proposição geral.
A meu ver, portanto, as moções de desejo que restam da vida consciente de vigília devem ser relegadas a uma posição secundária com respeito à formação dos sonhos. Não posso conferir-lhes, enquanto contribuintes para o conteúdo do sonhos, nenhum outro papel senão o que é desempenhado, por exemplo, pelo material das sensações atuais que se tornam ativas durante o sono. [Ver em [1]-[2].] Ater-me-ei a essa mesma linha de raciocínio ao me voltar, agora, para o exame das incitações psíquicas do sonho deixadas pelavida de vigília e que são diferentes dos desejos. Quando resolvemos dormir, podemos ter êxito em fazer com que cessem temporariamente as catexias de energia ligadas a nossos pensamentos de vigília. Todo aquele que consegue fazer isso com facilidade dorme bem, e o primeiro Napoleão parece ter sido um modelo dessa classe. Mas nem sempre conseguimos fazê-lo e nem sempre obtemos êxito completo. Problemas não resolvidos, preocupações martirizantes e o acúmulo excessivo de impressões, tudo isso transporta a atividade do pensamento para o sono e sustenta processos anímicos no sistema que denominamos de pré-consciente. Se quisermos classificar as moções de pensamento que persistem no sono, poderemos dividi-las nos seguintes grupos: (1) o que não foi levado a uma conclusão durante o dia, devido a algum obstáculo fortuito; (2) o que não foi tratado devido à insuficiência de nossa capacidade intelectual, o não resolvido; (3) o que foi rejeitado ou suprimido durante o dia. A estes devemos acrescentar (4) um poderoso grupo que consiste naquilo que foi ativado em nosso Ics. pela atividade do pré-consciente no decorrer do dia e, por fim, (5) o grupo das impressões diurnas que foram indiferentes e que, por essa razão, não foram tratadas.
Não há por que subestimar a importância das intensidades psíquicas introduzidas no estado de sono por esses restos da vida diurna e, particularmente, a importância das do grupo dos problemas não solucionados. É certo que essas excitações continuam lutando por se expressar durante a noite, e podemos presumir com igual certeza que o estado de sono impossibilita ao processo excitatório avançar da maneira habitual no pré-consciente e ser levado a termo pelo tornar-se consciente. Na medida em que nossos processos de pensamento podem tornar-se conscientes da maneira normal durante a noite, simplesmente não estamos adormecidos. Não sei dizer que modificação é provocada no sistema Pcs. pelo estado de sono, mas não há dúvida de que as características psicológicas do sono devem ser buscadas essencialmente nas modificações da catexia desse sistema particular - um sistema que também controla o acesso ao poder de movimento, que fica paralisado durante o sono. Por outro lado, nada na psicologia dos sonhos me dá razão para supor que o sono produza quaisquer modificações que não sejam secundárias no estado de coisas que prevalece no sistema Ics. Não há, portanto, nenhum outro caminho aberto às excitações que ocorrem à noite noPcs. senão o que é seguido pelas excitações de desejo que provêm do Ics; as excitações pré-conscientes têm de buscar reforço no Ics. e acompanhar as excitações inconscientes ao longo de seus caminhos tortuosos. Mas qual é a relação dos restos pré-conscientes do dia anterior com os sonhos? Não há dúvida de que eles penetram nos sonhos em grande quantidade e se valem do conteúdo destes para ganhar acesso à consciência mesmo durante a noite. De fato, ocasionalmente dominam o conteúdo do sonho e forçam-no a dar prosseguimento à atividade diurna. É também certo que os restos diurnos podem, com a mesma facilidade, ter qualquer outro caráter além do de desejos, mas é altamente instrutivo nesse contexto - e de importância positivamente decisiva para a teoria da realização de desejo - observar a condição a que eles têm de submeter-se para serem acolhidos num sonho.
Tomemos um dos sonhos que já registrei - por exemplo, o sonho em que meu amigo Otto aparecia com os sinais da doença de Graves. [Ver em [1]] Eu estivera preocupado, no dia anterior, com a aparência de Otto e, como tudo o mais que se relaciona com ele, essa preocupação me afetou muito de perto. Acompanhou-me, ao que posso presumir, enquanto eu dormia. É provável que eu estivesse ansioso por descobrir o que poderia andar errado com ele. Essa preocupação expressou-se durante a noite no sonho que descrevi, cujo conteúdo, em primeiro lugar, era absurdo e, em segundo, não correspondia em nenhum aspecto à realização de um desejo. Comecei então a investigar a origem dessa expressão inapropriada da preocupação que sentira durante o dia e, através da análise, encontrei uma ligação no fato de haver identificado meu amigo com um certo Barão L., e a mim mesmo, com o Professor R. Havia apenas uma explicação para eu ter sido obrigado a escolher esse substituto específico para meu pensamento diurno. Eu devia estar sempre disposto, em meu Ics., para me identificar com o Professor R., uma vez que por meio dessa identificação se realizava um dos desejos imortais da infância - o desejo megalomaníaco. Pensamentos ofensivos e hostis a meu amigo, que por certo seriam repudiados durante o dia, haviam aproveitado a oportunidade para se imiscuírem com o desejo no sonho, mas minha preocupação diurna também encontrara uma espécie de expressão no conteúdo deste através de um substituto. [Ver em [1].] O pensamento diurno, que em si não era um desejo, mas, ao contrário, uma preocupação, foi obrigado a encontrar de algum modo uma ligação com um desejo infantil já agora inconsciente e suprimido, e que lhe permitisse - devidamente modificado, é verdade - “originar-se” na consciência. Quanto mais dominante a preocupação, mais forçado seria o elo passível de seestabelecer; não havia nenhuma necessidade de existir qualquer ligação entre o conteúdo do desejo e o da preocupação e, de fato, não houve tal ligação em nosso exemplo.
Talvez seja útil [1] prosseguir em nosso exame dessa mesma questão considerando o modo como se comporta o sonho quando os pensamentos oníricos lhe oferecem um material que é o oposto completo de uma realização de desejo - preocupações justificadas, reflexões dolorosas, apercebimentos aflitivos. Os diversos resultados possíveis podem ser classificados num destes dois grupos: (A) O trabalho do sonho pode ter êxito em substituir todas as representações aflitivas por seus contrários e em suprimir os afetos desprazerosos ligados a elas. O resultado é um sonho puro de satisfação, uma “realização de desejo” palpável sobre a qual não parece haver mais nada a dizer. (B) As representações aflitivas, modificadas em maior ou menor grau, mas mesmo assim bem reconhecíveis, podem ganhar acesso ao conteúdo manifesto do sonho. É este o caso que levanta dúvidas sobre a validade da teoria do desejo os sonhos e reclama novas investigações. Esses sonhos de conteúdo aflitivo podem ser vivenciados com indiferença ou acompanhados pela totalidade do afeto aflitivo que seu conteúdo de representações parece justificar, ou podem até levar ao desenvolvimento de angústia e ao despertar.
A análise demonstra que também esses sonhos desprazerosos são realizações de desejo, tanto quanto os demais. Um desejo inconsciente e recalcado, cuja realização o ego do sonhador não poderia deixar de vivenciar como aflitivo, aproveitou a oportunidade que lhe foi oferecida pela catexia persis-tente dos restos diurnos penosos da véspera; emprestou-lhes seu apoio e assim lhes facultou penetrarem num sonho. Mas, enquanto que, no Grupo A, o desejo inconsciente concidia com o consciente, no Grupo B se revela o abismo entre o inconsciente e o consciente (entre o recalcado e o ego) e se realiza a situação do conto de fadas dos três desejos concedidos pela fada ao marido e à mulher. [Ver adiante, em [1].] A satisfação pela realização do desejo recalcado pode revelar-se tão grande a ponto de contrabalançar os sentimentos dolorosos ligados aos restos diurnos [ver em [1]-[2]]; nesse caso, o tom afetivo do sonho é indiferente, apesar de ele ser, por um lado, a realização de um desejo e, por outro, a realização de um temor. Ou pode suceder que o ego adormecido tenha uma participação ainda maior na formação do sonho, reaja à satisfação do desejo recalcado com violentaindignação, e ainda ponha termo ao sonho com um surto de angústia. Assim, não há dificuldade em perceber que os sonhos desprazerosos e os sonhos de angústia são tão realização de desejos, no sentido de nossa teoria, quanto o são os sonhos puros de satisfação.
Os sonhos desprazerosos podem ser também “sonhos de punição”. [Ver em [1]] Cabe admitir que reconhecê-los significa, em certo sentido, um novo acréscimo à teoria dos sonhos. O que neles se realiza é também um desejo inconsciente, a saber, o desejo do sonhador de ser punido por uma moção de desejo recalcada e proibida. Nessa medida, tais sonhos se enquadram no requisito aqui estabelecido de que a força propulsora para a formação do sonho seja fornecida por um desejo pertencente ao inconsciente. Uma análise psicológica mais minuciosa, no entanto, mostra como eles diferem de outros sonhos de desejo. Nos casos que formam o Grupo B, o desejo formador do sonho é inconsciente e pertence ao recalcado, ao passo que, nos sonhos de punição, embora se trate também de um desejo inconsciente, deve-se considerá-lo pertencente não ao recalcado, mas ao “ego”. Portanto, os sonhos de punição indicam a possibilidade de que o ego tenha uma participação maior do que se supôs na formação dos sonhos. O mecanismo da formação dos sonhos seria muito esclarecido, em geral, se, em vez da oposição entre “consciente” e “inconsciente”, falássemos na oposição entre o “ego” e o “recalcado”. Não se pode fazer isso, porém, sem levar em conta os processos subjacentes às psiconeuroses, e por essa razão tal não foi feito na presente obra. Acrescentarei apenas que os sonhos de punição não estão sujeitos, em geral, à condição de que os restos diurnos sejam de tipo aflitivo. Ao contrário, ocorrem com mais facilidade quando se dá o oposto - quando os restos diurnos são pensamentos de natureza satisfatória, mas a satisfação que expressam é proibida. O único vestígio desses pensamentos a aparecer no sonho manifesto é seu oposto diametral, como no caso dos sonhos pertencentes ao Grupo A. A característica essencial dos sonhos de punição, portanto, seria que, em seu caso, o desejo formador do sonho não é um desejo inconsciente derivado do recalcado (do sistema Ics.), mas um desejo punitivo que reage contra este e pertence ao ego, embora seja, ao mesmo tempo, um desejo inconsciente (isto é, pré-consciente).

Relato agora um de meus próprios sonhos, [1] para ilustrar o que acabo de dizer e, em particular, a maneira como o trabalho do sonho lida com resto diurno de expectativas penosas, do dia anterior.
“Começo indistinto. Disse à minha mulher que tinha uma notícia para ela, algo muito especial. Ela ficou assustada e se recusou a escutar. Garanti-lhe que, pelo contrário, era algo que ela ficaria muito contente em ouvir, e comecei a contar-lhe que o corpo de oficiais de nosso filho enviara uma soma em dinheiro (5.000 coroas?)… algo a respeito de uma distinção… distribuição… Entrementes, eu fora com ela até um quartinho, parecido com uma despensa, procurar alguma coisa. De repente, vi meu filho aparecer. Não estava de uniforme, mas num traje esportivo apertado (como uma foca?), com um bonezinho. Trepou num cesto que estava ao lado de um armário, como se quisesse pôr algo em cima dele. Chamei-o; nenhuma resposta. Pareceu-me que seu rosto ou sua testa estavam enfaixados. Ele estava acomodando alguma coisa na boca, empurrando algo para dentro dela. E seus cabelos estavam salpicados de grisalho. Pensei: ‘Será que ele está tão exausto assim? E será que usa dentes postiços?’ Antes que pudesse chamá-lo de novo, acordei, sem sentir angústia, mas com o coração batendo depressa. Meu relógio de cabeceira marcava duas e meia.”
Mais uma vez, é-me impossível apresentar uma análise completa. Tenho de restringir-me a ressaltar alguns pontos salientes. Foram as expectativas penosas do dia anterior que deram origem ao sonho: ficáramos outra vez, por mais de uma semana, sem notícias de nosso filho que estava na frente de batalha. É fácil perceber que o conteúdo do sonho expressava a convicção de que ele fora ferido ou morto. No início do sonho, fez-se claramente um esforço enérgico para substituir os pensamentos aflitivos por seu contrário. Eu tinha uma notícia agradabilíssima para comunicar - qualquer coisa sobre dinheiro remetido… distinção… distribuição. (A soma em dinheiro derivava de uma ocorrência agradável em minha clínica médica; foi uma tentativa de afastamento completo do assunto.) Mas esse esforço fracassou. Minha mulher desconfiou de algo terrível e se recusou a me escutar. Os disfarces eram tênues demais e as referências ao que se procurava recalcar ressaltavam neles por todos os lados. Se meu filho houvesse tombado morto, seus colegas defarda devolveriam seus pertences e eu teria de distribuir o que ele deixasse entre seus irmãos e outras pessoas. Freqüentemente se confere uma “distinção” ao oficial que tomba no campo de batalha. Assim, o sonho pôs-se a dar expressão direta ao que primeiro procurara negar, embora a tendência para a realização de desejo ainda se mostrasse em ação nas distorções. (Não há dúvida de que a mudança de lugar, durante o sonho, deve ser entendida como o que Silberer [1912] descreveu como “simbolismo do umbral”. [Ver em [1]].) Não sabemos dizer, é verdade, o que foi que deu ao sonho a força impulsora para assim expressar seus pensamentos aflitivos. Meu filho não apareceu como alguém que “caísse”, mas como alguém que estava “subindo”. De fato, fora um entusiástico alpinista. Não estava de uniforme, mas usando um traje esportivo; isto significava que o local do acidente agora temido tinha sido tomado por um acidente anterior, ocorrido ao praticar esportes; é que ele sofrera uma queda durante uma excursão de esqui e quebrara o fêmur. A maneira como estava vestido, por outro lado, e que o fazia parecer uma foca, lembrou de imediato alguém mais jovem - nosso netinho engraçado; já o cabelo grisalho fez-me lembrar o pai deste, nosso genro, que fora duramente atingido pela guerra. Que significaria isso?… Mas já falei bastante a respeito. A localização numa despensa e o armário de onde ele queria tirar algo (“sobre o qual queria pôr alguma coisa”, no sonho) - estas alusões fizeram-me lembrar inequivocamente de um acidente que eu mesmo me causei quando tinha mais de dois anos, mas ainda não chegara aos três. Eu havia trepado num tamborete na despensa para pegar alguma coisa boa que estava sobre um armário ou mesa. O tamborete virou e sua quina me atingiu por trás da mandíbula inferior; refleti que poderia muito bem ter perdido todos os dentes. Essa lembrança foi acompanhada por um pensamento admonitório: “é bem feito para você”; e isso parecia ser um impulso hostil dirigido ao valente soldado. Uma análise mais profunda permitiu-me enfim descobrir que o impulso oculto poderia haver encontrado satisfação no temido acidente com meu filho: era a inveja que sentem dos jovens aqueles que envelheceram, e que estes acreditam haver sufocado por completo. E não há dúvida de que foi precisamente a intensidade da emoção penosa que teria surgido se tal infortúnio houvesse realmente acontecido que levou essa emoção a buscar uma realização de desejo recalcada para assim encontrar algum consolo. [1]

Encontro-me agora em condições de dar uma explicação precisa do papel desempenhado nos sonhos pelo desejo inconsciente. Estou pronto a admitir que há toda uma classe de sonhos cuja instigação provém principalmente, ou até de maneira exclusiva, dos restos da vida diurna; e penso que até meu desejo de enfim tornar-me Professor Extraodinário poderia ter-me deixado dormir em paz aquela noite, se a preocupação com a saúde de meu amigo não houvesse persistido desde o dia anterior [em [1]]. Mas a preocupação, por si só, não teria formado um sonho. A força impulsora requerida pelo sonho tinha de ser suprida por um desejo; cabia à preocupação apoderar-se de um desejo que atuasse como força propulsora do sonho.
A situação pode ser explicada por uma analogia. O pensamento diurno pode perfeitamente desempenhar o papel de empresário do sonho; mas o empresário, que, como se costuma dizer, tem a idéia e a iniciativa para executá-la, não pode fazer nada sem o capital; ele precisa de um capitalista que possa arcar com o gasto, e o capitalista que fornece o desembolso psíquico para o sonho é, invariável e indiscutivelmente, sejam quais forem os pensamentos do dia anterior, um desejo oriundo do inconsciente[1]
Por vezes, o próprio capitalista é o empresário, e sem dúvida, no caso dos sonhos, isso é o mais comum; um desejo inconsciente é estimulado pela atividade diurna e passa a formar um sonho. Do mesmo modo, as outras variações possíveis na situação econômica que tomei como analogia também encontram paralelo nos processos oníricos. O próprio empresário pode fazer uma pequena contribuição para o capital; diversos empresários podem recorrer ao mesmo capitalista; vários capitalistas podem reunir-se para fornecer ao empresário o que é preciso. Do mesmo modo, encontramos sonhos que são sustentados por mais de um desejo onírico; e o mesmo se dá com outras variações semelhantes que poderiam ser facilmente enumeradas, mas que não teriam maior interesse para nós. Devemos reservar para mais tarde o que resta a dizer sobre o desejo onírico.
tertium comparationis [terceiro elemento de comparação] na analogia que acabo de empregar - a quantidade posta à disposição do empresário em volume apropriado - admite aplicação ainda mais detalhada com vistas à elucidação da estrutura dos sonhos. Na maioria dos sonhos é possívelidentificar um ponto central marcado por uma intensidade sensorial peculiar, como demonstrei em [1] [e [1]]. Este ponto central é, geralmente, a representação direta da realização do desejo, pois, se desfizermos os deslocamentos produzidos pelo trabalho do sonho, veremos que a intensidade psíquica dos elementos dos pensamentos oníricos foi substituída pela intensidade sensorial dos elementos do conteúdo do sonho propriamente dito. Os elementos situados nas proximidades da realização de desejo muitas vezes nada têm a ver com seu sentido, mas revelam ser derivados de pensamentos aflitivos que são contrários ao desejo. Entretanto, por se encontrarem no que é com freqüência uma relação artificialmente estabelecida com o elemento central, adquiriram intensidade suficiente para se tornarem capazes de ser representados no sonho. Assim, o poder que tem a realização de desejo de promover a representação difunde-se por uma certa esfera a seu redor, dentro da qual todos os elementos - incluindo até os que não possuem recursos próprios - adquirem força para se fazerem representar. No caso dos sonhos ativados por diversos desejos, é fácil delimitar as esferas das diferentes realizações de desejo, e as lacunas do sonho podem freqüentemente ser compreendidas como zonas fronteiriças entre essas esferas. [1]
Embora as considerações precedentes tenham reduzido a importância do papel desempenhado pelos restos diurnos nos sonhos, vale a pena dedicar-lhes um pouco mais de atenção. Eles têm de ser um ingrediente essencial na formação dos sonhos, uma vez que a experiência revelou o fato surpreendente de que, no conteúdo de todo sonho, identifica-se algum vínculo com uma impressão diurna recente - muitas vezes, do tipo mais insignificante. Até aqui não pudemos explicar a necessidade desse acréscimo à mistura que constitui o sonho. [Ver em [1].] E só é possível fazê-lo se tivermos firmemente presente o papel desempenhado pelo desejo inconsciente e então buscarmos informações na psicologia das neuroses. Com esta aprendemos que uma representação inconsciente, como tal, é inteiramente incapaz de penetrar no pré-consciente, e que só pode exercer ali algum efeito estabelecendo um vínculo com uma representação que já pertença ao pré-consciente, transferindo para ela sua intensidade e fazendo-se “encobrir” por ela. Aí temos o fato da “transferência’’, que fornece uma explicação para inúmerosfenômenos notáveis da vida anímica dos neuróticos. A representação pré-consciente, que assim adquire imerecido grau de intensidade, pode ser deixada inalterada pela transferência ou ver-se forçada a uma modificação derivada do conteúdo da representação que efetua a transferência. Espero que me seja perdoado extrair analogias da vida cotidiana, mas fico tentado a dizer que a situação de uma representação recalcada assemelha-se à de um dentista norte-americano em nosso país: não lhe é permitido estabelecer sua clínica, a menos que possa valer-se de um médico legalmente qualificado para servir-lhe de pretexto e agir como “cobertura” aos olhos da lei. E, assim como não são exatamente os médicos de maiores clientelas que fazem essa espécie de aliança com os dentistas, tampouco se escolhem, para servir de cobertura para uma representação recalcada, representações pré-conscientes ou conscientes que já tenham atraído sobre si uma parcela suficiente da atenção que atua no pré-consciente. O inconsciente prefere tecer suas ligações em torno de impressões e representações pré-conscientes que sejam indiferentes e às quais, por isso mesmo, não se tenha dado atenção ou que tenham sido rejeitadas e, portanto, perdido prontamente a atenção que lhes era dedicada. Uma conhecida tese da doutrina da associação, inteiramente confirmada pela experiência, é que uma representação ligada por um elo muito íntimo em determinada direção tende, por assim dizer, a repelir grupos inteiros de novas ligações. Tentei certa vez basear uma teoria da paralisia histérica nessa proposição.
Se presumirmos que também nos sonhos atua essa mesma necessidade de transferência por parte das representações recalcadas, que descobrimos ao analisar as neuroses, dois dos enigmas do sonho serão resolvidos de um só golpe, a saber, o fato de que toda análise de um sonho revela o entrelaçamento de alguma impressão recente em sua trama, e que esse elemento recente é freqüentemente do tipo mais banal [em [1]]. Posso acrescentar que (como já descobrimos em outro lugar [em [1]-[2]]) a razão por que esses elementos recentes e indiferentes tantas vezes ganham acesso aos sonhos, como substitutosdos mais antigos dentre todos os pensamentos oníricos, é que eles são os que menos têm a temer da censura imposta pela resistência. Todavia, enquanto o fato de os elementos triviais serem preferidos é explicado por sua isenção da censura, o fato de ocorrerem elementos recentes com tal regularidade aponta para a existência de uma necessidade de transferência. Ambos os grupos de impressões atendem à exigência do recalcado, que demanda um material ainda livre de associações - as indiferentes, por não terem dado margem à formação de muitos vínculos, e as recentes, por ainda não terem tido tempo de estabelecê-los.
Assim, vemos que os restos diurnos, entre os quais podemos agora incluir as impressões indiferentes, não apenas tomam emprestado algo do Ics., quando conseguem participar da formação do sonho - ou seja, a força pulsional que está à disposição do desejo recalcado -, mas também oferecem ao inconsciente algo indispensável - ou seja, o ponto de ligação necessário para uma transferência. Se quiséssemos penetrar aqui mais profundamente nos processos anímicos, teríamos de elucidar melhor a interação das excitações entre o pré-consciente e o inconsciente, tema para o qual nos atrai o estudo das psiconeuroses, mas sobre o qual acontece que os sonhos não têm nenhum auxílio a oferecer.
Tenho apenas mais uma coisa a acrescentar sobre os restos diurnos. Não há dúvida de que são eles os verdadeiros perturbadores do sono, e não os sonhos, os quais, pelo contrário, interessam-se em protegê-lo. Retornarei a este ponto posteriormente. [Ver em [1]]
Vimos até agora estudando os desejos oníricos: derivamo-los de sua origem na região do Ics. e analisamos suas relações com os restos diurnos, que, por sua vez, podem ser desejos ou moções psíquicas de alguma outra natureza ou simplesmente impressões recentes. Assim demos margem a todas as reivindicações que possam ser levantadas por qualquer das múltiplas atividades do pensamento de vigília em favor da importância do papel por elas desempenhado no processo de formação dos sonhos. Não é sequer impossível que nossa exposição tenha fornecido uma explicação para os casos extremos em que um sonho, dando prosseguimento às atividades diurnas, chega a uma solução feliz para algum problema não solucionado da vida de vigília. Falta-nos apenas um exemplo desse tipo, para que possamosanalisá-lo e descobrir a fonte dos desejos infantis ou recalcados cujo auxílio foi convocado e reforçou com tal sucesso os esforços da atividade pré-consciente. Mas nada disso nos aproximou um passo sequer da solução do enigma de por que o inconsciente nada tem a oferecer durante o sono além da força propulsora para a realização de um desejo. A resposta a esta pergunta deve lançar luz sobre a natureza psíquica dos desejos, e proponho fornecê-la mediante uma referência a nosso quadro esquemático do aparelho psíquico.
Não temos nenhuma dúvida de que esse aparelho só atingiu sua perfeição atual após um longo período de desenvolvimento. Tentemos reconduzi-lo a uma etapa anterior de sua capacidade de funcionamento. Algumas hipóteses cuja justificação deve ser buscada de outras maneiras dizem-nos que, a princípio, os esforços do aparelho tinham o sentido de mantê-lo tão livre de estímulos quanto possível; conseqüentemente, sua primeira estrutura seguia o projeto de um aparelho reflexo, de modo que qualquer excitação sensorial que incidisse nele podia ser prontamente descarregada por uma via motora. Mas as exigências da vida interferem nessa função simples, e é também a elas que o aparelho deve o ímpeto para seu desenvolvimento posterior. As exigências da vida confrontam-no, primeiramente, sob a forma das grandes necessidades somáticas. As excitações produzidas pelas necessidades internas buscam descarga no movimento, que pode ser descrito como uma “modificação interna” ou uma “expressão emocional’’. O bebê faminto grita ou dá pontapés, inerme. Mas a situação permanece inalterada, pois a excitação proveniente de uma necessidade interna não se deve a uma força que produza um impacto momentâneo, mas a uma força que está continuamente em ação. Só pode haver mudança quando, de uma maneira ou de outra (no caso do bebê, através do auxílio externo), chega-se a uma “vivência de satisfação” que põe fim ao estímulo interno. Um componente essencial dessa vivência de satisfação é uma percepção específica (a da nutrição, em nosso exemplo) cuja imagem mnêmica fica associada, daí por diante, ao traço mnêmico da excitação produzida pela necessidade. Em decorrência do vínculo assim estabelecido, na próxima vez em que essa necessidade fordespertada, surgirá de imediato uma moção psíquica que procurará recatexizar a imagem mnênica da percepção e reevocar a própria percepção, isto é, restabelecer a situação da satisfação original. Uma moção dessa espécie é o que chamamos de desejo; o reaparecimento da percepção é a realização do desejo, e o caminho mais curto para essa realização é a via que conduz diretamente da excitação produzida pelo desejo para uma completa catexia da percepção. Nada nos impede de presumir que tenha havido um estado primitivo do aparelho psíquico em que esse caminho era realmente percorrido, isto é, em que o desejo terminava em alucinação. Logo, o objetivo dessa primeira atividade psíquica era produzir uma “identidade perceptiva” - uma repetição da percepção vinculada à satisfação da necessidade.
A amarga experiência da vida deve ter transformado essa atividade primitiva de pensamento numa atividade secundária mais conveniente. O estabelecimento de uma identidade perceptiva pela curta via da regressão no interior do aparelho não tem em outro lugar da psique o mesmo resultado que a catexia dessa mesma percepção desde o exterior. A satisfação não sobrevém e a necessidade perdura. A catexia interna só poderia ter o mesmo valor da externa se fosse mantida incessantemente, como de fato ocorre nas psicoses alucinatórias e nas fantasias de fome, que esgotam toda sua atividade psíquica no apego ao objeto de seu desejo. Para chegar a um dispêndio mais eficaz da força psíquica, é necessário deter a regressão antes que ela se torne completa, para que não vá além da imagem mnêmica e seja capaz de buscar outros caminhos que acabem levando ao estabelecimento da desejada identidade perceptiva desde o mundo exterior. Essa inibição da regressão e o subseqüente desvio da excitação passam a ser da alçada de um segundo sistema, que controla o movimento voluntário - isto é, que pela primeira vez se vale do movimento para fins lembrados de antemão. Mas toda a complexa atividade de pensamento que se desenrola desde a imagem mnêmica até o momento em que a identidade perceptiva é estabelecida pelo mundo exterior, toda essa atividade de pensamento constitui simplesmente um caminho indireto para a realização de desejo, caminho esse que a experiência tornou necessário. O pensamento, afinal, não passa do substituto de um desejoalucinatório, e é evidente que os sonhos têm de ser realizações de desejos, uma vez que nada senão o desejo pode colocar nosso aparelho anímico em ação. Os sonhos, que realizam seus desejos pela via curta da regressão, simplesmente preservaram para nós, nesse aspecto, uma amostra do método primário de funcionamento do aparelho psíquico, método este que foi abandonado por ser ineficaz. O que um dia dominou a vida de vigília, quando a psique era ainda jovem e incompetente, parece agora ter sido banido para a noite - tal como as armas primitivas abandonadas pelos homens adultos, os arcos e flechas, ressurgem no quarto de brinquedos. O sonho é um ressurgimento da vida anímica infantil já suplantadaEsses métodos de funcionamento do aparelho psíquico, que são normalmente suprimidos nas horas de vigília, voltam a tornar-se atuais na psicose e então revelam sua incapacidade de satisfazer nossas necessidades em relação ao mundo exterior.
É claro que as moções de desejo inconscientes tentam tornar-se eficazes também durante o dia, e o fato da transferência, assim como as psicoses, indicam-nos que elas lutam por irromper na consciência através do sistema pré-consciente e por obter o controle do poder de movimento. Assim, a censura entre o Ics. e o Pcs., cuja existência os sonhos nos obrigaram a supor, merece ser reconhecida e respeitada como a guardiã de nossa saúde mental. Contudo, acaso não devemos encarar como um ato de descuido por parte dessa guardiã que ela relaxe suas atividades durante a noite, permita que as moções suprimidas do Ics. se expressem e possibilite à regressão alucinatória voltar a ocorrer? Creio que não, pois muito embora esse guardião crítico repouse - e temos provas de que seus cochilos não são profundos - ele também fecha a porta à motilidade. Sejam quais forem as moções do Ics., normalmente inibido, a entrarem saltitantes em cena, não há por que nos preocuparmos; elas permanecem inofensivas, uma vez que são incapazes de acionar o aparelho motor, o único pelo qual poderiam modificar o mundo externo. O estado de sono garante a segurança da cidadela a ser guardada. A situação é menos inofensiva quando o que acarreta o deslocamento de forças não é o relaxamento noturno do dispêndio de força da censura crítica, mas uma redução patológica dessa força ou uma intensificação patológica dasexcitações inconscientes, enquanto o pré-consciente está ainda catexizado e o portão de acesso à motilidade permanece aberto. Quando isso acontece, o guardião é subjugado, as excitações inconscientes dominam o Pcs. e, a partir daí, obtêm controle sobre nossa fala e nossas ações, ou então forçam a regressão alucinatória e dirigem o curso do aparelho (que não se destinava a seu uso) em virtude da atração exercida pelas percepções sobre a distribuição de nossa energia psíquica. A esse estado de coisas damos o nome de psicose.
Estamos agora no bom caminho para prosseguir na construção da estrutura psicológica, que interrompemos no ponto em que introduzimos os dois sistemas Ics. e Pcs. Mas há razões para continuarmos um pouco em nossa apreciação do desejo como a única força impulsora psíquica para a formação dos sonhos. Aceitamos a idéia de que a razão por que os sonhos são invariavelmente realizações de desejos é que eles são produtos do sistema Ics., cuja atividade não conhece outro objetivo senão a realização de desejos e não tem sob seu comando outras forças senão as moções de desejo. Se insistirmos ainda por mais um momento em nosso direito de fundamentar especulações psicológicas de tal alcance na interpretação dos sonhos, teremos o dever de provar que essas especulações nos habilitaram a inserir os sonhos numa concatenação capaz de abarcar também outras estruturas psíquicas. Se existe um sistema Ics. (ou, para fins de nossa discussão, algo análogo a ele), os sonhos não podem ser sua única manifestação; todo sonho pode ser uma realização de desejo, mas, além dos sonhos, tem de haver outras formas anormais de realização de desejo. E é fato que a teoria que rege todos os sintomas psiconeuróticos culmina numa única proposição, que assevera que também eles devem ser encarados como realizações de desejos inconscientes. Nossa explicação faz do sonho apenas o primeiro membro de uma classe que é de extrema importância para os psiquiatras e cuja compreensão implica a solução da faceta puramente psicológica do problema da psiquiatria.
Os outros membros dessa classe de realizações de desejos - os sintomas histéricos, por exemplo - possuem, contudo, uma característica essencialque não consigo descobrir nos sonhos. Com as investigações que tantas vezes mencionei ao longo desta obra, aprendi que, para promover a formação de um sintoma histérico, é preciso que convirjam ambas as correntes de nossa vida anímica. O sintoma não é simplesmente a expressão de um desejo inconsciente realizado; é preciso que esteja presente também um desejo do pré-consciente realizado pelo mesmo sintoma, de modo que o sintoma tem pelo menos dois determinantes, cada qual surgindo de um dos sistemas envolvidos no conflito. Tal como acontece nos sonhos, não há limite para os outros determinantes que possam estar presentes - para a “sobredeterminação” dos sintomas. O determinante que não brota do Ics., ao que eu saiba, é invariavelmente uma cadeia de pensamentos que reage ao desejo inconsciente - uma autopunição, por exemplo. Assim, posso fazer a afirmação bastante genérica de que o sistema histérico só se desenvolve quando as realizações de dois desejos opostos, cada qual proveniente de um sistema psíquico diferente, conseguem convergir numa única expressão(Vejam-se, a esse respeito, minhas mais recentes formulações sobre a origem dos sintomas histéricos em meu artigo sobre as fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade. [Freud, 1908a].) Os exemplos teriam aqui muito pouca serventia, uma vez que nada senão uma elucidação exaustiva das complicações envolvidas seria convincente. Assim, deixo que minha afirmação se mantenha como tal e cito um exemplo apenas para deixar claro esse ponto, e não para convencer. Numa de minhas pacientes, os vômitos histéricos mostraram ser, por um lado, a realização de uma fantasia inconsciente que datava de sua puberdade - isto é, do desejo de estar continuamente grávida e ter inúmeros filhos, acrescido de outro desejo que surgiu posteriormente: o de tê-los com tantos homens quanto possível. Um poderoso impulso defensivo levantou-se contra esse desejo irrefreado. E como a paciente podia perder suas formas e sua boa aparência em decorrência dos vômitos, assim deixando de ser atraente para quem quer que fosse, o sintoma era aceitável também para a cadeia de pensamentos punitivos e, sendo permitido por ambos os lados, pôde tornar-se realidade. Foi um método de tratar uma realização de desejo idêntico ao adotado pela rainha dos partas com o triúnviro romano Crasso. Acreditando que ele empreendera sua campanha por amor ao ouro, ordenou a rainha que se despejasse ouro fundido em sua garganta depois que ele morreu: “Agora”, disse ela, “tendes o quequeríeis”. Mas tudo o que sabemos até agora sobre os sonhos é que eles expressam a realização de um desejo do inconsciente, é como se o sistema dominante, pré-consciente, aquiescesse nisso depois de insistir num certo número de distorções. Tampouco é possível, em regra geral, encontrar uma seqüência de pensamentos oposta ao desejo onírico e, como sua contrapartida, realizada no sonho. Apenas aqui e ali, nas análises dos sonhos, esbarramos em sinais de criações reativas, como, por exemplo, meus sentimentos afetuosos por meu amigo R. no sonho com meu tio [de barba amarela] (ver em [1]). Mas podemos encontrar em outro lugar o ingrediente que falta do pré-consciente. Enquanto o desejo do Ics. consegue encontrar expressão no sonho, depois de sofrer toda sorte de distorções, o sistema dominante se recolhe num desejo de dormir, realiza esse desejo promovendo as modificações que consegue produzir nas catexias no interior do aparelho psíquico, e persiste nesse desejo por toda a duração do sono.
Esse firme desejo de dormir por parte do pré-consciente exerce um efeito geralmente facilitador na formação dos sonhos. Permitam-me lembrar o sonho do homem que foi levado a inferir, pelo clarão de luz que provinha do quarto contíguo, que o corpo de seu filho talvez estivesse pegando fogo [em [1]]. O pai fez essa inferência no sonho, em vez de se deixar acordar pelo clarão; e sugerimos antes que uma das forças psíquicas responsáveis por esse resultado foi o desejo que prolongou por aquele momento a vida do filho, a quem ele retratou no sonho. É provável que nos escapem outros desejos provenientes do recalcado, já que não pudemos analisar o sonho. Mas podemos presumir que outra força impulsora na produção do sonho foi a necessidade que tinha o pai de dormir; seu sono, tal como a vida do filho, foi prolongado por um momento pelo sonho. “Deixe o sonho prosseguir” - foi essa sua motivação - “ou terei de acordar”. Em todos os outros sonhos, tal como neste, o desejo de dormir oferece apoio ao desejo inconsciente. Em [1] descrevi alguns sonhos que aparentavam abertamente ser sonhos de conveniência. Na realidade, porém, todos os sonhos podem reinvindicar seu direito a essa mesma descrição. A ação do desejo de continuar dormindo pode ser percebida com extrema facilidade nos sonhos de despertar, que modificam os estímulos sensoriais externos de maneira a torná-los compatíveis com a continuação do sono; eles os entretecem no sonho para privá-los de qualquer possibilidade de agirem como lembretes do mundoexterno. Esse mesmo desejo, contudo, deve desempenhar um papel idêntico para permitir a ocorrência de todos os outros sonhos, embora seja apenas de dentro que eles ameaçam arrancar o sujeito de seu sono. Em alguns casos, quando o sonho leva as coisas longe demais, o Pcs. diz à consciência: “Não dê importância! Continue a dormir! Afinal, é apenas um sonho!” [Ver em [1]] Mas isso descreve, em geral, a atitude de nossa atividade anímica dominante para com os sonhos, ainda que ela não se expresse abertamente. Sou levado a concluir que, por toda a duração de nosso estado de sono, sabemos com tanta certeza que estamos sonhando quanto sabemos estar dormindo. Não devemos prestar demasiada atenção ao argumento contrário de que nossa consciência nunca se volta para a segunda dessas certezas, e só se volta para a primeira nas ocasiões especiais em que a censura se sente, por assim dizer, apanhada de surpresa.
Por outro lado, [1] há pessoas que, durante a noite, têm clara ciência de estarem dormindo e sonhando, e que assim parecem possuir a faculdade de dirigir conscientemente seus sonhos. Quando, por exemplo, um desses sonhadores fica insatisfeito com o rumo tomado por um sonho, ele pode interrompê-lo sem acordar e reiniciá-lo em outra direção - tal como um dramaturgo popular, quando pressionado, pode dar a sua peça um final mais feliz. Ou, noutra ocasião, caso seu sonho o tenha levado a uma situação sexualmente excitante, ele pode pensar consigo mesmo: “Não vou continuar a sonhar com isso e me esgotar numa polução; vou retê-la, em vez disso, para a situação real”.
O Marquês d’Hervey de Saint-Denys [1867, 268 e segs.] [1], citado por Vaschide [1911, 139], alegava ter adquirido o poder de acelerar o curso de seus sonhos como lhe aprouvesse e de dar-lhes o rumo que bem entendesse. É como se, em seu caso, o desejo de dormir houvesse dado lugar a outro desejo pré-consciente, a saber, o de observar seus sonhos e deleitar-se com eles. O sono é tão compatível com esse tipo de desejo quanto com uma ressalva mental para acordar, caso uma dada condição seja atendida (por exemplo, no caso de uma mãe que esteja amamentando ou de uma ama-de-leite) [em [1]]. Além disso, é sabido que qualquer pessoa que se interesse pelos sonhos recorda um número consideravelmente maior deles depois de acordar.

Ferenczi (1911), [1] ao discutir algumas outras observações sobre o direcionamento dos sonhos, comenta: “Os sonhos elaboram por todos os ângulos os pensamentos que ocupam no momento a vida anímica; abandonam uma imagem onírica quando ela ameaça o sucesso de uma realização de desejo e experimentam uma nova solução, até finalmente lograrem criar uma realização de desejo que satisfaça às duas instâncias anímicas como uma solução de compromisso.”

 (D) O DESPERTAR PELOS SONHOS - A FUNÇÃO DOS SONHOS - SONHOS DE ANGÚSTIA

Agora que sabemos que, durante toda a noite, o pré-consciente concentra-se no desejo de dormir, estamos em condições de levar nossa compreensão do processo onírico um passo adiante. Mas resumamos primeiro o que aprendemos até agora.
A situação é a seguinte: ou ficaram pendentes da atividade de vigília restos do dia anterior, e não foi possível retirar deles toda a catexia de energia; ou a atividade de vigília no decorrer do dia levou à excitação de um desejo inconsciente; ou ainda esses dois fatos coincidiram. (Já examinamos as diversas possibilidades em relação a isso.) O desejo inconsciente se liga aos restos diurnos e efetua uma transferência para eles: isso pode acontecer no decurso do dia ou só depois de se estabelecer o estado de sono. Desperta então um desejo transferido para o material recente, ou um desejo recente, depois de suprimido, ganha vida nova ao receber um reforço do inconsciente. Este desejo procura ganhar acesso à consciência pela via normal tomada pelos processos de pensamento, através do Pcs. (ao qual, na verdade, pertence em parte). Entretanto, choca-se com a censura, que ainda está operando e a cuja influência então se submete. Nesse ponto, ele adota a distorção, cujo caminho já fora preparado pela transferência do desejo para o material recente. Até aí, ele está em vias de se transformar numa idéia obsessiva, num delírio ou algo parecido - isto é, num pensamento intensificado pela transferência e distorcido em sua expressão pela censura. Seu avanço subseqüente, porém, é detido pelo estado de sono em que se acha o pré-consciente. (Há uma probabilidade de que esse sistema se tenha protegido da invasão diminuindo suas próprias excitações.) O processo onírico, conseqüentemente, entra num caminho regressivo, que lhe é aberto precisamente pela natureza peculiar do estado de sono, e é levado por esse caminho pela atração sobre ele exercida por grupos de lembranças; algumas destas existem apenas sob a forma de catexias visuais, e não como traduções para a terminologia dos sistemas posteriores. [Ver em [1].] No curso de seu trajeto regressivo, o processo onírico adquire o atributo da representabilidade. (Abordarei mais adiante a questão da compressão [em [1]].) Completou agora a segunda parte de sua trajetória em ziguezague. A primeira parte foi progressiva, indo das cenas ou fantasias inconscientes para o pré-consciente;a segunda retrocedeu da fronteira da censura até as percepções. Mas, ao tornar-se perceptivo, o conteúdo do processo onírico encontrou, por assim dizer, um meio de esquivar-se do obstáculo erguido em seu caminho pela censura e pelo estado de sono do Pcs. [Ver em [1].] Logra chamar a atenção para si próprio e ser notado pela consciência.
Ocorre que a consciência, que encaramos como um órgão dos sentidos para a apreensão de qualidades psíquicas, é passível, na vigília, de receber excitações de duas fontes. Em primeiro lugar, pode receber excitações da periferia de todo o aparelho, do sistema perceptivo; e além disso, pode receber excitações de prazer e desprazer, que mostram ser quase a única qualidade psíquica ligada às transposições de energia no interior do aparelho. Todos os outros processos dos sistemas-y, inclusive o Pcs., carecem de qualquer qualidade psíquica e, desse modo, não podem ser objetos da consciência, exceto na medida em que trazem prazer ou desprazer à percepção. Somos assim levados a concluir que essas liberações de prazer e desprazer regulam automaticamente o curso dos processos de catexização. No entanto, para possibilitar desempenhos mais delicadamente ajustados, fez-se depois necessário tornar o curso das representações menos dependente da presença ou da ausência de desprazer. Para esse fim, o sistema Pcs. precisava ter qualidades próprias que pudessem atrair a consciência, e parece altamente provável que as tenha obtido ligando os processos pré-conscientes com o sistema mnêmico dos signos lingüísticos, sistema este não desprovido de qualidade. [Ver [1].] Por intermédio das qualidades desse sistema, a consciência, que fora até então um órgão sensorial apenas para as percepções, tornou-se também um órgão sensorial para parte de nossos processos de pensamento. Assim, existem agora, por assim dizer, duas superfícies sensoriais, uma voltada para a percepção, e a outra, para os processos de pensamento pré-conscientes.
Tenho de presumir que o estado de sono torna a superfície sensorial da consciência voltada para o Pcs. muito mais insuscetível à excitação do que a superfície voltada para os sistemas Pcpt. Além disso, esse abandono do interesse pelos processos de pensamento durante a noite tem uma finalidade: o pensamento tem de deter-se, porque o Pcs. exige dormir. Uma vez, contudo, que um sonho se tenha tornado uma percepção, ele fica em condições de excitar a consciência, por meio das qualidades que agora adquiriu. Essa excitação sensorial passa a desempenhar aquilo que constitui a sua função essencial: dirige parte da energia de catexização disponível no Pcs. para a atenção a ser dada ao que está causando a excitação. [Ver em [1].] Deve-se admitir, portanto, que todo sonho tem um efeito despertador, que põe ematividade parte da força quiescente do Pcs. O sonho é então submetido por essa força à influência que descrevemos como elaboração secundária, com vistas à concatenação e à ininteligibilidade. Em outras palavras, o sonho é tratado por ela tal como qualquer outro conteúdo perceptivo; é recebido pelas mesmas representações antecipatórias, na medida em que sua temática o permita [em [1]]. Quanto a haver uma direção nessa terceira parte do processo onírico, trata-se novamente de uma direção progressiva.
Para evitar mal-entendidos, dizer uma palavra sobre as relações cronológicas desses processos oníricos não deixa de ser oportuno. Uma conjetura muito atraente foi formulada por Goblot [1896, 289 e segs.], sem dúvida sugerida pelo enigma do sonho de Maury com a guilhotina [em [1]]. Ele procura mostrar que o sonho não ocupa mais que o período de transição entre o dormir e o despertar. O processo de despertar leva certo tempo, e durante esse tempo ocorre o sonho. Imaginamos que a imagem onírica final foi tão poderosa que nos compeliu a acordar, quando, a rigor, ela só foi poderosa assim porque, naquele momento, já estávamos a ponto de acordar. “Un rêve c’est un réveil qui commence.”
Já Dugas [1897b] havia assinalado que Goblot teria de desprezar muitos fatos para poder generalizar sua tese. Ocorrem sonhos dos quais não despertamos - por exemplo, alguns em que sonhamos estar sonhando. Com nosso conhecimento do trabalho do sonho, não nos é possível concordar em que ele abranja apenas o período do despertar. Parece provável, ao contrário, que a primeira parte do trabalho do sonho já começa durante o dia, sob o controle do pré-consciente. Sua segunda parte - a modificação imposta pela censura, a atração exercida pelas cenas inconscientes e sua irrupção forçosa na percepção - decerto transcorre ao longo de toda a noite e, nesse sentido, talvez estejamos sempre certos ao expressar a sensação de havermos sonhado a noite inteira, embora não saibamos dizer com quê. [Ver em [1].]
Mas parece-me desnecessário supor que os processos oníricos realmente sigam, até o momento de se tornarem conscientes, a ordem cronológica em que os descrevi: que a primeira coisa a aparecer seja o desejo onírico transferido, seguindo-se então a distorção causada pela censura, depois a mudança regressiva de direção, etc. Fui obrigado a adotar essa ordem em minha descrição, mas o que acontece na realidade é, indubitavelmente, uma exploração simultânea deste e daquele caminho, uma oscilação da excitação ora para cá, ora para lá, até que, por fim, ela se acumula na direção maisoportuna e um determinado agrupamento se torna permanente. Algumas de minhas experiências pessoais levam-me a suspeitar que o trabalho do sonho freqüentemente requer mais do que um dia e uma noite para atingir seu resultado; se assim for, já não teremos porque sentir nenhum espanto ante a extraordinária engenhosidade exibida na formação do sonho. Em minha opinião, até a exigência de que o sonho se torne inteligível como evento perceptivo pode efetivar-se antes que o sonho atraia para si a consciência. Daí por diante, contudo, o ritmo é acelerado, pois nesse ponto o sonho é tratado da mesma maneira que qualquer outra coisa percebida. É como um fogo de artifício, que leva horas para ser preparado, mas se consome num momento.
O processo onírico adquiriu agora, através do trabalho do sonho, intensidade suficiente para atrair para si a consciência e despertar o pré-consciente, quaisquer que sejam a duração e a profundidade do sono; ou então, sua intensidade é insuficiente para conseguir isso e ele tem de permanecer em estado de alerta, até que, pouco antes do despertar, a atenção se torna mais móvel e vem a seu encontro. A maioria dos sonhos parece operar com intensidades psíquicas comparativamente baixas, pois quase todos esperam até o momento de despertar. Mas isso também explica o fato de que, quando somos repentinamente despertados de um sono profundo, geralmente percebemos alguma coisa sonhada. Em tais casos, tal quando acordamos espontaneamente, a primeira coisa que vemos é o conteúdo perceptivo construído pelo trabalho do sonho e, logo a seguir, o conteúdo perceptivo que nos é oferecido de fora.
Mas o maior interesse teórico prende-se aos sonhos que têm o poder de nos despertar em meio ao sono. Tendo em mente a conveniência que em tudo o mais é a regra geral, podemos perguntar por que um sonho, isto é, um desejo inconsciente, recebe o poder de interferir no sono, isto é, na realização do desejo pré-consciente. A explicação reside, sem dúvida, em relações de energia de que não temos conhecimento. Se dispuséssemos desse conhecimento, provavelmente descobriríamos que deixar o sonho seguir seu curso e despender nele certa quantidade de atenção mais ou menos desinteressada é uma economia de energia, comparada a manter o inconsciente tão rigidamente controlado à noite quanto de dia. [Ver em [1].] A experiência nos mostra que sonhar é compatível com dormir, mesmo que o sonho interrompa o sono diversas vezes durante a noite. Acorda-se por um instante e logo se volta a adormecer. É como espantar uma mosca durante o sono: um caso de despertar ad hoc. Quando se adormece novamente, elimina-se a interrupção. Como mostram exemplos tão familiares quanto o sono das mãesque estão amamentando ou das amas-de-leite [em [1]], a realização do desejo de dormir é inteiramente compatível com a manutenção de certo dispêndio de atenção em algum sentido específico.
Surge neste ponto uma objeção baseada num melhor conhecimento dos processos inconscientes. Eu próprio afirmei que os desejos inconscientes são sempre ativos. Entretanto, a despeito disso, eles não parecem ser suficientemente fortes para se tornarem perceptíveis durante o dia. Se, no entanto, enquanto prevalece o estado de sono, o desejo inconsciente mostra-se intenso o bastante para formar um sonho e com ele despertar o pré-consciente, por que faltaria essa intensidade depois de se ter tomado conhecimento do sonho? Não deveria ele continuar a repetir-se perpetuamente, tal como a incômoda mosca continua a retornar depois de ter sido espantada? Que direito temos nós de asseverar que os sonhos se livram da perturbação do sono?
É perfeitamente verídico que os desejos inconscientes permanecem sempre ativos. Representam caminhos que sempre podem ser percorridos, toda vez que uma quantidade de excitação se serve deles. [Ver em [1].] Na verdade, um aspecto destacado dos processos inconscientes é o fato de eles serem indestrutíveis. No inconsciente, nada pode ser encerrado, nada é passado ou está esquecido. Isso é o que nos impressiona mais vivamente ao estudarmos as neuroses, em especial a histeria. A via inconsciente de pensamentos que conduz à descarga no ataque histérico volta imediatamente a tornar-se transitável quando se acumula excitação suficiente. Uma humilhação experimentada trinta anos antes atua exatamente como uma nova humilhação ao longo desses trinta anos, assim que obtém acesso às fontes inconscientes de afeto. Tão logo se roça em sua lembrança, ela ressurge para a vida e se mostra mais uma vez catexizada com uma excitação que encontra descarga motora num ataque. É precisamente nesse ponto que a psicoterapia tem de intervir. Sua tarefa consiste em possibilitar aos processos inconscientes serem finalmente abordados e esquecidos. É que o esmaecimento das lembranças e o debilitamento afetivo de impressões que já não são recentes, que nos inclinamos a encarar como óbvios e a explicar como um efeito primário do tempo sobre os traços mnêmicos da psique, são na realidade modificações secundárias, promovidas somente através de um trabalho árduo. É o pré-consciente que realiza esse trabalho, e a psicoterapia não pode seguir outro caminho senão o de colocar o Ics. sob o domínio do Pcs.

Há, portanto, dois resultados possíveis para cada processo excitatório inconsciente. Ou bem ele fica por sua própria conta, caso em que acaba irrompendo em algum ponto e, nessa ocasião isolada, encontra descarga para sua excitação na motilidade, ou cai sob a influência do pré-consciente e sua excitação, em vez de ser descarregada, fica ligada pelo pré-consciente. Essa segunda alternativa é a que ocorre no processo do sonho. [Ver em. [1].] A catexia do Pcs., que encontra o sonho a meio caminho depois de ele se tornar perceptivo, tendo sido guiada para ele pela excitação da consciência, liga a excitação inconsciente do sonho e a torna impotente para agir como perturbação. Se é verdade que o sonhador desperta por um instante, mesmo assim ele de fato espantou a mosca que ameaçava perturbar seu sono. Começa a ficar claro para nós que realmente é mais conveniente e econômico deixar que o desejo inconsciente siga seu curso, manter-lhe aberto o caminho da regressão, para que ele possa formar um sonho, depois ligar o sonho e desembaraçar-se dele com um pequeno dispêndio de trabalho do pré-consciente, do que continuar a manter o inconsciente na rédea curta durante todo o período de sono. [Ver em [1].] De fato, era de se esperar que o sonho, embora possa ter sido originalmente um processo sem finalidade útil, granjeasse alguma função para si na interação das forças anímicas. E agora podemos ver qual é essa função. O sonhar tomou a si a tarefa de recolocar sob o controle do pré-consciente a excitação do Ics. que ficou livre; ao fazê-lo, ele descarrega a excitação do Ics., serve-lhe de válvula de escape e, ao mesmo tempo, preserva o sono do pré-consciente, em troca de um pequeno dispêndio de atividade de vigília. Assim, como todas as outras formações psíquicas da série da qual é membro, ele constitui uma formação de compromisso: serve a ambos os sistemas, uma vez que realiza os dois desejos enquanto forem compatíveis entre si. Se retornarmos à “teoria da excreção” dos sonhos formulada por Robert [1886], que expliquei em [1], veremos num relance que, em essência, devemos aceitar sua descrição da função dos sonhos, embora divergindo dele nas premissas e em sua visão do próprio processo onírico. [Ver em [1]] [2]

A ressalva “enquanto os dois desejos forem compatíveis entre si” implica uma alusão aos casos possíveis em que a função de sonhar termina em fracasso. O processo onírico tem permissão para começar como a realização de um desejo inconsciente, mas, quando essa tentativa de realização de desejo fere o pré-consciente com tanta violência que ele não consegue continuar dormindo, o sonho rompe o compromisso e deixa de cumprir a segunda parte de sua tarefa. Nesse caso, ele é imediatamente interrompido e substituído por um estado de completa vigília. Mas também aqui não é realmente culpa do sonho que ele apareça agora no papel de perturbador do sono, e não em seu papel normal de guardião do sono; e não é necessário que isso nos predisponha contra o fato de ele ter uma finalidade útil. Não é este o único exemplo de um dispositivo normalmente útil no organismo tornar-se inútil e perturbador tão logo as condições que lhe dão origem são ligeiramente modificadas; e a perturbação serve ao menos ao novo propósito de chamar atenção para a modificação e de acionar o mecanismo regulador do organismo contra ela. O que tenho em mente, é claro, são os sonhos de angústia, e para que não se pense que estou fugindo dessa prova contrária à teoria da realização de desejo sempre que deparo com ela, darei ao menos alguns indícios de sua explicação.
Já não há nada de contraditório para nós na idéia de que um processo psíquico gerador de angústia possa, ainda assim, constituir a realização de um desejo. Sabemos que isso pode ser explicado pelo fato de o desejo pertencer a um sistema, Ics., ao passo que foi repudiado e suprimido pelo outro sistema, o Pcs. Mesmo quando a saúde psíquica é perfeita, a subjugação do Ics. pelo Pcs. não é completa: a medida da supressão indica o grau de nossa normalidade psíquica. Os sintomas neuróticos mostram que os dois sistemas se encontram em conflito entre si; são o produto de um compromisso que põe termo ao conflito por algum tempo. De um lado, dão ao Ics. um escoadouro para a descarga de sua excitação e lhe fornecem uma espécie de porta de escape, enquanto, de outro, possibilitam ao Pcs. controlar o Ics. até certo ponto. É instrutivo considerar, por exemplo, a importância de uma fobia histérica ou de uma agorafobia. Suponhamos que um paciente neurótico seja incapaz de atravessar a rua sozinho, condição que de pleno direito encaramos como um “sintoma”. Se eliminarmos esse sintoma, obrigando-o a praticar a ação de que se acredita incapaz, a conseqüência será um ataque de angústia; e a rigor, a ocorrência de um ataque de angústia na rua é, muitas vezes, a causa precipitante do desencadeamento de uma agorafobia. Vemos, portanto, que o sintoma foi formado para evitar uma irrupção da angústia; a fobia se ergue como uma fortificação de fronteira contra a angústia.

Nossa discussão não pode ser levada adiante sem examinarmos o papel desempenhado pelos afetos nesses processos; neste contexto, porém, só podemos fazê-lo de modo imperfeito. Assim, presumamos que a supressão do Ics. seja necessária, acima de tudo, porque, se o curso das representações no Ics. ficasse por sua própria conta, geraria um afeto que foi originalmente de natureza prazerosa, mas tornou-se desprazeroso depois de ocorrido o processo de “recalcamento”. O propósito, bem como o resultado da supressão, é impedir essa liberação de desprazer. A supressão se estende ao conteúdo de representações do Ics., já que a liberação de desprazer pode começar a partir desse conteúdo. Isso pressupõe uma suposição bastante específica quanto à natureza da geração do afeto. Ela é encarada como uma função motora ou secretória, a chave de cuja inervação reside nas representações do Ics. Graças à dominação exercida pelo Pcs., essas representações são, por assim dizer, sufocadas e inibidas de enviar impulsos que gerariam afeto. Desse modo, quando cessa a catexia do Pcs., o perigo é que as excitações inconscientes liberem um tipo de afeto que (em decorrência do recalcamento já ocorrido) só pode ser vivenciado como desprazer, como angústia.
Esse perigo se concretiza quando se permite que o processo onírico siga seu curso. As condições que determinam sua realização são: que tenham ocorrido recalcamentos e que as moções de desejo suprimidas possam adquirir força suficiente. Esses determinantes, portanto, estão inteiramente fora da estrutura psicológica da formação dos sonhos. Não fosse o fato de nosso tema estar ligado à questão da geração de angústia pelo fator isolado da liberação do Ics. durante o sono, eu poderia omitir qualquer discussão dos sonhos de angústia e evitar a necessidade de entrar, nestas páginas, em todos os aspectos obscuros que o cercam.
A teoria dos sonhos de angústia, como já declarei repetidamente, faz parte da psicologia das neuroses. Nada mais temos a ver com ela, uma vez indicado o seu ponto de contato com o tema do processo onírico. Há apenas mais uma coisa que posso fazer. Uma vez que afirmei que a angústia neurótica provém de fontes sexuais, posso submeter à análise alguns sonhos de angústia, a fim de revelar o material sexual contido em seus pensamentos oníricos.

Tenho boas razões para deixar de lado, nesta discussão, os copiosos exemplos fornecidos por meus pacientes neuróticos, e para preferir citar alguns sonhos de angústia de pessoas jovens.
Já se vão décadas desde que eu próprio tive um verdadeiro sonho de angústia, mas recordo-me de um que tive aos sete ou oito anos e submeti à interpretação cerca de trinta anos depois. Foi um sonho muito vívido, e nele vi minha querida mãe, com uma expressão peculiarmente serena e adormecida no rosto, sendo carregada para dentro do quarto por duas (ou três) pessoas com bicos de pássaros e depositada sobre o leito. Acordei aos prantos, gritando, e interrompi o sono de meus pais. As figuras estranhamente vestidas e insolitamente altas, com bicos de pássaro, provinham das ilustrações da Bíblia de Philippson. Imagino que fossem deuses com cabeça de falcão de um antigo relevo de uma tumba egípcia. Além disso, a análise trouxe-me à lembrança um menino mal-educado, filho de uma concierge, que costumava brincar conosco no gramado em frente da casa quando éramos crianças e que me inclino a pensar que se chamava Philipp. Parece-me que foi desse menino que ouvi pela primeira vez o termo vulgar que designa a relação sexual, em cujo lugar as pessoas cultas utilizam sempre uma palavra latina, “copular”, e que foi indicado de maneira bastante clara pela escolha das cabeças de falsão. Devo ter adivinhado o significado sexual da palavra pelo rosto de meu jovem instrutor, que estava bem familiarizado com os fatos da vida. A expressão do rosto de minha mãe no sonho foi copiada da visão que eu tivera de meu avô poucos dias antes de sua morte, quando ressonava em estado de coma. A interpretação feita no sonho pela “elaboração secundária” [em [1]], portanto, deve ter sido que minha mãe estava morrendo; o relevo da tumba combinava com isso. Despertei com uma angústia que não cessou enquanto não acordei meus pais. Lembro-me de ter-me acalmado de repente, ao ver o rosto de minha mãe, como se precisasse ser assegurado de que ela não estava morta. Mas essa interpretação “secundária”do sonho já se produziu sob a influência da angústia desenvolvida. Não é que eu estivesse angustiado por ter sonhado que minha mãe estava morrendo, mas interpretei o sonho nesse sentido em minha revisão pré-consciente porque já estava sob a influência da angústia. Levando em conta o recalcamento, pode-se rastrear a origem da angústia até um anseio obscuro e evidentemente sexual que encontrou expressão apropriada no conteúdo visual do sonho.
Um homem de vinte e sete anos, que estivera gravemente enfermo por um ano, relatou que entre seus onze e treze anos sonhara repetidamente (com uma grande angústia concomitante) que um homem com uma machadinha o estava perseguindo; ele tentava correr, mas parecia estar paralisado e não conseguia sair do lugar. Este é um bom exemplo de um tipo muito comum de sonho de angústia, que nunca se suspeitaria ter um cunho sexual. Na análise, o sonhador esbarrou primeiro numa história (de época posterior à do sonho) que lhe fora contada pelo tio, de como certa noite ele fora atacado na rua por um indivíduo de aparência suspeita; o próprio sonhador concluiu dessa associação que poderia ter ouvido falar de algum episódio semelhante na época do sonho. Com respeito à machadinha, lembrou-se que, por volta dessa época, machucara certa vez a mão com uma machadinha quando cortava lenha. Passou então imediatamente a suas relações com o irmão mais novo. Costumava maltratar e derrubar esse irmão, e se lembrou particularmente de uma ocasião em que lhe dera um pontapé na cabeça com a bota, arrancando sangue, e de como sua mãe dissera: “Tenho medo que um dia ele o mate!” Enquanto parecia ainda ocupado com o tema da violência, ocorreu-lhe subitamente uma recordação de seus nove anos. Seus pais haviam chegado a casa tarde e tinham ido para a cama enquanto ele fingia estar dormindo; pouco depois, ele ouvira sons ofegantes e outros ruídos que lhe pareceram estranhos, e pudera também vislumbrar a posição dos pais na cama. Outros pensamentos mostraram que ele havia traçado uma analogia entre essa relação de seus pais e sua própria relação com o irmão mais novo. Classificara o que havia acontecido entre seus pais sob o conceito de violência e luta e encontrara provas em favor dessa concepção no fato de ter freqüentemente observado sangue na cama da mãe.
A experiência cotidiana confirma, diria eu, que a relação sexual entre adultos se afigura a qualquer criança que a observe como algo estranho e que lhe desperta angústia. Expliquei essa angústia argumentando que o que está em pauta é uma excitação sexual com que a compreensão das crianças é incapaz de lidar, e a qual elas sem dúvida também repudiam por seus pais estarem envolvidos; assim, ela se transforma em angústia. Num período aindamais primitivo da vida, as excitações sexuais dirigidas ao membro de sexo oposto no casal parental ainda não depararam com o recalcamento e, como vimos, expressam-se livremente. [Ver em [1]]
Não hesitaria em dar a mesma explicação para as crises de terror noturno acompanhadas de alucinações (pavor nocturnus), que são tão freqüentes nas crianças. Também nesse caso, só pode tratar-se de impulsos sexuais não compreendidos e que foram repudiados. A investigação provavelmente mostraria uma periodicidade na ocorrência dos ataques, uma vez que o aumento da libido sexual pode ser ocasionado não apenas por impressões excitantes acidentais, mas também por ondas sucessivas de processos espontâneos de desenvolvimento.
Falta-me material suficiente baseado na observação para me permitir confirmar esta explicação.
Aos pediatras, por outro lado, parece faltar a única linha de abordagem capaz de tornar inteligível toda essa classe de fenômenos, seja no aspecto somático, seja no aspecto psíquico. Não resisto a citar um divertido exemplo de como os antolhos da mitologia médica podem fazer com que um observador deixe, por pouco, de chegar à compreensão desses casos. Meu exemplo é extraído de uma tese sobre o pavor nocturnus, de autoria de Debacker (1881,66):
Um menino de treze anos, de saúde delicada, começou a mostrar-se apreensivo e sonhador. Seu sono tornou-se perturbado e era interrompido quase que semanalmente por graves ataques de angústia, acompanhados por alucinações. Ele guardava sempre uma recordação muito clara desses sonhos. Dizia que o diabo lhe gritava: “Agora te pegamos, agora te pegamos!” Havia então um cheiro de piche e enxofre e sua pele era queimada por chamas. Ele despertava do sonho aterrorizado e, a princípio, não conseguia gritar. Quando recuperava a voz, podia-se ouvi-lo dizer claramente: “Não, não, eu não; eu não fiz nada!”, ou “Por favor, não! Não vou fazer de novo!”, ou, às vezes: “Albert nunca fez isso!” Depois, recusava-se a tirar a roupa, “porque as chamas só o pegavam quando estava despido”. Enquanto ainda estava tendo esses sonhos com o diabo, que eram uma ameaça a sua saúde, foi enviado para o campo. Lá, recuperou-se no prazo de dezoito meses, e certa vez, quando já tinha quinze anos, confessou: “Je n’osais pas l’avouer, mais j’éprouvais continuellement des picotements et des surexcitations aus partiesà la fin, cela m’énervaittant que plusieurs fois j’ai pensé me jeter par la fenêtre du dortoir.”

Há realmente muito pouca dificuldade em inferir: (1) que o menino se havia masturbado quando era mais novo, que provavelmente o negara e que fora ameaçado com severos castigos por seu mau hábito (cf. sua admissão: “Je ne le ferais plus”, e sua negativa: “Albert n’a jamais fait ça”); (2) que, com a chegada da puberdade, a tentação de se masturbar havia ressurgido, com as cócegas em seus órgãos genitais, mas (3) que irrompera nele uma luta pelo recalcamento, a qual suprimira sua libido e a transformara em angústia e que esta havia tomado o lugar dos castigos com que outrora o haviam ameaçado.
E agora, vejamos as inferências de nosso autor (ibid. 69): “As seguintes conclusões podem ser extraídas desta observação:
“(1) A influência da puberdade num menino de saúde delicada pode levar a um estado de grande fraqueza e resultar num grau considerável de anemia cerebral.
“(2) Essa anemia cerebral produz alterações do caráter, alucinações demonomaníacas e estados muito violentos de angústia noturna (e talvez também diurna).
“(3) A demonomania e as auto-recriminações do menino remontam às influências de sua educação religiosa, que o afetaram quando criança.
“(4) Todos os sintomas desaparecem no decurso de uma visita relativamente prolongada ao campo, em decorrência do exercício físico e da recuperação das forças com a passagem da puberdade.
“(5) Talvez se possa atribuir uma influência predisponente sobre a gênese do estado cerebral do menino à hereditariedade e a uma antiga infecção sifilítica do seu pai.”
E aqui temos a conclusão final: “Nous avons fait entrer cette observation dans le cadre des délires apyrétiques d’inanition, car c’est à l’ischémie cérébrale que nous ratiachons cet état particulier.”

(E) OS PROCESSOS PRIMÁRIO E SECUNDÁRIO - RECALCAMENTO

Ao me arriscar na tentativa de penetrar mais a fundo na psicologia dos processos oníricos, propus a mim mesmo uma árdua tarefa, da qual meus poderes expositivos mal chegam a ficar à altura. Os elementos que são de fato simultâneos nesse todo complexo só podem ser representados sucessivamente em minha descrição deles, ao mesmo tempo que, ao expor cada argumento, tenho de evitar precipitar as razões em que ele se fundamenta: dominar essas dificuldades está além de minhas forças. Em tudo isso, estou pagando o tributo por não ter podido, em minha descrição da psicologia do sonho, seguir o desenvolvimento histórico de minhas concepções. Embora minha linha de abordagem do tema dos sonhos tenha sido determinada por meu trabalho anterior sobre a psicologia das neuroses, eu não tencionava servir-me desta como base de referência na presente obra. Não obstante, sou constantemente levado a fazê-lo, em vez de prosseguir, como desejaria, na direção contrária, utilizando os sonhos como meio de abordagem da psicologia das neuroses. Estou ciente de todos os problemas em que meus leitores ficam assim envolvidos, mas não vejo meio de evitá-los. [Ver em [1].]
Em minha insatisfação com esse estado de coisas, alegra-me fazer uma pequena pausa em outra consideração que parece valorizar mais meus esforços. Descobri-me frente a um tema sobre o qual, como ficou demonstrado em meu primeiro capítulo, as opiniões das autoridades se caracterizavam pelas mais agudas contradições. Minha abordagem do problema dos sonhos encontrou espaço para a maioria dessas opiniões contraditórias. Só achei necessário negar categoricamente duas delas - a visão de que o sonho é um processo sem sentido [em [1]] e a visão de que é um processo somático [em [1]]. Salvo por isso, pude encontrar justificativa para todas essas opiniões mutuamente contraditórias num ou noutro ponto de minha complexa tese e mostrar que elas haviam deparado com alguma parcela de verdade.
A tese de que os sonhos dão prosseguimento às ocupações e interesses da vida de vigília [em [1]] foi inteiramente confirmada pela descoberta dos pensamentos oníricos ocultos. Estes só dizem respeito ao que nos parece importante e tem grande interesse para nós. Os sonhos nunca seocupam de pormenores insignificantes. Mas também encontramos motivo para aceitar a visão oposta de que os sonhos apanham os desejos irrelevantes que restam do dia anterior [em [1]] e de que só conseguem apoderar-se de um grande interesse diurno depois de ele se ter subtraído, até certo ponto, da atividade de vigília [em [1]]. Verificamos que isso se aplica ao conteúdo do sonho, que expressa os pensamentos oníricos numa forma alterada pela distorção. Por motivos ligados ao mecanismo de associação, como vimos, o processo onírico acha mais fácil obter controle do material de representações recente ou indiferente, que ainda não foi requisitado pela atividade de pensamento da vigília; e, por motivos de censura, ele transfere a intensidade psíquica daquilo que é importante, mas objetável, para aquilo que é indiferente.
O fato de os sonhos serem hipermnésicos [em [1]] e terem acesso ao material proveniente da infância [em [1]] tornou-se um dos pilares de nossa doutrina. Nossa teoria dos sonhos encara os desejos originários do infantil como a força propulsora indispensável para a formação dos sonhos.
Naturalmente, não nos ocorreu lançar nenhuma dúvida sobre a importância experimentalmente demonstrada dos estímulos sensoriais externos durante o sono [em [1]], mas mostramos que esse material tem com o desejo onírico a mesma relação que os restos de pensamento deixados pela atividade diurna. Tampouco vimos qualquer razão para contestar a tese de que os sonhos interpretam os estímulos sensoriais objetivos tal como o fazem as ilusões [em [1]], mas descobrimos a razão que motiva essa interpretação, razão que não fora especificada por outros autores. A interpretação é feita de maneira a que o objeto percebido não interrompa o sono e seja utilizável para fins de realização de desejo. Quanto aos estados subjetivos de excitação nos órgãos sensoriais durante o sono, cuja ocorrência parece ter sido provada por Trumbull Ladd [1892; ver em [1]], é verdade que não os aceitamos como uma fonte específica dos sonhos, mas pudemos explicá-los como resultantes da revivificação regressiva das lembranças que atuam por trás do sonho.
As sensações orgânicas internas, que foram comumente tomadas como um ponto cardeal na explicação do sonho [em [1]] preservaram um lugar, embora mais modesto, em nossa teoria. Tais sensações - as sensações de cair, por exemplo, ou de flutuar ou estar inibido - fornecem um material acessível a qualquer momento e do qual o trabalho do sonho se vale, sempre que necessário, para expressar os pensamentos oníricos.

A visão de que o processo onírico é rápido ou instantâneo [em [1]] é, em nossa opinião, correta no que se refere à percepção, pela consciência, do conteúdo onírico pré-formado; parece provável que as partes precedentes do processo onírico sigam um curso lento e oscilante. Pudemos contribuir para a solução do enigma dos sonhos que contêm uma grande quantidade de material comprimida num lapso curtíssimo de tempo; sugerimos que, em tais casos, trata-se de uma apoderação de estruturas prontas já existentes na psique.
O fato de os sonhos serem distorcidos e mutilados pela memória [em [1]] é aceito por nós, mas, em nossa opinião, não constitui obstáculo, pois não passa da parte final e manifesta de uma atividade distorcedora que atua desde o próprio início da formação do sonho.
No que tange ao debate acirrado e aparentemente irreconciliável sobre se a vida anímica dorme à noite [em [1]] ou tem tanto domínio de todas as suas faculdades quanto durante o dia [em [1]], descobrimos que ambos os lados têm razão, mas nenhum está completamente certo. Encontramos nos pensamentos oníricos provas de uma função intelectual altamente complexa, que opera com quase todos os recursos do aparelho anímico. Não obstante, não se pode contestar que esses pensamentos oníricos surgiram durante o dia, e é imperativo presumir que existe na vida anímica um estado de sono. Portanto, mesmo a teoria do sono parcial [em [1]] mostrou seu valor, embora tenhamos descoberto que o que caracteriza o estado de sono não é a desintegração dos vínculos anímicos, mas o fato de que o sistema psíquico que detém o comando durante o dia se concentra no desejo de dormir. O fator do retraimento do mundo externo [em [1]] preserva sua importância em nosso esquema; ele ajuda, embora não como determinante exclusivo, a possibilitar o caráter regressivo da representação nos sonhos. A renúncia ao direcionamento voluntário do fluxo de representações [em [1]] é indiscutível, mas isso não priva a vida anímica de todo e qualquer objetivo, pois vimos como, depois de se terem abandonado as representações-meta voluntárias, as involuntárias assumem o comando. Não fizemos simplesmente aceitar o caráter frouxo das ligações associativas dos sonhos [em [1]], mas mostramos que ele se estende muito além do que se havia suspeitado. Descobrimos, contudo, que essas ligações frouxas são meros substitutos obrigatórios de outras que são válidas e significativas. É bem verdade que descrevemos os sonhos como absurdos, mas os exemplos nos ensinam quão sensato pode ser o sonho, mesmo quando parece absurdo.

Não temos divergências de opinião quanto às funções a serem atribuídas aos sonhos. A tese de que os sonhos agem como uma válvula de segurança da vida anímica [em [1]] e de que, nas palavras de Robert [1886, 10 e segs.], toda sorte de coisas prejudiciais se tornam inofensivas por serem representadas no sonho, não apenas coincide exatamente com nossa teoria da dupla realização de desejos promovida pelo sonho, como também a maneira como é enunciada é mais inteligível para nós que para o próprio Robert. A visão de que a alma tem plena liberdade de ação em seu funcionamento nos sonhos [em [1]] é representada, em nossa teoria, pelo fato de a atividade pré-consciente permitir que os sonhos sigam seu curso. Expressões como “retorno da vida anímica, nos sonhos, a um ponto de vista embrionário”, ou as palavras empregadas por Havelock Ellis [1899, 721] para descrever os sonhos - “um mundo arcaico de vastas emoções e pensamentos imperfeitos” [em [1]] -, parecem-nos antecipações oportunas de nossas próprias assertivas de que participam da formação dos sonhos modos primitivos de atividade que são suprimidos durante o dia. Pudemos aceitar inteiramente, como se fosse nosso, o que escreveu Sully [1893, 362]: “Nossos sonhos são um meio de conservar essas personalidades sucessivas [anteriores]. Quando adormecidos, retornamos às antigas maneiras de ver e sentir as coisas, aos impulsos e atividades que nos dominaram num passado distante” [ver em [1]]. [1] Para nós, não menos que para Delage [1891], aquilo que foi “suprimido” [em [1]] tornou-se “a força propulsora dos sonhos”.
Reconhecemos plenamente a importância do papel atribuído por Scherner [1861] à “fantasia onírica”, bem como as interpretações desse autor [em [1]], mas fomos obrigados a situá-las, por assim dizer, numa posição diferente dentro do problema. Não é que os sonhos criem a fantasia, mas, antes, a atividade inconsciente da fantasia tem grande participação na formação dos pensamentos oníricos. Devemos a Scherner a indicação da fonte dos pensamentos oníricos, mas quase tudo o que ele atribui ao trabalho do sonho é realmente atribuível à atividade do inconsciente durante o dia, que é tanto a instigadora dos sonhos quanto dos sintomas neuróticos. Fomos obrigados a distinguir o “trabalho do sonho” como algo inteiramente diverso e com uma conotação muito mais estreita.
Por fim, de modo algum abandonamos a relação existente entre os sonhos e os distúrbios psíquicos [em [1]], mas estabelecemo-la mais firmemente em novas bases.

Desse modo, pudemos encontrar em nossa estrutura lugar para as mais variadas e contraditórias descobertas de autores anteriores, graças ao ineditismo de nossa teoria dos sonhos, que as combina, por assim dizer, numa unidade superior. Demos outro emprego a algumas dessas descobertas, mas poucas foram as que rejeitamos por completo. Não obstante, nosso edifício ainda não está terminado. À parte as muitas questões desconcertantes em que nos envolvemos ao abrir caminho pelas áreas obscuras da psicologia, parecemos atormentados por uma nova contradição. Por um lado, supusemos que os pensamentos oníricos surgem através de uma atividade mental inteiramente normal, mas, por outro, descobrimos diversos processos de pensamento bastante anormais entre os pensamentos oníricos, que se estendem ao conteúdo do sonho e que depois repetimos no curso de nossa interpretação do sonho. Tudo o que descrevemos como “trabalho do sonho” parece afastar-se imensamente daquilo que reconhecemos como processos racionais de pensamento, a tal ponto que as mais severas críticas emitidas pelos autores anteriores sobre o nível ínfimo de funcionamento psíquico nos sonhos devem parecer inteiramente justificadas.
Talvez só encontremos esclarecimento e assistência nesta dificuldade conduzindo nossas investigações ainda mais à frente. E começarei a escolher, para um exame mais aprofundado, uma das conjunturas que podem levar à formação do sonho.
O sonho, como descobrimos, toma o lugar de diversos pensamentos que derivam de nossa vida cotidiana e formam uma seqüência completamente lógica. Não podemos duvidar, portanto, de que esses pensamentos se originem de nossa vida mental normal. Todos os atributos que tanto valorizamos em nossas cadeias de pensamento e que as caracterizam como realizações complexas de ordem superior são reencontradas nos pensamentos oníricos. Não há, porém, necessidade de presumir que essa atividade de pensamento seja executada durante o sono, possibilidade esta que confundiria gravemente o que até aqui constituiu nosso quadro aceito do estado psíquico de sono. Ao contrário, é bem possível que esses pensamentos tenham-se originado no dia anterior, passado despercebidos por nossa consciência desde o início, e talvez já se tenham completado ao iniciar-se o sono. O máximo que podemos concluir daí é que isso prova que as mais complexas realizações do pensamento são possíveis sem a assistência da consciência - um fato de que não poderíamos deixar de nos inteirar, de qualquer modo, através de toda psicanálise de um paciente que sofra de histeria ou de idéias obsessivas. Esses pensamentos oníricos certamente não são, em si, inadmissíveis à consciência; é possível quetenha havido diversas razões para que não se tornassem conscientes para nós durante o dia. O tornar-se consciente está ligado à aplicação de uma certa função psíquica [em [1]], a da atenção, função esta que, segundo parece, só se acha disponível numa quantidade específica, a qual pode ter sido desviada da cadeia de pensamentos em questão para alguma outra finalidade. Há também outra maneira pela qual essas cadeias de pensamento podem ser apartadas da consciência. O curso de nossas reflexões conscientes nos mostra que seguimos um determinado caminho em nosso emprego da atenção. Quando, ao seguirmos esse caminho, esbarramos numa representação que não resiste à crítica, nós o interrompemos: abandonamos a catexia da atenção. Ora, parece que a cadeia de pensamentos assim iniciada e abandonada pode continuar a se desenrolar sem que a atenção torne a voltar-se para ela, a menos que, num ou noutro ponto, ela atinja um grau de intensidade particularmente elevado, que exija atenção. Assim, quando uma cadeia de pensamento é inicialmente rejeitada (conscientemente, talvez) pelo julgamento de que é errada ou inútil para o fim intelectual imediato em vista, o resultado pode ser que essa cadeia de pensamentos prossiga, inobservada pela consciência, até o início do sono.
Resumindo: chamamos uma cadeia de pensamentos como essa de “pré-consciente”; encaramo-la como completamente racional e acreditamos que possa ter sido simplesmente negligenciada ou interrompida e suprimida. Acrescentemos uma exposição clara de como visualizamos a ocorrência de uma cadeia de representações. Cremos que, partindo de uma representação-meta, uma determinada quantidade de excitação, que denominamos “energia catexial”, desloca-se pelas vias associativas selecionadas por aquela representação-meta. A cadeia de pensamentos “desprezada” é aquela que não recebeu essa catexia; a cadeia de pensamentos “suprimida” ou “repudiada” é aquela da qual essa catexia foi retirada. Em ambos os casos, elas ficam entregues a suas próprias excitações. Em certas condições, a cadeia de pensamentos catexizada com uma meta [zielbesetzt] é capaz de atrair para si a atenção da consciência e, nesse caso, por intermédio da consciência, recebe uma “hipercatexia”. Seremos obrigados, dentro em pouco, a explicar nossa visão da natureza e função da consciência. [Ver em [1]]

Uma cadeia de pensamentos assim deslanchada no pré-consciente pode cessar espontaneamente ou persistir. Visualizamos o primeiro desses resultados como implicando que a energia ligada à cadeia de pensamentos se difunde por todas as vias associativas que partem dela; essa energia coloca toda a rede de pensamentos num estado de excitação que dura algum tempo e depois decai, à medida que a excitação em busca de descarga se vai transformando numa catexia aquiescente. Quando sobrevém esse primeiro resultado, o processo não tem maior importância no que concerne à formação do sonho. Dentro de nosso pré-consciente, porém, espreitam outras representações-meta derivadas de fontes situadas em nosso inconsciente e de desejos que estão sempre em estado de alerta. Eles podem assumir o controle da excitação ligada ao grupo de pensamentos deixado à sua própria sorte, estabelecer uma ligação entre ele e um desejo inconsciente e “transferir-lhe” a energia que pertence a este último. Daí por diante, a cadeia de pensamentos desprezada ou suprimida fica em condições de persistir, embora o reforço que recebeu não lhe confira nenhum direito de acesso à consciência. Podemos exprimir isso dizendo que a cadeia de pensamentos até então pré-consciente foi agora “arrastada para o inconsciente”.
Outras conjunturas podem conduzir à formação do sonho. É possível que a cadeia de pensamentos pré-consciente tenha estado ligada ao desejo inconsciente desde o início e, por essa razão, tenha sido repudiada pela catexia-meta dominante; ou então um desejo inconsciente pode ser ativado por outras razões (por causas somáticas, talvez) e procurar transferir-se para os restos psíquicos não catexizados pelo Pcs. sem que estes façam qualquer movimento para ir a seu encontro. Mas todos os três casos têm o mesmo resultado final: passa a existir no pré-consciente uma cadeia de pensamentos desprovida de catexia pré-consciente, mas que recebeu uma catexia do desejo inconsciente.
A partir daí, a cadeia de pensamentos passa por uma série de transformações que já não podemos reconhecer como processos psíquicos normais e que levam a um resultado que nos desnorteia - uma formação psicopatológica. Vamos enumerar e classificar esses processos:
(1) As intensidades das representações individuais tornam-se passíveis de descarga en bloc e passam de uma representação para outra, de modo que se formam certas representações dotadas de grande intensidade. [Cf. pág. 540.] E, uma vez que esse processo se repete várias vezes, a intensidade de toda uma cadeia de pensamentos pode acabar por concentrar-se num único elemento de representação. Temos aí o fato da “compressão” ou “condensação”, que se tornou conhecida no trabalho do sonho. É ela a principalresponsável pela impressão desconcertante que os sonhos causam em nós, pois não conhecemos nada que lhes seja análogo na vida anímica normal e acessível à consciência. Também na vida anímica normal encontramos representações que, como pontos nodais ou resultados finais de cadeias inteiras de pensamento, possuem um alto grau de significação psíquica; mas essa significação não se expressa em nenhum aspecto sensorialmente óbvio para a percepção interna; sua representação perceptiva não é mais intensa, em nenhum aspecto, por causa de sua significação psíquica. No processo de condensação, por outro lado, toda interligação psíquica se transforma numa intensificação de seu conteúdo de representações. É o mesmo que acontece quando, ao preparar um livro para publicação, faço com que alguma palavra de importância especial para a compreensão do texto seja impressa em tipo espacejado ou em negrito, ou quando, ao falar, pronuncio essa mesma palavra em voz mais alta, lentamente e com ênfase especial. A primeira dessas duas analogias nos faz lembrar de imediato um exemplo fornecido pelo próprio trabalho do sonho: a palavra “trimetilamina” no sonho da injeção de Irma [em [1]]. Os historiadores da arte chamaram-nos a atenção para o fato de que as esculturas históricas mais antigas obedecem a um princípio semelhante: expressam a classe das pessoas representadas através do tamanho. O rei é representado em tamanho duas ou três vezes maior que seus súditos ou seus inimigos derrotados. As esculturas da época romana utilizavam meios mais sutis para produzir o mesmo resultado. A figura do Imperador era colocada no centro, de pé, e modelada com cuidado especial, enquanto seus inimigos jaziam prostrados a seus pés; mas ela já não era um gigante entre anões. As reverências com que os subalternos ainda hoje saúdam seus superiores são um eco desse mesmo antigo princípio de representação.
A direção em que avançam as condensações no sonho é determinada, de um lado, pelas relações pré-conscientes racionais entre os pensamentos oníricos e, de outro, pela atração exercida pelas lembranças visuais do inconsciente. O efeito do trabalho de condensação é a obtenção das intensidades necessárias para forçar a irrupção nos sistemas perceptivos.
(2) Graças, também, à liberdade com que as intensidades são transferíveis, formam-se “representações intermediárias” semelhantes a compromissos, sob a influência da condensação. (Cf. os numerosos exemplos que forneci [em [1], por exemplo].) Isso é, novamente, algo inaudito nas cadeias normais de representações, onde a ênfase principal recai sobre a seleção e a retenção do elemento de representação “correto”. Por outro lado, com notável freqüência ocorrem formações mistas e compromissos quandotentamos expressar os pensamentos pré-conscientes na fala. Eles são então encarados como exemplos de “lapsos de linguagem”.
(3) As representações que transferem umas às outras suas intensidades mantêm entre si as mais frouxas relações. São vinculadas por um tipo de associação que é desdenhado por nosso pensamento normal e relegado ao uso nos chistes. Em particular, encontramos associações baseadas em homônimos e parônimos, que são tratadas como tendo o mesmo valor que as demais.
(4) Os pensamentos mutuamente contraditórios não fazem qualquer tentativa de anular uns aos outros, mas subsistem lado a lado. Combinam-se freqüentemente para formar condensações, como se não houvesse nenhuma contradição entre eles, ou chegam a formações de compromisso que nossos pensamentos conscientes nunca tolerariam, mas que são amiúde admitidos em nossas ações.
Estes são alguns dos mais notáveis dentre os processos anormais a que os pensamentos oníricos, antes formados em bases racionais, são submetidos no decurso do trabalho do sonho. Veremos que a principal característica desses processos é que toda a ênfase recai em tornar móvel e passível de descarga a energia catexizante; o conteúdo e o significado intrínseco dos elementos psíquicos a que se ligam as catexias são tratados como coisas de importância secundária. Poder-se-ia supor que a condensação e a formação de compromisso só se dão para facilitar a regressão, isto é, quando se trata de transformar pensamentos em imagens. Todavia, a análise - e, mais ainda, a síntese - dos sonhos que não envolvem essa regressão a imagens, como, por exemplo, o sonho do “Autodidasker - conversa com o Professor N.” [em [1]], exibe os mesmos processos de deslocamento e condensação que os outros.
Portanto, somos levados a concluir que dois tipos fundamentalmente diferentes de processos psíquicos participam da formação dos sonhos. Um deles produz pensamentos oníricos perfeitamente racionais, com a mesma validade que o pensamento normal; já o outro trata esses pensamentos de um modo que é excepcionalmente desconcertante e irracional. Já no Capítulo VI distinguimos esse segundo processo psíquico como sendo o trabalho do sonho propriamente dito. Que esclarecimentos podemos agora oferecer sobre sua origem?
Não nos seria possível responder a essa pergunta se não houvéssemos feito algum progresso no estudo da psicologia das neuroses, especialmente da histeria. Dela depreendemos que os mesmos processos psíquicos irracionais, e outros que não especificamos, regem a produção dos sintomas histéricos. Na histeria, além disso, deparamos com uma série de pensamentos perfeitamente racionais, com o mesmo valor de nossos pensamentos conscientes; a princípio, no entanto, nada sabemos sobre sua existência nessa forma e só podemos reconstruí-los posteriormente. Quando eles se impõem à nossa atenção em determinado ponto, descobrimos, pela análise do sintoma produzido, que esses pensamentos normais foram submetidos a um tratamento anormal: foram transformados no sintoma por meio da condensação e da formação de compromisso, através de associações superficiais e do descaso pelas contradições, e também, possivelmente, pela via da regressão. Em vista da completa identidade entre os aspectos característicos do trabalho do sonho e os da atividade psíquica que desemboca nos sintomas psiconeuróticos, sentimo-nos autorizados a transpor para os sonhos as conclusões a que fomos levados pela histeria.
Por conseguinte, tomamos da teoria da histeria a seguinte tese: uma cadeia de pensamento normal só é submetida a esse tratamento psíquico anormal que vimos descrevendo quando um desejo inconsciente, derivado da infância e em estado de recalcamento, se transfere para ela. Segundo essa tese, construímos nossa teoria dos sonhos sobre o pressuposto de que o desejo onírico que fornece a força impulsora provém invariavelmente do inconsciente; esse pressuposto, como eu mesmo estou pronto a admitir, não pode ser genericamente comprovado, embora tampouco se possa refutá-lo. Entretanto, para explicar o que se pretende dizer com “recalcamento”, termo com que já jogamos tantas vezes, é necessário avançar mais uma etapa na construção de nosso arcabouço psicológico.
Já exploramos a ficção de um aparelho psíquico primitivo [em [1]] cujas atividades são reguladas pelo esforço de evitar um acúmulo de excitação e de se manter, tanto quanto possível, sem excitação. Por isso ele foi construído segundo o esquema de um aparelho reflexo. A motilidade, que é em primeiro lugar um meio de promover alterações internas no corpo, está à sua disposição como via de descarga. Discutimos depois as conseqüências psíquicas de uma “vivência de satisfação”, e a isso já pudemos acrescentar uma segunda hipótese, no sentido de que o acúmulo de excitação (acarretado de diversas maneiras de que não precisamos ocupar-nos) é vivido como desprazer, e coloca o aparelho em ação com vistas a repetir a vivência de satisfação, que envolveu um decréscimo da excitação e foi sentida como prazer. A esse tipo de corrente no interior do aparelho, partindo do desprazer e apontando para o prazer, demos o nome de “desejo”; afirmamos que só odesejo é capaz de pôr o aparelho em movimento e que o curso da excitação dentro dele é automaticamente regulado pelas sensações de prazer e desprazer. O primeiro desejar parece ter consistido numa catexização alucinatória da lembrança da satisfação. Essas alucinações, contudo, não podendo ser mantidas até o esgotamento, mostraram-se insuficientes para promover a cessação da necessidade, ou, por conseguinte, o prazer ligado à satisfação.
Tornou-se necessária uma segunda atividade - ou, em nossa terminologia, a atividade de um segundo sistema - que não permitisse à catexia mnêmica avançar até a percepção e desde aí ligar as forças psíquicas, mas que desviasse a excitação surgida da necessidade por uma via indireta que, em última análise, através do movimento voluntário, alterasse o mundo externo de tal maneira que se tornasse possível chegar a uma percepção real do objeto de satisfação. Já esboçamos nosso quadro esquemático do aparelho psíquico até esse ponto; os dois sistemas são o germe daquilo que, no aparelho plenamente desenvolvido, descrevemos como o Ics. e o Pcs.
Para que se possa empregar a motilidade para efetuar no mundo externo alterações que sejam efetivas, é necessário acumular um grande número de experiências nos sistemas mnêmicos e uma multiplicidade de registros permanentes das associações evocadas nesse material mnêmico por diferentes representações-meta. [Ver em [1].] Podemos agora levar nossas hipóteses um passo à frente. A atividade desse segundo sistema, que explora constantemente o terreno e alterna o envio de catexias com a retirada delas, precisa, por um lado, dispor livremente da totalidade do material mnêmico, mas, por outro, seria um gasto desnecessário de energia se ela enviasse grandes quantidades de catexia pelas diversas vias de pensamento e assim as fizesse escoar-se sem nenhuma finalidade útil e diminuísse a quantidade disponível para alterar o mundo externo. Dessa maneira, postulo que, em prol da eficiência, o segundo sistema logra conservar a maior parte de suas catexias de energia em estado de quiescência e empregar apenas uma pequena parte do deslocamento. A mecânica desses processos é-me inteiramente desconhecida; quem desejasse levar estas idéias a sério teria de procurar analogias físicas para elas e descobrir um meio de visualizar os movimentos que acompanham a excitação neuronal. Insisto tão-somente na idéia de que a atividade do primeiro sistema-y está orientada para garantir a livre descarga as quantidades de excitação, enquanto o segundo sistema, por meio das catexias que dele emanam, consegue inibir essa descarga e transformar a catexia numa catexia quiescente, sem dúvida com uma elevação simultânea de seu nível. Presumo, portanto, que sob o domínio do segundo sistema a descarga de excitação seja regida por condições mecânicas muito diferentes das que vigoram sob o domínio do primeiro sistema. Depois que o segundo sistema conclui sua atividade exploratória de pensamento, ele suspende a inibição e o represamento das excitações e lhes permite serem descarregadas no movimento.
Algumas reflexões interessantes decorrem disso, se considerarmos as relações existentes entre a inibição da descarga exercida pelo segundo sistema e a regulação efetuada pelo princípio do desprazer. Examinemos a antítese da vivência primária de satisfação, ou seja, a vivência de pavor frente a algo externo. Suponhamos que incida no aparelho primitivo um estímulo perceptivo que seja fonte de uma excitação dolorosa. Sobrevêm então manifestações motoras descoordenadas, até que uma delas faz com que o aparelho se retraia da percepção e, ao mesmo tempo, da dor. Quando a percepção reaparece, o movimento é imediatamente repetido (um movimento de fuga, talvez), até que a percepção torne a desaparecer. Nesse caso, não resta nenhuma inclinação a recatexizar a percepção da fonte de dor, alucinatoriamente ou de qualquer outra maneira. Pelo contrário, haverá no aparelho primitivo uma inclinação a abandonar imediatamente a imagem mnêmica aflitiva, caso algo venha a revivê-la, pela razão mesma de que, se sua excitação transbordasse até a percepção, provocaria desprazer (ou, mais precisamente, começaria a provocá-lo). A evitação da lembrança que não passa de uma repetição da fuga anterior frente à percepção, é também facilitada pelo fato de que a lembrança, diversamente da percepção, não possui qualidade suficiente para excitar a consciência e assim atrair para si uma nova catexia. Essa evitação de lembrança de qualquer coisa que um dia foi aflitiva, feita sem esforço e com regularidade pelo processo psíquico, fornece-nos o protótipo e o primeiro exemplo do recalcamento psíquico. É comumente sabido que boa parcela dessa evitação do aflitivo - dessa política do avestruz - ainda é visível na vida anímica normal dos adultos.

Em conseqüência do princípio do desprazer, portanto, o primeiro sistema-y é totalmente incapaz de introduzir qualquer coisa desagradável no contexto de seus pensamentos. Ele não pode fazer nada senão desejar. Se as coisas permanecessem nesse ponto, a atividade de pensamento do segundo sistema seria obstruída, já que ela requer livre acesso a todas as lembranças depositadas pela experiência. Apresentam-se então duas possibilidades: ou a atividade do segundo sistema consegue libertar-se inteiramente do princípio do desprazer e segue seu caminho sem se importar com o desprazer das lembranças, ou encontra um método de catexizar as lembranças desprazerosas que lhe permita evitar a liberação do desprazer. Podemos descartar a primeira destas possibilidades, pois o princípio do desprazer regula claramente o curso da excitação tanto no segundo sistema quanto no primeiro. Conseqüentemente, resta-nos a possibilidade de que o segundo sistema catexize as lembranças de tal maneira que haja uma inibição da descarga a partir delas, incluindo, portanto, uma inibição da descarga (comparável à de uma inervação motora) em direção ao desenvolvimento do desprazer. Assim, fomos levados, partindo de duas direções, à hipótese de que a catexia pelo segundo sistema implica uma inibição simultânea da descarga de excitação: fomos levados a ela por considerar o princípio do desprazer e também [como assinalado no penúltimo parágrafo] pelo princípio do dispêndio mínimo de inervação. Retenhamos isto firmemente, pois é chave de toda a teoria do recalque: o segundo sistema só pode catexizar uma representação se estiver em condições de inibir o desenvolvimento do desprazer que provenha dela. Qualquer coisa que pudesse fugir a essa inibição seria inacessível tanto ao segundo sistema quanto ao primeiro, pois seria prontamente abandonada em obediência ao princípio do desprazer. A inibição do desprazer, contudo, não precisa ser completa: o início dele tem de ser permitido, já que é isso que informa ao segundo sistema a natureza da lembrança em questão e sua possível inadequação ao fim visado pelo processo de pensamento.
Proponho descrever o processo psíquico admitido exclusivamente pelo primeiro sistema como “processo primário”, e o processo que resulta da inibição imposta pelo segundo sistema, como “processo secundário”.

Há mais uma razão pela qual, como posso demonstrar, o segundo sistema é obrigado a corrigir o processo primário. O processo primário esforça-se por promover uma descarga da excitação, a fim de que, com a ajuda da quantidade de excitação assim acumulada, possa estabelecer uma “identidade perceptiva” [com a vivência de satisfação (ver em [1]-[2]]. O processo secundário, contudo, abandonou essa intenção e adotou outra em seu lugar - o estabelecimento de uma “identidade de pensamento” [com aquela vivência]. O pensar, como um todo, não passa de uma via indireta que vai da lembrança de uma satisfação (lembrança esta adotada como uma representação-meta) até uma catexia idêntica da mesma lembrança, que se espera atingir mais uma vez por intermédio das experiências motoras. O pensar tem que se interessar pelas vias de ligação entre as representações sem se deixar extraviar pelas intensidades dessas representações. Mas é óbvio que as condensações de representações e as formações intermediárias e de compromisso devem obstruir a consecução da identidade buscada. Uma vez que substituem uma representação por outra, elas provocam um desvio do caminho que partiria da primeira representação. Tais processos, portanto, são escrupulosamente evitados no pensamento secundário. É fácil perceber também que o princípio do desprazer, que em outros aspectos fornece ao processo de pensamento seus mais importantes indicadores, suscita-lhe dificuldades no estabelecimento de uma “identidade de pensamento”. Por conseguinte, o pensar tem de visar a se libertar cada vez mais da regulação exclusiva pelo princípio do desprazer e a restringir o desenvolvimento do afeto na atividade do pensamento ao mínimo exigido para que ele atue como sinal. O alcance desse maior apuro no funcionamento é visado por meio de uma nova hipercatexia promovida pela consciência. [Ver adiante, em [1]]Como bem sabemos, contudo, esse objetivo raramente é atingido por completo, mesmo na vida anímica normal, e nosso pensar está sempre exposto a um falseamento por interferência do princípio do desprazer.
Não é esse, porém, o hiato na eficácia funcional de nosso aparelho anímico que possibilita aos pensamentos, que se apresentam como produtos da atividade de pensamento secundária, ficarem sujeitos ao processo psíquico primário - pois essa é a fórmula com que agora podemos descrever a atividade que conduz aos sonhos e aos sintomas histéricos. A ineficiência provém da convergência de dois fatores derivados de nossa história evolutiva. Um desses fatores é inteiramente imputável ao aparelho anímico e tem influência decisiva na relação entre os dois sistemas, enquanto o outro se faz sentir em grau variável e introduz na vida anímica forças pulsionais de origem orgânica. Ambos se originam na infância e constituem um precipitado das modificações sofridas por nosso organismo anímico e somático desde a infância.
Quando descrevi como “primário” um dos processos psíquicos que ocorrem no aparelho anímico, o que tinha em mente não eram apenas considerações sobre a importância relativa e a eficiência; pretendi também escolher um nome que desse uma indicação de sua prioridade cronológica. É verdade que, até onde sabemos, não existe nenhum aparelho psíquico que possua apenas um processo primário e, nessa medida, tal aparelho é uma ficção teórica. Mas pelo menos isto é um fato: os processos primários acham-se presentes no aparelho anímico desde o princípio, ao passo que somente no decorrer da vida é que os processos secundários se desdobram e vêm inibir e sobrepor-se aos primários; é possível até que sua completa supremacia só seja atingida no apogeu da vida. Em conseqüência do aparecimento tardio dos processos secundários, o âmago de nosso ser, que consiste em moções de desejo inconscientes, permanece inacessível à compreensão e à inibição pelo pré-consciente; o papel desempenhado por este restringe-se para sempre a direcionar pelas vias mais convenientes as moções de desejo vindas do inconsciente. Esses desejos inconscientes exercem uma força compulsiva sobre todas as tendências anímicas posteriores, uma força com que essas tendências são obrigadas a aquiescer, ou que talvez possam esforçar-se por desviar e dirigir para objetivos mais elevados. Outro resultado do aparecimento tardio do processo secundário é que uma ampla esfera do material mnêmico fica inacessível à catexia pré-consciente.
Entre essas moções de desejo provenientes da infância, que não podem ser destruídas nem inibidas, há algumas cuja realização seria uma contradiçãodas representações-meta do pensamento secundário. A realização desses desejos não mais geraria um afeto de prazer, mas sim de desprazer; e é precisamente essa transformação do afeto que constitui a essência daquilo a que chamamos “recalcamento”. O problema do recalcamento está na questão de como e devido a que forças impulsoras ocorre essa transformação; mas esse é um problema em que nos basta tocar de passagem aqui. É suficiente estabelecermos com clareza que tal transformação realmente ocorre no curso do desenvolvimento - basta lembrarmos como o nojo surge na infância, depois de ter estado ausente a princípio - e que está relacionada com a atividade do sistema secundário. As lembranças com base nas quais o desejo inconsciente provoca a liberação do afeto nunca foram acessíveis ao Pcs. e, por conseguinte, a liberação do afeto vinculado a essas lembranças também não pode ser inibida. E justamente por causa dessa geração de afeto que tais representações são agora inacessíveis até por intermédio dos pensamentos pré-conscientes para os quais transferiram sua força de desejo. Pelo contrário, o princípio do desprazer assume o controle e faz com que o Pcs. se afaste dos pensamentos de transferência. Eles ficam entregues a si próprios - “recalcados” - e é assim que a presença de um reservatório de lembranças infantis subtraídas desde o princípio ao Pcs. torna-se o sine qua non do recalcamento.
Nos casos mais favoráveis, a geração do desprazer cessa com a retirada da catexia dos pensamentos de transferência situados no Pcs., e esse desenlace significa que a intervenção do princípio do desprazer serviu a um fim útil. Mas a questão é outra quando o desejo inconsciente recalcado recebe um reforço orgânico, que ele passa para seus pensamentos de transferência; dessa maneira, pode colocá-los em condições de fazer uma tentativa de irromper com sua excitação, mesmo que tenham perdido sua catexia do Pcs. Segue-se então uma luta defensiva - porque o Pcs., por sua vez, reforça sua oposição aos pensamentos recalcados (isto é, produz uma “contracatexia”) - e, a partir daí, os pensamentos de transferência, que são veículos do desejo inconsciente, irrompem em algum tipo de compromisso obtido pela formação de um sintoma. Entretanto, a partir do momento em que os pensamentos recalcados são intensamente catexizados pela moção de desejo inconscientee, por outro lado, abandonados pela catexia pré-consciente, eles ficam sujeitos ao processo psíquico primário e seu único objetivo é a descarga motora, ou, se o caminho estiver aberto, a revivificação alucinatória da identidade perceptiva desejada. Já constatamos empiricamente que os processos irracionais que descrevemos só se dão com os pensamentos que se encontram sob recalcamento. Agora podemos ver um pouco mais longe em toda essa situação. Os processos irracionais que ocorrem no aparelho psíquico são os processos primários. Eles aparecem sempre que as representações são abandonadas pela catexia pré-consciente, deixadas por sua própria conta, e podem ser carregadas com a energia não inibida do inconsciente, que luta por encontrar um escoadouro. Algumas outras observações apóiam a concepção de que esses processos, que são descritos como irracionais, não são, na realidade, falseamentos de processos normais - erros intelectuais - mas sim modos de atividade do aparelho psíquico que foram libertados de uma inibição. Assim, vemos que a transição da excitação pré-consciente para a motilidade é regida pelos mesmos processos, e que a vinculação das representações pré-conscientes com as palavras pode facilmente exibir os mesmos deslocamentos e confusões, que são então atribuídos à desatenção. Finalmente, a comprovação do aumento de atividade que se torna necessário quando esses modos primários de funcionamento são inibidos pode ser encontrada no fato de produzirmos um efeito cômico, isto é, um excesso de energia que tem de ser descarregado no riso, se permitirmos que esses modos de pensamento irrompam na consciência.
A teoria das psiconeuroses afirma como fato indiscutível e invariável que somente as moções de desejo sexuais procedentes da infância, que sofreram recalcamento (isto é, uma transformação do afeto) durante o período de desenvolvimento infantil, são passíveis de ser revividas em períodos posteriores do desenvolvimento (seja como resultado da constituição sexual do sujeito, que deriva de uma bissexualidade inicial, seja como resultado de influências desfavoráveis que atuem no curso de sua vida sexual) e, desse modo, estão aptas a suprir a força impulsora para a formação de toda sorte de sintomas psiconeuróticos. Apenas mediante a referência a essas forçassexuais é que podemos cobrir as brechas que ainda se evidenciam na teoria do recalcamento. Deixarei em aberto a questão de esses fatores sexuais e infantis serem igualmente exigidos na teoria dos sonhos; deixarei tal teoria incompleta neste ponto, uma vez que já foi um passo além do que se pode demonstrar ao presumir que os desejos oníricos provêm invariavelmente do inconsciente. Tampouco proponho investigar mais a fundo a natureza da distinção entre a interação das forças psíquicas na formação dos sonhos e na dos sintomas histéricos; ainda não dispomos de um conhecimento suficientemente preciso de um dos dois termos da comparação.
Mas há outro ponto a que dou importância, e devo confessar que foi exclusivamente por causa dele que me embrenhei aqui em todas essas discussões dos dois sistemas psíquicos e de seus modos de atividade e de recalcamento. Não se trata agora de saber se formei uma opinião aproximadamente correta dos fatores psicológicos em que estamos interessados, ou se, como é bem possível em assuntos tão difíceis, o quadro que forneço deles é distorcido e incompleto. Por mais que se possam fazer alterações em nossainterpretação da censura psíquica e das elaborações racionais e anormais do conteúdo do sonho, continua a ser verdade que tais processos atuam na formação dos sonhos e mostram a mais estreita analogia, em seus elementos essenciais, com os processos observáveis na formação dos sintomas histéricos. O sonho, porém, não é um fenômeno patológico; não pressupõe nenhuma perturbação do equilíbrio psíquico e não deixa como seqüela nenhuma perda de eficiência. Talvez se faça a sugestão de que nenhuma conclusão sobre os sonhos das pessoas normais pode ser extraída de meus sonhos ou dos de meus pacientes, mas essa, penso eu, é uma objeção que se pode desprezar em segurança. Portanto, se podemos inferir dos fenômenos suas forças impulsoras, temos de reconhecer que o mecanismo psíquico empregado pelas neuroses não é criado pelo impacto de uma perturbação patológica sobre a vida anímica, mas já está presente na estrutura normal do aparelho anímico. Os dois sistemas psíquicos, a censura na passagem entre um e outro, a inibição e a superposição de uma atividade pela outra, as relações de ambas com a consciência - ou quaisquer que sejam as interpretações mais corretas dos fatos observados a tomar seu lugar - tudo isso faz parte da estrutura normal de nosso instrumento anímico, e os sonhos nos mostram um dos caminhos que levam à compreensão de sua estrutura. Se nos restringirmos ao mínimo de novos conhecimentos já estabelecido com certeza, ainda assim poderemos dizer sobre os sonhos: eles provaram que o suprimido continua a existir tanto nas pessoas normais quanto nas anormais e permanece capaz de funcionamento psíquico. Os próprios sonhos figuram entre as manifestações desse material suprimido; segundo a teoria, isso acontece em todos os casos, e pode ser empiricamente observado pelo menos num grande número deles, precisamente nos casos que exibem com mais clareza as notáveis peculiaridades da vida onírica. Na vida de vigília, o material suprimido da psique é impedido de se expressar e é isolado da percepção interna, graças ao fato de se eliminarem as contradições nele presentes - um dos lados é abandonado em favor do outro -; durante a noite, porém, sob a influência de um impulso à formação de compromissos, esse material suprimido encontra meios e modos de irromper na consciência.

Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo.

A interpretação dos sonhos é a via real para o conhecimento das atividades da vida anímica.
Pela análise dos sonhos podemos dar um passo à frente em nosso entendimento da composição desse que é o mais maravilhoso e mais misterioso de todos os instrumentos. Apenas um pequeno passo, sem dúvida, mas já é um começo. E esse começo nos permitirá levar sua análise mais adiante, com base em outras estruturas que devem ser chamadas de patológicas. É que as enfermidades - ao menos as que são corretamente denominadas de “funcionais” - não pressupõem a desintegração do aparelho ou a produção de novas divisões em seu interior. Elas devem ser explicadas em termos dinâmicos, pelo fortalecimento e enfraquecimento dos diversos componentes da interação de forças, da qual tantos efeitos ficam ocultos enquanto as funções permanecem normais. Espero poder mostrar em outro texto como a composição do aparelho a partir de duas instâncias faz com que também a função normal possa se dar com maior refinamento do que seria possível com apenas uma delas.

(F) O INCONSCIENTE E A CONSCIÊNCIA - REALIDADE

Numa consideração mais detida, percebe-se que aquilo que o debate psicológico das seções precedentes nos leva a presumir não é a existência de dois sistemas próximos da extremidade motora do aparelho, mas a existência de dois tipos de processos de excitação ou modos de sua descarga. Para nós, dá no mesmo, pois temos de estar sempre preparados para abandonar nosso arcabouço conceptual se nos sentirmos em condição de substituí-lo por algo que se aproxime mais de perto da realidade desconhecida. Portanto, tentemos corrigir algumas concepções que poderiam levar a mal-entendidos enquanto víamos os dois sistemas, no sentido mais literal e grosseiro, como duas localizações no aparelho anímico - concepções que deixaram vestígios nas expressões “recalcar” e “irromper” [ou “penetrar”, “durchdringen”]. Desse modo, podemos falar num pensamento inconsciente que procura transmitir-se para o pré-consciente, de maneira a poder então penetrar na consciência. O que temos em mente aqui não é a formação de um segundo pensamento situado num novo lugar, como uma transcrição que continuasse a existir junto com o original; e a noção de irromper na consciência deve manter-se cuidadosamente livre de qualquer idéia de uma mudança de localização. Do mesmo modo, podemos falar num pensamento pré-consciente que é recalcado ou desalojado e então acomodado pelo inconsciente. Essas imagens, derivadas de um conjunto de representações relacionadas com a disputa por um pedaço de terra, podem tentar-nos a supor como literalmente verdadeiro que um agrupamento psíquico situado numa dada localização é encerrado e substituído por um novo agrupamento em outro lugar. Substituamos essas metáforas por algo que parece corresponder melhor ao verdadeiro estado de coisas, e digamos, em vez disso, que uma catexia de energia é ligada a um determinado agrupamento psíquico ou retirada dele, de modo que a estrutura em questão cai sob a influência de uma dada instância ou é subtraída dela. O que fazemos aqui, mais uma vez, é substituir um modo tópico de representar as coisas por um modo dinâmico. O que consideramos móvel não é a própria estrutura psíquica, mas sua inervação.

Não obstante, considero conveniente e justificável continuar a fazer uso da imagem figurada dos dois sistemas. Podemos evitar qualquer possível abuso desse método de figuração lembrando que as representações, os pensamentos e as estruturas psíquicas em geral nunca devem ser encarados como localizados em elementos orgânicos do sistema nervoso, mas antes, por assim dizer, entre eles, onde as resistências e facilitações [Bahnungen] fornecem os correlatos correspondentes. Tudo o que pode ser objeto de nossa percepção interna é virtual, tal como a imagem produzida num telescópio pela passagem dos raios luminosos. Mas temos justificativas para presumir a existência dos sistemas (que de modo algum são entidades psíquicas e nunca podem ser acessíveis a nossa percepção psíquica), semelhante à das lentes do telescópio, que projetam a imagem. E, a continuarmos com esta analogia, podemos comparar a censura entre dois sistemas com a refração que ocorre quando o raio de luz passa para um novo meio.
Até agora, vimos fazendo psicologia por nossa própria conta. Já é tempo de considerarmos os pontos de vista teóricos que dominam a psicologia atual e examinarmos sua relação com nossas hipóteses. O problema do inconsciente na psicologia é, nas vigorosas palavras de Lipps (1897), menos um problema psicológico do que o problema da psicologia. Enquanto a psicologia lidou com esse problema através de uma explicação verbal no sentido de que “psíquico” significava “consciente”, e de que falar em “processos psíquicos inconscientes” era de um contra-senso palpável, qualquer avaliação psicológica das observações feitas pelos médicos sobre os estados psíquicos anormais estava fora de cogitação. Médico e filósofo só podem unir-se quando ambos reconhecerem que a expressão “processos psíquicos inconscientes” é “a expressão apropriada e justificada de um fato solidamente estabelecido”. Só resta ao médico encolher os ombros quando lhe asseguram que “a consciência é uma característica indispensável do psíquico”, e talvez, se ainda sentir respeito suficiente pelos enunciados dos filósofos, ele possa presumir que eles não estavam tratando da mesma coisa ou trabalhando na mesma ciência. É que até mesmo uma única observação criteriosa da vida anímica de um neurótico, ou uma única análise de um sonho, terá de deixá-lo com a inabalável convicção de que os processos de pensamento mais complexos e mais racionais, aos quais decerto não se pode negar o nome de processos psíquicos, podem ocorrer sem excitar a consciência do sujeito. É verdade que o médico não pode saber desses processos inconscientes até eles produzirem na consciência algum efeito que possa ser comunicado ou observado. Mas esse efeito consciente pode exibir um caráter psíquico inteiramente diverso do caráter do processo inconsciente, de modo que não há como a percepção interna encarar um deles como substituto do outro. O médico deve sentir-se livre para avançar, por inferência, desde o efeito consciente até o processo psíquico inconsciente. Assim, ele se inteira de que o efeito consciente é apenas um resultado psíquico remoto do processo inconsciente, e de que este não se tornou consciente como tal; além disso, constata que este já estava presente e atuante, mesmo sem trair de nenhum modo sua existência para a consciência.
É essencial abandonar a supervalorização da propriedade do estar consciente para que se torne possível formar uma opinião correta da origem do psíquico. Nas palavras de Lipps [1897, 146 e segs.], deve-se pressupor que o inconsciente é a base geral da vida psíquica. O inconsciente é a esfera mais ampla, que inclui em si a esfera menor do consciente. Tudo o que é consciente tem um estágio preliminar inconsciente, ao passo que aquilo que é inconsciente pode permanecer nesse estágio e, não obstante, reclamar que lhe seja atribuído o valor pleno de um processo psíquico. O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica; em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo, e é tão incompletamente apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos sensoriais.
Agora que a velha antítese entre vida consciente e vida onírica foi reduzida a suas exatas proporções pelo estabelecimento da realidade psíquica inconsciente, uma série de problemas oníricos com que os autores anteriores se preocuparam profundamente perdeu sua importância. Assim, algumas dasatividades cuja boa execução nos sonhos despertava assombro já não devem hoje ser atribuídas aos sonhos, mas sim ao pensamento inconsciente, que é tão ativo durante o dia quanto à noite. Se, como disse Scherner [1861, 134 e seg.], os sonhos parecem empenhar-se em fazer representações simbólicas do corpo [em [1]], sabemos agora que essas representações são o produto de certas fantasias inconscientes (derivadas, provavelmente, de moções sexuais), que encontram expressão não apenas nos sonhos mas também nas fobias histéricas e outros sintomas. Se o sonho dá prosseguimento às atividades diurnas e as conclui, chegando até a trazer à luz idéias novas e valiosas, tudo o que precisamos fazer é despi-lo do disfarce onírico, que é o produto do trabalho do sonho e a marca do auxílio prestado por obscuras forças procedentes das profundezas da alma (cf. o diabo no sonho de Tartini com a sonata); essa realização intelectual se deve às mesmas forças anímicas que produzem todos os resultados semelhantes durante o dia. É provável que também nos inclinemos muito a superestimar o caráter consciente da produção intelectual e artística. As comunicações que nos foram fornecidas por alguns dos homens mais altamente produtivos, como Goethe e Helmholtz, mostram, antes, que o que há de essencial e novo em suas criações lhes veio sem premeditação e como um todo quase pronto. Não há nada de estranho que, em outros casos em que se fez necessária uma concentração de todas as faculdades intelectuais, a atividade consciente também tenha contribuído com sua parcela. Mas é privilégio muito abusado a atividade consciente, sempre que tem alguma participação, ocultar de nós todas as demais atividades.
Mal valeria a pena tratarmos a importância histórica dos sonhos como um tópico separado. Talvez um sonho tenha impelido algum líder a se aventurar numa empreitada audaciosa cujo êxito modificou o curso da História. Mas isso só levanta um novo problema se o sonho for encarado como uma força estranha, em contraste com as outras forças mais familiares da alma; tal problema não persiste quando o sonho é reconhecido como uma forma de expressão de moções que se encontram sob a pressão da resistência durante o dia, mas que puderam, durante a noite, achar reforço em fontes de excitação situadas nas camadas profundas.O respeito conferido aos sonhos na Antigüidade, entretanto, baseia-se num discernimento psicológico correto e é a homenagem prestada às forças incontroladas e indestrutíveis do espírito humano, ao poder “demoníaco” que produz o desejo onírico e que encontramos em ação em nosso inconsciente.
Não é sem intenção que falo em “nosso” inconsciente, pois o que assim descrevo não é a mesma coisa que o inconsciente dos filósofos ou mesmo o inconsciente de Lipps. Neles, esse termo é usado simplesmente para indicar um contraste com o consciente: a tese que eles contestam com tanto ardor e defendem com tanta energia é a tese de que, à parte os processos conscientes, há também processos psíquicos inconscientes. Lipps leva as coisas mais adiante, ao afirmar que a totalidade do psíquico existe inconscientemente e que parte dele existe também conscientemente. Mas não foi para estabelecer esta tese que invocamos os fenômenos dos sonhos e da formação dos sintomas histéricos; a simples observação da vida normal de vigília bastaria para provar isso fora de qualquer dúvida. A nova descoberta que nos foi ensinada pela análise das formações psicopatológicas e do primeiro membro dessa classe - o sonho - reside no fato de que o inconsciente (isto é, o psíquico) é encontrado como uma função de dois sistemas separados, e de que isso acontece tanto na vida normal quanto na patológica. Portanto, há dois tipos de inconsciente, que ainda não foram distinguidos pelos psicólogos. Ambos são inconscientes no sentido empregado pela psicologia, mas, em nosso sentido, um deles, que denominamos de Ics., é também inadimissível à consciência, enquanto ao outro chamamos Pcs., porque suas excitações - depois de observarem certas regras, é verdade, e talvez apenas depois de passarem por uma nova censura, embora mesmo assim, sem consideração pelo Ics. - conseguem alcançar a consciência. O fato de, para chegarem à consciência, as excitações terem de atravessar uma seqüência fixa ou uma hierarquia de instâncias (o que nos é revelado pelas modificações nelas efetuadas pela censura) permitiu-nos construir uma analogia espacial. Descrevemos as relações dos dois sistemas entre si e com a consciência dizendo que o sistema Pcs. situa-se como uma tela entre o sistema Ics. e a consciência. O sistema Pcs. não apenas barra o acesso à consciência, mas também controla o acesso ao poder da motilidade voluntária e tem a seu dispor, para distribuição, uma energia de catexia móvel, parte da qual nos é familiar sob a forma de atenção. [Ver em [1].]
Devemos também evitar a distinção entre “supraconsciente” e “subconsciente”, que se tornou tão popular na literatura mais recente sobre as psiconeuroses, pois tal distinção parece servir precisamente para enfatizar a equivalência entre o psíquico e o consciente.
Mas que papel resta em nosso esquema para a consciência, outrora tão onipotente e que ocultava tudo o mais? Apenas o de um órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas. De acordo com as idéias subjacentes a nosso ensaio de um quadro esquemático, só podemos encarar a percepção consciente como a função própria de um determinado sistema e, para este, a abreviação Cs. parece apropriada. Em suas propriedades mecânicas, encaramos esse sistema como semelhante ao sistema perceptivo Pcpt., ou seja, como suscetível à excitação por qualidades, mas incapaz de reter traços das alterações, isto é, sem memória. O aparelho psíquico, que se volta para o mundo exterior com seu órgão sensorial dos sistemas Pcpt., é, ele próprio, o mundo externo em relação ao órgão sensorial da Cs., cuja justificação teleológica reside nesta circunstância. Aqui encontramos mais uma vez o princípio da hierarquia das instâncias, que parece reger a estrutura do aparelho. O material excitatório aflui para o órgão sensorial da Cs. vindo de duas direções: do sistema Pcpt., cuja excitação, determinada por qualidades, é provavelmente submetida a uma nova revisão antes de se converter numa sensação consciente, e do interior do próprio aparelho, cujos processos quantitativos são sentidos como uma série de qualidades de prazer-desprazer quando, sujeitos a certas modificações, penetram na consciência.
Os filósofos que se deram conta de que é possível haver formações de pensamento racionais e altamente complexas, sem que a consciência tenha qualquer participação nelas, tiveram dificuldade em atribuir qualquer função à consciência; pareceu-lhes que ela não podia ser mais do que uma imagem reflexasupérflua do processo psíquico consumado. Nós, por outro lado, somos resgatados desse embaraço pela analogia existente entre nosso sistema Cs. e os sistemas perceptivos. Sabemos que a percepção por nossos órgãos sensoriais tem como resultado dirigir um investimento de atenção para as vias pelas quais se propaga a excitação sensorial adveniente: a excitação qualitativa do sistema Pcpt. atua como um regulador da descarga da quantidade móvel no aparelho psíquico. Podemos atribuir a mesma função ao órgão sensorial sobreposto do sistema Cs. Ao perceber novas qualidades, ele presta uma nova contribuição ao direcionamento das quantidades móveis de investimento e a sua distribuição de maneira conveniente. Com a ajuda de sua percepção de prazer e desprazer, ele influencia a circulação dos investimentos dentro do que, em outros aspectos, é um aparelho inconsciente que atua por meio dos deslocamentos de quantidades. Parece provável que, no começo, o princípio do desprazer regule automaticamente o deslocamento dos investimentos, mas é muito possível que a consciência dessas qualidades introduza, além disso, uma segunda regulação, mais discriminadora, que pode até opor-se à primeira e que aperfeiçoa a eficiência do aparelho, capacitando-o, em contradição com seu plano original, a investir e elaborar até mesmo aquilo que está associado à liberação de desprazer. A psicologia das neuroses nos ensina que esses processos de regulação efetuados pela excitação qualitativa dos órgãos sensoriais têm uma importante participação na atividade funcional do aparelho. O domínio automático do princípio primário do desprazer e a conseqüente restrição imposta à eficiência são interrompidos pelos processos de regulação sensorial, que, por sua vez, são também automatismos. Constatamos que o recalque (que, embora de início sirva a um propósito útil, acaba conduzindo a uma renúncia prejudicial à inibição e ao controle anímico) afeta muito mais facilmente as lembranças do que as percepções porque as primeiras não podem receber nenhum investimento extra advindo da excitação dos órgãos sensoriais psíquicos. É verdade, por um lado, que um pensamento que tem de ser rechaçado não se pode tornar consciente, por ter sofrido recalcamento, mas, por outro, às vezes um desses pensamentos só é recalcado por ter sido subtraído da percepção consciente em virtude de outras razões. Estas são indicações das quais tiramos proveito, em nosso procedimento terapêutico, para desfazer recalcamentos já consumados.
Em seu aspecto teleológico, não há melhor ilustração do valor da hipercatexia posta nas quantidades móveis pela influência reguladora do órgão sensorial da Cs. do que sua criação de uma nova série de qualidades e, conseqüentemente, de um novo processo de regulação que constitui asuperioridade do homem sobre os animais. Os processos de pensamento, em si próprios, carecem de qualidade, exceto pelas excitações prazerosas e desprazerosas que os acompanham e que, em vista de seu possível efeito perturbador sobre o pensamento, têm de ser mantidas dentro de limites. Para que os processos de pensamento possam adquirir qualidades, eles se associam, nos seres humanos, com lembranças verbais, cujos resíduos de qualidade são suficientes para atrair para si a atenção da consciência e para dotar o processo de pensar de um novo investimento móvel oriundo da consciência. [Ver em [1] e [2].]
Toda a multiplicidade dos problemas da consciência só pode ser apreendida por uma análise dos processos de pensamento na histeria. Estes causam a impressão de que a transição de um investimento pré-consciente para um investimento consciente é marcada por uma censura semelhante à existente entre o Ics. e o Pcs. Também essa censura só entra em vigor acima de certo limite quantitativo, de modo que as estruturas de pensamento de baixa intensidade lhe escapam. Toda sorte possível de exemplos de como um pensamento pode ser apartado da consciência ou irromper nela, dentro de certas limitações, encontram-se reunidos no arcabouço dos fenômenos psiconeuróticos, e todos apontam para as relações íntimas e recíprocas entre a censura e a consciência. Encerrarei estas reflexões psicológicas com um relato de dois desses exemplos.
Fui chamado em consulta, no ano passado, para examinar uma jovem inteligente e de aparência desembaraçada. Estava vestida de maneira surpreendente. É que, embora as roupas de uma mulher costumem ser criteriosamente cuidadas até o último detalhe, ela trazia uma das meias dependurada, e dois dos botões de sua blusa estavam desabotoados. Queixou-se de sentir dores na perna e, sem ser solicitada, expôs a panturrilha. Mas aquilo de que se queixava principalmente era, empregando suas próprias palavras, uma sensação no corpo, como se houvesse algo “enfiado nele”, que se “mexia para frente e para trás” e que a “sacudia” de cima a baixo; às vezes, fazia todo o seu corpo ficar “teso”. Meu colega médico, ali presente ao exame, olhou para mim; não teve dificuldade em compreender o significado da queixa da jovem. Mas o que a ambos nos pareceu extraordinário foi o fato de isso não significar nada para a mãe da paciente; ela própria deveria ter-se encontrado muitas vezes na situação que sua filha estava descrevendo. Aprópria moça não tinha noção do alcance de seus comentários, porque, se o tivesse, nunca os teria pronunciado. Nesse caso, fora possível lograr a censura levando-a a permitir que uma fantasia que normalmente seria mantida no pré-consciente emergisse na consciência sob o inocente disfarce da formulação de uma queixa.
Aqui temos outro exemplo: um rapaz de quatorze anos procurou-me para tratamento psicanalítico, sofrendo de um tic convulsif, vômitos histéricos, dores de cabeça, etc. Comecei o tratamento assegurando-lhe que, se fechasse os olhos, ele veria imagens ou teria idéias que então me deveria comunicar. Respondeu por imagens. Sua última impressão antes de me procurar foi revivida visualmente em sua memória. Estivera jogando damas com o tio e via o tabuleiro em sua frente. Pensou em várias posições favoráveis ou desfavoráveis, e em jogadas que não deveriam ser feitas. Viu então um punhal sobre o tabuleiro - um objeto pertencente a seu pai, mas que sua imaginação colocara sobre o tabuleiro. Logo havia uma foice sobre o tabuleiro e, em seguida, uma alfange. Apareceu então a imagem de um velho camponês cortando a grama em frente à longínqua casa do paciente com uma alfange. Passados alguns dias, descobri o sentido dessa sucessão de imagens. O rapaz se afligira com uma situação familiar infeliz. Tinha um pai que era um homem duro, sujeito a acessos de cólera, infeliz no casamento com a mãe do rapaz e cujos métodos educacionais consistiam em ameaças. O pai se divorciara da mãe, mulher meiga e afetuosa, casara-se outra vez e um dia trouxera para casa uma moça que deveria ser a nova mãe do rapazinho. Foi nos primeiros dias depois disso que eclodiu a doença do rapaz de quatorze anos. Sua fúria sufocada contra o pai é que havia construído aquela seqüência de imagens, com suas alusões compreensíveis. O material para elas fora fornecido por uma recordação da mitologia. A foice era aquela com que Zeus castrara o pai; a alfange e a imagem do velho camponês representavam Cronos, o velho violento que devorara seus filhos e de quem Zeus se vingara de maneira tão pouco filial. [Ver em [1].] O casamento do pai dera ao rapaz a oportunidade de retribuir as censuras e ameaças que ouvira dele muito tempo antes, por brincar com seus órgãos genitais. (Cf. jogar [brincar com as] damas; as jogadas proibidas; o punhal que podia ser usado para matar.) Nesse caso, as lembranças recalcadas por muito tempo e seus derivados que haviam permanecido inconscientes é que se infiltraram na consciência por um caminho indireto, sob a forma de imagens aparentemente sem sentido.
Assim sendo, eu buscaria o valor teórico do estudo dos sonhos nas contribuições que ele faz ao conhecimento psicológico e no esclarecimentopreliminar que traz aos problemas das psiconeuroses. Quem poderá imaginar a importância dos resultados passíveis de se obter através de uma compreensão completa da estrutura e das funções do aparelho anímico, se até o estado atual de nossos conhecimentos nos permite exercer uma influência terapêutica favorável sobre as formas curáveis de psiconeurose? Mas, e quanto ao valor prático desse estudo - já posso ouvir a pergunta - como meio de se chegar a uma compreensão da alma, a uma revelação das características ocultas de cada um? Acaso as moções inconscientes expressas pelos sonhos não têm o peso de forças reais na vida anímica? Será que se deve fazer pouco da significação ética dos desejos suprimidos - desejos que, assim como levam aos sonhos, podem um dia levar a outras coisas?
Não me sinto autorizado a responder a essas perguntas. Não dediquei maior consideração a esse aspecto do problema dos sonhos. Penso, contudo, que o imperador romano estava errado ao mandar executar um de seus súditos por ter sonhado que estava assassinando o imperador. [Ver em [1].] Ele deveria ter começado por tentar descobrir o que significava o sonho; é muito provável que seu sentido não fosse o que parecia ser. E, mesmo que um sonho com outro conteúdo tivesse por sentido esse ato de lesa-majestade, acaso não seria acertado ter em mente o dito de Platão, de que o homem virtuoso se contenta em sonhar com o que o homem perverso realmente faz [em [1]]? Penso, portanto, que o melhor é absolver os sonhos. Se devemos atribuir realidade aos desejos inconscientes, não sei dizer. Ela deve ser negada, naturalmente, a todos os pensamentos transicionais ou intermediários. Se olharmos para os desejos inconscientes, reduzidos a sua expressão mais fundamental e verdadeira, teremos de concluir, sem dúvida, que a realidade psíquica é uma forma especial de existência que não deve ser confundida com a realidade material. Portanto, não parece haver justificativa para a relutância das pessoas em aceitarem a responsabilidade pela imoralidade de seus sonhos. Quando o modo de funcionamento do aparelho anímico é corretamente avaliado e se compreende a relação que há entre consciente e inconsciente, descobre-se que desaparece a maior parte daquilo que é eticamente objetável em nossa vida onírica e de fantasia. Nas palavras de Hanns Sachs [1912, 569]: “Se olharmos em nossa consciência para algo que nos foi dito por um sonho sobre uma situação contemporânea (real), não deveremos ficar surpresos ao descobrir que o monstro que vimos sob a lente de aumento da análise revela-se um minúsculo infusório”.
As ações e opiniões conscientemente expressas são, em geral, suficientes para a finalidade prática de julgar o caráter dos homens. As ações merecem ser consideradas antes e acima de tudo, pois muitos impulsos que irrompem na consciência são ainda reduzidos a nada pelas forças reais da vida anímica, antes de amadurecerem sob a forma de atos. Com efeito, tais impulsos muitas vezes não encontram nenhum obstáculo psíquico a seu progresso, exatamente porque o inconsciente tem certeza de que serão detidos em alguma outra etapa. De qualquer modo, é instrutivo tomar conhecimento do terreno tão revolvido de onde brotam orgulhosamente nossas virtudes. É muito raro a complexidade de um caráter humano, impelida de um lado para outro por forças dinâmicas, submeter-se a uma escolha entre alternativas simples, como levaria a crer nossa doutrina moral antiquada.
E quanto ao valor dos sonhos para nos dar conhecimento do futuro? Naturalmente, isso está fora de cogitação. [Ver em [1].] Mais certo seria dizer, em vez disso, que eles nos dão conhecimento do passado, pois os sonhos se originam do passado em todos os sentidos. Não obstante, a antiga crença de que os sonhos prevêem o futuro não é inteiramente desprovida de verdade. Afinal, ao retratarem nossos desejos como realizados, os sonhos decerto nos transportam para o futuro. Mas esse futuro, que o sonhador representa como presente, foi moldado por seu desejo indestrutível à imagem e semelhança do passado.

































APÊNDICE A: UMA PREMONIÇÃO ONÍRICA REALIZADA

A Sra. B., uma mulher respeitável que, além disso, possui senso crítico, contou-me, a propósito de outra coisa e sem nenhuma segunda intenção, que um dia, alguns anos atrás, havia sonhado encontrar o Dr. K., um amigo e antigo médico da família, na Kärntnerstrasse, em frente à loja de Hiess. Na manhã seguinte, ao caminhar pela mesma rua, encontrara de fato a pessoa em questão, exatamente no lugar com que havia sonhado. Basta isso para meu tema. Acrescento apenas que nenhum acontecimento subseqüente comprovou a importância dessa miraculosa coincidência, que, portanto, não pode ser explicada pelo que estaria reservado no futuro.
A análise do sonho foi auxiliada por algumas perguntas, que confirmaram o fato de não haver nenhuma prova de que ela tivesse lembrado do sonho na manhã seguinte a sua ocorrência antes de seu passeio - uma prova como haver anotado o sonho ou tê-lo contado a alguém antes que ele se realizasse. Ao contrário, ela foi obrigada a aceitar a seguinte explicação do que teria acontecido, que me parece mais plausível, sem levantar qualquer objeção. Uma manhã, ela ia andando pela Kärntnerstrasse e encontrou seu antigo médico de família em frente à loja de Hiess. Ao vê-lo, sentiu-se convencida de ter sonhado na noite anterior justamente com aquele encontro naquele mesmo lugar. De acordo com as regras que se aplicam à interpretação dos sintomas neuróticos, sua convicção deve ter sido justificada; seu conteúdo, porém, requer uma reinterpretação.
Eis um episódio do passado da Sra. B. com o qual o Dr. K. está relacionado. Quando ela era moça, casaram-na sem seu pleno consentimento com um homem idoso, mas abastado. Alguns anos depois, ele perdeu suafortuna, adoeceu com tuberculose e morreu. Durante muitos anos, a jovem senhora sustentou a si e ao marido enfermo dando aulas de música. Entre seus amigos no infortúnio encontrava-se o médico da família, o Dr. K., que se dedicou a cuidar do marido dela e a ajudou a encontrar seus primeiros alunos. Outro amigo era um advogado, também um Dr. K., que pôs em ordem os negócios caóticos do comerciante arruinado, ao mesmo tempo em que cortejava a jovem e - pela primeira e última vez - inflamava-lhe a paixão. Esse caso amoroso não lhe trouxe nenhuma felicidade real, porque os escrúpulos criados por sua educação e sua mentalidade interferiram em sua entrega completa enquanto era casada e, depois, quando ficou viúva. No mesmo contexto em que me contou o sonho, ela também me narrou uma ocorrência real daquele período infeliz de sua vida, ocorrência esta que, em sua opinião, fora uma coincidência notável. Ela estava em seu quarto, ajoelhada no chão, com a cabeça enterrada numa poltrona e soluçando com uma saudade apaixonada de seu amigo e benfeitor, o advogado, quando, naquele exato momento, a porta se abriu e ele entrou para visitá-la. Não vemos absolutamente nada de notável nessa coincidência, considerando a freqüência com que ela pensava nele e a assiduidade com que ele provavelmente a visitava. Além disso, esses incidentes que parecem previamente combinados são encontrados em toda história de amor. Não obstante, é provável que essa coincidência tenha sido o verdadeiro conteúdo de seu sonho e a única base de sua convicção de que ele se havia realizado.
Entre a cena em que seu desejo fora realizado e a época do sonho, mais de vinte e cinco anos haviam decorrido. Nesse meio tempo, a Sra. B. enviuvara de um segundo marido, que a deixara com um filho e uma fortuna. O afeto da velha senhora estava ainda centralizado no Dr. K., que era agora seu conselheiro e o administrador de seus bens e a quem ela via com freqüência. Suponhamos que, nos dias que antecederam o sonho, ela tivesse esperado por uma visita dele, mas que esta não se houvesse realizado - ele já não era tão insistente quanto costumava ser. É bem possível então que, uma noite, ela tenha tido um sonho nostálgico que a levou de volta aos velhos tempos. Provavelmente, sonhou com um encontro da época de seu caso amoroso, e a cadeia de seus pensamentos oníricos a reconduziu à ocasião em que, sem qualquer arranjo prévio, ele chegara no exato momento em que ela ansiava por sua vinda. É possível que tais sonhos lhe ocorressem agora com muita freqüência; seriam parte do castigo tardio com que a mulher paga por sua crueldade juvenil. Mas esses sonhos - derivados de uma corrente de pensamentos suprimida, repleta de lembranças de encontros nos quais, desde seu segundo casamento, ela já não gostava de pensar - esses sonhos erampostos de lado ao despertar. E foi isso o que aconteceu com nosso sonho aparentemente profético. Em seguida, ela saiu e, na Kärntnerstrasse, num lugar que em si era indiferente, encontrou seu velho médico de família, o Dr. K. Fazia muito tempo que não o via, a ele que estava intimamente associado com as excitações daquele tempo feliz-infeliz. Também ele fora um benfeitor, e podemos conjecturar que fosse utilizado nos pensamentos dela - e talvez também em seus sonhos - como uma figura encobridora por trás da qual se ocultava a figura mais amada do outro Dr. K. Esse encontro reviveu então sua lembrança do sonho. Ela deve ter pensado: “Sim, sonhei na noite passada com meu encontro com o Dr. K”. Mas essa lembrança teve de sofrer a distorção da qual o sonho só escapara por ter sido completamente esquecido. Ela inseriu o K. indiferente (que a fizera recordar o sonho) no lugar do K. amado. O conteúdo do sonho - o encontro - transferiu-se para a crença de que ela havia sonhado precisamente com aquele lugar, porque um encontro consiste em duas pessoas chegarem ao mesmo lugar ao mesmo tempo. E, se ela teve então a impressão de que o sonho se havia realizado, estava apenas dando livre curso, dessa maneira, a sua lembrança da cena em que, em sua infelicidade, ansiara pela vinda dele e seu anseio fora prontamente realizado.
Assim, a criação do sonho a posteriori, única coisa que torna possíveis os sonhos proféticos, nada mais é do que uma forma de censura, graças à qual o sonho pode irromper na consciência.
10. nov. 99












APÊNDICE B: RELAÇÃO DOS TRABALHOS DE FREUD QUE VERSAM EXTENSA OU PREDOMINANTEMENTE SOBRE OS SONHOS

[Dificilmente seria exagero dizer que há alusões aos sonhos na maioria dos trabalhos de Freud. A seguinte relação de obras (de importância muito variável), entretanto, pode ter alguma utilidade prática. A data no início de cada item é a do ano em que a obra em questão foi escrita. A data ao final é a da publicação; ao lado desta data, outros pormenores da obra serão encontrados na Bibliografia Geral. Os itens entre colchetes foram publicados postumamente.]

[1895 “Projeto para uma Psicologia Científica” (Seções 19, 20 e 21 da Parte I). (1950a.)]
1899 A Interpretação dos Sonhos. (1900a.)
[1899 “Uma Premonição Onírica Realizada”. (1941c.)]
1901 Sobre os Sonhos. (1901a.)
1901 “Fragmentos da Análise de um Caso de Histeria”. [Título original: “ Sonhos e Histeria”] (1905e.)
1905 O Chiste e sua Relação com o Inconsciente (Capítulo VI). (1905c.)
1907 Delírios e Sonhos em “Gradiva”, de Jensen. (1907a.)
1910 “Exemplo Típico de um Sonho Edipiano Disfarçado”. (1910l.)
1911 “Acréscimos à Interpretação dos Sonhos”. (1911a.)
1911 “O Manejo da Interpretação dos Sonhos em Psicanálise”. (1911e.)
1911 “Os Sonhos no Folclore” (com Ernest Oppenheim). (1957a.)
1913 “Um Sonho Comprobatório”. (1913a.)
1913 “Material de Contos de Fadas nos Sonhos”. (1913d.)
1913 “Observações e Exemplos da Prática Analítica”. (1913h.)
1914 “Representação de uma ‘Grande Realização’ num Sonho. (1914e.)
1914 “Da História de uma Neurose Infantil” (Seção IV). (1918b.)
1916 Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (Parte II). (1916-1917.)
1917 “Suplemento Metapsicológico à Teoria dos Sonhos”. (1917d.)
1920 “Suplementos à Teoria dos Sonhos”. (1920f.)
1922 “Sonhos e Telepatia”. (1922a.)
1923 “Observações sobre a Teoria e a Prática da Interpretação do Sonho”. (1923c.)
1923 “Josef Popper-Lynkeus e a Teoria dos Sonhos”. (1923f.)
1925 “Algumas Notas Adicionais sobre a Interpretação dos Sonhos como um Todo”. (1925i.)
1929 “Carta a Maxime Leroy sobre um sonho de Descartes”. (1929b.)
1932 “Meu Contato com Josef Popper-Lynkeus”. (1932c.)
1932 Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (Conferências XXIX e XXX). (1933a.)
[1938 Um Esboço de Psicanálise (Capítulo V). (1940a.)]

N.B. - Uma mistura não autorizada da parte de A Interpretação dos Sonhos e Sobre os Sonhos foi publicada em duas edições nos Estados Unidos com o título de Dream Psychology: Psychoanalysis for Beginners (com uma introdução de André Tridon), Nova Iorque, McCann, 1920 e 1921, XI + 237 págs.




































NOTA DO EDITOR INGLÊS

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1901      Über den Traum. Publicada pela primeira vez como parte (págs. 307-344) de uma publicação seriada, Grenzfragen des Nerven-und Seelenlebens, org. por L. Löwenfeld e H. Kurella, Wiesbaden, Bergmann.
1911      2ª edição. (Publicada como brochura separada e ampliada.) Mesmos organizadores, 44 págs.
1921      3ª edição. Munique e Wiesbaden, Bergmann, 44 págs.
1925      Nos Gesammelte Schriften de Freud, 3, 189-256, Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag.
1931      No volume coletivo de Freud, Sexualtheorie und Traumlehre, 246-307, mesmos organizadores.
1942      Nas Gesammelte Werke de Freud, 2 e 3, 643-700, Londres, Imago Publishing Co.

(b)  TRADUÇÕES INGLESAS:
1914      De M. D. Eder (com introdução de W. L. Mackenzie). Londres, Heinemann; Nova Iorque, Rebman. XXXII + 110 págs.
1952      De James Strachey, Londres, Hogarth Press e Institute of Psycho-Analysis, VII + 80 págs. Nova Iorque, Norton, 120 págs.

Esta tradução é uma reimpressão revista da tradução publicada em 1952.

Apenas dois ou três meses após a publicação de A Interpretação dos Sonhos, já a idéia de escrever uma versão abreviada de seu livro estava no espírito de Freud. Fliess evidentemente escrevera para sugerir algo desse tipo, pois, numa carta de 4 de abril de 1900 (Freud, 1950a, Carta 132), Freud rejeitou a proposta, argumentando, entre outras coisas, que “já prometera dar a Löwenfeld um ensaio da mesma natureza”. Comentou também sobre seu desagrado em embarcar em semelhante tarefa tão pouco tempo depois de haver terminado seu extenso livro. Evidentemente, essa relutância persistiu, pois, em 20 de maio (ibid., Carta 136), ele menciona que não havia sequer iniciado a “brochura” e, em 10 de julho (ibid., Carta 138), anuncia que a adiou para outubro. Sua última referência a ela na correspondência com Fliess dá-se em 14 de outubro de 1900 (ibid., Carta 139), onde ele comenta que está escrevendo o ensaio “sem nenhum prazer real”, uma vez que sua mente está repleta de material para Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana (que seria sua produção seguinte). Nesta, aliás, há uma referência (perto do final do Capítulo VII) ao ensaio Sobre os Sonhos e à questão de a publicação de um resumo poder ou não interferir nas vendas do livro maior.
Como se verá, o único acréscimo de importância feito por Freud nas edições posteriores do ensaio foi a seção sobre o simbolismo, introduzida na segunda edição.




SOBRE OS SONHOS


I
Durante a época que se pode descrever como pré-científica, os homens não tinham nenhuma dificuldade em descobrir uma explicação para os sonhos. Quando se lembravam de um sonho depois de acordar, encaravam-no como uma manifestação favorável ou hostil de poderes superiores, demoníacos e divinos. Quando começaram a florescer as maneiras de pensar próprias da ciência natural, toda essa engenhosa mitologia se transformou em psicologia, e hoje apenas uma pequena minoria de pessoas cultas duvida de que os sonhos sejam um produto do próprio psiquismo do sonhador.
Desde a rejeição da hipótese mitológica, porém, os sonhos passaram a carecer de uma explicação. As condições de sua origem, sua relação com a vida anímica de vigília, sua dependência de estímulos que se impõem à percepção durante o estado de sono, as muitas peculiaridades de seu conteúdo que repugnam ao pensamento desperto, a incoerência entre suas imagens de representação e os afetos a elas ligados e, por fim, seu caráter transitório, a maneira como o pensamento de vigília os põe de lado como algo que lhe é estranho, e os mutila ou extingue na memória - todos esses problemas, e outros ainda, vêm aguardando esclarecimento há muitas centenas de anos e, até agora, nenhuma solução satisfatória foi proposta para eles. Mas o que se coloca em primeiro plano em nosso interesse é a questão da significação dos sonhos, questão esta que encerra um duplo sentido. Em primeiro lugar, ela indaga sobre a significação psíquica do sonhar, sobre a relação dos sonhos com outros processos anímicos e sobre sua eventual função biológica; em segundo, busca descobrir se os sonhos podem ser interpretados, se o conteúdo de cada sonho tem um “sentido” tal como estamos acostumados a encontrar em outras estruturas psíquicas.
Na avaliação da significação dos sonhos, três linhas de pensamento podem ser distinguidas. Uma delas, que ecoa, por assim dizer, a antiga supervalorização dos sonhos, se expressa nos trabalhos de certos filósofos. Eles consideram que a base da vida onírica é um estado peculiar de atividade anímica e chegam até a aclamar esse estado como uma elevação a um nível superior. Por exemplo, Schubert [1814] declara que os sonhos são a emancipação do espírito do jugo da natureza externa e a liberação da alma das amarras dos sentidos. Outros pensadores, sem irem tão longe assim, insistem, não obstante, em que os sonhos brotam essencialmente de impulsos da alma e representam manifestações de forças anímicas impedidas de se expandirem livremente durante o dia. (Cf. a “fantasia onírica” de Scherner [1861, 97 e segs.] e Volkelt [1875, 28 e segs.].) Um grande número de observadores concorda em atribuir à vida onírica a capacidade de um funcionamento superior, pelo menos em certos âmbitos (na memória, por exemplo).
Em nítido contraste com isso, a maioria dos autores médicos adota uma visão segundo a qual os sonhos mal chegam a atingir o nível de fenômenos psíquicos. Segundo sua teoria, os únicos instigadores dos sonhos são os estímulos sensoriais e somáticos que incidem sobre a pessoa adormecida desde o exterior, ou que se tornam acidentalmente ativos em seus órgãos internos. O sonhado, argumentam eles, não pode reclamar para si mais sentido e significado do que, por exemplo, os sons que seriam produzidos se “os dez dedos de um homem que nada conhece de música vagassem pelas teclas de um piano”. [Strümpell, 1877, 44.] Os sonhos são descritos por Binz [1878, 35] como não passando de “processos somáticos inúteis em todos os casos e, em muitos deles, positivamente patológicos”. Todas as características da vida onírica, portanto, seriam explicadas como devidas à atividade desconexa de órgãos ou grupos de células isoladas num cérebro no mais adormecido, atividade essa que lhes é imposta por estímulos fisiológicos.
A opinião popular é pouco afetada por esse juízo científico e não se interessa pelas origens dos sonhos; parece persistir na crença de que, apesar de tudo, os sonhos possuem um sentido, que se relaciona com a predição do futuro e pode ser descoberto por algum processo de interpretação de um conteúdo freqüentemente confuso e enigmático. Os métodos de interpretação empregados consistem em transformar o conteúdo do sonho tal como é lembrado, seja substituindo-o aos pedacinhos, de acordo com uma chave fixa, seja substituindo a totalidade do sonho por um outro todo com o qual ela mantém uma relação simbólica. As pessoas sérias se riem desses esforços: “Träume sind Schäume” - “os sonhos são espuma”.

II

Um dia descobri, para meu grande assombro, que a visão dos sonhos que mais se aproximava da verdade não era a médica, mas a popular, por mais que ainda estivesse semi-envolta na superstição. É que eu fora levado a novas conclusões sobre o tema dos sonhos ao aplicar-lhes um novo método de investigação psicológica que prestara excelentes serviços na solução das fobias, obsessões e delírios, etc. Desde então, sob o nome de “psicanálise”,ele encontrou aceitação por toda uma escola de pesquisadores. De fato, as numerosas analogias existentes entre a vida onírica e uma grande variedade de estados de enfermidade psíquica na vida de vigília foram corretamente observadas por muitos investigadores médicos. Portanto, parecia haver boas razões para esperar que um método de investigação que dera resultados satisfatórios no caso das estruturas psicopáticas fosse também útil para esclarecer os sonhos. As fobias e obsessões são tão estranhas à consciência normal quanto os sonhos à consciência de vigília; sua origem é tão desconhecida da consciência quanto a dos sonhos. No caso dessas estruturas psicopáticas, considerações de ordem prática levaram a uma investigação de sua origem e modo de desenvolvimento; ocorre que a experiência havia demonstrado que a descoberta das seqüências de pensamento que, ocultas da consciência, ligam as idéias patológicas aos demais conteúdos psíquicos equivale a uma solução dos sintomas, e tem como conseqüência o domínio de idéias que até então não podiam ser inibidas. Assim, a psicoterapia foi o ponto de partida do procedimento de que me vali para a explicação dos sonhos.
Esse procedimento é fácil de descrever, embora sejam necessários ensinamentos e exercícios para que ele possa ser posto em prática.
Quando o utilizamos com outra pessoa, digamos, um paciente com uma fobia, pedimo-lhe que dirija sua atenção para a idéia em causa, mas não para refletir sobre ela como tantas vezes já fez, e sim para observar o que quer que lhe venha à mente, sem exceção, e comunicá-lo ao médico. Se ele então afirmar que sua atenção é incapaz de apreender coisa alguma, descartamos isso assegurando energicamente que uma ausência completa de qualquer conteúdo de representações é inteiramente impossível. E, de fato, logo lhe ocorrem numerosas idéias que conduzirão a outras, mas que são invariavelmente prefaciadas por um juízo do auto-observador no sentido de que são absurdas ou sem importância, de que são irrelevantes e lhe ocorreram por acaso, sem qualquer ligação com o assunto em exame. Percebemos de imediato que era essa atitude crítica que impedia o sujeito de comunicar qualquer dessas idéias, e que antes disso, na verdade, era ela que as impedia de se tornarem conscientes. Quando conseguimos induzi-lo a abandonar sua crítica das idéias que lhe ocorrem e a continuar acompanhando as seqüências de pensamentos que emergem enquanto ele mantém sua atenção voltada para elas, vemo-nos de posse de uma quantidade de material psíquico que logo constatamos estar claramente ligado à idéia patológica que foi nosso ponto de partida; esse material não tarda a revelar ligações entre a idéia patológica e outras, e acaba por permitir-nos substituir a idéia patológica por uma idéia nova, que se enquadra de maneira inteligível na trama anímica.
Este não é o lugar para se fornecer um relato pormenorizado das premissas em que se baseou essa experiência, nem das conseqüências que decorrem de seu invariável sucesso. Assim, basta-nos dizer que obtemos o material que nos permite resolver qualquer idéia patológica ao voltarmos nossa atenção precisamente para as associações “involuntárias”, que “interferem em nossa reflexão” e que são normalmente descartadas por nossa faculdade crítica como dejetos sem valor.
Ao usarmos esse procedimento com nós mesmos, a melhor maneira de ajudarmos a investigação consiste em anotar de imediato aquilo que, a princípio, são associações ininteligíveis.
Mostrarei agora quais são os resultados a que chego ao aplicar esse método de investigação aos sonhos. Qualquer exemplo de sonho, de fato, seria igualmente apropriado para esse fim, mas, por motivos específicos, escolherei um de meus próprios sonhos, que me pareça obscuro e sem sentido tal como o recordo e que tenha a vantagem da brevidade. Talvez o sonho que tive justamente na noite passada atenda a esses requisitos. Seu conteúdo, tal como o anotei imediatamente após despertar, foi o seguinte:
Um grupo de pessoas à mesa ou ‘table d’hôte’ … comia-se espinafre … A Sra. E. L. estava sentada a meu lado; voltava toda a sua atenção para mim e pôs a mão em meu joelho de maneira íntima. Retirei-lhe a mão, impassível. Então ela disse: ‘Mas o senhor sempre teve olhos tão bonitos.’ … Vi então a imagem indistinta de dois olhos, como se fosse um desenho ou o contorno de um par de óculos…
Foi essa a totalidade do sonho ou, pelo menos, tudo o que pude recordar dele. Pareceu-me obscuro e sem sentido, mas, acima de tudo, surpreendente. A Sra. E. L. é uma pessoa com que mal cheguei a ter relações amistosas em qualquer época, nem tampouco, ao que eu sabia, jamais desejei ter relações mais estreitas com ela. Não a vejo há muito tempo e seu nome, creio eu, não foi mencionado nos últimos dias. O processo onírico não foi acompanhado por nenhum tipo de afeto.
A reflexão sobre esse sonho não fez com que eu me acercasse mais de sua compreensão. Entretanto, resolvi anotar, sem qualquer premeditação ou crítica, as associações que se ofereceram à minha auto-observação. Como constatei, é aconselhável, para esse fim, dividir o sonho em seus elementos e descobrir separadamente as associações ligadas a cada um desses fragmentos.
Um grupo de pessoas à mesa ou “table d’hôte”. Isso me fez lembrar de imediato um episódio ocorrido no fim da noite de ontem. Eu voltava de uma pequena reunião em companhia de um amigo que se ofereceu para tomar um táxi e levar-me a casa. “Prefiro tomar táxis com taxímetro”, disse ele; “isso ocupa a mente de maneira muito agradável; sempre se tem alguma coisa para olhar”. Quando ocupamos nossos lugares no carro e o motorista baixou a bandeira, de modo que se pôde ver a primeira marcação de sessenta hellers, continuei com a brincadeira. “Mal entramos”, comentei, “e já lhe devemos sessenta hellers. O carro com taxímetro sempre me faz lembrar a table d’hôte. Torna-me avarento e egoísta, porque está sempre me lembrando o que devo. Minha dívida parece crescer depressa demais e fico com medo de levar a pior, da mesma maneira que, na table d’hôte, não consigo evitar um sentimento cômico de que estou recebendo muito pouco e tenho de ficar de olho em meus próprios interesses.” E prossegui, citando, como que numa digressão:

Ihr führt ins Leben uns hinein,
Ihr lasst den Armen schuldig werden.

E agora, uma segunda associação sobre a table d’hôte. Algumas semanas atrás, quando estávamos à mesa num hotel de montanha no Tirol, fiquei muito aborrecido por achar que minha mulher não estava sendo suficientemente reservada com algumas pessoas sentadas perto de nós, com quem eu não tinha nenhum desejo de travar conhecimento. Pedi-lhe que se ocupasse mais de mim do que daqueles estranhos. Isso também foi como se eu estivesse levando a pior na table d’hôte”. Chamou-me também a atenção o contraste entre o comportamento de minha mulher à mesa e o da Sra. E. L. no sonho, que, “voltava toda a sua atenção para mim”.
Continuando. Vi então que os acontecimentos do sonho eram uma reprodução de um pequeno episódio de natureza exatamente semelhante, que ocorrera entre minha mulher e eu na época em que a cortejava secretamente. A carícia que ela me fez por baixo da toalha de mesa foi sua resposta a uma premente carta de amor. No sonho, contudo, minha mulher foi substituída por alguém que era, comparativamente, uma estranha - E.L.
A Sra. E. L. é filha de um homem com quem estive certa vez endividado. Não pude deixar de notar que isso revelava uma ligação insuspeitada entre partes do conteúdo do sonho e minhas associações. Quando se segue a cadeia de associações que parte de um elemento do conteúdo do sonho, logo se é reconduzido a outro de seus elementos. Minhas associações ao sonho estavam trazendo à luz ligações que não eram visíveis no próprio sonho.
Quando uma pessoa espera que alguém fique atento a seus interesses sem tirar para si nenhuma vantagem, sua ingenuidade tende a provocar uma pergunta irônica: “Você acha que vou fazer isto ou aquilo por seus belos olhos?” Assim sendo, a fala da Sra. E. L. no sonho, “O senhor sempre teve olhos tão bonitos”, só poderia ter significado: “As pessoas sempre fizeram tudo por você por amor; você sempre teve tudo sem pagar por isso”. A verdade, por certo, é justamente o contrário: sempre paguei caro por qualquer vantagem a mim concedida por outras pessoas. O fato de meu amigo ter-me levado em casa ontem de táxi, sem que eu pagasse, deve, afinal, ter-me impressionado.
Aliás, o amigo de quem fomos convidados ontem muitas vezes me fez seu devedor. Não faz muito tempo, deixei passar uma oportunidade de reembolsá-lo. Ele recebeu de mim apenas um presente - uma terrina antiga com olhos pintados ao redor: o que se conhece como um “occhiale”, para afastar o mau-olhado. Além disso, ele é cirurgião oculista. Nessa mesma noite, perguntei-lhe por uma paciente que eu lhe havia encaminhado para consulta, para que lhe receitasse óculos.
Como percebi então, quase todos os elementos do conteúdo do sonho tinham sido inseridos no novo contexto. A bem da coerência, porém, poder-se-ia ainda perguntar por que é que se servia justamente espinafre no sonho. A resposta foi que o espinafre me fez lembrar um episódio ocorrido não faz muito tempo à nossa mesa de família, quando uma das crianças - e precisamente aquela que realmente merece ser admirada por seus belos olhos - recusou-se a comer espinafre. Eu próprio me comportava exatamente da mesma maneira quando menino; por muito tempo, detestei espinafre, até que meu gosto acabou se modificando e promoveu essa verdura à categoria de um de meus pratos preferidos. Minha própria meninice e a de meu filho foram assim reunidas pela menção desse prato. “Você deveria ficar contente por ter espinafre”, exclamara a mãe do pequeno gourmet; “há crianças que se dariam por muito satisfeitas por comerem espinafre”. Assim me foram relembrados os deveres dos pais para com seus filhos. As palavras de Goethe,

Ihr führt ins Leben uns hinein
Ihr lasst den Armen schuldig werden,

ganhavam um novo sentido nesse contexto.
Farei aqui uma pausa para examinar os resultados a que cheguei até agora em minha análise do sonho. Seguindo as associações nascidas dos elementos isolados do sonho, separados de seu contexto, cheguei a diversos pensamentos e recordações que não pude deixar de reconhecer como produtos importantes de minha vida anímica. Esse material, revelado pela análise do sonho, estava intimamente ligado com seu conteúdo; não obstante, a ligação era de tal ordem que eu nunca poderia ter inferido o material novo a partir do conteúdo onírico. O sonho foi desprovido de afetos, desconexo e ininteligível, mas, enquanto ia produzindo os pensamentos que estavam por trás do sonho, dei-me conta de impulsos afetivos intensos e bem fundados; os próprios pensamentos enquadraram-se imediatamente em cadeias lógicas em que certas representações centrais apareciam mais de uma vez. Assim, os contrastes entre “egoísta” e “altruísta” e entre os elementos “estar em débito” e “receber sem pagar” foram representações centrais desse tipo, que não figuraram no próprio sonho. Eu poderia apertar mais os fios da trama do material revelado pela análise e mostrar então que eles convergem para um único ponto nodal, mas certas considerações de natureza pessoal, e não científica, impedem-me de fazê-lo em público. Eu seria obrigado a deixar transparecer muitas coisas que mais vale permanecerem em segredo, pois, no caminho de minha descoberta da solução do sonho, revelou-se toda sorte de coisas que eu não estava disposto a admitir sequer para mim mesmo. Mas então, poderão perguntar, por que não escolhi algum outro sonho cuja análise se prestasse melhor a ser comunicada, de modo que eu pudesse fornecer provas mais convincentes do sentido e da inter-relação do material descoberto pela análise? A resposta é que qualquer sonho de que eu tentasse tratar levaria a coisas igualmente difíceis de comunicar e me imporia idêntica discrição. Tampouco evitaria essa dificuldade trazendo para análise o sonho de alguma outra pessoa, a menos que as circunstâncias me permitissem abandonar todo e qualquer disfarce, sem prejuízo para a pessoa que tivesse confiado em mim.
No ponto a que cheguei agora, sou levado a encarar o sonho como uma espécie de substituto dos processos de pensamento repletos de significação e afeto aos quais cheguei após a conclusão da análise. Não conhecemos ainda a natureza do processo que fez com que o sonho fosse gerado a partir desses pensamentos, mas podemos perceber que é errôneo encará-lo como puramente físico e sem sentido psíquico, como um processo nascido da atividade isolada de grupos separados de células cerebrais despertadas do sono.
Duas outras coisas já estão claras. O conteúdo do sonho é muito mais curto do que os pensamentos dos quais o considero substituto; e a análise revelou que o instigador do sonho foi um acontecimento sem importância da noite anterior ao sonhar.
Naturalmente, eu não extrairia conclusões de tão amplo alcance se dispusesse apenas de uma única análise de sonho. Todavia, se a experiência me mostra que, acompanhando acriticamente as associações nascidas de qualquer sonho, posso chegar a uma cadeia de pensamentos semelhante, entre cujos elementos os componentes do sonho reaparecem e que estão interligados de maneira racional e inteligível, é seguro descartar a ligeira possibilidade de que as ligações observadas numa primeira experiência pudessem dever-se ao acaso. Penso estar autorizado, portanto, a adotar uma terminologia que fixe nossa nova descoberta. Para contrastar o sonho, tal como retido em minha memória, com o material pertinente descoberto por sua análise, chamarei ao primeiro “conteúdo manifesto do sonho”, e ao segundo - sem fazer, a princípio, nenhuma outra distinção -, “conteúdo latente do sonho”. Vejo-me então frente a dois novos problemas não formulados até agora: (1) Qual foi o processo psíquico que transformou o conteúdo latente do sonho no conteúdo manifesto que me é conhecido através da memória? (2) Que motivo ou motivos tornaram necessária essa transformação? Descreverei o processo que transforma o conteúdo latente dos sonhos no conteúdo manifesto como “trabalho do sonho”. A contrapartida dessa atividade - que acarreta uma transformação na direção oposta - já nos é conhecida como o trabalho de análise. Os demais problemas decorrentes dos sonhos - as questões relativas aos instigadores do sonho, à origem de seu material, a seu possível sentido, à possível função do sonhar e às razões pelas quais os sonhos são esquecidos - todos estes problemas serão por mim examinados com base não no conteúdo manifesto, mas no recém-descoberto conteúdo latente do sonho. Uma vez que atribuo todas as visões contraditórias e incorretas da vida onírica constantes da bibliografia sobre o assunto à ignorância do conteúdo latente dos sonhos, tal como revelado pela análise, terei doravante o máximo cuidado para evitar a confusão entre o sonho manifesto e os pensamentos oníricos latentes.

III

A transformação dos pensamentos oníricos latentes no conteúdo manifesto do sonho merece toda a nossa atenção, visto ser esse o primeiro exemplo que nos é conhecido de transposição do material psíquico de um modo de expressão para outro, de um modo de expressão que nos é imediatamente inteligível para outro que só podemos chegar a entender com a ajuda de orientação e esforço, embora também ele deva ser reconhecido como uma função de nossa atividade anímica.
No tocante à relação entre o conteúdo latente e o manifesto, os sonhos podem ser divididos em três categorias. Em primeiro lugar, podemos distinguir os sonhos que fazem sentido e são, ao mesmo tempo, inteligíveis, ou seja, que podem ser inseridos sem maior dificuldade no contexto de nossa vida anímica. Temos inúmeros desses sonhos. Em sua maior parte, eles são curtos e em geral nos parecem merecer pouca atenção, já que nada há de espantoso ou estranho neles. Aliás, sua ocorrência constitui um poderoso argumento contra a teoria segundo a qual os sonhos se originam da atividade isolada de grupos separados de células cerebrais. Eles não dão nenhuma indicação de atividade psíquica reduzida ou fragmentária, mas, apesar disso, jamais questionamos o fato de serem sonhos e não os confundimos com os produtos da vigília. Um segundo grupo é formado pelos sonhos que, embora sejam coerentes em si e tenham um sentido claro, produzem, ainda assim, um efeito desconcertante, pois não vemos como encaixar esse sentido em nossa vida anímica. Tal é o caso ao sonharmos, por exemplo, que um parente de quem gostamos morreu de peste, sem que tenhamos qualquer razão para esperar, temer ou presumir uma coisa dessas; e nos perguntamos, assombrados: “Como é que fui arranjar essa idéia?” O terceiro grupo, enfim, contém os sonhos destituídos de sentido ou inteligibilidade, que parecem desconexos, confusos e sem significado. A esmagadora maioria dos produtos de nosso sonhar exibe essas características, que constituem a base da opinião desfavorável que se tem dos sonhos e fundamentam a teoria médica de que eles são o resultado de uma atividade anímica restrita. Raramente faltam os mais evidentes sinais de incoerência, sobretudo nas composições oníricas de extensão e complexidade consideráveis.
O contraste entre os conteúdos manifesto e latente dos sonhos só tem importância, é claro, para os sonhos da segunda categoria e, mais particularmente, os da terceira. É aí que nos confrontamos com enigmas que só desaparecem depois de substituirmos o sonho manifesto pelos pensamentos latentes que estão por trás dele; e foi com um espécime da última categoria - um sonho confuso e ininteligível - que se efetuou a análise que acabo de relatar. Contrariando nossas expectativas, contudo, esbarramos em motivos que nos impediram de tomar pleno conhecimento dos pensamentos oníricos latentes. A repetição de experiências semelhantes nos leva a suspeitar de que existe uma relação íntima e regular entre a natureza ininteligível e confusa dos sonhos e a dificuldade de comunicar os pensamentos que estão por trás deles. Antes de averiguarmos a natureza dessa relação, será conveniente voltarmos nossa atenção para os sonhos mais facilmente inteligíveis da primeira categoria, em que os conteúdos manifesto e latente coincidem e parece haver uma conseqüente economia do trabalho do sonho.
Além disso, o exame desses sonhos oferece vantagens desde outro ponto de vista. Ocorre que os sonhos das crianças são dessa índole - plenos de sentido e não-enigmáticos. Temos aí, aliás, outro argumento contra a teoria que vai buscar a origem dos sonhos numa atividade cerebral dissociada durante o sono, pois por que é que tal redução do funcionamento psíquico seria característica do estado de sono dos adultos, mas não do das crianças? Por outro lado, é-nos plenamente lícito esperar que a explicação dos processos psíquicos das crianças, em que é bem possível que eles sejam muito simplificados, venha a se revelar um prelúdio indispensável à investigação da psicologia dos adultos.
Assim, registrarei alguns exemplos de sonhos que colhi de crianças. Uma menininha de dezenove meses teve de passar o dia inteiro sem comer por ter tido uma crise de vômitos pela manhã; sua babá declarou que ela ficara indisposta por ter comido morangos. Na noite subseqüente a esse dia de jejum, ouviram-na dizer seu nome durante o sono e acrescentar: “Molangos, molangos silvestles, oméete, pudim!” Portanto, estava sonhando que fazia uma refeição e, em seu cardápio, dava ênfase especial à iguaria específica da qual, tinha razões para esperar, só lhe seriam permitidas escassas quantidades no futuro próximo. - Um menininho de vinte e dois meses teve um sonho semelhante com uma regalia que lhe fora negada. Na véspera, fora obrigado a presentear seu tio com um cesto de cerejas frescas, das quais ele próprio,naturalmente, só pudera provar uma unidade. Acordou com esta alegre notícia: “Hermann comeu todas as celejas!” - Certo dia, uma menina de três anos e três meses fez uma viagem por um lago. O passeio, evidentemente, não lhe parecera longo o bastante, pois ela chorou quando teve de sair do barco. Na manhã seguinte, comunicou que, durante a noite, estivera passeando no lago: dera continuidade a sua viagem interrompida. Um menino de cinco anos e três meses deu sinais de insatisfação durante uma caminhada pelas imediações do Dachstein. Cada vez que se divisava uma nova montanha, ele queria saber se era o Dachstein, e por fim se recusou a visitar uma cachoeira com o resto do grupo. Seu comportamento foi atribuído à fadiga, mas encontrou uma explicação melhor quando, na manhã seguinte, ele contou ter sonhado que havia escalado o Dachstein. É evidente que tivera a idéia de que a excursão terminaria numa escalada do Dachstein e ficou deprimido ao ver que a montanha prometida nunca aparecia. Compensou, no sonho, aquilo que o dia anterior não lhe pudera dar. - Uma menina de seis anos teve um sonho exatamente igual. Durante um passeio, seu pai teve de parar antes de se atingir o objetivo pretendido porque estava ficando tarde. No caminho de volta, ela reparou num poste de sinalização que indicava o nome de outro local de excursão e o pai prometeu levá-la lá também em outra oportunidade. Na manhã seguinte, ela recebeu o pai com a notícia de que sonhara que ele estivera com ela em ambos os lugares.
O elemento comum em todos esses sonhos infantis é evidente. Todos realizaram desejos que se haviam ativado durante o dia, mas permaneceram irrealizados. Os sonhos foram simples e indisfarçadas realizações de desejo.
Eis aqui outro sonho infantil que, embora à primeira vista não seja muito fácil de entender, também não passa de uma realização de desejo. Uma menininha de quatro anos incompletos fora trazida do campo para a cidade por estar sofrendo de uma crise de poliomielite. Passou a noite com uma tia que não tinha filhos e puseram-na para dormir numa cama grande - grande demais para ela, é claro. Na manhã seguinte, contou ter sonhado que a cama era pequena demais para ela, tão pequena que ela não cabia. É fácil reconhecer esse sonho como um sonho de desejo, se nos recordarmos que as crianças expressam com muita freqüência o desejo de “serem grandes”. O tamanho da cama foi um lembrete desagradável da pequenez da menina ainda não crescida; assim, ela corrigiu a proporção indesejada no sonho e cresceu tanto que até a cama grande ficou pequena demais para ela.
Mesmo quando o conteúdo dos sonhos infantis se torna complicado e sutil, nunca há dificuldade em reconhecê-los como realizações de desejo. Um menino de oito anos sonhou que estava andando numa biga com Aquiles e que Diomedes era o cocheiro. Constatou-se que, na véspera, ele estivera mergulhado num livro de lendas sobre os heróis gregos, e foi fácil perceber que havia tomado esses heróis por modelos e lamentava não estar em sua época.
Essa pequena coletânea destaca diretamente outra característica dos sonhos infantis: sua ligação com a vida diurna. Os desejos neles realizados ficaram pendentes durante o dia e, em regra geral, na véspera, e foram acompanhados na vigília por intensa coloração afetiva. Nada que seja sem importância ou indiferente, ou que assim se afigure à criança, consegue penetrar no conteúdo de seus sonhos.
Também nos adultos verifica-se a ocorrência de numerosos exemplos de sonhos desse tipo infantil, embora, como afirmei, tenham geralmente um conteúdo sucinto. Desse modo, várias pessoas reagem regularmente ao estímulo da sede durante a noite com sonhos de estarem bebendo, que assim se esforçam por livrar-se do estímulo e permitir que o sono continue. Em algumas pessoas, tais “sonhos de conveniência” freqüentemente ocorrem antes do despertar, quando surge a necessidade de elas se levantarem. Elas sonham que já estão de pé frente ao lavatório ou que já se encontram na escola ou no escritório, onde têm de chegar em determinado horário. Na noite que precede uma viagem, não raro sonhamos já ter chegado a nosso destino; do mesmo modo, antes de uma ida ao teatro ou a uma festa, o sonho muitas vezes antecipa o prazer futuro - por impaciência, por assim dizer. Noutros sonhos, a realização de desejo se expressa num grau mais indireto; é preciso estabelecer alguma ligação ou implicação - isto é, o trabalho de interpretação tem de ser iniciado - para que se possa reconhecer a realização de desejo. Um homem me contou, por exemplo, que sua jovem esposa sonhara que suas regras haviam começado. Considerei que, se a menstruação dessa moça havia faltado, ela devia saber que se defrontava com uma gravidez. Assim, ao comunicar seu sonho, estava anunciando sua gravidez, e o sentido do sonho era mostrar realizado seu desejo de que a gravidez se retardasse um pouco mais. Em condições inusitadas ou extremas, esses sonhos de caráter infantil são particularmente comuns. Assim, o líder de uma expedição polar relatou que os membros de seu grupo, enquanto passavam o inverno nos campos de gelo e viviam numa dieta monótona e com rações magras, sonhavam regularmente, como crianças, com grandes refeições, com montanhas de fumo e que estavam novamente em casa. [1]
Não é nada raro que, de um sonho relativamente longo, complicado e confuso em sua totalidade, destaque-se um fragmento particularmente claro, que contém uma inequívoca realização de desejo mas está vinculado a algum outro material ininteligível. No caso dos adultos, entretanto, qualquer pessoa com alguma experiência em analisar seus sonhos verificará, para sua surpresa, que mesmo os sonhos que têm a aparência de serem transparentemente claros raramente são tão simples quanto os das crianças, e que por trás da realização de desejo evidente pode ocultar-se algum outro sentido.
Seria, de fato, uma solução simples e satisfatória para o enigma dos sonhos se o trabalho da análise nos habilitasse a encontrar a origem até mesmo dos sonhos mais sem sentido e mais confusos dos adultos no tipo infantil de realização de um desejo intensamente sentido no dia anterior. Não há dúvida, porém, de que as aparências não depõem em favor dessa expectativa. Os sonhos costumam estar repletos do material mais indiferente e estranho, não havendo em seu conteúdo nenhum sinal da realização de qualquer desejo.
Entretanto, antes de nos afastarmos dos sonhos infantis, com sua indisfarçada realização de desejo, não devo deixar de mencionar uma das principais características dos sonhos, que há muito se evidenciou e que ressalta precisamente nesse grupo com particular clareza. Cada um desses sonhos pode ser substituído por uma frase desiderativa: “Ah, se o passeio no lago tivesse durado mais!” - “Oxalá eu já estivesse asseado e vestido!” - “Que bom se eu pudesse ter guardado as cerejas em vez de dá-las a meu tio!” Mas os sonhos nos fornecem mais do que essas frases desiderativas. Mostram-nos o desejo já realizado; representam sua realização como real e presente; e o material empregado na representação onírica consiste principalmente, embora não exclusivamente, em situações e em imagens sensoriais, sobretudo de caráter visual. Portanto, mesmo nesse grupo infantil, não está completamente ausente uma espécie de transformação que merece ser descrita como trabalho do sonho: um pensamento expresso no subjuntivo [modo do desejo] é substituído por uma representação no presente do indicativo.

IV

Estaremos inclinados a supor que algum tipo de transformação tenha ocorrido mesmo nos sonhos confusos, embora não saibamos dizer se, também no caso deles, o que se transformou foi um [enunciado] optativo. Entretanto, há dois trechos no exemplo de sonho que relatei, e em cuja análise fizemos algum progresso, que nos dão motivo para suspeitar de algo dessa natureza. A análise mostrou que minha mulher se havia interessado por outras pessoas à mesa e que eu achara isso desagradável; o sonho continha precisamente o oposto disso - a pessoa que tomou o lugar de minha mulher voltava toda sua atenção para mim. Mas uma experiência desagradável não pode gerar nada mais apropriado do que o desejo de que seu oposto tivesse ocorrido - que foi o que o sonho representou como realizado. Havia uma relação exatamente igual entre o amargo pensamento revelado pela análise, de que eu nunca tivera nada de graça, e a observação feita pela mulher do sonho - “O senhor sempre teve olhos tão bonitos”. Assim, parte da oposição entre conteúdo manifesto e conteúdo latente do sonho é atribuível à realização de desejo.
Mas outra conquista do trabalho do sonho, a qual tende a produzir sonhos incoerentes, é ainda mais notável. Se, numa situação qualquer, compararmos o número de elementos de representação ou o espaço tomado para anotá-los, no caso do sonho e no caso dos pensamentos oníricos a que a análise nos conduz, e dos quais se encontram vestígios no próprio sonho, não nos restará nenhuma dúvida de que o trabalho do sonho efetuou uma obra de compressão ou condensação em larga escala. É impossível, a princípio, formar qualquer juízo sobre o grau dessa condensação; no entanto, quanto mais fundo mergulharmos na análise do sonho, mais impressionante ele se afigura. De cada elemento do conteúdo do sonho ramificam-se fios associativos em duas ou mais direções; cada situação do sonho parece compor-se de duas ou mais impressões ou experiências. Por exemplo, sonhei certa vez com uma espécie de piscina em que os banhistas se espalhavam em todas as direções; num certo ponto da borda da piscina, havia alguém de pé que se inclinava para um dos banhistas, como que para ajudá-lo a sair da água. A situação era composta da lembrança de uma experiência que tive na puberdade e de dois quadros, um dos quais eu vira pouco antes do sonho. Um deles era da série de Schwind que ilustra a lenda de Melusina, mostrando as náiades surpreendidas em seu banho no lago (Cf. os banhistas espalhados, no sonho); o outro era uma pintura do Dilúvio, de autoria de um mestre italiano; já a pequena experiência recordada de minha puberdade era a de ter visto o instrutor de uma escola de natação ajudando a sair da água uma dama que se demorara até depois do horário reservado para os banhistas masculinos. - No caso do exemplo que escolhi para interpretação, a análise da situação levou-me a uma pequena série de recordações, cada uma das quais fizera alguma contribuição para o conteúdo do sonho. Em primeiro lugar, havia o episódio da época de meu noivado do qual já falei. A pressão em minha mão debaixo da mesa, que fizera parte desse episódio, forneceu ao sonho o detalhe “embaixo da mesa” - detalhe que tive de acrescentar como uma reflexão feita a posteriori sobre minha lembrança do sonho. No episódio em si, não tinha havido, é claro, nada de “voltar [toda a atenção] para mim”; a análise mostrou que esse elemento era a realização de um desejo pela apresentação do oposto de um acontecimento real, e que estava relacionado com o comportamento de minha mulher na table d’hôte. Por trás dessa recordação recente, porém, ocultava-se uma cena parecidíssima e muito mais importante da época de nosso noivado, que nos deixou brigados por um dia inteiro. A colocação da mão em meu joelho pertencia a um contexto inteiramente diferente e dizia respeito a pessoas totalmente distintas. Esse elemento do sonho, por sua vez, foi o ponto de partida de dois conjuntos independentes de lembranças - e assim por diante.
O próprio material dos pensamentos oníricos reunido para formar a situação do sonho deve adaptar-se, é claro, para esse fim. Deve haver um ou mais elementos comuns em todos os componentes. O trabalho do sonho procede então como fazia Francis Galton ao produzir suas fotografias de família. Superpõe os diversos componentes, por assim dizer, fazendo-os coincidir um com o outro. O elemento comum a eles destaca-se então claramente da imagem conjunta, enquanto os detalhes contraditórios quase que se anulam mutuamente. Esse método de produção também explica, até certo ponto, os diversos graus da indefinição característica exibida por tantos elementos do conteúdo do sonho. Baseando-se nessa descoberta, a interpretação do sonho estabeleceu a seguinte regra: ao analisarmos um sonho, caso uma incerteza se decomponha num “ou…ou”, devemos substituí-la, para fins de interpretação, por um “e”, e tomar cada uma das aparentes alternativas como um ponto de partida independente para uma série de associações.

Quando um desses elementos comuns não se faz presente entre os elementos oníricos, o trabalho do sonho trata de criá-lo, de maneira que seja possível dar aos pensamentos uma representação comum no sonho. A maneira mais conveniente de reunir dois pensamentos oníricos que a princípio nada têm em comum é alterar a forma verbal de um deles, e assim aproximá-lo do outro, que pode estar similarmente revestido de uma nova forma de expressão lingüística. Há um processo paralelo a esse na elaboração de rimas, onde o som semelhante tem de ser buscado da mesma maneira que o elemento comum em nosso caso. Grande parte do trabalho do sonho consiste na criação desse tipo de pensamentos intermediários, que são amiúde altamente engenhosos, embora freqüentemente pareçam forçados; estes criam então um vínculo entre a imagem composta no conteúdo manifesto do sonho e os pensamentos oníricos, que são diversos em sua forma e essência e foram determinados pelos fatores motivadores do sonho. A análise de nosso exemplo de sonho fornece-nos uma dessas situações em que um pensamento recebe uma nova forma para entrar em contato com outro que lhe é essencialmente estranho. Ao conduzir a análise, esbarrei no seguinte pensamento: “Às vezes eu gostaria de conseguir alguma coisa sem pagar.” Com essa forma, porém, o pensamento não poderia ser empregado no conteúdo do sonho. Por isso, recebeu uma nova formulação: “Eu gostaria de gozar de alguma coisa sem despesas [Kosten’].” Ora, a palavra “Kosten”, em seu segundo sentido, adequa-se ao círculo de representações da “table d’hôte” e, portanto, pôde ser representada no “espinafre” servido no sonho. Quando em casa aparece à mesa um prato que as crianças recusam, a mãe começa por tentar a persuasão e insiste em que “provem [‘Kosten‘] só um pouquinho”. Talvez pareça estranho que o trabalho do sonho se sirva tão livremente da ambigüidade verbal, mas outras experiências nos ensinarão que essa é uma ocorrência bastante comum.
O processo de condensação explica ainda certos componentes do conteúdo do sonho que lhe são peculiares e não são encontrados no representar da vigília. O que tenho em mente são as “personagens coletivas” e “mistas” e as estranhas “formações compostas”, criações que não diferem muito dos animais mistos inventados pela fantasia dos povos do Oriente. Estes, porém, já assumiram formas estereotipadas em nosso pensamento, ao passo que, nos sonhos, novas formas compostas são perpetuamente construídas numa variedade inesgotável. Todos estamos familiarizados com tais formações, a partir de nossos próprios sonhos.
Há muitas maneiras variadas de compor figuras desse tipo. Posso construir um personagem dando-lhe as feições de duas pessoas, ou posso dar-lhe a forma de uma pessoa mas pensar nela, no sonho, como tendo o nome de outra; posso ainda ter a imagem visual de uma pessoa, mas colocá-la numa situação apropriada a outra. Em todos esses casos, a combinação de diferentes pessoas num único representante no conteúdo do sonho tem um sentido: destina-se a indicar um “e” ou um “assim como”, ou a comparar entre si as pessoas originais em algum aspecto particular, que pode até ser especificado no próprio sonho. Em regra geral, contudo, esse elemento comum entre as pessoas fusionadas só pode ser descoberto pela análise e só é indicado no conteúdo do sonho pela formação da figura coletiva.
As estruturas mistas que ocorrem nos sonhos com tão imensa profusão são compostas de maneiras igualmente variáveis, e as mesmas regras se aplicam a sua resolução. Não me é necessário citar nenhum exemplo. Sua estranheza desaparece por completo uma vez que tomemos a decisão de não classificá-las na mesma categoria dos objetos de nossa percepção de vigília, mas sim de lembrar que são produtos da condensação onírica e enfatizam, numa forma eficazmente abreviada, alguma característica comum dos objetos que estão assim combinados. Também nesse caso, o elemento comum tem que ser descoberto, na maioria das vezes, através da análise. O conteúdo do sonho simplesmente afirma, por assim dizer: “Todas estas coisas têm em comum o elemento x.” A dissecação dessas formações mistas por meio da análise é freqüentemente o caminho mais curto para descobrir o sentido de um sonho. - Assim, em certa ocasião, sonhei que estava sentado num banco com um de meus antigos professores universitários, e que o banco, cercado por outros, deslocava-se para a frente em rápida velocidade. Isso era uma combinação de um salão de conferências com um trottoir roulant. Não levarei mais adiante esta seqüência de idéias. - Noutra ocasião, eu estava sentado num vagão de trem e segurava no colo um objeto com o formato de uma cartola [“Zylinderhut”, literalmente “chapeú cilíndrico”], mas que era feito de vidro transparente. Essa situação fez-me pensar no provérbio: Mit den Hute in der Hand kommt man duchs ganze Land. O cilindro de vidro levou-me, por um curto desvio, a pensar na camisa de um lampião de gás incandescente [lâmpada de Auer], e logo percebi que eu gostaria de fazer uma descoberta que me tornasse tão rico e independente quanto meu compatriota, o Dr. Auer von Welsbach, tornou-se pela sua, e que gostaria de viajar em vez de permanecer em Viena. No sonho, eu estava viajando com minha descoberta, o chapéu em forma de cilindro de vidro - uma descoberta que por certo ainda não tinha grande utilidade prática. - O trabalho do sonho gosta particularmente de reproduzir duas representações contrárias por uma mesma formação mista. Assim, por exemplo, uma mulher teve um sonho em que se via carregando um alto ramo de flores, tal como o que o anjo carrega nos quadros que representam a Anunciação. (Isso representava a inocência; aliás, o nome dela era Maria.) Por outro lado, o ramo estava coberto de grandes flores brancas semelhantes a camélias. (Isso representava o oposto da inocência e estava associado com A dama das camélias.)
Boa parte do que aprendemos sobre a condensação nos sonhos pode ser resumida nesta fórmula: cada elemento do conteúdo do sonho é “sobredeterminado” pelo material dos pensamentos oníricos; não decorre de um único elemento dos pensamentos oníricos, podendo sua origem remontar a toda uma série deles. Esses elementos não precisam necessariamente ter uma estreita relação mútua nos próprios pensamentos oníricos; podem pertencer às mais distantes e diversas regiões a trama desses pensamentos. O elemento onírico é, no sentido mais estrito da palavra, o “representante” de todo esse material diverso no conteúdo do sonho. Mas a análise revela ainda um outro lado da complexa relação entre o conteúdo do sonho e os pensamentos oníricos. Assim como as ligações levam de cada elemento do sonho a diversos pensamentos oníricos, também cada pensamento onírico isolado, em geral, é representado por mais de um elemento do sonho; os fios da associação não convergem simplesmente dos pensamentos oníricos para o conteúdo do sonho, mas se cruzam e entrelaçam muitas vezes no curso de sua jornada.
A condensação, juntamente com a transformação dos pensamentos em situações (“dramatização”) é a característica mais importante e peculiar do trabalho do sonho. Até agora, porém, nada transpirou sobre algum motivo que pudesse exigir essa compressão do material.

V

No caso dos sonhos complicados e confusos em que estamos agora interessados, a simples condensação e dramatização não bastam para explicar a totalidade da impressão que nos causa a dessemelhança entre o conteúdo do sonho e os pensamentos oníricos. Temos provas da operação de um terceiro fator, e essas provas merecem cuidadosa triagem.
Antes de mais nada, quando chegamos, por meio da análise, ao conhecimento dos pensamentos oníricos, observamos que o conteúdo manifesto do sonho lida com um material inteiramente diferente dos pensamentos latentes. Isso, por certo, não passa de uma aparência que se evapora ante um exame mais detido, pois acabamos descobrindo que a totalidade do conteúdo do sonho deriva dos pensamentos oníricos e que quase todos os pensamentos oníricos se acham representados no conteúdo do sonho. Não obstante, ainda persiste algo dessa diferença. O que sobressai nítida e claramente do sonho como seu conteúdo essencial tem de se contentar, depois da análise, em desempenhar um papel extremamente subalterno entre os pensamentos oníricos; e aquilo que, ante a prova dada por nossos sentimentos, tem direito a ser o mais proeminente entre os pensamentos oníricos, ou bem não se acha presente como material de representações no conteúdo do sonho ou recebe apenas uma alusão remota em alguma região obscura do sonho. Podemos expressar isso da seguinte maneira: no decurso do trabalho do sonho, a intensidade psíquica se transfere dos pensamentos e representações a que propriamente corresponde para outros que, a nosso juízo, não têm nenhum direito a essa ênfase. Nenhum outro processo contribui tanto para ocultar o sentido do sonho e para tornar irreconhecível a ligação entre o conteúdo onírico e os pensamentos oníricos. No decorrer desse processo, que descreverei como “deslocamento onírico”, a intensidade psíquica, a importância ou a potencialidade afetiva dos pensamentos se transforma, como constatamos ainda, em vividez sensorial. Presumimos, sem maiores considerações, que o elemento mais nítido no conteúdo manifesto de um sonho é o mais importante, mas, na verdade [graças ao deslocamento ocorrido], muitas vezes um elemento indistinto é o que se revela como o derivado mais direto do pensamento onírico essencial.

O que chamei de deslocamento onírico poderia ser igualmente descrito [na expressão de Nietzsche] como “uma transposição dos valores psíquicos”. Mas não terei feito uma apreciação exaustiva desse fenômeno enquanto não acrescentar que esse trabalho de deslocamento ou transposição de valores é executado em graus muito variáveis nos diferentes sonhos. Há sonhos que se produzem quase sem nenhum deslocamento. São eles os que fazem sentido e são inteligíveis, como, por exemplo, aqueles que reconhecemos como sonhos de desejo indisfarçados. Por outro lado, existem sonhos em que nem um fragmento sequer dos pensamentos oníricos preservou seu próprio valor psíquico, ou nos quais tudo o que era essencial nos pensamentos oníricos foi substituído por algo trivial. E entre esses dois extremos podemos encontrar toda uma série de casos transicionais. Quanto mais obscuro e confuso parece um sonho, maior a parcela atribuível ao fator do deslocamento em sua formação.
Nosso exemplo de sonho exibe pelo menos um grau de deslocamento tal que seu conteúdo parece ter um centro diferente do de seus pensamentos oníricos. No primeiro plano do conteúdo do sonho, ocupa lugar proeminente uma situação em que uma mulher parece me fazer investidas amorosas; já nos pensamentos oníricos, a ênfase principal recai sobre o desejo de ao menos uma vez desfrutar de um amor desinteressado, um amor que “não custe nada”, idéia esta que se oculta por trás da frase a respeito dos “olhos tão bonitos” [“belos olhos”] e da alusão forçada a “espinafre”.
Se desfazemos o deslocamento onírico por meio da análise, obtemos o que parecem ser informações completamente fidedignas sobre dois problemas muito debatidos no tocante aos sonhos: seus instigadores e sua ligação com a vida de vigília. Há sonhos que revelam imediatamente sua derivação dos acontecimentos do dia; em outros não se descobre nenhum vestígio dessa derivação. Quando pedimos ajuda à análise, descobrimos que todo sonho, sem nenhuma exceção possível, remonta a uma impressão dos últimos dias ou, como provavelmente seria mais correto dizer, do dia imediatamente anterior ao sonho, do “dia do sonho”. A impressão que desempenha o papel de instigador do sonho pode ser tão importante que não nos surpreenda o fato de nos ocuparmos dela durante o dia e, nesse caso, dizemos do sonho, acertadamente, que ele dá prosseguimento aos interesses significativos de nossa vida de vigília. Em geral,porém, quando se encontra no conteúdo do sonho uma ligação com alguma impressão da véspera, essa impressão é tão banal, insignificante e indigna de ser lembrada que é somente com dificuldade que nós mesmos conseguimos recordá-la. E nesses casos, o próprio conteúdo do sonho, mesmo que seja coerente e inteligível, parece ocupar-se das mais indiferentes trivialidades, que seriam indignas de nosso interesse se estivéssemos acordados. Boa parte do desprezo que se vota aos sonhos deve-se à preferência assim mostrada em seu conteúdo pelo que é indiferente e trivial.
A análise desfaz a aparência enganadora em que se fundamenta esse juízo desdenhoso. Se o conteúdo do sonho destaca alguma impressão indiferente como sua instigadora, a análise invariavelmente traz à luz uma vivência significativa, pela qual o sonhador tem boas razões para ser estimulado. Essa vivência foi substituída pela indiferente, com a qual está ligada por abundantes vínculos associativos. Enquanto o conteúdo do sonho trata de um material de representações insignificante e desinteressante, a análise desvenda as numerosas vias associativas que ligam essas trivialidades com coisas da mais alta importância psíquica na estimativa do sonhador. Se o que penetra no conteúdo dos sonhos são impressões e material indiferentes e triviais, e não justificadamente estimuladores e interessantes, isso é apenas o efeito do processo de deslocamento. Se respondermos a nossas perguntas sobre os instigadores do sonho e a vinculação entre o sonhar e os assuntos cotidianos com base no novo discernimento que adquirimos da substituição do conteúdo manifesto pelo conteúdo latente dos sonhos, chegaremos às seguintes conclusões: os sonhos nunca se ocupam de coisas que não julgaríamos merecedoras de nosso interesse durante o dia, e as trivialidades que não nos afetam durante o dia são incapazes de acompanhar-nos em nosso sono.
Qual foi o instigador do sonho no exemplo que escolhemos para análise? Foi o evento decididamente insignificante de meu amigo ter-me oferecido uma corrida de táxi gratuita. A situação da table d’hôte no sonho continha uma alusão a essa causa precipitante banal, pois, em minha conversa, eu havia comparado o taxímetro a uma table d’hôte. Mas posso também apontar a vivência importante representada por essa vivência trivial. Alguns dias antes, eu desembolsara uma considerável soma em dinheiro em favor de um membro de minha família que me é querido. Não surpreende, diziam os pensamentos oníricos, que essa pessoa se sentisse grata a mim: um amor desses não seria “gratuito”. O amor gratuito, porém, ficou em primeiro plano nos pensamentos oníricos. O fato de, não muito antes, eu ter feito diversas corridas de táxi com o parente em questão tornou possível que a corrida de táxi com meu amigo me lembrasse de minhas ligações com essa outra pessoa.
A impressão indiferente que se torna instigadora do sonho graças a esse tipo de associações está sujeita a uma outra condição que não se aplica à verdadeira fonte do sonho: ela deve ser sempre uma impressão recente, que provenha do dia do sonho.
Não posso abandonar o tema do deslocamento onírico sem chamar atenção para um processo notável que ocorre na formação dos sonhos e no qual a condensação e o deslocamento combinam-se para produzir o resultado. Ao examinarmos a condensação, já vimos a maneira como duas representações dos pensamentos oníricos que tenham algo em comum, algum ponto de contato, são substituídas no conteúdo do sonho por uma representação composta, na qual um núcleo relativamente nítido retrata o que elas têm em comum, enquanto alguns detalhes colaterais indistintos correspondem aos aspectos em que elas diferem entre si. Quando, além da condensação, ocorre o deslocamento, o que se forma não é uma representação mista, mas sim uma “entidade comum intermediária”, que mantém com os dois elementos diferentes uma relação semelhante à que é mantida pela resultante de um paralelograma de forças com seus componentes. Por exemplo, no conteúdo de um de meus sonhos, falava-se numa injeção de propil. De início, a análise levou-me apenas a uma vivência indiferente que agira como instigadora do sonho e na qual tinha havido uma participação da amila. Ainda não me era possível justificar a confusão entre amila e propil. No grupo de representações por trás do mesmo sonho, entretanto, havia também uma recordação de minha primeira visita a Munique, onde o Propileu me havia chamado a atenção. Os pormenores da análise tornavam plausível supor que a influência desse segundo grupo de representações sobre o primeiro é que fora responsável pelo deslocamento de amila para propil. Propil é, por assim dizer, uma representação intermediária entre amila e propileu, e penetrou no conteúdo do sonho como uma espécie de compromisso, através de condensação e deslocamento simultâneos.

Mais ainda do que no processo de condensação, há no processo de deslocamento uma premente necessidade de descobrir o motivo desses enigmáticos esforços por parte do trabalho do sonho.

VI

É o processo de deslocamento o principal responsável por sermos incapazes de descobrir ou reconhecer os pensamentos oníricos no conteúdo do sonho, a menos que compreendamos a razão de sua distorção. Não obstante, os pensamentos oníricos são também submetidos a outra forma de transformação, mais suave, que leva à descoberta de uma nova conquista por parte do trabalho do sonho, porém uma conquista facilmente inteligível. Os primeiros pensamentos oníricos com que deparamos ao prosseguir na análise freqüentemente nos impressionam pela forma inusitada em que são expressos; não se revestem da linguagem sóbria que costuma ser empregada por nossos pensamentos, mas, ao contrário, são simbolicamente representados por meio de símiles e metáforas, em imagens semelhantes às do discurso poético. Não há dificuldade em explicar o constragimento imposto à forma pela qual os pensamentos oníricos se expressam. O conteúdo manifesto dos sonhos consiste, em sua maior parte, em situações pictóricas, e os pensamentos oníricos, por conseguinte, devem ser submetidos, em primeiro lugar, a um tratamento que os torne adequados a esse tipo de representação. Se nos imaginarmos diante do problema de representar os argumentos de um editorial político ou os discursos dos advogados perante um tribunal numa série de imagens, compreenderemos com facilidade as modificações que precisam necessariamente ser efetuadas pelo trabalho do sonho, devido a considerações à representabilidade no conteúdo do sonho.
O material psíquico dos pensamentos oníricos inclui, habitualmente, recordações de vivências marcantes - não raro da primeira infância - que portanto são em si percebidas, em geral, como situações que têm um conteúdo visual. Sempre que surge a possibilidade, essa parte dos pensamentos oníricos exerce uma influência decisiva sobre a forma assumida pelo conteúdo do sonho; constitui, por assim dizer, um núcleo de cristalização que atrai para si o material dos pensamentos oníricos e, desse modo, afeta sua distribuição. A situação do sonho não é, com freqüência, outra coisa senão uma repetição modificada, e complicada por interpolações, de uma dessas vivências marcantes; por outro lado, as reproduções fiéis e diretas de cenas reais raramente aparecem nos sonhos.

O conteúdo dos sonhos, todavia, não consiste inteiramente em situações, mas inclui também fragmentos desconexos de imagens visuais, ditos e até fragmentos de pensamentos inalterados. Portanto, talvez seja interessante enumerar muito sucintamente os modos de representação de que dispõe o trabalho do sonho para reproduzir os pensamentos oníricos na forma peculiar de expressão necessária aos sonhos.
Os pensamentos oníricos a que chegamos por meio da análise revelam-se como um complexo psíquico da mais intricada estrutura possível. Suas partes mantêm entre si as mais variadas relações lógicas: representam primeiros planos e panos de fundo, condições, digressões e ilustrações, seqüências de provas e contra-argumentações. Cada cadeia de pensamentos é quase invariavelmente acompanhada por sua contrapartida contraditória. Não falta a esse material nenhuma das características que nos são familiares por nosso pensamento de vigília. Ora, quando tudo isso tem de ser transformado num sonho, o material psíquico é submetido a uma pressão que o condensa enormemente, a uma fragmentação interna e a um deslocamento que criam, por assim dizer, novas superfícies, e a uma operação seletiva em prol de suas partes mais apropriadas para construir situações. Ao levarmos em conta a gênese do material, um processo dessa natureza merecerá ser descrito como uma “regressão”. No curso dessa transformação, contudo, perdem-se os vínculos lógicos que até então mantinham unido o material psíquico. É somente o conteúdo substantivo dos pensamentos oníricos, por assim dizer, que o trabalho do sonho domina e manipula. A restauração das ligações destruídas pelo trabalho do sonho é uma tarefa a ser executada pelo trabalho de análise.
Portanto, os meios de expressão ao alcance do sonho podem ser qualificados de escassos em comparação com os de nossa linguagem intelectual; ainda assim, o sonho não precisa abandonar por completo a possibilidade de reproduzir as relações lógicas presentes nos pensamentos oníricos. Pelo contrário, ele logra com bastante freqüência substituí-los por características formais de sua própria urdidura.
Em primeiro lugar, os sonhos levam em conta a ligação que inegavelmente existe entre todas as partes dos pensamentos oníricos, combinando a totalidade do material numa única situação. Reproduzem o encadeamento lógico pela proximidade no tempo e no espaço, assim como um pintor representa todos os poetas num único grupo num quadro do Parnaso. É verdade que eles nunca estiveram de fato reunidos num único cimo de montanha, mas certamente formam um grupo conceitual. Os sonhos levam esse método de representação aos mínimos detalhes e, freqüentemente, quando nos mostram muito próximos dois elementos do conteúdo do sonho, isso indica que há alguma ligação especialmente íntima entre o que a eles corresponde nos pensamentos oníricos. A propósito, cabe observar que todos os sonhos produzidos numa mesma noite dão a conhecer, na análise, que derivam do mesmo círculo de pensamentos.
A relação causal entre dois pensamentos ou é deixada sem representação, ou é substituída por uma seqüência de dois trechos de sonho de extensão diferente. Aqui, a representação freqüentemente se inverte, com o princípio do sonho representando a conseqüência, e sua conclusão, a premissa. A transformação imediata de uma coisa em outra no sonho parece representar a relação de causa e efeito.
A alternativa “ou… ou” nunca se expressa nos sonhos, sendo ambas as alternativas inseridas no texto do sonho como se fossem igualmente válidas. Já mencionei que o “ou…ou” empregado no relato do sonho deve ser traduzido por “e”. [Ver em [1].]
As representações opostas são preferencialmente expressas nos sonhos por um único elemento. O “não” parece inexistir no que concerne aos sonhos. A oposição entre dois pensamentos, a relação de inversão, pode ser representada nos sonhos de maneira realmente notável. Pode ser representada pela transformação de outra parte do conteúdo onírico em seu oposto - como numa reflexão a posteriori, por assim dizer. Em breve tomaremos conhecimento de outro método para expressar a contradição. A sensação de inibição do movimento, tão comum nos sonhos, serve também para expressar uma contradição entre dois impulsos, um conflito da vontade.
Uma única dessas relações lógicas - a de similaridade, consonância, a posse de atributos comuns - é favorecida em altíssimo grau pelo mecanismo da formação do sonho. O trabalho do sonho se vale desses casos como base para a condensação onírica, reunindo tudo o que exibe tal concordância numa nova unidade.

Esta breve série de apontamentos grosseiros é insuficiente, por certo, para lidar com toda a gama de meios formais empregados pelos sonhos para a expressão de relações lógicas nos pensamentos oníricos. Os diferentes sonhos formam-se com maior ou menor cuidado nesse aspecto; atêm-se com maior ou menor exatidão ao texto que lhes é apresentado; empregam em maior ou menor grau os expedientes ao alcance do trabalho do sonho. Na segunda dessas alternativas, eles se mostram obscuros, confusos e desconexos. Quando, no entanto, um sonho se afigura obviamente absurdo, quando seu conteúdo inclui um absurdo palpável, isso se dá intencionalmente; seu aparente desprezo por todos os requisitos da lógica expressa parte do conteúdo intelectual dos pensamentos oníricos. O absurdo no sonho significa a presença, nos pensamentos oníricos, de contradição, escárnio e ironia. Uma vez que esta afirmação se opõe de maneira extremamente acentuada à opinião de que os sonhos são produto de uma atividade mental dissociada e acrítica, quero enfatizá-la através de um exemplo.
Um de meus conhecidos, o Sr. M., fora atacado num ensaio com um injustificado grau de violência, ao que todos pensamos, por ninguém menos que Goethe. O Sr. M., naturalmente, ficou arrasado com o ataque. Queixou-se amargamente dele com algumas pessoas que o acompanhavam à mesa; sua veneração por Goethe, entretanto, não foi afetada por essa experiência pessoal. Tentei esclarecer um pouco os dados cronológicos, que me pareciam improváveis. Goethe morreu em 1832. Uma vez que seu ataque ao Sr. M. naturalmente teria sido feito antes disso, o Sr. M. devia ser um homem muito jovem na ocasião. Pareceu-me uma noção plausível que tivesse dezoito anos. Eu não tinha muita certeza, porém, do ano em que escrevíamosde modo que todo o meu cálculo se desfazia na obscuridade. A propósito, o ataque estava contido no famoso ensaio de Goethe sobre a “Natureza”.
O caráter absurdo desse sonho ficará ainda mais flagramente óbvio se eu explicar que o Sr. M. é um homem de negócios ainda moço, que está muito longe de ter quaisquer interesses poéticos e literários. Não tenho dúvidas, porém, de que uma vez penetrando na análise do sonho, conseguirei mostrar quanto “método” existe em seu contra-senso.
O material do sonho decorreu de três fontes:

(1) O Sr. M., com quem travei conhecimento entre algumas pessoas à mesa, pediu-me um dia que examinasse seu irmão mais velho, que estava mostrando sinais de atividade mental perturbada. No decorrer de minha conversa com o paciente ocorreu um episódio embaraçoso, pois ele entregou o irmão, sem nenhuma razão justificável, ao falar sobre suas loucuras da juventude. Eu havia perguntado ao paciente o ano de seu nasciment. (cf. o ano da morte de Goethe, no sonho) e o fizera efetuar diversos cálculos para testar a debilitação de sua memória.
(2) Um periódico médico, que, entre outros, trazia meu nome na folha de rosto, publicara uma crítica positivamente “arrasadora”, feita por um crítico jovem, de um livro de meu amigo F., de Berlim. Pedi explicações disso ao editor, mas, embora expressasse seu pesar, ele se recusou a fazer qualquer retratação. Assim, cortei relações com o periódico, mas, em minha carta de renúncia, expressei a esperança de que nossas relações pessoais não fossem afetadas pelo acontecimento. Essa era a verdadeira fonte do sonho. A recepção desfavorável do trabalho de meu amigo causara-me profunda impressão. O livro continha, em minha opinião, uma descoberta biológica fundamental, que só agora - passados muitos anos - começa a ter boa acolhida dos especialistas.
(3) Uma paciente minha, pouco tempo antes, dera-me uma descrição da enfermidade de seu irmão e de como ele entrara num delírio frenético aos gritos de “Natureza! Natureza!”. Os médicos acreditavam que sua exclamação provinha de ele ter lido o notável ensaio de Goethe sobre esse assunto e que isso denotava que ele se vinha sobrecarregando com um excesso de trabalho em seus estudos. Eu havia comentado parecer-me mais plausível que sua exclamação da palavra “Natureza” fosse tomada no sentido sexual em que é empregada aqui pelas pessoas menos cultas. Pelo menos, pensei, essa minha idéia não foi refutada, dado o fato de que o pobre rapaz depois mutilou seus próprios órgãos genitais. Ele tinha dezoito anos na ocasião de seu surto.
Por trás de meu próprio eu, no conteúdo do sonho, ocultava-se, em primeiro lugar, meu amigo que fora tão maltratado pelo crítico. “Tentei esclarecer um pouco os dados cronológicos.” O livro de meu amigo versava sobre os dados cronológicos da vida e, entre outras coisas, mostrava que a extensão da vida de Goethe era um múltiplo de um certo número de dias que tem importância na biologia. Mas esse eu era comparado com um paralítico: “Eu não tinha muita certeza, porém, do ano em que escrevíamos”. Assim, o sonho fez com que meu amigo parecesse comportar-se como um paralítico e, nesse aspecto, era um amontoado de absurdos. Os pensamentos oníricos, porém, diziam ironicamente: “Naturalmente, ele [meu amigo F.] é que é um tolo, um maluco, e vocês [os críticos] é que são os gênios que sabem de tudo. É claro que não seria o inverso, não é?” Havia inúmeros exemplos dessa inversão no sonho. Por exemplo, Goethe atacava o rapaz, o que é absurdo, ao passo que ainda é fácil um homem bem jovem atacar o grande Goethe.
Eu gostaria de sustentar que nenhum sonho é instigado por moções que não sejam egoístas. Na realidade, o eu desse sonho não representa apenas meu amigo, mas também a mim. Identifiquei-me com ele porque o destino de sua desoberta parecia prenunciar a recepção das minhas. Se eu expusesse minha teoria que ressalta o papel desempenhado pela sexualidade na etiologia dos distúrbios psiconeuróticos (cf. a alusão ao grito de “Natureza! Natureza!” do paciente de dezoito anos), depararia com as mesmas críticas; e já me estava preparando para enfrentá-las com o mesmo escárnio.
Quando prosseguimos no exame dos pensamentos oníricos, continuamos a encontrar o escárnio e o desprezo como correlatos dos absurdos do sonho manifesto. É bem sabido que foi a descoberta do crânio fendido de uma ovelha no Lido de Veneza que deu a Goethe a idéia da chamada teoria “vertebral” do crânio. Meu amigo se vangloria de que, quando estudante, desencadeou uma tempestade que levou à destituição de um velho professor que, embora um dia se tivesse distinguido (entre outras coisas, precisamente em conexão com o mesmo ramo de anatomia comparada), havia-se tornado incapaz de ensinar devido à demência senil. Assim, a agitação provocada por meu amigo serviu para combater o nocivo sistema o segundo qual não existe limite de idade para os funcionários acadêmicos nas universidades alemãs - porque a idade, proverbialmente, não é defesa contra a loucura. - No hospital daqui, tive a honra de servir durante anos sob as ordens de um chefe que há muito era um fóssil e que por décadas fora notoriamente um débil mental, mas que tinha permissão para continuar exercendo seu cargo de responsabilidade. Nesse ponto, pensei num termo descritivo baseado na descoberta do Lido. Alguns de meus jovens contemporâneos de hospital inventaram, a propósito desse homem, uma versão do que era então uma canção popular: Das hat kein Goethe g’schrieben, das hat kein Schiller g’dicht…

VII

Ainda não chegamos ao término de nossa consideração do trabalho do sonho. Além da condensação, do deslocamento e da disposição pictórica do material psíquico, somos obrigados a atribuir-lhe mais uma atividade, embora esta não se mostre em operação em todos os sonhos. Não tratarei exaustivamente dessa parte do trabalho do sonho e, sendo assim, limito-me a observar que a maneira mais fácil de se ter uma representação de sua natureza é supor - embora a suposição provavelmente não corresponda aos fatos - que ela só entra em ação DEPOIS de se ter formado o conteúdo onírico. Sua função consistiria, portanto, em dispor os componentes do sonho de tal maneira que eles formem um todo mais ou menos interligado, uma composição onírica. Desse modo, o sonho recebe uma espécie de fachada (embora, é verdade, ela não oculte seu conteúdo em todos os pontos), e assim recebe uma primeira interpretação preliminar, que é apoiada por interpolações e ligeiras modificações. A propósito, essa elaboração do conteúdo do sonho só é possível quando não é executada com excessiva meticulosidade; ademais, ela não nos oferece nada além de um flagrante mal-entendido dos pensamentos oníricos. Antes de iniciarmos a análise de um sonho, temos que livrar o terreno dessa tentativa de interpretação.
A motivação dessa parte do trabalho do sonho é particularmente óbvia. A consideração à inteligibilidade é o que leva a essa elaboração final do sonho, e isso revela a origem dessa atividade. Frente ao conteúdo onírico que tem diante de si, ela se comporta exatamente como o faz nossa atividade psíquica normal, em geral, diante de qualquer conteúdo perceptivo que lhe seja apresentado. Entende esse conteúdo com base em certas representações antecipatórias e o ordena, já no momento de percebê-lo, segundo a pressuposição de que seja inteligível; assim procedendo, ela corre o risco de falseá-lo e, de fato, quando não consegue harmonizá-lo como algo já familiar, torna-se presa dos mais estranhos mal-entendidos. Como é sabido, somos incapazes de ver uma série de sinais estranhos ou de ouvir uma sucessão de palavras desconhecidas sem falsear de imediato a percepção por uma consideração à inteligibilidade, com base em alguma coisa já conhecida.
Os sonhos que passaram por esse tipo de elaboração por parte de uma atividade psíquica completamente análoga ao pensamento de vigília podem ser descritos como “bem-construídos”. No caso de outros sonhos, essa atividade falhou por completo; não se fez sequer uma tentativa de ordenar ou interpretar o material, e como, depois de acordar, sentimo-nos identificados com essa última parte do trabalho do sonho, formamos o juízo de que o sonho foi “irremediavelmente confuso”. Do ponto de vista da análise, contudo, um sonho que se assemelhe a um amontoamento desordenado de fragmentos desconexos é tão valioso quanto outro cuidadosamente burilado e provido de uma superfície. No primeiro caso, inclusive, é-nos poupado o trabalho de demolir o que foi superposto ao conteúdo onírico.
Seria um equívoco, porém, supor [1] que essas fachadas de sonho não passam de elaborações errôneas e um tanto arbitrárias do conteúdo do sonho pela instância consciente de nossa vida anímica. Na produção da fachada do sonho empregam-se, não raro, fantasias de desejo presentes nos pensamentos oníricos sob forma pré-construída, e que têm o mesmo caráter dos apropriadamente chamados “sonhos diurnos”, que nos são familiares na vida de vigília. As fantasias de desejo reveladas pela análise nos sonhos noturnos com freqüência se revelam repetições ou versões modificadas de cenas da infância; por isso, em alguns casos, a fachada do sonho revela diretamente o núcleo real do sonho, distorcido pela mescla com outro material.
O trabalho do sonho não exibe nenhuma outra atividade senão as quatro que já foram mencionadas. Se nos atemos à definição de “trabalho do sonho” como o processo de transformação dos pensamentos oníricos no conteúdo do sonho, decorre daí que o trabalho do sonho não é criativo, não desenvolve fantasias que lhe sejam próprias, não emite juízos e não tira conclusões; não tem outras funções que não sejam a condensação e o deslocamento do material e sua transmutação em forma pictórica, ao que se deve acrescentar,como fator variável, a parcela final de elaboração interpretativa. É verdade que, no conteúdo do sonho, encontramos diversas coisas que nos inclinaríamos a encarar como produto de alguma outra função intelectual superior, mas, na totalidade dos casos, a análise mostra convincentemente que essas operações intelectuais estavam previamente efetuadas nos pensamentos oníricos e que foram apenas INCORPORADAS pelo conteúdo do sonho. Uma conclusão tirada no sonho nada mais é do que a repetição de uma conclusão dos pensamentos oníricos; quando essa conclusão é transposta para o sonho sem modificação, ela se afigura impecável; quando o trabalho do sonho a desloca para algum outro material, parece absurda. Um cálculo no conteúdo do sonho não significa nada além da existência de um cálculo nos pensamentos oníricos; todavia, enquanto este último é sempre racional, o cálculo do sonho pode produzir os resultados mais desvairados, caso seus fatores sejam condensados ou suas operações matemáticas sejam deslocadas para outro material. Nem sequer os ditos que ocorrem no conteúdo onírico são composições originais; revelam-se uma miscelânea de ditos proferidos, escutados ou lidos, que se reavivaram nos pensamentos oníricos e cujo enunciado é produzido com exatidão, ao passo que sua origem é inteiramente desprezada e seu sentido, violentamente alterado.
Talvez seja bom apoiar estas últimas afirmativas em alguns exemplos.
(1) Eis um sonho bem construído e de aparência inocente, produzido por uma paciente:
Ela sonhou que estava indo ao mercado com a cozinheira, que carregava a cesta. Depois de ela haver pedido algo, o açougueiro lhe disse: “Isso não se consegue mais” e lhe ofereceu outra coisa, acrescentando: “Isto também é bom.” Ela o rejeitou e se dirigiu à mulher que vendia verduras, que tentou convencê-la a comprar uma estranha hortaliça, que vinha amarrada em feixes mas era de cor negra. Disse: “Não reconheço isso: não vou levá-lo.”
O comentário “Isso não se consegue mais” provinha do próprio tratamento. Alguns dias antes, eu havia explicado à paciente, com essas mesmas palavras, que as lembranças infantis mais antigas “não se conseguiam mais como tais”, sendo substituídas, na análise, por “transferências” e sonhos. Portanto, o açougueiro era eu.
O segundo dito - “Não reconheço isso” - ocorrera num contexto inteiramente diverso. No dia anterior, ela havia repreendido a cozinheira, que aliás também aparecia no sonho, com as palavras: “Comporte-se direito! Não reconheço isso!”, querendo dizer, sem dúvida, que não compreendia tal comportamento e não o toleraria. Em conseqüência do deslocamento, foi a parte mais inocente desse dito que penetrou no conteúdo do sonho, mas, nos pensamentos oníricos, apenas a outra parte do dito é que desempenhava um papel. Ocorre que o trabalho do sonho havia reduzido à completa ininteligibilidade e à inocência extrema uma situação fantasiosa em que eu me comportaria de maneira imprópria com essa dama, de um modo especial. Mas essa situação esperada pela paciente em sua fantasia era, por sua vez, apenas uma reedição de algo que ela realmente vivenciara um dia. [1]
(II) Eis um sonho de aparência totalmente sem sentido, contendo números. Ela ia pagar alguma coisa. Sua filha retirou-lhe da bolsa 3 florins e 65 kreuzers, mas ela lhe disse: “O que está fazendo? Custa só 21 kreuzers.”
A sonhadora viera do exterior e sua filha estava numa escola daqui; estaria em condições de prosseguir seu tratamento comigo enquanto a filha permanecesse em Viena. No dia anterior ao sonho, a diretora da escola lhe sugerira que ela deixasse a filha no colégio por mais um ano. Nesse caso, ela também poderia continuar com o tratamento por um ano. As cifras do sonho tornam-se significativas se nos lembrarmos que “tempo é dinheiro”. Um ano é igual a 365 dias ou, expresso em dinheiro, 365 kreuzers, ou 3 florins e 65 kreuzers. Os 21 kreuzers correspondiam às 3 semanas que ainda transcorreriam entre o dia do sonho e o final do período letivo, e também até o término do tratamento da paciente. Evidentemente, eram as considerações financeiras que haviam induzido essa dama a recusar a proposta da diretora e que eram responsáveis pela pequenez das somas mencionadas no sonho.
(III) Uma dama que, embora ainda jovem, já estava casada há vários anos, recebeu a notícia de que uma conhecida sua, a Srta. Elise L., que tinha quase exatamente a sua idade, havia ficado noiva. Essa foi a causa precipitante do seguinte sonho:
Ela estava no teatro com o marido. Um lado da platéia estava completamente vazio. O marido lhe contou que Elise L., e seu noivo tinham querido ir também, mas só haviam conseguido lugares ruins - três por um florim e 50 kreuzers - e, naturalmente, não puderam aceitá-los. Ela pensou que realmente não lhes teria causado nenhum prejuízo fazê-lo.

O que nos interessa aqui é a fonte dos números no material dos pensamentos oníricos e as transformações que sofreram. De onde proviria a cifra de 1 florim e 50 kreuzers? Provinha do que, na realidade, fora um acontecimento irrelevante da véspera. Sua cunhada fora presenteada pelo marido com 150 florins e se apressara a livrar-se deles comprando uma jóia. Convém notar que 150 florins são cem vezes mais que 1 florim e 50 kreuzers. A única ligação com os “três”, que era o número de entradas de teatro, estava em que sua amiga que acabara de ficar noiva era precisamente três meses mais moça que ela. A situação do sonho era a repetição de um pequeno incidente a propósito do qual seu marido freqüentemente fazia troça dela. Em certa ocasião, ela se apressara muito a comprar antecipadamente entradas para uma peça e, ao chegar ao teatro, descobrira que um lado da platéia estava quase completamente vazio. Não teria sido necessário ela se apressar tanto. Por fim, não nos deve passar despercebido o absurdo, no sonho, de duas pessoas comprarem três entradas para uma peça.
Agora, os pensamentos oníricos: “Foi absurdo casar tão cedo. Não teria sido necessário eu me apressar tanto. Pelo exemplo de Elise L., vejo que teria acabado conseguindo um marido. Na verdade, teria conseguido um cem vezes melhor” (uma jóia), “se ao menos tivesse esperado. Meu dinheiro” (ou dote) “poderia ter comprado três homens tão bons quanto ele.”

VIII

Após termos travado conhecimento com o trabalho do sonho através da exposição precedente, ficamos decerto inclinados a considerá-lo um processo psíquico sumamente peculiar, do qual, ao que saibamos, não existe semelhante em parte alguma. É como se transportássemos para o trabalho do sonho todo o assombro que antes costumava ser despertado em nós por seu produto, o sonho. Na realidade, contudo, o trabalho do sonho é apenas o primeiro que descobrimos dentre toda uma série de processos psíquicos responsáveis pela gênese de sintomas histéricos, fobias, obsessões e delírios. A condensação e sobretudo o deslocamento são características invariáveis também desses outros processos. A transmutação numa forma pictórica, por outro lado, permanece como uma peculiaridade do trabalho do sonho. Se esta explicação situa o sonho numa mesma série ao lado das formações produzidas pela doença psíquica, isso torna ainda mais importante que desvendemos as condições determinantes essenciais de processos como os que ocorrem na formação do sonho. É provável que fiquemos surpresos ao saber que nem o estado de sono nem a doença encontram-se entre essas condições indispensáveis. Toda uma série de fenômenos da vida cotidiana das pessoas sadias - como o esquecimento, os lapsos de linguagem, os atos falhos e uma certa classe de erros - deve sua origem a um mecanismo psíquico análogo ao dos sonhos e ao dos outros membros da série.
O âmago do problema está no deslocamento, que é, decididamente, a mais notável das singulares conquistas do trabalho do sonho. Quando nos aprofundamos no assunto, passamos a compreender que a condição determinante essencial do deslocamento é puramente psicológica: algo da ordem de uma motivação. Deparamos com seu rastro ao levarmos em consideração certas vivências a que não nos podemos furtar na análise dos sonhos. Ao analisar meu sonho-modelo, fui obrigado a interromper meu relato dos pensamentos oníricos, em [1], porque, como confessei, havia entre eles alguns que eu preferiria ocultar dos estranhos e que não poderia comunicar a outras pessoas sem grave prejuízo para importantes aspectos pessoais. Acrescentei que nada se ganharia se eu escolhesse outro sonho em vez daquele para comunicar sua análise: esbarraria em pensamentos oníricos que exigiriam manter-se em segredo no caso de todo sonho de conteúdo obscuro ou confuso. Entretanto, se prosseguisse na análise por minha própria conta, sem nenhuma referência a outras pessoas (a quem, na realidade, uma experiência tão pessoal quanto meu sonho não poderia estar destinada), eu acabaria chegando a pensamentos que me surpreenderiam, de cuja presença em mim eu não estaria ciente, que me seriam não apenas estranhos, mas também desagradáveis, e que, portanto, eu me sentiria inclinado a contestar energicamente, embora a cadeia de pensamentos que perpassa a análise insistisse neles de maneira implacável. Há apenas um modo de explicar esse estado de coisas, que é de ocorrência bastante universal; trata-se de supor que esses pensamentos realmente estavam presentes em minha vida anímica, de posse de uma certa intensidade ou energia psíquicas, mas que se encontravam numa situação psicológica peculiar, em conseqüência da qual não podiam tornar-se conscientes para mim. (Descrevo esse estado particular como sendo um estado de “recalcamento”.) Não posso deixar de concluir, então, que existe um vínculo casual entre a obscuridade do conteúdo do sonho e o estado de recalcamento (inadmissibilidade à consciência) de alguns dos pensamentos oníricos, e que o sonho se veria forçado a ser obscuro para não trair os pensamentos oníricos proscritos. Assim, chegamos ao conceito de uma “distorção onírica”, que é produto do trabalho do sonho e serve à finalidade da dissimulação, ou seja, do disfarce.
Quero submeter isso à prova do sonho-modelo que escolhi para análise e indagar qual foi o pensamento que penetrou no sonho sob forma distorcida e que eu estaria inclinado a repudiar se assim não fosse. Lembro que minha corrida gratuita de táxi me fizera recordar minha recente e dispendiosa corrida com um membro de minha família, que a interpretação do sonho fora “Quisera poder um dia experimentar um amor que não me custasse nada”; e que, pouco tempo antes do sonho, eu fora obrigado a despender uma considerável soma em dinheiro por causa dessa mesma pessoa. Tendo em mente esse contexto, não posso fugir à conclusão de que lamento ter feito essa despesa. Só depois de reconhecer essa moção é que meu desejo de um amor que não me exigisse nenhum gasto, no sonho, adquire sentido. Não obstante, posso honestamente dizer que, quando decidi gastar aquela importância, não hesitei por um só momento. Meu pesar por ter de fazê-lo - a corrente contrária de sentimento - não se tornou consciente para mim. Por que não o fez é outra questão, que nos levaria muito longe e cuja resposta me é conhecida, mas pertence a outro contexto.
Se analiso um sonho que não é meu, mas de outra pessoa, a conclusão é a mesma, embora as razões para acreditar nela sejam diferentes. Quando o sonhador é uma pessoa sadia, não me resta outro recurso para obrigá-la a reconhecer as idéias recalcadas que foram descobertas senão apontar o contexto dos pensamentos oníricos, e nada posso fazer se ela se recusa a reconhecê-los. Quando, no entanto, lido com um paciente neurótico, um histérico, por exemplo, ele constata que a aceitação do pensamento recalcado lhe é obrigatória, graças a sua vinculação com os sintomas da doença e à melhora que ele experimenta quando troca esses sintomas pelas idéias recalcadas. No caso, por exemplo, da paciente que teve o sonho recém-citado com os três ingressos de teatro que custavam 1 florim e 50 kreuzers, a análise levou à inevitável conclusão de que ela menosprezava seu marido (cf. sua idéia de que poderia ter conseguido outro “cem vezes melhor”), lamentava haver-se casado com ele e gostaria de trocá-lo por outro. É verdade que ela afirmava amar o marido e que sua vida afetiva nada sabia desse menosprezo por ele, mas todos os seus sintomas levavam à mesma conclusão que o sonho. E, depois de se haverem revivido lembranças recalcadas de um certo período em que, conscientemente, ela não amara o marido, seus sintomas se dissiparam e sua resistência à interpretação do sonho desapareceu.

IX

Agora que estabelecemos o conceito de recalcamento e relacionamos a distorção do sonho com o material psíquico recalcado, podemos expressar em termos gerais a principal descoberta a que fomos levados pela análise dos sonhos. No caso dos sonhos inteligíveis e providos de sentido, descobrimos que eles são realizações do desejo indisfarçadas, isto é, que, em seu caso, a situação onírica representa como realizado um desejo conhecido pela consciência, que ficou pendente da vida diurna e é merecidamente digno de interesse. A análise nos ensinou algo inteiramente análogo no caso dos sonhos obscuros e confusos: também aí a situação onírica representa um desejo como realizado - um desejo invariavelmente oriundo dos pensamentos oníricos, mas que é representado de forma irreconhecível e só pode ser explicado quando, na análise, remonta-se à sua origem. Nesses casos, ou o próprio desejo é recalcado e estranho à consciência, ou está intimamente ligado a pensamentos recalcados e neles se baseia. Portanto, a fórmula para esses sonhos é a seguinte: eles são realizações disfarçadas de desejos recalcados. É interessante, nesse contexto, observar que se confirma a crença popular de que os sonhos sempre prevêem o futuro. Na realidade, o futuro que o sonho nos mostra não é o futuro que ocorrerá, mas o que gostaríamos que ocorresse. A alma popular comporta-se aqui como geralmente o faz: acredita no que deseja.
Os sonhos se enquadram em três classes, conforme sua atitude para com a realização de desejo. A primeira classe consiste nos que representam indisfarçadamente um desejo não recalcado; são os sonhos de tipo infantil que se tornam cada vez mais raros nos adultos. Em segundo lugar, há os sonhos que expressam disfarçadamente um desejo recalcado; estes, indubitavelmente, constituem a esmagadora maioria de todos os nossos sonhos e exigem análise para serem compreendidos. Em terceiro lugar, temos os sonhos que representam um desejo recalcado, mas o fazem com um disfarce insuficiente ou sem disfarce. Estes últimos sonhos são invariavelmente acompanhados de angústia, que os interrompe. Em seu caso, a angústia ocupa o lugar da distorção onírica e, nos sonhos da segunda classe, a angústia só é evitada graças ao trabalho do sonho. Não há grande dificuldade em provar que o conteúdo de representações que nos gera angústia nos sonhos foi outrora um desejo, mas passou desde então pelo recalcamento.
Há também sonhos claros de conteúdo aflitivo, mas que no próprio sonho não é sentido como aflitivo. Por essa razão, não podem ser considerados como sonhos de angústia, mas sempre foram usados como prova de que os sonhos não têm sentido nem valor psíquico. A análise de um desses sonhos mostrará que estamos lidando com realizações bem disfarçadas de desejos recalcados, ou seja, com um sonho da segunda classe; mostrará também a admirável aptidão do processo de deslocamento para disfarçar desejos.
Uma moça sonhou ver morto diante de si o único filho que restara a sua irmã, nas mesmas circunstâncias em que, poucos anos antes, realmente vira o cadáver do primeiro filho da irmã. Não sentiu nenhuma dor frente a isso, mas, naturalmente, rejeitou a idéia de que essa situação representasse algum desejo seu. Tampouco havia necessidade de se supor isso. Mas fora ao lado do ataúde da primeira criança que, anos antes, ela vira e falara com o homem de quem estava enamorada; se o segundo filho morresse, ela sem dúvida reencontraria esse homem na casa de sua irmã. Ela ansiava por tal encontro, mas lutava contra esse sentimento. No dia do sonho, havia comprado um ingresso para uma conferência a ser proferida por esse mesmo homem, por quem ainda estava apaixonada. Seu sonho foi um simples sonho de impaciência, do tipo que ocorre com freqüência antes de viagens, idas ao teatro e outros prazeres semelhantes esperados no futuro. Entretanto, para disfarçar de si mesma esse anseio, a situação foi deslocada para um acontecimento de natureza extremamente inadequada para produzir um sentimento de júbilo, embora de fato o tivesse feito no passado. Convém observar que o comportamento afetivo no sonho era apropriado ao conteúdo real que estava em segundo plano, e não ao que fora impelido para o primeiro plano. A situação onírica antecipava o encontro há tanto desejado por ela; não oferecia nenhuma base para sentimentos penosos.

X

Até o presente, os filósofos não tiveram oportunidade de se interessarem por uma psicologia do recalcamento. É lícito, portanto, que nos permitamos fazer uma primeira abordagem desse tema até hoje desconhecido através da criação de uma imagem pictórica do curso dos acontecimentos na formação do sonho. É verdade que o quadro esquemático a que chegamos - não apenas a partir do estudo dos sonhos - é bastante complicado, mas não podemos trabalhar com algo mais simples. Nossa hipótese é que, em nosso aparelho anímico, existem duas instâncias formadoras do pensamento, das quais a segunda goza do privilégio de que seus produtos tenham livre acesso à consciência, ao passo que a atividade da primeira é em si inconsciente e só pode chegar à consciência por intermédio da segunda. Na fronteira entre as duas instâncias, na passagem da primeira para a segunda, há uma censura que só deixa passar o que lhe é agradável e retém tudo o mais. De acordo com nossa definição, portanto, o que é rejeitado pela censura fica em estado de recalcamento. Em certas condições, uma das quais é o estado de sono, a relação de forças entre as duas instâncias se modifica de tal maneira que o recalcado não pode mais ser refreado. No estado de sono, isto provavelmente ocorre graças a um relaxamento da censura; quando isso acontece, torna-se possível ao que até então estava recalcado facilitar-se o caminho para a consciência. Entretanto, visto que a censura nunca é completamente eliminada, mas simplesmente reduzida, o material recalcado tem de submeter-se a certas alterações que atenuam seus aspectos ofensivos. O que se torna consciente, nesses casos, é um compromisso entre as intenções de uma das instâncias e as exigências da outra. Recalcamento - relaxamento da censura - formação de compromisso: este é o modelo básico da gênese não apenas de sonhos, mas também de muitas outras estruturas psicopatológicas; e nesses casos podemos observar também que a formação de compromisso é acompanhada por processos de condensação e deslocamento e pelo emprego de associações superficiais, com as quais nos familiarizamos no trabalho do sonho.
Não temos nenhuma razão para encobrir o fato de que, na hipótese que formulamos para explicar o trabalho do sonho, um papel é desempenhado pelo que se poderia descrever como um elemento “demoníaco”. Tivemos a impressão de que a formação dos sonhos obscuros ocorre como se uma pessoa que fosse dependente de uma segunda tivesse de fazer um comentário fadado a ser desagradável ao ouvidos desta segunda, e foi com base nesse símile que chegamos aos conceitos de distorção onírica e censura, esforçando-nos por traduzir nossa impressão numa teoria psicológica sem dúvida grosseira, mas que pelo menos é lúcida. Com o que quer que a investigação adicional do assunto nos permita identificar nossa primeira e segunda instâncias, podemos seguramente esperar a confirmação de um correlato de nossa hipótese de que a segunda instância controla o acesso à consciência e pode barrar esse acesso à primeira.
Quando termina o estado de sono, a censura recupera prontamente sua plena força e pode então eliminar tudo o que dela foi conquistado durante o seu período de fraqueza. Esta deve ser pelo menos parte da explicação do esquecimento dos sonhos, como mostra uma observação já confirmada em incontáveis ocasiões. Durante o relato de um sonho ou durante sua análise, não é raro ressurgir um fragmento do conteúdo onírico que parecia esquecido. Esse fragmento resgatado do olvido invariavelmente nos proporciona o melhor e mais direto acesso ao sentido do sonho. E, com toda a probabilidade, essa deve ter sido a única razão para que fosse esquecido, ou seja, para que fosse novamente suprimido.

XI

Uma vez que reconheçamos que o conteúdo do sonho é a representação de um desejo realizado e que sua obscuridade se deve a alterações feitas pela censura no material recalcado, não mais teremos qualquer dificuldade em descobrir a função dos sonhos. Afirma-se comumente que o sono é perturbado pelos sonhos, mas, curiosamente, somos levados a uma visão contrária e temos de encarar o sonho como guardião do sono.
No caso dos sonhos das crianças, não haveria dificuldade em aceitar essa afirmação. O estado de sono ou alteração psíquica implicada no sono, seja ela qual for, é promovido por uma decisão de dormir que é imposta à criança ou à qual ela chega com base nas sensações de fadiga, e que só é possibilitada pelo afastamento de estímulos que possam sugerir ao aparelho psíquico outros objetivos que não o de dormir. Os meios pelos quais é possível manter afastados os estímulos externos são-nos conhecidos; mas quais são os meios disponíveis para controlar os estímulos psíquicos internos que se opõem ao adormecimento? Observemos uma mãe que esteja fazendo seu filho dormir. A criança expressa um fluxo incessante de desejos: quer mais um beijo, quer continuar brincando. A mãe satisfaz alguns desses desejos, mas usa sua autoridade para adiar outros para o dia seguinte. É claro que os desejos ou necessidades que possam surgir exercem um efeito inibidor sobre o adormecimento. Todos conhecemos a divertida história contada por Balduin Groller [um popular romancista austríaco do século XIX] sobre o garotinho malcriado que acordou no meio da noite e gritou no quarto das crianças: “Eu quero o rinoceronte!” Uma criança mais bem-comportada, em vez de gritar, teria sonhado que estava brincando com o rinoceronte. Uma vez que se acredita no sonho que mostra realizado o desejo durante o sono, ele anula o desejo e possibilita o dormir. Não há como contestar que as imagens oníricas suscitam essa crença, pois se revestem da aparência psíquica das percepções, e as crianças ainda não adquiriram a faculdade posterior de distinguir as alucinações ou fantasias da realidade.
Os adultos já aprenderam a fazer essa distinção; também já se aperceberam da inutilidade do desejar e, após uma longa prática, sabem como adiar seus desejos até que eles possam realizar-se pelo caminho longo e indireto da alteração do mundo exterior. No caso deles, por conseguinte, as realizações de desejo pelo curto caminho psíquico são raras também no sono; a rigor, é possível até que jamais ocorram, e que tudo o que nos parece formado à maneira de um sonho infantil exija, na realidade, uma solução muito mais complexa. Por outro lado, no caso dos adultos - e isto decerto se aplica sem exceção a qualquer pessoa na plena posse de seus sentidos -, já ocorreu no material psíquico uma diferenciação que não está presente nas crianças. Surgiu uma instância psíquica que, ensinada pela experiência da vida, exerce uma influência dominadora e inibidora sobre as moções anímicas e mantém essa influência com zelosa severidade, e que, devido a sua relação com a consciência e com a motilidade voluntária, está provida dos mais fortes instrumentos de poder psíquico. Parte das moções infantis foi suprimida por essa instância como sendo inútil à vida, e todo o material de pensamento oriundo dessas moções encontra-se em estado de recalcamento.
Ora, enquanto essa instância, na qual reconhecemos nosso eu normal, concentra-se no desejo de dormir, parece ser compelida pelas condições psicofisiológicas do sono a relaxar a energia com que está habituada a conter o material recalcado durante o dia. Por si só, é claro, esse relaxamento não causa nenhum dano; por mais que as moções suprimidas da alma infantil possam agitar-se, seu acesso à consciência é ainda difícil e seu acesso à motilidade é barrado, em decorrência desse mesmo estado de sono. Mas é preciso resguardar-se do perigo de o sono ser perturbado por elas. Pelo menos, devemos supor que, mesmo durante o sono profundo, um certo quantum de atenção livre monta guarda contra os estímulos sensoriais e que esse guarda pode às vezes considerar mais aconselhável o despertar do que a continuação do sono. De outra maneira, não se explicaria que possamos ser acordados a qualquer momento por estímulos sensoriais de uma certa qualidade. Como já insistia há muito tempo o fisiologista Burdach [1838, 486], a mãe, por exemplo, é acordada pelo choramingar de seu bebê; o moleiro, pela paralisação de seu moinho; e a maioria das pessoas, ao ser suavemente chamada por seu próprio nome. Ora, a atenção que assim está em alerta é também dirigida para os estímulos internos de desejo provenientes do material recalcado e se combina com eles para formar o sonho, que, como compromisso, satisfaz simultaneamente a ambas as instâncias. O sonho proporciona uma espécie de consumação psíquica ao desejo suprimido (ou formado com o auxílio do material recalcado), representando-o como realizado; mas atende também à outra instância, permitindo que o sono prossiga. Nesse aspecto, nosso eu tende a se comportar como uma criança; dá crédito às imagens do sonho, como se quisesse dizer: “Sim, sim! Você tem toda a razão, mas deixe-me continuar dormindo!” O menosprezo que mostramos pelo sonho quando acordados e que relacionamos com seu caráter confuso e aparentemente ilógico, provavelmente não passa do julgamento proferido por nosso eu adormecido sobre as moções recalcadas, julgamento este que se apóia, com pleno direito, na impotência motora desses perturbadores do sono. Por vezes nos damos conta, durante o sono, desse julgamento desdenhoso. Quando o conteúdo do sonho excede a censura em demasia, pensamos: “Afinal, é apenas um sonho!” - e continuamos a dormir.
Essa visão não se contradiz pelo fato de haver casos marginais em que o sonho - como acontece com os sonhos de angústia - já não consegue desempenhar sua função de impedir a interrupção do sono e assume, em vez disso, a outra função de fazê-lo cessar prontamente. Assim procedendo, comporta-se simplesmente como um vigia noturno consciencioso, que primeiro cumpre seu dever pela supressão das perturbações, para que os cidadãos não sejam despertados, mas depois continua a cumpri-lo, indo ele próprio acordar os cidadãos, quando as causas da perturbação lhe parecem graves e de um tipo que ele não pode enfrentar sozinho.
A função de sonho como guardião do sono torna-se particularmente evidente quando um estímulo externo incide sobre os sentidos da pessoa adormecida. Em geral se reconhece que os estímulos sensoriais surgidos durante o sono influenciam o conteúdo dos sonhos; isso pode ser experimentalmente comprovado e figura entre as poucas descobertas acertadas (e, aliás, muito supervalorizadas) da investigação médica dos sonhos. Mas essa descoberta envolve um enigma que até hoje se mostra insolúvel. É que o estímulo sensorial que o experimentador faz incidir sobre a pessoa adormecida não é corretamente reconhecido no sonho: ele é submetido a uma dentre um número indefinido de interpretações possíveis, cuja escolha aparentemente arbitrária fica entregue à ausência de determinismo psíquico. Mas é claro que não existe tal ausência de determinismo psíquico. Há diversas maneiras pelas quais a pessoa adormecida pode reagir a um estímulo sensorial externo. Pode acordar ou conseguir continuar dormindo apesar dele. Neste último caso, pode servir-se de um sonho para se livrar do estímulo externo e, também para isso, dispõe de mais de um método. Por exemplo, pode livrar-se do estímulo sonhando que está numa situação absolutamente incompatível com ele. Foi esse o caminho usado por uma pessoa adormecida sujeita à perturbação causada por um doloroso abscesso no períneo. Ela sonhou que estava andando a cavalo, usando como sela a cataplasma que se destinava a aliviar-lhe a dor, e assim evitou ser perturbada. Ou então, como ocorre com maior freqüência, o estímulo externo recebe uma interpretação que o traz para o contexto de um desejo recalcado que, naquele momento, aguarda realização; dessa maneira, o estímulo externo é despojado de sua realidade e tratado como se fosse parte do material psíquico. Desse modo, alguém sonhou que havia escrito uma comédia com determinado enredo; ela era encenada num teatro, terminava o primeiro ato e havia uma chuva de aplausos; as palmas eram impressionantes… O sonhador deve ter conseguido prolongar o sono até depois de cessar a interferência, pois, quando acordou, já não escutou o barulho, embora concluísse, com acerto, que alguém deveria ter estado sacudindo um tapete ou batendo um colchão. Todo sonho que ocorre imediatamente antes de a pessoa ser despertada por um ruído forte tentou desmentir esse estímulo causador do despertar dando-lhe uma outra explicação, e assim buscou prolongar o sono, nem que fosse apenas por um momento.



XII

Ninguém que aceite a visão de que a censura é a principal razão da distorção onírica ficará surpreso em saber, pelos resultados da interpretação dos sonhos, que a análise encontra nos desejos eróticos a origem da maioria dos sonhos dos adultos. Essa afirmação não visa aos sonhos de conteúdo sexual indisfarçado, que são sem dúvida conhecidos de todos os sonhadores por experiência própria e que, em geral, constituem os únicos a serem descritos como “sonhos sexuais”. Mas até estes últimos sonhos causam muitas surpresas pela escolha das pessoas a quem transformam em objetos sexuais, por seu descaso para com todas as restrições que o sonhador impõe a seus desejos sexuais na vida de vigília, e pelos detalhes estranhos que insinuam o que comumente se conhece como “perversões”. Entretanto, inúmeros outros sonhos que nada mostram de erótico em seu conteúdo manifesto revelam, pelo trabalho de interpretação na análise, ser realizações de desejos sexuais; por outro lado, a análise prova que muitos dos pensamentos que ficam pendentes da atividade da vida de vigília como “restos do dia anterior” só alcançam representação nos sonhos através da assistência de desejos oníricos recalcados.
Não é por exigência teórica que isso é postulado, mas, para explicar esse fato, pode-se assinalar que nenhum outro grupo de pulsões é submetido a uma supressão tão vasta pelas exigências da educação cultural quanto as pulsões sexuais; entretanto, ao mesmo tempo, elas são também as pulsões que, na maioria das pessoas, escapam com maior facilidade ao controle das instâncias anímicas superiores. Desde que tomamos conhecimento da sexualidade infantil, freqüentemente tão discreta em suas manifestações e que é sempre despercebida e mal interpretada, estamos autorizados a dizer que quase todo homem civilizado preserva as formas infantis de vida sexual num ou noutro aspecto. Podemos assim compreender como é que os desejos sexuais infantis recalcados passam a fornecer as forças propulsoras mais freqüentes e poderosas para a formação dos sonhos.
Só existe um meio pelo qual um sonho que expresse desejos eróticos pode ter êxito em parecer inocentemente assexual em seu conteúdo manifesto. O material das representações sexuais não deve ser figurado como tal, mas substituído no conteúdo do sonho por insinuações, alusões e formas similares de representação indireta. Entretanto, diversamente de outras formas de representação indireta, a que é empregada no sonho não deve ser imediatamente inteligível. Os meios de representação que atendem essas condições costumam ser descritos como “símbolos” das coisas que representam. Voltou-se para eles interesse especial desde que se notou que os sonhadores que falam uma mesma língua servem-se dos mesmos símbolos, e que a rigor, em alguns casos, o emprego dos mesmos símbolos, ultrapassa o âmbito do uso da mesma língua. Uma vez que os próprios sonhadores não se dão conta do significado dos símbolos que empregam, é difícil, à primeira vista, descobrir a fonte da ligação entre os símbolos e aquilo que substituem e representam. O fato em si, porém, está fora de dúvida e é importante para a técnica da interpretação dos sonhos. É que, com a ajuda do conhecimento do simbolismo onírico, é possível compreender o sentido dos elementos singulares do conteúdo do sonho, ou de fragmentos separados do sonho, ou, em alguns casos, até mesmo de sonhos inteiros, sem que seja preciso pedir ao sonhador suas associações. Aproximamo-nos aqui do ideal popular de traduzir os sonhos e, por outro lado, retornamos à técnica de interpretação utilizada pelos antigos, para quem a interpretação do sonho era idêntica à interpretação por meio de símbolos.
Embora o estudo dos símbolos oníricos esteja longe de ser completo, estamos em condições de formular com certeza uma série de diversas afirmações gerais e diversas informações especiais sobre o assunto. Há símbolos que encerram um único sentido quase que universalmente: assim, o imperador e a imperatriz (ou o rei e a rainha) representam os pais, os quartos representam as mulheres, e suas entradas e saídas, os orifícios do corpo. A maioria dos símbolos oníricos serve para representar pessoas, partes do corpo e atividades investidas de interesse erótico; em particular, os órgãos genitais são representados por diversos símbolos amiúde muito surpreendentes, e uma imensa variedade de objetos é empregada para denotá-los simbolicamente. As armas pontiagudas e os objetos longos e duros, como troncos de árvore e bastões, representam o órgão genital masculino, enquanto os armários, caixas, carros ou fornos podem representar o útero. Nesses casos, o tertium comparationis, o elemento comum nessas substituições, é imediatamente inteligível, mas há outros símbolos em que não é tão fácil apreender a ligação. Símbolos como a escada ou subir escadas para representar relação sexual, gravatas para o órgão masculino, ou madeira para o feminino, provocam nossa incredulidade, até chegarmos por algum outro meio à compreensão da relação simbólica subjacente a eles. Além disso, diversos símbolos oníricos são bissexuais e podem relacionar-se com os órgãos genitais masculinos ou femininos, conforme o contexto.
Alguns símbolos são universalmente disseminados e podem ser encontrados em todos os sonhadores pertencentes a um mesmo grupo lingüístico ou cultural; outros ocorrem apenas dentro dos limites mais restritos e individuais, sendo símbolos formados por um indivíduo a partir de seu próprio material de representações. Na primeira classe podemos distinguir alguns cujo direito de substituir as representações sexuais é imediatamente justificado pelo uso lingüístico (como, por exemplo, os derivados da agricultura: “fertilização” ou “semente”), e outros cuja relação com as representações sexuais parece remontar às mais antigas eras e às mais obscuras profundezas de nosso funcionamento conceitual. O poder de construir símbolos não se esgotou, nos dias atuais, para nenhum dos dois tipos de símbolos que distingui no início deste parágrafo. Certos objetos recém-descobertos (como as aeronaves) são, como podemos observar, imediatamente adotados como símbolos sexuais universalmente utilizáveis.
A propósito, seria um equívoco esperar que, se tivéssemos um conhecimento ainda mais profundo do simbolismo onírico (da “linguagem dos sonhos”), poderíamos prescindir de perguntar ao sonhador por suas associações ao sonho e retornar inteiramente à técnica de interpretação de sonhos da Antigüidade. À parte os símbolos individuais e as oscilações no emprego dos universais, nunca se sabe se um determinado elemento do conteúdo do sonho deve ser interpretado simbolicamente ou em seu sentido próprio, mas pode-se ter certeza de que nem todo o conteúdo do sonho deve ser interpretado simbolicamente. O conhecimento do simbolismo onírico nunca fará mais do que nos habilitar a traduzir certos componentes do conteúdo do sonho e não nos isentará da necessidade de aplicarmos as regras técnicas que forneci anteriormente. Contudo, prestará uma assistência extremamente valiosa à interpretação precisamente nos pontos em que as associações do sonhador são insuficientes ou faltam por completo.
O simbolismo onírico é também indispensável para a compreensão do que se conhece como sonhos “típicos”, comuns a todos, e dos sonhos “recorrentes” dos indivíduos.
Se, nesta breve discussão, parece incompleta a exposição que fiz do modo simbólico de expressão nos sonhos, posso justificar minha negligência chamando a atenção para um dos mais importantes conhecimentos de que dispomos sobre esse assunto. O simbolismo onírico se estende muito além do âmbito dos sonhos; não é peculiar aos sonhos, mas exerce uma influência dominante similar sobre a representação nos contos de fadas, nos mitos e lendas, nos chistes e no folclore. Permite-nos rastrear as íntimas ligações existentes entre os sonhos e estas últimas produções. Não devemos supor que o simbolismo onírico seja uma criação do trabalho do sonho; com toda a probabilidade, ele é uma característica do pensar inconsciente que fornece ao trabalho do sonho o material para a condensação, o deslocamento e a dramatização.

XIII

Não tenho a pretensão de haver lançado luz, nestas páginas, sobre todos os problemas dos sonhos, nem de haver tratado de maneira convincente os que de fato examinei. Aqueles que se interessarem pela vasta bibliografia sobre os sonhos poderão reportar-se a um trabalho de Sante de Sanctis (I sogni, 1899), e os que quiserem conhecer argumentos mais pormenorizados em favor da visão dos sonhos que eu mesmo expus deverão recorrer a meu livro A Interpretação dos Sonhos, de 1900. Só me resta indicar em que direção deverá prosseguir minha exposição do tema do trabalho do sonho.
Estipulei como tarefa da interpretação do sonho substituí-lo pelos pensamentos oníricos latentes, ou seja, desenredar o que foi urdido pelo trabalho do sonho. Ao fazê-lo, levantei uma série de novos problemas psicológicos que versam sobre o mecanismo desse trabalho do sonho como tal, bem como sobre a natureza e as condições do que se descreve como recalcamento; por outro lado, afirmei a existência dos pensamentos oníricos - um abundante reservatório de formações psíquicas da mais alta ordem, que se caracteriza por todos os traços do funcionamento intelectual normal, mas que, não obstante, é subtraído da consciência até emergir sob forma distorcida no conteúdo do sonho. Não posso senão presumir que tais pensamentos estejam presentes em todas as pessoas, uma vez que em quase todas, inclusive as mais normais, são capazes de sonhar. O material inconsciente dos pensamentos oníricos e sua relação com a consciência e com o recalcamento levantam outras questões importantes para a psicologia, cujas respostas sem dúvida terão de ser adiadas até que a análise tenha esclarecido a origem de outras formações psicopatológicas, tais como os sintomas histéricos e as idéias obsessivas.

continua na Parte2