Cinco lições de
psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos
VOLUME XI
(1910[1909])
PREFÁCIO
ESPECIAL PARA A EDIÇÃO BRASILEIRA DE ANNA FREUD
Produzir
e editar em português uma Edição Standard das obras de Freud constitui ingente
tarefa, na qual aqueles que participaram são dignos de louvores. Quando, como
na Psicanálise, o pioneiro de uma nova disciplina formulou novos conceitos
revolucionários e empregou novos termos, seus tradutores precisam não somente
de conhecimentos e habilidade, como também de uma inventividade criadora no
ampliar os vocábulos existentes que ultrapassam de muito as fronteiras do
comum.
Esta
nova edição em português substitui uma anterior, malograda, que saiu de
circulação. Sobre esta, apresenta a imensa vantagem de ser não apenas completa,
mas uma tradução direta do texto original em alemão, sem que se utilizasse
qualquer tradução intermediária.
Não
tenho nenhuma dúvida em meu espírito de que o próprio autor a acolheria com
todo o entusiasmo.
Anna
Freud
Londres,
fevereiro de 1970
CINCO
LIÇÕES DE PSICANÁLISE (1910 [1909])
NOTA DO EDITOR INGLÊS (JAMES STRACHEY)
ÜBER
PSYCHOANALYSE
(a)
EDIÇÕES ALEMÃS:
1910 Leipzig e Viena: Deuticke.
P. 62 (2ª ed. 1912, 3ª ed. 1916, 4ª ed. 1919, 5ª ed. 1920, 6ª ed. 1922, 7ª ed.
1924, 8ª ed. 1930; todas sem modificações.)
1924
G.S., 4, 349-406. (Ligeiramente modificada.)
1943
G.W., 8, 3-60. (Não modificada da G.S.)
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
`The Origin and Development of Psychoanalysis’
1910 Am. J. Psychol.,
21 (2 e 3), 181-218. (Tr. H. W. Chase.)
1910 Em Lectures and
Addresses Delivered before the Departments of Psychology and Pedagogy in
Celebration of the Twentieth Anniversary of the Opening of Clark University, Worcester,
Mass., Parte I, pp. 1-38. (Reimpressão
da acima mencionada.)
1924 Em An Outline of
Psychoanalysis, ed. Van Teslaar, Nova Iorque: Boni and Liveright. Pp. 21-70.
(Reedição da acima mencionada.)
A
presente tradução inglesa, inteiramente nova, com o título diferente de Five
Lectures on Psycho-Analysis, é de James Strachey.
Em
1909, a Clark University, Worcester, Massachusetts, comemorou o vigésimo ano de
sua fundação, e seu presidente, o Dr. G. Stanley Hall, convidou Freud e alguns
de seus principais seguidores (C. G. Jung, S. Ferenczi, Ernest Jones e A. A.
Brill) para participarem das celebrações e receberem graus honoríficos. Foi em
dezembro de 1908 que Freud recebeu pela primeira vez o convite, mas foi somente
no outono seguinte que esse convite se concretizou, tendo as cinco conferências
de Freud sido pronunciadas na segunda-feira, 6 de setembro de 1909, e nos
quatro dias subseqüentes. Isto, conforme declarou o próprio Freud na ocasião,
foi o primeiro reconhecimento oficial da novel ciência, havendo ele descrito em
seu Autobiogra-phical Study (Estudo Autobiográfico) 1925d, Capítulo V), como,
ao subir ao estrado para pronunciar suas conferências, `isso lhe pareceu a
concretização de um incrível devaneio’.
As
conferências (em alemão, naturalmente) foram, de acordo com a prática quase
universal de Freud, pronunciadas de improviso e, conforme nos informa o Dr.
Jones, sem notas e depois de muito pouco preparo. Foi somente depois de sua
volta a Viena que ele foi induzido, a contragosto, a escrevê-las. Esse trabalho
somente foi concluído na segunda semana de dezembro, mas sua memória verbal era
tão boa que, segundo nos assegura o Dr. Jones a versão impressa `não fugia
muito da exposição original’. Sua primeira publicação foi feita numa tradução
inglesa no American Journal of Psychology no início de 1910, mas o original em
alemão apareceu pouco depois sob a forma de panfleto em Viena. O trabalho
tornou-se popular e teve várias edições; em nenhuma delas, contudo, houve
qualquer alteração de substância, salvo quanto à nota de rodapé acrescentada em
1923 bem no início, aparecendo somente no Gesammelte Schriften e Gesammelte
Werke, nos quais Freud retirou suas expressões de gratidão a Breuer. Um exame
da atitude modificada de Freud quanto a Breuer encontrar-se-á na Introdução do
Editor a Studies on Hysteria (Estudos sobre a Histeria), Standard Ed., 2, XXVI
ss.
Durante
toda sua carreira Freud sempre estava pronto a apresentar exposições de suas
descobertas. Já publicara ele alguns curtos relatos de psicanálise, mas esse
grupo de conferências foi o primeiro numa escala ampliada. Essas exposições
naturalmente variavam de dificuldade de acordo com o auditório para o qual se
destinavam, devendo essas ser consideradas como as mais simples, mormente
quando postas em confronto com a grande série de Introductory Lectures
(Conferências Introdutórias) pronunciadas alguns anos depois (1916-17). Não
obstante, apesar de todos os acréscimos que iriam ser feitos à estrutura da
psicanálise durante o próximo quartel de um século, essas conferências ainda
proporcionam admirável quadro preliminar que exige muito pouca correção. E dão
elas uma excelente idéia da facilidade e clareza de estilo e do irrestrito
sentido de forma que tornou Freud um conferencista tão notável quanto à exposição.
Consideráveis
trechos da tradução anterior (1910) deste trabalho foram incluídos na General
Selection from the Works of Sigmund Freud (Seleção Geral dos Trabalhos de
Sigmund Freud), de Rickman (1937, 3-43).
NOTA DO EDITOR BRASILEIRO
A
presente tradução brasileira, diretamente do alemão, é da autoria de Durval
Marcondes (Professor de Psicologia Clínica da Universidade de S. Paulo e
Presidente da Associação Brasileira de Psicanálise) e de J. Barbosa Corrêa
(Professor de Clínica Médica da Escola Paulista de Medicina). Feita para a
Companhia Editora Nacional, data de 1931. Foi ligeiramente modificada por Jayme
Salomão (Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de
Janeiro).
Carta
enviada por Sigmund Freud ao Professor Durval Marcondes agradecendo a primeira
tradução brasileira de um de seus livros.
CINCO LIÇÕES DE PSICANÁLISE
Pronunciadas
por Ocasião das Comemorações
do
Vigésimo Aniversário da Fundação da
CLARK UNIVERSITY, WORCESTER
MASSACHUSETTS
Setembro de 1909
Ao
DR. G. STANLEY HALL, Ph. D., LL. D.
Presidente
da Clark University
Professor
de Psicologia e Pedagogia
Este
Trabalho é Penhoradamente Dedicado
PREFÁCIO PARA AS CINCO LIÇÕES DE PSICANÁLISE DE DURVAL
MARCONDES
As
lições que se seguem foram pronunciadas em língua alemã por Freud, em 1909, na
“Clark University” em Worcester (Estados Unidos), por ocasião do vigésimo
aniversário dessa instituição, e a convite de seu presidente, o eminente
psicólogo Stanley Hall. Elas constituem a primeira exposição sistemática que
Freud fez de sua teoria e, embora não envolvam as aquisições mais recentes da
psicanálise, são, a meu ver, a leitura mais apropriada para quem aborda pela
primeira vez a obra do mestre.
A
psicanálise estava longe de ter, naquela época, a importância e o renome que
hoje desfruta. Se é exato que já em 1907 ela era estudada e utilizada pelo
notável psiquiatra Bleuler e por seus assistentes, na clínica de Zurique; e que
já em 1908 se reunia em Salisburgo o primeiro congresso psicanalítico
internacional, nem por isso as novas idéias eram bem recebidas nas rodas
científicas oficiais, onde as afirmações sobre o papel da sexualidade na
etiologia das neuroses esbarravam quase sempre com os preconceitos de uma falsa
moral. Daí a alta significação para a jovem doutrina teve a sua consagração na
cátedra de Worcester. “Na Europa, escreveu Freud, eu me sentia como um
proscrito; ali me via acolhido pelos melhores como um igual. A psicanálise não
era mais, portanto, uma concepção delirante, mas se tornara uma parte preciosa
da realidade.”
Freud
nasceu em 6 de maio de 1856, em Freiberg, na Morávia, tendo passado aos quatro
anos para Viena, onde fez seus estudos. Formou-se em Medicina em 1881. Ainda
estudante, entrou, em 1876, a trabalhar no laboratório de fisiologia de Ernst
Brücke, sob cuja direção efetuou pesquisas de histologia nervosa. Depois de
formado, ingressou no serviço do grande psiquiatra Theodor Meynert, tendo-se
dedicado, por essa época, a estudos de neuroanatomia. Antes de entregar-se definitivamente
à investigação psicanalítica, publicou vários trabalhos sobre afecções
orgânicas do sistema nervoso, tais como as afasias e as encefalopatias
infantis. Entre 1885 e 1886 foi discípulo de Charcot, em Paris, e acompanhou,
em 1889, em Nancy, as experiências de Bernheim sobre o hipnotismo. A influência
de ambos nas concepções iniciais da teoria psicanalítica poderá ser bem
avaliada nestas “Cinco Lições”.
Essas
concepções tiveram sua primeira expressão na nota prévia que Freud publicou em
1893 com o Dr. Breuer, intitulada “Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos
Histéricos”, a que se seguiu, em 1895, o livro, também em colaboração, “Estudos
Sobre a Histeria.”
* * *
A
vida de Freud tem sido toda ela uma luta incessante pela verdade. Exposto, pela
sua coragem de afirmar, ao anátema das escolas psiquiátricas dominantes,
preferiu suportar por muito tempo a dureza de um verdadeiro exílio intelectual
a ceder naquilo que era o honesto resultado de sua investigação. Desde o começo
de sua carreira profissional, o amor à certeza científica fê-lo prejudicar
deliberadamente a clínica em início pela tenacidade em pesquisar em seus
doentes o exato determinismo dos sintomas. Sua obra fundamenta-se na mais
demorada e paciente observação dos fatos. Há cerca de quarenta anos que ele se
dedica diariamente a oito, nove, dez, às vezes mesmo onze análises de uma hora
cada uma, podendo-se, portanto, dizer que passou toda uma existência debruçado
sobre a alma dos neuróticos. O impiedoso rigor para com as próprias convicções chegou,
às vezes, ao ponto de fazê-lo adiar por vários anos a publicação de seus
trabalhos até que a experiência ulterior proporcionasse a confirmação de suas
descobertas. “Minha A Interpretação de Sonhos”, diz ele, “e meu Fragmento de
uma Análise de um Caso de Histeria (o caso de Dora) foram retidos por mim - se
não pelos nove anos aconselhados por Horácio - em todo caso por quatro ou cinco
anos antes que me decidisse a publicá-los.”
Compreende-se,
portanto, que quem adquiriu uma visão nova dos fatos à custa de tão penosos
sacrifícios, se tenha recusado a mudar de idéia ante a pressão de uma crítica
partidária, que se não baseia na verificação objetiva. Essa justificada
intransigência de Freud foi, não obstante, tachada de dogmatismo, o que não
impede, porém, que novos dados da observação direta e imparcial confirmem e
completem cada vez mais as suas conclusões.
“Os
homens são fortes enquanto representam uma idéia forte.” Em sua aureolada
velhice, Freud assiste presentemente ao triunfo gradual e seguro de seus
princípios, cujo enunciado já não constitui uma blasfêmia. Eles conquistam
paulatinamente o lugar que lhes cabe na ciência dos fenômenos espirituais e se
vão tornando aceitos pelos mais legítimos representantes da psiquiatria
moderna. Existe, na verdade, quem insista em rejeitar as conseqüências teóricas
da psicanálise sem lhe conhecer sequer os métodos. Mas aos poucos irão chegando
os últimos retardatários. “Quem sabe esperar não necessita fazer concessões.”
São
Paulo, novembro de 1931.
Durval
Marcondes.
PRIMEIRA LIÇÃO
SENHORAS
E SENHORES, - Constitui para mim sensação nova e embaraçosa apresentar-me como
conferencista ante um auditório de estudiosos do Novo Mundo. Considerando que
devo esta honra tão somente ao fato de estar meu nome ligado ao tema da
psicanálise, será esse, por conseqüência, o assunto de que lhes falarei,
tentando proporcionar-lhes, o mais sinteticamente possível, uma visão de
conjunto da história inicial e do ulterior desenvolvimento desse novo processo
semiológico e terapêutico.
Se
algum mérito existe em ter dado vida à psicanálise, a mim não cabe, pois não
participei de suas origens. Era ainda estudante e ocupava-me com os meus
últimos exames, quando outro médico de Viena, o Dr. Joseph Breuer, empregou
pela primeira vez esse método no tratamento de uma jovem histérica (1880-1882).
Ocupemo-nos, pois, primeiramente, da história clínica e terapêutica desse caso,
a qual se acha minuciosamente descrita nos Studies on Hysteria (Estudos Sobre a
Histeria) [1895d] que mais tarde publicamos, o Dr. Breuer e eu.
Mas,
preliminarmente, uma observação. Vim a saber, aliás com satisfação, que a
maioria de meus ouvintes não pertence à classe médica. Não cuidem, porém, que
seja necessária uma especial cultura médica para acompanhar minha exposição.
Caminharemos por algum tempo ao lado dos médicos, mas logo deles nos
apartaremos, para seguir, com o Dr. Breuer, uma rota absolutamente original.
A
paciente do Dr. Breuer, uma jovem de 21 anos, de altos dotes intelectuais,
manifestou, no decurso de sua doença, que durou mais de dois anos, uma série de
perturbações físicas e psíquicas mais ou menos graves. Tinha uma paralisia
espástica de ambas as extremidades do lado direito, com anestesia, sintoma que
se estendia por vezes aos membros do lado oposto; perturbações dos movimentos
oculares e várias alterações da visão; dificuldade em manter a cabeça erguida;
tosse nervosa intensa; repugnância pelos alimentos e impossibilidade de beber
durante várias semanas, apesar de uma sede martirizante; redução da faculdade
de expressão verbal, que chegou a impedi-la de falar ou entender a língua
materna; e, finalmente, estados de `absence‘ (ausência), de confusão, de
delírio e de alteração total da personalidade, aos quais voltaremos mais
adiante a nossa atenção.
Ao
terem notícia de semelhante quadro mórbido, os senhores tenderão, mesmo não
sendo médicos, a supor que se trate de uma doença grave, provavelmente do
cérebro, com poucas esperanças de cura, e que levará rapidamente o enfermo a um
desenlace fatal. Os médicos podem, entretanto, assegurar-lhes que, numa série
de casos com fenômenos da mesma gravidade, justifica-se outra opinião muito
mais favorável. Quando tal quadro mórbido é encontrado em indivíduo jovem do
sexo feminino, cujos órgãos vitais internos (coração, rins etc.) nada revelam
de anormal ao exame objetivo, mas que sofreu no entanto violentos abalos
emocionais, e quando, em certas minúcias, os sintomas se afastam do comum, já
os médicos não consideram o caso tão grave. Afirmam que não se trata de uma
afecção cerebral orgânica, mas desse enigmático estado que desde o tempo da
medicina grega é denominado histeria e que pode simular todo um conjunto de
graves perturbações. Nesses casos não consideram a vida ameaçada e até acham
provável o restabelecimento completo. Nem sempre é fácil distinguir a histeria
de uma grave doença orgânica. Não nos importa, porém, precisar aqui como se faz
um diagnóstico diferencial desse gênero, bastando-nos a certeza de que o caso
da paciente de Breuer era daqueles em que nenhum médico experimentado deixaria
de fazer o diagnóstico de histeria. Podemos também acrescentar, consoante a
história clínica, não só que a afecção lhe apareceu quando estava tratando do
pai, que ela adorava e cuja grave doença havia de conduzi-lo à morte, como
também que ela, por causa de seus próprios padecimentos, teve de abandonar a
cabeceira do enfermo.
Até
aqui nos tem sido vantajoso caminhar ao lado dos médicos mas breve os
deixaremos. Não devem os senhores esperar que o diagnóstico de histeria, em
substituição ao de afecção cerebral orgânica grave, possa melhorar
consideravelmente para o doente a perspectiva de um auxílio médico. Se a
medicina é o mais das vezes impotente em face das lesões cerebrais orgânicas,
diante da histeria o médico não sabe, do mesmo modo, o que fazer, tendo de
confiar à providencial natureza a maneira e a ocasião em que se há de cumprir
seu esperançoso prognóstico.
Com o
rótulo de histeria pouco se altera, portanto, a situação do doente, enquanto
que para o médico tudo se modifica. Pode-se observar que este se comporta para
com o histérico de modo completamente diverso que para com o que sofre de uma
doença orgânica. Nega-se a conceder ao primeiro o mesmo interesse que dá ao
segundo, pois não obstante as aparências, o mal daquele é muito menos grave.
Mas acresce outra circunstância: o médico, que, por seus estudos, adquiriu
tantos conhecimentos vedados aos leigos, pode formar uma idéia da etiologia das
doenças e de suas lesões, como, por exemplo, nos casos de apoplexia ou de tumor
cerebral, idéia que até certo ponto deve ser exata, pois lhe permite
compreender os pormenores do quadro mórbido. Em face, porém, das
particularidades dos fenômenos histéricos, todo o seu saber e todo o seu preparo
em anatomia, fisiologia e patologia deixam-no desamparado. Não pode compreender
a histeria, diante da qual se sente como um leigo, posição nada agradável a
quem tenha em alta estima o próprio saber. Os histéricos ficam, assim, privados
de sua simpatia. Ele os considera como transgressores das leis de sua ciência,
tal como os crentes consideram os hereges: julga-os capazes de todo mal,
acusa-os de exagero e de simulação, e pune-os com lhes retirar seu interesse.
O Dr.
Breuer não mereceu certamente essa censura com relação à sua paciente. Embora
não pretendesse, no princípio, curá-la, não lhe negou, entretanto, interesse e
simpatia, o que lhe foi provavelmente facilitado pelas elevadas qualidades de
espírito e de caráter da jovem, das quais ele nos dá testemunho na história
clínica que redigiu. Sua carinhosa observação proporcionou-lhe bem logo o
caminho que lhe permitiu prestar à doente os primeiros auxílios.
Havia-se
notado que nos estados de `absence‘ (alteração da personalidade acompanhada de
confusão), costumava a doente murmurar algumas palavras que pareciam
relacionar-se com aquilo que lhe ocupava o pensamento. O médico, que anotara
essas palavras, colocou a moça numa espécie de hipnose e repetiu-as, para
incitá-la a associar idéias. A paciente entrou, assim, a reproduzir diante do
médico as criações psíquicas que a tinham dominado nos estados de `absence‘ e
que se haviam traído naquelas palavras isoladas. Eram fantasias profundamente
tristes, muitas vezes de poética beleza - devaneios, como podiam ser chamadas -
que tomavam habitualmente como ponto de partida a situação de uma jovem à
cabeceira do pai doente. Depois de relatar certo número dessas fantasias,
sentia-se ela como que aliviada e reconduzida à vida normal. Esse bem-estar
durava muitas horas e desaparecia no dia seguinte para dar lugar a nova
`absence‘, que cessava do mesmo modo pela revelação das fantasias novamente
formadas. É forçoso reconhecer que a alteração psíquica manifestada durante as
`absences‘ era conseqüência da excitação proveniente dessas fantasias
intensamente afetivas. A própria paciente, que nesse período da moléstia só
falava e entendia inglês, deu a esse novo gênero de tratamento o nome de
`talking cure’ (cura de conversação) qualificando-o também, por gracejo, de
`chimney sweeping’ (limpeza da chaminé).
Verificou-se
logo, como por acaso, que, limpando-se a mente por esse modo, era possível
conseguir alguma coisa mais que o afastamento passageiro das repetidas
perturbações psíquicas. Pode-se também fazer desaparecer sintomas quando, na
hipnose, a doente recordava, com exteriorização afetiva, a ocasião e o motivo
do aparecimento desses sintomas pela primeira vez. `Tinha havido, no verão, uma
época de calor intenso e a paciente sofria de sede horrível, pois, sem que
pudesse explicar a causa, viu-se, de repente, impossibilitada de beber. Tomava
na mão o cobiçado copo de água, mas assim que o tocava com os lábios, repelia-o
como hidrófoba. Nesses poucos segundos, ela se achava evidentemente em estado
de absence. Para mitigar a sede que a martirizava, vivia somente de frutas,
melões etc. Quando isso já durava perto de seis semanas, falou, certa vez,
durante a hipnose, a respeito de sua “dama de companhia” inglesa, de quem não
gostava, e contou então com demonstrações da maior repugnância que, tendo ido
ao quarto dessa senhora, viu, bebendo num copo, o seu cãozinho, um animal
nojento. Nada disse, por polidez. Depois de exteriorizar energicamente a cólera
retida, pediu de beber, bebeu sem embaraço grande quantidade de água e despertou
da hipnose com o copo nos lábios. A perturbação desapareceu definitivamente.
Permitam-me
que os detenha alguns momentos ante esta experiência. Ninguém, até então, havia
removido por tal meio um sintoma histérico nem penetrado tão profundamente na
compreensão da sua causa. O descobrimento desses fatos devia ser de ricas
conseqüências, se se confirmasse a esperança de que outros sintomas da doente -
e talvez a maioria - se houvessem originado do mesmo modo e do mesmo modo
pudessem ser suprimidos. Para verificá-los, Breuer não mediu esforços e
pesquisou sistematicamente a patogenia de outros sintomas mais graves. E
realmente era assim. Quase todos se haviam formado desse modo, como resíduos -
como `precipitados’, se quiserem - de experiências emocionais que, por essa
razão, foram denominadas posteriormente `traumas psíquicos’; e o caráter
particular a cada um desses sintomas se explicava pela relação com a cena
traumática que o causara. Eram, segundo a expressão técnica, determinados pelas
cenas cujas lembranças representavam resíduos, não havendo já necessidade de
considerá-los como produtos arbitrários ou enigmáticos da neurose. Registremos
apenas uma complicação que não fora prevista: nem sempre era um único
acontecimento que deixava atrás de si os sintomas; para produzir tal efeito
uniam-se na maioria dos casos numerosos traumas, às vezes análogos e repetidos.
Toda essa cadeia de recordações patogênicas tinha então de ser reproduzida em
ordem cronológica e precisamente inversa - as últimas em primeiro lugar e as
primeiras por último - sendo completamente impossível chegar ao primeiro
trauma, muitas vezes o mais ativo, saltando-se sobre os que ocorreram
posteriormente.
Os
senhores desejam, por certo, que lhes apresente outros exemplos de produção de
sintomas histéricos, além do da hidrofobia originada pela repugnância diante do
cão que bebia no copo. Para manter-me, porém, no meu programa, devo limitar-me
a poucas ilustrações. Assim, relata Breuer que as perturbações visuais da
doente remontavam a situações como aquelas em que `estando a paciente com os
olhos marejados de lágrimas, junto ao leito do enfermo, perguntou-lhe este, de
repente, que horas eram, e, não podendo ela ver distintamente, forçou a vista,
aproximando dos olhos o relógio, cujo mostrador lhe pareceu então muito grande
- devido à macropsia e ao estrabismo convergente. Ou se esforçou em reprimir as
lágrimas para que o enfermo não as visse.’ Todas as impressões patogênicas
provinham, aliás, do tempo em que ela se dedicava ao pai doente. `Uma noite velava
muito angustiada junto ao doente febricitante e estava em grande ansiedade
porque se esperava de Viena um cirurgião para operá-lo. Sua mãe ausentara-se
por algum tempo e Anna, sentada à cabeceira do doente, pôs o braço direito
sobre o espaldar da cadeira. Caiu em estado de semi-sonho e viu, como se viesse
da parede, uma cobra negra que se aproximava do enfermo para mordê-lo. (É muito
provável que no campo situado atrás da casa algumas cobras tivessem de fato
aparecido, assustando anteriormente a moça e fornecendo agora o material de
alucinação.) Ela quis afastar o ofídio, mas estava como que paralisada; o braço
direito, que pendia no espaldar, achava-se “adormecido”, insensível e parético,
e, quando ela o contemplou, transformaram-se os dedos em cobrinhas cujas
cabeças eram caveiras (as unhas). Provavelmente procurou afugentar a cobra com
a mão direita paralisada e por isso a anestesia e a paralisia da mesma se
associaram com a alucinação da serpente. Quando esta desapareceu, aterrorizada,
quis rezar, mas não achou palavras em idioma algum, até que, lembrando-se duma
poesia infantil em inglês, pode pensar e rezar nessa língua. Com a
reconstituição dessa cena durante a hipnose foi removida a paralisia espástica
do braço direito, que existia desde o começo da moléstia, e teve fim o
tratamento.
Quando,
alguns anos mais tarde, comecei a empregar nos meus próprios doentes o método
semiótico e terapêutico de Breuer, fiz experiências que concordam com as dele.
Numa senhora de cerca de quarenta anos existia um tic (tique) sob a forma de um
especial estalar da língua, que se produzia quando a paciente se achava
excitada e mesmo sem causa perceptível. Originara-se esse tique em duas
ocasiões nas quais, sendo desígnio dela não fazer nenhum rumor, o silêncio foi
rompido contra sua vontade justamente por esse estalido. Uma vez, foi quando
com grande trabalho conseguira finalmente fazer adormecer seu filhinho doente,
e desejava, no íntimo, ficar quieta para o não despertar; outra vez, quando
numa viagem de carro com os dois filhos, por ocasião de uma tempestade,
assustaram-se os cavalos e ela cuidadosamente quisera evitar qualquer ruído
para que os animais não se espantassem ainda mais. Dou esse esse exemplo dentre
muitos outros que se acham consignados nos Studies on Hysteria (Estudos Sobre a
Histeria).
Senhoras
e Senhores. Se me permitem uma generalização - inevitável numa exposição tão
breve - podemos sintetizar os conhecimentos até agora adquiridos na seguinte
fórmula: os histéricos sofrem de reminiscências. Seus sintomas são resíduos e
símbolos mnêmicos de experiências especiais (traumáticas). Uma comparação com
outros símbolos mnêmicos de gênero diferente talvez nos permita compreender
melhor esse simbolismo. Os monumentos com que ornamos nossas cidades são também
símbolos dessa ordem. Passeando em Londres, verão, diante de uma das maiores
estações da cidade, uma coluna gótica ricamente ornamentada - a Charing Cross.
No século XIII, um dos velhos reis plantagenetas, que fez transportar para
Westminster os restos mortais de sua querida esposa e rainha Eleanor, erigiu
cruzes góticas nos pontos em que havia pousado o esquife. Charing Cross é o
último desses monumentos destinados a perpetuar a memória do cortejo fúnebre.
Em outro ponto da cidade, não muito distante da London Bridge, verão uma coluna
moderna e muito alta, chamada simplesmente `The Monument’, cujo fim é lembrar o
grande incêndio que em 1666 irrompeu ali perto e destruiu boa parte da cidade.
Tanto quanto se justifique a comparação, esses monumentos são também símbolos
mnêmicos como os sintomas histéricos. Mas que diriam do londrino que ainda hoje
se detivesse compungido ante o monumento erigido em memória do enterro da
rainha Eleanor, em vez de tratar de seus negócios com a pressa exigida pelas
modernas condições de trabalho, ou de pensar satisfeito na jovem rainha de seu
coração? Ou de outro que, em face do `Monument’ chorasse a incineração da
cidade querida, reconstruída depois com tanto brilho? Como esses londrinos
pouco práticos, procedem, entretanto, os histéricos e neuróticos: não só
recordam acontecimentos dolorosos que se deram há muito tempo, como ainda se
prendem a eles emocionalmente; não se desembaraçam do passado e alheiam-se por
isso da realidade e do presente. Essa fixação da vida psíquica aos traumas
patogênicos é um dos caracteres mais importantes da neurose e dos que têm maior
significação prática.
Desde
já aceito a objeção que provavelmente os senhores formularam refletindo sobre a
história da paciente de Breuer. Todos os traumas que influíram na moça datavam
do tempo em que ela cuidava do pai doente, e os sintomas que apresentava podem
ser considerados como simples sinais mnêmicos da doença e da morte dele.
Correspondem, portanto, a uma manifestação de luto, e a fixação à memória do
finado, tão pouco tempo depois do traspasse, nada representa de patológico;
corresponde antes a um processo emocional normal. Reconheço que na paciente de
Breuer a fixação aos traumas nada tem de extraordinário. Mas em outros casos -
como no tique por mim tratado, cujos fatores datavam mais de quinze e dez anos
-, é muito nítido o caráter da fixação anormal ao passado. A doente de Breuer
nos haveria de oferecer oportunidade de apreciar a mesma fixação anormal, se
não tivesse sido tratada pelo método catártico tão pouco tempo depois do
traumatismo e da eclosão dos sintomas.
Até
aqui apenas discorremos sobre as relações entre os sintomas histéricos e os
fatos da vida da doente, mas dois outros elementos da observação de Breuer
podem também indicar-nos como conceber tanto o mecanismo da moléstia como o do
restabelecimento.
Quanto
ao primeiro, é preciso salientar que a doente de Breuer em quase todas as
situações teve de subjugar uma poderosa emoção, em vez de permitir sua descarga
por sinais apropriados de emoção, palavras ou ações. No trivialíssimo incidente
relativo ao cãozinho de sua dama de companhia, por consideração a esta ela não
deixou sequer transparecer a sua profunda aversão; velando à cabeceira do pai,
estava sempre atenta para que o doente não lhe percebesse a ansiedade e a
penosa depressão. Ao reproduzir posteriormente estas mesmas cenas diante do
médico, a energia afetiva então inibida manifestava-se intensamente, como se
estivera até então represada. Além disso, o sintoma - resíduo desta cena -
atingia a máxima intensidade quando durante o tratamento ia-se chegando à sua
causa, para desaparecer completamente quando esta se aclarava inteiramente. Por
outro lado, pode-se verificar que era inútil recordar a cena diante do médico
se, por qualquer razão, isto se dava sem exteriorização afetiva. Era pois a
sorte dessas emoções, que podemos imaginar como grandezas variáveis o que
regulava tanto a doença como a cura. Tinha-se de admitir que a doença se
instalava porque a emoção desenvolvida nas situações patogênicas não podia ter
exteriorização normal; e que a essência da moléstia consistia na atual
utilização anormal das emoções `enlatadas’. Em parte ficavam estas como carga
contínua da vida psíquica e fonte permanente de excitação para a mesma; em
parte se desviavam para insólitas inervações e inibições somáticas, que se
apresentavam como os sintomas físicos do caso. Para este último mecanismo
propusemos o nome de `conversão histérica’. Demais, uma certa parte de nossas
excitações psíquicas é conduzida normalmente para a inervação somática,
constituindo aquilo que conhecemos por `expressão das emoções’. A conversão
histérica exagera então essa parte da descarga de um processo mental catexizado
emocionalmente; ela representa uma expressão mais intensa das emoções, conduzida
por nova via. Quando uma corrente de água se escoa por dois canais, num deles o
líquido se elevará, logo que no outro se interponha um obstáculo. Como vêem,
estamos quase chegando a uma teoria puramente psicológica da histeria, onde
assinalamos o primeiro lugar para os processos afetivos.
Uma
segunda observação de Breuer obriga-nos agora a atribuir grande significação
aos estados de consciência para a característica dos fatos mórbidos. A doente
de Breuer exibia, ao lado de seu estado normal, vários outros de `absence‘,
confusão e alterações do caráter. Em estado normal ela ignorava totalmente as
cenas patogênicas ou pelo menos havia rompido a conexão patogênica. Sob hipnose
era possível, depois de considerável esforço, trazer tais cenas à memória, e
por este trabalho de evocação os sintomas eram removidos. Ficaríamos em grande
perplexidade para interpretar esse fato se a experiência do hipnotismo já não
nos tivesse indicado o caminho. Pelo estudo dos fenômenos hipnóticos tornou-se
habitual a concepção, a princípio estranhável, de que num mesmo indivíduo são
possíveis vários agrupamentos mentais que podem ficar mais ou menos
independentes entre si, sem que um `nada saiba’ do outro, e que podem se
alternar entre si em sua emersão à consciência. Casos destes, também
ocasionalmente, aparecem de forma espontânea, sendo então descritos como
exemplos de `double consciente‘. Quando nessa divisão da personalidade a
consciência fica constantemente ligada a um desses dois estados, chama-se esse
o estado mental `conscience‘e o que dela permanece separado o `inconsciente‘.
Nos conhecidos fenômenos da chamada `sugestão pós-hipnótica’, em que uma ordem
dada durante a hipnose é depois, no estado normal, imperiosamente cumprida,
tem-se um esplêndido modelo das influências que o estado inconsciente pode
exercer no consciente, modelo esse que permite sem dúvida compreender o que
ocorre na manifestação da histeria. Breuer resolveu admitir que os sintomas
histéricos apareciam em estados mentais particulares que chamava `hipnóides’.
As excitações durante esses estados hipnóides tornam-se facilmente patogênicas
porque não encontram neles as condições para a descarga normal do processo de
excitação. Origina-se então, do processo de excitação, um produto anormal - o
sintoma - que, como corpo estranho, se insinua no estado normal, escapando a
este, por isso, o conhecimento da situação patogênica hipnóide. Onde existe um
sintoma, existe também uma amnésia, uma lacuna da memória, cujo preenchimento
suprime as condições que conduzem à produção do sintoma.
Receio
que esta parte de minha exposição não lhes pareça muito clara. Os presentes
devem, contudo, ser indulgentes; trata-se de concepções novas e difíceis que
talvez não possam fazer-se muito mais claras, prova de que nossos conhecimentos
ainda não progrediram muito. A teoria de Breuer, dos estados hipnóides,
tornou-se aliás embaraçante e supérflua, e foi abandonada pela psicanálise
moderna. Mais tarde me ouvirão falar, nem que seja sucintamente, das
influências e processos que era mister descobrir atrás das fronteiras dos
estados hipnóides, por Breuer fixadas. Hão de ter tido também a impressão, sem
dúvida justa, de que a pesquisa de Breuer só lhes pode dar uma teoria muito
incompleta e uma explicação insuficiente dos fenômenos observados; porém as
teorias completas não caem do céu e com toda a razão desconfiarão se alguém
lhes apresentar, logo no início de suas observações, uma teoria sem falhas,
otimamente rematada. Tal teoria certamente só poderá ser filha de sua
especulação e nunca o fruto da pesquisa imparcial e desprevenida da realidade.
SEGUNDA LIÇÃO
SENHORAS
E SENHORES, - Quase ao mesmo tempo em que Breuer praticava a talking cure (cura
de conversação) com sua paciente, começava o grande Charcot, em Paris, com as
doentes histéricas da Salpêtrière, as investigações de onde havia de surgir
nova concepção da enfermidade. Estes resultados não podiam, naquela ocasião,
ser conhecidos em Viena. Quando, porém, cerca de dez anos mais tarde, Breuer e
eu publicávamos nossa `Preliminary Communication‘ (Comunicação Preliminar)
sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos, relacionada com o
tratamento catártico da primeira doente de Breuer [1893a], já nos achávamos de
todo sob a influência das pesquisas de Charcot. A nosso ver, os acontecimentos
patogênicos de nossos doentes, isto é, os traumas psíquicos, eram equivalentes
dos traumas físicos cuja influência nas paralisias histéricas fora precisada
por Charcot; e a hipótese dos estados hipnóides de Breuer nada mais é que o
reflexo da reprodução artificial daquelas paralisias traumáticas, que Charcot
obtivera durante a hipnose.
O
grande observador francês, de quem fui discípulo em 1885 e 1886, não era
propenso às concepções psicológicas. Foi seu discípulo Pierre Janet que tentou
penetrar mais intimamente os processos psíquicos particulares da histeria, e
nós seguimos-lhes o exemplo, tomando a divisão da mente e a dissociação da
personalidade como ponto central de nossa teoria. Segundo a de Janet, que leva
em grande conta as idéias dominantes na França sobre o papel da hereditariedade
e da degeneração, a histeria é uma forma de alteração degenarativa do sistema
nervoso, que se manifesta pela fraqueza congênita do poder de síntese psíquica.
Os pacientes histéricos seriam, desde o princípio, incapazes de manter como um
todo a multiplicidade dos processos mentais, e daí a dissociação psíquica. Se
me for permitida uma comparação trivial mais precisa, direi que o paciente
histérico de Janet lembra uma pobre mulher que saiu a fazer compras e volta
carregada de pacotes. Não podendo só com dois braços e dez dedos conter toda a
pilha, cai-lhe primeiro um embrulho; ao inclinar-se para levantá-lo, cai-lhe
outro, e assim sucessivamente. Contrariando, porém, esta suposta fraqueza
mental dos pacientes histéricos, podem observar-se neles, além dos fenômenos de
capacidade diminuída, outros, por assim dizer compensadores, de exaltação
parcial da eficiência. Durante o tempo em que a doente de Breuer esquecera a
língua materna e outros idiomas exceto o inglês, era tal a facilidade com que
falava este último, que chegava a ponto de ser capaz, diante de um livro
alemão, de traduzi-lo à primeira vista, perfeita e corretamente.
Quando
eu, mais tarde, prosseguia sozinho as pesquisas iniciadas por Breuer, fui
levado a outro ponto de vista a respeito da dissociação histérica (a divisão da
consciência). Era fatal essa divergência, aliás decisiva para o resultado
futuro, visto que eu não partia, como Janet, de experiências de laboratório e
sim do trabalho terapêutico.
O que
sobretudo me impelia era a necessidade prática. O procedimento catártico, como
Breuer o praticava, exigia previamente a hipnose profunda do doente, pois só no
estado hipnótico é que tinha este o conhecimento das ligações patogênicas que
em condições normais lhe escapavam. Tornou-se-me logo enfadonho o hipnotismo,
como recurso incerto e algo místico; e quando verifiquei que apesar de todos os
esforços não conseguia hipnotizar senão parte de meus doentes, decidi
abandoná-lo, tornando o procedimento catártico independente dele. Como não
podia modificar à vontade o estado psíquico dos doentes, procurei agir
mantendo-os em estado normal. Parecia isto a princípio empresa insensata e sem
probabilidade de êxito. Tratava-se de fazer o doente contar aquilo que ninguém,
nem ele mesmo, sabia. Como esperar consegui-lo? O auxílio me veio da recordação
de uma experiência de Bernheim, singularíssima e instrutiva, a que eu assistira
em Nancy [em 1889]. Bernheim nos havia então mostrado que as pessoas por ele
submetidas ao sonambulismo hipnótico e que nesse estado tinham executado atos
diversos, só aparentemente perdiam a lembrança dos fatos ocorridos, sendo
possível despertar nelas tal lembrança, mesmo no estado normal. Quando
interrogadas a propósito do que havia acontecido durante o sonambulismo,
afirmavam de começo nada saber; mas se ele não cedia, insistindo com elas e
assegurando-lhes que era possível lembrar, a recordação vinha sempre de novo à
consciência.
Procedi
do mesmo modo com os meus doentes. Quando chegávamos a um ponto em que nos
afirmavam nada mais saber, assegurava-lhes que sabiam, que só precisavam dizer,
e ia mesmo até afirmar que a recordação exata seria a que lhes apontasse no
momento em que lhes pusesse a mão sobre a fronte. Dessa maneira pude,
prescindindo do hipnotismo, conseguir que os doentes revelassem tudo quanto
fosse preciso para estabelecer os liames existentes entre as cenas patogênicas
olvidadas e os seus resíduos - os sintomas. Esse processo era, porém, ao cabo
de algum tempo, extenuante, inadequado para uma técnica definitiva.
Não o
abandonei, contudo, sem tirar, das observações feitas, conclusões decisivas. Vi
confirmado, assim, que as recordações esquecidas não se haviam perdido. Jaziam
em poder do doente e prontas a ressurgir em associação com os fatos ainda
sabidos, mas alguma força as detinha, obrigando-as a permanecer inconscientes.
A existência desta força pode ser seguramente admitida, pois sentia-se-lhe a
potência quando, em oposição a ela, se intentava trazer à consciência do doente
as lembranças inconscientes. A força que mantinha o estado mórbido fazia-se
sentir como resistência do enfermo.
Nesta
idéia de resistência alicercei então minha concepção acerca dos processos psíquicos
na histeria. Para o restabelecimento do doente mostrou-se indispensável
suprimir estas resistências. Partindo do mecanismo da cura, podia-se formar
idéia muito precisa da gênese da doença. As mesmas forças que hoje, como
resistência, se opõem a que o esquecido volte à consciência deveriam ser as que
antes tinham agido, expulsando da consciência os acidentes patogênicos
correspondentes. A esse processo, por mim formulado, dei o nome de `repressão‘
e julguei-o demonstrado pela presença inegável da resistência.
Podia-se
ainda perguntar, sem dúvida, que força era essa e quais as condições da
repressão, em que reconhecemos agora o mecanismo patogênico da histeria. Um
exame comparativo das situações patogênicas, conhecidas graças ao tratamento
catártico, permitia dar a conveniente resposta. Tratava-se em todos os casos do
aparecimento de um desejo violento mas em contraste com os demais desejos do
indivíduo e incompatível com as aspirações morais e estéticas da própria
personalidade. Produzia-se um rápido conflito e o desfecho desta luta interna
era sucumbir à repressão a idéia que aparecia na consciência trazendo em si o
desejo inconciliável, sendo a mesma expulsa da consciência e esquecida,
juntamente com as respectivas lembranças. Era, portanto, a incompatibilidade
entre a idéia e o ego do doente, o motivo da repressão; as aspirações
individuais, éticas e outras, eram as forças repressivas. A aceitação do
impulso desejoso incompatível ou o prolongamento do conflito teriam despertado
intenso desprazer; a repressão evitava o desprazer, revelando-se desse modo um
meio de proteção da personalidade psíquica.
Dos
muitos casos por mim observados quero relatar-lhes um apenas, no qual são
patentes os aspectos determinantes e a vantagem da repressão. Para não me afastar
do meu propósito, sou forçado a resumir esta história clínica, deixando de lado
importantes hipóteses. A paciente era uma jovem que perdera recentemente o pai,
depois de tomar parte, carinhosamente, nos cuidados ao enfermo - situação
análoga à da doente de Breuer. Nascera, quando a irmã mais velha se casou, uma
simpatia particular para o novo cunhado, que se mascarava por disfarce de
ternura familiar. Esta irmã adoeceu logo depois e veio a falecer durante a
ausência da minha doente e de sua mãe. Estas foram chamadas urgentemente, sem
notícia completa do doloroso acontecimento. Quando a moça chegou ao leito da
morta, correu-lhe na mente, por um rápido instante, uma idéia mais ou menos
assim: `ele agora está livre, pode desposar-me.’ É-nos lícito admitir como
certo que esta idéia, denunciando-lhe à consciência o intenso amor que sem o
saber tinha ao cunhado, foi logo entregue à repressão pelos próprios
sentimentos revoltados. A jovem adoeceu com graves sintomas histéricos e quando
comecei a tratá-la tinha esquecido não só aquela cena junto ao leito da irmã,
como também o concomitante sofrimento indigno e egoísta. Mas recordou-se de
tudo durante o tratamento, reproduziu o incidente patogênico com sinais de
intensa emoção, e curou-se.
Talvez
possa ilustrar o processo de repressão e a necessária relação deste com a
resistência, mediante uma comparação grosseira, tirada de nossa própria
situação neste recinto. Imaginem que nesta sala e neste auditório, cujo
silêncio e cuja atenção eu não saberia louvar suficientemente, se acha no
entanto um indivíduo comportando-se de modo inconveniente, perturbando-nos com
risotas, conversas e batidas de pé, desviando-me a atenção de minha
incumbência. Declaro não poder continuar assim a exposição; diante disso alguns
homens vigorosos dentre os presentes se levantam, e após ligeira luta põem o
indivíduo fora da porta. Ele está agora `reprimido’ e posso continuar minha
exposição. Para que, porém, se não repita o incômodo se o elemento perturbador
tentar penetrar novamente na sala, os cavalheiros que me satisfizeram a vontade
levam as respectivas cadeiras para perto da porta e, consumada a repressão, se
postam como `resistências’. Se traduzirmos agora os dois lugares, sala e
vestíbulo, para a psique, como `consciente’ e `inconsciente’, os senhores terão
uma imagem mais ou menos perfeita do processo de repressão.
Os
senhores podem ver desde logo onde está a diferença entre nossa concepção e a
de Janet. Não atribuímos a divisão psíquica à incapacidade inata para a síntese
da parte do aparelho psíquico, mas explicamo-lo dinamicamente pelo conflito de
forças mentais contrárias, reconhecendo nele o resultado de uma luta ativa da
parte dos dois agrupamentos psíquicos entre si. De nossa concepção surgem novos
problemas, em grande número. Os conflitos psíquicos são excessivamente
freqüentes; observa-se com muita regularidade o esforço do eu para se defender
de recordações penosas, sem que isso produza a divisão psíquica. É forçoso,
portanto, admitir que outras condições são também necessárias para que do
conflito resulte a dissociação. Concordo de boa-vontade que com a hipótese da
repressão, estamos não no remate, mas antes no limiar de uma teoria
psicológica; só passo a passo podemos avançar, esperando que um trabalho
posterior mais aprofundado aperfeiçoe os conhecimentos.
Os
presentes devem abster-se de examinar o caso da doente de Breuer sob o ponto de
vista da repressão: essa história clínica não se presta para isso porque foi
obtida sob o influxo do hipnotismo. Só prescindido deste último poderão
perceber a resistência e a repressão, e formar idéia exata do processo
patogênico real. A hipnose encobre a resistência, deixando livre e acessível um
determinado setor psíquico, em cujas fronteiras, porém, acumula as
resistências, criando para o resto uma barreira intransponível.
O que
de mais importante nos proporcionou a observação de Breuer foi esclarecer as
relações dos sintomas com as experiências patogênicas ou traumas psíquicos,
resultado que não devemos deixar de focalizar agora sob o ponto de vista da
teoria da repressão. À primeira vista, com efeito, não se percebe como,
partindo da repressão, se pode chegar à formação dos sintomas. Em lugar de
trazer uma complicada dedução teórica, prefiro retornar à comparação que há
pouco nos serviu. Suponhamos que com a expulsão do perturbador e com a guarda à
porta não terminou o incidente. Pode muito bem ser que o sujeito, irritado e
sem nenhuma consideração, continue a nos dar que fazer. Ele já não está aqui
conosco; ficamos livres de sua presença, dos motejos, dos apartes, mas a
expulsão foi por assim dizer inútil, pois lá de fora ele dá um espetáculo
insuportável, e com berros e murros na porta nos perturba a conferência mais do
que antes. Em tais conjunturas poderíamos felicitar-nos se o nosso honrado
presidente, Dr. Stanley Hall, quisesse assumir o papel de medianeiro e
pacificador. Iria parlamentar com o nosso intratável companheiro e voltaria
pedindo-nos que o recebêssemos de novo, garantindo-nos um comportamento
conveniente daqui por diante. Graças à autoridade do Dr. Hall, condescendemos
em desfazer a repressão, voltando a paz e o sossego. Eis uma representação
muito apropriada da missão que cabe ao médico na terapêutica psicanalítica das
neuroses.
Agora,
para dizê-lo sem rebuços: chegamos à convicção, pelo exame dos doentes
histéricos e outros neuróticos, de que a repressão das idéias, a que o desejo
insuportável está apenso, malogrou. Expeliram-nas da consciência e da
lembrança; com isso os pacientes se livraram aparentemente de grande soma de dissabores.
Mas o impulso desejoso continua a existir no inconsciente à espreita de
oportunidade para se revelar, concebe a formação de um substituto do reprimido,
disfarçado e irreconhecível, para lançar à consciência, substituto ao qual logo
se liga a mesma sensação de desprazer que se julgava evitada pela repressão.
Esta substituição da idéia reprimida - o sintoma - é protegida contra as forças
defensivas do ego e em lugar do breve conflito, começa então um sofrimento
interminável. No sintoma, a par dos sinais do disfarce, podem reconhecer-se
traços de semelhança com a idéia primitivamente reprimida. Pelo tratamento
psicanalítico desvenda-se o trajeto ao longo do qual se realizou a
substituição, e para a recuperação é necessário que o sintoma seja reconduzido
pelo mesmo caminho até a idéia reprimida.
Uma
vez restituído à atividade mental consciente aquilo que fora reprimido - e isso
pressupõe que consideráveis resistências tenham sido desfeitas - o conflito
psíquico que desse modo se originara e que o doente quis evitar, alcança,
orientado pelo médico, uma solução mais feliz do que a oferecida pela
repressão. Há várias dessas soluções para rematar satisfatoriamente conflito e
neurose, as quais, em determinados casos, podem combinar-se entre si. Ou a
personalidade do doente se convence de que repelira sem razão o desejo e
consente em aceitá-lo total ou parcialmente, ou este mesmo desejo é dirigido
para um alvo irrepreensível e mais elevado (o que se chama `sublimação’ do
desejo), ou, finalmente, reconhece como justa a repulsa. Nesta última hipótese
o mecanismo da repressão, automático por isso mesmo insuficiente, é substituído
por um julgamento de condenação com a ajuda das mais altas funções mentais do
homem - o controle consciente do desejo é atingido.
Desculpem-me
se porventura não logrei apresentar-lhes mais compreensivelmente estes pontos
de vista capitais do método terapêutico hoje denominado `psicanálise’. A
dificuldade não está só na novidade do assunto. A natureza dos desejos
incompatíveis que, não obstante a repressão, continuam a dar sinal de si no
inconsciente, e os elementos determinantes subjetivos e constitucionais que
devem estar presentes em qualquer pessoa antes do malogro da repressão podem
ocorrer e um substituto ou sintoma ser formado - sobre tudo isto procurarei
esclarecer em algumas observações posteriores.
TERCEIRA LIÇÃO
SENHORAS
E SENHORES, - Nem sempre é fácil dizer a verdade, mormente quando é mister ser
conciso, e por isso vejo-me obrigado a corrigir uma inexatidão que cometi na
última conferência. Dizia-lhes eu que quando, posto de lado o hipnotismo, eu
forçava os doentes a comunicarem o que lhes viesse à mente - pois que saibam,
apesar de tudo, aquilo que supunham ter esquecido, e a idéia que lhes brotasse
havia de certamente conter em si o que se procurava -, pude, com efeito,
verificar que o primeiro pensamento surgido trazia o elemento desejado e se
revelava como a continuação inadvertida da lembrança. Isto, porém, nem sempre é
certo; foi por amor à concisão que o apresentei com essa singeleza. Na
realidade, só nas primeiras vezes aconteceu que pela simples pressão de minha
parte exatamente o esquecido que buscávamos se apresentasse. Continuando a
empregar o método, vinham pensamentos despropositados, que não poderiam ser o
procurado e que os próprios doentes repeliam como inexatos. Já não adiantava
insistência e poder-se-ia de novo lamentar o abandono do hipnotismo.
Neste
estado de perplexidade vali-me de um pressuposto cuja exatidão científica foi
anos depois demonstrada pelo meu amigo C. G. Jung, de Zurique, e seus
discípulos. Devo afirmar que às vezes é muito útil ter um pressuposto. Eu tinha
em alto conceito o rigor do determinismo dos processos mentais e não podia crer
que uma idéia concebida pelo doente com atenção concentrada fosse inteiramente
espontânea, sem nenhuma relação com a representação mental esquecida e por nós
procurada. Que não fosse idêntica a esta, explicava-se satisfatoriamente pela
situação psicológica suposta. Duas forças antagônicas atuavam no doente; de um
lado, o esforço refletido para trazer à consciência o que jazia deslembrado no
inconsciente; de outro lado a resistência, já nossa conhecida, impedindo a
passagem para o consciente do elemento reprimido ou dos derivados deste. Se
fosse igual a zero ou insignificante a resistência, o olvidado se tornaria
consciente sem deformação. Podemos admitir que seja tanto maior a deformação do
elemento procurado quanto mais forte a resistência que o detiver. O pensamento
que no doente vinha em lugar do desejado, tinha origem idêntica à de um
sintoma; era uma nova substituição artificial e efêmera do reprimido e tanto
menos semelhante a ele quanto maior a deformação que tivesse de sofrer sob a
influência da resistência. Ele devia mostrar, porém, certa parecença com o procurado,
em virtude da sua natureza de sintoma; e desde que a resistência não fosse
muito intensa, seria possível, partindo da idéia, lobrigar o oculto que se
buscava. O pensamento devia comportar-se em relação ao elemento reprimido com
uma alusão, como uma representação do mesmo por meio de palavras indiretas.
Conhecemos,
no domínio da vida psíquica normal, exemplos em que situações análogas às que
admitimos produzem resultados semelhantes. É o caso do chiste. O problema da
técnica psicanalítica forçou-me a estudar o mecanismo da formação das
pilhérias. Quero expor-lhes apenas um desses exemplos, aliás uma anedota da
língua inglesa.
Diz a
anedota: Por uma série de empresas duvidosas, dois comerciantes tinham
conseguido reunir grandes cabedais e esforçavam-se para penetrar na boa
sociedade. Entre outros, pareceu-lhes um meio conveniente fazerem-se retratar
pelo pintor mais notável e mais careiro da cidade, cujo quadro fosse um
acontecimento. Numa grande reunião foram inaugurados os custosíssimos quadros,
um ao lado do outro, e os dois proprietários conduziram até a parede o mais
influente crítico de arte a fim de obterem o valioso julgamento. O crítico
examinou longamente o quadro, sacudiu a cabeça como se achasse falta de alguma
coisa e perguntou apenas, indicando o espaço entre os dois quadros: `But
where’s the Saviour? (`Mas onde está o Redentor?’) Vejo que todos se riem da
boa pilhéria; penetramos-lhes agora a significação. Os presentes compreendem
que o crítico queria dizer: vocês são dois patifes como aqueles que ladearam o
Cristo crucificado. Mas não o disse; em lugar disso exprimiu coisa que à
primeira vista parece extraordinariamente abstrusa e fora de propósito, mas que
logo depois reconhecemos como uma alusão à injúria que lhe estava no íntimo, e
que vale perfeitamente como substituto dela. Não podemos esperar que numa
anedota sejam encontradas todas as circunstâncias que pressupomos na gênese das
idéias associadas dos nossos doentes; queremos todavia realçar a identidade de
motivação para a anedota e para a idéia. Por que é que o nosso crítico não lhes
falou claramente? Porque nele outras razões contrárias também atuavam ao lado
do ímpeto de dizê-lo francamente, face a face. Não deixa de ser perigoso
desfeitear pessoas de que somos hóspedes e que dispõem de criadagem numerosa,
de pulsos vigorosos. A sorte poderia ser a mesma que na conferência anterior
serviu de exemplo para a repressão. Por tal razão o crítico atirou
indiretamente a ofensa que estava ruminando, transfigurando-a numa `alusão com
desabafo’. É, a nosso ver, devido à mesma constelação que o paciente produz uma
idéia de substituição, mais ou menos distorcida, em lugar do elemento esquecido
que procuramos.
Senhoras
e Senhores. Aceitando a proposta da Escola de Zurique (Bleuler, Jung e outros),
convém dar o nome de `complexo’ a um grupo de elementos ideacionais
interdependentes, catexizados de energia afetiva. Vemos assim que partindo da
última recordação que o doente ainda possui, em busca de um complexo reprimido,
temos toda a probabilidade de desvendá-lo, desde que o doente nos proporcione
um número suficiente de associações livres
.
Mandamos o doente dizer o que quiser, cônscios de que nada lhe ocorrerá à mente
senão aquilo que indiretamente dependa do complexo procurado. Talvez lhes
pareça muito fastidioso este processo de descobrir os elementos reprimidos,
mas, asseguro-lhes, é o único praticável.
No
emprego desta técnica o que ainda nos perturba é que com freqüência o doente se
detém, afirmando não saber dizer mais nada, que nada mais lhe vem à idéia. Se
assim fosse, se o doente tivesse razão, o método ter-se-ia revelado
impraticável. Uma observação atenta mostra, contudo, que as idéias livres nunca
deixam de aparecer. É que o doente, influenciado pela resistência disfarçada em
juízos críticos sobre o valor da idéia, retém-na ou de novo a afasta. Para
evitá-la põe-se previamente o doente a par do que pode ocorrer, pedindo-lhe
renuncie a qualquer crítica; sem nenhuma seleção deverá expor tudo que lhe vier
ao pensamento, mesmo que lhe pareça errôneo, despropositado ou absurdo e,
especialmente, se lhe for desagradável a vinda dessas idéias à mente. Pela
observância dessa regra garantimo-nos o material que nos conduz ao roteiro do
complexo reprimido.
Esse
material associativo que o doente rejeita como insignificante, quando em vez de
estar sob a influência do médico está sob a da resistência, representa para o
psicanalista o minério de onde com simples artifício de interpretação há de
extrair o metal precioso. Se diante de um doente quiserem os presentes ter um
conhecimento rápido e provisório dos complexos reprimidos, sem lhes penetrar na
ordem e nas relações, podem dispor da `experiência da associação’, cuja técnica
foi aperfeiçoada por Jung (1906) e seus discípulos. Para o psicanalista este
método é tão precioso quanto para o químico a análise qualitativa; prescindível
na terapêutica dos neuróticos, é indispensável para a demonstração objetiva dos
complexos e para o estudo das psicoses, com tanto êxito empreendido pela Escola
de Zurique.
Não é
o estudo das divagações, quando o doente se sujeita à regras psicanalíticas, o
único recurso técnico para sondagem do inconsciente. Ao mesmo escopo servem
dois outros processos: a interpretação de sonhos e o estudo dos lapsos e atos
casuais.
Confesso-lhes,
prezados ouvintes, que estive longo tempo indeciso sobre se, em lugar desta
rápida vista geral sobre todo o domínio da psicanálise, não seria preferível
expor-lhes minuciosamente a interpretação de sonhos. Motivo puramente subjetivo
e aparentemente secundário me deteve. Pareceu-me quase escandaloso
apresentar-me neste país de orientação prática, como `onirócrita’, antes de
mostrar-lhes qual a importância a que pode aspirar esta velha e ridicularizada
arte. A interpretação de sonhos é na realidade a estrada real para o
conhecimento do inconsciente, a base mais segura da psicanálise. É campo onde
cada trabalhador pode por si mesmo chegar a adquirir convicção própria, como atingir
maiores aperfeiçoamentos. Quando me perguntam como pode uma pessoa fazer-se
psicanalista, respondo que é pelo estudo dos próprios sonhos. Os adversários da
psicanálise, com muita habilidade, têm até agora evitado estudar de perto A
Interpretação de Sonhos, ou têm oposto ao de longe objeções superficialíssimas.
Se não repugna aos presentes, ao contrário, aceitar as soluções dos problemas
da vida onírica, já não apresentam aos ouvintes dificuldade alguma as novidades
trazidas pela psicanálise.
Não
se esqueçam de que se nossas elaborações oníricas noturnas mostram de um lado a
maior semelhança externa e o mais íntimo parentesco com as criações da
alienação mental, são, de outro lado, compatíveis com a mais perfeita saúde na
vida desperta. Não é nenhum paradoxo afirmar que quem fica admirado ante essas
alucinações, delírios ou mudanças de caráter que podemos chamar `normais’, sem
procurar explicá-los, não tem a menor probabilidade de compreender, senão como
qualquer leigo, as formações anormais dos estados psíquicos patológicos. E
entre esses leigos os ouvintes podem contar atualmente, sem receio, quase todos
os psiquiatras.
Acompanhem-me
agora numa rápida excursão pelo campo dos problemas do sonho. Quando acordados,
costumamos tratar os sonhos com o mesmo desdém com que os doentes rejeitam as
idéias soltas despertadas pelo psicanalista. Desprezamo-los, olvidando-os em
geral rápida e completamente. O nosso descaso funda-se no caráter exótico
apresentado mesmo pelos sonhos que possuem clareza e nexo, e sobre a evidente
absurdez e insensatez dos demais; nossa repulsa explica-se pelas tendências
imorais e menos pudicas que se patenteiam em muitos deles. É de todos sabido
que a antigüidade não compartilhou tal desapreço para com os sonhos. As camadas
baixas do nosso povo, mesmo hoje, não estão totalmente desnorteadas na
apreciação do valor dos sonhos, dos quais esperam, como os antigos, a revelação
do futuro. Confesso-lhes que não tenho necessidade de nenhuma hipótese mística
para preencher as falhas de nossos conhecimentos atuais e por isso nunca pude
descobrir nada que confirmasse a natureza profética dos sonhos. Coisa muito
diferente disso, embora assaz maravilhosa, se pode dizer a respeito deles.
Em
primeiro lugar, nem todos os sonhos são estranhos, incompreensíveis e confusos
para a pessoa que sonhou. Examinando os sonhos de criancinhas, desde um ano e
meio de idade, verificarão que eles são extremamente simples e de fácil
explicação. A criancinha sonha sempre com a realização de desejos que o dia
anterior lhe trouxe e que ela não satisfez. Não há necessidade de arte
divinatória para encontrar solução tão simples; basta saber o que se passou com
a criança na véspera (`dia do sonho’). Estaria certamente resolvido, e de modo
satisfatório, o enigma do sonho, se o do adulto não fosse nada mais que o da
criancinha: realização de desejos trazidos pelo dia do sonho. E o é de fato. As
dificuldades que esta solução apresenta removem-se uma a uma, mediante a
análise minuciosa dos sonhos.
A
primeira objeção e a mais importante é a de que os sonhos dos adultos via de
regra têm um conteúdo ininteligível, sem nenhuma semelhança com a satisfação de
desejos. Resposta: estes sonhos estão distorcidos, o processo psíquico
correspondente teria originariamente uma expressão verbal muito diversa. O
conteúdo manifesto do sonho, recordado vagamente de manhã e que, não obstante a
espontaneidade aparente, se exprime em palavras com esforço, deve ser
diferenciado dos pensamentos latentes do sonho que se têm de admitir como
existentes no inconsciente. Esta deformação possui mecanismo idêntico ao que já
conhecemos desde quando examinamos a gênese dos sintomas histéricos; e é uma
prova da participação da mesma interação de forças mentais tanto na formação
dos sonhos como na dos sintomas. O conteúdo manifesto do sonho é o substituto
deformado para os pensamentos inconscientes do sonho. Esta deformação é obra
das forças defensivas do ego, isto é, das resistências que na vigília impedem,
de modo geral, a passagem para a consciência, dos desejos reprimidos do
inconsciente; enfraquecidas durante o sono, estas resistências ainda são
suficientemente fortes para só os tolerar disfarçados. Quem sonha, portanto,
reconhece tão mal o sentido de seus sonhos, como o histérico as correlações e a
significação de seus sintomas.
De
que há pensamentos latentes do sonho e que entre eles e o conteúdo manifesto
existe de fato o nexo aludido, os presentes se convencerão pela análise de
sonhos, cuja técnica se confunde com a da psicanálise. Pondo de lado a aparente
conexão dos elementos do sonho manifesto, procurarão os senhores evocar idéias
por livre associação, partindo de cada um desses elementos e observando as
regras da prática psicanalítica. De posse deste material chegarão aos
pensamentos latentes do sonho com a mesma perfeição com que conseguiram
surpreender no doente o complexo oculto, por meio das idéias sugeridas pelas
associações livres a partir dos sintomas e lembranças. Pelos pensamentos
latentes do sonho, descobertos desse modo, pode-se ver sem mais nada como é
justo equiparar o sonho dos adultos ao das crianças. O que agora, como
verdadeiro sentido do sonho, substitui o seu conteúdo manifesto - e isto é
sempre claramente compreensível - liga-se às impressões da véspera e se
patenteia como a realização de um desejo não-satisfeito. O sonho manifesto que
conhecem no adulto graças à recordação pode então ser descrito como uma
realização velada de desejos reprimidos.
Podem
agora os ouvintes, por uma espécie de trabalho sintético, examinar o processo
mediante o qual os pensamentos inconscientes do sonho se disfarçam no conteúdo
manifesto. Esse processo, que denominamos `elaboração onírica’, é digno de
nosso maior interesse teórico, porque em nenhuma outra circunstância poderíamos
estudar melhor do que nele os processos psíquicos, não-suspeitados, que se
passam no inconsciente, ou, mais exatamente, entre dois sistemas psíquicos
distintos, como consciente e inconsciente. Entre tais processos psíquicos
recentemente descobertos ressaltam notavelmente o da condensação e o do
deslocamento. A elaboração onírica é um caso especial da influência recíproca
de agrupamentos mentais diversos, isto é, o resultado da divisão psíquica, e
parece essencialmente idêntico ao trabalho de deformação que transforma em
sintomas os complexos cuja repressão fracassou.
Pela
análise dos sonhos descobrirão os senhores ainda mais, com surpresa, porém do
modo mais convincente possível, o papel importantíssimo e nunca imaginado que
os fatos e impressões da tenra infância exercem no desenvolvimento do homem. Na
vida onírica a criança prolonga, por assim dizer, sua existência no homem,
conservando todas as peculiaridades e aspirações, mesmo as que se tornam mais
tarde inúteis. Com força irresistível apresentar-se-lhes-ão os processos de
desenvolvimento, repressões, sublimações e formações reativas, de onde saiu, da
criança com tão diferentes disposições, o chamado homem normal - esteio e em
parte vítima da civilização tão penosamente alcançada.
Quero
ainda fazer notar que pela análise de sonhos também pudemos descobrir que o
inconsciente se serve, especialmente para a representação de complexos sexuais,
de certo simbolismo, em parte variável individualmente e em parte tipicamente
fixo, que parece coincidir com o que conjecturamos por detrás dos nossos mitos
e lendas. Não seria impossível que essas últimas criações populares recebessem,
portanto, do sonho, a sua explicação.
Impende-nos
adverti-los finalmente de que não se deixem desorientar pela objeção de que
aparecimento de pesadelos contradiz o nosso modo de entender o sonho como
satisfação de desejos. Além de que é necessário interpretar os pesadelos antes
de sobre eles poder firmar qualquer juízo, pode dizer-se de modo geral que a
ansiedade que os acompanha não depende assim tão simplesmente do conteúdo
oniríco, como muitos imaginam por ignorar as condições da ansiedade neurótica.
A ansiedade é uma das reações do ego contra desejos reprimidos violentos, e daí
perfeitamente explicável a presença dela no sonho, quando a elaboração deste se
pôs excessivamente a serviço da satisfação daqueles desejos reprimidos.
Como
vêem, o estudo dos sonhos já estaria em si justificado, pelo fato de que
proporciona conclusões sobre coisas de que por outros meios dificilmente
chegaríamos a ter noção. Foi todavia no decorrer do tratamento psicanalítico
dos neuróticos que chegamos até ele. Pelo que até agora dissemos podem
compreender facilmente que a interpretação de sonhos, quando não a estorvam em
excesso as resistências do doente, leva ao conhecimento dos desejos ocultos e
reprimidos, bem como dos exemplos entretidos por este. Posso agora tratar do
terceiro grupo de fenômenos psíquicos cujo estudo se tornou recurso técnico da
psicanálise.
Os
fenômenos em questão são as pequenas falhas comuns aos indivíduos normais e aos
neuróticos, fatos aos quais não costumamos ligar importância - o esquecimento
de coisas que deviam saber e que às vezes sabem realmente (por exemplo a fuga
temporária dos nomes próprios), os lapsos de linguagem, tão freqüentes até
mesmo conosco, na escrita ou na leitura em voz alta; atrapalhações no executar
qualquer coisa, perda ou quebra de objetos etc., bagatelas de cujo determinismo
psicológico de ordinário não se cuida, que passam sem reparo como casualidades,
como resultado de distrações, desatenções e outras condições semelhantes.
Juntam-se ainda os atos e gestos que as pessoas executam sem perceber e,
sobretudo, sem lhes atribuir importância mental, como sejam trautear melodias,
brincar com objetos, com partes da roupa ou do próprio corpo etc. Essas coisinhas,
os atos falhos, como os sintomáticos e fortuitos, não são assim tão destituídas
de valor como por uma espécie de acordo tácito e hábito admitir. São
extraordinariamente significativas e quase sempre de interpretação fácil e
segura, tendo-se em vista a situação em que ocorrem; verifica-se que mais uma
vez exprimem impulsos e intenções que devem ficar ocultos à própria
consciência, ou emanam justamente dos desejos reprimidos e dos complexos que,
como já sabemos, são criadores dos sintomas e formadores dos sonhos. Fazem jus
à mesma consideração que os sintomas, e o seu exame, tanto quanto o dos sonhos,
pode levar ao descobrimento da parte oculta da mente. Por elas o homem trai, em
regra, os mais íntimos segredos. Se se produzem com grande facilidade e freqüência,
até em indivíduos normais, cujos desejos inconscientes estão reprimidos de modo
eficaz, isso se explica pela futilidade e inverossimilhança das mesmas. São
porém do mais alto valor teórico: testemunham a existência da repressão e da
substituição mesmo na saúde perfeita.
Notarão
desde logo que o psicanalista se distingue pela rigorosa fé no determinismo da
vida mental. Para ele não existe nada insignificante, arbitrário ou casual nas
manifestações psíquicas. Antevê um motivo suficiente em toda parte onde
habitualmente ninguém pensa nisso; está até disposto a aceitar causas múltiplas
para o mesmo efeito, enquanto nossa necessidade causal, que supomos inata, se
satisfaz plenamente com uma única causa psíquica.
Se os
ouvintes reunirem os meios que estão ao nosso alcance para descobrimento do que
na vida mental jaz escondido, deslembrado e reprimido - o estudo das idéias
livremente associadas pelos pacientes, seus sonhos, falhas e ações
sintomáticas; se ainda juntarem a tudo isso o exame de outros fenômenos
surgidos no decurso do tratamento psicanalítico e a respeito dos quais farei
algumas observações quando tratar da `transferência’ - chegarão comigo à
conclusão de que a nossa técnica já é suficientemente capaz de realizar aquilo
que se propôs: conduzir à consciência o material psíquico patogênico, dando fim
desse modo aos padecimentos ocasionados pela produção dos sintomas de
substituição. O fato de enriquecermos e aprofundarmos durante o tratamento os
nossos conhecimentos sobre a vida mental, dos sãos e dos doentes, deve ser
considerado apenas como estímulo especial a este trabalho e uma de suas
vantagens.
Não
sei se ficaram com a impressão de que a técnica, através de cujo arsenal os
conduzi, apresenta dificuldades especiais. Para mim, ela amolda-se
perfeitamente aos seus fins. Mas não é menos certo também que não constitui
prenda inata; tem de ser aprendida, como a histológica ou a cirúrgica. Talvez
se espantem em saber que na Europa ouvi uma série de juízos relativos à
psicanálise expendidos por pessoas jejunas a respeito desta técnica, que elas
não exercitam, as quais pessoas ainda por ironia nos exigem lhes demonstremos a
exatidão de nossos resultados. No meio de tais opositores encontram-se sem
dúvida homens familiarizados com o raciocínio científico em outras matérias,
incapazes de contestar, por exemplo, o resultado dum exame microscópico, só
porque não o podem confirmar pela inspeção do preparado anatômico com a vista
desarmada, e que não emitiriam parecer algum antes de minuciosa observação ao
microscópio. Mas no tocante à psicanálise as circunstâncias são realmente
desfavoráveis a um imediato assentimento. Quer a psicanálise tornar
conscientemente reconhecido aquilo que está reprimido na vida mental, e todo
aquele que a julga é homem com as mesmas repressões, mantidas talvez à custa de
penosos sacrifícios. Neles devem levantar-se, pois, as mesmas resistências,
como nos doentes, e estas se revestem facilmente das roupagens da impugnação
intelectual, suscitando argumentos semelhantes aos que desfazemos nos doentes
com a regra psicanalítica fundamental. Como nos doentes, podemos reconhecer em
nossos adversários notável influxo afetivo na faculdade de julgamento, com
prejuízo desta. O orgulho da consciência que chega por exemplo a desprezar os
sonhos pertence ao forte aparelhamento disposto em nós de modo geral contra a
invasão dos complexos inconscientes. Esta é a razão por que tão dificultoso é
como vencer os homens da realidade do inconsciente e dar-lhes a conhecer
qualquer novidade em contradição com seu conhecimento consciente.
QUARTA LIÇÃO
SENHORAS
E SENHORES, - Desejam os ouvintes saber agora o que, com auxílio dos meios
técnicos descritos, logramos averiguar a respeito dos complexos patogênicos e
dos desejos reprimidos dos neuróticos.
Mas,
antes de tudo, uma coisa: o exame psicanalítico relaciona com uma regularidade
verdadeiramente surpreendente os sintomas mórbidos a impressões da vida erótica
do doente; mostra-nos que os desejos patogênicos são da natureza dos
componentes instintivos eróticos: e obriga-nos a admitir que as perturbações do
erotismo têm a maior importância entre as influências que levam à moléstia,
tanto num como noutro sexo.
Bem
sei que não se acredita de boa mente nesta minha afirmação. Mesmo os
investigadores que me seguem solícitos os trabalhos psicológicos são inclinados
a julgar que eu exagero a participação etiológica do fator sexual, e vêm a mim
perguntando por que outras excitações mentais não hão de dar também motivo aos
fenômenos da repressão e formação de substitutivos. Por ora só lhes posso
responder: não sei. Mas a experiência mostra que elas não têm a mesma
importância. Quando muito, reforçam a ação do elemento sexual, mas nunca podem
substituí-lo. Esta ordem de coisas não a determinei mais ou menos teoricamente.
Quando, em 1895, publiquei com o Dr. J. Breuer os Estudos sobre a Histeria,
ainda não tinha esta opinião; vi-me forçado a adotá-la quando as minhas
experiências se tornaram mais numerosas e penetraram mais intimamente o
problema. Senhores! Acham-se entre os presentes alguns de meus adeptos e amigos
mais chegados, que viajaram comigo até Worcester. Se os interrogarem, ouvirão
que todos eles a princípio recebiam com a maior descrença a afirmação da
importância decisiva da etiologia sexual, até que pelo exercício analítico
pessoal foram obrigados a aceitar como sua própria aquela afirmação.
O
modo de proceder dos doentes em nada facilita o reconhecimento da justeza da
tese a que estamos aludindo. Em vez de nos fornecerem prontamente informações
sobre a sua vida sexual, procuram por todos os meios ocultá-la. Em matéria
sexual os homens são em geral insinceros. Não expõem a sua sexualidade
francamente; saem recobertos de espesso manto, tecido de mentiras, para se
resguardarem, como se reinasse um temporal terrível no mundo da sexualidade. E
não deixam de ter razão; o sol e o ar em nosso mundo civilizado não são
realmente favoráveis à atividade sexual. Com efeito, nenhum de nós pode
manifestar o seu erotismo francamente à turba. Quando porém seus pacientes
tiverem percebido que durante o tratamento devem estar à vontade, se despojarão
daquele manto de mentira, e só então estarão os presentes em condições de
formar juízo a respeito deste problema. Infelizmente, os médicos não desfrutam
nenhum privilégio especial sobre os demais homens no tocante ao comportamento
na esfera da vida sexual, e muitos deles estão dominados por aquela mescla de
lubricidade e afetado recato, que é o que governa a maioria dos `povos
civilizados’ nas coisas da sexualidade.
Deixem-me
prosseguir no relato das nossas contestações. Em outra série de casos o exame
psicanalítico vem sem dúvida ligar os sintomas não a fatos sexuais senão a
acontecimentos traumáticos comuns. Mas, por outra circunstância, esta diferenciação
perde todo valor. O trabalho de análise necessário para o esclarecimento
completo e cura definitiva de um caso mórbido não se detém nos episódios
contemporâneos da doença; retrocede sempre, em qualquer hipótese, até a
puberdade e a mais remota infância do doente, para só aí topar as impressões e
acontecimentos determinantes da doença ulterior. Só os fatos da infância
explicam a sensibilidade aos traumatismos futuros e só com o descobrimento
desses restos de lembranças, quase regularmente olvidados, e com a volta deles
à consciência, é que adquirimos o poder de afastar os sintomas. Chegamos aqui à
mesma conclusão do exame de sonhos, isto é, que foram os desejos duradouros e
reprimidos da infância que emprestaram à formação dos sintomas a força sem a
qual teria decorrido normalmente a reação contra traumatismos posteriores.
Estes potentes desejos da infância hão de ser reconhecidos, porém, em sua
absoluta generalidade, como sexuais.
Mas,
agora sim, estou realmente certo do espanto dos ouvintes. `Existe então -
perguntarão - uma sexualidade infantil?’ `A infância não é, ao contrário, o
período da vida marcado pela ausência do instinto sexual?’ Não, meus senhores.
Não é verdade certamente que o instinto sexual, na puberdade, entre o indivíduo
como, segundo o Evangelho, os demônios nos porcos. A criança possui, desde o
princípio, o instinto e as atividades sexuais. Ela os traz consigo para o
mundo, e deles provêm, através de uma evolução rica de etapas, a chamada
sexualidade normal do adulto. Não são difíceis de observar as manifestações da
atividade sexual infantil; ao contrário, para deixá-las passar desapercebidas
ou incompreendidas é que é preciso certa arte.
Por
um feliz acaso acho-me em condições de chamar dentre os presentes uma
testemunha em favor de minhas afirmações. Eis aqui o trabalho do Dr. Sanford
Bell, impresso em 1902, em The American Journal of Psychology. O autor é um
“Fellow” da Clark University, o mesmo instituto em cujo seio nos achamos no
atual instante. Nesse trabalho, intitulado `A Preliminary Study of the Emotion
of Love Between the Sexes’, publicado três anos antes dos meus Three Essays on
the Theory of Sexuality [1905d], (Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade),
escreve o autor, tal qual há pouco lhes dizia: `A emoção do amor sexual… não
aparece pela primeira vez no período da adolescência, como se tem pensado.’
Procedendo `à americana’, como diríamos na Europa, reuniu durante 15 anos nada
menos de 2.500 observações positivas, das quais 800 são próprias. Dos sinais
por que se revelam esses temperamentos namoradiços, diz ele: `O espírito mais
desprevenido, observando estas manifestações em centenas de casais de crianças,
não poderá deixar de atribuir-lhes uma origem sexual. O mais rigoroso espírito
satisfaz-se quando a estas observações se juntam as confissões dos que em
criança sentiram a emoção intensamente e cujas recordações daquela época são
relativamente nítidas.’ Aqueles dentre os ouvintes que não queriam acreditar na
sexualidade infantil terão o maior assombro ouvindo que entre estas crianças,
tão cedo enamoradas, não poucas se encontram na tenra idade de três, quatro ou
cinco anos.
Não
me admiraria se estas observações de seu compatriota lhes merecessem mais
crédito que as minhas. A mim mesmo foi-me dado obter recentemente um quadro
mais ou menos completo das manifestações instintivas somáticas e das produções
mentais num período precoce da vida amorosa infantil, graças à análise
empreendida, com todas as regras, pelo próprio pai de um menino de cinco anos
atacado de ansiedade. Devo lembrar-lhes que meu amigo Dr. C. G. Jung há poucas
horas, nesta mesma sala, lhes expôs a observação de uma menina ainda mais nova,
que pelo mesmo motivo do meu paciente (nascimento de um irmãozinho) evidenciava
quase os mesmos impulsos sensuais e idêntica formação de desejos e complexos.
[Cf. Jung, 1910.] Não duvido, pois, de que os presentes se acabarão
familiarizando com a idéia, de início tão exótica, da sexualidade infantil;
memore-se o exemplo notável do psiquiatra E. Bleuler, de Zurique, que há poucos
anos dizia publicamente `que não compreendia minha teoria sexual’ mas que de
então para cá, pôde, mediante observações próprias, confirmar a sexualidade
infantil em toda a extensão. (Cf. Bleuler, 1908.)
É
facílima de explicar a razão por que a maioria dos homens, observadores médicos
e outros, nada querem saber da vida sexual da criança. Sob o peso da educação e
da civilização, esqueceram a atividade sexual infantil e não desejam agora
relembrar aquilo que já estava reprimido. Se quisessem iniciar o exame pela
auto-análise, com uma revisão e interpretação das próprias recordações
infantis, haviam de chegar a convicção muito diferente.
Deixem
que se dissipem as dúvidas e examinemos juntos a sexualidade infantil, desde os
primeiros anos. O instinto sexual se nos apresenta muito complexo, podendo ser
desmembrado em vários componentes de origem diversa. Antes de tudo, é
independente da função procriadora a cujo serviço mais tarde se há de pôr.
Serve para dar ensejo a diversas espécies de sensações agradáveis que nós,
pelas suas analogias e conexões, englobamos como prazer sexual. A principal
fonte de prazer sexual infantil é a excitação apropriada de determinadas partes
do corpo particularmente excitáveis, além dos órgãos genitais, como sejam os
orifícios da boca, ânus e uretra e também a pele e outras superfícies
sensoriais. Como nesta primeira fase da vida sexual infantil a satisfação é
alcançada no próprio corpo, excluído qualquer objeto estranho, dá-se-lhe o
nome, segundo o termo introduzido por Havelock Ellis, de auto-erotismo. Zonas
erógenas denominam-se os lugares do corpo que proporcionam o prazer sexual. O
prazer de chupar o dedo, o gozo da sucção, é um bom exemplo de tal satisfação
auto-erótica partida de uma zona erógena. Quem primeiro observou
cientificamente esse fenômeno, o pediatra Lindner (1879), de Budapeste, já o
tinha interpretado como satisfação dessa natureza e descrito exaustivamente a
transição para outras formas mais elevadas de atividade sexual. Outra
satisfação da mesma ordem, nessa idade, é a excitação masturbatória dos órgãos
genitais, fenômeno que tão grande importância conserva para o resto da vida e
que muitos indivíduos não conseguem suplantar jamais. Ao lado dessas e outras
atividades auto-eróticas revelam-se, muito cedo, na criança, aqueles
componentes instintivos do gozo sexual ou, como preferimos dizer, da libido,
que pressupõem como objeto uma pessoa estranha. Estes instintos aparecem em
grupos de dois, um oposto ao outro, ativo e passivo: cito-lhes como mais
notáveis representantes deste grupo o prazer de causar sofrimento (sadismo) com
o seu reverso passivo (masoquismo) e o prazer visual, ativo ou passivo. Do gozo
visual ativo desenvolve-se mais tarde a sede de saber, como do passivo o pendor
para as representações artísticas e teatrais. Outras atividades sexuais
infantis já incidem na `escolha do objeto’, onde o principal elemento é uma
pessoa estranha, a qual deve primordialmente sua importância a considerações
relativas ao instinto de conservação. Mas a diferença de sexo ainda não tem
neste período infantil papel decisivo; pode-se, pois, atribuir a toda criança,
sem injustiça, uma parcial disposição homossexual. Esta vida sexual infantil
desordenada, rica mas dissociada, em que cada impulso isolado se entrega à
conquista do gozo independentemente dos demais, experimenta uma condensação e
organização em duas principais direções, de tal modo que ao fim da puberdade o
caráter sexual definitivo está completamente formado. De um lado subordinam-se
todos os impulsos ao domínio da zona genital, por meio da qual a vida sexual se
coloca em toda a plenitude ao serviço da propagação da espécie, passando a
satisfação daqueles impulsos a só ter importância como preparo e estímulo do
verdadeiro ato sexual. De outro lado a escolha de objeto repele o
auto-erotismo, de maneira que na vida erótica os componentes do instinto sexual
só querem satisfazer-se na pessoa amada. Mas nem todos os componentes
instintivos originários são admitidos a tomar parte nesta fixação definitiva da
vida sexual. Já antes da puberdade, sob o influxo de educação, certos impulsos
são submetidos a repressões extremamente enérgicas, ao mesmo passo que surgem
forças mentais - o pejo, a repugnância, a moral - que como sentinelas mantêm as
aludidas repressões. Chegando na puberdade a maré das necessidades sexuais,
encontra nas mencionadas reações psíquicas diques de resistência que lhe
conduzem a corrente pelos caminhos chamados normais e lhe impedem reviver os
impulsos reprimidos. Os mais profundamente atingidos pela repressão são
primeiramente, e sobretudo, os prazeres infantis coprófilos, isto é, os que se
relacionam com os excrementos, e, em segundo lugar, os da fixação às pessoas da
primitiva escolha de objeto.
Senhores.
Um princípio de patologia geral afirma que todo processo evolutivo traz em si
os germes de uma disposição patológica e pode ser inibido ou retardado ou
desenvolver-se incompletamente. Isto vale para o tão complicado desenvolvimento
da função sexual que nem em todos os indivíduos se desenrola sem incidentes que
deixem após si ou anormalidade ou disposições a doenças futuras por meio de uma
regressão. Pode suceder que nem todos os impulsos parciais se sujeitem à
soberania da zona genital; o que ficou independente estabelece o que chamamos
perversão e pode substituir a finalidade sexual normal pela sua própria.
Segundo já foi dito, acontece freqüentemente que o auto-erotismo não seja
completamente superado, como testemunham as multiformes perturbações aparecidas
depois. A equivalência primitiva dos sexos como objeto sexual pode
conservar-se, e disso se originará no adulto uma tendência homossexual, capaz
de chegar em certas circunstâncias até a da homossexualidade exclusiva. Esta
série de distúrbios corresponde a entraves diretos no desenvolvimento da função
sexual: abrange as perversões e o nada raro infantilismo geral da vida sexual.
A
propensão à neurose deve provir por outra maneira de uma perturbação do
desenvolvimento sexual. As neuroses são para as perversões o que o negativo é
para o positivo. Como nas perversões, evidenciam-se nelas os mesmos componentes
instintivos que mantêm os complexos e são os formadores de sintomas; mas aqui
eles agem do inconsciente, onde puderam firmar-se apesar da repressão sofrida.
A psicanálise nos mostra que a manifestação excessivamente intensa e prematura
desses impulsos conduz a uma espécie de fixação parcial - ponto fraco na
estrutura da função sexual. Se o exercício da capacidade genética normal
encontra no adulto um obstáculo, rompe-se a repressão da fase do desenvolvimento
justamente naquele ponto em que se deu a fixação infantil.
É
muito possível que me contestem dizendo que nada disto é sexualidade e que
emprego a palavra num sentido mais extenso do que estão habituados a entender.
Concordo. Mas pode-se perguntar se não têm antes utilizado os presentes o
vocábulo em sentido nímio restrito, quando o limitam ao terreno da procriação.
Sacrificam assim a compreensão das perversões, do enlaçamento que existe entre
estas, a neurose e a vida sexual normal, e os senhores se colocam em situação
de não reconhecer, em seu verdadeiro significado, os primórdios, facilmente
observáveis, da vida erótica somática e psíquica das crianças. Qualquer que
seja a opinião dos presentes sobre o emprego do termo, devem ter sempre em
conta que o psicanalista considera a sexualidade naquele sentido amplo a que o
conduziu a apreciação da sexualidade infantil.
Volvamos
ainda uma vez à evolução sexual da criança. Temos aqui ainda muito que rever,
porque nossa atenção foi dirigida mais para as manifestações somáticas da vida
sexual do que às psíquicas. A primitiva escolha de objeto feita pela criança e
dependente de sua necessidade de amparo exige-nos ainda toda a atenção. Essa
escolha dirige-se primeiro a todas as pessoas que lidam com a criança e logo
depois especialmente aos genitores. A relação entre criança e pais não é, como
a observação direta do menino e posteriormente o exame psicanalítico do adulto
concordemente demonstram, absolutamente livre de elementos de excitação sexual.
A criança toma ambos os genitores, e particularmente um deles, como objeto de
seus desejos eróticos. Em geral o incitamento vem dos próprios pais, cuja
ternura possui o mais nítido caráter de atividade sexual, embora inibido em
suas finalidades. O pai em regra tem preferência pela filha, a mãe pelo filho:
a criança reage desejando o lugar do pai se é menino, o da mãe se se trata da
filha. Os sentimentos nascidos destas relações entre pais e filhos e entre um
irmão e outros, não são somente de natureza positiva, de ternura, mas também
negativos, de hostilidade. O complexo assim formado é destinado a pronta
repressão, porém continua a agir do inconsciente com intensidade e
persistência. Devemos declarar que suspeitamos represente ele, com seus
derivados, o complexo nuclear de cada neurose, e nos predispusemos a
encontrá-lo não menos ativo em outros campos da vida mental. O mito do rei
Édipo que, tendo matado o pai, tomou a mãe por mulher, é uma manifestação pouco
modificada do desejo infantil, contra o qual se levantam mais tarde, como
repulsa, as barreiras do incesto. O Hamlet de Shakespeare assenta sobre a mesma
base, embora mais velada, do complexo do incesto.
No
tempo em que é dominada pelo complexo central ainda não reprimido, a criança
dedica aos interesses sexuais notável parte da atividade intelectual. Começa a
indagar de onde vêm as criancinhas, e com os dados a seu alcance adivinha das
circunstâncias reais mais do que os adultos podem suspeitar. Comumente o que
lhe desperta a curiosidade é a ameaça material do aparecimento de um novo
irmãozinho, no qual a princípio só vê um competidor. Sob a influência dos
impulsos parciais que nela agem, forma até numerosas `teorias sexuais
infantis’. Chega a pensar que ambos os sexos possuem órgãos genitais
masculinos; que comendo é que se geram crianças; que estas vêm ao mundo pela
extremidade dos intestinos; que a cópula é um ato de hostilidade, uma espécie
de subjugação. Mas justamente a falta de acabamento de sua constituição sexual
e a deficiência de conhecimentos, especialmente no que se refere ao tubo
genital feminino, forçam o pequeno investigador a suspender o improfícuo
trabalho. O próprio fato dessa investigação e as conseqüentes teorias sexuais
infantis são de importância determinante para a formação do caráter da criança e
do conteúdo da neurose futura.
É
absolutamente normal e inevitável que a criança faça dos pais o objeto da
primeira escolha amorosa. Porém a libido não permanece fixa neste primeiro
objeto: posteriormente o tomará apenas como modelo, passando dele para pessoas
estranhas, na ocasião da escolha definitiva. Desprender dos pais a criança
torna-se portanto uma obrigação inelutável, sob pena de graves ameaças para a
função social do jovem. Durante o tempo em que a repressão promove a seleção
entre os impulsos parciais de ordem sexual, e, mais tarde, quando a influência
dos pais, principal fator da repressão, deve abrandar, cabem no trabalho
educativo importantes deveres que atualmente, por certo, nem sempre são
preenchidos de modo inteligente e livre de críticas.
Senhoras
e senhores. Não julguem que com esta dissertação acerca da vida sexual infantil
e do desenvolvimento psicossexual da criança nos tenhamos afastado da
psicanálise e da terapêutica das perturbações nervosas. Se quiserem, podem
definir o tratamento psicanalítico como simples aperfeiçoamento educativo
destinado a vencer os resíduos infantis.
QUINTA LIÇÃO
SENHORAS
E SENHORES, - Com o descobrimento da sexualidade infantil e atribuindo aos
componentes eróticos instintivos os sintomas das neuroses, chegamos a algumas
fórmulas inesperadas sobre a natureza e tendência destas últimas. Vemos que os
indivíduos adoecem quando, por obstáculos exteriores ou ausência de adaptação
interna lhes falta na realidade a satisfação das necessidades sexuais.
Observamos que então se refugiam na moléstia, para com o auxílio dela encontrar
uma satisfação substitutiva. Reconhecemos que os sintomas mórbidos contêm certa
parcela da atividade sexual do indivíduo ou sua vida sexual inteira. No
distanciar da realidade reconhecemos também a tendência principal e ao mesmo
tempo o dano capital do estado patológico. Conjecturamos que a resistência
oposta pelos doentes à cura não seja simples, mas composta de vários elementos.
Não somente o ego do doente se recusa a desfazer a repressão por meio da qual
se esquivou de suas disposições originárias, como também pode o instinto sexual
não renunciar à satisfação vicariante enquanto houver dúvida de que a realidade
lhe ofereça algo melhor.
A
fuga, da realidade insatisfatória para aquilo que pelos danos biológicos que
produz chamamos doença, não deixa jamais de proporcionar ao doente um prazer
imediato; ela se dá pelo caminho da regressão às primeiras fases da vida sexual
a que na época própria não faltou satisfação. Esta regressão mostra-se sob dois
aspectos: temporal, porque a libido, na necessidade erótica, volta a fixar-se
aos mais remotos estados evolutivos - e formal, porque emprega os meios
psíquicos originários e primitivos para manifestação da mesma necessidade. Sob
ambos os aspectos a regressão orienta-se para a infância, restabelecendo um
estado infantil da vida sexual.
Quanto
mais profundamente penetrar-lhes a patogênese das afecções nervosas, mais
claramente verão os liames entre as neuroses e outras produções da vida mental
do homem, ainda as mais altamente apreciadas. Hão de notar que nós, os homens,
com as elevadas aspirações de nossa cultura e sob a pressão das íntimas
repressões, achamos a realidade de todo insatisfatória e por isso mantemos uma
vida de fantasia onde nos comprazemos em compensar as deficiências da
realidade, engendrando realizações de desejos. Nestas fantasias há muito da
própria natureza constitucional da personalidade e muito dos sentimentos
reprimidos. O homem enérgico e vencedor é aquele que pelo próprio esforço
consegue transformar em realidade seus castelos no ar. Quando esse resultado
não é atingido, seja por oposição do mundo exterior, seja por fraqueza do
indivíduo, este se desprende da realidade, recolhendo-se aonde pode gozar, isto
é, ao seu mundo de fantasia, cujo conteúdo, no caso de moléstia, se transforma
em sintoma. Em certas condições favoráveis, ainda lhe é possível encontrar
outro caminho dessas fantasias para a realidade, em vez de se alhear dela
definitivamente pela regressão ao período infantil. Quando a pessoa inimizada
com a realidade possui dotes artísticos (psicologicamente ainda enigmáticos)
podem suas fantasias transmudar-se não em sintomas senão em criações
artísticas; subtrai-se desse modo à neurose e reata as ligações com a
realidade. (Cf. Rank, 1907). Quando com a revolta perpétua contra o mundo real
faltam ou são insuficientes esses preciosos dons, é absolutamente inevitável
que a libido, seguindo a origem da fantasia, chegue ao reavivamento dos desejos
infantis, e com isso à neurose, representante, em nossos dias, do claustro
aonde costumavam recolher-se todas as pessoas desiludidas da vida ou que se
sentiam fracas demais para viver.
Seja-me
lícito referir neste ponto o que de mais importante pudemos conseguir pelo
estudo psicanalítico dos nervosos, e vem a ser que as neuroses não têm um
conteúdo psíquico que, como privilégio deles, não se possa encontrar nos sãos;
segundo expressou C. G. Jung, aqueles adoecem pelos mesmos complexos com que
lutamos nós, os que temos saúde perfeita. Conforme as circunstâncias de
quantidade e da proporção entre as forças em choque, será o resultado da luta a
saúde, a neurose ou a sublimação compensadora.
Senhoras
e senhores. Não lhes falei até agora sobre a experiência mais importante, que
vem confirmar nossa suposição acerca das forças instintivas sexuais da neurose.
Todas as vezes que tratamos psicanaliticamente um paciente neurótico, surge
nele o estranho fenômeno chamado `transferência’, isto é, o doente consagra ao
médico uma série de sentimentos afetuosos, mesclados muitas vezes de
hostilidade, não justificados em relações reais e que, pelas suas
particularidades, devem provir de antigas fantasias tornadas inconscientes.
Aquele trecho da vida sentimental cuja lembrança já não pode evocar, o paciente
torna a vivê-lo nas relações com o médico; e só por este ressurgimento na
`transferência’ é que o doente se convence da existência e do poder desses
sentimentos sexuais inconscientes. Os sintomas, para usar uma comparação
química, são os precipitados de anteriores eventos amorosos (no mais amplo
sentido) que só na elevada temperatura da transferência podem dissolver-se e
transformar-se em outros produtos psíquicos. O médico desempenha nesta reação,
conforme a excelente expressão de Ferenczi (1909), o papel de fermento
catalítico que atrai para si temporariamente a energia afetiva aos poucos
libertada durante o processo. O estudo da transferência pode dar-lhes ainda a
chave para compreenderem a sugestão hipnótica de que a princípio nos servimos
como meio técnico de esquadrinhar o inconsciente dos doentes. Naquela época o
hipnotismo revelava-se um meio terapêutico, mas constituía ao mesmo tempo um
empecilho ao conhecimento científico da questão, removendo as resistências
psíquicas de um certo território, para amontoá-las como muralha intransponível
nos confins do mesmo. Não pensem, além disso, que o fenômeno da transferência,
a respeito do qual infelizmente pouco posso dizer aqui, seja produzido pela
influência da psicanálise. A transferência surge espontaneamente em todas as
relações humanas e de igual modo nas que o doente entretém com o médico; é ela,
em geral, o verdadeiro veículo da ação terapêutica, agindo tanto mais
fortemente quanto menos se pensa em sua existência. A psicanálise, portanto,
não a cria; apenas a desvenda à consciência e dela se apossa a fim de
encaminhá-la ao termo desejado. Não posso certamente deixar o assunto da
transferência sem frisar que este fenômeno é decisivo não só para o
convencimento do doente mas também do médico. Sei que todos os meus adeptos só
pela experiência própria sobre a transferência se convenceram da exatidão das
minhas afirmações referentes à patogênese das neuroses; posso perfeitamente
compreender que ninguém alcance um modo de julgar tão seguro, enquanto não se
faça psicanalista e não observe dessa maneira a ação da transferência.
Senhoras
e senhores. Do ponto de vista intelectual, devemos levar em conta, julgo eu,
que existem especialmente dois obstáculos, dignos de nota, contra a aceitação
das idéias psicanalíticas: primeiramente, a falta de hábito de contar com o
rigoroso determinismo da vida mental, o qual não conhece exceção, e, em segundo
lugar, o desconhecimento das singularidades pelas quais os processos mentais
inconscientes se diferenciam dos conscientes que nos são familiares. Uma das
formas de oposição mais espalhadas contra o emprego da psicanálise, tanto em
doentes como em sãos, se liga ao último desses dois fatores. Teme-se que ela
faça mal, tem-se medo de chamar à consciência do doente os impulsos sexuais
reprimidos, como se lhe oferecessem então o perigo de aniquilar as mais altas
aspirações morais e o privassem das conquistas da civilização. Nota-se que o
doente apresenta feridas na vida psíquica, mas receia-se tocar nelas, para não
aumentar os sofrimentos. Podemos aceitar esta analogia. Não devemos com efeito
tocar em pontos doentes quando estamos certos de que com isso só provocamos dor
e nada mais. Todos sabem, porém, que o cirurgião não deixa de examinar,
palpando o foco da moléstia, quando tem em vista realizar uma operação que há
de proporcionar a cura completa. Ninguém pensa já em incriminá-lo pelos
inevitáveis incômodos do exame nem pelos fenômenos pós-operatórios, desde que a
operação tenha bom êxito e que, mediante a agravação passageira do mal, o
doente alcance a definitiva supressão do estado mórbido. Em relação à
psicanálise, as condições são semelhantes; pode ela reivindicar os mesmos
direitos que a cirurgia; a exasperação dos incômodos que impõe ao doente
durante o tratamento é, uma vez observada a boa técnica, incomparavelmente
menor que a infligida pelo cirurgião, e em geral nem deve ser tomada em
consideração diante da gravidade da moléstia principal. A destruição do caráter
civilizado pelos impulsos instintivos libertados da repressão é um desfecho
temido mas absolutamente impossível. É que este temor não leva em conta o que a
nossa experiência nos ensinou com toda segurança: que o poder mental e somático
de um desejo, desde que se baldou a respectiva repressão, se manifesta com
muito mais força quando inconsciente do que quando consciente; indo para a
consciência, só se pode enfraquecer. O desejo inconsciente escapa a qualquer
influência, é independente das tendências contrárias, ao passo que o consciente
é atalhado por tudo quando, igualmente consciente, se lhe opuser. O tratamento
psicanalítico coloca-se assim como o melhor substituto da repressão fracassada,
justamente em prol das aspirações mais altas e valiosas da civilização.
Que
acontece geralmente com os desejos inconscientes libertados pela psicanálise, e
quais os meios por cujo intermédio pretendemos torná-los inofensivos à vida do
indivíduo? Desses meios há vários. O resultado mais freqüente é que os mesmos
desejos, já durante o tratamento, são anulados pela ação mental, bem conduzida,
dos melhores sentimentos contrários. A repressão é substituída pelo julgamento
de condenação efetuado com recursos superiores. Isso é possível porque quase
sempre temos de remover tão-somente conseqüências de estados evolutivos
anteriores do ego. Como o indivíduo na época se achava ainda incompletamente
organizado, não pôde senão reprimir o instinto inutilizável; mas na força e
madureza de hoje, pode talvez dominar perfeitamente aquilo que lhe é hostil.
Outro desfecho do tratamento psicanalítico é que os impulsos inconscientes, ora
descobertos, passam a ter a utilização conveniente que deviam ter encontrado
antes, se a evolução não tivesse sido perturbada. A extirpação radical dos
desejos infantis não é absolutamente o fim ideal. Por causa das repressões, o
neurótico perdeu muitas fontes de energia mental que lhe teriam sido de grande
valor na formação do caráter e na luta pela vida. Conhecemos uma solução muito
mais conveniente, a chamada `sublimação‘, pela qual a energia dos desejos
infantis não se anula mas ao contrário permanece utilizável, substituindo-se o
alvo de algumas tendências por outro mais elevado, quiçá não mais de ordem
sexual. Exatamente os componentes do instinto sexual se caracterizam por essa
faculdade de sublimação, de permutar o fim sexual por outro mais distante e de
maior valor social. Ao reforço de energia para nossas funções mentais, por essa
maneira obtido, devemos provavelmente as maiores conquistas da civilização. A
repressão prematura exclui a sublimação do instinto reprimido; desfeito aquele,
está novamente livre o caminho para a sublimação.
Não
devemos deixar de contemplar também o terceiro dos possíveis desenlaces do
tratamento psicanalítico. Certa parte dos desejos libidinais reprimidos faz jus
à satisfação direta e deve alcançá-la na vida. As exigências da sociedade
tornam o viver dificílimo para a maioria das criaturas humanas, forçando-as com
isso a se afastarem da realidade e dando origem às neuroses, sem que o excesso
de coerção sexual traga maiores benefícios à coletividade. Não devemos
ensoberbecer-nos tanto, a ponto de perder completamente de vista nossa natureza
animal, nem esquecer tampouco que a felicidade individual não deve ser negada
pela civilização. A plasticidade dos componentes sexuais, manifesta na capacidade
de sublimarem-se, pode ser uma grande tentação a conquistarmos maiores frutos
para a sociedade por intermédio da sublimação contínua e cada vez mais intensa.
Mas assim como não contamos transformar em trabalho senão parte do calor
empregado em nossas máquinas, de igual modo não devemos esforçar-nos em desviar
a totalidade da energia do instinto sexual da sua finalidade própria. Nem o
conseguiríamos. E se o cerceamento da sexualidade for exagerado, trará consigo
todos os danos duma exploração abusiva.
Não
sei se da parte dos senhores considerarão como presunção minha a admoestação
com que concluo. Atrevo-me apenas a representar indiretamente a convicção que
tenho, narrando-lhes uma anedota já antiga, cuja moralidade os senhores mesmo
apreciarão. A literatura alemã conhece um vilarejo chamado Schilda, de cujos
habitantes se contam todas as espertezas possíveis. Dizem que possuíam eles um
cavalo com cuja força e trabalho estavam satisfeitíssimos. Uma só coisa
lamentavam: consumia aveia demais e esta era cara. Resolveram tirá-lo pouco a
pouco desse mau costume, diminuindo a ração de alguns grãos diarimente, até
acostumá-lo à abstinência completa. Durante certo tempo tudo correu
magnificamente; o cavalo já estava comendo apenas um grãozinho e no dia
seguinte devia finalmente trabalhar sem alimento algum. No outro dia amanheceu
morto o pérfido animal; e os cidadãos de Schilda não sabiam explicar por que.
Nós
nos inclinaremos a crer que o cavalo morreu de fome e que sem certa ração de
aveia não podemos esperar em geral trabalho de animal algum.
Pelo
convite e pela atenção com que me honraram, os meus agradecimentos.
LEONARDO
DA VINCI E UMA LEMBRANÇA DA SUA INFÂNCIA (1910)
NOTA DO EDITOR INGLÊS (JAMES STRACHEY)
EINE
KINDHEITSERINNERUNG DES LEONARDO DA VINCI
(a)
EDIÇÕES ALEMÃS:
1910
Leipzig e Viena: Deuticke. P. 71. (Schriften zur angewandten Seelenkunde, Heft 7)
1919
2ª ed. Mesmos editores, P. 76.
1923
2ª ed. Mesmos editores. P. 78.
1925
G.S., 9, 371-454.
1943
G.W., 8, 128-211.
(b)
TRADUÇÕES INGLESAS:
Leonardo
da Vinci
1916
Nova Iorque: Moffat, Yard. P. 130. (Trad. A. A. Brill.)
1922 Londres: Kegan Paul. P. v + 130. (Mesmo tradutor, com prefácio de Ernest Jones.)
1932
Nova Iorque: Dodd Mead. P. 139. (Reedição da tradução acima.)
A
tradução atual inglesa, com o título modificado para `Leonardo da Vinci and a
Memory of his Childhood’, é inteiramente nova, feita por Alan Tyson.
O
interesse de Freud por Leonardo datava de longe, conforme o prova uma frase
sua, em carta endereçada a Fliess, em 9 de outubro de 1898 (Freud, 1950 a,
Carta 98) na qual comentava que `Leonardo, que talvez fosse o mais famoso
canhoto da história, jamais tivera um caso de amor’. Este interesse não foi
tampouco um interesse passageiro, pois nas respostas de Freud a um
`questionário’ sobre seus livros prediletos (1907d) vamos encontrar uma
referência a um estudo de Merezhkovsky sobre Leonardo. Mas o verdadeiro
estímulo para que escrevesse o presente trabalho parece ter surgido no outono
de 1909, na figura de um de seus pacientes, o qual, conforme seu comentário em
carta a Jung, em 17 de outubro, parecia ter a mesma constituição de Leonardo
sem, no entanto, possuir o seu gênio. Dizia, ainda, que estava esperando
receber da Itália um livro sobre a juventude de Leonardo. Este livro era a
monografia, por Scognamiglio, mencionada em [1]. Após ler este e outros livros
sobre Leonardo, Freud discorreu sobre o assunto perante a Sociedade
Psicanalítica de Viena, no dia 1º de dezembro; mas foi somente em princípios de
abril de 1910 que terminou de escrever o seu estudo, publicado em fins de maio.
Freud
fez uma série de correções e acréscimos nas edições seguintes do livro. Entre
eles, podemos ressaltar a pequena nota ao pé da página sobre circuncisão (ver
em [2]), o resumo de um trecho de Reitler (ver em [3]) e a extensa citação de
um trecho de Pfister (ver em [4]), todos incluídos na edição de 1919, e os
comentários sobre o desenho de Londres (ver em [5]), acrescentado em 1923.
Este
trabalho de Freud não foi o primeiro em que foram aplicados métodos clínicos da
psicanálise no estudo de vultos históricos do passado. Experiências nesse
sentido já haviam sido feitas por outros, sobretudo por Sadger, que publicara
estudos sobre Conrad Ferdinand Meyer (1908), Lenau (1909) e Kleis (1909). O
próprio Freud nunca fizera um estudo biográfico extenso dessa natureza, embora
houvesse feito análises fragmentárias de alguns escritores, baseadas em
episódios contidos em seus respectivos trabalhos. De fato, em época muito anterior,
em 20 de junho de 1898, ele enviara a Fliess um estudo sobre uma historieta de
C.F. Meyer, `Die Richterin’, que esclarecia a vida infantil do autor (Freud,
1950a, Carta 91). A monografia sobre Leonardo, no entanto, não foi somente a
primeira, mas, também, a última incursão extensa de Freud no terreno da
biografia. O livro parece ter sido recebido com uma avalancha de críticas
desfavoráveis, que ultrapassaram os limites normais, o que evidentemente
justificou a defesa antecipada, feita por Freud, com as observações no começo
do capítulo VI (ver em [1]), observações que ainda hoje se aplicam aos autores
e críticos de biografias.
É de
admirar, no entanto, que até bem pouco tempo nenhum dos críticos deste trabalho
se tenha detido naquilo que, sem dúvida alguma, é o seu ponto mais fraco. Uma
parte importante é desempenhada pela lembrança ou pela fantasia de Leonardo de
ter sido visitado em seu berço por uma ave de rapina. O nome por ele usado para
a ave, em suas anotações, foi `nibio‘, que em italiano (em sua forma moderna,
`nibbio‘) significa `milhafre’. No entanto, Freud, no decorrer de todo o seu
estudo, usa a palavra alemã `Geier‘, que em inglês só pode ser traduzida por
`vulture‘ (em português `abutre’).
O
equívoco de Freud parece ter-se originado de algumas das traduções alemãs de
que se utilizou. Marie Herzfeld (1906), por exemplo, usa a palavra `Geier‘ em
uma de suas versões da fantasia do berço, ao invés de `Milan‘, a palavra alemã
comum por `milhafre’. Mas, provavelmente, a influência mais importante terá
sido a tradução alemã do livro de Merezhkovsky sobre Leonardo, o qual, a julgar
pelo exemplar anotado pertencente à biblioteca de Freud, foi a sua grande fonte
de informações sobre Leonardo e onde provavelmente, pela primeira vez, veio a
ter conhecimento daquela fantasia. Aqui, também, a palavra alemã usada na
fantasia do berço foi `Geier‘, embora o próprio Merezhkovsky usasse
corretamente a palavra `korshun‘ que, em russo, significa `milhafre’.
Diante
desse equívoco, muitos leitores se sentirão inclinados a abandonar o estudo
considerando-o sem valor. Será, no entanto, aconselhável examinar a situação
mais calmamente e analisar detalhadamente os pontos exatos em que os argumentos
e deduções de Freud se invalidam.
Em
primeiro lugar, a idéia do `pássaro oculto’ no desenho de Leonardo (ver em [1])
deve ser posta de lado. Se de fato era um pássaro, será um abutre; em nada se
parece com um milhafre. Esta `descoberta’, entretanto, não foi feita por Freud
e sim por Pfister. Somente foi introduzida na segunda edição da obra, e foi
recebida por Freud com grande reserva.
A
seguir, e mais importante ainda, vem a associação egípcia. O hieróglifo para a
palavra `mãe’, em egípcio `mut‘, representa sem dúvida alguma um abutre e não
um milhafre. Gardiner, em sua abalizada Egyptian Grammar (2ª ed., 1950, 469),
identifica o pássaro como sendo `Gyps fulvus‘, ou grifo. Deduz-se daí que a
teoria de Freud de que o pássaro da fantasia de Leonardo significava sua mãe,
não se pode basear no mito egípcio, deixando de ser importante a questão de sua
relação com o mito. A fantasia e o mito não parecem ter qualquer relação entre
si. Cada um deles, no entanto, quando analisado separadamente, oferece um
problema interessante. Por que terão os antigos egípcios associado as idéias de
`abutre’ e de `mãe’? Será satisfatória a explicação dos egiptólogos de que seja
meramente uma coincidência fonética? Caso contrário, o estudo freudiano sobre
mães-deusas andróginas terá valor original, independente de suas relações com o
caso de Leonardo. Do mesmo modo, a fantasia de Leonardo sobre o pássaro a
visitá-lo no berço e a meter-lhe a cauda na boca continua a exigir uma
explicação, mesmo no caso de o pássaro não ser um abutre. E a análise
psicológica de Freud relativa a essa fantasia não se desvaloriza com essa
correção, perde, apenas, um elemento de apoio.
Portanto,
levando-se em conta a pouca importância do estudo do caso egípcio - embora
persista o seu valor intrínseco -, o estudo de Freud, em sua essência, não
sofre com esse erro: permanece a reconstrução detalhada da vida emotiva de
Leonardo, desde os seus primeiros anos; a descrição do conflito entre seus
impulsos artísticos e científicos; a análise profunda de sua história
psicossexual. Além desses assuntos importantes, o estudo nos apresenta uma
quantidade de temas colaterais de igual valor: uma discussão mais geral da
natureza e do trabalho da mente de um artista criador; uma descrição da gênese
de um tipo especial de homossexualidade; e, o que é especialmente interessante
para a história da teoria da psicanálise, o aparecimento, pela primeira vez, do
conceito de narcisismo.
NOTA DO EDITOR BRASILEIRO
A
presente tradução é da autoria de Walderedo Ismael de Oliveira (Professor
Adjunto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Analista
Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro).
LEONARDO DA VINCI E UMA LEMBRANÇA DE SUA INFÂNCIA
I
QUANDO
a pesquisa psiquiátrica, que geralmente se contenta em usar pessoas comuns como
material de estudo, se aproxima de alguém que figura entre os expoentes da raça
humana, não o faz pelos motivos que tão freqüentemente lhe atribuem os leigos.
O seu objetivo não é `denegrir os brilhantes e arrastar na lama os sublimes’,
Und das Ernabene in den Staub zu ziehn.(O mundo gosta de denegrir o brilhante e
arrastar na lama o sublime.)De um poema de Schiller, `Das Mädchen von Orleans’,
inserido como um prólogo extra na edição de 1801 de sua peça Die Jungfrau von
Orleans. O poema foi considerado como sendo um ataque ao La Pucelle, de Voltaire.]
e não lhe traz satisfação alguma encurtar a distância que separa a perfeição
dos grandes da deficiência daqueles que geralmente constituem o objeto de seus
estudos. Mas a psiquiatria não pode deixar de considerar como digno de ser
compreendido tudo que possa vir a encontrar nesses modelos ilustres e acredita
que não existe ninguém tão grande que venha a ser desonrado simplesmente por
estar sujeito às leis que regem, igualmente, as atividades normais e as
patológicas.
Leonardo
da Vinci (1452-1519) foi admirado, até mesmo pelos seus contemporâneos, como um
dos maiores homens da renascença italiana. No entanto, já nessa época começara
a parecer um enigma, tal como nos parece hoje em dia. Era um gênio universal
`cujos traços se podia apenas esboçar mas nunca definir’. Durante sua época,
sua influência decisiva foi sobre a pintura, cabendo a nós reconhecer a
grandeza do homem de ciências naturais (e engenheiro) que se combinava nele com
o artista. Embora tivesse deixado obras-primas de pintura, enquanto suas
descobertas científicas permaneciam inéditas e sem uso, o pesquisador que nele
existia nunca libertou totalmente o artista durante todo o curso de seu
desenvolvimento, limitando-o muitas vezes e talvez, mesmo, chegando a
eliminá-lo. Nos últimos momentos de sua vida, segundo palavras que lhe atribui
Vasari, acusou-se de haver ofendido Deus e os homens, não cumprindo o seu dever
para com sua arte. E ainda que esta história de Vasari não passe de lenda,
lenda esta que mesmo antes de sua morte começou a crescer em torno do Mestre
misterioso, servirá sempre de testemunho valioso do que pensavam dele os homens
de seu tempo.
O que
impediu que a personalidade de Leonardo fosse compreendida pelos seus
contemporâneos? O motivo, certamente, não terá sido a versatilidade de seus
talentos nem a extensão do seu saber, que lhe permitiu apresentar-se na corte
do Duque de Milão, Ludovido Sforza, apelidado Il Moro, como um virtuoso numa
espécie de alaúde de sua própria invenção, ou escrever a notável carta, ao
mesmo duque, na qual se gabava de suas realizações como arquiteto e como
engenheiro militar. Na época do renascimento a combinação de tão amplas e
diversas habilidades em um mesmo indivíduo eram comuns, embora tenhamos de
reconhecer que Leonardo foi um dos exemplos mais brilhantes. Tampouco pertencia
ele à classe dos gênios fisicamente mal dotados pela natureza e que por isso
mesmo desprezam as formas exteriores da vida e, numa atitude de penosa
melancolia, fogem a qualquer contato com seus semelhantes. Ao contrário, era alto
e bem proporcionado; suas feições eram belas e invulgar a sua força física; era
encantador em suas maneiras e de fácil eloqüência, alegre e amável para com
todos. Adorava o belo em tudo o que cercava; apreciava as roupagens suntuosas e
valorizava todos os requintes da vida. Num trecho de seu tratado sobre a
pintura, que bem revela sua tendência para as diversões, compara a pintura às
artes irmãs e descreve os reveses que aguardam o escultor: `Pois seu rosto fica
empoeirado pelo mármore, de modo que mais parece um padeiro; fica também todo
salpicado de flocos de mármore que fazem com que pareça ter estado na neve -
sua casa é cheia de poeira e de lascas de pedra. Quanto ao pintor, seu caso é
bem diferente… pois o pintor senta-se em frente ao seu trabalho, cercado de
todo o conforto. Veste-se bem e utiliza pincéis delicados e leves, que mergulha
em cores lindas. Usa roupas que lhe agradam e sua casa é imaculada e repleta de
belos quadros. Muitas vezes trabalha ao som de música ou, então, cercado de
homens que lhe lêem trechos de obras lindas e variadas que pode ouvir
prazerosamente sem o barulho do martelo e outros ruídos.’
Na
verdade, é muito possível que a imagem de um Leonardo extremamente feliz e
amante de todos os prazeres não seja verdadeira senão no primeiro período, e o
mais longo também, da vida do artista. Mais tarde, quando a queda de Ludovico
Moro fê-lo deixar Milão, a cidade que era o centro de suas atividades e onde
tinha uma situação assegurada, forçando-o a uma vida instável e de poucos sucessos
externos, até encontrar seu último refúgio na França, a centelha de seu gênio
poderá ter-se esmaecido e alguma faceta estranha de sua natureza poderá ter
vindo à tona. De mais a mais, a transferência de seu interesse pelas artes para
sua dedicação à ciência, que se foi acentuando com o decorrer do tempo, deve
ter influído para aumentar a distância que o separava de seus contemporâneos.
Todos os seus esforços representavam, na opinião deles, o desperdício de um
tempo que poderia ser usado para pintar encomendas e fazer fortuna (como fez,
por exemplo, o seu condiscípulo Perugino). Pareciam-lhes mero diletantismo e
até mesmo tornavam-no suspeito de estar a serviço da `magia negra’. Nós, hoje,
podemos compreendê-lo melhor pois através de seus apontamentos sabemos quais
eram as artes a que se dedicava. Em uma época em que se começava a substituir a
autoridade da Igreja pela da antiguidade e em que não se haviam ainda
acostumado com nenhuma forma de pesquisa que não fosse baseada em
pressuposições, Leonardo - o precursor e rival de Bacon e de Copérnico,
igualando-se a eles em valor - foi por isso, forçosamente, um solitário entre
seus contemporâneos. Ao dissecar cadáveres de cavalos e de homens, ao construir
máquinas voadoras e ao estudar a nutrição das plantas e suas reações e venenos,
certamente distanciou-se enormemente dos comentadores de Aristóteles,
aproximando-se muito mais dos alquimistas desprezados, em cujos laboratórios a
pesquisa experimental encontrara algum refúgio, pelo menos durante aqueles tempos
adversos.
O
efeito disso tudo sobre suas pinturas foi o de fazê-lo usar com menos
entusiasmo o pincel, pintar cada vez menos, deixando a maioria do que começara
inacabado, e não se preocupar com o destino final de suas obras. E foi disso
que o acusaram seus contemporâneos. Para eles, sua atitude em face da sua arte
foi sempre incompreensível.
Posteriormente,
muitos dos admiradores de Leonardo tentaram defendê-lo dessa acusação de
inconstância. Em sua defesa eles alegavam ser esta, justamente, uma característica
dos grandes artistas; até mesmo Miguel Angelo, que era inteiramente dedicado a
seu trabalho, deixou muitas de suas obras inacabadas e disso teve tanta culpa
quanto Leonardo, em circunstâncias iguais. Alegam, além do mais, que, com
referência a alguns quadros de Leonardo, não se trata somente de estarem
inacabados, mas sim de os ter ele dado por findos. O que ao leigo pode parecer
uma obra-prima nunca chega a representar para o criador uma obra de arte
completa mas, apenas, a concretização insatisfatória daquilo que tencionava
realizar; ele possui uma tênue visão da perfeição, que tenta sempre reproduzir
sem nunca conseguir satisfazer-se. Sobretudo, alegam eles, é um direito do
artista ser responsável pelo destino final de suas obras.
Por
mais válidas que possam ser essas desculpas, elas não conseguem livrar Leonardo
de toda a responsabilidade. A mesma luta penosa frente a um trabalho, a fuga
final e a indiferença quanto ao seu destino futuro, tudo isso pode acontecer a
muitos outros artistas, mas não há dúvida de que esse comportamento ocorre em
Leonardo em grau muito mais elevado. Solmi (1910, 12) menciona a observação de
um de seus alunos: `Pareva che ad ogni ora tremasse, quando si poneva a
dipingere, e però non diede mai fine ad alcuna cosa cominciata, considerando la
grandezza dell’arte, tal que che egli scorgeva errori in quelle cose, che ad
altri parevano miracoli.’ Seus últimos quadros, continua ele, a Leda, a Madonna
di Sant’Onofrio, Baco e São João Batista moço, ficaram inacabados `come quasi intervenne
di tutte le cose sue…’ Lomazzo, que fez uma cópia da Última Ceia, comenta em um
soneto a notória incapacidade de Leonardo para ultimar seus trabalhos:
Protogen che il pennel di sue pitture
Non
levava, agguaglio in Vinci Divo
Di
cui opra non è finita pure.
A
vagareza do trabalho de Leonardo era proverbial. Depois de meticulosos estudos
preparatórios, levou três anos inteiros para pintar a Última Ceia para o
Convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão. Um de seus contemporâneos, o
contista Matteo Bandelli, que na época era um jovem frade naquele convento,
conta que Leonardo costumava muitas vezes subir nos andaimes pela manhã cedo e
lá permanecer até o cair da tarde sem nem uma vez descansar o pincel e nem se
lembrar de comer ou de beber. Depois, passava dias sem tornar a tocar no
trabalho. Muitas vezes passava horas diante de sua obra, somente analisando-a
mentalmente. Algumas vezes vinha para o convento diretamente do pátio do
castelo de Milão, onde estava trabalhando no modelo para a estátua eqüestre de
Francesco Sforza, dava algumas pinceladas em algum dos seus personagens,
partindo logo a seguir. Segundo Vasari, levou quatro anos pintando o retrato de
Mona Lisa, a mulher do florentino Francesco del Giocondo, sem conseguir dá-lo
por terminado. Este fato pode explicar por que este retrato nunca foi entregue
a quem o encomendou, ficando em mãos de Leonardo, que o levou consigo para a
França. Foi adquirido pelo rei Francisco I, e hoje em dia constitui um dos mais
valiosos tesouros do Louvre.
Se
compararmos esses relatos sobre o modo de trabalhar de Leonardo com a evidência
de inúmeros desenhos e estudos que deixou e que mostram todos os motivos que
aparecem em suas pinturas sob os aspectos mais variados, seremos compelidos a
rejeitar o conceito de que sua impaciência e sua volubilidade possam, de algum
modo, tê-lo influenciado com relação à sua arte. Ao contrário, é possível
observar uma extraordinária profundeza e uma riqueza de possibilidades que vêm
dificultar qualquer decisão final, ambições enormes, difíceis de satisfazer, e
uma inibição na execução definitiva para a qual não encontramos justificativa,
mesmo considerando que o artista nunca consegue realizar o seu ideal. A
vagareza, que era conspícua no trabalho de Leonardo, apresenta-se como um sintoma
dessa inibição e um prenúncio de seu subseqüente desinteresse pela pintura.
Isso foi a causa do destino que teve a Última Ceia - destino, aliás, merecido.
Leonardo não se podia acostumar ao afresco, que exigia trabalho rápido na
aplicação das tintas na superfície ainda úmida e, por isso, preferiu usar as
tintas a óleo, de secagem mais lenta, que lhe permitiam protelar o término da
obra de acordo com seu humor e lazer. Estas tintas, no entanto, desprendiam-se
da superfície onde eram aplicadas e que as isolava do muro. Além do mais, os
defeitos próprios do muro e o destino posterior do edifício provavelmente
determinaram o que parece ser a ruína inevitável do quadro.
O
fracasso de uma experiência técnica semelhante parece ter causado também a
destruição da Batalha de Anguiari, pintura que ele começou a executar,
competindo com Miguel Ângelo, algum tempo depois, em um muro da Sala del
Consiglio em Florença, e que também abandonou antes de terminar. Neste caso, no
entanto, parece ter havido outro interesse em jogo - o do experimentador - que
a princípio terá incentivado o interesse artístico, vindo porém a prejudicar a
obra depois.
O
caráter de Leonardo, como homem, revelava outros traços incomuns e outras
contradições aparentes. Uma certa ociosidade e indiferença são evidentes em sua
personalidade. Numa época em que todos procuravam conseguir um campo amplo onde
desenvolver suas atividades - para o que necessitavam de uma enérgica
agressividade contra os demais - Leonardo se fazia notar pela sua pacatez e pela
aversão a qualquer antagonismo ou controvérsia. Era gentil e amável para com
todos; recusava-se, dizem, a comer carne por não achar justo matar animais;
gostava sobretudo de comprar pássaros no mercado para soltá-los depois.
Condenava a guerra e o derramamento de sangue e descrevia o homem como sendo
não tanto o rei do mundo animal, e sim a pior das bestas selvagens. Essa
feminina delicadeza, no entanto, não impedia que acompanhasse os criminosos a
caminho da execução a fim de estudar-lhes as feições distorcidas pelo medo e
desenhá-las em seus cadernos. Nem tampouco deixou de desenhar as mais cruéis
armas de agressão e de pertencer ao serviço de Cesare Borgia como chefe da
engenharia militar. Muitas vezes parecia indiferente ao bem e ao mal ou parecia
deixar-se guiar por normas diferentes. Acompanhou Cesare, em posto importante,
durante a campanha que deixou Romagna como possessão do mais cruel e desleal
dos adversários. Não existe nas anotações de Leonardo um único comentário a
respeito dos acontecimentos de sua época ou qualquer demonstração de
preocupação com eles. Isto induz a uma comparação com Goethe durante a campanha
da França.
Se um
estudo biográfico tem realmente como objetivo chegar à compreensão da vida
mental de seu herói, não deverá omitir, como acontece com a maioria das
biografias - por discrição ou por melindre - sua atividade sexual ou sua
individualidade sexual. O que se conhece de Leonardo neste setor é pouco; porém
este pouco é repleto de significados. Em uma época que presenciou a luta entre
uma sensualidade sem limites e um ascetismo melancólico, Leonardo representava
a fria rejeição da sexualidade - coisa que não se deveria esperar de um artista
e pintor da beleza feminina. Solmi cita a seguinte frase sua que bem evidencia
a sua frigidez: `O ato da procriação e tudo o que a ele se relaciona é de tal
maneira abjeto que a humanidade certamente se extinguiria não fora isso um
costume já consagrado e não fora o fato de existirem rostos lindos e naturezas
sensuais.’ Seus escritos postumamente publicados cuidam tanto dos maiores
problemas científicos como também de trivialidades que não merecem tão grande
inteligência (uma história natural alegórica, fábulas de animais, brincadeiras,
profecias); são tão castos, e mesmo abstinentes, que ainda causariam admiração
se encontrados em qualquer trabalho de belles lettres de hoje em dia. Tão
resolutamente se abstém de todo o tema sexual que dá a impressão de que somente
Eros, o preservador de todas as coisas vivas, fosse assunto indigno para o pesquisador
em sua busca da sabedoria. É sabido que freqüentemente grandes artistas se
comprazem em dar vazão a suas fantasias por meio de desenhos eróticos e mesmo
obscenos. No caso de Leonardo, no entanto, possuímos apenas alguns esboços
anatômicos do aparelho genital interno feminino, da posição do embrião no útero
e assim por diante.
É
duvidoso que Leonardo tenha jamais abraçado uma mulher com paixão; ou tenha
tido alguma amizade intelectual íntima com uma mulher, como a de Miguel Ângelo
com Vittoria Colonna. Quando ainda aprendiz e vivendo em casa de seu mestre
Verrocchio, foi-lhe feita e a alguns outros jovens uma acusação de práticas
homossexuais proibidas, que terminou em absolvição. Parece que a origem desta
acusação foi o fato de ter usado um menino de má fama como modelo. Quando veio
a tornar-se mestre, cercou-se de belos rapazes e meninos que tomava como
alunos. O último desses alunos, Francesco Melzi, acompanhou-o à França, ficou a
seu lado até a sua morte e foi por ele nomeado seu herdeiro. Sem compartilhar a
certeza de seus biógrafos modernos, que naturalmente rejeitam a possibilidade
da existência de relações sexuais entre ele e seus alunos, considerando-a um
insulto grosseiro ao grande homem, achamos muito mais provável que as relações
afetuosas de Leonardo para com os jovens que - como era costume entre
aprendizes da época - compartilhavam sua vida, não chegassem até relação
sexuais. E ainda mais, uma grande atividade sexual não condizia muito com ele.
Existe
uma única maneira de compreender a peculiaridade dessa vida sexual e emocional
com relação à dupla natureza de Leonardo como artista e como pesquisador
científico. Entre os seus biógrafos, muitas vezes alheios a qualquer enfoque
psicológico, existe, a meu entender, apenas um, Edmondo Solmi, que se aproximou
da solução do problema; mas um escritor que escolheu Leonardo como o personagem
de uma longa novela histórica, Dmitry Sergeyevich Merezhkovsky, interpretou do
mesmo modo esse homem incomum ao retratá-lo e exprimiu claramente o seu ponto
de vista, não com palavras simples porém (segundo o estilo dos autores
imaginativos) em termos plásticos. A opinião de Solmi sobre Leonardo é a
seguinte (1908, 46): `O seu insaciável desejo de tudo compreender em seu redor
e de pesquisar com atitude de fria superioridade o segredo mais profundo de
toda a perfeição condenou sua obra a permanecer para sempre inacabada.’
Em um
ensaio publicado na Conferenze Fiorentine faz-se menção à seguinte frase de
Leonardo, que bem representa sua confissão de fé e fornece a chave para a
compreensão de sua natureza: `Nessuma cosa si può amare nè odiare, se prima non
si ha congnition di quella.’ Isto é: Não se tem o direito de amar ou odiar
qualquer coisa da qual não se tenha conhecimento profundo. Leonardo se repete
em um trecho do tratado sobre pintura, onde parece estar-se defendendo contra a
acusação de ateísmo: `Mas esses críticos desagradáveis melhor fariam se
ficassem quietos. Pois é esse o caminho que conduz ao conhecimento do Criador
de tantas coisas maravilhosas, e o melhor processo para se vir a amar um
Inventor tão grandioso. Pois, na verdade, o grande amor surge do conhecimento
profundo do objeto amado e, se este for pouco conhecido, o seu amor por ele
será pouco ou nenhum…’
O valor
nesses comentários de Leonardo não está em olhá-los como reveladores de fatos
psicológicos importantes pois o que eles afirmam é, obviamente, falso e
Leonardo era tão sabedor disto quanto nós. Não é verdade que os seres humanos
protelam o amor ou o ódio até adquirirem conhecimento mais profundo e maior
familiaridade com o objeto desses sentimentos. Ao contrário, amam
impulsivamente, movidos por emoções que nada têm a ver com conhecimento e cuja
ação, muito ao contrário, poderá ser amortecida pela reflexão e pela
observação. Leonardo, portanto, poderia, no máximo, querer dizer que o amor
praticado por seres humanos não seria tão desejável e irrepreensível:
dever-se-ia amar controlando o sentimento, sujeitando-o à reflexão e somente
permitir sua existência quando capaz de resistir à prova do pensamento.
Percebemos, assim, que procurou mostrar-nos como ele próprio procedia e
demonstrar que todos deveriam tratar o amor e o ódio como ele o fazia.
No
seu caso parece que foi isso o que realmente sucedeu. Seus afetos eram
controlados e submetidos ao instinto da pesquisa; ele não amava nem odiava,
porém se perguntava acerca da origem e do significado daquilo que deveria amar
ou odiar. Parecia, assim, forçosamente, indiferente ao bem e ao mal, ao belo e
ao horrível. Durante esse trabalho de pesquisa, o amor e o ódio se despiam de
suas formas positivas ou negativas e ambos se transformavam apenas em objeto de
interesse intelectual. Na verdade, Leonardo não era insensível à paixão; não
carecia da centelha sagrada que é direta ou indiretamente a força motora - il
primo motore - de qualquer atividade humana. Apenas convertera sua paixão em
sede de conhecimento; entregava-se, então, à investigação com a persistência,
constância e penetração que derivam da paixão e, ao atingir ao auge de seu
trabalho intelectual, isto é, a aquisição do conhecimento, permitia que o afeto
há muito reprimido viesse à tona e transbordasse livremente, como se deixa
correr a água represada de um rio, após ter sido utilizada. Quando, ao chegar ao
clímax de uma descoberta, podia vislumbrar uma vasta porção de todo o conjunto,
ele se deixava dominar pela emoção e, em linguagem exaltada, louvava o
esplendor da parte da natureza que estudara ou, em sentido religioso, a
grandeza do seu Criador. Esse processo de transformação em Leonardo foi bem
compreendido por Solmi. Depois de citar uma passagem desse gênero em que
Leonardo exalta a sublime lei da natureza (`O mirabile necessità…’), escreveu
(1910, 11): `Tale trasfigurazione della scienza della natura in emozione, quasi
direi, religiosa, è uno dei tratti caratteristici de’ manoscritti viancini, e
si trova cento e cento volte expressa…’
Devido
à sua sede insaciável e incansável de conhecimento, Leonardo tem sido chamado o
Fausto italiano. Embora longe de discutir a possível transformação do instinto
de investigação em prazer de viver - transformação que devemos considerar como
fundamental na tragédia de Fausto - cremos poder arriscar a afirmativa de que a
evolução de Leonardo se aproxima do pensamento de Spinoza.
A
transformação da força psíquica instintiva em várias formas de atividade, da
mesma maneira que a transformação das forças físicas, não poderia ser realizada
sem prejuízo. O exemplo de Leonardo mostra-nos quantas outras coisas precisam
ser consideradas com relação a estes processos. O adiamento do amor até o seu
pleno conhecimento constitui um processo artificial que se transforma em uma
substituição. De um homem que consegue chegar até o conhecimento não se poderá
dizer que ama ou odeia; situa-se além do amor e do ódio. Terá pesquisado em vez
de amar. E será, talvez, este o motivo pelo qual a vida de Leonardo foi tão
mais pobre de amor do que a de outros grandes homens, e de outros artistas. As
tormentosas paixões de uma natureza, que inspiram e que esgotam, paixões que
foram, para outros, fonte das experiências mais plenas, parecem não o haver
atingido.
Existem
ainda outras conseqüências. A investigação substituiu a ação e também a
criação. Um homem que começou a vislumbrar a grandeza do universo com todas as
suas complexidades e suas leis, esquece facilmente sua própria insignificância.
Perdido de admiração e cheio de verdadeira humildade, facilmente esquece ser,
ele próprio, uma parte dessas forças ativas e que, de acordo com a medida de
sua própria força, terá um caminho aberto diante de si para tentar alterar uma
pequena parcela do curso preestabelecido para o mundo - um mundo em que as
menores coisas são tão importantes e extraordinárias quanto o são as coisas
grandiosas.
As
pesquisas de Leonardo visavam, originalmente, como acredita Solmi, o interesse
de sua arte; dedicou seus esforços a estudar as particularidades e as leis da
luz, das cores, das sombras e da perspectiva, a fim de tornar-se exímio em suas
imitações da natureza e transmitir aos outros os seus conhecimentos. É provável
que nesse tempo ele já superestimava o valor, para o artista, desses ramos do
conhecimento. Sempre seguindo o rumo determinado pelas solicitações de sua
pintura, foi levado a estudar os modelos do pintor, animais e plantas, e as
proporções do corpo humano; e, depois do conhecimento de sua forma exterior,
continuou ainda a estudar-lhe a estrutura interna e as suas funções vitais,
coisa que, na verdade, influi também na aparência externa e merece ser
considerada nos trabalhos artísticos. E, finalmente, o instinto, que se tornara
dominante, carregou-o mais longe ainda fazendo-o ultrapassar as limitações da
demanda de sua arte e descobrir as leis gerais da mecânica e adivinhar a
história da estratificação e fossilização no vale do Arno, até chegar ao ponto
de poder escrever em seu livro, com letras enormes, a sua descoberta: Il sole
non si move. Suas investigações estenderam-se praticamente a quase todos os
ramos da ciência natural e em cada um ele foi um descobridor ou, pelo menos, um
profeta e pioneiro. No entanto, sua ânsia de conhecimento foi sempre dirigida
ao mundo exterior; qualquer coisa o afastava da investigação da alma humana. Na
`Academia Vinciana’ [ver em [1]], para a qual desenhou alguns emblemas
habilmente entrelaçados, pouco lugar havia para a psicologia.
Depois
da pesquisa, quando tentou voltar ao seu ponto de partida, o exercício de sua
arte, sentiu-se perturbado pelo novo rumo de seus interesses e pela mudança na
natureza de sua atividade mental. O que o interessava num quadro era, acima de
tudo, um problema; e após o primeiro via inúmeros outros problemas que surgiam,
como costumava acontecer com suas intermináveis e infatigáveis investigações
sobre a natureza. Não conseguia mais limitar suas exigências, ver a obra de
arte isoladamente, separando-a da vasta estrutura da qual sabia que era parte
integrante. Depois de esforços exaustivos para exprimir numa obra de arte tudo
o que tinha em seu pensamento com relação a ela, era forçado a desistir,
deixando-a inacabada ou declarando-a incompleta.
O
artista usara o pesquisador para servir à sua arte; agora o servo tornou-se
mais forte que o seu senhor e o dominou.
Quando
verificamos que na imagem apresentada pelo caráter de uma pessoa um único
instinto adquiriu uma força exagerada, como aconteceu com a ânsia de
conhecimento em Leonardo, procuramos a explicação numa predisposição especial -
embora as suas determinantes (provavelmente orgânicas) nos sejam ainda
praticamente desconhecidas. Nossos estudos psicanalíticos dos neuróticos
levaram-nos, no entanto, a formular mais duas hipóteses que seria gratificante
encontrar confirmadas em cada caso particular. Cremos ser provável que um
instinto como aquele, de força excessiva, já era ativo na primeira infância do
indivíduo e que a sua supremacia foi estabelecida por impressões ocorridas na
vida da criança. Admitimos ainda que este instinto foi reforçado por aquilo
que, originariamente, seriam forças sexuais instintivas, de modo que mais tarde
poderia vir a substituir uma parcela da vida sexual do indivíduo. Uma pessoa
desse tipo poderia, por exemplo, dedicar-se à pesquisa com o mesmo ardor com
que uma outra se dedicaria ao seu amor, e seria capaz de investigar em vez de
amar. Aventuramo-nos a asseverar que não será somente no caso do instinto de
investigação que terá havido uma intensificação sexual mas, também, em muitos
outros casos em que um instinto se torne sobremodo intenso.
A
observação da vida cotidiana das pessoas mostra-nos que a maioria conseguiu
orientar uma boa parte das forças resultantes do instinto sexual para sua
atividade profissional. O instinto sexual presta-se bem a isso, já que é dotado
de uma capacidade de sublimação: isto é, tem a capacidade de substituir seu
objetivo imediato por outros desprovidos de caráter sexual e que possam ser
mais altamente valorizados. Aceitamos este processo como verdadeiro sempre que
na história da infância de uma pessoa - isto é, na história de seu
desenvolvimento psíquico - evidenciamos que, na infância, esse instinto
poderoso foi usado para satisfazer interesses sexuais. Constatamos a veracidade
deste fato se ocorrer uma atrofia estranha durante a vida sexual da maturidade,
como se uma parcela da atividade sexual houvesse sido agora substituída pela
atividade do impulso dominante.
Parece
haver uma dificuldade especial na aplicação dessas hipóteses no caso em que o
instinto todo-poderoso é o de pesquisa, pois que, sobretudo em se tratando de
crianças, há sempre uma relutância em conceder-lhes tanto esse instinto como
qualquer interesse sexual que seja digno de atenção. No entanto, essas
dificuldades são facilmente solucionáveis. A curiosidade das crianças pequenas
se manifesta no prazer incansável que sentem em fazer perguntas; isso deixa o
adulto perplexo até vir a compreender que todas essas perguntas não passam de
meros circunlóquios que nunca cessam, pois a criança os está usando em
substituição àquela única pergunta que nunca faz. Quando ela cresce e se sente
mais bem informada, essa forma de curiosidade muitas vezes desaparece
repentinamente. A pesquisa psicanalítica oferece-nos a explicação completa
mostrando que a maioria das crianças, ou pelo menos as mais inteligentes,
atravessam um período de pesquisas sexuais infantis. Ao que sabemos, a curiosidade
das crianças nessa idade não é espontânea mas ocasionada pela impressão causada
por algum acontecimento importante - pelo nascimento de um irmãozinho ou
irmãzinha ou pelo temor de que isso aconteça, baseado em outras experiências
externas - e que representa para elas uma ameaça aos seus interesses egoístas.
As investigações visam a saber de onde vêm os bebês, exatamente como se a
criança estivesse procurando modos e meios de evitar tão indesejável
acontecimento. Desse modo, temos verificado, com surpresa, que as crianças se
negam a aceitar as poucas informações que se lhes dão - assim, por exemplo,
recusam energicamente a fábula da cegonha, com a sua riqueza de significados
mitológicos - iniciando sua independência intelectual com esse ato de incredulidade,
sentindo-se muitas vezes em franco antagonismo com os adultos e, de fato,
jamais lhe perdoam por tê-las decepcionado naquela ocasião omitindo os fatos
reais. Elas investigam por conta própria, adivinham a presença do bebê dentro
do corpo de sua mãe e, seguindo os impulsos de sua própria sexualidade,
teorizam tudo: a origem do bebê, atribuindo-a à comida; o seu nascimento,
explicando-o pelas vias intestinais, e sobre a parte obscura que cabe ao pai.
Naquela ocasião, já têm uma noção do ato sexual, que lhes parece ser alguma
coisa hostil e violenta. Mas como a sua própria constituição sexual ainda não
atingiu o ponto de poder fazer bebês, sua investigação sobre o problema da
origem dos bebês acaba também sem solução sendo finalmente abandonada. A impressão
causada por esse fracasso em sua primeira tentativa de independência
intelectual parece ser de caráter duradouro e profundamente depressivo.
Quando
o período de pesquisa sexual infantil chega a um final após um período de
enérgica repressão sexual, o impulso de pesquisa terá três possíveis diferentes
vicissitudes, resultantes de sua relação primitiva com interesses sexuais. No
primeiro caso, a pesquisa participa do destino da sexualidade; portanto, a
curiosidade permanecerá inibida e a liberdade da atividade intelectual poderá
ficar limitada durante todo o decorrer de sua vida, sobretudo porque, logo a
seguir, a influência da educação acarretará uma intensa inibição religiosa do
pensamento. Este é o tipo caracterizado por uma inibição neurótica. Bem sabemos
que o enfraquecimento intelectual adquirido nesse processo representa um fator
efetivo na irrupção de uma enfermidade neurótica. Num segundo tipo, o
desenvolvimento intelectual é suficientemente forte para resistir à repressão
sexual que o domina. Algum tempo após o término das pesquisas sexuais infantis,
a inteligência, tendo se tornado mais forte, recorda a antiga associação e
ajuda a evitar a repressão sexual, e as suprimidas atividades sexuais de
pesquisa emergem do inconsciente sob a forma de uma preocupação pesquisadora
compulsiva, naturalmente sob uma forma distorcida e não-livre, mas
suficientemente forte para sexualizar o próprio pensamento e colorir as
operações intelectuais, com o prazer e a ansiedade característicos dos
processos sexuais. Neste caso, a pesquisa torna-se uma atividade sexual, muitas
vezes a única, e o sentimento que advém da intelectualização e explicação das
coisas substitui a satisfação sexual; mas o caráter interminável das pesquisas
infantis é também repetido no fato de que tal preocupação nunca termina e que o
sentimento intelectual, tão desejado, de alcançar uma solução, torna-se cada
vez mais distante.
Devido
a uma predisposição especial, o terceiro tipo, que é o mais raro e mais
perfeito, escapa tanto à inibição do pensamento quanto ao pensamento neurótico
compulsivo. É verdade que nele também existe a repressão sexual, mas ela não
consegue relegar para o inconsciente nenhum componente instintivo do desejo
sexual. Em vez disso, a libido escapa ao destino da repressão sendo sublimada
desde o começo em curiosidade e ligando-se ao poderoso instinto de pesquisa
como forma de se fortalecer. Também nesse caso a pesquisa torna-se, até certo
ponto, compulsiva e funciona como substitutivo para a atividade sexual; mas,
devido à total diferença nos processos psicológicos subjacentes (sublimação ao
invés de um retorno do inconsciente), a qualidade neurótica está ausente; não
há ligação com os complexos originais da pesquisa sexual infantil e o instinto
pode agir livremente a serviço do interesse intelectual. A repressão sexual,
que tornou o instinto tão forte ao acrescentar-lhe libido sublimada, ainda
influencia o instinto, no sentido de fazê-lo evitar qualquer preocupação com
temas sexuais.
Se
refletirmos acerca da ocorrência, em Leonardo, desse poderoso instinto de
pesquisa e a atrofia de sua vida sexual (restrita ao que poderíamos chamar de
homossexualidade ideal [sublimada]), sentir-nos-emos inclinados a proclamá-lo
um modelo ideal do nosso terceiro tipo. A essência e o segredo de sua natureza
parecem derivar do fato que, depois de sua curiosidade ter sido ativada, na
infância, a serviço de interesses sexuais, conseguiu sublimar a maior parte da
sua libido em sua ânsia pela pesquisa. Mas, por certo, não será fácil provar a
verdade dessa hipótese. Para fazê-lo, necessitaríamos conhecer alguns
pormenores sobre seu desenvolvimento mental durante os primeiros anos de sua
infância, e parece absurdo desejar dados dessa natureza quando os pormenores
sobre sua vida são tão escassos e tão inseguros, e ainda mais por tratarem de
informações sobre circunstâncias que ainda hoje escapam à atenção dos
observadores, mesmo em se tratando de pessoas de nossa geração.
Sobre
a juventude de Leonardo sabemos muito pouco. Nasceu em 1452 na cidadezinha de
Vinci, entre Florença e Empoli; era filho ilegítimo, o que naqueles dias
certamente não constituía estima social muito grave; seu pai era Ser Piero da
Vinci, um tabelião que descendia de uma família de tabeliães e de fazendeiros
que tiraram seu sobrenome da localidade de Vinci; sua mãe foi uma tal Caterina,
provavelmente uma camponesa, que mais tarde se casou com outro compatrício de
Vinci. Esta mãe não volta a aparecer na história da vida de Leonardo e somente
Merezhkovsky, o escritor, acreditou ter encontrado vestígios seus. O único
fragmento de informação precisa sobre a infância de Leonardo aparece num
documento oficial do ano de 1457; trata-se de um registro de terras, em
Florença, para taxação de impostos e que, entre os componentes da família
Vinci, menciona Leonardo, de cinco anos de idade e filho ilegítimo de Ser
Piero. Do casamento de Ser Piero com uma tal Donna Albiera não houve filhos, o
que tornou possível educar o pequeno Leonardo na casa de seu pai. Permaneceu
nesta casa até entrar para o estúdio de Andrea del Verrocchio, como aprendiz,
não sabemos com que idade. No ano de 1472, o nome de Leonardo já se encontrava
na lista dos membros da `Compagnia dei Pittori‘. E isso é tudo.
II
Ao
que eu saiba, existe apenas um trecho nos apontamentos científicos de Leonardo
em que ele insere um fragmento de informação sobre sua infância. Numa passagem
acerca do vôo dos abutres ele se interrompe subitamente para descrever uma
recordação de sua tenra infância, que lhe veio à memória:
`Parece
que já era meu destino preocupar-me tão profundamente com abutres; pois guardo
como uma das minhas primeiras recordações que, estando em meu berço, um abutre
desceu sobre mim, abriu-me a boca com sua cauda e com ela fustigou-me repetidas
vezes os lábios.’
O que
encontramos aqui é, portanto, uma recordação de infância, e sem dúvida de
natureza bem estranha. Não só estranha pelo que conta como pela idade a que se
refere. Que uma pessoa possa lembrar-se de alguma coisa da época de sua
amamentação talvez não seja impossível, porém essa recordação não poderá,
certamente, ser considerada real. No entanto, o que a memória de Leonardo
afirma - que um abutre abriu a boca da criança com sua cauda - parece tão pouco
provável e tão fabuloso, que uma outra hipótese seria talvez mais cabível e
poria um fim às duas dificuldades antes mencionadas. Nessa outra versão, a cena
do abutre não seria uma recordação de Leonardo, porém uma fantasia que ele
criou mais tarde transpondo-a para sua infância.
É
deste modo que muitas vezes se originam as lembranças da infância. Muito
diferentes das lembranças conscientes da idade adulta, elas não se fixam no
momento da experiência para mais tarde serem repetidas; somente surgem muito
mais tarde, quando a infância já acabou; nesse processo, sofrem alterações e falsificações
de acordo com os interesses de tendências ulteriores, de maneira que, de um
modo geral, não poderão ser claramente diferençadas de fantasias. Talvez se
possa melhor explica-lhes a natureza comparando-as com o começo da crônica
histórica entre os povos da antiguidade. Enquanto as nações eram pequenas e
fracas, não cuidavam de escrever a sua história. Os homens lavravam suas
terras, lutavam com seus vizinhos defendendo sua sobrevivência e procuravam
conquistar mais território e riquezas. Foi uma época de heróis e não de
historiadores. Seguiu-se outra época - a da reflexão; os homens sentiram-se
ricos e poderosos e agora sentiam uma necessidade de saber de onde tinham vindo
e como haviam evoluído. Os relatos históricos, que começaram por anotar os
sucesso do presente, voltam-se então para o passado recolhendo lendas e
tradições, interpretando os vestígios da antiguidade que subsistiam ainda em
costumes e usos, e dessa maneira criou-se uma história do passado. Era
inevitável que essa história primitiva fosse a expressão das crenças e desejos
do presente, e não a imagem verdadeira do passado; muitas coisas já haviam sido
esquecidas enquanto outras haviam sido destorcidas e alguns remanescentes do
passado eram interpretados erradamente, de modo a corresponderem às idéias
contemporâneas. Além do mais, o motivo que levava as pessoas a escreverem
história não era uma curiosidade objetiva mas sim o desejo de influenciar seus
contemporâneos, de animá-los e inspirá-los, ou mostrar-lhes um exemplo onde
mirar-se. A memória consciente do homem com relação aos acontecimentos do seu
período de madureza pode bem ser comparada ao tipo primitivo de relatos da
história [uma crônica dos acontecimentos da época]; enquanto as lembranças que
ele tem de sua infância correspondem, quanto às suas origens e credibilidade, à
história das origens de uma nação compilada mais tarde e sob influências
tendenciosas.
Portanto,
se a história de Leonardo a respeito do abutre que o visitou no berço houver
sido apenas uma fantasia de uma época posterior, poderíamos concluir não valer
a pena dedicar-lhe tanto tempo. Poderíamos satisfazer-nos em explicá-la a
partir da tendência, que ele próprio não esconde, de considerar a sua
preocupação com o vôo dos pássaros como sendo uma fatalidade de seu destino. No
entanto, menosprezando essa história cometeríamos uma injustiça tão grande como
faríamos se desprezássemos o conjunto de lendas, tradições e interpretações
encontradas na história primitiva de uma nação. A despeito de todas as
distorções e mal-entendidos elas ainda representam a realidade do passado:
representam aquilo que um povo constrói com a experiência de seus tempos
primitivos e sob a influência de motivos que, poderosos em épocas passadas,
ainda se fazem sentir na atualidade; e, se fosse possível, através do
conhecimento de todas as forças atuantes, desfazer essas distorções, não
haveria dificuldade em desvendar a verdade histórica que se esconde atrás do
acervo lendário. Isto se aplica também às lembranças da infância ou às
fantasias do indivíduo. O que alguém crê lembrar da infância não pode ser
considerado com indiferença; como regra geral, os restos de recordações - que
ele próprio não compreende - encobrem valiosos testemunhos dos traços mais
importantes de seu desenvolvimento mental. Como hoje contamos nas técnicas da
psicanálise com excelentes métodos que nos ajudam a trazer para a superfície
esses elementos ocultos, podemos tentar preencher a lacuna que existe na
história da vida de Leonardo analisando a sua fantasia infantil. E se ao
fazê-lo não ficarmos satisfeitos com o grau de certeza que alcançamos, teremos
de consolar-nos lembrando que inúmeros outros estudos sobre esse grande e
enigmático homem não tiveram melhor destino.
Se a
examinarmos do ponto de vista de um psicanalista, a fantasia de Leonardo acerca
do abutre não nos parecerá mais tão estranha. Verificaremos já ter encontrado
casos semelhantes em muitas situações diferentes, em sonhos, por exemplo.
Aventuramo-nos, assim, a traduzir a linguagem da fantasia em palavras mais
facilmente compreensíveis. A tradução nos revelará então um conteúdo erótico. A
cauda, `coda‘, é um dos símbolos mais familiares e substitui expressões
referentes ao órgão masculino, tanto em italiano como em outras línguas; a
situação, na fantasia, de um abutre abrindo a boca da criança e fustigando-a
vigorosamente por dentro com a sua cauda, corresponde à idéia de um ato de
fellatio, um ato sexual no qual o pênis é introduzido na boca da pessoa
envolvida. É estranho que essa fantasia represente uma situação de caráter tão
evidentemente passivo; parece-se com certos sonhos e fantasias encontradas em
mulheres ou em homossexuais passivos (que desempenham o papel da mulher nas
relações sexuais).
Espero
que o leitor não se deixe dominar por um sentimento de indignação que o impeça
de seguir a psicanálise ao verificar que em sua primitiva aplicação infere uma
imperdoável ofensa à memória de um homem grande e puro. Evidentemente tal
indignação jamais nos fará conhecer o significado da fantasia de infância de Leonardo.
Por sua vez, Leonardo descreveu a fantasia da maneira mais inequívoca e nós não
podemos abandonar nossa esperança, ou, melhor ainda, nossa certeza, de que uma
fantasia dessa natureza terá de ter algum significado, da mesma forma que
qualquer outra criação psíquica: um sonho, uma visão, um delírio. Vamos,
portanto, dar uma oportunidade ao trabalho da análise, que na verdade ainda não
disse sua última palavra.
A
tendência a botar o órgão sexual masculino na boca e a chupá-lo, o que numa
sociedade respeitável é considerado uma perversão sexual horrível, encontra-se,
no entanto, com muita freqüência entre as mulheres de hoje - e de outros tempos
também, como o evidenciam esculturas da antiguidade - e no ardor da paixão isso
parece perder completamente o seu caráter repulsivo. Fantasias derivadas dessa
tendência têm sido encontradas pelos médicos até mesmo em mulheres que nunca
leram a Psychopathia Sexualis de Krafft-Ebing ou outra qualquer fonte de
informação que lhes mostrasse a possibilidade de obter satisfação sexual desse
modo. Parece que as mulheres não sentem dificuldade em imaginar espontaneamente
uma fantasia dessa natureza. Novas pesquisas levam-nos a verificar que essa
situação, que a moral condena com tanta severidade, pode ser reduzida a uma origem
das mais inocentes. Ela não faz senão reproduzir, de modo diferente, uma
situação em que todos nós já nos sentimos confortáveis - quando ainda mamávamos
(`essendo io in culla‘) e púnhamos em nossa boca o bico do seio de nossa mãe
(ou ama-de-leite) e o sugávamos. A impressão orgânica dessa experiência - a
primeira fonte de prazer em nossa vida - permanece, sem dúvida, indelevelmente
marcada em nós; e quando mais tarde a criança descobre o úbere da vaca, cuja
função é a mesma que a do seio porém que mais se assemelha a um pênis pela sua
forma sua posição em baixo da barriga, terá atingido a fase preliminar que mais
tarde lhe permitirá formular a fantasia sexual repulsiva.
Compreendemos
então porque Leonardo veio a associar a lembrança de sua suposta experiência do
abutre com a sua época de lactância. O que a fantasia encerra é meramente uma
reminiscência do ato de sugar - ou ser sugado - o seio de sua mãe, uma cena de
humana beleza que ele, como tantos outros artistas, esmerou-se em reproduzir em
seus quadros ao representar a mãe de Deus e seu Menino. Existe, também, um
outro aspecto que ainda não compreendemos e que não devemos perder de vista;
essa recordação igualmente importante para ambos os sexos, foi transformada,
pelo homem Leonardo, numa fantasia homossexual passiva. Por enquanto deixaremos
de lado a relação que possa ter a homossexualidade com a imagem da criança
mamando no seio da mãe, lembrando-nos, apenas, que a tradição, na verdade,
sempre apontou Leonardo como sendo um homem de sentimentos homossexuais. Neste
sentido não tem muita importância para o nosso estudo saber se era justificada,
ou não, a acusação feita ao jovem Leonardo (ver a partir de [1]). O que nos
leva a classificar alguém como sendo um invertido não é o seu comportamento
real porém a sua atitude emocional.
O
nosso interesse é despertado, a seguir, por outra faceta incompreensível da
fantasia infantil de Leonardo. Interpretamos a fantasia como o ato de ser
amamentado por sua mãe e vemos a mãe ser substituída por um abutre. De onde
veio esse abutre e por que motivo aparece nesse lugar?
Neste
ponto surge em nossa mente um pensamento vindo de tão longe que somos quase
tentados a pô-lo de lado. Nos hieróglifos do antigo Egito a mãe era
representada pela imagem de um abutre. Os egípcios veneravam também uma
Deusa-Mãe que era representada com cabeça de abutre ou, então, com várias
cabeças, das quais pelo menos uma era de abutre. O nome dessa deusa era
pronunciado Mut. Será que a sua semelhança com a nossa palavra Mutter [mãe] é
mera coincidência? Existe, portanto, uma relação real entre abutre e mãe - mas
em que é que isto nos pode ajudar? Não podemos esperar que Leonardo tivesse
tido conhecimento disto pois sabemos que o primeiro homem que conseguiu
decifrar os hieróglifos foi François Champollion, que viveu entre 1790-1832.
Seria
interessante procurar saber por que motivo os antigos egípcios vieram a
escolher o abutre como símbolo da maternidade. A religião e a civilização dos
egípcios sempre constituiu objeto de curiosidade científica, até mesmo entre os
gregos e romanos; e mesmo antes de podermos decifrar os monumentos egípcios,
dispúnhamos já de muitos elementos de informação sobre eles, tirados dos
escritos remanescentes da antiguidade clássica. Alguns desses escritos eram de
autores bastante conhecidos, tais como Estrabão, Plutarco e Amiano Marcelino;
ao passo que outros são de autores pouco conhecidos e duvidosos quanto às suas
origens e datas de composição, tal como a Hieroglyphica de Horapollo Nilous e o
livro da sabedoria sacerdotal oriental, que chegou até nós sob o nome do deus
Hermes Trismegistos. Por essas fontes ficamos sabendo que o abutre era
considerado um símbolo da maternidade, pois acreditavam que somente havia
abutres do sexo feminino; não havia, pensavam eles, machos nessa espécie. Uma
contraparte dessa limitação a um único sexo existia também na história natural
da antiguidade: neste caso, referia-se ao escaravelho, que os egípcios adoravam
como divino e do qual julgavam existir somente machos.
Portanto,
como poderiam os abutres ser fertilizados se não existiam senão fêmeas? Isto se
encontra claramente explicado num trecho de Horapollo. Em certa época essas
aves se detêm em meio ao vôo, abrem a sua vagina e são fecundados pelo vento.
Chegamos
agora, inesperadamente, a um ponto em que podemos considerar assaz provável
aquilo que pouco antes tínhamos de recusar como absurdo. É bem possível que
Leonardo conhecesse a fábula científica responsável por ser a figura do abutre
usada pelos egípcios para representar a idéia de mãe. Ele lia muito e o seu
interesse estendia-se a todos os ramos da literatura e do saber. No Codex
Atlanticus encontramos um catálogo de todos os livros que possuía em
determinada data e, além disso, conhecemos muitas anotações suas em livros
emprestados por amigos; e, se considerarmos o extrato de seus apontamentos
feitos por Richter [1883], veremos que a extensão de suas leituras dificilmente
será superestimada. Obras antigas sobre história natural figuram em grande
número ao lado de livros contemporâneos; e, já naquela época, todos eles tinham
sido impressos. Na verdade, Milão era a cidade italiana líder na nova arte de
imprimir.
Mais
adiante chegamos a uma fone de informação que poderá transformar em certeza a
hipótese de ter Leonardo conhecimento da lenda do abutre. O culto editor e
comentador de Horapollo escreveu a seguinte nota no texto já mencionado acima
[Leemans, 1835, 172]: `Caeterum hanc fabulam de vulturibus cupide amplexi sunt
Patres Ecclesiastici, ut ita argumento ex rerum natura petito refutarent eos,
qui Virginis partum negabant; itaque apud omnes fere hujus rei mentio
occurrit.’
Assim,
portanto, a fábula sobre o sexo único dos abutres e sobre seu modo de
fecundação estava longe de ser apenas uma anedota, como o caso análogo do
escaravelho; tinha sido adotada pelos Padres da Igreja a fim de ser usada como
um exemplo tirano da história natural e servir de prova para os que pusessem em
dúvida a história sagrada. Se os abutres, segundo os melhores testemunhos da
antiguidade, dependiam do vento para serem fertilizados, por que não teria,
alguma vez, acontecido a mesma coisa com uma mulher? Já que a fábula do abutre
podia ser usada para este fim, `quase todos’ os Padres da Igreja passaram a
narrá-la e, portanto, será quase impossível duvidar que Leonardo também a
conhecesse, considerando-se o fato de a sua divulgação ter sido feita por meio
de tão amplo patrocínio.
Podemos,
assim, reconstituir a origem da fantasia de Leonardo com o abutre. Ele
provavelmente teria lido em algum compêndio de história natural ou num livro de
algum Padre a afirmação de que todos os abutres eram fêmeas e podiam
reproduzir-se sem ajuda de qualquer macho; nessa altura ocorreu-lhe uma
lembrança que se transformou na fantasia que estamos analisando mas que, na
verdade, significava que ele também havia sido uma tal cria de abutre - tinha
mãe mas não tinha pai. E essa lembrança se associava - na única maneira que
impressões de idade tão distante se podem manifestar - com a reminiscência que
podia subsistir do prazer que teria sentido sugando o seio de sua mãe. A
insinuação feita pelos Padres da Igreja relativamente à Virgem Sagrada e seu
filho - idéia essa cara a todos os artistas - deve ter influído para valorizar
sua fantasia e torná-la ainda mais importante. Deste modo podia identificar-se,
ele próprio, com o Menino Jesus, o salvador e consolador de todos, e não de uma
única mulher.
O
nosso objetivo ao analisar uma fantasia da infância é o de separar o elemento
mnênico real que ela contém dos motivos posteriores que o modificam e
distorcem. No caso de Leonardo, acreditamos conhecer agora o significado real
da fantasia: a substituição de sua mãe pelo abutre indica que a criança tinha
conhecimento da ausência do pai e se sentia solitário junto à sua mãe. O
nascimento ilegítimo de Leonardo concorda com a sua fantasia sobre o abutre;
somente debaixo desse aspecto poderia comparar-se a um filhote de abutre.
Depois disso, o que de verdadeiro sabemos de sua infância é que, aos cinco
anos, ele tinha sido recebido já em casa de seu pai. Não temos, no entanto, a
menor indicação de quando isto aconteceu - se foi poucos meses após seu
nascimento ou poucas semanas antes de ser feito o levantamento para o registro
territorial [ver em [1]]. É nesse ponto que a interpretação da fantasia do abutre
interfere: ela parece querer contar-nos que Leonardo passou os primeiros e
decisivos anos de sua vida, não ao lado do pai ou da madrasta, mas sim com a
sua verdadeira mãe, pobre e abandonada, e assim teve tempo de sentir a ausência
de seu pai. Embora ousada, esta conclusão parece ser por demais insignificante
para ser apresentada como resultado de nossos estudos psicanalíticos, porém a
sua importância aumentará à medida que continuarmos a nossa investigação. A sua
veracidade é confirmada quando consideramos as circunstâncias que de fato
rodearam a infância de Leonardo. No mesmo ano em que Leonardo nasceu, segundo
as fontes oficiais, seu pai, Ser Piero da Vinci, casou-se com Donna Albiera,
senhora de boa origem. Foi devido à esterilidade desse casamento que o menino
foi recebido em casa de seu pai (ou melhor, em casa de seu avô) - coisa que
havia acontecido quando ele se encontrava pelos cinco anos, segundo atesta o
documento. Ora, não é comum logo no princípio de um casamento trazer um filho
ilegítimo para ser cuidado pela jovem esposa, que ainda espera ser afortunada
com o nascimento de seus próprios filhos. Muitos anos de frustração terão
certamente decorrido antes da decisão de adoção do filho ilegítimo - que
provavelmente já se havia tornado um garoto interessante - para compensar a
ausência dos filhos legítimos desejados. A interpretação da fantasia do abutre
tornar-se-ia mais fácil se houvessem decorrido uns três anos da vida de
Leonardo, talvez mesmo cinco, antes que ele pudesse trocar a figura solitária
de sua mãe por uma parelha parental. Já era tarde, no entanto. Nos primeiros
três ou quatro anos da vida certas impressões tornam-se fixadas e as formas de
reação para com o mundo exterior ficam estabelecidas, e nunca mais perderão a
sua importância por meio de outras experiências posteriores.
Se é
verdade que as lembranças ininteligíveis da infância de uma pessoa, as
fantasias que delas resultam, invariavelmente gravam os elementos mais
importantes do desenvolvimento mental, segue-se, então, que o fato confirmado
pela fantasia do abutre, isto é, que Leonardo passou os primeiros anos de sua
vida sozinho com sua mãe, terá exercido influência decisiva na formação de sua
vida interior. Uma conseqüência inevitável dessa situação foi que a criança -
que em sua tenra infância enfrentou um problema a mais do que as outras
crianças - começou a pensar nesse enigma com uma intensidade toda especial, e,
assim, numa tenra idade tornou-se um pesquisador atormentado pela grande
pergunta - saber de onde vêm os bebês e o que tem a ver o pai com sua origem.
Foi uma vaga suspeita de que suas pesquisas e a história de sua infância
estivessem assim ligadas que o fez mais tarde, declarar que tinha sido
destinado, desde o começo de sua vida, a investigar o problema do vôo das aves,
já que havia sido visitado por um abutre, quando em seu berço. Mais tarde, não
será difícil mostrar que sua curiosidade acerca do vôo das aves deriva das
pesquisas sexuais da sua infância.
III
Na
fantasia infantil de Leonardo tomamos o elemento abutre como representante do
conteúdo real de sua lembrança, ao passo que o contexto em que o próprio
Leonardo coloca sua fantasia esclarece muito a importância que teve esse
conteúdo para sua vida posterior. Continuando com o nosso trabalho de
interpretação, chegamos agora ao estranho problema de saber por que motivo esse
conteúdo foi transformado em uma situação homossexual. A mãe que amamenta a
criança, isto é, em cujo seio a criança mama, foi transformada num abutre que
põe a sua cauda dentro da boca da criança. Já tivemos ocasião de mostrar [ver
em [1]] que, de acordo com as freqüentes substituições de que se serve a
linguagem, a `cauda‘ do abutre deve, com toda certeza, significar o genital
masculino, um pênis. Mas não podemos compreender como a atividade imaginativa
pode ter atribuído justamente a esse pássaro, que representa a mãe, as
características da masculinidade; diante desse absurdo ficamos sem saber como
reduzir esta criação da fantasia de Leonardo a qualquer significado racional.
No
entanto não devemos perder a esperança, sobretudo quando nos lembramos do
número enorme de sonhos, aparentemente absurdos, cujo significado já
conseguimos desvendar. Existe alguma razão para que uma lembrança da infância
nos ofereça maiores dificuldades do que um sonho?
Recordando
que não convém analisar uma característica peculiar isoladamente, apressamo-nos
em trazer uma outra que nos parece ainda mais estranha.
A
deusa egípcia Mut, que tinha cabeça de abutre, figura sem nenhuma
característica pessoal, segundo o artigo de Drexler no léxico de Roscher,
fundia-se freqüentemente com outras deusas de personalidade mais marcante, tais
como Ísis e Hathor, porém conservou, ao mesmo tempo, separados, sua existência
e seu culto. Uma característica especial do panteão egípcio era que os deuses
individuais não desapareciam quando ocorria um processo de sincretismo. Ao
mesmo tempo que sucedia a fusão dos deuses, as divindades individuais
continuavam a sua existência independente. Ora, essa deusa-mãe com cabeça de
abutre era geralmente representada pelos egípcios com um falo; seu corpo era de
mulher, conforme mostram os seus seios, mas possuía também um membro masculino
em ereção. Encontramos, portanto, na deusa Mut a mesma combinação de
características maternais e masculinas que existem na fantasia de Leonardo
sobre o abutre. Deveremos explicar esta coincidência afirmando que Leonardo
tomou conhecimento, através da leitura de seus livros [ver em [1]] da natureza
andrógina do abutre maternal? Uma tal possibilidade é assaz duvidosa; parece
que as fontes às quais tinha acesso não continham nenhuma informação sobre este
notável pormenor. Parece mais plausível buscar a explicação dessa coincidência
num fator comum operativo, válido para ambos os casos mas desconhecidos para
nós até este momento.
A
mitologia nos ensina que a constituição andrógina, isto é, uma combinação das
características masculinas e femininas, era atributo não só de Mut mas também
de outras divindades, tais como Ísis e Hathor - estes, no entanto, talvez pelo
fato de possuírem também uma natureza maternal e se confundirem com Mut (Römer,
1903). Ensina-nos, mais, que outras divindades egípcias tais como Neith de Saís
- de quem se originou, mais tarde, a Atenéia dos gregos - foram originariamente
representadas como andróginas, isto é, como hermafroditas, e que o mesmo se
dava com muitos dos deuses gregos, especialmente aqueles que eram associados a
Dionísio mas também a Afrodite, que mais tarde se limitou a representar uma
deusa feminina do amor. A mitologia explica que o acréscimo de um falo ao corpo
feminino é uma representação da força primitiva criadora da natureza, e que
todas essas divindades hermafroditas são expressões da idéia de que somente a
combinação dos elementos masculino e feminino poderão de fato simbolizar a perfeição
divina. Mas nenhuma dessas considerações nos explica o fato psicológico tão
estranho de a imaginação humana não vacilar em emprestar a uma imagem que
pretende essencialmente representar a mãe um atributo da potência masculina que
representa exatamente o oposto de qualquer idéia maternal.
As
teorias sexuais infantis explicam-nos isso. Existe uma época em que o genital
masculino é compatível com a imagem da mãe. Quando um menino começa a ter
curiosidade pelos enigmas da vida sexual, fica dominado pelo interesse que tem
pelo seu próprio genital. Passa a considerar essa parte de seu corpo valiosa e
importantíssima para ele e crê que ela deve existir nas outras pessoas com as
quais ele se acha parecido. Como não pode adivinhar a existência de outra conformação
genital igualmente importante, é forçado a forjar a hipótese de que todos os
seres humanos, tanto os homens quanto as mulheres, possuem um pênis igual ao
seu. Este preconceito se torna de tal maneira imbuído no investigador infantil
que não desaparece nem mesmo quando, pela primeira vez, chega a observar o
genital das meninas. Sua percepção mostra-lhe que há alguma coisa diferente do
que ele possui mas é incapaz de admitir que o conteúdo de sua percepção é que
ele não pode encontrar um pênis nas meninas. A sua falta parece-lhe uma coisa
sinistra e intolerável e procurando uma solução de compromisso chega à
conclusão de que as meninas também possuem um pênis, somente que é ainda muito
pequeno; e que, depois, ele crescerá. Mais tarde, quando percebe que isso não
acontece, encontra outra explicação: as meninas também tinham um pênis, mas ele
foi cortado e em seu lugar ficou apenas uma ferida. Este avanço teórico já
implica experiências pessoais de caráter penoso: nesse intervalo o menino já
terá ouvido ameaças de lhe cortarem o órgão que tanto preza, caso venha a
demonstrar um interesse demasiadamente ostensivo por ele. Sob a influência
dessa ameaça de castração, ele agora interpreta de modo diferente o
conhecimento adquirido sobre os genitais femininos; daí em diante receará por
sua masculinidade e, ao mesmo tempo, menosprezará as infelizes criaturas que já
receberam o cruel castigo, conforme ele presume.
Antes
de a criança ser dominada pelo complexo de castração - isto é, numa época em
que a mulher ainda conserva para ela todo o seu valor - ela começa a
exteriorizar um intenso desejo visual, como atividade erótica instintiva. Quer
ver os genitais de outras pessoas, a princípio provavelmente para compará-lo
com o seu próprio. A atração erótica que sente por sua mãe logo se transforma
em um desejo pelo seu órgão genital, que supõe ser um pênis. Com a descoberta
que fará, mais tarde, de que as mulheres não possuem pênis, este desejo muitas
vezes se transforma no seu oposto, dando origem a um sentimento de repulsa que,
na época da puberdade, poderá ser a causa de impotência psíquica, misoginia e
homossexualidade permanente. Porém a fixação no objeto antes tão intensamente
desejado, o pênis da mulher, deixa traços indeléveis na vida mental da criança,
quando esta fase de sua investigação sexual infantil foi particularmente
intensa. Um culto fetichista cujo objeto é o pé ou calçado feminino parece
tomar o pé como mero símbolo substitutivo do pênis da mulher, outrora tão
reverenciado e depois perdido. Sem o saber, os `coupeurs de nattes‘ desempenham
o papel de pessoas que executam um ato de castração sobre o órgão genital
feminino.
Enquanto
as pessoas se mantiverem na atitude ditada pela nossa civilização de desprezo
pelos órgãos genitais e pelas funções sexuais, não poderão absolutamente
compreender as atividades da sexualidade infantil e provavelmente fugirão ao
assunto afirmado ser incrível o que aqui dissemos. Para compreender a vida
mental das crianças necessitamos recorrer a analogias encontradas nos tempos primitivos.
Para nós, durante muitas gerações os genitais foram sempre as partes
`pudendas‘, motivo de vergonha e até mesmo (devido a posterior repressão sexual
bem sucedida) de repugnância. Se fizermos um histórico extenso da vida sexual
de nossa época e sobretudo das classes que são o sustentáculo da civilização
humana, seremos tentados a declarar que é a contragosto que a maioria daqueles
que vivem nos dias de hoje obedecem à lei de propagar a espécie; sentem-se,
nesse processo, diminuídos em sua dignidade humana. Entre nós, somente a classe
menos culta de nossa sociedade difere desse ponto de vista sobre a vida sexual.
Para a classe mais alta e refinada, ela constitui uma coisa que se oculta,
desde que é considerada culturalmente inferior, e quando se permitem dar-lhe
vazão, fazem-no contra a sua consciência. Nos tempos primitivos da raça humana,
a concepção era diferente. Dados trabalhosamente compilados por estudiosos da
civilização apresentam testemunho irrefutável de que primitivamente os genitais
eram o orgulho e a esperança dos seres humanos; eram adorados como deuses e
transmitiam a essência divina de suas funções a todas as novas atividades
humanas. Como resultado da sublimação de sua natureza básica criaram-se
inúmeras divindades: e quando a conexão entre a religião oficial e a atividade
sexual se tornou oculta da consciência geral, cultos secretos se dedicavam a
conservá-la viva entre um certo número de iniciados. Durante o decurso do
desenvolvimento cultural tanta coisa divina e sagrada foi, em última essência,
extraída da sexualidade, que o remanescente, quase esgotado, foi desprezado.
Mas, dado o caráter indelével de todos os processos mentais, não é de admirar
que mesmo as formas mais primitivas do culto genital existissem até bem pouco
tempo e que a linguagem, os costumes e as superstições da humanidade de hoje
contenham ainda remanescentes de todas as fases deste processo de
desenvolvimento.
Notáveis
analogias biológicas levam-nos a descobrir que o desenvolvimento mental do
indivíduo repete, de modo abreviado, o processo do desenvolvimento humano; e as
conclusões a que chegaram as pesquisas psicanalíticas acerca da mente infantil,
referentes à importância concedida aos genitais na infância, não são tão
inverossímeis. A hipótese infantil de que sua mãe tem um pênis será, portanto,
a origem comum de que derivam tanto a mãe-deusa andrógina como a Mut egípcia, e
a `coda‘ do abutre na fantasia infantil de Leonardo. Na verdade, ao classificar
de hermafroditas, no sentido médico, essas representações de deuses, cometemos
realmente uma impropriedade. Em nenhuma delas existe realmente a combinação dos
genitais dos dois sexos - uma combinação que se observa em algumas malformações
e que constituem uma deformação repulsiva; a única coisa que acontecia era que o
órgão masculino era acrescentado as seios, que são a característica da mãe,
como se dá também na representação infantil do corpo materno. Esta forma do
corpo materno, criação reverenciada da fantasia primitiva, foi conservada
fielmente pela mitologia. Podemos apresentar agora a seguinte interpretação da
ênfase dada à cauda do abutre na fantasia de Leonardo: `Isso foi numa época em
que a minha curiosidade afetuosa era toda dirigida à minha mãe, e que eu
pensava ter ela um órgão genital igual ao meu.’ Constitui mais uma evidência
das precoces pesquisas sexuais de Leonardo que, em nossa opinião, tiveram
influência decisiva sobre toda a sua vida futura.
Neste
ponto, um pouco de reflexão mostrará que não nos satisfaz ainda o modo pelo
qual foi explicada a cauda do abutre na fantasia infantil de Leonardo. Parece
haver nela alguma coisa mais que não conseguimos ainda compreender. A mais
notável de todas elas foi ter sido transformado o ato de mamar no seio materno
em ser amamentado, isto é, em passividade, portanto, numa situação cuja
natureza é indubitavelmente homossexual. Quando nos lembramos da probabilidade
histórica de Leonardo ter-se comportado em sua vida como uma pessoa
emocionalmente homossexual, ocorre-nos perguntar se esta fantasia não indicaria
a existência de uma relação causal entre as relações infantis de Leonardo com a
mãe e sua posterior homossexualidade manifesta, ainda que ideal [sublimada].
Não nos atreveríamos a inferir qualquer conexão dessa natureza da reminiscência
confusa de Leonardo se não soubéssemos, pelos estudos psicanalíticos de
pacientes homossexuais, que tal ligação existe de fato e é, na verdade,
condição intrínseca e necessária.
Os
homossexuais, que em nossos dias se têm defendido energicamente das restrições
impostas por lei às suas atividades sexuais, gostam de ser apresentados, por
intermédio de seus teóricos defensores, como pertencendo a uma espécie
diferente, como um estágio sexual intermediário ou como um `terceiro sexo.’
Eles se declaram homens inatamente compelidos, por disposições orgânicas, a
achar prazer com outros homens, o que não conseguem com mulheres. Por maior que
seja a nossa vontade, por motivos humanitários, de acatar suas declarações,
devemos analisar as suas teorias com reservas, pois foram feitas sem levar em conta
a gênese psíquica da homossexualidade. A psicanálise oferece meios para
preencher essa lacuna e para testar as afirmativas dos homossexuais. Embora só
tenha conseguido colher dados de um número reduzido de pessoas, todas as
investigações empreendidas até agora produziram o mesmo resultado
surpreendente. Em todos os nossos casos de homossexuais masculinos, os
indivíduos haviam tido uma ligação erótica muito intensa com uma mulher,
geralmente sua mãe, durante o primeiro período de sua infância, esquecendo
depois esse fato; essa ligação havia sido despertada ou encorajada por
demasiada ternura por parte da própria mãe, e reforçada posteriormente pelo
papel secundário desempenhado pelo pai durante sua infância. Sadger chama
atenção para o fato de as mães dos seus pacientes homossexuais serem muitas
vezes masculinizadas, mulheres com enérgicos traços de caráter e capazes de
deslocar o pai do lugar que lhe corresponde. Observei ocasionalmente a mesma
coisa, porém me impressionei mais com os casos em que o pai estava ausente
desde o começo, ou abandonara a cena muito cedo, deixando o menino inteiramente
sob a influência feminina. Na verdade, parece que a presença de um pai forte
asseguraria, no filho, a escolha correta de objeto, ou seja, uma pessoa do sexo
oposto.
Depois
desse estágio preliminar, estabelece-se uma transformação cujo mecanismo
conhecemos mas cujas forças determinantes ainda não compreendemos. O amor da
criança por sua mãe não pode mais continuar a se desenvolver conscientemente -
ele sucumbe à repressão. O menino reprime seu amor pela mãe; coloca-se em seu
lugar, identifica-se com ela, e toma a si próprio como um modelo a que devem
assemelhar-se os novos objetos de seu amor. Desse modo ele transformou-se num
homossexual. O que de fato aconteceu foi um retorno ao auto-erotismo, pois os
meninos que ele agora ama à medida que cresce, são, apenas, figuras
substitutivas e lembranças de si próprio durante sua infância - meninos que ele
ama da maneira que sua mãe o amava quando era ele uma criança. Encontram seus
objetos de amor segundo o modelo do narcisismo, pois Narciso, segundo a lenda
grega, era um jovem que preferia sua própria imagem a qualquer outra, e foi
assim transformado na bela flor do mesmo nome.
Considerações
psicológicas mais profundas justificam a afirmativa de que um homem que assim
se torna homossexual, permanece inconscientemente fixado à imagem mnêmica de
sua mãe. Reprimindo seu amor à sua mãe, conserva-o em seu inconsciente e daí
por diante permanece-lhe fiel. Quando parece perseguir outros rapazes e
tornar-se seu amante, na realidade está fugindo das outras mulheres que o
possam levar à infidelidade. Em casos individuais, a observação direta tem-nos
permitido demonstrar que o homem que dá a impressão de ser sensível somente aos
encantos de outros homens sente-se, na verdade, atraído pelas mulheres, como
qualquer homem normal; mas em cada ocasião procura transferir imediatamente a
excitação provocada pela mulher para um objeto masculino e, desse modo, repete
incessantemente o mecanismo pelo qual adquiriu sua homossexualidade.
Estamos
longe de querer exagerar a importância dessas explicações sobre a gênese
psíquica da homossexualidade. É óbvio que elas discordam completamente das
teorias adotadas pelos defensores dos homossexuais, mas sabemos também que não
são bastante claras para chegar a uma conclusão definitiva sobre esse problema.
Aquilo que, por motivos práticos, é geralmente chamado de homossexualidade
poderá ser o resultante de uma variedade enorme de processos inibitórios psicossexuais;
o processo particular que destacamos é, talvez, apenas um entre muitos outros e
talvez corresponda a um único tipo de `homossexualidade’. Devemos também
admitir que o número de casos de homossexualismo deste tipo, em que podemos
reconhecer as causas determinantes assinaladas por nós, é bem maior do que
aqueles em que ele de fato se concretiza. Portanto, nós também não podemos
negar a influência exercida por fatores constitucionais desconhecidos, aos
quais geralmente se atribui toda a homossexualidade. Não teríamos tido motivo
algum para entrar na gênese psíquica da forma de homossexualidade que estudamos
se não houvesse um forte pressentimento de que Leonardo, cuja fantasia sobre o
abutre foi o nosso ponto de partida, fosse, na verdade, um homossexual
exatamente desse tipo.
Conhecem-se
poucos detalhes sobre o comportamento sexual do grande artista e cientista, mas
devemos crer na possibilidade de as afirmativas de seus contemporâneos não
terem sido totalmente erradas. À luz de tais afirmativas, portanto, ele nos
parece ter sido um homem cujas necessidades e atividades sexuais eram
excepcionalmente reduzidas, como se uma aspiração mais elevada o houvesse
colocado acima das necessidades animais comuns da humanidade. Haverá sempre uma
dúvida quando se trata de saber se ele terá alguma vez procurado a satisfação
sexual direta e, se o fez, de que maneira; ou teria ele prescindido
completamente de qualquer ato dessa natureza? Achamos justo, no entanto,
procurar nele também as forças emocionais que impulsionam outros homens
imperativamente à prática do ato sexual; pois não podemos imaginar a vida
mental de nenhum ser humano sem que tivesse havido em sua formação o desejo
sexual em seu sentido mais amplo - libido - mesmo que tal desejo se tivesse
afastado de sua finalidade original, ou fosse refreado, e não chegasse a
exercer-se.
Não
podemos esperar encontrar em Leonardo senão indícios de inclinação sexual
não-transformada. Estes indícios, porém, apontam uma direção que nos faz
reconhecer nele um homossexual. Sempre foi notório que ele somente admitia como
alunos meninos e rapazes que fossem belos. Tratava-os com gentileza e
consideração, tomava conta deles e, quando doentes, cuidava-os ele próprio como
uma mãe cuida de seus filhos, e assim como o teria tratado a sua própria mãe.
Como os escolhia pela beleza e não pelo talento, nenhum deles - Cesare da
Sesto, Boltraffio, Andrea Salaino, Francesco Melzi e outros mais - veio a
tornar-se um pintor de importância. Geralmente não eram capazes de se libertar
de seu mestre e, após a sua morte, desapareceram sem terem deixado qualquer
marca definitiva na história da arte. Quanto a outros, como Luini e Bazzi,
chamado Sodoma, cujos trabalhos lhes permitem classificar-se como seus
discípulos, talvez jamais os tivesse conhecido pessoalmente.
Ser-nos-á
provavelmente alegado que a conduta de Leonardo para com seus alunos nada tem a
ver com motivos de ordem sexual, e que portanto não justifica deduções sobre a
sua particular inclinação sexual. Respondendo a isso, gostaríamos de demonstrar,
com o devido cuidado, que o nosso ponto de vista explica algumas
características peculiares do comportamento do artista que de outro modo
permaneceriam um mistério. Leonardo mantinha um diário onde fazia anotações com
sua letra miúda (escrevendo da direita para a esquerda) somente para seu
próprio uso. É digno de nota que naquele diário ele tratava a si próprio na
segunda pessoa. `Aprende a multiplicação de raízes com Mestre Luca.’ (Solmi,
1908, 152). `Faze com que o Mestre d’Abacco te ensine a quadratura do círculo.’
(Loc. cit.) Ou, durante uma viagem: `Estou indo para Milão tratar de assuntos
referentes a meu jardim… Manda fazer duas malas. Faze com que Boltraffio te
mostre o torno e faze-o polir uma pedra. Deixa o livro para Mestre Andrea il Todesco.’
(Ibid., 203) Ou, então, uma resolução de importância bem diversa: `Deves
mostrar em teu tratado que a terra é uma estrela, como a lua ou coisa parecida,
e assim provar a nobreza de nosso mundo.’ (Herzfeld, 1906, 141.)
No
referido diário, que, igual ao que acontece nos diários de outros mortais,
muitas vezes comenta em poucas palavras os acontecimentos mais importantes do
dia ou mesmo nem os menciona, existem algumas notas que, pela sua estranheza,
são relatadas por todos os biógrafos de Leonardo. São apontamentos de pequenas
quantias de dinheiro, gastas pelo artista - anotadas com uma precisão minuciosa
como se houvessem sido feitas por um austero ou parcimonioso chefe de família.
No entanto nada há sobre qualquer extravagância maior ou nenhuma evidência de
que fizesse parte de sua natureza anotar sempre suas despesas. Uma destas
anotações refere-se a uma capa nova que comprou para seu aluno Andrea Salaino:
Brocado
de prata 15 lire 4 soldi
Enfeite
de veludo vermelho 9 lire - soldi
Galões
9
soldi
Botões
12
soldi
Outra
nota muito detalhada soma todas as despesas que fez por causa do mau caráter e
do costume de furtar de outro aluno: `No dia vinte e um de abril de 1940
comecei este livro e recomecei o cavalo. Jacomo procurou-me no dia se Santa
Madalena, em 1940: ele tem dez anos.’ (Nota à margem: `gatuno, mentiroso,
egoísta, voraz.’) `No segundo dia, mandei cortar-lhe duas camisas, um par de
calças e uma jaqueta e, quando separei o dinheiro para o pagamento, ele o
roubou de minha bolsa e jamais consegui fazê-lo confessar, embora tivesse
certeza disso.’ (Nota à margem: 4 lire…’) O relatório sobre as faltas do menino
continua por aí a fora e termina com a demonstração das despesas: `No primeiro
ano, uma capa, 2 lire; 6 camisas, 4 lire; 3 jaquetas, 6 lire; 4 pares de meias,
7 lire; etc.’
Os
biógrafos de Leonardo não desejam de modo algum procurar a solução dos
problemas mentais de seu personagem partindo de suas pequenas fraquezas e
peculiaridades; e o comentário que habitualmente fazem sobre essas contas
estranhas são para ressaltar-lhes a gentileza e a consideração para com os
alunos. Esquecem-se de que o que carece de explicação não é o comportamento de
Leonardo mas sim o fato de ter deixado, acerca dele, esses testemunhos. Como é
impossível acreditar que seu motivo tenha sido deixar provas de sua bondade,
devemos pressupor ter sido outra razão, de natureza afetiva, que o levou a
fazer esses apontamentos. Será difícil adivinhar qual o motivo e nós nada
poderíamos sugerir, não fora o fato de ter sido encontrado outro apontamento de
despesas, entre os papéis de Leonardo, que esclarece essas estranhas notas, tão
pouco importantes, sobre as roupas de seus alunos etc.:
Despesas com o
funeral de Caterina 27 florins
2 libras de cera 18
florins
Para o transporte e
levantamento da cruz 12 florins
Essa 4
florins
Carregadores 8
florins
4 padres e 4
sacristãos 20
florins
Para soar o sino 2
florins
Para os escavadores 16
florins
Pela licença - para
os funcionários 1
florim
Total 108
florins
Despesas anteriores
Médico 4
florins
Açúcar e castiçais 2 florins
Total 16
florins
Total completo 124
florins
O
escritor Merezhkovsky é o único que nos diz quem foi essa Caterina. Baseado em
duas breves notas ele concluiu que a mãe de Leonardo a pobre camponesa de
Vinci, foi a Milão em 1493 para visitar seu filho, que tinha, então, 41 anos;
que lá adoeceu e Leonardo a internou num hospital, e quando morreu foi
homenageada por ele com esse custoso enterro.
Esta
interpretação feita pelo escritos psicólogo não pode ser provada mas é tão
verossímil e está tão de acordo com tudo o que conhecemos da atividade
emocional de Leonardo, que não posso deixar de aceitá-la como correta. Ele
conseguira sujeitar seus sentimentos ao domínio da pesquisa e reprimir a sua
livre expressão; mas para si mesmo havia ocasiões em que o que suprimira
forçava um meio de expressão. A morte da mãe, a quem tanto amara em certa
época, foi uma delas. O que temos diante de nós nesses apontamentos sobre as
despesas do enterro é a expressão, sob um disfarce quase irreconhecível, de sua
tristeza pela morte da mãe. Ficamos pensando o porquê desse disfarce, e na
verdade não o podemos entender se o consideramos um processo mental normal.
Porém, processos semelhantes são por nós bem conhecidos nas condições anômalas
da neurose, sobretudo na que é conhecida como `neurose obsessiva’. Nestes casos
podemos observar como a expressão de sentimentos intensos, que se haviam
tornado inconscientes graças à repressão, é deslocada para ações triviais e às
vezes mesmo tolas. A expressão desses sentimentos reprimidos foi de tal modo
enfraquecida pelas forças que a eles se opõem, que seríamos levados a
considerá-los insignificantes; mas a compulsão imperativa que leva a executar
esse ato trivial revela a verdadeira força dos impulsos - força que se origina
no inconsciente e que a consciência gostaria de negar. Somente comparando esta
situação com a que ocorre na neurose obsessiva é que poderemos explicar as
anotações de Leonardo relativas às despesas com o enterro de sua mãe. Em seu
inconsciente, ele ainda se achava ligado a ela por sentimentos de matiz
erótico, como acontecera em sua infância. A oposição que se originou na
subseqüente repressão deste amor infantil não lhe permitiu reverenciar sua mãe
em seu diário, de modo diferente e melhor. Mas o que emergiu como um
compromisso desse conflito neurótico tinha de ser externado; e foi assim que
esta anotação veio a fazer parte de seu diário e chegou ao conhecimento da
posteridade como coisa ininteligível.
Não
nos parece muito ousado aplicar às notas sobre as despesas com os alunos aquilo
que descobrimos nas notas sobre o enterro. Seriam elas, portanto, outro
testemunho dos esparsos remanescentes dos impulsos libidinais de Leonardo, que
encontravam assim expressão, de maneira compulsiva e sob forma distorcida. Sob
esse ponto de vista, sua mãe e seus alunos, que representavam a imagem de sua
própria beleza infantil, haviam sido seus objetos sexuais - tanto quanto a
repressão sexual que dominava sua natureza nos permite reconhecê-los - e a
compulsão a anotar detalhadamente os seus gastos com eles revelava, desse modo
estranho, seus conflitos rudimentares. Assim, pareceria que a vida erótica de
Leonardo pertencia realmente ao tipo de homossexualidade cujo desenvolvimento
psíquico conseguimos desvendar, e a emergência da situação homossexual em sua
fantasia do abutre tornar-se-ia inteligível para nós; porque seu significado
era exatamente o que já havíamos afirmado relativamente a esse tipo. Teríamos
de traduzi-lo assim: `Foi através dessa relação erótica com minha mãe que me
tornei um homossexual.’
IV
Ainda
não demos por terminada a análise da fantasia do abutre de Leonardo. Com
palavras que tão claramente sugerem a descrição de um ato sexual (`e fustigou
muitas vezes sua cauda contra meus lábios’), Leonardo acentua a intensidade das
relações eróticas entre mãe e filho. Da ligação desta atividade de sua mãe (o
abutre) com a dominância da zona bucal, não será difícil adivinhar que a
fantasia contém uma outra lembrança. Podemos traduzi-la assim: `Minha mãe
beijou-me apaixonada e repetidamente na boca.’ A fantasia surge da lembrança de
ser alimentado no seio e de ser beijado pela mãe.
A
natureza generosa deu ao artista a capacidade de exprimir seus impulsos mais
secretos, desconhecidos até por ele próprio, por meio dos trabalhos que cria; e
estas obras impressionam enormemente outras pessoas estranhas ao artista e que
desconhecem, elas também, a origem da emoção que sentem. Será que nada existe
na obra de Leonardo para testemunhar aquilo que sua memória conservou como uma
das impressões mais fortes de sua infância? Deveríamos certamente poder
encontrar alguma coisa. Porém, se considerarmos a transformação enorme que terá
de sofrer qualquer impressão vivida por um artista antes que ela venha a ser
transformada em uma contribuição para uma obra de arte, teremos de observar um
grande comedimento ao proclamarmos a nossa certeza quanto aos resultados a que
chagamos em nossas pesquisas; sobretudo com referência a Leonardo. Qualquer
pessoa que pense nas pinturas de Leonardo recordar-se-á de um sorriso notável,
ao mesmo tempo fascinante e misterioso, que ele punha os lábios de seus modelos
femininos. É um sorriso imutável, desenhado em lábios longos e curvos;
tornou-se uma característica do seu estilo e o termo `Leonardiano’ tem sido
usado para defini-lo. Este sorriso no rosto estranhamente lindo da florentina
Mona Lisa del Giocondo tem causado, em todos que o contemplam, os efeitos mais
fortes e controvertidos. [Ver Lâmina II.] Este sorriso requer uma interpretação
e de fato tem merecido as mais variadas explicações sem que nenhuma ainda tenha
conseguido satisfazer. `Voilà quatre siècles bientôt que Monna Lisa fait perdre
la tête a tous ceux qui parlent d’elle, après l’avoir longtemps regardée.’
Muther
(1909, 1, 314) escreveu: `O que sobretudo enfeitiça o espectador é a magia
demoníaca desse sorriso. Centenas de poetas e escritores já escreveram sobre
essa mulher que ora parece sorrir-nos tão sedutoramente, ora parece fitar o
espaço, friamente e sem alma. E ninguém jamais decifrou o enigma de seu sorriso
nem leu o significado de seus pensamentos. Tudo, até mesmo a paisagem,
assemelha-se a um sonho e parece sofrer a influência opressiva da
sensualidade.’
A
idéia de que dois elementos diferentes estejam combinados no sorriso de Mona
Lisa já foi suscitada por diversos de seus críticos. Muitos deles vêem na
expressão da linda florentina a mais perfeita representação dos contrastes que
dominam a vida erótica das mulheres; o contraste entre a reserva e a sedução, e
entre a ternura mais delicada e uma sensualidade implacavelmente exigente,
destruindo os homens como se fossem seres estranhos. Este é o ponto de vista de
Müntz (1899, 417): `On sait quelle énigme indéchiffrable et passionnante Monna
Lisa Gioconda ne cesse depuis bientôt quatre siècles de proposer aux
admirateurs pressés devante elle. Jamais artiste (j’emprunte la plume du
délicat écrivain qui se cache sous le pseudonyme de Pierre de Corlay) “a-t-il
traduit ainsi l’essence même de la féminité: tendresse et coquetterie, pudeur
et sourde volupté, tout le mystère d’un coeur qui se réserve, d’un cerveau qui
réflechit, d’une personnalité que se garde et ne livre d’elle-même que son
rayonnement…” O escritor italiano Angelo Conti (1910, 93) descreve que viu no
Louvre o retrato iluminado por um raio de sol. `La donna sorrideva in una calma
regale: i suoi istinti di conquista, di ferocia, tutta l’eredità della specie,
la volontà della seduzionne e dell’agguato, la grazia del inganno, la bontà che
cela un proposito crudele, tutto ciò appariva alternativamente e scompariva
dietro il velo ridente e si fondeva nel poeme del suo sorriso… Buona e
malvagia, crudele e compassionevole, graziosa e felina, ella rideva…’
Leonardo
passou quatro anos pintando esse retrato, talvez de 1503 até 1507, durante a
sua segunda permanência em Florença, época em que tinha mais de cinqüenta anos.
Segundo Vasari, durante o trabalho Leonardo empregou todos os meios ao seu
alcance para divertir essa senhora e conservar-lhe no semblante o sorriso
famoso. No seu estado atual, o quadro conserva pouco de todos os detalhes
delicados que seu pincel, na época, reproduziu sobre a tela; enquanto foi
pintado, foi proclamado como sendo o mais elevado que a arte poderia realizar,
porém é sabido que o próprio Leonardo não se satisfez com o resultado;
declarando que estava incompleto não o entregou à pessoa que o encomendara,
levou-o consigo para a França, onde o seu patrono, Francisco I, o adquiriu para
o Louvre.
Deixando
sem solução a enigmática expressão no rosto de Mona Lisa, vamos anotar o fato
inegável de que o seu sorriso, que tanto fascina todos os que têm contemplado
durante esses quatro séculos, exerceu também poderoso fascínio sobre Leonardo.
Dessa data em diante, o sorriso cativante reaparece em todos os seus quadros
assim como nos de seus alunos. Sendo a Mona Lisa de Leonardo um retrato, não
cremos que lhe tivesse imprimido, por sua própria inspiração, característica
tão expressiva à sua face - característica que não lhe pertence realmente.
Torna-se, portanto, inegável concluir que ele encontrou esse sorriso em seu
modelo e ficou por ele tão enfeitiçado que daí por diante reproduziu-o em todas
as criações livres de sua fantasia. Esta interpretação, que não poderá ser
considerada forçada, é defendida, por exemplo, por Konstantinowa (1907, 44):
`Durante
o longo período em que o artista trabalhou no retrato de Mona Lisa del
Giocondo, estudou tão apaixonadamente os detalhes mais sutis e delicados deste
rosto que passou a reproduzir os seus traços - sobretudo o seu misterioso
sorriso e estranho olhar - em todos os rostos que veio a pintar e desenhar
depois. Até no retrato de São João Batista, no Louvre, pode-se perceber esta
expressão facial, tão peculiar da Gioconda; mas é sobretudo no rosto da Virgem
Maria, no quadro da
MONA
LISA, de LEONARDO
“Madona
e o Menino com Sant’Ana”, que mais claramente o reconhecemos.’ [Ver o
Frontispício deste volume.]
No
entanto, esta situação pode ter ocorrido de outro modo. A necessidade de um motivo
mais profundo para explicar a atração tão forte que o sorriso da Gioconda
exerceu sobre o artista, a ponto de nunca mais vir a libertar-se dele, tem sido
mantida por mais de um de seus biógrafos. Walter Pater, que vê no retrato de
Mona Lisa `uma presença… expressiva daquilo que os homens sempre ambicionaram,
durante milênios, possuir’ [1873, 118], e que descreve com muita sensibilidade
o `sorriso distante, sempre sombreado por algum triste presságio, que
transparece em toda a obra de Leonardo` [ibid., 117], fornece-nos um outro dado
quando declara (loc. cit.):
`Além
do mais, o quadro é um retrato. Desde a infância, vemos esta imagem vir-se
definindo na contextura de seus sonhos; e, a não ser por algum testemunho
histórico expresso, poderemos supor que essa foi sua mulher ideal, finalmente
concretizada e finalmente possuída…’
Marie
Herzfeld (1906, 88) sem dúvida nenhuma participa de opinião muito semelhante
quando declara que na Mona Lisa Leonardo encontrou o seu próprio eu (self), e
por isso conseguiu transferir tanta coisa de sua própria natureza para o
retrato `cujas feições jaziam há muito tempo, em misteriosa harmonia, na mente
de Leonardo’,
Vamos
tentar explicar melhor o que aqui sugerimos. Poderia ser que Leonardo tivesse
ficado fascinado pelo sorriso de Mona Lisa, por lhe ter despertado alguma coisa
que há muito habitava sua mente - provavelmente uma antiga lembrança. Esta
lembrança era de suficiente importância pois, uma vez despertada, nunca mais
dela se libertou; sentia-se sempre forçado a dar-lhe novas formas de expressão.
A afirmativa de Pater, segundo a qual podemos ver desde a infância um rosto
como o de Mona Lisa esboçar-se na contextura de seus sonhos, parece convincente
e merece ser acatada.
Vasari
conta que `teste di femmine, che ridono’ foi tema tratado em seus primeiros
ensaios artísticos. Este trecho, do qual não necessitamos duvidar, já que nada
pretende provar, está transcrito mais extensamente na versão de Schorn (19843,
3, 6): `Em sua juventude, modelou em barro algumas cabeças sorridentes de
mulher, reproduzidas depois em gesso; e algumas cabeças de crianças, lindas
como se houvessem sido modeladas por mãos de um mestre…’
Ficamos
sabendo, assim, que ele começou sua carreira artística reproduzindo duas
espécies de objeto; e estes infalivelmente nos fazem lembrar os dois tipos de
objetos sexuais que deduzimos da análise de sua fantasia sobre o abutre. Se as
lindas cabeças de criança eram a reprodução da sua própria pessoa, como ele era
na sua infância, então as mulheres sorridentes nada mais seriam senão a
reprodução de sua mãe Caterina, e começamos a suspeitar a possibilidade de que
este misterioso sorriso era o de sua mãe - sorriso que ele perdera e que muito
o fascinou, quando novamente o encontrou na dama florentina.
O
quadro de Leonardo mais próximo da Mona Lisa em ordem cronológica é o chamado
`Sant’Ana com Dois Outros’, ou seja, Sant’Ana com a Madona e o Menino. [Ver
Frontispício.] Nele o sorriso leonardiano aparece evidente e lindo nas
fisionomias de ambas as mulheres. Não é possível descobrir quanto tempo antes
ou depois da Mona Lisa, Leonardo começou a pintar o quadro. Como os dois
trabalhos o ocuparam durante anos, penso que podemos afirmar que o artista
trabalhava em ambos ao mesmo tempo. Estaria mais de acordo com a nossa teoria
admitirmos que foi a intensidade da concentração de Leonardo nas feições da
Mona Lisa que o estimulou a criar a composição de Sant’Ana como produto de sua
imaginação. Porque, se é verdade que o sorriso de Gioconda lhe despertava
recordações de sua mãe, fácil será compreender como isso o levou a criar uma
glorificação da maternidade, e a restituir à sua mãe o sorriso que encontrara
na nobre dama. Podemos, portanto, transferir o nosso centro de interesse do
retrato da Mona Lisa para este outro quadro - igualmente belo, e que hoje
também se encontra no Louvre.
Sant’Ana
com sua filha e o neto é assunto que raramente foi tratado na pintura italiana.
De qualquer modo, a composição de Leonardo difere enormemente de qualquer outra
versão conhecida, segundo escreve Muther (1909, 1, 309):
`Alguns
artistas como Hans Fries, Holbein, o velho, e Girolamo dai Libri, representaram
Ana sentada ao lado de Maria, colocando o Menino entre as duas. Outros, como
Jakob Cornelisz em seu quadro de Berlim, pintaram aquilo que realmente se
poderia chamar de “Sant’Ana com Dois Outros”, em outras palavras, eles a
representaram sustentando nos braços a figura menor de Maria, que por sua vez
carrega no colo a figura menor ainda de Cristo menino. No quadro de Leonardo,
Maria está sentada no colo de sua mãe e se debruça, com os braços estendidos
para o Menino que brinca com um cordeirinho, talvez o tratando com pouca
delicadeza. A avó apóia na cintura o braço visível e contempla o par com um
sorriso de felicidade. A composição, na verdade, não aparenta muita
naturalidade. O sorriso que paira nos lábios de ambas as mulheres, embora seja
inegavelmente o mesmo da Mona Lisa, perdeu seu caráter estranho e misterioso; o
que ele exprime aqui é sentimento íntimo e serena felicidade.
Depois
de estudarmos o quadro por algum tempo, ocorre-nos subitamente a idéia de que
somente Leonardo o poderia ter pintado assim como somente ele poderia ter
criado a fantasia do abutre. O quadro contém a síntese da história de sua
infância: os seus detalhes devem ser explicados relembrando as impressões mais
pessoais da vida de Leonardo. Na casa de seu pai, ele encontrou não somente a
sua boa madrasta Donna Albiera mas também a sua avó, mãe de seu pai, Monna
Lucia, que - assim o supomos - foi para ele tão carinhosa quanto geralmente o
são os avós. Essas circunstâncias podem muito bem ter influído para que
representasse num quadro a imagem da criança vigiada pela mãe e pela avó. Outra
característica evidente desse quadro é ainda mais significativa. Sant’Ana, a
mãe de Maria e a avó do Menino, que deveria ser uma matrona, é representada
como um pouco mais madura e mais séria do que a Virgem Maria, porém ainda uma
mulher jovem e de inalterável beleza. Na verdade, Leonardo deu ao Menino duas
mães; uma que lhe estende os braços e outra no segundo plano; ambas deixando
transparecer o sorriso bem-aventurado da alegria maternal. Essa característica
do retrato sempre chamou a atenção daqueles que o descrevera. Muther, por
exemplo, é de opinião que Leonardo nunca procurava pintar a velhice, com suas
marcas e rugas, e por esse motivo pintou Ana também como uma mulher de radiante
beleza. Mas será que nos poderemos satisfazer com esta explicação? Outros tem
negado haver qualquer similaridade de idade entre mãe e filha. Mas a explicação
dada por Muther mostra bem que a impressão que se tem de que Sant’Ana foi
pintada mais jovem provém mesmo do quadro e não constitui nenhuma invenção para
justificar objetivo posterior.
A
infância de Leonardo teve característica igual à que o quadro reproduz. Teve
duas mães: primeiro, sua verdadeira mãe Caterina, de quem o separaram quando
tinha entre três e cinco anos; e depois uma madrasta moça e carinhosa, Donna
Albiera, esposa de seu pai. Pela combinação dessa situação de sua infância com
a outra que mencionamos acima (a presença da mãe e da avó) e pela composição
que fez reunindo os três personagens numa unidade, o desenho de `Sant’Ana com
Dois Outros’ veio a concretizar-se para ele. A figura maternal mais afastada do
Menino - a avó - corresponde à primeira e verdadeira mãe, Caterina, tanto em
sua aparência quanto em sua relação especial com o menino. O artista parece ter
usado o sorriso bem-aventurado da Sant’Ana para negar e encobrir a inveja que
sentiu a pobre mulher quando foi obrigada a entregar o filho à sua rival
nascida em berço mais nobre, assim como já lhe havia outrora entregado o pai.
Encontramos
também uma confirmação, em outro trabalho de Leonardo, de nossa suspeita de que
o sorriso de Mona Lisa del Giocondo havia despertado nele, já homem feito, a
lembrança da mãe que tivera em sua primeira
infância. Dessa época em diante, as madonas e as senhoras aristocráticas dos
quadros italianos passaram a ser pintadas com a humilde inclinação da cabeça e
sorrindo o estranho e bem-aventurado sorriso de Caterina, a
pobre camponesa que dera à luz o magnífico filho cujo destino seria pintar,
pesquisar e sofrer.
Se
Leonardo teve sucesso ao reproduzir nas feições de Mona Lisa a dupla
significação contida naquele sorriso, a promessa de ternura infinita e ao mesmo
tempo a sinistra ameaça (segundo a frase de Pater [ver em [1]]), manteve-se
também fiel ao conteúdo de sua lembrança mais distante. Porque a ternura de sua
mãe foi-lhe fatal; determinou o seu destino e as privações que o mundo lhe
reservava. A violência das carícias evidentes em sua fantasia sobre o abutre
eram muito naturais. No seu amor pelo filho, a pobre mãe abandonada procurava
dar expansão à lembrança de todas as carícias recebidas e à sua ânsia por
outras mais. Tinha necessidade de fazê-lo, não só para consolar-se de não ter
marido mas também para compensar junto ao filho a ausência de um pai para
acarinhá-lo. Assim, como todas as mães frustradas, substitui o marido pelo
filho pequeno, e pelo precoce amadurecimento de seu erotismo privou-o de uma
parte de sua masculinidade. O amor da mãe pela criança que ela mesma amamenta e
cuida é muito mais profundo que o que sente, mais tarde, pela criança em seu
período de crescimento. Sua natureza é a de uma relação amorosa plenamente
satisfatória, que não somente gratifica todos os desejos mentais mas também
todas as necessidades físicas; e se isto representa uma das formas possíveis da
felicidade humana, em parte será devido à possibilidade que oferece de satisfazer,
sem reprovação, desejos impulsivos há muito reprimidos e que podem ser
considerados como perversos. Nos casais jovens e mais felizes, o pai se dá
conta de que o bebê, sobretudo se for um menino, transforma-se em seu rival, o
que vem a constituir o ponto de partida de um antagonismo para com o favorito,
que está profundamente arraigado no inconsciente.
Quando
em pleno vigor de sua mocidade, Leonardo reencontrou o sorriso de beatitude e
enlevo que vira pairar nos lábios de sua mãe quando o acariciava, ele já tinha
estado tempo demais sob o domínio da inibição para que pudesse voltar a desejar
tais carícias dos lábios de outras mulheres. Ele porém se tornara pintor e,
portanto, lutou para reproduzir com seu pincel o sorriso famoso em todos os
seus quadros (tanto nos que ele próprio pintou como nos que incumbia seus
alunos de fazer sob sua orientação) - assim foi com a Leda, com o João Batista
e com o Baco. Os dois últimos são variantes do mesmo tipo. `Leonardo
transformou o comedor de gafanhotos da Bíblia’, disse Muther (1909, 1, 314),
`num Baco, ou melhor, num jovem Apolo, que, com um sorriso misterioso nos
lábios e com suas pernas macias cruzadas, fita-nos com olhos que nos perturbam
os sentidos.’ Esses quadros transmitem um misticismo cujo segredo ninguém ousa
desvendar; o máximo que poderíamos tentar seria determinar a sua relação com as
criações anteriores de Leonardo. As figuras ainda são andróginas mas não mais
no sentido da fantasia do abutre. São jovens lindos, de uma delicadeza feminina
e de formas afeminadas; já não abaixam os olhos mas contemplam-nos com uma
expressão de misterioso triunfo como se conhecessem uma grande felicidade cujo
segredo devessem calar. O sorriso fascinante e familiar leva-nos a crer
tratar-se de um segredo de amor.
É possível
que nestas figuras Leonardo tenha negado a infelicidade de sua vida erótica e
que tenha triunfado sobre ela em sua arte, proclamando os desejos do menino
apaixonado pela sua mãe, com um sentimento de realização nessa união
bem-aventurada das naturezas masculina e feminina.
V
Entre
as anotações feitas por Leonardo em seu diário, existe uma que chama a atenção
do leitor pela importância do seu significado e também por um pequeno erro na
sua redação.
Ele
escreveu, em julho de 1504:
`Adì
9 de Luglio 1504 mercoledi a ore morì Ser Piero da Vinci, notalio al palazzo
del Potestà, mio padre, a ore 7. Era d’età d’anni 80 lascio 10 figlioli maschi
e 2 femmine.’
Como
vemos, a nota refere-se à morte do pai de Leonardo. O pequeno erro de redação
consiste na repetição da hora do dia `a ore 7’ [às 7 horas], que é dada duas
vezes, deixando a impressão de que Leonardo, ao chegar ao fim da frase,
esqueceu já ter mencionado isto no início. É apenas um pequeno detalhe e
ninguém, a não ser um psicanalista, lhe daria maior importância. Nem ele
próprio talvez o notasse, e se alguém lhe chamasse atenção poderia alegar ser
coisa que acontece a qualquer um num momento de distração, ou de grande emoção,
e que isto nada significava.
O
psicanalista pensa de maneira diferente. Para ele não há detalhe, por mais
insignificante que pareça, que não possa revelar um processo mental oculto. O
analista conhece, há muito tempo, a importância de tais casos de esquecimento
ou de repetição, e sabe que é justamente essa `distração’ que permite a
libertação de impulsos reprimidos.
Nós
diríamos que esta nota como as contas referentes ao enterro de Caterina [ver em
[1]] e às despesas de seus alunos [ver em [2]], representam casos em que
Leonardo não conseguiu suprimir o seu afeto, de onde alguma coisa, há muito
reprimida, encontrou uma forma destorcida de expressão. Até mesmo a forma é
semelhante: encontramos a mesma precisão pedante e a mesma importância dada aos
números.
Casos
de repetição desta natureza são por nós chamados de perseveração. É um meio
excelente para revelar a nuance afetiva. Faz-nos lembrar, por exemplo, as
palavras de São Pedro no Paraíso de Dante, contra o seu indigno representante
na terra:
Quegli
ch’usurpa in terra il luogo mio,
Il
luogo mio, il luogo mio, che vaca
Nella presenza del Figliuol di Dio,
Fato
há del cimiterio mio cloaca.
Se
não existisse uma inibição afetiva em Leonardo, a anotação feita em seu diário
teria sido redigida mais ou menos assim: `Hoje às 7 horas meu pai morreu - Ser
Piero da Vinci, meu pobre pai!’ Porém o deslocamento da perseveração para um
detalhe tão indiferente no relato de sua morte, a hora em que ele faleceu,
esvazia a anotação de qualquer emoção e deixa transparecer a existência de
algumas coisa que se deseja ocultar ou suprimir.
Ser Piero
da Vinci, tabelião e descendente de tabeliães, era homem dotado de grande
energia e que veio a tornar-se próspero e estimado. Casou-se quatro vezes. Suas
duas primeiras mulheres morreram sem lhe deixar filhos e foi somente a sua
terceira mulher que o presenteou com seu primeiro filho legítimo, em 1476,
época em que Leonardo já atingira a idade de 24 anos, e de há muito deixara a
casa do pai para viver no estúdio de seu mestre Verrocchio. Com a quarta e
última mulher, com quem se casou já na casa dos cinqüenta, teve mais nove
filhos e duas filhas.
É
fora de dúvida que seu pai exerceu também influência importante no
desenvolvimento psicossexual de Leonardo, não somente de modo negativo por sua
ausência durante sua primeira infância, mas também de modo direto, por sua
presença no período posterior da infância de Leonardo. Quem deseja a própria
mãe na infância não poderá evitar o desejo de substituir o pai e de
identificar-se com ele na imaginação, e depois constituir como tarefa de sua
vida obter ascendência sobre ele. Quando Leonardo foi recebido em casa de seu
avô, antes de ter completado cinco anos, sua jovem madrasta Albiera terá
certamente substituído sua mãe em sua afeição, e ele terá sentido o que pode
ser chamado de relações normais de rivalidade com seu pai. Como sabemos, uma
decisão no sentido da homossexualidade somente se concretiza nos anos da
puberdade. Quando esta decisão ocorreu no caso de Leonardo, sua identificação
com o pai perdeu toda a significação para sua vida sexual mas manteve-se presente
em outras esferas de atividade não-erótica. Sabemos que gostava de luxo e de
roupagens finas, e que possuía criados e cavalos, embora, segundo Vasari,
`pouco possuísse e pouco produzisse.’ A responsabilidade por estes gostos não
deve ser atribuída somente à sua sensibilidade ao belo; reconhecemos neles
também uma compulsão a copiar e ultrapassar seu pai. Seu pai fora um grande
cavalheiro para a pobre camponesa, e seu filho por isso nunca deixou de sentir
o desejo de representar também o grande cavalheiro - o impulso de `to out-herod
Herod’, - e mostrar ao pai o que vinha a ser um verdadeiro gentil-homem.
Não
há dúvida de que o artista criador se considera como o pai de sua obra. Para
Leonardo, o reflexo de sua identificação com o pai foi prejudicial para sua
pintura. Criava a obra de arte e depois dela se desinteressava, do mesmo modo
que seu pai se desinteressara por ele. O cuidado que seu pai demonstrou, mais
tarde, em nada conseguiu alterar esta compulsão; porque a compulsão derivada
das impressões dos primeiros anos de infância, e o que foi reprimido e se
tornou inconsciente, não pode ser corrigido pelas experências futuras.
Na
época da Renascença - e também muito depois - todo artista dependia de algum
nobre de alta linhagem, um benfeitor e patrono, que lhe dava encomendas e de
cujas mãos dependia a sua fortuna. Leonardo encontrou seu patrono em Ludovico
Sforza, chamado II Moro, um homem ambicioso e amante do esplendor, diplomata
astuto, porém de caráter inconsciente e em quem não se podia confiar. Na sua
corte em Milão, Leonardo passou o período mais brilhante de sua vida, a seu
serviço seu poder criador atingiu o mais alto grau de realização, como o
atestam a Última Ceia e a estátua eqüestre de Francesco Sforza. Ele deixou
Milão antes da desgraça de Ludovido Sforza, que morreu prisioneiro numa
fortaleza na França. Quando teve a notícia do destino de seu patrono, Leonardo
escreveu em seu diário: `O duque perdeu seu ducado, sua propriedade e sua
liberdade, e nunca terminou nenhuma das obras que empreendeu.’ É interessante,
e sobretudo significativo, que ele fizesse ao seu patrão a mesma acusação que a
posterioridade lhe viria fazer. Era como se quisesse fazer de alguém que
pertencesse à categoria paternal, responsável por ter deixado suas obras
inacabadas. Na verdade, não errou no que afirmou acerca do duque.
Se
sua imitação do pai o prejudicou como artista, sua rebeldia contra ele foi a
determinante infantil do que foi talvez uma realização igualmente sublime no
campo da pesquisa científica. Segundo a comparação admirável de Merezhkovsky
(1903, 348), era como um homem que despertara cedo demais, na escuridão,
enquanto os outros ainda dormiam. Ele teve a coragem de fazer a declaração que
contém a justificação de toda pesquisa independente: `Aquele que apela para a
autoridade quando existe diferença de opinião, está fazendo mais uso da memória
do que da razão.’ Foi assim que se tornou o primeiro cientista natural moderno
e uma abundância de descobertas e de idéias sugestivas recompensaram sua
coragem de ter sido o primeiro homem, desde o tempo dos gregos, a indagar os
segredos da natureza baseando-se unicamente na observação e em seu próprio
julgamento. Mas quando ensinava que a autoridade deveria ser desprezada e que a
imitação dos `antigos’ deveria ser repudiada, e ao afirmar constantemente que o
estudo da natureza era a fonte de toda verdade, não fazia senão repetir - na
mais alta sublimação que o homem pode atingir - o ponto de vista resoluto que
já se impusera ao menino, quando fitava atônito o mundo em redor. Se
transformarmos novamente a abstração científica em experiência individual
concreta, veremos que os `antigos’ e a autoridade correspondem simplesmente a
seu pai, e a natureza vem a ser novamente a mãe gentil e carinhosa que o
amamentou. Na maioria dos seres humanos - tanto hoje como nos tempos primitivos
- a necessidade de se apoiar numa autoridade de qualquer espécie é tão
imperativa que o seu mundo se desmorona se essa autoridade é ameaçada. No
entanto, Leonardo pôde dispensar esse apoio; não teria podido fazê-lo se nos
primeiros anos de sua vida não tivesse aprendido a viver sem o pai. Sua
ulterior investigação científica, caracterizada por sua ousadia e
independência, pressupõe a existência de pesquisas sexuais infantis não
inibidas pelo pai e representa uma prolongação das mesmas com a exclusão do
elemento sexual.
Quando
alguém, como aconteceu com Leonardo, escapa à intimidação pelo pai durante a
primeira infância e rompe as amarras da autoridade em suas pesquisas, muito nos
admiraríamos se continuasse sendo um crente, incapaz de se desfazer dos dogmas
religiosos. A psicanálise tornou conhecida a íntima conexão existente entre o
complexo do pai e a crença em Deus. Fez-nos ver que um Deus pessoal nada mais
é, psicologicamente, do que uma exaltação do pai, e diariamente podemos
observar jovens que abandonam suas crenças religiosas logo que a autoridade
paterna se desmorona. Verificamos, assim, que as raízes da necessidade de
religião se encontram no complexo parental. O Deus todo-poderoso e justo e a
Natureza bondosa aparecem-nos como magnas sublimações do pai e da mãe, ou
melhor, como reminiscência e restaurações das idéias infantis sobre os mesmos.
Biologicamente falando, o sentimento religioso origina-se na longa dependência
e necessidade de ajuda da criança; e, mais tarde, quando percebe como é
realmente frágil e desprotegida diante das grandes forças da vida, volta a
sentir-se como na infância e procura então negar a sua própria dependência, por
meio de uma regressiva renovação das forças que a protegiam na infância. A
proteção contra doenças neuróticas, que a religião concede a seus crentes, é
facilmente explicável: ela afasta o complexo paternal, do qual depende o
sentimento de culpa, quer no indivíduo quer na totalidade da raça humana,
resolvendo-o para ele, enquanto o incrédulo tem de resolver sozinho o seu
problema.
O
caso de Leonardo não parece desmentir este ponto de vista relativo à religião.
Enquanto vivo, foram-lhe feitas acusações de heresia e de apostasia contra o
Cristianismo (o que, na época, significava a mesma coisa) que foram claramente
descritas na primeira biografia que Vasari [1550] escreveu sobre ele. (Müntz,
1889, 292ss.) Na segunda edição (1568) de sua Vite, Vasari suprimiu estas
observações. Devido à suceptibilidade enorme de sua época no tocante a questões
religiosas, bem podemos compreender por que Leonardo, até mesmo em seus
cadernos evitou qualquer comentário direto à sua posição face ao Cristianismo.
Em suas pesquisas, jamais se deixou induzir em erro por influência dos relatos
sobre a Criação, contidos nas Sagradas Escrituras; pôs em dúvida, por exemplo,
a possibilidade de um dilúvio universal, e em geologia fez cálculos em termos
de centenas de milhares de anos sem hesitação maior do que a dos homens dos
tempos modernos.
Entre
as suas `profecias’ existem algumas que certamente teriam ofendido a
sensibilidade de um crente cristão. Assim, por exemplo, em `Sobre o hábito de
rezar defronte às imagens de santos’:
`Os
homens falarão com homens que nada percebem, que têm os olhos abertos mas que
nada vêem; falarão com eles e não terão resposta; implorarão as graças daqueles
que têm orelhas mas nada ouvem; acenderão luzes para quem é cego.’ (Segundo
Herzfeld, 1906, 292.)
Ou,
então, `Sobre o luto na Sexta-feira Santa’:
`Em
toda a Europa, inumeráveis povos chorarão a morte de um único homem que morreu
no Oriente.’ (ibid., 297.)
Sobre
a arte de Leonardo, já foi dito que ele despiu as sagradas figuras de todos os
vestígios de sua ligação com a Igreja, tornando-as humanas, para nelas representar
grandes e belas emoções humanas. Muther o elogia por libertar-se do ambiente de
decadência que prevalecia na época e por restituir ao homem o seu direito à
sensualidade e à alegria de viver. Nas anotações que nos mostram Leonardo,
entregue à sondagem dos grandes mistérios da natureza, há um número enorme de
passagens onde ele manifesta a sua admiração pelo Criador, última causa de
todos esses nobres segredos; mas nada existe que possa indicar que desejou
manter relações pessoais com esse divino poder. As reflexões que encerram a
profunda sabedoria dos últimos anos de sua vida exalam a conformação do homem
que se entrega ao , às leis da natureza, e que nenhuma misericórdia
espera da bondade ou da graça de Deus. Parece não haver dúvida de que Leonardo
superou tanto a religião dogmática quanto a pessoal, e que afastou-se muito da
concepção cristã do mundo, através do seu trabalho de pesquisa.
As
descobertas, anteriormente mencionadas [ver a partir de [1]], que fizemos sobre
o desenvolvimento da vida mental infantil, levam-nos a crer que no caso de
Leonardo também as suas primeiras pesquisas na infância se orientaram para os
problemas da sexualidade. Ele próprio se denuncia, sob disfarce transparente,
ao relacionar sua ânsia de pesquisa à fantasia do abutre e ao destacar o
problema do vôo das aves como assunto para o qual se sentia fatalmente impelido
por uma série de circunstâncias. Um trecho sobremodo obscuro de suas anotações
referentes ao vôo das aves, e que se assemelha a uma profecia, demonstra muito
bem o grau de interesse afetivo que o fazia fixar-se na idéia de poder um dia
imitar, ele próprio, esse vôo: `O grande pássaro alçará o seu primeiro vôo
partindo do dorso de seu Grande Cisne; fará o mundo ficar maravilhado, será por
todos descrito e será a glória eterna do ninho onde nasceu.’ Provavelmente
esperava que ele próprio chegaria a voar um dia e conhecemos, pelos sonhos
realizadores de desejos, que felicidade se aguarda da realização dessa
esperança.
Mas
por que será que tantas pessoas sonham sentindo-se capazes de voar? A resposta
que nos dá a psicanálise é que voar, ou ser um pássaro, é somente um disfarce
para outro desejo, e que mais de uma conexão, seja por meio de palavras ou de
coisas, leva-nos a reconhecer esse desejo. Quando consideramos que às crianças
perguntadoras dizemos que os bebês são trazidos por um grande pássaro, tal como
a cegonha; quando nos lembramos de que os antigos povos representavam o falo
como possuindo asas; que a expressão mais comum, em alemão, para a atividade
sexual masculina é `vögeln‘ [`passarear’: `Vogel‘ é a palavra alemã para
`pássaro’; que o órgão masculino é chamado de `l’uccello‘ [`o pássaro’] em
italiano - vemos que todos esses dados constituem apenas uma pequena fração de
um conjunto de idéias correlatas que nos mostram que, nos sonhos, o desejo de
voar representa verdadeiramente a ânsia de ser capaz de realizar o ato sexual.
Este é um desejo que surge nos primeiros anos da infância. Quando o adulto
relembra sua infância, esta parece-lhe como tendo sido uma época feliz, na qual
se gozava o momento e se encarava o futuro sem nenhum desejo; é por essa razão
que ele inveja as crianças. No entanto, se as próprias crianças nos pudessem
contar a sua história nessa época, elas provavelmente o fariam de modo
diferente. Parece que a infância não é bem esse idílio bem-aventurado que
retrospectivamente destorcemos; ao contrário, as crianças durante toda a sua
infância sentem-se fustigadas pelo desejo de crescer e de fazer o que fazem os
grandes. Este desejo reflete-se em todas as brincadeiras. Sempre que as
crianças sentem, no curso de suas explorações sexuais, que, nesse terreno tão
misterioso e tão importante para elas, existe alguma coisa maravilhosa
permitida aos adultos, mas que elas estão proibidas de conhecer e de fazer,
sentem um desejo violento de ser capazes de fazê-lo e sonham-no sob a forma de
voar, ou preparam este disfarce de seu desejo para ser usado mais tarde em seus
sonhos de voar. Assim, a aviação, que em nossos dias está finalmente conseguindo
realizar esse objetivo, tem também suas raízes eróticas infantis.
Ao
admitir que desde sua infância sentia-se ligado de maneira especial e pessoal
ao problema do vôo, Leonardo confirma que as suas pesquisas infantis eram
dirigidas para questões sexuais; e era isso exatamente o que esperávamos, de
acordo com a investigação que fizemos sobre crianças de nossa época. Pelo menos
esse problema escapara à repressão que mais tarde o afastaria da sexualidade.
Com ligeiras variantes em seus significados, o mesmo assunto continuou a
interessá-lo, desde os anos de sua infância até a época de sua plena maturidade
intelectual; e é muito possível que não tivesse conseguido a destreza que
desejava, quer no sentido sexual primário, quer no sentido mecânico, e que
permaneceu frustrado em ambos os desejos.
Na
verdade, o grande Leonardo permaneceu como uma criança durante toda a vida, sob
diversos aspectos; diz-se que todos os grandes homens conservam algo de
infantil. Mesmo quando adulto, continuava ele a brincar, o que constituiu mais
um motivo por que freqüentemente pareceu estranho e incompreensível para seus
contemporâneos. A nós não satisfaz, porém, saber que construía os mais
complicados brinquedos mecânicos, que exibia em festejos da corte e recepções
cerimoniosas, pois relutamos em conceber o artista usando o seu talento em
coisas tão sem importância. No entanto, ele não parecia aborrecer-se em gastar
assim o seu tempo pois Vasari conta-nos que fazia essas coisas mesmo sem
receber encomendas: `Quando estava lá (em Roma) pegou um pedaço de cera e com
ele modelou bichos muito delicados, que enchia de ar; quando soprava, eles
voavam e quando o ar escapava, caíam no chão. Para um lagarto estranho, que o
vinhateiro de Belvedere encontrou, fez umas asas tiradas da pele de outros
lagartos e encheu-as com mercúrio, de maneira que elas se agitavam e tremiam
quando o lagarto caminhava. Em seguida, fez-lhe uns olhos, uma barba e chifres,
domesticou-o e o guardou numa caixa, para com ele assustar todos os seus
amigos’. Tais habilidades muitas vezes serviam para exprimir pensamentos mais
sérios. `Algumas vezes limpava os intestinos de um carneiro tão cuidadosamente
que poderiam depois caber na concha de sua mão. Levava-os, então, para um
grande quarto, ajustava-os a um fole de ferreiro situado numa sala contígua e
os enchia, a ponto de virem a ocupar a sala inteira, assim forçando as pessoas
que lá estavam a se refugiarem num canto. Dessa forma, ele mostrava como se
tornavam transparentes à medida que se enchiam de ar; e pelo fato de que a
princípio eles ocupavam pouco espaço, e que gradualmente espalhavam-se pela
sala inteira, ele os comparava ao gênio.’ O mesmo prazer brincalhão de esconder
coisas, fazendo-as depois reaparecer sob os mais engenhosos disfarces,
encontra-se em suas fábulas e adivinhações. Estas últimas eram feitas sob a
forma de `profecias’: quase todas eram ricas em idéias mas notoriamente
desprovidas de espirituosidade.
Os
jogos e brincadeiras com que Leonardo ocupava sua imaginação, em alguns casos,
levaram os seus biógrafos, que não lhe compreendiam este lado do caráter, a
interpretá-lo erroneamente. Nos manuscritos milaneses de Leonardo, existem, por
exemplo, alguns rascunhos de cartas para o `Diodario de Sorio` (Síria),
Vice-rei do Sagrado Sultão da Babilônia’, nas quais Leonardo se apresenta como
sendo um engenheiro enviado àquelas regiões orientais para a execução de
determinados trabalhos; nelas defende-se da acusação de preguiça; fornece
algumas descrições geográficas de cidades e montanhas, e conclui com o relato
de um fenômeno da natureza que teria acontecido quando lá se encontrava.
Em
1883, J. P. Richter tentou provar com esses documentos que Leonardo havia
realmente feito todas essas observações quando em viagem a serviço do Sultão do
Egito, e até mesmo adotara a religião maometana, quando no Oriente. Segundo
ele, a visita deu-se antes de 1843 - isto é, antes de ter-se instalado na corte
do Duque de Milão. Mas a argúcia de outros autores facilmente reconheceu a
evidência do que a suposta viagem de Leonardo ao Oriente realmente significava
- uma produção imaginária do jovem artista, criada para seu próprio
divertimento e na qual ele encontrou expressão para um desejo de conhecer o
mundo e enfrentar aventuras.
Outro
provável exemplo de criação de sua imaginação encontra-se na `Academia
Vincina’, que chegou a ser admitida devido a existência de cinco ou seis
emblemas, com motivos laboriosamente entrelaçados, ostentando o nome da
Academia. Vasari menciona esses desenhos mas não faz referência à Academia.
Müntz, que reproduziu um desses emblemas na capa de seu extenso trabalho sobre
Leonardo, é um dos poucos que acredita na realidade de uma `Academia Vinciana’.
É
provável que o instinto brincalhão de Leonardo tenha desaparecido nos seus anos
de maturidade, e que encontrasse derivativo na atividade de pesquisa que
representou o último e mais alto nível de expansão de sua personalidade. A sua
longa duração, no entanto, nos ensina como lentamente o indivíduo se desliga de
sua infância, se nos dias infantis desfrutou a maior felicidade erótica, coisa
nunca mais conseguida.
VI
Seria
fútil tentar negar que os leitores de hoje não apreciam a patografia. Eles
encobrem sua aversão alegando que a investigação patográfica de um grande homem
jamais conduz à compreensão de sua importância e de seus feitos, e que,
portanto, constitui uma impertinência sem sentido estudar nele aspectos que
poderiam ser facilmente encontrados em qualquer outra pessoa. Mas esta crítica
é de tal maneira injusta que só poderá ser compreendida se a tomamos como um
pretexto ou uma desculpa. A patografia não tem como finalidade tornar
inteligíveis os feitos dos grandes homens; e seguramente ninguém poderá ser
censurado por não realizar algo que jamais prometeu. Os verdadeiros motivos
para essa oposição são diferentes. Podemos descobri-los se nos lembrarmos de
que os biógrafos se fixam em seus livros de uma maneira toda especial. Muitas
vezes escolhem o herói como assunto de seu estudo porque - segundo razões de
sua vida emocional pessoal - desde o começo sentiram por ele uma afeição
especial. Dedicam suas energias a um trabalho de idealização, destinado a
incluir o grande homem na série de seus modelos infantis - revivendo neles,
talvez, a idéia infantil que faziam de seu pai. Para satisfazer este desejo,
eliminam até as características fisionômicas de sua personagem; apagam as
marcas das lutas de sua vida, com resistências internas e externas, e nela não
toleram nenhum vestígio de fraqueza ou imperfeições humanas. Apresentam-nos,
assim, uma figura ideal, fria, estranha, em vez de uma pessoa humana com a qual
nos pudéssemos sentir remotamente relacionados. Isto é lastimável, pois assim
sacrificam a verdade em benefício de uma ilusão, e por causa de suas fantasias
infantis abandonam a oportunidade de penetrar nos mais fascinantes segredos da
natureza humana.
O
próprio Leonardo, com seu amor à verdade e sua sede de conhecimento, não
desencorajaria qualquer tentativa de descobrir o que determinava seu
desenvolvimento mental e intelectual, tomando como ponto de partida as
peculiaridades triviais e os enigmas de sua natureza. Nós o homenageamos quando
dele aprendemos algo. Em nada ficará diminuída sua grandeza ao fazermos um
estudo dos sacrifícios que lhe custou o desenvolvimento a partir de sua
infância, e se juntarmos os fatores que o marcaram com o estigma trágico do
fracasso.
Devemos
assinalar insistentemente que nunca classificamos Leonardo como um neurótico ou
um `doente dos nervos’, conforme a denominação usual imprópria. Qualquer um que
proteste contra o fato de ousarmos examiná-lo sob a luz dos conhecimentos
adquiridos no campo da patologia ainda se estará apegando aos preconceito que
nós já abandonamos. Não mais consideramos que a saúde e a doença, ou que os
normais e os neuróticos se diferenciem tanto uns dos outros e que traços
neuróticos devem necessariamente ser tomados como sendo prova de uma
inferioridade geral. Hoje em dia, sabemos que os sintomas neuróticos são
estruturas que funcionam como substitutos para algumas conseqüências de
repressão, à qual devemos submeter-nos no curso de nosso desenvolvimento, desde
a criança ao ser humano civilizado. Sabemos, também, que todos nós produzimos
essas estruturas substitutivas e que somente o seu número, intensidade e
distribuição nos poderá justificar na utilização do conceito prático de doença
e inferir a presença de uma inferioridade constitucional. Partindo das
indicações escassas que temos sobre a personalidade de Leonardo, estamos
inclinados a classificá-lo como próximo ao tipo de neurótico que descrevemos
como `obsessivo’; e poderíamos comparar suas pesquisas à `meditação obsessiva’
dos neuróticos e suas inibições como aquilo que chamamos de `abulias’.
O
objetivo de nosso trabalho foi explicar as inibições na vida sexual e na
atividade artística de Leonardo. Tendo isso em vista, podemos resumir o que
conseguimos descobrir sobre o curso de seu desenvolvimento psíquico.
Não
podemos conhecer direito as circunstâncias de sua hereditariedade; verificamos,
por outro lado, que as circunstâncias acidentais de sua infância tiveram sobre
ele um efeito profundo e perturbador. A sua origem ilegítima privou-o da
influência do pai, talvez até os cinco anos, e deixou-o entregue à carinhosa
sedução de uma mãe para quem ele talvez fosse o único consolo. Depois que os
seus beijos lhe despertaram precocemente a madureza sexual, deve ter
provavelmente atravessado uma fase de atividade sexual infantil da qual uma
única manifestação foi definitivamente comprovada - a intensidade de suas
pesquisas sexuais infantis. O instinto de ver e o de saber foram os mais
fortemente excitados pelas impressões mais remotas de sua infância; à zona
erógena da boca foi dava uma ênfase da qual nunca mais se libertou. Por sua
conduta posterior, em direção oposta, assim como sua simpatia exagerada pelos
animais podemos concluir pela existência de fortes indícios de traços sádicos
naquele período de sua infância.
Uma
poderosa onda de repressão pôs fim a esse excesso infantil e determinou as
disposições que se deveriam manifestar nos anos da puberdade. O resultado mais
evidente da transformação foi o afastamento de toda atividade sexual grosseira.
Leonardo estava capacitado para viver em abstinência e dar a impressão de ser
uma criatura assexuada. Quando ondas de excitações da puberdade chegaram ao
adolescente, elas não o molestaram forçando-o a procurar formações
substitutivas custosas e prejudiciais. Devido à sua tendência muito precoce
para a curiosidade sexual, a maior parte das necessidades de seu instinto
sexual puderam ser sublimadas numa ânsia geral de saber, escapando assim à
repressão. Uma parte muito menor de sua libido continuou orientada para fins
sexuais e representa a atrofiada vida sexual do adulto. Porque o amor que tinha
pela mãe foi reprimido, esta parte foi levada a tomar uma atitude homossexual e
manifestou-se no amor ideal por rapazes. A fixação em sua mãe e nas felizes
lembranças de suas relações com ela continuou preservada no inconsciente,
permanecendo, porém, inativa por algum tempo. Desse modo, a repressão, a
fixação e a sublimação desempenharam sua parte absorvendo as contribuições do
instinto sexual para a vida mental de Leonardo.
Leonardo
surge da obscuridade de sua infância como artista, pintor e escultor devido a
um talento específico que foi reforçado, provavelmente, nos primeiros anos de
sua infância pelo precoce despertar do seu instinto escoptofílico. Gostaríamos
enormemente de descrever o modo pelo qual a atividade artística se origina nos
instintos primitivos da mente, se não fosse aqui, justamente, que falham nossas
capacidades. Devemos contentar-nos em enfatizar o fato de que dificilmente se
pode duvidar - de que a criação do artista proporciona, também, uma válvula de
escape para seu desejo sexual; e no caso de Leonardo podemos ver, segundo a
informação de Vasari [ver em [1]] que cabeças de mulheres sorridentes e de
lindos rapazes - em outras palavras, a representação de seus objetos sexuais -
eram freqüentes em suas primeiras tentativas artísticas. No verdor de sua
mocidade, Leonardo parece trabalhar sem inibição. Assim como tomava seu pai
como modelo para a conduta exterior de sua vida, também atravessou um período
de masculina força criadora e produção artística quando um destino feliz o fez
encontrar, em Milão, um pai substituto na figura do duque Ludovico Moro. Mas
logo encontramos a confirmação de nossa experiência, isto é, que a repressão
quase total de uma vida sexual real não oferece as condições mais favoráveis
para o exercício das tendências sexuais sublimadas. O padrão imposto pela vida
sexual termina por se impor. Sua atividade e sua capacidade de tomar rápidas
decisões começam a falhar; sua tendência à indecisão e à protelação se fazem
sentir como elemento perturbador na `Última Ceia’ e, influenciando sua técnica,
tiveram um efeito decisivo no destino daquela grande obra. Lentamente
desenvolveu-se nele um processo somente comparável às regressões nos
neuróticos. O desenvolvimento que o levou a tornar-se um artista ao atingir a
puberdade cedeu lugar ao processo que o tornou pesquisador e que tem suas determinantes
na primeira infância. A segunda sublimação do seu instinto erótico cedeu lugar
à sublimação original, cuja forma tinha sido preparada por ocasião da primeira
repressão. Tornou-se um pesquisador, a princípio a serviço de sua arte, porém,
mais tarde, independentemente dela e mesmo dela se afastando. Com a perda de
seu patrono, substituto de seu pai, e com as sombras que, progressivamente, lhe
marcavam a vida, esta substituição regressiva assumiu proporções cada vez
maiores. Tornou-se `impacientissimo al pennelo‘ conforme nos conta um
correspondente da condessa Isabella d’Este, que desejava ardentemente possuir
um quado seu. Seu passado infantil passou a dominá-lo. Mas a pesquisa, que toma
agora o lugar da criação artística, parece ter contido alguns traços que
caracterizam a atividade de impulsos inconscientes; insaciabilidade, rigidez de
comportamento e falta de capacidade para adaptar-se às circunstâncias reais.
Ao
atingir o ápice de sua vida, quando ingressava na casa dos cinqüenta - época em
que as características sexuais das mulheres já sofreram a involução, enquanto
nos homens a libido, com freqüência, apresenta um enérgico surto - sofreu ele
uma nova transformação. Camadas ainda mais profundas de seu conteúdo anímico
tornaram-se mais uma vez ativas; mas esta nova regressão veio beneficiar a sua
arte que se encontrava num processo de atrofiamento. Encontrou a mulher que lhe
despertou a lembrança do sorriso feliz e sensual de sua mãe; e, influenciado
por eta lembrança reaguçada, voltou a encontrar o estímulo que o guiava no
princípio de suas tentativas artísticas, na época em que retratou mulheres
sorridentes. Pintou a Mona Lisa, a `Sant’Ana com Dois Outros’ e a série de
retratos misteriosos caracterizados pelo sorriso enigmático. Com a ajuda do mais
antigo de todos os seus impulsos eróticos goza o triunfo de, uma vez mais,
dominar a inibição na sua arte. Este último desenvolvimento vai-se tornando
impreciso para nós, com as sombras da velhice que se aproxima. Antes disso, seu
intelecto se elevara até o mais alto grau de realização formulando uma
concepção do mundo que de muito ultrapassou a sua época.
Nos
capítulos anteriores, já mostrei o que pode justificar este retrato do curso do
desenvolvimento de Leonardo - propondo estas subdivisões de sua vida e
explicando, dessa forma, sua vacilação entre a arte e a ciência. Se as
afirmativas que fiz provocaram críticas, mesmo de amigos e conhecedores da
psicanálise, de ter eu apenas escrito uma nova psicanalítica, responderei que
jamais superestimei a certeza desses resultados. Como tantos outros, sucumbi à
atração desse grande e misterioso homem, em cuja natureza podemos entrever
poderosas paixões instintivas que, no entanto, somente se podem exprimir de
modo tão impreciso.
Seja
qual for a verdade sobre a vida de Leonardo, não podemos abandonar nossa
tentativa de encontrar uma explicação psicanalítica antes de completarmos uma
outra tarefa. Devemos fixar, de modo geral, os limites do que a psicanálise
pode conseguir no campo da biografia: de outro modo, todo esclarecimento que
não for logo comprovado será considerado como um fracasso nosso. O material de
que dispõe a psicanálise para uma pesquisa consta de dados da história da vida
de uma pessoa; de um lado as circunstâncias acidentais e as influências do meio
e, do outro lado, as reações conhecidas do indivíduo. Baseada em seu
conhecimento dos mecanismos psíquicos, propõe-se, então, estabelecer uma base
dinâmica para a sua natureza, fundamentada na intensidade de suas reações, e
desvendar as forças motivadoras originais de sua mente, assim como as suas
transformações e desenvolvimentos futuros. Se isso tem sucesso, o comportamento
de uma personalidade no curso de sua vida é explicado em termos da ação
conjugada da constituição e do destino, de forças internas e poderes externos.
Quando tal estudo não fornece resultados indubitáveis - e talvez suceda assim
no caso de Leonardo - a culpa não está nos métodos falhos e inadequados da
psicanálise, mas na incerteza e na natureza fragmentária do material com ele
relacionado, e que a tradição nos legou. Portanto, somente o autor deverá ser
considerado responsável pelo fracasso, por ter obrigado a psicanálise a
exprimir sua opinião abalizada, apoiando-se em material tão insuficiente.
Ainda
que o material histórico de que dispomos fosse muito abundante e os mecanismos
psíquicos pudessem ser usados com a máxima segurança, existem dois pontos
importantes onde uma pesquisa psicanalítica não nos consegue explicar por que
razão é tão inevitável que a personagem estudada tenha seguido exatamente essa
direção e não outra qualquer. No caso de Leonardo, tivemos de sustentar o ponto
de vista de que o acaso de sua origem ilegítima e a ternura exagerada de sua
mãe tiveram influência decisiva na formação de seu caráter e na sorte de seu destino,
pois a repressão sexual que se estabeleceu depois dessa fase de sua infância
levou-o a sublimar sua libido na ânsia de saber e estabelecer sua inatividade
sexual para o resto de sua vida. Mas esta repressão após as primeiras
satisfações eróticas da infância não tinha necessariamente de se estabelecer;
em outra pessoa talvez não tivesse acontecido, ou talvez tivesse atingido
proporções muito menores. Temos de reconhecer aqui uma margem de liberdade que
não pode mais ser resolvida pela psicanálise. Assim, também, não podemos
afirmar que a conseqüência dessa onda de repressão tivesse sido a única
possível. É provável que uma outra pessoa não tivesse conseguido livrar da
repressão a maior parte da sua libido sublimando-a numa sede de conhecimentos;
sob as mesmas influências, teria sofrido perturbação permanente de sua
atividade intelectual ou adquirido uma disposição incoercível para a neurose
obsessiva. Deixamos, portanto, estas duas características de Leonardo que não
podem ser explicadas pela psicanálise: sua tendência muito especial para a
repressão dos instintos e sua extraordinária capacidade para sublimar os
instintos primitivos.
Os
instintos e suas transformações constituem o limite do que a psicanálise pode
discernir; daí em diante cede lugar à investigação da biologia. Somos obrigados
a procurar a fonte da tendência à repressão e a capacidade para a sublimação
nos fundamentos orgânicos do caráter, sobre o qual se vem erigir posteriormente
a estrutura mental. Já que o talento artístico e a capacidade estão intimamente
ligados à sublimação, temos de admitir que a natureza da função artística
também não pode ser explicada através da psicanálise. A tendência da pesquisa
biológica, hoje em dia, é explicar as principais características orgânicas de
uma pessoa, como o resultado da mistura das disposições masculina e feminina,
baseada em substâncias [químicas]. A beleza física de Leonardo e o fato de ser
canhoto poderão ser mencionadas em apoio a este ponto de vista. Não
abandonaremos, no entanto, o campo da pesquisa puramente psicológica. Nosso
objetivo continua a ser demonstrar a relação que existe, seguindo o caminho da
atividade instintiva, entre as experiências externas de um indivíduo e suas
reações. Mesmo que a psicanálise não esclareça o poder artístico de Leonardo,
pelo menos torna, para nós, mais compreensíveis suas manifestações e suas
limitações. Parece, em todo caso, que somente um homem que tivesse passado
pelas experiências infantis de Leonardo poderia ter pintado a Mona Lisa e a
Sant’Ana, ter acarretado um destino tão melancólico para suas obras e ter
embarcado numa carreira tão extraordinária de cientista, como se a chave para
todas as suas realizações e fracassos estivesse escondida na sua fantasia
infantil sobre o abutre.
Mas
será que não devemos fazer objeções aos achados de uma investigação que atribui
a circunstâncias acidentais, referentes à sua constelação parental, uma
influência tão decisiva no destino de uma pessoa? O que, por exemplo, fez com
que o destino de Leonardo viesse a depender de sua origem ilegítima e da
esterilidade de sua primeira madrasta, Donna Albiera? Creio que ninguém terá o
direito de fazê-lo. Se considerarmos que o acaso não pode determinar nosso
destino, será apenas um retorno ao ponto de vista religioso sobre o Universo,
que o próprio Leonardo estava a ponto de superar quando escreveu que o sol não
se move [ver em [1]]. Sentimo-nos naturalmente decepcionados por ver que um
Deus justo e uma providência bondosa não nos protegem melhor contra tais
influências durante o período mais vulnerável de nossas vidas. Ao mesmo tempo,
estamos sempre demasiadamente prontos a esquecer que, de fato, o que influi em
nossa vida é sempre o acaso, desde nossa gênese a partir do encontro de um
espermatozóide com um óvulo - acaso que, no entanto, participa das leis e
necessidades da natureza, faltando-lhe apenas qualquer ligação com nossos
desejos e ilusões. A distribuição dos fatores determinantes de nossa vida entre
as `necessidades’ de nossa constituição e o `acaso’ de nossa infância pode ser
ainda incerta em seus detalhes; mas não será mais possível duvidar precisamente
da importância dos primeiros anos de nossa infância. Nós todos ainda sentimos
muito pouco respeito pela natureza, que (nas palavras obscuras de Leonardo, que
lembram o Hamlet) `está cheia de inúmeras razões [`ragioni’] que nunca penetram
a experiência.’
Cada
um de nós, seres humanos, corresponde a uma dessas inúmeras experimentações por
meio das quais as `ragioni’ da natureza são compelidas a compartilhar a
experiência.
AS
PERSPECTIVAS FUTURAS DA TERAPÊUTICA PSICANALÍTICA (1910)
DIE ZÜKNFTIGEN CHANCEN DER PSYCHOANALYTISCHEN THERAPIE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1910 Zbl. Psychoan., 1 (1-2), 1-9.
1913 S.K.S.N., 3, 288-298. (2ª
ed. 1921.)
1924 Technik und Metapsychol.,
25-36.
1925 G.S., 6, 25-36.
1943 G.W., 8, 104-115.
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
`The Future Chances of Psychoanalytic Therapy’
1912 S.P.H. (2ª ed.), 207-215.
(Trad. A. A. Brill.) (3ª ed. 1920.)
`The Future Prospects of Psycho-Analytic Therapy’
1924 C.P., 2, 285-296. (Trad.
Joan Riviere.)
A
presente tradução inglesa baseia-se na publicada em 1924.
Este
trabalho foi proferido em forma de comunicação para a abertura do Segundo
Congresso de Psicanálise, realizado em Nurembergue, em 30 e 31 de março de
1910. Como uma visão geral da posição contemporânea da psicanálise, pode-se
compará-lo com uma conferência similar `Lines of Advance in Psycho-Analytic
Therapy’ (Linhas de Desenvolvimento da Terapêutica Psicanalítica) (1919a) proferida
por Freud oito anos depois no Congresso de Budapeste. Em especial, a segunda
parte do presente trabalho, que trata da técnica, prefigura a terapia `ativa’
que constituiu o tema principal do último trabalho.
NOTA DO EDITOR BRASILEIRO
A
presente tradução brasileira é de autoria de David Mussa. Revisão geral e
técnica de Jayme Salomão (Membro-Associado da Sociedade Brasileira de
Psicanálise do Rio de Janeiro).
AS PERSPECTIVAS FUTURAS DA TERAPÊUTICA PSICANALÍTICA
SENHORES,
- De vez que os objetivos para os quais nos reunimos aqui, hoje, são
eminentemente práticos, escolherei para minha conferência introdutória um tema
clínico e solicito-lhes o interesse, não científico, mas médico. Posso imaginar
seus prováveis pontos de vista sobre o resultado de nossa terapia e presumo que
a maioria dos senhores já passou pelos dois estágios que atravessam todos os
principiantes, o do entusiasmo pelo aumento inesperado de nossas façanhas
terapêuticas e o da depressão pela magnitude das dificuldades que impedem nossos
esforços. Qualquer que seja, no entanto, o grau de desenvolvimento em que cada
um dos senhores possa encontrar-se, é minha intenção, hoje, mostrar-lhes que,
de nenhuma maneira, chegamos ao final de nossos recursos no combate às neuroses
e que podemos esperar, em pouco tempo, melhoria substancial nas nossas
perspectivas terapêuticas.
Penso
que este reforço virá de três direções:
(1)
do processo interno,
(2)
do aumento da autoridade; e
(3)
da eficiência geral de nosso trabalho.
(1)
Sob `progresso interno’ quero dizer os avanços: (a) em nosso conhecimento
analítico, (b) em nossa técnica.
(a)
Avanços em nosso conhecimento. Na verdade, estamos ainda muito longe de saber
tudo o que se requer para o conhecimento dos inconsciente de nossos doentes. É
evidente que cada avanço em nosso conhecimento significa um acréscimo de nosso
poder terapêutico. Na medida em que nada compreendemos, nada realizamos; quanto
mais compreendermos, mais alcançaremos. No início, o tratamento analítico era
inexorável e exaustivo. O doente tinha de dizer tudo de si e a atividade do
médico consistia em pressioná-lo, incessantemente. As coisas, hoje, possuem
atmosfera mais cordial. O tratamento compõe-se de duas partes - o que o médico
infere e diz ao doente, e o que o doente elabora de quanto ouviu. O mecanismo
de nosso auxílio é fácil de entender; damos ao doente a idéia antecipadora
consciente [a idéia do que ele espera encontrar] e, então, ele acha a idéia
inconsciente reprimida, em si mesmo, no fundamento de sua similaridade com a
idéia antecipadora. É esta a ajuda intelectual que lhe torna mais fácil superar
as resistências entre consciente e inconsciente. A propósito, devo salientar
que este não é o único mecanismo de que se faz uso no tratamento analítico; os
senhores todos conhecem aquele bem mais poderoso que repousa no emprego da
`transferência’. E em minha intenção, em futuro próximo, tratar desses diversos
fatores, que são tão importantes para a compreensão do tratamento, em uma
Allgemeine Methodik der Psychoanalyse. E, além disso, ao falar-lhes, não
preciso refutar a objeção de que o valor indicativo que sustenta a correção de
nossas hipóteses se obscureça, em nosso tratamento, tal como hoje o praticamos;
os senhores não devem esquecer-se de que se pode encontrar essa evidência em outro
lugar e de que se pode realizar um procedimento terapêutico da mesma forma que
uma investigação teórica.
Permitam-me,
agora, tocar em um ou dois setores em que novas coisas temos para aprender e em
que, de fato, novas coisas devemos descobrir, a cada dia. Há, acima de tudo, o
setor do simbolismo nos sonhos e no inconsciente - tema ardentemente
contestado, como os senhores sabem. Não é pequeno o mérito de nosso colega,
Wilhelm Stekel, que, imperturbado por todas as objeções levantadas por nossos
opositores, empreendeu um estudo dos símbolos oníricos. Há ainda, por certo,
muito a aprender aqui; a minha Interpretation of Dreams (A Interpretação de
Sonhos), escrita em 1899, aguarda importante ampliação das pesquisas no
simbolismo.
Direi
algumas palavras acerca de um dos símbolos que se reconheceram recentemente.
Ouvi dizer, pouco tempo atrás, que um psicólogo, cujos pontos de vista eram
algo diferentes dos nossos sonhos, salientara a um de nós, que, conquanto tudo
o que se disse e se fez, sem dúvida exageramos a significação sexual oculta dos
sonhos: o seu próprio sonho mais comum era o de subir escadas e, por certo, não
poderia haver nada de sexual naquilo. Pusemo-nos alerta no tocante a essa
objeção e começamos a voltar nossa atenção para o aspecto dos degraus, escadas
e escadas de mão nos sonhos e ficamos logo em posição de mostrar que as escadas
(e coisas análogas) eram, inquestionavelmente, símbolos da cópula. Não é
difícil descobrir a base da comparação: chegamos ao topo numa sucessão de
movimentos rítmicos e com crescente perda de fôlego e, depois, com alguns
saltos rápidos podemos crescer de novo. Assim, o modelo rítmico da cópula é
reproduzido no subir as escadas. Nem devemos omitir em trazer à evidência o uso
lingüístico. Ele nos revela que `trepar’ [em alemão `steigen‘] se usa como
equivalente direto do ato sexual. Falamos de um homem como um `Steiger‘ [um `trepador’]
e de `nachsteigen‘ [`correr atrás de’, literalmente `trepar’]. Em francês os
degraus de uma escada chamam-se `marches‘ e `un vieux marcheur tem o mesmo
sentido que o nosso `ein alter Steiger‘ [`um velho devasso’]. O material do
sonho de onde tais simbolismos, recentemente reconhecidos, foram extraídos,
ser-lhes-á apresentado, no devido tempo, pela comissão que estamos formando
para o estudo coletivo do simbolismo. Os senhores encontrarão algumas
observações sobre outro símbolo interessante, o do `salvamento’ e suas
alterações em significação, no segundo volume do nosso Jahrbuch (Anuário). Mas,
devo interromper aqui ou não chegarei aos meus outros objetivos.
Cada
um dos senhores pode saber, de sua própria experiência, que atitude bastante
diferente terá para um novo caso de enfermidade, quando certa vez se apoderou,
profundamente, da estrutura de alguns casos característicos. Imaginem que
tenhamos chegado a uma fórmula sucinta dos fatores que, comumente, participam
da constituição das diversas formas de neurose, como aconteceu, até aqui, na
estruturação dos sintomas histéricos, e considerem como isso pode estabelecer,
firmemente, nosso julgamento prognóstico! Assim como um obstetra pode dizer, ao
examinar a placenta, se ela foi completamente expelida ou se ainda permanecem
seus fragmentos nocivos, do mesmo modo nós, independentemente do resultado e do
estado do paciente, no momento, lograremos saber se nosso trabalho foi
bem-sucedido ou se teremos de esperar recaídas e novas crises de enfermidade.
(b)
Apressar-me-ei em torno das inovações no setor da técnica, onde, na verdade,
quase tudo ainda aguarda a posição final e muita coisa, somente agora, começa a
esclarecer-se. Há, hoje, dois objetivos na técnica psicanalítica: poupar o
esforço do médico e dar ao paciente o mais irrestrito acesso ao seu
inconsciente. Como sabem, nossa técnica passou por uma transformação
fundamental. À época do tratamento catártico, o que almejávamos era a
elucidação dos sintomas; afastamo-nos, depois, dos sintomas e devotamo-nos, em
vez disso, a desvendar os `complexos’, para usar uma palavra que Jung tornou
indispensável; agora, no entanto, nosso trabalho objetiva encontrar e
sobrepujar, diretamente, as `resistências’, e podemos confiar em que venham à
luz, justificadamente, sem dificuldade, os complexos, tão logo se reconheçam e
se removam as resistências. Alguns dos senhores têm sentido, desde então, a
necessidade de que se possa fazer uma pesquisa dessas resistências e
classificá-las. Pedir-lhe-ei que examinem seu material e vejam se podem
confirmar a afirmação generalizada de que, nos pacientes masculinos, a maioria
das resistências importantes ao tratamento parecem derivar-se do complexo
paterno e expressar-se neles no medo ao pai, desobediência ao pai e desavença
do pai.
As
outras inovações na técnica relacionam-se com o próprio médico. Tornamo-nos
cientes da `contratransferência’, que, nele, surge como resultado da influência
do paciente sobre os seus sentimentos inconscientes e estamos quase inclinados
a insistir que ele reconhecerá a contratransferência, em si mesmo, e a
sobrepujará. Agora que um considerável número de pessoas está praticando a
psicanálise e, reciprocamente, trocando observações, notamos que nenhum
psicanalista avança além do quanto permitem seus próprios complexos e
resistências internas; e, em conseqüência, requeremos que ele deva iniciar sua
atividade por uma auto-análise e levá-la, de modo contínuo, cada vez mais
profundamente, enquanto esteja realizando suas observações sobre seus
pacientes. Qualquer um que falhe em produzir resultados numa auto-análise desse
tipo deve desistir, imediatamente, de qualquer idéia de tornar-se capaz de
tratar pacientes pela análise.
Estamos
chegando, agora, também, à opinião de que se deve modificar a técnica
psicanalítica, em certos setores, de acordo com a natureza da doença e das
tendências instintivas predominantes no paciente. Partimos do tratamento da
histeria de conversão; na histeria de angústia (fobias), devemos alterar, em
certa extensão, o nosso procedimento. Pois esses pacientes não podem expressar
o material necessário para resolver as suas fobias, uma vez que se sentem
protegidos por obedecer à situação que se estabeleceu. Não se pode ser
bem-sucedido, por certo, em persuadi-los a abandonar suas medidas protetoras e
a trabalhar, sob a influência da ansiedade, desde o início do tratamento.
Deve-se, portanto, auxiliá-los ao interpretar-lhes o inconsciente, até que
possam tomar uma decisão, sem a proteção de sua fobia e sem que se exponham a
sua ansiedade já grandemente mitigada. Somente depois de assim procederem, o
material torna-se acessível, e, uma vez dominado, conduz à solução da fobia. As
outras modificações da técnica, que ainda não me parecem maduras para exame,
serão requeridas no tratamento das neuroses obsessivas. Nessa conexão, surgem
muitas questões importantes, as quais, até aqui, não foram elucidadas: até que
ponto se deve permitir, durante o tratamento, certa satisfação dos instintos
que o paciente está combatendo e que diferença faz se esses impulsos são ativos
(sádicos) ou passivos (masoquistas), em sua natureza.
Espero
que os senhores tenham formado a impressão de que quando soubermos tudo quanto,
só agora, suspeitamos e realizarmos todas as melhorias na técnica, a que nos
conduz uma observação mais profunda dos pacientes, o nosso procedimento clínico
alcançará grau de precisão e certeza de sucesso que se hão de encontrar em todo
campo especializado da medicina.
(2)
Disse que muito se tinha de esperar do aumento em autoridade, que nos adviria,
na medida em que passa o tempo. Não necessito dizer-lhes muito sobre a
importância da autoridade. Poucas pessoas civilizadas, apenas, são capazes de
existir sem confiar em outras ou, até mesmo, de vir a ter uma opinião
independente. Os senhores não podem exagerar a intensidade de carência interior
de decisão das pessoas e de exigência de autoridade. O aumento extraordinário
das neuroses desde que decaiu o poder das religiões pode dar-lhes uma medida
disso. O empobrecimento do ego devido ao grande dispêndio de energia, na
repressão, exigido de cada indivíduo pela civilização, pode ser uma das
principais causas desse estado de coisas.
Até o
momento, essa autoridade, com seu enorme peso de sugestão, ficou contra nós.
Todos os nossos sucessos terapêuticos foram alcançados em face dessa sugestão:
é surpreendente que se tenham conseguido quaisquer sucessos em tais
circunstâncias. Não devo deixar que me levem a descrever minhas experiências
satisfatórias durante o período em que, sozinho, representava a psicanálise. Posso
dizer, apenas, que, quando assegurava a meus pacientes que sabia como
aliviar-lhes, permanentemente, os sofrimentos, olhavam em torno da minha
modesta sala, que refletia a ausência de fama e de título, e me consideravam
como possuidor de um sistema infalível numa casa de jogo, de quem as pessoas
dizem que, se pudesse fazer o que professa, pareceria bem diferente do que é.
Nem realmente era agradável realizar uma operação psíquica enquanto os colegas,
cujo dever seria o de assistir, se deliciassem, particularmente, em cuspir no
campo operatório, quando aos primeiros sinais de sangue, ou de agitação do
paciente, os seus parentes começassem por ameaçar o cirurgião. Uma operação,
por certo, se destina a produzir reações; em cirurgia, estamos acostumados a isso,
há muito tempo. As pessoas simplesmente não acreditavam em mim, como, até
mesmo, hoje em dia, não crêem muito em qualquer de nós. Sob tais condições, não
poucas tentativas destinavam-se ao fracasso. Para avaliar o aumento de nossas
perspectivas terapêuticas, quando recebermos o reconhecimento geral, os
senhores devem pensar na posição de um ginecologista, na Turquia e no Ocidente.
Na Turquia, tudo o que ele pode fazer é sentir o pulso de um braço, que se lhe
estende, através de um buraco na parede: e os alcances clínicos estão em
proporção com a inacessibilidade de seu objeto. Nossos adversários, no
Ocidente, querem permitir-nos mais ou menos o mesmo grau de acesso às mentes de
nossos pacientes. Mas, agora que a força da sugestão social impele as mulheres
doentes ao ginecologista, transformou-se ele no seu assistente e salvador.
Confio em que não dirão que o fato de a autoridade de sociedade, vindo em nossa
ajuda e aumentando tanto nossos êxitos, nada faria por provar a validez de
nossas hipóteses - argumentando do mesmo modo que os senhores, visto que se
supõe que a sugestão logre fazer qualquer coisa, os vossos sucessos seriam,
então, êxitos de sugestão e não de psicanálise. A sugestão social é favorável,
no presente, a tratar os pacientes nervosos pela hidropatia, dieta e
eletroterapia, mas isso não capacita que tais recursos possam vencer as
neuroses. O tempo há de mostrar se o tratamento psicanalítico pode realizar
mais.
Agora,
no entanto, devo, mais uma vez, arrefecer as expectativas dos senhores. A sociedade
não terá pressa em conferir-nos autoridade. Está determinada a oferecer-nos
resistência, porque adotamos em relação a ela uma atitude crítica;
assinalamos-lhe que ela própria desempenha papel importante em causar neuroses.
Da mesma maneira que fazemos de um indivíduo nosso inimigo pela descoberta do
que nele está reprimido, do mesmo modo a sociedade não pode responder com
simpatia a uma implacável exposição dos seus efeitos danosos e deficientes.
Porque destruímos ilusões, somo acusados de comprometer os ideais. Poderia
parecer, portanto, como se a condição de que espero tão grandes vantagens, para
as nossas perspectivas terapêuticas, jamais se preencherá. E, todavia, a
situação não é, no momento, tão desesperançosa quanto se poderia pensar. Embora
sejam poderosos os próprios interesses e emoções dos homens, não obstante o
intelecto também é um poder - um poder que se faz sentir não imediatamente, é
verdade, mas, sobretudo, seguramente, no fim. As mais ásperas verdades,
finalmente, são ouvidas e reconhecidas, depois que os interesses que se feriram
e as emoções que se instigaram tiveram exaurido a própria fúria. Tem sido
sempre assim, e as verdades indesejáveis, que nós, psicanalistas, temos de
dizer ao mundo, contarão com o mesmo destino. Apenas não acontecerá muito
depressa; devemos ser capazes de esperar.
(3)
Finalmente, tenho de explicar-lhes o que quero dizer com a `eficiência geral’
de nosso trabalho e como chego a nele ter esperanças. O que temos, aqui, é uma
constelação terapêutica bastante fora do comum, cuja semelhança talvez não se
encontre em qualquer outra parte, e que pode parecer-lhes estranha, a
princípio, até que os senhores reconheçam nela algo que a longo tempo lhes
tenha sido familiar. Naturalmente, os senhores sabem que as psiconeuroses são
satisfações substitutivas de algum instinto, cuja presença o indivíduo é
obrigado a negar a si e aos outras. Sua capacidade de existir depende dessa
distorção e da falta de reconhecimento. Quando o enigma que elas apresentam é
resolvido e a solução é aceita pelos pacientes, essas doenças cessam em ser
capazes de existir. Em medicina, quase nada há igual a isso, embora, em contos
de fadas, os senhores ouçam falar de espíritos maus, cujo poder se rompe, tão
logo possam dizer-lhes o próprio nome - o nome que eles guardaram em segredo.
Em
lugar de uma simples pessoa enferma, ponhamos a sociedade - padecendo como um
todo de neuroses, embora composta de membros doentes e sadios; e, em lugar da
aceitação individual, naquele caso, coloquemos, nesse, o reconhecimento geral.
Uma pequena reflexão lhes revelará, então, que tal substituição não pode
alterar, de modo algum, o resultado. O sucesso que o tratamento pode ter com o
indivíduo, deve ocorrer, igualmente, com a comunidade. As pessoas doentes não
serão capazes de deixar que as suas diversas neuroses se tornem conhecidas - a
sua ansiosa superternura que tem em mira ocultar-lhe o ódio, a sua agorafobia
que se relaciona com a ambição frustrada, as suas atitudes obsessivas que
representam auto-censuras por más intenções e precauções contra as mesmas - se
todos os seus parentes e cada estranho, dos quais desejam ocultar os seus
processos mentais, conheceram o significado geral de tais sintomas, e se eles
próprios souberem que, nas manifestações de sua doença, nada estão produzindo
que outra pessoa, imediatamente, não possa interpretar. O efeito, no entanto,
não se limitará ao encobrimento dos sintomas - o que, incidentalmente, é amiúde
impossível de conseguir porque essa necessidade de encobrimento destrói a vantagem
de ser doente. A revelação do segredo terá atacado, em seu ponto mais sensível,
a `equação etiológica’, da qual surgem as neuroses - terá tornado ilusória a
vantagem da doença; e, em conseqüência, o resultado final da situação
modificada, provocada pela indiscrição do médico, só pode ser o de que a
produção da doença será detida.
Se
essa esperança parece, aos senhores, utópica, lembrem-se de que os fenômenos
neuróticos já têm sido, de fato, dissipados, por esses meios, embora apenas em
exemplos bem isolados. Pensem sobre quão comuns costumavam ser, antigamente, as
alucinações da Virgem Maria entre as camponesas. Uma vez que tal fenômeno
trouxesse uma multidão de crentes e pudesse levar a que se construísse uma
capela, no lugar santo, o estado visionário dessas moças era inacessível a
influência. Hoje em dia, nosso próprio clero modificou sua atitude com relação
a tais coisas; permite que polícia e médicos examinem a visionária, e, agora,
apenas muito raramente, existem em aparições da Virgem.
Ou,
permitam-me examina esses desenvolvimentos, que tenho descrito como se tivessem
lugar no futuro, numa situação análoga que existe em escala menor e,
conseqüentemente, mais fácil de reconhecer. Suponhamos que certo número de
senhoras e cavalheiros, de bom convício social, tenham planejado fazer um
piquenique, em certo dia, numa hospedaria no campo. As senhoras combinaram,
entre si, que se uma delas desejasse satisfazer suas necessidades fisiológicas,
diria que iria colher flores. No entanto, uma pessoa maliciosa soube do segredo
e mandou imprimir no programa, que se fez circular por todo o grupo: `Pede-se
às senhoras que desejam retirar-se à toilette, que anunciem que vão colher
flores.’ Depois disso, por certo, nenhuma mulher pensará em aproveitar-se desse
pretexto florido, e, do mesmo modo, outras fórmulas similares que pudessem
estabelecer ficariam seriamente comprometidas. Qual será o resultado? As
senhoras admitirão, sem pejo, as suas necessidades fisiológicas e nenhum dos
homens objetará.
Retornemos
ao nosso caso mais sério. Certo número de pessoas, ao defrontar-se, em suas
vidas, com conflitos que constataram muito difíceis de resolver, fogem para a
neurose e, desse modo, retiram da doença vantagem inequívoca, embora, com o
tempo, acarrete bastante prejuízo. Que terão de fazer essas pessoas, se sua
fuga para a enfermidade for barrada pelas revelações indiscretas da
psicanálise? Terão de ser honestas, confessar quais os instintos que nelas
estão em atividade, em face do conflito, lutar por aquilo que desejam ou renunciar
ao mesmo; e a tolerância da sociedade, que está fadada a seguir-se, como
resultado do esclarecimento psicanalítico, ajudá-las-á em sua tarefa.
Lembremo-nos,
no entanto, de que nossa atitude perante a vida não deve ser a do fanático por
higiene ou terapia. Devemos admitir que a prevenção ideal de enfermidade
neuróticas, que temos em mente, não seria vantajosa para todos os indivíduos.
Um bom número daqueles que, hoje, fogem para a enfermidade não suportariam o
conflito, sob as condições que supomos, mas sim, sucumbiriam, rapidamente, ou
causariam prejuízo maior que a sua própria doença neurótica. As neuroses
possuem, de fato, sua função biológica, como um dispositivo protetor, e têm sua
justificação social: a `vantagem da doença’, que proporcionam, não é sempre uma
vantagem puramente subjetiva. Existe alguém entre os senhores que, alguma vez,
não examinou a causalidade da neurose, e não teve de admitir que esse era o
mais suave resultado possível da situação? E dever-se-iam fazer tais pesados
sacrifícios, a fim de erradicar as neuroses, em especial, quando o mundo está
cheio de outras misérias inevitáveis?
Devemos,
então, abandonar nossos esforços para explicar o significado oculto da neurose
como sendo, em última instância, perigoso para o indivíduo e nocivo para as
funções da sociedade? Devemos renunciar a retirar conclusões práticas de uma
parte da compreensão científica? Não; penso que, apesar disso, nosso dever
repousa noutra direção. A vantagem da enfermidade, que proporciona as neuroses
é, não obstante, no todo, e, finalmente, prejudicial aos indivíduos e,
igualmente, à sociedade. A infelicidade que nosso trabalho de esclarecimento
pode causar, atingirá, afinal, apenas alguns indivíduos. A modificação, para
uma atitude mais realista e respeitável, da parte da sociedade, não será
comparada, a preço bastante elevado, através desses sacrifícios. Acima de tudo,
porém, todas as energias que se consomem, hoje em dia, na produção de sintomas
neuróticos, que servem aos propósitos do mundo da fantasia, isolado da
realidade, ajudarão, mesmo que não possam ser postos de imediato em uso na
vida, a fortalecer o clamor pelas modificações, em nossa civilização, através
das quais, unicamente, podemos procurar o bem-estar das gerações futuras.
Desejaria,
portanto, deixá-los ir com a segurança de que, ao tratarem seus pacientes
psicanaliticamente, estarão cumprindo com o seu dever em mais de um sentido. Os
senhores não estarão trabalhando, apenas, a serviço da ciência, ao fazer uso de
uma única oportunidade, para descobrir os segredos da neuroses; estarão, não
apenas, dando aos seus pacientes o remédio mais eficaz para os seus
sofrimentos, de que dispõem hoje em dia; estarão contribuindo, com a sua
parcela, para o esclarecimento da comunidade, através do qual esperamos alcançar
a profilaxia mais radical, contra as perturbações neuróticas, ao longo do
caminho indireto da autoridade social.
A
SIGNIFICAÇÃO ANTITÉTICA DAS PALAVRAS PRIMITIVAS (1910)
ÜBER DEN GEGENSINN DER URWORTE
(a) EDIÇÕES EM ALEMÃO:
1910 Jb. psychoana., psychopath.
Forsch., 2, (1), 178-184.
1913 S.K.S.N., 3, 280-287. (2ª.ed. 1921.)
1924 G.S., 10, 221-228.
1943 G.W., 8, 214-221.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
“O
Sentido Antitético de Palavras Primitivas”
1925 C.P., 4, 184-191. (Trad.
de M. N. Searl.)
A
presente tradução inglesa com um título modificado, “A Significação Antitética
de Palavras Primitivas”, é uma nova tradução de Alan Tyson.
Conta-nos
Ernest Jones (1955, 347) que Freud tomou conhecimento do panfleto de Abel no
outono de 1909. Experimentou uma satisfação particular com a descoberta, como
se vê das muitas referências que a ela fez em seus escritos. Em 1911, por
exemplo, acrescentou uma nota de rodapé a respeito dela, em The Interpretation
of Dreams (A Interpretação de Sonhos) (1900a), ver em [1], e a resume com certa
extensão, em duas passagens de suas Introductory Lectures (Conferências
Introdutórias) (1916-17), nas Conferências XI e XV. O leitor deve ter em mente
o fato de que o panfleto de Abel foi publicado em 1884 e não seria surpresa se
algumas de suas descobertas não fossem aceitas por filólogos ulteriores. Isso é
principalmente verdade para seus comentários egiptológicos, que foram feitos
antes que Erman tivesse colocado a filologia egípcia, pela primeira vez, em base
científica. As citações de Abel que aqui se fazem foram traduzidas sem qualquer
modificação da ortografia de seus exemplos.
A SIGNIFICAÇÃO ANTITÉTICA DAS PALAVRAS PRIMITIVAS
EM
MINHA The Interpretation of Dreams (A Interpretação de Sonhos) fiz uma afirmação
acerca de uma das descobertas de meu trabalho analítico, que eu, naquela época,
não entendi. Repito-a aqui à guisa de prefácio a esta crítica:
`O
modo pelo qual os sonhos tratam a categoria de contrários e contradições é
bastante singular. Eles simplesmente a ignoram. O “não” parece não existir, no
que se refere aos sonhos. Eles mostram uma preferência particular para combinar
os contrários numa unidade ou para representá-los como uma e mesma coisa. Os
sonhos tomam, além disso, a liberdade de representar qualquer elemento, por seu
contrário de desejo; não há, assim, maneira de decidir, num primeiro relance,
se determinado elemento que se apresenta por seu contrário está presente nos
pensamentos do sonho como positivo ou negativo.’
Os
intérpretes de sonhos da antiguidade parecem ter feito uso mais extenso da
noção de que uma coisa num sonho pode significar seu oposto. Esta possibilidade
também tem sido de vez em quando reconhecida pelos modernos estudiosos de
sonhos, na medida em que admitem que os sonhos têm uma significação e podem ser
interpretados. Não acho que serei contraditado ao pressupor que todos aqueles
que me acompanharam no interpretar sonhos em bases científicas tenham
encontrado uma confirmação da assertiva acima citada.
Eu
não conseguia entender a tendência singular do trabalho do sonho para
desconhecer a negação e empregar os mesmos meios de representação para
expressar os contrários até que me aconteceu, por acaso, ler um trabalho do
filólogo Karl Abel, publicado em 1884, em panfleto separado e, no ano seguinte,
incluído nos Sprachwissenschaftliche Abhbandlungen [Ensaios Filológicos] do
autor. O assunto é de interesse suficiente para justificar que eu cite aqui o
texto completo das passagens cruciais do artigo de Abel (omitida, no entanto, a
maioria dos exemplos). Delas obtemos a informação surpreendente que o
comportamento do trabalho do sonho que acabei de descrever é idêntico a uma
peculiaridade das línguas mais antigas que conhecemos.
Depois
de acentuar a antiguidade da língua egípcia que deve ter-se desenvolvido muito
tempo antes das primeiras inscrições hieroglíficas, Abel continua (1884,4):
`Atualmente
na língua egípcia, esta relíquia única de um mundo primitivo, há um bom número
de palavras com duas significações, uma das quais é o oposto exato da outra.
Suponhamos, se é que se pode imaginar um exemplo tão evidente de absurdo, que
em alemão a palavra “forte” signifique ao mesmo tempo “forte” e “fraco”; que em
Berlim o substantivo “luz” se use para significar ao mesmo tempo “luz” e “escuridão”;
que um cidadão de Munique chame cerveja de “cerveja”, enquanto outro use a
mesma palavra para falar de água: nisto é que importaria o surpreendente
costume usado regularmente pelos antigos egípcios em sua linguagem. Como
incriminar-se alguém que, incrédulo, abane a cabeça?…’ (Omitem-se os exemplos.)
(Ibid.,
7): `Em vista destes e de muitos casos similares de significação antitética
(veja-se o Apêndice) está fora de dúvida que numa língua, pelo menos, havia um
grande número de palavras que designavam, ao mesmo tempo, uma coisa e seu
oposto. Por surpreendente que seja, estamos diante do fato e temos de
reconhecê-lo.’
O
autor prossegue, rejeitando uma explicação destas circunstâncias que sugere
podem acontecer, por acaso, que duas palavras tenham o mesmo som, e repudiando,
com igual firmeza, a tentativa de referi-la ao baixo nível de desenvolvimento
mental do Egito:
(Ibid.,
9): `Mas o Egito não tinha nada de terra do absurdo. Pelo contrário, foi um dos
berços do desenvolvimento da razão humana… Ele reconheceu uma moral pura e
digna e formulou uma grande parte dos Dez Mandamentos numa época em que os
povos em cujas mãos a civilização hoje repousa tinham o hábito de imolar
vítimas humanas em sacrifício a ídolos sedentos de sangue. Um povo que acendeu
a tocha da justiça e da cultura numa era tão sombria não pode por certo ter
sido completamente estúpido na linguagem e no pensamento de cada dia … Homens
que foram capazes de fazer o vidro e erguer e movimentar, por máquinas, blocos
imensos devem, pelo menos, ter possuído senso suficiente para não considerar
uma coisa como sendo simultaneamente ela e seu oposto. Como iremos então
conciliar isso com o fato de que os egípcios se permitiam uma linguagem tão
estranhamente contraditória?… que eles usassem dar um e mesmo veículo fonético
aos pensamentos mais reciprocamente desavindos, e usassem ligar numa espécie de
união indissolúvel coisas que estavam na mais forte oposição uma com a outra?
Antes
de tentar qualquer explicação, deve-se também mencionar um estágio ulterior
desse comportamento ininteligível da língua egípcia. `De todas as
excentricidades do vocabulário egípcio, talvez a característica mais
extraordinária seja que, excetuando inteiramente as palavras que aliam
significações antitéticas, ele possui outras palavras compostas em que dois
vocábulos de significações antitéticas se unem de modo a formar um composto que
tem a significação de um apenas de seus dois componentes. Assim, nesta
extraordinária língua há não só palavras significando igualmente “forte” ou
“fraco”, e “comandar” ou “obedecer”; mas há também compostos com “velho-jovem”,
“longe-perto”, “ligar-cortar”, “fora-dentro”… que, apesar de combinarem os
extremos de diferença, significam somente “jovem”, “perto”, “ligar” e “dentro”
respectivamente… Desse modo, nessas palavras compostas, conceitos
contraditórios se combinaram de modo inteiramente intencional, não de maneira a
produzirem um terceiro conceito, como às vezes acontece no chinês, mas apenas
de modo a usar o composto para exprimir a significação de uma de suas partes
contraditórias - uma parte que teria tido a mesma significação só por si…’
O
enigma é, no entanto, mais fácil de solucionar do que parece. Nossos conceitos devem
sua existência a comparações. `Se sempre houvesse luz, não seríamos capazes de
distinguir a luz da escuridão, e conseqüentemente não seríamos capazes de ter
nem o conceito de luz nem a palavra para ele…’ `É claro que tudo neste planeta
é relativo e tem uma existência independente apenas na medida em que se
diferencia quanto a suas relações com as outras coisas…’ `De vez que todo
conceito é dessa maneira o gêmeo de seu contrário, como poderia ele ser de
início pensado e como poderia ele ser comunicado a outras pessoas que tentavam
concebê-lo, senão pela medida do seu contrário…? (Ibid., 15): `De vez que o
conceito de força não se podia formar exceto com um contrário de fraqueza, a
palavra designando “forte” continha uma lembrança simultânea de “fraco”, como
coisa por meio da qual ele, de início, ganhou existência. Na realidade, esta
palavra não designava nem “forte” nem “fraco”, mas a relação e a diferença
entre os dois, que criou a ambos igualmente…’ `O homem não foi, de fato, capaz
de adquirir seus conceitos mais antigos e mais simples a não ser como os
contrários dos contrários, e só gradativamente aprendeu a separar os dois lados
de uma antítese e a pensar em um deles sem a comparação consciente com os
outros.
De
vez que a linguagem serve não só para expressar os próprios pensamentos, mas,
essencialmente, para comunicá-los a outrem, pode-se levantar a questão de como
foi que o `egípcio primitivo’ fez seu próximo entender `que pólo do conceito
geminado ele significava numa ocasião particular qualquer.’ Na linguagem
escrita, isso se fazia com o auxílio dos chamados sinais “determinativos” que,
colocados depois dos sinais alfabéticos, lhes atribuíam sua significação e não
eram para ser pronunciados. (Ibid., 18): `Se a palavra egípcia “ken” devia
significar “forte”, seu som, que fosse alfabeticamente escrito, seguia-se da
figura de um homem em pé, armado; se a mesma palavra tinha de expressar
“fraco”, as letras que representavam o som se seguiam de figura de um corcunda,
coxo. A maioria das outras palavras com duas significações similarmente e
acompanhavam de figuras explicativas.’ Abel acha que, no falar, a significação
desejada da palavra dita se indicava pelo gesto.
Segundo
Abel, é nas `raízes mais antigas’ que se vê ocorrerem as significações duplas
antitéticas. No curso subseqüente do desenvolvimento da linguagem, esta
ambigüidade desapareceu e, no Antigo Egito, pelo menos, todos os estágios
intermediários se podem acompanhar, até a não-ambigüidade dos vocabulários
modernos. `Uma palavra que originariamente comportava duas significações
separa-se, na linguagem ulterior, em duas palavras com significações
individuais, num processo pelo qual cada uma das duas significações opostas
sofre uma “redução” (modificação) fonética particular da raiz original.’ Assim,
por exemplo, nos hieróglifos, a palavra “ken”, “forte-fraco”, já se divide em
“ken, “forte” e “kan”, “fraco”. Em outras palavras, conceitos a que só se
poderia chegar por meio de uma antítese tornaram-se, no curso do tempo,
suficientemente familiares às mentes dos homens, possibilitando uma existência
independente, para cada uma de suas duas partes, e, em conseqüência, permitindo
a formação de um representante fonético separado para cada parte.’
Uma
prova da existência de significações primitivas contraditórias, que facilmente
se estabelece em egípcio, estende-se segundo Abel, também às línguas semita e
indo-européia. `Até que ponto isto pode acontecer em outros grupos lingüísticos
está por ver; pois, embora a antítese deva ter estado presente, de início, nas
mentes pensantes de cada raça, não precisou necessariamente ter-se tornado
reconhecível ou ter sido mantida por toda parte nas significações de palavras.’
Abel
em seguida chama a atenção para o fato de que o filósofo Bain, aparentemente
sem conhecimento de que o fenômeno de fato existia, sustentou essa dupla
significação de palavras sobre fundamentos puramente teóricos, como uma
necessidade lógica. A passagem em questão começa com estas frases:
`A
relatividade essencial de todo conhecimento, pensamento ou consciência, não se
pode mostrar a não ser na linguagem. Se tudo que podemos conhecer é visto como
transição de alguma outra coisa, toda experiência deve ter dois lados; e, ou
cada nome deve ter uma significação dupla, ou,então, para cada significação deve
haver dois nomes.’
Do
`Apêndice de Exemplos de Significações Antitéticas Egípcias, Indo-Germânicas e
Árabes’ selecionei alguns exemplos que podem impressionar mesmo aqueles de nós
que não somos especialistas em filologia. Em latim `altus‘ significa `alto’ e
`profundo’, `sacer‘ `sagrado’ e `maldito’; aqui por conseguinte temos a
antítese completa de significação sem qualquer modificação do som da palavra. A
alteração fonética para distinguir os contrários se ilustra por exemplos como
`clamare‘ (`gritar’) … `clam‘ (`suavemente’, `secretamente’); `siccus‘ (`seco’)
- `succus‘ (`suco’). Em alemão `Boden‘ (`sótão’ ou `solo’) ainda significa o
mais alto bem como o mais baixo da casa. Nosso `bös‘ (`mau’ em alemão) se casa
com a palavra `bass‘ (`melhor’ em alemão); em saxão antigo `bat‘ (`bom’)
corresponde ao inglês `bad‘ (`mau’) e o inglês `to lock‘ (`fechar’) ao alemão
`Lücke‘, `Loch’ (`vazio’, `buraco’). Podemos comparar o alemão `kleben‘
(`espetar’) com o inglês `to cleave‘ (no sentido de `cindir’); as palavras
alemãs `stumm‘ (`mudo’) com `Stimme‘ (`voz’), e assim por diante. Desse modo,
mesmo a derivação etimológica bastante risível de lucus a non lucendo teria em
si algum sentido.
Em
seu ensaio sobre `A Origem da Linguagem’ Abel (1885, 305) chama a atenção para
traços outros de antigas dificuldades do pensar. Mesmo hoje o homem inglês para
exprimir `ohne‘ (`sem’ em alemão) diz `without‘ (`mitohne isto é “com-sem” em
alemão) e o prussiano oriental faz o mesmo. A própria palavra `with‘ (`com’ em
inglês), que hoje corresponde ao `mit’ (`com’ em alemão) originariamente
significava `without‘ (`sem’ em inglês) e ao mesmo tempo `with‘ como se pode
reconhecer em `withdraw‘ (`retirar’ em inglês) e `withhold (`reter’ em inglês).
A mesma transformação pode ser vista em `wider‘ (`contra’ em alemão) e `wieder‘
(`junto com’ em alemão).
Para
uma comparação com o trabalho do sonho há outra característica extremamente
estranha da antiga língua egípcia que é significativa. `Em egípcios, as
palavras podem - diremos de início, aparentemente - inverter seu som bem como
seu sentido. Suponhamos que a palavra alemã `gut‘ [“bom”] fosse egípcia: ela
poderia então significar `mau’ do mesmo modo que `bom’, e ser pronunciada `tug‘
do mesmo modo que `gut‘. Numerosos exemplos de tais inversões de som, que são
demasiado freqüentes para se explicarem como ocorrências fortuitas, se podem
igualmente extrair das línguas ariana e semita. Limitando-nos a princípio às
línguas germânicas podemos assinalar: Topf - pot (`pote’ em alemão e `pote’ em
inglês); boat - tub (`barco’ em inglês e `banheira’ em inglês); wait - täuwen
(`esperar’ em inglês e `esperar’ em alemão); hurry - Ruhe (`pressa’ em inglês e
`descanso’ em alemão); care - reck (‘cuidar’ em inglês e `importar-se’ em
inglês); Balken - klobe, club (`viga’ em alemão e `cepo’ em alemão e `cepo’ em
inglês). Se tomamos as outras línguas indo-germânicas em consideração, o número
de exemplos relevantes cresce em conseqüência; por exemplo, capere - packen
(`tomar’ em latim e `agarrar’ em alemão); ren - Niere (`rim’ em latim e `rim’
em alemão); leaf - folium (`folha’ em inglês e `folha’ em latim); dum-a,
- mêdh, mûdha, Mut (`pensamento’ em russo, `espírito’ ou `coragem em grego e
`mente’ em sânscrito, `coragem’ em alemão); rauchen - kur-ít (`fumar’ em alemão
e `fumar em russo); kreischen - to shriek (`gritar` em alemão e `gritar’ em
inglês) etc.
Abel
tenta explicar o fenômeno de inversão de som como um dobrar ou uma repudiação
da raiz. Aqui encontraríamos certa dificuldade em seguir o filólogo. Relembramos
nesta conexão o quanto as crianças gostam de brincar de inverter o som de
palavras e quão freqüentemente o trabalho do sonho faz uso da inversão do
material representativo para várias finalidades. (Aqui não são mais as letras
mas as imagens cuja ordem se inverte.) Deveríamos, portanto, nos inclinar mais
a fazer provir a inversão de som de um fator de origem mais profunda.
Na
correspondência entre a peculiaridade do trabalho do sonho mencionado no início
do artigo e a prática descoberta pela filologia nas línguas mais antigas,
devemos ver uma confirmação do ponto de vista que formamos acerca do caráter
regressivo, arcaico da expressão de pensamentos em sonhos. E nós, psiquiatras,
não podemos escapar à suspeita de que melhor entenderíamos e traduziríamos a
língua dos sonhos se soubéssemos mais sobre o desenvolvimento da linguagem.
UM
TIPO ESPECIAL DE ESCOLHA DE OBJETO FEITA PELOS HOMENS (CONTRIBUIÇÕES À
PSICOLOGIA DO AMOR I) (1910)
BEITRÄGE
ZUR PSICHOLOGIE DES LIEBESLEBENS I
ÜBER
EINEN BESONDEREN TIPUS DER OBJEKTWAHL BEIM MANNE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1910 Jb. psychoan. psychopath.
Forsch., 2 (2), 389-97. (`Beiträge zur Psychologie des Liebeslebens’ 1.)
1918 S.K.S.N., 4, 200-12 (2ª ed.
1922.)
1924 G.S., 5, 186-978.
1924 Em Beiträge zur Psychologie
des Liebeslebens, Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer
Verlag. (Pp. 3-14.)
1931 Sexualtheorie und
Traumlehre, 69-80.
1943 G.W., 8, 66-77.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
`Contributions to the Psychology of Love:A Special Type of Choice of
Object made by Men’
1925 C.P., 4, 192-202. (Tr. Joan
Riviere.)
A
presente tradução inglesa é uma nova feita por Alan Tyson.
Este
trabalho, os dois seguintes, embora tenham sido escritos e publicados durante o
período de alguns anos, foram reunidos, por Freud, na quarta série de seus
ensaios maus curtos (S.K.S.N., 4, 1918) sob o título geral acima impresso.
Soubemos, através de Ernest Jones (1955, 333), que Freud anunciara sua intenção
de escrever um trabalho desta natureza para uma reunião da Sociedade
Psicanalítica de Viena, em 28 de novembro de 1906. A essência deste trabalho
foi apresentada perante a mesma sociedade em 19 de maio de 1909 e comentada uma
semana depois. Mas não foi escrita, realmente, senão no começo do verão do ano
seguinte.
NOTA DO EDITOR BRASILEIRO
A
presente tradução brasileira é da autoria de Clotilde da Silva Costa. Revisão
geral e técnica de Jayme Salomão (Membro-Associado da Sociedade Brasileira de
Psicanálise do Rio de Janeiro).
UM TIPO ESPECIAL DE ESCOLHA DE OBJETO FEITA PELOS
HOMENS (CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR 1)
ATÉ
AQUI deixamos ao escritor de ficção descrever-nos as condições necessárias ao
amor’ que determinam a escolha de um objeto feita pelas pessoas e a maneira
pela qual elas conduzem as exigências de sua imaginação em harmonia com a
realidade. O escritor pode, realmente, valer-se de certas qualidades que o
habilitam a realizar essa tarefa: sobretudo, de sensibilidade que lhe permite
perceber os impulsos ocultos nas mentes de outras pessoas e de coragem para
deixar que a sua própria, inconsciente, se manifeste. Há, entretanto, uma
circunstância que diminui o valor comprobatório do que ele tem a dizer. Os
escritos estão submetidos à necessidade de criar prazer intelectual e estético,
bem como certos efeitos emocionais. Por essa razão, eles não podem reproduzir a
essência da realidade tal como é, se não que devem isolar partes da mesma,
suprimir associações perturbadoras, reduzir o todo e completar o que falta.
Esses são os privilégios do que se convencionou chamar `licença poética’. Além
disso, eles podem demonstrar apenas ligeiro interesse pela origem e pelo
desenvolvimento dos estados psíquicos que descrevem em sua forma completa.
Torna-se, pois, inevitável que a ciência deva, também, se preocupar com as
mesmas matérias, cujo tratamento, pelos artistas, há milhares de anos, vem
deleitando tanto a humanidade, muito embora seu trato seja mais tosco e
proporcione menos prazer. Essas observações, esperamos, servirão para nos
justificar, de modo amplo, o tratamento estritamente científico que damos ao
campo do amor humano. A ciência, é, afinal, a renúncia mais completa ao
princípio de prazer de que é capaz nossa atividade mental.
No
curso do tratamento psicanalítico, há amplas oportunidades para colher
impressões sobre a maneira como os neuróticos se comportam em relação ao amor;
conquanto possamos evocar, ao mesmo tempo, tendo observado ou ouvido falar de
comportamento semelhante em pessoas de saúde normal ou mesmo naquelas de
qualidades excepcionais. Quando acontece que o material é favorável e conduz,
assim, à acumulação dessas impressões, surgem mais claramente tipos definidos.
Começarei aqui pela descrição de um desses tipos de escolha de objeto - que
ocorre no homem - já que se caracteriza por uma série de `condições necessárias
ao amor’, cuja combinação é ininteligível, e até desconcertante, e visto que
admite uma explicação simples de contexto psicanalítico.
(1) A
primeira dessas precondições para o amor pode ser descrita como positivamente
específica: onde quer que ela se manifeste, pode-se procurar a presença de
outras características desse tipo. Pode-se designá-la a precondição de que deva
existir `uma terceira pessoa prejudicada’; estipula que a pessoa em questão
nunca escolherá uma mulher sem compromisso, como seu objeto amoroso - isto é
uma moça solteira ou uma mulher casada livre - mas, apenas, aquela sobre a qual
outro homem possa reivindicar direitos de posse, como marido, noivo ou amigo.
Em alguns casos, essa precondição evidencia-se de modo tão convincente que a
mulher pode ser ignorada ou mesmo rejeitada, desde que não pertença a qualquer
homem, mas torna-se objeto de sentimentos apaixonados, tão logo estabeleça um
desses relacionamentos com outro homem.
(2) A
segunda precondição é talvez menos freqüente, mas não menos digna de nota.
Deve-se encontrar em conjunção com a primeira para que o tipo se configure,
enquanto a primeira precondição parece ocorrer muito amiúde, também,
independentemente. Consiste a segunda precondição no sentido de que a mulher
casta e de reputação irrepreensível nunca exerce atração que a possa levar à
condição de objeto amoroso, mas apenas a mulher que é, de uma ou outra forma,
sexualmente de má reputação, cuja fidelidade e integridade estão expostas a
alguma dúvida. Esta última característica pode variar dentro de limites
substanciais, do leve murmúrio de escândalo a respeito de uma mulher casada que
não seja avessa a namoricos, até o modo de vida francamente promíscuo de uma
cocotte ou uma profissional na arte do amor; mas os homens que pertencem ao
tipo que descrevemos não ficarão satisfeitos sem algo desta espécie. Pode-se
designar esta a segunda condição necessária, de maneira um tanto crua, `amor à
prostituta.’
Enquanto
a primeira precondição fornece a oportunidade para gratificar impulsos de
rivalidade e hostilidade em direção ao homem de quem a mulher é arrebatada, a
segunda, a da mulher se assemelhar a uma prostituta, se relaciona à experiência
do ciúme, que parece ser uma necessidade para os amantes desse tipo. Sua paixão
só atinge o apogeu e a mulher só adquire pleno valor quando, apenas, conseguem
sentir ciúmes e eles nunca deixam de aproveitar a ocasião que lhes permita
experimentar essas emoções tão poderosas. O incomum é que se torna alvo desse
ciúme não o possuidor legítimo da pessoa amada, mas estranhos que fazem seu
aparecimento pela primeira vez, em relação aos quais a amada pode ser induzida
sob suspeita. Em casos evidentes, o amante não demonstra qualquer desejo de posse
exclusiva da mulher e parece sentir-se perfeitamente à vontade na situação
triangular. Um de meus pacientes, que sofrera terrivelmente com as escapadelas
de sua amada, não fazia qualquer objeção a que ela se casasse e fez todo o
possível para que tal acontecesse; e nos anos que se seguiram nunca demonstrou
o menor sinal de ciúme do marido. Outro paciente típico havia tido, é verdade,
muito ciúme do marido no seu primeiro caso amoroso e proibira a mulher de ter
relações maritais; porém, nos seus numerosos casos subseqüentes comportou-se
como os demais integrantes desse tipo e já não mais considerava o marido
legítimo como um entrave.
É o
suficiente para as condições que se exigem do objeto amoroso. Os seguintes
pontos descrevem o comportamento do amante em relação ao objeto que escolheu.
(3)
No amor normal, o valor da mulher é aferido por sua integridade sexual, e é
reduzido em vista de qualquer aproximação com a característica de ser
semelhante a prostituta. Por conseguinte, o fato de que as mulheres com essa
característica sejam consideradas pelos homens do tipo em questão como objetos
amorosos do mais alto valor parece constituir acentuável desvio do normal. Seus
relacionamentos amorosos com essas mulheres exigem-lhes enorme dispêndio de
energia mental, com exclusão de todos os demais interesses; elas são sentidas
como as únicas pessoas a quem é possível amar, e a exigência de fidelidade que
o amante faz a si próprio repete-se, sempre e sempre, não obstante quantas
vezes, na realidade, seja transgredida. Essas características de
relacionamentos amorosos, que ora descrevo, revelam, muito claramente, sua
natureza compulsiva, conquanto seja algo que, até certo ponto, ocorra a
qualquer pessoa que se apaixone. Mas a fidelidade e a intensidade que
caracterizam a relação não nos devem levar a esperar que um único
relacionamento amoroso dessa espécie possa constituir toda a vida erótica da
pessoa em questão, ou ocorrer, apenas, uma vez na vida. Ao contrário, os
relacionamentos apaixonados desse tipo repetem-se com as mesmas peculiaridades
- cada qual uma réplica exata dos outros - sempre e sempre, nas vidas do homem
desse tipo; de fato, devido a ocorrências externas, como mudança de residência
e de ambiente, os objetos amorosos podem substituir uns aos outros, tão amiúde,
que se forma uma extensa série dos mesmos.
(4) O
que é mais espantoso, para o observador de amantes desse tipo, é a ânsia que
demonstram de `salvar’ a mulher amada. O homem se convence de que ela precisa
dele, que sem ele perderá todo o controle moral e, rapidamente descerá para um
nível lamentável. Salva-a, portanto, por não a abandonar. Em certos casos
individuais, a idéia de ter de salvá-la pode ser justificadas por alusão à sua
inconstância sexual e aos perigos de sua posição social: mas não é menos
evidente quando isto, na realidade, não possui base. Um homem do tipo que estou
descrevendo, que sabia como conquistar suas mulheres, com métodos inteligentes
de sedução e argumentos engenhosos, não media esforços, no decorrer dessas
aventuras, para manter a mulher, pela qual estava apaixonado no momento, no
caminho da `virtude’, emprestando-lhe traços de sua própria constituição.
Se
examinarmos as diferentes características do quadro aqui apresentado - as
condições que se impõem ao homem, de que sua amada não deve ser desimpedida e
deve ser semelhante a prostituta, o alto valor que lhe atribui, sua necessidade
de sentir ciúmes, sua fidelidade que, não obstante, é compatível em ser
transgredida, em uma longa série de circunstâncias, e a ânsia de salvar a
mulher - parecerá pouco provável que todas decorram de uma única fonte. No
entanto, a investigação psicanalítica da biografia de homens deste tipo tem
revelado, facilmente, que não há uma fonte única. A escolha de objeto, que é
tão estranhamente condicionada, e esta maneira extremamente singular de se
comportar no amor, tem a mesma origem psíquica que encontramos nos amores das
pessoas normais. Derivam da fixação infantil de seus sentimentos de ternura
pela mãe e representam uma das conseqüências dessa fixação. No amor normal,
apenas sobrevivem algumas características que revelam, de maneira
inconfundível, o protótipo materno da escolha de objeto, como, por exemplo, a
preferência demonstrada pelos homens jovens por mulheres mais maduras; o
destacamento da libido da mãe efetuou-se de maneira relativamente rápida. No
tipo que descrevemos, por outro lado, a libido permaneceu ligada à mãe por
tanto tempo, mesmo depois do início da puberdade, que as características
maternas permanecem impressas nos objetos amorosos que são escolhidos mais
tarde, e todas elas se transformam em substitutos facilmente reconhecíveis da
mãe. A comparação com a maneira em que é formado o crânio de um recém-nascido
vem logo à mente neste ponto: depois de um parto prolongado ele toma sempre a
forma do molde da parte estreita da pelve materna.
Vamos
agora demonstrar a plausibilidade de nossa afirmação de que os traços
característicos do tipo que descrevemos - suas condições para amar e seu
comportamento no amor - realmente decorrem da constelação psíquica relacionada
à mãe. Isto pareceria ser mais fácil no que diz respeito à primeira precondição
- a condição de que a mulher deve ser desimpedida, ou de que haja uma terceira
pessoa injuriada. É, de imediato, evidente que, para a criança que está
crescendo no círculo familiar, o fato de que a mãe, ao pertencer ao pai,
torna-se parte inseparável da essência da mãe, e que a terceira pessoa
injuriada não é outra senão o próprio pai. Pode-se observar a característica de
supervalorizar a pessoa amada, e de considerá-la como única e insubstituível,
por recair, também, naturalmente no contexto da experiência da criança, pois
ninguém possui mais de uma mãe, e a relação com ela baseia-se em um
acontecimento que não pode ser exposto a qualquer dúvida e nem pode ser
repetido.
Se
quisermos entender os objetos amorosos escolhidos pelo tipo que descrevemos
como sendo, sobretudo, substitutos da mãe, então a formação de uma série deles,
que parece contradizer tão positivamente a condição de ser fiel a um, pode
também, agora, ser compreendida. Aprendemos pela psicanálise, em outros
exemplos, que a noção de algo insubstituível, quando é ativa no inconsciente,
muitas vezes surge como subdividida em uma série infindável: infindável pelo
fato de que cada substituto, não obstante, deixa de proporcionar a satisfação
desejada. É esta a explicação do desejo insaciável de fazer perguntas,
demonstrado pelas crianças de certa idade: têm apenas uma simples pergunta a
fazer, mas nunca chegam a formulá-la. Explica também a garrulice de certas
pessoas atingidas pela neurose; vêem-se sob a pressão de um segredo que estão
ansiosos por divulgar, mas que, apesar de todas as tentações, nunca revelam.
Por
outro lado, a segunda precondição para amar - a condição de que o objeto
escolhido deva se assemelhar a uma prostituta - parece se opor, energicamente,
à derivação do complexo materno. O pensamento consciente do adulto apraz-se em
considerar a mãe como uma pessoa de pureza moral inatacável; e poucas idéias
são para ele tão ofensivas, quando partem de outros, ou sente como tão
atormentadoras, quando surgem de sua própria mente, como a que proclama esse
aspecto de sua mãe. No entanto, exatamente essa relação do contraste agudo
entre a `mãe’ e a `prostituta’ nos animará a investigar a história do
desenvolvimento desses dois complexos e da relação inconsciente entre os
mesmos, já que, há muito tempo, descobrimos que o que, no consciente, se
encontra dividido entre dois opostos, muitas vezes ocorre no inconsciente como
uma unidade. A investigação leva-nos, então, de volta a uma época na vida do
menino em que ele adquire conhecimento mais ou menos completo das relações
sexuais entre os adultos, aproximadamente em torno dos anos da pré-puberdade.
Partes brutais de informação que são indiscriminadamente destinadas a suscitar
desprezo e rebeldia, agora, lhe comunicam o segredo da vida sexual e destroem a
autoridade dos adultos, que parece incompatível com a revelação de suas
atividades sexuais. O aspecto dessas descobertas, que afetam mais profundamente
a criança recém-instruída, é a maneira em que são aplicadas a seus próprios
pais. Essa aplicação é, muitas vezes, francamente rejeitada por ela, mais ou
menos nestas palavras: `Seus pais e outras pessoas podem fazer coisas como esta
entre si, mas meus pais, possivelmente, não podem fazê-las.’
Como
um corolário praticamente invariável desse esclarecimento sexual, o menino
adquire, ao mesmo tempo, o conhecimento da existência de certas mulheres que
praticam relações sexuais como um meio de vida e, que, por esse motivo, são
mantidas no desprezo geral. O menino, ele próprio, se encontra, evidentemente,
longe de sentir esse desprezo: tão logo aprende que ele também pode ser
iniciado por essas infelizes na vida sexual, que até então ele aceitava como
estando exclusivamente reservadas para `a gente grande’, ele, apenas, as
considera como um misto de desejo e horror. Quando, depois disto, já não pode
mais nutrir qualquer dúvida que tornem seus pais uma exceção às normas
universais e odiosas da atividade sexual, diz-se a si próprio, com lógica
cínica, que a diferença entre sua mãe e uma prostituta não é afinal tão grande,
visto que, em essência, fazem a mesma coisa. A informação esclarecedora que
recebeu, despertou, de fato, traços de lembrança das impressões e desejos de
sua tenra infância que, por sua vez, levaram à reativação de certos impulsos
psíquicos. Ele começa a desejar a mãe para si mesmo, no sentido com o qual, há
pouco, acabou de se inteirar, e a odiar, de nova forma, o pai como um rival que
impede esse desejo; passa, como dizemos, ao controle do complexo de Édipo. Não
perdoa a mãe por ter concedido o privilégio da relação sexual, não a ele, mas a
seu pai, e considera o fato como um ato de infidelidade. Se esses impulsos não
desaparecem rapidamente, não há outra saída para os mesmos, senão seguir seu
curso através de fantasias que têm por tema as atividades sexuais da mãe, nas
mais diversas circunstâncias; e a tensão conseqüente leva, de maneira
particularmente rápida; a buscar alívio na masturbação. Como resultado da ação
combinada, constante, de duas forças impulsivas, desejo e sede de vingança, as
fantasias acerca da infidelidade da mãe são, de longe, as que prefere; o amante
com o qual ela comete o ato de infidelidade, quase sempre exibe as feições do
próprio ego do menino, ou, mais extamente, de sua própria personalidade
idealizada, adulta e, assim, elevada ao nível do pai. O que, em outra parte
descrevi como o `romance familiar’ comprende as várias ramificações dessa
atividade imaginativa e a maneira pela qual elas se entrelaçam com os diversos
interesses egoístas desse período da vida.
Agora
que adquirimos a compreensão dessa parte do desenvolvimento psíquico, já não
podemos mais considerar contraditório e incompreensível que a precondição de
que a pessoa amada se assemelhe a prostituta derive diretamente do complexo
materno. O tipo de amor masculino que descrevemos tem os traços dessa evolução
e é fácil de compreender como uma fixação das fantasias formadas pelo menino na
puberdade - fantasias que, afinal, mais tarde, encontraram vazão na vida real.
Não é difícil admitir que a prática assídua da masturbação durante os anos da
puberdade desempenhou seu papel na fixação das fantasias.
A
ânsia de salvar a pessoa amada parece conduzir a uma relação, apenas, vaga e
superficial, e plenamente explicada por motivos conscientes, com essas
fantasias que acabaram por dominar o amor do homem na vida real. Devido a sua
propensão a ser volúvel e infiel, a pessoa amada se coloca em situações
perigosas e, assim, é compreensível que o amante tenha de se esforçar para
protegê-la contra esses perigos, vigiando-lhe a virtude e combatendo-lhe as
tendências más. Entretanto, o estudo das lembranças encobridoras das pessoas,
fantasias e sonhos noturnos, revela que deparamos, aqui, com uma
`racionalização’ especialmente oportuna de um motivo inconsciente, um processo
que pode ser comparado à elaboração secundária bem- sucedida de um sonho. No
fato real, o `tema-salvamento’ tem um significado e um histórico próprios, e é
um derivativo independente do complexo materno ou, mais exatamente, do complexo
parental. Quando a criança ouve dizer que deve sua vida aos pais, ou que sua
mãe lhe deu a vida, seus sentimentos de ternura aliam-se a impulsos que lutam
pelo poder e pela independência, e geram o desejo de retribuir essa dádiva aos
pais e de compensá-los com outra de igual valor. É como se o desafio do menino
o fizesse dizer: `Não quero nada de meu pai; devolver-lhe-ei tudo quanto gastou
comigo. Ele cria, então a fantasia de salvar o pai de perigo e de proteger-lhe
a vida; desse modo ajusta as contas com ele. Essa fantasia, via de regra, é
muito deslocada em direção a um imperador, rei ou outro grande homem; depois de
haver sido assim destorcida torna-se admissível à consciência, e pode até ser
utilizada pelos escritores de ficção. Nessa aplicação ao pai do menino, o
sentido desafiador da idéia de salvamento é de longe o mais importante; no que
diz respeito à mãe, o mais importante é, geralmente, o sentido da ternura. A
mãe deu à criança a vida, e não é fácil encontrar um substituto de igual valor
para essa dádiva sem par. Com uma ligeira modificação do significado, tal como
é facilmente realizado no inconsciente, e é comparável à maneira pelaqual os
conceitos da consciência se diluem uns nos outros, salvar a mãe adquire o
significado de lhe dar uma criança ou de lhe fazer uma criança - é supérfluo
dizer, uma igual a ele. Isso não se afasta muito do sentido original o
salvamento, e a mudança de significado não é arbitrária. Sua mãe lhe deu a vida
- sua própria vida - e, em troca, ele lhe dá uma outra vida, a de uma criança
que tem com ele a maior semelhança. O filho demonstra sua gratidão desejando
ter, com sua mãe, um filho igual a ele próprio; em outras palavras, na fantasia
de salvamento ele está se identificando completamente com o pai. Todos os seus
instintos, os de ternura, gratidão, lascívia, desafio e independência encontram
satisfação no desejo único de ser o próprio pai. Mesmo o elemento de perigo não
se perdeu na modificação de significado; pois o próprio ato do nascimento é o
perigo de que foi salvo pelos esforços da mãe. O nascimento é tanto o primeiro
de todos os perigos de sua vida, como o protótipo de todos os subseqüentes que
nos levam a sentir ansiedade, e a experiênmcia do nascimennto, provavelmente,
nos legou a expressão de afeto que chamamos de ansiedade. Macduff, da lenda
escocesa, que não nasceu de sua mãe mas lhe foi arrancado do ventre, por esse
motivo não conhecia a ansiedade.
Artemidoro,
o intérprete dos sonhos da antiguidade, estava certamente com razão ao afirmar
que a significação de um sonho depende de quem venha a ser a pessoa que sonha.
De acordo com as leis que regem a expressão dos pensamentos inconscientes, o
significado de salvamento pode variar, dependendo de o autor da fantasia ser
homem ou mulher. Pode igualmente significar (no caso de um homem) fazer uma
criança, isto é, causar seu nascimento, ou (no caso de uma mulher) dar à luz
uma criança. Esses vários significados do salvamento nos sonhos e fantasias
podem ser reconhecidos de maneira especialmente clara, quando são encontrados
em conexão com a água. Um homem que salva uma mulher da água, em um sonho, quer
dizer que a torna mãe, o que, do ponto de vista do comentário acima, equivale a
fazer dela sua própria mãe. Uma mulher que salva alguma outra pessoa (uma
criança) da água, reconhece ser a mãe que a gerou, como a filha do Faraó na
lenda de Moisés (Rank, 1909). Às vezes, existe também um significado de ternura
contido nas fantasias de salvamento em relação ao pai. Nestes casos, visam a
expressar o desejo da pessoa de ter o pai como seu filho - isto é, de ter um
filho igual ao pai.
É
devido a todas essas conexões entre o tema-salvamento e o complexo parental que
a ânsia de salvar a pessoa amada constitui uma característica importante do
tipo de amor que vimos estudando.
Não
creio necessário justificar meu método de trabalho sobre este assunto; como na
minha apresentação a respeito do erotismo anal [Freud 1908b], também aqui
procurei, em primeiro lugar, destacar, do material observado, os tipos extremos
e claramente definidos. Em ambos os casos, encontramos um número muito maior de
indivíduos nos quais apenas algumas características do tipo podem ser
identificadas, ou apenas características que não são nitidamente acentuadas, e
é evidente que não será possível avaliar adequadamente esses tipos enquanto
todo o contexto a que pertencem não for investigado.
SOBRE
A TENDÊNCIA UNIVERSAL À DEPRECIAÇÃO NA ESFERA DO AMOR
(CONTRIBUIÇÕES
À PSICOLOGIA DO AMOR II) (1912)
BEITRÄGE
ZUR PSYCHOLOGIE DES LIEBESLEBENS II
ÜBER
DIE ALLGEMEINSTE ERNIEDRIGUNG
DES
LIEBESLEBENS
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1912 Jb. psychoan. psychopath.
Forsch., 4 (1), 40-50 (`Beiträge zur Psychologie des Liebeslebens’ II.)
1918 S.K.S.N., 4, 213-28 (2ª ed.
1922.)
1924 G.S., 5, 198-211.
1924 In Beiträge zur Psychologie
des Liebeslebens. Leipzig, Viena e
Zurique: International Psychoanalytischer Verlag. (Págs. 15-28.)
1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 80-95.
1943 G.W., 8, 78-91
(b)
TRADUÇÕES INGLESAS:
`Contribuitions to the Psychology of Love: The Most Prevalent Form of
Degradation in Erotic Life’
1925 C.P., 4, 203-16. (Trad.
Joan Riviere.)
A tradução inglesa atual, feita por Alan Tyson, é inteiramente nova e
com um título diferente `On the Universal Tendenty of Debasement in the Sphere
of Love’ (Sobre a Tendênia Universal à Depreciação na Esfera do Amor).
A
discussão das duas correntes sexuais na primeira parte deste trabalho é, na
realidade, um suplemento ao Three Essays on the Theory of Sexuality (1905d)
(Três Ensaios sobre a Teoria da sexualidade), edição de 1915, na qual está, de
fato, incluído um pequeno resumo desta (ver em [1]). A análise da impotência
psíquica que ocupa a parte central deste trabalho é a contribuição mais
importante de Freud nesta matéria. A última parte do trabalho é uma das suas
longas séries de elaborações no tema do antagonismo entre a civilização e a
vida instintiva, do qual mostra um outro exemplo em Five Lectures (Cinco
Lições), ver em [2]. Seu argumento mais completo neste assunto pode ser
encontrado no trabalho sobre `“Civilized” Sexual Ethics and Modern Nervous
Illness’ (1908d) (`Ética Sexual “Civilizada” e Enfermidade Nervosa Moderna’) e
no livro escrito muito mais tarde, Civilization and its Discontents (1930a) (O
Mal-Estar na Civilização).
NOTA DO EDITOR BRASILEIRO
A
presente tradução brasileira é da autoria de Jayme Salomão (Membro-Associado da
Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro).
SOBRE A TENDÊNCIA UNIVERSAL À DEPRECIAÇÃO NA ESFERA DO
AMOR
(CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR II)
1
Se o
psicanalista clínico indagar a si mesmo qual perturbação leva as pessoas com
maior freqüência a o procurarem em busca de auxílio, ele será compelido a
responder - deixando de lado as diversas formas de ansiedade - que consiste na
impotência psíquica. Esta singular perturbação atinge homens de natureza
intensamente libidinosa e se manifesta como uma recusa dos órgãos executores da
sexualidade de levar a cabo o ato sexual, conquanto antes e depois eles possam
demonstrar-se como íntegros e capazes de praticá-lo e conquanto apresentem
forte propensão psíquica a realizá-lo. A primeira chave para a compreensão do
seu estado se obtém do próprio paciente, ao efetuar-se a descoberta de que um
malogro dessa espécie só surge quando a tentativa se realiza com determinadas
pessoas, enquanto com outras nunca há qualquer cogitação de tal insucesso. Ele
se dá conta, então, de que constitui alguma característica do objeto sexual que
dá origem à inibição de sua potência masculina e, às vezes, declara que possui
a sensação de um obstáculo dentro dele, a sensação de uma vontade contrária que
interfere vitoriosamente com a sua intenção consciente. No entanto, é incapaz de
se representar que obstáculo interno é esse e que característica do objeto
sexual o põe em funcionamento. Se a experiência do malogro se repetiu, é
provável que atribua ao processo habitual de `conexão errônea,’ de que a
recordação da primeira ocasião evocava a idéia de ansiedade perturbadora, e
assim motivava que o malogro se repetisse todas as vezes; conquanto atribua a
primeira ocasião em si a alguma impressão `fortuita’.
Os
estudos psicanalíticos da impotência já foram realizados e publicados por
vários autores. Todo analista pode confirmar as explicações por eles
fornecidas, através de sua própria experiência clínica. Trata-se, de fato, de
uma questão da influência inibitória de certos complexos psíquicos que são
removidos do conhecimento do indivíduo. Uma fixação incestuosa na mãe ou na
irmã, que nunca foi superada, desempenha um papel importante nesse material
patogênico e constitui o seu conteúdo mais universal. Além disso, existe a
influência, a se considerar, das impressões penosas acidentais relacionadas à
atividade sexual infantil, e também aqueles fatores que, de maneira geral,
reduzem a libido que se deve dirigir ao objeto sexual feminino.
Quando
se investigam, exaustivamente, casos marcantes de impotência psíquica pela
psicanálise, obtém-se a seguinte informação sobre os processos psicossexuais
ativos nos mesmos. Aqui de novo - como muito provavelmente em todas as
perturbações neuróticas - a origem da perturbação é determinada por uma
inibição na história do desenvolvimento da libido antes que esta assuma a forma
que tomamos como sua terminação normal. Nos casos que estamos considerando,
duas correntes cuja união é necessária para assegurar um comportamento amoroso
completamente normal, falharam em se combinar. Podem-se distinguir as duas como
a corrente afetiva e a corrente sensual.
A
corrente afetiva é a mais antiga das duas. Contitui-se nos primeiros anos da
infância; forma-se na base dos interesses do instinto de autopreservação e se
dirige aos membros da família e aos que cuidam da criança. Desde o início, leva
consigo contribuições dos instintos sexuais - componentes de interesse erótico
- que já se podem observar, de maneira mais ou menos clara, mesmo na infância,
e que se descobrem de algum modo mais tarde nos neuróticos através da psicanálise.
Corresponde à escolha de objeto, primária, da criança. Aprendemos, assim, que
os instintos sexuais encontram seus primeiros objetos ao se apegarem às
apreciações feitas pelos instintos do ego, precisamente no momento em que as
primeiras satisfações sexuais são experimentadas em ligação com as funções
necessárias à preservação da vida. A `afeição’ demonstrada pelos pais da
criança e pelos que dela cuidam, que raramente deixa de delatar sua natureza
erótica (`a criança é um brinquedo erótico’), concorre, em grande parte, para
erigir as contribuições feitas pelo erotismo às catexias de seus instintos do
ego e para incrementá-la numa medida em que se compele a desempenhar um papel
em seu desenvolvimento ulterior, principalmente quando algumas outras circunstâncias
emprestam seu suporte.
Essas
fixações afetivas da criança persistem por toda a infância e continuamente
conduzem consigo o erotismo, que, em conseqüência, se desvia de seus objetivos
sexuais. Então, com a puberdade, elas se unem através da poderosa corrente
`sensual’, a qual já não se equivoca mais em seus objetivos. Evidentemente,
jamais deixa de seguir os mais primitivos caminhos e catexizar os objetos da
escolha infantil primária com cotas de libidos, que são agora muito mais
poderosas. Neste ponto, no entanto, defronta-se com obstáculos que, nesse meio
tempo, foram erigidos pela barreira contra o incesto; em conseqüência, se
esforçará por transpor esses objetos que são, na realidade, inadequados, e
encontrar um caminho, tão breve quanto possível, para outros objetos estranhos
com os quais se possa levar uma verdadeira vida sexual. Esses novos objetos
ainda serão escolhidos ao modelo (imago) dos objetos infantis, mas com o correr
do tempo, atrairão para si a afeição que se ligava aos mais primitivos. Um
homem deixará seu pai e sua mãe - segundo o preceito bíblico - e se apegará à
sua mulher; então, se associam afeição e sensualidade. O máximo de intensidade
de paixão sensual trará consigo a mais alta valorização psíquica do objeto -
sendo esta a supervalorização normal do objeto sexual por parte do homem.
Dois
fatores decidirão se esse avanço no caminho do desenvolvimento da libido pode
falhar. Em primeiro lugar, há a quantidade de frustração da realidade que se
opõe à nova escolha de objeto e reduz seu valor para a pessoa em questão.
Afinal não há qualquer sentido em decidir-se por uma escolha de objeto se
nenhuma escolha será de todo permitida ou se não há nenhuma perspectiva de ser
capaz de escolher alguma coisa adequada. Em segundo lugar, há a quantidade de
atração que são capazes de exercer os objetos infantis, que deverão ser
abandonados, e que existe em proporção às catexias eróticas que se ligam a eles
na infância. Se esses dois fatores forem suficientemente fortes, o mecanismo
geral, por meio do qual se estruturam as neuroses, entra em funcionamento. A
libido afasta-se da realidade, é substituída pela atividade imaginativa (o
processo de introversão), fortalece as imagens dos primeiros objetos sexuais e
se fixa nos mesmos. O obstáculo erguido contra o incesto, entretanto, compele a
libido, que se transferiu para esses objetos, a permanecer no inconsciente. A
atividade masturbatória levada a efeito pela corrente sensual, que agora é
parte do inconsciente, faz sua própria contribuição, ao fortalecer essa
fixação. Nada se altera nesse estado de coisas, se o avanço, que é abortado na
realidade, se completa agora na fantasia e se nas situação que levam à
satisfação masturbatória os objetos sexuais originais são substituídos por
objetos diferentes. Em conseqüência dessa substituição, as fantasias se tornam
admissíveis à consciência, mas não se faz qualquer progresso na localização da
libido na realidade. Deste modo, pode acontecer que a totalidade da
sensualidade de um jovem se ligue a objetos incestuosos no inconsciente, ou
para colocar em outras palavras, se fixe em fantasias incestuosas
inconscientes. O resultado, então, é a impotência total que, talvez, mais tarde
se reforce pelo início simultâneo de um real debilitamento dos órgãos que
realizam o ato sexual.
Necessita-se
de condições menos graves para dar origem ao estado conhecido especificamente
como impotência psíquica. Neste caso, o destino da corrente sensual não deve
ser o de que sua carga total tenha de se ocultar atrás da corrente afetiva; ela
deve ter permanecido suficientemente forte ou desinibida para assegurar vazão
parcial à realidade. A atividade sexual dessas pessoas apresenta sinais muito
evidentes, entretanto, de que não possui a força impulsiva psíquica total do
instinto por trás dela. É caprichosa, facilmente perturbada, muitas vezes não
propriamente executada e não acompanhada de muito prazer. Mas, acima de tudo, é
forçada a evitar a corrente afetiva. A restrição, assim, se colocou na escolha
do objeto. A corrente sensual, que permaneceu ativa, procura apenas objetos que
não rememorem as imagens incestuosas que lhe são proibidas; se alguém causa uma
impressão que pode levar à sua alta estima psíquica, essa impressão não
encontra escoamento em nenhuma excitação sensual, exceto na afeição que não
possui efeito erótico. Toda a esfera do amor, nessas pessoas, permanece
dividada em duas direções personificadas na arte do amar tanto sagrada como
profana (ou animal). Quando amam, não desejam, e quando desejam, não podem
amar. Procuram objetos que não precisem amar, de modo a manter sua sensualidade
afastada dos objetos que amam; e, de acordo com as leis da `sensibilidade
complexiva’ e do retorno do reprimido, o estranho malogro, demonstrado na
impotência psíquica, faz seu aparecimento sempre que um objeto, que foi
escolhido com a finalidade de evitar o incesto, relembra o objeto proibido
através de alguma característica, freqüentemente imperceptível.
A
principal medida protetora contra essa perturbação a que os homens recorrem
nessa divisão de seu amor consiste na depreciação do objeto sexual, sendo
reservada a supervalorização, que normalmente se liga ao objeto sexual para o
objeto incestuoso e seus representantes. Logo que se consuma a condição de
depreciação, a sensualidade pode se expressar livremente e podem se desenvolver
importantes capacidades sexuais e alto grau de prazer. Há um outro fator que
contribui para esta conseqüência. As pessoas nas quais não houve a confluência
apropriada das corrente afetiva e sensual geralmente não demonstram muito
refinamento nas suas formas de comportamento amoroso; elas retiveram suas
finalidades sexuais perversas, cuja não-realização é sentida como uma grave
perda de prazer e cuja realização, por outro lado, só parece possível com um
objeto sexual depreciado e desprezado.
Podemos
agora compreender os motivos ocultos sob as fantasias do menino, mencionadas na
primeira dessas `Contribuições’ (ver em [1]), que degradam a mãe ao nível de
uma prostituta. São esforços para transpor a distância entre as duas correntes
amorosas, pelo menos em fantasia e, pela depreciação da mãe, adquiri-la como
objeto de sensualidade.
2
No capítulo anterior, abordamos o estudo da
impotência psíquica do ângulo médico-psicológico, ao qual o título deste
trabalho não faz alusão. Tornar-se-á evidente, no entanto, que esta introdução
foi por nós requerida para proporcionar acesso a nosso tema propriamente dito.
Reduzimos
a impotência psíquica à falha em se combinar as correntes afetivas e sensual no
amor e se explicou essa inibição do desenvolvimento, por sua vez, como se
devendo a influências de poderosas fixações infantis e da subseqüente
frustração da realidade através da intervenção da barreira contra o incesto. Há
uma objeção principal à teoria que desenvolvemos: oferece demasiado. Explica
por que certas pessoas padecem de impotência psíquica, mas nos deixa frente ao
mistério aparente de como outras foram capazes de escapar a essa perturbação.
Visto que devemos reconhecer que todos os fatores relevantes que conhecemos - a
forte fixação infantil, a barreira ao incesto e a frustração nos anos de
desenvolvimento depois da puberdade - podem ser encontrados em praticamente
todos os seres humanos civilizados, deve-se justificar a perspectiva da
impotência psíquica como uma condição universal da civilização e não uma
perturbação circunscrita a alguns indivíduos.
Seria
fácil fugir a esta conclusão apontando para o fator quantitativo na motivação
da doença - para o maior ou menor grau da contribuição feita pelos vários
elementos que determinam se resulta ou não uma enfermidade reconhecível.
Conquanto, porém, eu aceite esta resposta como correta, não é minha intenção
transformá-la no motivo para rejeitar a própria conclusão. Ao contrário, apresentarei
o conceito de que a impotência psíquica está muito mais difundida do que se
supõe e que certa extensão desse comportamento caracteriza, de fato, o amor do
homem civilizado.
Se se
ampliar o conceito da impotência psíquica e não se restringir o malogro em
realizar o ato do coito, em circunstâncias em que esteja presente o desejo de
obter prazer e o aparelho genital esteja intacto, podemos, em primeiro lugar,
acrescentar todos aqueles homens que são descritos como psicanestésicos: homens
que nunca falham no ato, mas que o realizam sem dele derivar qualquer prazer
especial - um estado de coisas que é muito mais comum do que se pensa. O exame
psicanalítico desses casos revela os mesmos fatores etiológicos encontrados na
impotência psíquica no seu sentido mais estrito, sem antes encontrar qualquer
explicação para a diferença entre seus sintomas. Uma analogia facilmente
justificável nos leva desses homens anestésicos para o imenso número de
mulheres frígidas; e não há melhor maneira de descrever ou compreender seu
comportamento amoroso do que comparando-o à perturbação manifesta da impotência
psíquica nos homens.
Se,
no entanto, voltarmos nossa atenção, não para a extensão do conceito de
impotência psíquica mas para as gradações em sua sintomatologia, não poderemos
fugir à conclusão de que o comportamento amoroso dos homens, no mundo
civilizado de hoje, de modo geral traz o selo da impotência psíquica. Existe
apenas um pequeno número de pessoas educadas em que as duas correntes, de afeição
e de sensualidade, se fundiram adequadamente; o homem quase sempre sente
respeito pela mulher, que atua como restrição à sua atividade sexual, e só
desenvolve potência completa quando se acha com um objeto sexual depreciado; e
isto, por sua vez, é causado, em parte, pela entrada de componentes perversos
em seus objetivos sexuais, os quais não ousa satisfazer com a mulher que ele
respeita. Assegura-se de prazer sexual completo apenas quando se pode dedicar
sem reserva a obter satisfação, o que, com sua mulher bem educada, por exemplo,
não se atreve a realizar. É esta a origem de sua necessidade de um objeto
sexual depreciado, de uma mulher eticamente inferior, a quem não precise
atribuir escrúpulos estéticos, que não o conheça em seu outro círculo de relações
sociais e que ali não o possa julgar. É a esta mulher que prefere dedicar sua
potência sexual, mesmo quando toda sua afeição pertença a uma mulher de
natureza superior. Também é possível que a tendência a escolher uma mulher de
classe mais baixa para sua amante permanente ou mesmo para sua esposa, tão
freqüentemente observada nos homens das classes mais altas da sociedade, nada
mais seja que a conseqüência de sua necessidade de um objeto sexual depreciado,
a quem se vincule psicologicamente a possibilidade de completa satisfação
sexual.
Não
vacilo em admitir que os dois fatores em atividade na impotência psíquica, no
sentido estrito - os fatores de intensa fixação incestuosa, na infância, e a
frustração devida à realidade, na adolescência - respondam também por esta
característica extremamente comum do amor dos homens civilizados. Parece não só
desagradável mas também paradoxal, que deva, não obstante, afirmar que alguém,
para ser realmente livre e feliz no amor, tem de sobrepujar seu respeito pelas
mulheres e aceitar a idéia do incesto com sua mãe ou irmã. Qualquer pessoa que
se sujeite a uma séria introspecção a respeito dessa necessidade certamente se
convencerá ao descobrir que considera o ato sexual, basicamente, algo
degradante, que conspurca e polui mais do que simplesmente o corpo. A origem
dessa vil opinião, que ele certamente não reconhecerá de boa-vontade, deve ser
procurada no período de sua infância em que a corrente sensual nele existente
já estava grandemente desenvolvida, mas sua satisfação com um objeto fora da
família era quase tão absolutamente proibida como o era com um objeto
incestuoso.
No
nosso mundo civilizado, as mulheres estão sob a influência de um efeito
residual, semelhante, de sua educação e, além disso, de sua reação ao comportamento
dos homens. É, naturalmente, tão desvantajoso para uma mulher se um homem a
procura sem sua potência plena como o é se a supervalorização inicial dela,
quando enamorado, dá lugar a uma subvalorização depois de possuí-la. No caso
das mulheres, há pouca indicação da necessidade de depreciar seu objeto sexual.
Isto se liga, sem dúvida, com a ausência nelas, geralmente, de nada semelhante
à supervalorização que se encontra nos homens. Porém, sua longa contenção de
sexualidade e seu anseio de sensualidade em fantasia, tem para elas outra
conseqüência importante. São, muitas vezes, subseqüentemente, incapazes de
desfazer a conexão entre a atividade sensual e a proibição, tornando-se
psiquicamente impotentes, isto é, frígidas, quando tal atividade, finalmente,
lhes é permitida. Esta é a origem do empenho realizado por muitas mulheres de
manter secretas, por certo tempo, mesmo suas relações legítimas; e da
capacidade de outras mulheres para a sensação normal, tão logo a condição de
proibição se restabeleça devido a uma relação amorosa secreta: infiéis a seus
maridos, são capazes de manter um segunda espécie de finalidade em relação a
seus amantes [cf. em [1]].
A
condição de proibitividade na vida erótica das mulheres é comparável, creio eu,
à necessidade da parte dos homens de depreciar seu objeto sexual. Ambas são
conseqüências de um longo período de demora, que é exigida pela educação, por
razões culturais, entre a maturidade sexual e a atividade sexual. Ambas tendem
a abolir a impotência psíquica que resulta do malogro de se fundirem os
impulsos afetuosos e sensuais. O fato de que o efeito das mesmas causas seja
tão diferente nos homens e nas mulheres pode talvez ser atribuído a outra
diferença no comportamento dos dois sexos. As mulheres civilizadas geralmente
não transgridem a proibição de atividade sexual durante o período em que têm de
esperar e, assim, estabelecem a ligação íntima entre proibição e sexualidade.
Os homens geralmente desrespeitam essa proibição se podem satisfazer a condição
de depreciar o objeto e, em conseqüência, mantêm essa condição em seu amor mais
tarde, na vida.
Em
vista dos esforços extenuantes que se fazem hoje, no mundo civilizado, para
reformar a vida sexual, será supérfluo advertir que a pesquisa psicanalítica
está tão isenta de tendenciosidade quanto qualquer outra espécie de pesquisa.
Não há nenhum outro objetivo em vista além de derramar alguma luz sobre as
coisas, ao procurar que se revele o que está oculto. Será bastante satisfatório
se as reformas fizerem uso dessas descobertas para substituir o que é
prejudicial por algo mais vantajoso; mas não se pode predizer se outras
instituições não redundarão em outros sacrifícios, talvez mais sérios.
3
O
fato de que a restrição feita ao amor pela civilização envolva uma tendência
universal a depreciar os objetos sexuais pode conduzir-nos, talvez, a desviar
nossa atenção do objeto para os instintos em si. O prejuízo causado pela
frustração inicial do prazer sexual se evidencia no fato de que a liberdade
mais tarde concedida a esse prazer, no casamento, não proporcione satisfação
completa. Mas, ao mesmo tempo, se não se limita a liberdade sexual desde o
início, o resultado não é melhor. Pode-se verificar, facilmente, que o valor
psíquico das necessidades eróticas se reduz, tão logo se tornem fáceis suas
satisfações. Para intensificar a libido, se requer um obstáculo; e onde as
resistências naturais à satisfação não foram suficientes, o homem sempre ergueu
outros, convencionais, a fim de poder gozar o amor. Isto se aplica tanto ao
indivíduos como às nações. Nas épocas em que não havia dificuldades que
impedissem a satisfação sexual, como, talvez, durante o declínio das antigas
civilizações, o amor tornava-se sem valor e a vida, vazia; eram necessárias
poderosas formações reativas para restaurar os valores afetivos indispensáveis.
Nessa conexão, pode-se afirmar que a corrente ascética da Cristandade criou
valores psíquicos para o amor que a antiguidade pagã nunca fôra capaz de lhe
conferir. Essa corrente adquiriu sua maior importância através dos monges
ascéticos, cujas vidas foram quase exclusivamente dedicadas a combater a
tentação libidinosa.
Nosso
primeiro impulso consiste, sem dúvida, em retraçar as dificuldades aqui
reveladas às características universais de nossos instintos orgânicos. Por
certo também é verdade que, em geral, a importância psíquica de um instinto
cresce em proporção a sua frustração. Suponhamos que uma série de pessoas,
totalmente diferentes, fossem todas igualmente sujeitas à fome. À medida que
sua necessidade imperiosa de alimentos crescesse, todas as diferenças
individuais desapareceriam e, em seu lugar, observar-se-iam manifestações
uniformes do único instinto não-saciado. Mas, será também verdade que, com a
satisfação de um instinto, seu valor psíquico sempre cai na mesma proporção?
Consideremos, por exemplo, a relação de um beberrão com o vinho. Não é verdade
que o vinho sempre proporciona ao beberrão a mesma satisfação tóxica que, na
poesia, tem sido tão freqüentemente comparada à satisfação erótica - uma
comparação que também é igualmente aceitável do ponto de vista científico?
Alguém já ouviu falar de que o beberrão seja obrigado a trocar constantemente
de bebida, porque logo enjoa de beber a mesma coisa? Ao contrário, o hábito
constantemente reforça o vínculo que prende o homem à espécie de vinho que ele
bebe. Alguém já ouviu falar de um beberrão que precise ir a um país em que o
vinho seja mais caro ou em que seja proibido beber, de modo que, erguendo
obstáculos, ele possa aumentar a satisfação decrescente que obtém? De maneira
nenhuma. Se atentarmos para o que dizem os grandes alcoólatras, como Böcklin, a
respeito de sua relação com o vinho, ela aparece como a mais harmoniosa
possível, um modelo de casamento feliz. Por que a relação do amante com seu
objeto sexual será tão profundamente diferente?
Por
mais estranho que pareça, creio que devemos levar em consideração a
possibilidade de que algo semelhante na natureza do próprio instinto sexual é
desfavorável à realização da satisfação completa. Se considerarmos a longa e
difícil história do desenvolvimento do instinto, nos virão à mente,
imediatamente, dois fatores que podem ser julgados os responsáveis por essa
dificuldade. Primeiramente, em conseqüência da irrupção bifásica da escolha de
objeto, e da interposição da barreira contra o incesto, o objeto final do
instinto sexual nunca mais será o objeto original, mas apenas um sub-rogado do
mesmo. A psicanálise revelou-nos que quando o objeto original de um impulso desejoso
se perde em conseqüência da repressão, ele se representa, freqüentemente, por
uma sucessão infindável de objetos substitutos, nenhum dos quais, no entanto,
proporciona satisfação completa. Isto pode explicar a inconstância na escolha
de objetos, o `anseio pela estimulação’ que tão amiúde caracterizam o amor dos
adultos.
Em
segundo lugar, sabemos que o instinto sexual é, originalmente, dividido em
grande número de componentes - ou melhor, desenvolve-se desses componentes -
alguns dos quais não podem integrar o instinto em sua forma final, mas têm de
ser suprimidos ou destinados a outros empregos em uma fase anterior. São eles,
principalmente, os componentes instintivos coprófilos, que demonstraram ser
incompatíveis com nossos padrões estéticos de cultura, provavelmente porque, em
conseqüência de havermos adotado a postura ereta, erguemos do chão nosso órgão
do olfato. O mesmo se aplica a uma grande parte dos impulsos sádicos que
constituem parte da vida erótica. Mas todos esses processos do desenvolvimento
só atingem as camadas mais superiores de estrutura complexa. Os processos
fundamentais que produzem excitação erótica permanecem inalterados. O
excrementício está todo, muito íntima e inseparavelmente, ligado ao sexual; a
posição dos órgãos genitais - inter urinas et faeces - permanece sendo o fator
decisivo e imutável. Poder-se-ia dizer neste ponto, modificando um dito muito
conhecido do grande Napoleão: `A anatomia é o destino.’ Os órgãos genitais
propriamente ditos não participaram do desenvolvimento do corpo humano visando
à beleza: permaneceram animais e, assim, também o amor permaneceu, em essência,
tão animal como sempre foi. Os instintos do amor são difíceis de educar; sua
educação ora consegue de mais, ora de menos. O que a civilização pretende fazer
deles parece inatingível, a não ser à custa de uma ponderável perda de prazer:
a persistência dos impulsos que não puderam ser utilizados pode ser percebida
na atividade sexual, sob a forma de não-satisfação.
Assim,
talvez tenhamos de ser forçados a nos reconciliar com a idéia de que é
absolutamente impossível harmonizar os clamores de nosso instinto sexual com as
exigências da civilização: de que, em conseqüência de seu desenvolvimento
cultural, a renúncia e o sofrimento, bem como o perigo de extinção no futuro
mais remoto, não podem ser evitados pela raça humana. Este sombrio prognóstico
repousa, é verdade, na simples conjectura de que a não-satisfação inerente à
civilização é conseqüência necessária de certas peculiaridades que o instinto
sexual adotou sob a pressão da cultura. A própria incapacidade do instinto
sexual de produzir satisfação completa, tão logo se submete às primeiras
exigências da civilização, torna-se a fonte, no entanto, das mais nobres
realizações culturais que são determinadas pela sublimação cada vez maior de
seus componentes instintivos. Pois, que motivo teria o homem para colocar as
forças instintivas sexuais a outros serviços se, com qualquer distribuição
dessas forças, eles poderiam conseguir prazer completamente satisfatório? Não
renunciariam nunca a esse prazer e jamais realizariam qualquer outro progresso.
Parece, portanto, que a diferença irreconciliável entre as exigências dos dois
instintos - o sexual e o egoísta - tornou os homens capazes de realizações cada
vez melhores, conquanto sujeitos, é verdade, a um perigo constante, ao qual,
sob a forma de neurose, sucumbem hoje os mais fracos.
O
objetivo da ciência não é atemorizar ou consolar. Mas, de minha parte, estou
pronto a admitir que conclusões importantes, como as que inferi, deveriam
apoiar-se em fundamento mais amplos, e que, talvez, desenvolvimentos em outras
direções possam permitir à humanidade corrigir os resultados dos
desenvolvimentos que aqui venho considerando isoladamente.
O
TABU DA VIRGINDADE (1918 [1917])
(CONTRIBUIÇÃO
À PSICOLOGIA DO AMOR III)
BEITRÄGE
ZUR PSYCHOLOGIE DES LIEBESLEBENS III
DAS
TABU DER VIRGINITÄT
(a) EDIÇÕES ALEMÃES:
(1917 Lido como uma comunicação à Sociedade
Psicanalítica de Viena, 12 de dezembro de 1917.)
1918 S.K.S.N., 4, 229-51. (`Beiträge zur
Psychologie des Liebeslebens’ III. 2ª ed., 1922.)
1924 G.S., 5, 212-31.
1924 Em Beiträge zur Psychologie des
Liebeslebens., Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer
Verlag. (Págs. 29-48.)
1931 Sexualtheorie und
Traumlehre, 95-115.
1947 G.W., 12, 161-80.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
`Contributions to the Psychology of Love: The Taboo of Virginity’
1925 C.P., 4, 217-35. (Trad.
Joan Riviere.)
A
presente tradução inglesa, completamente nova, é de Angela Richards.
Este
artigo foi escrito em setembro de 1917, mas só foi publicado no ano seguinte.
Apesar do espaço de vários anos que separa este artigo dos dois precedentes,
pareceu acertado reuni-los, visto que o próprio Freud os juntou sob o mesmo
título. Totem and Taboo (Totem e Tabu)(1912-13) aparecera no meio tempo, já que
o segundo artigo da série, e este terceiro, sob certo ponto de vista, podem ser
considerados como acréscimo ao segundo ensaio dessa obra. Por outro lado,
entretanto, inclui o exame do problema clínico da frigidez nas mulheres e, sob
este aspecto, é o equivalente do estudo da impotência nos homens, no segundo
artigo da série (vide [1]).
O TABU DA VIRGINDADE
(CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR III)
POUCAS
particularidades da vida sexual dos povos primitivos são tão estranhas a nossos
próprios sentimentos quanto a valorização da virgindade, o estado de
intocabilidade da mulher. O alto valor que o pretendente atribui à virgindade
da mulher parece-nos tão fortemente enraizado, tão natural, que ficaremos quase
perplexos se tivermos de oferecer razões para justificar essa opinião. A
exigência de que a moça leve para seu casamento com determinado homem qualquer
lembrança de relações sexuais com outro nada mais é, realmente, que a
continuação lógica do direito à posse exclusiva da mulher, que constitui a
essência da monogamia, a extensão desse monopólio para incluir o passado.
Partindo
deste ponto, não temos dificuldade em justificar o que a princípio parecia um
preconceito, quando nos referimos a nossos pontos de vista sobre a vida erótica
das mulheres. Seja quem for o primeiro a satisfazer o desejo de amor de uma
virgem, longa e penosamente refreado, e que ao fazê-lo vence as resistências
que nela foram criadas através das influências de seu meio e de sua educação,
este será o homem que a prenderá num relacionamento duradouro, possibilidade
esta que jamais se oferecerá a qualquer outro homem. Essa experiência cria, na
mulher, um estado de sujeição que garante que sua posse permanecerá
imperturbada e que a torna capaz de resistir a novas impressões e tentações
estranhas.
A
expressão `sujeição sexual’ foi escolhida, por von Krafft-Ebing, (1892) para
descrever o fenômeno de uma pessoa adquirir um grau de dependência,
invulgarmente alto, e carente de autoconfiança em relação a outra pessoa com
quem mantém um relacionamento sexual. Esta sujeição pode, em certa
circunstância, estender-se bastante, ir até a perda de toda vontade
independente e até fazer a pessoa sofrer os maiores sacrifícios de seus
próprios interesses; o autor, no entanto, não deixa de salientar que certa
proporção dessa dependência `é absolutamente necessária, se o laço for
destinado a durar um período de tempo razoável. Certa medida de sujeição sexual
é, de fato, indispensável para a manutenção do casamento civilizado e para
manter afastadas as tendências à poligamia que o ameaçam e, em nossas
comunidades sociais, este fator é comumente levado em consideração.
Segundo
von Krafft-Ebing a formação da sujeição sexual decorre da associação de um
`grau invulgar da condição de estar amando e da franqueza de caráter’ de uma
pessoa, e do egoísmo sem limites da outra. A experiência analítica, no entanto,
não pode nos deixar satisfeitos com este simples esforço de explicação. Podemos
observar, antes, que o fator decisivo é a proporção de resistência sexual que é
vencida e, além disso, o fato de que o processo de vencer a resistência se
concentra e ocorre apenas uma vez. Este estado de sujeição é, em conseqüência,
muito mais freqüente e mais intenso nas mulheres que nos homens, conquanto seja
verdade que ocorra nos últimos muito mais amiúde hoje que antigamente. Sempre
que se nos ofereceu a oportunidade de estudar a sujeição sexual nos homens,
esta se revelou como resultante da superação de impotência psíquica, por meio
de determinada mulher a quem, subseqüentemente, o homem em questão permaneceu
sujeito. Muitos casamentos estranhos e não poucos acontecimentos trágicos -
alguns mesmo de amplas conseqüências - parecem ser explicados por essa origem.
Voltando
à atitude dos povos primitivos, é incorreto descrevê-la afirmando que não
atribuíam valor à virgindade e oferecer como prova disto o fato de que realizam
o defloramento das moças fora do casamento e antes do primeiro ato de relação
sexual marital. Ao contrário, o defloramento, para eles, parece que também é um
ato significativo; tornou-se, porém, matéria de tabu - de uma proibição que se
pode descrever como religiosa. Em lugar de reservá-la para o noivo da moça e
futuro companheiro no casamento, o costume determina que ele se absterá de
executá-la.
Não é
parte de minha intenção fazer uma compilação completa da evidência literária de
que existe esse costume da proibição, aprofundar sua distribuição geográfica e
enumerar todas as formas em que ela se manifesta. Limitar-me-ei, portanto, a
declarar o fato de que a prática da ruptura do hímen dessa maneira, fora do
casamento subseqüente, é muito disseminada entre as raças primitivas que vivem
ainda hoje. Como diz Crawley, `Essa cerimônia do casamento consiste na
perfuraçãodo hímen por uma pessoa designada que não o marido; é muito comum nos
estágio mais baixos de cultura, especialmente na Austrália.’ (Crawley, 1902,
347.)
No
entanto, se o defloramento não é para ser conseqüência do primeiro ato de
relação sexual marital, então, é porque deve ter sido executado antecipadamente
- não importa de que maneira nem por quem. Transcreverei algumas passagens do
livro de Crawley, acima mencionado, que fornecem informações sobre esses
pontos, mas que também dão vaza a algumas observações críticas.
(Ibid.,
191.) `Assim na tribo Dieri e em suas vizinhas (na Austrália) é costume
universal perfurar o hímen da menina quando ela atinge a puberdade (Journal of
Royal Anthropological Institute, 24, 169). Nas tribos Portland e Glenelg isto é
feito à noiva por uma mulher idosa; e, às vezes, com essa finalidade são
solicitados homens brancos para deflorar as moças (Brough Smith, [1878], 2,
319).’
(Ibid,
307) `A ruptura artificial do hímen, às vezes, ocorre na infância, mas,
geralmente, na puberdade... É freqüentemente acompanhada, como na Austrália,
por um ato cerimonial de relações sexuais.’
(ibid.,
348) (A respeito das tribos australianas entre as quais vigoram as conhecidas
restrições ao casamento exógamo, segundo Spencer e Gillen [1899]:) `O hímen é
perfurado artificialmente e, então, os homens da assistência têm acesso
(cerimonial, bem entendido) à moça em ordem determinada.... O ato se realiza em
duas partes, perfuração e relação sexual.’
(Ibid.,
349.) `Uma preliminar importante do casamento entre os Masai (da África
Equatorial) é a execução dessa operação na menina (J. Thomson, [1887], 2, 258).
Esse defloramento é efetuado pelo pai da noiva entre os Sakais (Malásia), os
Battas (Sumatra) e os Alfoers das Celebes (Ploss e Bartels, [1891], 2, 490).
Nas Filipinas, havia determinados homens cuja profissão era deflorar noivas,
caso o hímen não houvesse sido perfurado na infância por uma mulher idosa, às
vezes contratada para esse fim (Featherman, [1885-91], 2, 474). O defloramento
da noiva entre certas tribos Esquimós era confiado ao angekok, ou sacerdote
(ibid, 3, 406).
As
observações críticas a que me referi dizem dizem respeito a dois pontos. Em
primeiro lugar, é lamentável que nessas comunicações não se tenha estabelecido
uma distinção mais cuidadosa entre a simples ruptura do hímen sem relação
sexual, e a relação sexual com finalidade de efetuar a ruptura. Há apenas uma
passagem que nos dá conta, expressamente, de que o procedimento se faz em dois
atos: o defloramento (efetuado à mão ou por meio de algum instrumento) e o ato
da relação sexual que se lhe segue. O material em Ploss e Bartels 91891), sob
outros aspectos tão rico, é quase inútil para nosso propósito, porque em sua
apresentação a importância psicológica do ato do defloramento é completamente
deslocado em favor de suas conseqüências anatômicas. Em segundo lugar,
gostaríamos de saber de que maneira o `cerimonial’ do coito (puramente formal,
ritual ou oficial), que ocorre nessas ocasiões, difere da relação sexual comum.
Os autores a que tive acesso, ou se sentiram muito acanhados para comentar o
assunto, ou mais uma vez subestimaram a importância psicológica desses
pormenores sexuais. Resta-nos esperar que os relatos de primeira mão de
viajantes e missionários possam ser mais completos e menos ambíguos; visto que
a literatura sobre esta matéria, em sua maior parte estrangeira, é, no momento,
inacessível, nada posso afirmar de definitivo sobre o assunto. Além do mais,
poderemos contornar o problema que surgiu em relação a este segundo ponto, se
levarmos em conta o fato de que um cerimonial de coito simulado poderia afinal
apenas representar o substituto, e, talvez, de modo geral, a recomposição de um
ato que anos antes teria sido completamente levado a cabo.
Vários
fatores podem ser acrescentados para explicar esse tabu da virgindade, os quais
enumerarei e considerarei brevemente. Quando uma virgem é deflorada, de maneira
geral, sangra: a primeira tentativa de explicação baseia-se, pois, no horror ao
sangue entre as raças primitivas que consideram sangue como a origem da vida.
Observa-se esse tabu do sangue em numerosos tipos de práticas que nada têm que
ver com a sexualidade; está claramente relacionado com a proibição de
assassinar e constitui uma medida de proteção contra a primitiva sede de
sangue, o prazer primevo do homem ao matar. De acordo com esta concepção, o
tabu da virgindade se relaciona com o tabu da menstruação, que é quase
universalmente conservado. Os povos primitivos não podem dissociar esse estranho
fenômeno do fluxo mensal de sangue de idéias sádicas. A menstruação,
especialmente, na primeira vez que aparece, é interpretada como a mordedura do
espírito de um animal, talvez como um sinal de relação sexual com este
espírito. Ocasionalmente, alguma informação fornece fundamentos para reconhecer
o espírito como o de um antepassado e, então, apoiados em outras descobertas,
chegamos à conclusão de que a menina que menstrua é tabu porque constitui
propriedade desse espírito ancestral.
Outras
considerações, no entanto, advertem-nos a não superestimar a influência de um
fator como o horror ao sangue. Afinal ele não foi assim tão forte para impedir
práticas tais como a circuncisão de meninos e seu equivalente ainda mais cruel
nas meninas (excisão do clitóris e dos pequenos lábios), que são, em certa
extensão, costume nessas mesmas raças, nem para abolir a prevalência de outras
cerimônias que envolvem derramamento de sangue. Portanto, também não seria
surpreendente se este horror fosse sobrepujado em benefício do marido na
ocasião da primeira coabitação.
Há
uma segunda explicação, que também não leva em conta a sexualidade, que tem, no
entanto, alcance muito mais geral que a primeira. Sugere que o homem primitivo
é vítima de perpétua apreensão secreta, tal como, na teoria psicanalítica das
neuroses, afirmamos ser o caso das pessoas que sofrem de neurose de angústia.
Esta apreensão se manifestará de forma mais intensa em todas as ocasiões que
diferem de qualquer forma do habitual, que envolvam alguma coisa nova ou
inesperada, algo não compreensível ou misterioso. É esta, também, a origem das
práticas de cerimoniais, amplamente adotadas por religiões subseqüentes,
relativas ao início de qualquer novo empreendimento, ao começo de cada novo
período de tempo, aos primeiros frutos da vida humana, animal ou vegetal. Os
perigos que o homem ansioso acredita que o ameaçam nunca parecem tão vívidos em
sua expectativa como no limiar de uma situação perigosa e, também, é a única
ocasião em que se proteger contra os mesmos produz alguma ajuda. O primeiro ato
de relação sexual, no casamento, pode certamente requerer, em ordem de
importância, ser precedido dessas medidas de precaução. Estas duas tentativas
de explicação, baseadas no horror ao sangue e no medo dos primeiros
acontecimentos, não se contradizem mas, ao contrário, se reforçam. A primeira
ocasião de relação sexual é, certamente, um ato perigoso, sobretudo se implia
fluxo de sangue.
A
terceira explicação - a que Crawley prefere - chama a atenção para o fato de
que o tabu da virgindade é parte de uma grande soma que abrange a totalidade da
vida sexual. Não é, apenas, o primeiro coito com uma mulher que constitui tabu
e sim a relação sexual de um modo geral; quase se pode dizer que a mulher
inteira é tabu. A mulher não é unicamente tabu em situações especiais
decorrentes de sua vida sexual, tais como a menstruação, a gravidez o parto e o
puerpério; além dessas situações, as relações sexuais com as mulheres estão
sujeitas a restrições tão solenes e numerosas que temos muitas razões para
duvidar da suposta liberdade sexual dos selvagens. É verdade que, em ocasiões
especiais, a sexualidade do homem primitivo pode sobrepujar todas as inibições;
mas, de maneira geral, parece ser mais fortemente dominada por proibições do
que o é nas camadas mais altas da civilização. Sempre que o homem se lança em
um empreendimento especial, como partir para uma expedição, para uma caça ou
uma campanha, é obrigado a se afastar da mulher e, principalmente, da relação
sexual com a mesma; pois, de outra forma, ela pode lhe paralisar a força e lhe
trazer má sorte. Nos costumes da vida diária, há, igualmente, uma tendência
inequívoca para manter os sexos separados. As mulheres vivem com mulheres, os
homens, com homens; a vida de família, como a entendemos, parece quase não
existir em muitas tribos primitivas. Esta separação vai às vezes tão longe que
não se permite a um sexo pronunciar em voz alta os nomes próprios dos membros
do outro sexo e as mulheres criam uma linguagem com um vocabulário especial. As
necessidades sexuais podem, de tempos a tempos, derrubar novamente essas
barreiras de separação mas, em algumas tribos, mesmo os encontros entre marido
e mulher têm de se realizar fora de casa e às escondidas.
Toda
vez que o homem primitivo tem de estabelecer um tabu, ele teme algum perigo e
não se pode contestar que um receio generalizado das mulheres se expressa em
todas essas regras de evitação. Talvez este receio se baseie no fato de que a
mulher é diferente do homem, eternamente incompreensível e misteriosa,
estranha, e, portanto, aparentemente hostil. O homem teme ser enfraquecido pela
mulher, contaminado por sua feminilidade e, então, mostra-se ele próprio
incapaz. O efeito que tem o coito de descarregar tensões e causar flacidez pode
ser o protótipo do que o homem teme; e a representação da influência que a
mulher adquire sobre ele através do ato sexual, a consideração que ela em
decorrência do mesmo lhe exige pode justificar a ampliação desse medo. Em tudo
isso, não há nada obsoleto, nada que não permaneça ainda vivo em nós mesmos.
Muitos
estudiosos das raças primitivas, que ainda vivem hoje, formularam a teoria de
que seus impulsos no amor são relativamente fracos e nunca atingem o grau de
intensidade que estamos acostumados a encontrar nos homens civilizados. Outros
observadores contestaram esta opinião, mas, de qualquer modo, a prática de
tabus, que descrevemos, testemunha a existência de uma força que se opõe ao
amor pela rejeição de mulheres por serem estranhas e hostis.
Crawley,
numa linguagem que difere apenas ligeiramente da terminologia habitual da
psicanálise, afirma que cada indivíduo é separado dos demais por um `tabu de
isolamento pessoal’ e que constitui precisamente as pequenas diferenças em
pessoas que, quanto ao resto, são semelhantes, que formam a base dos
sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles. Seria tentador desenvolver
essa idéia e derivar desse `narcisismo das pequenas diferenças’ a hostilidade
que em cada relação humana observamos lutar vitoriosamente contra os
sentimentos de companheirismo e sobrepujar o mandamento de que todos os homens
devem amar ao seu próximo. A psicanálise acredita que descobriu grande parte do
que fundamenta a rejeição narcísica das mulheres pelos homens, a qual está tão
entremeada com o desprezo por elas, ao chamar a atenção para o complexo da
castração e sua influência sobre a opinião em que são tidas as mulheres.
Podemos
ver, no entanto, que estas últimas considerações nos levaram a pesquisar muito
além do nosso tema. O tabu geral das mulheres não deita nenhuma luz sobre as
regras especiais em relação ao primeiro ato sexual com a virgem. No que lhes
diz respeito, não fomos além das duas primeiras explicações, baseadas no horror
ao sangue e no medo das primeiras ocorrências e, mesmo estas, devemos
assinalar, não vão ao âmago do tabu em questão. É perfeitamente claro que a
intenção que motiva este tabu é negar ou repudiar precisamente o futuro marido,
o que não pode ser dissociado do primeiro ato sexual, muito embora, de acordo com
nossas observações preliminares, exatamente essa relação levaria a mulher a se
tornar especialmente ligada a esse único homem.
Não
nos cabe nesta oportunidade examinar a origem e a significação definitiva das
observâncias de tabus. Fi-lo em meu livro Totem and Taboo (Totem e Tabu)
[1912-13], em que dediquei a devida consideração ao papel desempenhado pela
ambivalência primitiva na determinação da formação de tabus e em que delineei a
gênese dos mesmos nos acontecimentos pré-históricos que levaram à fundação da
família humana. Já não podemos mais reconhecer uma significação original desta
espécie nos tabus observados entre tribos primitivas de nossos dias. Esquecemos
tudo muito facilmente, na expectativa de encontrar alguma coisa que, mesmo os
povos mais primitivos existentes em uma cultura muito distante daquela dos
tempos primevos, a qual é tão velha quanto a nossa própria cultura, do ponto de
vista do tempo e, como a nossa, corresponde a um estágio de desenvolvimento
posterior, embora diferente.
Hoje,
encontramos, entre os povos primitivos, tabus já elaborados em um sistema
complicado exatamente da mesma espécie dos que os neuróticos de nosso meio
desenvolvem com suas fobias e observamos velhos temas substituídos por novos
que se adaptam uns aos outros de forma harmoniosa. Deixando de lado esses
problemas genéticos, então, podemos voltar ao conceito de que o homem primitivo
institui um tabu quando teme algum perigo. De modo geral, esse perigo é de
natureza física, pois o homem primitivo, a essa altura, não é impelido a
estabelecer duas distinções que, para nós, não podem ser ignoradas. Ele não
separa o perigo material do psíquico, nem o real do imaginário. Em sua
concepção animista do universo consistentemente aplicada, todo perigo decorre
da intenção hostil de algum ser dotado de alma como ele próprio, e isto se
aplica tanto aos perigos que o ameaçam, procedentes de alguma força natural,
como aos perigos procedentes de outros seres humanos ou animais. Mas, por outro
lado, ele está acostumado a projetar seus próprios impulsos internos de
hostilidade no mundo exterior, isto é, a atribuí-los aos objetos que sente como
desagradáveis ou mesmo, meramente, estranhos. Desta maneira, as mulheres também
são consideradas como sendo desses perigos, e o primeiro ato sexual com a
mulher destaca-se como um perigo de especial intensidade.
Eu,
por exemplo, acredito que encontraremos alguma indicação sobre o que é esse
perigo intensificado e por que ele ameaça, precisamente, o futuro marido, se
examinarmos mais detidamente o comportamento, nas mesmas circunstância, de
mulheres de nosso próprio estágio atual de civilização. Submeter-me-ei
antecipadamente como resultado desse exame, que tal perigo realmente existe, de
modo que, no caso do tabu da virgindade, o homem primitivo está se defendendo
de um perigo corretamente pressentido, apesar de psíquico.
Consideramos
como reação normal que a mulher, em subseqüência à introdução do pênis, abrace
o homem, apertando-o contra ela no auge da satisfação, e observamos essa
atitude como expressão de sua gratidão e prova de sujeição duradoura. Mas
sabemos que não é regra, de maneira alguma, que a primeira ocasião do ato
sexual conduza a esse comportamento; muito freqüentemente significa apenas
desapontamento para mulher, que permanece fria e insatisfeita e, geralmente,
requer bastante tempo e freqüente repetição do ato sexual, antes que também
comece a encontrar satisfação no mesmo. Há uma sucessão ininterrupta dos casos
de simples frigidez inicial que logo desaparece, até a triste manifestação de
permanente e obstinada frigidez que nenhum esforço carinhoso da parte do marido
pode vencer. Acredito que essa frigidez nas mulheres ainda não é
suficientemente compreendida e, exceto para aqueles casos que devem ser
atribuídos à potência insuficiente do homem, clama por elucidação,
possivelmente através de fenômenos coligados.
Não
quero introduzir, a esta altura, as tentativas - que são freqüentes - de fugir
da primeira ocasião de relação sexual, porque estão abertas a diversas
interpretações e são, na maioria das vezes, conquanto nem sempre, compreendidas
como expressão da tendência geral feminina a tomar uma atitude defensiva. Em
oposição a este conceito, acredito que se pode esclarecer o enigma da frigidez
da mulher por determinados casos patológicos nos quais, depois da primeira, e
por certo, depois de cada experiência repetida de relação sexual, a mulher dá
expressão manifesta de sua hostilidade para com o homem, injuriando-o,
levantando a mão contra ele ou, realmente, batendo-lhe. Em um caso muito evidente
deste tipo, o qual logrei submeter a uma análise completa, isto aconteceu,
embora a mulher amasse muito o homem, costumasse exigir relações sexuais com
ele e, inequivocamente, encontrasse nas mesmas grandes satisfação. Penso que
esta reação, estranha e contraditória, é conseqüência dos mesmos impulsos que,
comumente, só podem encontrar expressão na forma de frigidez - isto é, que
podem deter a reação de ternura sem, ao mesmo tempo, lograrem eles próprios se
colocar em ação. No caso patológico, encontramos separados, por assim dizer, em
seus dois componentes, o que no exemplo bastante comum de frigidez se une para
produzir um efeito inibidor, tal qual o processo que há muito reconhecemos nos
chamados `sintomas bifásicos’ da neurose obsessiva. O perigo que assim se
levanta pelo defloramento de uma mulher consiste em atrair sua hostilidade para
si próprio, e o marido em perspectiva é exatamente a pessoa que teria toda
razão para evitar tal inimizade.
Desde
que a análise nos permite inferir sem dificuldade quais os impulsos que, nas
mulheres, tomam parte na realização desse comportamento paradoxal eu espero
encontrar a explicação da frigidez. O primeiro ato sexual mobiliza uma série de
impulsos que estão deslocados na atitude feminina do desejo, alguns dos quais,
incidentemente, não necessitam tornar a suceder nas relações sexuais
subseqüentes. Em primeiro lugar, pensamos na dor que o defloramento causa à
virgem e estamos, talvez mesmo, inclinados a considerar este fator como
decisivo e a abandonar a procura de outros. Mas não podemos atribuir tanta
importância a essa dor; temos, antes, de substituí-la pela injúria narcísica
que decorre da destruição de um órgão e que é mesmo representada de forma
racionalizada no conhecimento de que a perda da virgindade leva à diminuição do
valor sexual. Os costumes do casamento entre povos primitivos, no entanto,
contêm uma advertência contra a superestimação deste fato. Soubemos que, em
alguns casos, o rito recai em duas fases; depois que se rompeu o hímen (com a
mão ou algum instrumento), segue-se o ato cerimonial do coito ou do ato sexual
simulado com os representantes do marido e isto nos prova que a finalidade da
observância do tabu não é cumprida ao se evitar o defloramento anatômico, e que
o marido deve ser poupado de alguma outra coisa, bem como da reação da mulher à
lesão dolorosa.
Encontramos
outra razão para o desapontamento experimentado no primeiro ato sexual no fato
de que, pelo menos com as mulheres civilizadas, a satisfação pode não
corresponder às expectativas. Antes disto, a relação sexual fora associada, da
maneira mais decisiva possível, às proibições; a relação sexual legítima e
permissível não é, portanto, sentida como a mesma coisa. Quão íntima pode ser
esta associação se demonstra, de forma quase cômica, através dos esforços de
tantas moças prestes a se casar para conservar seu novo relacionamento amoroso
em segredo de todas as outras pessoas, e de certo até mesmo de seus pais,
quando não há necessidade real de fazê-lo e de onde se pode esperar qualquer
objeção. As moças freqüentemente dizem abertamente que seu amor perde o valor
para elas se as outras pessoas souberem dele. De vez em quando, este sentimento
pode se tornar dominante e impedir completamente o desenvolvimento de qualquer
capacidade para o amor do casamento. A mulher só recupera sua susceptibilidade
aos sentimentos de ternura em um relacionamento ilícito que tenha de se manter
secreto, e no qual só ela sabe com certeza que sua própria vontade não é
influenciada [cf. em [1]].
No
entanto, também este motivo não conduz a um aprofundamento suficiente; além do
mais, sendo limitado por condições civilizadas, falha em prover uma conexão
satisfatória com as circunstâncias entre os povos primitivos. Tanto mais
importante, portanto constitui o próximo fator, que se baseia na evolução da
libido. Aprendemos, das investigações analíticas, quão universais e quão
poderosas são as distribuições iniciais da libido. Nelas nos preocupamos com os
desejos sexuais infantis a que estão apegados (na mulher geralmente a fixação
da libido localiza-se no pai ou em um irmão que o substitui) - desejos que,
muito freqüentemente, estavam dirigidos para outras coisas que a relação sexual
ou que a incluía, apenas, como um objetivo vagamente percebido. O marido é,
quase sempre, por assim dizer, apenas um substituto, nunca o homem certo; é
outro homem - nos casos típicos o pai - que primeiro tem direito ao amor da
mulher, o marido quando muito ocupa o segundo lugar. Depende de quão intensa
seja essa fixação e de quão obstinadamente ela seja conservada, quer ou não o
substituto seja rejeitado como insatisfatório. A frigidez inclui-se, assim,
entre os determinantes genéticos das neuroses. Quanto mais poderoso o elemento
psíquico na vida sexual de uma mulher, maior será a capacidade de resistência
demonstrada por sua distribuição da libido à revolta contra o primeiro ato
sexual, e menos esmagador será o efeito que sua posse corporal pode produzir. A
frigidez pode, então, se estabelecer como uma inibição neurótica ou fornecer a
base para o desenvolvimento de outras neuroses e, até mesmo, uma pequena
diminuição da potência no homem contribuirá grandemente para influir nesse
processo.
Os
costumes dos povos primitivos parecem levar em consideração esse tema do desejo
sexual precoce, confiando a tarefa do defloramento a um ancião, sacerdote ou
homem santo, isto é, a um substituto do pai (vide [1]). Parece-me que existe um
caminho direto que leva desse costume para a questão muito debatida do jus
primae noctis do senhor do castelo dos tempos medievais. A. J. Storfer (1911)
apresentou o mesmo conceito e, além disso, como o fizera Jung (1909) antes
dele, interpretou a difundida tradição das `noites de Tobias’ (o costume da
continência durante as três primeiras noites do casamento) como o reconhecimento
do privilégio do patriarca. Ele, portanto, concorda com nossas suposições
quando encontramos imagens de deuses incluídas entre os sub-rogados do pai
incumbidos do defloramento. Em algumas regiões da Índia, a mulher recém-casada
era obrigada a sacrificar seu hímen à linga de madeira e, segundo Santo
Agostinho, o mesmo costume era observado na cerimônia de casamento dos romanos
(de seu tempo?), porém modificado de maneira que a jovem esposa tinha apenas de
sentar-se no gigantesco falo de pedra de Príapo.
Há
outro motivo, que penetra ainda mais fundo, que pode ser demonstrado como o
principal responsável pela reação paradoxal em relação ao homem e que, na minha
opinião, além disso, exerce influência na frigidez da mulher. O primeiro ato de
relação sexual ativa na mulher outros impulsos antigos, que como os já
descritos, e este estão em absoluta oposição a seu papel feminino e à sua
função.
Aprendemos
das análises de muitas mulheres neuróticas que elas passam, em sua infância,
por uma fase em que invejam nos irmãos o seu símbolo de masculinidade e se
sentem em desvantagem e humilhadas devido à falta dele em si mesmas (na verdade
devido à sua proporção diminuta). Incluímos essa `inveja do pênis’ no `complexo
de castração’. Se compreendemos `masculino’ como noção que inclui o desejo de
ser masculino, então a designação `protesto masculino’ se adapta a esse
comportamento: a expressão foi cunhada por Adler [1910] com a intenção de
proclamar este fator como o responsável pelas neuroses em geral. Durante essa fase,
as meninas, geralmente, não fazem segredo de sua inveja, nem da hostilidade
para com seus irmãos favoritos dela decorrente. Tentam até urinar de pé, como
seus irmãos, a fim de provar a igualdade a que aspiram. No caso já descrito
[ver em [1]] no qual a mulher costumava mostrar, depois da relação sexual, uma
agressividade incontrolável dirigida contra o marido, que aliás amava, consegui
provar que essa fase existira antes da fase da escolha de objeto. Só mais
tarde, foi a libido da menina dirigida para seu pai e, então, em vez de desejar
ter um pênis, desejou - um filho.
Não
deveria me surpreender se, em outros casos, a ordem em que esses impulsos
ocorreram fosse invertida e essa parte do complexo de castração só se tornasse
efetiva depois que a escolha de objeto se houvesse realizado com êxito. Mas a
fase masculina na menina, na qual ela inveja o menino por seu pênis é, em
qualquer caso, desenvolvimentalmente a anterior e está mais próxima do
narcisismo original do que o objeto de amor.
Há
algum tempo tive a oportunidade de obter a compreensão (insight) através de um
sonho de uma mulher recém-casada, em que era reconhecível a reação à perda de
sua virgindade. Delatava, espontâneamente, o desejo da mulher de castrar seu
jovem marido e guardar o pênis dele para ela. Evidentemente, também havia lugar
para uma interpretação mais inocente de que o que ela desejava era o
prolongamento e a repetição do ato, mas vários pormenores do sonho não se
enquadradavam nesse significado e, tanto o caráter como o comportamento
subseqüente da mulher que teve o sonho evidenciaram em favor do aspecto mais
grave. Por trás dessa inveja do pênis, manifesta-se a amarga hostilidade da
mulher contra o homem, que nunca desaparece completamente nas relações entre os
sexos e que está claramente indicada nas lutas e na produção literária das
mulheres `emancipadas’. Em uma especulação paleobiológica, Ferenczi atribuiu a
origem dessa hostilidade das mulheres - não sei se foi ele o primeiro a fazê-lo
- à época em que os sexos se tornavam diferenciados. A princípio, em sua
opinião, a cópula realizou-se entre dois indivíduos semelhantes, um dos quais,
no entanto, transformou-se no mais forte e forçou o mais fraco a se submeter à
união sexual. Os sentimentos de amargura decorrentes dessa sujeição ainda
persis-tem na disposição das mulheres hoje em dia. Não creio que haja qualquer
inconveniente em utilizar essa especulações desde que não se empreste a elas
demasiado valor.
Depois
desta enumeração dos motivos da reação paradoxal das mulheres ao defloramento,
cujos traços ainda persistem na frigidez, podemos resumir dizendo que a
sexualidade imatura de uma mulher descarrega-se no homem que primeiro lhe faz
conhecer o ato sexual. Assim sendo, o tabu da virgindade é bastante razoável e
podemos compreender a regra que decreta que exatamente o homem que deve
ingressar numa vida em comum com essa mulher evite esse perigos. Nos estágios
mais altos da civilização, a importância atribuída a esse perigo diminui em
face de sua promessa de sujeição e, sem dúvida, de outros motivos e persuasões;
a virgindade é considerada uma propriedade a que o marido não é solicitado a
renunciar. Mas, a análise de casamento infelizes nos ensina que os motivos que
procuram levar a mulher a se vingar do seu defloramento não estão completamente
extintos, mesmo na vida psíquica das mulheres civilizadas. Creio que deve
chamar a atenção do observador o número extraordinariamente elevado de casos em
que a mulher permanece frígida e se sente infeliz em um primeiro casamento, ao
passo que, depois que este se dissolveu, ela se torna uma esposa meiga, capaz
de fazer feliz o seu segundo marido. A reação arcaica esgotou-se, por assim
dizer, no primeiro objeto.
O
tabu da virgindade, no entanto, mesmo independentemente disto, não desapareceu
em nossa existência civilizada. É conhecido da crença popular e oportunamente
os escritores têm-se utilizado desse material. Uma comédia da autoria de
Anzengruber mostra como um simples camponês é dissuadido de casar com sua noiva
pretendida porque ela é `uma rapariga que lhe cobrará primeiro a vida’. Por
esse motivo, ele concorda em que ela case com outro homem e está disposto a
aceitá-la quando ficar viúva e não for mais perigosa. O título da peça, Das
Jungferngift [`O Veneno da Virgem’], traz-nos à lembrança o hábito dos
encantadores de serpentes que, primeiro, fazem as cobras venenosas morderem um
pedaço de pano a fim de, depois, lidarem com elas sem perigo.
O
tabu da virgindade, e alguma coisa sobre sua motivação, foi representado, da
maneira mais vigorosa, por uma conhecida caracterização dramática, a de Judite,
na tragédia de Hebbel, Judith und Holofernes (Judite e Holofernes), Judite é
uma dessas mulheres cuja virgindade é protegida por um tabu. Seu primeiro
marido foi paralisado na noite nupcial por uma misteriosa ansiedade e nunca
mais ousou tocá-la. `Minha beleza é como a beladona’, diz ela `Seu deleite traz
a loucura e a morte.’ Quando o general assírio está cercando sua cidade, ela
concebe o plano de seduzi-lo com sua beleza e de destruí-lo, usando assim um
motivo patriótico, para esconder outro, sexual. Depois de haver sido deflorada
por esse homem poderoso, que se gaba de seu vigor e de sua insensibilidade, ela
encontra forças em sua fúria para lhe cortar a cabeça, tornando-se assim a
libertadora de seu povo. A decapitação é nossa conhecida como símbolo
substituto da castração; Judite é, assim, a mulher que castra o homem que a
deflorou, o que constitui justamente o desejo da mulher recém-casada, expresso
no sonho que comuniquei. É claro que Hebbel sexualizou intencionalmente a
narrativa patriótica do Apócrifo do Velho Testamento, pois, nela, Judite pode
se gabar, depois ao voltar, que não foi violada, e nem existe no texto bíblico
qualquer menção de sua misteriosa noite nupcial. Mas, provavelmente, com a fina
percepção de poeta, ele percebeu o velho motivo, que se havia perdido na
narrativa tendenciosa, e apenas restituiu seu primitivo conteúdo ao material.
Sadger
(1912) demonstrou, em uma análise penetrante, como Hebbel foi influenciado em
sua escolha do material por seu próprio complexo paterno, e como chegou a tomar
a defesa da mulher tão freqüentemente, na luta entre os sexos, e a sentir seu
caminho nos impulsos mais ocultos de sua mente. Ele também transcreve os
motivos que o próprio poeta dá para as alterações que fez no material, e
corretamente considera-as artificiais e como se pretendessem justificar
exteriormente algo de que o poeta, ele próprio, não tem consciência, ao passo
que no fundo o esconde. Não pretendo contestar a explicação que Sadger dá ao
fato de Judite, que segundo a narrativa da Bíblia é uma viúva, ter de se
transformar em uma viúva virgem. Ele se refere à finalidade encontrada nas
fantasias infantis de negar as relações sexuais dos pais e de transformar a mãe
em uma virgem ilesa. Mas eu acrescento: depois que o poeta provou a virgindade
de sua heroína, sua sensível imaginação frisa-se na reação hostil desencadeada
pela violação de sua virgindade.
Podemos
então dizer, em conclusão, que o defloramento não tem apenas a única e civilizada
conseqüência de amarrar a mulher permanentemente ao homem; desencadeia, também,
a reação arcaica de hostilidade para com ele, que pode assumir formas
patológicas, bastante freqüentemente expressas no aparecimento de inibições no
lado erótico da vida marital, e às quais poderemos atribuir o fato de que
segundos casamentos tantas vezes dêem mais certo que o primeiro. O tabu da
virgindade, que nos parece tão estranho, o horror com que, entre os povos
primitivos, o marido evita o ato do defloramento, são plenamente justificados
por essa reação hostil.
É
interessante que, em nossa condição de analista, possamos encontrar mulheres em
quem as reações opostas de sujeição e hostilidade encontrem, ambas, expressão e
permaneçam intimamente associadas entre si. Há mulheres dessa espécie que
parecem ter-se desavindo completamente com seus maridos e que mesmo assim só
podem fazer esforços vãos para se libertar. Tantas vezes quantas queiram
endereçar seu amor a qualquer homem, a imagem do primeiro, conquanto não seja mais
amado, intervém com efeito inibitório. A análise, portanto, nos ensina que
essas mulheres, de fato, ainda se sentem ligadas a seus primeiros maridos em
estado de sujeição, mas não mais por afeição. Não se podem afastar deles,
porque ainda não completaram sua vingança contra eles e, em casos mais
acentuados, nem mesmo trouxeram os impulsos de vingança para a consciência.
A
CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA DA PERTURBAÇÃO PSICOGÊNICA DA VISÃO (1910)
DIE PSYCHOGENE SEHSTÖRUNG IN
PSYCHOANALYTISCHER AUFFASSUNG
(a) EDIÇÕES ALEMÃES:
1910 Ärziliche Fortbildung, suplemento de de
Ärztiliche Standeszeitung, 9, (9), 42-4 (1º de maio).
1913 S.K.S.N., 3, 314-21. (2ª ed., 1921.)
1924 G.S., 5, 301-9.
1943 G.W., 8, 94-102.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
`Psychogenic
Visual Disturbance according to Psycho-Analytical Conceptions’
1924 C.P., 2, 105-12. (Trad. E. Colburn Mayne.)
A
atual tradução inglesa, com o título diferente, `The Psicho-Analytic View of
Psychogenic Disturbance of Vision’, é completamente nova, feita por James e
Alex Strachey.
Este
trabalho é uma contribuição a uma Festschrift em homenagem a Leopold
Königstein, conhecido oftamologista vienense e um dos mais antigos amigos de
Freud. Descreveu-o, em carta a Ferenczi, escrita em 12 de abril de 1910, como
sendo simplesmente uma pièce d’ocassion, sem nenhum valor (Jones, 1955, 1955,
274). Contém, no entanto, pelo menos uma passagem de interesse muito especial.
Pois foi nele que pela primeira vez empregou o termo `instintos do ego’,
identificou-os, explicitamente, com os instintos de autopreservação e
atribui-lhes papel vital na função da repressão. Certas consideração a respeito
do desenvolvimento das concepções de Freud sobre os instintos será encontrada
na Nota do Editor a `Instincts and their Vicissitudes’ (Os Intintos e suas
Vicissitudes) (1915c), volume XIV da Standard Ed. Também vale a pena notar que
nos últimos parágrafos deste trabalho (ver a partir de [1]). Freud expressa,
com firmeza especial, sua convicção de que os fenômenos psíquicos se baseiam
definitivamente nos físicos.
NOTA DO EDITOR BRASILEIRO
A
presente tradução brasileira é da autoria de Paulo Dias Corrêa (Presidente da
Sociedade Brasileira de Psicoterapia de Grupo do Rio de Janeiro.
Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro).
A CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA DA PERTURBAÇÃO PSICOGÊNICA
DA VISÃO
SENHORES,
- Proponho tomar o exemplo da perturbação psicogênica da visão a fim de lhes
mostrar as modificações que se operam em nossa concepção da gênese dos
distúrbios dessa espécie, sob a influência dos métodos de investigação
psicanalítica. Como sabem, a cegueira histérica é considerada um tipo de
perturbação psicogênica visual. Acredita-se, de modo geral, como resultado das
pesquisas da Escola Francesa (inclusive homens da categoria de Charcot, Janet e
Binet), que a gênese desses casos já é conhecida. Pois estamos em condições de
provocar, experimentalmente, uma cegueira dessa espécie, se dispusermos de
alguém susceptível ao sonambulismo. Se o submetermos a hipnose profunda e lhe
sugerirmos a idéia de que ele nada vê com um de seus olhos, ele realmente se
comportará como se tivesse ficado cego daquele olho, como o histérico que,
espontaneamente, desenvolveu uma perturbação visual. Podemos, portanto, armar o
mecanismo das perturbações histéricas, espontâneas, da visão, baseados apenas
no modelo de sugestão hipnótica. No histérico, a idéia de estar cego surge, não
da insinuação do hipnotizador, mas espontaneamente - pela auto-sugestão, como
se diz; e em ambos os casos, a idéia é tão poderosa que se converte em
realidade, exatamente como uma alucinação ou paralisia etc., sugerida.
Isto
parece perfeitamente lógico e satisfará qualquer pessoa que não leve em
consideração os numerosos enigmas que se escondem por trás dos conceitos da
hipnose, da sugestão e da auto-sugestão. A auto-sugestão, em particular,
levanta outras dúvidas. Como e em que condições torna-se uma idéia tão poderosa
a ponto de atuar como sugestão e de se converter facilmente em realidade? Uma
investigação mais aprofundada nos revelou que não podemos responder a essa
pergunta sem nos valermos do concurso do conceito de `inconsciente’. Muitos
filósofos rebelam-se contra a admissão de um inconsciente mental dessa
natureza, porque não tomaram conhecimento dos fenômenos que nos obrigam a tal
admissão. Os psicopatologistas chegaram à conclusão de que não podem evitar
trabalhar com elementos tais como processos psíquicos inconscientes, idéias
inconcientes e assim por diante.
Experiências
apropriadas demonstraram que as pessoas que ficam cegas em virtude de histeria
vêem, não obstante, em certo sentido, mas não completamente. As excitações no
olho cego podem provocar certas conseqüência psíquicas (por exemplo, podem
provocar emoções) muito embora não se tornem conscientes. Assim, as pessoas
histericamente cegas só o são no que diz respeito à consciência; em seu
inconsciente elas vêem. São observações como estas que nos levam a distinguir
os processos mentais conscientes dos inconscientes.
Como
podem essas pessoas desenvolver a `auto-sugestão’ inconsciente de que estão
cegas, quando, não obstante, vêem em seu inconsciente? A resposta apresentada
pelas pesquisas francesas pretende explicar que, nos pacientes predispostos à
histeria, há uma tendência inerente à dissociação - a uma desagregação das
conexões em seu campo psíquico - em conseqüência da qual certos processos
inconscientes não prosseguem até o consciente. Deixamos de lado, completamente,
o valor que essa tentativa de explicação possa ter no que diz respeito à
compreensão dos fenômenos em questão, e encaremos o problemas de outro ângulo.
Como vêem, senhores, a identidade da cegueira histérica com a cegueira
provocada pela sugestão, a que a princípio se deu tanta importância, foi agora
descartada. O paciente histérico fica cego, não em conseqüência de uma idéia
auto-sugestiva de que ele não pode ver, mas como resultado de uma dissociação
entre os processos inconscientes e conscientes no ato de ver; sua idéia de que
não vê é a expressão bem fundada da condição psíquica e não sua causa.
Mas,
se os senhores se queixarem da obscuridade desta exposição, não me será fácil
defendê-la. Procurei dar-lhes uma síntese dos conceitos de diferentes
pesquisadores e, ao fazê-lo, talvez os tenha associado muito intimamente.
Desejei condensar em forma sintética todos os conceitos apresentados, a fim de
tornar inteligível as perturbações psicogênicas - sua origem das idéias
excessivamente poderosas, a diferença entre processos mentais conscientes e
inconscientes e a admissão de dissociação psíquica. E não fui mais
bem-sucedido, em minha tentativa, do que o foram os escritores franceses,
encabeçados por Pierre Janet. Espero, portanto, que me perdoem não só a falta
de clareza como a inexatidão da minha exposição e que me permitam explicar-lhes
como a psicanálise nos levou a uma concepção das perturbações psicogênicas da
visão mais lógica e, talvez, mais de acordo com os fatos.
A
psicanálise também aceita as hipóteses da dissociação e do inconsciente, porém
as relacionamos de modo mutuamente diferente. O conceito psicanalítico é
dinâmico e atribui a origem da vida psíquica a uma interação entre forças que
favorecem ou inibem uma à outra. Se, em qualquer circunstância, um grupo de
idéias permanece no inconsciente, a psicanálise não infere desse fato, de que
há uma incapacidade constitucional para a síntese que se evidencia nessa
determinada dissociação, mas sustenta que o isolamento e o estado de
inconsciência desse grupo de idéias foram causados por uma oposição ativa de
parte de outros grupos. O processo, devido ao qual teve esse destino, é
conhecido como `repressão’ e o consideramos algo análogo a um julgamento
condenatório nos domínios da lógica. A psicanálise ressalta que as repressões
dessa espécie desempenham um papel extraordinariamente importante em nossa vida
psíquica, mas que podem também, muitas vezes, falhar e que essas falhas da
repressão constituem a precondição da formação de sintomas.
Então,
se, como aprendemos, as perturbações psicogênicas da visão dependem de certas
idéias relacionadas com a visão ser suprimida da consciência, teremos de
admitir, do ponto de vista psicanalítico, que essas idéias entraram em oposição
a outras idéias, mais poderosas, em relação às quais adotamos o conceito
coletivo do `ego’ - um conjunto que é constituído de maneira heterogênea, em
épocas diferentes - e, por esse motivo, se encontram sob repressão. Mas qual
pode ser a origem dessa oposição que provoca a repressão entre o ego e os
vários grupos de idéias? Sem dúvida terão notado que não foi possível elaborar
essa pergunta antes do advento da psicanálise, pois nada se sabia anteriormente
a respeito de conflito psíquico e repressão. Nossas pesquisas, no entanto, nos
colocaram em posição de nos dar a resposta desejada. Nossa atenção foi atraída
para a importância dos instintos na vida ideacional. Descobrimos que cada
instintos procura tornar-se efetivo por meio de idéia ativantes que estejam em
harmonia como seus objetivos. Estes instintos nem sempre são compatíveis entre
si; seus interesses amiúde entram em conflito. A oposição entre as idéias é
apenas uma expressão das lutas entre os vários instintos. Do ponto de vista de
nossa tentativa de explicação, uma parte extremamente importante é desempenhada
pela inegável oposição entre os instintos que favorecem a sexualidade, a
consecução da satisfação sexual, e os demais instintos que têm por objetivo a
autopreservação do indivíduo - os instintos do ego.
Como
disse o poeta, todos os instintos orgânicos que atuam em nossa mente podem ser
classificados como `fome’ ou `amor’. Delineamos o `instinto sexual’ desde suas
primeiras manifestações nas crianças, até sua forma final, que é descrita como
`normal’. Descobrimos que é constituído por numerosos `instintos componentes’
que se relacionam com as excitações de partes do corpo; e chegamos a observar
que esse instintos separados têm de passar por um desenvolvimento complicado,
antes de poderem servir eficazmente aos objetivos da reprodução. A luz
projetada pela psicologia sobre a evolução de nossa civilização mostrou-nos que
ela se origina, principalmente, à custa dos instintos sexuais componentes e que
estes têm de ser suprimidos, restringidos, transformados e dirigidos para
objetivos mais elevados, a fim de que de que se possam estabelecer as
construções psíquicas da civilização. Conseguimos reconhecer como um resultado
valioso dessa pesquisa algo que nossos colegas ainda não estão prontos para
aceitar, isto é, que os padecimentos humanos conhecidos como `neuroses’ se
derivam das maneiras muito diversas em que esses processos de transformação dos
instintos sexuais componentes podem malograr. O `ego’ sente-se ameaçado pelas
exigências dos intintos sexuais e os desvia através de repressões; estas, no
entanto, nem sempre produzem o resultado esperado, mas levam à formação de
substitutos perigosos para o reprimido e a reações incômodas por parte do ego.
Dessas duas classes de fenômenos, tomadas como um todo, emergem o que chamamos
os sintomas da neurose.
Desviamos-nos
aparentemente de nosso problema, muito embora ao fazê-lo, tenhamos tocado na
maneira pela qual as condições patológicas da neurose se relacionam como nossa
vida psíquica em geral. Retornemos, porém, à questão mais restrita. Tanto os
instintos sexuais como os instintos do ego, têm, em geral, os mesmos órgãos e
sistemas de órgãos à sua disposição. O prazer sexual não está apenas ligado à
função dos genitais. A boca serve tanto para beijar como para comer e para
falar; os olhos percebem não só alterações no mundo externo, que são importantes
para a preservação da vida, como também as características dos objetos que os
fazem ser escolhidos como objetos de amor - seus encantos. Confirma-se, assim,
o adágio segundo o qual não é fácil para alguém servir a dois senhores ao mesmo
tempo. Quanto mais estreita a relação em que um órgão, uma função dupla desta
espécie, contra com um dos principais instintos, tanto mais ele se retrai do
outro. Este princípio não pode deixar de provocar conseqüências patológicas,
caso os dois intintos fundamentais estejam desunidos e caso o ego mantenha a
repressão do instinto sexual componente em questão. Isto pode ser facilmente
aplicados ao olho e à visão. Suponhamos que o instinto sexual componente que se
utiliza do olhar - o prazer sexual em olhar em olhar - o prazer sexual em olhar
[escoptofilia] - atraiu sobre si a ação defensiva dos intintos do ego, em
conseqüência de suas exigências excessivas, de maneira que as idéias através
das quais seus desejos se expressam sucumbam à repressão e sejam impedidas de se
tornar conscientes; nesse caso haverá uma perturbação geral da relação do olho
e do ato de ver com o ego e a consciência. O ego perderia seu domínio sobre o
órgão, que ficaria, então, totalmente à disposição do instintos sexual
reprimido. É como se a repressão houvesse sido exagerada pelo ego, como se
tivesse despejado a criança com a água do banho: o ego se recusa a ver outra
coisa qualquer, agora que o interesse sexual em ver se tornou tão predominante.
Mas o quadro alternativo parece mais importante. Este atribui o papel ativo em
vez disso ao prazer reprimido de ver. O instinto reprimido vinga-se por ter
sido impedido de maior expansão psíquica, tornando-se capaz de ampliar seu
domínio sobre o órgão que está a seu serviço. A perda do domínio consciente sobre
o órgão é o substituto prejudicial para a repressão que malogrou e que só se
tornou possível a esse preço.
Essa
relação de um órgão com uma dupla exigência sobre ele - sua relação com o ego
consciente e com a sexualidade reprimida - pode ser encontrada de maneira ainda
mais evidente nos órgãos motores do que no olho: como, por exemplo, a mão que
procurou executar um ato de ataque sexual ed ficou paralisada histericamente é
incapaz, depois da inibição do ato, de fazer outra coisa - como se estivesse insistindo
obstinadamente em efetuar uma enervação reprimida; ou como os dedos de pessoas
que renunciaram à masturbação se recusam a aprender os movimentos delicados
indispensáveis para tocar piano ou violino. Quanto ao olho, estamos acostumados
a interpretar os obscuros processos psíquicos implicados na repressão da
escoptofilia sexual e no desenvolvimento da perturbação psicogênica da visão,
como se uma voz punitiva estivesse falando de dentro do indivíduo e dizendo:
`Como você tentou utilizar mal seu órgão para prazeres sensuais perversos, é
justo que você nunca mais veja nada’, e como se, desta maneira, estivesse
aprovando o resultado do processo. A idéia da pena de talião está implícita
nisto e, de fato, nossa explicação da perturbação visual psicogênica coincide
com o que sugerem os mitos e as lendas. A bela lenda de Lady Godiva nos conta
como todos os habitantes da cidade se esconderam por trás de suas venezianas
fechadas, a fim de tornar mais fácil a tarefa da senhora de cavalgar nua pelas
ruas, em pleno dia, e como o único homem que espreitou pelas venezianas os seus
encantos descobertos foi punido com a cegueira. E este não é o único exemplo
que sugere que a enfermidade neurótica também possui a chave secreta da
mitologia.
Senhores,
a psicanálise é injustamente acusada de apresentar teorias puramente
psicológicas para problema patológicos. A ênfase que ela coloca no papel
patogênico da sexualidade, que, afinal, não é certamente um fator
exclusivamente psíquico, deveria por si própria defendê-la contra essa
acusação. Os psicanalistas nunca se esquecem de que o psíquico se baseia no
orgânico, conquanto seu trabalho só os possa conduzir até essa base e não além.
A psicanálise está, portanto, pronta a admitir, e mesmo a postular, que nem
todas as perturbações da visão devem ser psicogênicas, como as que são
provocadas pela repressão da escoptofilia erótica. Se um órgão que serve a duas
espécie de instintos aumenta seus papel erógeno, é de se esperar, em geral, que
tal não ocorra sem a excitabilidade e a inervação do órgão, passivo das
alterações que se manifestarão na forma de perturbação de suas funções a
serviço do ego. De fato, se descobrirmos que um órgão que serve normalmente à
finalidade da percepção sensorial começa a se comportar como um genital real quando
se intensifica seu papel erógeno, não nos parecerá improvável que nele também
estejam ocorrendo alterações tóxicas. Na falta de outra melhor, temos de
conservar a velha e inadequada expressão, perturbações `neuróticas’ para as
duas classes de perturbações funcionais - as de origem fisiológica e as de
origem tóxica - que decorrem do aumento do fator erógeno. De maneira geral, as
perturbações neuróticas da visão apresentam a mesma relação com as psicogênicas
que as `neuroses atuais’ têm com as psiconeuroses: as perturbações visuais
psicogênicas, sem dúvida, dificilmente se manifestam sem as neuróticas, porém
estas últimas podem surgir sem as primeiras. Estes sintomas neuróticos,
infelizmente, são pouco reconhecidos e compreendidos, mesmo hoje em dia; porque
não são diretamente acessíveis à psicanálise e, além disso, outros métodos de
pesquisa não levaram em consideração o ponto de vista da sexualidade.
Há
ainda mais uma linha de pensamento que se estende aos ramos da pesquisa orgânica
provenientes da psicanálise. Podemos indagar de nós mesmos se a supressão dos
instintos sexuais componentes, que é determinada por influências do ambiente, é
suficiente, em si mesma, para provocar perturbações funcionais nos órgãos, ou
se devem estar presentes condições constitucionais especiais, para que os
órgãos sejam levados à exageração de seu papel erógeno;, procurando,
conseqüentemente, a repressão dos instintos. Teríamos de observar essas
condições como a parte constitucional da disposição para adoecer de
perturbações psicogênicas e neuróticas. Este é o fator ao qual, quando aplicado
a histeria, dei o nome provisório de `submissão somática’.
PSICANÁLISE
SILVESTRE (1910)
ÜBER
WILDE PSYCHOANALYSE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1910 Zbl. Psychoan., 1 (3),
91-5.
1913 S.K.S.N., 3, 299-305. (2ª
ed. 1921.)
1924 Technik und Metapsychol.,
37-44.
1924 G.S., 6, 37-44.
1943 G.W., 8, 118-25.
(b) TRADUÇÃO INGLÊSAS:
‘Concerning “Wild” Psychoanalysis’
1912 S.P.H., (2ª ed.), 201-6.
(Trad. A.A. Brill.) (3ª ed. 1920.)
‘Observations on “Wild” Psycho-Analysis’
1924 C.P., 2, 297-304. (Trad. Joan Riviere.)
A
presente tradução inglesa, com o título modificado ‘ “Wild” Psycho-Analysis’
baseia-se na publicada em 1924.
O
tema essencial deste artigo (publicado em dezembro de 1910) já tinha sido
tratado por Freud, cerca de seis anos antes, numa conferência sobre
psicoterapia (1905a), ver em [1]. Além de seu tema principal, o artigo é digno
de atenção por conter uma das raras últimas alusões de Freud às ‘neuroses
atuais’, aliada ao lembrete da importância de se distinguir a neurose de
angústia da histeria da angústia (ver a partir de [2]).
NOTA DO EDITOR BRASILEIRO
A
presente tradução brasileira é da autoria de Paulo Dias Corrêa (Presidente da
Sociedade Brasileira de Psicoterapia de Grupo do Rio de Janeiro,
Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro,
Membro da Associação Psiquiátrica do Rio de Janeiro).
PSICANÁLISE SILVESTRE
HÁ
POUCOS dias, uma dama de meia-idade, sob a proteção de uma amiga, veio à minha
consulta, queixando-se de estados ansiosos. Ela estava na segunda metade de sua
década dos quarenta, razoavelmente bem conservada e, obviamente, não tinha
ainda encerrado a sua condição de mulher. A causa precipitante da irrupção de
seus estados ansiosos fora o divorciar-se de seu último marido; mas a ansiedade
tinha-se tornado consideravelmente mais intensa, conforme seu relato, desde que
consultara um jovem médico no subúrbio onde morava, porque ele a havia
informado de que a causa de sua ansiedade era a sua falta de satisfação sexual.
Disse-lhe que ela não poderia tolerar a falta de relações sexuais com o marido
e, assim, havia apenas três maneiras pelas quais ela poderia recuperar a saúde
- ela devia ou voltar para o marido, ou ter um amante, ou obter satisfação
consigo mesma. Desde então, tinha ela estado convencida de que era incurável,
pois não voltaria para o marido, e as outras duas alternativas eram repugnantes
aos seus sentimentos morais e religiosos. Tinha vindo a mim, todavia, porque o
médico dissera que esta era uma nova descoberta pela qual eu era responsável, e
que ela teria apenas de vir e me solicitar que confirmasse o que ele lhe
dissera, e eu falaria que esta e nada mais era a verdade. A amiga que estava
com ela, uma mulher mais velha, ressequida e de aspecto doentio, implora-me
então que assegure à paciente que o médico estava enganado; não era possível
que fosse verdade, porque ela própria tinha ficado viúva há muitos anos e
permanecia apesar disso respeitável, sem sofrer de ansiedade.
Não
me deterei na desconcertante situação em que estive colocado por esta consulta,
mas considerarei ao invés a conduta do clínico que enviou esta senhora a mim.
Primeiro, no entanto, suportemos uma restrição mental que talvez possa não ser
supérflua - em verdade, assim o esperamos. Longos anos de experiência me
ensinaram - como podem ensinar a qualquer outro - a não aceitar de imediato
como verdade o que os pacientes, especialmente os pacientes nervosos, relatam
acerca de seus médicos. Não apenas facilmente se torna o especialista em
doenças nervosas o objeto de muitos dos sentimentos hostis de seus pacientes,
qualquer que seja o método de tratamento que empregue; ele deve também, muitas
vezes, resignar-se a aceitar, por uma espécie de projeção, a responsabilidade
pelos desejos reprimidos ocultos de seus pacientes nervosos. É um fato
melancólico, mas significativo, que tais acusações em nenhum outro lugar
encontrem crédito mais prontamente do que entre os outros médicos.
Tenho,
por conseguinte, razão para esperar que essa dama me forneceu uma narração
tendenciosamente distorcida do que seu médico havia dito, e que faço a um
homem, que me é desconhecido, uma injustiça, por vincular minhas observações
acerca da psicanálise ‘silvestre’ com esse incidente. Mas, ao fazer isso,
talvez eu possa evitar que outros causem dano a seus pacientes.
Suponhamos,
pois, que o doutor falou à paciente exatamente como aludiu. Qualquer pessoa
adiantaria imediatamente a crítica de que, se um médico julga necessário
discutir a questão da sexualidade com uma mulher, ele deve fazer isso com tato
e consideração. Submeter-se a esta exigência, todavia, coincide com a prática
de certas regras técnicas de psicanálise. Ademais, o médico em questão ignorou
certo número das teorias científicas de psicanálise ou as apreendeu mal, e
assim mostrou quão pouco ele havia penetrado na compreensão da natureza e
finalidade dela.
Comecemos
pelos últimos, os erros científicos. O conselho do doutor à dama mostra
claramente em que sentido ele entende a expressão ‘vida sexual’ - no sentido
popular, ou seja, em que por necessidades sexuais nada se significa senão a
necessidade do coito ou de atos análogos produtores de orgasmo e emissão das
substâncias sexuais. Ele não deve ter ficado esquecido, no entanto, de que a
psicanálise é comumente censurada por haver estendido o conceito do que é
sexual muito além de sua posição vulgar. O fato é incontestável; não discutirei
aqui se ele pode ser judiciosamente usado como um reproche. Em psicanálise, o
conceito do que é sexual abrange bem mais; ele vai mais abaixo e também mais
acima do que seu sentido popular. Essa extensão se justifica geneticamente; nós
reconhecemos como pertencentes à ‘vida sexual’ todas as atividades dos
sentimentos ternos que têm os impulsos sexuais primitivos como fonte, mesmo
quando esse impulsos se tornaram inibidos com relação a seu fim sexual
original, ou tiveram de trocar esse fim por outro que não é mais sexual. Por essa
razão, preferimos falar em psicossexualidade, colocando assim ênfase sobre o
ponto de que o fator mental na vida sexual não deve ser desdenhado ou
subestimado. Usamos a palavra ‘sexualidade’ no mesmo sentido compreensivo que
aquele em que a língua alemã usa a palavra lieben [‘amar’]. Temos desde muito
sabido também que a ausência mental de satisfação, com todas as sua
conseqüências, pode existir quando não há falta de relações sexuais normais; e,
como terapeutas, sempre temos em mente que as tendências sexuais insatisfeitas
(cujas satisfações substitutivas na forma de sintomas nervosos nós combatemos)
podem amiúde encontrar apenas uma derivação muito inadequada no coito ou em
outros atos sexuais.
Quem
quer que não partilhe desde ponto de vista de psicossexualidade não tem o
direito de expor teses psicanalíticas tratando da importância etiológica da
sexualidade. Ao acentuar exclusivamente o fator somático da sexualidade, ele,
sem dúvida, simplifica grandemente o problema, mas ele apenas deverá carregar a
responsabilidade por aquilo que ele faz.
Uma
segunda e igualmente grande incompreensão se distingue por trás do conselho do
médico.
É
verdade que a psicanálise apresenta a ausência de satisfação sexual como a
causa de distúrbios nervosos. Mas não diz ela mais do que isso? Deve-se ignorar
seu ensinamento por ser assaz complicado quando ela afirma que os sintomas
nervosos se originam de um conflito entre duas forças - de um lado a libido
(que, de regra, se torna excessiva) e de outro uma rejeição da sexualidade ou
uma repressão que é sobremodo intensa? Ninguém que se recorde desde segundo
fator, que não é de modo algum secundário, em importância, jamais poderá
acreditar que a satisfação sexual, só por si, constitua um remédio de universal
eficácia para os sofrimentos dos neuróticos. Um bom número nessas pessoas, de
fato, tanto em suas circunstâncias presentes, como de um modo geral, não é
capaz de se satisfazer. Se o fosse, se estivessem livres de suas resistências
internas, a força do próprio instinto lhes indicaria o caminho da satisfação,
ainda que nenhum médico o aconselhasse. Qual o benefício, pois, de conselho
médico tal como o que se admite tenha sido dado a esta senhora?
Ainda
que ele pudesse cientificamente se justificar, este não é conselho que ela possa
seguir. Se ela não tivesse tido resistências internas contra a masturbação ou
contra uma ligação amorosa, naturalmente que já teria adotado, de há muito, uma
dessas medidas. Será que o médico acha que uma mulher com mais de quarenta anos
não se dá conta de que pode ter um amante ou será que superestima ele tanto sua
influência a ponto de julgar que ela nunca chegaria a se decidir sobre tal
passo sem aprovação médica?
Tudo
isso parece muito claro, e não obstante deve-se admitir a existência de um
fator que, amiúde, torna difícil formar uma opinião. Certos estados nervosos
que chamamos de ‘neuroses atuais’, tais como a neurastenia típica e a neurose
de angústia simples, obviamente dependem do fator somático da vida sexual,
enquanto não temos, até agora, um quadro nítido do papel neles desempenhado
pelo fator psíquico e pela repressão. Em tais casos, é natural que o médico
deva considerar primeiro certa terapêutica ‘atual’, certa alteração da
atividade sexual somática da paciente, e ele assim o faz com plena justificativa
se o seu diagnóstico estiver certo. A dama que consultou o jovem doutor
queixava-se, sobretudo, de estado de ansiedade e, assim, ele provavelmente
supôs que ela vinha sofrendo de uma neurose de angústia, e se sentiu
justificado em recomendar-lhe uma terapêutica somática. Outra vez uma cômoda
incompreensão! Uma pessoa padecendo de ansiedade não está por essa razão
necessariamente sofrendo de neurose de angústia; semelhante diagnóstico não se
pode fundamentar sobre a designação [do sintoma]; tem-se de saber que sinais
constituem uma neurose de angústia e ser capaz de distingui-la de outros
estados patológicos que também se manifestam por ansiedade. Minha impressão foi
que a dama em causa estava sofrendo de Histeria de angústia, e todo o valor de
tais distinções nosográficas - um que perfeitamente as justifica - está no fato
de que elas indicam uma etiologia diferente e um tratamento diferente. Ninguém
que levasse em consideração a possibilidade de histeria de angústia nesse caso
teria caído no erro de negligenciar os fatores mentais, como este médico fez
com suas três alternativas.
Estranhamente
bastante, as três alternativas terapêuticas desse assim chamado psicanalista
não deixam lugar para a… psicanálise! Esta mulher, aparentemente, só se podia curar
de sua ansiedade pela volta do marido, ou pela satisfação de suas necessidades
através da masturbação ou com um amante. E onde entra o tratamento analítico,
tratamento que consideramos o remédio principal dos estados de ansiedade?
Isto
nos conduz aos erros técnicos que se vêem no comportamento do doutor neste caso
citado. É idéia há muito superada, e que se funda em aparência superficiais, a
de que o paciente sofre de uma espécie de ignorância, e que se alguém consegue
remover esta ignorância dando a ele a informação (acerca da conexão causal de
sua doença com sua vida, acerca de suas experiência de meninice, e assim por
diante) ele deve recuperar-se. O fator patológico não é esse ignorar
propriamente, mas estar o fundamento dessa ignorância em suas resistências
internas; foram elas que primeiro produziram esse ignorar e elas ainda o
conservam agora. A tarefa do tratamento está no combate a essas resistências. O
informar ao paciente aquilo que ele não sabe porque ele reprimiu é apenas um
dos preliminares necessários ao tratamento. Se o conhecimento acerca do
inconsciente fosse tão importante para o paciente, como as pessoas sem
experiência de psicanálise imaginam, ouvir conferências ou ler livros seria
suficiente para curá-lo. Tais medidas, porém, têm tanta influência sobre os
sintomas da doença nervosa, como a distribuição de cardápios numa época de
escassez de víveres tem sobre a fome. A analogia vai mesmo além de sua
aplicação imediata; pois, informar o paciente sobre seu inconsciente redunda,
em regra, numa intensificação do conflito nele e numa exacerbação de seus
distúrbios.
De
vez, no entanto, que a psicanálise não pode abster-se de dar essa informação,
prescreve que isto não se poderá fazer antes que duas condições tenham sido
satisfeitas. Primeiro, o paciente deve, através de preparação, ter alcançado
ele próprio a proximidade daquilo que ele reprimiu e, segundo, ele deve ter
formado uma ligação suficiente (transferência) com o médico para que seu
relacionamento emocional com este torne uma nova fuga impossível.
Somente
quando estas condições forem satisfeitas se torna possível reconhecer e dominar
as resistências que conduziram à repressão e à ignorância. A intervenção,
portanto, requer de maneira absoluta um período bastante longo de contacto com
o paciente. As tentativas de surpreendê-lo na primeira consulta, inopinadamente
lhe contando os segredos que foram descobertos pelo médico, são tecnicamente
inadmissíveis. E elas, as mais das vezes, trazem sua própria punição por
produzirem uma franca inimizade pelo médico da parte do paciente, e por
impedi-lo de ter qualquer influência ulterior.
Ao
lado de tudo isto, a gente pode algumas vezes fazer uma suposição errônea, e
nunca se está numa posição de descobrir a verdade toda. A psicanálise fornece
essas regras técnicas definidas para substituir o indefinível ‘tato médico’ que
se considera como um dom especial.
Não é
bastante, pois, para um médico saber alguns dos achados da psicanálise; ele
deve também estar familiarizado com a técnica se ele deseja que seu
procedimento profissional se oriente por um ponto de vista psicanalítico. Esta
técnica não pode no entanto ser adquirida nos livros, e ela por certo não pode
ser descoberta independentemente, sem grandes sacrifícios de tempo, de cansaço
e de sucesso. Como outras técnicas médicas, ela tem de ser aprendida com
aqueles que já são experimentados nela. É tema de alguma significação, pois, ao
formar um julgamento sobre o incidente que tomei como ponto de partida para
estes comentários, que não conheço o médico que se supõe ter dado semelhante
conselho à dama e nunca ouvi falar em seu nome.
Nem
eu nem meus amigos e colaboradores achamos agradável reclamar um monopólio
desse modo no uso de uma técnica médica. Mas, em face dos perigos para os
pacientes e para a causa da psicanálise inerentes à prática que se pode antever
de uma psicanálise ‘silvestre’, não tivemos outra escolha. Na primavera de
1910, fundamos uma International Psycho-Analytical Association (Associação
Internacional de Psicanálise), a que seus membros declararam aderir, pela
publicação de seus nomes, de maneira a serem capazes de repudiar a
responsabilidade por aquilo que é feito pelos que não pertencem a nós e no
entanto chamam a seu procedimento ‘psicanálise’. Pois, em verdade, os analistas
‘silvestres’ desta espécie causam mais dano à causa da psicanálise do que aos
pacientes individualmente. Tenho amiúde encontrado que um procedimento inepto
desses, mesmo se a princípio produzia uma exacerbação da condição do paciente,
conduzia a uma recuperação ao final. Nem sempre, mas muito amiúde. Quando ele
já insultou bastante o médico e se sente suficientemente distanciado de sua
influência, seus sintomas cedem, ou ele se decide a tomar alguma iniciativa que
vai no caminho da recuperação. A melhoria final então advém ‘por si’ ou é
atribuída a certo tratamento totalmente neutro por algum outro doutor para quem
o paciente tenha mais tarde se voltado. No caso da senhora cuja queixa contra
seu médico ouvimos, eu devia dizer que, apesar de tudo, o psicanalista ‘silvestre’
fez mais por ela do que alguma autoridade altamente respeitada que lhe tivesse
dito que ela estava sofrendo de uma ‘neurose vasomotora’. Ele forçou a atenção
dela para a verdadeira causa de seu distúrbio, ou nessa direção, e não obstante
toda a oposição dela, essa sua intervenção não pode ter ficado sem resultados
favoráveis. Mas ele causou dano a si próprio e ajudou a intensificar as
prevenções que os pacientes sentem, devido a suas resistências afetivas
naturais, contra os métodos da psicanálise. E isto pode ser evitado.
BREVES
ESCRITOS (1910)
CONTRIBUIÇÕES PARA UMA DISCUSSÃO ACERCA DO SUICÍDIO
I.
OBSERVAÇÕES INTRODUTÓRIAS
Senhores.
Todos vós ouvistes com muita satisfação o arrazoado feito por um educador que
não admitirá que uma acusação injusta se levante contra a instituição que lhe é
tão cara. Mas eu sei que, de todo modo, não estais inclinados a dar fácil
crédito à acusação de que as escolas impelem seus alunos ao suicídio. Não nos
deixemos levar demasiado longe, no entanto, por nossa simpatia pela parte que
foi injustamente tratada nesse caso. Nem todos os argumentos apresentados pelo
iniciador da discussão me parecem sustentáveis. Se é o caso que o suicídio de
jovens ocorre não só entre os aluno de escolas secundárias, mas também entre
aprendizes e outros, este fato não absolve as escolas secundárias; isto deve
talvez ser interpretado como significando que no, concernente a seus alunos, a
escola secundária toma o lugar dos traumas com que outros adolescentes se defrontam
em outras condições de vida. Mas uma escola secundária deve conseguir mais do
que não impelir seus alunos ao suicídio. Ela deve lhes dar o desejo de viver e
devia oferecer-lhes apoio e amparo numa época da vida em que as condições de
seu desenvolvimento os compelem a afrouxar seus vínculos com a casa dos pais e
com a família. Parece-me indiscutível que as escolas falham nisso, e a muitos
respeitos deixam de cumprir seu dever de proporcionar um substituto para a
família e de despertar o interesse pela vida do mundo exterior. Esta não é a
ocasião oportuna para uma crítica às escolas secundárias em sua forma presente;
mas talvez eu possa acentuar um simples ponto. A escola nunca deve esquecer que
ela tem de lidar com indivíduos imaturos a quem não pode ser negado o direito
de se demorarem em certos estágios do desenvolvimento e mesmo em alguns um
pouco desagradáveis. A escola não pode ajudicar-se o caráter de vida: ela não
deve pretender ser mais do que uma maneira de vida.
II.
OBSERVAÇÕES FINAIS
Senhores.
Tenho a impressão de que, a despeito de todo o valioso material que nos foi
exposto, nesta discussão, não chegamos a uma decisão sobre o problema que nos
interessa. Estávamos ansiosos sobretudo em saber como seria possível
subjugar-se ao extraordinariamente poderoso instinto da vida: isto pode apenas
acontecer com o auxílio de uma libido desiludida, ou se o ego pode renunciar à
sua autopreservação, por seus próprios motivos egoístas. Pode ser que tenhamos
deixado de responder a esta indagação psicológica porque não temos meios
adequado para abordá-la. Podemos, eu acredito, apenas tomar como nosso ponto de
partida a condição de melancolia, que nos é tão familiar clinicamente, e uma
comparação entre ela e o afeto do luto. Os processos afetivos na melancolia, entretanto,
e as vicissitudes experimentadas pela libido nessa condição nos são totalmente
desconhecidos. Nem chegamos a uma compreensão psicanalítica do afeto crônico do
luto. Deixemos em suspenso nosso julgamento até que a experiência tenha
solucionado este problema.
A CARTA AO DR. FRIEDRICH S. KRAUSS
SOBRE A ANTHROPOPHYTEIA
MEU
PREZADO DR. KRAUSS,
Você
me pergunta que valor científico, em minha opinião, podem apresentar as
coleções de piadas, de chistes, de anedotas etc., de natureza erótica. Sei que
você não experimentou a menor dúvida de poder justificar haver reunido tais
coleções. Você simplesmente me pede o testemunho, do ponto de vista do
psicólogo, para o fato de que material dessa natureza não só é útil mas
indispensável.
Há
dois pontos, sobre que, principalmente, eu gostaria de insistir. Quando já tudo
se disse e se fez, as sátiras e anedotas cômicas eróticas, que você colecionou
e publicou em Anthropophyteia, só foram produzidas e repetidas porque elas
causaram prazer tanto a seus narradores quanto a seus ouvintes. Não é difícil
adivinhar que componentes instintivos da sexualidade (composta como é de tantos
elementos) encontram satisfação dessa maneira. Essas histórias nos dão
informação direta quanto a que instintos parciais da sexualidade se retêm num
dado grupo de pessoas por serem especialmente eficientes na produção de prazer;
e dessa maneira eles fornecem a confirmação mais nítida das descobertas
conseguidas pelo exame psicanalítico de neuróticos. Permita-me indicar o
exemplo mais importante desta natureza. A psicanálise nos levou a afirmar que a
região anal - normalmente e não apenas nos indivíduos pervertidos - é a sede de
uma sensibilidade erógena, e que a certos respeitos, ela se comporta exatamente
como um órgão genital. Médicos e psicólogos, quando informados de que há um
erotismo anal e um caráter anal dele derivado, ficam altamente indignados.
Neste ponto, a Anthropophyteia vem em auxílio da psicanálise, mostrando quão
universalmente as pessoas se demoram com prazer sobre essa parte do corpo, suas
atividades e mesmo no produto das funções dela. Se isto assim não fosse, todas
essas anedotas estariam fadadas a produzir desagrado em seus ouvintes, ou então
toda a massa da população teria de ser `pervertida’ no significado em que se usa
a palavra nos trabalhos a respeito da `psicopatia sexual’, de tom moralizador.
Não seria difícil dar outros exemplos de como o material colecionado pelos
autores da Anthropophyteia tem sido de valor para as pesquisas de psicologia
sexual. Seu valor poderia mesmo aumentar, talvez, pela circunstância (não uma
vantagem em si) de que os colecionadores nada sabem das descobertas teóricas da
psicanálise e reuniram o material sem quaisquer princípios diretivos.
Outra
vantagem de um caráter mais amplo se apresenta em particular nos chistes
eróticos, em senso estrito, exatamente como nos chistes em geral. Mostrei em
meu estudo sobre os chistes (1905c) que a revelação do que normalmente é o
elemento inconsciente reprimido na mente pode, sob certos arranjos, tornar-se uma
fonte de prazer e, assim, uma técnica para a construção de chistes. Em
psicanálise, hoje, descrevemos um encadeamento de idéias e seus efeitos
associados como um `complexo’; e estamos preparados para afirmar que muitos dos
chistes mais apreciados são os chistes `complexivos’ e que devem seu efeito
hilariante e alegre à engenhosa revelação do que, em regra, são complexos
reprimidos. Levar-me-ia demasiado longe se eu fosse apresentar aqui exemplos
como prova desta tese, mas posso afirmar que o resultado de tal exame da
evidência é que os chistes, tanto os eróticos como os de outras espécies, que
circulam popularmente, fornecem um excelente auxiliar de investigação da mente
humana inconsciente - da mesma maneira que o fazem os sonhos, os mitos e as
lendas, em cuja exploração a psicanálise já está ativamente empenhada.
Podemos,
pois, por certo esperar que a importância psicológica do folclore seja cada vez
mais claramente reconhecida, e que as relações entre esse ramo de estudo e a
psicanálise logo se tornem mais estreitas.
Subscrevo-me,
prezado Dr. Krauss, muito cordialmente,
FREUD
26 de
junho de 1910
DOIS EXEMPLOS DE FANTASIAS PATOGÊNICAS REVELADAS PELOS
PRÓPRIOS PACIENTES
A
HÁ
POUCO tempo, examinei um paciente com cerca de vinte anos de idade, que
apresentava um quadro inconfundível (confirmado por outras opiniões) de
demência precoce (hebefrenia). Durante os estágios iniciais de sua doença, ele
manifestara mudanças periódicas de humor e experimentara considerável melhoria.
Enquanto estava nessa condição favorável, foi removido da instituição pelos
pais e, durante cerca de uma semana, regalaram-no com distrações de toda
espécie para celebrar seu suposto restabelecimento. A recidiva seguiu-se
imediatamente a essa semana de festividades. Quando foi levado de volta à
instituição, ele disse que seu médico assistente o aconselhara a `flertar um
pouco com a mãe’. Não pode haver dúvida de que, nesta paramnesia delirante, ele
estava dando expressão à excitação que provocara nele o fato de estar em
companhia da mãe e que foi a provocação imediata de sua recaída.
B
Há
mais de dez anos, numa época em que as descobertas e hipóteses da psicanálise
eram conhecidas apenas por poucas pessoas, os seguintes acontecimentos me foram
referidos por fonte fidedigna. Uma jovem, que era filha de médico, adoeceu de
histeria com sintomas localizados. O pai negou que fosse histeria e
providenciou que se iniciassem vários tratamentos somáticos que trouxeram pouca
melhoria. Certo dia, uma amiga da paciente disse a ela: `Você nunca pensou em
consultar o Dr. F.?’ Ao que a paciente replicou: `Que benefício teria isso? Sei
o que ele iria me dizer: “Você alguma vez já teve idéia de relação sexual com
seu pai?” - Parece-me desnecessário afirmar explicitamente que nunca foi meu
costume, e nem é meu costume hoje, fazer tais perguntas. Mas é digno de nota
que muito do que os pacientes nos contam das palavras e das ações de seus
médicos pode ser entendido como revelações de suas próprias fantasias
patogênicas.
CRÍTICAS
ÀS CARTAS A UMA MULHER NEURÓTICA, DE WILHELM NEUTRA
Deve
tomar-se como um sinal auspicioso do interesse crescente pela psicoterapia que
uma segunda edição desse livro tenha sido necessária tão depressa.
Infelizmente, nós não podemos saudar o próprio livro como um fenômeno
auspicioso. Seu autor, que é médico assistente do instituto hidropático de
Gainfarn, perto de Viena, valeu-se da forma das Psychotherapeutische Briefe
(Cartas Psicoterápicas) de Oppenheim, e deu a esta forma um conteúdo
psicanalítico. Isto é, em certo sentido, uma deturpação, de vez que a
psicanálise não se pode satisfatoriamente combinar com a técnica da
`persuasão’de Oppenheim (ou, caso se prefira, de Dubois); ela busca seus
resultados terapêuticos ao longo de caminhos inteiramente outros. O que é mais
importante, porém, é o fato de que o autor não atinge os méritos de seu modelo
- tato e seriedade moral - e em sua apresentação da teoria psicanalítica, ele,
amiúde, descai para a retórica vazia, e é também culpado de algumas afirmações
inexatas. Não obstante, muito do que ele escreve, expressa-o clara e
convenientemente; e o livro se pode aceitar como um trabalho para consumo
popular. Numa exposição séria, científica do assunto, o autor deveria ter
indicado as fontes de suas opiniões e afirmativas com maior escrúpulo.