Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH): ampliando o entendimento1
Attention-deficit hyperactivity disorder (ADHD): increasing the understanding
Trastorno por déficit de atención e hiperactividad (TDAH): ampliando el entendimiento
Maria Thereza de Barros França2
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
RESUMO
Para introduzir o diagnóstico psiquiátrico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) a autora recupera um pouco do histórico, partindo das "lesões cerebrais mínimas" até chegar ao transtorno, focando sua ocorrência em crianças. São crianças que apresentam sintomas de dificuldade de concentrar a atenção, agitação psicomotora e impulsividade. Evidencia o esforço da medicina em conseguir encaixar as crianças portadoras desses sintomas em alguma categoria diagnóstica psiquiátrica que pudesse ser reconhecida. Após abordar o tratamento preconizado, que prioriza o uso de metilfenidato, apresenta as controvérsias que envolvem o diagnóstico de TDAH, e a utilização desse psicofármaco, um estimulante de SNC com efeitos adversos. A contribuição psicanalítica sobre o desenvolvimento do psiquismo primitivo permite entender os sintomas apresentados pelas crianças diagnosticadas com TDAH como resultantes de falhas na constituição de um continente psíquico. Finaliza com exemplos clínicos.
Palavras-chave: Psicanálise de crianças, Psiquiatria e psicanálise, Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, Dificuldades de aprendizagem.
ABSTRACT
The author, in order to introduce the Attention Deficit Disorder and Hyperactivity Disorder (ADHD) Psychiatric diagnosis, sums up a historical review setting out from the Minimal Brain Damage concept, and reaching the disorder itself and its occurrence in children. These children display symptoms such as difficulty in focusing attention, psychomotor agitation, and impulsivity. The paper highlights Medical Science's efforts to accommodate such children's symptoms in any Psychiatric diagnostic category which could be recognized. After approaching the recommended treatment, which prioritizes the use of methylphenidate, the author presents the controversies around the ADHD diagnosis and the usage of that psychotropic drug, a CNS stimulant with adverse effects. The psychoanalytic contributions to the development of primitive states, allows us to understand the symptoms presented by these children diagnosed as ADHD, as resulting from failures in the constitution of a psychic continent. The author ends up by giving some clinical examples.
Keywords: Child Psychoanalysis, Psychiatry and psychoanalysis, Attention deficit disorder and hyperactivity, Learning difficulties.
RESUMEN
Para introducir el diagnóstico psiquiátrico de Trastorno por Déficit de Atención e Hiperactividad (TDAH), la autora remonta la historia partiendo de las "lesiones cerebrales mínimas" hasta llegar al trastorno, centrando su ocurrencia en niños. Estos son niños que presentan síntomas como ser dificultad para concentrar la atención, agitación psicomotora e impulsividad. Pone en evidencia el esfuerzo de la medicina para "encajar" los niños portadores de estos síntomas en alguna categoría diagnóstica psiquiátrica que pudiese ser reconocida. Después de abordar el tratamiento recomendado, que prioriza el uso de metilfenidato, se presentan las controversias que rodean el diagnóstico de TDAH y el uso de esta droga psicotrópica, un estimulante del sistema nervioso central, con efectos adversos. La contribución psicoanalítica sobre el desarrollo del psiquismo primitivo, nos permite entender los síntomas presentados por los niños diagnosticados con TDAH como el resultado de fallas en la constitución de un continente psíquico. Finaliza con la presentación de ejemplos clínicos.
Palabras clave: Psicoanálisis de niños, Psiquiatría y psicoanálisis, Trastorno de déficit de atención e hiperactividad, Dificultades de aprendizaje.
Da lesão cerebral mínima ao DDA (Distúrbio de Déficit de Atenção)
Na literatura existem muitos relatos de crianças com quadro de agitação psicomotora e problemas de atenção, buscando uma sistematização para os mesmos. O primeiro de que se tem notícia é de Alexander Crichton em 1798 (citado por Silva, 2011).
Desde que Strauss, em 1918 observou que crianças após apresentarem algum episódio de comprometimento cerebral passavam a exibir o mesmo tipo de comportamento, estabeleceu-se uma causalidade orgânica para os mesmos (citado por Moysés e Collares, 2010).
Bradley, em 1937, (citado por Moysés e Collares, 2010), administrou calmantes e anfetaminas a crianças e adolescentes de abrigos e orfanatos que apresentavam problemas de comportamento e aprendizagem e observou que os primeiros pioravam os sintomas e as anfetaminas melhoravam, provavelmente pela ativação de áreas cerebrais responsáveis pela inibição de estímulos, ajudando assim a focar a atenção e colocar um freio à movimentação.
Em 1944 Strauss (citado por Kanner, 1972), retoma o assunto e propõe a denominação de "lesões cerebrais mínimas"; seriam tão pequenas que não acometeriam outras funções neurológicas.
O primeiro a diminuir a importância dos fatores orgânicos e propor que o quadro seria psicossomático foi Blau, em 1954 (citado por Ajuriaguerra, 1975, p. 253).
Em reunião internacional realizada em 1962, diante da absoluta falta de evidência da existência de lesões cerebrais nestas crianças, decidiu-se que estaríamos diante de uma disfunção – a Disfunção Cerebral Mínima (DCM).
Kanner (1972) sugere o alívio que a DCM teria proporcionado aos pais, pois até então as crianças com essas dificuldades estariam sendo vistas como vítimas de atitudes nocivas dos mesmos (p. 326). Por outro lado, podemos também pensar no alívio dos psiquiatras, pelo esforço no sentido de conseguir encaixar as crianças que apresentam esses sintomas em alguma categoria diagnóstica conhecida …
Clements (citado por Ajuriaguerra, 1975) sugeriu o nome de Síndrome Hipercinética para esses quadros, que passou a ser adotado pela Organização Mundial de Saúde no seu Código Internacional de Doenças, o CID-9. Esse diagnóstico entrou para o DSM-II (Diagnostic and Statistical Manual), elaborado pela Associação Psiquiátrica Americana (American Psychiatric Association – APA) em 1968 como Reação Hipercinética Infantil.
Em 1980 a APA, no DSM-III propôs a denominação de Síndrome de Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade. Na revisão do mesmo, o DSM-IIIR de 1987, avaliando que os critérios para o diagnóstico eram um tanto imprecisos e subjetivos, propôs o Distúrbio de Déficit de Atenção/Hiperatividade (DDA). Em 1990, no DSM-IV, considerando que o déficit de atenção se mantinha central, mas que os sintomas de hiperatividade não estariam tendo o destaque que mereceriam, sugeriu o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).
Finalmente o tão almejado status psicopatológico foi alcançado.
O que é o TDAH?
O TDAH é um diagnóstico psiquiátrico, baseado em respostas a itens que constam de um questionário do DSM (APA 2003), que descreve nove comportamentos ligados à falta de atenção, seis à hiperatividade e três referentes à impulsividade. Ele é feito quando seis (ou mais) dos sintomas enumerados persistiram por no mínimo seis meses, com evidente prejuízo funcional. Esses sintomas devem se manifestar em pelo menos dois contextos, no caso de crianças, os ambientes doméstico e o escolar. Pode predominar a desatenção ou a hiperatividade, ou os quadros podem ser mistos. Alguns dos sintomas já estariam presentes antes dos sete anos de idade e não se apresentariam exclusivamente associados a outros transtornos mentais.
É quase impossível que ao nos depararmos com o questionário não nos identifiquemos como possíveis portadores do transtorno.
No manual há também vários itens acerca de prevalência, diagnóstico diferencial, evolução e outros. Apresento algumas questões que se destacaram:
O transtorno é mais frequente no sexo masculino.
O fato de o transtorno ser mais comum em meninos poderia sugerir algum tipo de herança ligada ao sexo? Ou haveria fatores psicológicos, culturais, sociais ligados ao masculino?
A prevalência é de 3-7% entre crianças de idade escolar e aumentou do DSM-III para o IV devido a mudanças de critérios.
Certamente a partir do DSM-V a prevalência do TDAH aumentará ainda mais, o que será retomado adiante.
Quanto à desatenção, o manual refere que as pessoas "dão a impressão de estarem com a mente em outro local" (p. 112). Chama a atenção para a importância de diferenciar a hiperatividade do "excesso normal de atividade" (p. 116). A impulsividade levaria a criança a ter falas e comportamentos inoportunos, fazer palhaçadas, e colocar-se em situações de risco, podendo sofrer acidentes.
Será que o fato de que as crianças dispõem de uma mente e não apenas de um cérebro, realmente é levado em conta? Qual o risco de crianças com "excesso normal de atividade" serem diagnosticadas e tratadas como portadoras de TDAH? Esse seria o verdadeiro risco a que as crianças estão expostas?
Há intolerância a frustração, baixa autoestima, racionalizações para se lidar com os fracassos e as crianças podem ser alvo de rejeição. "Pode haver histórico de abuso ou negligência, múltiplos lares adotivos …" (p. 115).
Isso sinaliza a importância dos vínculos afetivos significativos para o desenvolvimento infantil e também, que os fatores emocionais devem ser considerados no surgimento dos sintomas e na abordagem dos mesmos.
Quanto ao rendimento intelectual, "em média o nível intelectual avaliado por testes de QI é vários pontos inferior em crianças com esse transtorno quando comparadas com seus pares." (p. 114). Afirma também que os sintomas de desatenção são mais comuns em crianças com baixo QI colocadas em contextos escolares em desacordo com sua capacidade intelectual, mas também podem ocorrer em crianças muito inteligentes em ambientes escolares pouco estimulantes (p. 117).
A aferição de inteligência por meio QI é algo questionável, principalmente quando considerado como dado isolado – e as falhas de interpretação podem levar a resultados desastrosos. A importância de se levar em conta a relação entre inteligência, desatenção e contexto escolar é evidente. Mas será que realmente é atribuída à influência da escola o devido valor?
Os sinais do transtorno podem ser mínimos ou estar ausentes quando o indivíduo se encontra sob um controle rígido, se encontra num ambiente novo, está envolvido em atividades especialmente interessantes, em uma situação a dois … (p. 113)
Novamente aqui se destaca a importância do vínculo afetivo ajudando a focar a atenção e os fatores afetivos que despertam interesse contribuindo para isso.
Não há exames clínicos laboratoriais nem sinais ao exame físico que possam contribuir para que o diagnóstico seja estabelecido. Com respeito a fatores genéticos a maior frequência de TDAH em parentes de primeiro grau de crianças com o transtorno, atestaram (atestariam?) a forte presença de fatores genéticos, mas as influências da escola, da família e dos pares são consideradas importantes na determinação do grau de comprometimento.
Ou seja, infelizmente o desenvolvimento científico ainda não deu conta de provar que essas dificuldades são fruto dos nossos genes e não nos resta nada além de admitir que as relações, os contextos escolar e familiardevem ser considerados?
No que diz respeito à evolução, os sintomas se atenuam à medida que a criança amadurece (p. 116).
Embora haja controvérsia a respeito disso (Assumpção Jr. & Kuczynski, 2003) evidentemente, à medida que a mente se estruture e se fortaleça a condição de continência emocional é ampliada.
Qual é o tratamento para o TDAH?
Para a psiquiatria o TDAH é uma afecção neurocomportamental, embora alguns tratados de psiquiatria infantil considerem a importância de aspectos psicossociais interagindo com os genéticos (Rutter & Hersov, 1985; Assumpção Jr. & Kuczynski, 2003).
Após o diagnóstico, que como vimos é baseado na clínica, a criança é encaminhada para tratamento. Embora a proposta seja de uma abordagem múltipla, englobando intervenções psicossociais, nos âmbitos familiar e escolar e psicoterapia (geralmente a terapia cognitivo-comportamental – TCC é a indicada pelos psiquiatras), o tratamento farmacológico é priorizado, e o metilfenidato é indicado como primeira linha (antidepressivos seriam a segunda), mas as anfetaminas também vêm sendo utilizadas.
Ainda acerca do diagnóstico e etiologia: estudos recentes de neuroimagem e neurobiologia molecular demonstraram modificações no volume cerebral e em estruturas do SNC de crianças com TDAH e alterações funcionais em alguns neurotransmissores, em especial os de dopamina e noradrenalina (Lamberte & Kinsley, 2006; Rhode & Halpern, 2004 citado por Leonardi et al, 2011). Tais alterações dão força não apenas à etiologia genética, mas também à influência do ambiente; há trabalhos mostrando como as experiências iniciais, as trocas afetivas "esculpem" o sistema nervoso (Cunha, 2001).
O metilfenidato é um estimulante do SNC e age aumentando o nível de dopamina e noradrenalina nas fendas sinápticas. No Brasil os medicamentos autorizados são a Ritalina e o Concerta, porém o Vyvance, um composto à base de dexanfetamina já está disponível. Esse mercado movimenta US$ 30 milhões por ano só no Brasil!
Estaríamos com o uso do metilfenidato tratando uma doença, ou sintomas? Quais seriam as vantagens de seu uso? Quais os prejuízos?
TDAH – um diagnóstico controverso
A questão do TDAH é bastante atual e sobre ela encontramos na mídia muitas referências:
Mutarelli numa entrevista ao programa da Globo "Mais Você", faz questionamentos à existência do diagnóstico de TDAH e chama a atenção entre outras declarações, para a "falta de atenção do sistema que a gente vive hoje."
A resposta veio rápida no Jornal Psiquiatria Hoje, pelo presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (Silva, 2011), que reafirma o rigor científico do diagnóstico reconhecido mundialmente e descrito desde o século XVIII, o que deitaria por terra a relação com questões da contemporaneidade.
Evidentemente na história da humanidade sempre existiram fatores ambientais que interagindo com os constitucionais resultam em falhas na continência emocional. O sistema em que vivemos hoje pode ser mais um fator contribuindo para o aumento da ocorrência dos sintomas de desatenção e hiperatividade nas crianças.
Não se trata de denegrir a atividade desempenhada pelo psiquiatra, mas sim de adotarmos uma postura crítica e reflexiva diante do panorama que temos à nossa frente.
Outros programas que podem ser acessados pela WEB apresentam pontos de vista opostos, bem como, a literatura disponível a respeito reflete o mesmo padrão: o da divergência. Isso contribui para gerar dúvida e insegurança e expõe o fato de que as evidências científicas não são tão conclusivas. Assim sendo, a experiência profissional de cada um e questões ideológicas irão nortear a visão a ser privilegiada.
Do mesmo modo que há um site sobre "ritalindeath", há o da Associação Brasileira do Déficit de Atenção (Josua et al, 2011).
Entre os autores que aceitam a existência desse diagnóstico também há críticas severas. Allen Frances (2010, 2011), da Universidade de Duke, que participou da elaboração do DSM-IV chama a atenção para o aumento alarmante do número de diagnósticos de TDAH que vêm sendo feitos de modo não criterioso pelos próprios médicos, muitos deles que sequer dominam conhecimentos psiquiátricos.
Assinala também que o problema não residiria apenas nos critérios adotados pelo DSM, mas no uso que pode ser feito deles, tanto por médicos "educados" pela indústria farmacêutica, mas também pela população em geral, já que a indústria farmacêutica pode postar informações publicitárias na internet.
Eu já fui questionada por uma orientadora sobre o porquê de ter prescrito Ritalina e não Concerta para um aluno da sua escola. Noto também muitos pais se referindo aos próprios filhos como "o meu Asperger", "o meu DDA" etc. – é a nosografia forçando os pais a apagarem a subjetividade de seus filhos (Jerusalinsky, 2005).
Frances alerta que o DSM-V, em vias de elaboração, pode aumentar a idade de ocorrência de 7 para 12 anos e também diminuir de 6 para 3 o número de itens de ocorrência de sintomas da tabela para o TDAH, o que contribuiria ainda mais para o aumento do número de diagnósticos. Uma das decorrências seria a ampliação do uso excessivo do metilfenidato.
Marcia Angell (2011), que foi editora da New England Journal of Medicine, publicou uma interessante matéria sobre a "Epidemia de doença mental". Destaca que há trabalhos mostrando que as pesquisas que comparam o efeito da utilização de medicações versus placebo, muitas vezes não demonstram diferenças significativas nos sintomas de melhora, que por vezes ocorreriam ligados aos efeitos colaterais (tanto que há estudos feitos com "placebos ativos"). Por sua vez, a associação, ou a utilização de psicoterapias, ou outros tratamentos voltados para as influências ambientais poderiam, no longo prazo, até resultarem mais baratos do que o tratamento medicamentoso.
Moysés e Collares (2011) chamam a atenção para a medicalização, a ampliação e extensão do poder médico em que questões de outra natureza, geralmente sociais, são transformadas em problemas originados e que, portanto, devem ser solucionados no campo médico. O diagnóstico de TDAH é baseado em sintomas. Será que realmente podemos equiparar sintomas a doenças? Esse processo quando se dá, a patologização, fortalece a medicalização e dá margem a riscos, por exemplo, de que questões escolares se transformem em um distúrbio na mente ou no corpo dos alunos, ou que situações de vida que envolvem perdas, sofrimento, sejam transformadas em doenças. Essas autoras analisam a fundo o problema e questionam a existência do diagnóstico de TDAH; este não passaria de um construto que ganharia forças por interesses escusos, antiéticos, ligados a mercado de trabalho, às poderosas indústrias farmacêuticas, seguros de saúde e outros.
Okay (2012), também faz um alerta sobre os efeitos nocivos da medicalização afetando as crianças, especificamente no que tange ao diagnóstico de TDAH. Chama a atenção para o risco da medicalização "silenciar" o que o sintoma da criança estaria expressando e para a desconsideração para com todo o processo de escolarização.
Hoje a "terceirização" é um fato. Na medicina, se o desenvolvimento de especialidades contribuiu para o progresso científico, a perda da dimensão humana e sua descontextualização é um golpe irreparável: as pessoas que sofrem são fragmentadas, encaradas como partes de seu corpo. Em psiquiatria com o uso de questionários e escalas o mesmo se dá. Nas escolas muitas questões que caberiam aos pais e familiares, são a elas delegadas. Verifica-se cada vez mais como são drenadas para as instituições de saúde problemas escolares ou familiares.
O que observo é que esse diagnóstico não traz benefícios à criança, pois encerra-se em si mesmo, dá a falsa impressão de que estamos entendendo o que se passa com ela, tranquiliza pais e professores, mantém a criança parcialmente atendida (por vezes desatendida), muitas vezes estigmatizada. É um diagnóstico que privilegia os sintomas e não a função deles. Leonardi (citando Myers & Holland, 2000) dá o exemplo da criança que corre pela sala de aula: estaria ela fugindo de uma atividade aversiva? Estaria precisando da atenção dos colegas ou do professor? Estaria buscando uma estimulação sensorial? (p. 117).
É aí que entra a visão psicanalítica.
Metilfenidato – uma droga controversa
Hoje em dia as crianças sofrem uma pressão no sentido da "formatação" adultomorfa, visando ao desempenho, e à competência – a criança "turbinada". A dor, o sentimento de vazio, a frustração devem ser banidos em prol do prazer imediato. O espaço da convivência, favorável ao estabelecimento de vínculos afetivos significativos, que promovem desenvolvimento, é estreitado (França, 2006).
"Você turbinaria sua energia cerebral?"
A pergunta faz parte de matéria publicada na Revista Nature de2007 (citado por Moysés e Collares, 2010), que denuncia o "uso recreativo" do metilfenidato como estimulante do desempenho mental, acompanhado de sensação de prazer, que mascara a sensação de fadiga, um verdadeiro "doping intelectual", correndo o risco de o uso abusivo da medicação levar à drogadição (Leonardi et al, 2010).
Muitos são os efeitos adversos atribuídos ao metilfenidato. O mais reconhecido deles é a anorexia. Quanto à interferência no crescimento, há divergências se ele de fato levaria ou não a uma diminuição da estatura na criança.
Segundo Breggin (1999) o metilfenidato poderia afetar praticamente todos os aparelhos e sistemas do corpo humano, provocando: sintomas mentais (alucinações, irritabilidade, labilidade afetiva); neurológicos (cefaleia, tontura, convulsão, turvação de consciência); cardiovasculares (taquicardia, arritmias, hipertensão); gastrointestinais (boca seca, náuseas, vômitos, diarreia, obstipação); endócrino-metabólicos (perda de peso, alterações hipofisárias e sexuais). A retirada brusca da medicação após algum tempo de utilização pode, como efeito rebote, desencadear, por exemplo, insônia, depressão e exaustão vespertina (citado por Moysés e Collares, 2010).
Mesmo os buscados efeitos terapêuticos, de ajudar a focar a atenção e diminuir a agitação psicomotora, podem ser acompanhados de uma sensação de engessamento, de estar aprisionado em si mesmo; e, além disso, sem dúvida nenhuma, a inibição dos sintomas por si só não promove desenvolvimento.
Do meu ponto de vista não se trata de contraindicar a utilização criteriosa, e com acompanhamento cuidadoso desse fármaco, conhecendo-se e observando-se possíveis efeitos adversos, pesando a relação custo-benefício, dentro de uma proposta terapêutica realmente ampla, em que a medicação entre como mais um – e não "o" – instrumento terapêutico (França, 2012).
A contribuição da psicanálise
Os estudos sobre desenvolvimento emocional, sobre a constituição do psiquismo primitivo, colaboram para o entendimento dos sintomas em questão. Dizem respeito a desenvolvimento psíquico: a criação de uma mente capaz de simbolizar, de pensar, de criar o psiquismo.
A mente é um órgão do nosso aparelho psíquico que dever ser gerado e amadurecido – e isso somente se dá mediante a relação com outro ser humano. Ela se forma a partir de um substrato corporal, mas não deve ser confundida com o cérebro.
Para alcançar a dimensão humana é necessário que as vivências sensoriais adquiram uma qualidade de vivências emocionais, ou seja, a passagem das sensações às emoções, das percepções às representações (das concretas às mais abstratas), que do corporal surja o psíquico enfim. É fundamental a criação de um espaço mental no interior do qual esses processos possam ser vividos e transformados.
A importância de se conhecer os estados mentais primitivos deve-se à sua função estruturante, pois a ausência desta competência resulta em prejuízos na construção da subjetividade.
Para Freud (1923/1976) o ego é antes de tudo um ego corporal, nosso corpo é um "dado" em que as experiências iniciais se processam de um modo anárquico.
As experiências perceptivas iniciais podem ser comparadas a pontos de contato, pontos isolados que tocam o bebê, sejam eles estímulos visuais, auditivos, olfativos, proprioceptivos, ou táteis, sendo que principalmente estes têm um papel significativo no processo.
Eles funcionariam como notas musicais que soam aleatoriamente: é necessário um ritmo, uma continuidade/descontinuidade, e uma determinada forma para que elas venham a constituir uma melodia, contida numa partitura.
Apresento a seguir, resumidamente, alguns conceitos de diversos autores que se dedicaram a estudar a constituição do psiquismo primitivo e que vêm ao encontro do tema em questão.
Para Winnicott na vigência do que denomina holding (1982) oferecido pelos cuidados maternos, serão experimentados os espaços potenciais (1975) que possibilitarão a construção de um continente psíquico e a passagem de vivências sensoriais ao processamento psíquico. Ou seja, as experiências iniciais são pré-simbólicas, mas a mediação pelos fenômenos transicionais (que se dão no espaço que não é nem self, nem objeto) constrói o caminho para a simbolização. A preocupação materna primária (PMP), um estado mental com tonalidades depressivas que favorece a aproximação da mãe com seu bebê, contribui para que isso se viabilize (1978).
Esther Bick (1987) propõe o modelo de constituição de uma "pele psíquica" que se daria pela interação entre mãe e bebê. Esse experimentaria as partes de sua personalidade não integradas, necessitando de um invólucro que lhes dê coesão. Haveria um tropismo por objetos sensuais: pontos luminosos, ruídos, cheiros (especialmente aqueles relacionados à mãe), mas principalmente o mamilo dentro da sua boca. O contato com o objeto continente seria vivenciado como uma pele.
Enquanto não se processa a criação da "pele psíquica", sob fortes ansiedades o bebê teria a vivência de um líquido, que sem algo que o contenha, se esparrama; são angústias catastróficas expressas por tremores e choro intenso. Ao adquirir esta "pele psíquica" seria capaz de um processo ativo de contenção.
Quando existem falhas nesse processo a experiência é de ter uma pele fina, ou esburacada. Crianças, ou mesmo adultos que apresentam essas falhas, em situações de muita angústia, lançam mão da sensorialidade como forma de resgatar algum sentimento de coesão interna (Meltzer, 1986): a agitação ou as atividades físicas, o falar excessivo, o riso excitado ou mesmo racionalizações são mobilizados. Trata-se do fenômeno de "segunda pele", ou "pele muscular".
São pessoas com uma dependência enorme do objeto, embora deem a impressão contrária.
Meltzer (1986) desenvolve mais essa questão (do vínculo de "grude") quando propõe a bidimensionalidade.
Ele chama a atenção para o fato de que a formação rudimentar de símbolos e de pensamentos começa nos últimos meses de gestação e que fatores traumáticos, tais como insuficiência placentária (entre outros), podem dificultar o processo (1994, p. 58).
Seu modelo de desenvolvimento (1984) considera características de como são experimentados tempo e espaço pelo self e o tipo de identificação estabelecida com o objeto. Propõe quatro dimensionalidades, da unidimensionalidade (estado a-mental, com fusão self-objeto, sem percepção de tempo), até a tetradimensionalidade (a possibilidade mais amadurecida, com percepção do tempo linear e identificação introjetiva).
Na bidimensionalidade a identificação com o objeto seria a adesiva: self e objeto estariam unidos (grudados) por uma superfície rasa; o tempo é o circular (mesmice, imitação). Não haveria ainda um espaço mental o que será uma conquista da tridimensionalidade. Nesta há distância self-objeto, o que já permite pensamento. Há a criação de um "esfíncter mental" que modula as trocas afetivas. Os processos de projeção/introjeção estão em franca atividade; a identificação é a projetiva e o tempo é oscilatório.
Bion (1987) apresenta um modelo de como se daria o desenvolvimento de um aparelho para pensar os pensamentos e da capacidade de continência emocional. A mãe com capacidade de rêverie (sonhar o sonho do bebê) "empresta" a ele sua condição de pensar sobre as experiências emocionais até que ele desenvolva a sua própria; processaria internamente as angústias insuportáveis para a mente incipiente do bebê, devolvendo-as transformadas. Os dados sensoriais passam a adquirir significado, ou seja, passam a ter uma qualidade psíquica.
Essa capacidade da mãe oferecer-se como objeto continente por um lado e por outro a capacidade inata do bebê de tolerar frustração são fundamentais para que no hiato entre o desejo e sua satisfação possa surgir um pensamento, o que contribui para tornar a frustração mais suportável; caso não tolerado, o sofrimento será negado ou evacuado.
Tustin (1990a) propõe que as primeiras experiências de contato do bebê com as partes macias do corpo da mãe resultariam na impressão de ser envolvido por uma película que dá a sensação de coesão e delimitação do self. A falta dessa organização levaria à sensação de escoamento (fluidos corporais vazando) ou de queda no infinito.
Já o contato com as superfícies duras do corpo materno dariam a sensação de uma crosta que envolve e protege contra o "terror sem nome" (Tustin, 1990b).
Ogden (1996) também propõe que a partir do contato com a mãe a noção de self vai se desenvolver, um invólucro vai sendo tecido e no interior do espaço formado os dados sensoriais brutos passarão a ser ordenados, inicialmente por conexões pré-simbólicas; progressivamente, terão lugar a experiência humana e o mundo das emoções pelas conexões simbólicas.
Anne Alvarez (2004) destaca que é do equilíbrio entre prazer e capacidade de suportar frustração que podem surgir o pensamento e o aprendizado; as introjeções são favorecidas, fortalecendo o registro interno das boas experiências com o objeto.
Cunha (2001), por sua vez, apresenta a contraparte neurofisiológica da proposta de Alvarez: os afetos positivos reforçam as comunicações sinápticas; já as experiências com afetos negativos diminuiriam a densidade sináptica, pela mediação de neurotransmissores e também o tamanho dos neurônios: são as experiências emocionais primitivas moldando o desenvolvimento do Sistema Nervoso Central (SNC).
Vínculo e separação são básicos não apenas à individuação, mas também ao desenvolvimento da capacidade simbólica.
O objeto pensante interiorizado é a base para os sentimentos de identidade. Sua reativação diante de novas experiências possibilita ser um indivíduo pensante.
À medida que a maturação da criança vai se processando em interação com o desenvolvimento afetivo-emocional que está ocorrendo, observamos todas as transformações que capacitam o bebê como indivíduo cada vez menos dependente do corpo e da mente da mãe.
Os mecanismos de defesa obsessivo-compulsivos representariam os primeiros esforços de organizar e vincular as experiências sensoriais, colaborando para a construção de um recipiente sensorial ordenado e continente para as experiências.
Retomando as crianças desatentas, hiperativas e impulsivas
A partir de toda a exposição anterior, podemos pensar que essas crianças apresentam prejuízos na construção da sua subjetividade, pela dificuldade de evolução das sensações às emoções, das percepções às representações, do corporal ao psíquico. Seus sintomas resultam de falhas nesse desenvolvimento primitivo.
Ao entrarem em ansiedade, desorganizam-se internamente originando os sintomas mencionados acima, pois o desenvolvimento simbólico prejudicado resulta que fiquem aprisionadas no mundo da sensorialidade. A expressividade corporal predominará sobre a capacidade de funcionamento psíquico – registros de linguagem corporais (Ferrari, 2000).
Suas percepções ocorrendo de forma anárquica, não permitem que foquem a atenção, ou, quando conseguem, isso se dá por um elo de interesse com a questão, ou pela presença de alguém com um bom vínculo afetivo com a criança, que pode ajudá-la a concentrar-se, deter-se e aprofundar-se nas suas atividades, nos seus relacionamentos, e ampliá-los, sem dispersão. A distraibilidade seria estimulada pelo tropismo aos objetos sensoriais (Bick, 1987).
Isso por sua vez contribui ainda mais para o prejuízo do desenvolvimento simbólico. As falhas de holding(Winnicott, 1982), de constituição de uma pele psíquica (Bick, 1987), de um continente dotado de esfíncter mental (Meltzer, 1984), de continência emocional (Bion, 1987), de uma película que dê coesão da superfície sensorial, ou de uma crosta protetora (Tustin, 1990a e 1990b), de um invólucro mental (Ogden, 1996), prejudicam a capacidade de desenvolver pensamento, que é o que poderia colocar alguma barreira capaz de se interpor entre o desejo e sua satisfação, detendo a livre vazão da impulsividade.
A hiperatividade, expressa como agitação psicomotora e verborragia pode ser entendida como manifestação do escoamento de conteúdos internos, por falhas de contenção, representando esforços na tentativa de recuperar algum tipo de contorno, uma segunda pele diante da ausência de uma pele psíquica (Bick, 1987).
É fácil imaginar que essas crianças vivendo nesse imediatismo, nessa concretude, tenham falhas na aprendizagem. Além disso, retomando Alvarez (2004), o prejuízo dos processos introjetivos dificulta que assimilem e armazenem internamente suas vivências e os registros internos das boas experiências com o objeto serão frágeis.
De acordo com Cunha (2001), o predomínio nas experiências iniciais de afetos negativos interfere na estruturação do SNC, fechando-se, dessa maneira, o círculo aprisionante.
O vínculo com a mãe é fundamental: qualquer situação que interfira negativamente no estabelecimento de um bom vínculo entre a criança e o objeto primário pode prejudicar de formas e graus variados o desenvolvimento psíquico, sejam eles fatores constitucionais ou ambientais.
Podemos então agregar aos genéticos, os gestacionais, os congênitos, as instabilidade sociais, dificuldades emocionais dos pais, prejuízo da PMP, problemas nas relações familiares, separação precoce mãe-bebê, perdas significativas, doenças diversas etc.
A decorrência da atuação de fatores prejudiciais poderá abranger desde sintomas simples e passageiros, até quadros severos, por exemplo, de autismo. Não há nenhum tipo de "especificidade".
No caso dos sintomas de falta de atenção e hiperatividade, poderíamos pensar que haveria forças pulsionais muito intensas atuantes, que ao não conseguirem encontrar continência, mobilizariam fortes defesas narcísicas e a criança se voltaria para si mesma, ficando entregue às próprias forças, insuficientes para darem conta dos desafios propostos pela vida e pelo crescimento.
Destacar a importância do desenvolvimento emocional não exclui a consideração pelos fatores externos à criança, principalmente no que se refere a que ela receba um olhar muito atento, não apenas por parte dos pais nos cuidados dispensados a ela, mas também dos educadores nos cuidados com o ambiente e sua vida escolar, e das autoridades governamentais com sua saúde de modo geral.
Esse olhar atento poderá prevenir o TDAH?
Exemplos clínicos
Caso 1
Mathias está com 2 anos e tinha 6 meses quando o pai foi assassinado. A mãe passou a tomar conta dos negócios da família. Ela me procura preocupada com a depressão da irmã, Maria Clara de 8 anos (França, 2008).
Embora ache que ele não se ressentiu da morte do pai porque era muito pequeno, refere que ele é muito agitado, dorme mal, de noite passa para a cama dela – isso começa a irritar a mãe que o rejeita e sente-se mal por isso. Não se dá conta de que ele tão pequeno sofreu duas perdas: a perda concreta do pai e a da mãe atarefada e deprimida.
Relata episódio em que caiu no restaurante e precisou levar pontos no supercílio. De fato observo sua agitação, pulando pela sala, e tenho a impressão de que colocar-se em risco é o modo como ele consegue que a mãe lhe dirija a atenção.
Eu os atendi em sessões familiares. Quando ia chamá-los na sala de espera, Mathias corria em minha direção, com os bracinhos estendidos, sorrindo, e, pulando, se jogava no meu colo, me abraçando apertado. Isso me fazia pensar na sua necessidade de encontrar braços firmes que o amparassem – a mais clara concepção de holding.
À medida que o trabalho foi ajudando toda a família a definir contornos, a encontrar um espaço para que as emoções pudessem ser expressas e contidas, ele foi se tranquilizando, conseguindo buscar e encontrar contenção na mãe.
Na última sessão a que compareceram, a mãe muito feliz relata que assumiu um novo relacionamento; Mathias vagueia perdido pela sala. Quando percebe sinais de mudança na mãe e não consegue processá-los, desorganiza-se novamente.
Há fortes indícios de que Mathias é um sério candidato ao diagnóstico de TDAH …
Caso 2
Gustavo, 7 anos e 8 meses, é o filho do meio, tem duas irmãs. Vem com a mãe para avaliar o uso de medicação. Tem diagnóstico de TDAH. Desde o início da conversa faz questão de deixar claro para nós que além de inteligente é atento.
Faz TCC com "psicóloga do Einstein". Há apenas 1 ano foi detectada importante deficiência visual; tem dificuldade de prestar atenção e se concentrar (sic) e defasagem no aprendizado.
Entretanto, enquanto conversávamos manteve-se concentrado num joguinho no celular da mãe e ao mesmo tempo prestando muita atenção e participando da conversa. Ao final da entrevista a mãe comenta, estranhando o comportamento adequado de Gustavo, que ele deve ter brincado pouco na escola, porque aqui estava bem ativo – não agitado. Ela toma como algo físico e não a experiência emocional de sentir-se contido.
Nos seus relatos percebo que não tem noção do significado emocional do que se passa com os filhos (por exemplo, fala do sofrimento da irmã de 3 anos na escola bilíngue e não se questiona sobre isso).
Chamo o pai para conversarmos juntos. Avalio que não é o caso de medicação, o que os tranquilizou, mas sugiro que voltem para uma reavaliação do caso com foco em questões emocionais. Comentam como nossa conversa foi boa.
Alguns dias após a psicóloga me telefona dizendo que na sua avaliação Gustavo não tem problemas emocionais. Em seguida os pais entram em contato dizendo que decidiram manter a TCC para que ele continue "treinando a atenção" …
Caso 3
Daniela tem 7 anos e 11 meses e há dois tem diagnóstico de TDAH; toma Vyvanse. A mãe, grávida de 6 meses, vem com o pai à consulta e pergunta onde foi que falharam.
Enquanto relatam a história de Daniela noto a dificuldade de um olhar mais atento a ela. Por exemplo, entre os 4 e 5 meses, quando a mãe voltou a trabalhar, o desmame foi abrupto. Pergunto como ela reagiu, dizem que não notaram nenhuma reação.
A mãe expressa a culpa que sente. E não se trata de culpabilizar os pais – muito pelo contrário – eles são nossos melhores aliados para o tratamento de seus filhos.
Com 1 ano e 2 meses Daniela teve uma grave infecção por rotavírus. Conseguiram tratá-la em casa (o hospital lhes parecia aterrorizante?) e ela desnutriu, parou de andar e perdeu o apetite. Todo o seu desenvolvimento se lentificou: voltou a andar com 1 ano e 7 meses, com 4 falava normalmente.
Com 2 anos e 6 meses entrou para a escola e lá acharam que ela não falava porque talvez não ouvisse bem. Mudou de escola e nesta suspeitaram de autismo. O pediatra e o neurologista tranquilizaram os pais, mas sugeriram que procurassem uma fono em uma clínica, onde fizeram teste de QI que revelou um atraso na idade mental (um mau uso desse instrumento diagnóstico).
Cada angústia é vivida por eles de modo catastrófico. Na penúltima escola encontraram uma pessoa sensível que a acolheu (sic).
Daniela tem atraso no aprendizado, é agitada, impulsiva, arteira, demanda atenção constante; os pais andam cansados e irritados com isso. Tem dificuldade com frustração e com mudanças de rotina. Parece estar aceitando bem a gravidez da mãe.
O cansaço dos pais diminui ainda mais as condições de continência e leva a sentimentos de rejeição – incrementando a culpa. Como esses pais vão dar conta de duas crianças? Haverá o risco das dificuldades se repetirem com o novo filho? Como Daniela lidará com as mudanças que o bebê trará?
Percebo que ela evita situações que a deparem com "fracassos", mas quando isso acontece reage agredindo, regredindo ou racionalizando (por exemplo, tem dificuldade para recortar e diz "a tesoura é danadinha"). Vou dizendo a ela o que observo; ela então começa me mostrar de que é capaz (por exemplo, nomear as cores em inglês). Estabeleceu um bom contato comigo e concentra-se numa atividade com lápis e papel.
Numa sessão familiar, quando digo que Daniela tem déficit de desenvolvimento, mas não de inteligência, a mãe chora emocionada, dizendo que sempre teve intuição sobre as possibilidades de Daniela.
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Maria Thereza de Barros França
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Recebido em: 10/6/2012
Aceito em: 11/7/2012
1 Trabalho apresentado na II Jornada de Psicanálise de Criança e Adolescente da SBPSP, 4 e 5 de maio de 2011.
2 Psiquiatra; membro efetivo e psicanalista de crianças e adolescentes da SBPSP.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352012000100014
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