Freud - Obras Completas IV (parte 3)

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Capítulo VI - O TRABALHO DO SONHO

Todas as tentativas até hoje feitas de solucionar o problema dos sonhos têm lidado diretamente com seu conteúdo manifesto, tal como se apresenta em nossa memória. Todas essas tentativas esforçaram-se para chegar a uma interpretação dos sonhos a partir de seu conteúdo manifesto, ou (quando não havia qualquer tentativa de interpretação) por formar um juízo quanto à natureza deles com base nesse mesmo conteúdo manifesto. Somos os únicos a levar algo mais em conta. Introduzimos uma nova classe de material psíquico entre o conteúdo manifesto dos sonhos e as conclusões de nossa investigação: a saber, seu conteúdo latente, ou (como dizemos) os “pensamentos do sonho”, obtidos por meio de nosso método. É desses pensamentos do sonho, e não do conteúdo manifesto de um sonho, que depreendemos seu sentido. Estamos, portanto, diante de uma nova tarefa que não tinha existência prévia, ou seja, a tarefa de investigar as relações entre o conteúdo manifesto dos sonhos e os pensamentos oníricos latentes, e de desvendar os processos pelos quais estes últimos se transformaram naquele.
Os pensamentos do sonho e o conteúdo do sonho nos são apresentados como duas versões do mesmo assunto em duas linguagens diferentes. Ou, mais apropriadamente, o conteúdo do sonho é como uma transcrição dos pensamentos oníricos em outro modo de expressão cujos caracteres e leis sintáticas é nossa tarefa descobrir, comparando o original e a tradução. Os pensamentos do sonho tornaram-se imediatamente compreensíveis tão logo tomamos conhecimento deles. O conteúdo do sonho, por outro lado, é expresso, por assim dizer, numa escrita pictográfica cujos caracteres têm de ser individualmente transpostos para a linguagem dos pensamentos do sonho. Se tentássemos ler esses caracteres segundo seu valor pictórico, e não de acordo com sua relação simbólica, seríamos claramente induzidos ao erro. Suponhamos que eu tenha diante de mim um quebra-cabeça feito de figuras, um rébus. Ele retrata uma casa com um barco no telhado, uma letra solta do alfabeto, a figura de um homem correndo, com a cabeça misteriosamente desaparecida, e assim por diante. Ora, eu poderia ser erroneamente levado afazer objeções e a declarar que o quadro como um todo, bem como suas partes integrantes, não fazem sentido. Um barco não tem nada que estar no telhado de uma casa e um homem sem cabeça não pode correr. Ademais, o homem é maior do que a casa e, se o quadro inteiro pretende representar uma paisagem, as letras do alfabeto estão deslocadas nele, pois esses objetos não ocorrem na natureza. Obviamente, porém, só podemos fazer um juízo adequado do quebra-cabeças se pusermos de lado essa críticas da composição inteira e de suas partes, e se, em vez disso, tentarmos substituir cada elemento isolado por uma sílaba ou palavra que possa ser representada por aquele elemento de um modo ou de outro. As palavras assim compostas já não deixarão de fazer sentido, podendo formar uma frase poética de extrema beleza e significado. O sonho é um quebra-cabeça pictográfico desse tipo, e nossos antecessores no campo da interpretação dos sonhos cometeram o erro de tratar o rébus como uma composição pictórica, e como tal, ela lhes pareceu absurda e sem valor.

(A) O TRABALHO DE CONDENSAÇÃO

A primeira coisa que se torna clara para quem quer que compare o conteúdo do sonho com os pensamentos oníricos é que ali se efetuou um trabalho de condensação em larga escala. Os sonhos são curtos, insuficientes e lacônicos em comparação com a gama e riqueza dos pensamentos oníricos. Se um sonho for escrito, talvez ocupe meia página. A análise que expõe os pensamentos oníricos subjacentes a ele poderá ocupar seis, oito ou doze vezes mais espaço. Essa relação varia com os diferentes sonhos, mas, até onde vai minha experiência, sua direção nunca varia. Em regra geral, subestima-se o volume de compreensão ocorrido, pois fica-se inclinado a considerar os pensamentos do sonho trazidos à luz como o material completo, ao passo que, se o trabalho de interpretação for levado mais adiante, poderá revelar ainda mais pensamentos ocultos por trás do sonho. Já tive ocasião de assinalar [ver em [1]] que, de fato, nunca é possível ter certeza de que um sonho foi completamente interpretado. [1] Mesmo que a solução pareça satisfatória e sem lacunas, resta sempre a possibilidade de que o sonho tenha ainda outro sentido. Rigorosamente falando, portanto, é impossível determinar o volume de condensação.
Há uma resposta, que à primeira vista parece extremamente plausível, ao argumento de que a grande desproporção entre o conteúdo do sonho e os pensamentos do sonho implica que o material psíquico passou por um extenso processo de condensação no curso da formação do sonho. Temos muitas vezes a impressão de que sonhamos muito durante toda a noite e depois nos esquecemos da maior parte do que foi sonhado. Sob esse ponto de vista, o sonho que recordamos ao acordar seria apenas um remanescente fragmentário de todo o trabalho do sonho, e este, se pudéssemos recordá-lo em sua totalidade, bem poderia ser tão extenso quanto os pensamentos oníricos. Há sem dúvida alguma verdade nisso: os sonhos certamente podem ser reproduzidos com a máxima exatidão se tentarmos lembrá-los tão logo acordamos, e de que nossa lembrança deles se torna cada vez mais incompleta à medida quese aproxima a noite. Mas, por outro lado, é possível mostrar que a impressão de termos sonhado muito mais do que podemos reproduzir baseia-se, muitas vezes, numa ilusão, cuja origem examinarei depois. [Ver em [1] e [2].] Além disso, a hipótese de que a condensação ocorre durante o trabalho do sonho não é afetada pela possibilidade de os sonhos serem esquecidos, uma vez que a correção dessa hipótese é comprovada pela quantidade de representações que se relacionam com cada fragmento individual retido do sonho. Mesmo supondo que grande parte do sonho tenha escapado à lembrança, isso pode apenas ter impedido que tivéssemos acesso a outro grupo de pensamentos do sonho. Não há justificativa para supor que os fragmentos perdidos do sonho teriam relação com os mesmos pensamentos que já obtivemos a partir dos fragmentos do sonho que sobreviveram.
Em vista do imenso número de associações produzidas na análise para cada elemento individual do conteúdo de um sonho, alguns leitores poderão ser levados a questionar se, por princípio, é justificável considerarmos como parte dos pensamentos do sonho todas as associações que nos ocorrem durante a análise subseqüente - se é justificável, em outras palavras, supormos que todos esses pensamentos já estavam ativos durante o estado de sono e desempenharam algum papel na formação do sonho. Não será mais provável que tenham surgido no decorrer da análise novas cadeias de idéias que não tiveram nenhuma participação na formação do sonho? Só posso dar assentimento parcial a essa argumentação. Sem dúvida é verdade que algumas cadeias de idéias surgem pela primeira vez durante a análise. Mas em todos esses casos podemos convencer-nos de que essas novas ligações só se estabelecem entre idéias que já estavam ligadas de alguma outra forma nos pensamentos do sonho. As novas ligações são, por assim dizer, circuitos fechados ou curtos-circuitos possibilitados pela existência de outras vias de ligação mais profundas. Deve-se admitir que a grande maioria das idéias que são reveladas na análise já estava em ação durante o processo de formação do sonho, uma vez que, depois de se elaborar uma sucessão de idéias quer parecem não ter qualquer ligação com aformação de um sonho, de repente se esbarra numa idéia que está representada em seu conteúdo e que é indispensável para sua interpretação, mas que não poderia ter sido alcançada senão por essa linha específica de abordagem. Posso aqui recordar o sonho da monografia de botânica [em [1]], que dá a impressão de ser produto de um surpreendente volume de condensação, muito embora eu não tenha relatado sua análise integralmente.
Como, então, devemos retratar as condições psíquicas durante o período de sono que precede os sonhos? Estarão todos os pensamentos do sonho presentes, um ao lado do outro? Ou será que ocorrem em seqüência? Ou haverá diversas cadeias de idéias partindo simultaneamente de centros diferentes e depois se unindo? Em minha opinião, não há necessidade, no momento, de formar qualquer representação plástica sobre as condições psíquicas no decorrer da formação dos sonhos. Não se deve esquecer, porém, que estamos lidando com um processo inconsciente de pensamento, que pode diferir com facilidade do que percebemos durante a reflexão intencional acompanhada pela consciência.
Persiste o fato inegável, contudo, de que a formação dos sonhos baseia-se num processo de condensação. Como se dá essa condensação?
Ao refletimos que somente uma pequena minoria de todos os pensamentos oníricos revelados é reproduzida no sonho por um de seus elementos de representação, poderíamos concluir que a condensação se apresenta por omissão: quer dizer, que o sonho não é uma tradução fiel ou uma projeção ponto por ponto dos pensamentos do sonho, mas uma versão altamente incompleta e fragmentária deles. Essa visão, como logo descobriremos, é extremamente inadequada. Mas podemos tomá-la como um ponto de partida provisório e passar para uma outra questão. Se apenas alguns elementos dos pensamentos do sonho conseguem penetrar no conteúdo do sonho, quais são as condições que determinam sua seleção?
Para que lancemos alguma luz sobre essa questão, devemos voltar nossa atenção para os elementos do conteúdo do sonho que devem ter preenchido tais condições. E o material mais favorável para essa pesquisa será um sonho para cuja construção tenha contribuído um processo particularmente intenso de condensação. Começarei, então, por escolher para esse propósito o sonho que já registrei em [1].

I

O SONHO DA MONOGRAFIA DE BOTÂNICA

CONTEÚDO DO SONHO. - Eu havia escrito uma monografia sobre um gênero (não especificado) de plantas. O livro estava diante de mim e, naquele momento, eu virava uma lâmina colorida dobrada. Encadernado no exemplar havia um espécimen seco da planta.
O elemento que mais se destacava nesse sonho era a monografia de botânica. Isso vinha das impressões do dia do sonho: eu de fato vira um monografia sobre o gênero Ciclâmen na vitrina de uma livraria. Não havia menção desse gênero no conteúdo do sonho; tudo o que restava nele era a monografia e sua relação com a botânica. A “monografia de botânica” revelou de imediato sua ligação com o trabalho sobre cocaína que eu havia escrito certa vez. De “cocaína”, as cadeias de idéias levaram, por um lado, ao Festschrift e a certos acontecimentos num laboratório da Universidade, e, por outro, a um amigo meu, o Dr. Königstein, cirurgião oftalmologista que tivera participação na introdução da cocaína. A figura do Dr. Königstein fez-me lembrar ainda a conversa interrompida que eu tivera com ele na noite anterior e minhas várias reflexões sobre o pagamento por serviços médicos entre colegas. Essa conversa foi o verdadeiro instigador correntemente ativo do sonho; a monografia sobre o ciclâmen também foi uma impressão correntemente ativa, porém de natureza irrelevante. Como pude perceber, a “monografia de botânica” do sonho revelou-se uma “entidade intermediária comum” entre as duas experiências da véspera: foi extraída, sem nenhuma alteração, da impressão irrelevante, e foi ligada ao acontecimento psiquicamente significativo por abundantes conexões associativas.
Entretanto, não só a idéia composta, “monografia de botânica”, como também cada um de seus componentes, “botânica” e “monografia”, separadamente, levaram por numerosas vias de ligação a um ponto cada vez mais profundo no emaranhado dos pensamentos do sonho. “Botânica” estava relacionada com a figura do Professor Gärtner [Jardineiro], com a aparência florescente de sua mulher, com minha paciente Flora e com a senhora [Sra. L.] sobre quem eu contara a história das flores esquecidas. Gärtner, por sua vez, levou ao laboratório a minha conversa com Königstein. Minhas duas pacientes [Flora e Sra. L.] tinham sido mencionadas no decorrer dessa conversa. Uma cadeia de idéias ligou a senhora das flores às flores favoritas de minha mulher, e daí ao título da monografia que eu vira por um momento durante o dia. Além desses, “botânica” fez lembrar um episódio em minha escola secundária e um exame da época em que eu estava na Universidade. A um novo tópico abordado em minha conversa com o Dr. Königstein - meus passatempos favoritos - veio juntar-se, por meio do elo intermediário do que eu, de brincadeira, chamava de minha flor favorita, a alcachofra, uma cadeia de idéias proveniente das flores esquecidas. Por trás das “alcachofras” estavam, de um lado, meus pensamentos sobre a Itália e, de outro, uma cena de minha infância que fora o início do que depois vieram a ser minhas relações íntimas com os livros. Assim, “botânica” era um ponto nodal sistemático no sonho. Para ele convergiam numerosas cadeias de idéias que, como posso garantir, tinham entrado apropriadamente no contexto da conversa com o Dr. Königstein. Estamos aqui numa fábrica de pensamentos onde, como na “obra-prima do tecelão”,

Ein Tritt tausend Fäden regt,
Die Schifflein herüber hinüber schiessen,
Die Fäden ungesehen fliessen,
Ein Schlag tausend Verbindungen schlägt.

Da mesma forma, a “monografia” do sonho também toca em dois assuntos: a parcialidade de meus estudos e o custo dispendioso de meus passatempos favoritos.
Essa primeira investigação leva-nos a concluir que os elementos “botânica” e “monografia” penetraram no conteúdo do sonho porque possuíam inúmeros contatos com a maioria dos pensamentos do sonho, ou seja, porque constituíam “pontos nodais” para os quais convergia um grande número de pensamentos do sonho, porque tinham vários sentidos ligados à interpretação do sonho. A explicação desse fato fundamental também pode ser formulada de outra maneira: cada um dos elementos do conteúdo do sonho revelou ter sido “sobredeterminado” - ter sido representado muitas vezes nos pensamentos do sonho.
Descobrimos ainda mais quando passamos a examinar os demais componentes do sonho em relação a seu aparecimento nos pensamentos oníricos. A lâmina colorida que eu estava desdobrando levou (ver a análise, em [1]) a um novo tema: as críticas de meus colegas a minhas atividades e a uma que já estava representada no sonho - meus passatempos favoritos; e levou, além disso, à lembrança infantil em que eu fazia em pedaços um livro com lâminas coloridas. O espécimen seco da planta tocava no episódio do herbário em minha escola secundária e ressaltou em particular essa lembrança.
A natureza da relação entre o conteúdo do sonho e os pensamentos do sonho torna-se assim visível. Não só os elementos de um sonho são repetidamente determinados pelos pensamentos do sonho como também cada pensamento do sonho é representado neste último por vários elementos. As vias associativas levam de um elemento do sonho para vários pensamentos do sonho e de um pensamento do sonho para vários elementos do sonho. Assim, o sonho não é estruturado por cada pensamento ou grupo de pensamentos do sonho isoladamente, encontrando (de forma abreviada) representação separada no conteúdo do sonho - do modo como um eleitorado escolhe seus representantes parlamentares; o sonho é, antes, construído por toda a massa de pensamentos do sonho, submetida a uma espécie de processo manipulativo em que os elementos que têm suportes mais numerosos e mais fortes adquirem o direito de acesso ao conteúdo do sonho - de maneira análoga à eleição por scrutin de liste. No caso de todos os sonhos que submeti a uma análise dessa natureza, encontrei invariavelmente confirmados estes mesmos princípios fundamentais: os elementos do sonho são construídos a partir de toda a massa de pensamentos do sonho e cada um desses elementos mostra ter sido multiplamente determinado em relação aos pensamentos do sonho.
Certamente não será descabido ilustrar a ligação entre o conteúdo do sonho e os pensamentos do sonho por mais um exemplo, que se distingue pela trama particularmente engenhosa de suas relações recíprocas. É um sonho produzido por um de meus pacientes - um homem que eu estava tratando em virtude de uma claustrofobia. Logo ficará evidente o motivo por que decidi dar a essa produção onírica excepcionalmente inteligente o título de:

II

“UM SONHO ENCANTADOR”
Ele se dirigia com um grande grupo à Rua X, onde havia uma estalagem despretensiosa. (O que não é o caso.) Nela se representava uma peça. Ora ele era platéia, ora ator. Terminado o espetáculo, eles tinham de mudar de roupa para voltarem à cidade. Alguns integrantes da companhia foram levados a aposentos no andar térreo e outros a aposentos no primeiro andar. Surgiu então uma discussão. Os que estavam em cima ficaram zangados porque os de baixo não estavam prontos, e eles não podiam descer. O irmão dele estava lá em cima e ele estava embaixo, e se aborreceu com o irmão porque estavam sendo muito pressionados. (Essa parte estava obscura.) Além disso, tinha-se decidido e providenciado, já na chegada deles, quem ficaria em cima e quem deveria ficar embaixo. Depois, ele ia subindo sozinho a ladeira da Rua X em direção à cidade. Andava com tal dificuldade e tamanho esforço que parecia colado no lugar. Um senhor idoso dirigiu-se a ele e começou a insultar o Rei da Itália. No alto da ladeira ele pôde andar com muito mais facilidade.
Sua dificuldade em subir a ladeira foi tão evidente que, depois de acordar, ele ficou por algum tempo em dúvida se aquilo teria sido sonho ou realidade.
Não teríamos uma opinião muito elevada desse sonho, a julgar por seu conteúdo manifesto. Desafiando as regras, começarei sua interpretação pela parte que o sonhador descreveu como a mais nítida.
A dificuldade com que ele sonhou, e que provavelmente experimentou durante o sonho - a penosa subida pela ladeira, acompanhada de dispnéia -, era um dos sintomas que o paciente com certeza exibira anos antes e que, na época, fora atribuído, juntamente com certos outros sintomas, à tuberculose. (A probabilidade é que esta tenha sido histericamente simulada.) A sensação peculiar de movimento inibido que ocorre nesse sonho já nos é familiar a partir dos sonhos de exibição [ver em [1]], e vemos mais uma vez que se trata de um material disponível a qualquer momento para qualquer outra finalidade de representação. [Ver em [1]] A parte do conteúdo do sonho que descrevia como a subida começara com dificuldade e se tornara fácil no fim da ladeira me fez recordar, quando a ouvi, a magistral introdução a Safo de Alfonse Daudet. Esse famoso trecho descreve como um jovem carrega sua amante nos braços escada acima: no início, ela é leve como uma pluma, porém, quanto mais ele sobe, maior parece ser seu peso. A cena inteira prenuncia o curso de sua ligação amorosa, e Daudet pretendia fazer dela uma advertência aos jovens no sentido de não permitirem que suas afeições se prendessem seriamente a moças de origem humilde e de passado duvidoso. Embora soubesse que meu paciente estivera envolvido com uma moça do meio teatral, num caso amoroso, que recentemente rompera, eu não esperava que se justificasse meu palpite para uma interpretação. Além disso, a situação do Safo era o inverso do que fora no sonho. No sonho, a subida que antes fora difícil, tornara-se posteriormente fácil, ao passo que o simbolismo do romance só faria sentido se algo que tivesse começado com facilidade terminasse por se tornar um fardo pesado. Mas, para meu espanto, o paciente respondeu que minha interpretação se ajustava muito bem a uma peça que ele vira no teatro na noite anterior. Chamava-se Rund um Wien [Ao Redor de Viena] e retratava a carreira de uma moça que começara respeitável, depois se transformara numa demi-mondaine e tivera liaisons com homens em posições elevadas, e assim “subira na vida”, mas que acabara “descendo na vida”. A peça, além disso, fê-lo lembrar-se de outra, a que assistira alguns anos antes, chamada Von Stufe zu Stufe [Passo a Passo], e que fora anunciada num cartaz exibindo uma escadaria com um lance de degraus.
Continuando com a interpretação. A atriz com quem ele tivera essa recente liaison tumultuada morava na Rua X. Não há nada que se assemelhe a uma estalagem nessa rua. Mas, ao passar parte do verão em Viena por causa dessa dama, ele se havia alojado [em alemão “abgestiegen”, literalmente “descido os degraus”] num pequeno hotel nas vizinhanças. Ao sair do hotel, ele dissera ao cocheiro da carruagem de aluguel: “De qualquer maneira, tenho sorte por não ter apanhado nenhum verme.” (Esta, aliás, era outra de suas fobias.) A isso o cocheiro retrucara: “Como é que alguém pode se hospedar num lugar desses! Isso não é um hotel, é só uma estalagem.”
A idéia de estalagem trouxe-lhe à mente, de imediato, uma citação:

Bei einem Wirte wundermild,
Da war ich jüngst zu Gaste.

O hospedeiro do poema de Uhland era uma macieira; e segunda citação deu então prosseguimento a sua cadeia de idéias:

FAUST (mit der Jungen tanzend):
Einst hatt’ ich einen schönen Traum;
Da sah ich einen Apfelbaum,
Zwei schöne Äpfel glänzten dran,
Sie reizten mich, ich stieg hinan.

DIE SCHÖNE:
Der Apfelchen begehrt ihr sehr,
Und schon vom Paradiese her.
Von Freuden fühl’ ich mich bewegt,
Dass auch mein Garten solche trägt.

Não existe a menor dúvida quanto ao que representavam a macieira e as maçãs. Além disso, os seios encantadores da atriz tinham estado entre os atrativos que haviam seduzido o sonhador.
O contexto da análise deu-nos todos os fundamentos para supor que o sonho remontava a uma impressão da infância. Se assim for, deveria referir-se à ama-de-leite do sonhador, que agora era um homem de quase trinta anos. Para um bebê, os seios da ama-de-leite não são nada mais, nada menos que uma estalagem. A ama-de-leite, bem como Safo, de Daudet, pareciam ser alusões à amante que o paciente recentemente abandonara.
O irmão (mais velho) do paciente também aparecia embaixo. Isso, mais uma vez, era o inverso da situação real, pois, como eu sabia, o irmão perdera sua posição social, enquanto o paciente mantivera a dele. Ao repetir para mim o conteúdo do sonho, o paciente evitara dizer que seu irmão estava lá em cima e ele próprio, “no andar térreo”. Esse relato teria exposto a situação com demasiada clareza, uma vez que, aqui em Viena, quando dizemos que alguém está “no andar térreo”, queremos dizer que perdeu seu dinheiro e sua posição - em outras palavras, que “desceu na vida”. Ora, devia haver uma razão para que parte desse trecho do sonho fosse representada por seu inverso. Ademais, a inversão deveria aplicar-se também a alguma outra relação entre os pensamentos do sonho e o conteúdo do sonho [ver em [1]]; e temos um indício de onde buscar essa inversão. Evidentemente, ela deve estar no final do sonho, onde, mais uma vez, houve uma inversão da dificuldade de subir escadas descrita em Safo. Podemos então ver facilmente qual é a inversão pretendida. Em Safo, o homem carreava uma mulher que tinha um relacionamento sexual com ele; nos pensamentos do sonho, essa posição estava invertida, e uma mulher carregava um homem. E, como isso só pode acontecer na infância, a referência era, mais uma vez, à ama-de-leite, carregando o peso do bebê em seus braços. Portanto, o final do sonho fazia uma referência simultânea a Safo e à ama-de-leite.
Assim como o autor do romance, ao escolher o nome “Safo”, tinha em mente uma alusão a práticas lésbicas, também as partes do sonho que falavam de pessoas “lá em cima” e “lá embaixo” aludiam a fantasias de natureza sexual que ocupavam a mente do paciente, e que, como desejos suprimidos, não deixavam de ter relação com sua neurose. (A interpretação do sonho não nos mostrou, por si só, que o que estava assim representado no sonho eram fantasias e não lembranças de fatos reais; e análise nos dá apenas o conteúdo de uma idéia e deixa a nosso critério determinar sua realidade. À primeira vista, fatos reais e imaginários aparecem nos sonhos como tendo igual validade; e isso ocorre não apenas nos sonhos, como também na produção de estruturas psíquicas mais importantes.)
Um “grande grupo” significava, como já sabemos [ver em [1]], um segredo. O irmão dele era apenas o representante (introduzido na cena infantil por uma “fantasia retrospectiva”) de todos os seus rivais posteriores na afeição das mulheres. O episódio do cavalheiro que insultava o Rei da Itália relacionava-se, mais uma vez, por intermédio de uma experiência recente e irrelevante em si mesma, com pessoas de categoria inferior que forçam seu ingresso na alta sociedade. Era como se a criança ao seio estivesse recebendo uma advertência paralela à que Daudet fizera aos rapazes.
Para oferecer uma terceira oportunidade de estudarmos a condensação na formação dos sonhos, fornecerei parte da análise de outro sonho, que devo a uma mulher madura que está em tratamento psicanalítico. Como seria de esperar pelos graves estados de angústia de que sofria a paciente, seus sonhos continham um número muito grande de idéias sexuais cujo reconhecimento inicial a surpreendeu e a alarmou. Como não poderei levar a interpretação do sonho até o fim, seu material parecerá enquadrar-se em vários grupos sem nenhuma ligação visível.

III

“O SONHO DO BESOURO-DE-MAIO

CONTEÚDO DO SONHO. - Ela se lembrou de que tinha dois besouros-de-maio numa caixa e precisava libertá-los, caso contrário ficariam sufocados. Abriu a caixa e os besouros estavam em estado de esgotamento. Um deles voou pela janela aberta, mas o outro foi esmagado pelo caixilho da janela enquanto ela a fechava a pedido de alguém. (Sinais de repulsa.)
ANÁLISE. - O marido da paciente estava temporiamente ausente de casa e a filha de quatorze anos vinha dormindo na cama ao lado dela. Na noite anterior, a menina lhe chamara a atenção para uma mariposa que caíra em seu copo d’água, mas ela não a retirara e ficara penalizada pelo pobre inseto na manhã seguinte. O livro que estivera lendo à noite contava como alguns meninos haviam atirado um gato em água fervente e descrevia as convulsões do animal. Essas foram as duas causas precipitantes do sonho - em si mesmas, irrelevantes. Ela prosseguiu então no assunto da crueldadepara com os animais. Alguns anos antes, quando passavam o verão em certo lugar, a filha da paciente havia sido muito cruel com os animais. Apanhava borboletas e pedia arsênico à mãe para matá-las. Numa outra ocasião, uma mariposa com um alfinete atravessado no corpo continuara a voar pelo quarto durante muito tempo; de outra feita, algumas lagartas que a menina estava guardando para que se transformassem em crisálidas morreram de fome. Numa idade ainda mais tenra, essa mesma menina tinha o hábito de arrancar as asas de besouros e borboletas. Mas hoje, ficava horrorizada diante de todas essas ações cruéis - tornara-se muito bondosa.
A paciente refletiu a respeito dessa contradição. Ela a fez lembrar-se de outra contradição, entre a aparência e o caráter, tal como George Elliot a retrata em Adam Bede: uma moça que era bonita, porém fútil e ignorante, e outra que era feia, mas de caráter elevado; um nobre que seduziu a moça tola, e um operário que se sentia e agia com verdadeira nobreza. Como era impossível, comentou ela, reconhecer essas coisas nas pessoas! Quem poderia imaginar, olhando para ela, que ela era atormentada por desejos sensuais?
No mesmo ano em que a menina começara a colecionar borboletas, o distrito em que se encontravam tinha sido seriamente atingido por uma praga de besouro-de-maio. As crianças ficaram furiosas com os insetos e os esmagavam sem piedade. Naquela ocasião, minha paciente vira um homem que arrancava as asas dos besouros-de-maio e, em seguida, comia-lhes os corpos. Ela própria nascera em maio e se casara em maio. Três dias após o casamento, escrevera aos pais dizendo o quanto se sentia feliz. Mas isso estava longe de ser verdade.
Na noite anterior ao sonho ela estivera remexendo em algumas cartas antigas e lera algumas delas - umas sérias, outras cômicas - em voz alta para os filhos. Havia uma carta muito divertida de um professor de piano que a cortejara quando mocinha, e outra de um admirador de berço nobre.
Ela se censurava porque uma de suas filhas pusera as mãos num livro “pernicioso” de Maupassant. O arsênico que a menina tinha pedido fê-la recordar-se das pílulas de arsênico quer restauraram o vigor juvenil do Duque de Mora em O Nababo [de Daudet].
“Libertá-los” fez com que ela pensasse num trecho de A Flauta Mágica:

Zur Liebe kann ich dich nicht zwingen,
Doch geb ich dir die Freiheit nicht
Os “besouros-de-maio” também a fizeram pensar nas palavras de Kätchen:

Verliebt já wie ein Käfer bist du mir.

E, em meio a tudo isso, veio uma citação de Tannhauser:

Weil du von böser Lust beseelt

Ela vivia numa preocupação constante com o marido ausente. Seu medo de que algo pudesse acontecer-lhe em sua viagem encontrava expressão em numerosas fantasias de vigília. Pouco tempo antes, no decorrer de sua análise, ela havia deparado, entre seus pensamentos inconscientes, com uma queixa sobre o marido estar “ficando senil”. A idéia desejante oculta pelo presente sonho talvez seja mais simples de conjecturar se eu mencionar que, alguns dias antes de ter o sonho, ela ficara horrorizada, em meio a seus afazeres cotidianos, com uma frase no modo imperativo que lhe veio à cabeça e que visava ao marido: “Vá se enforcar!” Ocorre que, algumas horas antes, ela lera em algum lugar que, quando um homem é enforcado, ele tem um forte ereção. Era o desejo de uma ereção que havia emergido do recalcamento sob esse disfarce pavoroso. “Vá se enforcar!” equivalia a “Consiga uma ereção a qualquer preço!” As pílulas de arsênico do Dr. Jenkins em O Nababo enquadravam-se nisso. Mas minha paciente também tinha conhecimento de que o afrodisíaco mais poderoso, as cantáridas (comumente conhecidas como “moscas espanholas”), era preparado com besouros esmagados. Fora esse o sentido da parte principal do conteúdo do sonho.
Abrir e fechar janelas era um dos principais temas de discussão entre ela e o marido. Ela própria era aerofílica em seus hábitos de dormir; o marido era aerofóbico. O esgotamento era o principal sintoma de que ela se queixava na época do sonho.

Em todos os três sonhos que acabo de registrar, indiquei por meio de grifos os pontos em que um dos elementos do conteúdo do sonho reapareceu nos pensamentos do sonho, de modo a indicar com clareza a multiplicidade das ligações que surgem a partir dos primeiros. No entanto, uma vez que a análise de nenhum desses sonhos foi seguida até o fim, talvez valha a pena considerar um sonho cuja análise foi registrada exaustivamente, para mostrar como seu conteúdo é sobredeterminado. Para esse fim, tomarei o sonho da injeção de Irma [em [1]]. Será fácil verificar, a partir desse exemplo, que o trabalho de condensação utiliza mais de um método na construção dos sonhos.
A principal figura do conteúdo do sonho era minha paciente Irma. Ela aparecia com suas feições da vida real, e portanto, em primeiro lugar, representava a si mesma. Mas a posição em que a examinei junto à janela derivava de outra pessoa: da dama pela qual, como indicaram os pensamentos do sonho, eu queria trocar minha paciente. Na medida em que Irma parecia ter uma membrana diftérica, que me fez recordar minha angústia com relação à minha filha mais velha, ela representava essa criança e, por trás desta, uma vez que tinha o mesmo nome que minha filha, estava oculta a figura de minha paciente que sucumbira ao envenenamento. No curso ulterior do sonho, a figura de Irma adquiriu ainda outros significados, sem que ocorresse qualquer alteração em sua imagem visual no sonho. Ela se transformou numa das crianças que havíamos examinado no departamento neurológico do hospital infantil, onde meus dois amigos revelaram suas índoles contrastantes. A figura de minha própria filha foi, evidentemente, o degrau para essa transição. A mesma resistência “de Irma” em abrir a boca trouxe uma alusão a outra senhora que eu examinara certa vez, e, através da mesma conexão, à minha mulher. Além disso, as alterações patológicas que descobri em sua garganta envolviam alusões a toda uma série de outras figuras.
Nenhuma dessas figuras com que deparei ao acompanhar “Irma” apareceu no sonho em forma corporal. Estavam ocultas por trás da figura onírica de “Irma”, que assim se transformou numa imagem coletiva dotada, há que admitir, de diversas características contraditórias. Irma tornou-se a representante de todas essas outras figuras que tinham sido sacrificadas ao trabalho de condensação, já que transferi para ela, ponto por ponto, tudo o que me fazia lembrar-me delas.
Existe outro meio pelo qual se pode produzir uma “figura coletiva” para fins de condensação onírica, ou seja, reunindo-se as feições reais de duas ou mais pessoas numa única imagem onírica. Foi assim que se construiu o Dr. M. de meu sonho. Ele trazia o nome do Dr. M., falava e agia como ele; massuas características físicas e suas doenças pertenciam a outra pessoa, ou melhor, a meu irmão mais velho. Uma característica única, seu aspecto pálido, fora duplamente determinada, uma vez que era comum a ambos na vida real.
O Dr. R. de meu sonho com meu tio de barba amarela [em [1]] era uma figura composta semelhante. Em seu caso, porém, a imagem onírica fora ainda construída de outra forma. Não combinei as feições de uma pessoa com as de outra, omitindo da imagem mnêmica, nesse processo, certos traços de cada uma delas. O que fiz foi adotar o procedimento por que Galton produzia retratos de família: a saber, projetando duas imagens sobre uma chapa única, de modo que certas feições comuns a ambas eram realçadas, enquanto as que não se ajustavam uma à outra se anulavam mutuamente e ficavam indistintas na fotografia. No sonho com meu tio, a barba loura emergia de forma proeminente de um rosto que pertencia a duas pessoas e que estava conseqüentemente indistinto; aliás, a barba envolvia ainda uma alusão a meu pai e a mim mesmo por meio da idéia intermediária de ficar grisalho.
A construção de figuras coletivas e compostas é um dos principais métodos por que a condensação atua nos sonhos. Logo terei ocasião de abordá-los em outro contexto. [Ver em [1]]
A ocorrência da idéia de “disenteria” no sonho da injeção de Irma também teve uma determinação múltipla: primeiro, em virtude da sua semelhança fonética com “difteria” [ver em [1]] e, em segundo lugar, por causa da sua ligação com o paciente que eu enviara ao Oriente e cuja histeria não fora reconhecida.
Outro exemplo interessante de condensação nesse sonho foi a menção nele feita a “propilos” [em [1]]. O que estava contido no pensamento do sonho não era “propilos”, mas “amilos”. Poder-se-ia supor que um único deslocamento ocorrera nesse ponto na construção do sonho. Esse era realmente o caso. Mas o deslocamento servira às finalidades da condensação, como é provado pelo acréscimo que se segue à análise do sonho. Quando permiti que minha atenção se demorasse um pouco mais, na palavra “propilos”, ocorreu-me que soava como “Propileu”. Mas há propileus não só em Atenas, como também em Munique. Um ano antes do sonho eu tinha ido a Munique visitar um amigo que estava gravemente enfermo na ocasião - o mesmo amigo a que aludi inequivocamente no sonho por intermédio da palavra “trimetilamina”, que ocorreu logo depois de “propilos”.
Deixarei de lado o modo surpreendente como, nesse caso, tal como em outras análises de sonhos, utilizam-se associações da mais variada importância intrínseca para estabelecer ligações de idéias, como se tivessem peso igual, e cederei à tentação de apresentar, por assim dizer, uma imagem plástica do processo pelo qual os mamilos, nos pensamentos do sonho, foram substituídos por propilos no conteúdo do sonho.
Por um lado, vemos o grupo de representações ligado a meu amigo Otto, que não me compreendia, que tomava partido contra mim e que me presenteara com um licor com aroma de amilo. Por outro, vemos - ligado ao primeiro grupo por seu próprio contraste - o grupo de representações relacionado com meu amigo de Berlim [Wilhelm Fliess], que de fato me compreendia, que tomava meu partido, e a quem eu devia tantas informações valiosas que tratavam, entre outras coisas, da química dos processos sexuais.
As causas excitantes recentes - os instigadores reais do sonho - determinaram o que iria atrair minha atenção no grupo “Otto”; o mamilo se achava entre esses elementos seletos, que estavam predestinados a fazer parte do conteúdo do sonho. O copioso grupo “Wilhelm” foi excitado precisamente por estar em contraste com “Otto”, e nele se enfatizaram os elementos que faziam eco aos que já tinham sido incitados em “Otto”. Em todo o sonho, de fato, fiquei a me voltar de alguém que me aborrecia para alguém que pudesse ser agradavelmente contrastado com ele; ponto por ponto, eu evocava um amigo contra um opositor. Assim, o amilo do grupo “Otto” produziu no outro grupo lembranças do campo da química; dessa maneira, a trimetilamina, que recebia apoio de várias direções, penetrou no conteúdo do sonho. O próprio “amilo” poderia ter entrado sem alteração no conteúdo do sonho, mas ficou sob a influência do grupo “Wilhelm”, pois toda a gama de lembranças abrangida por esse nome foi vasculhada para que se encontrasse algum elemento que pudesse proporcionar uma determinação bilateral para “amilos”. “Propilos” estava intimamente associado com “amilos”, e Munique, do grupo “Wilhelm”, com seu “propileu”, vinha parcialmente a seu encontro. Os dois grupos de idéias convergiram para “propilos-propileu”, e, como que por um ato de conciliação, esse elemento intermediário foi o que penetrou no conteúdo do sonho. Aqui se construíra uma entidade intermediária comum que admitia determinação múltipla. É evidente, portanto, que a determinação múltipla deve tornar mais fácil a um elemento impor-se ao conteúdo do sonho. No sentido de estruturar um elo intermediário dessa natureza, aatenção é deslocada, sem hesitação, daquilo que é realmente pretendido para alguma associação vizinha.
Nosso estudo do sonho da injeção de Irma já nos permitiu adquirir certo discernimento dos processos de condensação no decorrer da formação dos sonhos. Pudemos observar alguns de seus detalhes, tais como o modo como se dá preferência aos elementos que ocorrem várias vezes nos pensamentos do sonho, como se formam novas unidades (sob a forma de figuras coletivas e estruturas compostas), e como se constroem entidades intermediárias comuns. As demais questões relativas à finalidade da condensação e aos fatores que tendem a produzi-la não serão levantadas até que tenhamos considerado toda a questão dos processos psíquicos que atuam na formação dos sonhos. [Ver em [1] e Capítulo VII, Seção E, especialmente em [1]] Contentar-nos-emos, por ora, em reconhecer o fato de que a condensação onírica é uma característica notável da relação entre os pensamentos do sonho e o conteúdo do sonho.
O trabalho de condensação nos sonhos é visto com máxima clareza ao lidar com palavras e nomes. É verdade, em geral, que as palavras são freqüentemente tratadas, nos sonhos, como se fossem coisas, e por essa razão tendem a se combinar exatamente do mesmo modo que as representações de coisas. Os sonhos desse tipo oferecem os mais divertidos e curiosos neologismos.

I

Certa ocasião, um colega médico me enviara um artigo que tinha escrito, no qual a importância de uma recente descoberta fisiológica era, em minha opinião, superestimada, e no qual, acima de tudo, o assunto era tratado de maneira demasiado emocional. Na noite seguinte, sonhei com uma frase que se referia claramente a esse artigo: “Está escrito num estilo positivamente norekdal.”. A análise dessa palavra causou-me, de início, algumadificuldade. Não havia dúvida alguma de que era uma paródia dos superlativos [alemães] “colossal” e “piramidal”, mas sua origem não era muito fácil de adivinhar. Finalmente, vi que a monstruosidade era composta por dois nomes, “Nora” e “Ekdal” - personagens de duas peças famosas de Ibsen. [Casa de Boneca e O Pato Selvagem] Alguns tempo antes, eu lera um artigo de jornal sobre Ibsen, escrito pelo mesmo autor cuja última obra eu estava criticando no sonho.

II

Uma de minhas pacientes narrou-me um sonho curto que terminava num composto verbal sem sentido. Sonhou que estava com o marido numa festa de camponeses e dizia: “Isso vai terminar num ‘Maistollmütz’ geral.” No sonho, ela experimentava uma vaga sensação de que se tratava de uma espécie de pudim de milho - uma espécie de polenta. A análise dividiu a palavra em “Mais” [“milho”], “toll” [“louco”], “mannstoll” [“ninfomaníaca” - literalmente, “louca por homens”] e Olmütz [uma cidade da Morávia]. Verificou-se que todos esses fragmentos eram remanescentes de uma conversa que ela tivera à mesa com parentes. As seguintes palavras estavam por trás de “Mais(além de uma referência à Exposição do Jubileu recém-inaugurada): “Meissen” (uma figura de porcelana de Meissen [Dresden] representando um pássaro); “Miss” (a governanta inglesa de seus parentes acabara de partir para Olmütz); e “mies” (termo judaico de gíria empregado em tom de brincadeira para significar “repulsivo”). Uma longa cadeia de idéias e associações partia de cada sílaba dessa confusão verbal.

III

Uma rapaz cuja campainha da porta fora tocada tarde da noite por um conhecido que desejava deixar um cartão de visita com ele, teve um sonho nessa noite: Um homem estivera trabalhando até tarde da noite para consertar o telefone de sua casa. Depois que ele foi embora, o aparelho continuou a tocar - não continuamente, mas com toques intermitentes. Seu criado foi buscar o homem de volta, e este comentou: “É engraçado comoaté mesmo as pessoas que são ‘tutelrein’ na verdade são inteiramente incapazes de lidar com uma coisa dessas.”
Veremos que a causa excitante irrelevante do sono só abrange um de seus elementos. Esse episódio só adquiriu alguma importância pelo fato de o sonhador tê-lo colocado na mesma série de uma experiência anterior, que, apesar de igualmente irrelevante em si, recebera da imaginação dele um significado substitutivo. Quando menino, morando com o pai, ele havia entornado um copo de água no chão, quando estava meio adormecido. Os fios de telefone tinham ficado encharcados e seu tilintar contínuo perturbara o sono do pai. Como o tilintar contínuo correspondia a ficar molhado, os “toques intermitentes” foram utilizados para representar gotas caindo. A palavra “tutelrein” pôde ser analisada em três sentidos e levou, dessa maneira, a três dos assuntos representados nos pensamentos do sonho. “Tutel” é um termo jurídico para designar “guarda” [“tutela”]. “Tutel” (ou possivelmente “Tuttel”) é também um termo vulgar para o seio feminino. A parte restante da palavra, “rein” [“limpo”], combinada com a primeira parte de “Zimmertelegraph” [“telefone doméstico”], forma “zummerrein” [“treinado em casa”] - que se relaciona estreitamente a molhar o chão e, além disso, tinha um som muito semelhante ao do nome de um membro da família do sonhador.

IV

Num sonho confuso e um tanto extenso que eu mesmo tive, cujo ponto central parecia ser uma viagem marítima, a escala seguinte parecia chamar-se “Hearsin”, e depois dela vinha “Fliess”. Está última palavra era o nome de meu amigo de B[erlim], que muitas vezes fora o objetivo de minhas viagens. “Hearsing” era um composto. Parte dela derivava de nomes de lugares ao longo da ferrovia suburbana perto de Viena, que tão freqüentemente terminam em “ing”: Hietzing, Liesing, Mödling (Medelitz, “meae deliciae”, era seu antigo nome - ou seja, “meine Freud” [“meu deleite”]). A outra parte derivou-se da palavra inglesa “hearsay” (boato). Esta sugeria calúnia e estabeleceu a ligação do sonho com seu instigador irrelevante da véspera: um poema no periódico Fliegende Blätter sobre um anão caluniador chamado “Sagter Hatergesagt” [“disse-me-disse”]. Se a sílaba “ing” fosse acrescentada ao nome “Fliess”, teríamos “Vlissingen”, que era com certeza a escala na viagem marítima que meu irmão fazia sempre que vinha da Inglaterra nos visitar. Mas o nome inglês para Vlissingen é “Flushing”, que em inglês significa “enrubescer”, que que me fez lembrar dos pacientes que tratei por sofrerem de ereutofobia, e também de um artigo recente de Bechterew sobre essa neurose, que me causara certo aborrecimento.

V

Em outra ocasião, tive um sonho que consistiu em duas partes separadas. A primeira parte era a palavra “Autodidasker”, da qual se recordava nitidamente. A segunda era a reprodução exata de um fantasia curta e inocente que eu produzira alguns dias antes. Essa fantasia era no sentido de que, quando encontrasse o Professor N. da próxima vez, eu deveria dizer-lhe: “O paciente sobre cujo estado eu recentemente o consultei está, na verdade, sofrendo apenas de uma neurose, justamente como o senhor suspeitava.” Assim, o neologismo “Autodidasker” precisava satisfazer duas condições: em primeiro lugar, deveria ter ou representar um sentido composto; e em segundo, esse sentido deveria estar firmemente relacionado com a intenção, que eu reproduzira na vida de vigília, de me desculpar junto ao Professor N.

A palavra “Autodidasker” pôde ser com facilidade decomposta em “Autor” [autor], “Autodidakt” [autodidata] e “Lasker”, com a qual também associei o nome de Lassalle. A primeira dessas palavras levou à causa precipitante do sonho - desta vez, uma causa significativa. Eu dera a minha mulher diversos volumes de autoria de um célebre escritor [austríaco] que era amigo de meu irmão, e que, como fui informado, era natural de meu próprio torrão natal: J. J. David. Uma noite, ela me falara da profunda impressão que lhe havia causado a trágica história de um dos livros de David a respeito da maneira como um homem talentoso se arruinou; e nossa conversa se voltara para um exame dos dons de que víamos indícios em nossos próprios filhos. Sob o impacto do que estivera lendo, minha mulher externou uma preocupação com as crianças, e eu a consolei com o comentário de que aqueles eram precisamente os perigos que podiam ser afastados por meio de uma boa educação. Meu fluxo de idéias prosseguiu no decorrer da noite; tomei a preocupação de minha mulher e entremeei nela toda sorte de outras coisas. Um comentário feito pelo autor a meu irmão sobre o tema do casamento indicou a meus pensamentos um caminho pelo qual eles poderiam vir a ser representados no sonho. Esse caminho levou a Breslau, para onde uma dama com quem mantínhamos grandes laços de amizade se dirigira a fim de casar-se e ali fixar residência. A preocupação que eu sentia com o perigo de me arruinar por causa de uma mulher - pois esse era o cerne de meus pensamentos oníricos - encontrou um exemplo em Breslau nos casos de Lasker e Lassalle, o qual possibilitou dar uma imagem simultânea das duas maneiras por que essa influência fatal pode ser exercida.Cherchez da femme”, a frase em que esses pensamentos podiam ser resumidos, levou-me, tomada em outro sentido, a meu irmão ainda solteiro, cujo nome é Alexandre. Percebi então que “Alex”, a forma abreviada do nome pela qual o chamamos, tem quase o mesmo som de um anagrama de “Lasker”, e que esse fator devia ter tido sua participação na condução de meus pensamentos pelo caminho via Breslau.

No entanto, o jogo que eu aqui fazia com nomes e sílabas tinha ainda outro sentido. Expressava o desejo de que meu irmão pudesse ter uma vida doméstica feliz, e o fez dessa forma. No romance de Zola sobre a vida de um artista, L’oeuvre, cujo tema deve ter estado próximo de meus pensamentos oníricos, o autor, como se sabe, introduziu a si mesmo e a sua própria felicidade doméstica como um episódio. Ele aparece sob o nome de “Sandoz”. É provável que se obtenha essa transformação da seguinte maneira: se escrevemos “Zola” de trás para frente (o tipo de coisa que as crianças tanto gostam de fazer), chegaremos a “Aloz”. Sem dúvida, isso parecia muito pouco disfarçado. Assim, ele substituiu “Al”, que é a primeira sílaba de “Alexander”, por “Sand”, que é a terceira sílaba do mesmo nome: e assim nasceu “Sandoz”. Meu próprio “Autodidasker” surgiu da mesmíssima forma.
Devo agora explicar como foi que minha fantasia de dizer ao Professor N. que o paciente que ambos havíamos examinado sofria apenas de uma neurose se insinuou no sonho. Pouco antes do fim de meu ano de trabalho, iniciei o tratamento de um novo paciente que frustrou por completo meus poderes de diagnóstico. A presença de uma grave doença orgânica - talvez alguma degeneração da medula espinhal - sugeriu-se acentuadamente, mas não pôde ser estabelecida. Teria sido tentador diagnosticar uma neurose (o que teria solucionado todas as dificuldades), não fosse o paciente haver repudiado com tanta energia a história sexual sem a qual eu me recuso a reconhecer a presença de uma neurose. Em minha perplexidade, procurei ajuda do médico a quem, como muitas outras pessoas, respeito mais do que qualquer outro homem, e perante cuja autoridade estou inteiramente pronto a me inclinar. Ele escutou minhas dúvidas, disse-me que eram justificadas, e então emitiu sua opinião: “Mantenha o homem em observação; deve ser uma neurose.” Como soubesse que ele não partilhava de meus conceitos sobre a etiologia das neuroses, não apresentei minha contra-argumentação, mas não escondi meu ceticismo. Alguns dias depois, informei ao paciente que nada podia fazer por ele e recomendei que procurasse outra orientação. Diante disso, para meu intenso espanto, ele começou a se desculpar por ter mentido para mim. Esteve muito envergonhado de si mesmo, disse, e então revelou precisamente a etiologia sexual que eu vinha esperando e sem a qual ficara impossibilitado de aceitar sua doença como uma neurose. Fiquei aliviado, mas, ao mesmo tempo, humilhado. Tive de admitir que meu orientador, não se deixando enganar pela consideração da anamnese, enxergara commais clareza do que eu. E me propus dizer-lhe exatamente isso quando o encontrasse da próxima vez - que ele estava certo e eu, errado.
Foi precisamente isso o que fiz no sonho. Mas que espécie de realização de desejo teria havido em confessar que eu estava errado? Estar errado, porém, era justamente o que eu desejava. Eu queria estar errado em meus temores, ou, para ser mais exato, queria que minha mulher, cujos temores eu adotara nos pensamentos do sonho, estivesse enganada. O tema em torno do qual girava a questão de certo ou errado no sonho não estava muito longe daquilo em que os pensamentos do sonho estavam realmente interessados. Havia a mesma alternativa entre prejuízo orgânico e funcional causado por uma mulher, ou, mais apropriadamente, pela sexualidade: paralisia tabética ou neurose? (O tipo de morte de Lassalle podia ser displicentemente classificado nesta última categoria.)
Nesse sonho de trama cerrada e, depois de cuidadosamente interpretado, muito transparente, o Professor N. desempenhou um papel não só por causa dessa analogia e do meu desejo de estar errado, e em virtude das suas ligações incidentais com Breslau e com a família de nossa amiga que ali se fixara após o casamento, como também por causa do seguinte episódio que ocorreu no fim de nossa consulta. Depois de dar sua opinião e assim encerrar nossa discussão médica, ele passou a assuntos mais pessoais: “Quantos filhos você tem agora?” - “Seis”. Ele fez um gesto de admiração e interesse. - “Meninas ou meninos?” - “Três e três: são meu orgulho e meu tesouro.” - “Bem, então, trate de se prevenir! As meninas são bastante seguras, mas educar meninos leva a dificuldades mais tarde.” - Protestei que os meus se haviam comportado muito bem até ali. É evidente que esse segundo diagnóstico, sobre o futuro de meus meninos, não me agradou mais do que o primeiro, consoante o qual meu paciente estava sofrendo de uma neurose. Assim, essas duas impressões estavam ligadas por sua contigüidade, pelo fato de terem sido experimentadas numa mesma ocasião; e, ao inserir a história da neurose em meu sonho, eu a estava colocando em lugar da conversa sobre criação de filhos, que tinha mais ligação com os pensamentos do sonho, já que se referia tão de perto às preocupações posteriormente externadas por minha mulher. Assim, até meu medo de que N. pudesse ter razão no que disse sobre a dificuldade de educar meninos encontrou um lugar no sonho, pois jazia oculto por trás da representação de meu desejo de que eu mesmo estivesse errado em abrigar tais temores. A mesma fantasia serviu, sem alterações, para representar ambas as alternativas opostas.

IV

Hoje cedo, entre o sonhar e o despertar, experimentei um belo exemplo de condensação verbal. No curso de uma massa de fragmentos oníricos de que mal podia lembrar-me, fui detido, por assim dizer, por uma palavra que vi diante de mim como se estivesse meio manuscrita e meio impressa. A palavra era ‘erzefilisch‘ e fazia parte de uma frase que se insinuou em minha memória consciente, independente de qualquer contexto e em completo isolamento: ‘Isso tem uma influência erzefilisch nas emoções sexuais.’ Soube imediatamente que a palavra deveria na verdade ter sido ‘erzieherisch‘ [‘educacional’]. E fiquei em dúvida, por algum tempo, se o segundo ‘e‘ de ‘erzefilisch‘ não teria sido um ‘i’. Com respeito a isso, ocorreu-me a palavra ‘sífilis’ e, começando a analisar o sonho enquanto estava ainda meio adormecido, quebrei a cabeça num esforço para descobrir como aquela palavra podia ter entrado em meu sonho, já que eu nada tinha a ver com essa doença, quer pessoalmente, quer profissionalmente. Pensei então em ‘erzehlerisch‘ [outra palavra sem sentido], e isso explicou o ‘e’ da segunda sílaba de ‘erzefilisch‘, fazendo-me lembrar que, na noite anterior, eu fora solicitado por nossa governanta [Erzieherin] a lhe dizer alguma coisa a respeito do problema da prostituição, e lhe dera o livro de Hesse sobre a prostituição para influenciar sua vida emocional - que não se desenvolvera com inteira normalidade; depois disso, eu tinha conversado [erzählt] muito com ela sobre o problema. Vi então, de uma só vez, que a palavra ‘sífilis’ não devia ser tomada literalmente, mas representava ‘veneno’ - naturalmente, em relação à vida sexual. Quando traduzida, portanto, a frase do sonho tinha bastante lógica: ‘Minha conversa [Erzählung] pretendia ter uma influência educacional [erzieherisch] sobre a vida emocional de nossa governanta [Erzieherin]; mas temo que talvez tenha tido, ao mesmo tempo, um efeito venenoso.’ ‘Erzefilisch‘ compunha-se de ‘erzäh-‘ e ‘erzieh-’.”

As malformações verbais nos sonhos se assemelham muito às que são conhecidas na paranóia, mas que também estão presentes na histeria e nas obsessões. Os truques lingüísticos feitos pela crianças, que, às vezes, tratam realmente as palavras como se fossem objetos, e além disso inventam novas línguas e formas sintáticas artificiais, constituem a fonte comum dessas coisas tanto nos sonhos como nas psiconeuroses.
A análise das formas verbais absurdas que ocorrem nos sonhos é particularmente adequada para exibir as realizações do trabalho do sonho em termos de condensação. O leitor não deve inferir da escassez dos exemplos que forneci que esse tipo de material é raro ou apenas excepcionalmente observado. Pelo contrário, é muito comum. Mas em decorrência do fato de que a interpretação dos sonhos depende do tratamento psicanalítico, apenas um número muito reduzido de exemplos é observado e registrado, e as análises desses exemplos, em geral, só são inteligíveis para os peritos na patologia das neuroses. Assim, um sonho dessa natureza foi relatado pelo Dr. von Karpinska (1914), contendo a forma verbal absurda “Svingnum elvi”. Vale também a pena mencionar os casos em que aparece num sonho uma palavra que não é, em si mesma, sem sentido, mas que perdeu seu significado próprio e combina diversos outros significados com os quais está relacionada da mesmíssima forma que estaria uma palavra “sem sentido”. Foi isso o que ocorreu, por exemplo, no sonho do menino de dez anos sobre uma “categoria”, que foi registrado por Tausk (1913). “Categoria”, nesse caso, significava “órgãos genitais femininos”, e “categorizar” significava o mesmo que “urinar”.
Quando nos sonhos ocorrem frases faladas, expressamente distinguidas como tais dos pensamentos, a norma invariável é que as palavras faladas no sonho derivam de palavras faladas lembradas no material onírico. O texto do enunciado é então mantido inalterado, ou externado com algum ligeiro deslocamento. Um enunciado, num sonho, é freqüentemente composto por vários enunciados relembrados, permanecendo o texto idêntico, mas sendo-lhe atribuídos, se possível, vários significados, ou um sentido diferente do original.  

(B) O TRABALHO DE DESLOCAMENTO

Ao fazer nossa coletânea de exemplos de condensação nos sonhos, a existência de outra relação, provavelmente de importância não inferior, já se tornara evidente. Via-se que os elementos que se destacam como os principais componentes do conteúdo manifesto do sonho estão longe de desempenhar o mesmo papel nos pensamentos do sonho. E, como corolário, pode-se afirmar o inverso dessa asserção: o que é claramente a essência dos pensamentos do sonho não precisa, de modo algum, ser representado no sonho. O sonho tem, por assim dizer, uma centração diferente dos pensamentos oníricos - seu conteúdo tem elementos diferentes como ponto central. Assim, no sonho da monografia de botânica [em [1]], por exemplo, o ponto central do conteúdo do sonho era, evidentemente, o elemento “botânica”, ao passo que os pensamentos do sonho concerniam às complicações e conflitos que surgem entre colegas por suas obrigações profissionais, e ainda à acusação de que eu tinha o hábito de fazer sacrifícios demais em prol de meus passatempos. O elemento “botânica” não ocupava absolutamente nenhum lugar nesse núcleo dos pensamentos do sonho, a menos que a eles se ligasse vagamente por uma antítese - pelo fato de que a botânica jamais figurara entre meus estudos favoritos. No sonho de minha paciente sobre Safo [em [1]], a posição central era ocupada por subir e descer e por estar encima e embaixo; os pensamentos do sonho, porém, versavam sobre os perigos das relações sexuais com pessoas de classe social inferior. De modo que apenas um único elemento dos pensamentos do sonho parece ter penetrado no conteúdo do sonho, embora esse elemento fosse desproporcionalmente ampliado. De forma semelhante, no sonho dos besouros-de-maio [em [1]], cujo tópico foram as relações entre sexualidade e crueldade, é certo que o fator crueldade surgiu no conteúdo onírico; mas o fez com respeito a outra coisa e sem qualquer menção à sexualidade, ou seja, fora de seu contexto e por conseguinte transformado em algo estranho. Mais uma vez, em meu sonho sobre meu tio [em [1]], a barba loura que formava seu ponto central não parece ter tido qualquer ligação em seu significado com meus desejos ambiciosos, que, como vimos, constituíram o núcleo dos pensamentos do sonho. Tais sonhos dão uma impressão justificável de “deslocamento”. Em completo contraste com esses exemplos, podemos ver que, no sonho da injeção de Irma [em [1]], os diferentes elementos puderam reter, no curso do processo de construção do sonho, o lugar aproximado que ocupavam nos pensamentos do sonho. Essa relação adicional entre os pensamentos do sonho e o conteúdo do sonho, inteiramente variável como é em seu sentido ou direção, destina-se, a princípio, a causar espanto. Ao considerarmos um processo psíquico na vida normal e verificarmos que uma de suas várias representações integrantes foi destacada das demais e adquiriu um grau especial de nitidez na consciência, costumamos encarar esse efeito como prova de que uma dose especialmente elevada de valor psíquico - um grau particular de interesse - está ligada a essa representação predominante. Mas agora descobrimos que, no caso dos diferentes elementos dos pensamentos do sonho, esse tipo de valor não persiste ou é desconsiderado no processo da formação do sonho. Nunca há qualquer dúvida quanto a quais dos elementos dos pensamentos do sonho têm o mais alto valor psíquico; tomamos ciência disso por julgamento direto. No curso da formação de um sonho, esses elementos essenciais, carregados como estão de um intenso interesse, podem ser tratados como se tivessem um valor reduzido e seu lugar pode ser tomado, no sonho, por outros elementos sobre cujo pequeno valor nos pensamentos do sonho não há nenhuma dúvida. À primeira vista, é como se nenhuma atenção fosse dispensada à intensidade psíquica das várias representações ao se proceder à escolha entre elas para o sonho, e como se a única coisa considerada fosse o maior ou menor grau e multiplicidade de sua determinação. O que aparece nos sonhos, poderíamos supor, não é o que é importante nos pensamentos do sonho, mas o que neles ocorre repetidas vezes. Mas essa hipótese não nos ajuda muito em nossa compreensão da formação dos sonhos, visto que, a julgar pela natureza das coisas, parece evidente que os dois fatores da determinação múltipla e do valor psíquico intrínseco devem necessariamente atuar no mesmo sentido. As representações mais importantes entre os pensamentos do sonho serão, quase certamente, as que com mais freqüência ocorrem neles, uma vez que os diferentes pensamentos oníricos, por assim dizer, delas se irradiarão. Não obstante, o sonho pode rejeitar os elementos assim altamente enfatizados em si próprios e reforçados a partir de muitas direções, e selecionar para seu conteúdo outros elementos que possuam apenas o segundo desses atributos.
Para resolver essa dificuldade, utilizaremos outra impressão derivada de nossa investigação [na seção anterior] da sobredeterminação do conteúdo dosonho. Talvez alguns dos que leram essa investigação já tenham chegado à conclusão independente de que a sobredeterminação dos elementos dos sonhos não é uma descoberta muito importante, já que é evidente em si mesma. E isso porque, na análise, partimos dos elementos do sonho e anotamos todas as associações que deles defluem, de modo que nada há de surpreendente no fato de, no material ideativo assim obtido, depararmos com esses mesmos elementos com peculiar freqüência. Não posso aceitar essa objeção, mas eu próprio expressarei em palavras algo que não soa muito diferente dela. Entre as idéias que a análise traz à luz, há muitas que estão relativamente afastadas do núcleo do sonho e que parecem interpolações artificiais feitas para algum fim específico. Tal objetivo é fácil de adivinhar. São precisamente elas que constituem uma ligação, quase sempre forçada e exagerada, entre o conteúdo do sonho e os pensamentos do sonho; e se esses elementos fossem eliminados da análise, o resultado seria, muitas vezes, que as partes integrantes do conteúdo do sonho ficariam não apenas sem sobredeterminação, mas também sem qualquer determinação satisfatória. Seremos levados a concluir que a determinação múltipla que decide o que será incluído num sonho nem sempre é um fator primordial na construção do sonho, mas é freqüentemente o produto secundário de uma força psíquica que ainda nos é desconhecida. Não obstante, a determinação múltipla deve ser importante na escolha dos elementos específicos que entrarão num sonho, pois é patente que um considerável dispêndio de esforço é empregado para produzi-la nos casos em que ela não provém sem auxílio do material do sonho.
Portanto, parece plausível supor que, no trabalho do sonho, está em ação uma força psíquica que, por um lado, despoja os elementos com alto valor psíquico de sua intensidade, e, por outro, por meio da sobredeterminação, cria, a partir de elementos de baixo valor psíquico, novos valores, que depois penetram no conteúdo do sonho. Assim sendo, ocorrem uma transferência e deslocamento de intensidade psíquicas no processo de formação do sonho, e é como resultado destes que se verifica a diferença entre o texto do conteúdo do sono e o dos pensamentos do sonho. O processo que estamos aqui presumindo é nada menos do que a parcela essencial do trabalho do sonho, merecendo ser descrito como o “deslocamento do sonho”. O deslocamento do sonho e a condensação do sonho são os dois fatores dominantes a cuja atividade podemos, em essência, atribuir a forma assumida pelos sonhos.
Não penso tampouco que teremos qualquer dificuldade em reconhecer a força psíquica que se manifesta nos fatos do deslocamento do sonho. A conseqüência do deslocamento é que o conteúdo do sonho não mais se assemelha ao núcleo dos pensamentos do sonho, e que este não apresentamais do que uma distorção do desejo do sonho que existe no inconsciente. Mas já estamos familiarizados com a distorção do sonho. Descobrimos sua origem na censura que é exercida por uma instância psíquica da mente sobre outra. [Ver em [1]] O deslocamento do sonho é um dos principais métodos pelos quais essa distorção é obtida. Is fecit cui profuit. Podemos presumir, portanto, que o deslocamento do sonho se dá por influência da mesma censura - ou seja, a censura da defesa endopsíquica.
A questão da interação desses fatores - deslocamento, condensação e sobredeterminação - na construção dos sonhos, bem como a questão de qual deles é o fator dominante e qual é o fator subordinado -, tudo issodeixaremos de lado para uma investigação posterior. [Ver, por exemplo, em [1]]. Mas podemos enunciar provisoriamente uma segunda condição que deve ser atendida pelos elementos dos pensamentos do sonho que penetram no sonho: eles têm que escapar da censura imposta pela resistência. E daqui por diante, ao interpretarmos os sonhos, levaremos em conta o deslocamento do sonho como um fato inegável.

(C) OS MEIOS DE REPRESENTAÇÃO NOS SONHOS

No processo de transformar os pensamentos latentes no conteúdo manifesto de um sonho, vimos dois fatores em ação: a condensação e o deslocamento do sonho. À medida que prosseguirmos em nossa investigação encontraremos, além destes, dois outros determinantes que exercem indubitável influência na escolha do material que terá acesso ao sonho.
Primeiramente, porém, mesmo com o risco de parecer que estou interrompendo nosso progresso, gostaria de dar uma olhadela preliminar nos processos envolvidos na efetivação da interpretação de um sonho. Não posso disfarçar de mim mesmo que a maneira mais fácil de tornar claros esses processos de defender sua fidedignidade das críticas seria tomar como amostra algum sonho específico, proceder a sua interpretação (como fiz com o sonho da injeção de Irma em meu segundo capítulo) e, em seguida, reunir os pensamentos oníricos descobertos e reconstruir, a partir deles, o processo por que o sonho foi formado - em outras palavras, completar a análise de um sonho por meio de uma síntese do sonho. De fato, executei essa tarefa, para minha própria orientação, com diversas amostras, mas não posso reproduzi-las aqui, já que estou proibido de fazê-lo por motivos relacionados com a natureza do material psíquico em jogo - motivos que são de muitas espécies e que serão aceitos como válidos por qualquer pessoa sensata. Tais considerações interferiram menos na análise dos sonhos, uma vez que uma análise poderia ser incompleta e, não obstante, conservar seu valor, muito embora penetrasse apenas um pouco na trama do sonho. No caso da síntese de um sonho, porém, não vejo como pode ela ser convincente a menos que seja completa. Eu só poderia dar uma síntese completa de sonhos de pessoas desconhecidas do público leitor. Visto, contudo, que essa condição é preenchida apenas por meus pacientes, que são neuróticos, devo adiar essa parte de minha exposição do assunto até que possa - em outro volume - conduzir a elucidação psicológica das neuroses até um ponto em que ela possa estabelecer contato com nosso tópico atual. [1]

Minhas tentativas de estruturar sonhos por síntese a partir dos pensamentos do sonho ensinaram-me que o material que emerge no curso da interpretação não é todo do mesmo valor. Parte dele é composta dos pensamentos oníricos essenciais - ou seja, aqueles que substituem completamente o sonho, e que, se não houvesse censura dos sonhos, seriam suficientes em si mesmos para substituí-lo. A outra parte do material deve ser em geral considerada de menor importância. Tampouco é possível sustentar o ponto de vista de que todos os pensamentos desse segundo tipo tenham tido uma participação na formação do sonho. [Ver em [1] e [2].] Pelo contrário, pode haver entre eles associações que se relacionem com acontecimentos ocorridos depois do sonho, entre os momentos do sonho e da interpretação. Essa parte do material inclui todas as vias de ligação que levaram do conteúdo manifesto do sonho aos pensamentos latentes do sonho, bem como as associações intermediárias e de ligação por meio das quais, no decorrer do processo de interpretação, chegamos a descobrir essas vias de ligação. [1]
Estamos interessados, aqui, apenas nos pensamentos oníricos essenciais. Estes geralmente emergem como um complexo de idéias e lembranças da mais intricada estrutura possível, com todos os atributos das cadeias de idéias que nos são familiares na vida de vigília. Não raro, são cadeias de idéias que partem de mais de um centro, embora tendo pontos de contato. Cada cadeia de idéias é quase invariavelmente acompanhada por sua contrapartida contraditória, vinculada a ela por associação antitética.

As diferentes porções dessa complicada estrutura mantêm, é claro, as mais diversificadas relações lógicas entre si. Podem representar o primeiro e o segundo planos, digressões e ilustrações, condições, seqüências de provas e contra-argumentações. Quando a massa inteira desses pensamentos do sonho é submetida à pressão do trabalho do sonho, e quando seus elementos são revolvidos, transformados em fragmentos e aglutinados - quase como uma massa de gelo - surge a questão do que acontece às conexões lógicas que até então formaram sua estrutura. Que representação fornecem os sonhos para “se”, “porque”, “como”, “embora”, “ou …ou”, e todas as outras conjunções sem as quais não podemos compreender as frases ou os enunciados?
Num primeiro momento, nossa resposta deve ser que os sonhos não têm a seu dispor meios de representar essas relações lógicas entre os pensamentos do sonho. Em sua maioria, os sonhos desprezam todas essas conjunções, e é só o conteúdo substantivo dos pensamentos do sonho que eles dominam e manipulam. A restauração dos vínculos que o trabalho do sonho destruiu é uma tarefa que tem de ser executada pelo processo interpretativo.
A incapacidade dos sonhos de expressarem essas coisas deve estar na natureza do material psíquico de que se compõem os sonhos. As artes plásticas da pintura e da escultura vivem, a rigor, sob uma limitação semelhante, quando comparadas à poesia, que pode valer-se da fala; e aqui, mais uma vez, a razão de sua incapacidade está na natureza do material que essas duas formas de arte manipulam em seu esforço de expressar alguma coisa. Antes que a pintura se familiarizasse com as leis de expressão pelas quais se rege, ela fez tentativas de superar essa desvantagem. Nas pinturas antigas, pequenas etiquetas eram penduradas na boca das pessoas representadas, contendo, em caracteres escritos, os enunciados que o pintor perdia a esperança de representar pictoricamente.
Neste ponto, talvez se levante uma objeção contra a idéia de que os sonhos são incapazes de representar relações lógicas. Pois existem sonhos em que ocorrem as mais complicadas operações intelectuais, em que as afirmações são contrariadas ou confirmadas, ridicularizadas ou comparadas, tal como acontece ao pensamento de vigília. Aqui, porém, mais uma vez as aparências enganam. Se nos aprofundarmos na interpretação de sonhos como esses, verificaremos que a totalidade disso faz parte do material dos pensamentos do sonho e não é uma representação do trabalho intelectual realizado durante o próprio sonho. O que é reproduzido pelo aparente pensamentono sonho é o tema dos pensamentos do sonho e não as relações mútuas entre eles, cuja asserção constitui o pensamento. Exporei alguns exemplos disso. [Ver em [1]] Mas o ponto mais fácil de estabelecer a esse respeito é que todas as frases orais que ocorrem nos sonhos e são especificamente descritas como tais constituem reproduções não modificadas ou ligeiramente modificadas de enunciados que também se encontram entre as lembranças do material dos pensamentos do sonho. Esse tipo de enunciado muitas vezes não passa de uma alusão a algum acontecimento incluído entre os pensamentos do sonho, e o sentido do sonho pode ser totalmente diferente. [Ver em [1]]
Não obstante, não negarei que uma atividade crítica de pensamento, que não é uma simples repetição do material dos pensamentos do sonho, tem efetivamente uma participação na formação dos sonhos. Terei de elucidar o papel desempenhado por esse fator no fim desse exame. Ficará evidente, então, que essa atividade de pensamento não é produzida pelos pensamentos do sonho, mas pelo próprio sonho, depois de, num certo sentido, já ter sido concluído. [Ver a última Seção deste Capítulo (em [1]).]
Provisoriamente, portanto, é possível dizer que as relações lógicas entre os pensamentos oníricos não recebem nenhuma representação isolada nos sonhos. Por exemplo, quando ocorre uma contradição num sonho, ou ela é uma contradição do próprio sonho ou uma contradição oriunda do tema de um dos pensamentos do sonho. Uma contradição num sonho só pode corresponder a uma contradição entre os pensamentos do sonho de maneira extremamente indireta. Mas, assim como a arte da pintura finalmente encontrou um modo de expressar por outros meios que não as etiquetas balouçantes, pelo menos a intenção das palavras dos personagens representados - afeição, ameaças, advertências e assim por diante -, há também um meio possível pelo qual os sonhos podem levar em conta algumas das relações lógicas entre seus pensamentos oníricos, efetuando uma modificação apropriada no método de representação característico dos sonhos. A experiência demonstra que os diferentes sonhos variam muito nesse aspecto. Enquanto alguns sonhos desprezam completamente a seqüência lógica de seu material, outros tentam dar uma indicação tão completa quanto possível dela. Ao fazê-lo, os sonhos se afastam ora mais, ora menos amplamente do texto de que dispõem para manipular. Aliás, os sonhos variam de forma semelhante em seu tratamento da seqüência cronológica dos pensamentos do sonho, caso tal seqüência tenha-se estabelecido no inconsciente (como, por exemplo, no sonho da injeção de Irma. [Ver em [1]]).

Que meios possui o trabalho do sonho para indicar nos pensamentos oníricos essas relações que são tão difíceis de representar? Tentarei enumerá-las uma a uma.
Em primeiro lugar, os sonhos levam em conta, de maneira geral, a ligação que inegavelmente existe entre todas as partes dos pensamentos do sonho, combinando todo o material numa única situação ou acontecimento.
Eles reproduzem a ligação lógica pela simultaneidade no tempo. Nesse aspecto, agem como o pintor que, num quadro da Escola de Atenas ou do Parnaso, representa num único grupo todos os filósofos ou todos os poetas. É verdade que, de fato, eles nunca se reuniram num único salão ou num único cume de montanha, mas certamente formam um grupo no sentido conceitual.
Os sonhos levam esse método de reprodução aos menores detalhes. Sempre que nos mostram dois elementos muito próximos, isso garante que existe alguma ligação especialmente estreita entre o que corresponde a eles nos pensamentos do sonho. Da mesma forma, em nosso sistema de escrita, “ab” significa que as duas letras devem ser pronunciadas numa única sílaba. Quando se deixa uma lacuna entre o “a” e o “b”, isso significa que o “a” é a última letra de uma palavra e o “b”, a primeira da seguinte. Do mesmo modo, as colocações nos sonhos não consistem em partes fortuitas e desconexas do material onírico, mas em partes que são mais ou menos estreitamente ligadas também nos pensamentos do sonho.
Para representar relações causais, os sonhos possuem dois procedimentos que são, em essência, os mesmos. Suponhamos que os pensamentos do sonho fossem do seguinte teor: “Uma vez que isso foi assim e assim, tal e tal estava fadado a acontecer.” Nesse caso, o método mais comum de representação seria introduzir a oração subordinada como um sonho introdutório e acrescentar a oração principal como o sonho principal. Se interpretei corretamente, a seqüência temporal pode ser invertida. Mas a parte mais extensa do sonho sempre corresponde à oração principal.
Uma de minhas pacientes forneceu certa vez um excelente exemplo desse modo de representar a causalidade num sonho, que mais adiante registrarei na íntegra. [Ver em [1]; também examinado em [1] e [2].] Consistiu um breve prelúdio e num fragmento muito difuso de sonho que se centralizou, em grau acentuado, num único tema, e poderia ser intitulado “A Linguagem das Flores”.
O sonho introdutório foi o seguinte: Ela entrou na cozinha, onde estavam as suas duas empregadas, e repreeendeu-as por não terem aprontado sua “comidinha”. Ao mesmo tempo, ela viu uma enorme quantidade de louça comum de cerâmica, emborcada na cozinha para escorrer; estava amontoada em pilhas. As duas criadas foram buscar água e tiveram de entrar numa espécie de rio que chegava até bem junto da casa ou entrava no quintal. Seguiu-se então o sonho principal, que começava assim: Ela estava descendo de uma elevação sobre algumas paliçadas estranhamente construídas e se sentia contente por seu vestido não ter ficado preso nelas… etc.
O sonho introdutório relacionava-se com a casa dos pais da sonhadora. Sem dúvida, ela muitas vezes ouvira a mãe empregar as palavras que ocorreram no sonho. As pilhas de louças comum provinham de uma modesta loja de ferragens que estava localizada no mesmo prédio. A outra parte do sonho continha uma referência ao pai dela, que sempre corria atrás das empregadas e que acabou contraindo uma doença fatal durante uma inundação. (A casa ficava perto da margem de um rio.) Assim, o pensamento oculto por trás do sonho introdutório dizia o seguinte: “Como nasci neste casa, em circunstâncias tão mesquinhas e deprimentes…” O sonho principal tomou o mesmo pensamento e apresentou-o numa forma modificada pela realização de desejo: “Sou de alta linhagem.” Assim, o verdadeiro pensamento subjacente era: “Como sou de linhagem tão baixa, o curso de minha vida tem sido assim e assim.”
A divisão de um sonho em duas partes desiguais não significa invariavelmente, até onde posso ver, que exista uma relação causal entre os pensamentos por trás das duas partes. Muitas vezes, é como se o mesmo material fosse representado nos dois sonhos a partir de diferentes pontos de vista. (Isso é certamente o que acontece quando uma série de sonhos durante uma noite termina numa emissão ou num orgasmo - uma série em que a necessidade somática encontra o caminho para uma expressão progressivamente mais clara.) Ou então os dois sonhos podem ter brotado de centros separados nomaterial onírico, e seu conteúdo pode superpor-se, de modo que o que é o centro num sonho está presente como mera sugestão no outro, e vice-versa. Todavia, em certo número de sonhos, uma divisão em um sonho preliminar mais curto e uma seqüência longa significa, de fato, que há uma relação causal entre as duas partes.
O outro método de representar uma relação causal adapta-se ao material menos extenso e consiste na transformação de uma imagem do sonho, seja ela de uma pessoa ou de uma coisa, em outra. A existência de uma relação causal só deve ser levada a sério se a transformação realmente ocorrer diante de nossos olhos, e não se apenas notarmos que uma coisa apareceu no lugar de outra.
Afirmei que os dois métodos de representar uma relação causal eram essencialmente os mesmos. Em ambos os casos a causação é representada pela seqüência temporal: num deles, por uma seqüência de sonhos e, no outro, pela transformação direta de uma imagem em outra. Na grande maioria dos casos, cabe confessar, a relação causal não é, em absoluto, representada, mas se perde na confusão de elementos que inevitavelmente ocorre no processo do sonhar.
A alternativa “ou … ou” não pode ser expressa em sonhos, seja de que maneira for. Ambas as alternativas costumam ser inseridas no texto do sonho como se fossem igualmente válidas. O sonho da injeção de Irma contém um exemplo clássico disso. Seus pensamentos latentes diziam nitidamente [ver em [1]-[2]]: “Não sou responsável pela persistência das dores de Irma; a responsabilidade esta ou na resistência dela a aceitar minha solução, ou nas condições sexuais desfavoráveis em que ela vive e que eu não posso alterar, ou no fato de que suas dores de modo algum são histéricas, mas de natureza orgânica.” O sonho, por outro lado, preencheu todas essas possibilidades (que eram quase mutuamente exclusivas), e não hesitou em acrescentar uma quarta solução, baseada no desejo do sonho. Após interpretar o sonho, procedi à inserção do “ou … ou” no contexto dos pensamentos do sonho.
Quando, no entanto, ao reproduzir um sonho, seu narrador se sente inclinado a utilizar “ou … ou” - por exemplo, “era ou um jardim ou uma sala de estar” -, o que estava presente nos pensamentos do sonho não era uma alternativa, e sim um “e”, uma simples adição. “Ou … ou” é predominantemente empregado para descrever um elemento onírico que tenha uma característica de imprecisão - que, contudo, é passível de ser desfeita. Em tais casos, a norma de interpretação é: trate as duas aparentes alternativas como se fossem de igual validade e ligue-as por um “e”.

Por exemplo, certa ocasião um amigo meu estava na Itália e eu ficara sem seu endereço por um tempo considerável. Tive então um sonho no qual recebia um telegrama com o endereço abaixo. Vi-o impresso em azul no formulário telegráfico. A primeira palavra era vaga:

Via”, talvez,                                                         a segunda estava clara:
ou “Villa”                                                               “Secerno
ou possivelmente até (“Casa”)

A segunda palavra soava como algum nome italiano e me fez lembrar as discussões que eu tivera com meu amigo sobre a questão da etimologia. Também expressava minha raiva dele por ter mantido seu endereço em segredo para mim por tanto tempo. Por outro lado, cada uma das três alternativas da primeira palavra revelou ser, na análise, um ponto de partida independente e igualmente válido para uma cadeia de idéias. [1]
Durante a noite anterior ao funeral de meu pai, tive um sonho com um aviso, placar ou cartaz impresso - bem semelhante aos avisos proibindo que se fume nas salas de espera das estações de trem - onde aparecia, ou:

         “Pede-se que você feche os olhos”

ou, “Pede-se
que       você
feche       um
olho”.                     

Costumo escrever isto na forma:

                                                        o(s)                            
“Pede-se que você feche                      olho(s).”                               
                                                        um

Cada uma dessas duas versões tinha um sentido próprio e levou numa direção diferente quando o sonho foi interpretado. Eu escolhera o ritual mais simples possível para o funeral, pois conhecia as opiniões de meu pai sobre essas cerimônias.Mas alguns outros membros da família não simpatizavam com tal simplicidade puritana e achavam que ficaríamos desonrados aos olhos dos que comparecessem ao enterro. Daí uma das versões: “Pede-se que você feche um olho”, ou seja “feche os olhos a” ou “faça vista grossa”. Aqui, é particularmente fácil ver o sentido da imprecisão expressa pelo “ou … ou”. O trabalho do sonho não conseguiu estabelecer um enunciado unificado para os pensamentos dos sonhos, que pudesse ao mesmo tempo ser ambíguo, e, conseqüentemente, as duas principais linhas de pensamento começaram a divergir até no conteúdo manifesto do sonho. [1]

Em alguns casos, a dificuldade de representar uma alternativa é superada dividindo-se o sonho em duas partes de igual extensão.
A maneira como os sonhos tratam a categoria dos contrários e dos contraditórios é altamente digna de nota. Ela é simplesmente desconsiderada. O “não” não parece existir no que diz respeito aos sonhos. Eles mostram uma preferência particular por combinar os contrários numa unidade ou por representá-los como uma só coisa. Os sonhos se sentem livres, além disso, para representar qualquer elemento por seu oposto imaginário, de modo que não há maneira de decidir, à primeira vista, se qualquer elemento que admita um contrário está presente nos pensamentos do sonho como positivo ou negativo.
Num dos sonhos registrados logo acima, cuja primeira oração já foi interpretada (“como minha linhagem foi tal e tal” [ver em [1]]), a sonhadora se viu descendo sobre paliçadas, segurando um ramo florido na mão. Em conexão com essa imagem ela pensou no anjo segurando um buquê de lírios nos quadros da Anunciação - seu próprio nome era Maria - e nasmeninas de túnicas brancas andando nas procissões de Corpus Cristi, quando as ruas são decoradas com ramos verdes. Assim, o ramo florido do sonho aludia, sem dúvida alguma, à inocência sexual. Contudo, o ramo estava coberto de flores vermelhas, cada uma delas semelhante a uma camélia. No final de sua caminhada - assim prosseguia o sonho -, os botões em flor já estavam bem murchados. Seguiram-se então algumas alusões inconfundíveis à menstruação. Por conseguinte, o mesmo ramo que era carregado como um lírio e como que por uma menina inocente era, ao mesmo tempo, uma alusão à Dame aux camélias, que, como sabemos, costumava usar uma camélia branca, salvo durante suas regras, quando usava uma vermelha. O mesmo ramo em flor (cf. “des Mädchens Blüten” [“os botões da donzela”] no poema de Goethe “Der Müllerin Verrat”) representava tanto a inocência sexual como seu contrário. E o mesmo sonho que expressava sua alegria por ter conseguido passar pela vida imaculadamente apresentava vislumbres, em certos pontos (por exemplo, no emurchecimento dos botões em flor), da cadeia de idéias contrárias - de ela ter sido culpada de vários pecados contra a pureza sexual (em sua infância, quer dizer). Ao analisar o sonho, foi possível distinguir claramente as duas cadeias de idéias das quais a consoladora parecia ser a mais superficial, e a auto-reprovadora, a mais profunda - cadeias de idéias que eram diametralmente opostas uma à outra, mas cujos elementos semelhantes, embora contrários, foram representados pelos mesmos elementos no sonho manifesto. [1]
Uma e apenas uma dessas relações lógicas é extremamente favorecida pelo mecanismo da formação do sonho; a saber, a relação de semelhança, consonância ou aproximação - a relação de “tal como”. Essa relação, diversamente de qualquer outra, é possível de ser representada nos sonhos de múltiplas maneiras. Os paralelos ou exemplos de “tal como” inerentes ao material dos pensamentos do sonho constituem as primeiras fundações para a construção de um sonho; e uma parte nada insignificante do trabalho do sonho consiste em criar novos paralelos onde os que já estão presentes não conseguem penetrar no sonho em virtude da censura imposta pela resistência. A representação da relação de semelhança é auxiliada pela tendência do trabalho do sonho à condensação.
A semelhança, a consonância, a posse de atributos comuns - tudo isso é representado nos sonhos pela unificação, que pode já estar presente no material dos pensamentos do sonho ou pode ser novamente construída. A primeira dessas possibilidades pode ser descrita como “identificação”, e a segunda, como “composição”. A identificação é empregada quando se trata de pessoas; a composição, quando as coisas são o material da unificação. Não obstante, a composição também pode aplicar-se às pessoas. As localidades são freqüentemente tratadas como pessoas.

Na identificação, apenas uma das pessoas ligadas por um elemento comum consegue ser representada no conteúdo manifesto do sonho, enquanto a segunda ou as demais pessoas parecem ser suprimidas dele. Mas essa figura encobridora única aparece no sonho em todas as relações e situações que se aplicam quer a ela, quer às figuras que ela encobre. Na composição, quando esta se estende às pessoas, a imagem onírica contém traços que são peculiares a uma ou outra das pessoas em causa, mas não comuns a elas; de modo que a combinação desses traços leva ao aparecimento de uma nova unidade, uma figura composta. O processo efetivo de composição pode ser realizado de várias maneiras. Por um lado, a figura onírica pode ter o nome de uma das pessoas que com ela se relacionam - em cujo caso simplesmente sabemos diretamente, de maneira análoga a nosso conhecimento de vigília, que esta ou aquela pessoa é visada -, enquanto seus traços visuais podem pertencer à outra pessoa. Ou, por outro lado, a própria imagem onírica pode ser composta de traços visuais pertencentes, na realidade, em parte a uma pessoa e em parte à outra. Ou, ainda, a participação da segunda pessoa na imagem onírica pode estar não em seus traços visuais, mas nos gestos que atribuímos a ela, nas palavras que a fazemos pronunciar, ou na situação em que a colocamos. Nesse último caso, a distinção entre a identificação e a construção de uma figura composta começa a perder sua nitidez. Mas é também possível que a formação de uma figura composta dessa natureza seja malsucedida. Quando isso ocorre, a cena no sonho é atribuída a uma das pessoas em causa, enquanto a outra (e, em geral, a mais importante) aparece como uma figura concomitante, sem qualquer outra função. O sonhador pode descrever essa posição numa frase como: “Minha mãe também estava lá.” (Stekel.) Um elemento dessa espécie no conteúdo do sonho pode ser comparado aos “determinantes” empregados na escrita hieroglífica, que não visam a ser pronunciados, servindo meramente para elucidar outros sinais.
O elemento comum que justifica, ou, antes, causa a combinação das duas pessoas pode ser representado no sonho ou omitido dele. Em geral, a identificação ou construção de uma pessoa composta se dá exatamente para fins de evitar a representação do elemento comum. Em vez de dizer: “A temsentimentos hostis para comigo, e o mesmo ocorre com B”, formo uma figura composta por A e B no sonho, ou imagino A executando um ato de alguma outra natureza, que é característico de B. A figura onírica assim construída aparece no sonho num contexto inteiramente novo, e o fato de ela representar tanto A como B justifica minha inserção no ponto apropriado do sonho do elemento que é comum a ambos, a saber, uma atitude hostil para comigo. Muitas vezes, é possível chegar dessa maneira a um volume notável de condensação no conteúdo de um sonho; poupo-me a necessidade de fornecer uma representação direta de circunstâncias muito complicadas relativas a uma dada pessoa, se puder encontrar outra pessoa a quem alguma dessas circunstâncias se apliquem igualmente. É também fácil ver o quanto esse método de representação por meio da identificação pode servir bem para se fugir à censura causada pela resistência, que impõe condições tão severas ao trabalho do sonho. Aquilo a que a censura faz objeção pode estar precisamente em certas representações que, no material dos pensamentos do sonho, estão ligadas a uma pessoa específica; assim, passo a procurar uma segunda pessoa que também esteja ligada ao material objetável, mas apenas a uma parte dele. O contato entre as duas pessoas nesse aspecto censurável justifica então minha construção de uma figura composta caracterizada por traços irrelevantes oriundos de ambas. Essa figura, obtida por identificação ou por composição, fica então admissível ao conteúdo do sonho, sem censura, e assim, utilizando a condensação do sonho, atendi às reivindicações da censura onírica.
Quando um elemento comum entre duas pessoas é representado num sonho, isso costuma ser uma sugestão para que procuremos outro elemento comum oculto cuja representação tenha sido impossibilitada pela censura. Fez-se deslocamento no tocante ao elemento comum para, por assim dizer, facilitar sua representação. O fato de a figura composta aparecer no sonho com um elemento comum irrelevante leva-nos a concluir que outro elemento comum, longe de ser indiferente, está presente nos pensamentos do sonho.
Portanto, a identificação ou a produção de figuras compostas serve a várias finalidades nos sonhos: em primeiro lugar, para representar um elemento comum a duas pessoas, em segundo, para representar um elemento comum deslocado, e, em terceiro, também para expressar um elemento comum meramente imaginário. Visto que desejar que duas pessoas tivessem um elemento comum muitas vezes coincide com a troca de uma pela outra, esta segunda relação também se expressa nos sonhos por meio da identificação. No sonho da injeção de Irma, eu desejava trocá-la por outra paciente: ou seja, desejava que a outra mulher pudesse ser minha paciente, tal comoIrma. O sonho levou esse desejo em conta, mostrando-me uma pessoa que se chamava Irma, mas que era examinada numa posição em que eu só havia tido oportunidade de ver a outra mulher [em [1]]. No sonho com meu tio, uma troca dessa natureza tornou-se o ponto central: eu me identifiquei com o Ministro, não tratando nem julgando meus colegas melhor do que ele o fez. [Ver em [1]]
É minha experiência, e uma experiência para a qual não encontrei nenhuma exceção, que todo sonho versa sobre o próprio sonhador. Os sonhos são inteiramente egoístas. Sempre que meu próprio ego não aparece no conteúdo do sonho, mas somente alguma pessoa estranha, posso presumir com segurança que meu próprio ego está oculto, por identificação, por trás dessa outra pessoa; posso inserir meu ego no contexto. Em outras ocasiões, quando meu próprio ego de fato aparece no sonho, a situação em que isso ocorre pode ensinar-me que alguma outra pessoa jaz oculta, por identificação, por trás de meu ego. Nesse caso, o sonho me alertaria a transferir para mim mesmo, ao interpretá-lo, o elemento comum oculto ligado a essa outra pessoa. Há também sonhos em que meu ego aparece juntamente com outras pessoas que, uma vez desfeita a identificação, revelam-se mais uma vez como meu ego. Essas identificações então me possibilitariam pôr em contato com meu ego certas representações cuja aceitação fora proibida pela censura. Assim, meu ego pode ser representado num sonho várias vezes, ora diretamente, ora por meio da identificação com pessoas estranhas. Por meio de várias dessas identificações torna-se possível condensar um volume extraordinário de material do pensamento. O fato de o ego do próprio sonhador aparecer num sonho várias vezes, ou de várias formas, não é, no fundo, mais marcante do que o fato de o ego estar contido num pensamento consciente várias vezes ou em diferentes lugares ou contextos - por exemplo, na frase “quando eu penso em como eu fui uma criança sadia.”
As identificações no caso de nomes próprios de localidades se desfazem ainda mais facilmente do que no caso de pessoas, já que aqui não há interferência por parte do ego, que ocupa um lugar tão dominante nos sonhos. Num de meus sonhos sobre Roma [ver em [1]], o lugar em que me encontrava chamava-se Roma, mas eu ficava atônito com a quantidade de cartazes em alemão na esquina de uma rua. Esse segundo ponto era uma realização de desejo, que imediatamente me fez pensar em Praga; e o próprio desejo talvez datasse de uma fase nacionalista-alemã pela qual passei durante minha juventude, mas que depois superei. Na ocasião em que tive o sonho, havia uma perspectiva de eu encontrar meu amigo [Fliess] em Praga; de modo que a identificação de Roma e Praga pode ser explicada como um elemento desejante comum: eu preferiria encontrar meu amigo em Roma e gostaria de trocar Praga por Roma para fins desse encontro.
A possibilidade de criar estruturas compostas destaca-se como a mais importante entre as características que tantas vezes emprestam aos sonhos uma aparência fantástica, pois introduz no conteúdo dos sonhos elementos que nunca poderiam ter sido objetos de percepção real. O processo psíquico de construir imagens compostas nos sonhos é, evidentemente, o mesmo de quando imaginamos ou retratamos um centauro ou um dragão na vida de vigília. A única diferença é que a que determina a produção da figura imaginária na vida de vigília é a impressão que a própria nova estrutura pretende causar, ao passo que a formação da estrutura composta num sonho é determinada por um fator estranho à sua forma real - a saber, o elemento comum nos pensamentos do sonho. As estruturas compostas nos sonhos podem ser formadas de uma grande variedade de maneiras. O mais ingênuo desses procedimentos representa meramente os atributos de uma coisa, acompanhados pelo conhecimento de que também pertencem a uma outra coisa. Uma técnica mais elaborada combina os traços de ambos os objetos numa nova imagem e, ao proceder assim, utiliza com habilidade quaisquer semelhanças que os dois objetos acaso possuam na realidade. A nova estrutura pode aparecer inteiramente absurda ou causar-nos a impressão de um sucesso imaginativo, conforme o material e a habilidade com que seja aglutinada. Quando os objetos a serem condensados numa só unidade são por demais incongruentes, o trabalho do sonho muitas vezes se contenta em criar uma estrutura composta com um núcleo relativamente distinto, acompanhando por diversos traços menos distintos. Nesse caso, é possível dizer que o processo de unificação numa imagem única falhou. As duas representações se superpõem e produzem algo da ordem de uma competição entreas duas imagens visuais. Poder-se-ia chegar a representações semelhantes num desenho, caso se tentasse ilustrar o modo pelo qual um conceito geral é formado a partir de várias imagens perceptivas isoladas.
Os sonhos são, na verdade, uma massa dessas estruturas compostas. Forneci alguns exemplos delas em sonhos que já analisei; e acrescentarei agora mais alguns. No sonho relatado mais adiante, em [1] [também anteriormente, em [1]-[2]], que descreve o curso da vida da paciente “na linguagem das flores”, o ego do sonho segurava na mão um ramo de botões de flores que, como vimos, representava tanto a inocência como a pecaminosidade sexual. O ramo, graças à maneira como as flores estavam colocadas nele, também fez a sonhadora lembrar-se de flor de cerejeira; as próprias flores, consideradas individualmente, eram camélias, e, além disso, a impressão geral era a de um crescimento exótico. O fator comum entre os elementos dessa estrutura composta foi indicado pelos pensamentos do sonho. O ramo florido era composto de alusões a presentes que lhe tinham sido oferecidos com o propósito de conquistar, ou tentar conquistar, seu favores. Assim, tinham-lhe dado cerejas na infância e, em época posterior da vida, uma planta de camélias; já “exótico” era uma alusão a um naturalista muito viajado que tentara conquistar suas boas graças com o desenho de uma flor. - Outra de minhas pacientes produziu, num de seus sonhos, algo intermediário entre uma cabine de banho à beira-mar, um quartinho externo no campo e um sótão numa casa urbana. Os dois primeiros elementos têm em comum uma ligação com pessoas nuas e em desalinho; e sua combinação com o terceiro elemento leva à conclusão de que (em sua infância) um sótão também fora uma cena de desnudamento. - Outro sonhador produziu uma localidade composta a partir de dois lugares onde se fazem “tratamentos”, sendo um deles meu consultório e o outro, o local de entretenimento onde ele travara conhecimento com sua mulher. - Uma moça sonhou, depois de seu irmão mais velho ter-lhe prometido um banquete de caviar, que as pernas desse mesmo irmão estavam inteiramente cobertas de grãos negros de caviar. O elemento de “contágio” (no sentido moral) e a lembrança de uma erupção em sua infância, que lhe cobrira inteiramente as pernas de manchas vermelhas, em vez de negras, tinham-se combinado com os grãos de caviar num conceito novo - a saber, o conceito “o que ela pegara de seu irmão”. Nesse sonho, como em outros, as partes do corpo humano foram tratadas como objetos. -Num sonho registrado por Ferenczi [1910], ocorreu uma imagem composta que era formada da figura de um médico e de um cavalo e estava também vestida de camisão de dormir. O elemento comum a esses três componentes foi alcançado na análise depois de a paciente reconhecer que o camisão de dormir era uma alusão a seu pai numa cena da infância. Em todos os três casos, a questão era um objeto de sua curiosidade sexual. Quando criança, ela fora muitas vezes levada por sua babá a um haras militar onde teve amplas oportunidades de satisfazer o que, na época, era sua curiosidade ainda não inibida.
Afirmei anteriormente [em [1]] que os sonhos não têm meios de expressar a relação de uma contradição, um contrário ou um “não”. Passarei agora a fazer uma primeira negação dessa assertiva. Uma classe de casos que podem ser reunidos sob o título de “contrários” é, como já vimos [em [1]], simplesmente representada por identificação - ou seja, casos em que a idéia de uma troca ou substituição pode ser posta em ligação com o contraste. Apresentei vários exemplos disso. Outra classe de contrários nos pensamentos do sonho, que se enquadram numa categoria que pode ser descrita como “pelo contrário” ou “justamente o inverso”, penetra nos sonhos da seguinte maneira notável, que quase merece ser descrita como um chiste. O “justamente o inverso” não é representado, em si mesmo, no conteúdo do sonho, mas revela sua presença no material pelo fato de uma parte do conteúdo onírico, que já foi construída e por acaso (por algum outro motivo) lhe é adjacente, ser - digamos como que numa reconsideração - virada no outro sentido. O processo é mais fácil de ilustrar do que de descrever. No interessante sonho do “em cima e embaixo” (em [1]), a representação da subida no sonho foi o inverso do que era em seu protótipo nos pensamentos do sonho - ou seja, na cena introdutória de Safo, de Daudet: no sonho, a subida era difícil no começo, porém mais fácil depois, enquanto que, na cena de Daudet, era fácil no início porém cada vez mais difícil depois. Além disso, o “lá em cima” e o “lá em baixo” na relação entre o sonhador e seu irmão foram representados de maneira invertida no sonho. Isso apontou para a presença de uma relação invertida ou contrária entre duas partes do material dos pensamentos do sonho, e fomos encontrá-la na fantasia infantil do sonhador de ser carregado por sua ama-de-leite, que era o contrário da situação do romance, onde o herói estava carregando sua amante. Do mesmomodo, em meu sonho do ataque de Goethe a Herr M. (ver adiante, em [1]), existe um “justamente o inverso” semelhante, que tem de ser posto em ordem antes que o sonho possa ser interpretado com êxito. No sonho, Goethe fazia um ataque a um jovem, Her M.; na situação real contida nos pensamentos do sonho, um homem importante, meu amigo [Fliess], fora atacado por um jovem escritor desconhecido. No sonho, fiz um cálculo baseando-me na data da morte de Goethe; na realidade, o cálculo fora feito a partir do ano de nascimento do paciente paralítico. O pensamento que se revelou decisivo nos pensamentos do sonho foi uma contradição da idéia de que Goethe deveria ser tratado como se fosse um lunático. “Justamente o inverso”, disse [o sentido subjacente de] o sonho; “se você não compreende o livro, é você [o crítico] que é um débil mental, e não o autor”. Penso, além disso, que todos esses sonhos de virar as coisas ao contrário incluem uma referência às implicações desdenhosas da idéia de “voltar as costas a alguma coisa”. (Por exemplo, o virar as costas do sonhador em relação a seu irmão no sonho de Safo [em [1]].) É relevante observar, além disso, o quanto é freqüente a inversão empregada precisamente nos sonhos oriundos de impulsos homossexuais recalcados.
Aliás, a inversão, ou transformação de uma coisa em seu oposto, é um dos meios de representação mais favorecidos pelo trabalho do sonho, e é passível de utilização nos sentidos mais diversos. Ela serve, em primeiro lugar, para dar expressão à realização de um desejo em referência a algum elemento específico dos pensamentos do sonho. “Ah, se ao menos tivesse sido ao contrário!” Esta é muitas vezes a melhor maneira de expressar a reação do ego a um fragmento desagradável da memória. Além disso, a inversão tem uma utilidade muito especial como auxílio à censura, pois produz uma massa de distorção do material a ser representado, e isto tem um efeito positivamente paralisante, para começar, sobre qualquer tentativa de compreender o sonho. Por essa razão, quando um sonho se recusa obstinadamente a revelar seu sentido, sempre vale a pena ver o efeito de inverter em particular alguns elementos de seu conteúdo manifesto, depois do quê toda a situação, com freqüência, torna-se logo evidente.

E, independentemente da inversão do assunto, a inversão cronológica não deve ser negligenciada. Uma técnica bastante comum da distorção do sonho consiste em representar o resultado de um acontecimento ou a conclusão de uma cadeia de idéias no início de um sonho, e em colocar em seu final as premissas em que se basearam a conclusão ou as causas que levaram ao acontecimento. Quem quer que deixe de ter em mente esse método técnico adotado pela distorção onírica ficará inteiramente perdido quando se deparar com a tarefa de interpretar um sonho.
Em alguns casos, de fato, só é possível chegar ao sentido de um sonho depois de se ter efetuado um bom número de inversões de seu conteúdo sob vários aspectos. Por exemplo, no caso de um jovem neurótico obsessivo, ocultava-se por trás de um de seus sonhos a lembrança de um desejo de morte que datava de sua infância e era dirigido contra seu pai, a quem ele temera. Eis aqui o texto do sonho: Seu pai o repreendia por voltar para casa tão tarde. O contexto em que o sonho ocorreu no tratamento psicanalítico e as associações do paciente mostraram, contudo, que as palavras originais deviam ter sido que ele estava com raiva do pai, e que, em sua opinião, o pai sempre voltava para casa cedo demais (ou seja, muito antes do tempo). Ele teria preferido que o pai não voltasse para casa em absoluto, e isso era a mesma coisa que um desejo de morte contra o pai. (Ver em [1]). E isso porque, quando muito pequeno, no decorrer da ausência temporária do pai, ele fora culpado de um ato de agressão sexual contra alguém e, como punição, fora ameaçado com estas palavras: “Espere só até seu pai voltar!”
Se desejarmos levar mais avante nosso estudo das relações entre o conteúdo do sonho e os pensamentos do sonho, o melhor plano será tomar os próprios sonhos como nosso ponto de partida e considerar o que certas características formais do método de representação nos sonhos significam em relação aos pensamentos subjacentes a elas. As mais destacadas dentre essas características formais, que não podem deixar de nos impressionar nos sonhos, são as diferenças de intensidade sensorial entre imagens oníricas específicas e as diferenças na nitidez de certas partes dos sonhos ou de sonhos inteiros quando comparados entre si.
As diferenças de intensidade entre imagens oníricas específicas abrangem toda a gama que se estende desde uma nitidez de definição que nos sentimos inclinados, sem dúvida injustificamente, a considerar como maior do que a da realidade, e um irritante caráter vago que declaramos ser característico dos sonhos, porque não é inteiramente comparável a nenhum grau de indistinção que jamais percebemos nos objetos reais. Além disso, em geral descrevemos uma impressão que tenhamos de um objeto indistinto num sonho como “fugaz”, enquanto sentimos que as imagens oníricas que são mais nítidas foram percebidas por uma extensão considerável de tempo. Surge então a questão de investigar, no material dos pensamentos do sonho, o que é que determina essas diferenças na nitidez das partes específicas do conteúdo de um sonho.
Devemos começar por contrariar certas expectativas que quase inevitavelmente se apresentam. Como o material de um sonho pode incluir sensações reais experimentadas durante o sono, é provável que se presuma que estas, ou os elementos do sonho delas oriundos, recebem destaque no conteúdo do sonho, aparecendo com intensidade especial; ou, de forma inversa, que o que quer que seja muito especialmente nítido num sonho pode ser rastreado até sensações reais durante o sono. Em minha experiência, porém, isso nunca foi confirmado. Não se constata que os elementos de um sonho derivados de impressões reais no decorrer do sono (ou seja, de estímulos nervosos) se distingam, por sua nitidez, de outros elementos que surjam de lembranças. O fator da realidade não tem importância alguma na determinação da intensidade das imagens oníricas.
Do mesmo modo, poder-se-ia esperar que a intensidade sensorial (ou seja, a nitidez) das imagens oníricas específicas estivesse relacionada com a intensidade psíquica dos elementos nos pensamentos oníricos correspondentes a elas. Nestes últimos, a intensidade psíquica coincide com o valorpsíquico: os elementos mais intensos são também os mais importantes - os que formam o ponto central dos pensamentos do sonho. Sabemos, é verdade, que são estes precisamente os elementos que, em virtude da censura, em geral não conseguem penetrar no conteúdo do sonho; não obstante, é bem possível que seus derivados imediatos, que os representam no sonho, tivessem um grau mais elevado de intensidade, sem por isso constituir, necessariamente, o centro do sonho. Mas também essa expectativa é frustrada pelo estudo comparativo dos sonhos e do material de que derivam. A intensidade dos elementos de um não tem nenhuma relação com a intensidade dos elementos do outro: o fato é que ocorre uma completa “transposição de todos os valores psíquicos” [na expressão de Nietzsche] entre o material dos pensamentos oníricos e o sonho. Muitas vezes, um derivado direto daquilo que ocupa uma posição dominante nos pensamentos do sonho só pode ser descoberto, precisamente, em algum elemento transitório do sonho, que é muito ofuscado por imagens mais poderosas.
A intensidade dos elementos de um sonho mostra ter uma outra determinação - e por dois fatores independentes. Em primeiro lugar, é fácil ver que os elementos pelos quais a realização de desejo se expressa são representados com especial intensidade. [Ver em [1]] E, em segundo, a análise mostra que os elementos mais nítidos de um sonho constituem o ponto de partida das mais numerosas cadeias de idéias - que os elementos mais nítidos são também aqueles que possuem o maior número de determinantes. Não estaremos alterando o sentido dessa asserção de base empírica se a enunciarmos nestes termos: a intensidade máxima é exibida pelos elementos de um sonho em cuja formação se despendeu o maior volume de condensação. [Ver em [1]] Podemos esperar que eventualmente venha a ser possível expressar esse determinante e o outro (isto é, a relação com a realização de desejo) numa única fórmula.
O problema de que acabo de tratar - as causas da maior ou menor intensidade ou clareza de certos elementos de um sonho - não deve ser confundido com outro problema, que se relaciona com a clareza variável de sonhos inteiros ou de partes de sonhos. No primeiro caso, a clareza contrasta com a indeterminação, mas, no segundo, contrasta com a confusão. Não obstante, não se pode duvidar de que o aumento e a redução das qualidades nessas duas escalas correm paralelamente. Uma parte de um sonho que nos pareça clara geralmente conterá elementos intensos; um sonho obscuro, por outro lado, é composto de elementos de pequena intensidade. Todavia, o problema apresentado pela escala que se estende desde o que é aparentementeclaro até o que é obscuro e confuso é muito mais complicado do que o problema dos graus variáveis de nitidez dos elementos do sonho. Realmente, por motivos que surgirão depois, o primeiro desses problemas ainda não pode ser examinado. [Ver em [1].]
Em alguns casos, verificamos, para nossa surpresa, que a impressão de clareza ou indistinção fornecida por um sonho não tem absolutamente nenhuma relação com a constituição do próprio sonho, mas decorre do material dos pensamentos oníricos e é parte integrante dele. Assim, lembro-me de um sonho que me causou a impressão, quando acordei, de ser tão particularmente bem construído, impecável e claro que, ainda meio tonto de sono, pensei em introduzir uma nova categoria de sonhos que não estariam sujeitos aos mecanismos de condensação e deslocamento, mas deveriam ser descritos como “fantasias durante o sono”. Um exame mais atento provou que essa raridade entre os sonhos exibia em sua estrutura as mesmas lacunas e os mesmos defeitos de qualquer outro; e, por essa razão, abandonei a categoria de “fantasias oníricas”. O conteúdo do sonho, uma vez obtido, representou-me expondo a meu amigo [Fliess] uma teoria difícil e há muito buscada sobre a bissexualidade; e o poder de realização de desejos do sonho era responsável por considerarmos essa teoria (que, aliás, não foi fornecida no sonho) como clara e impecável. Assim, o que eu tomara por um julgamento sobre o sonho concluído era, na realidade, uma parte, e a rigor a parte essencial, do conteúdo do sonho. O trabalho do sonho tinha, nesse caso, usurpado, por assim dizer, meus primeiros pensamentos de vigília, e me transmitira como um julgamento sobre o sonho a parte do material dos pensamentos oníricos que ele não tinha conseguido representar com exatidão no sonho. Certa vez deparei com uma contrapartida exata disso no sonho de uma paciente no decorrer da análise. De início, ela se recusou inteiramente a contá-lo a mim, “porque era muito indistinto e confuso”.Finalmente, em meio a repetidos protestos de que não tinha nenhuma certeza de que seu relato fosse correto, ela me informou que várias pessoas tinham entrado no sonho - ela própria, o marido e o pai - e que era como se ela não soubesse se seu marido era seu pai, ou quem era seu pai, ou algo dessa espécie. Esse sonho, considerado juntamente com suas associações durante a sessão analítica, mostrou, sem dúvida, que se tratava da história algo comum da criada que era obrigada a confessar que estava esperando um bebê, mas estava incerta quanto a “quem era realmente o pai (da criança)”. Logo, também nesse caso, a falta de clareza exibida pelo sonho era parte do material que a instigara, ou seja, parte desse material estava representada na forma do sonho. A forma de um sonho, ou a forma como é sonhado, é empregada, com surpreendente freqüência, para representar seu tema oculto.
As explicações a respeito de um sonho ou os comentários aparentemente inocentes a seu respeito servem, muitas vezes, para disfarçar da maneira mais sutil parte do que foi sonhado, embora, de fato, traindo-a. Por exemplo, um sonhador comentou que, num dado ponto, “o sonho tinha sido lavado”; e a análise levou a uma lembrança infantil de ele escutar alguém se limpando depois de defecar. Ou temos aqui outro exemplo que merece ser registrado com pormenores. Um rapaz teve um sonho muito claro que o fez recordar-se de algumas fantasias de sua meninice que haviam permanecido conscientes. Sonhou que era noite e que ele se encontrava num hotel, numa estação de veraneio. Confundiu o número de seu quarto e entrou num outro em que uma mulher madura e suas duas filhas estavam se despindo para dormir. Prosseguiu ele: “Aqui existem umas lacunas no sonho; alguma coisa está faltando. Finalmente, havia um homem no quarto que tentou me expulsar, e eu tive de entrar numa luta com ele.” O sonhador fez esforços inúteis para recordar a essência e o tema da fantasia infantil a que o sonho evidentemente fazia alusão; até que, por fim, surgiu a verdade de que aquilo que ele estava procurando já se encontrava em seu poder, em seu comentário sobre a parte obscura do sonho. As “lacunas” eram os orifícios genitais das mulheres que estavam indo dormir; e “alguma coisa está faltando” descrevia o espectro principal dos órgãos genitais femininos. Quando rapaz, ele tivera uma ardente curiosidade de ver os órgãos genitais de uma mulher e estivera inclinado a sustentar a teoria sexual infantil segundo a qual as mulheres possuem órgãos masculinos.
Uma lembrança análoga de outro sonhador assumiu uma forma muito semelhante. Ele sonhou o seguinte: “Eu estava entrando no Restaurante Volksgarten com a Srta. K…, surgiu então um pedaço obscuro, uma interrupção…, em seguida, vi-me no salão de um bordel, onde vi duas ou três mulheres, uma delas de combinação e calcinhas.”
ANÁLISE - A Srta. K. era a filha de seu antigo chefe, e, como ele próprio admitiu, uma irmã substituta para ele. O rapaz raramente tivera oportunidade de conversar com ela, mas, certa ocasião, tiveram uma conversa em que “foi exatamente como se tivéssemos tomado consciência de nosso sexo, como se eu devesse dizer ‘eu sou um homem e você é uma mulher.’” Apenas uma vez ele estivera no restaurante em questão, com a irmã de seu cunhado, uma moça que nada significa para ele. Outra vez, fora com um grupo de três senhoras até a entrada do mesmo restaurante. Essas damas eram sua irmã, sua cunhada e a irmã do cunhado que acabamos de mencionar. Todas elas lhe eram altamente indiferentes, mas todas três se enquadravam na categoria de “irmãs”. Raras vezes ele visitara um bordel - apenas duas ou três vezes na vida.
A interpretação baseou-se no “pedaço obscuro” e na “interrupção” do sonho, e propôs uma visão de que, em sua curiosidade infantil, ele havia ocasionalmente inspecionado, mesmo que só raras vezes, os órgãos genitais de uma irmã alguns anos mais nova que ele. Alguns dias depois, ele teve uma lembrança consciente do mau feito a que o sonho aludira.
O conteúdo de todos os sonhos que ocorrem na mesma noite faz parte do mesmo todo; o fato de estarem divididos em várias seções, bem como o agrupamento e número dessas seções -, tudo isso tem sentido e pode ser encarado como uma informação proveniente dos pensamentos latentes do sonho. Ao interpretar sonhos que consistam em várias seções principais ou, em geral, sonhos que ocorram durante a mesma noite, não se deve desprezar a possibilidade de que os sonhos separados e sucessivos dessa natureza tenham o mesmo sentido e possam estar dando expressão aos mesmos impulsos em material diferente. Sendo assim, o primeiro desses sonhos homólogos a ocorrer é muitas vezes o mais distorcido e tímido, ao passo que o seguinte será mais confiante e nítido.
Os sonhos do Faraó na Bíblia sobre as vacas e as espigas de milho, interpretados por José, eram desse tipo. Eles são mais minuciosamenterelatados por Josefo (Ancient History of the Jews, Livro 2, Capítulo 5) do que a Bíblia. Depois de narrar seu primeiro sonho, disse o Rei: “Após ter tido essa visão, despertei de meu sono; e, estando em desordem e considerando comigo mesmo o que devia ser essa aparição, adormeci novamente, e vi outro sonho, mais maravilhoso que o anterior, que ainda mais me assustou e perturbou…” Após ouvir o relato do sonho do Rei, respondeu José: “Esse sonho, ó Rei, embora visto sob duas formas, significa um e o mesmo fato…”.
Em sua “Contribuição à Psicologia do Boato”, Jung (1910b) descreve como o sonho erótico disfarçado de uma escolar foi compreendido por suas colegas sem qualquer interpretação e como foi adicionalmente elaborado e modificado. Observa ele em relação a uma dessas histórias oníricas: “A idéia final numa longa série de imagens oníricas contém precisamente aquilo que a primeira imagem da série tentara retratar. A censura mantém o complexo à distância o maior tempo possível, mediante uma sucessão de novos encobridores simbólicos, deslocamentos, disfarces inocentes etc.” (Ibid., 87.) Scherner (1861, 166) estava bem familiarizado com essa peculiaridade do método de representação nos sonhos e o descreve, no tocante à sua teoria dos estímulos orgânicos [ver em [1]], como uma lei especial: “Em última análise, contudo, em todas as estruturas oníricas simbólicas provenientes de estímulos nervosos específicos, a imaginação observa uma lei geral: no começo de um sonho, ela só retrata o objeto do qual provém o estímulo por meio das mais remotas e inexatas alusões, mas, no final, depois que a efusão pictórica se esgotou, ela representa cruamente o próprio estímulo, ou, conforme o caso, o órgão envolvido ou a função desse órgão, e com isso o sonho, tendo designado sua causa orgânica real, atinge seu objetivo…”
Otto Rank (1910) forneceu uma bela confirmação dessa lei de Scherner. Um sonho de uma moça, relatado por ele, compunha-se de dois sonhos isolados, com um intervalo entre eles, sonhados no decorrer da mesma noite, tendo o segundo terminado num orgasmo. Foi possível efetuar uma interpretação pormenorizada desse segundo sonho, mesmo sem muitas contribuições da sonhadora: e o número de ligações entre os conteúdos dos dois sonhos possibilitou ver que o primeiro sonho representa, de maneira mais tímida, a mesma coisa que o segundo. De modo que este, o sonho com o orgasmo, contribuiu para a completa explicação do primeiro. Rank baseia acertadamente nesse exemplo um exame da importância geral dos sonhos com orgasmo ou emissão para a teoria do sonhar. [Ver em [1]]
Não obstante, em minha experiência, só raramente ficamos em condições de interpretar a clareza ou confusão de um sonho pela presença de certeza ou dúvida em seu material. Posteriormente, terei de revelar um fator na formação dos sonhos que ainda não mencionei e que exerce a influência determinante sobre a escala dessas qualidades em qualquer sonho específico. [Ver em [1]]
Por vezes, num sonho em que a mesma situação e cenário persistem por algum tempo, ocorre uma interrupção que é descrita com estas palavras: “Aí foi como se, ao mesmo tempo, fosse outro lugar, e lá aconteceu tal e tal coisa.” Após algum tempo, o fio da meada principal do sonho pode ser retomado, e aquilo que o interrompeu revela ser uma oração subordinada no material onírico - um pensamento interpolado. Uma oração condicional nos pensamentos do sonho é representada neste último por simultaneidade: “se” transforma-se em “quando”.
Qual é o sentido da sensação de movimento inibido que tão comumente aparece nos sonhos e que se aproxima tanto da angústia? O sujeito tenta mover-se para a frente, mas se descobre colado ao chão, ou tenta alcançar algo, mas é retido por uma série de obstáculos. Um trem está prestes a partir, mas fica-se impossibilitado de apanhá-lo. O sujeito ergue a mão para revidar um insulto, mas verifica que ela está impotente. E assim por diante. Já deparamos com essa sensação nos sonhos de exibição [em [1] e [2]], mas ainda não fizemos nenhuma tentativa séria de interpretá-la. Uma resposta fácil, mas insuficiente, seria dizer que a paralisia motora prevalece no sono e que dela tomamos conhecimento na sensação que estamos examinando. Mas pode-se perguntar por quê, nesse caso, não estamos perpetuamente sonhando com esses movimentos inibidos; e é razoável supor que essa sensação, embora possa ser evocada a qualquer momento durante o sono, sirva para facilitar algum tipo específico de representação, sendo despertada apenas quando o material dos pensamentos do sonho precisa ser representado dessa maneira.
Esse “não poder fazer nada” nem sempre aparece nos sonhos como uma sensação, mas é às vezes, simplesmente, parte do conteúdo do sonho. Um caso dessa natureza me parece particularmente apto a lançar luz sobre o sentido desse aspecto do sonhar. Eis aqui uma versão abreviada de um sonho em que, aparentemente, fui acusado de desonestidade. O local era uma mescla de um sanatório particular e de várias outras instituições. Um criado apareceu para me convocar para um exame. Eu sabia, no sonho, que algo estava desaparecido e que o exame se devia a uma suspeita de que eu me apropriara do artigo desaparecido. (A análise demonstrou que o examedevia ser entendido em dois sentidos e incluía um exame médico.) Ciente de minha inocência e do fato de que eu ocupava o posto de consultor no estabelecimento, acompanhei o criado tranqüilamente. À porta, fomos recebidos por outro criado, que disse, apontando para mim: “Por que você o trouxe? Ele é uma pessoa respeitável.” Entrei então, desacompanhado, num grande saguão onde havia máquinas, que me lembraram um Inferno com seus instrumentos de tortura diabólicos. Estendido num aparelho vi um de meus colegas, que tinha todos os motivos para reparar em mim; mas ele não prestou nenhuma atenção. Disseram-me então que eu podia ir. Mas não consegui encontrar meu chapéu e, afinal, não pude ir.
A realização de desejo do sonho estava, evidentemente, em eu ser reconhecido como um homem honesto e informado de que podia ir embora. Devia haver, portanto, toda sorte de material nos pensamentos do sonho contendo uma contradição disso. O fato de eu poder ir embora era um sinal de minha absolvição. Por conseguinte, se aconteceu algo no final do sonho que me impediu de ir, parece plausível supor que o material suprimido que continha a contradição se estivesse fazendo sentir naquele ponto. O fato de eu não conseguir encontrar meu chapéu significava, portanto: “Afinal de contas, o senhor não é um homem honesto.” Assim, o “não poder fazer alguma coisa”, nesse sonho, foi uma forma de expressar uma contradição - um “não” -; de modo que minha declaração anterior [em [1]] de que os sonhos não podem expressar o “não” requer uma correção. [1]

Em outros sonhos, nos quais a “não execução” de um movimento ocorre como uma sensação, e não simplesmente como uma situação, a sensação da inibição de um movimento dá uma expressão mais enérgica à mesma contradição - expressa uma volição que é contraposta por uma contravolição. Assim, a sensação de inibição de uma movimento representa um conflito da vontade. [Ver em [1].] Veremos mais adiante [em [1]] que a paralisia motora que acompanha o sono é precisamente um dos determinantes fundamentais do processo psíquico enquanto se sonha. Ora, um impulso transmitido pelas vias motoras nada mais é do que uma volição, e o fato de termos tanta certeza de que sentiremos esse impulso inibido durante o sono é o que torna todo o processo tão admiravelmente adequado para representar um ato de volição e um “não” que a ele se opõe. É também fácil perceber, com base em minha explicação da angústia, por que a sensação de uma inibição da vontade se aproxima tão de perto da angústia e é tão freqüentemente ligada a ela nos sonhos. A angústia é um impulso libidinal que tem origem no inconsciente e é inibido pelo pré-consciente. Quando, portanto, a sensação de inibição está ligada à angústia num sonho, deve tratar-se de um ato de volição que um dia foi capaz de gerar libido - em outras palavras, deve tratar-se de um impulso sexual.

Examinarei, em outro ponto (ver adiante [em [1]]), o sentido e a importância psíquica do julgamento que muitas vezes surge nos sonhos, expresso na frase “afinal, isto é apenas um sonho.” [1] Direi aqui apenas, a título de antecipação, que ele se destina a minimizar a importância do que está sendo sonhado. O interessante problema correlato do que se pretende dizer quando parte do conteúdo de um sonho é descrito no próprio sonho como “sonhado” - o enigma do “sonho dentro do sonho” - foi solucionado num sentido semelhante por Stekel [1909, 459 e seg.], que analisou alguns exemplos convincentes. A intenção é, mais uma vez, minimizar a importância do que é “sonhado” no sonho, retirar-lhe sua realidade. O que é sonhado num sonho, depois que se acorda do “sonho dentro do sonho”, é o que o desejo do sonho procura colocar no lugar de uma realidade obliterada.  É seguro supor, então, que o que foi “sonhado” no sonho é uma representação da realidade, a verdadeira lembrança, ao passo que a continuação do sonho, pelo contrário, meramente representa o que o sonhador deseja. Incluir algo num “sonho dentro do sonho” equivale, assim, a desejar que a coisa descrita como sonho nunca tivesse acontecido. Em outras palavras, [1] quando um evento específico é inserido num sonho como sonho pelo próprio trabalho do sonho, isso implica a mais firme confirmação da realidade do evento - sua afirmação mais forte. O trabalho do sonho se serve do sonhar como forma de repúdio, confirmando assim a descoberta de que os sonhos são realizações de desejos. [1]




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