Psychê
versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.12 n.23 São Paulo dez. 2008
ARTIGOS
Psychic conflict in Freud"s theory
Flávio Fernandes Fontes
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Endereço para correspondência
RESUMO
A fim de melhor compreender qual o papel do tema do conflito psíquico na teoria de Freud, investigamos a presença e o significado dos pares de opostos em sua obra. A utilização freqüente de antagonismos, como consciente/inconsciente, prazer/desprazer etc, é designada pensamento antitético, e uma lista de exemplos é elaborada para comprovar que essa é uma característica marcante do pensamento de Freud. As conseqüências desse ponto de vista são discutidas, chegando-se à conclusão de que os pares de opostos são uma parte importante da concepção de sujeito no campo psicanalítico e tem relevância para o entendimento do que é saúde e doença psíquica.
Palavras-chave: Freud; Conflito; Antítese; Dualismo; Oposição.
ABSTRACT
The goal of this article is to better understand the role of psychic conflict in Sigmund Freud"s theory, and investigate the presence and meaning of pairs of opposites in his work. The frequent utilization of antagonisms like conscious/ unconscious, pleasure/pain, etc. is called antithetical thinking, and a list of examples is created to show that it is an important characteristic of Freud"s style of thought. The consequences of this point of view are discussed, and pairs of opposites are pointed out as an important part of the psychoanalytical idea of subject, being relevant also to the comprehension of mental health and disease.
Keywords: Freud; Conflict; Antithesis; Dualism; Opposition.
Parte I
O presente artigo se propõe a estudar o tema do conflito, isto é, o choque entre diferentes forças – as chamadas oposições e contradições. Mais especificamente, pesquisaremos sobre como essa temática foi explorada por Sigmund Freud em suas investigações acerca do psiquismo humano. Para isso, partiremos de uma hipótese central: é o pensamento antitético, isto é, o pensar através de pares de opostos, uma das características constitutivas da obra freudiana? Em outras palavras, é a obra de Freud marcada por conflitos entre pares de opostos?
Essa hipótese surgiu principalmente a partir da leitura dos próprios textos freudianos. Em Os instintos e suas vicissitudes, podemos encontrar o seguinte trecho:
nossa vida mental como um todo se rege por três polaridades, as
antíteses:
Sujeito (ego) – Objeto (mundo externo),
Prazer – Desprazer, e
Ativo – Passivo (Freud, 1915a, p. 138).
Observando essa esquematização dual proposta por Freud, imediatamente levantamos a possibilidade de ampliar, generalizar essa estrutura para interpretar outros conceitos, agrupando-os do mesmo modo. Veremos a seguir que tal procedimento revela-se frutífero na compreensão de diversos conceitos, que passaremos a listar.
Princípio da Inércia – Lei da Constância
No Projeto para uma psicologia científica (1895a), o aparelho psíquico é concebido como formado por partículas materiais chamadas de neurônios, que podem estar mais ou menos carregados por Q, quantidade de energia psíquica. Nessa teoria, o modo como se dá a circulação de Q no sistema neuronal é o que caracterizará o ponto de vista econômico. Essa economia é regulada por dois princípios: 1) o princípio da inércia diz que os neurônios tendem a se desfazer de Q; 2) como uma descarga total tornaria o sistema incapaz de realizar qualquer coisa, o princípio da constância cuida de reter uma quantidade mínima de Q constantemente presente no sistema.
Neurônios ? (phi) – Neurônios ? (psi)
Os neurônios ? são permeáveis à passagem de Q, não oferecendo nenhuma resistência à descarga de energia, enquanto os neurônios ? são, pelo menos em parte, impermeáveis, o que possibilita a retenção de uma determinada quantia de Q. Ainda no Projeto... (1895a), aparecem de forma rudimentar as concepções de processos primários e secundários, energia livre e ligada. Porém, como esse tema só veio a ser melhor desenvolvido mais tarde na obra de Freud, trataremos desses pares em relação com outros conceitos nos dois tópicos seguintes, seguindo o bom comentário e resumo feito por Garcia-Roza (1988).
Prazer – Desprazer
O desprazer estaria relacionado a um aumento da tensão do aparelho psíquico, enquanto o prazer estaria relacionado a uma diminuição. Todo o funcionamento mental estaria voltado para diminuir o desprazer e gerar o prazer, ou seja, estaria regido pelo que Freud chamou de Princípio do prazer. No entanto, o sujeito logo aprende que nem sempre a satisfação dos seus prazeres é a melhor opção, uma vez que tais atos podem ter como contrapartida uma punição. Assim, passa a adiar alguns prazeres em troca de outros, mais seguros, e para isso utiliza-se de processos racionais de avaliação e julgamento objetivo das causas e conseqüências envolvidas em um determinado contexto. Essa ponderação, que vem contrabalancear o domínio do princípio do prazer, foi chamada por Freud de Princípio da realidade (1911). O princípio do prazer está relacionado ao processo primário, que se encarrega de descarregar excitação, enquanto o princípio da realidade está relacionado ao processo secundário, que permite a inibição dessa descarga.
Inconsciente (Ics) – Consciente (Cs)
A definição entre esses sistemas psíquicos se dá sempre por oposição. Assim, o inconsciente é definido por uma forma de energia livre, e pela predominância do processo primário e do princípio do prazer, enquanto o consciente é definido pela energia ligada e predominância do processo secundário e princípio da realidade (Freud, 1915b, p. 191-194). O recalque e a repressão procuram expulsar conteúdos do Cs e impedir que eles voltem a aparecer, enquanto as formações do inconsciente (atos falhos, sonhos, chistes, sintomas) tentam burlar a resistência e a censura para fazer com que determinados conteúdos surjam (Freud, 1910a, p. 43-51).
Introjeção – Projeção
Em uma investigação sobre a paranóia, Freud descreve a projeção como um mecanismo de defesa no qual o ego rechaça conteúdos ameaçadores, projetando-os no mundo externo: o alcoólatra jamais admitirá perante si mesmo que se tornou impotente por causa da bebida. Por mais que consiga tolerar o álcool, não consegue suportar esse conhecimento. Assim, é sua mulher a culpada – delírios de ciúme, e assim por diante" (1895b, p. 257)
O conceito de introjeção, por sua vez, é descrito como o passo final de um processo mais amplo. O que ocorre é que uma catexia objetal é substituída por meio de uma identificação do ego ao objeto amado, havendo em seguida introjeção, ou seja, o objeto passa a fazer parte da psique do sujeito. Vemos, assim, que são processos extremamente semelhantes, mas que apresentam vetores opostos – enquanto a projeção representa um movimento para o exterior, a introjeção é um movimento para o interior, de modo que estes conceitos se ligam intimamente ao par Sujeito – Mundo Externo.
Sadismo – Masoquismo
As denominações sadismo" e masoquismo" são creditadas a Krafft-Ebbing; entretanto, Freud muito discorreu e investigou sobre o tema. O sadismo é caracterizado pela inclinação a infligir dor ao objeto sexual, chegando ao ponto em que o sujeito só obtém satisfação por meio dos maus tratos a que puder sujeitar o outro na relação sexual. Já o sujeito masoquista constitui-se pela característica de obter satisfação por meio da sensação de dor e sofrimento físico ou psicológico advindos do objeto sexual (Freud, 1905). Nesses conceitos vemos a atuação pervertida das oposições naturais entre macho e fêmea, atividade e passividade.
Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud faz a seguinte reflexão: algumas das inclinações à perversão apresentam-se regularmente como pares de opostos" (1905, p. 151), e cita como exemplo, além do par sadismo-masoquismo, o par exibicionismo-voyeurismo:
Sempre que se descobre no inconsciente uma pulsão desse tipo, passível de ser pareada com um oposto, em geral pode-se demonstrar que este último também é eficaz. Toda perversão ativa", portanto, é acompanhada por sua contrapartida passiva: quem é exibicionista no inconsciente é também, ao mesmo tempo, voyeur; quem sofre as conseqüências das moções sádicas recalcadas encontra outro reforço para seu sintoma nas fontes da tendência masoquista (p. 158).
Transferência positiva – Transferência negativa
Tanto em um caso como no outro, a origem desses afetos é uma situação anterior ao tratamento analítico, sendo os sentimentos de então transferidos de forma inconsciente para a figura do analista. A transferência negativa é caracterizada pela presença de sentimentos hostis do paciente em relação ao seu psicanalista, enquanto a transferência positiva, considerada por Freud como condição necessária para que houvesse um tratamento bem sucedido, é baseada na presença sentimentos amorosos (Freud, 1912). A relação entre amor e ódio foi longamente analisada em Os instintos e suas vicissitudes (1915a).
Pulsões Sexuais – Pulsões do Ego
Esta é a primeira teoria geral das pulsões formulada por Freud, sendo as pulsões sexuais expressas pela libido, energia sexual, enquanto as pulsões do ego representam sua tendência à auto-preservação. Em uma de suas Conferências (1917a), Freud declara que o conflito patogênico, isto é, gerador de neurose, é aquele que se dá entre as pulsões sexuais e as pulsões do ego, chamadas também de forças instintuais não-sexuais".
Eros – Tânatos
Na segunda teoria das pulsões, Freud (1920) estabeleceu que pela atuação concorrente ou mutuamente oposta entre as pulsões de vida (Eros) e as pulsões de morte (Tânatos) poderíamos explicar toda uma multiplicidade de fenômenos. As primeiras procuram preservar a vida, combinando e agregando elementos em organizações complexas e funcionais, enquanto as segundas fazem o caminho inverso, levando a vida organizada de volta ao seu estágio inicial, que é o de substância desagregada e inanimada.
Embora esse levantamento esteja longe de ter sido completo e exaustivo, esperamos ter demonstrado a presença de pensamento antitético ao longo de todo o percurso teórico de Freud, pois os exemplos escolhidos foram retirados tanto de textos iniciais como de outros ao longo dos vários momentos de reformulação teórica pelos quais a obra de Freud passou. Além disso, ressaltamos que tais concepções antitéticas não se dão em constructos secundários, ou de menor importância, mas em conceitos capitais da teoria psicanalítica.
Obviamente, em diversos momentos Freud utilizou-se de formulações que não podem ser reduzidas a pares de opostos – exemplos disso são as noções de equação etiológica e de sobredeterminação (Winograd, 2004). Ponto de extrema importância também é o fato de que a clínica freudiana encara a verdade de cada sujeito como algo singular, o que aponta para um pluralismo de verdades subjetivas, e nos lança muito além de qualquer simplificação dualista. Assim, concordamos com Winograd, quando esta afirma que:
a questão sobre ser Freud monista, dualista ou pluralista ao invés de auxiliar na compreensão de seu sistema conceitual, atrapalha o entendimento, porque opera uma redução de sentido. A produção de Freud não deve ser subsumida a tais categorizações genéricas demais, pois ela tem como traço singular a impossibilidade de ser classificada satisfatoriamente em alguma destas categorias. Ele não é nem monista, nem dualista, nem pluralista. Quando muito, será monista, dualista e pluralista ao mesmo tempo. Afirmar apenas um destes aspectos é desconsiderar a complexidade desta construção teórica (2004).
Assim sendo, não pretendemos classificar pura e simplesmente Freud como dualista, uma vez que o seu pensamento é maior do que isso, mas ao contrário, apontar para o que há de dualismo no pensamento freudiano. Como vimos acima, esta abordagem pode ser esclarecedora para a compreensão de um conjunto de conceitos, cujas definições e relações entre si passam pelos pares de contrários.
Parte II
Apontaremos agora alguns dos desdobramentos possíveis a partir do que procuramos realizar na primeira parte deste texto, para o tema da gênese de conceitos e para a psicanálise (realidade psíquica, divisão do sujeito, sofrimento, patologia e bem-estar mental). Em A significação antitética das palavras primitivas (1910b, p. 161), Freud cita uma observação que fizera em A interpretação dos sonhos:
[os sonhos] mostram uma preferência particular para combinar os contrários numa unidade ou para representá-los como uma e mesma coisa. Os sonhos tomam, além disso, a liberdade de representar qualquer elemento, por seu contrário de desejo; não há, assim, maneira de decidir, num primeiro relance, se determinado elemento que se apresenta por seu contrário está presente nos pensamentos do sonho como positivo ou negativo.
A partir desse ponto, Freud compara esse achado de sua investigação dos sonhos com o trabalho do filólogo Karl Abel, que chamou a atenção para o fato de que várias palavras em egípcio significam, ao mesmo tempo, uma coisa e o seu exato oposto. Nas palavras do próprio Abel:
Suponhamos, se é que se pode imaginar um exemplo tão evidente de absurdo, que em alemão a palavra forte" signifique ao mesmo tempo forte" e fraco"; que em Berlim o substantivo luz" se use para significar ao mesmo tempo luz" e escuridão" (apud Freud, 1910b, p. 162).
Abel reconhece em seguida que casos de significação antitética também estão presentes em outros grupos lingüísticos, e enumera vários exemplos. Fornece também a explicação para tal fenômeno:
Se sempre houvesse luz, não seríamos capazes de distinguir a luz da escuridão, e conseqüentemente não seríamos capazes de ter nem o conceito de luz nem a palavra para ele (
). É claro que tudo neste planeta é relativo e tem uma existência independente apenas na medida em que se diferencia quanto a suas relações com as outras coisas (
). De vez que todo conceito é dessa maneira o gêmeo de seu contrário, como poderia ele ser de início pensado e como poderia ele ser comunicado a outras pessoas que tentavam concebê-lo, senão pela medida do seu contrário
? (Abel apud Freud, 1910b, p. 163).
Essa explicação já havia aparecido antes na filosofia de Hegel (1969, p. 18-19), para quem um conceito só se define na relação que estabelece com seu contrário, com aquilo que lhe é diferente. Mas a origem dessa idéia ainda pode ser procurada em textos bem mais antigos, e é isso que demonstraremos por meio de exemplos.
É uma e a mesma coisa: o vivo e o morto, o acordado e o adormecido, o jovem e o idoso; pois pela conversão, isso é aquilo, e aquilo, convertendo-se por sua vez, é isso", afirma Heráclito de Éfeso, filósofo grego do século VI a.C. (apud Berge, 1969, p. 277). Burnet (1994, p. 138) afirma que diversos fragmentos de Heráclito asseveram da maneira mais categórica a identidade de várias coisas habitualmente consideradas opostas". A explicação para isto, segundo Burnet, seria o fato que:
O caminho para o alto não é nada sem o caminho para baixo (fr.69). Se um parasse, o outro pararia também, e o mundo desapareceria, pois este necessita dos dois para construir uma realidade aparentemente estável. Todos os outros ditos dessa espécie [o autor se refere aqui a outros fragmentos de conteúdo semelhante] devem ser explicados da mesma forma. Se não houvesse frio, não haveria calor, pois uma coisa só pode aquecer-se caso – e na medida em que – já esteja fria (1994, p. 139).
Pensador chinês do mesmo século que Heráclito, Lao-Tzu chegou às mesmas conclusões:
Se todos na Terra reconhecerem a beleza como bela
desta forma já se pressupõe a feiúra.
Se todos na Terra reconhecerem o bem como o bem,
deste modo já se pressupõe o mal.
Porque Ser e Não-ser geram-se mutuamente
O fácil e o difícil se complementam.
O longo e o curto se definem um ao outro.
O alto e o baixo convivem um com outro.
A voz e o som casam-se um com o outro.
O antes e o depois se seguem mutuamente (2004, p. 38).
Voltando aos Gregos, encontramos as seguintes palavras ditas por Sócrates, em um dos diálogos de Platão:
Assim observar-se-á se todas as coisas nascem da mesma maneira, isto é, de suas contrárias, quando tem contrárias. Por exemplo, o formoso é o contrário do feio, o justo do injusto e assim outra infinidade de coisas. Vejamos, pois, se é absolutamente necessário que as coisas que têm seu contrário nasçam desse contrário, como quando uma coisa cresce é necessário que tenha sido menor para crescer. (...) [aqui temos uma série de exemplos que repetem a mesma argumentação]. Obtivemos destarte o princípio geral da geração, segundo o qual das coisas contrárias é que nascem as coisas que lhe são opostas (1981, p. 117-118).
Sendo assim, poderíamos interpretar a presença de antíteses no pensamento freudiano como mais do que mera casualidade. Como vimos, o próprio processo de definição de um conceito deve passar necessariamente por aquilo que ele não é, já que, se tudo fosse idêntico, não haveria razão para distinguir e existiria uma só palavra. É somente pela heterogeneidade que as idéias se tornam claras e tomam forma – e nada melhor do que recorrer às comparações para delimitar um conceito e assim melhor comunicá-lo a outra pessoa. Entretanto, nada disso seria possível se não encontrássemos essa mesma heterogeneidade e polaridade no mundo mesmo a que nos referimos como juiz de toda e qualquer teoria e descrição humana. Dessa forma, as polaridades presentes nos pensamentos e esquemas de Freud seriam o reflexo da presença real de oposições na realidade psíquica, e isso explicaria, consequentemente, sua presença no discurso psicanalítico que a procura descrever.
A imagem da alma humana perpassada por contradições constitutivas surge como o retrato fiel da concepção freudiana do homem, na qual observamos a presença irremediável de conflitos que fazem do mundo interior um campo de batalha. Não se pode viver sem estar, em alguma medida, em desencontro consigo mesmo, e não há apaziguamento absoluto que possa despontar no horizonte. Freud estava bastante ciente disso, e afirmou em uma de suas conferências: nossa vida mental, conforme sabem, é permanentemente agitada por conflitos que temos que resolver" (1917b, p. 352 – grifo do autor).
Laplanche e Pontalis, por sua vez, sintetizam a importância desse tema:
A psicanálise considera o conflito como constitutivo do ser humano, e isto em diversas perspectivas: conflito entre o desejo e a defesa, conflito entre os diferentes sistemas ou instâncias, conflitos entre as pulsões, e por fim o conflito edipiano, onde não apenas se defrontam desejos contrários, mas onde estes enfrentam a interdição (1986, p. 131).
Esses mesmos autores propõem uma maneira de entender os conflitos na obra de Freud a partir da metapsicologia, isto é, conflitos dentro dos aspectos tópicos, econômicos e dinâmicos. Embora esta seja uma sugestão interessante, optamos por um enfoque ainda mais geral e abrangente, que ultrapassa tal ordem de classificação, uma vez que o conflito entre pulsão de vida e de morte, por exemplo, pode ser caracterizado como simultaneamente econômico (quantidades de energia pulsionais em ação) e dinâmico (as energias pulsionais interagem entre si). O leitor pode voltar a observar o quadro resumo, e conferir como os três aspectos da metapsicologia podem servir para algumas oposições, mas são insuficientes para a devida compreensão de todas as que são estudadas aqui – outro exemplo seria o conflito entre o sujeito e o mundo externo, que dificilmente poderia ser dito tópico, já que o mundo externo se situa fora do aparelho psíquico propriamente dito (1ª e 2ª tópicas).
Garcia-Roza (1988, p. 125), discorrendo acerca do tema das pulsões do ego e pulsões sexuais, comenta, semelhantemente a Laplanche e Pontalis:
É possível que esse dualismo que atravessa toda a produção teórica de Freud esteja ligado ao papel fundamental que o conflito psíquico desempenha no interior da psicanálise. Não é apenas em relação às pulsões que Freud fala de conflito": ele pode se dar entre dois tipos de pulsões (pulsões do ego vs. pulsões sexuais), como pode ocorrer entre duas instâncias psíquicas (sistema Ics vs. sistema Pcs/Cs), ou ainda entre o desejo e a defesa. É o conflito, particularmente o conflito edipiano, que institui a ordem humana, assim como é o conflito que produz a clivagem do psiquismo. Trata-se, portanto, de uma das noções mais fundamentais da psicanálise e que está presente, nas suas mais variadas formas, em qualquer texto psicanalítico.
Avançando na pista de problema tão central e importante, vejamos a contribuição, dada por Robert Holt, que muito se assemelha à nossa própria abordagem. Holt não cuida do estilista Freud, (...) ou do prosador científico (...). Ele se preocupa em divisar, através e para além dos textos freudianos, o estilo de pensar, de teorizar, mesmo de sentir, desse autor tão singular" (Souza, 1998, p. 47). Dentre várias outras observações, que não nos interessam particularmente para os fins desse escrito, Souza segue apresentando a visão de Holt a respeito da teoria freudiana:
a psicanálise prima pelo dualismo, como se sabe. Enxergando no conflito o móvel fundamental da vida psíquica, sempre destaca as oposições e polaridades: atividade-passividade, Eu-mundo exterior, prazer-desprazer, amor-ódio, vida-destruição. Dualismo dialético" é a expressão que ele [Holt] usa para qualificar esse pendor freudiano, tendo em mente que os pares de contrários são pólos de um continuum, ao longo do qual se dispõem muitas formas intermediárias (p. 51).
Outras antíteses citadas por Holt são racionalismo versus intuição e devoção ao realismo versus atração pelo oculto.
Estrutura parecida, por estabelecer dualismos, foi proposta por Laplanche (1970) e avalizada por Mahony (1992), ambos citados por Souza (1998):
Nesse momento, podemos levantar alguns questionamentos: mas não seria essa uma maneira inútil de leitura? Qual o propósito de construir tais esquemas formais, se bem sabemos que eles não fazem justiça ao pensamento total de Freud? Não seriam apenas jogos intelectuais sem aplicação ou relevância teórica?
Ora, o ponto de vista apresentado aqui se propõe apenas a ser uma leitura possível do papel do conflito na obra freudiana, sabendo que muitas outras leituras são igualmente admissíveis, e sem ter a ambição de esgotar o tema. Imaginamos, porém, que a sistematização dos conceitos em uma estrutura dual, tal como foi realizado, se justifica plenamente por revelar, tal como afirmou Robert Holt, grande parte do modo de pensar freudiano, e também, como vimos por meio de exemplos retirados da filosofia, uma parte do modo de pensar universal. Dentro do campo psicanalítico propriamente dito e da área clínica, essa visão esclarece e põe em destaque a tragédia do sujeito dividido, dilacerado entre vetores opostos que o atravessam.
Os conflitos não fazem parte de uma fase que logo depois é superada, não acontecem em uma época e depois deixam de existir. É possível que alguns conflitos acabem, mas sempre haverá outros em atuação, de forma que é impossível chegar a uma resolução completa – os conflitos não são passageiros, mas sim permanentes. E como Freud mesmo se encarrega de demonstrar, tais conflitos estão na gênese das psicopatologias, do sofrimento psicológico humano:
os sintomas podem servir tanto à satisfação sexual como ao seu oposto. Existe uma excelente base para essa bilateralidade ou polaridade numa parte do seu mecanismo, que até o momento não pude mencionar. Pois, conforme veremos, elas são o produto de acordo e surgem da recíproca interferência entre duas correntes opostas; representam não só o reprimido, mas também a força repressora que compartilhou de sua origem. Um ou outro lado pode estar representado com mais força; mas é raro uma das forças em jogo estar totalmente ausente (1917a, p. 307).
Em outras palavras: o sintoma neurótico é definido como o produto de um compromisso entre dois grupos de representações que agem como duas forças de sentido contrário" (Laplanche e Pontalis, 1986, p. 131). Assim, estamos lidando com um dos principais fatores etiológicos da neurose, e embora existam diferentes graus de intensidade e de freqüência que definem o normal e o patológico, podemos concluir com segurança que todo ser humano tem algum grau de sofrimento psicológico porque está justamente tentando se equilibrar em meio a forças antagônicas.
Assim, não é de forma alguma devido ao acaso que o conflito seja considerado tema de tão crucial importância, e que Freud tantas vezes trabalhe a partir de oposições, uma vez que tudo isso parece apontar para o âmago da questão do sujeito psicanalítico, que se revela como aquele que sofre pelas contradições que lhe são inerentes e constitutivas.
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Recebido em: 01/10/07
Aprovado em: 07/08/08
Flávio Fernandes Fontes
Graduando em Psicologia (UFRN); Membro da Base de Pesquisa Grupo de Estudos Subjetividade e Desenvolvimento Humano".
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-11382008000200011
FONTES, Flávio Fernandes. O conflito psíquico na teoria de Freud. Psyche (Sao Paulo), São Paulo , v. 12, n. 23, dez. 2008 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-11382008000200011&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 17 dez. 2016.