VOLUME I
(1886-1899)
Dr. Sigmund
Freud
PREFÁCIO GERAL DO
EDITOR INGLÊS
(1) O OBJETIVO DA STANDARD
EDITION
O material contido nesta edição está indicado
por seu título - Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud; contudo,
seria conveniente que eu começasse por indicar mais explicitamente seu
conteúdo. Meu objetivo foi incluir nesta edição a totalidade dos escritos
psicológicos publicados de Freud - isto é, tanto os psicanalíticos como os
pré-psicanalíticos. Não se incluem aqui os numerosos trabalhos de Freud
sobre as ciências físicas publicados durante os primeiros quinze anos, mais ou
menos, de sua atividade produtiva. Fui bastante liberal quanto ao critério de
seleção adotado, pois encontrei lugar para dois ou três trabalhos elaborados
por Freud imediatamente após seu regresso de Paris, em 1886. Estes, que abordam
principalmente a histeria, foram escritos sob a influência de Charcot, quase
sem nenhuma referência aos processos mentais; mas constituem uma verdadeira
ponte entre os trabalhos neurológicos e psicológicos de Freud.
A Standard Edition não inclui a
correspondência de Freud. Esta tem enorme extensão e apenas algumas seleções
relativamente pequenas foram publicadas até o momento. Com exceção das ‘Cartas
Abertas’ e de algumas outras, publicadas com o consentimento de Freud durante
sua vida, minha exceção principal a essa regra geral está representada pela
correspondência que Freud manteve com Wilhelm Fliess no correr da parte inicial
de sua carreira. Essa correspondência é de tão vital importância para a
compreensão dos pontos de vista de Freud (e não só dos seus pontos de vista
iniciais) que grande parte dela não poderia ser rejeitada. Por conseguinte, o
primeiro volume da edição contém o Projeto de 1895 e a série de
‘’Rascunhos’’ remedidos por Freud a Fliess entre 1892 e 1897, bem como as
partes das cartas que possuem interesse científico explícito.
A Standard Edition também não contém
quaisquer relatos ou sumários, publicados nas revistas da época, das muitas
conferências e artigos de Freud apresentados, nos primeiros tempos de sua
carreira, em reuniões de diversas sociedades médicas de Viena. Aqui, as únicas
exceções são os raros casos em que o relato foi feito ou revisado pelo próprio
Freud.
Por outro lado, a Standard Edition
encerra todo o conteúdo das Gesammelte Werke (a única edição alemã quase
completa), além de uma série de trabalhos que ou vieram a lume após a conclusão
das Gesammelte Werke, ou foram, por motivos vários, omitidos por seus
organizadores. Também pareceu imprescindível incluir, no Volume II, a
participação de Josef Breuer nos Studien über Hysterie, que foi deixada
de fora em ambas as edições alemãs coligidas.
(2) O PLANO DA EDIÇÃO
Para um editor que se defrontou com um total de
uns dois milhões de palavras, o primeiro problema foi decidir qual a melhor
maneira de apresentá-las aos leitores. Deveria o material ser ordenado segundo
um critério classificatório ou um critério cronológico? A primeira edição alemã
coligida (os Gesammelte Schriften, publicados durante a vida de Freud)
empreendeu uma divisão de acordo com o assunto; para as Gesammelte Werke,
mais recentes, pretendeu-se uma disposição estritamente cronológica. Nenhum dos
dois critérios foi satisfatório. Os escritos de Freud não se encaixam
comodamente em categorias, e a cronologia estrita significaria interromper
cerradas seqüências de idéias. Aqui, portanto, foi adotada uma conciliação. O
arranjo é, no geral, cronológico; todavia, não segui a regra em alguns casos -
aqueles em que, por exemplo, Freud escreveu um adendo muitos anos depois do
trabalho original (como acontece com o Estudo Autobiográfico, no Volume
XX), ou em que ele mesmo agrupou um conjunto de artigos de diferentes datas
(tal como os artigos sobre técnica, no Volume XII). Em geral, porém, cada
volume contém todos os trabalhos pertencentes a um determinado período de anos.
O conteúdo de cada volume (exceto, naturalmente, quando se trata de um único
trabalho extenso) é agrupado em três classes: coloquei em primeiro lugar o
trabalho principal (ou trabalhos principais) pertencente ao período - que dá o
título ao volume; seguem-se os escritos mais importantes, de menor extensão; e
por fim são incluídos os trabalhos realmente breves (e, geralmente, de
importância relativamente menor). Na medida do possível, a cronologia é
determinada pela data da redação real da obra em questão. Muitas vezes,
porém, a única data certa é a da publicação. Por conseguinte, cada item é encimado
pela data de publicação entre parênteses, seguida da data de composição, entre
colchetes, nos casos em que esta pode, com bastante segurança, ser considerada
diferente da anterior. Assim, é quase certo que os dois últimos artigos
“metapsicológicos”, no Volume XIV, embora publicados em 1917, tenham sido
escritos na mesma época que seus três predecessores, em 1915. Esses dois
últimos, por conseguinte, são incluídos no mesmo volume que os demais, sendo
encimados pelas datas “(1917 [1915])”. Cabe ainda dizer que cada volume contém
sua bibliografia e índice próprios, embora estejam planejados para o Volume
XXIV uma bibliografia e um índice completos para todo o conjunto da obra.
(3) AS FONTES ALEMÃS
As traduções da edição inglesa baseiam-se, em
geral, nas últimas edições alemãs publicadas ainda em vida de Freud. No
entanto, uma das minhas principais dificuldades foi a natureza insatisfatória
dos textos alemães. As publicações originais, editadas sob a supervisão direta
de Freud, via de regra são fidedignas; entretanto, à medida que o tempo
transcorria e a responsabilidade passava a outras mãos, os erros começavam a se
infiltrar. Isso aconteceu até mesmo na primeira edição coligida, publicada em
Viena entre as duas grandes guerras e destruída pelos nazistas em 1938. A
segunda edição coligida, impressa na Inglaterra em meio às maiores
dificuldades, durante a Segunda Guerra Mundial, é, em grande parte, uma
fotocópia da que a precedeu, mas naturalmente mostra sinais das circunstâncias
em que foi produzida. No entanto, continua sendo a única edição alemã existente
dos trabalhos de Freud com alguma pretensão de ser completa.
De 1908 em diante, Freud preservou seus
manuscritos; mas no caso dos trabalhos publicados durante sua vida, não os
consultei, exceto em alguns casos de dúvida. Quanto aos textos publicados
postumamente, a situação é diferente; em alguns casos, especialmente no do Projeto
(como se pode constatar a partir da Introdução do Editor Inglês a esse
trabalho), a tradução foi feita diretamente de uma cópia fotostática do
manuscrito.
Um grave defeito nas edições alemãs é a
ausência de qualquer tentativa de levar em conta as numerosas modificações de
texto feitas por Freud nas edições sucessivas de alguns dos seus livros. Isso
se aplica especialmente à Interpretação dos Sonhos e aos Três Ensaios sobre
a Teoria da Sexualidade, pois ambos foram, em grau muito acentuado,
remodelados em suas edições posteriores. Para um estudioso sério do
desenvolvimento das idéias de Freud, é do maior interesse ter bem exposta a estratificação
de seus pontos de vista. Assim sendo, aqui me empenhei em assinalar, pela
primeira vez, as datas em que foram realizadas as diferentes modificações, e em
expor em notas de rodapé as versões anteriores.
(4) OS COMENTÁRIOS
A partir do que acabou de ser dito,
depreende-se que, no conjunto, concebi esta edição tendo em mente o ‘estudioso
sério’. Inevitavelmente, o resultado foi um grande número de comentários, com o
qual muitos leitores ficarão irritados. Nesse ponto, sou levado a citar o Dr. Johnson:
“Para um expositor, é impossível não escrever
muito pouco para alguns e demais para outros. Somente por sua própria
experiência é que ele pode julgar aquilo que é necessário; e, por mais que faça
deliberações, acabará por explicar muitas passagens que o erudito achará
impossível que se compreendam mal e por omitir muitas outras explicações para
as quais o inculto desejaria sua ajuda. Estas são censuras meramente relativas,
que devem ser toleradas com tranqüilidade.”
Os comentários da Standard Edition são
de diferentes tipos. Em primeiro lugar, há as notas puramente textuais, às
quais me referi há pouco. Seguem-se as elucidações das numerosíssimas alusões
históricas e a lugares, bem como das citações literárias de Freud. Freud
constituiu um vívido exemplo de homem igualmente à vontade nas ‘duas culturas’,
como têm sido denominadas. Não era apenas um hábil neuroanatomista e
fisiologista; era também largamente versado nos clássicos gregos e latinos, bem
como na literatura de seu idioma e nas literaturas da Inglaterra, da França, da
Itália e da Espanha. A maioria de suas alusões deve ter sido imediatamente
compreensível para seus contemporâneos em Viena, mas elas estão muito além do
alcance de um leitor atual de língua inglesa. Contudo, muitas vezes, especialmente
em A Interpretação dos Sonhos, essas alusões desempenham um papel real
no desenvolvimento de sua argumentação; sua explicação não pôde ser posta de
lado, conquanto tivesse exigido pesquisa considerável e às vezes infrutífera.
Um outro tipo de anotações é constituído pelas
remissões. Estas devem ser de especial valor para o estudioso. Freud
freqüentemente abordou o mesmo assunto várias vezes e, talvez, de diferentes
maneiras, em datas separadas por longos intervalos. As remissões entre essas
ocasiões, alcançando toda a extensão da edição, devem ajudar a superar a
objeção ao tratamento cronológico geral do material. Por fim, e mais raramente,
há notas explicativas de comentários feitos por Freud. Estas, todavia, são em
geral apenas exemplos ampliados das remissões; as discussões mais elaboradas do
sentido em Freud ficam habitualmente reservadas a uma outra categoria de
comentário.
É que, além dessas explicações feitas
correntemente em notas de rodapé, cada trabalho é, sem exceção, acompanhado de
uma nota introdutória. Esta varia em extensão, de acordo com a importância do
trabalho. Em todos os casos, essa nota inicia com uma bibliografia do texto
alemão e de todas as suas traduções para o inglês. (Não é feita qualquer menção
a traduções para outros idiomas; também não se procurou fornecer uma lista
completa das reedições subseqüentes à morte de Freud em 1939.) Segue-se um
relato daquilo que se conhece a respeito da data e das circunstâncias da
redação e publicação do trabalho. Vem, a seguir, alguma indicação do conteúdo
temático do trabalho e do lugar que ele ocupa na corrente principal do
pensamento de Freud. Naturalmente, é aqui que as diferenças serão encontradas.
No caso de um trabalho breve, de pequeno interesse, haverá apenas uma ou duas
frases. No caso de um trabalho maior, pode haver um ensaio introdutório de
muitas páginas.
Todos esses vários tipos de intervenção
editorial foram norteados por um único princípio. Meu objetivo foi, espero que
corretamente, deixar que Freud fosse seu próprio expositor. Onde há pontos
obscuros, busquei explicações nos escritos do próprio Freud; onde parece haver
contradições, contentei-me em colocar o fato diante do leitor e possibilitar
que este formasse sua própria opinião. Dei de mim o melhor que pude a fim de
evitar ser didático, e evitei qualquer pretensão de autoridade ex-cathedra.
Mas, se refreei minhas opiniões próprias, especialmente em questão de teoria,
constatar-se-á que deixei igualmente de mencionar todos os comentários,
abordagens e críticas oriundos de qualquer outra fonte. Assim, quase sem
exceção, esta edição não contém absolutamente referências a outros autores, por
mais eminentes que sejam - exceto, naturalmente, aqueles que são citados pelo
próprio Freud. (A enorme proliferação da bibliografia psicanalítica depois de
sua morte, de qualquer modo, teria imposto essa decisão.) Assim, o estudioso
poderá abordar os escritos de Freud sem a influência de opiniões alheias.
É no tocante aos comentários que me sinto
sobremaneira consciente das deficiências desta edição, muitas delas
irremediáveis. Os numerosos erros tipográficos e pequenos lapsos podem ser
corrigidos, segundo espero, no Volume XXIV; mas as falhas que me preocupam não
podem ser reparadas com tanta facilidade. Na maioria, elas surgem da imaturidade
do material. Exemplo disso é algo que já mencionei - a ausência de qualquer
edição alemã realmente fidedigna. Na realidade, porém, quando se iniciava o
trabalho desta edição, há mais de quinze anos, toda a área estava inexplorada e
sem demarcação. Nem sequer tinha sido iniciada a publicação da biografia de
Freud de autoria de Ernest Jones; a maioria das pessoas desconhecia a
correspondência com Fliess e a própria existência do Projeto. É verdade
que recebi assistência de muitas pessoas de todas as partes, especialmente de
Ernest Jones, que me punha a par das suas descobertas à medida que as fazia.
Não obstante, a Standard Edition constitui um trabalho pioneiro, com
todos os inevitáveis erros e tropeços que isso implica. Eu próprio fui-me
tornando mais bem informado quanto às idéias de Freud, à medida que o tempo
passava, e é provável que os volumes de publicação mais recente dêem prova
disso.
Mencionem-se, em particular, duas deficiências.
A primeira delas é que, naturalmente, foi impossível concretizar a situação
ideal de manter toda a edição composta tipograficamente, mas aberta a correções
até estar concluído o último volume. Foi necessário tomar toda uma série de
decisões fundamentais antes de publicar o primeiro volume. Essas decisões
incluíram tanto as questões de formato quanto a escolha de termos técnicos e,
uma vez tomadas tais decisões, em geral foi necessário respeitá-las em toda a
edição. Naturalmente, mais tarde lamentou-se o fato de algumas delas terem sido
tomadas. Uma outra fonte de deficiências que o crítico benévolo poderá ter em
mente é que a Standard Edition foi, sob muitos aspectos, um trabalho de
amadores. Foi um trabalho feito por algumas pessoas que habitualmente se
dedicam a outras ocupações, um trabalho feito sem apoio de qualquer organização
acadêmica disposta a fornecer pessoal ou instalações.
(5) AS TRADUÇÕES
Ao se pensar numa tradução revista de Freud, o
objetivo primeiro só poderia ser o de transmitir seu pensamento com a máxima
fidelidade possível. No entanto, um outro problema, talvez mais difícil, não
podia ser evitado: o problema do estilo. Certamente não é possível deixar de
levar em conta os méritos literários de Freud. Thomas Mann, por exemplo,
referiu-se às qualidades “genuinamente artísticas” de Totem e Tabu - “em
sua estrutura e em sua forma literária, uma obra-prima relacionada e vinculada
com todos os grandes exemplos de obras ensaísticas alemãs”. Dificilmente se
poderia esperar que esses méritos sobrevivessem à tradução, mas era preciso
empreender algum esforço nesse sentido. Quando a Standard Edition foi
inicialmente planejada, considerou-se que seria vantajoso uma única pessoa
incumbir-se de moldar todo o texto; com efeito, uma única pessoa executou a
maior parte do trabalho de tradução, e mesmo quando uma versão anterior foi
utilizada como base, pode-se constatar que se impôs a execução de grandes
alterações. Infelizmente, isso provocou a rejeição, no interesse da desejada
uniformidade, de muitas traduções feitas anteriormente e que, em si mesmas,
eram excelentes. O modelo imaginário que sempre tive diante de mim foram os
escritos de algum homem de ciência inglês, de grande cultura, nascido em meados
do século dezenove. E em caráter explicativo, e não patriótico, eu gostaria de
enfatizar a palavra “inglês”.
Se me volto agora para a questão primeira da
tradução correta da intenção de Freud, devo entrar em conflito com o que
acabei de dizer. Pois, em todas as passagens em que Freud se torna difícil ou
obscuro, é necessário aproximar-se mais de uma tradução literal, sacrificando a
elegância estilística. Também por idêntico motivo é necessário absorver por
inteiro, na tradução, uma série de termos técnicos, expressões estereotipadas e
neologismos que, com a maior boa vontade deste mundo, não podem ser
considerados “ingleses”. Há também a dificuldade especial - que emerge, por
exemplo, em A Interpretação dos Sonhos, A Psicopatologia da Vida Cotidiana
e no livro sobre os chistes - do aparecimento de material que envolveaspectos
verbais intraduzíveis. Aqui, não dispusemos da alternativa fácil de eliminar ou
substituir por algum material equivalente em língua inglesa. Tivemos que nos
socorrer de colchetes e notas de rodapé, pois nos prende o compromisso da regra
fundamental: Freud, Freud, e nada mais do que Freud.
No que diz respeito ao vocabulário técnico,
adotei, em geral, os termos sugeridos em A New German-English
Psycho-Analytical Vocabulary, de Alix Strachey (1943), que, por sua vez,
baseou-se nas sugestões de um “Glossary Committee” instituído por Ernest Jones
vinte anos antes. Somente em alguns casos divergi dessas autoridades.
Determinadas palavras que levantam controvérsias são discutidas em uma nota à
parte, mais adiante (em [1]).
Na medida do possível, procurei ater-me à regra
geral de traduzir invariavelmente um termo técnico alemão pelo mesmo termo
inglês. Assim, “Unlust” é sempre traduzido por “unpleasure“
(“desprazer”) e “Schmerz” é sempre traduzido por “pain” (“dor”).
Contudo, deve-se observar que essa regra é passível de conduzir a equívocos.
Por exemplo, o fato de “psychisch” ser habitualmente traduzido por “psychical”
(“psíquico”) e “seelisch” por “mental” (“mental”) pode levar à
idéia de que essas palavras possuam significados diferentes, quando penso que
são sinônimas. A regra da tradução uniforme, porém, foi levada mais adiante e
estendida a expressões e, a rigor, passagens inteiras. Quando, como tantas
vezes acontece, Freud apresenta a mesma argumentação ou conta o mesmo episódio
em mais de uma ocasião (às vezes com grandes intervalos de tempo), procurei
acompanhá-lo e usar quando ele as usa, palavras idênticas; quando ele as
modifica, procurei fazer o mesmo. Alguns pontos não destituídos de interesse
são assim preservados na tradução.
Tenho a obrigação de dizer explicitamente,
aqui, que todos os acréscimos ao texto, por menores que sejam, e todas as notas
de rodapé adicionais estão indicados por colchetes.
(6) AGRADECIMENTOS
Antes de mais nada, é necessário expressar
reconhecimento ao apoio extremamente generoso prestado ao empreendimento, nos
seus primórdios, pelos membros da Associação Americana de Psicanálise (à qual
me orgulho de pertencer, atualmente, como membro honorário), por iniciativa, em
especial, do Dr. John Murray, de Boston, com apoio do Dr. W. C. Menninger,
àquela época presidente da Associação. Todas as tentativas feitas anteriormente
para levantar o capital necessário tinham falhado, e todo o projeto teria sido
abandonado, não fosse a magnífica atitude da América ao subscrever, adiantado,
mais ou menos quinhentas coleções da edição proposta. A soma foi subscrita como
um ato de pura e até imoderada confiança, numa época em que não havia provas
concretas de uma coisa chamada Standard Edition e os resignados
subscritores foram obrigados a esperar quatro ou cinco anos para que os
primeiros volumes lhes fossem remetidos.
Dessa época em diante, o apoio americano foi
constante e chegou até mim oriundo de muitas fontes. Ao longo dos anos, mantive
constantes contatos com o Dr. K. R. Eissler, que colocou à minha disposição
todos os recursos dos Arquivos Sigmund Freud, além de me proporcionar o mais
amistoso incentivo pessoal. Ainda por intermédio dele, tive acesso ao valioso
material guardado na biblioteca do Instituto de Psiquiatria do Estado de Nova
Iorque. Naturalmente, estive em débito constante para com o Dr. Alexander
Grinstein e seu Index of Psychoanalytic Writings. Ainda no âmbito da
ajuda que obtive da América, devo mencionar dois homens de regiões separadas
por uma grande distância; cada um deles, por longo tempo, deu seu apoio ao
sonho de ter um Freud completo em inglês, mas nenhum dos dois viveu o bastante
para ver esse sonho realizado: Otto Fenichel e Ernst Kris.
Aproximando-me mais de casa, meu principal
apoio veio, naturalmente, do Instituto de Psicanálise e, em particular, do seu
Comitê de Publicações, que, sob a direção de diferentes nomes, me apoiou
resolutamente desde o primeiro momento, a despeito inclusive do que, muitas
vezes devem ter-se afigurado exigências financeiras exorbitantes. Parece uma
impropriedade mencionar nomes individualmente, mas devo recordar, mais uma vez,
minha volumosa e instrutiva correspondência com Ernest Jones. Tenho especiais
motivos para ser grato à Dra. Sylvia Payne, que durante longo tempo ocupou a
presidência do Comitê de Publicações.
Passando à germinação real da Standard
Edition, é desnecessário dizer que meus primeiros agradecimentos cabem à
colaboradora e aos auxiliares cujos nomes são vistos na página de rosto de cada
volume: Srta. Anna Freud, minha esposa e o Dr. Alan Tyson. A Srta. Freud,
sobretudo, revelou-se incansável ao dedicar suas preciosas horas de lazer à
leitura de toda a tradução e ao contribuir com inestimáveis críticas. O nome da
Srta. Angela Richards (atualmente Sra. Angela Harris) também aparece na página
de rosto do presente volume. Nesses últimos anos, ela foi, de fato, minha
auxiliar principal, e se incumbiu de grande parte do aspecto editorial de meu
trabalho. Também devo gratidão à Srta. Ralph Partridge, que preparou a maior
partedos índices de cada volume, e às Sras. Ambrose Price e D. H. O’Brien, que,
em trabalho conjunto, datilografaram todo o material da edição.
As dificuldades nos preparativos iniciais desta
edição foram exacerbadas pelas complicações decorrentes do fato de Freud haver
lidado de modo totalmente não-pragmático com os direitos autorais de suas
traduções. Esses problemas, especialmente os referentes aos direitos autorais
americanos, só foram solucionados mediante a decisiva intervenção do Sr. Ernst
Freud por um período de vários meses. O lado inglês dessa questão foi
manipulado por The Hogarth Press e, em especial, pelo Sr. Leonard Woolf. O Sr.
Woolf, que vem publicando as traduções inglesas de Freud há uns quarenta anos,
participou ativamente da evolução desta edição. Sinto que minha gratidão
especial, e até um tanto mesclada de culpa, se deve aos editores e impressores,
por sua tolerância em atenderem às minhas exigências.
Cabe-me acrescentar que, embora tenha recebido
conselho de muitas pessoas que me auxiliaram, e tenha-me beneficiado muito
desses conselhos em todos os pontos da tradução ou dos comentários, a decisão
final, em última análise, só poderia ser minha; portanto, é apenas sobre mim
que repousa toda a responsabilidade pelos erros que o tempo, certamente, há de
revelar em abundância.
Por fim, eu tomaria a liberdade de expressar um
reconhecimento mais pessoal: minha dívida de gratidão para com a companheira
que há tantos anos tem participado do meu trabalho como tradutor. Já faz hoje
quase meio século desde que, juntos, passamos dois anos em Viena, em análise
com Freud, e desde que, decorridas apenas algumas semanas de análise, ele, de
repente, nos instruiu a fazer uma tradução de um trabalho que escrevera havia
pouco tempo - “Ein Kind wird geschlagen” -, tradução que agora faz parte, aqui,
do Volume XVII. No presente empreendimento, ela me prestou ajuda constante, por
sua imparcialidade tanto na aprovação como na crítica, e ela pôde ajudar-me a
atravessar alguns períodos de dificuldade física, quando parecia absurdo
imaginar que um dia a Standard Edition pudesse ser concluída.
JAMES STRACHEY
MARLOW, 1966
RELATÓRIO SOBRE MEUS ESTUDOS EM
PARIS E BERLIM (1956 [1886])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
BERICHT ÜBER MEINE MIT
UNIVERSITÄTS-JUBILÄUMS REISESTIPENDIUM UNTERNOMMENE STUDIENREISE NACH PARIS UND
BERLIN
(a) EDIÇÃO ALEMÃ:
(1886 Data de redação.)
1960 Em Sigmund
Freuds akademische Laufbahn im Lichte der Dokumente, de J. e R. Gicklhorn,
82, Viena.
(b) TRADUÇÃO
INGLESA:“Report on my Studies in Paris and Berlin”
1956 Int. J. Psycho-Anal., 37 (1), 2-7,
(Trad. de James Strachey.)
A presente tradução inglesa é uma reimpressão
ligeiramente corrigida da publicada em 1956.
O relatório com que apropriadamente tem início
a Standard Edition das Obras Psicológicas de Freud é um relato
contemporâneo que seu protagonista faz de um evento histórico: o desvio dos
interesses científicos de Freud da neurologia para a psicologia.
As circunstâncias em que, em 1885, Freud obteve
da Universidade de Viena uma bolsa de estudos para viajar estão detalhadamente
relatadas por Ernest Jones (1953, 82-4). A subvenção, no valor de 600 florins
(que, naquele tempo, equivaliam a pouco menos de £ 50 ou US$ 250) e destinada a
cobrir um período de seis meses, foi concedida pelo Colégio de Professores da
Faculdade de Medicina: e esperava-se que Freud lhes fizesse um relatório formal
quando de seu regresso a Viena. Ele passou cerca de dez dias escrevendo esse
relatório, quase que imediatamente após seu retorno, havendo-o concluído em 22
de abril de 1886. (Jones, ibid., 252.) Por iniciativa de Siegfried Bernfeld,
esse relatório foi descoberto nos Arquivos da Universidade pelo Professor Josef
Gicklhorn, o que possibilitou sua publicação - primeiramente em inglês -
setenta anos depois de ter sido escrito, por gentileza do Dr. K. R. Eissler,
Secretário dos Arquivos Sigmund Freud em Nova Iorque. O original, que se
encontra nos Arquivos da Universidade de Viena, consiste em doze folhas
manuscritas, das quais a primeira contém apenas o título.
É de conhecimento geral a importância que o
próprio Freud sempre atribuiu aos seus estudos com Charcot. Esse relatório
mostra com a maior clareza que suas experiências no Salpêtrière constituíram um
momento de decisão. Quando chegou a Paris, seu “tema de eleição” era a anatomia
do sistema nervoso; ao partir, sua mente estava povoada com os problemas da
histeria e do hipnotismo. Dera as costas à neurologia e se voltava para a
psicopatologia. Seria até mesmo possível assinalar uma data precisa para a mudança
- princípio de dezembro de 1885, quando terminou seu trabalho no laboratório de
patologia do Salpêtrière; contudo, a incômoda organização daquele laboratório,
que o próprio Freud apresenta como explicação, naturalmente não foi outra coisa
senão uma causa precipitante da momentosa mudança de direção nos interesses de
Freud. Outros fatores mais profundos estiveram em ação e, entre eles, sem
dúvida a grande influência pessoal que Charcot naturalmente exercia sobre ele.
Freud expressou de forma mais plena sua consciência dessa influência no
obituário que escreveu por ocasião da morte de seu professor, alguns anos mais
tarde (1893f). Com efeito, muito do que ele diz de Charcot neste relatório
encontrou lugar em seu estudo posterior.
Um relato mais pessoal da estada de Freud em
Paris encontra-se na série de vívidas cartas que escreveu à sua futura mulher,
muitas das quais estão incluídas no volume de sua correspondência organizado
por Ernst Freud (1906a).
RELATÓRIO SOBRE MEUS ESTUDOS EM
PARIS E BERLIM
EFETUADOS COM O AUXÍLIO DE UMA BOLSA
DE ESTUDOS CONCEDIDA PELO FUNDO DOJUBILEU
UNIVERSITÁRIO
(OUTUBRO DE 1885 - FIM DE MARÇO DE 1886)
por
DR. SIGMUND FREUD
Docente de Neuropatologia da Universidade de
Viena
Ao Emérito Colégio de Professores da Faculdade
de Medicina de Viena.
Quando me candidatei ao prêmio da Bolsa de
Estudos do Fundo do Jubileu Universitário, referente ao ano de 1885-6,
expressei minha intenção de me dirigir ao Hospice de la Salpêtrière, em Paris,
e de ali continuar meus estudos de neuropatologia. Diversos fatores
contribuíram para essa escolha. Em primeiro lugar, havia a certeza de encontrar
reunido no Salpêtrière um grande acervo de material clínico que, em Viena, só
se pode encontrar disperso por diferentes departamentos, não sendo, portanto,
de fácil acesso. Além disso, havia o grande renome de J.-M. Charcot, que há
dezessete anos vem trabalhando e lecionando em seu hospital. Por fim, fui
levado a refletir que nada de essencialmente novo poderia esperar aprender numa
universidade alemã, depois de haver usufruído do ensino direto e indireto, em
Viena, dos professores T. Meynert e H. Nothnagel. A escola francesa de
neuropatologia, por outro lado, parecia-me prometer algo diferente e
característico de sua maneira de trabalhar, além de haver ingressado em novas
áreas da neuropatologia que não tinham sido abordadas de forma parecida pelos
cientistas da Alemanha e da Áustria. Em decorrência da escassez de qualquer
contato pessoal estimulante entre médicos franceses e alemães, as descobertas
da escola francesa - algumas (sobre hipnotismo) deveras surpreendentes e outras
(sobre histeria) de importância prática - foram recebidas, em nossos países,
mais com dúvidas do que com reconhecimento e crédito; e os pesquisadores
franceses, sobretudo Charcot, viram-se submetidos à acusação de terem uma
reduzida capacidade crítica ou, pelo menos, de se inclinarem a estudar material
raro e estranho e de dramatizarem seu trabalho com esse material. Por
conseguinte, quando o emérito Colégio de Professores me distinguiu com o prêmio
da bolsa de estudos, com alegria agarrei a oportunidade, que assim me era
oferecida, de formar um julgamento sobre esses fatos baseado na minha própria
experiência, e senti-me feliz, ao mesmo tempo, por estar em situação de pôr em
prática a sugestão que me dera meu respeitado mestre, Professor von Brücke.
Quando me encontrava em visita a Hamburgo,
durante as férias, fui recebido com muita amabilidade pelo Dr. Eisenlohr,
renomado representante da neuropatologia naquela cidade. Ele me possibilitou
examinar um considerável número de pacientes nervosos no Hospital Geral e no
Hospital Heine, e também me deu acesso ao Hospital Mental de
Klein-Friedrichsberg. Mas os estudos de que me ocupo neste Relatório começaram
com minha chegada a Paris, na primeira quinzena de outubro, no início do ano
acadêmico.
O Salpêtrière, que foi o primeiro local que
visitei, é um amplo conjunto de edifícios que, por seus prédios de dois andares
dispostos em quadriláteros, assim como por seus pátios e jardins, lembra muito
o Hospital Geral de Viena. Com o passar do tempo, o Salpêtrière serviu a
finalidades muito diferentes, e seu nome (assim como a nossa “Gewehrfabrik”)
provém da primeira dessas finalidades. Os edifícios foram, afinal, convertidos
em lar de mulheres idosas (“Hospice pour la vieilesse (femmes)”, [1813]) e
proporcionam asilo a cinco mil pessoas. A natureza das circunstâncias fez com
que as doenças nervosas crônicas viessem a figurar nesse material clínico com
especial freqüência; e os antigos “médicins des hôpitaux” da instituição
(Briquet,por exemplo) tinham começado a fazer um estudo científico dos
pacientes. Mas o trabalho não pôde prosseguir de modo sistemático por causa do
costume existente entre os “médicins des hôpitaux” franceses de mudarem
freqüentemente de hospital e, ao mesmo tempo, trocarem o ramo especial da
medicina que estão estudando, até que sua carreira os conduza ao grande
hospital clínico do Hôtel-Dieu. Mas J.-M. Charcot, quando era “interne”
no Salpêtrière, em 1856, percebeu ser necessário fazer das doenças nervosas
crônicas o tema de um estudo constante e exclusivo; resolveu retornar ao
Salpêtrière como ‘’médicin des hôpitaux‘’ e, depois, jamais abandonar
esse hospital. Charcot modestamente declara que seu único mérito consiste em
ter executado esse plano. A natureza favorável do material à sua disposição
levou-o a estudar as doenças nervosas crônicas e sua base anatomopatológica;
durante uns doze anos, deu aulas de clínica, como professor voluntário, sem ter
qualquer cargo oficial, até que finalmente, em 1881, foi instituída no
Salpêtrière uma cátedra de Neuropatologia, confiada a ele.
Essa nomeação produziu modificações de grande
alcance nas condições em que trabalhavam Charcot e seus discípulos (que, nesse
meio tempo, tinham-se tornado numerosos). Ao material permanente presente no
Salpêtrière acrescentou-se um complemento essencial, quando foi fundada uma
seção clínica, na qual eram internados para tratamento pacientes tanto
masculinos como femininos selecionados a partir das consultas semanais
realizadas num departamento de pacientes de ambulatório (“consultation
externe”). Havia ainda, à disposição do professor de neuropatologia, um
laboratório destinado a estudos de anatomia e fisiologia, um museu de patologia,
um estúdio de fotografia e preparação de moldes de gesso, um gabinete de
oftalmologia e um instituto de eletricidade e hidropatia. Estavam localizados
em diferentes partes do grande hospital e possibilitavam ao diretor
assegurar-se da permanente cooperação de alguns de seus discípulos, que eram
encarregados desses departamentos.
O homem que chefia toda essa organização e seus
serviços auxiliares tem, atualmente, a idade de sessenta anos. Possui a
vivacidade, a jovialidade e a perfeição formal no falar que costumamos atribuir
ao caráter da nacionalidade francesa; ao mesmo tempo, mostra a paciência e o
amor pelo trabalho que geralmente atribuímos aos de nossa nação. A atração
exercida por semelhante personalidade logo me levou a limitar minhas visitas a
um único hospital e a buscar os ensinamentos de um único homem. Abandonei
minhas eventuais tentativas de assistir a outras conferências, depois de
haver-me convencido de que tudo o que elas tinham a me oferecer eram, na sua
maior parte, peças de retórica bem construídas. As únicas exceções eram as
autópsias e conferências forenses do Professor Brouardel no Necrotério, que eu
raramente perdia.
No Salpêtrière, meu trabalho assumiu uma forma
diferente daquela que eu, de início, tinha estabelecido para mim mesmo. Eu
havia chegado com a intenção de fazer de uma única pergunta, objeto de uma
cuidadosa investigação; e como, em Viena, o assunto eleito por mim eram os
problemas anatômicos, tinha escolhido o estudo das atrofias e degenerações
secundárias que se seguem às afecções do cérebro nas crianças. Um material
patológico extremamente valioso estava à minha disposição; achei, todavia, que
as condições para me utilizar dele eram muitíssimo desfavoráveis. O laboratório
de modo algum oferecia condições para receber um pesquisador de fora, e esse
espaço e esses recursos, tal como existiam, haviam-se tornado inacessíveis
devido à falta de qualquer espécie de organização. Assim sendo, vi-me obrigado
a desistir do trabalho com a anatomia e a me contentar com uma descoberta
referente às relações dos núcleos da coluna posterior da “medulla oblongata”.
Depois, porém, tive oportunidade de retomar pesquisas semelhantes com o Dr. von
Darkschewitsch (de Moscou), e nossa colaboração possibilitou uma artigo
publicado nos Neurologisches Centralblatt (1886, 5, 212), que teve por
título “Über die Beziehung des Strickkörpers zum Hinterstrang und
Hinterstragskern nebst Bemerkungen über zwei Felder der Oblongata”.
Contrastando com a inadequação do laboratório,
a clínica do Salpêtrière proporcionava tal abundância de material novo e
interessante que eram necessários todos os meus esforços para me beneficiar do
ensino que essa oportunidade favorável me oferecia. O horário da semana era
dividido como se segue. Na segunda-feira, Charcot dava sua aula teórica, que
encantava os ouvintes pela perfeição de sua forma, ao mesmo tempo que o tema da
aula era conhecido a partir do trabalho da semana anterior. O que essas aulas
ofereciam não era tanto um ensino elementar de neuropatologia sob a forma de
informações, mas, antes, as mais recentes pesquisas do Professor; e elas
produziam efeito principalmente em virtude de suas constantes referências aos
pacientes que estavam sendo examinados. Na terça-feira, Charcot realizava a “consultation
externe”, na qual seus assistentes lhe apresentavam para exame os casos
típicos ou difíceis, selecionados dentre o grande número dos que compareciam ao
departamento de ambulatório. Às vezes, era desanimador quando o grande homem
deixava algum desses casos, para usar sua própria expressão, afundar “no caos
de uma nosografia ainda desconhecida”; outros, contudo, lhe davam a
oportunidade de usá-los como ponto de partida para os mais instrutivos
comentários sobre uma ampla variedade de questões de neuropatologia. As quartas-feiras
eram, em parte, dedicadas aos exames oftalmológicos, que o Dr. Parinaud
efetuava na presença de Charcot. Nos demais dias da semana, Charcot percorria
as enfermarias, ou continuava as pesquisas que estivesse empreendendo na
ocasião, examinando, para esse fim, pacientes em seu consultório.
Tive, assim, oportunidade de ver um grande
número de pacientes, de examiná-los e de ouvir a opinião de Charcot a respeito
deles. O que me parece ter tido maior valor do que essa efetiva aquisição de
experiência foi, no entanto, o estímulo que recebi, durante os cincos meses que
passei em Paris, do meu constante contato científico e pessoal com o Professor
Charcot.
No que diz respeito ao contato científico,
certamente não me foi dada preferência em relação a qualquer outro estrangeiro.
Pois a clínica era acessível a qualquer médico que se apresentasse, e o
trabalho do Professor era executado abertamente, cercado de todos os jovens que
atuavam como seus assistentes, assim como dos médicos estrangeiros. Parecia que
ele, por assim dizer, trabalhava conosco, pensava em voz alta e esperava que os
discípulos lhe apresentassem objeções. Todo aquele que assim desejasse podia
entrar na discussão, e nenhum comentário passava despercebido ao grande homem.
A informalidade que prevalecia no relacionamento e a maneira como cada um era
tratado, com cortesia e em condições de igualdade - o que constituía surpresa
para os visitantes estrangeiros -, facilitavam a situação, de modo que até os
mais tímidos tinham a mais viva participação nos exames de Charcot. Podia-se
verificar a maneira como ele, inicialmente, ficava indeciso em face de alguma
nova manifestação difícil de interpretar; podia-se seguir os caminhos pelos
quais se esforçava por chegar a uma compreensão; podia-se estudar o modo como
avaliava as dificuldades e as vencia; e podia-se observar, com surpresa, que
ele nunca se cansava de observar o mesmo fenômeno, até que seus esforços
repetidos e sem prevenções lhe permitissem chegar a uma visão correta de seu
significado. Quando, além de tudo isso, acode à lembrança a total sinceridade
manifestada pelo Professor durante essas sessões, compreende-se por que o autor
deste relatório, assim como aconteceria com qualquer outro estrangeiro em
situação semelhante, deixou o Salpêtrière com irrestrita admiração por Charcot.
Charcot costumava dizer que, falando de modo
geral, o trabalho da anatomia estava encerrado e que a teoria das doenças
orgânicas do sistema nervoso podia ser dada como completa: o que precisava ser
abordado a seguir eram as neuroses. Sem dúvida, essa afirmação pode ser
considerada como nada além da expressão do rumo tomado por suas próprias
atividades. Por muitos anos, então, seu trabalho centralizou-se quase por
completo nas neuroses, principalmente na histeria, que, desde o início das
atividades do departamento de ambulatório e da clínica, ele teve oportunidade
de estudar tanto nos homens como nas mulheres.
Tentarei resumir em poucas palavras o que
Charcot realizou no estudo clínico da histeria. Até o presente, dificilmente se
pode considerar a palavra histeria como um termo com significado bem definido.
O estado mórbido a que se aplica tal nome caracteriza-se cientificamente apenas
por sinais negativos; tem sido estudado escassa e relutantemente; e
carrega a ira de alguns preconceitos muito difundidos. Entre estes estão a
suposição de que a doença histérica depende de irritação genital, o ponto de
vista de que nenhuma sintomatologia definida pode ser atribuída à histeria
simplesmente porque nela pode ocorrer qualquer combinação de sintomas e,
finalmente, a exagerada importância dada à simulação no quadro clínico da
histeria. Durante as últimas décadas, é quase certo que uma mulher histérica
seria tratada como simuladora, do mesmo modo que, em séculos anteriores,
certamente seria julgada e condenada como feiticeira ou possuída pelo demônio.
Sob outro aspecto, é possível que até se tenha dado um passo atrás no
conhecimento da histeria. A Idade Média estava familiarizada de modo preciso
com os “estigmas” da histeria, seus sinais somáticos, e os interpretava e
utilizava à sua própria maneira. No departamento de ambulatório, em Berlim,
contudo, verifiquei que esses sinais somáticos da histeria eram praticamente
desconhecidos e que, em geral, quando se fazia um diagnóstico de “histeria”,
parecia estar eliminada qualquer motivação para se obter mais algum informe a
respeito do paciente.
Em seu estudo da histeria, Charcot partiu dos
casos mais completamente desenvolvidos, que ele considerava como tipos
perfeitos da doença. Começou por reduzir a conexão entre a neurose e o sistema
genital a suas proporções corretas, demonstrando a insuspeitada freqüência dos
casos de histeria masculina e, especialmente, de histeria traumática. Nesses
casos típicos, ele encontrou a seguir numerosos sinais somáticos (tais como a
natureza do ataque, a anestesia, os distúrbios da visão, os pontos histerógenos
etc.), que lhe possibilitaram estabelecer com segurança o diagnóstico da
histeria, com base em indicações positivas. Estudando cientificamente o hipnotismo
- área da neuropatologia que teve que ser arrancada, de um lado, do ceticismo
e, de outro, do embuste -, Charcot chegou a uma espécie de teoria da
sintomatologia histérica. Teve a coragem de reconhecer esses sintomas como
sendo, na sua maior parte, reais, sem negligenciar as precauções exigidas pela
insinceridade do paciente. A experiência, que aumentou rapidamente com o
excelente material, logo lhe possibilitou levar em conta também as variantes do
quadro típico. À época em que fui obrigado a deixar a clínica, ele estava
passando do estudo das paralisias e artralgias histéricas para o das atrofias
histéricas, de cuja existência só conseguiu convencer-se durante os últimos
dias de minha visita.
A enorme importância prática da histeria
masculina (que geralmente não é reconhecida) e, em particular, a histeria que
se segue a um trauma foi ilustrada por ele como o caso de um paciente que,
durante cerca de três meses, constituiu o ponto central dos estudos de Charcot.
Assim, por meio de seu trabalho, a histeria foi retirada do caos das neuroses,
diferençada de outros estados de aparência semelhante, e a ela se atribuiu uma
sintomatologia que, embora extremamente multiforme, tornava impossível duvidar
de que imperassem nela uma lei e uma ordem. Tive uma animada troca de opiniões
com o Professor Charcot (tanto oralmente como por escrito) sobre os pontos de
vista oriundos de suas investigações. Isso me levou a preparar um artigo que
está por ser publicado nos Archives de Neurologie e que tem como título
“Vergleichung der hysterischen mit der organischen Symptomatologie”.
Neste ponto, devo observar que a disposição de
considerar as neuroses provenientes de trauma (“railway spine”) como
histeria encontrou decidida oposição por parte de autoridades alemãs,
especialmente do Dr. Thomsen e do Dr. Oppenheim, médicos assistentes do
Charité, de Berlim. Conheci pessoalmente a ambos, mais tarde, em Berlim, e
esperava ter a oportunidade de verificar se sua oposição era justificada.
Infelizmente, porém, os pacientes em questão já não se encontravam mais no
Charité. Fiquei, todavia, com a impressão de que a questão não está madura para
uma decisão, mas que Charcot acertadamente começara por abordar os casos
típicos e mais simples, ao passo que seus adversários alemães partiram do
estudo de exemplos indeterminados e mais complexos. Em Paris, contestou-se a
afirmação de que formas tão graves de histeria como aquelas em que Charcot
baseou seu trabalho não ocorriam na Alemanha; chamou-se atenção para os relatos
históricos de epidemias semelhantes e insistiu-se na identidade da histeria em
qualquer época e lugar.
Também não perdi a ocasião de adquirir um
conhecimento pessoal dos fenômenos do hipnotismo, que são tão surpreendentes e
aos quais se dá tão pouco crédito, e, em especial, do “grand hypnotisme”
[“grande hipnotismo”] descrito por Charcot. Com surpresa, verifiquei que nessa
área determinadas coisas aconteciam abertamente diante dos nossos olhos e que
era quase impossível duvidar delas; assim mesmo, eram tão estranhas que não se
podia acreditar nelas, a menos que delas se tivesse uma experiência pessoal.
Contudo, não vi nenhum sinal de que Charcot mostrasse qualquer preferência
especial por material raro e estranho, ou de que tentasse explorá-lo para fins
místicos. Pelo contrário, considerava o hipnotismo uma área de fenômenos que
ele submetia à descrição científica, tal como fizera, muitos anos antes, com a
esclerose múltipla ou com a atrofia muscular progressiva. Não me parecia em
absoluto que ele fosse um desses homens que se mostram mais encantados com
aquilo que é raro do que com aquilo que é comum; e a tendência geral de sua
mente leva-me a supor que ele não consegue descansar enquanto não descreve e
classifica corretamente algum fenômeno que o interesse, mas dorme tranqüilamente
sem ter chegado à explicação fisiológica do fenômeno em questão.
Neste Relatório, dediquei espaço considerável
aos comentários sobre a histeria e o hipnotismo, porque tive de abordar aquilo
que era totalmente novo e que foi objeto dos estudos específicos de Charcot.
Embora me tenha referido menos às doenças orgânicas do sistema nervoso, não
gostaria que se supusesse que vi pouco ou nada a respeito delas. Mencionarei
apenas alguns dos casos particularmente interessantes em meio à riqueza do
notável material apresentado. Entre estes estavam, por exemplo, as formas de
atrofia muscular hereditária, recentemente descritas pelo Dr. Marie; embora
estas não mais sejam incluídas entre as doenças do sistema nervoso, ainda estão
sob os cuidados dos neuropatologistas. Devo mencionar também os casos da doença
de Ménière, de esclerose múltipla, de tabes, com todas as suas complicações,
particularmente acompanhada pela doença das articulações descrita por Charcot,
da epilepsia parcial e de outras formas de doença que compõem o acervo de
material das clínicas e dos ambulatórios de doenças nervosas. Entre as doenças
funcionais (exceto a histeria), a coréia e as diversas formas de “tiques” (por
exemplo, a doença de Gilles de la Tourette) estavam recebendo atenção especial durante
a época em que freqüentei aquele serviço.
Quando tomei conhecimento de que Charcot
tencionava publicar uma nova coletânea de suas conferências, ofereci-me para
fazer uma tradução alemã; graças a essa tarefa, entrei em contato pessoal mais
próximo com o Professor Charcot e também pude prolongar minha estada em Paris
além do período coberto por minha bolsa de estudos. Essa tradução está por ser
publicada em Viena, em maio do corrente ano, pela editora de Toeplitz e
Deuticke.
Por fim, devo mencionar que o Professor
Ranvier, do Collège de France, revelou-se extremamente gentil ao mostrar-me
suas excelentes preparações de células nervosas e neuróglia.
Minha estada em Berlim, que se estendeu de 1º
de março até o fim do mesmo mês, deu-se durante o período de férias. Ainda
assim, tive muitas oportunidades de examinar crianças que sofriam de doenças
nervosas nas clínicas de pacientes externos dos professores Mendel e Eulenburg
e do Dr. A. Baginsky, tendo sido muito bem recebido em todos os lugares. As repetidas
visitas ao Professor Munk e ao laboratório de agricultura do Professor Zuntz
(onde me encontrei com o Dr. Loeb, de Estrasburgo) possibilitaram-me formar
opinião própria acerca da controvérsia entre Goltz e Munk quanto à questão da
localização do sentido da visão no córtex cerebral. O Dr. B. Baginsky, do
laboratório de Munk, teve a gentileza de demonstrar para mim suas preparações
do trajeto do nervo acústico e de solicitar minha opinião a respeito delas.
Considero meu dever apresentar meus mais calorosos
agradecimentos ao Colégio de Professores da Faculdade de Medicina de Viena por
me haver escolhido para o prêmio da bolsa de estudos. Com isso, o Colégio (no
qual estão incluídos todos os meus respeitados mestres) concedeu-me a
possibilidade de adquirir conhecimentos valiosos, dos quais espero fazer uso
como Docente de doenças nervosas, assim como na minha atividade médica.
VIENA, Páscoa de 1886
PREFÁCIO À TRADUÇÃO DAS CONFERÊNCIAS SOBRE AS DOENÇAS DO SISTEMA NERVOSO, DE CHARCOT (1886)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
PREFÁCIO À TRADUÇÃO DE LEÇONS SUR LES
MALADIES DU SYSTÈME NERVEUX: TOME TROISIÈME, DE CHARCOT
(a) EDIÇÃO ALEMÃ:
1886 Em
J.-M. Charcot, Neue Vorlesungen über die Krankheiten des Nervensystems
insbesondere über Hysterie [Novas Conferências sobre as Doenças do Sistema
Nervoso, Particularmente sobre a Histeria], iii-iv, Leipzig e Viena, Toeplitz e
Deuticke.
O prefácio não foi reimpresso em alemão. A
presente tradução (a primeira para o inglês) do prefácio é de autoria de James
Strachey. A tradução de Freud de duas das conferências (XXIII e XXIV) foi
publicada antecipadamente no Wien. med. Wochenschr., 36 (20), 711-15 e
(21), 756-9 (15 e 22 de maio de 1886), tendo como título “Über einen Fall von
hysterischer Coxalgie aus traumatischer Ursache bei einem Manne” (“Sobre um
caso de coxalgia num homem em decorrência de um acidente”) (Freud, 1886e). A
publicação do livro não pode ter sido anterior a julho de 1886 (data do
prefácio de Freud); em todo caso, porém, ela se deu antes da publicação do
original francês (Paris, 1887), como Freud menciona em seu prefácio.
O modo como Charcot confiou a Freud a
incumbência de fazer a tradução desse livro para o alemão foi relatado por
Freud, com mais detalhes em seu Estudo Autobiográfico (1925d), Edição Standard
Brasileira, Vol. XX, [1], IMAGO Editora, 1976, e também numa carta que, nessa
época, Freud escreveu a sua futura esposa (12 de dezembro de 1885) editada em
Freud, 1960a (Carta 88).
As poucas notas de rodapé escritas por Freud
simplesmente registram, como ele mesmo indica no prefácio, a evolução
subseqüente de um ou dois casos clínicos relatados no texto e, numa delas, uma
recente mudança de opinião de Charcot quanto a um detalhe do diagnóstico. Três
dessas conferências (XI, XII e XIII) tratam da afasia. Em um breve comentário,
Freud mostra que já estava especialmente interessado no assunto, sobre o qual,
cinco anos depois, escreveria sua monografia. Nesta, fez uma breve descrição
dos pontos de vista de Charcot (1891b, 100-2) e referiu-se ao presente
trabalho.
Conta-nos Jones (1953, 230) que Charcot
recompensou Freud pela tradução, dando-lhe de presente uma coleção completa de
suas obras, encadernada em couro, com esta dedicatória: “A Monsieur le Docteur
Freud, excellents souvenirs de la Salpêtrière. Charcot”.
PREFÁCIO À TRADUÇÃO DAS CONFERÊNCIAS
SOBRE AS DOENÇAS DO SISTEMA NERVOSO, DE CHARCOT
Um empreendimento como este, que objetiva
apresentar os ensinamentos de um mestre de clínica médica a círculos médicos
mais amplos, por certo dispensa justificativas. Proponho-me, portanto, dizer
apenas algumas palavras a respeito da origem desta tradução e sobre a matéria
das conferências que ela contém.
No inverno de 1885, quando cheguei ao
Salpêtrière para uma permanência de quase meio ano, constatei que o Professor
Charcot (então pelos seus sessenta anos, trabalhando com o vigor da mocidade)
se havia afastado do estudo das doenças nervosas que se baseiam em alterações
orgânicas e estava-se dedicando exclusivamente à pesquisa das neuroses - e, em
especial, da histeria. Essa mudança relacionava-se com as modificações
(descritas na primeira conferência deste livro) que se efetuaram nas condições
do trabalho e do ensino de Charcot, em 1882.
Após superar minha perplexidade inicial diante
das descobertas da novas pesquisas de Charcot, e depois que aprendi a avaliar
sua grande importância, pedi ao Professor Charcot permissão para fazer uma
tradução para o alemão das conferências que continham essas novas teorias. E
aqui devo agradecer-lhe não apenas pela presteza com que me concedeu sua
permissão, como também por sua ajuda ulterior, que tornou possível que a edição
alemã, na realidade, seja publicada vários meses antes da edição
francesa. Seguindo instruções do autor, acrescentei algumas notas, na maioria
acréscimos às histórias dos pacientes de que trata o texto.
O cerne deste livro está nas magistrais e
fundamentais conferências sobre histeria, que, junto com seu autor, podemos
esperar venham a descerrar uma nova era na conceituação dessa neurose pouco
conhecida e, a rigor, denegrida. Por esse motivo, com o consentimento do
Professor Charcot, modifiquei o título do livro, que em francês é ‘’Leçons
sur les maladies du système nerveux, Tome troisième”, e coloquei em
destaque a histeria dentre os temas nele abordados.
Todo aquele a quem estas conferências motivarem
a um aprofundamento nas pesquisas sobre histeria feitas pela escola francesa
poderá remeter-se aos Études cliniques sur la grande hystérie, de P.
Richer, de que saiu uma segunda edição em 1885 e que, em mais de uma aspecto,
constitui uma obra extraordinária.
VIENA, 18 de julho de 1886
OBSERVAÇÃO DE UM CASO GRAVE DE HEMIANESTESIA EM UM HOMEM
HISTÉRICO (1886)
INTRODUÇÃO
BEOBACHTUNG EINER
HOCHGRADIGEN HEMIANASTHESIE BEI EINEM HYSTERISCHEN MANNE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1886 Wien.
med. Wschr., 36 (49), 1633-38 (4 de dezembro).
Parece que este artigo foi reeditado. A
presente tradução de James Strachey é a primeira que se fez para o idioma
inglês. Aparentemente, havia a intenção de que este artigo viesse a ser o
primeiro de uma série, de vez que o encima o título “Beitrage zur Kasuistik
der Hysterie, I” (Contribuições ao Estudo Clínico da Histeria, I). Mas a
série não teve continuação.
Em 15 de outubro de 1886, uns seis meses depois
de seu retorno de Paris, Freud leu perante a “Gesellschaft der Aerzte”
(Sociedade de Medicina) de Viena um artigo intitulado “Über mannliche Hysterie”
(Sobre a Histeria Masculina). O texto desse artigo não sobreviveu, ainda que
sobre ele surgissem resenhas nos periódicos médicos de Viena, como, por
exemplo, no Wien, med. Wochenschr., 63 (43), 1444-6 (23 de outubro).
Também é encontrado num breve resumo de Ernest Jones (1953, 252). O próprio
Freud dá um relato desse evento em seu Estudo Autobiográfico (1925d),
Edição Standard Brasileira, Vol. XX, em [1], IMAGO Editora, 1976. O
artigo foi mal recebido, e Meynert desafiou Freud a apresentar perante a
sociedade um caso de histeria masculina. Freud teve alguma dificuldade em
encontrar um caso, pois os médicos mais antigos dos departamentos do Hospital
Geral recusaram-se a lhe facultar o uso do material de que dispunham. Por fim,
com a ajuda de um jovem laringologista, encontrou noutro lugar um paciente
adequado e o apresentou perante a “Gesellschaft der Aerzte’’ em 26 de novembro
de 1886. O caso foi demonstrado por Freud e por seu amigo Dr. Konigstein,
cirurgião oftalmologista que tinha feito um exame dos sintomas oculares do
paciente. O artigo desse especialista foi publicado no Wochenschrift uma
semana depois do de Freud - na edição de 11 de dezembro (1674-6). Freud
conta-nos que o presente artigo encontrou uma recepção melhor do que o artigo
anterior; todavia, não chegou a suscitar interesse.
A maior parte do artigo, conforme se verá,
trata dos fenômenos físicos da histeria, nos moldes característicos da atitude
de Charcot em relação a essa doença. Há somente alguns indícios muito leves que
revelam interesse por fatores psicológicos.
Senhores:
A 15 de outubro, quando tive a honra de
pedir-lhes a atenção para um breve informe sobre o recente trabalho de Charcot
na área da histeria masculina, fui desafiado pelo meu respeitado mestre Hofrat
Professor Meynert a apresentar perante a sociedade alguns casos em que
pudessem ser observadas, de forma claramente visível, as indicações somáticas
da histeria - os “estigmas histéricos” pelos quais Charcot caracteriza essa
neurose. Hoje, enfrento esse desafio - de maneira insuficiente, é verdade, mas
na medida do que me permite o material clínico de que disponho -, apresentando
perante os senhores um homem histérico que mostra o sintoma da hemianestesia,
num grau que se poderia descrever com o mais elevado. Antes de começar minha
demonstração, quero apenas observar que estou longe de pensar que o que lhes
estou mostrando é um caso raro ou peculiar. Pelo contrário, considero-o um caso
muito comum, de ocorrência freqüente, embora muito amiúde possa passar
despercebido.
Por esse paciente, devo agradecer à gentileza
do Dr. von Beregszászy, que o enviou a mim para confirmação do diagnóstico que
ele havia feito. O paciente, August P., gravador de 29 anos, é a pessoa que
está diante dos senhores: um homem inteligente, que de pronto se ofereceu para
ser examinado por mim, na esperança de uma rápida recuperação.
Permitam-me que comece por um relato de sua
história familiar e de sua história pessoal. O pai do paciente, aos 48 de
idade, morreu da doença de Bright; trabalhava numa adega, bebia muito e tinha
temperamento violento. Sua mãe morreu, aos 46 anos, de tuberculose. Soube-se
que ela sofria muito de dores de cabeça, quando jovem: o paciente nada tem a
dizer sobre ataques convulsivos ou algo semelhante. O casal teve seis filhos,
dos quais o primeiro levou uma vida irregular e faleceu de uma afecção
sifilítica cerebral. O segundo filho tem interesse especial para nós; ele
desempenha um papel na etiologia da doença de seu irmão e parece que ele
próprio era histérico. Contou ao nosso paciente haver sofrido de ataques
convulsivos; e, por uma estranha coincidência, nesse mesmo dia, encontrei um
colega de Berlim que tratara desse irmão, em Berlim, durante uma enfermidade, e
havia diagnosticado que ele sofria de histeria - diagnóstico este que também
foi confirmado num hospital daquela cidade. O terceiro filho desapareceu desde
que desertou do exército; o quarto e o quinto morreram em tenra idade, e o
último é o nosso paciente.
Nosso paciente teve um desenvolvimento normal
na infância, nunca sofreu convulsões infantis e teve as doenças comuns de
crianças. Aos oito anos, teve a infelicidade de ser atropelado na rua; sofreu
ruptura do tímpano direito, com permanente déficit da audição do ouvido
direito, e foi acometido de uma doença que durou diversos meses, durante a qual
sofria freqüentes desmaios, cuja natureza atualmente já não é possível
descobrir. Esses desmaios continuaram por uns dois anos. Desse acidente adveio
um certo embotamento intelectual, que o paciente afirma ter sido notado em seu
rendimento escolar, e uma tendência a sensações vertiginosas sempre que, por
alguma razão, se sentia indisposto. Mais tarde, completou o curso primário;
após a morte dos pais, passou a aprendiz de gravador; um dado que fala muito a
favor de seu caráter é o fato de ter permanecido como artífice e empregado do
mesmo mestre de ofício durante dez anos. Considera-se pessoa cujos pensamentos
estavam total e unicamente voltados para a perfeição de seu habilidoso ofício e
que, com esse fim em vista, leu muito e exercitou-se no desenho, não se
permitindo relacionamentos sociais nem divertimentos. Via-se obrigado a
refletir muito acerca de si mesmo e de suas ambições e, por fazê-lo com tanta
freqüência, caía num estado de excitada fuga de idéias, no qual ficava alarmado
a respeito de sua saúde mental; seu sono muitas vezes era agitado e sua
digestão fazia-se lenta por causa de seu modo de vida sedentário. Sofreu de
palpitações durante os últimos nove anos; mas, afora isto, era sadio e jamais
precisou interromper seu trabalho.
Sua doença atual começou há uns três anos.
Nessa época, teve um desentendimento com o irmão que levava uma vida
desregrada, porque este se recusou a lhe pagar uma soma em dinheiro que o
paciente lhe emprestara. O irmão ameaçou apunhalá-lo e avançou contra ele com
uma faca. Isto causou ao paciente um medo indescritível; sentiu um zumbido na
cabeça, como se ela fosse estourar; correu para casa, sem poder contar como foi
que chegou lá, e caiu no chão, inconsciente, em frente à porta de casa. Depois,
ouviu dizer que, durante duas horas, tinha tido violentos espasmos, durante os
quais falara da cena com seu irmão. Quando voltou a si, sentia-se muito fraco;
durante as seis semanas seguintes, sofreu de violentas dores no lado esquerdo
da cabeça e pressão intracraniana. Parecia-lhe alterada a sensibilidade na
metade esquerda do corpo, e seus olhos se cansavam facilmente no trabalho, que
ele retomou em seguida. Com algumas oscilações, seu estado ficou sendo este
durante três anos, até que, há sete semanas, uma nova agitação causou uma mudança
para pior. O paciente foi acusado de roubo por uma mulher, teve palpitações
violentas e, por uns quinze dias, esteve tão deprimido que pensou em suicídio;
ao mesmo tempo, um tremor muito intenso tomou conta de seus membros esquerdos.
A metade esquerda de seu corpo ficou como se tivesse sido afetada por um
pequeno acidente cerebral; seus olhos se enfraqueceram muito e freqüentemente
faziam-no ver tudo cinza; seu sono era interrompido por aparições terrificantes
e sonhos nos quais pensava estar caindo de uma grande altura; começaram a
surgir dores no lado esquerdo da garganta, na virilha esquerda, na região sacra
e em outras áreas; seu estômago, com freqüência, estava “como se tivesse
estourado”, e ele se viu obrigado a parar de trabalhar. Outra piora em todos
esses sintomas data da última semana. Além disso, o paciente está sujeito a
dores violentas no joelho esquerdo e na planta do pé esquerdo, quando caminha
durante algum tempo; tem uma sensação peculiar na garganta, como se a língua
estivesse presa, ouve freqüentes zumbidos nos ouvidos, e outras coisas dessa
natureza. Sua memória está prejudicada quanto aos acontecimentos ocorridos
durante sua doença; quanto aos eventos anteriores à doença, porém, não
apresenta problemas. Os ataques sob forma de convulsões repetiram-se de seis a
nove vezes durante os três anos; contudo, a maior parte deles foi muito
benigna; somente um ataque, à noite, no último mês de agosto,
acompanhou-se de “agitação” com bastante gravidade.
Agora examinemos o paciente: um homem bastante
pálido, de compleição média. O exame de seus órgãos internos nada revela de
patológico, exceto bulhas cardíacas abafadas. Quando comprimo o ponto de saída
dos nervos supra-orbital, infra-orbital ou do mento, do lado esquerdo, o
paciente volta a cabeça com uma expressão de dor intensa. Podemos, portanto,
supor que há uma alteração nevrálgica no trigêmeo esquerdo. Também a abóbada
craniana é muito sensível à percussão na sua metade esquerda. A pele da metade
esquerda da cabeça comporta-se, no entanto, de modo muito diferente do que
esperávamos: está completamente insensível a estímulos de qualquer espécie.
Posso aplicar-lhe alfinetadas, beliscá-la, torcer o lobo da orelha entre meus
dedos, sem que o paciente chegue sequer a perceber o contato. Aqui, pois,
existe um grau muito elevado de anestesia; esta, contudo, atinge não só a pele
como também as membranas mucosas, conforme lhes mostrarei no caso dos lábios e
da língua do paciente. Se introduzo um rolinho de papel em seu canal auditivo
externo esquerdo e depois em sua narina esquerda, não se produz nenhuma reação.
Repito agora a experiência no lado direito e mostro que aqui a sensibilidade do
paciente é normal. Em consonância com a anestesia, os reflexos sensoriais
também estão abolidos ou diminuídos. Assim, posso introduzir meu dedo e tocar
todos os tecidos faríngeos do lado esquerdo, sem que resultem ânsias de vômito;
os reflexos faríngeos do lado direito, contudo, também se encontram diminuídos;
apenas quando toco a epiglote no lado direito é que se dá uma reação. O toque
da conjuntiva palpebral e ocular mal produz o fechamento das pálpebras; por
outro lado, o reflexo corneano está presente, embora muito reduzido. Aliás, os
reflexos conjuntival e corneano do lado direito também estão diminuídos, embora
em grau menor; e esse comportamento dos reflexos é suficiente para me
possibilitar a conclusão de que os distúrbios da visão não se limitam
necessariamente a um olho (o esquerdo). E, realmente, quando pela primeira vez
examinei o paciente, ele mostrava em ambos os olhos a peculiar poliopia
monocular dos pacientes histéricos e distúrbios da sensibilidade às cores. Com
o olho direito, reconhecia todas as cores, exceto o roxo, que dizia ser
cinzento; com o olho esquerdo, reconhecia apenas o vermelho-claro e o amarelo-claro,
ao passo que considerava todas as outras cores como cinzento, quando eram
claras, e como preto, quando escuras. O Dr. Konigstein teve a gentileza de
submeter o paciente a um minucioso exame oftalmológico e posteriormente
relatará suas conclusões. [Ver em [1]] Passando aos outros órgãos dos sentidos,
o olfato e o paladar estão inteiramente anulados no lado esquerdo. Somente a
audição foi poupada da hemianestesia cerebral. Convém lembrar que a acuidade do
ouvido direito ficou seriamente prejudicada desde que o paciente sofreu um
acidente, aos oito anos de idade; seu ouvido esquerdo é o melhor; a redução da
audição nele presente é (segundo uma gentil comunicação do Professor Gruber)
suficientemente explicada por uma visível e substancial afecção da membrana
timpânica.
Se procedermos agora a um exame do tronco e dos
membros, verificaremos também uma anestesia absoluta, sobretudo no braço
esquerdo. Como vêem, consigo espetar a ponta de uma agulha numa dobra da pele
sem que o paciente reaja. As estruturas profundas - músculos, ligamentos e
articulações - também devem estar insensíveis em grau igualmente elevado, pois
posso mover a articulação do punho e estirar os ligamentos sem provocar
qualquer sensação no paciente. É consoante com essa anestesia das estruturas
profundas o fato de que o paciente, quando seus olhos são vendados, também não
tem noção da posição do seu braço esquerdo no espaço, nem de qualquer movimento
que executo com ele. Passo uma venda em seus olhos e depois lhe pergunto o que
fiz com sua mão esquerda. Ele não consegue dizer. Peço-lhe que, com a mão
direita, segure o polegar, o cotovelo ou o ombro esquerdos. Ele tateia às
cegas, confunde sua própria mão com a minha, que lhe estendo, e então admite
que não sabe a quem pertence a mão que segurou.
Deve ser particularmente interessante descobrir
se o paciente é capaz de encontrar as partes da metade esquerda de sua face.
Seria de supor que isso não lhe oferecesse quaisquer dificuldades, pois,
afinal, a metade esquerda do rosto está, digamos, firmemente cimentada à metade
direita, intacta. Mas a experiência mostra o contrário. O paciente erra o alvo
no olho esquerdo, no lobo da orelha esquerda, e assim por diante; na verdade,
parece sair-se pior ao tatear com a mão direita as partes anestesiadas do rosto
do que se estivesse tocando uma parte do corpo de alguma outra pessoa. A causa
disso não é uma perturbação na mão direita, que ele está usando para apalpar,
pois os senhores podem ver com que certeza e rapidez ele encontra os pontos em
que lhe digo para tocar a metade direita do rosto.
A mesma anestesia está presente no tronco e na
perna esquerda. Observamos aí que a perda das sensações tem seu limite na linha
média, ou se estende um pouco além desta.
Para mim, parece haver um interesse especial na
análise dos distúrbios do movimento que o paciente mostra em seus membros
anestesiados. Acredito que esses distúrbios do movimento devam ser atribuídos,
inteira e unicamente, à anestesia. Certamente não existe paralisia do braço
esquerdo, por exemplo. Um braço paralisado ou cai flacidamente, ou se mantém
rígido, devido às contraturas em posições forçadas. Aqui a coisa se passa de
modo diverso. Se eu vendar os olhos do paciente, seu braço esquerdo permanecerá
na posição que tinha assumido anteriormente. Os distúrbios da mobilidade são
mutáveis e dependem de diversas condições. Em primeiro lugar, aqueles dentre os
senhores que tiverem notado como o paciente se despiu com ambas as mãos e como
fechou sua narina esquerda com os dedos da mão esquerda, não terão tido a
impressão de qualquer distúrbio grave do movimento. A um exame mais acurado,
verificar-se-á que o braço esquerdo, em especial os dedos, são movimentados
mais lentamente e com menos habilidade, como se estivessem entorpecidos, e com
um leve tremor. Todos os movimentos, até os mais complicados, são, todavia,
executados, e isso acontece sempre que a atenção do paciente é desviada dos
órgãos do movimento e dirigida unicamente para o objetivo do movimento. As
coisas se passam diversamente quando lhe peço que efetue movimentos isolados
com o braço esquerdo, sem qualquer objetivo mais remoto - como, por exemplo,
dobrar o braço na articulação do cotovelo enquanto segue o movimento com os
olhos. Nesse caso, seu braço esquerdo parece muito mais inibido do que antes, o
movimento é feito com muita lentidão, incompletamente, em estágios diferentes,
como se houvesse uma grande resistência a ser vencida, e é acompanhado de um
nítido tremor. Os movimentos dos dedos são extraordinariamente débeis nessas
circunstâncias. Uma terceira espécie da perturbação do movimento, a mais grave,
surge, finalmente, quando o paciente é solicitado a efetuar movimentos isolados
com os olhos fechados. Por certo, algo se passa no membro que está
absolutamente anestesiado, pois, como vêem, a inervação motora é independente
de qualquer informação sensitiva do tipo que normalmente procede de um membro
que vai ser movimentado; esse movimento, no entanto, é mínimo, de modo algum
dirigido a um determinado segmento, e não determinável quanto à sua direção por
parte do paciente. Não suponham, porém, que esse último tipo de perturbação do
movimento seja uma conseqüência necessária da anestesia; é precisamente com
relação a esse aspecto que se encontram marcantes diferenças individuais.
Observamos, no Salpêtrière, pacientes com anestesias que, de olhos fechados,
conservam um controle muito mais acentuado de membros que tivessem sido
eliminados da consciência.
A mesma influência da atenção desviada e do
olhar aplica-se à perna esquerda. Hoje, durante pelo menos uma hora, o paciente
caminhou a meu lado pelas ruas, a passos rápidos, sem olhar para seus pés
enquanto andava. E tudo o que pude notar foi que pisava com o pé esquerdo
girando-o um pouco para fora e que, muitas vezes, arrastava-o pelo chão. Mas
quando lhe ordeno que ande, ele tem que acompanhar com os olhos cada
movimento da perna anestesiada, e o movimento faz-se lento e hesitante,
cansando-o com muita facilidade. Por fim, com os olhos fechados, ele caminha
completamente inseguro e se desloca mantendo ambos os pés em contato com o
chão, como faria qualquer um de nós se caminhasse no escuro em local
desconhecido. Ele também tem grande dificuldade em permanecer de pé apenas
sobre a perna esquerda; quando fecha os olhos nessa posição, cai imediatamente
ao chão.
Prosseguirei com a descrição do comportamento
de seus reflexos. Estes são, em geral, mais vivos do que o normal e, além
disso, mostram pequena coerência entre si. Os reflexos do tríceps e do extensor
são efetivamente mais vivos na extremidade direita, não anestesiada. O reflexo
patelar parece mais vivo na esquerda; o reflexo do tendão de Aquiles é igual em
ambos os lados.Também é possível obter uma discreta reação patelar, mais
nitidamente observável à direita. Os reflexos do cremaster estão ausentes; por
outro lado, os reflexos abdominais são rápidos, sendo que o esquerdo está
intensamente aumentado, de modo que o mais leve toque numa área da pele do
abdômen provoca uma contração máxima do músculo reto-abdominal esquerdo.
Em conjugação com uma hemianestesia histérica,
nosso paciente mostra, tanto espontaneamente como sob pressão, áreas dolorosas
nesse lado do corpo que é, em outros aspectos, o lado insensível - o que se
conhece como “zonas histerógenas”, embora nesse caso sua conexão com a provocação
dos ataques não seja acentuada. Assim o nervo trigêmeo, cujos ramos terminais,
como lhes mostrei anteriormente, são sensíveis à pressão, é a sede de uma zona
histerógena desse tipo; também o são uma estreita área na fossa cervical média
esquerda, uma faixa mais larga na parede esquerda do tórax (onde a pele também
é sempre sensível), a parte lombar da coluna e a parte mediana do osso sacro (a
pele é sensível também sobre a porção anterior dessas). Finalmente, o cordão
espermático esquerdo está muito sensível à dor, e essa zona se prolonga no
trajeto do cordão espermático, pela cavidade abdominal, até a área que, nas
mulheres, freqüentemente é sede da “ovaralgia”.
Devo acrescentar dois comentários referentes
aos desvios que nosso caso apresenta em relação ao quadro típico da
hemianestesia histérica. O primeiro diz respeito ao fato de que o lado direito
do corpo do paciente também não está livre da anestesia, ainda que não seja em
grau intenso e pareça afetar apenas a pele. Há, portanto, uma zona de diminuição
da sensitividade à dor (e à temperatura) sobre a saliência do ombro direito;
uma outra estende-se em forma de faixa ao redor da extremidade distal do
antebraço; a perna direita apresenta hipoestesia no lado externo da coxa e na
panturrilha.
Um segundo comentário refere-se ao fato de que
a hemianestesia de nosso paciente mostra muito nitidamente a característica da
instabilidade. Assim, num teste para sensitividade elétrica, contrariando minha
expectativa, tornei sensível uma área de pele no cotovelo esquerdo; e testes
repetidos mostraram que a extensão das zonas dolorosas do tronco e as
perturbações do sentido da visão oscilavam de intensidade. É nessa
instabilidade do distúrbio da sensitividade que baseio minha esperança de ser
capaz de restaurar a sensitividade normal do paciente, dentro de pouco tempo.
DUAS BREVES RESENHAS
RESENHA DE DIE AKUTE NEURASTHENIE.
DE AVERBECK
A insuficiência da chamada formação médica
adquirida em nossos hospitais, diante das necessidades dos médicos clínicos,
revela-se com maior nitidez, talvez, a partir do exemplo da “neurastenia”. Esse
estado patológico do sistema nervoso seguramente pode ser classificado como a
mais comum de todas as doenças em nossa sociedade: complica e agrava muitíssimo
outros quadros clínicos em pacientes das melhores classes, sendo ainda
praticamente desconhecido dos médicos de boa formação científica, ou tido por
eles como apenas um nome moderno com conteúdo arbitrariamente constituído. A
neurastenia não é um quadro clínico no sentido dos manuais que se baseiam, com
demasiada exclusividade, na anatomia patológica: de preferência, deve ser
descrita como um modo de reação do sistema nervoso. Mereceria a máxima atenção
da parte dos médicos que trabalham cientificamente - atenção não menor do que a
já demonstrada pelos médicos que trabalham como terapeutas, pelos diretores de
sanatórios etc. Deve-se, portanto, recomendar a círculos mais amplos esse breve
trabalho, em virtude de suas descrições oportunas intencionalmente veementes, e
de suas proposições e observações referentes às condições sociais. Estas, como
suspeita seu autor, nem sempre encontrarão a concordância de seus colegas,
embora o trabalho venha a despertar o interesse deles em todas as áreas. Sua
observação sobre o serviço militar obrigatório como cura para os males da vida
civilizada e sua proposição de que se deve possibilitar uma recuperação
periódica para os trabalhadores da classe média em épocas de boa saúde, por
intermédio da assistência do Estado - estas estão abertas a múltiplas
objeções. Contudo, deve-se admitir que o livreto trata imaginativamente de
importantes questões relativas à assistência médica.
DR. SIGM. FREUD
RESENHA DE DIE
BEHADLUNG GEWISSER FORMEN VON NEURASTHENIE UND HYSTERIE, DE WEIR MITCHELL
O método terapêutico proposto por Weir
Mitchell, originalíssimo especialista em doenças nervosas de Filadélfia, foi
recomendado na Alemanha, pela primeira vez, por Burkart e teve pleno
reconhecimento durante o ano passado, numa conferência proferida por Leyden.
Esse método, combinando repouso no leito, isolamento, alimentação abundante,
massagem e eletricidade, de forma estritamente controlada, supera os estados de
exaustão nervosa graves e de longa duração. É também Leyden o responsável pela
consecução da tradução desse pequeno livro. Ele contém os mais valiosos
conselhos para a seleção de casos adequados ao tratamento em questão e algumas
observações interessantes sobre a atuação das diferentes forças terapêuticas
que compõem o tratamento de Wier Mitchell. Sem dúvida, trará a todos os médicos
uma ampliação de seus conhecimentos. A ordenação especificamente inglesa das
frases e pensamentos talvez tenha sido preservada com demasiada exatidão na
tradução. Os termos “histeria” e “histérico” são empregados quase sempre no
sentido vulgar, e não no sentido científico dessa palavra tão deturpada.
DR. SIGM. FREUD
HISTERIA (1888)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
HYSTERIE
(a)
EDIÇÕES ALEMÃS:
1888 Em Handwörterbuch der gesamten Medizin,
org. de A. Villaret, Stuttgart, 1, 886-92.
1953 Psyche, 7 (9), 486-500.
A presente tradução, de James Strachey, parece
ser a primeira para o inglês.
Em duas das cartas que escreveu a Fliess,
publicadas nos Anfänge (1950a), datadas de 28 de maio (Carta 4) e 29 de
agosto (Carta 5) de 1888 - e, implicitamente, numa terceira, de 24 de novembro
de 1887 (Carta 1) -, Freud fala de suas contribuições à enciclopédia de
Villaret, obra publicada em dois volumes (1888 e 1891). De vez que os verbetes
na Villaret não levam assinatura, não é possível ter completa certeza da
autoria deles. O próprio Freud especifica apenas um deles nessas cartas - o que
trata de anatomia cerebral - e queixa-se de que sofreu muitos cortes; contudo, em
seu Estudo Autobiográfico (1925d), menciona também um verbete sobre a
afasia, Edição Standard Brasileira, Vol. XX, [1], IMAGO Editora, 1976.
Os organizadores dos Anfänge sugerem ainda que os verbetes sobre as
lesões cerebrais infantis e sobre as paralisias poderiam ser atribuídos a ele
e, com maior convicção, incluem como sendo provavelmente de Freud o que se
refere à histeria, que é apresentado a seguir.
A reimpressão, em 1953, desse verbete em Psyche,
periódico de Stuttgart, vem precedida de um breve artigo escrito pelo Professor
Paul Vogel, que faz um resumo admirável e convincente dos argumentos que fazem
crer seja o verbete realmente da autoria de Freud. Ninguém pode ter dúvidas
quanto à sua autoria, lendo-o em conexão com os escritos contemporâneos de
Freud. À parte toda uma série de reproduções de pontos de vista expostos por
Freud em outros trabalhos que levam sua assinatura, existe um determinado
aspecto que parece conclusivo. Trata-se de uma passagem, quase na parte final,
em que o método catártico de tratamento é descrito explicitamente e atribuído a
Breuer. Nessa data (1888), o método de Breuer não tinha sido publicado nem por
ele próprio nem por outra pessoa. Sua primeira publicação deu-se na
“Comunicação Preliminar”, de Breuer e Freud, mais de quatro anos depois
(1893a). Freud, segundo ele próprio nos relata (1925d, Edição Standard
Brasileira, Vol. XX, [1], IMAGO Editora, 1976), há muito gozava da confiança de
Breuer e tinha tomado conhecimento de seu método ainda antes de ir a Paris (em
1885). Assim, a autoria de Freud pode ser dada como estabelecida.
O verbete, em seu conjunto, mostra Freud ainda
seguindo fielmente as doutrinas de Charcot na sua descrição da histeria,
embora, sem levar em conta a referência a Breuer, haja duas ou três passagens,
especialmente no final do verbete, em que existem claros sinais de uma atitude
mais independente.
HISTERIA
HISTERIA (udtera, útero); (hystérie,
em francês; hysterics [sic],em inglês; isteria, f., isterismo, m., em
italiano).
I. HISTÓRIA. - O nome “histeria” tem origem nos
primórdios da medicina e resulta do preconceito, superado somente nos dias
atuais, que vincula as neuroses às doenças do aparelho sexual feminino. Na
Idade Média, as neuroses desempenharam um papel significativo na história da
civilização; surgiam sob a forma de epidemias, em conseqüência de contágio
psíquico, e estavam na origem do que era fatual na história da possessão e da
feitiçaria. Alguns documentos daquela época provam que sua sintomatologia não
sofreu modificação até os dias atuais. Uma abordagem adequada e uma melhor
compreensão da doença tiveram início apenas com os trabalhos de Charcot e da
escola do Salpêtrière, inspirada por ele. Até essa época, a histeria tinha sido
a bête noire da medicina. Os pobres histéricos, que em séculos
anteriores tinham sido lançados à fogueira ou exorcizados, em épocas recentes e
esclarecidas, estavam sujeitos à maldição do ridículo; seu estado era tido como
indigno de observação clínica, como se fosse simulação e exagero.
A histeria é uma neurose no mais estrito
sentido da palavra - quer dizer, não só não foram achadas nessa doença
alterações perceptíveis do sistema nervoso, como também não se espera que
qualquer aperfeiçoamento das técnicas de anatomia venha a revelar alguma dessas
alterações. A histeria baseia-se total e inteiramente em modificações
fisiológicas do sistema nervoso; sua essência deve ser expressa numa fórmula
que leve em consideração as condições de excitabilidade nas diferentes partes
do sistema nervoso. Uma fórmula fisiopatológica desse tipo, no entanto, ainda
não foi descoberta; por enquanto, devemo-nos contentar em definir a neurose de
um modo puramente nosográfico, pela totalidade dos sintomas que ela apresenta,
da mesma forma como a doença de Graves se caracteriza por um grupo de sintomas
- exoftalmia, bócio, tremor, aceleração do pulso e alteração psíquica -, sem
qualquer consideração relativa a alguma conexão mais íntima entre esses
fenômenos.
II. DEFINIÇÃO. - As autoridades alemãs, assim
como as inglesas, ainda hoje têm o hábito de distribuir caprichosamente as
descrições “histeria”e “histérico” e de agrupar indiscriminadamente a
“histeria” com os estados nervosos em geral, a neurastenia, muitos dos estados
psicóticos e muitas neuroses que ainda não foram retiradas do caos das doenças
nervosas. Charcot, pelo contrário, sustenta com firmeza a opinião de que a
“histeria” é um quadro clínico nitidamente circunscrito e bem definido, que
pode ser reconhecido com bastante clareza nos casos extremos daquilo que se
conhece como “grande hystérie” [grande histeria] (ou histeroepilepsia).
A histeria cobre também as formas mais brandas e rudimentares que ocorrem numa
série que abrange toda uma gradação, desde o tipo da grande hystérie até
o tipo normal. A histeria é fundamentalmente diferente da neurastenia, e, na
verdade, estritamente falando, é o contrário desta.
III. SINTOMATOLOGIA. - A sintomatologia da
“grande histeria”, extremamente rica, mas nem por isso anárquica, compõe-se de
uma série de sintomas que incluem os seguintes:
(1) Ataques convulsivos. Estes são
precedidos de uma “aura” peculiar: pressão no epigástrio, constrição na
garganta, latejamento nas têmporas, zumbido nos ouvidos, ou partes desse
complexo de sensações. Essas sensações-aura, como são chamadas, também surgem,
nos pacientes histéricos, como sintomas isolados, ou representam em si mesmas
um ataque. É especialmente conhecido o globus hystericus, uma sensação
atribuível aos espasmos da faringe, como se uma bola estivesse subindo do
epigástrio para a garganta. Um ataque propriamente dito, quando completo,
apresenta três fases. A primeira, “epileptóide”, assemelha-se a um ataque
epiléptico unilateral. A segunda fase, a dos “grands mouvements”,
apresenta movimentos de “salamaleque”, atitudes em arco (arc de cercle),
contorções e outros. A força desenvolvida nesses ataques é, com freqüência,
muito grande. Para diferençar esses movimentos de um ataque epiléptico, deve-se
observar que os movimentos histéricos sempre são executados com certa correção
e de modo coordenado, o que contrasta nitidamente com a cega brutalidade dos
espasmos epilépticos. Além disso, mesmo nas convulsões histéricas mais
violentas, geralmente se evitam os ferimentos comparativamente graves. A
terceira fase, a fase alucinatória do ataque histérico, a das “attitudes
passionelles”, distingue-se pelas atitudes e posturas que sugerem cenas de
movimento passional, que o paciente alucina e freqüentemente acompanha com as
palavras correspondentes. Durante todo o ataque, a consciência pode
conservar-se ou se perder - mais freqüentemente ocorre a última dessas
possibilidades. Os ataques do tipo descrito seguem-se freqüentemente uns aos
outros, em série, de modo que o ataque inteiro pode durar diversas horas ou
dias. É insignificante a elevação de temperatura durante os mesmos (em
contraste com o que acontece na epilepsia). Cada fase do ataque ou cada parte
separada de uma fase pode estar isolada e pode representar o ataque em casos
rudimentares. Naturalmente, os ataques abreviados desse tipo são encontrados com
freqüência incomparavelmente maior do que os ataques completos. Possuem
especial interesse ataques histéricos que, em lugar das três fases, exibem um
coma que surge de maneira apoplectiforme - os chamados “ataques de sommeil”
[ataques de sono]. Esse coma pode assemelhar-se ao sono natural ou
acompanhar-se de tamanha diminuição da respiração e da circulação a ponto de
ser confundido com a morte. Existem casos autênticos de estados dessa espécie
que duram semanas e meses; nesse sono prolongado, a nutrição corporal diminui
gradualmente, mas não há risco de vida. - Em cerca de um terço dos casos de
histeria, o sintoma dos ataques, o mais característico, está ausente.
(2) Zonas histerógenas. Em íntima
conexão com os ataques, encontramos as chamadas “zonas histerógenas”, áreas
supersensíveis do corpo, nas quais um leve estímulo desencadeia um ataque cuja
aura muitas vezes começa por uma sensação proveniente dessa área. Tais áreas
podem situar-se na pele, nas partes profundas, nos ossos, nas membranas
mucosas, até mesmo nos órgãos dos sentidos. São encontradas com maior
freqüência no tronco do que nos membros e têm preferência por determinados
locais - por exemplo, nas mulheres (e mesmo nos homens), numa área da parede
abdominal correspondente aos ovários, na região coronária do crânio e na região
inframamária; e nos homens, nos testículos e no cordão espermático. A pressão
nessas áreas desencadeia, com freqüência, não uma convulsão, mas sim
sensações-aura. A partir de muitas das zonas histerógenas também é possível exercer
uma influência inibidora sobre os ataques convulsivos; uma vigorosa pressão
sobre a área ovariana, por exemplo, desperta muitas pacientes no meio de um
ataque histérico ou de um sono histérico. No caso dessas pacientes, pode-se
fazer a prevenção de um ataque ameaçador fazendo-as usar um cinto semelhante
auma funda para hérnia, cuja almofada comprima a área ovariana. As zonas
histerógenas às vezes são numerosas, às vezes poucas, e podem ser unilaterais
ou bilaterais.
(3) Distúrbios da sensibilidade. Estes
são os sinais mais freqüentes da neurose e os mais importantes do ponto de
vista diagnóstico. Persistem mesmo durante os períodos de remissão e são os
mais importantes, porque os distúrbios da sensibilidade desempenham um papel
relativamente pequeno nas doenças cerebrais orgânicas. Consistem em anestesia
ou hiperestesia e apresentam, quanto à extensão e ao grau de
intensidade, uma variabilidade não observada em nenhuma outra doença. A
anestesia pode afetar a pele, as membranas mucosas, os ossos, os músculos e
nervos, os órgãos dos sentidos e os intestinos; contudo, o mais comum é a
anestesia da pele. No caso da anestesia histérica da pele, todas as
diferentes espécies de sensações da pele podem ser dissociadas e comportar-se
de forma muito independente umas das outras. A anestesia pode ser total ou
atingir apenas a sensação de dor (analgesia - que é a mais comum), ou apenas as
sensações de temperatura, pressão ou eletricidade, ou a sensibilidade muscular.
Só uma possibilidade não se concretiza na histeria: uma diminuição do sentido
do tato enquanto as outras propriedades são mantidas. Por outro lado, pode
ocorrer que as sensações puramente táteis dêem origem a uma sensação de dor (alfalgesia).
Muitas vezes, a anestesia histérica atinge um grau tão elevado que a mais
potente faradização dos troncos nervosos não produz qualquer reação sensorial.
Quanto à extensão, a anestesia pode ser total; em casos raros, pode afetar toda
a superfície da pele e a maioria dos órgãos dos sentidos. Com maior freqüência,
no entanto, trata-se de uma hemianestesia, como a que é produzida por
uma lesão da cápsula interna; distingue-se, porém, da hemianestesia devida a
doença orgânica pelo fato de que geralmente ultrapassa a linha média em algum
ponto - por exemplo, inclui a língua, a laringe ou os genitais como um todo - e
os olhos não são afetados sob a forma de hemianopsia, e sim de ambliopia ou
amaurose em um olho. Ademais, a hemianestesia histérica apresenta maior
variabilidade na forma como se distribui; pode acontecer que um dos órgãos dos
sentidos ou um órgão localizado no lado anestesiado escape inteiramente à
anestesia, e qualquer área sensível no quadro da hemianestesia pode ser
substituída pela área simétrica do outro lado (transfert espontâneo, ver
[em [1]]). Por fim, a anestesia histérica pode surgir em focos disseminados
unilaterais ou bilaterais, ou simplesmente em determinadas áreas, de forma
monoplégica nos membros ou em áreas situadas sobre órgãos internos atingidos
por alguma doença (faringe, estômago etc.).
Em todas essas relações, ela pode ser
substituída pela hiperestesia.
No caso da anestesia histérica, os reflexos
sensoriais ficam geralmente diminuídos, como, por exemplo, o reflexo
conjuntival, o do espirro e o faringiano; os reflexos vitais da córnea e da glote
são, porém, mantidos. Os reflexos vasomotores e a dilatação pupilar mediante
estimulação da pele não são interrompidos sequer no caso do mais elevado grau
de anestesia. A anestesia histérica é sempre um sintoma a ser pesquisado pelo
médico, de vez que, na maior parte dos casos, mesmo quando tem ampla extensão e
grande gravidade, geralmente escapa totalmente à percepção do paciente. Em
contraste com a anestesia orgânica, deve-se enfatizar que os distúrbios
histéricos da sensibilidade, a rigor, não prejudicam os pacientes em nenhuma
atividade motora. As áreas da pele que estão histericamente anestesiadas
caracterizam-se, com freqüência, por anemia local e não sangram quando picadas;
isso é apenas uma complicação, não constituindo, porém, condição necessária da
anestesia. É possível separar artificialmente os dois fenômenos um do outro.
Freqüentemente existe uma relação recíproca entre a anestesia e as zonas
histerógenas, como se toda a sensibilidade de uma parte relativamente grande do
corpo estivesse comprimida numa única zona. - Os distúrbios da sensibilidade
são os sintomas nos quais é possível basear um diagnóstico de histeria, mesmo
nas suas formas mais rudimentares. Na Idade Média, a descoberta de áreas
anestésicas e não-hemorrágicas (sigmata Diaboli) era considerada prova
de feitiçaria.
(4) Distúrbios da atividade sensorial.
Estes podem afetar todos os órgãos dos sentidos e podem aparecer
simultaneamente com ou independentemente de modificações na sensibilidade da
pele. O distúrbio histérico da visão consiste em amaurose ou ambliopia
unilaterais, ou ambliopia bilateral, mas nunca em hemianopsia. Seus sintomas
são: fundo de olho normal ao exame; ausência do reflexo conjuntival (reflexo
corneano diminuído); estreitamento concêntrico do campo visual; redução da
percepção luminosa; e acromatopsia. No caso do último sintoma citado, a
sensibilidade ao roxo é a primeira a ser perdida, e a sensibilidade ao vermelho
ou ao azul é a que persiste por mais tempo. Os fenômenos não se coadunam com
nenhuma teoria do daltonismo; as diferentes sensibilidades às cores
comportam-se independentemente umas das outras. São freqüentes os distúrbios da
acomodação, assim como as falsas conclusões deles resultantes. Os objetos que
se aproximam do olho e que dele se afastam são vistos em tamanhos diferentes e
duplicados ou multiplicados (diplopia monocular com macropsia ou micropsia). -
A surdez histérica raramente é bilateral; é, com muita freqüência, mais ou
menos completa, combinada com anestesia do pavilhão da orelha, do canal auditivo
e atémesmo da membrana do tímpano. Quando existe distúrbio histérico do paladar
e também do olfato, via de regra é possível encontrar anestesia das regiões da
pele e da membrana mucosa pertencentes aos órgãos desses sentidos. São
freqüentes em pacientes histéricos a parestesia e a hiperestesia dos órgãos
inferiores dos sentidos; às vezes, há uma extraordinária exacerbação da
atividade sensória, especialmente do olfato e da audição.
(5) Paralisias. As paralisias histéricas
são mais raras do que a anestesia e quase sempre acompanhadas de anestesia da
parte do corpo paralisada, ao passo que, nas doenças orgânicas, os distúrbios
da motilidade predominam e surgem independentemente da anestesia. As paralisias
histéricas não levam em conta a estrutura anatômica do sistema nervoso, a qual,
conforme se sabe, evidencia-se da maneira mais inequívoca na distribuição das
paralisias orgânicas. Acima de tudo, não existem paralisias histéricas que se
possam equiparar às paralisias periféricas do facial, do radial ou do denteado
- isto é, que abranjam grupos de músculos ou de músculos e pele, agrupados
segundo a inervação anatômica comum. As paralisias histéricas só são
comparáveis às paralisias corticais, porém se distinguem destas por múltiplos
aspectos. Assim, existe a hemiplegia histérica na qual, entretanto, são
atingidos somente o braço e a perna do mesmo lado: não existe paralisia facial
histérica. Quando muito, além da paralisia dos membros, pode haver uma
contratura dos músculos faciais e da língua, situada, às vezes, no lado da
paralisia e, às vezes, no lado oposto, e manifestada, entre outras coisas, por
um excessivo desvio da língua. Uma outra característica que distingue a
hemiplegia histérica é o fato de que a perna paralisada não se movimenta, na
articulação da coxa, em circundução, mas é arrastada como um apêndice morto. A
hemiplegia histérica sempre está ligada a uma hemianestesia que, em geral, é de
intensidade comparativamente grave. Além disso, na histeria encontramos
paralisia de um braço ou de uma perna, independentemente, ou de ambas as pernas
(paraplegia). Nesse último caso, a paralisia do intestino e da bexiga pode
acompanhar a anestesia das pernas e, por conseguinte, o quadro clínico pode vir
a se assemelhar de perto a uma paraplegia medular. E mais, a paralisia, em vez
de se estender a um membro em todas as suas partes, pode afetar segmentos do
mesmo - mão, ombro, cotovelo etc. Com relação a isso, não há preferência para a
parte distal, ao passo que é característico de uma paralisia orgânica ser esta
sempre mais marcada na porção distal de um membro do que nas partes proximais.
No caso de paralisia parcial de um membro, a anestesia geralmente obedece aos
mesmos limites que a paralisia e é circunscrita por linhas que fazem ângulos
retos com o eixo longitudinal do membro. Na paralisia histérica das pernas, o
triângulo de pele situado entre os músculos glúteos, correspondente ao nervo
sacro, não é afetado pela anestesia. Em todas essas paralisias estão ausentes
os fenômenos da degeneração descendente, por mais que durem as paralisias;
muitas vezes, há uma intensa flacidez muscular e o comportamento dos reflexos é
inconstante; por outro lado, os membros paralisados podem atrofiar-se, e
realmente sucumbem a uma atrofia que se desenvolve muito rapidamente, logo
atinge uma parada e não se faz acompanhar por nenhuma alteração na
excitabilidade elétrica. Às paralisias dos membros deve-se acrescentar a afasia
histérica, ou, mais corretamente, a mudez, que consiste numa incapacidade de
produzir qualquer som articulado ou [mesmo] de executar movimentos da fala sem
voz. É sempre acompanhada de afonia, que também pode ocorrer
isoladamente; nesses casos, a capacidade de escrever é conservada e até mesmo
aumentada. As demais paralisias motoras encontradas na histeria não podem ser
relacionadas a partes do corpo, mas apenas a funções, como, por exemplo,
astasia e abasia (incapacidade de andar e de manter-se de pé); isto ocorre
enquanto as pernas mantêm sua sensibilidade, sua força total e a capacidade de
executar qualquer tipo de movimento quando em posição horizontal - uma
separação das funções dos mesmos músculos não encontrada nas lesões orgânicas.
Todas as paralisias histéricas distinguem-se pelo fato de que podem ser da
maior gravidade, mas, ao mesmo tempo, limitam-se nitidamente a uma determinada
parte do corpo, ao passo que as paralisias orgânicas, via de regra, estendem-se
por uma área maior, à medida que sua gravidade aumenta.
(6) Contraturas. Nas formas mais graves
de histeria, há uma tendência geral no sentido de o aparelho reagir a pequenos
estímulos através de contratura (diathèse de contracture). Para isso
pode ser suficiente a simples aplicação de uma faixa de Esmarch. As contraturas
dessa espécie também ocorrem com freqüência em casos graves e nos músculos mais
variados. Nos membros, elas se caracterizam por sua excessiva intensidade e
podem ocorrer em qualquer posição, o que não se explica pela estimulação de
determinados troncos nervosos. Apresentam uma persistência incomum, não relaxam
com o sono, como ocorre com as contraturas orgânicas, e não se consegue
modificar sua intensidade mediante excitação, temperatura etc. Somente cedem
com a narcose mais profunda, e recobram sua intensidade total quando o paciente
acorda. As contraturas musculares são muito freqüentes nos outros órgãos, nos
órgãos dos sentidos, nos intestinos e, num grande número de casos, também
constituem o mecanismo pelo qual a função fica suspensa nas paralisias. A
tendência aos espasmos clônicos também aumenta muito na histeria.
(7) Características gerais. A
sintomatologia da histeria tem uma série de características gerais; conhecê-las
é importante tanto para o diagnóstico como para a compreensão da histeria. As
manifestações histéricas têm, preferentemente, a característica de serem
exageradas: uma dor histérica é descrita pelos pacientes como extremamente
dolorosa; uma anestesia e uma paralisia podem com facilidade tornar-se
absolutas; uma contratura histérica causa a maior retração de que um músculo é
capaz. Ao mesmo tempo, qualquer sintoma particular pode ocorrer, por assim
dizer, isoladamente: a anestesia e a paralisia não se acompanham dos fenômenos
gerais que, no caso das lesões orgânicas, evidenciam a afecção cerebral e que,
no geral, devido a sua importância, obscurecem os sintomas localizados. Muito
próximo de uma área de pele absolutamente insensível, poderá haver uma outra
área de sensibilidade absolutamente normal. Concomitantemente com um braço
completamente paralisado, poderá haver, do mesmo lado, uma perna perfeitamente
intacta. É especialmente característico da histeria que seja um distúrbio,
ao mesmo tempo, desenvolvido no mais alto grau e limitado da maneira mais
nítida. Ademais, os sintomas histéricos mudam de uma forma que, de saída,
exclui qualquer suspeita de lesão orgânica. Essa mutabilidade dos sintomas
realiza-se ou espontaneamente (por exemplo, depois de ataques convulsivos, que
muitas vezes alteram a distribuição da paralisia e da anestesia, ou as
interrompem), ou por influência artificial dos chamados métodos estesiogênicos,
tais como a eletricidade, a aplicação de metais, o emprego de irritantes
cutâneos, ímãs etc. Esse último método de influência parece extremamente
notável, tendo em vista o fato de que um sistema nervoso histérico oferece, em
regra geral, uma grande resistência à influência química por meio da medicação
interna e reage de forma decididamente refratária aos narcóticos como a morfina
e o hidrato de cloral. - Entre os meios capazes de remover os sintomas
histéricos, cabe mencionar com especial ênfase a influência da excitação e da
sugestão hipnótica, esta última porque atinge diretamente o mecanismo dos
distúrbios histéricos e não se pode suspeitar que produza nenhum outro efeito
além dos efeitos psíquicos. Quando os sintomas histéricos mudam, algumas circunstâncias
marcantes entram em jogo. Pelo uso de métodos “estesiogênicos” é possível
transferir uma anestesia, uma paralisia, uma contratura, um tremor etc. para a
área simétrica da outra metade do corpo (“transfert”), enquanto a área
originalmente afetada se normaliza. Desse modo, a histeria fornece provas da
relação simétrica, havendo, ademais, indícios de que tal relação desempenha um
papel também nos estados fisiológicos - tal como, em geral, as neuroses não
criam nada de novo, mas simplesmente desenvolvem e exageram as relações
fisiológicas. Uma outra característica muito importante dos distúrbios
histéricos é que estes de modo algum representam uma cópia das condições
anatômicas do sistema nervoso. Pode-se dizer que a histeria é tão ignorante da
ciência da estrutura do sistema nervoso como nós o somos antes de tê-la
aprendido. Os sintomas de afecções orgânicas, como se sabe, refletem a anatomia
do órgão central e são as fontes mais fidedignas de nosso conhecimento a
respeito dele. Por essa razão, temos de descartar a idéia de que na origem da
histeria esteja situada alguma possível doença orgânica; e não devemos apelar
para as influências vasomotoras (espasmos vasculares) como causa dos distúrbios
histéricos. Um espasmo vascular é, em essência, uma modificação orgânica, cujo
efeito é determinado pelas condições anatômicas; difere da embolia, por
exemplo, somente pelo fato de que não produz nenhuma alteração permanente.
Juntamente com os sintomas físicos da histeria,
pode-se observar toda uma série de distúrbios psíquicos nos quais, futuramente,
serão sem dúvida encontradas as modificações características da histeria, mas
cuja análise, até o momento, mal começou. Esses distúrbios psíquicos são
alterações no curso e na associação de idéias, inibições na atividade da
vontade, exagero e repressão dos sentimentos etc. - que podem ser resumidos
como alterações na distribuição normal, no sistema nervoso, das quantidades
estáveis de excitação. Uma psicose, no sentido psiquiátrico do termo, não
faz parte da histeria, ainda que possa desenvolver-se sobre a base do estado
histérico, nesse caso devendo ser considerada uma complicação. Aquilo que
popularmente se descreve como temperamento histérico - instabilidade da
vontade, alterações do humor, aumento da excitabilidade com diminuição de todos
os sentimentos altruísticos - pode estar presente na histeria, mas não é
absolutamente necessário para seu diagnóstico. Existem casos graves de
histerianos quais está inteiramente ausente uma alteração psíquica desse tipo;
muitos dos pacientes que pertencem a essa classe encontram-se entre as pessoas
mais amáveis e inteligentes, de vontade muito forte, que percebem nitidamente
sua doença como algo alheio à sua natureza. Os sintomas psíquicos têm sua
significação dentro do quadro total da histeria, mas não são mais constantes do
que os diferentes sintomas físicos, os estigmas. Por outro lado, as
modificações psíquicas, que devem ser assinaladas como o fundamento do estado
histérico, ocorrem inteiramente na esfera da atividade cerebral inconsciente,
automática. Talvez ainda se possa acentuar que na histeria (como em todas as
neuroses) aumenta a influência dos processos psíquicos sobre os processos
físicos do organismo, e que os pacientes histéricos funcionam com um excesso de
excitação no sistema nervoso - excesso que se manifesta ora como inibidor, ora
como irritante, deslocando-se com grande mobilidade dentro do sistema nervoso.
[1]
A histeria deve ser considerada como um estado,
uma diátese nervosa que eclode de tempos em tempos. A etiologia do status
hystericus deve ser buscada inteiramente na hereditariedade: os histéricos
sempre têm uma disposição hereditária para perturbações da atividade nervosa;
entre seus parentes são encontrados epilépticos, doentes mentais, tabéticos
etc. A transmissão hereditária direta da histeria também é constatada; e é a
origem, por exemplo, do surgimento da histeria em meninos (originária da mãe).
Comparados com o fator, da hereditariedade, todos os outros fatores situam-se
em lugar secundário e assumem o papel de causas incidentais, cuja importância
quase sempre é superestimada na prática. As causas acidentais de histeria, no
entanto, são importantes na medida em que desencadeiam o início de ataques
histéricos, de histerias agudas. Como fatores capazes de propiciar o
desenvolvimento de uma disposição histérica, podem ser mencionados: a criação
cheia de mimos (histeria em filhos únicos), o despertar prematuro da atividade
mental nas crianças, excitamentos freqüentes e violentos. Todas essas
influências possuem igual tendência a produzir neuroses de outros tipos (por
exemplo, neurastenia), de forma que nisto fica flagrantemente demonstrada a
influência decisiva da disposição hereditária. Como fatores que fazem irromper
a doença histérica aguda podem se citados: trauma, intoxicação (chumbo,
álcool), luto, emoção comsumptiva - tudo, enfim, capaz de exercer um efeito de
natureza prejudicial. Em outras ocasiões, os estados histéricos muitas vezes
são gerados por causas banais ou obscuras. No que diz respeito ao que
freqüentemente se considera como a influência preponderante das anormalidades
na esfera sexual sobre o desenvolvimento da histeria, deve-se dizer que, no
mais das vezes, sua importância é superestimada. Em primeiro lugar, a histeria
é encontrada em meninas e meninos sexualmente imaturos, do mesmo modo como a
neurose também ocorre com todas as suas características no sexo masculino,
embora muito mais raramente (1:20). Ademais, a histeria tem sido constatada em
mulheres que apresentam ausência total da genitália, e todo médico deve ter
verificado numerosos casos de histeria em mulheres cujos genitais não mostravam
absolutamente nenhuma alteração anatômica; do mesmo modo, em contrapartida, a
maioria das mulheres com doenças dos órgãos sexuais não sofre de histeria.
Entretanto, tem-se de admitir que as condições funcionalmente
relacionadas à vida sexual desempenham importante papel na etiologia da
histeria (assim como na de todas as neuroses), e isto se dá em virtude da
elevada significação psíquica dessa função, especialmente no sexo feminino. - O
trauma é uma causa incidental freqüente da doença histérica, em dois sentidos:
primeiro, porque a disposição histérica, anteriormente não detectada, pode
manifestar-se por ocasião de um trauma físico intenso, que se acompanha de medo
e perda momentânea da consciência; em segundo lugar, porque a parte do corpo
afetada pelo trauma se torna sede de uma histeria local. Assim, por exemplo, em
pessoas histéricas, a uma leve contusão da mão pode seguir-se o desenvolvimento
de uma contratura da mão, ou, em circunstâncias análogas, pode-se desenvolver
uma coxalgia dolorosa, e assim por diante. Para os cirurgiões, é da maior
importância ter um conhecimento mais íntimo dessas afecções rebeldes; em casos
dessa espécie, uma intervenção cirúrgica não pode senão prejudicar. O
diagnóstico diferencial desses estados nem sempre é fácil, especialmente quando
eles envolvem articulações. Os estados mórbidos causados por trauma geral grave
(acidentes ferroviários etc.), conhecidos como “railway spine” e “railway
brain”, são considerados histeria por Charcot, com o que concordam os
autores americanos, com inquestionável autoridade nesse assunto. Esses estados
freqüentemente possuem a mais sombria e grave aparência; apresentam-se
combinados com depressão e humor melancólico e mostram, seja de que maneira
for, em numerosos casos, uma combinação de sintomas histéricos com sintomas
neurastênicos e orgânicos. Charcot provou que também a encefalopatia
conseqüente ao saturnismo está relacionada com a histeria e, ademais, que a
anestesia comum nos alcoólatras não é uma doença à parte, mas sim um sintoma de
histeria. Contudo, opõe-se à idéia de estabelecer diferentes subespécies de
histeria (traumática, alcoólica, saturnina etc.); ele insiste em que a histeria
é sempre a mesma e que simplesmente é provocada por uma série de diferentes
causas incidentais. Também na sífilis de instalação recente tem-se observado o
surgimento de sintomas histéricos.
IV. EVOLUÇÃO DA HISTERIA. - A histeria, mais do
que uma doença circunscrita, representa uma anomalia constitucional. Em geral,
seus primeiros sinais provavelmente aparecem na adolescência. Na verdade, as
doenças histéricas, mesmo as de gravidade considerável, não são raridade em
crianças entre seis e dez anos. Em meninos e meninas de intensa disposicão
histérica, o período anterior e posterior à puberdade enseja um primeiro surto
da neurose. Na histeria infantil são encontrados os mesmos sintomas das
neuroses dos adultos. No entanto, os estigmas quase sempre são mais raros; em
primeiro plano estão as alterações psíquicas, os espasmos, os ataques e as
contraturas. As crianças histéricas são, com bastante freqüência, precoces e
altamente dotadas; em numerosos casos, a histeria é, por certo, simplesmente
sintoma de profunda degeneração do sistema nervoso, que se manifesta em
perversão moral permanente. Conforme se sabe, a juventude, dos quinze anos em
diante, é o período no qual a neurose histérica, na maioria das vezes, se
mostra ativa em pessoas do sexo feminino. Isto pode acontecer devido a uma
sucessão ininterrupta de distúrbios relativamente leves (histeria crônica),
ou devido a diversos surtos graves (histeria aguda) separados por
intervalos livres que duram anos. Em geral, os primeiros anos de um casamento
feliz interrompem a doença; quando as relações conjugais se tornam mais frias e
os nascimentos sucessivos acarretam um esvaziamento, reaparece a neurose. Nas
mulheres com mais de quarenta anos, a doença geralmente não apresenta fenômenos
novos; mas os antigos sintomas podem persistir, e até mesmo numa idade avançada
a doença pode intensificar-se diante de provocações fortes. Os homens em idade
juvenil parecem particularmente suscetíveis à histeria devida a trauma e intoxicação.
A histeria masculina tem a aparência de uma doença grave; os sintomas
que produz são quase sempre pertinazes; a doença, em homens, de vez que tem a
importância maior de provocar uma interrupção do trabalho, tem também maior
importância prática. - Também existe algo de característico a respeito do rumo
que tomam os diferentes sintomas histéricos (como as contraturas, as paralisias
etc.) Em alguns casos, os sintomas isolados desaparecem espontaneamente, com
grande rapidez, e dão lugar a outros, igualmente transitórios; em outros casos,
todos os fenômenos são dominados por grande fixidez. As contraturas e
paralisias muitas vezes podem durar anos e, depois, desaparecer inesperada e
subitamente. De modo geral, não há limite para a curabilidade dos distúrbios
histéricos; é característico de uma função acometida de distúrbio, depois de
estar interrompida durante anos, ser, de repente, restaurada em sua totalidade.
Por outro lado, a evolução dos distúrbios histéricos muitas vezes exige uma
espécie de incubação, ou melhor, um período de latência, durante o qual a causa
desencadeante continua atuando no inconsciente. Assim, é raro que uma paralisia
histérica apareça imediatamente depois de um trauma; as pessoas envolvidas num
acidente de trem, por exemplo, são totalmente capazes de movimentar-se após o
trauma e vão para casa aparentemente incólumes; somente alguns dias ou semanas
depois é que se produzem os fenômenos que levam à conjectura de uma “concussão
da medula”. Assim, também a recuperação que se opera bruscamente requer, em
geral, um período de diversos dias para se desenvolver. Em todo caso, pode-se
afirmar que a histeria nunca constitui grave risco de vida, mesmo nas suas
manifestações mais ameaçadoras. Além disso, nos próprios casos mais prolongados
de histeria, preservam-se uma completa clareza intelectual e uma capacidade até
para realizações não-corriqueiras.
A histeria pode estar combinada com muitas
outras doenças nervosas neuróticas e orgânicas, e tais casos oferecem grandes
dificuldades à análise. A mais comum é a combinação da histeria com a
neurastenia; isto ocorre ou quando se tornam neurastênicas as pessoas cuja
disposição histérica estáquase esgotada, ou quando impressões agravantes
desencadeiam ambas as neuroses simultaneamente. Infelizmente, a maioria dos
médicos ainda não aprendeu a fazer a distinção entre essas duas neuroses. Essa
combinação é encontrada, com muita freqüência, em homens histéricos. O sistema
nervoso masculino tem uma disposição tão preponderante para a neurastenia como o
feminino para a histeria. Além disso, também é superestimada a freqüência da
histeria feminina; a maioria das mulheres que os médicos supõem sejam
histéricas são, estritamente falando, apenas neurastênicas. Ademais, a
“histeria local” pode acompanhar doenças locais de órgãos isolados; uma
articulação que está realmente micótica pode se tornar sede de artralgia
histérica; um estômago com afecção catarral pode originar vômitos histéricos, globus
hystericus e anestesia ou hiperestesia da mucosa do epigástrio. Nesses
casos, a doença orgânica torna-se causa eventual da neurose. As doenças febris
geralmente interrompem o desenvolvimento da neurose histérica; uma
hemianestesia histérica regride na presença de febre.
V. TRATAMENTO DA NEUROSE. - Esse assunto dificilmente
pode ser abordado em poucas palavras. Nenhuma outra doença dispõe o médico a
fazer tantos milagres ou mostrar-se tão impotente. Do ponto de vista do
tratamento devem ser destacadas três tarefas: o tratamento da disposição
histérica, dos ataques histéricos (histeria aguda) e dos sintomas
histéricos isolados (histeria local). O tratamento da disposição
histérica proporciona ao médico uma certa liberdade de escolha dos métodos. A
disposição não pode ser eliminada, mas podem-se instituir medidas profiláticas,
tomando-se cuidado para que os exercícios físicos e a higiene não sejam postos
de lado em benefício exclusivo do trabalho intelectual; pode-se aconselhar a
não sobrecarregar de esforços o sistema nervoso; pode-se tratar a anemia ou a
clorose, que parecem emprestar um apoio especial à tendência à neurose; por
fim, pode-se não levar em conta a importância dos sintomas histéricos benignos.
Deve-se ter a cautela de não revelar com demasiada clareza o interesse, na
qualidade de médico, por sintomas histéricos de pouca gravidade, a fim de não
incentivá-los. O trabalho intelectual sério, ainda que árduo, raramente causa
histeria, embora, por outro lado, esse reparo crítico possa ser endereçado à
educação das melhores classes da sociedade, que se empenha pelo cultivo
exagerado do sentimento e da sensibilidade. Nesse sentido, os métodos das
gerações anteriores de médicos (que tratavam as manifestações histéricas nos
jovens como má-criação e fraqueza da vontade e os ameaçavam com castigos) não
eram métodos ruins, ainda que dificilmente estivessem baseados em concepções
corretas. No tratamento da neurose em crianças, a proibição autoritária pode
conseguir mais resultados do que qualquer outro método. Na verdade, esse tipo
de tratamento não tem êxito algum quando aplicado à histeria de adultos ou a
casos graves. No tratamento de histerias agudas, nas quais a neurose
constantemente produz fenômenos novos, o trabalho do médico é penoso: é fácil
cometer erros, e os êxitos são raros. A primeira condição para uma intervenção
bem-sucedida consiste, quase sempre, em remover o paciente de suas condições
habituais e isolá-lo do círculo em que ocorreu o ataque. Essas medidas não são
por si mesmas benéficas, mas possibilitam uma estrita observação médica e
permitem ao médico dedicar ao paciente uma atenção cuidadosa, sem a qual jamais
terá êxito no tratamento da histeria. Via de regra, um homem histérico - ou uma
mulher histérica - não constitui um único membro neurótico do círculo familiar.
O alarma ou o excesso de preocupação dos pais ou dos parentes só fazem aumentar
a excitação ou a tendência do paciente, quando nele existe uma modificação
psíquica, a exibir sintomas mais intensos. Se, por exemplo, ocorre um ataque em
determinada hora, diversas vezes e sucessivamente, esse ataque será aguardado
pela mãe do paciente, com regularidade, na mesma hora; ansiosamente perguntará
ao filho se ele não está se sentindo mal, com isso assegurando a repetição do
evento temido. São muito raros os casos em que se consegue induzir os parentes a
enfrentarem os ataques histéricos de uma criança com calma e aparente
indiferença; em geral, o convívio com a família deve ser substituído por um
período de internação em casa de saúde e a isto os parentes geralmente oferecem
maior resistência do que os próprios pacientes. No sanatório as percepções
deformadas do paciente diante da segurança amável e animadora do médico e sua
convicção, que logo se transferem para o paciente, revelam que a neurose não é
perigosa e pode ser curada rapidamente; a evitação de toda excitação emocional
que possa contribuir para um ataque histérico; a aplicação de todo tipo de
tratamentos revigorantes (massagem, faradização geral, hidroterapia) - sob
todas essas influências, constata-se que as mais graves histerias agudas, que causaram
ao paciente um total colapso físico e moral, dão lugar à saúde no decorrer de
alguns meses. Nestes últimos anos, a chamada “cura de repouso” de Weir Mitchell
(também conhecida como tratamento de Playfair) conquistou elevada e merecida
reputação como método para tratamento da histeria em instituições. Ela consiste
numa combinação de isolamento em absoluta tranqüilidade com aplicação
sistemática de massagens e faradização geral; a assistência de uma enfermeira
experiente é tão essencial como a influência constante do médico. Esse
tratamento tem extraordinário valor na histeria, como a feliz combinação de “traitement
moral” e de melhora no estado geral da nutrição do paciente. Não deve ser
considerado, contudo, como algo sistematicamente completo em si mesmo; o
isolamento, em especial, e a influência do médico permanecem sendo os agentes
principais e, juntamente com a massagem e a eletricidade, os outros métodos
terapêuticos não devem ser negligenciados. O melhor esquema consiste em, após
quatro a oito semanas de repouso no leito, aplicar hidroterapia e ginástica,
assim como encorajar ampla movimentação. No caso de outras neuroses, como, por
exemplo, a neurastenia, o êxito do tratamento é muito menos seguro; baseia-se
apenas no valor da alimentação abundante, na medida em que isto é possível a um
aparelho digestivo neurastênico, e no valor do repouso; na histeria, o sucesso
muitas vezes é extraordinário e permanente.
O tratamento dos sintomas histéricos isolados
não oferece nenhuma perspectiva de êxito enquanto persiste a histeria aguda: os
sintomas eliminados reaparecem ou são substituídos por outros, novos. No final,
ambos, médico e paciente, se fatigam. A situação é diferente, contudo, quando
os sintomas histéricos representam um resíduo da histeria aguda que findou seu
curso, ou quando aparecem numa histeria crônica devido a alguma causa excitante
especial, como localizações da neurose. Em princípio, nesses casos
desaconselha-se a medicação interna, como também devem ser evitadas as drogas
narcóticas. Prescrever uma droga narcótica em caso de histeria aguda não passa
de grave erro técnico. No caso de histeria local e resistente, nem sempre é
possível evitar os medicamentos internos; mas não se pode confiar em seu
efeito. Este, às vezes, surge com rapidez mágica, às vezes não surge de modo
algum, e parece depender da auto-sugestão do paciente ou da sua crença na sua
eficácia. Ademais, podemos escolher entre iniciar o tratamento direto e o
tratamento indireto da doença histérica. Este último consiste em negligenciar o
problema local e visar a uma influência geral sobre o sistema nervoso, no
decorrer da qual utilizamos vida ao ar livre, hidroterapia, eletricidade (de
preferência mediante o tratamento com alta-tensão), e procuramos melhorar o
sangue por meio de arsenicais e medicação ferrosa. Temos ainda, no uso do
tratamento indireto, que considerar a remoção de fontes de estímulos, caso
exista alguma de natureza física. Assim, por exemplo, os espasmos gástricos
histéricos podem ter sua origem num catarro gástrico benigno, ao passo que uma
área eritematosa na laringe ou uma tumefação nos cornetos podem originar uma
persistente tussis hysterica. É realmente duvidoso que as alterações nos
genitais realmente constituam, com tanta freqüência, fontes de estímulo para os
sintomas histéricos. Tais casos devem ser examinados com maior senso crítico. O
tratamento direto consiste na remoção das fontes psíquicas que estimulam os
sintomas histéricos, e isto se torna compreensível se buscarmos as causas da
histeria na vida ideativa inconsciente. Consiste em dar ao paciente sob hipnose
uma sugestão que contém a eliminação do distúrbio em causa. Assim, por
exemplo, curamos uma tussis nervosa hysterica fazendo pressão sobre a
laringe do paciente hipnotizado e assegurando-lhe que foi removido o estímulo
que o faz tossir, ou curamos uma paralisia histérica do braço compelindo o
paciente, sob hipnose, a mover o membro paralisado, parte por parte. O efeito
até se torna maior se adotarmos um método posto em prática, pela primeira vez,
por Joseph Breuer, em Viena, e fizermos o paciente, sob hipnose, remontar à
pré-história psíquica da doença, compelindo-o a reconhecer a ocasião psíquica
em que se originou o referido distúrbio. Esse método de tratamento é novo, mas
produz curas bem-sucedidas, que, por outros meios, não são alcançadas. É o
método mais apropriado para a histeria, justamente porque imita o mecanismo da
origem e da cessação desses distúrbios histéricos. Isso porque muitos sintomas
histéricos que resistiram a todos os tratamentos desaparecem espontaneamente
sob a influência de um motivo psíquico suficiente (por exemplo, uma paralisia
da mão direita desaparecerá se, numa discussão, o paciente sentir ímpetos de
dar um murro no ouvido do adversário), ou sob a influência de alguma excitação
moral, de um susto ou de uma expectativa (por exemplo, em um local de
peregrinação), ou, por fim, quando há uma drástica alteração das excitações no
sistema nervoso, após um ataque convulsivo. O tratamento psíquico direto dos
sintomas histéricos ainda será considerado o melhor no dia em que o
entendimento da sugestão tiver penetrado mais profundamente nos círculos
médicos (Bernheim - Nancy). - Atualmente, não se pode decidir com certeza até
que ponto a influência psíquica desempenha um papel em alguns outros
tratamentos aparentemente físicos. Assim, por exemplo, as contraturas podem ser
curadas quando se consegue efetuar um transfert por meio de um ímã.
Repetindo-se os transferts, a contratura torna-se mais débil e, afinal,
desaparece.
VI. RESUMO. - Para sintetizar, podemos dizer
que a histeria é uma anomalia do sistema nervoso que se fundamenta na
distribuição diferente das excitações, provavelmente acompanhada de excesso de
estímulos no órgão da mente. Sua sintomatologia mostra que esse excesso é
distribuído por meio de idéias conscientes ou inconscientes. Tudo o que
modifica a distribuição das excitações no sistema nervoso pode curar os
distúrbios histéricos: esses efeitos são, em parte, de natureza física e, em
parte, de natureza diretamente psíquica.
APÊNDICE: HISTEROEPILEPSIA
HISTEROEPILEPSIA (em francês, hystéroépilepsie;
em inglês, hystero-epilepsy; em italiano, isteroepilessia).
Na histeroepilepsia observam-se ataques de
convulsões generalizadas, como na epilepsia. Como precursores surgem: sensação
de sufocação, dificuldade de deglutir, dor de cabeça e dor no estômago,
vertigem e algumas sensações peculiares de estiramento nos membros. Os
pacientes caem, emitindo forte grito, e são acometidos de convulsões, sua boca
espuma e suas feições ficam deformadas. As convulsões, no início, são de
natureza tônica, mas, depois, são clônicas. No entanto, em geral o ataque não
se instala subitamente, como sucede na epilepsia. Por um curto espaço de tempo,
os pacientes procuram lutar contra as convulsões, precaver-se de lesões graves
por ocasião de quedas e evitar situações perigosas. Um epiléptico pode até cair
dentro do fogo, mas isto não acontece com os histéricos. Enquanto aquele se
mostra pálido no começo do ataque e, depois, se torna cianótico, a face de um
histérico mantém aproximadamente a sua cor normal. Na histeria, são raras as
lesões da língua decorrentes de mordedura. Nos ataques histeroepilépticos,
ocorre muitas vezes um opistótono completo; isto geralmente não ocorre na
epilepsia. Durante os ataques, a consciência não desaparece completamente, a
não ser nos casos mais graves. Depois do ataque, o histérico em geral se
recupera imediatamente; não subsistem a tendência ao sono e a fraqueza que são
observadas nos epilépticos. Por outro lado, não são raras, depois, as visões de
ratos, camundongos e cobras, bem como as alucinações auditivas. Além desses
ataques, nesses pacientes são encontrados todos os sintomas da histeria.
ARTIGOS SOBRE HIPNOTISMO E SUGESTÃO (1888-1892)
INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS
Após retornar de Paris a Viena, em 1886, Freud
dedicou, por alguns anos, grande parte de sua atenção ao estudo do hipnotismo e
da sugestão. Naturalmente, embora o assunto apareça em muitos pontos (por
exemplo, nos Estudos sobre a Histeria e no necrológio de Charcot), os
trabalhos escritos nesse período e diretamente referentes aos dois temas
pareciam ou não existir ou estar fora de alcance, exceto o prefácio à tradução
de De la suggestion (1888-9), de Bernheim, e o artigo sobre “Um Caso de
Cura pelo Hipnotismo” (1892-3). Como se verifica, podemos agora, entre esses
dois, inserir três outros trabalhos bastante extensos. Em primeiro lugar,
conseguimos devolver à luz a resenha do livro de Forel sobre hipnotismo
(1889a), a qual, parece, nunca foi reeditada. Os outros dois, à sua maneira,
são trabalhos recém-chegados; ambos só vieram à luz em 1963. Destes, o primeiro
é realmente um velho conhecido: o artigo que tem por título “Tratamento
Psíquico (ou Mental)” (1890a) que se encontra na Edição Standard Brasileira,
Vol. VII, [1], IMAGO Editora, 1972. Esse artigo não foi incluído nas Gesammelte
Schriften, mas foi editado no quinto volume das Gesammelte Werke,
sendo atribuída a ele a data de 1905, juntamente com outros trabalhos, como os Três
Ensaios e o relato do caso clínico de “Dora”. Foi ali classificado como uma
contribuição a Die Gesundheit, um manual coletivo de medicina em dois
volumes, de caráter semipopular. O artigo versa sobre hipnotismo e não encerra
alusão sequer às descobertas de Freud, exceto uma possível e única referência
imprecisa ao tratamento catártico. Sempre pareceu misterioso que Freud
retrocedesse quinze anos no tempo, subitamente, em 1905. Recentemente, a
explicação desse fato foi dada pelo Prof. Saul Rosenzweig, da Washington
University de St. Louis. Suas investigações mostraram que a data de 1905, até
há pouco tempo sistematicamente atribuída a esse trabalho, realmente era a data
da terceira edição de Die Gesundheit - fato que os editores
daquele manual deixaram de indicar. Sua primeira edição fora publicada
em 1890 e já continha o artigo de Freud, tal como o temos agora. (A segunda
edição surgiu em 1900.) “Tratamento Psíquico (ou Mental)”, portanto,
simplesmente se situa junto dos demais trabalhos de Freud publicados naquele
período; de direito, deveria ter sido incluído neste volume depois da resenha
de Forel. A outra novidade, pelo que sabemos, é uma revelação completa.
Trata-se de um artigo sobre hipnose, com o qual Freud contribuiu para um manual
médico, Therapeutisches Lexikon, editado por A. Bum e publicado pela
primeira vez em 1891. (Saiu uma segunda edição em 1893 e uma terceira em 1900.)
Nenhum vestígio da existência desse artigo seria encontrado em parte alguma,
até ele ser descoberto pelo Dr. Paul F. Cranefield, editor do Bulletin of
the Nework Academy of Medicine.
A experiência clínica de Freud com o
hipnotismo pode ser rastreada de modo um tanto detalhado. Em seu Estudo
Autobiográfico (1925d), ele relata que, quando ainda era estudante,
compareceu a uma exibição pública feita por Hansen, o “magnetizador”, e se
convenceu da autenticidade dos fenômenos da hipnose (Edição Standard
Brasileira, Vol. XX, [1], IMAGO Editora, 1976). Além disso, mal tinha seus vinte
anos, Freud ficou sabendo que seu futuro colaborador Breuer (um homem quase
quinze anos mais velho) às vezes empregava o hipnotismo com fins terapêuticos.
A essa época, entretanto, muitas sumidades médicas de Viena ainda manifestavam
opiniões alarmistas ou céticas sobre o assunto. (Ver, por exemplo, os
comentários de Meynert, antigo mestre de Freud, citados na resenha de Forel,
cf. em [1]. Somente quando, aos trinta anos de idade, chegou à clínica de
Charcot, em Paris, foi que Freud verificou que a sugestão hipnótica era
reconhecida e vinha sendo usada correntemente. A profunda impressão que isso
lhe causou está evidenciada no Relatório que escreveu quando de seu regresso de
Paris, em 1886 (1956a), [1], assim como em muitas outras passagens
subseqüentes. Depois de se estabelecer como neurologista em Viena, tentou
valer-se de diferentes métodos, como eletroterapia, hidroterapia e curas de
repouso, para o tratamento das neuroses; entretanto, por fim, retornou ao
hipnotismo. “Durante essas últimas semanas”, escrevia ele a Fliess em 28 de
dezembro de 1887, “utilizei-me da hipnose e tive uma série de pequenos, porém
notáveis, êxitos.” Na mesma carta, relatava que já assumira o compromisso de
traduzir o livro de Bernheim sobre sugestão. Mas essa extrema rapidez não era
resultado de entusiasmo, pois, numa carta a Fliess, em 29 de agosto do ano
seguinte, que provavelmente acompanhava uma cópia do seu prefácio (este, com a
data “agosto de 1888”) ao livro de Bernheim, ele escrevia que só aceitara a
tradução em meio a muita hesitação e por motivos meramente práticos (Freud,
1950a, Carta 5). A sugestão hipnótica, sem dúvida, era sua preocupação
imediata; porém, mais uma vez, no Estudo Autobiográfico, ibid., Vol. XX,
[1], ele menciona que, “desde o princípio, usei a hipnose de uma outra
maneira, diferente da sugestão hipnótica”. Naturalmente, com isso estava-se
referindo ao método de Breuer de usar o hipnotismo para determinar a origem dos
sintomas. Existem algumas dúvidas quanto à data exata em que começou a aplicar
esse novo método; contudo, por certo usou-o no caso de Frau Emmy von N.,
que começou a tratar em maio de 1889, ou possivelmente um ano antes. (Ver em
[1] e [2].) Daí em diante, aderiu cada vez mais ao método catártico de Breuer.
Nesse ínterim, continuava o interesse de Freud
pela sugestão hipnótica. A tradução da obra de Bernheim parece ter sido
concluída no início de 1889. Nessa época, Freud já estava em contato com August
Forel, conhecido psiquiatra suíço, cujo livro sobre hipnotismo ele resenhou em
dois fascículos, em julho e novembro de 1889 (em [1]); e foi com a apresentação
de Forel que (entre a publicação dos dois fascículos) fez uma visita de algumas
semanas a Bernheim e Liébeault, em Nancy. O motivo para fazer tal visita,
conforme nos conta (ibid., Vol. XX, [1]), foi a idéia de aperfeiçoar sua
técnica de hipnose. Pois o fato é que Freud não se considerava um grande adepto
da arte de hipnotizar, ou então era mais sincero do que muitas pessoas para
reconhecer as limitações do método. Já em 1891,quando publicou a contribuição
ao dicionário médico de Bum, a qual será encontrada adiante, ele estava
provadamente consciente dessas dificuldades e, ademais, começava a se irritar
com elas (em [1]). Sua irritação foi expressa novamente, logo depois, numa nota
de rodapé à tradução que fez (1892-4) das Leçons du Mardi (em [1]), de
Charcot, e, ainda com maior franqueza, numa passagem do caso clínico de Miss
Lucy R. nos Estudos sobre a Histeria (1895d), Edição Standard
Brasileira, Vol. II, [1]-[2], IMAGO Editora, 1974. Muitos anos mais tarde,
resumiria sua posição nas Cinco Lições (1910a), ibid., Vol. XI, [1],
IMAGO Editora, 1970: “Mas logo a hipnose passou a me desagradar… Quando
verifiquei que, apesar de todos os meus esforços, não conseguia produzir o
estado hipnótico senão numa parte dos meus pacientes, decidi abandonar a
hipnose…” Mas o momento adequado ainda não tinha chegado. Continuou a utilizar
a hipnose não só como parte do método catártico mas também para a sugestão
direta; em fins de 1892, publicou um relato minucioso de um caso desse tipo,
especialmente bem-sucedido. (Ver em [1]) Além disso, no mesmo ano, fez a
tradução de um segundo livro de Bernheim (1892a), embora dessa vez sem a
introdução. No entanto, levou pouco tempo para que concebesse um sistema pelo qual
pudesse produzir os efeitos da sugestão, sem a necessidade de colocar o
paciente em estado de hipnose. O primeiro passo foi substituir o sono hipnótico
por aquilo que denominou estado de “concentração” (Estudos sobre a Histeria,
ibid., Vol. II, [1]-[2], IMAGO Editora, 1974). A seguir, desenvolveu a “técnica
da pressão” (ibid., [1]-[2], [3], [4] e [5]): simplesmente exercendo pressão
com suas mãos sobre a fronte do paciente, conseguia obter a informação
desejada. Não está esclarecido se teria empregado esse método pela primeira vez
no caso de Miss Lucy R. ou no caso de Fräulein Elisabeth von R.,
sendo que ambos os tratamentos começaram no final do ano de 1892. Naturalmente,
esse método era utilizado apenas no tratamento catártico e não no tratamento
sugestivo.
Não é possível saber com precisão a época em
que Freud abandonou esses diferentes métodos. Numa conferência proferida no
final de 1904 (1905a), ele declarava (ibid., Vol. VII, [1], IMAGO Editora,
1972): “Ora, há uns oito anos não tenho usado a hipnose com fins
terapêuticos(exceto para algumas experiências especiais)” - portanto, desde
mais ou menos 1896. Talvez seja esse o período que marca o fim da “técnica da
pressão”, pois, na descrição de seu método, no começo de A Interpretação dos
Sonhos (1900a [1899]), ibid., Vol. IV, [1], IMAGO Editora, 1972, não faz
qualquer menção a semelhante contato com o paciente, embora, nessa passagem,
ainda recomendasse ao paciente manter os olhos fechados. Porém, numa
contribuição ao livro de Löewenfeld sobre as obsessões, na qual descrevia sua
técnica (1940a), escreveu explicitamente: “Ele [Freud] nem mesmo lhes solicita
que fechem os olhos e evita tocar neles, assim como evita qualquer outro
procedimento que possa lembrar a hipnose” (ibid., Vol. VII, [1], IMAGO Editora,
1972). Na verdade, no fim ainda restava um vestígio de hipnotismo - o “ritual
que diz respeito à posição em que é efetuado o tratamento, a qual é
remanescente do método hipnótico a partir do qual se desenvolveu a
psicanálise”, e que Freud pensava merecesse ser mantida por muita razões
(“Sobre o Início do Tratamento”, 1913c, ibid., Vol. XII, [1]-[2], IMAGO
Editora, 1976). O período durante o qual Freud fez algum uso efetivo da hipnose
situa-se portanto, no máximo, entre 1886 e 1896.
Naturalmente, o interesse de Freud pela teoria
do hipnotismo e da sugestão durou mais tempo. Aqui havia a controvérsia com
respeito a correntes que podem ser esquematicamente descritas como “Charcot versus
Bernheim” - entre a opinião do Salpêtrière, segundo a qual a sugestão não passa
de uma forma leve de hipnose, e a opinião da escola de Nancy, de que a hipnose
era simplesmente produção da sugestão. É possível detectar sinais de vacilação
na atitude de Freud relativa a esse debate. Na carta a Fliess de 29 de agosto
de 1888, que já citamos e que ele remeteu imediatamente depois de redigir seu
prefácio ao livro de Bernheim, Freud escrevia: “Não compartilho dos pontos de
vista de Bernheim, que me parecem unilaterais, e em meu prefácio procurei
defender a opinião de Charcot”. A orientação segundo a qual Freud assim
procedeu pode ser depreendida do próprio prefácio em [1]. Naturalmente, isto se
deu antes de sua visita a Nancy, que provavelmente o influenciou muito, de vez
que, não muito tempo depois, em seu obituário de Charcot (1893f), manifestava
críticas à “abordagem exclusivamente nosográfica da escola de Salpêtrière”
diante dos fenômenos hipnóticos: “A limitação do estudo da hipnose aos
pacientes histéricos, a diferenciação entre grande e pequeno hipnotismo, a
hipótese dos três estágios da ‘grande hipnose’ e a caracterização desses
estágios por fenômenos somáticos - tudo isso fez declinar o conceito dos
contemporâneos de Charcot, quando Bernheim, discípulo de Liébeault, passou a
elaborar a teoria do hipnotismo a partir de um fundamento psicológico mais
abrangente e a fazer da sugestão o ponto central da hipnose”. (Ibid., Vol. III,
[1], IMAGO Editora, 1977.) No entanto, em diversas passagens Freud insistiu na
imprecisão do termo “sugestão” e no fato de que o próprio Bernheim não conseguia
explicar o mecanismo do processo: por exemplo, já na resenha de Forel (1889a),
em [1], e também no caso clínico do “Pequeno Hans” (1909b), Edição Standard
Brasileira, Vol. X, [1], IMAGO Editora, 1977, e nas Conferências
Introdutórias (1916-17), ibid., Vol. XVI, [1], IMAGO Editora, 1976.
Retornou ao tema uma vez mais na Psicologia de Grupo (1921c), ibid.,
Vol. XVIII, [1], IMAGO Editora, 1976, trabalho esse em que há uma série de
discussões tanto sobre sugestão como sobre hipnose. E aí, numa nota de rodapé
(ibid., [1]), ele se afastava claramente da sua tendência anterior a apoiar os
pontos de vista de Bernheim: “Parece-me que convém acentuar o fato de que as
discussões contidas nesta seção nos induziram a abandonar a concepção de
Bernheim sobre a hipnose e a voltar à concepção naïf [ingênua] anterior.
Consoante Bernheim, todos os fenômenos hipnóticos podem ser atribuídos ao fator
da sugestão, que por si mesmo não é passível de qualquer outra explicação.
Chegamos à conclusão de que a sugestão constitui manifestação parcial do estado
de hipnose, e que a hipnose se fundamenta solidamente numa predisposição que
sobreviveu no inconsciente desde o início da história da família humana”. O
tranqüilo equilíbrio dos pontos de vista de Freud a respeito dessa controvérsia
foi expresso numa frase de uma carta sua a A. A. Roback, muitos anos depois, a
20 de fevereiro de 1930: “Na questão da hipnose, realmente tomei partido
contra Charcot, ainda que não estivesse inteiramente a favor de Bernheim”
(Freud, 1960a, 391).
A despeito de haver abandonado cedo a hipnose
como método terapêutico, durante toda a sua vida Freud nunca hesitou em
expressar-lhe seu sentimento de gratidão. “Nós, psicanalistas”, declarou ele
nas Conferências Introdutórias (1916-17), Edição Standard Brasileira,
Vol. XVI, [1], IMAGO Editora, 1976, “podemos afirmar que somos seus legítimos
herdeiros e não esquecemos quanto estímulo e esclarecimento teórico devemos à
hipnose.” E disso deu uma explicação mais específica num de seus artigos sobre
técnica (1914g): “Ainda devemos ser gratos à velha técnica da hipnose por nos
ter mostrado os processos psíquicos simples da análise, numa forma isolada ou
esquemática. Só isto pôde nos dar a coragem de construir, no tratamento
analítico, situações mais complexas, e de mantê-las claras diante de nós”. (Ibid., Vol. XII, [1].)
PREFÁCIO À TRADUÇÃO DE DE LA SUGGESTION, DE BERNHEIM
(1888-9)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
PREFÁCIO À TRADUÇÃO DE DE LA SUGGESTION,DE
BERNHEIM
(a) EDIÇÃO ALEMÃ:
1888 Em H.
Bernheim, Die Suggestion und ihre Heilwirkung (A Sugestão e Seus Efeitos
Terapêuticos), iii-xii, Leipzig e Viena: Deuticke, (1896, 2ª ed.)
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
1946 Int J. Psycho-Anal., 27 (1-2), 59-64. (Sob o título “Hypnotism and Suggestion”.)
(Trad. de James Strachey.)
1950 C.P., 5, 11-24, (Revisão da
anterior.)
A presente edição inglesa é uma versão
consideravelmente corrigida da que foi publicada em 1950. O título francês
completo do livro de Bernheim era De la suggestion et de ses applications à
la thérapeutique (Paris: 1886; 2ª ed. 1887). Um trecho da tradução de Freud
surgiu antecipadamente no Wiener med. Wochenschrift, 38 (26), 898-900,
de 30 de junho de 1888, sob o título “Hypnose durch Suggestion” (“Hipnose pela
sugestão”), e o prefácio completo de Freud, com exceção dos seus dois primeiros
parágrafos, foi publicado no Wiener med. Blätter, 11 (38), 1189-93 e
(39), 1226-8, a 20 e a 27 de setembro de 1888, tendo como título “Hypnotismus
und Suggestion”. Embora a página de rosto do livro consigne a data “1888”, sua
publicação realmente não foi completada senão em 1889, como mostra um
“Pós-escrito do Tradutor” que aparece na última página: “Em decorrência de
circunstâncias pessoais que atingiram o tradutor, a publicação da segunda parte
[o livro tem duas partes] foi adiada alguns meses além da data prometida. Mesmo
agora, provavelmente eu não teria conseguido terminá-la, não tivesse o meu
prezado amigo Dr. Otto von Springer tido a grande gentileza de se encarregar da
tradução de todos os casos clínicos da segunda parte, pelo que lhe expresso os
meus melhores agradecimentos. Viena, janeiro de 1889”. Nada se sabe a respeito
do que foram essas “circunstâncias pessoais” - se foram, por exemplo, as mesmas
que as “razões acidentais e pessoais” que, nessa mesma época, impediram Freud
de completar seu artigo em francês sobre as paralisias orgânicas e histéricas
(1893c), cf. em. [1]. Freud acrescentou somente umas poucas e breves notas do
tradutor ao texto desse volume, notasque, na sua maioria, eram referências às
edições alemãs de obras mencionadas por Bernheim. A única que requer atenção é
citada em [1]-[2].
Em seu Estudo Autobiográfico, Freud
mostra alguma confusão quanto à data de publicação do presente trabalho. Depois
de descrever sua visita a Bernheim, em Nancy, no verão de 1889, conclui assim:
“Mantive com ele muita conversas estimulantes e encarreguei-me de traduzir para
o alemão seus dois trabalhos sobre a sugestão e seus efeitos terapêuticos”
(Edição Standard Brasileira, Vol. XX, [1], IMAGO Editora, 1976). Na verdade,
conforme vimos, esse livro já estava publicado antes de se realizar a visita. O
segundo livro de Bernheim a ser traduzido por Freud - Hypnotisme,
suggestion, psychothérapie: études nouvelles - não foi publicado em francês
senão dois anos mais tarde (Paris: 1891). A tradução de Freud veio à luz no ano
seguinte, tendo como título Neue Studien über Hypnotismus, Suggestion und
Psychotherapie (Leipzig e Viena: Deuticke). Esse livro não continha nem
introdução nem notas do tradutor.
Em 1896, foi publicada uma segunda edição do
primeiro dos dois volumes. Mas essa nova edição, como veremos, passara por uma
revisão completa, sob a supervisão do Dr. Max Kahane, que foi um dos primeiros
adeptos de Freud e que também se encarregou do segundo volume da tradução das Leçons
du Mardi, de Charcot (ver em [1]).
Nessa segunda edição, a presente introdução não foi, como se tem afirmado,
abreviada, mas sim inteiramente abolida e substituída pelo breve prefácio que
reproduzimos num Apêndice em [1].
PREFÁCIO À TRADUÇÃO DE DE LA
SUGGESTION, DE BERNHEIM
Este livro já recebeu calorosa recomendação do
Prof. Forel, de Zurique, e espera-se que nele os seus leitores venham a
descobrir todas as qualidades que levaram o tradutor a apresentá-lo em língua
alemã. Verificarão que o trabalho desenvolvido pelo Dr. Benheim, de Nancy,
proporciona uma admirável introdução ao estudo do hipnotismo (assunto que os
médicos não podem mais negligenciar), que, sob muitos aspectos, é estimulante
e, sob alguns outros aspecto é realmente esclarecedor e está destinado a
destruir a crença de que o problema da hipnose, segundo afirma o Prof. Meynert,
ainda esteja envolvido por um “halo de absurdo”.
A realização de Bernheim (e de seus colegas em
Nancy que trabalham segundo as mesmas diretrizes) consiste precisamente em
despojar as manifestações do hipnotismo do seu mistério, correlacionando-as com
fenômenos conhecidos da vida psicológica normal e do sono. Parece-me que o
valor principal deste livro está na prova que ele fornece das relações que vinculam
os fenômenos hipnóticos aos processos correntes da vida de vigília e do sono, e
no fato de trazer à luz as leis psicológicas que se aplicam a ambos os tipos de
eventos. Com isso, o problema da hipnose é inteiramente transposto para a
esfera da psicologia, e a “sugestão” é erigida como núcleo do hipnotismo e
chave para sua compreensão. Além disso, nos últimos capítulos, assinala-se a
importância da sugestão em outras áreas além da hipnose. Na segunda parte do
livro, encontram-se provas convincentes de que o uso da sugestão hipnótica
proporciona ao médico um poderoso método terapêutico, que realmente parece ser
o mais adequado para combater determinados distúrbios nervosos e o mais
apropriado ao mecanismo dos mesmos. Isto confere ao livro uma importância
prática incomum. E sua insistência no fato de que tanto a hipnose como a
sugestão hipnótica podem ser aplicadas não só aos pacientes histéricos e
neuropáticos graves, mas também à maior parte das pessoas sadias, destina-se a
ampliar para além do estreito círculo dos neuropatologistas o interesse dos
médicos por esse método terapêutico.
O tema do hipnotismo tem tido uma recepção
muitíssimo desfavorável entre os expoentes da ciência médica alemã (excluídas
algumas poucas exceções, como Krafft-Ebing, Forel etc.). Ainda assim, a
despeito disso, é válido expressar o desejo de que os médicos alemães venham a
dirigir sua atenção para esse problema e para esse método terapêutico, pois
continua sendo verdade que, em matéria científica, é sempre a experiência, e nunca
a autoridade sem a experiência, que dá o veredicto final, seja a favor, seja
contra. Na verdade, as objeções que até o momento temos ouvido, na Alemanha,
contra o estudo e o uso da hipnose merecem atenção apenas por causa dos nomes
dos seus autores, e o Prof. Forel teve pouca dificuldade em refutar, num breve
ensaio [1889], toda uma infinidade de objeções dessa natureza.
Há cerca de dez anos, a opinião corrente na
Alemanha ainda era a de pôr em dúvida a realidade dos fenômenos hipnóticos e
procurar explicar os relatos referentes a eles como devidos a uma combinação de
credulidade por parte dos observadores e simulação por parte das pessoas
submetidas às experiências. Atualmente, essa posição já não é mais defensável,
graças aos trabalhos de Heidenhain e Charcot, para mencionar apenas os maiores
nomes dentre aqueles que deram seu irrestrito apoio à realidade do hipnotismo.
Até os mais ferrenhos adversários do hipnotismo se tornaram conscientes disso
e, por conseguinte, suas obras, embora ainda deixem transparecer uma nítida
tendência a negar a realidade da hipnose, geralmente também incluem tentativas
de explicá-la e com isso realmente reconhecem a existência desses fenômenos.
Uma outra corrente de argumentos hostis à
hipnose rejeita-a como sendo perigosa para a saúde mental da pessoa e dá-lhe o
rótulo de “psicose produzida experimentalmente”. A prova de que a hipnose leva
a resultados prejudiciais em uns poucos casos nem por isso seria um argumento
decisivo contra sua utilidade geral, da mesma forma que, por exemplo, a
ocorrência de casos isolados de morte por narcose pelo clorofórmio não
proscreve o uso do clorofórmio com o objetivo de obter anestesia cirúrgica. No
entanto, constitui fato digno de nota que a analogia não consiga estender-se
além desse ponto. O maior número de acidentes na narcose pelo clorofórmio
ocorre com os cirurgiões que executam o maior número de cirurgias. Contudo, a
maior parte dos relatos sobre os efeitos nocivos da hipnose provém de
observadores que trabalham muito pouco com hipnose, ao passo que todos os
pesquisadores que tiveram grande experiência com a hipnose são unânimes na
crença de que o método é inócuo. Portanto, a fim de evitar qualquer efeito
prejudicial no uso da hipnose, tudo o que é necessário é que o procedimento
seja efetuado com cuidado, de modo suficientemente seguro e em casos
corretamente selecionados. Deve-se acrescentar que pouco se ganha ao se
chamarem as sugestões de “idéias obsessivas” e a hipnose de “psicose
experimental”. Parece provável que as idéias obsessivas serão mais bem
esclarecidas se comparadas com as sugestões, em vez de se proceder ao
contrário. E todo aquele que se atemoriza com o termo injurioso “psicose” bem
pode se perguntar se nosso sono natural também merece ser descrito como tal -
se é que, na realidade, existe mesmo algo a lucrar com a transposição de termos
técnicos para situações alheias às suas áreas específicas. Não, desse lado não
há que temer nenhum perigo para a causa do hipnotismo. E tão logo um grande
número de médicos esteja em condições de relatar observações do tipo das que se
podem encontrar na segunda parte do livro de Bernheim, ficará estabelecido que
a hipnose é um estado inofensivo e que induzi-la é um método “digno” de um
médico.
Este livro também discute uma outra questão, que,
na época atual, divide em dois campos opostos os adeptos do hipnotismo. Uma
corrente, cujas opiniões Bernheim exprime nestas páginas, sustenta que todos os
fenômenos do hipnotismo têm a mesma origem: isto é, surgem de uma sugestão, de
uma idéia consciente, que foi introduzida, mediante uma influência externa, no
cérebro da pessoa hipnotizada e por esta foi aceita como se tivesse surgido
espontaneamente. Sob esse ponto de vista, todas as manifestações hipnóticas
seriam fenômenos psíquicos, efeitos de sugestões. A outra corrente, pelo
contrário, sustenta a opinião de que o mecanismo de pelo menos algumas das
manifestações do hipnotismo se baseia em modificações fisiológicas - ou seja,
em deslocamentos da excitabilidade no sistema nervoso, que ocorrem sem a
participação das partes do mesmo que operam com a consciência; os adeptos dessa
corrente falam, portanto, dos fenômenos físicos ou fisiológicos da hipnose.
O ponto principal dessa controvérsia é o “grand
hypnostisme” [“grande hipnotismo”] - os fenômenos descritos por Charcot no
caso de pacientes histéricos hipnotizados. Diferindo das pessoas normais
hipnotizadas, esses pacientes histéricos, segundo se acredita, apresentam três
estágios de hipnose, cada um deles distinguindo-se por sinais físicos especiais,
de natureza muito marcada (tais como uma extraordinária hiperexcitabilidade
neuromuscular, contraturas sonambúlicas etc.). Facilmente se compreenderá que,
em relação a essa área de fatos, as diferenças de opinião há pouco delineadas
devem ter uma repercussão muito importante. Se têm razão os adeptos da teoria
da sugestão, todas as observações feitas no Salpêtrière ficam invalidadas;
tornam-se erros de observação. A hipnose de pacientes histéricos não teria
nenhuma característica própria; mas todo médico teria a possibilidade de
produzir, nos pacientes que hipnotizasse, qualquer sintomatologia que
desejasse. Com o estudo do grande hipnotismo não aprenderíamos que modificações
sucessivas se efetuam na excitabilidade do sistema nervoso, decorrentes de
determinadas formas de intervenção; iríamos apenas aprender quais as intenções
que Charcot sugeriu (de uma forma da qual nem ele tinha consciência) às pessoas
submetidas a essas experiências - coisa inteiramente irrelevante para nossa
compreensão da hipnose e da histeria.
É fácil verificar as demais implicações desse
ponto de vista e como seria conveniente a explicação, que ela pode prometer, da
sintomatologia da histeria em geral. Se a sugestão feita pelo médico falsificou
os fenômenos da hipnose histérica, é bem possível que também tenha interferido
na observação do resto da sintomatologia histérica: pode ter estabelecido leis
que governem os ataques histéricos, as paralisias, as contraturas etc.; esses
sintomas teriam na sugestão o seu único vínculo com a neurose e, como
conseqüência, perderiam sua validade tão logo um outro médico, num outro lugar,
procedesse a um exame dos pacientes histéricos. Essa inferência impõe-se com
muita lógica, e de fato já foi feita. Hückel (1888) exprime sua convicção de
que o primeiro “transfert” (a transferência de sensibilidade de uma
parte do corpo para a parte correspondente do outro lado) feito por uma
histérica foi sugerido a ela em alguma circunstância específica de sua história
e que, daí em diante, os médicos continuaram constantemente a produzir pela
sugestão, de forma renovada, esse sintoma pretensamente fisiológico.
Estou convencido de que esse ponto de vista
será o mais bem aceito por parte daqueles que se sentem inclinados - e,
atualmente, ainda são a maioria, na Alemanha - a não atentar para o fato de que
os fenômenos histéricos são regidos por leis. Aqui devemos assinalar um
excelente exemplo de como o descaso pelo fator psíquico da sugestão desorientou
um grande observador e o levou à criação artificial e falsa de um tipo clínico,
em decorrência da natureza cheia de caprichos e maleabilidade de uma neurose.
Não obstante, não há dificuldade em provar,
parte por parte, a objetividade da sintomatologia da histeria. As críticas de
Bernheim podem ser plenamente justificadas em relação a investigações como as
que foram efetuadas por Binet e Féré; de qualquer modo, essas críticas
revelar-se-ão importantes porque, em toda investigação futura da histeria e do
hipnotismo,a necessidade de excluir o elemento sugestão será lembrada de modo
mais consciente. Os principais pontos da sintomatologia da histeria, contudo,
estão livres da suspeita de se terem originado na sugestão de um médico. Os
relatos provenientes de épocas passadas e de países distantes, que foram
reunidos por Charcot e seus discípulos, não dão margem à dúvida de que as
peculiaridades dos ataques histéricos, das zonas histerógenas, da anestesia,
das paralisias e contraturas se têm manifestado em todos os tempos e lugares,
tal como foram vistas no Salpêtrière quando Charcot efetuava sua memorável
investigação dessa grande neurose. O “transfert” em particular, que
parece prestar-se especialmente bem para provar que os sintomas histéricos se
originam da sugestão, indubitavelmente é um processo autêntico. Vem sendo
observado em casos de histeria não-influenciados: freqüentemente se encontram
pacientes nos quais aquilo que sob outros aspectos é uma hemianestesia típica
se interrompe justamente num órgão ou numa extremidade, e nos quais essa parte
específica do corpo conserva sua sensibilidade no lado insensível, ao passo que
a parte correspondente do outro lado se tornou anestesiada. Ademais, o “transfert”
é um fenômeno fisiologicamente compreensível. Como ficou demonstrado por
investigações feitas na Alemanha e na França, trata-se meramente do exagero de
uma relação normalmente presente em partes simétricas do corpo; tanto é assim
que pode ser produzido, numa forma rudimentar, em pessoas sadias. Muitos outros
sintomas histéricos da sensibilidade também têm sua origem em relações fisiológicas
normais, como foi brilhantemente demonstrado pelas investigações de
Urbantschitsch. Esta não é a ocasião apropriada para efetuar uma justificação
detalhada da sintomatologia da histeria; mas podemos aceitar a afirmação de
que, na sua essência, essa sintomatologia é de natureza real, objetiva; não é
forjada pela sugestão da parte do observador. Isto não significa negar que seja
psíquico o mecanismo das manifestações histéricas mas não se trata do mecanismo
de sugestão por parte do médico.
Uma vez demonstrada a existência de fenômenos
fisiológicos, objetivos, na histeria, já não há mais nenhuma razão para
abandonar a possibilidade de que o “grande” hipnotismo histérico chegue a
apresentar fenômenos que não se derivam da sugestão da parte do pesquisador. Se
tais fenômenos de fato ocorrem, isto é uma hipótese que deve ser deixada para
uma investigação à parte, que tenha esse fim em vista. Assim, cabe à escola do
Salpêtrière provar que os três estágios da hipnose histérica podem ser
inequivocamente demonstrados mesmo numa pessoa que vem para a experiência sem
qualquer influência prévia e mesmo quando o pesquisador mantém a conduta mais
escrupulosa; e, sem dúvida, tal prova não há de demorar. Pois já a descrição do
grande hipnotismo apresenta sintomas que vão muito nitidamente contra a
possibilidade de serem considerados psíquicos. Refiro-me ao aumento da
excitabilidade neuromuscular durante o estágio letárgico. Todo aquele que tenha
visto como, durante a letargia, uma leve pressão sobre um músculo (mesmo que
seja um músculo facial ou um dos três músculos externos do pavilhão da orelha,
que jamais são contraídos durante a vida) consegue desencadear uma contração
tônica em todo o feixe muscular em questão, ou como a pressão exercida sobre um
nervo superficial consegue revelar sua distribuição terminal - qualquer pessoa
que tenha visto coisas assim inevitavelmente há de supor que o efeito deve ser
atribuído a causas fisiológicas, ou a um treino deliberado, e, sem hesitações,
haverá de excluir a sugestão não-intencional como causa possível. Isso porque a
sugestão não pode produzir algo que não esteja contido na consciência ou seja
nela introduzido. Nossa consciência, no entanto, apenas toma conhecimento do
resultado final de um movimento; nada sabe da ação e da distribuição anatômica
dos músculos isoladamente e nada sabe da distribuição anatômica dos nervos em
relação aos músculos. Num trabalho que será publicado em breve, mostrarei
detalhadamente que as características das paralisias histéricas se prendem a esse
fato e que é por essa razão que a histeria não apresenta paralisias de músculos
em separado, paralisias periféricas, nem paralisias faciais de natureza
central. O Dr. Bernheim não deveria ter deixado de produzir fenômenos de
hiperexcitabilidade neuromuscular por meio da sugestão; tal omissão constitui
uma grave lacuna em sua argumentação contra os três estágios.
Assim, os fenômenos fisiológicos efetivamente
ocorrem, pelo menos no grande hipnotismo histérico. Mas, no pequeno hipnotismo
normal, que, conforme insiste apropriadamente Bernheim, tem maior importância
para a nossa compreensão do problema, toda manifestação - assim se afirma -
surge por meio da sugestão, por meios psíquicos. Até mesmo o sono hipnótico, ao
que parece, resulta da sugestão: o sono sobrevém por causa da
sugestionabilidade humana normal, e por isso Bernheim sugere uma expectativa de
sono. Porém, outras ocasiões há em que o mecanismo do sono hipnótico parece ser
outro. Todo aquele que tenha hipnotizado com freqüência terá por vezes encontrado
pessoas que só com muita dificuldade podem ser colocadas em estado de sono
mediante conversa, ao passo que, pelo contrário, o mesmo resultado pode ser
facilmente obtido fazendo-se com que a pessoa se fixe durante algum tempo. De
fato, quem não teve a oportunidade de ver entrar em sono hipnótico um paciente
que não se teve qualquer intenção de hipnotizar e que por certo não tinha
nenhuma noção prévia da hipnose? Uma paciente toma seu lugar para que lhe façam
um exame de olhos ou de garganta; não há nenhuma expectativa de sono, seja da
parte do médico, seja da paciente; porém, mal o feixe de luz incide em seus
olhos, ela já passa a dormir e, talvez pela primeira vez em sua vida, está
hipnotizada. Nesse caso, certamente, poderia ser excluída qualquer ligação
psíquica consciente. Nosso sono natural, que Bernheim, com tanta propriedade,
compara com a hipnose, comporta-se de forma semelhante. De modo geral,
provocamos o sono por sugestão, por um estado de preparação mental e pela
expectativa do sono; algumas vezes, porém, ele se instala sem qualquer
ingerência de nossa parte, como resultado da condição fisiológica da fadiga. De
igual modo, quando as crianças são ninadas para dormir, ou quando os animais
são hipnotizados ao serem mantidos numa posição fixa, dificilmente se pode
dizer que a causa seja psíquica. Assim, chegamos à posição adotada por Preyer e
Binswanger na Realencyclopädie de Eulenburg; no hipnotismo existem
fenômenos tanto psíquicos como fisiológicos, e a hipnose pode ser realizada de
uma forma ou de outra. Realmente, na descrição do próprio Bernheim para suas
hipnoses, há inequivocamente um fator objetivo, independente da sugestão. É com
lógica que Jendrassik (1886) insiste em que, se não fosse assim, a hipnose
assumiria uma aparência diferente, de acordo com a individualidade de cada
experimentador; seria impossível compreender por que o aumento da
sugestionabilidade haveria de seguir uma seqüência uniforme, por que o sistema
muscular invariavelmente seria influenciado somente em direção à catalepsia, e
assim por diante.
Contudo, devemos concordar com Bernheim em que
a divisão dos fenômenos hipnóticos em fenômenos fisiológicos e fenômenos
psíquicos deixa muito a desejar: precisa-se urgentemente de um elo que vincule
as duas espécies de fenômenos. A hipnose, seja ela produzida de uma forma ou de
outra, é sempre a mesma e mostra os mesmos aspectos. A sintomatologia da
histeria, sob muitos aspectos, sugere um mecanismo psíquico, embora este não
precise ser necessariamente o mecanismo da sugestão. E, por fim, a sugestão
possui uma vantagem sobre os fenômenos fisiológicos, de vez que seu modo de
atuação é incontestável e relativamente claro, ao passo que não temos maior
conhecimento das influências mútuas da excitabilidade nervosa, da qual derivam
os fenômenos fisiológicos. Nos comentários que se seguem, espero poder dar
algumas indicações do elo de ligação entre os fenômenos psíquicos e
fisiológicos da hipnose, que estamos pesquisando.
Em minha opinião, o uso cambiante e ambíguo da
palavra “sugestão” confere a essas antíteses uma exatidão enganadora, que de
fato não existe. Vale a pena refletir sobre o que é que legitimamente podemos
chamar de “sugestão”. Sem dúvida, alguma espécie de influência psíquica está
implícita nesse termo; e eu gostaria de apresentar o ponto de vista de que o
elemento que distingue uma sugestão de outros tipos de influência psíquica,
como dar uma ordem ou fornecer uma informação ou orientação, é que, no caso da
sugestão, é despertada no cérebro de outra pessoa uma idéia que não é examinada
quanto à sua origem, mas que é aceita como originada espontaneamente no cérebro
dessa pessoa. Exemplo clássico de uma sugestão desse tipo ocorre quando o
médico diz a uma pessoa hipnotizada: “Seu braço deve permanecer na posição em
que o coloquei” e com isto se instala o fenômeno da catalepsia; ou então,
quando o médico levanta o braço do paciente vezes seguidas, repetidamente,
depois de o braço ter caído, e com isso faz o paciente supor que o médico
deseja que o braço seja mantido elevado. Mas, em outras ocasiões, falamos de
sugestão quando o mecanismo do processo evidentemente é um mecanismo diferente.
Por exemplo, em muitas dentre as pessoas hipnotizadas, a catelepsia se instala
sem que se opere qualquer interferência: o braço que foi levantado permanece
levantado espontaneamente, ou então a pessoa mantém inalterada a postura em que
iniciou o sono, a menos que haja alguma interferência. Bernheim chama de
sugestão também a esse resultado, dizendo que a própria postura sugere a sua
manutenção. Nesse caso, contudo, o papel desempenhado pela situação fisiológica
da pessoa, que rejeita qualquer impulso no sentido de modificar sua postura, é
maior do que nos primeiros casos. A diferença entre uma sugestão diretamente
psíquica e uma sugestão indireta (fisiológica) talvez possa ser vista com maior
clareza mediante o seguinte exemplo. Se eu disser a uma pessoa: “Seu braço
direito está paralisado; você não pode movê-lo”, estarei fazendo uma sugestão
diretamente psíquica. Em vez disso, Charcot dá uma leve pancada no braço da
pessoa, ou lhe diz: “Olhe para essa cara horrível! Dê um murro nela!”; a pessoa
dá o murro, e [em ambos os casos] seu braço cai paralisado. Nesses dois
[últimos] casos, um estímulo externo produziu, inicialmente, uma sensação de dolorosa
exaustão no braço; e com isso, em troca, espontânea e independemente de
qualquer intervenção por parte do médico, a paralisia foi sugerida - se é que
aqui ainda se pode aplicar tal expressão. Em outras palavras, trata-se, nesses
casos, não tanto de sugestões, como de estimulação às auto-sugestões. E
estas, como qualquer pessoa pode verificar, encerram um fator objetivo,
independente da vontade do médico, e revelam uma conexão entre diferentes
estados de inervação ou excitação no sistema nervoso. São as auto-sugestões
dessa natureza que levam à produção de paralisias histéricas espontâneas, e é
uma tendência para tais auto-sugestões, mais do que a sugestionabilidade em
relação ao médico, que caracteriza a histeria. E aquela não parece de modo
algum ter semelhanças com esta.
Não necessito insistir no fato de que também
Bernheim trabalha, em grande medida, com sugestões indiretas dessa ordem - isto
é, com estimulações à auto-sugestão. Seu método de produzir o sono, conforme
descrito nas primeiras páginas deste livro, é essencialmente um método misto: a
sugestão abre vigorosamente as portas que de fato se estão abrindo lentamente
por auto-sugestão.
As sugestões indiretas, nas quais uma série de
elos intermediários, originários da própria atividade da pessoa, são inseridos
entre o estímulo externo e o resultado, são, não obstante, processos psíquicos;
contudo, não estão mais expostas à plena luz da consciência, que incide sobre
as sugestões diretas. Pois estamos muito mais habituados a voltar nossa atenção
para as percepções externas do que para os processos internos. As sugestões
indiretas ou as auto-sugestões, por conseguinte, podem ser igualmente descritas
como fenômenos fisiológicos ou psíquicos, e o termo “sugestão” tem o mesmo
significado que o recíproco despertar de estados psíquicos segundo as leis da
associação. O fechamento dos olhos leva ao sono porque está ligado ao conceito
de sono na medida em que é um de seus acompanhamentos mais regulares: um
componente das manifestações do sono sugere as demais manifestações, que
completam o fenômeno como um todo. Essa vinculação faz parte da natureza do
sistema nervoso e não advém de alguma ação arbitrária do médico; não pode
ocorrer a não ser que esteja baseada em modificações na excitabilidade das
regiões cerebrais relevantes, na inervação dos centros vasomotores etc. e
apresente igualmente um aspecto psicológico e um aspecto fisiológico. Tal como
acontece em qualquer interligação de estados do sistema nervoso, esta permite a
passagem [de excitação] numa direção diferente. A idéia de sono pode produzir
sensações de fadiga nos olhos e nos músculos e o correspondente estado nos
centros nervosos vasomotores; ou, por outro lado, o estado do aparelho muscular
ou um impacto sobre os nervos vasomotores podem despertar a pessoa que dorme, e
assim por diante. Tudo o que se pode dizer é que seria tão unilateral
considerar somente o aspecto psicológico do processo quanto atribuir toda a
responsabilidade dos fenômenos da hipnose à inervação vascular.
De que modo isso afeta a antítese entre os
fenômenos psíquicos e fisiológicos da hipnose? Havia nela um significado
enquanto, por sugestão, entendia-se uma influência psíquica diretamente
exercida pelo médico, que impunha à pessoa hipnotizada qualquer sintomatologia
que desejasse. Mas tal significado desaparece tão logo se percebe que mesmo a
sugestão só desencadeia determinados grupos de manifestações fundamentadas nas
peculiaridades funcionais do sistema nervoso hipnotizado, e que, na hipnose,
também se fazem presentes outras características do sistema nervoso, além da
sugestionabilidade. Poder-se-ia, ademais, questionar se todos os fenômenos da
hipnose têm de passar, em algum lugar, pela esfera psíquica; em outras
palavras - pois a questão não pode ter outro sentido -, se as mudanças de
excitabilidade que ocorrem na hipnose invariavelmente afetam apenas a região do
córtex cerebral. Formulando a questão sob essa outra forma, parece que
encontramos sua resposta. Não se justifica estabelecer um contraste como o que
aqui se estabeleceu entre o córtex cerebral e o resto do sistema nervoso; é
improvável que uma modificação funcional tão profunda no córtex do cérebro
possa ocorrer sem ser acompanhada por mudanças importantes na excitabilidade
das demais partes do cérebro. Não temos critério algum que nos possibilite
estabelecer uma distinção exata entre um processo psíquico e um processo
fisiológico, entre um ato que ocorre no córtex cerebral e um ato que ocorre na
substância subcortical; isso porque a “consciência”, o que quer que isto seja,
não está ligada a toda atividade do córtex cerebral, e não está sempre ligada
em igual grau a qualquer de suas atividades em particular; não é algo que
esteja em conexão com alguma região do sistema nervoso. Portanto, parece-me que
não pode ser aceita, nessa formulação genérica, a questão de saber se a hipnose
exibe fenômenospsíquicos ou fisiológicos; e parece-me que a decisão, no caso de
cada fenômeno em particular, deve ser tomada com base numa investigação
especial.
Nesse sentido, sinto-me justificado ao dizer
que, enquanto, de um lado, o trabalho de Bernheim vai além da área da hipnose,
de outro lado ele deixa de levar em conta uma parte do seu tema. Todavia, é de
esperar que também os leitores alemães de Bernheim venham agora a ter a
oportunidade de reconhecer quão esclarecedora e importante é a sua
contribuição, pelo fato de descrever o hipnotismo a partir do ponto de vista da
sugestão. VIENA, agosto de 1888
APÊNDICE: PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
ALEMÃ (1896)
A primeira edição alemã deste livro tinha um
prefácio do tradutor que hoje se tornou desnecessário reimprimir. A situação da
ciência que vigorava na época em que surgiu a tradução de Suggestion, de
Bernheim, sofreu modificações fundamentais na atualidade. Silenciou a dúvida a
respeito da realidade dos fenômenos hipnóticos; cessou o anátema que então,
inexoravelmente, recaía sobre todo neuropatologista que considerasse essa área
de fenômenos importante e merecedora de uma investigação séria. Não foi pequeno
o mérito deste livro, em si mesmo, ao defender, de modo extraordinariamente
convincente e vigoroso, a causa do hipnotismo científico.
Quando se tornou clara a necessidade de, uma
segunda vez, tornar acessível aos leitores de língua alemã essa obra
fundamental do médico de Nancy, o organizador e o editor, em concordância com o
autor, decidiram eliminar do livro capítulos que continham apenas casos
clínicos e relatos de tratamentos. Eles não puderam deixar de reconhecer que
não era precisamente nesses capítulos que estava a força da obra de Bernheim. Herr
Dr. Kahane teve então a gentileza de se encarregar, em lugar deste que
subscreve o presente prefácio, da tarefa de revisar a nova edição em francês.
No que se refere ao conteúdo do prefácio à
primeira edição, o tradutor gostaria apenas de repetir um comentário, ao qual
se mantém tão fiel hoje como naquela época. O que ele acha que falta nas
proposições de Bernheim é a opinião segundo a qual a “sugestão” (ou melhor, a
efetivação de uma sugestão) é um fenômeno psíquico patológico que requer
condições especiais prévias para que possa realizar-se. Não é necessário pôr em
xeque essa opinião confrontando-a com a freqüência e com facilidade do fenômeno
da sugestão, nem com o importante papel que ela desempenha na vida quotidiana.
No livro de Bernheim, a constatação dessas últimas circunstâncias enquanto
fatos ocupa tanto espaço que ele descura de examinar o problema psicológico de
quando e por que os métodos normais de influência psíquica entre os seres
humanos podem ser substituídos pela sugestão. E, enquanto explica mediante a
sugestão todos os fenômenos do hipnotismo, a própria sugestão permanece
inteiramente inexplicada e é obscurecida por uma demonstração de que não
necessita de explicação. Sem dúvida, essa lacuna foi observada por todos os
pesquisadores que seguiram Forel na busca de uma teoria psicológica da
sugestão.
DR. SIGM. FREUD
VIENA, junho de 1896
RESENHA DE HIPNOTISMO, DE AUGUST FOREL (1889)
RESENHA DE DER HIPNOTISMUS,
DE AUGUST FOREL
(a) EDIÇÃO ALEMÃ:
1889 Wiener med. Wochensch., 39 (28),
1097-1100 e (47), 1892-6 (13 de julho e 23 de novembro).
Parece que o original alemão jamais foi
reeditado; esta tradução (de James Strachey) é a primeira versão para a língua
inglesa.
O título completo do livro de Forel era Der
Hypnotismus, seine Bedeutung und seine Handhabung (O Hipnotismo, Sua
Significação e Seu Manejo). Seu autor (1848-1931), nessa época, era professor
de psiquiatria em Zurique e gozava de enorme reputação. Seus escritos
posteriores sobre temas sociológicos (e sobre a história natural das formigas)
foram muito lidos. Embora no final viesse a criticar acerbamente a psicanálise,
foi ele quem apresentou Freud a Bernheim. Freud visitou Nancy durante o verão
de 1889, entre a publicação das duas partes desta resenha. (Cf. a Introdução do
Editor Inglês, em [1])
RESENHA DE HIPNOTISMO, DE
AUGUST FOREL
I
Esta obra do conceituado psiquiatra de Zurique,
com apenas 88 páginas, é a ampliação de um artigo sobre a importância forense
do hipnotismo, publicado em 1889 na Zeidchrift für die gesamte
Strafrechtswissenschaft [Revista de Penalogia Geral], 9, 131. Sem dúvida,
ocupará um lugar de destaque, por muitos anos, na bibliografia alemã sobre
hipnotismo. Conciso, com a forma quase de um catecismo, expresso em linguagem
muito clara e decidida, cobre toda a área de fenômenos e problemas
compreendidos no título “teoria do hipnotismo”; de maneira feliz, estabelece
uma distinção entre fatos e teorias; nunca lhe falta a abordagem séria que se
exige de um médico empenhado em investigação minuciosa; e, no seu todo, evita o
tom pomposo que é tão despropositado numa discussão científica. Somente num
ponto a exposição de Forel torna-se entusiástica o bastante para declarar que
“a descoberta da importância psicológica da sugestão, levada a efeito por Braid
e Liébeault, é, segundo minha opinião, tão magnífica que pode ser comparada com
as maiores descobertas, ou melhor, revelações do espírito humano”. Todo aquele
que achar esse comentário uma flagrante supervalorização da hipnose deve adiar
seu julgamento definitivo até que os próximos anos tenham deixado claro quantas
revoluções teóricas e práticas - que a hipnose promete desencadear - podem
realmente resultar dela. Ao mencionar os obscuros problemas limítrofes ao
hipnotismo (transmissão de pensamento etc.) com que se ocupa atualmente o
“espiritualismo”, Forel mostra uma reserva realmente científica. É impossível
compreender por que um autorizado cientista desta cidade, diante de um
auditório científico, qualificou o autor desta obra como “Forel, o sulista”, confrontando-o
com um adversário da hipnose supostamente “mais nortista”, como modelo de uma
forma mais comedida de pensar. Ainda que fosse menos deselegante procurar
abordar as opiniões sobre assuntos científicos, emitidas por cientistas ainda
vivos, tomando como base a nacionalidade ou o país de origem desses cientistas,
e mesmo que o Prof. Forel não tivesse tido a sorte de nascer e ser educado na
latitude de quarenta e seis graus Norte, não haveriajustificativa para
concluir, do presente trabalho, que seu autor tem o costume de deixar que suas
emoções lhe tirem a lógica.
Pelo contrário, este breve estudo é o trabalho
de um médico sério, que veio a conhecer o valor e a importância da hipnose a
partir de sua rica experiência própria e tem o direito de exclamar aos
“zombadores e incrédulos”: “Provem antes de julgar!” E temos de concordar com
ele quando diz: “A fim de formar um julgamento acerca do hipnotismo, é preciso
que se tenha praticado o hipnotismo por experiência própria”.
Realmente, há numerosos adversários da hipnose
que formaram seu julgamento de um modo mais apressado. Não puseram à prova o
novo método terapêutico e não o empregaram imparcial e cuidadosamente, como se
procederia, por exemplo, com uma droga recentemente recomendada; rejeitaram a
hipnose a priori, e agora a ausência de conhecimentos dos valiosos
efeitos terapêuticos desse método não os autoriza, seja qual for o seu
fundamento, a manifestar tão cáusticas e injustificadas expressões de antipatia
à hipnose. Exageram enormemente os perigos da hipnose, passam a destratá-la
sistematicamente e, diante da abundância de relatos de cura pela hipnose, que
já não podem ser relegadas ao descaso, reagem com esses pronunciamentos
oraculares: “As curas nada provam, elas mesmas exigem prova”. Tendo em conta a
violência de sua oposição, não é de admirar que acusem os médicos que
consideram seu dever usar a hipnose para beneficiar seus pacientes de terem
motivos insinceros e formas de pensar não-científicas - acusações que devem ser
excluídas de uma discussão científica, sejam elas apresentadas publicamente,
sejam veiculadas de modo mais ou menos disfarçado. Quando entre esses
adversários encontram-se homens como Hofrat Meynert, homens que, por
seus escritos, adquiriram grande autoridade, e quando essa autoridade, sem nem
sequer ser posta em dúvida, se estende, pelo consenso tanto dos médicos como do
público leigo, a todos os seus pronunciamentos, então sem dúvida é inevitável
que daí resulte algum dano para a causa do hipnotismo. Para a maioria das
pessoas, é difícil supor que um cientista que teve grande experiência em certas
áreas da neuropatologia e deu provas de grande agudeza de espírito não possa
qualificar-se para ser citado como autoridade em outros problemas; e o respeito
à grandeza, particularmente à grandeza intelectual, certamente está entre as
melhores características da natureza humana. Mas é necessário ter o devido
respeito pelos fatos. Não há por que recear dizer isso francamente, quando se
trata de colocar de lado a dependência que se tinha em relação a uma
autoridade, em favor da opinião própria, formada a partir do estudo dos fatos.
Todo aquele que, tal como o autor desta
resenha, alcançou um julgamento independente nos assuntos referentes à hipnose,
haverá de se consolar com a reflexão de que qualquer ofensa à reputação da
hipnose, feita dessa maneira, só pode ser uma ofensa limitada tanto no tempo
como no espaço. O movimento que procura introduzir o tratamento sugestivo no
estoque terapêutico da medicina já triunfou em outros países e, no final,
alcançará seu objetivo também na Alemanha (e em Viena). Todo médico que se
disponha a examinar os fatos com isenção será levado a tomar uma atitude menos
desfavorável quando verificar que as supostas vítimas da terapia hipnótica
sofrem menos, depois do tratamento, e podem executar suas funções melhor do que
o faziam antes - e é este o caso dos meus próprios pacientes, como posso
afirmar. Algumas experiências mostrarão a eles que toda uma série de censuras à
hipnose aplica-se não à hipnose, em particular, mas sim à nossa terapia em
geral, e pode, na verdade, ser mais justificadamente dirigida contra
determinados métodos que todos nós usamos na prática do que contra a hipnose.
Como médicos, descobrirão que é impossível não utilizar a hipnose e deixar que
seus pacientes sofram, quando podem aliviá-los mediante o uso inócuo da
influência psíquica. Serão obrigados a dizer a si mesmos que a hipnose não
perde nada de sua inocuidade nem de seu valor curativo quando a denominam
“loucura artificial” ou “histeria artificial”, do mesmo modo que a carne não
perde nem um pouco seu gosto nem seu valor nutritivo só porque a ira dos
vegetarianos a denuncia como “carniça”.
Esqueçamos por um momento que conhecemos, por
nossa experiência, os efeitos da hipnose; perguntemo-nos que efeitos
prejudiciais esperaríamos, a priori, resultassem dela. O tratamento
hipnótico, em primeiro lugar, consiste em induzir um estado hipnótico e, em
segundo, em veicular uma sugestão à pessoa hipnotizada. Qual desses dois atos
se supõe seja prejudicial? Promover a hipnose? Mas a hipnose, quando tem seu
mais pleno êxito, nada mais é do que o sono comum, coisa tão conhecida de todos
nós, embora, sob muitos aspectos, sem dúvida ainda não a compreendamos; e, por
outro lado, quando menos completamente desenvolvida, a hipnose corresponde às
diferentes fases do processo do adormecer. É verdade, que, no sono, perdemos
nosso equilíbrio psíquico, e a atividade de nosso cérebro durante o sono é uma
atividade desordenada que, em muitos aspectos, lembra a loucura; esta analogia,
contudo, também não impede que despertemos do sono com renovada força mental.
Se fôssemos seguir as opiniões de Meynert acercados efeitos prejudiciais da
redução da atividade cortical e da origem que ele atribui à euforia hipnótica,
nós, médicos, realmente teríamos toda a razão para manter as pessoas insones.
Até agora, porém, as pessoas ainda preferem dormir, e não temos por que recear
que os perigos da terapia hipnótica se situem no ato de hipnotizar. Comunicar
uma sugestão seria o fator prejudicial? Isto é impossível, pois é ato notório
que os ataques da oposição de modo algum são dirigidos contra a sugestão. Como
se sabe, o uso da sugestão tem sido uma coisa familiar aos médicos, desde
épocas imemoriais: “Todos nós estamos dando sugestões constantemente”, dizem
eles; e, realmente, um médico - mesmo que não pratique a hipnose - nunca se
sente mais satisfeito do que depois de haver recalcado um sintoma da atenção de
um paciente mediante o poder de sua personalidade e influência de suas palavras
- e de sua autoridade. Por que não deveria então o médico procurar exercer
sistematicamente a influência que sempre lhe parece tão desejável quando nela
tropeça inadvertidamente? Entretanto, talvez seja a sugestão, de qualquer modo,
o elemento passível de objeções: a repressão de uma personalidade livre pelo
médico, que ao mesmo tempo conserva um poder de direção sobre o cérebro
adormecido em sono artificial. É deveras interessante ver os mais ardorosos
deterministas defendendo, de repente, o periclitante “livre-arbítrio pessoal” e
constatar que os psiquiatras que estão habituados a sufocar a “atividade mental
de livre aspiração” de seus pacientes com grandes doses de brometos, morfina e
hidrato de cloral passem a acusar a influência da sugestão como coisa
degradante tanto para o paciente como para o médico. Será então realmente
possível esquecer que a repressão da independência de um paciente pela sugestão
da hipnose é sempre apenas uma repressão parcial; que ela visa aos sintomas de
uma doença; que (como foi mostrado uma centena de vezes) toda a educação social
dos seres humanos se baseia numa repressão de idéias e motivações impróprias e
na sua substituição por outras melhores; e que, diariamente, a vida produz em
todas as pessoas efeitos psíquicos que, ainda que as atinjam no seu estado de
vigília, nelas produzem modificações muito mais intensas do que aquelas
produzidas pela sugestão do médico que tenta eliminar uma idéia penosa ou
angustiante, usando a eficácia de uma contra-idéia? Não. Não há nada de
perigoso na terapia pela hipnose; apenas o seu mau uso é que pode ser perigoso;
e todo aquele que, na qualidade de médico, não confiar no escrúpulo ou retidão
de sua intenção de evitar esse mau uso, agirá acertadamente mantendo-se à
distância desse método terapêutico novo.
No que concerne à avaliação pessoal dos médicos
que têm a coragem de utilizar a hipnose como medida terapêutica antes que a
onda da moda a torne obrigatória, o autor desta resenha é de opinião de que é
conveniente ter certa tolerância para com a freqüente intolerância dos grandes
homens. Por isso, não lhe parece aconselhável, ou matéria digna de algum
interesse para um círculo mais amplo, investigar aqui as razões que levaram o Hofrat
Maynert a apresentá-lo [o resenhista], bem como a parte da história de sua
vida, aos leitores de seu artigo sobre as neuroses traumáticas.
O autor desta resenha julga mais importante
falar a favor da hipnose para aqueles que se habituaram a deixar que seu
julgamento sobre matérias científicas seja determinado por uma grande
autoridade, e que talvez a isto tenham sido levados por uma correta percepção
da inadequação do seu próprio discernimento. Propõe-se fazê-lo, confrontando
com a resistente autoridade de Meynert, outros cientistas que se mostraram mais
receptivos à hipnose. Lembra que, entre nós, foi o Prof. H. Obersteiner quem
primeiro deu impulso ao estudo científico da hipnose e que um psiquiatra e
neurologista tão conceituado como o Prof. Krafft-Ebing (recente aquisição de
nossa Universidade) pronunciou-se irrestritamente a favor da hipnose e a
utiliza em sua prática médica com os melhores resultados. Ver-se-á que esses
nomes satisfarão também àqueles que são desprovidos de opinião, que sua
confiança exige das autoridades científicas o preenchimento de determinadas
condições, tais como nacionalidade, raça e latitude geográfica, e cuja
confiança acaba nos postos de fronteira de sua terra natal.
Todos os outros que são receptivos à autoridade
científica, mesmo que proveniente de fora de sua terra natal, incluirão também
o Prof. Forel entre os homens cuja defesa da hipnose pode tranqüilizá-los
quanto à suposta ilegitimidade e desmerecimento desse método de tratamento. O
autor desta resenha, em particular, quando se defrontou com os ataques de
Meynert, sentiu que, apoiando a hipnose, estava em boa companhia. O Prof. Forel
é uma prova de que um homem pode ser um notável anatomista do cérebro e, não
obstante, enxergar na hipnose algo mais do que um absurdo. Também não pode
ser-lhe negada a qualificação de “um médico de rigorosa formação em fisiologia”
- que o Hofrat Meynert muito amavelmente atribuiu ao passado deste que
escreve esta resenha; e assim como o autor desta resenha retornou da iniqüidade
de Paris em estado corrompido, uma visita a Bernheim, em Nancy, constituiu para
o Prof. Forel o ponto de partida da nova atividade a que devemos este excelente
trabalho.
II
Nas partes iniciais deste livro, Forel procura,
na medida do possível, estabelecer uma distinção entre “fatos, teorias,
conceitos e terminologia”.
O fato principal do hipnotismo consiste na
possibilidade de colocar uma pessoa num estado especial da mente (ou, mais
precisamente, do cérebro), que se assemelha ao sono. Esse estado é conhecido
como hipnose. Um segundo conjunto de atos consiste na maneira como esse estado
é produzido (e encerrado). Isto parece ser possível de três modos: (1) pela
influência psíquica que uma pessoa exerce sobre outra (sugestão), (2) pela influência
(fisiológica) de determinados métodos (fixação), por ímãs, pela mão do
hipnotizador etc. e (3) pela auto-influência (auto-sugestão). No entanto,
apenas o primeiro desses métodos está estabelecido: a produção por idéias -
sugestão. Em nenhuma das outras formas de produzir a hipnose parece possível
excluir a ação da sugestão, de uma ou de outra forma.
Um terceiro grupo de fatos diz respeito à
conduta da pessoa hipnotizada. Quando a pessoa está sob hipnose, é possível
exercer, pela sugestão, os mais amplos efeitos sobre quase todas as funções do
sistema nervoso e, entre elas, sobre aquelas atividades cuja dependência com
relação aos processos que ocorrem no cérebro é geralmente estimada como
bastante reduzida. O fato de a influência do cérebro sobre as funções orgânicas
poder tornar-se mais intensa sob hipnose do que no estado de vigília certamente
se harmoniza pouco com as teorias dos fenômenos hipnóticos que procuram
considerá-los como “depressores da atividade cortical”, uma espécie de
imbecilidade experimental. Existem, contudo, muitas outras coisas, além dos
fenômenos hipnóticos, que não se harmonizam com essa teoria, a qual procura
compreender quase todos os fenômenos da atividade cerebral por meio do
contraste entre “cortical” e “subcortical” e parece chegar ao ponto de
localizar o princípio do “mal” nas partes subcorticais do cérebro.
Outros fatos inquestionáveis são a dependência
da atividade mental da pessoa hipnotizada em relação à do hipnotizador e a
produção daquilo que se conhece como efeitos “pós-hipnóticos’’ na pessoa
hipnotizada - isto é, a determinação de atos psíquicos que só são executados
muito tempo depois de cessada a hipnose. Por outro lado, há toda uma série de
afirmativas que relatam as mais interessantes atividades executadas pelo sistema
nervoso (clarividência, sugestão mental etc.), mas que, atualmente, não podem
ser arroladas como fatos; e embora um exame científico dessas afirmações não
deva ser recusado, deve-se ter em mente que um esclarecimento satisfatório das
mesmas envolve as maiores dificuldades.
Para explicar os fenômenos da hipnose foram
propostas três teorias fundamentalmente diferentes. A mais antiga destas, que
ainda denominamos teoria de Mesmer, supõe que, no ato de hipnotizar, um
material imponderável - um fluido - passa do hipnotizador para o organismo
hipnotizado. Mesmer chamava esse agente de “magnetismo”. Sua teoria tornou-se
tão estranha à nossa forma de pensamento científico contemporâneo que pode ser
considerada eliminada. Uma segunda teoria, somática, explica os fenômenos
hipnóticos com base nos reflexos medulares; considera a hipnose um estado
fisiológico modificado do sistema nervoso, causado por estímulos externos
(impacto da mão, fixidez da atividade sensorial, adução de ímãs, aplicação de
metais etc.). Afirma que os estímulos desse tipo só têm efeito “hipnogênico”
quando há uma disposição peculiar do sistema nervoso e, portanto, só os
neuropatas (especialmente os histéricos) são hipnotizáveis. Despreza a
influência das idéias na hipnose e descreve uma série típica de modificações
puramente somáticas que podem ser observadas durante o estudo hipnótico. Como
se sabe, é a grande autoridade de Charcot que apóia essa concepção
exclusivamente somática da hipnose.
Forel, no entanto, posiciona-se inteiramente
segundo uma terceira teoria - a teoria da sugestão, criada por Liébeault e seus
discípulos (Bernheim, Beaunis, Liégeois). Segundo essa teoria, todos os
fenômenos da hipnose constituem efeitos psíquicos, efeitos de idéias que,
intencionalmente ou não, são provocadas na pessoa hipnotizada. O estado de
hipnose, como tal, é produzido não por estímulos externos, mas por uma
sugestão; não é exclusivo dos neuropatas e pode ser conseguido, sem muita
dificuldade, na grande maioria das pessoas sadias. Em resumo, “o conceito de
hipnotismo, tão mal definido até agora, deve equivaler ao conceito de
sugestão”. Deve ficar reservado à decisão de uma crítica mais aprofundada saber
se o conceito de sugestão realmente é menos mal definido que o conceito de
hipnotismo. Aqui é necessário apenas assinalar que um médico que deseja estudar
a hipnose e, a respeito dela, formar uma opinião, indubitavelmente deverá
adotar, em princípio, a teoria da sugestão. Pois será capaz de se convencer da
correção dos postulados da escola de Nancy, a qualquer tempo, com seus próprios
pacientes, ao passo que provavelmente terá poucas condições de confirmar por
sua própria observação os fenômenos descritos por Charcot como “grande
hipnotismo”, os quais parecem ocorrer somente em alguns portadores de grande
hystérie.
A segunda parte do livro trata da sugestão; com
admirável concisão e uma capacidade de descrição magistral e penetrante, cobre
toda a área dos fenômenos psíquicos que foram observados em pessoas sob
hipnose. A chave para a compreensão da hipnose é dada pela teoria do sono
normal (ou melhor, do adormecer normal), de Liébeault, segundo a qual a hipnose
se distingue somente pela inserção do relacionamento entre a pessoa hipnotizada
e a pessoa que a faz adormecer. Dessa teoria infere-se que toda pessoa é
hipnotizável e que, para não se promover a hipnose, é necessária a presença de
obstáculos especiais. Examina-se a natureza desses obstáculos (um desejo
demasiadamente intenso de ser hipnotizado, tanto quanto uma grande resistência
intencional, e assim por diante), discutem-se os graus de hipnose e se estuda a
relação entre o sono sugerido e os outros fenômenos da hipnose, quase sempre em
completo acordo com Bernheim, cuja obra categorizada sobre a sugestão parece
ter encontrado amplo círculo de leitores em sua tradução alemã. Os parágrafos
sobre os efeitos da sugestão sob hipnose são igualmente apresentados sob a
forma de excertos de Bernheim, mas são invariavelmente ilustrados com exemplos
provenientes da experiência do próprio autor. Forel apresenta-os com esta
frase: “Por meio da sugestão sob hipnose, é possível produzir, influenciar,
impedir (inibir, modificar, paralisar, ou estimular) todos os fenômenos
subjetivos conhecidos da mente humana e uma grande parte das funções
objetivamente conhecidas do sistema nervoso” - isto é, influenciar as funções
sensitivas e motoras do corpo, determinados reflexos e processos vasomotores (a
ponto mesmo de causar bolhas!) e, na esfera psíquica, influenciar sentimentos,
instintos, memória, atividade volitiva e assim por diante. Todo aquele que já
tenha acumulado algumas experiências pessoais com o hipnotismo há de se lembrar
da impressão que lhe causou o fato de, pela primeira vez, poder exercer sobre a
vida psíquica de uma outra pessoa aquilo que até então tinha sido uma
influência inimaginável, e de poder efetuar com uma mente humana uma
experiência que, de tal forma, normalmente só é possível executar no corpo de
um animal. É verdade que essa influência apenas raramente se efetua sem
resistência da parte da pessoa hipnotizada. Esta não é um simples autômato;
muitas vezes, empreende uma luta contra a sugestão, e por sua própria atividade
cria “auto-sugestões” - termo que, aliás, apenas parece enriquecer o
conceito de “sugestão”, mas que, estritamente falando, é uma ab-rogação do
mesmo.
São da maior importância as discussões que se
seguem, referentes aos fenômenos pós-hipnóticos - sugestões destinadas a
produzir seu efeito após um tempo-limite fixado - e a sugestão em estado de
vigília - grupo de fenômenos cujo estudo já trouxe as mais valiosas conclusões
acerca dos processos psíquicos normais dos seres humanos, embora sua
interpretação ainda esteja sujeita a alguma controvérsia. Se o trabalho de
Liébeault e seus discípulos não tivesse produzido nada além do conhecimento desses
fenômenos notáveis - embora, ao mesmo tempo, sejam fenômenos do dia-a-dia - e
do enriquecimento da psicologia por um novo método experimental, esse trabalho,
mesmo excetuando qualquer alcance prático, já teria assegurado um lugar de
destaque entre as descobertas científicas deste século. O pequeno livro de
Forel contém toda uma série de comentários e conselhos oportunos sobre a
aplicação prática do hipnotismo, os quais impõem a mais integral admiração do
autor. Só um médico que associa o mais completo domínio do seu difícil tema a
uma firme convicção da importância deste pode escrever dessa maneira. A técnica
do hipnotismo não é tão fácil, como se poderia supor pela conhecida crítica
feita no primeiro debate de Berlim: “Hipnotizar não é uma especialidade médica,
já que qualquer pastor de ovelhas adolescente a pratica”. É necessário estar
imbuído de entusiasmo, paciência, grande certeza e uma boa dose de estratagemas
e inspiração. Aquele que tenta hipnotizar segundo um padrão predeterminado, que
teme a desconfiança ou o escárnio da pessoa a ser hipnotizada, ou que já começa
com um estado de ânimo vacilante, conseguirá pouca coisa. A pessoa a ser
hipnotizada não deve ser nervosamente deixada em apuros; as pessoas muito
nervosas são as menos indicadas para realizar esse tipo de tratamento. Um
procedimento competente e firme elimina todas as supostas más conseqüências do
hipnotismo. Conforme apropriadamente se expressou o Dr. Bérillon, “On ne
s’improvise pas plus médecin hypnotiseur qu’on ne s’improvise oculiste.”
Pois bem, o que pode conseguir a hipnose? Forel
dá uma lista de doenças “que parecem ceder muito bem com a sugestão”, sem
pretender que essa lista seja completa. Deve-se acrescentar que a posição que
ocupam as “indicações”, no caso do tratamento hipnótico, difere um tanto do que
se passa em outros casos, como, por exemplo, no uso da digitalina. Praticamente
depende mais das características da pessoa do que da natureza de sua doença. Há
determinadas pessoas nas quais dificilmente um sintoma deixa de ceder à
sugestão, por mais firme que seja sua base orgânica - por exemplo, a vertigem,
na doença de Ménière, ou a tosse, na tuberculose; em outras pessoas é
impossível exercer qualquer influência, sequer sobre distúrbios de indubitável
origem psíquica. E não depende menos da habilidade do hipnotizador e das
condições nas quais ele é capaz de tratar seus pacientes. Eu mesmo tenho tido
não poucos resultados felizes com o tratamento hipnótico; mas não me arrisco a
empreender certas curas de um tipo que testemunhei junto a Liébeault e
Bernheim, em Nancy. Também sei que boa parte do sucesso é devida à “atmosfera
sugestiva” que circunda a clínica daqueles dois médicos, ao milieu e ao
estado de ânimo dos pacientes - coisas de que nem sempre consigo encontrar
sucedâneos em meus clientes experimentais.
Será possível modificar permanentemente uma
função nervosa por meio da sugestão? Ou será justificada a acusação de que a
sugestão só produz êxitos sintomáticos por um curto espaço de tempo? O próprio
Bernheim deu a essa acusação uma resposta irrefutável, nos últimos parágrafos
de seu livro. Assinala que a sugestão atua da mesma forma que qualquer outro
agente terapêutico que temos à nossa disposição; isto é, uma sugestão escolhe,
dentre um complexo de fenômenos patológicos, um ou outro sintoma importante
cuja remoção exercerá a influência mais favorável na evolução de todo o
processo. Pode-se acrescentar que a sugestão, além disso, satisfaz todos os
requisitos de um tratamento causal, em numerosos casos. É o que sucede, por
exemplo, nos distúrbios histéricos, que são resultado direto de uma idéia
patogênica ou sedimento de uma experiência desagregadora. - Quando essa idéia é
eliminada ou essa lembrança é enfraquecida - que é o que a sugestão realiza -,
também o distúrbio geralmente é superado. É verdade que isso não significa que
a histeria esteja curada: em condições parecidas, ela provocará sintomas
parecidos. Mas será que a histeria é curada pelahidroterapia, pela
superalimentação ou pela valeriana? Acaso se espera que um médico possa curar
uma diátese nervosa quando persistem as circunstâncias que a sustentam? Segundo
Forel, pode-se conseguir êxito permanente, por meio da sugestão, nas seguintes
condições: (1) Quando a mudança efetuada tem dentro de si mesma a força
para se manter entre os elementos da dinâmica do sistema nervoso. Por exemplo,
suponhamos que uma criança, por meio da sugestão, interrompeu a enurese
noturna. Então o hábito normal pode conseguir estabelecer-se tão firmemente
como o hábito anterior, indesejável. Ou (2) quando essa força para a mudança é suprida
por um medicamento. Suponhamos, por exemplo, que alguém sofra de insônia,
fadiga e enxaqueca. Então a sugestão lhe assegura o sono e, assim, melhora seu
estado geral, e o retorno da enxaqueca é evitado permanentemente.
Mas o que é realmente a sugestão, que é a base
de todo o hipnotismo, no qual todos esses resultados são possíveis? Ao
levantarmos essa questão, apontamos um dos pontos fracos da teoria de Nancy.
Sem querer, lembramo-nos da questão do ponto de apoio de São Cristóvão, quando
verificamos que o trabalho exaustivo de Bernheim, que culmina com a afirmação
“Tout est dans la suggestion”, nem de longe procura abordar a natureza da
sugestão - isto é, a definição do conceito. Quando tive o privilégio de receber
ensinamentos pessoais do professor Bernheim sobre os problemas do hipnotismo,
pareceu-me verificar que ele denominava sugestão a toda influência
psíquica eficaz exercida por uma pessoa sobre outra, e que considerava como
“sugerir” todo esforço no sentido de exercer uma influência psíquica em
alguma outra pessoa. Forel procura estabelecer uma distinção mais clara. Uma
seção sobre “Sugestão e Consciência”, rica em idéias, intenta compreender a
atuação da sugestão com base em determinadas hipóteses fundamentais relativas
aos eventos psíquicos normais. Ainda que não sejamos solicitados a dar uma
declaração de que estamos completamente satisfeitos com esse debate, devemos ao
autor nossos agradecimentos por apontar a direção em que se pode procurar uma solução
para o problema, e por numerosas sugestões e contribuições nesse sentido. Não
pode haver dúvidas de que comentários como os que fez Forel nessa seção de seu
livro têm maior conexão com o problema da hipnose do que o contraste entre
“cortical esubcortical” e as especulações sobre dilatação e constrição dos
vasos sangüíneos do cérebro.
O livro termina com uma seção sobre a
importância forense da sugestão. Conforme sabemos, até o momento, os “crimes
sugeridos” são simplesmente uma possibilidade para a qual os juristas estão se
preparando, e que os romancistas podem prever como “não tão improváveis que não
possam acontecer algum dia”. De fato, em laboratório, não é difícil induzir um
bom sonâmbulo a cometer um crime imaginário. Mas, depois das perspicazes
críticas de Delboeuf aos experimentos de Liégeois, deve permanecer em aberto a
questão de até que ponto a consciência de se tratar apenas de uma experiência
facilita à pessoa a execução do crime.
DR. SIGM. FREUD
HIPNOSE (1891)
(a)
EDIÇÃO ALEMÃ:
1891 Em Therapeutisches
Lexikon, de Anton Bum, 724-732. (Viena: Urban & Schwarzenberg.) (1893,
2ª ed., 896-904; 1900, 3ª ed., 1, 1110-19.)
A segunda e a terceira edições não sofreram
modificações, exceto quanto a algumas correções mínimas, principalmente tipográficas.
A tradução de James Strachey é a primeira para o inglês.
Essa contribuição assinada para um dicionário
médico tinha passado inteiramente despercebida até ser descoberta, em 1963,
pelo Dr. Paul F. Cranefield, Ph.D., editor do Bulletin of the New York
Academy of Medicine. A ele cabem nossos agradecimentos por chamar-nos a
atenção para esse trabalho e por nos ter fornecido cópias fotostáticas. Parece
que nada se sabe acerca da feitura desse trabalho.
Seria um equívoco pensar que é muito fácil praticar
a hipnose com fins terapêuticos. Pelo contrário, a técnica de hipnotizar
é um método médico tão difícil como qualquer outro. Um médico que deseja
hipnotizar deve tê-lo aprendido com um mestre nessa arte e, mesmo depois disso,
deverá ter tido bastante experiência própria, a fim de obter êxitos em mais do
que alguns poucos casos. Depois, como hipnotizador experiente, haverá de
abordar o assunto com toda a seriedade e firmeza que nascem da consciência de
estar empreendendo algo útil e, a rigor, em algumas circunstâncias, necessário.
A rememoração de tantas outras curas realizadas pela hipnose conferirá à sua
conduta para com seus pacientes uma certeza que não deixará de despertar,
também nestes, a expectativa de mais um êxito terapêutico. Todo aquele que se
põe a hipnotizar com ceticismo, que talvez se afigure cômico a si mesmo nessa
situação e que revele, por sua expressão, sua voz e seus modos, não esperar
nada da experiência, não terá motivos para se surpreender com seus fracassos;
deveria, preferentemente, deixar esse método de tratamento para outros médicos
capazes de praticá-lo sem se sentirem feridos em sua dignidade médica, de vez
que se convenceram, pela experiência e pela leitura, da realidade e da
importância da influência hipnótica.
Devemos ter como regra não procurar impor ao
paciente o tratamento pela hipnose. Entre o público acha-se difundido o
preconceito (realmente reforçado por alguns médicos conceituados, conquanto
inexperientes nesse assunto) de que a hipnose é um procedimento perigoso. Se
tentássemos impor a hipnose a alguém que acreditasse nessa afirmação,
provavelmente viríamos a ser interrompidos, não mais do que uns poucos minutos
depois, por acontecimentos desagradáveis, que surgiriam da ansiedade do
paciente e de seu sentimento angustiante de estar sendo dominado, os quais,
porém, com bastante certeza, seriam considerados como resultado da hipnose.
Portanto, sempre que surge uma intensa resistência contra o uso da hipnose,
devemos renunciar ao método e esperar até que o paciente, sob a influência de
outras informações, aceite a idéia de ser hipnotizado. Por outro lado, não é
absolutamente desfavorável se um paciente declara que não teme a hipnose, mas
que não acredita nela ou não acredita que ela lhe possa ser útil. Num caso
desses, dizemos-lhe: “Não exigimos sua crença, mas, de início, apenas sua
atenção e sua cooperação”. E, em regra, nesse estado de espírito indiferente do
paciente, encontramos excelente apoio. Por outro lado, deve-se dizer que há
pessoas que são impedidas de serem hipnotizadas justamente por sua vontade e
insistência em serem hipnotizadas. Isto está em completa discordância com a
opinião popular segundo a qual a “fé” é um fator da hipnose; mas realmente são
estes os fatos. Em geral, podemos partir da presunção de que qualquer pessoa é
hipnotizável; porém, todo médico encontrará determinado número de pessoas que,
dentro das condições de suas experiências, não conseguirá hipnotizar e, muitas
vezes, será incapaz de dizer de onde se originou seu fracasso. Por vezes, um método
consegue obter algo que parecia impossível com um outro método, e o mesmo se
aplica aos diferentes médicos. Nunca podemos dizer antecipadamente se será
possível hipnotizar um paciente ou não; empreender a tentativa é a única
maneira de que dispomos para descobrir isso. Até os dias atuais, não se
conseguiu relacionar a acessibilidade à hipnose com qualquer outro atributo de
uma pessoa. O que se sabe de verdadeiro é que os portadores de doença mental e
os degenerados, na sua maior parte, não são hipnotizáveis, e os neurastênicos
somente o são com grande dificuldade. Não é verdade que os pacientes histéricos
não se adaptem à hipnose. Pelo contrário, são precisamente estes os pacientes
nos quais a hipnose se efetua como reação a medidas puramente fisiológicas e
com toda a aparência de um estado físico especial. É importante formar um
julgamento provisório da individualidade psíquica do paciente que desejamos
hipnotizar; mas, nesse ponto específico, não se podem estabelecer leis gerais.
Entretanto, é evidente que não há vantagem em começar um tratamento médico pela
hipnose; é melhor, antes de tudo, conquistar a confiança do paciente e deixar
que sua desconfiança e seu senso crítico se neutralizem. No entanto, todo
aquele que goza de uma grande reputação como médico ou como hipnotizador pode
agir sem essa preparação.
Contra que doenças podemos usar a hipnose? Nesse sentido, as indicações são mais
difíceis do que no caso de outros métodos de tratamento, pois a reação
individual à terapia hipnótica desempenha um papel quase tão grande como a
própria natureza da doença a ser combatida. Em geral, evitaremos aplicar o
tratamento hipnótico em sintomas que tenham origem orgânica; empregaremos esse
método apenas em casos de doenças nervosas puramente funcionais, em doenças de
origem psíquica, bem como em casos de dependência de tóxicos e outras
dependências. Ainda assim, convencer-nos-emos de que numerosos sintomas de
doenças orgânicas são acessíveis à hipnose e de que a modificação orgânica pode
existir sem distúrbio funcional dela decorrente. Devido à antipatia ao
tratamento hipnótico verificada no momento, raramente podemos empregar a
hipnose, exceto quando todos os outros tipos de tratamento foram tentados sem
êxito. Isto tem sua vantagem, pois assim ficamos conhecendo a verdadeira área
de ação da hipnose. Naturalmente, também podemos hipnotizar com vistas ao
diagnóstico diferencial: por exemplo, quando estamos em dúvida se determinados
sintomas se relacionam com a histeria ou com uma doença nervosa orgânica. Contudo,
essa prova só tem algum valor em casos nos quais o resultado é favorável.
Quando tivermos conseguido uma certa
familiaridade com o paciente e tivermos estabelecido o diagnóstico, surge a
questão de saber se iremos experimentar a hipnose num tête-à-tête, ou se
introduziremos uma terceira pessoa de confiança. Essa medida seria desejável
para proteger o paciente de um mau uso da hipnose, bem como proteger o médico
de alguma acusação de abuso do método. E ambas as coisas sabidamente já
ocorreram. Mas nem sempre se pode empregar essa medida. A presença de uma
amiga, ou do marido da paciente, e assim por diante, muitas vezes perturba
enormemente a paciente e por certo diminui a influência do médico. Ademais, o
assunto central das sugestões a serem feitas na hipnose nem sempre é apropriado
para se tornar do conhecimento de pessoas muito próximas da paciente. A
introdução de um segundo médico não teria essa desvantagem, mas aumenta em tal
grau a dificuldade de executar o tratamento que o torna impossível, na maioria
dos casos. Visto que compete ao médico, acima de tudo, prestar auxílio por meio
da hipnose, na maior parte dos casos ele terá de abrir mão da introdução de uma
terceira pessoa e enfrentar o risco já mencionado, junto com os demais riscos
inerentes ao exercício da profissão médica. A paciente, porém, deverá
precaver-se, não se deixando hipnotizar por um médico que não pareça merecer a
mais completa confiança.
Por outro lado, é da maior utilidade para a
paciente a ser hipnotizada que ela veja outras pessoas em estado de hipnose,
que saiba por imitação, como irá se conduzir e saiba, por outras pessoas, qual
a natureza das sensações que ocorrem durante o estado hipnótico. Em Nancy, na
clínica de Bernheim e no ambulatório de Liébeault, onde todo médico pode obter
esclarecimentos a respeito dos resultados de que é capaz a influência
hipnótica, nunca se efetua a hipnose num tête-à-tête. Todo paciente que,
pela primeira vez, toma contato com a hipnose observa, durante algum tempo,
como adormecem os pacientes há mais tempo em tratamento, como obedecem durante
a hipnose e como, depois de acordarem, admitem que seus sintomas desapareceram.
Isso o conduz a um estado de preparação psíquica que, tão logo chegue sua vez,
o faz entrar em profunda hipnose. Contra esse procedimento existe a objeção de
as doenças e males de cada indivíduo serem discutidos diante de grande número
de pessoas, o que não é adequado a pacientes de classe social mais elevada. Não
obstante, um médico que deseje tratar pela hipnose não deve renunciar a esse
poderoso fator auxiliar, e deve, na medida do possível, dispor as coisas de tal
modo que a pessoa a ser hipnotizada esteja presente, antes, a uma ou mais
experiências hipnóticas. Se não podemos contar com a possibilidade de o
paciente hipnotizar-se por imitação, logo que lhe damos o sinal, podemos
escolher entre diferentes métodos de induzir-lhe a hipnose, tendo todos
eles em comum o fato de que, por determinadas sensações físicas, lembrem o
adormecer. A melhor maneira de proceder é a que se segue. Colocamos o paciente
numa cadeira confortável, pedimos que se mantenha cuidadosamente atento e que
não fale mais, pois falar lhe impediria o adormecer. Remove-se-lhe qualquer
roupa apertada e pede-se a quaisquer outras pessoas presentes que se mantenham
numa parte da sala onde não possam ser vistas pelo paciente. Escurece-se a
sala, mantém-se o silêncio. Após esses preparativos, sentamo-nos em frente ao
paciente e pedimos-lhe que fixe os olhos em dois dedos da mão direita do médico
e, ao mesmo tempo, observe atentamente as sensações que passará a sentir.
Depois de curto espaço de tempo, um minuto, talvez, começamos a persuadir o
paciente a sentir as sensações do adormecer. Por exemplo: “Estou reparando que
as coisas estão indo rápido no seu caso: seu rosto assumiu um aspecto fixo, sua
respiração ficou mais profunda, você ficou muito tranqüilo, suas pálpebras
estão pesadas, seus olhos estão piscando, você não pode mais ver com muita
clareza, logo terá de engolir, depois vai fechar os olhos - e você está dormindo”.
Com essas palavras e outras semelhantes, já estamos propriamente no processo de
“sugerir”, que é como podemos chamar a esses comentários persuasivos durante a
hipnose. Mas estamos apenas sugerindo sensações e processos da motricidade, tal
como ocorrem espontaneamente na instalação do sono hipnótico. Podemos
convencer-nos disto se tivermos diante de nós uma pessoa que possa ser
submetida à hipnose somente por meio da fixação do olhar (método de Braid),
pessoa em que, por conseguinte, a fadiga dos olhos causa o estado de sono,
devido ao esforço da atenção e porque esta se desvia das outras impressões.
Primeiramente, a fisionomia do paciente assume um aspecto rígido, sua
respiração se aprofunda, seus olhos se umedecem e piscam freqüentemente,
ocorrem um ou mais movimentos de deglutição e, por fim, os globos oculares se
voltam para dentro e para cima,as pálpebras caem e a hipnose está presente. É
grande o número de pessoas nas quais o fenômeno se passa dessa maneira; se
observarmos que temos diante de nós uma pessoa nessas condições, será bom
mantermos silêncio e só ocasionalmente dar ajuda mediante uma sugestão.
Procedendo de modo diferente, só estaríamos perturbando o paciente que se está
hipnotizando, e se a sucessão de sugestões não corresponder à seqüência real de
suas sensações, provocaremos uma contradição. Contudo, geralmente é
aconselhável não esperar pelo desenvolvimento espontâneo da hipnose; convém
estimulá-la por sugestões. Estas, no entanto, devem ser dadas de modo resoluto
numa seqüência rápida. Não se deve deixar, por assim dizer, que o paciente caia
em si: ele não deve ter tempo para testar se é correto aquilo que lhe foi dito.
Para que seus olhos se fechem, não precisamos de mais do que dois a quatro
minutos aproximadamente; se não se fecharem espontaneamente, nós os fechamos
exercendo uma pressão sobre eles, sem demonstrar surpresa ou aborrecimento por
não ter ocorrido seu fechamento espontâneo. Se os olhos permanecerem cerrados,
é provável que tenhamos conseguido um determinado grau de influência hipnótica.
Este é o momento decisivo para tudo o que virá a seguir.
Pois acontece uma de duas possibilidades. A
primeira alternativa é o paciente, mantendo fixo o olhar e ouvindo as
sugestões, realmente ter sido posto em estado hipnótico; nesse caso, ele
permanece quieto depois de cerrar os olhos. Podemos então fazer a prova da
catalepsia, dar-lhe as sugestões requeridas para sua doença e, então,
despertá-lo. Depois de acordar, o paciente ou estará amnésico (esteve
“sonambúlico”, durante a hipnose), ou conservará completamente a sua memória e
relatará as sensações que teve durante a hipnose. Não é raro aparecer no seu
semblante um sorriso, depois de termos fechado seus olhos. O médico não deve
perturbar-se com isso; via de regra, significa apenas que a pessoa sob hipnose
ainda é capaz de ajuizar acerca de seu próprio estado e o acha estranho ou
cômico. A segunda alternativa, porém, é a de não se ter estabelecido a
influência, ou de ter havido apenas um grau muito leve da mesma, enquanto o
médico se conduziu como se tivesse diante de si uma hipnose completa.
Imaginemos o estado mental do paciente nessa situação. Ele prometeu, no início
dos preparativos, manter-se calmo, não falar mais e não dar nenhuma indicação
de confirmação ou negação; agora ele verifica que, com base em sua concordância
com isto, está-lhe sendo dito que está hipnotizado; ele se irrita com o fato,
sente-se mal por não lhe ser permitido expressar sua irritação; sem dúvida,
também está receoso de que o médico de imediato comece a fazer sugestões, na
crença de que ele, paciente, está hipnotizado, antes de estar. E nisso a
experiência mostra que, se não está realmente hipnotizado, não mantém o acordo
que fizemos com ele. O paciente abre os olhos e diz (geralmente ressentido):
“Não estou dormindo coisa nenhuma!” Um principiante, diante disso, pensaria que
a hipnose é um fracasso, mas alguém com experiência não haverá de perder sua
compostura. Responderá sem a menor irritação, ao mesmo tempo que novamente
fecha os olhos do paciente: “Mantenha-se tranqüilo. Você prometeu não falar.
Naturalmente, sei que você não está dormindo; e nem isso é necessário. Qual
teria sido o sentido de eu simplesmente fazer você adormecer? Você não
compreenderia quando eu lhe falasse. Você não está dormindo, mas está hipnotizado,
está sob minha influência; o que eu lhe digo agora causará uma impressão
especial em você e lhe será útil”. Depois dessa explicação, geralmente o
paciente se mantém calmo e lhe fazemos as sugestões; por ora, abstemos-nos de
procurar os sinais físicos da hipnose; contudo, depois que essa dita hipnose
tiver sido repetida diversas vezes, verificaremos que aparecem alguns dos
fenômenos somáticos que caracterizam a hipnose.
Em muitos casos desse tipo, no final ainda
continua duvidoso se o estado que provocamos merece o nome de “hipnose”. No
entanto, estaríamos cometendo um erro se procurássemos restringir a veiculação
de sugestões aos casos em que o paciente se torna sonambúlico ou entra em um
grau profundo de hipnose. Em casos assim, que, na realidade, só têm a aparência
de hipnose, podemos conseguir os mais surpreendentes resultados terapêuticos,
que, por outro lado, não são obtidos com a “sugestão de vigília”. Portanto,
também nesse caso, o que temos diante de nós é, ainda assim, certamente hipnose
- cujo único objetivo, afinal, é o efeito que nela se produz pela sugestão.
Entretanto, se, depois de tentativas repetidas (de três a seis), não houver
qualquer indício de êxito, nem qualquer sinal somático de hipnose, desistiremos
da experiência.
Bernheim e outros distinguiram diversos graus
de hipnose, mas sua enumeração tem pouco valor na prática. O que tem
importância decisiva é apenas se o paciente ficou sonambúlico ou não - isto é,
se o estado de consciência produzido na hipnose difere nitidamente do estado
habitual de modo significante para que a lembrança daquilo que ocorreu durante
a hipnose esteja ausente depois de ele acordar. Nesses casos, o médico pode
negar a realidade das dores que estão presentes, ou de qualquer outro sintoma,
com a maior decisão - o que, geralmente, ele é incapaz de fazer, se sabe que
alguns minutos mais tarde o paciente lhe dirá: “Quando o senhor disse que eu
não tinha mais dores, eu as tinha do mesmo jeito, e as tenho ainda agora”. Os
esforços do hipnotizador orientam-se no sentido de ele se poupar de
contradições dessa ordem, que só fazem abalar sua autoridade. Portanto, seria
da maior importância para o tratamento se possuíssemos um método que
possibilitasse colocar qualquer pessoa em estado de sonambulismo.
Infelizmente, não há tal método. A principal deficiência do tratamento pela
hipnose é que ele não pode ser dosado. O grau alcançável de hipnose não depende
do método do médico, mas da reação casual do paciente. É também muito difícil
aprofundar a hipnose em que um paciente entra, embora isso habitualmente
aconteça quando as sessões se repetem com freqüência.
Quando não ficamos satisfeitos com a hipnose
obtida, procuramos lançar mão de outros métodos quando o tratamento prossegue.
Estes, muitas vezes, atuam mais energicamente ou continuam atuando depois de se
haver enfraquecido a influência do método inicialmente adotado. Aqui estão
alguns desses métodos: aplicar pequenos golpes no rosto e no corpo do paciente,
com ambas as mãos, continuamente, durante cinco a dez minutos (isto tem um
efeito surpreendentemente relaxante e tranqüilizador); usar a sugestão
acompanhada da passagem da corrente galvânica fraca, que produz uma perceptível
sensação de sabor (o anódio colocado numa faixa larga sobre a testa e o catódio
numa faixa ao redor do pulso) - aqui a impressão de estar atado e a sensação
galvânica contribuem em muito para a hipnose. Podemos improvisar métodos
parecidos a nosso critério; basta que mantenhamos o objetivo de desenvolver,
por uma associação de pensamento, o estado do adormecer e de fixar a atenção
por meio de uma sensação persistente.
O verdadeiro valor terapêutico da hipnose está
nas sugestões feitas durante a mesma. Essas sugestões consistem numa
enérgica negação dos males de que o paciente se queixou, ou num asseguramento
de que ele pode fazer algo, ou numa ordem para que o execute. Um resultado
muito mais marcante do que o produzido por simples asseguramento ou negação
será obtido se vincularmos a esperada cura a uma ação ou intervenção [nossa]
durante a hipnose. Por exemplo: “Você não tem mais dores neste lugar; eu aperto
aqui e a dor desaparece”. Aplicar pequenas pancadas e pressão na parte afetada
do corpo, durante a hipnose, em geral proporciona excelente apoio à sugestão
falada. E não devemos deixar de esclarecer o paciente sob hipnose acerca da
natureza de sua afecção, mostrar-lhe as razões do término do seu problema, e
assim por diante; pois o que temos diante de nós, via deregra, não é um
autômato psíquico, mas um ser dotado do poder de crítica e da capacidade de
julgamento, sobre o qual simplesmente estamos em condição de exercer maior
impressão agora do que quando ele se encontra em estado de vigília. Quando a
hipnose é incompleta, devemos evitar permitir que o paciente fale. Uma
expressão motora dessa espécie faz dissipar a sensação de entorpecimento que
corrobora sua hipnose, e o faz acordar. Pode-se, sem receio, permitir às
pessoas sonambúlicas que falem, andem e ajam, e obtemos uma influência psíquica
de máximo alcance sobre elas perguntando-lhes, quando estão sob hipnose, a
respeito dos seus sintomas e da origem deles.
Mediante a sugestão, fazemos surgir ou um
efeito imediato - especialmente ao tratar paralisias, contraturas etc. -, ou um
efeito pós-hipnótico - ou seja, um efeito cujo aparecimento estipulamos para um
determinado tempo após o despertar. No caso de sintomas muito rebeldes, é muito
vantajoso intercalar um período de espera como este (digamos, até mesmo uma
noite inteira) entre a sugestão e a sua execução. A observação dos pacientes
mostra que, em regra geral, as impressões psíquicas necessitam de certo tempo,
de um período de incubação, a fim de efetuarem uma modificação física. (Cf.
“Neurose traumática”). Cada uma das sugestões deve ser feita com a maior
decisão, pois qualquer indício de dúvida é percebido pelo paciente, que o
explora desfavoravelmente; não deve ser permitida uma contradição sequer e, se
formos capazes, insistiremos em nosso poder de produzir catalepsia,
contraturas, anestesia, e assim por diante.
A duração de uma hipnose deve ser
planejada de acordo com a necessidade prática; a manutenção da hipnose por
tempo relativamente longo - até algumas horas - certamente não é desfavorável
para o êxito. O despertar é executado mediante algum comentário mais ou menos
assim: “Isto é suficiente por ora!” Não devemos deixar de assegurar ao
paciente, na primeira sessão de hipnose, que ele vai acordar sem dor de cabeça,
sentindo-se satisfeito, bem-disposto. Apesar disso, pode-se observar que, após
uma ligeira hipnose, muitas pessoas despertam com sensação de pressão na cabeça
e fadiga, no caso de a duração da hipnose ter sido demasiado curta. É como se
não tivessem terminado seu sono.
A profundidade de uma hipnose não está
invariavelmente em proporção direta com seu sucesso. Podemos produzir as
maiores modificações nashipnoses mais leves e, ao contrário, podemos fracassar
num caso que atinja o estado de sonambulismo. Quando o resultado desejado não é
conseguido após algumas hipnoses, aparece uma outra dificuldade vinculada a
esse método de tratamento. Enquanto paciente algum se arrisca a mostrar-se
impaciente, caso ainda não tenha sido curado depois da vigésima sessão de
aplicação de eletricidade, ou depois de igual número de garrafas de água
mineral, no tratamento hipnótico tanto o médico como o paciente se cansam muito
mais depressa, em conseqüência do contraste entre o matiz deliberadamente
otimista das sugestões e a melancólica verdade dos efeitos. Também aqui, os
pacientes inteligentes podem tornar mais fácil o trabalho do médico, na medida em
que percebem que, ao fazer as sugestões, o médico está, por assim dizer,
desempenhando um papel, e que, quanto mais energicamente ele atacar a doença
dos pacientes, mais benefícios, segundo se espera, estes obterão. Em todo
tratamento hipnótico prolongado deve-se evitar cuidadosamente um procedimento
monótono. O médico deve estar constantemente à procura de um novo ponto de
partida para suas sugestões, de uma renovada prova de seu poder, de uma nova
modificação no seu método de hipnotizar. Pois também para ele, que tem, quem
sabe, dúvidas íntimas a respeito do êxito, este representa um grande e até
exaustivo esforço.
Não há dúvida de que a área coberta pelo
tratamento hipnótico é muito mais extensa do que a de outros métodos de
tratamento de doenças nervosas. E não há nenhuma justificativa para a acusação
de que a hipnose só é capaz de influenciar sintomas, e apenas por breve período
de tempo. Se o tratamento hipnótico é dirigido somente contra os sintomas, e
não contra os processos patológicos, está seguindo justamente o mesmo caminho
que todos os demais métodos de tratamento são obrigados a trilhar.
Quando a hipnose tem êxito, a estabilidade da
cura depende dos mesmos fatores que a estabilidade de todas as curas
conseguidas por outro métodos. Caso a hipnose se tenha defrontado com fenômenos
residuais de um processo já concluído, a cura será permanente; se as causas que
produziram os sintomas ainda estiverem em atividade e com sua força não
diminuída, é provável que haja uma recaída. O emprego da hipnose nunca exclui o
emprego de qualquer outro tratamento, dietético, mecânico ou de algum outro
tipo. Em numerosos casos - ou seja, naqueles em que os sintomas são de origem
psíquica - a hipnose preenche todos os requisitos que se podem exigir de um tratamento
causal; nessas circunstâncias, fazer perguntas einfundir calma ao paciente em
hipnose profunda geralmente proporciona o mais brilhante êxito.
Tudo que se tem dito e escrito a respeito dos
grandes perigos da hipnose pertence ao reino da fantasia. Se colocarmos
de lado o mau uso da hipnose com fins ilegítimos - possibilidade esta que
existe em todos os outros métodos terapêuticos eficazes -, o problema principal
que teremos de considerar é a tendência de as pessoas com neurose grave, depois
de se repetir a hipnose, entrarem em hipnose espontaneamente. Cabe à capacidade
do médico proibir essa hipnose espontânea, que parece ocorrer somente em
pessoas muito impressionáveis. As pessoas cuja impressionabilidade vai ao ponto
de poderem ser hipnotizadas contra sua vontade também podem ser protegidas, de
modo bastante completo, pela sugestão de que apenas seu médico será capaz de
hipnotizá-las.
FREUD
UM CASO DE CURA PELO HIPNOTISMO (1892-93)
EIN FALL VON
HYPNOTISCHER HEILUNG NEBST BEMERKUNGEN ÜBER DIE ENTSTEHUNG HYSTERISCHER
SYMPTOME DURCH DEN “GEGENWILLEN”
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1892-93 Zeitschr.
Hypnot., 1 (3), 102-7, (4), 123-9. (dezembro de 1892 e janeiro de 1893).
1925 G. S., 1, 258-72.
1952 G. W., 1, 3-17.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
“A Case of Successful
Treatment by Hypnotism”
1950 C. P., 5, 33-46. (Trad. de James
Strachey.)
A presente tradução inglesa constitui uma
versão ligeiramente corrigida da que foi publicada em 1950.
Este artigo veio à luz quase exatamente na
mesma época da “Comunicação Preliminar” de Breuer e Freud (1893a). Algumas das
idéias nele encontradas (por exemplo, a da “contra vontade”) aparecem na obra
posterior de Freud, constituindo o artigo como que uma ligação entre seus
escritos sobre hipnotismo e aqueles que abordam a histeria, pela qual ele
passava a se interessar. A opinião de que “um momento de disposição para a
histeria” - neste caso, a fadiga física - proporciona a ocasião para a contra
vontade afirmar-se sugere a influência de Breuer e do “estado hipnóide”. (Ver
em [1].)
UM CASO DE CURA PELO HIPNOTISMO COM
ALGUNS COMENTÁRIOS SOBRE A ORIGEM DOS SINTOMAS HISTÉRICOS ATRAVÉS DA
CONTRAVONTADE
Nas páginas que se seguem, proponho-me trazer a
público um caso isolado de cura pela sugestão hipnótica, pois, devido a uma
série de circunstâncias concomitantes, esse caso foi mais convincente e mais
claro do que a maioria dos nossos tratamentos nos quais houve êxito.
Já havia vários anos que eu conhecia a senhora
a quem pude, desse modo, proporcionar atendimento numa fase importante de sua
existência, e ela permaneceu sob minha observação, posteriormente, por vários
anos. O distúrbio do qual foi aliviada pela sugestão hipnótica tinha surgido,
pela primeira vez, algum tempo antes. E havia em vão lutado contra ele e, devido
a tal problema, tinha sido forçada a uma limitação da qual depois, com minha
ajuda, se viu livre. Um ano mais tarde, o mesmo distúrbio apareceu mais uma
vez, e novamente foi superado da mesma forma. O êxito terapêutico foi valioso
para a paciente e persistiu enquanto ela desejou levar a cabo a função afetada
pelo distúrbio. Por fim, nesse caso, foi possível individualizar o mecanismo
psíquico básico do distúrbio e correlacioná-lo com atos semelhantes na área da
neuropatologia.
Posso agora deixar de falar por enigmas.
Tratava-se de uma mãe que era incapaz de amamentar seu bebê recém-nascido, até
haver a intervenção da sugestão hipnótica. Suas experiências com um filho
anterior e com um outro, subseqüente, serviram de controle do êxito
terapêutico, tal como raramente se consegue lograr.
A pessoa de que trata esse caso clínico é uma
jovem senhora, entre vinte e trinta anos de idade, a quem eu conhecia desde os
seus anos de infância. Sua capacidade, tranqüilo bom senso e espontaneidade
tornavam impossível que alguém, inclusive seu médico de família, a considerasse
neurótica. Tendo em conta as circunstâncias que passo a relatar, devo
classificá-la, segundo a apropriada expressão de Charcot, como uma histérique
d’occasion. Essa categoria, como sabemos, não exclui uma admirável
combinação de qualidades e de uma saúde nervosa isenta de comprometimentos em
outros aspectos. Quanto a sua família, conheço sua mãe, que de modo algum é uma
pessoa neurótica, e uma irmã mais nova, igualmente sadia. Um irmão sofreu de
uma neurastenia típica do início da idade adulta, o que arruinou sua carreira.
Estou familiarizado com a etiologia e a evolução dessa forma de doença, que
encontro repetidamente, todos os anos, no meu exercício da medicina. Tendo
começado a vida com uma boa constituição, o paciente se defronta, na puberdade,
com as dificuldades sexuais próprias da idade; seguem-se anos de sobrecarga de
trabalho, como estudante; ele se prepara para exames e sofre um ataque de
gonorréia, seguido de um súbito início de dispepsia, acompanhada de uma
constipação rebelde e inexplicável. Depois de alguns meses, a constipação é
substituída por sensação de pressão intracraniana, depressão e incapacidade
para o trabalho. Daí em diante o paciente torna-se cada vez mais ensimesmado e
seu caráter vai ficando sempre mais fechado, até ele se tornar um tormento para
a família. Não tenho certeza se não é possível adquirir essa forma de
neurastenia com todos os seus elementos; portanto, sobretudo porque não conheço
os demais parentes da minha paciente, deixo em aberto a questão de podermos
supor que, nessa família, estaria presente uma disposição hereditária para a
neurose.
Ao chegar a época do nascimento do primeiro
filho de seu casamento (que era um casamento feliz), a paciente pretendia
amamentar o bebê. O parto não foi mais difícil do que o habitual numa primípara
já não tão jovem; foi concluído por fórceps. Entretanto, embora sua
constituição física parecesse favorável, ela não conseguia amamentar
satisfatoriamente a criança. Havia pouca produção de leite, surgiam dores
quando o bebê era posto a mamar, a mãe perdeu o apetite e se mostrava
alarmantemente sem vontade de se alimentar, tendo noites agitadas e insones.
Por fim, após uns quinze dias, a fim de evitar algum risco maior para a mãe e a
criança diante do fracasso, abandonou-se a tentativa e a criança passou a ser
alimentada por uma ama-de-leite. Com isso, todos os problemas da mãe
desapareceram. Devo acrescentar que não tenho condições de fazer um relato, nem
como médico nem como testemunha ocular, dessa primeira tentativa de
amamentação.
Três anos mais tarde, nasceu o segundo bebê;
nessa ocasião, circunstâncias externas somaram-se ao fato de ser desejável
evitar a ama-de-leite. Mas os esforços da própria mãe para amamentar a criança
pareciam ainda menos bem-sucedidos e pareciam provocar sintomas ainda mais
desagradáveis do que da primeira vez. A paciente vomitava todo o alimento
ingerido, ficava inquieta quando ele era trazido até sua cama e era
completamente incapaz de dormir. Ficou tão deprimida com sua incapacidade que
seus dois médicos de família - médicos amplamente conceituados em Viena, como o
Dr. Breuere o Dr. Lott - não queriam nem ouvir em prosseguir com alguma outra
tentativa mais prolongada nessa ocasião. Recomendaram apenas que se fizesse
mais um esforço - com o auxílio da sugestão hipnótica; e, no entardecer do
quarto dia, fizeram com que eu fosse apresentado profissionalmente, de vez que
pessoalmente eu já era conhecido da paciente.
Encontrei-a deitada no leito, as faces
ruborizadas, irritada com sua incapacidade de amamentar o bebê - incapacidade
que aumentava a cada tentativa, mas contra a qual ela lutava com todas as suas
forças. A fim de evitar os vômitos, não tinha ingerido nenhum alimento durante
todo aquele dia. Seu epigástrio estava distendido e apresentava-se sensível à
pressão; a palpação revelou motilidade anormal do estômago; de tempos em
tempos, havia eructação inodora, e a paciente se queixou de ter tido mau gosto
constante na boca. A área de ressonância gástrica estava consideravelmente
aumentada. Longe de ser bem recebido como um salvador em hora de necessidade,
vi-me sendo recebido de má vontade e não pude contar com muita confiança por
parte da paciente.
Logo tratei de induzir a hipnose por meio de
fixação do olhar, ao mesmo tempo que fazia constantes sugestões referentes aos
sintomas do sono. Três minutos depois, a paciente estava deitada, com a
fisionomia tranqüila de alguém que dorme profundamente. Não me recordo de ter
feito quaisquer testes de catalepsia e outros sintomas de flexibilidade.
Utilizei a sugestão para contestar todos os temores dela e os sentimentos em
que esses temores se baseavam: “Não tenha receio! Você vai poder cuidar muito
bem do seu bebê, ele vai crescer forte. O seu estômago está perfeitamente
calmo, o seu apetite está excelente, você já está na expectativa da próxima
refeição etc.” A paciente continuou dormindo, o que permiti por alguns minutos,
e, depois que a despertei, ela revelou amnésia para o que ocorrera. Antes de
sair de casa, vi-me na necessidade de contestar um comentário preocupado do
marido da paciente; achava ele que os nervos de uma mulher poderiam ser
totalmente arruinados pela hipnose.
No começo da noite seguinte, foi-me dito algo
que me pareceu uma garantia de êxito, mas que, muito estranhamente, não tinha
causado nenhuma impressão na paciente nem nas pessoas da família. Na noite
anterior, ela havia feito uma refeição, sem qualquer conseqüência prejudicial,
dormindo placidamente, e, na manhã seguinte, por sua própria iniciativa,
tinha-se alimentado e amamentado a criança impecavelmente. No entanto, não
suportou a refeição bastante farta do almoço. Nem bem a comida lhe foi trazida
e logo sua indisposição voltou; os vômitos começaram antes mesmo de ela tocar
no alimento. Foi impossível colocar o bebê ao seio e todos os sinais objetivos
eram os mesmos de quando eu chegara, na noitinha anterior. Não consegui nenhum
resultado com minha argumentação de que a batalha já estava quase ganha, de que
agora ela estaria convencida de que o problema podia desaparecer e que de
fato havia desaparecido durante meio dia. Produzi então a segunda hipnose,
que a levou ao estado de sonambulismo, tão rapidamente como da primeira vez, e
agi com maior energia e confiança. Disse à paciente que, cinco minutos depois
de minha saída, ela iria zangar-se com sua família e dizer com aspereza: o que
tinha acontecido com o jantar dela? será que pretendiam deixá-la passar fome?
como poderia ela amamentar a criança, se ela mesma não tinha nada para comer? e
assim por diante.
Na terceira tarde, quando retornei, a paciente
recusou-se a prosseguir qualquer tratamento. Já não havia mais nenhum problema,
disse ela: tinha um excelente apetite e muito leite para o bebê, não havia a
menor dificuldade quando este era posto a mamar etc. Seu marido achou muito
estranho que, depois de minha saída, na véspera, ela tivesse reclamado
violentamente, exigindo comida, e tivesse censurado a mãe de um modo que não
lhe era habitual. Todavia, acrescentou ele, tudo tinha estado muito bem desde
então.
Não havia nada mais a ser feito por mim. A mãe
amamentou a criança por oito meses; e com satisfação tive repetidas
oportunidades de me inteirar de que ambos passavam bem. No entanto, eu achava
difícil compreender, ao mesmo tempo que isto me aborrecia, o fato de jamais ter
sido feita qualquer referência ao meu notável trabalho.
Um ano mais tarde, chegou a minha vez, quando o
terceiro filho fez as mesmas exigências à mãe e esta foi incapaz de
corresponder a elas, tal como nas ocasiões anteriores. Encontrei a paciente no
mesmo estado do ano anterior, sentindo-se efetivamente exasperada consigo
mesma, pois sua vontade nada conseguia fazer contra sua aversão aos alimentos e
contra seus outros sintomas; e a primeira hipnose da tarde teve como único resultado
fazê-la sentir-se mais desesperada. Mais uma vez, após a segunda hipnose, os
sintomas foram eliminados tão completamente que não se fez necessária uma
terceira hipnose. Também essa criança, que agora tem dezoito meses de idade,
foi amamentada sem qualquer problema e a mãe tem gozado de boa saúde.
Em face desse êxito, a paciente e seu marido
perderam o constrangimento e confessaram o motivo que havia determinado sua
conduta em relação a mim. “Eu me sentia envergonhada”, disse-me a mulher, “porque
uma coisa como a hipnose podia obter resultado, ao passo que eu, com toda a
minha força de vontade, não conseguia nada.” Não obstante, não penso que ela ou
o marido tenham superado a ojeriza à hipnose.
Passarei agora a considerar qual pode ter sido
o mecanismo psíquico do distúrbio de minha paciente, que foi, desse modo,
removido pela sugestão. Não tenho informações diretas sobre o assunto, como as
tenho referentes a alguns outros casos, que discutirei noutra ocasião; por isso
sou forçado a recorrer à alternativa de deduzir qual teria sido esse mecanismo.
Existem determinadas idéias que têm um afeto de
expectativa que lhes está vinculado. São de dois tipos: idéias de eu fazer isto
ou aquilo - o que denominamos intenções - e idéias de isto ou aquilo me
acontecer - são as expectativas propriamente ditas. O afeto vinculado a
tais idéias depende de dois fatores: primeiro, o grau de importância que o
resultado tem para mim; segundo, o grau de incerteza inerente à expectativa
desse resultado. A incerteza subjetiva, a contra-expectativa, é em si
representada por um conjunto de idéias ao qual darei o nome de “idéias
antitéticas aflitivas”. No caso de uma intenção, essas idéias antitéticas se
passam assim: “Não vou conseguir executar minha intenção, porque isto ou aquilo
é demasiado difícil para mim, e eu sou incapaz de fazê-lo; sei, também, que
algumas outras pessoas igualmente fracassaram em situação semelhante”. O outro
caso, o de uma expectativa, não precisa de comentário: a contra-expectativa
consiste em enumerar todas as coisas que talvez possam me acontecer, diferentes
da que eu desejo. Ainda seguindo essa linha de raciocínio, iríamos chegar até
as fobias, que desempenham tão grande papel na sintomatologia das
neuroses. Retornemos, todavia, à primeira categoria, às intenções. Como é que
uma pessoa, com vida ideativa sadia, lida com as idéias antitéticas que se
opõem a uma intenção? Com a poderosa autoconfiança da saúde, a pessoa as
reprime e inibe, na medida do possível, e as exclui de suas associações de
pensamentos. Isto muitas vezes sucede em tal medida que a existência de uma
idéia antitética contra uma intenção geralmente nem sequer se manifesta,
tornando-se uma probabilidade somente quando passamos a examinar as neuroses.
De outro lado, quando há uma neurose presente - e não me estou referindo
explicitamente apenas à histeria, mas ao status nervosus em geral -,
temos de supor a presença primária de uma tendência à depressão e à
diminuição da autoconfiança, tal como as encontramos muito desenvolvidas e
individualizadas na melancolia. Nas neuroses, pois, uma grande atenção é
dedicada [pelo paciente] às idéias antitéticas que se opõem às intenções,
talvez porque o tema de tais idéias se coadune com o estado de ânimo da
neurose, ou talvez porque as idéias antitéticas, que de outro modo estariam
ausentes, vicejem no terreno da neurose.
Quando essa intensificação das idéias
antitéticas se relaciona com expectativas, se o caso é de um simples status
nervosus, o feito se manifesta num quadro mental difusamente pessimista; se
o caso é de neurastenia, as idéias, associando-se às mais fortuitas sensações,
ocasionam as numerosas fobias encontradas nos neurastênicos. Quando a
intensificação se relaciona com intenções, ela origina as perturbações que
se agrupam sob a classificação de folie de doute, que tem como ponto
principal a descrença na capacidade pessoal. Justamente nesse ponto as duas
principais neuroses, neurastenia e histeria, comportam-se de modo diferente,
característico de cada uma delas. Na neurastenia, a idéia antitética,
patologicamente intensificada, combina-se com a idéia volitiva num único
ato da consciência; ela exerce uma subtração na idéia volitiva e causa a
fraqueza da vontade, que é tão marcante nos neurastênicos e de que eles mesmos
estão conscientes. Na histeria, o processo difere desse que acabamos de
descrever, em dois aspectos ou, possivelmente, apenas em um aspecto. [Em
primeiro lugar,] em consonância com a tendência à dissociação da consciência
na histeria, a idéia antitética aflitiva, que parece estar inibida, é afastada
da associação com a intenção e continua a existir como idéia desconectada,
muitas vezes inconscientemente para o próprio paciente. [Em segundo lugar,] é
extremamente característico da histeria que, quando chega o momento de se pôr
em execução a intenção, a idéia antitética inibida consegue atualizar-se
através da inervação do corpo, com a mesma facilidade com que o faz, em
circunstâncias normais, uma idéia volitiva. A idéia antitética se estabelece,
por assim dizer, como uma “contravontade”, ao passo que o paciente,
surpreso, apercebe-se de que tem uma vontade que é resoluta, porém impotente.
Talvez, conforme já disse, esses dois fatores, no fundo, sejam um só: pode ser
que a idéia antitética apenas seja capaz de se impor porque não a inibe a sua
combinação com a intenção, da forma como a intenção é inibida por ela. [1]
Se, no caso de que nos ocupamos, a mãe, que se
viu impedida por dificuldades neuróticas de amamentar seu filho, fosse
neurastênica, sua conduta teria sido diferente. Ela teria sentido um temor
consciente da tarefa que lhe competia, teria estado muito preocupada com os
vários acidentes e perigos possíveis e, depois de muito contemporizar com
ansiedades e dúvidas, teria, afinal, conseguido amamentar sem qualquer
dificuldade; ou então, se a idéia antitética se tivesse tornado dominante, a
paciente teria abandonado seu encargo, por sentir-se receosa do mesmo. Mas a
histérica se conduz de modo muito diverso. Pode não estar consciente do seu
receio, estar bastante decidida a levar a cabo sua intenção e passar a
executá-la sem hesitação. Aí, porém, comporta-se como se fosse sua vontade não
amamentar a criança em absoluto. Ademais, essa vontade desperta nela todos os
sintomas subjetivos que uma simuladora apresentaria como desculpa para não
amamentar seu filho; perda do apetite, aversão à comida, dores quando a criança
é posta a mamar. E, como a contravontade exerce sobre o corpo um controle maior
do que a simulação consciente, também produz no aparelho digestivo uma série de
sinais objetivos que a simulação seria incapaz de engendrar. Aqui, em contraste
com a fraqueza da vontade mostrada na neurastenia, temos uma perversão
da vontade; e, em contraste com a resignada irresolução mostrada no primeiro
caso, aqui encontramos surpresa e exasperação ante uma dissensão que é
incompreensível para a paciente.
Portanto, considero-me justificado ao
classificar minha paciente como uma hystérique d’occasion, de vez que
ela, em conseqüência de uma causa fortuita, era capaz de produzir um complexo
de sintomas com um mecanismo tão agudamente característico da histeria. Pode-se
presumir que, nesse caso, a causa fortuita era o estado de excitação da
paciente antes do primeiro parto ou sua exaustão após o mesmo. Um primeiro
parto, afinal, é o maior choque a que está sujeito o organismo feminino e, em
conseqüência dele, uma mulher geralmente produz alguns sintomas neuróticos, que
podem estar latentes em sua disposição.
Parece provável que o caso dessa paciente seja
um caso típico, e ele esclarece toda uma série de outros casos nos quais a
amamentação no seio, ou alguma função semelhante, é impedida por influências
neuróticas. Contudo, visto que, no caso por mim relatado, só entendi o
mecanismo psíquico por inferências, apresso-me a acrescentar a afirmação de
que, muitas vezes, consegui estabelecer diretamente a ação de um
mecanismo psíquico semelhante em sintomas histéricos, investigando o paciente
sob hipnose.
Aqui, desejo mencionar apenas um dentre os
exemplos mais expressivos. Há alguns anos, tratei uma paciente histérica que
demonstrava grande força de vontade nos aspectos de sua conduta não afetados
pela doença; contudo, nos que estavam assim afetados, ela mostrava bem
claramente o peso da carga que lhe impunham os numerosos e opressivos
impedimentos e incapacidades histéricos. Umas das características mais
evidentes era um ruído peculiar que, como um tique, intrometia-se em sua
conversa. Posso descrevê-lo melhor, dizendo que se tratava de um singular
estalo da língua, com súbita interrupção do fechamento convulsivo dos lábios.
Depois de observá-lo por algumas semanas, perguntei-lhe quando e como aquilo
tinha surgido pela primeira vez. “Não sei quando foi”, respondeu, “ah! faz
muito tempo.” Isso me levou a considerar que se tratava de um tique
verdadeiro, até que, um dia, me ocorreu fazer-lhe a mesma pergunta estando a
paciente em profunda hipnose. Essa paciente, sob hipnose, conseguia chegar (sem
haver qualquer necessidade de sugerir-lhe a idéia) ao acervo completo de suas recordações
- ou, como eu preferiria expressar-me, a toda a extensão de sua consciência,
que se encontrava limitada durante sua vida desperta. Ela respondeu
prontamente: “Foi quando minha filha mais nova esteve muito doente; ela havia
passado o dia inteiro tendo convulsões, mas, por fim, no final da tarde,
adormeceu. Eu estava sentada à beira da cama dela e pensei comigo mesma: ‘Agora
você tem de ficar absolutamente quieta, para não acordá-la.’ Foi então que o
estalo ocorreu pela primeira vez. Depois, desapareceu. Mas, um dia, passados
alguns anos, quando eu estava passando de carruagem por uma floresta perto de
-, sobreveio uma violenta tempestade, e um tronco de árvore junto ao caminho,
bem à nossa frente, foi atingido por um raio, de forma que o cocheiro teve de
sofrear os cavalos bruscamente, e eu pensei comigo: ‘Agora, haja o que houver,
você não deve gritar, senão os cavalos disparam’. E naquele momento o estalo
veio novamente e persistiu desde essa ocasião”. Pude verificar que o ruído que
ela fazia não era um tique verdadeiro, pois, a partir do momento em que
assim se desvendou sua origem, ele desapareceu e nunca mais retornou durante
todos os anos em que permaneci em contacto com a paciente. Esta, porém, foi a
primeira ocasião em que consegui observar a origem dos sintomas histéricos
mediante a atuação de uma idéia antitética aflitiva - isto é, mediante a
contravontade. A mãe, exausta com suas angústias e dúvidas acerca de suas
tarefas de cuidar da criança enferma, tomou a decisão de não deixar que sequer
um som saíssede seus lábios, com receio de perturbar o sono da filhinha, o qual
tinha custado tanto a vir. Mas, no seu estado de exaustão, mostrou-se mais
forte a concomitante idéia antitética de que ela, não obstante, pudesse
fazer um ruído; e essa idéia teve acesso à inervação da língua, que sua decisão
de manter-se em silêncio talvez pudesse ter-se esquecido de inibir, irrompeu no
fechamento dos lábios e produziu um ruído que daí em diante permaneceu fixado
por muitos anos, especialmente depois que se repetiu a mesma sucessão de fatos.
Existe uma objeção que temos de enfrentar antes
de podermos compreender inteiramente esse processo. Pode-se perguntar como
sucede a idéia antitética adquirir supremacia em conseqüência da
exaustão geral (que é o que constitui a disposição para o processo). Eu
responderia apresentando a teoria de que a exaustão é apenas parcial. O
que está exausto são os elementos do sistema nervoso que formam o fundamento
material das idéias associadas com a consciência primária; as idéias que estão
excluídas dessa cadeia associativa - isto é, da cadeia de associações do ego
normal -, as idéias inibidas e suprimidas, não estão exaustas e, por
conseguinte, predominam no momento da disposição para a histeria.
Todo aquele que esteja bem familiarizado com a
histeria há de observar que o mecanismo psíquico que acabei de descrever
oferece uma explicação não apenas das ocorrências histéricas isoladas, mas
também das partes principais da sintomatologia da histeria e, ainda, de uma de
suas características mais salientes. Se atentarmos cuidadosamente para o fato
de que são as idéias antitéticas aflitivas (inibida e rechaçadas pela
consciência normal) que se impõem num primeiro plano, no momento da disposição
para a histeria, e têm acesso à inervação somática, então teremos a solução
para compreender também a peculiaridade dos delírios dos ataques histéricos.
Não é mera coincidência que o delírio histérico das monjas durante as epidemias
da Idade Média tenha assumido a forma de blasfêmias violentas e linguagem
erótica desenfreada, ou (como observou Charcot no primeiro volume de suas Leçons
du Mardi) que sejam justamente os meninos de boa educação e bem-comportados
os que sofrem de ataques histéricos, nos quais dão livre vazão a todo tipo de
insubordinação, a todo tipo de má-criação e má conduta. São os grupos de idéias
recalcadas - laboriosamente recalcadas - que entram em ação nesses casos, pela
operação de uma espécie de contravontade, quando a pessoa cai vítima de
exaustão histérica. Talvez, na realidade, a conexão possa ser mais íntima, pois
o estado histérico é possivelmente produzido pela repressão laboriosa;
mas, no presente trabalho, não estou levando em consideração os aspectos
psicológicos de tal estado. Aqui me interessa simplesmente explicar por que -
supondo que haja um estado de disposição para a histeria - os sintomas assumem
a forma particular sob a qual os vemos.
Essa emergência de uma contravontade é
predominantemente responsável pela característica demoníaca tão freqüentemente
mostrada pela histeria - isto é, a característica de os pacientes serem
incapazes de fazer alguma coisa precisamente quando e onde mais ardentemente
desejam fazê-la; de fazerem justamente o oposto daquilo que lhes foi
solicitado; e de serem obrigados a cobrir de maus-tratos e suspeitas tudo o que
mais valorizam. A perversidade de caráter que os histéricos mostram, sua ânsia
de fazerem a coisa errada, de parecerem doentes quando mais necessitam estar
bem - as compulsões dessa ordem (como as conhece todo aquele que já teve
contacto com esses pacientes) muitas vezes podem comprometer os caracteres mais
irrepreensíveis, quando, durante algum período, esses pacientes se tornam
vítimas desamparadas de suas idéias antitéticas.
Parece destituído de significação querer saber
o que acontece às intenções inibidas em relação à vida ideativa normal.
Poderíamos ser tentados a responder que elas simplesmente não existem. O estudo
da histeria mostra que, não obstante, elas realmente existem, ou seja,
que é mantida a modificação física a elas correspondente e que elas são
armazenadas e levam a vida insuspeitada numa espécie de reino das sombras, até
emergirem como maus espíritos e assumirem o controle do corpo, que, geralmente,
está sob as ordens da predominante consciência do ego.
Já disse que esse mecanismo é extremamente
característico da histeria, mas devo acrescentar que não ocorre somente na
histeria. Encontra-se presente, de modo bastante notável, no tic convulsif,
uma neurose que, em matéria de sintomas, tem tanta semelhança com a histeria
que todo o seu quadro pode ocorrer como manifestação parcial da histeria. Tanto
é assim que Charcot, se não compreendi mal seus ensinamentos sobre esse
assunto, após manter separados a histeria e o tic convulsif por algum
tempo, conseguiu constatar apenas um aspecto diferencial entre os dois - o
tique histérico desaparece, mais cedo ou mais tarde, enquanto o tique
verdadeiro persiste. O quadro de tic convulsif grave, como sabemos, é
constituído de movimentos involuntários, freqüentemente (ou sempre, conforme
opinião de Charcot e Guinon) sob a forma de caretas ou gestos que, numa época,
tiveram um significado - de coprolalia, de ecolalia e de idéias obsessivas
pertencentes ao âmbito da folie de doute. Contudo, é surpreendente
verificar que Guinon, que nunca teve qualquer idéia de penetrar no mecanismo
psíquico desses sintomas, nos conta que alguns dos seus pacientes vieram a ter
os espasmos e caretas porque uma idéia antitética tinha entrado em ação. Esses
pacientes relataram que, em alguma ocasião, tinham visto um tique parecido ou
tinham visto um comediante fazer intencionalmente uma careta semelhante, e
tinham tido o receio de que pudessem ser obrigados a imitar esses movimentos
grotescos. Daí em diante, realmente, tinham começado a imitá-los. Sem dúvida,
apenas uma pequena proporção dos movimentos involuntários que ocorrem nos
tiques tem essa origem. Por outro lado, seria tentador atribuir a esse
mecanismo a origem da coprolalia, um termo usado para descrever a exclamação
involuntária, ou melhor, a exclamação a contragosto, dos piores palavrões, que
ocorre nos tiques. Assim, a coprolalia teria origem na percepção do paciente de
que ele não consegue impedir-se de produzir determinado som, geralmente um
“h’m’h’m”. Ele então recearia perder o controle também de outros sons,
especialmente o controle de palavras que um homem de boa educação evita usar, e
esse receio faria com que se efetuasse o que temia. Guinon não apresenta
nenhuma anamnese que confirme essa hipótese; eu próprio nunca tive a oportunidade
de interrogar um paciente que sofresse de coprolalia. Por outro lado, na obra
desse mesmo autor, encontrei um relato sobre um outro caso de tique em que a
palavra pronunciada involuntariamente não pertencia (e isso é muito
excepcional) ao vocabulário coprolálico. Tratava-se de um homem adulto que era
atormentado pela necessidade de exclamar “Maria”! Quando esse paciente estava
na idade escolar, tinha tido uma ligação sentimental com uma menina chamada
Maria; ficara totalmente absorto por ela, e esse acontecimento, pode-se supor,
o predispôs a uma neurose. Naquela época, ele começou a exclamar o nome de seu
ídolo no meio da aula, e o nome continuou com ele por boa parte de sua vida,
depois de ter esquecido seu caso amoroso. Penso que a explicação deve ser esta:
num momento de especial excitação, o seu esforço mais resoluto de manter em
segredo o nome inverteu-se na contravontade e, depois disso, o tique persistiu,
como sucedeu no cado de meu segundo paciente. Caso minha explicação desse
exemplo esteja correta, seria interessante atribuir ao mesmo mecanismo a
coprolalia propriamente dita, visto que as palavras obscenas constituem
segredos que todos nós conhecemos, mas cujo conhecimento sempre procuramos
ocultar. [1]
PREFÁCIO E NOTAS DE RODAPÉ À TRADUÇÃO DAS CONFERÊNCIAS
DAS TERÇAS-FEIRAS, DE CHARCOT (1892-94)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
PREFÁCIO E NOTAS DE RODAPÉ À TRADUÇÃO DAS LEÇONS
DU MARDI DE LA SALPÊTRIÈRE (1887-8) DE CHARCOT
(a) EDIÇÃO ALEMÃ:
1892-4 Em
J.-M. Charcot, Poliklinische Vorträge [Conferências de Ambulatório], 1,
Ano Acadêmico de 1887-1888, iii-vi, Leipzig e Viena, Deuticke.
Parece que esse prefácio e essas notas de
rodapé nunca foram reeditados; a tradução de James Strachey é a primeira para o
inglês. O livro em francês foi publicado, em Paris, em 1888.
A data de publicação da tradução de Freud
levanta algumas dúvidas referentes à cronologia. Seu prefácio é datado de
“Junho de 1892” e a página de rosto de alguns exemplares encadernados do livro
também leva a data “1892”; mas outros exemplares levam na página de rosto a
data “1894”. De fato, o livro foi publicado em fascículos no decorrer desses
anos. A uma carta que enviou a Fliess, datada de 28 de junho de 1892, Freud
juntou um fascículo (provavelmente o primeiro) com o seguinte comentário: “O
fascículo de Charcot que lhe estou enviando hoje é todo ele um sucesso; mas
estou aborrecido em virtude de diversos acentos errados e erros de ortografia
não corrigidos nas poucas palavras em francês. Desleixo!”
O método de edição em fascículos induz Freud a
algumas incoerências nas suas notas de rodapé. Por exemplo, nelas existem duas
referências ao artigo de Freud sobre a diferença entre paralisias orgânicas e
histéricas (1893c, incluído no presente volume, em [1]), uma antes (ver em [1])
e outra depois (em [1]) da publicação do artigo, a qual de fato se deu no final
de junho de 1893. De modo semelhante, existem duas referências provavelmente
antes (ver em [1]) e a outra depois (em [1]) da publicação da “Comunicação
Preliminar” (1893a), que ocorreu no início de janeiro de 1893. A primeira
dessas duas indicações da teoria da catarse talvez seja, na realidade, a sua
primeira publicação; infelizmente, porém, não dispomos de material para
estabelecer com exatidão a data do fascículo em questão.
O número de notas de rodapé que Freud
acrescentou à sua tradução é muito grande, e muitas delas são evidentes
críticas às opiniões de Charcot. Em A Psicopatologia da Vida Cotidiana
(1901b), Freud menciona a matéria um pouco em tom de desculpa: “Acrescentei
notas ao texto que traduzi, sem pedir a permissão do autor, e, alguns anos
depois, tive motivos para suspeitar de que o autor havia ficado insatisfeito
com minha ação arbitrária” (Edição Standard Brasileira, Vol. VI, [1],
IMAGO Editora, 1976). As notas de rodapé focalizam principalmente tópicos
puramente neurológicos, e aqui incluímos somente aquelas que denotam algum
interesse psicológico.
Observe-se por fim, que Charcot morreu (no
verão de 1893) antes que a publicação estivesse concluída.
As conferências de Charcot, que aqui se
encontram traduzidas para o alemão com a gentil permissão do autor, têm em
francês o título de Leçons du Mardi de la Salpêtrière. Esse título
deriva-se do dia da semana em que o professor titular, pessoalmente, diante do
seu auditório, examina pacientes do departamento de ambulatório. O primeiro
volume dessas Leçons surgiu em 1888, de modo muito modesto, como “Notas
de MM. Blin, Charcot Júnior e Colin”. No corrente ano (1892), foi revisado pelo
autor; e essa revisão é a base de nossa edição alemã.
A edição francesa foi apresentada por um
prefácio escrito pelo Dr. Babinski, no qual esse discípulo preferido de Charcot
insiste, com justificado orgulho, em como emanou do “Mestre” uma abundância
quase inexaurível de estímulos e ensinamentos, ainda muitos anos depois, e
insiste em quão imperfeitamente o estudo de seus escritos publicados substitui
o efeito que tinha o seu ensino oral. Ele acredita, pois, que se justifica o
plano de difundir junto ao público essas conferências improvisadas e, assim
ampliar incomensuravelmente o círculo de seus discípulos e ouvintes. E penso
que todo aquele que teve o privilégio de, ao menos por um curto período de
tempo, ver o grande pesquisador trabalhando e assimilar seus ensinamentos,
haverá de concordar inteiramente com o Dr. Babinski.
Essa conferências realmente encerram tanto
material novo que ninguém, nem mesmo os especialistas no assunto, as lerá sem
um considerável acréscimo em seus conhecimentos. E esse material novo se
reveste de uma forma tão estimulante e esplêndida que o livro está destinado,
como talvez nenhuma outra obra desde as Leçons de Trousseau, a servir
como manual para os estudantes e para todos os médicos que desejem manter seu
interesse pela neuropatologia.
O encanto peculiar dessas conferências reside
no fato de que, na sua maior parte, elas foram inteiramente improvisadas. O
professor não conhece o paciente que lhe é apresentado, ou o conhece apenas
superficialmente. É obrigado a conduzir-se diante de seu auditório tal como
habitualmente o faz somente em sua clínica particular, exceto quanto ao detalhe
de que pensa em voz alta e permite que os ouvintes participem do rumo de suas
conjecturas e investigações. Interroga o paciente, examina um sintoma e depois
outro, e dessa forma estabelece o diagnóstico do caso, delimitando-o ou
confirmando-o com outros exames. Observamos que ele comparou o caso que tem
diante de si com um acervo de quadros clínicos derivados de sua experiência e
arquivados na sua memória, e identificou os sinais visíveis do presente caso
com um desses quadros. De fato, também é assim que todos nós, à beira do leito
de um enfermo, chegamos a um diagnóstico, embora o ensino oficial da clínica,
muitas vezes, dê ao estudante uma idéia diferente. A isto se seguem os
comentários acerca do diagnóstico diferencial, e o conferencista se empenha em
tornar claros os fundamentos em que se baseou sua identificação: fundamentos
que, conforme sabemos, muitos médicos com habilidade para fazer diagnósticos
não sabem explicitar, embora seu juízo seja determinado por eles. A discussão
restante refere-se às peculiaridades clínicas do caso. O quadro clínico, a “entité
morbide”, permanece a base de todo o estudo; mas o quadro clínico é formado
por uma série de fenômenos, uma série que freqüentemente se ramifica em
numerosas direções. A identificação clínica do caso consiste em definir a sua
localização dentro da série de fenômenos. No centro da série está o “type”,
a forma extrema do quadro clínico, consciente e intencionalmente esquematizada;
ou, então, podem ser estabelecidos diversos desses tipos, que estão conectados
por formas de transição. Certamente é verdade que o type, a descrição
completa e característica do quadro clínico, pode ser encontrado; mas os
casos que de fato são observados geralmente divergem do tipo: determinados
detalhes do quadro estão apagados; esses casos podem ser agrupados em uma ou
mais séries que se afastam do quadro e por fim terminam em formas rudimentares,
praticamente indeterminadas (formes frustes), nas quais somente um especialista
consegue reconhecer derivados do tipo. Enquanto a descrição dos quadros
clínicos é o tema central da nosografia, a tarefa da clínica médica é averiguar
até o fim a forma individual que cada caso assume e a combinação de seus
sintomas.
Aqui enfatizei os conceitos de “entité
morbide”, de séries, de “type” e de “formes frustes”, porque
é no emprego desses conceitos que repousa a principal característica do método
francês de trabalhar em clínica médica. Essa forma de abordagem é, de fato,
estranha ao método alemão. Para este, o quadro clínico e o tipo não desempenham
qualquer papel de relevo, e é explicada pela evolução dos clínicos alemães: uma
tendência a fazer umainterpretação fisiológica do estado clínico e da
inter-relação dos sintomas. A observação clínica dos franceses,
indubitavelmente, ganha em auto-suficiência, no sentido de que relega a plano
secundário os critérios relativos à fisiologia. A exclusão destes, no entanto,
pode ser a principal explicação para a impressão enigmática que os métodos
clínicos franceses causam ao não-iniciado. Aliás, nisso não há nenhum descaso
pela fisiologia, mas uma deliberada exclusão, que é considerada vantajosa. Ouvi
Charcot dizer: “Je fais la morphologie pathologique, je fais même un peu
l’anatomie pathologique; mais je ne fais pas la physiologie pathologique,
j’attend que quelqu’un autre la fasse”.
A apreciação que fazemos dessas conferências
ficaria lamentavelmente incompleta se a interrompêssemos neste ponto. O
interesse por uma conferência só era propriamente despertado quando o
diagnóstico tinha sido feito e o caso, examinado de acordo com suas
peculiaridades. Depois, Charcot se valia da vantagem que lhe oferecia a
liberdade desse método de ensino para fazer daquilo que tínhamos visto o ponto
de partida para comentários sobre casos semelhantes de que se lembrava, e para
iniciar as mais esclarecedoras discussões sobre tópicos essencialmente clínicos
de sua etiologia, hereditariedade e correlação com outras doenças. Era nessas
ocasiões que, fascinados tanto pelo talento artístico do narrador como pela
inteligência penetrante do observador, ouvíamos atentamente as pequenas
histórias que mostravam como uma experiência clínica tinha levado a uma nova
descoberta; era então que, em companhia de nosso mestre, éramos conduzidos da
consideração de um quadro clínico, relativo a uma doença nervosa, para o debate
de algum problema fundamental da doença em geral; era também nessas ocasiões
que todos víamos, a um só tempo, o mestre e o médico dando lugar ao sábio, cuja
mente aberta absorveu o grande e variado panorama das realizações do mundo e
que nos proporciona um vislumbre de como as doenças nervosas não devem ser
consideradas uma extravagância da patologia, mas sim um componente necessário
de todo o conjunto. Essas conferências apresentam um quadro tão preciso da
maneira de falar e de pensar de Charcot que, para todo aquele que um dia foi
seu ouvinte, torna-seviva a lembrança da voz e dos gestos do mestre, e retornam
as horas preciosas em que o encanto de uma grande personalidade atraía
irresistivelmente os seus ouvintes para os temas e os problemas da
neuropatologia.
Devo acrescentar algumas palavras para
justificar as notas que, impressas em tipos menores, interrompeu a seqüência da
exposição de Charcot, em intervalos muito irregulares. Essas notas são de minha
autoria e, em parte, constituem explicações do texto e referências adicionais à
bibliografia; mas, em parte, são objeções e anotações críticas, tais como as
que podem ocorrer a quem está ouvindo uma conferência. Espero que estes
comentários não venham a ser entendidos como seu eu estivesse tentando, de
algum modo, colocar minhas opiniões acima das de meu respeitado mestre, a quem
muito devo pessoalmente como seu discípulo. Simplesmente estou pretendendo
exercer o direito de criticar, do qual se serve, por exemplo, todo autor de
resenha de revista técnica, independentemente dos seus próprios méritos. Na
neuropatologia existem tantas coisas ainda não explicadas e ainda passíveis de
debate, e a compreensão das mesmas pode beneficiar-se tanto com esse debate,
que me aventurei a pôr em discussão alguns desses pontos, mencionados de
passagem nas conferências. É por demais evidente que o faço segundo meu próprio
ponto de vista, na medida em que este diverge das teorias do Salpêtrière. No
entanto, com estes comentários não se pretende dar ensejo a que os leitores de
Charcot lhes dispensem mais atenção do que eles mereceriam por sua própria
natureza.
Ao traduzir essas conferências, meu esforço se
fez no sentido não propriamente de imitar o estilo incomparavelmente claro, e
ao mesmo tempo elevado, de Charcot - o que seria inatingível para mim -, mas de
obscurecer o menos possível sua linguagem caracteristicamente informal.
DR. SIGM. FREUD
VIENA, junho de 1892
EXTRATOS DAS NOTAS DE RODAPÉ DE
FREUD À SUA TRADUÇÃO DAS CONFERÊNCIAS DAS TERÇAS-FEIRAS, DE CHARCOT
Pág. 107
[Charcot tinha feito uma descrição dos ataques
histéricos.]
…Sirvo-me da oportunidade que me oferece o
texto para apresentar ao leitor uma opinião independente sobre os ataques
histéricos. O “tipo” de Charcot, com suas modificações e com a possibilidade de
cada fase tornar-se independente e representar o ataque inteiro etc., sem
dúvida é suficientemente extenso para abranger todas as formas de ataque
observadas. Por essa mesma razão, alguns poderão argumentar que ele não
representa uma verdadeira entidade.
Procurei abordar o problema dos ataques
histéricos segundo um outro critério diferente do descritivo; examinando
pacientes histéricos em estado hipnótico, cheguei a novos achados, alguns dos
quais mencionarei aqui. O ponto central de um ataque histérico, qualquer que
seja a forma em que este apareça, é uma lembrança, a revivescência
alucinatória de uma cena que é significativa para o desencadeamento da doença.
É esse evento que se manifesta de forma perceptível na fase das “attitudes
passionelles”; mas também está presente quando o ataque parece consistir
somente em fenômenos motores. O conteúdo da lembrança geralmente é ou um
trauma psíquico, que, por sua intensidade, é capaz de provocar a irrupção da
histeria no paciente, ou é um evento que, devido à sua ocorrência em um momento
particular, tornou-se um trauma.
Nos casos conhecidos como histeria
“traumática”, esse mecanismo é evidente até à observação mais superficial, mas
também pode ser demonstrado na histeria em que não existe um único trauma de
maior significação. Em tais casos, constatamos traumas menores, repetidos, ou,
quando predomina o fator da disposição, lembranças em si mesmas indiferentes,
mas que assumem a intensidade de traumas. Um trauma teria de ser definido como
um acréscimo da excitação no sistema nervoso, que este é incapaz de
fazer dissipar-se adequadamente pela reação motora. Um ataque histérico talvez
deva ser considerado como uma tentativa de completar a reação ao trauma.
- Neste ponto, posso remeter a um trabalho
sobre esse assunto, iniciado em colaboração com o Dr. Josef Breuer.
Pág. 137
[Charcot descrevera casos em que meninos de
esmerada educação tinham ataques histéricos acompanhados por explosões de
linguagem obscena.]
Seria casual que os ataques em jovens de cuja
boa educação e boas maneiras Charcot fala elogiosamente assumam a forma de
delírio furioso e linguagem desaforada? Penso que isso em nada difere do fato
conhecido de que os delírios histéricos das monjas se manifestam sob a forma de
blasfêmias e imagens eróticas. Nisso podemos suspeitar da existência de uma
conexão que nos permite uma profunda compreensão interna do mecanismo dos
estados histéricos. Nos delírios histéricos, emerge um material sob a forma de
idéias e impulsos à ação que a pessoa, em seu estado sadio, rechaçou e inibiu -
muitas vezes, inibiu mediante um grande esforço psíquico. Algo parecido
aplica-se a muitos sonhos, que desfiam associações adicionais que foram
rejeitadas ou interrompidas durante o dia. Foi nesse fato que baseei a teoria
da “contravontade histérica”, que abrange um bom número de sintomas histéricos.
Pág. 142
[Charcot discutia um caso em que apareciam
simultaneamente sintomas de tique e obsessões.]
Posso lembrar aqui um caso interessante que
observei recentemente; esse caso mostrava uma variante nova da relação entre o
tique e a obsessão. Um homem de 23 anos consultou-me em virtude de sofrer de
obsessões de uma espécie típica. Dos 8 aos 15 anos ele tinha sofrido de um
tique violento,que daí em diante desapareceu. As obsessões surgiram aos 12 anos
e se tornaram muito mais graves recentemente.
Pág. 210
[Freud escreve uma longa nota de rodapé em que
trata de uma minuciosa discussão exposta por Charcot, que sustentava que, em
determinados casos, podia ocorrer completa hemianestesia, devido a um tipo
especial de lesão orgânica central, nesses casos exatamente semelhante à
hemianetesia histérica. Em especial, Charcot negava que em tais casos estivesse
presente a hemianopsia.]
…Quando, certa vez, me dispus a fazer-lhe
perguntas sobre esse ponto e argumentar que isso contrariava a teoria da
hemianopsia, ele saiu-se com este excelente comentário: “La théorie c’est bon;
mais ça n’empêche pa d’exister”. Se ao menos se soubesse o que é que
existe!…
Pág. 224
[Charcot tinha afirmado que a hereditariedade
era a “causa verdadeira” dos ataques histéricos de um paciente, de sua vertigem
e de sua agorafobia.]
Eu me animo a apontar uma contradição nesse ponto.
Com maior freqüência, a causa da agorafobia, assim como de outras fobias, está
não na hereditariedade, mas nas anormalidades da vida sexual. É até possível
especificar a forma de mau uso da função sexual em questão. Esses distúrbios
podem ser adquiridos, em qualquer grau de intensidade; naturalmente,
havendo a mesma etiologia, ocorrem com maior intensidade em pessoas com
disposição hereditária.
Pág. 237
[Charcot discutia um caso de doença de Graves.]
Alguns leitores, assim como eu, por certo farão
objeções à teoria etiológica de Charcot, que não faz distinção entre a
disposição para as neuroses e a disposição para as doenças nervosas orgânicas,
que não leva em conta o papel desempenhado pelas doenças nervosas adquiridas
(que é impossível superestimar) e que considera uma tendência à artrite em
pessoas da família como uma disposição neuropática hereditária. Sua valorização
excessiva da influência do fator hereditário também explica o fato de que, ao
abordar a doença de Graves, Charcot não menciona o órgão em cujas alterações,
segundo indicações de peso nos aconselham, devemos procurar a verdadeira causa
da afecção. Refiro-me naturalmente, à glândula tireóide e, em conexão com essa
discussão sobre o fato de a disposição hereditária e o trauma psíquico desempenharem
papel importante no desenvolvimento da doença, posso mencionar o excelente
artigo de Moebius sobre a doença de Graves, na Deutsche Zeitschrift für
Nervenheilkunde, 1 (1891).
Pág. 268
[Charcot mostrava a diferença entre afasia
orgânica e histérica.]
Quando deixei o Salpêtrière, em 1886, Charcot
incumbiu-se de efetuar um estudo comparativo das paralisias orgânicas e
histéricas, com base nas observações feitas pelo Salpêtrière. Executei o
trabalho, mas não o publiquei. Seu resultado é uma ampliação da tese aqui
exposta por Charcot: as paralisias histéricas se caracterizam por dois fatores
e, em particular, além disso, por uma convergência dos mesmos. Em primeiro
lugar, elas são capazes de possuir a maior intensidade e, em segundo
lugar, de apresentar a mais nítida delimitação, e se diferenciam
especialmente das paralisias orgânicas quando combinam intensidade e
delimitação. Uma monoplegia do braço, que seja de causa orgânica, pode
limitar-se exclusivamente ao braço; mas nesse caso quase nunca é absoluta.
Tão logo sua intensidade cresce, também a paralisia se torna mais extensa; de
fato, observamos regularmente que, então, ela se acompanha também de um
discreto grau de paresia na face e na perna. Quando se limita apenas ao braço
e, ao mesmo tempo, é absoluta, a paralisia só pode ser histérica. [1]
Pág. 286
[Charcot estivera dando conselhos técnicos
sobre o uso da sugestão: “Os ingleses, que certamente são pessoas práticas, têm
na sua linguagem um conselho: ‘Não faça profecias, a menos que você tenha
certeza’. Gostaria de me juntar a essa maneira de pensar e os aconselharia a
que agissem da mesma forma. Na verdade, se, em caso de indubitável paralisia de
origem psíquica, você diz ao paciente, com plena confiança: ‘Levante-se e
ande!’, e se ele realmente o faz, você de fato pode atribuir a si mesmo e ao
seu diagnóstico o milagre que realizou. Mas eu os aconselho a não irem
demasiado longe nessas coisas e, antes de tudo, a considerarem o modo como, no
possível caso de um fracasso, vocês poderão garantir-se uma saída honrosa’.”]
Com estas sábias palavras Charcot revela um dos
maiores inconvenientes com que tem de contar o uso prático da sugestão em
estado desperto e sob hipnose superficial. A longo prazo, nem o médico nem o
paciente podem tolerar a contradição criada entre a decidida negação da doença,
contida na sugestão, e a necessária constatação da doença fora da sugestão.
Pág. 314
[Charcot expusera o caso clínico de um paciente
histérico cuja doença aparentemente resultara de intoxicação por mercúrio.]
Os leitores dessas conferências provavelmente
estão cientes de que P. Janet, Breuer e eu, assim como outros autores, em data
muito recente, procuramos delinear uma teoria psicológica dos fenômenos
histéricos com base nos trabalhos escritos de Charcot (sobre a explicação das
paralisias histerotraumáticas). Por mais sólida e promissora que essa teoria
possa nos parecer, a prudência recomenda admitir que, até o momento, não se deu
nenhum passo no sentido de mostrar que a histeria por intoxicação, ou que a
analogia entre hemiplegia histérica e orgânica, ou que a origem das contraturas
histéricas possam estar subordinadas à idéia básica dessa linha de abordagem.
Espero que essa tarefa não se mostre insolúvel ou, pelo menos, que esses fatos
não venham a se revelar inconciliáveis com a teoria psicológica.
Pág. 368
[Charcot assinalava o diagnóstico diferencial
entre monoplegias orgânicas e histéricas.]
Num breve trabalho (“Quelques considérations
pour une étude comparative des paralysies motrices organiques et hystériques”, Archives
de Neurologie, Nº 77, 1893), procurei ampliar essa observação de Charcot e
debati sua relação com a teoria das neuroses.
Pág. 371
[Charcot descrevia os diferentes ataques
apresentados por uma jovem histérica.]
Por certo não estaremos compreendendo mal
Charcot se, a partir dos seus comentários sobre “hystéro-épilepsie à crises
mixtes” e ”àcrises séparées”, concluirmos que o termo
“histeroepilepsia” é certamente objetável e que o seu uso deve ser totalmente
abolido. Alguns dos pacientes indicados sob essa designação simplesmente
padecem de histeria; outros sofrem de histeria e epilepsia, duas doenças que
têm pouca relação essencial entre si e que só por acaso são encontradas num
mesmo indivíduo. Uma afirmação como esta pode não ser desnecessária, visto que
muitos médicos, não obstante, parecem ser da opinião de que a “histeroeplepsia”
é um agravamento da histeria, ou uma transição da histeria para a epilepsia.
Sem dúvida, ao se criar o termo “histeroepilepsia”, houve a intenção de veicular
esses significado. Mas Charcot, há muito tempo, abandonou tal ponto de vista; e
não há por que ficarmos desatualizados em relação a ele nesse ponto.
Pág. 399
[Charcot expressara sua opinião sobre o excesso
de trabalho como causa de “neurastenia cerebral”.]
Todas essas discussões etiológicas referentes à
neurastenia são incompletas na medida em que não são consideradas as
influências nocivas sexuais,as quais, em minha experiência, constituem o fator
mais importante, o único fator etiológico indispensável.
Pág. 404
[A propósito de uma discussão sobre os
determinantes hereditários das neuroses.]
…A teoria da “famille névropathique”
certamente necessita de uma revisão urgente.
Pág. 417
[Tópico semelhante ao anterior.]
…Dificilmente poderia resistir a uma crítica
séria a concepção da famille névropathique - que, aliás, engloba quase
tudo que conhecemos sob a forma de doenças nervosas, orgânicas e funcionais,
sistêmicas e acidentais.
ESBOÇOS PARA A COMUNICAÇÃO PRELIMINAR DE 1893 (1940-41
[1892])
Os três apontamentos condensados que vêm a
seguir estavam incluídos entre os escritos póstumos de Freud, no volume XVII
das Gesammelte Werke. (Dados bibliográficos mais detalhados encontram-se
anexados a cada um dos esboços, adiante.) Os editores da edição alemã nos
informam que todos os três escritos tinham estado em poder de Breuer, mas foram
por este devolvidos a Freud em 1909, ano seguinte ao da publicação da segunda
edição dos Estudos sobre a Histeria. Freud acusou o recebimento deles
numa carta que leva a data de 8 de outubro de 1909: “Agradeço-lhe muito por me
dar a oportunidade de reaver os velhos esboços e rascunhos, que me parecem
muito interessantes. Quanto às notas a respeito dos ataques histéricos [Esboço
C, adiante], deve ser como você diz; mas não guardei o manuscrito depois de
publicado”.
Conquanto o segundo desses esboços não traga
data, não cabem dúvidas de que todos os três foram escritos no final de 1892,
em preparação para a “Comunicação Preliminar” - “Sobre o Mecanismo
Psíquico dos Fenômenos Histéricos” (1893a), Edição Standard Brasileira,
Vol. II, [1], IMAGO Editora, 1974. Esse trabalho, produzido em colaboração com
Josef Breuer, foi publicado nos dias 1 e 15 de janeiro de 1893.
Grande parte desses esboços encontra-se numa
forma altamente condensada, mas é possível descobrir, quase que um por um,
todos os elementos que depois se encontram enunciados de modo mais claro na
“Comunicação Preliminar”. Há, contudo, uma exceção especial. O “princípio da
constância” está enunciado com muita clareza, e possivelmente pela primeira vez
na Seção 5 do Esboço C (em [1]); mas, por algum motivo ignorado, está
inteiramente omitido na “Comunicação Preliminar”. Um apanhado completo da
história do “princípio da constância” pode ser encontrado no Apêndice do Editor
Inglês a propósito das “Hipóteses Fundamentais de Freud” na Edição Standard
Brasileira, Vol. III, ver em [1], IMAGO Editora, 1977.
(A) CARTA A JOSEF BREUER
29.6.92
Prezado amigo,
A satisfação com que despreocupadamente lhe
entreguei essas minhas poucas páginas deu lugar ao desassossego que tão
facilmente acompanha os esforços de pensar. Atormenta-me este problema: como
oferecer um quadro bidimensional de algo tão sólido como a nossa teoria da
histeria. Sem dúvida, a questão principal é saber se devemos descrevê-la do
ponto de vista histórico e começar com todos os casos clínicos (ou dois dentre
os melhores), ou se, de outro lado, devemos começar por afirmar dogmaticamente
as teorias que formulamos à guisa de explicação. Penso que é preferível a
segunda sugestão; o material ficaria assim disposto:
(1) Nossas teorias:
(a)
O teorema referente à constância da soma da
excitação.
(b)
A teoria da memória.
(c)
O teorema que estabelece que os conteúdos dos
diferentes estados de consciência não estão relacionados entre si.
(2) A origem dos sintomas histéricos crônicos:
sonhos, auto-hipnose, afetos e resultados dos traumas absolutos. Os três
primeiros desses fatores relacionam-se com a disposição; o último relaciona-se
com a etiologia. Parece que os sintomas crônicos correspondiam a um mecanismo
normal; são deslocamentos [tema subsidiário], em parte, ao longo de uma via
normal (modificação interna) de somas de excitação que não foram dissipadas.
Motivo do deslocamento: tentativa de reação. Motivo da persistência: teorema
(c) [acima], referente ao isolamento associativo. - Comparação com a hipnose.
[1]
Tema subsidiário: A respeito da natureza do deslocamento:
localização dos sintomas histéricos crônicos.
(3) O ataque histérico: Também uma
tentativa de reação, por meio da recordação etc.
(4) A origem dos estigmas histéricos:
Altamente obscura, escassos indícios.
(5) A fórmula patológica da histeria:
Histeria disposicional e acidental. A série proposta por mim. A magnitude da
soma da excitação, o conceito de trauma, o segundo estado da consciência.
(B) III
No que escrevemos acima, tivemos de salientar
como fato observado que as recordações subjacentes aos fenômenos histéricos
estão ausentes da memória acessível do paciente, ao passo que, sob hipnose,
elas podem ser despertadas com a clareza de alucinações. Também salientamos que
numerosas recordações dessa ordem relacionam-se a fatos ocorridos em estados
peculiares (como cataplexia devida ao susto, estados oniróides, auto-hipnose, e
assim por diante), cujo conteúdo não está em conexão associativa com a
consciência normal. Assim, com relação a isso, ainda nos era impossível
discutir o que é que determina a ocorrência dos fenômenos histéricos, sem
primeiro considerar uma hipótese especial, que procura caracterizar a
disposição histérica. Na histeria, de acordo com essa hipótese, o conteúdo da
consciência com facilidade se torna temporariamente dissociado, e determinados
complexos de idéias, que não estão em conexão associativa, com facilidade se
desgarram. A disposição histérica, portanto, deve ser pesquisada quando estados
dessa espécie aparecem espontaneamente (devido a causas internas), ou se
produzem facilmente devido a influências externas; e podemos supor uma série de
casos em que esses dois fatores desempenham um papel de importância variável.
Descrevemos esses estados como “hipnóides” e
enfatizamos que uma característica essencial deles é o fato de seu conteúdo, em
grau maior ou menor, estar desconectado do conteúdo restante da consciência, e
assim se encontrar privado da possibilidade de ser liberado pelas associações -
do mesmo modo que no sonhar e no estado de vigília, um modelo de dois
estados que diferem entre si, não estamos inclinados a fazer associações de um
estado para o outro, mas apenas associações dentro de cada um deles em
particular. Em pessoas com disposição histérica, qualquer afeto pode dar
origem a uma divisão desse tipo; e uma impressão recebida durante a vigência do
afeto se tornaria, assim, um trauma, mesmo que não fosse suficiente, em si,
para agir como um trauma. Ademais, a impressão mesma poderia produzir o afeto.
Na sua forma completamente desenvolvida, esses estados hipnóides,entre os quais
pode haver conexões associativas, formam a condition seconde, tão
conhecida nos casos clínicos. Mas os rudimentos de tal disposição, segundo
parece, são identificáveis em qualquer pessoa e podem ser desenvolvidos por
traumas apropriados, mesmo em pessoas sem essa disposição. A vida sexual é
especialmente apropriada para proporcionar o conteúdo [de tais traumas], devido
ao contraste muito grande que representa para o restante da personalidade e por
ser impossível reagir a suas idéias.
Deve-se compreender que nossa terapia consiste
em remover os resultados das idéias que não sofreram ab-reação, seja revivendo
o trauma num estado de sonambulismo, e então ab-reagindo e corrigindo-o, seja
trazendo-o para o plano da consciência normal, sob hipnose relativamente superficial.
(C) SOBRE A TEORIA DOS ATAQUES
HISTÉRICOS
Até onde sabemos, não há, por enquanto, nenhuma
teoria dos ataques histéricos, mas apenas uma descrição dos mesmos, feita por
Charcot, que se relaciona ao raro e prolongado “grande attaque hystérique
[grande ataque histérico]”. Segundo Charcot, um ataque “típico” dessa espécie
compõe-se de quatro fases: (1) fase epileptóide, (2) fase dos grandes
movimentos, (3) fase das “attitudes passionnelles”, (4) fase do delírio
terminal. Todas as variadas formas de ataques histéricos, que o médico tem
oportunidade de observar com mais freqüência do que o típico grande ataque,
surgem, conforme nos diz Charcot, na medida em que essas distintas fases se
tornam independentes, ou se prolongam, ou se modificam, ou são omitidas.
Essa descrição não projeta absolutamente
nenhuma luz sobre alguma conexão que possa haver entre as diferentes fases,
sobre a importância dos ataques no quadro geral da histeria, ou sobre a maneira
como os ataques são modificados em cada paciente individualmente. Talvez não
estejamos equivocados ao supor que a maioria dos médicos tende a considerar o
ataque histérico como “uma descarga periódica dos centros motores e psíquicos
do córtex cerebral”.
Formamos nossa opinião sobre os ataques
histéricos tratando pacientes histéricos por meio da sugestão hipnótica e,
desse modo, investigando seus processos psíquicos durante o ataque. A exposição
que fazemos a seguir é o que pensamos a respeito do ataque histérico; e devemos
preliminarmente assinalar que, para a explicação dos fenômenos histéricos, é
indispensável supor a presença de uma dissociação - uma divisão no conteúdo da
consciência.
(1) O elemento constante e essencial de um
ataque histérico (recorrente) é o retorno de um estado psíquico que o paciente
já experimentou anteriormente - em outras palavras, o retorno de uma
lembrança.
Afirmamos, pois, que a parte essencial de um
ataque histérico está situada na fase que Charcot denominou de attitudes
passionnelles. Em muitos casos, é bastante evidente que essa fase encerra
uma lembrança oriunda da vida do paciente e, freqüentemente, na verdade, essa
lembrança é sempre a mesma. Mas, em outros casos, essa fase parece estar
ausente, e o ataque aparentemente consiste apenas em fenômenos motores -
contrações epileptóides, ou um estado de imobilidade cataléptica, ou um estado
semelhante ao sono; contudo, mesmo nesses casos, o exame sob hipnose
evidencia nitidamente um processo mnêmico psíquico tal como, em geral, se
manifesta francamente na phase passionnelle.
Os fenômenos motores de um ataque nunca são
desprovidos de relação com seu conteúdo psíquico; ou exprimem no seu aspecto
geral a emoção concomitante, ou correspondem exatamente às ações envolvidas no
processo alucinatório.
(2) A lembrança que forma o conteúdo de um
ataque histérico não é uma lembrança qualquer; é o retorno do evento que causou
a irrupção da histeria - o trauma psíquico.
Essa relação também se manifesta nos casos
clássicos de histeria traumática, segundo demonstrado por Charcot em pacientes
do sexo masculino; nesses casos, um indivíduo previamente não-histérico passava
a sofrer de uma neurose após um único episódio de medo intenso (como um
acidente ferroviário, uma queda etc.). Nesses casos, o conteúdo do ataque
consiste na reprodução alucinatória do evento que pôs em perigo a vida da
pessoa, reprodução essa que talvez se acompanhe das seqüências de pensamentos e
impressões da sensibilidade que passaram por sua mente na ocasião. Mas a
conduta desses pacientes não difere da conduta de pacientes comuns do sexo
feminino; é um modelo exato desta. Se examinarmos o conteúdo dos ataques de uma
dessas pacientes na forma como foi indicado, depararemos com eventos que, por
sua natureza, são igualmente apropriados para atuar como traumas (por exemplo,
sustos, ofensas humilhantes, frustrações). Nesses casos, porém, o grande trauma
isolado está substituído, geralmente, por uma série de traumas menores que se
inter-relacionam por sua semelhança ou pelo fato de fazerem parte de uma
história penosa. Esses pacientes, por conseguinte, muitas vezes têm ataques de
tipos diferentes, cada um desses com um conteúdo mnêmico particular. Esse fato
torna necessário ampliar consideravelmente o conceito de histeria traumática.
Num terceiro grupo de casos, constatamos que o
conteúdo dos ataques consiste em lembranças que não consideraríamos capazes,
por si mesmas, de constituir traumas. Evidentemente, devem isto ao fato de se
terem associado, numa coincidência fortuita, com um momento em que a disposição
histérica da pessoa se encontrava patologicamente intensificada e, com isso,
foram elevadas à condição de traumas.
(3) A lembrança que forma o conteúdo de um
ataque histérico é uma lembrança inconsciente, ou, mais corretamente, faz parte
do segundo estado da consciência, que está presente, organizado em grau maior
ou menor, em toda histeria. Por conseguinte, essa lembrança ou está
inteiramente ausente da recordação do paciente, quando este se encontra em seu
estado normal, ou está presente apenas em forma rudimentar, condensada. Se
conseguirmos trazer essa lembrança inteiramente à consciência normal, ela deixa
de ter a capacidade de produzir ataques. Durante um ataque real, o paciente se
encontra parcial ou totalmente no segundo estado de consciência. Nesse último
caso, o ataque inteiro é coberto pela amnésia, durante sua vida normal; no
primeiro caso, o paciente apercebe-se da modificação em seu estado e da sua
conduta motora, mas os eventos psíquicos que ocorrem durante o ataque lhe
permanecem ocultos. No entanto, podem ser despertados a qualquer momento pela
hipnose.
(4) A questão da origem do conteúdo mnêmico dos
ataques histéricos coincide com a outra questão: o que decide se uma
experiência (uma idéia,intenção etc.) haverá de se localizar na segunda
consciência, e não na consciência normal? Descobrimos, com certeza, dois desses
determinantes nas pessoas histéricas:
Se uma pessoa histérica intencionalmente
procura esquecer uma experiência, ou decididamente rechaça, inibe e suprime uma
intenção ou idéia, esses atos psíquicos, em conseqüência, entram no segundo
estado da consciência; daí produzem seus efeitos permanentes e a lembrança
deles retorna sob a forma de ataque histérico. (Cf. histeria em monjas, em mulheres castas, em adolescentes de boa
educação, em pessoas com aspirações artísticas ou teatrais etc.)
As impressões recebidas durante estados
psíquicos não-habituais (como os estados afetivos, estados de êxtase ou
auto-hipnose) também entram no segundo estado da consciência.
Pode-se acrescentar que esses dois fatores
muitas vezes se combinam por meio de vínculos internos e que provavelmente há
outros determinantes além destes.
(5) O sistema nervoso procura manter
constante, nas suas relações funcionais, algo que podemos descrever como a
“soma da excitação”. Ele executa essa precondição da saúde eliminando
associativamente todo acúmulo significativo de excitação, ou, então,
descarregando-o mediante uma reação motora apropriada. Se partirmos desse
enunciado, o qual, aliás, tem implicações de amplo alcance, verificaremos que
as experiências psíquicas que formam o conteúdo dos ataques histéricos têm uma
característica que lhes é comum. Todas são impressões que não conseguiram
encontrar uma descarga adequada, seja porque o paciente se recusa a
enfrentá-las, por temor de conflitos mentais angustiantes, seja porque (tal
como ocorre no caso de impressões sexuais) o paciente se sente proibido de
agir, por timidez ou condição social, ou, finalmente, porque recebeu essas
impressões num estado em que seu sistema nervoso estava impossibilitado de executar
a tarefa de eliminá-las.
Chegamos, assim, também a uma definição de
trauma psíquico, que pode ser empregada na teoria da histeria: transforma-se
em trauma psíquico toda impressão que o sistema nervoso tem dificuldade em
abolir por meio do pensamento associativo ou da reação motora.