Freud - Obras Completas II

Estudos sobre a histeria

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VOLUME II
(1893-1895)

Josef Breuer e Sigmund Freud



NOTA DO EDITOR INGLÊS
(James Strachey)
(A) ÜBER DEN PSYCHISCHEN MECHANISMUS HYSTERISCHER PHÄNOMENE (VORLÄUFIGE MITTEILUNG)(a) EDIÇÕES ALEMÃES:
1893 Neurol. Centralbl., 12 (1), 4-10 (Seções I-II), e 12 (2), 43-7 (Seções III-V). (1º e 15 de janeiro.)
1893 Wien. med. Blätter, 16 (3), 33-5 (Seções I-II), e 16 (4), 49-51 (Seções III-V). (19 e 26 de janeiro.)
1895, etc. Em Studien über Hysterie. (Ver adiante.)
1906 S.K.S.N., I, 14-29. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)

(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
“The Psychic Mechanism of Hysterical Phenomena
(Preliminary Communication)”
1909 S.P.H., 1-13. (Trad. A. A. Brill.) (1912, 2ª. ed., 1920, 3ª ed.)
1936 Em Studies in Hysteria. (Ver adiante.)
“On the Psychical Mechanism of Hysterical Phenomena”
1924 C.P., 1, 24-41. (Trad. J. Rickman.)

(B) STUDIEN ÜBER HYSTERIE(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1895 Leipzig e Viena: Deuticke. Págs. v + 269.
1909 2ª ed. Mesmos editores. (Sem modificações, mas com novo prefácio.) Págs. vii + 269.
1916 3ª ed. Mesmos editores. (Sem modificações.) Págs. vii + 269
1922 4ª ed. Mesmos editores. (Sem modificações.) Págs. vii + 269.
1925 G.S., 1, 3-238. (Com omissão das contribuições de Breuer; com notas de rodapé adicionais de Freud.)
1952 G.W., 1, 77-312. (Reimpressão de 1925.)

(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
Studies in Hysteria
1909 S.P.H., 1-120. (1912, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.) (Trad. A. A. Brill.) (Somente em parte: com omissão dos casos clínicos da Srta. Anna O., Sra. Emmy von N. e Katharina, bem como do capítulo teórico de Breuer.)
1936 New York: Nervous and Mental Disease Publishing. Co. (Monograph Series nº 61.) Págs. ix + 241. (Trad. A. A. Brill.)

(Completo, salvo quanto à omissão das notas de rodapé adicionais de Freud, de 1925.)


A tradução inglesa, inteiramente nova e completa, de James e Alix Strachey, inclui as contribuições de Breuer, mas quanto ao resto baseia-se na edição alemã de 1925, contendo as notas de rodapé adicionais de Freud. A omissão das contribuições de Breuer das duas coletâneas alemãs (G.S. e G.W.) acarretou algumas modificações necessárias e notas de rodapé adicionais, onde Freud tinha feito referência, na edição original, às partes omitidas. Nessas edições completas, também a numeração dos casos clínicos foi alterada, em vista da ausência do caso clínico de Anna O. Todas essas alterações foram abandonadas na presente tradução. - Os extratos da “Comunicação Preliminar” e do volume principal tinham sido incluídos por Freud em sua primeira coletânea de extratos de seus próprios trabalhos (1897b, nºs XXIV e XXXI).
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(1)ALGUMAS NOTAS HISTÓRICAS SOBRE OS ESTUDOS
 Conhecemos a história da redação deste livro com algum detalhe.
O tratamento da Srta. Anna O. por Breuer, no qual se baseou toda a obra, ocorreu entre 1880 e 1882. Naquela ocasião, Josef Breuer (1842-1925) já gozava de alta reputação em Viena, tanto como médico com grande clínica, como por realizações científicas, enquanto Sigmund Freud (1856-1939) apenas acabara de formar-se em medicina. Os dois, contudo, já eram amigos há vários anos. O tratamento terminou no início de junho de 1882, e em novembro Breuer relatou a notável história a Freud, que (embora, naquela época, tivesse seus principais interesses concentrados na anatomia do sistema nervoso) ficou muito impressionado com ela. Tanto assim que quando, cerca de três anos depois, estava estudando em Paris sob a orientação de Charcot, deu-lhe conhecimento do caso. “Mas o grande homem não mostrou nenhum interesse por meu primeiro esboço do assunto, de modo que jamais voltei ao tema e deixei que saísse de minha mente.” (Um Estudo Autobiográfico - 1925d, Capítulo II.)
Os estudos de Freud sob a orientação de Charcot tinham-se concentrado, em grande parte, na histeria, e quando Freud voltou a Viena em 1886 e ali se fixou para estabelecer uma clínica de doenças nervosas, a histeria forneceu uma grande proporção de sua clientela. De início, ele se baseou nos métodos de tratamento então correntemente recomendados, como a hidroterapia, a eletroterapia, massagens e a cura pelo repouso, de Weir Mitchell. Mas quando esses métodos se revelaram insatisfatórios, seus pensamentos se voltaram para outra área. “Nessas últimas semanas”, escreve ele a seu amigo Fliess em 28 de dezembro de 1887, “atirei-me à hipnose e logrei toda espécie de sucessos pequeninos, mas dignos de nota” (Freud, 1950a, Carta 2). E nos deu uma descrição pormenorizada de um desses tratamentos bem-sucedidos (1892-3b). Mas o caso de Anna O. ainda estava em sua mente, e “desde o início”, conta-nos ele (1925d), “vali-me da hipnose de outra maneira, independentemente da sugestão hipnótica”. Essa “outra maneira” foi o método catártico, que constitui o tema do presente volume.
O caso da Sra. Emmy von N. foi o primeiro, como sabemos por Freud (ver em. [1] e [2]), que ele tratou pelo método catártico. Numa nota de rodapé acrescentada ao livro em 1925, ele explica melhor essa observação e diz que esse foi o primeiro caso em que utilizou esse método “extensivamente” (ver em [1]); e é verdade que, nessa fase inicial, ele vinha constantemente empregando a hipnose na forma convencional - para dar sugestões terapêuticas diretas. Mais ou menos na mesma época, de fato, seu interesse pela sugestão hipnótica era acentuado o bastante para levá-lo a traduzir um dos livros de Bernheim em 1888 e outro em 1892, bem como a fazer uma visita de algumas semanas às clínicas de Liébeault e Bernheim em Nancy, no verão de 1889. A intensidade com que ele estava utilizando a sugestão terapêutica no caso da Sra. Emmy é indicada de maneira bem nítida no seu relato cotidiano das duas ou três primeiras semanas do tratamento, reproduzido por ele a partir das “anotações que fiz todas as noites” (ver em [1]). Não podemos, infelizmente, ter certeza de quando ele iniciou esse caso (ver Apêndice A, em [1]); foi em maio de 1888 ou 1889 - isto é, cerca de quatro ou cerca de dezesseis meses depois de ele haver pela primeira vez “adotado a hipnotismo”. O tratamento terminou um ano depois, no verão de 1889 ou 1890. Numa ou noutra alternativa, há um considerável hiato antes da data do caso clínico seguinte (em ordem cronológica, embora não em ordem de apresentação). Esse foi o caso da Srta. Elisabeth von R., que teve início no outono de 1892 (ver em. [1]) e que Freud descreve como sua “primeira análise integral de uma histeria” ( ver em [1]). Foi logo seguido pelo de Miss Lucy R., que começou no fim do mesmo ano (ver em [1]). Não se atribui nenhuma data ao caso restante, o de Katharina (ver.em [1]). Mas, no intervalo entre 1889 e 1892, Freud por certo teve experiência com outros casos. Em particular, houve o da Srta. Cäcilie M., a quem ele “veio a conhecer de forma muito mais completa do que qualquer das outras pacientes mencionadas nestes estudos” (ver em [1]), mas cujo caso não pôde ser descrito em detalhes em virtude de “considerações pessoais”. Contudo, ela é freqüentemente mencionada por Freud, bem como por Breuer, no decorrer do volume, e sabemos (ver em [1]) por Freud que “foi o estudo desse caso notável, feito em conjunto com Breuer, que levou diretamente à publicação de nossa ‘Comunicação Preliminar’”. [1]
 O rascunho daquele memorável artigo (que compõe a primeira seção do presente volume) se iniciara em junho de 1892. Uma carta a Fliess, de 28 de junho (Freud, 1950a, Carta 9), anuncia que “Breuer concordou em que a teoria da ab-reação e os outros resultados sobre a histeria a que chegamos em conjunto também sejam apresentados conjuntamente numa publicação pormenorizada”. “Uma parte dela”, prossegue, “que, a princípio, eu queria escrever sozinho, está concluída”. Evidentemente, a essa parte “concluída” do artigo faz nova referência numa carta a Breuer escrita no dia seguinte, 29 de junho de 1892 (Freud, 1941a): “A inocente satisfação que senti quando lhe entreguei aquelas poucas páginas minhas deu margem a (…) inquietação.” Essa carta prossegue fornecendo um resumo muito condensado do conteúdo proposto do artigo. A seguir, temos uma nota de rodapé acrescentada por Freud a sua tradução de um volume das Leçons du Mardi, de Charcot (Freud, 1892-94, 107), que apresenta, em três curtos parágrafos, um resumo da tese da “Comunicação Preliminar” e se refere a ele como estando “começado”. Além disso, dois rascunhos bem mais elaborados chegaram até nós. O primeiro (Freud, 1940d) deles (escrito com a caligrafia de Freud, embora se afirme ter sido escrito em conjunto com Breuer) está datado de “Final de novembro de 1892”. Versa sobre ataques histéricos e a maior parte de seu conteúdo foi incluída, embora com palavras diferentes, na Seção IV da “Comunicação Preliminar” (ver em [1]). Entretanto, um importante parágrafo relacionado com o “princípio da constância” foi inexplicavelmente omitido, e nesse volume o tema é tratado apenas por Breuer, na parte final da obra (ver em [1] e [2].). Por fim, há um memorando (Freud, 1941b) com o título “III”, que não tem data. Examina os “estados hipnóides” e a dissociação histérica, estando estreitamente relacionado com a Seção III do artigo publicado (ver em [1]).
Em 18 de dezembro de 1892, Freud escreveu a Fliess (1950a, Carta11): “Apraz-me poder dizer-lhe que nossa teoria sobre a histeria (reminiscência, ab-reação, etc.) vai aparecer no Neurologisches Centralblatt no dia 1º de janeiro de 1893, sob a forma de uma comunicação preliminar pormenorizada. Custou-me longa batalha com meu colaborador.” O artigo, datado de “dezembro de 1892”, foi na realidade publicado em dois números do periódico: as duas primeiras seções em 1º de janeiro, e as três restantes em 15 de janeiro. O Neurologisches Centralblatt (que saía quinzenalmente) era publicado em Berlim; e a “Comunicação Preliminar” foi quase imediatamente reimpressa na íntegra em Viena, nas Wiener medizinische Blätter (em 19 e 26 de janeiro). Em 11 de janeiro, quando apenas metade do artigo fora publicada, Freud pronunciou uma conferência sobre o tema no Wiener medizinischer Club. A transcrição taquigráfica completa da conferência, “revista pelo conferencista”, apareceu no Wiener medizinische Presse em 22 e 29 de janeiro (34, 122-6 e 165-7). A conferência (Freud, 1893h) abrangia aproximadamente o mesmo tema que o artigo, mas tratava o material de forma bem diferente e de maneira muito menos formal.
A publicação do artigo parece ter surtido pouco efeito visível em Viena ou na Alemanha. Na França, por outro lado, como relata Freud a Fliess numa carta de 10 de julho de 1893 (1950a, Carta 13), o trabalho foi favoravelmente notado por Janet, cuja resistência às idéias de Freud só surgiria mais tarde. Janet incluiu uma nota longa e altamente elogiosa sobre a “Comunicação Preliminar” num artigo sobre “Algumas Definições Recentes da Histeria”, publicado nos Archives de Neurologie em junho e julho de 1893. Utilizou esse artigo como capítulo final de seu livro L’État Mental des Hystériques, publicado em 1894. Mais inesperado, talvez, é o fato de que em abril de 1893 - apenas três meses após a publicação da “Comunicação Preliminar” - um relato razoavelmente completo da mesma foi apresentado por F. W. H. Myers numa reunião geral da Society for Psychical Research, em Londres, tendo sido impresso em sua Ata (Proceedings) no mês de junho seguinte. A “Comunicação Preliminar” também foi totalmente resumida e examinada por Michell Clarke em Brain (1894, 125). A reação mais surpreendente e inexplicável, porém, foi a publicação, em fevereiro e março de 1893, de uma tradução completa da “Comunicação Preliminar” para o espanhol, na Gazeta Médica de Granada (11, 105-11 e 129-35).
 A tarefa seguinte dos autores foi a preparação do material dos casos clínicos e, já em 7 de fevereiro de 1894, Freud referiu-se ao livro como“semi-acabado: o que resta a fazer é apenas uma pequena parte dos casos clínicos e dois capítulos gerais”. Num trecho não publicado da carta de 21 de maio, ele menciona que está justamente escrevendo o último caso clínico, e em 22 de junho (1950a, Carta 19) apresenta uma lista do que o “livro com Breuer” irá conter: “cinco casos clínicos, um ensaio da autoria dele, com o qual não tenho absolutamente nada a ver, sobre as teorias da histeria (resumo e crítica), e um meu sobre terapia, que ainda não comecei”. Depois disso, é óbvio que houve uma paralisação, pois só em 4 de março de 1895 (ibid., Carta 22) é que ele escreve dizendo estar “trabalhando apressadamente no ensaio sobre a terapia da histeria”, concluído em 13 de março (carta não publicada). Em outra carta não publicada, de 10 de abril, Freud envia a Fliess a segunda metade das provas tipográficas do livro, e no dia seguinte lhe diz que este sairá em três semanas.
Os Estudos sobre a Histeria parecem ter sido publicados, como se esperava, em maio de 1895, embora a data exata não seja indicada. O livro foi recebido desfavoravelmente nos círculos médicos alemães; recebeu, por exemplo, forte crítica de Adolf von Strümpell, o conhecido neurologista (Deutsch. Z. Nervenheilk., 1896, 159). Por outro lado, um escritor não-médico, Alfred von Berger, mais tarde diretor do Burgtheater de Viena, sobre ele se expressou com apreço no Neue Freie Presse (2 de fevereiro de 1896). Na Inglaterra, o livro foi alvo de longa e favorável nota de Mitchell Clarke em Brain (1896, 401) e mais uma vez Myers mostrou seu interesse pela obra numa palestra de considerável extensão, originariamente proferida em março de 1897, que acabou sendo incluída em seu Human Personality (1903).
Decorreram mais de dez anos antes que houvesse um pedido de segunda edição do livro, e já nessa época os caminhos de seus dois autores se haviam separado. Em maio de 1906 Breuer escreveu a Freud concordando com uma reimpressão, mas houve certa discussão para determinar se seria desejável um novo prefácio em conjunto. Seguiram-se outras delongas e, no final, como se verá mais adiante, foram escritos dois prefácios separados. Estes trazem a data de julho de 1908, embora a segunda edição só fosse realmente publicada em 1909. O texto continuou inalterado nessa e nas edições posteriores do livro. Mas, em 1924, Freud escreveu algumas notas de rodapé adicionais para o volume de suas obras completas que continha sua parte dos Estudos (publicado em 1925) e fez uma ou duas pequenas modificações no texto.

(2) A RELAÇÃO DOS ESTUDOS COM A PSICANÁLISE
 Os Estudos sobre a Histeria costumam ser considerados como o ponto de partida da psicanálise. Vale a pena considerar brevemente se essa afirmação é verdadeira, e em que sentido. Para os objetivos dessa discussão, a questão das parcelas do trabalho atribuíveis aos dois autores será posta de lado, para consideração posterior, e o livro será tratado como um todo. A investigação sobre a relação dos Estudos com o desenvolvimento subseqüente da psicanálise pode ser dividida, por conveniência, em duas partes, embora tal separação seja necessariamente artificial. Até que ponto e de que maneira os procedimentos técnicos descritos nos Estudos e as descobertas clínicas a que conduziram prepararam o terreno para a prática da psicanálise? Em que medida os pontos de vista teóricos aqui propostos foram aceitos nas doutrinas posteriores de Freud?
Raras vezes se aprecia suficientemente o fato de que a mais importante das realizações de Freud talvez tenha sido sua invenção do primeiro instrumento para o exame científico da mente humana. Um dos principais atrativos do presente volume é que ele nos permite rastrear os primeiros passos do desenvolvimento desse instrumento. O que ele nos relata não é simplesmente a história da superação de uma série de obstáculos; é a história da descoberta de uma série de obstáculos a serem superados. A própria paciente de Breuer, Anna O., demonstrou e superou o primeiro desses obstáculos - a amnésia característica dos pacientes histéricos. Quando a existência dessa amnésia foi trazida à luz, seguiu-se de imediato a compreensão de que a mente manifesta do paciente não é a mente em sua totalidade, havendo por trás uma mente inconsciente (ver em [1]). Tornou-se assim patente, desde o início, que o problema não era meramente a investigação dos processos mentais conscientes, para a qual bastariam os métodos corriqueiros de indagação empregados na vida cotidiana. Se havia também processos mentais inconscientes, era claramente necessário algum instrumento especial. O instrumento óbvio para esse fim era a sugestão hipnótica - a sugestão hipnótica utilizada não para finalidades diretamente terapêuticas, mas para persuadir o paciente a produzir material proveniente da região inconsciente da mente. Com Anna O. apenas um ligeiro uso desse instrumento se afigurou necessário. Ela produzia torrentes de material vindo de seu “inconsciente”, e tudo o que Breuer tinha de fazer era ficar sentado e ouvi-las sem interrompê-la. Mas isso não era tão fácil como parece, e o caso clínico da Sra. Emmy revela em muitos pontos como foi difícil para Freud adaptar-se a esse novo uso da sugestão hipnótica e ouvir tudo o que a paciente tinha a dizer, sem qualquer tentativa de interferir ou de levá-la a encurtar o relato (por exemplo em [1] e [2]). Nem todos os pacientes histéricos além disso eram tão dóceis quanto Anna O.; a hipnose profunda em que ela caía, aparentemente por sua própria vontade, não era tão prontamente alcançada com qualquer um. E aqui surgia outro obstáculo: conta-nos Freud que ele estava longe de ser adepto do hipnotismo. Neste livro (por exemplo em [1]), ele nos fornece vários relatos de como contornava essa dificuldade, de como pouco a pouco foi abandonando suas tentativas de provocar a hipnose e se contentava em levar os pacientes a um estado de “concentração”, com o uso ocasional da pressão na testa. Mas foi o abandono do hipnotismo que ampliou ainda mais sua compreensão dos processos mentais. Esse abandono revelou a presença de mais um obstáculo - a “resistência” dos pacientes ao tratamento (ver em [1] e [2]), sua relutância em cooperarem na própria cura. Como se deveria lidar com essa relutância? Deveria ser suprimida com gritos ou afastada pela sugestão? Ou deveria, como outros fenômenos mentais, ser simplesmente investigada? A opção de Freud por esse segundo caminho levou-o diretamente ao mundo desconhecido que iria passar a vida inteira explorando.
Nos anos que se seguiram aos Estudos, Freud abandonou cada vez mais a técnica da sugestão deliberada | ver em [1]| e passou cada vez mais a confiar no fluxo de “associações livres” do paciente. Estava aberto o caminho para a análise dos sonhos. Essa análise permitiu-lhe, em primeiro lugar, obter uma compreensão do funcionamento do “processo primário” na mente e das formas pelas quais ele influenciava os produtos de nossos pensamentos mais acessíveis, e assim Freud adquiriu um novo recurso técnico - o da “interpretação”. Mas a análise dos sonhos possibilitou, em segundo lugar, sua própria auto-análise e suas conseqüentes descobertas da sexualidade infantil e do complexo de Édipo. Todas essas questões, porém, salvo por alguns leves indícios, ainda estavam por surgir. No entanto, nas últimas páginas deste volume, Freud já se havia defrontado com outro obstáculo no caminho do pesquisador - a “transferência” (ver em [1]). Já tivera um vislumbre de sua impressionante natureza, e talvez já tivesse começando a reconhecer que ela iria revelar-se não só um obstáculo como também mais um instrumento fundamental da técnica psicanalítica.
À primeira vista, a principal posição teórica adotada pelos autores da “Comunicação Preliminar” parece simples. Eles sustentam que, no curso normal das coisas, se uma experiência for acompanhada de uma grande dose de “afeto”, esse afeto é “descarregado” numa variedade de atos reflexos conscientes, ou então vai-se desgastando gradativamente pela associação com outros materiais mentais conscientes. No caso dos pacientes histéricos, por outro lado (por motivos que logo mencionaremos), nenhuma dessas coisas acontece. O afeto permanece num estado “estrangulado”, e a lembrança da experiência a que está ligado é isolada da consciência. A partir daí, a lembrança afetiva se manifesta em sintomas histéricos, que podem ser considerados como “símbolos mnêmicos” - vale dizer, como símbolos da lembrança suprimida (ver em [1]-[2]). Sugerem-se duas razões principais para explicar a ocorrência desse resultado patológico. Uma delas é que a experiência original ocorreu enquanto o indivíduo se encontrava num particular estado de dissociação mental, descrito como “hipnóide”; a outra é que o “ego” do indivíduo considerou essa experiência como sendo “incompatível” com ele próprio e, portanto, ela teve de ser “rechaçada”. Em ambos os casos, a eficácia terapêutica do método “catártico” é explicada com base nos mesmos fundamentos: se a experiência original, juntamente com seu afeto, puder ser introduzida na consciência, o afeto é por si mesmo descarregado ou “ab-reagido”, a força que até então manteve o sintoma deixa de atuar, e o próprio sintoma desaparece.
Tudo isso parece muito claro, mas uma pequena reflexão mostra que restam ainda muitas coisas por explicar. Por que um afeto precisa ser “descarregado”? E por que são tão terríveis as conseqüências de ele não ser descarregado? Esses problemas subjacentes não são considerados de modo algum na “Comunicação Preliminar”, embora a eles se fizesse uma breve alusão em dois dos rascunhos postumamente publicados (1941a e 1940d) e já existisse uma hipótese para explicá-los. Curiosamente, na verdade essa hipótese foi formulada por Freud em sua conferência de 11 de janeiro de 1893 (veja em [1]), apesar de ter sido omitida na própria “Comunicação Preliminar”. Ele aludiu de novo a essa hipótese nos dois últimos parágrafos do seu primeiro artigo sobre “As Neuropsicoses de Defesa” (1894a), onde declara especificamente que ela fundamentava a teoria da ab-reação na “Comunicação Preliminar” de um ano antes. Mas essa hipótese básica foi formalmente enunciada e designada pela primeira vez em 1895, na segunda parte da contribuição de Breuer ao presente volume (ver em [1]). É curioso que esta, a mais fundamental das teorias de Freud, tenha sido integralmente examinada, pela primeira vez, por Breuer (se bem que, de fato, atribuída por ele a Freud), e que o próprio Freud, embora retornasse vez por outra a seu tema (como nas primeiras páginas de seu artigo sobre “As Pulsões e suas Vicissitudes”, 1915c), não a mencionasse explicitamente até escrever Além do Princípio do Prazer (1920g). Freud, como sabemos agora, referiu-se a essa hipótese pelo nome numa comunicação de data incerta a Fliess, possivelmente 1894 (Rascunho D, 1950a), e examinou-a na íntegra, embora sob outro nome (veja adiante, ver em [1]), no “Projeto para uma Psicologia Científica”, que escreveu alguns meses após a publicação dos Estudos. Mas só cinqüenta e cinco anos depois (1950a) é que o Rascunho D e o “Projeto” foram publicados.
O “princípio da constância” (pois esta foi a denominação dada à hipótese) pode ser definido nos termos empregados pelo próprio Freud em Além do Princípio do Prazer: “O aparelho mental esforça-se por manter a quantidade de excitação nele presente em um nível tão baixo quanto possível, ou pelo menos por mantê-la constante” (Edição Standard Brasileira, Vol. XVIII, em [1], 1ª edição, Imago). Breuer o enuncia mais adiante, neste livro (ver em [1]), em termos muito semelhantes, mas com uma inclinação neurológica, como “uma tendência a manter constante a excitação intracerebral”. Em sua discussão em [1] e segs., argumenta ele que os afetos devem sua importância na etiologia da histeria ao fato de serem acompanhados pela produção de grandes quantidades de excitação, e de estas, por sua vez, exigirem uma descarga, de acordo com o princípio da constância. De modo semelhante, também as experiências traumáticas devem sua força patogênica ao fato de produzirem quantidades de excitação grandes demais para serem tratadas da maneira normal. Assim, a posição teórica essencial subjacente aos Estudos é que a necessidade clínica da ab-reação do afeto e os resultados patogênicos que surgem quando ele fica estrangulado são explicados pela tendência muito mais geral (expressa no princípio da constância) a manter constante a quantidade de excitação.
Tem-se pensado com freqüência que os autores dos Estudos atribuíam os fenômenos da histeria apenas aos traumas e às lembranças inextirpáveis deles, e que só mais tarde é que Freud, depois de deslocar a ênfase dos traumas infantis para as fantasias infantis, chegou a sua momentosa concepção “dinâmica” dos processos da mente. Ver-se-á, contudo, pelo que acaba de ser dito, que uma hipótese dinâmica sob a forma do princípio da constância já estava subjacente à teoria do trauma e da ab-reação. E quando chegou o momento de ampliar os horizontes e atribuir uma importância muito maior às pulsões, em contraste com a experiência, não houve necessidade de modificar a hipótese básica. Na realidade, Breuer já ressalta o papel desempenhado pelas “principais necessidades e pulsões fisiológicas do organismo” na gênese dos aumentos de excitação que exigem descarga (ver em [1]), e frisa a importância da “pulsão sexual” como “a fonte mais poderosa dos acúmulos sistemáticos de excitação (e, conseqüentemente, de neuroses)” (ver em [1]). Além disso, toda a noção de conflito e do recalcamento das idéias incompatíveis é explicitamente baseada no ocorrência dos aumentos desagradáveis de excitação. Isso conduz à consideração adicional de que, como salienta Freud em Além do Princípio do Prazer (Edição Standard Brasileira, 1ª edição, Vol. XVIII, ver em [1]), o próprio “princípio do prazer” está estreitamente vinculado ao princípio da constância. Ele chega mesmo a ir mais adiante e declarar (ibid., 83) que o princípio do prazer “é uma tendência que atua a serviço de uma função cuja tarefa é libertar inteiramente da excitação o aparelho mental, ou manter constância o nível de excitação dentro dele, ou mantê-lo tão baixo quanto possível”. O caráter “conservador” que Freud atribui às pulsões em seus trabalhos posteriores, assim como a “compulsão à repetição”, também são vistos no mesmo trecho como manifestações do princípio da constância; e fica claro que a hipótese em que se basearam esses primeiros Estudos sobre a Histeria ainda continuava a ser considerada fundamental por Freud em suas últimas especulações.

(3)AS DIVERGÊNCIAS ENTRE OS DOIS AUTORES
 Não estamos interessados aqui nas relações pessoais entre Breuer e Freud, descritas com detalhes no primeiro volume da biografia escrita por Ernest Jones, mas é interessante examinarmos brevemente suas divergências científicas. A existência de tais divergências foi abertamente mencionada no prefácio à primeira edição e muitas vezes falou-se nelas com exagero nas publicações posteriores de Freud. Mas no próprio livro, por estranho que pareça, elas estão longe de ganhar preeminência e, muito embora a “Comunicação Preliminar” seja a única parte do livro de autoria explicitamente conjunta, não é fácil determinar com certeza de quem é a responsabilidade pela origem dos vários elementos componentes do trabalho como um todo.
Sem dúvida, podemos com segurança atribuir a Freud os desenvolvimentos técnicos posteriores, bem como os conceitos teóricos vitais de resistência, defesa e recalcamento que decorreram deles. É fácil ver pelo relato apresentado em [1] como esses conceitos decorreram da substituição da hipnose pela técnica da “pressão”. O próprio Freud, em sua “História do Movimento Psicanalítico” (1914d), declara que “a teoria do recalcamento é a pedra angular em que repousa toda a estrutura da psicanálise”, e dá a mesma explicação aqui apresentada sobre a maneira como se chegou a ela. Afirma também sua crença de ter chegado de forma independente a essa teoria, e a história da descoberta confirma amplamente essa crença. No mesmo trecho, Freud observa que uma sugestão da idéia do recalcamento encontra-se em Schopenhauer (1844), cujas obras, contudo, ele só veio a ler em idade avançada; e há pouco tempo se ressaltou que a palavra “Verdrängung” (“recalcamento”) ocorre nos escritos do psicólogo Herbart (1824), do início do século XIX, cujas idéias tiveram grande influência sobre numerosas pessoas que faziam parte do círculo de Freud, em particular seu professor imediato de psiquiatria, Meynert. Mas nenhuma dessas sugestões diminui de modo significativo a originalidade da teoria de Freud, com sua base empírica, que encontrou sua primeira expressão na “Comunicação Preliminar” (ver em [1]-[2]).
Em contraposição a isso, não há nenhuma dúvida de que Breuer deu origem à noção dos “estados hipnóides”, ponto a que voltaremos dentro em breve, e parece possível que tenha sido responsável pelos termos “catarse” e “ab-reação”.
Todavia, muitas das conclusões teóricas dos Estudos devem ter sido produto de discussões entre os dois autores durante seus anos de colaboração, e o próprio Breuer comenta (ver em [1]-[2]) sobre a dificuldade de determinar a prioridade em tais casos. Afora a influência de Charcot, sobre a qual Freud jamais deixou de insistir, deve-se também recordar que tanto Breuer como Freud eram basicamente fiéis à escola de Helmholz, da qual um professor deles, Ernst Brücke, foi membro preeminente. Grande parte da teoria subjacente aos Estudos sobre a Histeria deriva da doutrina daquela escola, teoria que diz serem todos os fenômenos naturais, em última análise, explicáveis em função de forças físicas e químicas.
 Já vimos (em [1]) que, embora Breuer fosse o primeiro a mencionar o “princípio da constância” pelo nome, ele atribuiu essa hipótese a Freud. De modo semelhante, ele ligou o nome de Freud ao termo “conversão”, mas (como será explicado mais adiante, em [1]), o próprio Freud declarou que isso se aplicava apenas à palavra e que se chegou em conjunto ao conceito.
 Por outro lado, há um grande número de conceitos muito importantes que parecem ser corretamente atribuíveis a Breuer: a idéia de a alucinação ser uma “retrogressão” das imagens mentais para a percepção (ver em [1]), a tese de que as funções da percepção e da memória não podem ser realizadas pelo mesmo aparelho (ver em [1]), e, finalmente, causando grande surpresa, a distinção entre a energia psíquica ligada (tônica) e a não-ligada (móvel) e a distinção correlata entre os processos psíquicos primário e secundário (ver em [1]).
O emprego do termo “Besetzung” (“catexia”), que aparece pela primeira vez em [1]-[2] com o sentido que iria tornar-se tão familiar na teoria psicanalítica, provavelmente deve ser atribuído a Freud. Como é natural, a idéia de todo o aparelho mental, ou parte dele, transportar uma carga de energia é pressuposta pelo princípio da constância. E embora o termo real que iria transformar-se no padrão fosse empregado pela primeira vez neste volume, a idéia fora antes expressa por Freud sob outras formas. Assim, encontramo-lo utilizando expressões tais como “mit Energie ausgestattet” (“suprido de energia”) (1895b), “mit einer Erregungssumme behaftet (“carregado de uma soma de excitação”) (1894a), “munie d’une valeur affective” (“provido de uma cota de afeto”) (1893c), “Verschiebungen von Erregungs summen” (“deslocamentos de somas de excitação”) (1941a |1892|) e, já no prefácio a sua primeira tradução de Bernheim (1888-9) “Verschiebungen von Erregbarkeit im Nervensystem” (deslocamentos de excitabilidade no sistema nervoso”).
Esta última citação, porém, constitui um lembrete de algo de grande importância que pode muito facilmente ser desprezado. Não há dúvida alguma de que, na época da publicação dos Estudos, Freud considerava o termo “catexia” como puramente fisiológico. Isso é comprovado pela definição do termo dada por ele na Parte I, Seção 2, de seu “Projeto para uma Psicologia Científica”, com o qual sua mente já estava ocupada (como se verifica nas cartas a Fliess) e que foi escrito apenas alguns meses depois. Ali, após fornecer uma explicação sobre uma entidade neurológica recém-descoberta, o “neurônio”, prossegue ele: “Se combinarmos esta descrição dos neurônios com uma abordagem nos moldes da teoria da quantidade, chegaremos à idéia de uma neurônio ‘catexizado’, cheio de certa quantidade, embora em outras ocasiões possa estar vazio.” A propensão neurológica das teorias de Freud nesse período é indicada ainda pela forma como o princípio da constância é enunciado no mesmo trecho do “Projeto”. Recebe a designação de “o princípio da inércia neuronal” e é definido como indicativo de “que os neurônios tendem a desembaraçar-se da quantidade”. Revela-se assim um notável paradoxo. Breuer, como veremos adiante (ver em [1]), declara sua intenção de tratar o assunto da histeria em moldes puramente psicológicos: “No que se segue, pouca menção será feita ao cérebro e absolutamente nenhuma às moléculas. Os processos psíquicos serão tratados na linguagem da psicologia.” Na verdade, porém, seu capítulo teórico versa basicamente sobre as “excitações intracerebrais” e sobre paralelos entre o sistema nervoso e as instalações elétricas. Por outro lado, Freud dedicava todas as suas energias a explicar os fenômenos mentais em termos fisiológicos e químicos. Não obstante, como ele próprio confessa com pesar (ver em [1]), seus casos clínicos têm a forma de contos e suas análises são psicológicas.
A verdade é que, em 1895, Freud encontrava-se a meio caminho no processo de passar das explicações fisiológicas dos estados psicopatológicos para as explicações psicológicas. Por um lado, propunha o que era, em linhas gerais, uma explicação química das neuroses “atuais” - neurastenia e neurose de angústia - (em seus dois artigos sobre neurose de angústia, 1895b e 1895f), e, por outro, propunha uma explicação essencialmente psicológica - em termos de “defesa” e “recalcamento” - para a histeria e as obsessões (em seus dois artigos sobre “As Neuropsicoses de Defesa”, 1894a e 1896b). Sua formação anterior e sua carreira como neurologista levavam-no a resistir à aceitação das explicações psicológicas como definitivas; e ele estava empenhado em elaborar uma estrutura complexa de hipóteses destinadas a possibilitar a descrição dos eventos mentais em termos puramente neurológicos. Essa tentativa culminou no “Projeto” e foi abandonada não muito depois. Até o fim da vida, porém, Freud continuou adepto da etiologia química das neuroses “atuais” e a acreditar que se acabaria encontrando uma base física para todos os fenômenos mentais. Entrementes, ele chegou pouco a pouco ao ponto de vista expresso por Breuer de que os processos psíquicos só podem ser tratados na linguagem da psicologia.  Foi só em 1905 (em seu livro sobre o chiste, Capítulo V) que ele pela primeira vez repudiou de forma explícita qualquer intenção de empregar o termo “catexia” em algum sentido que não fosse o psicológico e abandonou todas as tentativas de relacionar os tratos nervosos ou os neurônios com as vias de associação mental.
 Quais eram, porém, as divergências científicas essenciais entre Breuer e Freud? Em seu Estudo Autobiográfico (1925d) Freud afirma que a primeira delas relacionava-se com a etiologia da histeria e poderia ser descrita como “os estados hipnóides versus as neuroses de defesa”. Mais uma vez, no entanto, aqui mesmo neste volume, o problema é menos nítido. Na “Comunicação Preliminar” elaborada em conjunto, ambas as etiologias são aceitas (ver em [1]). Breuer, em seu capítulo teórico, evidentemente dá maior ênfase aos estados hipnóides (ver em [1]), mas também acentua a importância da “defesa” (ver em [1] e [2]), embora de modo pouco entusiástico. Freud parece aceitar a noção dos “estados hipnóides” no caso clínico de “Katharina” (ver em [1]) e, de modo menos definitivo, no da Sra. Elisabeth (ver em [1]). É só no capítulo final que seu ceticismo começa a tornar-se evidente (ver em [1]). Num artigo sobre “A Etiologia da Histeria”, publicado no ano seguinte (1896c), esse ceticismo é expresso de forma ainda mais franca e, numa nota de rodapé ao caso de “Dora” (1905e), Freud declara que a expressão “estados hipnóides” é “desnecessária e confusa” e que a hipótese “decorreu inteiramente da iniciativa de Breuer” (Edição Standard Brasileira, 1ª edição, Vol. VII, pág. 25n).
Mas a principal diferença de opinião entre os dois autores, na qual Freud posteriormente insistiu, dizia respeito ao papel desempenhado pelos impulsos sexuais na causação da histeria. Também aqui, contudo, verificaremos que a divergência expressa aparece de uma forma menos clara do que seria de se esperar. A crença de Freud na origem sexual da histeria pode ser inferida com bastante clareza a partir da discussão em seu capítulo sobre a psicoterapia (ver em. [1]), mas em nenhum ponto ele chega a afirmar, como faria mais tarde, que uma etiologia sexual se mostra invariavelmente presente nos casos de histeria. Por outro lado, Breuer fala em vários pontos, e usando os termos mais incisivos, sobre a importância do papel desempenhado pela sexualidade nas neuroses, e o faz em especial no longo trecho em [1] e segs. Diz ele, por exemplo (como já se observou, em [1]), que “a pulsão sexual é sem dúvida a fonte mais poderosa dos aumentos persistentes de excitação (e, conseqüentemente, das neuroses)” (ver em [1]), e declara (ver em [1]) que “a grande maioria das neuroses graves nas mulheres tem sua origem no leito conjugal”.
Parece que, para encontrarmos uma explicação satisfatória para a dissolução dessa parceria científica, deveríamos olhar o que está atrás da palavra impressa. As cartas de Freud a Fliess mostram Breuer como um homem cheio de dúvidas e reservas, sempre inseguro em suas conclusões. Há um exemplo extremo disso numa carta de 8 de novembro de 1895 (1950a, Carta 35), cerca de seis meses após a publicação dos Estudos: “Não faz muito tempo, no Colégio de Medicina, Breuer fez um longo discurso falando de mim, no qual anunciou sua conversão à crença na etiologia sexual |das neuroses|. Quando o chamei de lado para agradecer-lhe, ele estragou meu prazer, dizendo: ‘Ainda assim não creio nisso.’ Você consegue entender isso? Eu, não.” Algo dessa natureza pode ser lido nas entrelinhas das contribuições de Breuer aos Estudos, onde temos o quadro de um homem meio temeroso de suas próprias descobertas notáveis. Era inevitável que ele ficasse ainda mais desconcertado pelo pressentimento das descobertas ainda mais inquietantes que estavam por vir; e era inevitável que Freud, por sua vez, se sentisse prejudicado e irritado com as incômodas hesitações de seu companheiro de trabalho.
Seria enfadonho enumerar os muitos trechos, nas obras posteriores de Freud, nos quais ele se refere aos Estudos sobre a Histeria e a Breuer; porém, algumas citações ilustrarão a variação da ênfase em sua atitude para com eles.
Nos numerosos relatos abreviados de seus métodos terapêuticos e das teorias psicológicas que publicou durante os anos logo após o lançamento dos Estudos, Freud se esforçou por ressaltar as diferenças entre a “psicanálise” e o método catártico - as inovações técnicas, a extensão de seu processo quanto às outras neuroses que não a histeria, o estabelecimento da motivação da “defesa”, a insistência numa etiologia sexual e, como já vimos, a rejeição final dos “estados hipnóides”. Ao chegarmos à primeira série das obras principais de Freud - os volumes sobre sonhos (1900a), parapraxias (1901b), chistes (1905c) e sexualidade (1905d) - naturalmente há pouco ou nenhum material retrospectivo; e é somente nas cinco conferências proferidas na Universidade de Clark (1910a) que vamos encontrar um levantamento histórico extenso. Nessas conferências, Freud parecia ansioso por estabelecer a continuidade entre sua obra e a de Breuer. Toda a primeira conferência e grande parte da segunda são dedicadas a um resumo dos Estudos, e a impressão da era a de que não Freud, e sim Breuer era o verdadeiro fundador da psicanálise.
O longo levantamento retrospectivo seguinte, na “História do Movimento Psicanalítico” (1914d), teve um tom muito diferente. Todo o artigo, naturalmente, teve uma intenção polêmica, e não é de surpreender que, ao esboçar a história inicial da psicanálise, Freud frisasse mais suas divergências com Breuer do que sua dívida para com ele, e que revogasse explicitamente sua visão de Breuer como o fundador da psicanálise. Também nesse artigo Freud discorreu largamente sobre a incapacidade de Breuer para enfrentar a transferência sexual e revelou o “lastimável evento” que encerrou a análise de Anna O (ver em [1]).
A seguir veio o que parece ser quase uma amende- já mencionada na ver em [1]: a inesperada atribuição a Breuer da distinção entre a energia psíquica ligada e a não-ligada e entre os processos primário e secundário. Não tinha havido nenhuma sugestão dessa atribuição quando essas hipóteses foram originalmente introduzidas por Freud (em A Interpretação dos Sonhos); ela foi feita pela primeira vez numa nota de rodapé à Seção V do artigo metapsicológico sobre “O Inconsciente” (1915e) e repetida em Além do Princípio do Prazer (1920g); (Edição Standard Brasileira, Vol. XVIII, em [1] e [2]). Não muito tempo depois houve algumas frases de louvor num artigo preparado por Freud para o Handwörterbuch de Marcuse (1923a; Edição Standard Brasileira, Vol. XVIII, em [1]): “Numa seção teórica dos Estudos, Breuer propôs algumas idéias especulativas sobre os processos de excitação da mente. Essas idéias determinaram a direção das futuras linhas de pensamento…” Mais ou menos na mesma orientação, Freud escreveu, um pouco depois, numa contribuição para uma publicação norte-americana (1924f): “O método catártico foi o precursor imediato da psicanálise e, apesar de toda amplitude da experiência e de todas as modificações de teoria, ainda se acha contido nela como seu núcleo.”
O longo levantamento histórico de Freud que se seguiu, Um Estudo Autobiográfico (1925d), pareceu mais uma vez afastar-se da obra conjunta: “Se o relato que fiz até agora”, escreveu, “levou o leitor a esperar que os Estudos sobre a Histeria, em todos os pontos essenciais de seu conteúdo, tenham sido um produto da mente de Breuer, isso é precisamente o que eu mesmo sempre sustentei… No tocante à teoria formulada no livro, fui parcialmente responsável, mas numa medida que hoje não é mais possível determinar. Aquela teoria, de qualquer modo, era despretensiosa e mal foi além da descrição direta das observações.” E acrescentou que “teria sido difícil adivinhar, pelos Estudos sobre a Histeria, a importância que tem a sexualidade na etiologia das neuroses”, passando mais uma vez a descrever a relutância de Breuer em reconhecer esse fator.
Logo depois disso Breuer faleceu, e talvez seja apropriado encerrar esta introdução à obra conjunta com uma citação do necrológio feito por Freud sobre seu colaborador (1925g). Depois de comentar a relutância de Breuer em publicar os Estudos e de declarar que o principal mérito dele próprio em relação a essa obra fora o de haver persuadido Breuer a concordar com seu lançamento, prosseguiu: “Na época em que ele aceitou minha influência e estava elaborando os Estudos para publicação, seu julgamento do significado da obra pareceu confirmar-se. ‘Creio’, disse-me ele, ‘que esta é a coisa mais importante que nós dois temos a dar ao mundo’. Além do caso clínico de sua primeira paciente, Breuer redigiu um artigo teórico para os Estudos. Esse texto está muito longe de ser desatualizado; pelo contrário, oculta pensamentos e sugestões que não foram suficientemente levados em conta. Qualquer um que se aprofunde nesse ensaio especulativo formará uma verdadeira impressão da estatura mental desse homem cujos interesses científicos, infelizmente, só foram orientados na direção de nossa psicopatologia por um curto episódio de sua longa vida.”

PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO
 Em 1893 publicamos a “Comunicação Preliminar” sobre um novo método de examinar e tratar os fenômenos histéricos. A ela acrescentamos, de forma tão concisa quanto possível, as conclusões teóricas a que havíamos chegado. Estamos aqui reimprimindo essa “Comunicação Preliminar” para servir como a tese que temos por finalidade ilustrar e provar.
Anexamos a ela uma série de casos clínicos cuja seleção, infelizmente, não pôde ser determinada em bases puramente científicas. Nossa experiência provém da clínica particular numa classe social culta e letrada, e o assunto com que lidamos muitas vezes aborda a vida e a história mais íntimas de nossos pacientes. Constituiria grave quebra de confiança publicar material dessa espécie, com o risco de os pacientes serem identificados e seus conhecidos ficarem a par de fatos confiados apenas ao médico. Foi-nos portanto impossível fazer uso de algumas das nossas observações mais instrutivas e convincentes. Isso naturalmente se aplica de forma especial a todos os casos em que as relações sexuais e maritais desempenham um importante papel etiológico. Assim, ocorre que só conseguimos apresentar provas muito incompletas em favor de nosso ponto de vista de que a sexualidade parece desempenhar um papel fundamental na patogênese da histeria, como fonte de traumas psíquicos e como motivação para a “defesa” - isto é, para que as idéias sejam recalcadas da consciência. Foram precisamente as observações de natureza marcadamente sexual que nos vimos obrigados a não publicar.
Os casos clínicos são seguidos de diversas considerações teóricas e, num capítulo final sobre terapia, propõe-se a técnica do “método catártico” tal como se desenvolveu nas mãos do neurologista.
Se em algumas ocasiões se expressam opiniões divergentes e até mesmo contraditórias, isso não deve ser considerado como prova de qualquer vacilação em nossos pontos de vista. Decorre das divergências naturais e justificáveis entre as opiniões dos dois observadores que estão de acordo quanto aos fatos e à leitura básica dos mesmos, mas que nem sempre concordam invariavelmente em suas interpretações e conjeturas.
 J. BREUER, S. FREUD
Abril de 1895

PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
 O interesse que, em grau sempre crescente, vem se voltando para a psicanálise parece agora estar-se estendendo a estes Estudos sobre a Histeria. O editor deseja publicar nova edição do livro, que no momento se acha esgotado. Aparece ele agora numa reimpressão sem quaisquer alterações, embora as opiniões e os métodos apresentados na primeira edição tenham desde então passado por desenvolvimentos de longo alcance e profundidade. No que me diz respeito, pessoalmente, desde aquela época não lidei ativamente com o assunto; não tive nenhuma participação em seu importante desenvolvimento e nada poderia acrescentar de novo ao que foi escrito em 1895. Assim, nada pude fazer além de expressar o desejo de que minhas duas contribuições ao volume fossem reimpressas sem alteração.
 BREUER
 Também quanto a minha participação no livro, a única decisão possível é que o texto da primeira edição seja reimpresso sem alteração. Os desenvolvimentos e mudanças ocorridos em meus pontos de vista no decorrer de treze anos de trabalho foram extensos demais para que seja possível vinculá-los a minha anterior exposição sem destruir inteiramente seu caráter essencial. Tampouco tenho qualquer motivo para desejar eliminar esta prova de meus conceitos iniciais. Ainda hoje não os considero como erros, mas como valiosas primeiras aproximações de um conhecimento que só poderia ser plenamente adquirido após longos e continuados esforços. O leitor atento será capaz de descobrir neste livro os germes de tudo aquilo que desde então foi acrescentado à teoria da catarse; por exemplo, o papel desempenhado pelos fatores psicossexuais e pelo infantilismo, e a importância dos sonhos e do simbolismo inconsciente. E não posso dar melhor conselho a qualquer interessado no desenvolvimento da catarse até chegar à psicanálise do que começar pelos Estudos sobre a Histeria e, desse modo, seguir o caminho que eu próprio trilhei.

FREUD
VIENA, julho de 1908
  

I - SOBRE O MECANISMO PSÍQUICO DOS FENÔMENOS HISTÉRICOS:
COMUNICAÇÃO PRELIMINAR (1893)
(BREUER E FREUD)


I
Uma observação casual levou-nos, durante vários anos, a pesquisar uma grande variedade de diferentes formas e sintomas de histeria, com vistas a descobrir sua causa precipitante - o fato que teria provocado a primeira ocorrência, muitos anos antes com freqüência, do fenômeno em questão. Na grande maioria dos casos não é possível estabelecer o ponto de origem através da simples interrogação do paciente, por mais minuciosamente que seja levada a efeito. Isso se verifica, em parte, porque o que está em questão é, muitas vezes, alguma experiência que o paciente não gosta de discutir; mas ocorre principalmente porque ele é de fato incapaz de recordá-la e, muitas vezes, não tem nenhuma suspeita da conexão causal entre o evento desencadeador e o fenômeno patológico. Via de regra, é necessário hipnotizar o paciente e provocar, sob hipnose, suas lembranças da época em que o sintoma surgiu pela primeira vez; feito isso, torna-se possível demonstrar a conexão causal da forma mais clara e convincente.
Esse método de exame tem produzido, num grande número de casos, resultados que se afiguram valiosos tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista prático.
Eles são teoricamente valiosos porque nos ensinaram que os fatos externos determinam a patologia da histeria numa medida muito maior do que se sabe e reconhece. Naturalmente, é óbvio que, nos casos de histeria “traumática”, o que provoca os sintomas é o acidente. A ligação causal evidencia-se igualmente nos ataques histéricos quando é possível deduzir dos enunciados do paciente que, em cada ataque, ele está alucinando o mesmo evento que provocou o primeiro deles. A situação é mais obscura no caso de outros fenômenos.
Nossas experiências, porém, têm demonstrado que os mais variados sintomas, que são ostensivamente espontâneos e, como se poderia dizer, produtos idiopáticos da histeria, estão tão estritamente relacionados com o trauma desencadeador quanto os fenômenos a que acabamos de aludir e que exibem a conexão causal de maneira bem clara. Os sintomas cujo rastro pudemos seguir até os referidos fatores desencadeadores deste tipo abrangem nevralgias e anestesias de naturezas muito diversas, muitas das quais haviam persistido durante anos, contraturas e paralisias, ataques histéricos e convulsões epileptóides, que os observadores consideravam como epilepsia verdadeira, petit mal e perturbações da ordem dos tiques, vômitos crônicos e anorexia, levados até o extremo de rejeição de todos os alimentos, várias formas de perturbação da visão, alucinações visuais constantemente recorrentes, etc. A desproporção entre os muitos anos de duração do sintoma histérico e a ocorrência isolada que o provocou é o que estamos invariavelmente habituados a encontrar nas neuroses traumáticas. Com grande freqüência, é algum fato da infância que estabelece um sintoma mais ou menos grave, que persiste durante os anos subseqüentes.
Muitas vezes, a ligação é tão nítida que se torna bem evidente como foi que o fato desencadeante produziu um dado fenômeno específico, de preferência a qualquer outro. Nesse caso, o sintoma foi de forma bem óbvia determinado pela causa desencadeadora. Podemos tomar como exemplo muito comum uma emoção penosa surgida durante uma refeição, mas suprimida na época, e que produz então náuseas e vômitos que persistem por meses sob a forma de vômitos histéricos. Uma jovem que velava o leito de um enfermo, atormentada por uma grande angústia, caiu num estado crepuscular e teve uma alucinação aterrorizante, enquanto seu braço direito, que pendia sobre o dorso da cadeira, ficou dormente; disso proveio uma paresia do mesmo braço, acompanhada de contratura e anestesia. Ela tentou rezar, mas não conseguiu encontrar as palavras; por fim, conseguiu repetir uma oração para crianças em inglês. Posteriormente, ao surgir uma histeria grave e altamente complicada, ela só conseguia falar, escrever e compreender o inglês, enquanto sua língua materna permaneceu ininteligível para ela por dezoito meses. - A mãe de uma criança muito doente, que finalmente adormecera, concentrou toda a sua força de vontade em manter-se imóvel a fim de não despertá-la. Precisamente por causa da sua intenção, produziu um ruído de “estalo” com a língua. (Um exemplo de “contravontade histérica”.) Esse ruído se repetiu numa ocasião subseqüente em que ela desejava manter-se perfeitamente imóvel, tendo dele surgido um tique que, sob a forma de um estalido com a língua, ocorreu durante um período de muitos anos sempre que ela se sentia excitada. - Um homem muito inteligente estava presente quando uma articulação da coxa anquilosada de seu irmão foi submetida a uma manobra de extensão sob a ação de um anestésico. No momento em que a articulação cedeu com um estalido, ele sentiu uma dor violenta em sua própria articulação, que persistiu por quase um ano. - Outros exemplos poderiam ser citados.
Em outros casos a conexão causal não é tão simples. Consiste apenas no que se poderia denominar uma relação “simbólica” entre a causa precipitante e o fenômeno patológico - uma relação do tipo da que as pessoas saudáveis formam nos sonhos. Por exemplo, uma nevralgia pode sobrevir após um sofrimento mental, ou vômitos após um sentimento de repulsa moral. Temos estudado pacientes que costumavam fazer o mais abundante uso dessa espécie de simbolização. Noutros casos ainda, não é possível compreender à primeira vista como os sintomas podem ser determinados à maneira como sugerimos. São precisamente os sintomas histéricos típicos que se enquadram nessa classe, tais como a hemianestesia, a contração do campo visual, as convulsões epileptiformes e assim por diante. Uma explicação de nossos pontos de vista sobre esse grupo deve ser reservada para um exame mais acurado do assunto.
Observações como essas nos parecem estabelecer uma analogia entre a patogênese da histeria comum e a das neuroses traumáticas e justificar uma extensão do conceito de histeria traumática. Nas neuroses traumáticas, a causa atuante da doença não é o dano físico insignificante, mas o afeto do susto - o trauma psíquico. De maneira análoga, nossas pesquisas revelam para muitos, se não para a maioria dos sintomas histéricos, causas desencadeadoras que só podem ser descritas como traumas psíquicos. Qualquer experiência que possa evocar afetos aflitivos - tais como os de susto, angústia, vergonha ou dor física - pode atuar como um trauma dessa natureza; e o fato de isso acontecer de verdade depende, naturalmente, da suscetibilidade da pessoa afetada (bem como de outra condição que será mencionada adiante). No caso da histeria comum não é rara a ocorrência, em vez de um trauma principal isolado, de vários traumas parciais que formam um grupo de causas desencadeadoras. Essas causas só puderam exercer um efeito traumático por adição e constituem um conjunto por serem, em parte, componentes de uma mesma história de sofrimento. Existem outros casos em que uma circunstância aparentemente trivial se combina com o fato realmente atuante ou ocorre numa ocasião de peculiar suscetibilidade ao estímulo e, dessa forma, atinge a categoria de um trauma, que de outra forma não teria tido, mas que daí por diante persiste.
Mas a relação causal entre o trauma psíquico determinante e o fenômeno histérico não é de natureza a implicar que o trauma atue como mero agent provocateur na liberação do sintoma, que passa então a levar uma existência independente. Devemos antes presumir que o trauma psíquico - ou, mais precisamente, a lembrança do trauma - age como um corpo estranho que, muito depois de sua entrada, deve continuar a ser considerado como um agente que ainda está em ação; encontramos a prova disso num fenômeno invulgar que, ao mesmo tempo, traz um importante interesse prático para nossas descobertas.
É que verificamos, a princípio com grande surpresa, que cada sintoma histérico individual desaparecia, de forma imediata e permanente, quando conseguíamos trazer à luz com clareza a lembrança do fato que o havia provocado e despertar o afeto que o acompanhara, e quando o paciente havia descrito esse fato com o maior número de detalhes possível e traduzido o afeto em palavras. A lembrança sem afeto quase invariavelmente não produz nenhum resultado. O processo psíquico originalmente ocorrido deve ser repetido o mais nitidamente possível; deve ser levado de volta a seu status nascendi e então receber expressão verbal. Quando aquilo com que estamos lidando são fenômenos que envolvem estímulos (espasmos, nevralgias e alucinações), estes reaparecem mais uma vez com intensidade máxima e a seguir desaparecem para sempre. As deficiências funcionais, tais como paralisias e anestesias, desaparecem da mesma maneira, embora, é claro, sem que a intensificação temporária seja discernível.

É plausível supor que se trata aqui de sugestão inconsciente: o paciente espera ser aliviado de seus sofrimentos por esse procedimento, e é essa expectativa, e não a expressão verbal, o fator operativo. Mas não é isso que ocorre. O primeiro caso dessa natureza a ser objeto de observação remonta ao ano de 1881, isto é, à era da “pré-sugestão”. Um caso muito complicado de histeria foi analisado dessa maneira, e os sintomas que decorriam de causas distintas foram distintamente eliminados. Essa observação foi possibilitada por auto-hipnoses espontâneas por parte do paciente, e surgiu com uma grande surpresa para o observador.
Podemos inverter a máxima “cessante causa cessat effectus” |“cessando a causa cessa o efeito”| e concluir dessas observações que o processo determinante continua a atuar, de uma forma ou de outra, durante anos - não indiretamente, através de uma corrente de elos causais intermediários, mas como uma causa diretamente liberadora - da mesma forma que um sofrimento psíquico que é recordado no estado consciente de vigília ainda provoca uma secreção lacrimal muito tempo depois de ocorrido o fato. Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências.



II

À primeira vista parece extraordinário que fatos experimentados há tanto tempo possam continuar a agir de forma tão intensa - que sua lembrança não esteja sujeita ao processo de desgaste a que, afinal de contas, vemos sucumbirem todas as nossas recordações. Talvez as considerações que se seguem possam tornar isso um pouco mais inteligível.
O esmaecimento de uma lembrança ou a perda de seu afeto dependem de vários fatores. O mais importante destes é se houve uma reação energética ao fato capaz de provocar um afeto. Pelo termo “reação” compreendemos aqui toda a classe de reflexos voluntários e involuntários - das lágrimas aos atos de vingança - nos quais, como a experiência nos mostra, os afetos são descarregados. Quando essa reação ocorre em grau suficiente, grande parte do afeto desaparece como resultado. O uso da linguagem comprova esse fato de observação cotidiana com expressões como “desabafar pelo pranto” |“sich ausweinen”| e “desabafar através de um acesso de cólera” |“sich austoben”, literalmente “esvair-se em cólera”|. Quando a reação é reprimida, o afeto permanece vinculado à lembrança. Uma ofensa revidada, mesmo que apenas com palavras, é recordada de modo bem diferente de outra que teve que ser aceita. A linguagem também reconhece essa distinção, em suas conseqüências mentais e físicas; de maneira bem característica, ela descreve uma ofensa sofrida em silêncio como “uma mortificação” |“Kränkung”, literalmente, um “fazer adoecer”|. - A reação da pessoa insultada em relação ao trauma só exerce um efeito inteiramente “catártico” se for uma reação adequada - como, por exemplo, a vingança. Mas a linguagem serve de substituta para a ação; com sua ajuda, um afeto pode ser “ab-reagido” quase com a mesma eficácia. Em outros casos, o próprio falar é o reflexo adequado: quando, por exemplo, essa fala corresponde a um lamento ou é a enunciação de um segredo torturante, por exemplo, uma confissão. Quando não há uma reação desse tipo, seja em ações ou palavras, ou, nos casos mais benignos, por meio de lágrimas, qualquer lembrança do fato preserva sua tonalidade afetiva do início.
A “ab-reação”, contudo, não é o único método de lidar com a situação para uma pessoa normal que tenha experimentado um trauma psíquico. Uma lembrança desse trauma, mesmo que não tenha sido ab-reagida, penetra no grande complexo de associações, entra em confronto com outras experiências que possam contradizê-la, e está sujeita à retificação por outras representações. Depois de um acidente, por exemplo, a lembrança do perigo e a repetição (mitigada) do medo é associada à lembrança do que ocorreu depois - o socorro e a situação consciente da segurança atual. Da mesma forma, a lembrança de uma humilhação é corrigida quando a pessoa situa os fatos no devidos lugares, considerando seu próprio valor, etc. Desse modo, uma pessoa normal é capaz de provocar o desaparecimento do afeto concomitante por meio do processo de associação.
A isso devemos acrescentar a obliteração geral das impressões, o evanescimento das lembranças a que chamamos “esquecimento” e que desgasta as representações não mais afetivamente atuantes.
Nossas observações demonstraram, por outro lado, que as lembranças que se tornaram os determinantes de fenômenos histéricos persistem por longo tempo com surpreendente vigor e com todo o seu colorido afetivo. Devemos, contudo, mencionar outro fato notável do qual posteriormente poderemos tirar proveito, a saber, que essas lembranças, em contraste com outras de sua vida passada, não se acham à disposição do paciente. Pelo contrário, essas experiências estão inteiramente ausentes da lembrança dos pacientes quando em estado psíquico normal, ou só se fazem presentes de forma bastante sumária. Apenas quando o paciente é inquirido sob hipnose é que essas lembranças emergem com a nitidez inalterada de um fato recente.
Assim, durante nada menos de seis meses, uma de nossas pacientes reproduziu sob hipnose, com uma nitidez alucinatória, tudo o que a havia excitado no mesmo dia no ano anterior (durante um ataque de histeria aguda). Um diário mantido por sua mãe sem o conhecimento da paciente provou a inteireza da reprodução |ver em [1]|. Outra paciente, em parte sob hipnose e em parte durante ataques espontâneos, reviveu com clareza alucinatória todos os fatos de uma psicose histérica que experimentara dez anos antes e que havia esquecido, em sua maior parte, até o momento em que ela ressurgiu. Além disso, verificou-se que certas lembranças de importância etiológica que datavam dos quinze aos vinte e cinco anos estavam surpreendentemente intactas e possuíam uma intensidade sensorial notável, e que, ao retornarem, atuaram com toda a força afetiva das experiências novas |ver em [1]-[2]|.
Isso só pode ser explicado pelo fato de que essas lembranças constituem uma exceção em sua relação com todos os processos de desgaste que examinamos atrás. Em outras palavras: parece que essas lembranças correspondem a traumas que não foram suficientemente ab-reagidos; e se penetrarmos mais a fundo nos motivos que impediram isso, encontraremos pelo menos dois grupos de condições sob as quais a reação ao trauma deixa de ocorrer.
No primeiro grupo acham-se os casos em que os pacientes não reagiram a um trauma psíquico porque a natureza do trauma não comportava reação, como no caso da perda obviamente irreparável de um ente querido, ou porque as circunstâncias sociais impossibilitavam uma reação, ou porque se tratava de coisas que o paciente desejava esquecer, e portanto, recalcara intencionalmente do pensamento consciente, inibindo-as e suprimindo-as. São precisamente as coisas aflitivas dessa natureza que, sob hipnose, constatamos serem a base dos fenômenos histéricos (por exemplo, os delírios histéricos de santos e freiras, de mulheres que guardam a castidade e de crianças bem-educadas).
O segundo grupo de condições é determinado, não pelo conteúdo das lembranças, mas pelos estados psíquicos em que o paciente recebeu as experiências em questão, pois encontramos sob hipnose, dentre as causas dos sintomas histéricos, representações que em si mesmas não são importantes, mas cuja persistência se deve ao fato de que se originaram durante a prevalência de afetos gravemente paralisantes, tais como o susto, ou durante estados psíquicos positivamente anormais, como o estado crepuscular semi-hipnótico dos devaneios, a auto-hipnose, etc. Em tais casos, é a natureza dos estados que torna impossível uma reação ao acontecimento.
É claro que ambas as espécies de condições podem estar presentes ao mesmo tempo, e isso de fato ocorre com freqüência. É o que acontece quando um trauma que é atuante por si mesmo ocorre enquanto predomina um afeto gravemente paralisante, ou durante um estado de alteração da consciência. Mas também parece ser verdade que em muitas pessoas um trauma psíquico produz um desses estados anormais, o que, por sua vez, torna a reação impossível.

Ambos os grupos de condições, porém, possuem em comum o fato de que os traumas psíquicos que não foram eliminados pela reação também não podem sê-lo pela elaboração por meio da associação. No primeiro grupo, o paciente está decidido a esquecer as experiências aflitivas e, por conseguinte, as exclui tanto quanto possível da associação; já no segundo grupo, a elaboração associativa deixa de ocorrer porque não existe nenhuma vinculação associativa abrangente entre o estado normal da consciência e os estados patológicos em que as representações surgiram. Logo teremos ocasião de nos aprofundarmos nesse assunto.
Assim, pode-se dizer que as representações que se tornaram patológicas persistiram com tal nitidez e intensidade afetiva porque lhes foram negados os processos normais de desgaste por meio da ab-reação e da reprodução em estados de associação não inibida.


III

Mencionamos as condições que, como demonstra nossa experiência, são responsáveis pelo desenvolvimento de fenômenos histéricos provenientes de traumas psíquicos. Ao fazê-lo, já fomos obrigados a falar nos estados anormais de consciência em que surgem essas representações patogênicas e a ressaltar o fato de que a lembrança do trauma psíquico atuante não se encontra na memória normal do paciente, mas em sua memória ao ser hipnotizado. Quanto mais nos ocupamos desses fenômenos, mais nos convencemos de que a divisão da consciência, que é tão marcante nos casos clássicos conhecidos sob a forma de “double conscience”, acha-se presente em grau rudimentar em toda histeria, e que a tendência a tal dissociação, e com ela ao surgimento dos estados anormais da consciência que (reuniremos sob a designação de “hipnóides”), constitui o fenômeno básico dessa neurose. Quanto a esses concordamos com Binet e com os dois Janets, embora não tenhamos tido nenhuma experiência das notáveis descobertas que eles fizeram com pacientes anestésicos.
Gostaríamos de contrabalançar a conhecida tese de que a hipnose é uma histeria artificial com uma outra - a de que a base e condição sine qua non da histeria é a existência de estados hipnóides. Esses estados hipnóides partilham uns com os outros e com a hipnose, por mais que difiram sob outros aspectos, uma característica comum: as representações que neles surgem são muito intensas, mas estão isoladas da comunicação associativa com o restante do conteúdo da consciência. Podem ocorrer associações entre esses estados hipnóides, e seu conteúdo representativo pode, dessa forma, atingir um grau mais ou menos elevado de organização psíquica. Além disso, deve-se supor que a natureza desses estados e a extensão em que ficam isolados dos demais processos da consciência variam do mesmo modo que ocorre na hipnose, que vai desde uma leve sonolência até o sonambulismo, de uma lembrança completa até a amnésia total.
Quando os estados hipnóides dessa natureza já se acham presentes antes da instalação da doença manifesta, eles fornecem o terreno em que o afeto planta a lembrança patogênica com suas conseqüentes manifestações somáticas. Isso corresponde à histeria disposicional. Verificamos, todavia, que um trauma grave (tal como ocorre numa neurose traumática) ou uma supressão trabalhosa (como a de um afeto sexual, por exemplo) podem ocasionar uma divisão expulsiva de grupos de representações mesmo em pessoas que, sob outros aspectos, não estão afetadas; e esse seria o mecanismo da histeria psiquicamente adquirida. Entre os extremos dessas duas formas devemos presumir a existência de uma série de casos dentro dos quais a tendência à dissociação do indivíduo e a magnitude afetiva do trauma variam numa proporção inversa.
Nada temos de novo a dizer sobre a questão da origem desses estados hipnóides disposicionais. Ao que parece, eles freqüentemente emergem dos devaneios que são tão comuns até mesmo nas pessoas sadias e aos quais os trabalhos de costura e ocupações semelhantes tornam as mulheres particularmente propensas. Por que é que as “associações patológicas” surgidas nesses estados são tão estáveis, e por que é que exercem uma influência tão maior sobre os processos somáticos do que costumam fazer as representações, são perguntas que coincidem com o problema geral da eficácia das sugestões hipnóticas. Nossas observações não trazem nenhuma nova contribuição para esse assunto, mas lançam luz sobre a contradição entre a máxima “a histeria é uma psicose” e o fato de que, entre os histéricos, podem-se encontrar pessoas da mais lúcida inteligência, da maior força de vontade, do melhor caráter e da mais alta capacidade crítica. Essa caracterização é válida em relação a seus pensamentos em estado de vigília, mas, em seus estados hipnóides, elas são insanas, como somos todos nos sonhos. Todavia, enquanto nossas psicoses oníricas não exercem nenhum efeito sobre nosso estado de vigília, os produtos dos estados hipnóides intrometem-se na vigília sob a forma de sintomas histéricos.

IV

O que afirmamos sobre os sintomas histéricos crônicos pode ser aplicado quase que integralmente aos ataques histéricos. Charcot, como se sabe, deu-nos uma descrição esquemática do “grande” ataque histérico, segundo a qual se podem distinguir quatro fases num ataque completo: (1) a fase epileptóide, (2) a fase dos movimentos amplos, (3) a fase das “atittudes passionnelles” (fase alucinatória) e (4) a fase de delírio terminal. Charcot deduz todas as formas de ataque histérico que, na prática, são encontradas com maior freqüência do que o “grande attaque” completo, a partir da abreviação ou do prolongamento, da ausência ou do isolamento dessas quatro fases distintas.
Nossa tentativa de explicação tem como ponto de partida a terceira dessas fases, a das “atittudes passionnelles”. Quando esta se acha presente numa forma bem acentuada, ela apresenta a reprodução alucinatória de uma lembrança que foi importante no desencadeamento da histeria - a lembrança de um grande trauma isolado (que encontramos par excellence no que é denominado histeria traumática) ou de uma série de traumas parciais interligados (como os subjacentes à histeria comum). Ou, finalmente, o ataque pode reviver os fatos que se tornaram relevantes em virtude de sua coincidência com um momento de predisposição especial ao trauma.
Entretanto, há também ataques que parecem consistir exclusivamente em fenômenos motores e nos quais a fase de atittudes passionnelles se acha ausente. Quando se consegue entrar em rapport com o paciente durante um ataque como esse, de espasmos clônicos generalizados ou rigidez cataléptica, ou durante um attaque de sommeil |acesso de sono| - ou quando, melhor ainda, se consegue provocar o acesso sob hipnose - verifica-se que também aqui há uma lembrança subjacente do trauma psíquico ou da série de traumas, que, de modo geral, chama nossa atenção numa fase alucinatória.
Dessa forma, durante anos, uma menina sofreu ataques de convulsões generalizadas que poderiam ser, e realmente foram, considerados como epilépticos. Ela foi hipnotizada com vistas a um diagnóstico diferencial, e de imediato teve um de seus acessos. Perguntaram-lhe o que estava vendo e ela respondeu: “O cachorro! O cachorro está vindo!”; e de fato verificou-se que tivera o primeiro de seus ataques após ter sido perseguida por um cão feroz. O êxito do tratamento confirmou o diagnóstico.
Por sua vez, um funcionário que ficara histérico em decorrência de ser maltratado por seu superior sofria de ataques em que caía no chão e tinha acessos de raiva, mas sem dizer uma só palavra ou demonstrar qualquer sinal de alucinação. Foi possível provocar um ataque sob hipnose, e o paciente então revelou estar revivendo a cena em que seu patrão o insultara na rua e batera nele com a bengala. Dias depois o paciente voltou e queixou-se de ter tido outro ataque da mesma natureza. Nessa ocasião, verificou-se sob hipnose que ele estivera revivendo a cena com que estava relacionada a instalação real da doença: a cena no tribunal em que ele não conseguira obter reparação pelas injúrias sofridas.
Também em todos os demais aspectos as lembranças que emergem ou podem ser provocadas nos ataques histéricos correspondem às causas desencadeadoras que temos encontrado na raiz dos sintomas histéricos crônicos. Tais como estas últimas causas, as lembranças subjacentes aos ataques histéricos relacionam-se com traumas psíquicos que não foram eliminados pela ab-reação ou pela atividade associativa do pensamento. À semelhança delas, estas estão, quer inteiramente, quer em seus elementos essenciais, fora do alcance da lembrança da consciência normal, e mostram pertencer ao conteúdo representativo dos estados hipnóides de consciência, com associação restrita. Por fim, também o teste terapêutico pode ser aplicado a elas. Nossas observações nos têm com freqüência ensinado que uma recordação dessa espécie, que até então havia provocado ataques, deixa de ser capaz de fazê-lo depois que os processos de reação e de correção associativa são a ela aplicados sob hipnose.
Os fenômenos motores dos ataques histéricos podem ser parcialmente interpretados como formas universais de reação apropriadas ao afeto que acompanha a lembrança (tais como espernear e agitar os braços e pernas, o que até mesmo os bebês de tenra idade fazem), e em parte como uma expressão direta dessas lembranças; mas em parte, como no caso dos estigmas histéricos verificados entre os sintomas crônicos, não podem ser explicadas dessa maneira.
Os ataques histéricos, além disso, são especialmente interessantes se tivermos em mente uma teoria que mencionamos atrás, a saber, que na histeria certos grupos de representações que se originam nos estados hipnóides estão presentes e são isolados da ligação associativa com as outras representações, mas podem associar-se entre si, formando assim o rudimento mais ou menos altamente organizado de uma segunda consciência, uma condition seconde. Se assim for, um sintoma histérico crônico corresponderá à intrusão desse segundo estado na inervação somática, que, em geral, se acha sob o controle da consciência normal. O ataque histérico, por outro lado, é prova de uma organização mais elevada desse segundo estado. Quando o ataque surge pela primeira vez, indica um momento em que essa consciência hipnóide adquiriu controle sobre toda a existência do indivíduo - indica, em outras palavras, uma histeria aguda; quando ocorre em ocasiões subseqüentes e contém uma lembrança, indica um retorno daquele momento. Charcot já sugeriu que os ataques histéricos constituem uma forma rudimentar de uma condition seconde. Durante o ataque, o controle sobre toda a inervação somática passa para a consciência hipnóide. A consciência normal, como o demonstram observações bem conhecidas, nem sempre é inteiramente recalcada. Ela pode até mesmo perceber os fenômenos motores do ataque, enquanto os fatos psíquicos concomitantes ficam fora de seu conhecimento.
O curso característico de um caso grave de histeria é, como sabemos, o seguinte: de início, forma-se um conteúdo representativo durante os estados hipnóides; quando esse conteúdo aumenta de forma suficiente, ele assume o controle, durante um período de “histeria aguda”, da inervação somática e de toda a existência do paciente, criando sintomas crônicos e ataques; depois disso, desaparece, a não ser por certos resíduos. Quando a personalidade normal consegue recuperar o controle, o que resta do conteúdo representativo hipnóide reaparece em ataques histéricos e, de tempos em tempos, leva o sujeito de volta a estados semelhantes, eles próprios novamente influenciáveis a traumas. Um estado de equilíbrio, por assim dizer, pode então ser estabelecido entre os dois grupos psíquicos que se combinam na mesma pessoa: os ataques histéricos e a vida normal prosseguem lado a lado sem que um interfira no outro. O ataque ocorre de modo espontâneo, como fazem as lembranças nas pessoas normais; contudo, é possível provocá-lo, do mesmo modo que qualquer lembrança pode ser suscitada de acordo com as leis da associação. Pode-se provocá-lo, quer pela estimulação de uma zona histerogênica, quer por uma nova experiência que o desencadeia graças a uma semelhança com a experiência patogênica. Esperamos poder demonstrar que essas duas espécies de determinantes, embora pareçam tão diferentes, não diferem quanto aos pontos essenciais, mas que em ambas uma lembrança hiperestésica é evocada.
Em outros casos esse equilíbrio é muito instável. O ataque surge como manifestação do resíduo da consciência hipnóide sempre que a personalidade está esgotada e incapacitada. Não se pode afastar a possibilidade de que, nessa situação, o ataque tenha sido despojado de seu significado original e esteja recorrendo como uma reação motora sem qualquer conteúdo.
Cabe a uma pesquisa ulterior descobrir o que é que determina se uma personalidade histérica se manifestará em ataques, em sintomas crônicos ou numa mistura de ambos.

V

Agora poderá ficar claro por que o método psicoterápico que descrevemos nestas páginas tem um efeito curativo. Ele põe termo à força atuante da representação que não fora ab-reagida no primeiro momento, ao permitir que seu afeto estrangulado encontre uma saída através da fala; e submete essa representação à correção associativa, ao introduzi-la na consciência normal (sob hipnose leve) ou eliminá-la por sugestão do médico, como se faz no sonambulismo acompanhado de amnésia.
Em nossa opinião, as vantagens terapêuticas desse método são consideráveis. Naturalmente, é verdade que não curamos a histeria na medida em que ela dependa de fatores disposicionais. Nada podemos fazer contra a recorrência dos estados hipnóides. Além disso, durante a fase produtiva de uma histeria aguda, nosso método não pode impedir que os fenômenos tão laboriosamente eliminados sejam imediatamente substituídos por outros. Tão logo passa essa fase aguda, porém, quaisquer resíduos que possam ter ficado sob a forma de sintomas crônicos ou ataques costumam ser removidos de forma permanente por nosso método, porque ele é radical; e nesse sentido ele nos parece muito superior em sua eficácia à remoção através da sugestão direta, tal como é hoje praticada pelos psicoterapeutas.
Se, ao descobrirmos o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos, demos um passo à frente na trilha inicialmente aberta com tanto êxito por Charcot, com sua explicação e sua imitação artificial das paralisias hístero-traumáticas, não podemos ocultar de nós mesmos que isso só nos aproximou um pouco mais da compreensão do mecanismo dos sintomas histéricos, e não das causas internas da histeria. Não fizemos mais do que tocar de leve na etiologia da histeria e, a rigor, só conseguimos lançar luz sobre suas formas adquiridas - sobre a importância dos fatores acidentais nessa neurose.

VIENA, dezembro de 1892

  

II - CASOS CLÍNICOS
(BREUER E FREUD)


CASO 1 - SRTA. ANNA O. (BREUER)

Na ocasião em que adoeceu (em 1880), a Srta. Anna O. contava vinte e um anos de idade. Pode-se considerar que era portadora de uma hereditariedade neuropática moderadamente grave, visto que algumas psicoses haviam ocorrido entre seus parentes mais distantes. Seus pais eram normais nesse aspecto. A própria paciente fora sempre saudável até então e não havia mostrado nenhum sinal de neurose durante seu período de crescimento. Era dotada de grande inteligência e aprendia as coisas com impressionante rapidez e intuição aguçada. Possuía um intelecto poderoso, que teria sido capaz de assimilar um sólido acervo mental e que dele necessitava - embora não o recebesse desde que saíra da escola. Anna tinha grandes dotes poéticos e imaginativos, que estavam sob o controle de um agudo e crítico bom senso. Graças a esta última qualidade, ela era inteiramente não sugestionável, sendo influenciada apenas por argumentos e nunca por meras asserções. Sua força de vontade era vigorosa, tenaz e persistente; algumas vezes, chegava ao extremo da obstinação, que só cedia pela bondade e consideração para com as outras pessoas.
Um de seus traços de caráter essenciais era a generosa solidariedade. Mesmo durante a doença, pôde ajudar muito a si mesma por ter conseguido cuidar de grande número de pessoas pobres e enfermas, pois assim satisfazia a um poderoso instinto. Seus estados de espírito sempre tenderam para um leve exagero, tanto na alegria como na tristeza; por conseguinte, era às vezes sujeita a oscilações de humor. A noção da sexualidade era surpreendentemente não desenvolvida nela. A paciente, cuja vida se tornou conhecida por mim num grau em que raras vezes a vida de uma pessoa é conhecida de outra, nunca se apaixonara; e em todo o imenso número de alucinações que ocorreram durante sua doença a noção da sexualidade nunca emergiu.
Essa moça, cheia de vitalidade intelectual, levava uma vida extremamente monótona no ambiente de sua família de mentalidade puritana. Embelezava sua vida de um modo que provavelmente a influenciou de maneira decisiva em direção à doença, entregando-se a devaneios sistemáticos que descrevia como seu “teatro particular”. Enquanto todos pensavam que ela estava prestando atenção, ela se imaginava vivendo contos de fada; mas estava sempre alerta quando lhe dirigiam a palavra, de modo que ninguém se dava conta de seu estado. Exercia essa atividade de modo quase ininterrupto enquanto se ocupava de seus afazeres domésticos, dos quais se desincumbia de forma irrepreensível. Terei a seguir que descrever a maneira pela qual esses devaneios habituais, no período em que ela estava com saúde, foram-se convertendo gradativamente em doença.
O curso da doença enquadrou-se em várias fases nitidamente separáveis:
(A)Incubação latente. De meados de julho até cerca de 10 de dezembro de 1880. Essa fase da doença costuma ficar omissa para nós; mas, nesse caso, graças a seu caráter peculiar, foi-nos completamente acessível; esse fato, por si só, traz um apreciável interesse patológico para o caso. Descreverei esta fase em seguida.
(B)A doença manifesta. Uma psicose de natureza peculiar, com parafasia, estrabismo convergente, graves perturbações da visão, paralisias (sob a forma de contraturas) completa na extremidade superior direita e em ambas as extremidades inferiores, e parcial na extremidade superior esquerda, e paresia dos músculos do pescoço. Redução gradual da contratura nas extremidades da mão direita. Alguma melhora, interrompida por um grave trauma psíquico (a morte do pai da paciente) em abril, depois do que se seguiram:
(C)Um período de sonambulismo persistente, alternando-se subseqüentemente com estados mais normais. Grande número de sintomas crônicos perduraram até dezembro de 1881.
(D)Cessação gradual dos estados e sintomas patológicos até junho de 1882.
Em julho de 1880, o pai da paciente, a quem ela era extremamente afeiçoada, adoeceu de um abscesso peripleurítico que não sarou e do qual veio a morrer em abril de 1881. Durante os primeiros meses da doença, Anna dedicou todas as suas energias a cuidar do pai, e ninguém ficou muito surpreso quando, pouco a pouco, sua própria saúde foi-se deteriorando de forma acentuada. Ninguém, talvez nem mesmo a própria paciente, sabia o que lhe estava acontecendo; mas afinal, o estado de debilidade, anemia e aversão pelos alimentos se agravou a tal ponto que, para seu grande pesar, não lhe permitiram mais que continuasse a cuidar do paciente. A causa imediata dessa proibição foi uma tosse muito intensa, razão pela qual a examinei pela primeira vez. Era uma tussis nervosa típica. Anna logo começou a mostrar uma pronunciada necessidade de repouso durante a tarde, continuada, ao anoitecer, por um estado semelhante a sono e, a seguir, por uma condição de intensa excitação.
No início de dezembro apareceu um estrabismo convergente. Um oftalmologista o explicou (erroneamente) como decorrente da paresia de um dos abdutores. Em 11 de dezembro a paciente caiu de cama e assim permaneceu até 1º de abril.
Surgiu em rápida sucessão uma série de perturbações graves que eram aparentemente novas: dor de cabeça occipital esquerda; estrabismo convergente (diplopia), acentuadamente aumentado pela excitação; queixas de que as paredes do quarto pareciam estar vindo abaixo (afecção do nervo oblíquo); perturbações da visão difíceis de ser analisadas; paresia dos músculos anteriores do pescoço, de modo que, afinal, a paciente só conseguia mover a cabeça pressionando-a para trás entre os ombros erguidos e movendo as costas inteiramente; contratura e anestesia da extremidade superior direita e, depois de certo tempo, da extremidade inferior direita. Esta última sofreu total extensão, adução e rotação para dentro. Posteriormente, surgiu o mesmo sintoma na extremidade inferior esquerda e, por fim, no braço esquerdo, cujos dedos, contudo conservaram até certo ponto a capacidade de movimento. De igual modo, também não havia uma rigidez completa nas articulações do ombro. A contratura atingiu seu ponto máximo nos músculos dos braços. Da mesma forma, a região dos cotovelos revelou-se a mais atingida pela anestesia quando, num estágio posterior, tornou-se possível fazer um exame mais cuidadoso da sensibilidade. No início da doença a anestesia não pôde ser testada de modo eficiente em virtude da resistência da paciente em decorrência de sentimentos de angústia.
Foi enquanto a paciente se achava nesse estado que comecei a tratá-la, havendo logo reconhecido a gravidade da perturbação psíquica com que teria de lidar. Havia dois estados de consciência inteiramente distintos, que se alternavam, de modo freqüente e súbito e que se tornaram cada vez mais diferenciados no curso da doença. Num desses estados ela reconhecia seu ambiente; ficava melancólica e angustiada, mas relativamente normal. No outro, tinha alucinações e ficava “travessa” - isto é, agressiva, e jogava almofadas nas pessoas, tanto quanto o permitiam as contraturas, arrancava botões da roupa de cama e de suas roupas com os dedos que conseguia movimentar, e assim por diante. Nesse estágio da doença, se alguma coisa tivesse sido tirada do lugar no quarto ou alguém tivesse entrado ou saído dele |durante seu outro estado de consciência|, ela se queixava de haver “perdido” tempo e tecia comentários sobre as lacunas na seqüência de seus pensamentos conscientes. Visto que as pessoas que a cercavam tentavam negar isso e confortá-la quando ela se queixava de estar ficando louca, Anna, depois de jogar os travesseiros, acusava as pessoas de fazerem coisas contra ela e de a deixarem num estado de confusão, etc.
Essas “absences” já tinham sido observadas antes de ela cair de cama; costumava parar no meio de uma frase, repetir as últimas palavras e, depois de uma breve pausa, continuar a falar. Essas interrupções aumentaram de forma gradual até atingirem as dimensões que acabam de ser descritas; e no auge da doença, quando as contraturas se haviam estendido até o lado esquerdo do corpo, só durante um curto período do dia é que ela apresentava certo grau de normalidade. Mas as perturbações invadiram até mesmo seus momentos de consciência relativamente clara. Haveria modificações muitíssimo rápidas de humor, que levavam a uma fase de animação intensa, mas bastante passageira, e em outras ocasiões havia uma angústia acentuada, uma oposição tenaz a qualquer esforço terapêutico e alucinações assustadoras com cobras negras, que eram a maneira como Anna via seus cabelos, fitas e coisas semelhantes. Ao mesmo tempo, ficava dizendo a si mesma para deixar de ser tão tola: o que na verdade via eram apenas seus cabelos, etc. Em certos momentos, quando sua mente estava inteiramente lúcida, queixava-se da profunda escuridão na cabeça, de não conseguir pensar, de ficar cega e surda, de ter dois eus, um real e um mau, que a forçava a comportar-se mal, e assim por diante.
Às tardes caía num estado de sonolência que durava até cerca de uma hora depois do pôr-do-sol. Então despertava e se queixava de que algo a estava atormentando - ou melhor, ficava a repetir na forma impessoal: “atormentando, atormentando”, e isso porque, paralelamente ao desenvolvimento das contraturas, surgiu uma profunda desorganização funcional da fala. A princípio, ficou claro que ela sentia dificuldade de encontrar as palavras, e essa dificuldade foi aumentando de maneira gradativa. Posteriormente, ela perdeu o domínio da gramática e da sintaxe; não mais conjugava verbos e acabou por empregar apenas os infinitivos, em sua maioria formados incorretamente a partir dos particípios passados, e omitia tanto o artigo definido quanto o indefinido. Com o passar do tempo, ficou quase totalmente desprovida de palavras. Juntava-as penosamente a partir de quatro ou cinco idiomas e tornou-se quase ininteligível. Quando tentava escrever (até que as contraturas a impediram totalmente de fazê-lo), empregava o mesmo jargão. Durante duas semanas emudeceu por completo e, apesar de envidar grandes e contínuos esforços, foi incapaz de emitir uma única sílaba. E então, pela primeira vez, o mecanismo psíquico do distúrbio ficou claro. Como eu sabia, ela se sentira extremamente ofendida com alguma coisa e tomara a deliberação de não falar a esse respeito. Quando adivinhei isso e a obriguei a falar sobre o assunto, a inibição, que também tornara impossível qualquer outra forma de expressão, desapareceu.
Essa mudança coincidiu com a volta da capacidade de movimento das extremidades do lado esquerdo do corpo, em março de 1881. A parafasia regrediu, mas daí por diante ela passou a falar apenas inglês - só que, aparentemente, sem saber que o estava fazendo. Tinha discussões com a enfermeira, que, como é lógico, não conseguia entendê-la. Só alguns meses depois é que pude convencê-la de que estava falando inglês. Não obstante, ela própria ainda compreendia as pessoas a seu redor que falavam alemão. Só em momentos de extrema ansiedade é que sua capacidade de falar a abandonava por completo, ou então ela utilizava uma mistura de toda sorte de línguas. Às vezes, quando se encontrava em seu melhor estado e com a máxima liberdade, falava francês e italiano. Havia uma amnésia total entre essas ocasiões e aquelas em que falava inglês. Também nessa época seu estrabismo começou a diminuir e passou a se apresentar apenas nos momentos de grande excitação. Ela voltou a conseguir sustentar a cabeça. No dia 1º de abril, levantou-se pela primeira vez.
No dia 5 de abril morreu seu adorado pai. Durante a doença da paciente ela o vira muito raramente e por períodos curtos. Esse foi talvez o trauma psíquico mais grave que ela poderia ter experimentado. Uma violenta explosão de excitação foi acompanhada de um profundo estupor, que durou cerca de dois dias e do qual ela emergiu num estado acentuadamente modificado. No começo, ficou muito mais tranqüila e seus sentimentos de angústia tiveram uma redução considerável. A contratura do braço e perna direitos persistiu, bem como a anestesia de ambos, embora esta não fosse profunda. Houve um alto grau de restrição do campo visual: num buquê de flores que lhe proporcionou muito prazer, só pôde ver uma flor de cada vez. Queixava-se de não conseguir reconhecer as pessoas. Normalmente, dizia, fora capaz de reconhecer os rostos sem ter de fazer nenhum esforço deliberado; agora era obrigada a fazer um laborioso“recognizing work” e tinha que dizer a si mesma: “o nariz dessa pessoa é assim e assim e o cabelo é assim ou assado, de modo que deve ser fulano”. Todas as pessoas que via pareciam figuras de cera, sem qualquer ligação com ela. Achava muito aflitiva a presença de alguns de seus parentes próximos, e essa atitude negativa foi-se acentuando cada vez mais. Quando alguém a quem comumente via com prazer entrava no quarto, ela o reconhecia e ficava consciente das coisas por um curto espaço de tempo, mas logo mergulhava de novo em suas elucubrações, e o visitante se apagava. Eu era a única pessoa que ela sempre reconhecia quando entrava; enquanto eu conversava com ela, a paciente permanecia animada e em contato com as coisas exceto pelas súbitas interrupções causadas por uma de suas “absences” alucinatórias.
Nesses momentos, só falava inglês e não conseguia compreender o que lhe diziam em alemão. Os que a cercavam eram obrigados a dirigir-lhe a palavra em inglês, e até a enfermeira aprendeu, até certo ponto, a se fazer entender dessa maneira. Anna, porém, conseguia ler em francês e italiano. Se tivesse que ler uma dessas línguas em voz alta, o que produzia, com extraordinária fluência, era uma admirável tradução improvisada do inglês.
Ela recomeçou a escrever, mas de maneira peculiar. Escrevia com a mão esquerda, a menos rígida, e empregava letras de forma romanas, copiando o alfabeto da sua edição de Shakespeare.
Anteriormente, ela costumava comer muito pouco, mas agora recusava qualquer alimento. Entretanto, permitiu-me que a alimentasse, de modo que logo começou a se alimentar mais. Mas nunca consentia em comer pão. Após a refeição, lavava invariavelmente a boca, e o fazia até mesmo quando, por qualquer motivo, nada era comido - o que indica como era distraída a respeito dessas coisas.
Seus estados de sonolência à tarde e seu sono profundo depois do crepúsculo persistiram. Quando, depois disso, ela se havia esgotado de tanto falar (terei que explicar depois o que quero dizer com isso), ficava com a mente clara, calma e alegre.
Esse estado relativamente tolerável não durou muito. Cerca de dez dias após a morte do pai, chamou-se um médico para opinar sobre o caso, a quem, como fazia com todos os estranhos, ela ignorou inteiramente enquanto eu demonstrava a ele todas as peculiaridades da paciente. “That’s like an examination”, disse ela a rir quando fiz com que lesse em inglês, em voz alta, um texto escrito em francês. O outro médico interveio na conversa etentou atrair-lhe a atenção, mas foi inútil. Era uma autêntica “alucinação negativa” do tipo que, desde então, vem sendo produzida com freqüência em caráter experimental. No fim, ele conseguiu romper a alucinação ao soprar fumaça no rosto da paciente. De súbito, ela viu diante de si um estranho, precipitou-se para a porta a fim de retirar a chave e caiu no chão, inconsciente. Seguiu-se um breve acesso de raiva e depois uma grave crise de angústia, que tive grande dificuldade em acalmar. Infelizmente, tive que sair de Viena naquela noite e, ao retornar, passados vários dias, encontrei a paciente muito pior. Ela ficara sem qualquer alimentação durante todo aquele tempo, estava extremamente angustiada e, em suas absences alucinatórias, via figuras aterradoras, caveiras e esqueletos. Dado que se comportava diante dessas coisas como se as estivesse vivenciando e em parte as traduzia em palavras, as pessoas em torno dela ficaram amplamente cientes do conteúdo dessas alucinações.
A ordem habitual das coisas era: o estado sonolento à tarde, seguido, após o pôr-do-sol, pela hipnose profunda, para a qual ela inventou o nome técnico de “clouds”. Quando, durante a hipnose, ela conseguia narrar as alucinações que tivera no decorrer do dia, despertava com a mente desanuviada, calma e alegre. Sentava-se para trabalhar e escrever ou desenhar até altas horas da noite, de maneira bem racional. Por volta das quatro horas ia deitar-se. No dia seguinte, toda a série de fatos se repetia. Era um contraste realmente notável: durante o dia, a paciente irresponsável, perseguida por alucinações, e à noite a moça com a mente inteiramente lúcida.
Apesar de sua euforia noturna, seu estado psíquico continuava a se deteriorar. Surgiram fortes impulsos suicidas, que tornaram desaconselhável que ela permanecesse morando no terceiro andar. Contra sua vontade, portanto, foi transferida para uma casa de campo nas imediações de Viena (em 7 de junho de 1881). Eu nunca a havia ameaçado com essa mudança de seu lar, que ela encarava com horror, mas ela, sem o dizer, havia esperado e temido tal medida. Esse fato deixou claro, mais uma vez, até que ponto o afeto de angústia dominava seu distúrbio psíquico. Assim como se havia instalado um estado de maior tranqüilidade logo após a morte do pai da paciente, também agora, quando o que ela temia de fato ocorreu, de novo ela ficou mais calma. Não obstante, a mudança foi imediatamente seguida por três dias e três noites sem qualquer sono e sem alimento, por numerosas tentativas de suicídio (embora, como Anna ficasse num jardim, tais tentativas não fossem perigosas), pela quebra de janelas e assim por diante, e por alucinações não acompanhadas de absences - que ela era capaz de distinguir facilmente de suas outras alucinações. Depois disso, ficou mais calma, passou a deixar que a enfermeira a alimentasse e chegou até a tomar cloral à noite.

Antes de prosseguir em meu relato do caso, preciso voltar mais uma vez para descrever uma de suas peculiaridades, que até agora só mencionei de passagem. Já disse que ao longo de toda a doença, até esse ponto, a paciente caía num estado de sonolência todas as tardes, e que, após o pôr-do-sol, esse período passava para um sono mais profundo - “clouds”. (Parece plausível atribuir essa seqüência regular dos acontecimentos apenas à experiência dela enquanto cuidava do pai, o que teve de fazer por vários meses. Durante as noites, ela velava à cabeceira do paciente ou ficava acordada, escutando ansiosamente até amanhecer; às tardes, deitava-se para um ligeiro repouso, como é o costume habitual das enfermeiras. Esse padrão de ficar acordada à noite e dormir à tarde parece ter sido transposto para sua própria doença e persistido muito depois de o sono ter sido substituído por um estado hipnótico.) Após cerca de uma hora de sono profundo, ela ficava irrequieta, virava de um lado para outro e repetia “atormentando, atormentando”, com os olhos fechados o tempo todo. Também se observou como, durante suas absences diuturnas, ela obviamente criava alguma situação ou episódio para o qual dava uma pista murmurando algumas palavras. Acontecia então - de início por acaso, mas depois a propósito - que alguém perto dela repetia uma dessas suas frases enquanto ela se queixava do “atormentando”. Ela imediatamente fazia coro e começava a retratar alguma situação ou a narrar alguma história, a princípio com hesitação e no seu jargão parafásico; mas, quanto mais se estendia, mais fluente se tornava, até que por fim falava um alemão bem fluente. (Isso se aplica ao período inicial, antes que começasse a falar somente em inglês |ver em [1]|.) As histórias eram sempre tristes, e algumas delas, encantadoras, no estilo do Álbum de Figuras sem Figuras, de Hans Andersen, e de fato é provável que se estruturassem sobre aquele modelo. Via de regra, seu ponto de partida ou situação central era o de uma moça ansiosamente sentada à cabeceira de um doente. Mas ela também construía suas histórias com outros temas bem diversos. - Alguns momentos depois de haver concluído a narrativa, ela despertava, obviamente acalmada, ou, como dizia, “gehaeglich”. Durante a noite, tornava a ficar irrequieta, e pela manhã, após algumas horas de sono, estava visivelmente envolvida em algum outro grupo de representações. - Quando, por qualquer motivo, não podia narrar-me a história durante a hipnose do anoitecer, não conseguia acalmar-se depois, e no dia seguinte tinha que me contar duas histórias para que isso acontecesse.
As características essenciais desse fenômeno - o aumento e a intensificação de suas absences até sua auto-hipnose do anoitecer, o efeito dos produtos de sua imaginação como estímulos psíquicos e o afrouxamento e a remoção de seu estado de estimulação quando os expressava verbalmente em sua hipnose - permaneceram constantes durante todos os dezoito meses em que a paciente ficou em observação.
As histórias naturalmente se tornaram ainda mais trágicas após a morte do pai. Contudo, foi só depois da deterioração do estado mental da paciente, o que se seguiu quando seu estado de sonambulismo sofreu uma interrupção abrupta, da maneira já descrita, que suas narrativas do anoitecer deixaram de ter o caráter de composições poéticas, criadas de forma mais ou menos livre, e se transformaram numa cadeia de alucinações medonhas e apavorantes. (Já era possível chegar a elas a partir do comportamento da paciente durante o dia). Já descrevi | [1]-[2]| como sua mente ficava inteiramente aliviada depois que, trêmula de medo e horror, havia reproduzido essas imagens assustadoras e dado expressão verbal a elas.

Enquanto Anna ficou no campo, ocasião em que não pude fazer-lhe as visitas diárias, a situação processou-se da seguinte maneira. Visitava-a à tardinha, quando sabia que a encontraria em hipnose, e então a aliviava de toda a carga de produtos imaginativos que ela havia acumulado desde minha última visita. Era essencial que isso fosse feito de forma completa se se quisesse alcançar bons resultados. Quando isso era levado a efeito, ela ficava perfeitamente calma e, no dia seguinte, mostrava-se agradável, fácil de lidar, diligente e até mesmo alegre; no segundo dia, porém, tornava-se cada vez mais mal-humorada, voluntariosa e desagradável, o que se acentuava ainda mais no terceiro dia. Quando ficava assim, nem sempre era fácil fazê-la falar, mesmo em seu estado hipnótico. Ela descrevia de modo apropriado esse método, falando a sério, como uma “talking cure, ao mesmo tempo em que se referia a ele, em tom de brincadeira, como “chimney-sweeping”. A paciente sabia que, depois que houvesse dado expressão a suas alucinações, perderia toda a sua obstinação e aquilo que descrevia como sua “energia”; equando, após um intervalo relativamente longo, ficava de mau humor, recusava-se a falar, sendo eu obrigado a superar sua falta de disposição encarecendo e suplicando, e até usando recursos como repetir uma fórmula com a qual ela estava habituada a iniciar suas histórias. Mas ela jamais começava a falar antes de haver confirmado plenamente minha identidade, apalpando-me as mãos com cuidado. Nas noites em que não se acalmava pela enunciação verbal, era necessário recorrer novamente ao cloral. Eu já o havia experimentado em algumas ocasiões anteriores, mas vi-me obrigado a aplicar-lhe 5 gramas, sendo o sono precedido por um estado de intoxicação que durava algumas horas. Quando me achava presente, esse estado era de euforia, mas em minha ausência era altamente desagradável e caracterizado por angústia e excitação. (Pode-se observar, a propósito, que esse estado de intoxicação aguda não fazia nenhuma diferença quanto a suas contraturas.) Eu havia conseguido evitar o uso de narcóticos, visto que a expressão verbal de suas alucinações a tranqüilizava, ainda que não induzisse ao sono; entretanto, quando ela estava no campo, as noites em que não conseguia alívio hipnótico eram tão insuportáveis que, apesar de tudo, era necessário recorrer ao cloral. Mas foi possível reduzir a dose, de forma gradual.
O sonambulismo persistente não reapareceu, mas, por outro lado, a alternância entre os dois estados de consciência perdurou. Ela costumava ter alucinações no meio de uma conversa, sair correndo, subir numa árvore, etc. Quando alguém a agarrava, com grande rapidez retomava a frase interrompida, sem tomar nenhum conhecimento do que acontecera no intervalo. Todas essas alucinações, contudo, sobrevinham e eram relatadas em sua hipnose.
Seu estado, de modo geral, experimentou melhoras. Ela ingeria alimentos sem dificuldades e permitia que a enfermeira a alimentasse com exceção do pão, que pedia mas rejeitava no momento em que lhe tocava os lábios. A paralisia espástica da perna teve uma diminuição acentuada. Verificaram-se também melhoras em sua capacidade de julgamento, e ela ficou muito apegada a um amigo meu, o Dr. B., médico que a visitava. Beneficiou-se muito da presença de um cão terra-nova que lhe tinha sido presenteado e pelo qual tinha uma afeição apaixonada. Em certa ocasião, porém, seu animal de estimação atacou um gato, e foi extraordinário ver a forma como a frágil moça tomou de um chicote na mão esquerda e afastou a chicotadas o enorme animal para salvar sua vítima. Mais tarde, cuidou de algumas pessoas pobres e doentes, e isto a ajudou.
Foi após minha volta de uma viagem de férias, que durou várias semanas, que tive a prova mais convincente do efeito patogênico e excitante ocasionado pelos complexos de representações produzidos durante suas absences, ou condition seconde, e do fato de que esses complexos eram eliminados ao receberem expressão verbal durante a hipnose. Nesse intervalo não fora efetuada nenhuma “cura pela fala”, porque foi impossível persuadi-la a confiar o que tinha a dizer a qualquer pessoa senão eu - nem mesmo ao Dr. B., a quem, sob outros aspectos, ela se havia afeiçoado. Encontrei-a num estado moral deplorável, inerte, intratável, mal-humorada e até mesmo malévola. Tornou-se claro por suas histórias noturnas que sua veia imaginativa e poética se estava esgotando. O que ela relatava dizia respeito, cada vez mais, a suas alucinações e, por exemplo, às coisas que a haviam aborrecido nos últimos dias. Estas eram revestidas de uma forma imaginativa, mas apenas formuladas em imagens estereotipadas, e não elaboradas em produções poéticas. Mas a situação só ficou tolerável depois de eu haver providenciado o retorno da paciente a Viena por uma semana e de, noite após noite, fazer com que ela me contasse três a cinco histórias. Quando levei isso a termo, tudo o que se acumulara durante as semanas de minha ausência fora descarregado. Foi só então que se restabeleceu o ritmo anterior: no dia seguinte àquele em que dava expressão verbal a suas fantasias, ela ficava amável e alegre; no segundo dia, mais irritadiça e menos agradável e, no terceiro, verdadeiramente “detestável”. Seu estado moral era uma função do tempo decorrido desde a última expressão oral. Isso ocorria porque cada um dos produtos espontâneos de sua imaginação e todos os fatos que tinham sido assimilados pela parte patológica de sua mente persistiam como um estímulo psíquico até serem narrados em sua hipnose, após o que deixavam inteiramente de atuar.
Quando, no outono, a paciente retornou a Viena (embora para uma casa diferente daquela em que adoecera), sua condição era suportável, tanto física como mentalmente, pois pouquíssimas de suas experiências - de fato, apenas as mais marcantes - eram transformadas em estímulos psíquicos de maneira patológica. Eu tinha esperança de uma melhora contínua e progressiva, desde que o permanente carregamento de sua mente com novos estímulos pudesse ser evitado através da expressão verbal dada a eles. Mas, de início, fiquei decepcionado. Em dezembro houve um agravamento acentuado de seu estado psíquico. Ela voltou a ficar excitada, taciturna e irritável. Não tinha mais nenhum “dia realmente bom”, mesmo quando era impossível detectar alguma coisa que estivesse permanecendo “presa” dentro dela. Em fins de dezembro, na época do Natal, a paciente ficou particularmente inquieta e por uma semana inteira, nos fins de tarde, nada me disse de novo além dos produtos imaginativos que havia elaborado dia a dia sob pressão de uma angústia e emoção intensas durante o Natal de 1880 |um ano antes|. Quando as séries eram concluídas, ela sentia um enorme alívio.
Já havia transcorrido um ano desde que Anna se separara do pai e caíra de cama, e a partir dessa época seu estado tornou-se mais claro e foi sistematizado de maneira muito peculiar. Seus estados de consciência alternados, que se caracterizavam pelo fato de que, a partir da manhã, suas absences (isto é, o surgimento de sua condition seconde) sempre se tornavam mais freqüentes à medida que o dia avançava e exerciam seu domínio absoluto até o anoitecer - esses estados alternados tinham diferido um do outro, no passado, pelo fato de o primeiro ser normal, e o segundo, alienado; agora, porém, eles diferiam ainda mais pelo fato de que, no primeiro, ela estava vivendo, como o restante de nós, no inverno de 1881-2, ao passo que, no segundo, vivia no inverno de 1880-1 e se esquecera por completo de todos os eventos subseqüentes. A única coisa que, não obstante, parecia permanecer consciente a maior parte do tempo era o fato de que o pai morrera. Ela se via transportada ao ano anterior com tal intensidade que, na casa nova, tinha alucinações com seu antigo quarto, de modo que quando queria ir até a porta, tropeçava na estufa, que ficava situada em relação à janela do mesmo modo que a porta em seu antigo quarto. A transição de um estado para outro ocorria de forma espontânea, mas também podia ser facilmente promovida por qualquer impressão sensorial que lembrasse o ano anterior com nitidez. Bastava segurar uma laranja diante dos olhos dela (essa fruta tinha constituído seu principal alimento durante a primeira parte da doença) para que ela se visse transportada para o ano de 1881. Mas essa transferência ao passado não ocorria de modo geral ou indefinido; ela revivia o inverno anterior dia a dia. Eu só teria podido suspeitar de que isso estava acontecendo, não fosse pelo fato de que todas as noites, durante a hipnose, ela falava sobre o que a havia excitado no mesmo dia em 1881, e não fosse pelo fato de um diário particular mantido pela mãe dela em 1881 ter confirmado, sem sombra de dúvida, a ocorrência dos fatos subjacentes. Essa revivescência do ano anterior continuou até que a doença chegasse a seu final, em junho de 1882.
Também foi interessante observar, nesse aspecto, a forma pela qual esses estímulos psíquicos revividos, pertencentes a seu estado secundário, insinuavam-se em seu primeiro estado, mais normal. Aconteceu, por exemplo, que certa manhã a paciente me disse rindo que não tinha nenhuma idéia de qual era o problema, mas estava com raiva de mim. Graças ao diário eu sabia o que estava ocorrendo, e dito e feito, a situação foi revivida na hipnose do anoitecer; eu tinha aborrecido muito a paciente na mesma noite, em 1881. Houve outra ocasião em que ela me disse que havia algo errado com seus olhos: estava vendo as cores erradas. Sabia estar usando um vestido marrom, mas o via como se fosse azul. Logo verificamos que ela sabia distinguir todas as cores das folhas de teste visual de forma correta e clara, e que a perturbação só se relacionava com o material do vestido. O motivo foi que, durante o mesmo período em 1881, ela estivera muito atarefada com a confecção de um roupão para o pai, que era feito do mesmo material de seu atual vestido, porém era azul em vez de marrom. A propósito, constatava-se com freqüência que essas lembranças emergentes revelavam de antemão seu efeito; a perturbação do estado normal ocorria mais cedo, e a lembrança era despertada de forma gradativa apenas em sua condition seconde.
Sua hipnose da noite ficava assim intensamente sobrecarregada, pois tínhamos que escoar pela fala não só seus produtos imaginários contemporâneos, como também os eventos e “vexations” de 1881. (Felizmente, nessa época eu já a havia aliviado dos produtos imaginários daquele ano.) Mas, além de tudo isso, o trabalho a ser executado pela paciente e por seu médico era imensamente aumentado por um terceiro grupo de perturbações isoladas, que tinham de ser eliminadas da mesma maneira. Tratava-se dos eventos psíquicos em jogo no período de incubação da moléstia, entre julho e dezembro de 1880; eles é que haviam produzido todos os fenômenos histéricos e, quando receberam expressão verbal, os sintomas desapareceram.
Quando isso aconteceu pela primeira vez - quando, em decorrência de um enunciado acidental e espontâneo dessa natureza, durante a hipnose da noite, uma perturbação que havia persistido por um tempo considerável veio a desaparecer - fiquei extremamente surpreso. Era verão, numa época de calor intenso, e a paciente sofria de uma sede horrível, pois, sem que pudesse explicar a causa, viu-se de repente impossibilitada de beber. Apanhava o copo de água desejado, mas, assim que o tocava com os lábios, repelia-o como alguém que sofresse de hidrofobia. Ao fazê-lo, ficava obviamente numa absence por alguns segundos. Para mitigar a sede que a martirizava, vivia somente de frutas, como melões, etc. Quando isso já durava perto de seis semanas, um dia, durante a hipnose, ela resmungou qualquer coisa a respeito de sua dama de companhia inglesa, de quem não gostava, e começou então a descrever, com demonstrações da maior repugnância, como fora certa vez ao quarto dessa senhora e como lá pudera ver o cãozinho dela - criatura nojenta! - bebendo num copo. A paciente não tinha dito nada, pois quisera ser gentil. Depois de exteriorizar energicamente a cólera que havia contido,pediu para beber alguma coisa, bebeu sem qualquer dificuldade uma grande quantidade de água e despertou da hipnose com o copo nos lábios. A partir daí, a perturbação desapareceu de uma vez por todas. Vários outros caprichos extremamente obstinados foram eliminados de forma semelhante, depois de ela haver descrito as experiências que os tinham ocasionado. A paciente deu um grande passo à frente quando o primeiro de seus sintomas crônicos desapareceu da mesma maneira - a contratura da perna direita, que, é verdade, já havia diminuído muito. Esses achados - de que, no caso dessa paciente, os fenômenos histéricos desapareciam tão logo o fato que os havia provocado era reproduzido em sua hipnose - tornaram possível chegar-se a uma técnica terapêutica que nada deixava a desejar em sua coerência lógica e sua aplicação sistemática. Cada sintoma individual nesse caso complicado era considerado de forma isolada; todas as ocasiões em que tinha surgido eram descritas na ordem inversa, começando pela época em que a paciente ficara acamada e retrocedendo até o fato que levara à sua primeira aparição. Quando este era descrito, o sintoma era eliminado de maneira permanente.
Dessa forma, suas paralisias espásticas e anestesias, os diferentes distúrbios da visão e da audição, as nevralgias, tosses, tremores, etc., e por fim seus distúrbios da fala foram “removidos pela fala”. Entre suas perturbações da visão, os seguintes, por exemplo, foram eliminados um de cada vez: o estrabismo convergente com diplopia; o desvio de ambos os olhos para a direita, de modo que quando a mão se estendia para apanhar algo, sempre se dirigia para a esquerda do objeto; a restrição do campo visual; a ambliopia central; a macropsia; a visão de uma caveira em vez do pai; e a incapacidade para a leitura. Apenas alguns fenômenos dispersos (como, por exemplo, a extensão das paralisias espásticas para o lado esquerdo do corpo), que surgiram enquanto ela estava confinada ao leito, permaneceram intocados por esse processo de análise, sendo provável, na realidade, que de fato não tivessem nenhuma causa psíquica imediata | ver em [1]-[2]|.
Revelou-se inteiramente impraticável abreviar o trabalho pela tentativa de evocar de imediato em sua memória a primeira causa provocadora de seus sintomas. Ela era incapaz de descobri-la, ficava confusa e as coisas se processavam ainda com maior lentidão do que se lhe fosse permitido, de modo tranqüilo e firme, retomar o fio retrospectivo das recordações em que se havia envolvido. Dado que este último método, porém, levava muito tempo na hipnose noturna, em vista de ela estar muito tensa e profundamente perturbada por “eliminar pela fala” os dois outros grupos de experiências -e também em virtude do fato de que as reminiscências precisavam de tempo antes para poderem atingir uma nitidez suficiente - elaboramos o seguinte método. Eu costumava visitá-la pela manhã e hipnotizá-la. (Alguns métodos muito simples para isso foram obtidos de forma empírica.) A seguir, pedia-lhe que concentrasse os pensamentos no sintoma que estávamos tratando no momento e me dissesse as ocasiões em que ele surgira. A paciente passava a descrever em rápida sucessão e em frases sucintas os fatos externos em causa, os quais eu anotava. Durante sua subseqüente hipnose noturna, ela então me fazia, com a ajuda de minhas anotações, um relato razoavelmente minucioso dessas circunstâncias.
Um exemplo revelará a forma completa pela qual ela realizava isso. Nossa experiência comum era que a paciente não ouvisse quando lhe era dirigida a palavra. Foi possível diferenciar da seguinte forma esse hábito passageiro de não ouvir:
(a) Não ouvir quando alguém entrava, enquanto se abstraía em seus pensamentos. 108 exemplos detalhados e isolados desses casos, com menção das pessoas e circunstâncias, muitas vezes com datas. Primeiro exemplo: não ouvir o pai entrar.
(b) Não compreender quando várias pessoas conversavam. 27 exemplos. Primeiro exemplo: o pai, mais uma vez, e um conhecido.
(c) Não ouvir quando estava sozinha e lhe dirigiam a palavra diretamente. 50 exemplos. Origem: o pai tendo em vão lhe pedido vinho.
(d) Surdez ocasionada por ter sido sacudida (numa carruagem, etc.). 15 exemplos. Origem: por ter sido sacudida com raiva pelo irmão mais novo quando este a surpreendeu, certa noite, com o ouvido colado ao quarto do doente.
(e) Surdez provocada ao assustar-se com um ruído. 37 exemplos. Origem: um acesso de sufocação do pai, causado por ter engolido mal.
(f) Surdez durante absence profunda. 12 exemplos.
(g) Surdez ocasionada por ouvir mal durante muito tempo, de modo que, quando lhe dirigiam a palavra, deixava de ouvir. 54 exemplos.
É claro que todos esse episódios eram, numa ampla medida, idênticos, no sentido de que era possível relacioná-los com estados de alheamento, absences ou susto. Mas, na memória da paciente, eram diferenciados de modo tão claro que, se acontecia ela cometer algum erro em sua seqüência, era obrigada a corrigir-se e pô-los na ordem certa; se isso não fosse feito, seu relato ficava paralisado. Os fatos que ela descrevia eram tão sem interesse e significação, e narrados com tanta riqueza de detalhes, que não se poderia suspeitar de que tivessem sido inventados. Muitos desses incidentes consistiam em experiências puramente internas e, assim, não podiam ser verificados; outros (ou as circunstâncias que os cercavam) estavam na lembrança das pessoas do ambiente de Anna.
Também esse exemplo apresentava uma característica que era sempre observável quando um sintoma estava sendo “eliminado pela fala”: o sintoma específico surgia com maior intensidade enquanto ela o abordava. Assim, durante a análise de sua incapacidade de ouvir, ela ficou tão surda que numa parte do tempo fui obrigado a comunicar-me com ela por escrito. A primeira causa provocadora costumava ser um susto de alguma espécie, experimentado enquanto ela cuidava do pai - alguma negligência da parte dela, por exemplo.
O trabalho de recordação nem sempre era fácil e, algumas vezes, a paciente tinha que fazer grandes esforços. Certa ocasião, todo o nosso progresso ficou obstruído por algum tempo porque uma lembrança recusava-se a emergir. Tratava-se de uma alucinação particularmente pavorosa. Quando cuidava do pai, vira seu rosto como se fosse uma caveira. Ela e as pessoas a seu redor lembravam que, certa vez, enquanto parecia ainda gozar de boa saúde, ela fizera uma visita a um de seus parentes. Abrira a porta e imediatamente caíra no chão, inconsciente. Para superar a obstrução a nosso progresso, ela tornou a visitar o mesmo lugar e, ao entrar no quarto, mais uma vez caiu no chão, inconsciente. Durante a hipnose noturna seguinte, o obstáculo foi superado. Ao entrar no quarto, ela vira seu rosto pálido refletido num espelho que pendia defronte à porta, mas não fora a si mesma que tinha visto, e sim o pai com um rosto de caveira. - Muitas vezes observamos que seu pavor de uma lembrança, como no presente exemplo, inibia o surgimento da mesma, e esta precisava ser provocada à força pela paciente ou pelo médico.
O seguinte incidente, entre outros, ilustra o alto grau de coerência lógica de seus estados. Durante esse período, como já se teve ocasião de explicar, a paciente estava sempre em sua condition seconde - isto é, no ano de 1881 - à noite. Certa ocasião, despertou durante a noite, declarando ter sido levada para longe de casa mais uma vez, e ficou de tal forma excitada que todas as pessoas da casa se alarmaram. A razão foi simples. Na noite anterior, a cura pela fala havia dissipado o distúrbio da visão, e isso também se aplicava a sua condition seconde. Assim, ao acordar durante a noite, ela se viu num quarto estranho, pois a família se mudara na primavera de 1881. Acontecimentos desagradáveis dessa espécie eram evitados por mim pelo fato de (a pedido da paciente) eu sempre fechar seus olhos à noite e dar-lhe a sugestão de que ela não poderia abri-los até que eu próprio o fizesse na manhã seguinte. Essa perturbação só se repetiu uma vez, quando a paciente gritou num sonho e abriu os olhos ao despertar dele.
Visto que essa trabalhosa análise de seus sintomas versou sobre os meses do verão de 1880, o período preparatório de sua doença, consegui uma compreensão completa da incubação e patogênese desse caso de histeria, que agora passarei a descrever de forma sucinta.
Em julho de 1880, quando se encontrava no campo, o pai de Anna adoeceu gravemente em decorrência de um abscesso subpleural. Ela dividia com a mãe as tarefas de cuidar do enfermo. Certa vez, acordou de madrugada, muito ansiosa pelo doente, que estava com febre alta; e ela estava sob a tensão de aguardar a chegada de um cirurgião de Viena que iria operá-lo. Sua mãe se ausentara por algum tempo, e Anna, sentada à cabeceira do doente, pôs o braço direito sobre o espaldar da cadeira. Entrou num estado de devaneio e viu, como se viesse da parede, uma cobra negra que se aproximava do enfermo para mordê-lo. (É muito provável que, no terreno situado atrás da casa, algumas cobras tivessem de fato aparecido anteriormente, assustando a moça e fornecendo agora o material para a alucinação.) Ela tentou manter a cobra a distância, mas estava como que paralisada. O braço direito, que pendia sobre o espaldar da cadeira, ficara dormente, insensível e parético; e quando ela o contemplou seus dedos se transformaram em cobrinhas cujas cabeças eram caveiras (as unhas). (É provável que ela tenha tentado afugentar a cobra com o braço direito paralisado e por isso a anestesia e a paralisia do braço se associaram com a alucinação da cobra.) Quando a cobra desapareceu, Anna, aterrorizada, tentou rezar. Mas não achou palavras em idioma algum, até que, lembrando-se de um poema infantil em inglês, pôde pensar e rezar nessa língua. O apito do trem que trazia o médico por ela esperado desfez o encanto.
No dia seguinte, durante um jogo, Anna atirou uma argola em alguns arbustos e, quando foi buscá-la, um galho recurvado fez com que ela revivesse a alucinação da cobra, e ao mesmo tempo seu braço direito ficou distendido com rigidez. A partir de então, ocorria invariavelmente a mesma coisa sempre que a alucinação era recordada por algum objeto com aparência mais ou menos semelhante à de uma cobra. Essa alucinação, contudo, bem como a contratura, só apareciam durante as curtas absences, que se tornaram cada vez mais freqüentes a partir daquela noite. (A contratura só veio a se estabilizar em dezembro, quando a paciente ficou inteiramente prostrada e acamada de forma permanente.) Como resultado de algum fato particular cujo registro não consigo encontrar em minhas anotações e do qual não me recordo mais, a contratura da perna direita foi acrescida à do braço direito.
Sua tendência às absences auto-hipnóticas fixou-se a partir daquele momento. Na manhã seguinte à noite que descrevi, enquanto esperava a chegada do cirurgião, Anna caiu num tal estado de alheamento que ele por fim chegou ao quarto sem que ela o ouvisse aproximar-se. Sua angústia persistente interferia com a ingestão de alimentos e conduziu aos poucos a intensas sensações de náusea. Afora isso, a rigor, cada um de seus sintomas histéricos surgiu sob a ação de um afeto. Não é bem certo se em cada um dos casos houve um estado momentâneo de absence, mas isso parece provável em vista do fato de que, em seu estado de vigília, a paciente ficava totalmente alheia ao que havia acontecido.
Alguns de seus sintomas, contudo, parecem não haver surgido em suas absences, mas apenas quando de algum afeto durante sua vida de vigília; se foi esse o caso, porém, eles reapareciam da mesma forma. Assim pudemos rastrear todas as suas diversas perturbações da visão até diferentes causas determinantes mais ou menos claras. Por exemplo, certa ocasião, quando, com lágrimas nos olhos, se achava sentada à cabeceira do pai, ele de repente lhe perguntou que horas eram. Ela não conseguia enxergar com nitidez; fez um grande esforço e aproximou o relógio dos olhos. O mostrador pareceu-lhe então muito grande, explicando assim sua macropsia e seu estrabismo convergente. Ou então ela se esforçou para reprimir as lágrimas para que o doente não as visse.
Uma discussão, durante a qual Anna reprimiu uma resposta à altura, provocou um espasmo de glote, e isso se repetia em todas as ocasiões semelhantes.
Perdeu a capacidade de falar (a) como resultado do medo, depois de sua primeira alucinação à noite, (b) após haver reprimido uma observação noutra ocasião (por inibição ativa), (c) depois de ter sido injustamente culpada de algo e (d) em todas as ocasiões análogas (quando se sentia mortificada). Começou a tossir pela primeira vez quando, certa feita, sentada à cabeceira do pai, ouviu o som de música para dançar que vinha de uma casa vizinha sentiu um súbito desejo de estar lá e foi dominada por auto-recriminações. A partir de então, durante toda a sua doença, reagia a qualquer música acentuadamente ritmada com uma tussis nervosa.
Não lamento muito que o fato de minhas anotações serem incompletas torne impossível para mim enumerar todas as ocasiões em que seus vários sintomas histéricos apareciam. Ela própria os relatava a mim em cada caso isolado, com uma única exceção por mim mencionada |em [1] e também mais adiante, em [1]-[2]|; e, como já disse, todos os sintomas desapareciam depois de ela descrever sua primeira ocorrência.
Também dessa maneira toda a doença desapareceu. A própria paciente formara o firme propósito de que todo o tratamento deveria terminar no dia em que fizesse um ano da data em que foi levada para o campo |7 de junho (ver em [1])|. Por conseguinte, no começo de junho, ela iniciou a “cura pela fala” com a maior energia. No último dia - recorrendo, como ajuda, a uma nova arrumação do quarto, a fim de assemelhá-lo ao quarto de doente do pai - ela reproduziu a aterrorizante alucinação já descrita acima e que constitui a raiz de toda a sua doença. Durante a cena original, Anna só havia conseguido pensar e rezar em inglês; mas, logo após sua reprodução, pôde falar alemão. Além disso, libertou-se das inúmeras perturbações que exibira antes. Depois, saiu de Viena e viajou por algum tempo, mas passou-se um período considerável antes que recuperasse inteiramente seu equilíbrio mental. Desde então tem gozado de perfeita saúde.
Embora eu tenha suprimido um grande número de detalhes bem interessantes, este caso clínico de Anna O. tornou-se mais volumoso do que pareceria necessário para uma doença histérica que, em si mesma, não foi de caráter inusitado. Entretanto, foi impossível descrever o caso sem entrar em pormenores, e suas características me parecem suficientemente importantes para justificar esta exposição extensa. Da mesma maneira, os ovos dos equinodermos são importantes na embriologia, não porque o ouriço-do-mar seja um animal interessante, mas porque o protoplasma de seus ovos é transparente e porque o que neles observamos lança luz, desse modo, sobre o provável curso dos acontecimentos nos ovos cujo protoplasma é opaco. O interesse do presente caso me parece residir, acima de tudo, na extrema clareza e inteligibilidade de sua patogênese.
Havia nessa moça, enquanto ainda gozava de perfeita saúde, duas características psíquicas que atuaram como causas de predisposição para sua subseqüente doença histérica:
(1)Sua vida familiar monótona e a ausência de ocupação intelectual adequada deixavam-na com um excedente não utilizado de vivacidade e energia mentais, tendo esse excedente encontrado uma saída na atividade constante de sua imaginação.
(2)Isso a levou ao hábito dos devaneios (seu “teatro particular”), que lançou as bases para uma dissociação de sua personalidade mental. Não obstante, uma dissociação desse grau ainda se acha nos limites da normalidade. Os devaneios e as reflexões durante ocupações mais ou menos mecânicas não implicam, em si mesmos, uma divisão patológica da consciência visto que, ao serem interrompidos - quando, por exemplo, alguém dirige a palavra à pessoa - a unidade normal da consciência é restaurada; não implicam tampouco a existência de amnésia. No caso de Anna O., porém, esse hábito preparou o terreno em que o afeto de angústia e pavor pôde estabelecer-se na forma que descrevi, tão logo esse afeto transformou os devaneios habituais da paciente numa absence alucinatória. É notável que a primeira manifestação da doença em seus primórdios já exibisse de modo tão completo suas principais características, que depois permaneceram inalteradas por quase dois anos. Estas compreendiam a existência de um segundo estado de consciência, que surgiu primeiro como uma absence temporária e depois se organizou sob a forma de uma “double conscience”; uma inibição da fala, determinada pelo afeto de angústia, que encontrou uma descarga fortuita nos versos em língua inglesa; posteriormente, a parafasia e a perda da língua materna, que foi substituída por um inglês excelente; e, por fim, a paralisia acidental do braço direito, em virtude da pressão, que depois evoluiu para uma paresia espástica e anestesia do lado direito. O mecanismo pelo qual esta segunda afecção veio a existir mostrou-se em inteira consonância com a teoria da histeria traumática de Charcot - um ligeiro trauma ocorrido durante um estado de hipnose.

Mas, enquanto a paralisia experimentalmente provocada por Charcot em seus pacientes se estabilizava de imediato, e enquanto a paralisia causada em vítimas de neuroses traumáticas devidas a grave choque traumático logo se estabelece, o sistema nervoso dessa moça ofereceu uma resistência bem-sucedida durante quatro meses. Sua contratura, bem como as outras perturbações que se acompanharam, só se estabeleceu durante as curtas absences e em sua condition seconde, deixando-a, durante seu estado normal, com pleno controle do corpo, e em posse de seus sentidos, de modo que nada foi observado nem por ela própria nem por aqueles que a cercavam, se bem que a atenção deles estivesse enfocada no pai enfermo da paciente e, por conseguinte, desviada dela.
Entretanto, uma vez que suas absences, com sua amnésia total, e fenômenos histéricos concomitantes, tornaram-se cada vez mais freqüentes a partir da época de sua primeira auto-hipnose alucinatória, as oportunidades se multiplicaram para a formação de novos sintomas da mesma espécie, e os que já se haviam formado tornaram-se mais fortemente entrincheirados pela freqüente repetição. Além disso, qualquer afeto angustiante súbito passou gradativamente a ter o mesmo resultado de uma absence (embora, a rigor, seja possível que esses afetos causassem de fato uma absence temporária em todos os casos); algumas coincidências fortuitas formaram associações patológicas e perturbações sensoriais ou motoras, que daí por diante passaram a surgir junto com o afeto. Mas até então isso só havia ocorrido durante momentos passageiros. Antes de ficar permanentemente acamada, a paciente já havia desenvolvido todo o conjunto de fenômenos histéricos, sem que ninguém o soubesse. Só depois de ela ter entrado em colapso completo, graças ao esgotamento acarretado pela falta de alimentos, insônia e angústia constante, e só depois de ter começado a passar mais tempo em sua condition seconde do que em seu estado normal, foi que os fenômenos histéricos se estenderam a este último e passaram da condição de sintomas agudos intermitentes à de sintomas crônicos.
Surge agora a questão de determinar até que ponto se pode confiar nas declarações da paciente e de saber se as ocasiões e o modo de origem dos fenômenos foram realmente tais como ela os representou. Quanto aos fatos mais importantes e fundamentais, o grau de confiabilidade de seu relato me parece estar fora de dúvida. Quanto ao fato de os sintomas desaparecerem depois de “verbalizados”, não posso empregar isso como prova; é bem possível que isso se explique pela sugestão. Mas sempre achei que a paciente era inteiramente fiel à verdade e digna de toda confiança. As coisas que me relatou estavam intimamente vinculadas com o que lhe era mais sagrado. O que quer que pudesse ser verificado através de outras pessoas era plenamente confirmado. Até mesmo a moça mais bem-dotada seria incapaz de engendrar uma trama de dados com tal grau de coerência interna como o exibido na história deste caso. Não se pode duvidar, contudo, de que precisamente sua coerência talvez a tenha levado (em absoluta boa-fé) a atribuir a alguns dos seus sintomas uma causa desencadeadora que na verdade não possuíam. Mas também a essa suspeita considero injustificada. A própria insignificância de tantas dessas causas e o caráter irracional de tantas das conexões envolvidas depõem a favor de sua realidade. A paciente não conseguia entender como é que a música para dançar a fazia tossir; uma construção dessa natureza é por demais destituída de sentido para ter sido deliberada. (Pareceu-me muito provável, aliás, que cada um de seus dramas de consciência acarretasse um de seus habituais espasmos da glote e que os impulsos motores que sentia - pois ela gostava muito de dançar - transformassem o espasmo numa tussis nervosa.) Por conseguinte, em minha opinião, as declarações da paciente mereciam toda a confiança e correspondiam aos fatos.
E agora devemos considerar até que ponto é justificável supor que a histeria se produza de maneira análoga em outros pacientes e que o processo seja semelhante quando nenhuma condition seconde tão claramente distinta tenha-se organizado. Para sustentar esse ponto de vista, posso assinalar o fato de que, também no presente caso, a história da evolução da doença teria permanecido inteiramente desconhecida, tanto da paciente quanto do médico, se não fosse a peculiaridade de a paciente se recordar de coisas na hipnose, como descrevi, e de conseguir relacioná-las. Enquanto estava em seu estado de vigília, ela não tinha nenhum conhecimento de tudo isso. Portanto, é impossível, nos outros casos, chegar-se ao que está acontecendo através de um exame dos pacientes em estado de vigília, pois, com a melhor boa vontade do mundo, eles não podem dar informação alguma a ninguém. E já ressaltei como as pessoas que cercavam a paciente eram pouco capazes de observar aquilo que estava acontecendo. Por conseguinte, só seria possível descobrir o estado de coisas em outros pacientes por meio de um método semelhante ao que foi proporcionado, no caso de Anna O., por suas auto-hipnoses. Por enquanto, podemos apenas externar o ponto de vista de que seqüências de fatos semelhantes aos aqui descritos ocorrem com maior freqüência do que nos levou a supor nossa ignorância do mecanismo patogênico em causa.
Quando a paciente ficou de cama e sua consciência passou a oscilar de forma constante entre o estado normal e o “secundário”, toda a série de sintomas histéricos, que haviam surgido isoladamente e até então se achavam latentes, tornou-se manifesta, como já vimos, como sintomas crônicos. Acrescentou-se então a estes um novo grupo de fenômenos que pareciam ter tido uma origem diferente: as paralisias espásticas das extremidades esquerdas e a paresia dos músculos elevadores da cabeça. Eu os distingo dos outros fenômenos porque, uma vez que tivessem desaparecido, nunca mais retornavam, mesmo na forma mais breve ou branda, ou durante a fase conclusiva e de recuperação, quando todos os outros sintomas se tornaram de novo ativos após terem ficado inativos por algum tempo. Da mesma forma, jamais vieram à tona nas análises hipnóticas e não foram rastreados até as fontes emocionais ou imaginativas. Inclino-me a pensar, portanto, que seu surgimento não se deveu ao mesmo processo psíquico dos outros sintomas, mas que cabe atribuí-lo a uma extensão secundária daquela condição desconhecida que constitui o fundamento somático dos fenômenos histéricos.
Durante toda a doença seus dois estados de consciência persistiram lado a lado: o primário, em que ela era bastante normal psiquicamente, e o secundário, que bem pode ser assemelhado a um sonho, em vista de sua abundância de produções imaginárias e alucinações, suas grandes lacunas de memória e a falta de inibição e controle em suas associações. Nesse estado secundário, a paciente ficava numa situação de alienação. O fato de que toda a condição mental da paciente estava na dependência da intrusão desse estado secundário no normal parece lançar uma considerável luz sobre pelo menos um tipo de psicose histérica. Cada uma de suas hipnoses à noite oferecia provas de que a paciente estava inteiramente lúcida e bem ordenada em sua mente e normal no tocante a seus sentimentos e a sua volição, desde que nenhum dos produtos de seu estado secundário atuasse como um estímulo “no inconsciente”. A psicose extremamente acentuada que surgia sempre que havia um intervalo considerável nesse processo de desabafo revelou o grau em que esses produtos influenciavam os fatos psíquicos de seu estado latentes, tornou-se manifesta, como já vimos, como sintomas crônicos. Acrescentou-se então a estes um novo grupo de fenômenos que pareciam ter tido uma origem diferente: as paralisias espásticas das extremidades esquerdas e a paresia dos músculos elevadores da cabeça. Eu os distingo dos outros fenômenos porque, uma vez que tivessem desaparecido, nunca mais retornavam, mesmo na forma mais breve ou branda, ou durante a fase conclusiva e de recuperação, quando todos os outros sintomas se tornaram de novo ativos após terem ficado inativos por algum tempo. Da mesma forma, jamais vieram à tona nas análises hipnóticas e não foram rastreados até as fontes emocionais ou imaginativas. Inclino-me a pensar, portanto, que seu surgimento não se deveu ao mesmo processo psíquico dos outros sintomas, mas que cabe atribuí-lo a uma extensão secundária daquela condição desconhecida que constitui o fundamento somático dos fenômenos histéricos.
Durante toda a doença seus dois estados de consciência persistiram lado a lado: o primário, em que ela era bastante normal psiquicamente, e o secundário, que bem pode ser assemelhado a um sonho, em vista de sua abundância de produções imaginárias e alucinações, suas grandes lacunas de memória e a falta de inibição e controle em suas associações. Nesse estado secundário, a paciente ficava numa situação de alienação. O fato de que toda a condição mental da paciente estava na dependência da intrusão desse estado secundário no normal parece lançar uma considerável luz sobre pelo menos um tipo de psicose histérica. Cada uma de suas hipnoses à noite oferecia provas de que a paciente estava inteiramente lúcida e bem ordenada em sua mente e normal no tocante a seus sentimentos e a sua volição, desde que nenhum dos produtos de seu estado secundário atuasse como um estímulo “no inconsciente”. A psicose extremamente acentuada que surgia sempre que havia um intervalo considerável nesse processo de desabafo revelou o grau em que esses produtos influenciavam os fatos psíquicos de seu estado “normal”. É difícil evitar expressar a situação afirmando que a paciente estava dividida em duas personalidades, das quais uma era mentalmente normal, e a outra, insana. Em minha opinião, a nítida divisão entre os dois estados nessa paciente só vem revelar com maior clareza aquilo que ocasionou um grande número de problemas inexplicados em muitos outros pacientes histéricos. Foi especialmente observável, em Anna O., o grau em que os produtos de seu “mau eu”, conforme ela própria o denominava, afetavam seu senso ético mental. Se esses produtos não tivessem sido continuamente eliminados, ter-nos-íamos confrontado com uma histérica do tipo malévolo - teimosa, indolente, desagradável e rabugenta; mas o que se passava era que, após a remoção desses estímulos, seu verdadeiro caráter, que era o oposto de tudo isso, sempre ressurgia de imediato.
Não obstante, embora seus dois estados fossem assim nitidamente separados, não só o estado secundário invadia o primeiro, como também - e isso se dava com freqüência em todas as ocasiões, mesmo quando ela se encontrava numa condição muito ruim - um observador lúcido e calmo ficava sentado, conforme ela dizia, num canto de seu cérebro, contemplando toda aquela loucura a seu redor. Essa persistência do pensamento claro enquanto a psicose estava em pleno processo encontrava expressão numa forma muito curiosa. Numa ocasião em que, depois de terem cessado os fenômenos histéricos, a paciente estava atravessando uma depressão temporária, ela apresentou grande número de temores e auto-recriminações infantis, entre eles a idéia de que de modo algum estivera doente e tudo aquilo fora simulado. Observações semelhantes, como sabemos, têm sido feitas com freqüência. Depois que um distúrbio dessa natureza desapareceu e os dois estados de consciência voltaram a se fundir num só, os pacientes, lançando um olhar retrospectivo para o passado, se vêem como a personalidade única e indivisa que se dava conta de todo aquele absurdo; acham que poderiam tê-lo impedido se assim tivessem desejado e se sentem como se tivessem praticado todo o mal de forma deliberada. - Deve-se acrescentar que esse raciocínio normal que persistia durante o estado secundário deve ter variado enormemente de intensidade e, muitas vezes, até deve ter estado ausente de todo.
Já descrevi o surpreendente fato de que, do começo ao fim da doença, todos os estímulos decorrentes do estado secundário, junto com suas conseqüências, eram eliminados de maneira permanente ao receberem expressão verbal na hipnose, e resta-me apenas acrescentar a certeza de que isso não foi uma invenção minha imposta à paciente por sugestão. Fui apanhado inteiramente de surpresa, e só depois de todos os sintomas serem assim eliminados em toda uma série de situações é que desenvolvi uma técnica terapêutica a partir dessa experiência.
A cura final da histeria merece mais algumas palavras. Ela foi acompanhada, como já tive oportunidade de dizer, por perturbações consideráveis e uma deterioração do estado mental da paciente. Tive impressão muito forte de que os numerosos produtos do seu estado secundário que ficaram latentes forçavam agora sua entrada na consciência; e embora de início fossem recordados apenas em seu estado secundário, estavam ainda assim sobrecarregando e perturbando seu estado normal. Resta verificar se não deveríamos procurar a mesma origem nos outros casos em que a histeria crônica termina numa psicose.

CASO 2 - SRA EMMY VON N., IDADE 40 ANOS, DA LIVÔNIA (FREUD)

Em 1º de maio de 1889, comecei o tratamento de uma senhora de cerca de quarenta anos, cujos sintomas e personalidade me interessaram de tal forma que lhe dediquei grande parte de meu tempo e decidi fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para recuperá-la. Era histérica e podia ser posta com a maior facilidade num estado de sonambulismo; ao tomar ciência disso, resolvi fazer uso da técnica de investigação sob hipnose, de Breuer, que eu viera a conhecer pelo relato que ele me fizera do bem-sucedido tratamento de sua primeira paciente. Essa foi minha primeira tentativa de lidar com aquele método terapêutico | ver em [1] e [2]|. Estava ainda longe de tê-lo dominado; de fato, não fui bastante à frente na análise dos sintomas, nem o segui de maneira suficientemente sistemática. Talvez possa apresentar melhor um quadro da condição da paciente e de minha conduta clínica reproduzindo as anotações que fiz todas as noites durante as três primeiras semanas do tratamento. Onde quer que a experiência posterior me haja proporcionado melhor compreensão, eu a incorporarei em notas de rodapé e comentários intercalados.
1º de maio de 1889. - Essa senhora, quando a vi pela primeira vez, estava deitava num sofá com a cabeça repousando numa almofada de couro. Parecia ainda jovem e as feições eram delicadas e marcantes. O rosto tinha uma expressão tensa e penosa, as pálpebras estavam cerradas e os olhos, baixos; a testa apresentava profundas rugas e as dobras nasolabiais eram acentuadas. Falava em voz baixa, como se tivesse dificuldade, e a fala ficava de tempos em tempos sujeita a interrupções espásticas, a ponto de ela gaguejar. Conservava os dedos firmemente entrelaçados, e eles exibiam uma agitação incessante, parecida com a que ocorre na atetose. Havia freqüentes movimentos convulsivos semelhantes a tiques, no rosto e nos músculos do pescoço, durante os quais alguns destes, especialmente o esternoclidomastóideo direito, se tornavam muito salientes. Além disso, ela interrompia com freqüência suas observações emitindo um curioso “estalido” com a boca, um som impossível de imitar.
O que a paciente me dizia era perfeitamente coerente e revelava um grau inusitado de instrução e inteligência. Isso fazia com que parecesse ainda mais estranho que, a cada dois ou três minutos, ela de súbito se calasse, contorcesse o rosto numa expressão de horror e nojo, estendesse a mão em minha direção, abrindo e entortando os dedos, e exclamasse numa voz alterada, carregada de angústia: “Fique quieto! - Não diga nada! - Não me toque!” É provável que estivesse sob a influência de alguma alucinação recorrente de natureza apavorante e que, com essa fórmula, estivesse mantendo afastado o material intromissivo. Essas interpolações chegavam ao fim tão de súbito quanto começavam, e a paciente retomava seu relato anterior, sem dar continuidade a sua excitação momentânea e sem explicar ou pedir desculpas por seu comportamento - provavelmente, portanto, sem que ela própria notasse a interpolação.
Tomei conhecimento do seguinte sobre as circunstâncias de sua vida: Sua família era originária da Alemanha Central, mas duas de suas gerações haviam fixado residência nas províncias bálticas da Rússia, onde possuía grandes propriedades. Ela era a décima terceira de quatorze filhos. Apenas quatro dentre eles sobreviveram. A paciente recebeu uma educação cuidadosa, mas sob a disciplina rígida de uma mãe excessivamente enérgica e severa. Quando contava vinte e três anos, casou-se com um homem muito bem-dotado e capaz, que alcançara uma posição elevada como grande industrial, mas que era muito mais velho do que ela. Depois de um casamento de curta duração, ele morreu de derrame cerebral. A esse fato, bem como à tarefa de educar as duas filhas, então com dezesseis e quatorze anos, muitas vezes enfermas e que sofriam de distúrbios nervosos, ela atribuía sua própria doença. Desde a morte do marido, quatorze anos antes, vivera constantemente doente, com variados graus de gravidade. Há quatro anos, seu estado sofrera uma melhora temporária com uma série de massagens combinadas com banhos elétricos. Afora isso, todos os seus esforços para melhorar de saúde têm sido infrutíferos. Ela viajou muito e tem um vivo interesse por muitas coisas. Atualmente, mora numa casa de campo num ponto do Báltico, perto de uma grande cidade. Há vários meses tem estado outra vez muito doente, sofrendo de depressão e insônia e atormentada por dores; foi até Abbazia na vã esperança de obter melhoras, e nas últimas seis semanas está em Viena, até agora sob os cuidados de um médico de excelente reputação.
Sugeri que ela se separasse das duas filhas, que têm governanta, e se internasse numa casa de saúde, onde eu poderia vê-la todos os dias. Concordou com isso sem levantar a menor objeção.

Na noite de 2 de maio visitei-a na casa de saúde. Notei que se assustava muito sempre que a porta se abria de modo inesperado. Assim, providenciei para que, ao visitá-la, as enfermeiras e os médicos internos batessem com força na porta e só entrassem depois de ela dizer que podiam fazê-lo. Mesmo assim, ela ainda fazia trejeitos faciais e dava um pulo toda vez que alguém entrava.
Sua principal queixa hoje foi sobre sensações de frio e dor na perna esquerda, que se originavam nas costas, acima da crista do ilíaco. Ordenei que lhe dessem banhos quentes e lhe aplicarei massagens por todo o corpo duas vezes ao dia.
Ela é uma excelente paciente para o hipnotismo. Bastou eu levantar um dedo diante dela e ordenar-lhe que dormisse para que se reclinasse com uma expressão atordoada e confusa. Sugeri que ela dormiria bem, que todos os seus sintomas melhorariam, e assim por diante. Ela ouviu tudo isso com os olhos fechados, mas sem dúvida com uma atenção inconfundivelmente concentrada, e suas feições aos poucos se relaxaram e assumiram uma aparência pacífica. Depois dessa primeira hipnose, conservou uma tênue lembrança de minhas palavras, mas, já na segunda, houve completo sonambulismo (com amnésia). Tinha-a avisado de que pretendia hipnotizá-la, ao que ela não opusera nenhuma dificuldade. Ela nunca fora hipnotizada antes, mas pode-se supor que já leu sobre o hipnotismo, embora eu não saiba dizer quais são suas idéias sobre o estado hipnótico.
Esse tratamento à base de banhos quentes, massagens duas vezes ao dia e sugestão hipnótica prosseguiu por mais alguns dias. Ela dormia bem, melhorava a olhos vistos e passava a maior parte do dia tranqüilamente deitada. Não lhe foi proibido ver as filhas, ler, ou cuidar da correspondência.

8 de maio, manhã. - Ela me entreteve, num estado que parecia normal, com histórias aterradoras sobre animais. Lera no Frankfurter Zeitung, que estava na mesa em frente a ela, uma história de como um aprendiz amarrara um menino e lhe pusera na boca um rato branco. O menino morrera de susto. O Dr. K. lhe dissera ter mandado uma caixa cheia de ratos brancos para Tiflis. Ao narrar-me isso, ela demonstrava todos os sinais de horror. Torcia e retorcia as mãos várias vezes. “Fique quieto! - Não diga nada! - Não me toque! - Imagine só se houvesse uma criatura dessas na cama!” (Estremeceu.) “Pense só, quando for aberta! Há um rato morto entre eles - um que foi ro-o-í-do!”
Durante a hipnose tentei eliminar essas alucinações com animais. Enquanto ela dormia, apanhei o Frankfurter Zeitung. Achei a história do menino que fora maltratado, mas sem nenhuma referência a camundongos ou ratos. Logo, ela os havia introduzido a partir de seu delírio enquanto lia. (À noite, falei-lhe de nossa conversa sobre os ratos brancos. Ela não sabia de nada daquilo, ficou muito surpresa e deu boas risadas.)
À tarde teve o que chamou de uma “cãibra no pescoço”, que no entanto, como disse, “só durou pouco tempo - umas poucas horas”.

Noite. - Pedi-lhe que, sob hipnose, falasse, o que, depois de certo esforço, ela conseguiu fazer. Falava baixo e refletia por um momento, cada vez, antes de responder. Sua expressão se alterava de acordo com o tema de suas observações e se acalmava tão logo minha sugestão punha termo à impressão nela causada pelo que dizia. Perguntei-lhe por que se assustava com tanta facilidade e ela respondeu: “Está relacionado com as lembranças de minha meninice.” “Quando?” “Primeiro, quando eu tinha cinco anos e meus irmãos e irmãs costumavam atirar animais mortos em mim. Foi aí que tive meu primeiro desmaio e espasmos. Mas minha tia disse que aquilo era uma vergonha e que eu não devia ter daqueles ataques, de modo que eles pararam. Depois me assustei de novo quando tinha sete anos, e inesperadamente, vi minha irmã no caixão; e outra vez quando contava oito anos e meu irmão me aterrorizou uma porção de vezes, enrolando-se em lençóis como um fantasma; e também quando tinha nove anos e vi minha tia no caixão e de repente o queixo dela caiu.”
É claro que essa série de causas desencadeadoras traumáticas que ela citou em resposta a minha pergunta sobre a razão de ser tão propensa a se assustar já estava pronta em sua memória. Ela não poderia ter reunido tão depressa esses episódios de diferentes períodos de sua infância no curto intervalo transcorrido entre minha pergunta e sua resposta. No fim de cada uma das histórias ela se crispava toda e assumia uma expressão de medo e horror. Ao final da última, escancarou a boca e ficou ofegante. As palavras com que descreveu o tema pavoroso de sua experiência foram pronunciadas com dificuldade e entremeadas de estertores. Depois, suas feições se tranqüilizaram.
Em resposta a uma pergunta, disse-me que enquanto descrevia essas cenas via-as diante de si, numa forma plástica e em suas cores naturais. Contou que, em geral, pensava nessas experiências com muita freqüência e o fizera nos últimos dias. Sempre que isso acontecia, via essas cenas com toda a nitidez da realidade. Compreendo agora por que tantas vezes ela me entretém com cenas de animais e quadros de cadáveres. Minha terapia consiste em eliminar esses quadros, de modo que ela não possa mais vê-los diante de si. Para reforçar minha sugestão, passei suavemente a mão por seus olhos várias vezes.

9 de maio, |manhã.| - Sem que lhe tivesse dado nenhuma outra sugestão, ela dormiu bem. Mas sentiu dores gástricas pela manhã. Estas surgiram ontem, no jardim, onde ela permaneceu muito tempo com as filhas. Concordou em que eu limitasse as visitas das moças a duas horas e meia. Alguns dias atrás recriminara a si própria por deixar as filhas sozinhas. Encontrei-a um tanto agitada hoje; a testa estava enrugada, a fala era hesitante e ela produzia aqueles estalidos característicos. Enquanto era massageada, disse-me apenas que a governanta das filhas lhe levara um atlas etnológico e que algumas fotografias de índios norte-americanos vestidos como animais lhe produziram um grande choque. “Pense só se eles ganhassem vida!” (Estremeceu.)
Sob hipnose perguntei-lhe por que se assustara tanto com essas fotografias, visto já não ter mais medo de animais. Respondeu que a tinham feito recordar as visões que tivera (aos dezenove anos) na época da morte do irmão. (Deixarei para depois as indagações sobre essa lembrança.) A seguir, perguntei-lhe se sempre gaguejara e há quanto tempo tinha o tique (o estalido peculiar): A gagueira, disse, surgira quando estava doente; tinha o tique há cinco anos, desde o tempo em que estivera sentada à cabeceira da filha mais nova, quando esta esteve muito doente, e desejara ficar absolutamente quieta. Tentei reduzir a importância dessa lembrança, ressaltando que, afinal de contas, nada acontecera à filha, e assim por diante. A coisa surgia, disse-me ela, sempre que ficava apreensiva ou assustada. Dei-lhe instruções para que não se assustasse com os retratos dos peles-vermelhas, mas que risse à vontade deles e até chamasse para eles minha atenção. E isso de fato aconteceu depois de ela despertar: olhou para o livro, perguntou-me se o tinha visto, abriu-o na página e riu alto das figuras grotescas, sem o menor indício de medo e sem que suas feições denotassem a menor tensão. O Dr. Breuer entrou subitamente com o médico interno para visitá-la. Ela se assustou e começou a produzir o estalido característico, de modo que eles logo se retiraram. A paciente me explicou que ficara agitada daquela maneira por ser desagradavelmente afetada pelo fato de o médico interno também entrar a todo instante.
Eu também havia eliminado suas dores gástricas durante a hipnose, tocando-a levemente no abdome, e lhe disse que, embora ela esperasse pelo retorno da dor depois do almoço, isso não aconteceria.
Noite. - Pela primeira vez ela se mostrou alegre e falante e deu mostras de um senso de humor que eu não teria esperado numa mulher tão séria; e entre outras coisas, com a acentuada sensação de estar melhor, zombou do tratamento feito por meu antecessor. De há muito pretendia, segundo me disse, desistir daquele tratamento, mas não conseguia encontrar o método certo de fazê-lo, até que uma observação fortuita feita pelo Dr. Breuer, numa ocasião em que a visitou, indicou-lhe a solução. Quando pareci surpreso com isso, assustou-se e começou a recriminar-se asperamente por ter sido indiscreta. Ao que parece, porém, consegui reassegurá-la. - Ela não tinha sentido as dores gástricas, embora as houvesse esperado.
Sob hipnose pedi-lhe que me contasse outras experiências que tivessem dado margem a um medo duradouro. Ela forneceu uma segunda seqüência dessa espécie, que datava do final de sua juventude, com a mesma rapidez da primeira seqüência, e me assegurou mais uma vez que todas essas cenas surgiram diante dela muitas vezes, nitidamente e em cores. Uma delas era de como viu uma prima ser levada para um asilo de loucos (quando ela estava com quinze anos). Ela havia tentado pedir socorro, mas não conseguira e perdera a capacidade de falar até a noite do mesmo dia. Visto que ela falava em hospícios com muita freqüência em seu estado de vigília, interrompi-a e perguntei em que outras ocasiões ela se preocupara com a loucura. Ela me contou que sua própria mãe tinha passado algum tempo num hospício. Em certa época, tiveram uma empregada cuja antiga patroa estivera muito tempo internada numa dessas instituições e que costumava contar-lhes histórias aterradoras de como os pacientes eram amarrados a cadeiras, espancados, etc. Ao narrar-me isso, retorceu as mãos, horrorizada; estava vendo tudo diante dos olhos. Esforcei-me por corrigir-lhe as idéias sobre os manicômios e lhe assegurei que ela conseguiria ouvir falar de instituições dessa natureza sem referi-las a si mesma. Com isso, suas feições se relaxaram.
Prosseguiu com sua relação de lembranças aterradoras. Uma, aos quinze anos, de como encontrara a mãe, que tivera um derrame cerebral, estendida no chão (a mãe viveu mais quatro anos); de novo, aos dezenove, de como chegou a casa certo dia e encontrou a mãe morta, com o rosto contorcido. Naturalmente, tive uma dificuldade considerável em atenuar-lhe essas lembranças. Após uma explicação bastante longa, assegurei-lhe que também esse quadro só lhe surgiria outra vez de forma indistinta e sem intensidade. - Outra lembrança era a da maneira como, aos dezenove anos, ela levantou uma pedra e encontrou debaixo dela um sapo, o que a fez perder a fala durante horas.
Durante essa hipnose convenci-me de que ela sabia de tudo o que acontecera na última hipnose, enquanto na vida de vigília não tem nenhum conhecimento disso.

10 de maio, manhã. - Pela primeira vez, deram-lhe hoje um banho de farelo, em vez de seu habitual banho morno. Achei-a com uma expressão de aborrecimento e angústia, com as mãos envoltas num xale. Queixava-se de frio e dores. Quando lhe perguntei o que se passava, disse-me que o banho fora incomodamente curto e provocara dores. Durante a massagem, começou por dizer que ainda se sentia mal por ter atraiçoado o Dr. Breuer ontem. Acalmei-a com uma pequena mentira e disse que eu já sabia daquilo o tempo todo, ao que sua agitação (estalidos, trejeitos faciais) cessou. Todas as vezes, portanto, mesmo enquanto a massageio, minha influência já começa a afetá-la; a paciente fica mais tranqüila e mais lúcida, e mesmo sem que haja perguntas sob hipnose consegue descobrir a causa de seu mau humor daquele dia. Tampouco sua conversa durante a massagem é tão sem objetivo como poderia parecer. Pelo contrário, encerra uma reprodução razoavelmente completa das lembranças e das novas impressões que a afetaram desde nossa última conversa e, muitas vezes, de maneira bem inesperada, progride até as reminiscências patogênicas, que ela vai desabafando sem ser solicitada. É como se tivesse adotado meu método e se valesse de nossa conversa, aparentemente sem constrangimento e guiada pelo acaso, como um complemento de sua hipnose. Por exemplo, hoje começou a falar sobre sua família e, com muitos rodeios, passou ao assunto de um primo. Este não era muito bom da cabeça e os pais mandaram arrancar-lhe todos os dentes de uma só vez. Ela acompanhou a história com expressões de horror e ficou repetindo sua fórmula protetora (“Fique quieto! - Não diga nada! - Não me toque!”). Depois disso, seu rosto se descontraiu e ela ficou alegre. Assim, seu comportamento na vida de vigília é dirigido pelas experiências que teve durante o sonambulismo, embora acredite, enquanto está acordada, nada saber a respeito delas.
Sob hipnose repeti minha pergunta quanto àquilo que a perturbara e recebi as mesmas respostas, mas na ordem inversa: (1) sua conversa indiscreta de ontem, e (2) suas dores provocadas por ter sentido muito desconforto no banho. - Perguntei-lhe hoje o significado de sua frase “Fique quieto!”, etc. Explicou que, quando tinha pensamentos assustadores, temia que eles fossem interrompidos em seu curso, porque então tudo ficaria confuso e as coisas ficariam ainda piores. O “Fique quieto!” relacionava-se com o fato de que as formas animais que lhe apareciam quando ela se achava em mau estado começavam a mover-se e a atacá-la se alguém fizesse um movimento em sua presença. A exortação final “Não me toque!” provinha das seguintes experiências: contou-me como, quando o irmão estivera muito doente por ter ingerido muita morfina - ela estava com dezenove anos na ocasião - costumava muitas vezes agarrá-la, e como, de outra feita, um conhecido enlouquecera de súbito em sua casa e a tinha segurado pelo braço (houve um terceiro exemplo semelhante, do qual não se recordava com exatidão); e por último, como, quando tinha vinte e oito anos e a filha estava muito doente, a criança se agarrara nela com tanta força em seu delírio que ela quase fora sufocada. Embora esses quatro exemplos fossem tão separados no tempo, ela os relatou numa única frase e numa sucessão tão rápida que poderiam ter constituído um único episódio em quatro atos. A propósito, todos os relatos que me fazia de traumas como esses, dispostos em grupos, começavam por um “como”, sendo os traumas componentes separados por um “e”. Uma vez que percebi que a fórmula protetora se destinava a salvaguardá-la contra uma repetição dessas experiências, eliminei esse medo por meio da sugestão e, de fato, jamais a ouvi dizer a fórmula de novo.
Noite. - Encontrei-a muito animada. Contou-me, sorridente, que se assustara com um cãozinho que havia latido para ela no jardim. Seu rosto, porém, estava um pouco contraído, e havia certa agitação interna, que só desapareceu quando ela me perguntou se eu estava aborrecido com alguma coisa que ela dissera durante a massagem nessa manhã e respondi “não”. Sua menstruação recomeçou hoje, após um intervalo que mal chegou a uma quinzena. Prometi-lhe regulá-la por sugestão hipnótica e, sob hipnose, fixei o intervalo em 28 dias.
Em hipnose, também lhe perguntei se se recordava da última coisa que me contara; ao perguntar-lhe isso, o que eu tinha em mente era uma tarefa que restara da noite passada, mas ela começou, muito corretamente, pelo “não me toque” da hipnose de hoje de manhã. Assim, levei-a de volta ao assunto de ontem. Eu lhe havia perguntado qual a origem de sua gagueira e ela respondera “não sei”. Pedira-lhe, portanto, que se lembrasse disso na hora da hipnose de hoje. Em conseqüência, me respondeu hoje, sem nenhuma reflexão adicional, mas com grande agitação e com dificuldades espásticas na fala: “Como os cavalos certa vez saíram em disparada com as crianças na carruagem; e como outra vez eu estava passando de carruagem pela floresta com as meninas, durante uma tempestade, e uma árvore bem à frente dos cavalos foi atingida por um raio e os cavalos se assustaram e eu pensei: ‘Agora você precisa ficar bem quietinha, senão seus gritos vão assustar os cavalos ainda mais e o cocheiro não conseguirá contê-los de jeito nenhum.’ Surgiu a partir daquele momento.” A paciente ficou extraordinariamente agitada ao contar-me essa história. Soube também por ela que a gagueira tinha começado logo após a primeira dessas duas ocasiões, mas havia desaparecido pouco depois e então se estabelecera de uma vez por todas após a segunda ocasião semelhante. Apaguei sua lembrança plástica dessas cenas, mas pedi-lhe que as imaginasse mais uma vez. Ela pareceu tentar fazê-lo e permaneceu quieta enquanto atendia a meu pedido; a partir de então, falou durante a hipnose sem qualquer impedimento espástico.
Verificando que ela estava disposta a ser comunicativa, perguntei-lhe que outros fatos em sua vida a haviam assustado tanto a ponto de a terem deixado com lembranças plásticas. Ela respondeu fornecendo-me uma coleção de tais experiências: - |1| Como um ano após a morte da mãe, estava visitando uma francesa que era sua amiga, quando lhe disseram que fosse ao quarto contíguo com outra moça para buscar um dicionário e ela viu, sentado na cama, alguém que tinha a aparência idêntica à da mulher que ela acabara de deixar no outro aposento. Ficou toda rígida e pregada no chão. Depois, ficara sabendo que se tratava de um manequim especialmente preparado. Asseverei que o que a paciente tinha visto fora uma alucinação e apelei para seu bom senso, e então seu rosto se relaxou. |2| Como cuidara do irmão enfermo e este tivera acessos terríveis por causa da morfina, aterrorizando-a e agarrando-a. Lembrei que ela já havia mencionado essa experiência hoje de manhã e, a título de experimentação, perguntei-lhe em que outras ocasiões esse “agarramento” havia ocorrido. Para minha agradável surpresa, ela fez uma longa pausa dessa vez antes de responder e então perguntou, num tom de dúvida: “Minha filhinha?” Ficou inteiramente incapaz de recordar-se das outras duas ocasiões (ver atrás |em [1]|). Minha proibição - o apagamento de suas lembranças - tinha sido, portanto, eficaz. - E mais: |3| como, enquanto cuidava do irmão, o rosto pálido da tia havia aparecido de súbito por cima do biombo. Ela acabara de convertê-lo ao catolicismo.
Vi que havia chegado à raiz de seu constante temor das surpresas e pedi-lhe outros exemplos. Prosseguiu: como tinha na casa dela um amigo que gostava de entrar furtivamente no quarto, de modo que de repente estava lá; como ela ficara muito doente após a morte da mãe e fora para uma casa de saúde, e um lunático havia entrado por engano em seu quarto várias vezes, à noite, chegando bem perto de sua cama; e por fim, como, na vinda de Abbazia para cá, um estranho abrira quatro vezes a porta de sua cabine e cada vez fixara nela um olhar demorado. A Sra. Emmy tinha ficado tão apavorada que chegou a chamar o condutor.
Apaguei todas essas lembranças, despertei-a e lhe garanti que ela dormiria bem à noite, tendo deixado de fazer-lhe essa sugestão na hipnose. A melhora de seu estado geral foi revelada por sua observação de que não lera nada hoje, pois estava vivendo num sonho muito feliz - ela, que sempre tinha que estar fazendo alguma coisa em virtude de sua inquietude interior.

11 de maio, manhã. - Hoje teve uma entrevista com o Dr. N., o ginecologista, que deve examinar sua filha mais velha por causa das complicações menstruais. Encontrei a Sra. Emmy bastante agitada, embora isso se traduzisse em sinais físicos mais leves que antes. De vez em quando, exclamava: “Estou com medo, estou com tanto medo que acho que vou morrer.” Perguntei-lhe de que estava com medo. Era o Dr. N.? Não sabia, respondeu; simplesmente estava com medo. Sob a hipnose, que induzi antes da chegada de meu colega, declarou ter medo de que me tivesse ofendido por alguma coisa que dissera durante a massagem, ontem, que lhe parecera indelicada. Também tinha medo de tudo o que era novo e, por conseguinte, do novo médico. Consegui acalmá-la e, embora se assustasse uma ou duas vezes na presença do Dr. N., ela se comportou muito bem e não produziu nenhum de seus estalidos nem houve qualquer inibição da fala. Depois que ele se foi, tornei a colocá-la sob hipnose para eliminar qualquer possível resíduo da excitação provocada pela visita. Ela própria ficou muito contente com seu comportamento e depositou grandes esperanças no tratamento; tentei convencê-la, a partir desse exemplo, de que não é preciso ter medo do que é novo, já que o que é novo também contém o que é bom.

Noite. - Estava muito animada e desabafou um grande número de dúvidas e escrúpulos em nossa conversa antes da hipnose. Durante a hipnose, perguntei-lhe que acontecimento de sua vida havia produzido efeito mais duradouro sobre ela e que mais surgia em sua memória. A morte do marido, respondeu. Fiz com que me descrevesse esse fato com todos os pormenores e ela o fez, com todos os sinais da mais profunda emoção, mas sem nenhum estalido e sem gaguejar: - Como, começou a dizer, tinham ido a um lugar de que ambos gostavam muito na Riviera e, ao atravessarem uma ponte, ele caíra de repente no chão e lá ficara inerte por alguns minutos, mas depois se levantara, parecendo estar muito bem; como, pouco tempo depois, quando ela estava de cama após seu segundo parto, o marido, que estivera tomando o café da manhã numa mesinha ao lado de sua cama e lendo o jornal, levantara-se de súbito, olhando-a de modo muito estranho, dera alguns passos à frente e, em seguida, caíra morto; ela havia se levantado da cama, e os médicos que foram chamados se esforçaram para reanimá-lo, o que ela ouviu do quarto contíguo, mas em vão. E, prosseguiu a Sra. Emmy, como o bebê, que contava então algumas semanas de idade, fora tomado de grave moléstia, que durou seis meses, durante a qual ela própria ficara de cama com muita febre. - E vieram então, em ordem cronológica, suas reclamações contra essa criança, que ela externou rapidamente, com uma expressão zangada no rosto, da maneira como alguém falaria de uma pessoa que se houvesse tornado um incômodo. Essa criança, disse, se comportara de forma muito estranha por longo tempo; gritava o tempo todo e não dormia, e desenvolvera uma paralisia da perna esquerda cuja recuperação parecera apresentar muito poucas esperanças. Aos quatro anos, a criança tivera visões; aprendera a andar e a falar, tardiamente, de modo que por muito tempo fora julgada idiota. De acordo com os médicos, tivera encefalite e mielite e ela não sabia mais o quê. Interrompi-a nesse ponto e a fiz ver que essa mesma criança era hoje uma menina normal, que gozava de perfeita saúde, e impossibilitei-a de voltar a ver qualquer dessas coisas melancólicas, não apenas apagando suas lembranças das mesmas na forma plástica, mas também removendo toda a sua recordação dessas coisas, como se nunca tivessem existido em sua mente. Prometi-lhe que isso a levaria a libertar-se da expectativa de infortúnios que não cessava de atormentá-la e também das dores por todo o corpo, das quais se queixara precisamente durante sua narrativa, depois de passarmos vários dias sem ouvir falar nelas.

Para minha surpresa, depois dessa minha sugestão, ela começou a falar, sem qualquer transição, sobre o Príncipe L., cuja fuga de um hospício era objeto de muitos comentários nessa época. Externou novos temores sobre os hospícios - de que as pessoas que lá se encontravam recebiam duchas de água gelada na cabeça e eram postas num aparelho que as fazia girar ininterruptamente até se acalmarem. Quando, há três dias, ela se queixara pela primeira vez do seu medo dos hospícios, eu a havia interrompido após sua primeira história, a de que os pacientes eram amarrados a cadeiras. Vi então que nada tinha ganho com essa interrupção e que não posso me furtar a escutar suas histórias com todos os detalhes até a última palavra. Depois de reparar essas falhas, livrei-a também dessa nova safra de temores. Apelei para seu bom senso e lhe disse que ela realmente deveria acreditar mais em mim do que na moça tola de quem ouvira aquelas histórias horripilantes sobre a maneira como se trabalha nos hospícios. Como notei que ela às vezes ainda gaguejava ao narrar-me essas outras coisas, perguntei-lhe mais uma vez de onde provinha a gagueira. Nenhuma resposta. - “A senhora não sabe?” - “Não.” - “Por que não?” - “Por que não?” - “Porque não posso saber!” (Pronunciou estas últimas palavras com violência e raiva). Essa declaração me parece ser a prova do êxito de minha sugestão, mas ela me expressou o desejo de que a despertasse da hipnose, e assim fiz.

12 de maio, |manhã|. - Contrariamente a minha expectativa, ela dormira mal e por pouco tempo. Encontrei-a num estado de grande angústia, embora, incidentalmente, sem demonstrar seus costumeiros sinais físicos desta. Não disse o que estava acontecendo, mas apenas que tivera sonhos ruins e ficava vendo as mesmas coisas. “Como seria horrível”, disse, “se eles se tornassem realidade”. Durante a massagem, ela abordou alguns pontos em resposta a minhas perguntas. Ficou alegre então; falou-me de sua vida social na casa do Báltico que lhe coubera por morte do marido, das pessoas importantes que recebe da cidade vizinha, etc.
Hipnose. - Ela tivera alguns sonhos de horror. Os pés e braços das cadeiras se haviam transformado todos em cobras; um monstro com bico de abutre estraçalhava e comia todo o seu corpo; outros animais selvagens saltavam sobre ela, etc. Passou então a outros delírios com animais, que, contudo, qualificou acrescentando: “Isso foi real” (não um sonho): como (numa ocasião anterior) ela fora apanhar um novelo de lã e era um rato que saíra correndo; como estivera fazendo uma caminhada e um grande sapo saltara de repente sobre ela, e assim por diante. Compreendi que minha proibição geral fora ineficaz e que teria de afastar dela suas impressões assustadoras uma a uma. Aproveitei também a oportunidade para lhe perguntar por que ela sofria de dores gástricas e de onde provinham. (Creio que todos os seus acessos de zoopsia |alucinações com animais| são acompanhados de dores gástricas.) Sua resposta, dada a contragosto, foi que não sabia. Pedi-lhe que se lembrasse até amanhã. Disse-me então, num claro tom de queixa, que eu não devia continuar a perguntar-lhe de onde provinha isso ou aquilo, mas que a deixasse contar-me o que tinha a dizer. Concordei com isso e ela prosseguiu, sem nenhum preâmbulo: “Quando o levaram embora, não pude acreditar que ele estivesse morto.” (Estava, portanto, falando sobre o marido mais uma vez, e compreendi então que a causa de seu mau humor era que ela estivera sofrendo em virtude dos resíduos não revelados dessa história.) Depois disso, contou-me, odiara a filha por três anos, pois sempre disse a si mesma que talvez tivesse podido restaurar a saúde do marido se não estivesse de cama por causa da criança. Além disso, após a morte do marido, não tinha havido nada senão insultos e agitações. Os parentes dele, que sempre foram contra o casamento e que tinham ficado com raiva por eles serem tão felizes juntos, espalharam o boato de que ela o havia envenenado, de modo que ela desejara abrir um inquérito. Os parentes tinham-na envolvido em toda espécie de processos legais, com a ajuda de um jornalista suspeito. O miserável espalhara agentes a fim de incitar as pessoas contra ela. Fazia com que os jornais locais publicassem artigos difamantes a seu respeito e depois lhe mandava recortes. Essa fora a origem de sua insociabilidade e de seu ódio por todos os estranhos. Após eu dizer algumas palavras tranqüilizadoras sobre o que me contara, ela disse que se sentia melhor.

13 de maio, |manhã|. - Mais uma vez ela dormira mal, por causa de dores gástricas. Não tinha jantado. Também não se queixou de dores no braço direito. Mas estava de bom humor; mostrou-se alegre e, desde ontem, tem-me tratado com especial distinção. Pediu minha opinião sobre toda espécie de coisas que lhe pareciam importantes e ficou excessivamente agitada, por exemplo, quando tive de procurar as toalhas necessárias à massagem, e assim por diante. Seu estalido e seu tique facial eram freqüentes.
Hipnose. - Ontem à noite, súbito lhe ocorrera por que os animaizinhos que ela via se tornavam tão grandes. Isso lhe acontecera pela primeira vez em D -, durante um espetáculo teatral em que um enorme lagarto aparecia em cena. Essa lembrança a havia atormentado muito ontem também.
O motivo do reaparecimento dos estalidos foi que ontem ela teve dores abdominais e tentou não gemer para não demonstrá-las. Não tinha nenhuma idéia da verdadeira causa desencadeadora do estalido (ver em |[1]|.) Também se recordou de que eu lhe dera instruções para descobrir a origem de suas dores gástricas. Não o sabia, contudo, e me pediu que a ajudasse. Perguntei-lhe se, talvez, em alguma ocasião após uma grande excitação, ela se haveria forçado a comer. Ela confirmou isso. Após a morte do marido, perdera inteiramente o apetite por muito tempo e havia comido apenas por um sentimento de obrigação, e as dores gástricas haviam de fato começado naquela época. Eliminei então essas dores passando a mão algumas vezes sobre seu epigástrio. A seguir, por conta própria, ela começou a falar sobre as coisas que mais a haviam afetado. “Já lhe contei”, disse, “que não gostava da criança. Mas devo acrescentar que ninguém poderia adivinhar isso por meu comportamento. Fiz tudo o que era necessário. Até hoje me recrimino por ter gostado mais da primogênita”.

14 de maio, |manhã.| - Estava bem e alegre e dormira até 7h30min da manhã. Queixou-se apenas de ligeiras dores na região radial da mão e na cabeça e rosto. O que ela me diz antes da hipnose vai adquirindo um significado cada vez maior. Hoje não teve quase nada de horrível para apresentar. Queixou-se de dores e perda de sensibilidade na perna direita. Disse-me que teve um surto de inflamação abdominal em 1871; mal se havia recuperado, ficou tratando do irmão doente, e foi então que as dores apareceram pela primeira vez, chegando até a levar a uma paralisia temporária da perna direita.
Durante a hipnose, perguntei-lhe se agora lhe seria possível participar da vida social, ou se ainda estava muito temerosa. Respondeu-me que ainda lhe era desagradável ter alguém de pé atrás dela ou mesmo a seu lado. A esse respeito, falou-me de outras ocasiões em que fora desagradavelmente surpreendida pelo súbito aparecimento de alguém. Certa feita, por exemplo, quando passeava com as filhas na ilha de Rügen, dois indivíduos de aparência suspeita haviam saído de uns arbustos e lhes dirigido insultos. Em Abbazia, quando estava passeando certa noite, um mendigo saíra de repente de detrás de uma pedra e se ajoelhara diante dela. Parece que era um louco inofensivo. Por último, contou-me como sua isolada casa de campo fora arrombada à noite, o que muito a havia alarmado. É fácil ver, entretanto, que a origem essencial desse medo das pessoas foi a perseguição a que ela se viu sujeita após a morte do marido.
Noite. - Embora parecesse muito animada, saudou-me com a exclamação: “Estou morta de medo; oh, mal posso lhe dizer, eu me odeio!” Afinal fui informado de que ela havia recebido a visita do Dr. Breuer e levara um susto ao vê-lo aparecer. Como ele percebeu isso, ela lhe assegurou que fora “só aquela vez”. Ficou profundamente penalizada por minha causa, por ter traído esse vestígio de seu antigo nervosismo. Em mais de uma ocasião tive oportunidade de notar, nestes últimos dias, o quanto ela é severa consigo mesma, como tende a se culpar com severidade pelos ínfimos sinais de negligência - quando as toalhas para a massagem não estão em seu lugar habitual ou quando o jornal para eu ler enquanto ela adormece não se encontra prontamente à mão. Após a eliminação da primeira e mais superficial camada de lembranças torturantes, sua personalidade moralmente supersensível, com tendência à autodepreciação, veio à tona. Tanto em seu estado de vigília como sob a hipnose, eu lhe disse (o que correspondeu ao velho preceito legal “de minimis non curat lex” que existe uma multidão de coisinhas insignificantes entre o que é bom e o que é mau - coisas sobre as quais ninguém precisa censurar-se. Ela não aceitou minha lição, suponho, tal como não o faria um monge medieval, que vê o dedo de Deus ou a tentação do Demônio em cada fato trivial de sua vida e que é incapaz de imaginar o mundo, sequer por um momento fugaz ou em seu menor recanto, como destituído de uma referência a ele próprio.
Em sua hipnose, ela trouxe à baila algumas outras imagens apavorantes (em Abbazia, por exemplo, via cabeças ensangüentadas em cada onda do mar). Fi-la repetir as instruções que lhe dera enquanto estava acordada.

15 de maio, |manhã.| - Ela dormira até as 8h30min da manhã, mas depois ficara inquieta, tendo-me recebido com ligeiros sinais de seu tique, dos estalidos e da inibição da fala. “Estou morta de medo”, disse mais uma vez. Em resposta a uma pergunta, falou-me que a pensão onde se encontravam suas filhas ficava no quarto andar de um prédio e lá se chegava de elevador. Ontem havia insistido em que as filhas usassem o elevador tanto para descer como para subir, e agora se recriminava por isso, porque não se devia confiar inteiramente no ascensor. O próprio dono da pensão tinha dito isso. Teria eu ouvido, perguntou, a história da Condessa Sch., que encontrara a morte em Roma num acidente dessa natureza? Por coincidência, conheço essa pensão e sei que o elevador é propriedade particular do dono da mesma; não me parece provável que esse homem, que chama uma atenção especial para o elevador num anúncio, fosse ele próprio advertir alguém contra sua utilização. Pareceu-me que teríamos aí uma das paramnésias acarretadas pela angústia. Dei a minha opinião à Sra. Emmy e consegui, sem nenhuma dificuldade, fazê-la rir da improbabilidade de seus temores. Exatamente por essa razão, não pude acreditar que esta fosse a causa da sua angústia e decidi formular a pergunta a sua consciência hipnótica. Durante a massagem, que hoje reiniciei após um intervalo de alguns dias, ela me contou uma série de histórias sem ligação umas com as outras, que talvez tenham sido reais - sobre um sapo que foi encontrado num porão, uma mãe excêntrica quecuidava do filho idiota de maneira estranha, uma mulher que foi trancada num hospício porque sofria de melancolia - e que revelavam o tipo de recordações que lhe passavam pela cabeça quando ela estava intranqüila. Depois de se livrar dessas histórias, ficou muito animada. Descreveu a vida em sua propriedade e seus contatos com homens preeminentes da Rússia teutônica e da Alemanha setentrional e, na verdade, achei extremamente difícil conciliar atividades desse tipo com o quadro de uma mulher tão gravemente neurótica.
Assim, perguntei-lhe em sua hipnose por que ela estava tão desassossegada esta manhã. Em vez de suas dúvidas sobre o elevador, informou-me ter sentido medo de que sua menstruação recomeçasse e tornasse a interferir na massagem.

Fiz então com que ela me contasse a história das dores na perna. Começou da mesma forma que ontem |falando sobre haver cuidado do irmão| e prosseguiu com uma longa série de exemplos de experiências, alternadamente aflitivas e irritantes, que tivera ao mesmo tempo que as dores na perna e cujo efeito fora o de torná-las cada vez piores, até mesmo a ponto de ela ficar com paralisia bilateral e perda de sensibilidade nas pernas. O mesmo se aplicava às dores do braço. Elas também surgiram enquanto a paciente cuidava de algum doente, ao mesmo tempo que as cãibras no pescoço.”Quanto a estas, fiquei sabendo apenas que se seguiram a alguns curiosos estados de inquietude acompanhados de depressão, que já existiam antes. Consistem num “aperto gelado” na nuca, juntamente com o surgimento da rigidez e um frio doloroso em todas as extremidades da paciente, incapacidade de falar e completa prostração. Duram de seis a doze horas. Falharam minhas tentativas de demonstrar que esse complexo de sintomas representava uma lembrança. Fiz-lhe algumas perguntas com a finalidade de descobrir se seu irmão, enquanto a paciente o assistia durante o delírio dele, alguma vez a agarrara pelo pescoço; mas ela negou e disse não saber de onde provinham esses acessos.

Noite. - Ela estava muito animada e demonstrava grande senso de humor. Contou-me, aliás, que o caso do elevador não era como me havia relatado. O proprietário só dissera aquilo para dar uma desculpa pelo fato de o elevador não ser utilizado para descer. Ela me fez um grande número de perguntas que nada tinham de patológicas. Tem sofrido de lancinantes dores no rosto, na mão junto ao polegar e na perna. Fica rígida e sente dores no rosto se ficar sentada sem se mexer ou se olhar fixamente para algum ponto por um período considerável de tempo. Quando levanta qualquer coisa pesada, isso lhe causa dores no braço. - O exame da perna direita revelou sensibilidade relativamente boa na coxa, alto grau de insensibilidade na parte inferior da perna e no pé e menor na região das nádegas e do quadril.
Sob hipnose, ela me informou que ocasionalmente ainda tem idéias assustadoras, como a de que algo pode acontecer com suas filhas, que elas poderiam adoecer ou morrer, ou que o irmão dela, que está agora em lua-de-mel, poderia sofrer um acidente, ou que a esposa dele poderia morrer (porque os casamentos de todos os seus irmãos e irmãs tinham sido muito curtos). Não consegui arrancar da paciente quaisquer outros temores. Proibi-a de sentir qualquer necessidade de se assustar quando não houvesse nenhum motivo para isso. Prometeu-me desistir disso “porque o senhor está pedindo”. Dei-lhe outras sugestões quanto às dores, à perna, etc.

16 de maio, |manhã|. - Ela havia dormindo bem. Queixava-se ainda de dores no rosto, braços e pernas. Estava muito alegre. Sua hipnose não rendeu nada. Apliquei um pincel farádico em sua perna insensibilizada.
Noite. - Sobressaltou-se assim que entrei: “Estou muito contente com sua vinda”, disse, “estou muito assustada”. Ao mesmo tempo, dava todos os sinais de terror, juntamente com a gagueira e o tique. Primeiro fiz com que me contasse, em estado de vigília, o que tinha acontecido. Retorcendo os dedos e estendendo as mãos para a frente, pintou um quadro nítido de seu terror ao dizer: “Um camundongo enorme passou de repente sobre minha mão no jardim e desapareceu num segundo; as coisas ficaram deslizando para trás e para a frente.” (Uma ilusão do jogo de sombras?) “Um bando inteiro de ratinhos estava sentado nas árvores. - O senhor não está ouvindo os cavalos batendo com as patas no circo? - Há um homem gemendo no quarto ao lado; deve estar sentindo dores depois de sua operação. - Será que estou em Rügen? Eu tinha uma estufa como essa lá?” Ela estava confusa com a multidão de pensamentos que se entrecruzavam em seu cérebro e com o esforço que fazia para separá-los do ambiente que a cercava de fato. Quando lhe formulei perguntas sobre coisas atuais, tais como se as filhas estavam aqui, não soube dar nenhuma resposta.
Tentei desembaraçar por meio da hipnose a confusão que lhe ia pela mente. Perguntei-lhe o que era que a assustava. Repetiu a história do camundongo, com todos os sinais de terror, e acrescentou que, quando descia os degraus, viu um animal horrível deitado, que desapareceu imediatamente. Disse-lhe que isso eram alucinações e lhe instruí para que não se assustasse com os camundongos; só os bêbados é que os viam (ela detestava bêbados). Contei-lhe a história do Bispo Hatto. Ela também a conhecia, e ouviu-a horrorizada. - “Como foi que a senhora veio a pensar no circo?” perguntei-lhe então. Disse-me que tinha ouvido claramente os cavalos batendo com as patas nos estábulos ali perto e acabando presos nos arreios, o que poderia machucá-los. Quando isso acontecia, Johann costumava sair para desamarrá-los. Neguei que houvesse estábulos por perto ou que alguém no quarto contíguo tivesse gemido. Ela sabia onde estava? Respondeu que agora sabia, mas antes pensara estar em Rügen. Perguntei-lhe como tinha chegado a essa lembrança. Tinham estado conversando no jardim, disse, sobre como fazia calor numa parte dele, e imediatamente lhe viera a idéia do terraço sem sombra em Rügen. Muito bem, perguntei-lhe, quais eram as recordações tristes que guardava de sua estada em Rügen? Ela citou uma série delas. Lá sentira as dores mais terríveis nas pernas e nos braços; quando saía em excursões, fora várias vezes apanhada por um nevoeiro e se perdera; duas vezes, quando passeava, um touro tinha corrido atrás dela, e assim por diante. Como é quando tinha tido essa crise hoje? - Como (respondeu)? Escrevera grande número de cartas; tinha levado três horas e isso lhe deixara a cabeça confusa. - Pude presumir, por conseguinte, que seu surto delirante fora provocado pelo cansaço e que seu conteúdo fora determinado por associações tais como a do lugar sem sombra do jardim, etc. Repeti todos os conselhos que tinha o hábito de lhe dar e deixei-a recomposta para dormir.

17 de maio, |manhã|. - Ela passou a noite muito bem. No banho de farelo que tomou hoje, deu alguns gritos, por ter confundido o farelo com vermes. Fui informado disso pela enfermeira. A própria paciente relutou em falar-me a respeito. Estava quase exageradamente alegre, mas interrompia-se com exclamações de horror e asco e fazia caretas que expressavam terror. Também gaguejou mais do que nos últimos dias. Contou-me haver sonhado, na noite passada, que estava caminhando sobre uma porção de sanguessugas. Na noite anterior tinha tido sonhos horríveis. Tivera que amortalhar um grande número de defuntos e colocá-los em caixões, mas não os tampava. (Obviamente, uma lembrança do marido.) Disse-me ainda que, no decurso de sua vida, tivera inúmeros incidentes com animais. O pior tinha sido com um morcego que ficara preso em seu guarda-roupa, de modo que ela se precipitara para fora do quarto sem nenhuma roupa. Para curá-la desse medo, o irmão lhe dera um belo broche com a forma de um morcego, mas ela nunca pudera usá-lo.
Sob hipnose, explicou-me que seu medo de vermes provinha de ter recebido como presente, certa vez, uma linda almofada para alfinetes; na manhã seguinte, porém, quando quis usá-la, uma porção de vermezinhos saíram da almofada, que tinha sido enchida com farelo que não estava bem seco. (Uma alucinação? Talvez um fato real.) Pedi-lhe que me contasse outras histórias de animais. Certa feita, disse ela, quando passeava com o marido num parque de São Petersburgo, todo o caminho que levava a um pequeno lago estava recoberto de sapos, de modo que foram obrigados a voltar. Houve épocas em que ela ficara impossibilitada de estender a mão para qualquer pessoa, temendo que a mão se transformasse num animal terrível, como tantas vezes tinha acontecido. Tentei libertá-la de seu medo de animais designando-os um por um e perguntando-lhe se tinha medo deles. Em alguns casos, respondeu “não”; em outros, “não devo ter medo deles”. Perguntei-lhe por que havia gaguejado e se mexido tanto ontem. Respondeu que sempre fazia isso quando estava muito assustada. - Mas por que tinha estado tão assustada ontem? - Porque todas as espécies de pensamentos opressivos lhe haviam passado pela cabeça no jardim: em particular, a idéia de como poderia impedir que algo se acumulasse de novo dentro dela depois que seu tratamento terminasse. Repeti as três razões que eu já lhe tinha dado para sentir-se reassegurada: (1) que ela se tornara mais sadia e mais capaz de ter resistência, (2) que adquiriria o hábito de contar seus pensamentos a alguém com quem mantivesse estreitas relações, e (3) que, daí por diante, consideraria indiferente um grande número de coisas que até então a haviam oprimido. Ela prosseguiu dizendo que também estivera preocupada porque não me havia agradecido pela visita que eu lhe fizera ao fim do dia, e temia que eu perdesse a paciência com ela em vista de sua recente recaída. Ficara muito perturbada e alarmada porque o médico interno perguntara a um senhor no jardim se ele agora se sentia capaz de enfrentar sua operação. A esposa estava sentada ao lado dele, e ela (a paciente) não pôde deixar de pensar que talvez aquela fosse a última noite do pobre homem. Após esta última explicação, sua depressão pareceu dissipar-se.
Noite. - Ela estava muito animada e satisfeita. A hipnose não produziu absolutamente nada. Dediquei-me a cuidar de suas dores musculares e restaurar-lhe a sensibilidade da perna direita. Isso foi conseguido com muita facilidade na hipnose, mas sua sensibilidade restaurada tornou a perder-se parcialmente quando ela despertou. Antes de eu deixá-la, externou seu espanto de que há tanto tempo não tivesse cãibras no pescoço, já que elas costumavam sobrevir antes de cada tempestade.

18 de maio. - Há anos não dormia tão bem como na noite passada. Depois do banho, porém, queixou-se de frio na nuca, contrações e dores no rosto, nas mãos e nos pés. Suas feições estavam tensas, e os punhos, cerrados. A hipnose não revelou qualquer conteúdo psíquico subjacente às cãibras no pescoço. Melhorei-as através de massagens, depois que ela havia despertado.

Espero que este resumo do histórico das três primeiras semanas do tratamento seja suficiente para fornecer um quadro nítido do estado da paciente, da natureza de meus esforços terapêuticos e da medida de seu êxito. Passarei agora a ampliar o relato do caso.
O delírio que acabo de descrever foi também a última perturbação importante no estado da Sra. Emmy von N. Visto que eu não tomava a iniciativa de procurar os sintomas e sua base, mas esperava que algo surgisse na paciente ou que ela me revelasse algum pensamento que lhe estivesse causando angústia, suas hipnoses logo deixaram de produzir material. Assim, passei a usá-las principalmente com a finalidade de proporcionar-lhe máximas que ficassem sempre em sua mente e que a protegessem contra recaídas em estados semelhantes quando voltasse para casa. Naquela época, eu estava sob total influência do livro de Bernheim sobre sugestão e previa mais resultados dessas medidas didáticas do que o faria hoje. O estado de minha paciente melhorou tão depressa que ela logo me assegurou que não se sentia tão bem desde a morte do marido. Após um tratamento que durou ao todo sete semanas, permiti-lhe que voltasse para sua casa no Báltico.
Não fui eu, mas o Dr. Breuer, quem recebeu notícias dela cerca de sete meses depois. Seu estado de saúde continuara bom durante vários meses, mas depois havia voltado a piorar como resultado de um novo choque psíquico. Sua filha mais velha, durante a primeira estada de ambas em Viena, já havia tido, como a mãe, cãibras no pescoço e ligeiros estados histéricos; em particular, porém, sofrera de dores ao andar, em virtude de uma retroversão do útero. A conselho meu, procurara para tratamento o Dr. N., um de nossos mais famosos ginecologistas, que recolocara o útero em sua posição por meio de massagens, havendo ela ficado livre de problemas durante vários meses. Seus problemas reapareceram, contudo, enquanto as duas estavam em casa, e a mãe chamou um ginecologista da cidade universitária vizinha. Ele receitou para a moça um tratamento local e geral que, todavia, acarretou uma grave doença nervosa (ela estava, na época, com dezessete anos). É provável que isso já fosse um indício da sua predisposição patológica que iria manifestar-se um ano depois numa alteração do caráter. |Ver em [1].| A mãe, que havia entregue a moça às mãos dos médicos com sua habitual mistura de docilidade e desconfiança, foi dominada pelas mais violentas auto-recriminações após o infeliz resultado do tratamento. Uma associação de idéias que eu não tinha investigado levou-a à conclusão de que eu e o Dr. N. éramos os responsáveis pela doença da filha, porque havíamos feito pouco caso da gravidade de seu estado. Por um ato de vontade, por assim dizer, ela desfez os efeitos do meu tratamento e de imediato recaiu nos estados dos quais eu a havia libertado. Um ilustre médico de suas redondezas, a quem procurou para obter orientação, juntamente com o Dr. Breuer, que se correspondia com ela, conseguiram convencê-la da inocência dos dois alvos de suas acusações; mas, mesmo depois que isso se dissipou, a aversão formada contra mim nessa época permaneceu como um resíduo histérico, e ela declarou que lhe era impossível reiniciar o tratamento comigo. A conselho da mesma autoridade médica, recorreu à ajuda de um sanatório na Alemanha setentrional. Por desejo de Breuer, expliquei ao médico encarregado as modificações da terapia hipnótica que eu julgara eficazes no caso dessa paciente.
Essa tentativa de transferência falhou completamente. Desde o início ela parece ter mostrado uma disposição contrária ao médico. Esgotava-se na resistência ao que quer que fosse feito por ela. Ficou deprimida, perdeu o sono e o apetite e só se recuperou depois que uma amiga sua, que foi visitá-la no sanatório, na verdade a seqüestrou às escondidas e tratou-a em sua casa. Pouco tempo depois, exatamente um ano após seu primeiro encontro comigo, ela estava de novo em Viena e mais uma vez se entregou a meus cuidados.
Achei-a muito melhor do que esperava pelos relatos que recebera por carta. Podia movimentar-se e estava livre da angústia, e grande parte do que eu conseguira um ano antes ainda se mantinha. Sua principal queixa era com relação a freqüentes estados de confusão - “tempestades na cabeça”, como as denominava. Além disso, sofria de insônia e muitas vezes ficava em prantos por horas a fio. Sentia-se triste numa determinada hora do dia (cinco horas). Esse era o horário habitual em que, no inverno, pudera visitar a filha na casa de saúde. Gaguejava e emitia o estalido com grande freqüência e esfregava as mãos como se estivesse enfurecida, e quando lhe perguntei se estava vendo muitos animais, apenas respondeu: “Oh, fique quieto!”
À minha primeira tentativa de induzir a hipnose, cerrou os punhos e exclamou: “Não deixarei que me apliquem nenhuma injeção antipirética; prefiro ter minhas dores! Não gosto do Dr. R.; ele me é antipático.” Compreendi que ela estava presa à lembrança de ser hipnotizada no sanatório, e acalmou-se tão logo eu a trouxe de volta à situação atual.
Logo no início do tratamento |reiniciado| tive uma experiência instrutiva. Eu lhe havia perguntado há quanto tempo a gagueira voltara, e ela respondera de forma hesitante (sob hipnose) que tinha sido desde um choque que experimentara em D - durante o inverno. Um garçom do hotel em que estava hospedada havia se escondido em seu quarto de dormir. Na escuridão, disse ela, confundira o objeto com um sobretudo e estendera a mão para apanhá-lo, tendo o homem de repente “dado um pulo para o alto”. Eliminei essa imagem mental e, de fato, a partir daquele momento, ela deixou de gaguejar visivelmente, quer na hipnose, quer na vida de vigília. Não me recordo do que foi que me levou a testar o êxito da minha sugestão, mas quando voltei na mesma noite, perguntei-lhe, num tom aparentemente inocente, como eu poderia trancar a porta quando fosse embora (quando ela estivesse deitada dormindo), de modo que ninguém pudesse entrar furtivamente no quarto. Para meu assombro, ela levou um susto horrível e começou a rilhar os dentes e esfregar as mãos. Revelou que tivera um choque violento desse tipo em D -, mas não consegui persuadi-la a me contar a história. Percebi que tinha em mente a mesma história que me narrar aquela manhã, durante a hipnose, e que eu julgara haver apagado. Em sua hipnose seguinte, contou-me a história com maior riqueza de detalhes e maior verossimilhança. Agitada, estivera andando pelo corredor de um lado para o outro e encontrara aberta a porta do quarto da empregada. Tentou entrar e sentar-se. A empregada lhe bloqueou o caminho, mas a paciente não se deixou deter e entrou, e foi então que viu contra a parede o objeto escuro que veio a se revelar como sendo um homem. Evidentemente, o fator erótico dessa pequena aventura é que a levara a fazer um relato falso da mesma. Isso me ensinou que uma história incompleta sob hipnose não produz nenhum efeito terapêutico. Acostumei-me a considerar incompleta qualquer história que não trouxesse nenhuma melhora, e aos poucos tornei-me capaz de ler nos rostos dos pacientes se eles não estariam ocultando uma parte essencial de suas confissões.
O trabalho que tive de levar a efeito com ela nessa ocasião consistiu em lidar, por meio da hipnose, com as impressões desagradáveis que ela recebera durante o tratamento da filha e quando de sua própria estada no sanatório. Ela estava cheia de raiva, reprimida, pelo médico que a tinha obrigado, sob hipnose, a soletrar a palavra “s…a…p…o” e me fez prometer que jamais a faria dizer isso. A esse respeito, aventurei-me a fazer uma brincadeira prática numa de minhas sugestões a ela. Este foi o único abuso da hipnose - aliás um abuso muito inocente - cuja culpa para com essa paciente tenho de confessar. Assegurei-lhe que sua estada no sanatório em “-tal” |“vale”| se tornaria tão remota para ela que nem sequer conseguiria lembrar-se do nome, e sempre que quisesse referir-se a ele hesitaria entre “-berg” |“colina”|, “-tal”, “-wald” |“bosque”|, e assim por diante. Isso efetivamente aconteceu, e logo o único sinal remanescente de sua inibição da fala foi sua incerteza sobre esse nome. Por fim, após uma observação do Dr. Breuer, aliviei-a dessa paramnésia compulsiva.
Travei com o que ela descrevia como “as tempestades na cabeça” uma luta mais longa do que com os resíduos dessas experiências. Quando a vi pela primeira vez num desses estados, estava deitada no sofá com as feições transtornadas e todo o corpo em permanente agitação. Ficava a pressionar a testa com as mãos e a chamar, em tons de súplica e desânimo, o nome “Emmy”, que era o de sua filha mais velha e também o seu. Sob hipnose, confessou-me que esse estado era uma repetição dos numerosos acessos de desespero pelos quais se vira dominada durante o tratamento da filha, quando, depois de passar horas tentando descobrir algum meio de corrigir seus efeitos negativos, não se lhe apresentava nenhuma saída. Quando, em tais ocasiões, sentia que seus pensamentos ficavam confusos, adotava o hábito de chamar pelo nome da filha, de modo que pudesse ajudá-la a desanuviar a cabeça; e isso porque, durante o período em que a doença da filha lhe estava impondo novos deveres e ela sentia que seu próprio estado nervoso mais uma vez começava a dominá-la, ela determinou que o que quer que tivesse a ver com a moça devia ficar isento de confusão, por mais caótico que tudo o mais pudesse estar em sua cabeça.

No decurso de algumas semanas conseguimos eliminar também essas lembranças, e a Sra. Emmy permaneceu sob minha observação por mais algum tempo, sentindo-se perfeitamente bem. Ao final da sua estada aconteceu algo que passarei a descrever com pormenores, visto que lança a mais intensa luz sobre o caráter da paciente e a maneira pela qual seus estados se produziam.
Visitei-a um belo dia na hora do almoço e surpreendi-a no ato de atirar no jardim algo embrulhado em papel, que foi apanhado pelos filhos do porteiro. Em resposta à minha pergunta, ela admitiu que era o seu pudim (seco) e que a mesma coisa acontecia todos os dias. Isso me levou a investigar o que sobrava dos outros pratos e verifiquei que restava mais da metade da comida. Quando lhe perguntei por que comia tão pouco, respondeu que não tinha o hábito de comer mais e que passava mal se o fizesse; a Sra. Emmy tinha a mesma constituição do pai, que também tinha o hábito de comer pouco. Quando lhe perguntei o que bebia, disse-me que só podia tolerar líquidos espessos, como leite, café ou chocolate; beber água, comum ou mineral, lhe perturbava a digestão. Isso tinha todos os sinais de uma escolha neurótica. Tirei uma amostra de sua urina e verifiquei que estava altamente concentrada e sobrecarregada de uratos.
Julguei portanto aconselhável recomendar-lhe que bebesse mais e resolvi também aumentar a quantidade de seus alimentos. É verdade que ela de modo algum parecia magra a ponto de chamar atenção, mas mesmo assim achei que valeria a pena fazê-la comer mais um pouco. Quando, em minha visita seguinte, ordenei-lhe que ingerisse água alcalina e proibi-a de lidar com o pudim da maneira como fazia, demonstrou agitação considerável. “Farei isso porque o senhor está pedindo”, disse “mas posso dizer-lhe de antemão que dará mau resultado, porque é contrário à minha natureza, e o mesmo aconteceu com meu pai”. Quando lhe perguntei sob hipnose por que não podia comer mais nem beber água, respondeu num tom mal-humorado: “Não sei.” No dia seguinte, a enfermeira informou que ela havia comido tudo o que lhe fora servido e bebera um copo de água alcalina. Mas encontrei a própria Sra. Emmy numa profunda depressão e num estado de humor muito irritado. Queixou-se de sentir dores gástricas muito violentas. “Eu lhe disse o que aconteceria”, falou. “Sacrificamos todos os bons resultados pelos quais vimos lutando há tanto tempo. Estraguei minha digestão, como sempre acontece quando como mais ou bebo água, e agora terei de morrer de fome por cinco dias a uma semana antes que possa tolerar qualquer coisa.” Assegurei-lhe que não havia nenhuma necessidade de ela morrer de fome e que era impossível estragar a digestão dessa forma: suas dores se deviam somente à angústia em relação a comer e beber. Ficou claro que essa explicação minha não causou nela a mais leve impressão, pois quando, logo depois, tentei fazê-la dormir, pela primeira vez não consegui provocar a hipnose; e o olhar furioso que ela me dirigiu convenceu-me de que estava em franca rebelião e de que a situação era muito grave. Desisti de tentar hipnotizá-la e anunciei que lhe daria vinte e quatro horas para pensar bem e aceitar a opinião de que suas dores gástricas provinham apenas de seu medo. No fim desse período, eu lhe perguntaria se ainda era de opinião que sua digestão podia ser estragada por uma semana pela ingestão de um copo de água mineral e de uma modesta refeição; se ela dissesse que sim, eu lhe pediria que fosse embora. Essa pequena cena apresentava um acentuado contraste com nossas relações normais, que eram as mais amistosas.
Encontrei-a vinte e quatro horas depois, dócil e submissa. Quando lhe perguntei o que pensava sobre a origem de suas dores gástricas, ela respondeu, porque era incapaz de subterfúgios: “Penso que provêm da minha angústia, mas só porque o senhor é dessa opinião.” Em seguida, coloquei-a em hipnose e perguntei mais uma vez: “Por que a senhora não consegue comer mais?”
A resposta veio prontamente e consistiu, mais uma vez, numa série de razões dispostas em ordem cronológica a partir de seu acervo de lembranças: “Estou pensando em como, quando eu era criança, muitas vezes acontecia que, por malcriação, recusava-me a comer carne ao jantar. Minha mãe era muito severa a esse respeito e, sob a ameaça de um castigo exemplar, eu era obrigada, duas horas depois, a comer a carne, que era deixada no mesmo prato. A essa altura a carne já estava muito fria e a gordura, muito dura” (ela demonstrou sua repulsa) “…Ainda posso ver o garfo na minha frente… um de seus dentes era meio torto. Sempre que me sento à mesa vejo os pratos diante de mim, com a carne e a gordura frias. E me lembro como, muitos anos depois, morei com meu irmão, que era oficial e teve aquela doença horrível. Eu sabia que era contagiosa e tinha um medo terrível de apanhar sua faca e seu garfo por engano” (estremeceu) “…e apesar disso, fazia minhas refeições com ele, para que ninguém soubesse que ele estava doente. E como, logo depois disso, cuidei de meu outro irmão quando esteve muito doente de tuberculose. Sentávamos ao lado de sua cama, e a escarradeira ficava sempre sobre a mesa, aberta” (estremeceu de novo) “…ele tinha o hábito de escarrar por sobre os pratos na escarradeira. Isso sempre me provocava muita náusea, mas eu não podia demonstrá-la, temendo magoar os sentimentos dele. E essas escarradeiras ainda estão na mesa sempre que faço uma refeição, e ainda me causam náuseas.” Naturalmente, removi com cuidado todo esse conjunto de fomentadores da repulsa e então lhe perguntei por que ela não conseguia beber água. Quando tinha dezessete anos, respondeu, a família havia passado alguns meses em Munique e quase todos os membros haviam contraído catarro gástrico, graças à água potável de má qualidade. No caso dos outros, o distúrbio foi logo aliviado pelos cuidados médicos, mas com ela havia persistido. Tampouco melhorara com a água mineral que lhe fora recomendada. Quando o médico a receitou, ela logo pensou: “isso não vai adiantar nada”. A partir daquela ocasião, essa intolerância pela água comum e pela água mineral repetiu-se inúmeras vezes.
O efeito terapêutico dessas descobertas sob hipnose foi imediato e duradouro. Ela não passou fome durante uma semana, mas logo no dia seguinte comeu e bebeu sem nenhuma dificuldade. Dois meses depois, informou-me numa carta: “Estou comendo muitíssimo bem e ganhei bastante peso. Já bebi quarenta garrafas de água. O senhor acha que devo continuar?”
Revi a Sra. von N. na primavera do ano seguinte em sua propriedade rural perto de D-. Nessa ocasião, sua filha mais velha, por cujo nome ela havia chamado durante suas “tempestades na cabeça”, entrou numa fase de desenvolvimento anormal. Exibia ambições desenfreadas, inteiramente desproporcionais a seus escassos dons, e tornou-se desobediente e até violenta para com a mãe. Eu ainda gozava da confiança da Sra. Emmy e fui chamado para dar minha opinião sobre o estado da moça. Tive uma impressão desfavorável da alteração psicológica que se processara na jovem e, para chegar a um prognóstico, também tive que levar em conta o fato de que todos os seus meio-irmãos e irmãs (os filhos do primeiro matrimônio do Sr. von N.) tinham sucumbido à paranóia. Também na família de sua mãe não faltava uma hereditariedade neuropática, embora nenhum de seus parentes mais próximos houvesse desenvolvido psicose crônica. Comuniquei à Sra. von N., sem qualquer reserva, a opinião que me havia pedido, e ela a recebeu com calma e compreensão. Ela havia engordado, e sua saúde era florescente. Tinha-se sentido relativamente bem durante os nove meses decorridos desde o término de seu último tratamento. Fora perturbada apenas por ligeiras cãibras no pescoço e outros males de pequena monta. Nos vários dias que passei em sua casa vim a compreender, pela primeira vez, toda a extensão de seus deveres, ocupações e interesses intelectuais. Conheci também o médico da família, que não tinha muitas queixas da paciente: logo, até certo ponto, ela fizera as pazes com a profissão médica.
Em inúmeros aspectos, portanto, ela estava mais saudável e mais apta; porém, apesar de todas as minhas sugestões de melhora, verificara-se pouca alteração em seu caráter fundamental. Ela não parecia ter aceito a existência de uma categoria de “coisas sem importância”. Sua inclinação para atormentar-se era muito pouco menor do que na época do tratamento, e tampouco sua disposição histérica estivera estagnada durante esse bom período. Ela se queixava, por exemplo, de uma impossibilidade de fazer viagens de trem, de qualquer duração. Isso aparecera nos últimos meses. Uma tentativa necessariamente apressada de aliviá-la dessa dificuldade resultou apenas na produção de diversas impressões desagradáveis e insignificantes deixadas por algumas viagens recentes que ela fizera a D- e suas imediações. Entretanto, ela parecia relutar em ser comunicativa sob hipnose, e comecei mesmo a suspeitar de que estava a ponto de se afastar mais uma vez da minha influência e de que a finalidade secreta de sua inibição em relação aos trens era impedir que fizesse uma nova viagem a Viena.
Foi também durante esses dias que ela formulou suas queixas a respeito de lacunas na memória, “em especial quanto aos fatos mais importantes” |ver em [1]|, donde concluí que o trabalho que eu executara dois anos antes tinha sido inteiramente eficaz e duradouro. - Um dia, ela passeava comigo por uma avenida que se estendia da casa até uma enseada no mar e me arrisquei a perguntar se o caminho costumava ficar infestado de sapos. Como resposta, ela me lançou um olhar de censura, embora não acompanhado de sinais de horror; ampliou isso um momento depois, com as palavras “mas os daqui são reais”. Durante a hipnose, que induzi para lidar com sua inibição a respeito dos trens, ela própria pareceu insatisfeita com as respostas que me deu e externou o temor de que, no futuro, era provável que fosse menos obediente sob hipnose do que antes. Decidi-me a convencê-la do contrário. Escrevi algumas palavras num pedaço de papel, entreguei-o a ela e disse: “No almoço de hoje a senhora me servirá um copo de vinho tinto, da mesma forma que ontem. Quando eu levar o copo aos lábios, a senhora dirá: ‘Oh, por favor, sirva-me também um copo de vinho’, e quando eu estender a mão para apanhar a garrafa, dirá: ‘Não, obrigada; afinal, acho que não vou querer’. A senhora então porá a mão em sua bolsa, retirará dela um pedaço de papel e encontrará essas mesmas palavras escritas nele”. Isso foi pela manhã. Algumas horas depois, o pequeno episódio ocorreu exatamente como eu o havia predisposto, e de maneira tão natural que nenhuma das muitas pessoas presentes notou qualquer coisa. Quando me pediu o vinho, ela revelou visíveis sinais de uma luta interna - pois nunca bebia vinho - e depois de haver recusado a bebida com evidente alívio, pôs a mão na bolsa e retirou o pedaço de papel em que figuravam as últimas palavras que havia pronunciado. Balançou a cabeça e olhou-me com assombro.
Após minha visita em maio de 1890, minhas notícias da Sra. von N.foram ficando cada vez mais escassas. Soube indiretamente que o estado deplorável da filha, que lhe causava todas as espécies de aflições e agitações, acabou por minar-lhe a saúde. Por fim, no verão de 1893, recebi dela um bilhete pedindo-me permissão para ser hipnotizada por outro médico, visto que voltara a ficar doente e não podia vir a Viena. A princípio, não compreendi por que minha permissão era necessária, até me recordar que, em 1890, por sua própria solicitação, eu a havia protegido de ser hipnotizada por qualquer outra pessoa, para que não houvesse nenhum risco de ela ficar aflita ao se colocar sob o controle de algum médico que lhe fosse antipático, tal como acontecera em -berg (-tal, -wald). Por conseguinte, renunciei por escrito a minha prerrogativa exclusiva.


Continua na parte 2
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