Estudos sobre a histeria
VOLUME II
(1893-1895)
Josef
Breuer e Sigmund Freud
NOTA
DO EDITOR INGLÊS
(James Strachey)(A) ÜBER DEN PSYCHISCHEN MECHANISMUS HYSTERISCHER PHÄNOMENE (VORLÄUFIGE MITTEILUNG)(a) EDIÇÕES ALEMÃES:
1893 Neurol. Centralbl., 12 (1), 4-10 (Seções I-II), e 12 (2), 43-7 (Seções III-V). (1º e 15 de janeiro.)
1893 Wien. med. Blätter, 16 (3), 33-5 (Seções I-II), e 16 (4), 49-51 (Seções III-V). (19 e 26 de janeiro.)
1895, etc. Em Studien über Hysterie. (Ver adiante.)
1906 S.K.S.N., I, 14-29. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
“The Psychic Mechanism of Hysterical Phenomena
(Preliminary Communication)”
1909 S.P.H., 1-13. (Trad. A. A. Brill.) (1912, 2ª. ed., 1920, 3ª ed.)
1936 Em Studies in Hysteria. (Ver adiante.)
“On the Psychical Mechanism of Hysterical Phenomena”
1924 C.P., 1, 24-41. (Trad. J. Rickman.)
(B) STUDIEN ÜBER HYSTERIE(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1895 Leipzig e Viena: Deuticke. Págs. v + 269.
1909 2ª ed. Mesmos editores. (Sem modificações, mas com novo prefácio.) Págs. vii + 269.
1916 3ª ed. Mesmos editores. (Sem modificações.) Págs. vii + 269
1922 4ª ed. Mesmos editores. (Sem modificações.) Págs. vii + 269.
1925 G.S., 1, 3-238. (Com omissão das contribuições de Breuer; com notas de rodapé adicionais de Freud.)
1952 G.W., 1, 77-312. (Reimpressão de 1925.)
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
Studies in Hysteria
1909 S.P.H., 1-120. (1912, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.) (Trad. A. A. Brill.) (Somente em parte: com omissão dos casos clínicos da Srta. Anna O., Sra. Emmy von N. e Katharina, bem como do capítulo teórico de Breuer.)
1936 New York: Nervous and Mental Disease Publishing. Co. (Monograph Series nº 61.) Págs. ix + 241. (Trad. A. A. Brill.)
(Completo, salvo quanto à omissão das notas de rodapé adicionais de Freud, de 1925.)
A tradução
inglesa, inteiramente nova e completa, de James e Alix Strachey, inclui as
contribuições de Breuer, mas quanto ao resto baseia-se na edição alemã de 1925,
contendo as notas de rodapé adicionais de Freud. A omissão das contribuições de
Breuer das duas coletâneas alemãs (G.S. e G.W.) acarretou algumas
modificações necessárias e notas de rodapé adicionais, onde Freud tinha feito
referência, na edição original, às partes omitidas. Nessas edições completas,
também a numeração dos casos clínicos foi alterada, em vista da ausência do
caso clínico de Anna O. Todas essas alterações foram abandonadas na presente
tradução. - Os extratos da “Comunicação Preliminar” e do volume principal
tinham sido incluídos por Freud em sua primeira coletânea de extratos de seus
próprios trabalhos (1897b, nºs XXIV e XXXI).
(1)ALGUMAS NOTAS
HISTÓRICAS SOBRE OS ESTUDOS
Conhecemos a
história da redação deste livro com algum detalhe.
O tratamento da
Srta. Anna O. por Breuer, no qual se baseou toda a obra, ocorreu entre 1880 e
1882. Naquela ocasião, Josef Breuer (1842-1925) já gozava de alta reputação em
Viena, tanto como médico com grande clínica, como por realizações científicas,
enquanto Sigmund Freud (1856-1939) apenas acabara de formar-se em medicina. Os
dois, contudo, já eram amigos há vários anos. O tratamento terminou no início
de junho de 1882, e em novembro Breuer relatou a notável história a Freud, que
(embora, naquela época, tivesse seus principais interesses concentrados na
anatomia do sistema nervoso) ficou muito impressionado com ela. Tanto assim que
quando, cerca de três anos depois, estava estudando em Paris sob a orientação
de Charcot, deu-lhe conhecimento do caso. “Mas o grande homem não mostrou
nenhum interesse por meu primeiro esboço do assunto, de modo que jamais voltei
ao tema e deixei que saísse de minha mente.” (Um Estudo Autobiográfico -
1925d, Capítulo II.)
Os estudos de
Freud sob a orientação de Charcot tinham-se concentrado, em grande parte, na
histeria, e quando Freud voltou a Viena em 1886 e ali se fixou para estabelecer
uma clínica de doenças nervosas, a histeria forneceu uma grande proporção de
sua clientela. De início, ele se baseou nos métodos de tratamento então
correntemente recomendados, como a hidroterapia, a eletroterapia, massagens e a
cura pelo repouso, de Weir Mitchell. Mas quando esses métodos se revelaram
insatisfatórios, seus pensamentos se voltaram para outra área. “Nessas últimas
semanas”, escreve ele a seu amigo Fliess em 28 de dezembro de 1887, “atirei-me
à hipnose e logrei toda espécie de sucessos pequeninos, mas dignos de nota”
(Freud, 1950a, Carta 2). E nos deu uma descrição pormenorizada de um desses
tratamentos bem-sucedidos (1892-3b). Mas o caso de Anna O. ainda estava em sua
mente, e “desde o início”, conta-nos ele (1925d), “vali-me da hipnose de outra
maneira, independentemente da sugestão hipnótica”. Essa “outra maneira” foi o
método catártico, que constitui o tema do presente volume.
O caso da Sra.
Emmy von N. foi o primeiro, como sabemos por Freud (ver em. [1] e [2]), que ele
tratou pelo método catártico. Numa nota de rodapé acrescentada ao livro em
1925, ele explica melhor essa observação e diz que esse foi o primeiro caso em
que utilizou esse método “extensivamente” (ver em [1]); e é verdade que, nessa
fase inicial, ele vinha constantemente empregando a hipnose na forma
convencional - para dar sugestões terapêuticas diretas. Mais ou menos na mesma
época, de fato, seu interesse pela sugestão hipnótica era acentuado o bastante
para levá-lo a traduzir um dos livros de Bernheim em 1888 e outro em 1892, bem
como a fazer uma visita de algumas semanas às clínicas de Liébeault e Bernheim
em Nancy, no verão de 1889. A intensidade com que ele estava utilizando a
sugestão terapêutica no caso da Sra. Emmy é indicada de maneira bem nítida no
seu relato cotidiano das duas ou três primeiras semanas do tratamento,
reproduzido por ele a partir das “anotações que fiz todas as noites” (ver em
[1]). Não podemos, infelizmente, ter certeza de quando ele iniciou esse caso
(ver Apêndice A, em [1]); foi em maio de 1888 ou 1889 - isto é, cerca de quatro
ou cerca de dezesseis meses depois de ele haver pela primeira vez “adotado a
hipnotismo”. O tratamento terminou um ano depois, no verão de 1889 ou 1890.
Numa ou noutra alternativa, há um considerável hiato antes da data do caso
clínico seguinte (em ordem cronológica, embora não em ordem de apresentação).
Esse foi o caso da Srta. Elisabeth von R., que teve início no outono de 1892
(ver em. [1]) e que Freud descreve como sua “primeira análise integral de uma
histeria” ( ver em [1]). Foi logo seguido pelo de Miss Lucy R., que
começou no fim do mesmo ano (ver em [1]). Não se atribui nenhuma data ao caso
restante, o de Katharina (ver.em [1]). Mas, no intervalo entre 1889 e 1892,
Freud por certo teve experiência com outros casos. Em particular, houve o da
Srta. Cäcilie M., a quem ele “veio a conhecer de forma muito mais completa do
que qualquer das outras pacientes mencionadas nestes estudos” (ver em [1]), mas
cujo caso não pôde ser descrito em detalhes em virtude de “considerações
pessoais”. Contudo, ela é freqüentemente mencionada por Freud, bem como por
Breuer, no decorrer do volume, e sabemos (ver em [1]) por Freud que “foi o
estudo desse caso notável, feito em conjunto com Breuer, que levou diretamente
à publicação de nossa ‘Comunicação Preliminar’”. [1]
O rascunho
daquele memorável artigo (que compõe a primeira seção do presente volume) se
iniciara em junho de 1892. Uma carta a Fliess, de 28 de junho (Freud, 1950a,
Carta 9), anuncia que “Breuer concordou em que a teoria da ab-reação e os
outros resultados sobre a histeria a que chegamos em conjunto também sejam
apresentados conjuntamente numa publicação pormenorizada”. “Uma parte dela”,
prossegue, “que, a princípio, eu queria escrever sozinho, está concluída”.
Evidentemente, a essa parte “concluída” do artigo faz nova referência numa
carta a Breuer escrita no dia seguinte, 29 de junho de 1892 (Freud, 1941a): “A
inocente satisfação que senti quando lhe entreguei aquelas poucas páginas
minhas deu margem a (…) inquietação.” Essa carta prossegue fornecendo um resumo
muito condensado do conteúdo proposto do artigo. A seguir, temos uma nota de
rodapé acrescentada por Freud a sua tradução de um volume das Leçons du
Mardi, de Charcot (Freud, 1892-94, 107), que apresenta, em três curtos
parágrafos, um resumo da tese da “Comunicação Preliminar” e se refere a ele
como estando “começado”. Além disso, dois rascunhos bem mais elaborados
chegaram até nós. O primeiro (Freud, 1940d) deles (escrito com a caligrafia de
Freud, embora se afirme ter sido escrito em conjunto com Breuer) está datado de
“Final de novembro de 1892”. Versa sobre ataques histéricos e a maior parte de
seu conteúdo foi incluída, embora com palavras diferentes, na Seção IV da
“Comunicação Preliminar” (ver em [1]). Entretanto, um importante parágrafo
relacionado com o “princípio da constância” foi inexplicavelmente omitido, e
nesse volume o tema é tratado apenas por Breuer, na parte final da obra (ver em
[1] e [2].). Por fim, há um memorando (Freud, 1941b) com o título “III”, que
não tem data. Examina os “estados hipnóides” e a dissociação histérica, estando
estreitamente relacionado com a Seção III do artigo publicado (ver em [1]).
Em 18 de
dezembro de 1892, Freud escreveu a Fliess (1950a, Carta11): “Apraz-me poder
dizer-lhe que nossa teoria sobre a histeria (reminiscência, ab-reação, etc.)
vai aparecer no Neurologisches Centralblatt no dia 1º de janeiro de
1893, sob a forma de uma comunicação preliminar pormenorizada. Custou-me longa
batalha com meu colaborador.” O artigo, datado de “dezembro de 1892”, foi na
realidade publicado em dois números do periódico: as duas primeiras seções em
1º de janeiro, e as três restantes em 15 de janeiro. O Neurologisches
Centralblatt (que saía quinzenalmente) era publicado em Berlim; e a
“Comunicação Preliminar” foi quase imediatamente reimpressa na íntegra em
Viena, nas Wiener medizinische Blätter (em 19 e 26 de janeiro). Em 11 de
janeiro, quando apenas metade do artigo fora publicada, Freud pronunciou uma
conferência sobre o tema no Wiener medizinischer Club. A transcrição
taquigráfica completa da conferência, “revista pelo conferencista”, apareceu no
Wiener medizinische Presse em 22 e 29 de janeiro (34, 122-6 e 165-7). A
conferência (Freud, 1893h) abrangia aproximadamente o mesmo tema que o artigo,
mas tratava o material de forma bem diferente e de maneira muito menos formal.
A publicação do
artigo parece ter surtido pouco efeito visível em Viena ou na Alemanha. Na
França, por outro lado, como relata Freud a Fliess numa carta de 10 de julho de
1893 (1950a, Carta 13), o trabalho foi favoravelmente notado por Janet, cuja
resistência às idéias de Freud só surgiria mais tarde. Janet incluiu uma nota
longa e altamente elogiosa sobre a “Comunicação Preliminar” num artigo sobre
“Algumas Definições Recentes da Histeria”, publicado nos Archives de
Neurologie em junho e julho de 1893. Utilizou esse artigo como capítulo
final de seu livro L’État Mental des Hystériques, publicado em 1894.
Mais inesperado, talvez, é o fato de que em abril de 1893 - apenas três meses
após a publicação da “Comunicação Preliminar” - um relato razoavelmente
completo da mesma foi apresentado por F. W. H. Myers numa reunião geral da
Society for Psychical Research, em Londres, tendo sido impresso em sua Ata
(Proceedings) no mês de junho seguinte. A “Comunicação Preliminar” também
foi totalmente resumida e examinada por Michell Clarke em Brain (1894,
125). A reação mais surpreendente e inexplicável, porém, foi a publicação, em
fevereiro e março de 1893, de uma tradução completa da “Comunicação Preliminar”
para o espanhol, na Gazeta Médica de Granada (11, 105-11 e 129-35).
A tarefa
seguinte dos autores foi a preparação do material dos casos clínicos e, já em 7
de fevereiro de 1894, Freud referiu-se ao livro como“semi-acabado: o que resta
a fazer é apenas uma pequena parte dos casos clínicos e dois capítulos gerais”.
Num trecho não publicado da carta de 21 de maio, ele menciona que está
justamente escrevendo o último caso clínico, e em 22 de junho (1950a, Carta 19)
apresenta uma lista do que o “livro com Breuer” irá conter: “cinco casos
clínicos, um ensaio da autoria dele, com o qual não tenho absolutamente nada a
ver, sobre as teorias da histeria (resumo e crítica), e um meu sobre terapia,
que ainda não comecei”. Depois disso, é óbvio que houve uma paralisação, pois
só em 4 de março de 1895 (ibid., Carta 22) é que ele escreve dizendo estar
“trabalhando apressadamente no ensaio sobre a terapia da histeria”, concluído
em 13 de março (carta não publicada). Em outra carta não publicada, de 10 de
abril, Freud envia a Fliess a segunda metade das provas tipográficas do livro,
e no dia seguinte lhe diz que este sairá em três semanas.
Os Estudos
sobre a Histeria parecem ter sido publicados, como se esperava, em maio de
1895, embora a data exata não seja indicada. O livro foi recebido
desfavoravelmente nos círculos médicos alemães; recebeu, por exemplo, forte
crítica de Adolf von Strümpell, o conhecido neurologista (Deutsch. Z.
Nervenheilk., 1896, 159). Por outro lado, um escritor não-médico, Alfred
von Berger, mais tarde diretor do Burgtheater de Viena, sobre ele se expressou
com apreço no Neue Freie Presse (2 de fevereiro de 1896). Na Inglaterra,
o livro foi alvo de longa e favorável nota de Mitchell Clarke em Brain
(1896, 401) e mais uma vez Myers mostrou seu interesse pela obra numa palestra
de considerável extensão, originariamente proferida em março de 1897, que
acabou sendo incluída em seu Human Personality (1903).
Decorreram mais
de dez anos antes que houvesse um pedido de segunda edição do livro, e já nessa
época os caminhos de seus dois autores se haviam separado. Em maio de 1906
Breuer escreveu a Freud concordando com uma reimpressão, mas houve certa
discussão para determinar se seria desejável um novo prefácio em conjunto.
Seguiram-se outras delongas e, no final, como se verá mais adiante, foram
escritos dois prefácios separados. Estes trazem a data de julho de 1908, embora
a segunda edição só fosse realmente publicada em 1909. O texto continuou
inalterado nessa e nas edições posteriores do livro. Mas, em 1924, Freud
escreveu algumas notas de rodapé adicionais para o volume de suas obras
completas que continha sua parte dos Estudos (publicado em 1925) e fez
uma ou duas pequenas modificações no texto.
(2) A RELAÇÃO DOS ESTUDOS COM A PSICANÁLISE
Os Estudos
sobre a Histeria costumam ser considerados como o ponto de partida da
psicanálise. Vale a pena considerar brevemente se essa afirmação é verdadeira,
e em que sentido. Para os objetivos dessa discussão, a questão das parcelas do
trabalho atribuíveis aos dois autores será posta de lado, para consideração
posterior, e o livro será tratado como um todo. A investigação sobre a relação
dos Estudos com o desenvolvimento subseqüente da psicanálise pode ser
dividida, por conveniência, em duas partes, embora tal separação seja
necessariamente artificial. Até que ponto e de que maneira os procedimentos
técnicos descritos nos Estudos e as descobertas clínicas a que
conduziram prepararam o terreno para a prática da psicanálise? Em que medida os
pontos de vista teóricos aqui propostos foram aceitos nas doutrinas posteriores
de Freud?
Raras vezes se
aprecia suficientemente o fato de que a mais importante das realizações de
Freud talvez tenha sido sua invenção do primeiro instrumento para o exame
científico da mente humana. Um dos principais atrativos do presente volume é
que ele nos permite rastrear os primeiros passos do desenvolvimento desse instrumento.
O que ele nos relata não é simplesmente a história da superação de uma série de
obstáculos; é a história da descoberta de uma série de obstáculos a
serem superados. A própria paciente de Breuer, Anna O., demonstrou e superou o
primeiro desses obstáculos - a amnésia característica dos pacientes histéricos.
Quando a existência dessa amnésia foi trazida à luz, seguiu-se de imediato a
compreensão de que a mente manifesta do paciente não é a mente em sua
totalidade, havendo por trás uma mente inconsciente (ver em [1]).
Tornou-se assim patente, desde o início, que o problema não era meramente a
investigação dos processos mentais conscientes, para a qual bastariam os
métodos corriqueiros de indagação empregados na vida cotidiana. Se havia também
processos mentais inconscientes, era claramente necessário algum
instrumento especial. O instrumento óbvio para esse fim era a sugestão
hipnótica - a sugestão hipnótica utilizada não para finalidades diretamente
terapêuticas, mas para persuadir o paciente a produzir material proveniente da
região inconsciente da mente. Com Anna O. apenas um ligeiro uso desse
instrumento se afigurou necessário. Ela produzia torrentes de material vindo de
seu “inconsciente”, e tudo o que Breuer tinha de fazer era ficar sentado e
ouvi-las sem interrompê-la. Mas isso não era tão fácil como parece, e o caso
clínico da Sra. Emmy revela em muitos pontos como foi difícil para Freud
adaptar-se a esse novo uso da sugestão hipnótica e ouvir tudo o que a paciente
tinha a dizer, sem qualquer tentativa de interferir ou de levá-la a encurtar o
relato (por exemplo em [1] e [2]). Nem todos os pacientes histéricos além disso
eram tão dóceis quanto Anna O.; a hipnose profunda em que ela caía,
aparentemente por sua própria vontade, não era tão prontamente alcançada com
qualquer um. E aqui surgia outro obstáculo: conta-nos Freud que ele estava
longe de ser adepto do hipnotismo. Neste livro (por exemplo em [1]), ele nos
fornece vários relatos de como contornava essa dificuldade, de como pouco a
pouco foi abandonando suas tentativas de provocar a hipnose e se contentava em
levar os pacientes a um estado de “concentração”, com o uso ocasional da
pressão na testa. Mas foi o abandono do hipnotismo que ampliou ainda mais sua
compreensão dos processos mentais. Esse abandono revelou a presença de mais um
obstáculo - a “resistência” dos pacientes ao tratamento (ver em [1] e [2]), sua
relutância em cooperarem na própria cura. Como se deveria lidar com essa
relutância? Deveria ser suprimida com gritos ou afastada pela sugestão? Ou
deveria, como outros fenômenos mentais, ser simplesmente investigada? A opção
de Freud por esse segundo caminho levou-o diretamente ao mundo desconhecido que
iria passar a vida inteira explorando.
Nos anos que se
seguiram aos Estudos, Freud abandonou cada vez mais a técnica da
sugestão deliberada | ver em [1]| e passou cada vez mais a confiar no fluxo de
“associações livres” do paciente. Estava aberto o caminho para a análise dos
sonhos. Essa análise permitiu-lhe, em primeiro lugar, obter uma compreensão do
funcionamento do “processo primário” na mente e das formas pelas quais ele
influenciava os produtos de nossos pensamentos mais acessíveis, e assim Freud
adquiriu um novo recurso técnico - o da “interpretação”. Mas a análise dos
sonhos possibilitou, em segundo lugar, sua própria auto-análise e suas
conseqüentes descobertas da sexualidade infantil e do complexo de Édipo. Todas
essas questões, porém, salvo por alguns leves indícios, ainda estavam por
surgir. No entanto, nas últimas páginas deste volume, Freud já se havia
defrontado com outro obstáculo no caminho do pesquisador - a “transferência”
(ver em [1]). Já tivera um vislumbre de sua impressionante natureza, e talvez
já tivesse começando a reconhecer que ela iria revelar-se não só um obstáculo
como também mais um instrumento fundamental da técnica psicanalítica.
À primeira
vista, a principal posição teórica adotada pelos autores da “Comunicação
Preliminar” parece simples. Eles sustentam que, no curso normal das coisas, se
uma experiência for acompanhada de uma grande dose de “afeto”, esse afeto é
“descarregado” numa variedade de atos reflexos conscientes, ou então vai-se
desgastando gradativamente pela associação com outros materiais mentais
conscientes. No caso dos pacientes histéricos, por outro lado (por motivos que
logo mencionaremos), nenhuma dessas coisas acontece. O afeto permanece num
estado “estrangulado”, e a lembrança da experiência a que está ligado é isolada
da consciência. A partir daí, a lembrança afetiva se manifesta em sintomas histéricos,
que podem ser considerados como “símbolos mnêmicos” - vale dizer, como símbolos
da lembrança suprimida (ver em [1]-[2]). Sugerem-se duas razões principais para
explicar a ocorrência desse resultado patológico. Uma delas é que a experiência
original ocorreu enquanto o indivíduo se encontrava num particular estado de
dissociação mental, descrito como “hipnóide”; a outra é que o “ego” do
indivíduo considerou essa experiência como sendo “incompatível” com ele próprio
e, portanto, ela teve de ser “rechaçada”. Em ambos os casos, a eficácia
terapêutica do método “catártico” é explicada com base nos mesmos fundamentos:
se a experiência original, juntamente com seu afeto, puder ser introduzida na
consciência, o afeto é por si mesmo descarregado ou “ab-reagido”, a força que
até então manteve o sintoma deixa de atuar, e o próprio sintoma desaparece.
Tudo isso parece
muito claro, mas uma pequena reflexão mostra que restam ainda muitas coisas por
explicar. Por que um afeto precisa ser “descarregado”? E por que são tão
terríveis as conseqüências de ele não ser descarregado? Esses problemas
subjacentes não são considerados de modo algum na “Comunicação Preliminar”,
embora a eles se fizesse uma breve alusão em dois dos rascunhos postumamente
publicados (1941a e 1940d) e já existisse uma hipótese para explicá-los.
Curiosamente, na verdade essa hipótese foi formulada por Freud em sua
conferência de 11 de janeiro de 1893 (veja em [1]), apesar de ter sido omitida
na própria “Comunicação Preliminar”. Ele aludiu de novo a essa hipótese nos
dois últimos parágrafos do seu primeiro artigo sobre “As Neuropsicoses de
Defesa” (1894a), onde declara especificamente que ela fundamentava a teoria da
ab-reação na “Comunicação Preliminar” de um ano antes. Mas essa hipótese básica
foi formalmente enunciada e designada pela primeira vez em 1895, na segunda
parte da contribuição de Breuer ao presente volume (ver em [1]). É curioso que
esta, a mais fundamental das teorias de Freud, tenha sido integralmente
examinada, pela primeira vez, por Breuer (se bem que, de fato, atribuída por
ele a Freud), e que o próprio Freud, embora retornasse vez por outra a seu tema
(como nas primeiras páginas de seu artigo sobre “As Pulsões e suas
Vicissitudes”, 1915c), não a mencionasse explicitamente até escrever Além do
Princípio do Prazer (1920g). Freud, como sabemos agora, referiu-se a essa
hipótese pelo nome numa comunicação de data incerta a Fliess, possivelmente
1894 (Rascunho D, 1950a), e examinou-a na íntegra, embora sob outro nome (veja
adiante, ver em [1]), no “Projeto para uma Psicologia Científica”, que escreveu
alguns meses após a publicação dos Estudos. Mas só cinqüenta e cinco
anos depois (1950a) é que o Rascunho D e o “Projeto” foram publicados.
O “princípio da
constância” (pois esta foi a denominação dada à hipótese) pode ser definido nos
termos empregados pelo próprio Freud em Além do Princípio do Prazer: “O
aparelho mental esforça-se por manter a quantidade de excitação nele presente
em um nível tão baixo quanto possível, ou pelo menos por mantê-la constante”
(Edição Standard Brasileira, Vol. XVIII, em [1], 1ª edição, Imago).
Breuer o enuncia mais adiante, neste livro (ver em [1]), em termos muito
semelhantes, mas com uma inclinação neurológica, como “uma tendência a manter
constante a excitação intracerebral”. Em sua discussão em [1] e segs.,
argumenta ele que os afetos devem sua importância na etiologia da histeria ao
fato de serem acompanhados pela produção de grandes quantidades de excitação, e
de estas, por sua vez, exigirem uma descarga, de acordo com o princípio da
constância. De modo semelhante, também as experiências traumáticas devem sua
força patogênica ao fato de produzirem quantidades de excitação grandes demais
para serem tratadas da maneira normal. Assim, a posição teórica essencial
subjacente aos Estudos é que a necessidade clínica da ab-reação do afeto
e os resultados patogênicos que surgem quando ele fica estrangulado são
explicados pela tendência muito mais geral (expressa no princípio da
constância) a manter constante a quantidade de excitação.
Tem-se pensado
com freqüência que os autores dos Estudos atribuíam os fenômenos da
histeria apenas aos traumas e às lembranças inextirpáveis deles, e que só mais
tarde é que Freud, depois de deslocar a ênfase dos traumas infantis para as
fantasias infantis, chegou a sua momentosa concepção “dinâmica” dos processos
da mente. Ver-se-á, contudo, pelo que acaba de ser dito, que uma hipótese
dinâmica sob a forma do princípio da constância já estava subjacente à teoria do
trauma e da ab-reação. E quando chegou o momento de ampliar os horizontes e
atribuir uma importância muito maior às pulsões, em contraste com a
experiência, não houve necessidade de modificar a hipótese básica. Na
realidade, Breuer já ressalta o papel desempenhado pelas “principais
necessidades e pulsões fisiológicas do organismo” na gênese dos aumentos de
excitação que exigem descarga (ver em [1]), e frisa a importância da “pulsão
sexual” como “a fonte mais poderosa dos acúmulos sistemáticos de excitação (e,
conseqüentemente, de neuroses)” (ver em [1]). Além disso, toda a noção de
conflito e do recalcamento das idéias incompatíveis é explicitamente baseada no
ocorrência dos aumentos desagradáveis de excitação. Isso conduz à consideração
adicional de que, como salienta Freud em Além do Princípio do Prazer
(Edição Standard Brasileira, 1ª edição, Vol. XVIII, ver em [1]), o
próprio “princípio do prazer” está estreitamente vinculado ao princípio da
constância. Ele chega mesmo a ir mais adiante e declarar (ibid., 83) que o
princípio do prazer “é uma tendência que atua a serviço de uma função cuja
tarefa é libertar inteiramente da excitação o aparelho mental, ou manter
constância o nível de excitação dentro dele, ou mantê-lo tão baixo quanto
possível”. O caráter “conservador” que Freud atribui às pulsões em seus
trabalhos posteriores, assim como a “compulsão à repetição”, também são vistos
no mesmo trecho como manifestações do princípio da constância; e fica claro que
a hipótese em que se basearam esses primeiros Estudos sobre a Histeria
ainda continuava a ser considerada fundamental por Freud em suas últimas
especulações.
(3)AS DIVERGÊNCIAS
ENTRE OS DOIS AUTORES
Não estamos
interessados aqui nas relações pessoais entre Breuer e Freud, descritas com
detalhes no primeiro volume da biografia escrita por Ernest Jones, mas é
interessante examinarmos brevemente suas divergências científicas. A
existência de tais divergências foi abertamente mencionada no prefácio à
primeira edição e muitas vezes falou-se nelas com exagero nas publicações
posteriores de Freud. Mas no próprio livro, por estranho que pareça, elas estão
longe de ganhar preeminência e, muito embora a “Comunicação Preliminar” seja a
única parte do livro de autoria explicitamente conjunta, não é fácil determinar
com certeza de quem é a responsabilidade pela origem dos vários elementos
componentes do trabalho como um todo.
Sem dúvida,
podemos com segurança atribuir a Freud os desenvolvimentos técnicos
posteriores, bem como os conceitos teóricos vitais de resistência, defesa e
recalcamento que decorreram deles. É fácil ver pelo relato apresentado em [1]
como esses conceitos decorreram da substituição da hipnose pela técnica da
“pressão”. O próprio Freud, em sua “História do Movimento Psicanalítico”
(1914d), declara que “a teoria do recalcamento é a pedra angular em que repousa
toda a estrutura da psicanálise”, e dá a mesma explicação aqui apresentada
sobre a maneira como se chegou a ela. Afirma também sua crença de ter chegado
de forma independente a essa teoria, e a história da descoberta confirma
amplamente essa crença. No mesmo trecho, Freud observa que uma sugestão da
idéia do recalcamento encontra-se em Schopenhauer (1844), cujas obras, contudo,
ele só veio a ler em idade avançada; e há pouco tempo se ressaltou que a
palavra “Verdrängung” (“recalcamento”) ocorre nos escritos do psicólogo
Herbart (1824), do início do século XIX, cujas idéias tiveram grande influência
sobre numerosas pessoas que faziam parte do círculo de Freud, em particular seu
professor imediato de psiquiatria, Meynert. Mas nenhuma dessas sugestões
diminui de modo significativo a originalidade da teoria de Freud, com sua base
empírica, que encontrou sua primeira expressão na “Comunicação Preliminar” (ver
em [1]-[2]).
Em contraposição
a isso, não há nenhuma dúvida de que Breuer deu origem à noção dos “estados
hipnóides”, ponto a que voltaremos dentro em breve, e parece possível que tenha
sido responsável pelos termos “catarse” e “ab-reação”.
Todavia, muitas
das conclusões teóricas dos Estudos devem ter sido produto de discussões
entre os dois autores durante seus anos de colaboração, e o próprio Breuer
comenta (ver em [1]-[2]) sobre a dificuldade de determinar a prioridade em tais
casos. Afora a influência de Charcot, sobre a qual Freud jamais deixou de
insistir, deve-se também recordar que tanto Breuer como Freud eram basicamente
fiéis à escola de Helmholz, da qual um professor deles, Ernst Brücke, foi
membro preeminente. Grande parte da teoria subjacente aos Estudos sobre a
Histeria deriva da doutrina daquela escola, teoria que diz serem todos os
fenômenos naturais, em última análise, explicáveis em função de forças físicas
e químicas.
Já vimos (em
[1]) que, embora Breuer fosse o primeiro a mencionar o “princípio da
constância” pelo nome, ele atribuiu essa hipótese a Freud. De modo semelhante,
ele ligou o nome de Freud ao termo “conversão”, mas (como será explicado mais
adiante, em [1]), o próprio Freud declarou que isso se aplicava apenas à palavra
e que se chegou em conjunto ao conceito.
Por outro lado,
há um grande número de conceitos muito importantes que parecem ser corretamente
atribuíveis a Breuer: a idéia de a alucinação ser uma “retrogressão” das
imagens mentais para a percepção (ver em [1]), a tese de que as funções da
percepção e da memória não podem ser realizadas pelo mesmo aparelho (ver em
[1]), e, finalmente, causando grande surpresa, a distinção entre a energia
psíquica ligada (tônica) e a não-ligada (móvel) e a distinção correlata entre
os processos psíquicos primário e secundário (ver em [1]).
O emprego do
termo “Besetzung” (“catexia”), que aparece pela primeira vez em [1]-[2]
com o sentido que iria tornar-se tão familiar na teoria psicanalítica,
provavelmente deve ser atribuído a Freud. Como é natural, a idéia de todo o
aparelho mental, ou parte dele, transportar uma carga de energia é pressuposta
pelo princípio da constância. E embora o termo real que iria transformar-se no
padrão fosse empregado pela primeira vez neste volume, a idéia fora antes
expressa por Freud sob outras formas. Assim, encontramo-lo utilizando
expressões tais como “mit Energie ausgestattet” (“suprido de energia”)
(1895b), “mit einer Erregungssumme behaftet (“carregado de uma soma de
excitação”) (1894a), “munie d’une valeur affective” (“provido de uma
cota de afeto”) (1893c), “Verschiebungen von Erregungs summen”
(“deslocamentos de somas de excitação”) (1941a |1892|) e, já no prefácio a sua
primeira tradução de Bernheim (1888-9) “Verschiebungen von Erregbarkeit im
Nervensystem” (deslocamentos de excitabilidade no sistema nervoso”).
Esta última
citação, porém, constitui um lembrete de algo de grande importância que pode
muito facilmente ser desprezado. Não há dúvida alguma de que, na época da
publicação dos Estudos, Freud considerava o termo “catexia” como
puramente fisiológico. Isso é comprovado pela definição do termo dada por ele
na Parte I, Seção 2, de seu “Projeto para uma Psicologia Científica”, com o
qual sua mente já estava ocupada (como se verifica nas cartas a Fliess) e que
foi escrito apenas alguns meses depois. Ali, após fornecer uma explicação sobre
uma entidade neurológica recém-descoberta, o “neurônio”, prossegue ele: “Se
combinarmos esta descrição dos neurônios com uma abordagem nos moldes da teoria
da quantidade, chegaremos à idéia de uma neurônio ‘catexizado’, cheio de certa
quantidade, embora em outras ocasiões possa estar vazio.” A propensão
neurológica das teorias de Freud nesse período é indicada ainda pela forma como
o princípio da constância é enunciado no mesmo trecho do “Projeto”. Recebe a
designação de “o princípio da inércia neuronal” e é definido como indicativo de
“que os neurônios tendem a desembaraçar-se da quantidade”. Revela-se assim um
notável paradoxo. Breuer, como veremos adiante (ver em [1]), declara sua intenção
de tratar o assunto da histeria em moldes puramente psicológicos: “No que se
segue, pouca menção será feita ao cérebro e absolutamente nenhuma às moléculas.
Os processos psíquicos serão tratados na linguagem da psicologia.” Na verdade,
porém, seu capítulo teórico versa basicamente sobre as “excitações
intracerebrais” e sobre paralelos entre o sistema nervoso e as instalações
elétricas. Por outro lado, Freud dedicava todas as suas energias a explicar os
fenômenos mentais em termos fisiológicos e químicos. Não obstante, como ele
próprio confessa com pesar (ver em [1]), seus casos clínicos têm a forma de
contos e suas análises são psicológicas.
A verdade é que,
em 1895, Freud encontrava-se a meio caminho no processo de passar das
explicações fisiológicas dos estados psicopatológicos para as explicações
psicológicas. Por um lado, propunha o que era, em linhas gerais, uma explicação
química das neuroses “atuais” - neurastenia e neurose de angústia - (em seus
dois artigos sobre neurose de angústia, 1895b e 1895f), e, por outro, propunha
uma explicação essencialmente psicológica - em termos de “defesa” e
“recalcamento” - para a histeria e as obsessões (em seus dois artigos sobre “As
Neuropsicoses de Defesa”, 1894a e 1896b). Sua formação anterior e sua carreira
como neurologista levavam-no a resistir à aceitação das explicações
psicológicas como definitivas; e ele estava empenhado em elaborar uma estrutura
complexa de hipóteses destinadas a possibilitar a descrição dos eventos mentais
em termos puramente neurológicos. Essa tentativa culminou no “Projeto” e foi
abandonada não muito depois. Até o fim da vida, porém, Freud continuou adepto
da etiologia química das neuroses “atuais” e a acreditar que se acabaria
encontrando uma base física para todos os fenômenos mentais. Entrementes, ele
chegou pouco a pouco ao ponto de vista expresso por Breuer de que os processos
psíquicos só podem ser tratados na linguagem da psicologia. Foi só em 1905 (em seu livro sobre o chiste,
Capítulo V) que ele pela primeira vez repudiou de forma explícita qualquer
intenção de empregar o termo “catexia” em algum sentido que não fosse o
psicológico e abandonou todas as tentativas de relacionar os tratos nervosos ou
os neurônios com as vias de associação mental.
Quais eram,
porém, as divergências científicas essenciais entre Breuer e Freud? Em seu Estudo
Autobiográfico (1925d) Freud afirma que a primeira delas relacionava-se com
a etiologia da histeria e poderia ser descrita como “os estados hipnóides
versus as neuroses de defesa”. Mais uma vez, no entanto, aqui mesmo neste
volume, o problema é menos nítido. Na “Comunicação Preliminar” elaborada em
conjunto, ambas as etiologias são aceitas (ver em [1]). Breuer, em seu capítulo
teórico, evidentemente dá maior ênfase aos estados hipnóides (ver em [1]), mas
também acentua a importância da “defesa” (ver em [1] e [2]), embora de modo
pouco entusiástico. Freud parece aceitar a noção dos “estados hipnóides” no
caso clínico de “Katharina” (ver em [1]) e, de modo menos definitivo, no da
Sra. Elisabeth (ver em [1]). É só no capítulo final que seu ceticismo começa a
tornar-se evidente (ver em [1]). Num artigo sobre “A Etiologia da Histeria”,
publicado no ano seguinte (1896c), esse ceticismo é expresso de forma ainda
mais franca e, numa nota de rodapé ao caso de “Dora” (1905e), Freud declara que
a expressão “estados hipnóides” é “desnecessária e confusa” e que a hipótese
“decorreu inteiramente da iniciativa de Breuer” (Edição Standard
Brasileira, 1ª edição, Vol. VII, pág. 25n).
Mas a principal
diferença de opinião entre os dois autores, na qual Freud posteriormente
insistiu, dizia respeito ao papel desempenhado pelos impulsos sexuais na
causação da histeria. Também aqui, contudo, verificaremos que a divergência expressa
aparece de uma forma menos clara do que seria de se esperar. A crença de Freud
na origem sexual da histeria pode ser inferida com bastante clareza a partir da
discussão em seu capítulo sobre a psicoterapia (ver em. [1]), mas em nenhum
ponto ele chega a afirmar, como faria mais tarde, que uma etiologia sexual se
mostra invariavelmente presente nos casos de histeria. Por outro lado, Breuer
fala em vários pontos, e usando os termos mais incisivos, sobre a importância
do papel desempenhado pela sexualidade nas neuroses, e o faz em especial no
longo trecho em [1] e segs. Diz ele, por exemplo (como já se observou, em [1]),
que “a pulsão sexual é sem dúvida a fonte mais poderosa dos aumentos
persistentes de excitação (e, conseqüentemente, das neuroses)” (ver em [1]), e
declara (ver em [1]) que “a grande maioria das neuroses graves nas mulheres tem
sua origem no leito conjugal”.
Parece que, para
encontrarmos uma explicação satisfatória para a dissolução dessa parceria
científica, deveríamos olhar o que está atrás da palavra impressa. As cartas de
Freud a Fliess mostram Breuer como um homem cheio de dúvidas e reservas, sempre
inseguro em suas conclusões. Há um exemplo extremo disso numa carta de 8 de
novembro de 1895 (1950a, Carta 35), cerca de seis meses após a publicação dos Estudos:
“Não faz muito tempo, no Colégio de Medicina, Breuer fez um longo discurso
falando de mim, no qual anunciou sua conversão à crença na etiologia sexual
|das neuroses|. Quando o chamei de lado para agradecer-lhe, ele estragou meu
prazer, dizendo: ‘Ainda assim não creio nisso.’ Você consegue entender isso?
Eu, não.” Algo dessa natureza pode ser lido nas entrelinhas das contribuições
de Breuer aos Estudos, onde temos o quadro de um homem meio temeroso de
suas próprias descobertas notáveis. Era inevitável que ele ficasse ainda mais
desconcertado pelo pressentimento das descobertas ainda mais inquietantes que
estavam por vir; e era inevitável que Freud, por sua vez, se sentisse
prejudicado e irritado com as incômodas hesitações de seu companheiro de
trabalho.
Seria enfadonho
enumerar os muitos trechos, nas obras posteriores de Freud, nos quais ele se
refere aos Estudos sobre a Histeria e a Breuer; porém, algumas citações
ilustrarão a variação da ênfase em sua atitude para com eles.
Nos numerosos
relatos abreviados de seus métodos terapêuticos e das teorias psicológicas que
publicou durante os anos logo após o lançamento dos Estudos, Freud se
esforçou por ressaltar as diferenças entre a “psicanálise” e o método catártico
- as inovações técnicas, a extensão de seu processo quanto às outras neuroses
que não a histeria, o estabelecimento da motivação da “defesa”, a insistência
numa etiologia sexual e, como já vimos, a rejeição final dos “estados
hipnóides”. Ao chegarmos à primeira série das obras principais de Freud - os
volumes sobre sonhos (1900a), parapraxias (1901b), chistes (1905c) e
sexualidade (1905d) - naturalmente há pouco ou nenhum material retrospectivo; e
é somente nas cinco conferências proferidas na Universidade de Clark (1910a)
que vamos encontrar um levantamento histórico extenso. Nessas conferências,
Freud parecia ansioso por estabelecer a continuidade entre sua obra e a de
Breuer. Toda a primeira conferência e grande parte da segunda são dedicadas a
um resumo dos Estudos, e a impressão da era a de que não Freud, e sim
Breuer era o verdadeiro fundador da psicanálise.
O longo
levantamento retrospectivo seguinte, na “História do Movimento Psicanalítico”
(1914d), teve um tom muito diferente. Todo o artigo, naturalmente, teve uma
intenção polêmica, e não é de surpreender que, ao esboçar a história inicial da
psicanálise, Freud frisasse mais suas divergências com Breuer do que sua dívida
para com ele, e que revogasse explicitamente sua visão de Breuer como o
fundador da psicanálise. Também nesse artigo Freud discorreu largamente sobre a
incapacidade de Breuer para enfrentar a transferência sexual e revelou o
“lastimável evento” que encerrou a análise de Anna O (ver em [1]).
A seguir veio o
que parece ser quase uma amende- já mencionada na ver em [1]: a
inesperada atribuição a Breuer da distinção entre a energia psíquica ligada e a
não-ligada e entre os processos primário e secundário. Não tinha havido nenhuma
sugestão dessa atribuição quando essas hipóteses foram originalmente
introduzidas por Freud (em A Interpretação dos Sonhos); ela foi feita
pela primeira vez numa nota de rodapé à Seção V do artigo metapsicológico sobre
“O Inconsciente” (1915e) e repetida em Além do Princípio do Prazer
(1920g); (Edição Standard Brasileira, Vol. XVIII, em [1] e [2]). Não
muito tempo depois houve algumas frases de louvor num artigo preparado por
Freud para o Handwörterbuch de Marcuse (1923a; Edição Standard
Brasileira, Vol. XVIII, em [1]): “Numa seção teórica dos Estudos, Breuer
propôs algumas idéias especulativas sobre os processos de excitação da mente.
Essas idéias determinaram a direção das futuras linhas de pensamento…” Mais ou
menos na mesma orientação, Freud escreveu, um pouco depois, numa contribuição
para uma publicação norte-americana (1924f): “O método catártico foi o
precursor imediato da psicanálise e, apesar de toda amplitude da experiência e
de todas as modificações de teoria, ainda se acha contido nela como seu
núcleo.”
O longo
levantamento histórico de Freud que se seguiu, Um Estudo Autobiográfico
(1925d), pareceu mais uma vez afastar-se da obra conjunta: “Se o relato que fiz
até agora”, escreveu, “levou o leitor a esperar que os Estudos sobre a
Histeria, em todos os pontos essenciais de seu conteúdo, tenham sido um
produto da mente de Breuer, isso é precisamente o que eu mesmo sempre sustentei…
No tocante à teoria formulada no livro, fui parcialmente responsável,
mas numa medida que hoje não é mais possível determinar. Aquela teoria, de
qualquer modo, era despretensiosa e mal foi além da descrição direta das
observações.” E acrescentou que “teria sido difícil adivinhar, pelos Estudos
sobre a Histeria, a importância que tem a sexualidade na etiologia das
neuroses”, passando mais uma vez a descrever a relutância de Breuer em
reconhecer esse fator.
Logo depois
disso Breuer faleceu, e talvez seja apropriado encerrar esta introdução à obra
conjunta com uma citação do necrológio feito por Freud sobre seu colaborador
(1925g). Depois de comentar a relutância de Breuer em publicar os Estudos
e de declarar que o principal mérito dele próprio em relação a essa obra fora o
de haver persuadido Breuer a concordar com seu lançamento, prosseguiu: “Na
época em que ele aceitou minha influência e estava elaborando os Estudos
para publicação, seu julgamento do significado da obra pareceu confirmar-se.
‘Creio’, disse-me ele, ‘que esta é a coisa mais importante que nós dois temos a
dar ao mundo’. Além do caso clínico de sua primeira paciente, Breuer redigiu um
artigo teórico para os Estudos. Esse texto está muito longe de ser
desatualizado; pelo contrário, oculta pensamentos e sugestões que não foram
suficientemente levados em conta. Qualquer um que se aprofunde nesse ensaio
especulativo formará uma verdadeira impressão da estatura mental desse homem
cujos interesses científicos, infelizmente, só foram orientados na direção de
nossa psicopatologia por um curto episódio de sua longa vida.”
PREFÁCIO
À PRIMEIRA EDIÇÃO
Em 1893
publicamos a “Comunicação Preliminar” sobre um novo método de examinar e tratar
os fenômenos histéricos. A ela acrescentamos, de forma tão concisa quanto
possível, as conclusões teóricas a que havíamos chegado. Estamos aqui
reimprimindo essa “Comunicação Preliminar” para servir como a tese que temos
por finalidade ilustrar e provar.
Anexamos a ela
uma série de casos clínicos cuja seleção, infelizmente, não pôde ser
determinada em bases puramente científicas. Nossa experiência provém da clínica
particular numa classe social culta e letrada, e o assunto com que lidamos
muitas vezes aborda a vida e a história mais íntimas de nossos pacientes.
Constituiria grave quebra de confiança publicar material dessa espécie, com o
risco de os pacientes serem identificados e seus conhecidos ficarem a par de
fatos confiados apenas ao médico. Foi-nos portanto impossível fazer uso de
algumas das nossas observações mais instrutivas e convincentes. Isso
naturalmente se aplica de forma especial a todos os casos em que as relações
sexuais e maritais desempenham um importante papel etiológico. Assim, ocorre
que só conseguimos apresentar provas muito incompletas em favor de nosso ponto
de vista de que a sexualidade parece desempenhar um papel fundamental na
patogênese da histeria, como fonte de traumas psíquicos e como motivação para a
“defesa” - isto é, para que as idéias sejam recalcadas da consciência. Foram
precisamente as observações de natureza marcadamente sexual que nos vimos
obrigados a não publicar.
Os casos
clínicos são seguidos de diversas considerações teóricas e, num capítulo final
sobre terapia, propõe-se a técnica do “método catártico” tal como se
desenvolveu nas mãos do neurologista.
Se em algumas
ocasiões se expressam opiniões divergentes e até mesmo contraditórias, isso não
deve ser considerado como prova de qualquer vacilação em nossos pontos de
vista. Decorre das divergências naturais e justificáveis entre as opiniões dos
dois observadores que estão de acordo quanto aos fatos e à leitura básica dos
mesmos, mas que nem sempre concordam invariavelmente em suas interpretações e
conjeturas.
J. BREUER, S.
FREUD
Abril de 1895
PREFÁCIO
À SEGUNDA EDIÇÃO
O interesse que,
em grau sempre crescente, vem se voltando para a psicanálise parece agora
estar-se estendendo a estes Estudos sobre a Histeria. O editor deseja
publicar nova edição do livro, que no momento se acha esgotado. Aparece ele
agora numa reimpressão sem quaisquer alterações, embora as opiniões e os
métodos apresentados na primeira edição tenham desde então passado por
desenvolvimentos de longo alcance e profundidade. No que me diz respeito,
pessoalmente, desde aquela época não lidei ativamente com o assunto; não tive
nenhuma participação em seu importante desenvolvimento e nada poderia
acrescentar de novo ao que foi escrito em 1895. Assim, nada pude fazer além de
expressar o desejo de que minhas duas contribuições ao volume fossem
reimpressas sem alteração.
BREUER
Também quanto a
minha participação no livro, a única decisão possível é que o texto da primeira
edição seja reimpresso sem alteração. Os desenvolvimentos e mudanças ocorridos
em meus pontos de vista no decorrer de treze anos de trabalho foram extensos
demais para que seja possível vinculá-los a minha anterior exposição sem
destruir inteiramente seu caráter essencial. Tampouco tenho qualquer motivo
para desejar eliminar esta prova de meus conceitos iniciais. Ainda hoje não os
considero como erros, mas como valiosas primeiras aproximações de um
conhecimento que só poderia ser plenamente adquirido após longos e continuados
esforços. O leitor atento será capaz de descobrir neste livro os germes de tudo
aquilo que desde então foi acrescentado à teoria da catarse; por exemplo, o
papel desempenhado pelos fatores psicossexuais e pelo infantilismo, e a
importância dos sonhos e do simbolismo inconsciente. E não posso dar melhor
conselho a qualquer interessado no desenvolvimento da catarse até chegar à
psicanálise do que começar pelos Estudos sobre a Histeria e, desse modo,
seguir o caminho que eu próprio trilhei.
FREUD
VIENA, julho
de 1908
I - SOBRE O MECANISMO PSÍQUICO DOS
FENÔMENOS HISTÉRICOS:
COMUNICAÇÃO PRELIMINAR (1893)
(BREUER E FREUD)
I
Uma observação
casual levou-nos, durante vários anos, a pesquisar uma grande variedade de
diferentes formas e sintomas de histeria, com vistas a descobrir sua causa
precipitante - o fato que teria provocado a primeira ocorrência, muitos anos
antes com freqüência, do fenômeno em questão. Na grande maioria dos casos não é
possível estabelecer o ponto de origem através da simples interrogação do
paciente, por mais minuciosamente que seja levada a efeito. Isso se verifica,
em parte, porque o que está em questão é, muitas vezes, alguma experiência que
o paciente não gosta de discutir; mas ocorre principalmente porque ele é de
fato incapaz de recordá-la e, muitas vezes, não tem nenhuma suspeita da conexão
causal entre o evento desencadeador e o fenômeno patológico. Via de regra, é
necessário hipnotizar o paciente e provocar, sob hipnose, suas lembranças da
época em que o sintoma surgiu pela primeira vez; feito isso, torna-se possível
demonstrar a conexão causal da forma mais clara e convincente.
Esse método de
exame tem produzido, num grande número de casos, resultados que se afiguram
valiosos tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista prático.
Eles são
teoricamente valiosos porque nos ensinaram que os fatos externos determinam a
patologia da histeria numa medida muito maior do que se sabe e reconhece.
Naturalmente, é óbvio que, nos casos de histeria “traumática”, o que provoca os
sintomas é o acidente. A ligação causal evidencia-se igualmente nos ataques
histéricos quando é possível deduzir dos enunciados do paciente que, em cada
ataque, ele está alucinando o mesmo evento que provocou o primeiro deles. A
situação é mais obscura no caso de outros fenômenos.
Nossas
experiências, porém, têm demonstrado que os mais variados sintomas, que são
ostensivamente espontâneos e, como se poderia dizer, produtos idiopáticos da
histeria, estão tão estritamente relacionados com o trauma desencadeador quanto
os fenômenos a que acabamos de aludir e que exibem a conexão causal de maneira
bem clara. Os sintomas cujo rastro pudemos seguir até os
referidos fatores desencadeadores deste tipo abrangem nevralgias e anestesias
de naturezas muito diversas, muitas das quais haviam persistido durante anos,
contraturas e paralisias, ataques histéricos e convulsões epileptóides, que os
observadores consideravam como epilepsia verdadeira, petit mal e
perturbações da ordem dos tiques, vômitos crônicos e anorexia, levados
até o extremo de rejeição de todos os alimentos, várias formas de perturbação
da visão, alucinações visuais constantemente recorrentes, etc. A desproporção
entre os muitos anos de duração do sintoma histérico e a ocorrência isolada que
o provocou é o que estamos invariavelmente habituados a encontrar nas neuroses
traumáticas. Com grande freqüência, é algum fato da infância que estabelece um
sintoma mais ou menos grave, que persiste durante os anos subseqüentes.
Muitas vezes, a
ligação é tão nítida que se torna bem evidente como foi que o fato
desencadeante produziu um dado fenômeno específico, de preferência a qualquer
outro. Nesse caso, o sintoma foi de forma bem óbvia determinado pela causa
desencadeadora. Podemos tomar como exemplo muito comum uma emoção penosa
surgida durante uma refeição, mas suprimida na época, e que produz então náuseas
e vômitos que persistem por meses sob a forma de vômitos histéricos. Uma jovem
que velava o leito de um enfermo, atormentada por uma grande angústia, caiu num
estado crepuscular e teve uma alucinação aterrorizante, enquanto seu braço
direito, que pendia sobre o dorso da cadeira, ficou dormente; disso proveio uma
paresia do mesmo braço, acompanhada de contratura e anestesia. Ela tentou
rezar, mas não conseguiu encontrar as palavras; por fim, conseguiu repetir uma
oração para crianças em inglês. Posteriormente, ao surgir uma histeria grave e
altamente complicada, ela só conseguia falar, escrever e compreender o inglês,
enquanto sua língua materna permaneceu ininteligível para ela por dezoito
meses. - A mãe de uma criança muito doente, que finalmente adormecera,
concentrou toda a sua força de vontade em manter-se imóvel a fim de não
despertá-la. Precisamente por causa da sua intenção, produziu um ruído de
“estalo” com a língua. (Um exemplo de “contravontade histérica”.) Esse ruído se
repetiu numa ocasião subseqüente em que ela desejava manter-se perfeitamente
imóvel, tendo dele surgido um tique que, sob a forma de um estalido com a
língua, ocorreu durante um período de muitos anos sempre que ela se sentia
excitada. - Um homem muito inteligente estava presente quando uma articulação
da coxa anquilosada de seu irmão foi submetida a uma manobra de extensão sob a
ação de um anestésico. No momento em que a articulação cedeu com um estalido,
ele sentiu uma dor violenta em sua própria articulação, que persistiu por quase
um ano. - Outros exemplos poderiam ser citados.
Em outros casos
a conexão causal não é tão simples. Consiste apenas no que se poderia denominar
uma relação “simbólica” entre a causa precipitante e o fenômeno patológico -
uma relação do tipo da que as pessoas saudáveis formam nos sonhos. Por exemplo,
uma nevralgia pode sobrevir após um sofrimento mental, ou vômitos após um
sentimento de repulsa moral. Temos estudado pacientes que costumavam fazer o
mais abundante uso dessa espécie de simbolização. Noutros casos ainda, não é
possível compreender à primeira vista como os sintomas podem ser determinados à
maneira como sugerimos. São precisamente os sintomas histéricos típicos que se
enquadram nessa classe, tais como a hemianestesia, a contração do campo visual,
as convulsões epileptiformes e assim por diante. Uma explicação de nossos
pontos de vista sobre esse grupo deve ser reservada para um exame mais acurado
do assunto.
Observações como
essas nos parecem estabelecer uma analogia entre a patogênese da histeria comum
e a das neuroses traumáticas e justificar uma extensão do conceito de histeria
traumática. Nas neuroses traumáticas, a causa atuante da
doença não é o dano físico insignificante, mas o afeto do susto - o trauma
psíquico. De maneira análoga, nossas pesquisas revelam para muitos, se não para
a maioria dos sintomas histéricos, causas desencadeadoras que só podem ser
descritas como traumas psíquicos. Qualquer experiência que possa evocar afetos
aflitivos - tais como os de susto, angústia, vergonha ou dor física - pode
atuar como um trauma dessa natureza; e o fato de isso acontecer de verdade
depende, naturalmente, da suscetibilidade da pessoa afetada (bem como de outra
condição que será mencionada adiante). No caso da histeria comum não é rara a
ocorrência, em vez de um trauma principal isolado, de vários traumas parciais
que formam um grupo de causas desencadeadoras. Essas causas só puderam
exercer um efeito traumático por adição e constituem um conjunto por serem, em
parte, componentes de uma mesma história de sofrimento. Existem outros casos em
que uma circunstância aparentemente trivial se combina com o fato realmente
atuante ou ocorre numa ocasião de peculiar suscetibilidade ao estímulo e, dessa
forma, atinge a categoria de um trauma, que de outra forma não teria tido, mas
que daí por diante persiste.
Mas a relação
causal entre o trauma psíquico determinante e o fenômeno histérico não é de
natureza a implicar que o trauma atue como mero agent provocateur na
liberação do sintoma, que passa então a levar uma existência independente.
Devemos antes presumir que o trauma psíquico - ou, mais precisamente, a
lembrança do trauma - age como um corpo estranho que, muito depois de sua
entrada, deve continuar a ser considerado como um agente que ainda está em
ação; encontramos a prova disso num fenômeno invulgar que, ao mesmo tempo, traz
um importante interesse prático para nossas descobertas.
É que
verificamos, a princípio com grande surpresa, que cada sintoma histérico
individual desaparecia, de forma imediata e permanente, quando conseguíamos
trazer à luz com clareza a lembrança do fato que o havia provocado e despertar
o afeto que o acompanhara, e quando o paciente havia descrito esse fato com o
maior número de detalhes possível e traduzido o afeto em palavras. A
lembrança sem afeto quase invariavelmente não produz nenhum resultado. O
processo psíquico originalmente ocorrido deve ser repetido o mais nitidamente
possível; deve ser levado de volta a seu status nascendi e então receber
expressão verbal. Quando aquilo com que estamos lidando são fenômenos que
envolvem estímulos (espasmos, nevralgias e alucinações), estes reaparecem mais
uma vez com intensidade máxima e a seguir desaparecem para sempre. As
deficiências funcionais, tais como paralisias e anestesias, desaparecem da
mesma maneira, embora, é claro, sem que a intensificação temporária seja
discernível.
É plausível
supor que se trata aqui de sugestão inconsciente: o paciente espera ser
aliviado de seus sofrimentos por esse procedimento, e é essa expectativa, e não
a expressão verbal, o fator operativo. Mas não é isso que ocorre. O primeiro
caso dessa natureza a ser objeto de observação remonta ao ano de 1881, isto é,
à era da “pré-sugestão”. Um caso muito complicado de histeria foi analisado dessa
maneira, e os sintomas que decorriam de causas distintas foram distintamente
eliminados. Essa observação foi possibilitada por auto-hipnoses espontâneas por
parte do paciente, e surgiu com uma grande surpresa para o observador.
Podemos inverter
a máxima “cessante causa cessat effectus” |“cessando a causa cessa o
efeito”| e concluir dessas observações que o processo determinante continua a
atuar, de uma forma ou de outra, durante anos - não indiretamente, através de
uma corrente de elos causais intermediários, mas como uma causa diretamente
liberadora - da mesma forma que um sofrimento psíquico que é recordado no
estado consciente de vigília ainda provoca uma secreção lacrimal muito tempo
depois de ocorrido o fato. Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências.
II
À primeira vista
parece extraordinário que fatos experimentados há tanto tempo possam continuar
a agir de forma tão intensa - que sua lembrança não esteja sujeita ao processo
de desgaste a que, afinal de contas, vemos sucumbirem todas as nossas
recordações. Talvez as considerações que se seguem possam tornar isso um pouco
mais inteligível.
O esmaecimento
de uma lembrança ou a perda de seu afeto dependem de vários fatores. O mais
importante destes é se houve uma reação energética ao fato capaz de provocar
um afeto. Pelo termo “reação” compreendemos aqui toda a classe de reflexos
voluntários e involuntários - das lágrimas aos atos de vingança - nos quais,
como a experiência nos mostra, os afetos são descarregados. Quando essa reação
ocorre em grau suficiente, grande parte do afeto desaparece como resultado. O
uso da linguagem comprova esse fato de observação cotidiana com expressões como
“desabafar pelo pranto” |“sich ausweinen”| e “desabafar através de um
acesso de cólera” |“sich austoben”, literalmente “esvair-se em cólera”|.
Quando a reação é reprimida, o afeto permanece vinculado à lembrança. Uma
ofensa revidada, mesmo que apenas com palavras, é recordada de modo bem
diferente de outra que teve que ser aceita. A linguagem também reconhece essa
distinção, em suas conseqüências mentais e físicas; de maneira bem
característica, ela descreve uma ofensa sofrida em silêncio como “uma
mortificação” |“Kränkung”, literalmente, um “fazer adoecer”|. - A reação
da pessoa insultada em relação ao trauma só exerce um efeito inteiramente
“catártico” se for uma reação adequada - como, por exemplo, a vingança.
Mas a linguagem serve de substituta para a ação; com sua ajuda, um afeto pode
ser “ab-reagido” quase com a mesma eficácia. Em outros casos, o próprio falar é
o reflexo adequado: quando, por exemplo, essa fala corresponde a um lamento ou
é a enunciação de um segredo torturante, por exemplo, uma confissão. Quando não
há uma reação desse tipo, seja em ações ou palavras, ou, nos casos mais
benignos, por meio de lágrimas, qualquer lembrança do fato preserva sua
tonalidade afetiva do início.
A “ab-reação”,
contudo, não é o único método de lidar com a situação para uma pessoa normal
que tenha experimentado um trauma psíquico. Uma lembrança desse trauma, mesmo que
não tenha sido ab-reagida, penetra no grande complexo de associações, entra em
confronto com outras experiências que possam contradizê-la, e está sujeita à
retificação por outras representações. Depois de um acidente, por exemplo, a
lembrança do perigo e a repetição (mitigada) do medo é associada à lembrança do
que ocorreu depois - o socorro e a situação consciente da segurança atual. Da
mesma forma, a lembrança de uma humilhação é corrigida quando a pessoa situa os
fatos no devidos lugares, considerando seu próprio valor, etc. Desse modo, uma
pessoa normal é capaz de provocar o desaparecimento do afeto concomitante por
meio do processo de associação.
A isso devemos
acrescentar a obliteração geral das impressões, o evanescimento das lembranças
a que chamamos “esquecimento” e que desgasta as representações não mais
afetivamente atuantes.
Nossas
observações demonstraram, por outro lado, que as lembranças que se tornaram os
determinantes de fenômenos histéricos persistem por longo tempo com
surpreendente vigor e com todo o seu colorido afetivo. Devemos, contudo,
mencionar outro fato notável do qual posteriormente poderemos tirar proveito, a
saber, que essas lembranças, em contraste com outras de sua vida passada, não
se acham à disposição do paciente. Pelo contrário, essas experiências estão
inteiramente ausentes da lembrança dos pacientes quando em estado psíquico
normal, ou só se fazem presentes de forma bastante sumária. Apenas quando o
paciente é inquirido sob hipnose é que essas lembranças emergem com a nitidez
inalterada de um fato recente.
Assim, durante
nada menos de seis meses, uma de nossas pacientes reproduziu sob hipnose, com
uma nitidez alucinatória, tudo o que a havia excitado no mesmo dia no ano
anterior (durante um ataque de histeria aguda). Um diário mantido por sua mãe
sem o conhecimento da paciente provou a inteireza da reprodução |ver em [1]|.
Outra paciente, em parte sob hipnose e em parte durante ataques espontâneos,
reviveu com clareza alucinatória todos os fatos de uma psicose histérica que
experimentara dez anos antes e que havia esquecido, em sua maior parte, até o
momento em que ela ressurgiu. Além disso, verificou-se que certas lembranças de
importância etiológica que datavam dos quinze aos vinte e cinco anos estavam
surpreendentemente intactas e possuíam uma intensidade sensorial notável, e
que, ao retornarem, atuaram com toda a força afetiva das experiências novas
|ver em [1]-[2]|.
Isso só pode ser
explicado pelo fato de que essas lembranças constituem uma exceção em sua
relação com todos os processos de desgaste que examinamos atrás. Em outras
palavras: parece que essas lembranças correspondem a traumas que não foram
suficientemente ab-reagidos; e se penetrarmos mais a fundo nos motivos que
impediram isso, encontraremos pelo menos dois grupos de condições sob as quais
a reação ao trauma deixa de ocorrer.
No primeiro
grupo acham-se os casos em que os pacientes não reagiram a um trauma psíquico
porque a natureza do trauma não comportava reação, como no caso da perda
obviamente irreparável de um ente querido, ou porque as circunstâncias sociais
impossibilitavam uma reação, ou porque se tratava de coisas que o paciente
desejava esquecer, e portanto, recalcara intencionalmente do pensamento
consciente, inibindo-as e suprimindo-as. São precisamente as coisas aflitivas
dessa natureza que, sob hipnose, constatamos serem a base dos fenômenos
histéricos (por exemplo, os delírios histéricos de santos e freiras, de
mulheres que guardam a castidade e de crianças bem-educadas).
O segundo grupo
de condições é determinado, não pelo conteúdo das lembranças, mas pelos estados
psíquicos em que o paciente recebeu as experiências em questão, pois
encontramos sob hipnose, dentre as causas dos sintomas histéricos,
representações que em si mesmas não são importantes, mas cuja persistência se
deve ao fato de que se originaram durante a prevalência de afetos gravemente
paralisantes, tais como o susto, ou durante estados psíquicos positivamente
anormais, como o estado crepuscular semi-hipnótico dos devaneios, a auto-hipnose,
etc. Em tais casos, é a natureza dos estados que torna impossível uma reação ao
acontecimento.
É claro que
ambas as espécies de condições podem estar presentes ao mesmo tempo, e isso de
fato ocorre com freqüência. É o que acontece quando um trauma que é atuante por
si mesmo ocorre enquanto predomina um afeto gravemente paralisante, ou durante
um estado de alteração da consciência. Mas também parece ser verdade que em
muitas pessoas um trauma psíquico produz um desses estados anormais, o
que, por sua vez, torna a reação impossível.
Ambos os grupos
de condições, porém, possuem em comum o fato de que os traumas psíquicos que
não foram eliminados pela reação também não podem sê-lo pela elaboração por
meio da associação. No primeiro grupo, o paciente está decidido a esquecer as
experiências aflitivas e, por conseguinte, as exclui tanto quanto possível da
associação; já no segundo grupo, a elaboração associativa deixa de ocorrer
porque não existe nenhuma vinculação associativa abrangente entre o estado normal
da consciência e os estados patológicos em que as representações surgiram. Logo
teremos ocasião de nos aprofundarmos nesse assunto.
Assim, pode-se
dizer que as representações que se tornaram patológicas persistiram com tal
nitidez e intensidade afetiva porque lhes foram negados os processos normais de
desgaste por meio da ab-reação e da reprodução em estados de associação não
inibida.
III
Mencionamos as
condições que, como demonstra nossa experiência, são responsáveis pelo
desenvolvimento de fenômenos histéricos provenientes de traumas psíquicos. Ao
fazê-lo, já fomos obrigados a falar nos estados anormais de consciência em que
surgem essas representações patogênicas e a ressaltar o fato de que a lembrança
do trauma psíquico atuante não se encontra na memória normal do paciente, mas
em sua memória ao ser hipnotizado. Quanto mais nos ocupamos desses fenômenos,
mais nos convencemos de que a divisão da consciência, que é tão marcante nos
casos clássicos conhecidos sob a forma de “double conscience”, acha-se presente
em grau rudimentar em toda histeria, e que a tendência a tal dissociação, e com
ela ao surgimento dos estados anormais da consciência que (reuniremos sob a
designação de “hipnóides”), constitui o fenômeno básico dessa neurose.
Quanto a esses concordamos com Binet e com os dois Janets, embora não tenhamos
tido nenhuma experiência das notáveis descobertas que eles fizeram com
pacientes anestésicos.
Gostaríamos de
contrabalançar a conhecida tese de que a hipnose é uma histeria artificial com
uma outra - a de que a base e condição sine qua non da histeria é a existência
de estados hipnóides. Esses estados hipnóides partilham uns com os outros e com
a hipnose, por mais que difiram sob outros aspectos, uma característica comum:
as representações que neles surgem são muito intensas, mas estão isoladas da
comunicação associativa com o restante do conteúdo da consciência. Podem
ocorrer associações entre esses estados hipnóides, e seu conteúdo
representativo pode, dessa forma, atingir um grau mais ou menos elevado de
organização psíquica. Além disso, deve-se supor que a natureza desses estados e
a extensão em que ficam isolados dos demais processos da consciência variam do
mesmo modo que ocorre na hipnose, que vai desde uma leve sonolência até o
sonambulismo, de uma lembrança completa até a amnésia total.
Quando os
estados hipnóides dessa natureza já se acham presentes antes da instalação da
doença manifesta, eles fornecem o terreno em que o afeto planta a lembrança
patogênica com suas conseqüentes manifestações somáticas. Isso corresponde à
histeria disposicional. Verificamos, todavia, que um trauma grave (tal
como ocorre numa neurose traumática) ou uma supressão trabalhosa (como a de um
afeto sexual, por exemplo) podem ocasionar uma divisão expulsiva de grupos de
representações mesmo em pessoas que, sob outros aspectos, não estão afetadas; e
esse seria o mecanismo da histeria psiquicamente adquirida. Entre os
extremos dessas duas formas devemos presumir a existência de uma série de casos
dentro dos quais a tendência à dissociação do indivíduo e a magnitude afetiva
do trauma variam numa proporção inversa.
Nada temos de
novo a dizer sobre a questão da origem desses estados hipnóides disposicionais.
Ao que parece, eles freqüentemente emergem dos devaneios que são tão comuns até
mesmo nas pessoas sadias e aos quais os trabalhos de costura e ocupações
semelhantes tornam as mulheres particularmente propensas. Por que é que as
“associações patológicas” surgidas nesses estados são tão estáveis, e por que é
que exercem uma influência tão maior sobre os processos somáticos do que
costumam fazer as representações, são perguntas que coincidem com o problema
geral da eficácia das sugestões hipnóticas. Nossas observações não trazem
nenhuma nova contribuição para esse assunto, mas lançam luz sobre a contradição
entre a máxima “a histeria é uma psicose” e o fato de que, entre os histéricos,
podem-se encontrar pessoas da mais lúcida inteligência, da maior força de
vontade, do melhor caráter e da mais alta capacidade crítica. Essa
caracterização é válida em relação a seus pensamentos em estado de vigília,
mas, em seus estados hipnóides, elas são insanas, como somos todos nos sonhos.
Todavia, enquanto nossas psicoses oníricas não exercem nenhum efeito sobre
nosso estado de vigília, os produtos dos estados hipnóides intrometem-se na
vigília sob a forma de sintomas histéricos.
IV
O que afirmamos
sobre os sintomas histéricos crônicos pode ser aplicado quase que integralmente
aos ataques histéricos. Charcot, como se sabe, deu-nos uma descrição
esquemática do “grande” ataque histérico, segundo a qual se podem distinguir
quatro fases num ataque completo: (1) a fase epileptóide, (2) a fase dos
movimentos amplos, (3) a fase das “atittudes passionnelles” (fase
alucinatória) e (4) a fase de delírio terminal. Charcot deduz todas as formas
de ataque histérico que, na prática, são encontradas com maior freqüência do
que o “grande attaque” completo, a partir da abreviação ou do
prolongamento, da ausência ou do isolamento dessas quatro fases distintas.
Nossa tentativa
de explicação tem como ponto de partida a terceira dessas fases, a das “atittudes
passionnelles”. Quando esta se acha presente numa forma bem acentuada, ela
apresenta a reprodução alucinatória de uma lembrança que foi importante no desencadeamento
da histeria - a lembrança de um grande trauma isolado (que encontramos par
excellence no que é denominado histeria traumática) ou de uma série de
traumas parciais interligados (como os subjacentes à histeria comum). Ou,
finalmente, o ataque pode reviver os fatos que se tornaram relevantes em
virtude de sua coincidência com um momento de predisposição especial ao
trauma.
Entretanto, há
também ataques que parecem consistir exclusivamente em fenômenos motores e nos
quais a fase de atittudes passionnelles se acha ausente. Quando se
consegue entrar em rapport com o paciente durante um ataque como esse,
de espasmos clônicos generalizados ou rigidez cataléptica, ou durante um attaque
de sommeil |acesso de sono| - ou quando, melhor ainda, se consegue provocar
o acesso sob hipnose - verifica-se que também aqui há uma lembrança subjacente
do trauma psíquico ou da série de traumas, que, de modo geral, chama nossa
atenção numa fase alucinatória.
Dessa forma,
durante anos, uma menina sofreu ataques de convulsões generalizadas que
poderiam ser, e realmente foram, considerados como epilépticos. Ela foi
hipnotizada com vistas a um diagnóstico diferencial, e de imediato teve um de
seus acessos. Perguntaram-lhe o que estava vendo e ela respondeu: “O cachorro! O
cachorro está vindo!”; e de fato verificou-se que tivera o primeiro de seus
ataques após ter sido perseguida por um cão feroz. O êxito do tratamento
confirmou o diagnóstico.
Por sua vez, um
funcionário que ficara histérico em decorrência de ser maltratado por seu
superior sofria de ataques em que caía no chão e tinha acessos de raiva, mas
sem dizer uma só palavra ou demonstrar qualquer sinal de alucinação. Foi
possível provocar um ataque sob hipnose, e o paciente então revelou estar
revivendo a cena em que seu patrão o insultara na rua e batera nele com a
bengala. Dias depois o paciente voltou e queixou-se de ter tido outro ataque da
mesma natureza. Nessa ocasião, verificou-se sob hipnose que ele estivera
revivendo a cena com que estava relacionada a instalação real da doença: a cena
no tribunal em que ele não conseguira obter reparação pelas injúrias sofridas.
Também em todos
os demais aspectos as lembranças que emergem ou podem ser provocadas nos
ataques histéricos correspondem às causas desencadeadoras que temos encontrado
na raiz dos sintomas histéricos crônicos. Tais como estas últimas
causas, as lembranças subjacentes aos ataques histéricos relacionam-se com
traumas psíquicos que não foram eliminados pela ab-reação ou pela atividade
associativa do pensamento. À semelhança delas, estas estão, quer inteiramente,
quer em seus elementos essenciais, fora do alcance da lembrança da consciência
normal, e mostram pertencer ao conteúdo representativo dos estados hipnóides de
consciência, com associação restrita. Por fim, também o teste terapêutico pode
ser aplicado a elas. Nossas observações nos têm com freqüência ensinado que uma
recordação dessa espécie, que até então havia provocado ataques, deixa de ser
capaz de fazê-lo depois que os processos de reação e de correção associativa
são a ela aplicados sob hipnose.
Os fenômenos
motores dos ataques histéricos podem ser parcialmente interpretados como formas
universais de reação apropriadas ao afeto que acompanha a lembrança (tais como
espernear e agitar os braços e pernas, o que até mesmo os bebês de tenra idade
fazem), e em parte como uma expressão direta dessas lembranças; mas em parte,
como no caso dos estigmas histéricos verificados entre os sintomas crônicos,
não podem ser explicadas dessa maneira.
Os ataques
histéricos, além disso, são especialmente interessantes se tivermos em mente
uma teoria que mencionamos atrás, a saber, que na histeria certos grupos de
representações que se originam nos estados hipnóides estão presentes e são
isolados da ligação associativa com as outras representações, mas podem
associar-se entre si, formando assim o rudimento mais ou menos altamente
organizado de uma segunda consciência, uma condition seconde. Se assim
for, um sintoma histérico crônico corresponderá à intrusão desse segundo estado
na inervação somática, que, em geral, se acha sob o controle da consciência
normal. O ataque histérico, por outro lado, é prova de uma organização mais
elevada desse segundo estado. Quando o ataque surge pela primeira vez, indica um
momento em que essa consciência hipnóide adquiriu controle sobre toda a
existência do indivíduo - indica, em outras palavras, uma histeria aguda;
quando ocorre em ocasiões subseqüentes e contém uma lembrança, indica um
retorno daquele momento. Charcot já sugeriu que os ataques histéricos
constituem uma forma rudimentar de uma condition seconde. Durante o
ataque, o controle sobre toda a inervação somática passa para a consciência
hipnóide. A consciência normal, como o demonstram observações bem conhecidas, nem
sempre é inteiramente recalcada. Ela pode até mesmo perceber os fenômenos
motores do ataque, enquanto os fatos psíquicos concomitantes ficam fora de seu
conhecimento.
O curso
característico de um caso grave de histeria é, como sabemos, o seguinte: de início,
forma-se um conteúdo representativo durante os estados hipnóides; quando esse
conteúdo aumenta de forma suficiente, ele assume o controle, durante um período
de “histeria aguda”, da inervação somática e de toda a existência do paciente,
criando sintomas crônicos e ataques; depois disso, desaparece, a não ser por
certos resíduos. Quando a personalidade normal consegue recuperar o controle, o
que resta do conteúdo representativo hipnóide reaparece em ataques histéricos
e, de tempos em tempos, leva o sujeito de volta a estados semelhantes, eles
próprios novamente influenciáveis a traumas. Um estado de equilíbrio, por assim
dizer, pode então ser estabelecido entre os dois grupos psíquicos que se
combinam na mesma pessoa: os ataques histéricos e a vida normal prosseguem lado
a lado sem que um interfira no outro. O ataque ocorre de modo espontâneo, como
fazem as lembranças nas pessoas normais; contudo, é possível provocá-lo, do
mesmo modo que qualquer lembrança pode ser suscitada de acordo com as leis da
associação. Pode-se provocá-lo, quer pela estimulação de uma zona
histerogênica, quer por uma nova experiência que o desencadeia graças a uma
semelhança com a experiência patogênica. Esperamos poder demonstrar que essas
duas espécies de determinantes, embora pareçam tão diferentes, não diferem
quanto aos pontos essenciais, mas que em ambas uma lembrança hiperestésica é
evocada.
Em outros casos
esse equilíbrio é muito instável. O ataque surge como manifestação do resíduo
da consciência hipnóide sempre que a personalidade está esgotada e
incapacitada. Não se pode afastar a possibilidade de que, nessa situação, o
ataque tenha sido despojado de seu significado original e esteja recorrendo
como uma reação motora sem qualquer conteúdo.
Cabe a uma
pesquisa ulterior descobrir o que é que determina se uma personalidade
histérica se manifestará em ataques, em sintomas crônicos ou numa mistura de
ambos.
V
Agora poderá
ficar claro por que o método psicoterápico que descrevemos nestas páginas tem
um efeito curativo. Ele põe termo à força atuante da representação que não
fora ab-reagida no primeiro momento, ao permitir que seu afeto estrangulado
encontre uma saída através da fala; e submete essa representação à correção
associativa, ao introduzi-la na consciência normal (sob hipnose leve) ou
eliminá-la por sugestão do médico, como se faz no sonambulismo acompanhado de
amnésia.
Em nossa
opinião, as vantagens terapêuticas desse método são consideráveis.
Naturalmente, é verdade que não curamos a histeria na medida em que ela dependa
de fatores disposicionais. Nada podemos fazer contra a recorrência dos estados
hipnóides. Além disso, durante a fase produtiva de uma histeria aguda, nosso
método não pode impedir que os fenômenos tão laboriosamente eliminados sejam
imediatamente substituídos por outros. Tão logo passa essa fase aguda, porém,
quaisquer resíduos que possam ter ficado sob a forma de sintomas crônicos ou
ataques costumam ser removidos de forma permanente por nosso método, porque ele
é radical; e nesse sentido ele nos parece muito superior em sua eficácia à
remoção através da sugestão direta, tal como é hoje praticada pelos
psicoterapeutas.
Se, ao
descobrirmos o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos, demos um passo à
frente na trilha inicialmente aberta com tanto êxito por Charcot, com sua
explicação e sua imitação artificial das paralisias hístero-traumáticas, não
podemos ocultar de nós mesmos que isso só nos aproximou um pouco mais da
compreensão do mecanismo dos sintomas histéricos, e não das causas internas da
histeria. Não fizemos mais do que tocar de leve na etiologia da histeria e, a
rigor, só conseguimos lançar luz sobre suas formas adquiridas - sobre a
importância dos fatores acidentais nessa neurose.
VIENA, dezembro
de 1892
II - CASOS CLÍNICOS
(BREUER E FREUD)
CASO
1 - SRTA. ANNA O. (BREUER)
Na ocasião em
que adoeceu (em 1880), a Srta. Anna O. contava vinte e um anos de idade.
Pode-se considerar que era portadora de uma hereditariedade neuropática
moderadamente grave, visto que algumas psicoses haviam ocorrido entre seus
parentes mais distantes. Seus pais eram normais nesse aspecto. A própria
paciente fora sempre saudável até então e não havia mostrado nenhum sinal de
neurose durante seu período de crescimento. Era dotada de grande inteligência e
aprendia as coisas com impressionante rapidez e intuição aguçada. Possuía um
intelecto poderoso, que teria sido capaz de assimilar um sólido acervo mental e
que dele necessitava - embora não o recebesse desde que saíra da escola. Anna
tinha grandes dotes poéticos e imaginativos, que estavam sob o controle de um
agudo e crítico bom senso. Graças a esta última qualidade, ela era inteiramente
não sugestionável, sendo influenciada apenas por argumentos e nunca por
meras asserções. Sua força de vontade era vigorosa, tenaz e persistente;
algumas vezes, chegava ao extremo da obstinação, que só cedia pela bondade e
consideração para com as outras pessoas.
Um de seus
traços de caráter essenciais era a generosa solidariedade. Mesmo durante a doença,
pôde ajudar muito a si mesma por ter conseguido cuidar de grande número de
pessoas pobres e enfermas, pois assim satisfazia a um poderoso instinto. Seus
estados de espírito sempre tenderam para um leve exagero, tanto na alegria como
na tristeza; por conseguinte, era às vezes sujeita a oscilações de humor. A
noção da sexualidade era surpreendentemente não desenvolvida nela. A paciente,
cuja vida se tornou conhecida por mim num grau em que raras vezes a vida de uma
pessoa é conhecida de outra, nunca se apaixonara; e em todo o imenso número de
alucinações que ocorreram durante sua doença a noção da sexualidade nunca
emergiu.
Essa moça, cheia
de vitalidade intelectual, levava uma vida extremamente monótona no ambiente de
sua família de mentalidade puritana. Embelezava sua vida de um modo que
provavelmente a influenciou de maneira decisiva em direção à doença,
entregando-se a devaneios sistemáticos que descrevia como seu “teatro
particular”. Enquanto todos pensavam que ela estava prestando atenção, ela se imaginava
vivendo contos de fada; mas estava sempre alerta quando lhe dirigiam a palavra,
de modo que ninguém se dava conta de seu estado. Exercia essa atividade de modo
quase ininterrupto enquanto se ocupava de seus afazeres domésticos, dos quais
se desincumbia de forma irrepreensível. Terei a seguir que descrever a maneira
pela qual esses devaneios habituais, no período em que ela estava com saúde,
foram-se convertendo gradativamente em doença.
O curso da
doença enquadrou-se em várias fases nitidamente separáveis:
(A)Incubação
latente. De meados de julho até cerca de 10 de dezembro de 1880. Essa fase da
doença costuma ficar omissa para nós; mas, nesse caso, graças a seu caráter
peculiar, foi-nos completamente acessível; esse fato, por si só, traz um
apreciável interesse patológico para o caso. Descreverei esta fase em seguida.
(B)A doença
manifesta. Uma psicose de natureza peculiar, com parafasia, estrabismo
convergente, graves perturbações da visão, paralisias (sob a forma de
contraturas) completa na extremidade superior direita e em ambas as
extremidades inferiores, e parcial na extremidade superior esquerda, e paresia
dos músculos do pescoço. Redução gradual da contratura nas extremidades da mão
direita. Alguma melhora, interrompida por um grave trauma psíquico (a morte do
pai da paciente) em abril, depois do que se seguiram:
(C)Um período de
sonambulismo persistente, alternando-se subseqüentemente com estados mais
normais. Grande número de sintomas crônicos perduraram até dezembro de 1881.
(D)Cessação
gradual dos estados e sintomas patológicos até junho de 1882.
Em julho de
1880, o pai da paciente, a quem ela era extremamente afeiçoada, adoeceu de um
abscesso peripleurítico que não sarou e do qual veio a morrer em abril de 1881.
Durante os primeiros meses da doença, Anna dedicou todas as suas energias a
cuidar do pai, e ninguém ficou muito surpreso quando, pouco a pouco, sua
própria saúde foi-se deteriorando de forma acentuada. Ninguém, talvez nem mesmo
a própria paciente, sabia o que lhe estava acontecendo; mas afinal, o estado de
debilidade, anemia e aversão pelos alimentos se agravou a tal ponto que, para
seu grande pesar, não lhe permitiram mais que continuasse a cuidar do paciente.
A causa imediata dessa proibição foi uma tosse muito intensa, razão pela qual a
examinei pela primeira vez. Era uma tussis nervosa típica. Anna logo
começou a mostrar uma pronunciada necessidade de repouso durante a tarde,
continuada, ao anoitecer, por um estado semelhante a sono e, a seguir, por uma
condição de intensa excitação.
No início de
dezembro apareceu um estrabismo convergente. Um oftalmologista o explicou
(erroneamente) como decorrente da paresia de um dos abdutores. Em 11 de
dezembro a paciente caiu de cama e assim permaneceu até 1º de abril.
Surgiu em rápida
sucessão uma série de perturbações graves que eram aparentemente novas:
dor de cabeça occipital esquerda; estrabismo convergente (diplopia),
acentuadamente aumentado pela excitação; queixas de que as paredes do quarto
pareciam estar vindo abaixo (afecção do nervo oblíquo); perturbações da visão
difíceis de ser analisadas; paresia dos músculos anteriores do pescoço, de modo
que, afinal, a paciente só conseguia mover a cabeça pressionando-a para trás
entre os ombros erguidos e movendo as costas inteiramente; contratura e
anestesia da extremidade superior direita e, depois de certo tempo, da
extremidade inferior direita. Esta última sofreu total extensão, adução e
rotação para dentro. Posteriormente, surgiu o mesmo sintoma na extremidade
inferior esquerda e, por fim, no braço esquerdo, cujos dedos, contudo
conservaram até certo ponto a capacidade de movimento. De igual modo, também
não havia uma rigidez completa nas articulações do ombro. A contratura atingiu
seu ponto máximo nos músculos dos braços. Da mesma forma, a região dos
cotovelos revelou-se a mais atingida pela anestesia quando, num estágio
posterior, tornou-se possível fazer um exame mais cuidadoso da sensibilidade.
No início da doença a anestesia não pôde ser testada de modo eficiente em
virtude da resistência da paciente em decorrência de sentimentos de angústia.
Foi enquanto a
paciente se achava nesse estado que comecei a tratá-la, havendo logo
reconhecido a gravidade da perturbação psíquica com que teria de lidar. Havia
dois estados de consciência inteiramente distintos, que se alternavam, de modo
freqüente e súbito e que se tornaram cada vez mais diferenciados no curso da
doença. Num desses estados ela reconhecia seu ambiente; ficava melancólica e
angustiada, mas relativamente normal. No outro, tinha alucinações e ficava
“travessa” - isto é, agressiva, e jogava almofadas nas pessoas, tanto quanto o
permitiam as contraturas, arrancava botões da roupa de cama e de suas roupas
com os dedos que conseguia movimentar, e assim por diante. Nesse estágio da
doença, se alguma coisa tivesse sido tirada do lugar no quarto ou alguém
tivesse entrado ou saído dele |durante seu outro estado de consciência|, ela se
queixava de haver “perdido” tempo e tecia comentários sobre as lacunas na
seqüência de seus pensamentos conscientes. Visto que as pessoas que a cercavam
tentavam negar isso e confortá-la quando ela se queixava de estar ficando
louca, Anna, depois de jogar os travesseiros, acusava as pessoas de fazerem
coisas contra ela e de a deixarem num estado de confusão, etc.
Essas “absences”
já tinham sido observadas antes de ela cair de cama; costumava parar no meio de
uma frase, repetir as últimas palavras e, depois de uma breve pausa, continuar
a falar. Essas interrupções aumentaram de forma gradual até atingirem as
dimensões que acabam de ser descritas; e no auge da doença, quando as
contraturas se haviam estendido até o lado esquerdo do corpo, só durante um
curto período do dia é que ela apresentava certo grau de normalidade. Mas as
perturbações invadiram até mesmo seus momentos de consciência relativamente
clara. Haveria modificações muitíssimo rápidas de humor, que levavam a uma fase
de animação intensa, mas bastante passageira, e em outras ocasiões havia uma
angústia acentuada, uma oposição tenaz a qualquer esforço terapêutico e
alucinações assustadoras com cobras negras, que eram a maneira como Anna via
seus cabelos, fitas e coisas semelhantes. Ao mesmo tempo, ficava dizendo a si
mesma para deixar de ser tão tola: o que na verdade via eram apenas seus
cabelos, etc. Em certos momentos, quando sua mente estava inteiramente lúcida,
queixava-se da profunda escuridão na cabeça, de não conseguir pensar, de ficar
cega e surda, de ter dois eus, um real e um mau, que a forçava a comportar-se
mal, e assim por diante.
Às tardes caía num
estado de sonolência que durava até cerca de uma hora depois do pôr-do-sol.
Então despertava e se queixava de que algo a estava atormentando - ou melhor,
ficava a repetir na forma impessoal: “atormentando, atormentando”, e isso
porque, paralelamente ao desenvolvimento das contraturas, surgiu uma profunda
desorganização funcional da fala. A princípio, ficou claro que ela sentia
dificuldade de encontrar as palavras, e essa dificuldade foi aumentando de
maneira gradativa. Posteriormente, ela perdeu o domínio da gramática e da
sintaxe; não mais conjugava verbos e acabou por empregar apenas os infinitivos,
em sua maioria formados incorretamente a partir dos particípios passados, e
omitia tanto o artigo definido quanto o indefinido. Com o passar do tempo, ficou
quase totalmente desprovida de palavras. Juntava-as penosamente a partir de
quatro ou cinco idiomas e tornou-se quase ininteligível. Quando tentava
escrever (até que as contraturas a impediram totalmente de fazê-lo), empregava
o mesmo jargão. Durante duas semanas emudeceu por completo e, apesar de envidar
grandes e contínuos esforços, foi incapaz de emitir uma única sílaba. E então,
pela primeira vez, o mecanismo psíquico do distúrbio ficou claro. Como eu
sabia, ela se sentira extremamente ofendida com alguma coisa e tomara a
deliberação de não falar a esse respeito. Quando adivinhei isso e a obriguei a
falar sobre o assunto, a inibição, que também tornara impossível qualquer outra
forma de expressão, desapareceu.
Essa mudança
coincidiu com a volta da capacidade de movimento das extremidades do lado
esquerdo do corpo, em março de 1881. A parafasia regrediu, mas daí por diante
ela passou a falar apenas inglês - só que, aparentemente, sem saber que o
estava fazendo. Tinha discussões com a enfermeira, que, como é lógico, não
conseguia entendê-la. Só alguns meses depois é que pude convencê-la de que
estava falando inglês. Não obstante, ela própria ainda compreendia as pessoas a
seu redor que falavam alemão. Só em momentos de extrema ansiedade é que sua
capacidade de falar a abandonava por completo, ou então ela utilizava uma
mistura de toda sorte de línguas. Às vezes, quando se encontrava em seu melhor
estado e com a máxima liberdade, falava francês e italiano. Havia uma amnésia
total entre essas ocasiões e aquelas em que falava inglês. Também nessa época
seu estrabismo começou a diminuir e passou a se apresentar apenas nos momentos
de grande excitação. Ela voltou a conseguir sustentar a cabeça. No dia 1º de
abril, levantou-se pela primeira vez.
No dia 5 de
abril morreu seu adorado pai. Durante a doença da paciente ela o vira muito
raramente e por períodos curtos. Esse foi talvez o trauma psíquico mais grave
que ela poderia ter experimentado. Uma violenta explosão de excitação foi
acompanhada de um profundo estupor, que durou cerca de dois dias e do qual ela
emergiu num estado acentuadamente modificado. No começo, ficou muito mais
tranqüila e seus sentimentos de angústia tiveram uma redução considerável. A
contratura do braço e perna direitos persistiu, bem como a anestesia de ambos,
embora esta não fosse profunda. Houve um alto grau de restrição do campo
visual: num buquê de flores que lhe proporcionou muito prazer, só pôde ver uma
flor de cada vez. Queixava-se de não conseguir reconhecer as pessoas.
Normalmente, dizia, fora capaz de reconhecer os rostos sem ter de fazer nenhum
esforço deliberado; agora era obrigada a fazer um laborioso“recognizing work”
e tinha que dizer a si mesma: “o nariz dessa pessoa é assim e assim e o cabelo
é assim ou assado, de modo que deve ser fulano”. Todas as pessoas que via
pareciam figuras de cera, sem qualquer ligação com ela. Achava muito aflitiva a
presença de alguns de seus parentes próximos, e essa atitude negativa foi-se
acentuando cada vez mais. Quando alguém a quem comumente via com prazer entrava
no quarto, ela o reconhecia e ficava consciente das coisas por um curto espaço
de tempo, mas logo mergulhava de novo em suas elucubrações, e o visitante se
apagava. Eu era a única pessoa que ela sempre reconhecia quando entrava; enquanto
eu conversava com ela, a paciente permanecia animada e em contato com as coisas
exceto pelas súbitas interrupções causadas por uma de suas “absences”
alucinatórias.
Nesses momentos,
só falava inglês e não conseguia compreender o que lhe diziam em alemão. Os que
a cercavam eram obrigados a dirigir-lhe a palavra em inglês, e até a enfermeira
aprendeu, até certo ponto, a se fazer entender dessa maneira. Anna, porém,
conseguia ler em francês e italiano. Se tivesse que ler uma dessas línguas em
voz alta, o que produzia, com extraordinária fluência, era uma admirável
tradução improvisada do inglês.
Ela recomeçou a
escrever, mas de maneira peculiar. Escrevia com a mão esquerda, a menos rígida,
e empregava letras de forma romanas, copiando o alfabeto da sua edição de
Shakespeare.
Anteriormente,
ela costumava comer muito pouco, mas agora recusava qualquer alimento.
Entretanto, permitiu-me que a alimentasse, de modo que logo começou a se
alimentar mais. Mas nunca consentia em comer pão. Após a refeição, lavava invariavelmente
a boca, e o fazia até mesmo quando, por qualquer motivo, nada era comido - o
que indica como era distraída a respeito dessas coisas.
Seus estados de
sonolência à tarde e seu sono profundo depois do crepúsculo persistiram.
Quando, depois disso, ela se havia esgotado de tanto falar (terei que explicar
depois o que quero dizer com isso), ficava com a mente clara, calma e alegre.
Esse estado
relativamente tolerável não durou muito. Cerca de dez dias após a morte do pai,
chamou-se um médico para opinar sobre o caso, a quem, como fazia com todos os
estranhos, ela ignorou inteiramente enquanto eu demonstrava a ele todas as
peculiaridades da paciente. “That’s like an examination”, disse ela a
rir quando fiz com que lesse em inglês, em voz alta, um texto escrito em
francês. O outro médico interveio na conversa etentou atrair-lhe a atenção, mas
foi inútil. Era uma autêntica “alucinação negativa” do tipo que, desde então,
vem sendo produzida com freqüência em caráter experimental. No fim, ele
conseguiu romper a alucinação ao soprar fumaça no rosto da paciente. De súbito,
ela viu diante de si um estranho, precipitou-se para a porta a fim de retirar a
chave e caiu no chão, inconsciente. Seguiu-se um breve acesso de raiva e depois
uma grave crise de angústia, que tive grande dificuldade em acalmar.
Infelizmente, tive que sair de Viena naquela noite e, ao retornar, passados
vários dias, encontrei a paciente muito pior. Ela ficara sem qualquer
alimentação durante todo aquele tempo, estava extremamente angustiada e, em
suas absences alucinatórias, via figuras aterradoras, caveiras e
esqueletos. Dado que se comportava diante dessas coisas como se as estivesse
vivenciando e em parte as traduzia em palavras, as pessoas em torno dela
ficaram amplamente cientes do conteúdo dessas alucinações.
A ordem habitual
das coisas era: o estado sonolento à tarde, seguido, após o pôr-do-sol, pela
hipnose profunda, para a qual ela inventou o nome técnico de “clouds”.
Quando, durante a hipnose, ela conseguia narrar as alucinações que tivera no
decorrer do dia, despertava com a mente desanuviada, calma e alegre. Sentava-se
para trabalhar e escrever ou desenhar até altas horas da noite, de maneira bem
racional. Por volta das quatro horas ia deitar-se. No dia seguinte, toda a
série de fatos se repetia. Era um contraste realmente notável: durante o dia, a
paciente irresponsável, perseguida por alucinações, e à noite a moça com a
mente inteiramente lúcida.
Apesar de sua
euforia noturna, seu estado psíquico continuava a se deteriorar. Surgiram fortes
impulsos suicidas, que tornaram desaconselhável que ela permanecesse morando no
terceiro andar. Contra sua vontade, portanto, foi transferida para uma casa de
campo nas imediações de Viena (em 7 de junho de 1881). Eu nunca a havia
ameaçado com essa mudança de seu lar, que ela encarava com horror, mas ela, sem
o dizer, havia esperado e temido tal medida. Esse fato deixou claro, mais uma
vez, até que ponto o afeto de angústia dominava seu distúrbio psíquico. Assim
como se havia instalado um estado de maior tranqüilidade logo após a morte do
pai da paciente, também agora, quando o que ela temia de fato ocorreu, de novo
ela ficou mais calma. Não obstante, a mudança foi imediatamente seguida por
três dias e três noites sem qualquer sono e sem alimento, por numerosas
tentativas de suicídio (embora, como Anna ficasse num jardim, tais tentativas
não fossem perigosas), pela quebra de janelas e assim por diante, e por
alucinações não acompanhadas de absences - que ela era capaz de
distinguir facilmente de suas outras alucinações. Depois disso, ficou mais
calma, passou a deixar que a enfermeira a alimentasse e chegou até a tomar
cloral à noite.
Antes de
prosseguir em meu relato do caso, preciso voltar mais uma vez para descrever
uma de suas peculiaridades, que até agora só mencionei de passagem. Já disse
que ao longo de toda a doença, até esse ponto, a paciente caía num estado de
sonolência todas as tardes, e que, após o pôr-do-sol, esse período passava para
um sono mais profundo - “clouds”. (Parece plausível atribuir essa
seqüência regular dos acontecimentos apenas à experiência dela enquanto cuidava
do pai, o que teve de fazer por vários meses. Durante as noites, ela velava à
cabeceira do paciente ou ficava acordada, escutando ansiosamente até amanhecer;
às tardes, deitava-se para um ligeiro repouso, como é o costume habitual das
enfermeiras. Esse padrão de ficar acordada à noite e dormir à tarde parece ter
sido transposto para sua própria doença e persistido muito depois de o sono ter
sido substituído por um estado hipnótico.) Após cerca de uma hora de sono
profundo, ela ficava irrequieta, virava de um lado para outro e repetia
“atormentando, atormentando”, com os olhos fechados o tempo todo. Também se
observou como, durante suas absences diuturnas, ela obviamente criava
alguma situação ou episódio para o qual dava uma pista murmurando algumas
palavras. Acontecia então - de início por acaso, mas depois a propósito - que
alguém perto dela repetia uma dessas suas frases enquanto ela se queixava do
“atormentando”. Ela imediatamente fazia coro e começava a retratar alguma
situação ou a narrar alguma história, a princípio com hesitação e no seu jargão
parafásico; mas, quanto mais se estendia, mais fluente se tornava, até que por
fim falava um alemão bem fluente. (Isso se aplica ao período inicial, antes que
começasse a falar somente em inglês |ver em [1]|.) As histórias eram sempre
tristes, e algumas delas, encantadoras, no estilo do Álbum de Figuras sem
Figuras, de Hans Andersen, e de fato é provável que se estruturassem sobre
aquele modelo. Via de regra, seu ponto de partida ou situação central era o de
uma moça ansiosamente sentada à cabeceira de um doente. Mas ela também
construía suas histórias com outros temas bem diversos. - Alguns momentos
depois de haver concluído a narrativa, ela despertava, obviamente acalmada, ou,
como dizia, “gehaeglich”. Durante a noite, tornava a ficar irrequieta, e
pela manhã, após algumas horas de sono, estava visivelmente envolvida em algum
outro grupo de representações. - Quando, por qualquer motivo, não podia
narrar-me a história durante a hipnose do anoitecer, não conseguia acalmar-se
depois, e no dia seguinte tinha que me contar duas histórias para que
isso acontecesse.
As
características essenciais desse fenômeno - o aumento e a intensificação de
suas absences até sua auto-hipnose do anoitecer, o efeito dos produtos
de sua imaginação como estímulos psíquicos e o afrouxamento e a remoção de seu
estado de estimulação quando os expressava verbalmente em sua hipnose -
permaneceram constantes durante todos os dezoito meses em que a paciente ficou
em observação.
As histórias
naturalmente se tornaram ainda mais trágicas após a morte do pai. Contudo, foi
só depois da deterioração do estado mental da paciente, o que se seguiu quando
seu estado de sonambulismo sofreu uma interrupção abrupta, da maneira já
descrita, que suas narrativas do anoitecer deixaram de ter o caráter de
composições poéticas, criadas de forma mais ou menos livre, e se transformaram
numa cadeia de alucinações medonhas e apavorantes. (Já era possível chegar a
elas a partir do comportamento da paciente durante o dia). Já descrevi |
[1]-[2]| como sua mente ficava inteiramente aliviada depois que, trêmula de
medo e horror, havia reproduzido essas imagens assustadoras e dado expressão
verbal a elas.
Enquanto Anna
ficou no campo, ocasião em que não pude fazer-lhe as visitas diárias, a
situação processou-se da seguinte maneira. Visitava-a à tardinha, quando sabia
que a encontraria em hipnose, e então a aliviava de toda a carga de produtos
imaginativos que ela havia acumulado desde minha última visita. Era essencial
que isso fosse feito de forma completa se se quisesse alcançar bons resultados.
Quando isso era levado a efeito, ela ficava perfeitamente calma e, no dia
seguinte, mostrava-se agradável, fácil de lidar, diligente e até mesmo alegre;
no segundo dia, porém, tornava-se cada vez mais mal-humorada, voluntariosa e
desagradável, o que se acentuava ainda mais no terceiro dia. Quando ficava
assim, nem sempre era fácil fazê-la falar, mesmo em seu estado hipnótico. Ela
descrevia de modo apropriado esse método, falando a sério, como uma “talking
cure, ao mesmo tempo em que se referia a ele, em tom de brincadeira, como “chimney-sweeping”.
A paciente sabia que, depois que houvesse dado expressão a suas alucinações,
perderia toda a sua obstinação e aquilo que descrevia como sua “energia”;
equando, após um intervalo relativamente longo, ficava de mau humor,
recusava-se a falar, sendo eu obrigado a superar sua falta de disposição
encarecendo e suplicando, e até usando recursos como repetir uma fórmula com a
qual ela estava habituada a iniciar suas histórias. Mas ela jamais começava a
falar antes de haver confirmado plenamente minha identidade, apalpando-me as
mãos com cuidado. Nas noites em que não se acalmava pela enunciação verbal, era
necessário recorrer novamente ao cloral. Eu já o havia experimentado em algumas
ocasiões anteriores, mas vi-me obrigado a aplicar-lhe 5 gramas, sendo o sono
precedido por um estado de intoxicação que durava algumas horas. Quando me
achava presente, esse estado era de euforia, mas em minha ausência era
altamente desagradável e caracterizado por angústia e excitação. (Pode-se
observar, a propósito, que esse estado de intoxicação aguda não fazia nenhuma
diferença quanto a suas contraturas.) Eu havia conseguido evitar o uso de
narcóticos, visto que a expressão verbal de suas alucinações a tranqüilizava,
ainda que não induzisse ao sono; entretanto, quando ela estava no campo, as
noites em que não conseguia alívio hipnótico eram tão insuportáveis que, apesar
de tudo, era necessário recorrer ao cloral. Mas foi possível reduzir a dose, de
forma gradual.
O sonambulismo
persistente não reapareceu, mas, por outro lado, a alternância entre os dois
estados de consciência perdurou. Ela costumava ter alucinações no meio de uma
conversa, sair correndo, subir numa árvore, etc. Quando alguém a agarrava, com
grande rapidez retomava a frase interrompida, sem tomar nenhum conhecimento do
que acontecera no intervalo. Todas essas alucinações, contudo, sobrevinham e
eram relatadas em sua hipnose.
Seu estado, de
modo geral, experimentou melhoras. Ela ingeria alimentos sem dificuldades e
permitia que a enfermeira a alimentasse com exceção do pão, que pedia mas
rejeitava no momento em que lhe tocava os lábios. A paralisia espástica da
perna teve uma diminuição acentuada. Verificaram-se também melhoras em sua
capacidade de julgamento, e ela ficou muito apegada a um amigo meu, o Dr. B.,
médico que a visitava. Beneficiou-se muito da presença de um cão terra-nova que
lhe tinha sido presenteado e pelo qual tinha uma afeição apaixonada. Em certa
ocasião, porém, seu animal de estimação atacou um gato, e foi extraordinário
ver a forma como a frágil moça tomou de um chicote na mão esquerda e afastou a
chicotadas o enorme animal para salvar sua vítima. Mais tarde, cuidou de
algumas pessoas pobres e doentes, e isto a ajudou.
Foi após minha
volta de uma viagem de férias, que durou várias semanas, que tive a prova mais
convincente do efeito patogênico e excitante ocasionado pelos complexos de
representações produzidos durante suas absences, ou condition seconde,
e do fato de que esses complexos eram eliminados ao receberem expressão verbal
durante a hipnose. Nesse intervalo não fora efetuada nenhuma “cura pela fala”,
porque foi impossível persuadi-la a confiar o que tinha a dizer a qualquer
pessoa senão eu - nem mesmo ao Dr. B., a quem, sob outros aspectos, ela se
havia afeiçoado. Encontrei-a num estado moral deplorável, inerte, intratável,
mal-humorada e até mesmo malévola. Tornou-se claro por suas histórias noturnas
que sua veia imaginativa e poética se estava esgotando. O que ela relatava
dizia respeito, cada vez mais, a suas alucinações e, por exemplo, às coisas que
a haviam aborrecido nos últimos dias. Estas eram revestidas de uma forma
imaginativa, mas apenas formuladas em imagens estereotipadas, e não elaboradas
em produções poéticas. Mas a situação só ficou tolerável depois de eu haver
providenciado o retorno da paciente a Viena por uma semana e de, noite após
noite, fazer com que ela me contasse três a cinco histórias. Quando levei isso
a termo, tudo o que se acumulara durante as semanas de minha ausência fora
descarregado. Foi só então que se restabeleceu o ritmo anterior: no dia
seguinte àquele em que dava expressão verbal a suas fantasias, ela ficava
amável e alegre; no segundo dia, mais irritadiça e menos agradável e, no
terceiro, verdadeiramente “detestável”. Seu estado moral era uma função do
tempo decorrido desde a última expressão oral. Isso ocorria porque cada um dos
produtos espontâneos de sua imaginação e todos os fatos que tinham sido
assimilados pela parte patológica de sua mente persistiam como um estímulo
psíquico até serem narrados em sua hipnose, após o que deixavam inteiramente de
atuar.
Quando, no
outono, a paciente retornou a Viena (embora para uma casa diferente daquela em
que adoecera), sua condição era suportável, tanto física como mentalmente, pois
pouquíssimas de suas experiências - de fato, apenas as mais marcantes - eram
transformadas em estímulos psíquicos de maneira patológica. Eu tinha esperança
de uma melhora contínua e progressiva, desde que o permanente carregamento de
sua mente com novos estímulos pudesse ser evitado através da expressão verbal
dada a eles. Mas, de início, fiquei decepcionado. Em dezembro houve um
agravamento acentuado de seu estado psíquico. Ela voltou a ficar excitada,
taciturna e irritável. Não tinha mais nenhum “dia realmente bom”, mesmo quando
era impossível detectar alguma coisa que estivesse permanecendo “presa” dentro
dela. Em fins de dezembro, na época do Natal, a paciente ficou particularmente
inquieta e por uma semana inteira, nos fins de tarde, nada me disse de novo
além dos produtos imaginativos que havia elaborado dia a dia sob pressão de uma
angústia e emoção intensas durante o Natal de 1880 |um ano antes|. Quando as
séries eram concluídas, ela sentia um enorme alívio.
Já havia
transcorrido um ano desde que Anna se separara do pai e caíra de cama, e a
partir dessa época seu estado tornou-se mais claro e foi sistematizado de
maneira muito peculiar. Seus estados de consciência alternados, que se
caracterizavam pelo fato de que, a partir da manhã, suas absences (isto
é, o surgimento de sua condition seconde) sempre se tornavam mais
freqüentes à medida que o dia avançava e exerciam seu domínio absoluto até o
anoitecer - esses estados alternados tinham diferido um do outro, no passado,
pelo fato de o primeiro ser normal, e o segundo, alienado; agora, porém, eles
diferiam ainda mais pelo fato de que, no primeiro, ela estava vivendo, como o
restante de nós, no inverno de 1881-2, ao passo que, no segundo, vivia no
inverno de 1880-1 e se esquecera por completo de todos os eventos subseqüentes.
A única coisa que, não obstante, parecia permanecer consciente a maior parte do
tempo era o fato de que o pai morrera. Ela se via transportada ao ano anterior
com tal intensidade que, na casa nova, tinha alucinações com seu antigo quarto,
de modo que quando queria ir até a porta, tropeçava na estufa, que ficava situada
em relação à janela do mesmo modo que a porta em seu antigo quarto. A transição
de um estado para outro ocorria de forma espontânea, mas também podia ser
facilmente promovida por qualquer impressão sensorial que lembrasse o ano
anterior com nitidez. Bastava segurar uma laranja diante dos olhos dela (essa
fruta tinha constituído seu principal alimento durante a primeira parte da
doença) para que ela se visse transportada para o ano de 1881. Mas essa
transferência ao passado não ocorria de modo geral ou indefinido; ela revivia o
inverno anterior dia a dia. Eu só teria podido suspeitar de que isso
estava acontecendo, não fosse pelo fato de que todas as noites, durante a
hipnose, ela falava sobre o que a havia excitado no mesmo dia em 1881, e não
fosse pelo fato de um diário particular mantido pela mãe dela em 1881 ter
confirmado, sem sombra de dúvida, a ocorrência dos fatos subjacentes. Essa
revivescência do ano anterior continuou até que a doença chegasse a seu final,
em junho de 1882.
Também foi
interessante observar, nesse aspecto, a forma pela qual esses estímulos
psíquicos revividos, pertencentes a seu estado secundário, insinuavam-se em seu
primeiro estado, mais normal. Aconteceu, por exemplo, que certa manhã a
paciente me disse rindo que não tinha nenhuma idéia de qual era o problema, mas
estava com raiva de mim. Graças ao diário eu sabia o que estava ocorrendo, e
dito e feito, a situação foi revivida na hipnose do anoitecer; eu tinha
aborrecido muito a paciente na mesma noite, em 1881. Houve outra ocasião em que
ela me disse que havia algo errado com seus olhos: estava vendo as cores
erradas. Sabia estar usando um vestido marrom, mas o via como se fosse azul.
Logo verificamos que ela sabia distinguir todas as cores das folhas de teste
visual de forma correta e clara, e que a perturbação só se relacionava com o
material do vestido. O motivo foi que, durante o mesmo período em 1881, ela
estivera muito atarefada com a confecção de um roupão para o pai, que era feito
do mesmo material de seu atual vestido, porém era azul em vez de marrom. A
propósito, constatava-se com freqüência que essas lembranças emergentes
revelavam de antemão seu efeito; a perturbação do estado normal ocorria mais
cedo, e a lembrança era despertada de forma gradativa apenas em sua condition
seconde.
Sua hipnose da
noite ficava assim intensamente sobrecarregada, pois tínhamos que escoar pela
fala não só seus produtos imaginários contemporâneos, como também os eventos e
“vexations” de 1881. (Felizmente, nessa época eu já a havia aliviado dos
produtos imaginários daquele ano.) Mas, além de tudo isso, o trabalho a ser
executado pela paciente e por seu médico era imensamente aumentado por um
terceiro grupo de perturbações isoladas, que tinham de ser eliminadas da mesma
maneira. Tratava-se dos eventos psíquicos em jogo no período de incubação da
moléstia, entre julho e dezembro de 1880; eles é que haviam produzido todos os
fenômenos histéricos e, quando receberam expressão verbal, os sintomas
desapareceram.
Quando isso
aconteceu pela primeira vez - quando, em decorrência de um enunciado acidental
e espontâneo dessa natureza, durante a hipnose da noite, uma perturbação que
havia persistido por um tempo considerável veio a desaparecer - fiquei
extremamente surpreso. Era verão, numa época de calor intenso, e a paciente
sofria de uma sede horrível, pois, sem que pudesse explicar a causa, viu-se de
repente impossibilitada de beber. Apanhava o copo de água desejado, mas, assim
que o tocava com os lábios, repelia-o como alguém que sofresse de hidrofobia.
Ao fazê-lo, ficava obviamente numa absence por alguns segundos. Para
mitigar a sede que a martirizava, vivia somente de frutas, como melões, etc.
Quando isso já durava perto de seis semanas, um dia, durante a hipnose, ela
resmungou qualquer coisa a respeito de sua dama de companhia inglesa, de quem
não gostava, e começou então a descrever, com demonstrações da maior
repugnância, como fora certa vez ao quarto dessa senhora e como lá pudera ver o
cãozinho dela - criatura nojenta! - bebendo num copo. A paciente não tinha dito
nada, pois quisera ser gentil. Depois de exteriorizar energicamente a cólera
que havia contido,pediu para beber alguma coisa, bebeu sem qualquer dificuldade
uma grande quantidade de água e despertou da hipnose com o copo nos lábios. A partir
daí, a perturbação desapareceu de uma vez por todas. Vários outros caprichos
extremamente obstinados foram eliminados de forma semelhante, depois de ela
haver descrito as experiências que os tinham ocasionado. A paciente deu um
grande passo à frente quando o primeiro de seus sintomas crônicos desapareceu
da mesma maneira - a contratura da perna direita, que, é verdade, já havia
diminuído muito. Esses achados - de que, no caso dessa paciente, os fenômenos
histéricos desapareciam tão logo o fato que os havia provocado era reproduzido
em sua hipnose - tornaram possível chegar-se a uma técnica terapêutica que nada
deixava a desejar em sua coerência lógica e sua aplicação sistemática. Cada
sintoma individual nesse caso complicado era considerado de forma isolada;
todas as ocasiões em que tinha surgido eram descritas na ordem inversa,
começando pela época em que a paciente ficara acamada e retrocedendo até o fato
que levara à sua primeira aparição. Quando este era descrito, o sintoma era
eliminado de maneira permanente.
Dessa forma,
suas paralisias espásticas e anestesias, os diferentes distúrbios da visão e da
audição, as nevralgias, tosses, tremores, etc., e por fim seus distúrbios da
fala foram “removidos pela fala”. Entre suas perturbações da visão, os seguintes,
por exemplo, foram eliminados um de cada vez: o estrabismo convergente com
diplopia; o desvio de ambos os olhos para a direita, de modo que quando a mão
se estendia para apanhar algo, sempre se dirigia para a esquerda do objeto; a
restrição do campo visual; a ambliopia central; a macropsia; a visão de uma
caveira em vez do pai; e a incapacidade para a leitura. Apenas alguns fenômenos
dispersos (como, por exemplo, a extensão das paralisias espásticas para o lado
esquerdo do corpo), que surgiram enquanto ela estava confinada ao leito,
permaneceram intocados por esse processo de análise, sendo provável, na
realidade, que de fato não tivessem nenhuma causa psíquica imediata | ver em
[1]-[2]|.
Revelou-se
inteiramente impraticável abreviar o trabalho pela tentativa de evocar de
imediato em sua memória a primeira causa provocadora de seus sintomas. Ela era
incapaz de descobri-la, ficava confusa e as coisas se processavam ainda com
maior lentidão do que se lhe fosse permitido, de modo tranqüilo e firme, retomar
o fio retrospectivo das recordações em que se havia envolvido. Dado que este
último método, porém, levava muito tempo na hipnose noturna, em vista de ela
estar muito tensa e profundamente perturbada por “eliminar pela fala” os dois
outros grupos de experiências -e também em virtude do fato de que as
reminiscências precisavam de tempo antes para poderem atingir uma nitidez
suficiente - elaboramos o seguinte método. Eu costumava visitá-la pela manhã e
hipnotizá-la. (Alguns métodos muito simples para isso foram obtidos de forma
empírica.) A seguir, pedia-lhe que concentrasse os pensamentos no sintoma que
estávamos tratando no momento e me dissesse as ocasiões em que ele surgira. A
paciente passava a descrever em rápida sucessão e em frases sucintas os fatos externos
em causa, os quais eu anotava. Durante sua subseqüente hipnose noturna, ela
então me fazia, com a ajuda de minhas anotações, um relato razoavelmente
minucioso dessas circunstâncias.
Um exemplo
revelará a forma completa pela qual ela realizava isso. Nossa experiência comum
era que a paciente não ouvisse quando lhe era dirigida a palavra. Foi possível
diferenciar da seguinte forma esse hábito passageiro de não ouvir:
(a) Não ouvir
quando alguém entrava, enquanto se abstraía em seus pensamentos. 108 exemplos
detalhados e isolados desses casos, com menção das pessoas e circunstâncias,
muitas vezes com datas. Primeiro exemplo: não ouvir o pai entrar.
(b) Não
compreender quando várias pessoas conversavam. 27 exemplos. Primeiro exemplo: o
pai, mais uma vez, e um conhecido.
(c) Não ouvir
quando estava sozinha e lhe dirigiam a palavra diretamente. 50 exemplos.
Origem: o pai tendo em vão lhe pedido vinho.
(d) Surdez
ocasionada por ter sido sacudida (numa carruagem, etc.). 15 exemplos. Origem:
por ter sido sacudida com raiva pelo irmão mais novo quando este a surpreendeu,
certa noite, com o ouvido colado ao quarto do doente.
(e) Surdez
provocada ao assustar-se com um ruído. 37 exemplos. Origem: um acesso de
sufocação do pai, causado por ter engolido mal.
(f) Surdez
durante absence profunda. 12 exemplos.
(g) Surdez
ocasionada por ouvir mal durante muito tempo, de modo que, quando lhe dirigiam
a palavra, deixava de ouvir. 54 exemplos.
É claro que
todos esse episódios eram, numa ampla medida, idênticos, no sentido de que era
possível relacioná-los com estados de alheamento, absences ou susto.
Mas, na memória da paciente, eram diferenciados de modo tão claro que, se
acontecia ela cometer algum erro em sua seqüência, era obrigada a corrigir-se e
pô-los na ordem certa; se isso não fosse feito, seu relato ficava paralisado.
Os fatos que ela descrevia eram tão sem interesse e significação, e narrados
com tanta riqueza de detalhes, que não se poderia suspeitar de que tivessem
sido inventados. Muitos desses incidentes consistiam em experiências puramente
internas e, assim, não podiam ser verificados; outros (ou as circunstâncias que
os cercavam) estavam na lembrança das pessoas do ambiente de Anna.
Também esse
exemplo apresentava uma característica que era sempre observável quando um
sintoma estava sendo “eliminado pela fala”: o sintoma específico surgia com
maior intensidade enquanto ela o abordava. Assim, durante a análise de sua
incapacidade de ouvir, ela ficou tão surda que numa parte do tempo fui obrigado
a comunicar-me com ela por escrito. A primeira causa provocadora costumava ser
um susto de alguma espécie, experimentado enquanto ela cuidava do pai - alguma
negligência da parte dela, por exemplo.
O trabalho de
recordação nem sempre era fácil e, algumas vezes, a paciente tinha que fazer
grandes esforços. Certa ocasião, todo o nosso progresso ficou obstruído por
algum tempo porque uma lembrança recusava-se a emergir. Tratava-se de uma
alucinação particularmente pavorosa. Quando cuidava do pai, vira seu rosto como
se fosse uma caveira. Ela e as pessoas a seu redor lembravam que, certa vez,
enquanto parecia ainda gozar de boa saúde, ela fizera uma visita a um de seus
parentes. Abrira a porta e imediatamente caíra no chão, inconsciente. Para
superar a obstrução a nosso progresso, ela tornou a visitar o mesmo lugar e, ao
entrar no quarto, mais uma vez caiu no chão, inconsciente. Durante a hipnose
noturna seguinte, o obstáculo foi superado. Ao entrar no quarto, ela vira seu
rosto pálido refletido num espelho que pendia defronte à porta, mas não fora a
si mesma que tinha visto, e sim o pai com um rosto de caveira. - Muitas vezes
observamos que seu pavor de uma lembrança, como no presente exemplo, inibia o
surgimento da mesma, e esta precisava ser provocada à força pela paciente ou
pelo médico.
O seguinte
incidente, entre outros, ilustra o alto grau de coerência lógica de seus
estados. Durante esse período, como já se teve ocasião de explicar, a paciente
estava sempre em sua condition seconde - isto é, no ano de 1881 - à
noite. Certa ocasião, despertou durante a noite, declarando ter sido levada
para longe de casa mais uma vez, e ficou de tal forma excitada que todas as
pessoas da casa se alarmaram. A razão foi simples. Na noite anterior, a cura
pela fala havia dissipado o distúrbio da visão, e isso também se aplicava a sua
condition seconde. Assim, ao acordar durante a noite, ela se viu num
quarto estranho, pois a família se mudara na primavera de 1881. Acontecimentos
desagradáveis dessa espécie eram evitados por mim pelo fato de (a pedido da
paciente) eu sempre fechar seus olhos à noite e dar-lhe a sugestão de que ela
não poderia abri-los até que eu próprio o fizesse na manhã seguinte. Essa
perturbação só se repetiu uma vez, quando a paciente gritou num sonho e abriu
os olhos ao despertar dele.
Visto que essa
trabalhosa análise de seus sintomas versou sobre os meses do verão de 1880, o
período preparatório de sua doença, consegui uma compreensão completa da
incubação e patogênese desse caso de histeria, que agora passarei a descrever
de forma sucinta.
Em julho de
1880, quando se encontrava no campo, o pai de Anna adoeceu gravemente em
decorrência de um abscesso subpleural. Ela dividia com a mãe as tarefas de
cuidar do enfermo. Certa vez, acordou de madrugada, muito ansiosa pelo doente,
que estava com febre alta; e ela estava sob a tensão de aguardar a chegada de
um cirurgião de Viena que iria operá-lo. Sua mãe se ausentara por algum tempo,
e Anna, sentada à cabeceira do doente, pôs o braço direito sobre o espaldar da
cadeira. Entrou num estado de devaneio e viu, como se viesse da parede, uma
cobra negra que se aproximava do enfermo para mordê-lo. (É muito provável que,
no terreno situado atrás da casa, algumas cobras tivessem de fato aparecido
anteriormente, assustando a moça e fornecendo agora o material para a
alucinação.) Ela tentou manter a cobra a distância, mas estava como que
paralisada. O braço direito, que pendia sobre o espaldar da cadeira, ficara
dormente, insensível e parético; e quando ela o contemplou seus dedos se
transformaram em cobrinhas cujas cabeças eram caveiras (as unhas). (É provável
que ela tenha tentado afugentar a cobra com o braço direito paralisado e por isso
a anestesia e a paralisia do braço se associaram com a alucinação da cobra.)
Quando a cobra desapareceu, Anna, aterrorizada, tentou rezar. Mas não achou
palavras em idioma algum, até que, lembrando-se de um poema infantil em inglês,
pôde pensar e rezar nessa língua. O apito do trem que trazia o médico por ela
esperado desfez o encanto.
No dia seguinte,
durante um jogo, Anna atirou uma argola em alguns arbustos e, quando foi
buscá-la, um galho recurvado fez com que ela revivesse a alucinação da cobra, e
ao mesmo tempo seu braço direito ficou distendido com rigidez. A partir de
então, ocorria invariavelmente a mesma coisa sempre que a alucinação era
recordada por algum objeto com aparência mais ou menos semelhante à de uma
cobra. Essa alucinação, contudo, bem como a contratura, só apareciam durante as
curtas absences, que se tornaram cada vez mais freqüentes a partir
daquela noite. (A contratura só veio a se estabilizar em dezembro, quando a
paciente ficou inteiramente prostrada e acamada de forma permanente.) Como
resultado de algum fato particular cujo registro não consigo encontrar em
minhas anotações e do qual não me recordo mais, a contratura da perna direita
foi acrescida à do braço direito.
Sua tendência às
absences auto-hipnóticas fixou-se a partir daquele momento. Na manhã
seguinte à noite que descrevi, enquanto esperava a chegada do cirurgião, Anna
caiu num tal estado de alheamento que ele por fim chegou ao quarto sem que ela
o ouvisse aproximar-se. Sua angústia persistente interferia com a ingestão de
alimentos e conduziu aos poucos a intensas sensações de náusea. Afora isso, a
rigor, cada um de seus sintomas histéricos surgiu sob a ação de um afeto. Não é
bem certo se em cada um dos casos houve um estado momentâneo de absence,
mas isso parece provável em vista do fato de que, em seu estado de vigília, a
paciente ficava totalmente alheia ao que havia acontecido.
Alguns de seus
sintomas, contudo, parecem não haver surgido em suas absences, mas
apenas quando de algum afeto durante sua vida de vigília; se foi esse o caso,
porém, eles reapareciam da mesma forma. Assim pudemos rastrear todas as suas
diversas perturbações da visão até diferentes causas determinantes mais ou
menos claras. Por exemplo, certa ocasião, quando, com lágrimas nos olhos, se
achava sentada à cabeceira do pai, ele de repente lhe perguntou que horas eram.
Ela não conseguia enxergar com nitidez; fez um grande esforço e aproximou o
relógio dos olhos. O mostrador pareceu-lhe então muito grande, explicando assim
sua macropsia e seu estrabismo convergente. Ou então ela se esforçou para
reprimir as lágrimas para que o doente não as visse.
Uma discussão,
durante a qual Anna reprimiu uma resposta à altura, provocou um espasmo de
glote, e isso se repetia em todas as ocasiões semelhantes.
Perdeu a capacidade
de falar (a) como resultado do medo, depois de sua primeira alucinação à noite,
(b) após haver reprimido uma observação noutra ocasião (por inibição ativa),
(c) depois de ter sido injustamente culpada de algo e (d) em todas as ocasiões
análogas (quando se sentia mortificada). Começou a tossir pela primeira vez
quando, certa feita, sentada à cabeceira do pai, ouviu o som de música para
dançar que vinha de uma casa vizinha sentiu um súbito desejo de estar lá e foi
dominada por auto-recriminações. A partir de então, durante toda a sua doença,
reagia a qualquer música acentuadamente ritmada com uma tussis nervosa.
Não lamento
muito que o fato de minhas anotações serem incompletas torne impossível para
mim enumerar todas as ocasiões em que seus vários sintomas histéricos
apareciam. Ela própria os relatava a mim em cada caso isolado, com uma única
exceção por mim mencionada |em [1] e também mais adiante, em [1]-[2]|; e, como
já disse, todos os sintomas desapareciam depois de ela descrever sua primeira ocorrência.
Também dessa
maneira toda a doença desapareceu. A própria paciente formara o firme propósito
de que todo o tratamento deveria terminar no dia em que fizesse um ano da data
em que foi levada para o campo |7 de junho (ver em [1])|. Por conseguinte, no
começo de junho, ela iniciou a “cura pela fala” com a maior energia. No último
dia - recorrendo, como ajuda, a uma nova arrumação do quarto, a fim de
assemelhá-lo ao quarto de doente do pai - ela reproduziu a aterrorizante
alucinação já descrita acima e que constitui a raiz de toda a sua doença.
Durante a cena original, Anna só havia conseguido pensar e rezar em inglês;
mas, logo após sua reprodução, pôde falar alemão. Além disso, libertou-se das
inúmeras perturbações que exibira antes. Depois, saiu de Viena e viajou por
algum tempo, mas passou-se um período considerável antes que recuperasse
inteiramente seu equilíbrio mental. Desde então tem gozado de perfeita saúde.
Embora eu tenha
suprimido um grande número de detalhes bem interessantes, este caso clínico de
Anna O. tornou-se mais volumoso do que pareceria necessário para uma doença
histérica que, em si mesma, não foi de caráter inusitado. Entretanto, foi
impossível descrever o caso sem entrar em pormenores, e suas características me
parecem suficientemente importantes para justificar esta exposição extensa. Da
mesma maneira, os ovos dos equinodermos são importantes na embriologia, não
porque o ouriço-do-mar seja um animal interessante, mas porque o protoplasma de
seus ovos é transparente e porque o que neles observamos lança luz, desse modo,
sobre o provável curso dos acontecimentos nos ovos cujo protoplasma é opaco. O
interesse do presente caso me parece residir, acima de tudo, na extrema clareza
e inteligibilidade de sua patogênese.
Havia nessa
moça, enquanto ainda gozava de perfeita saúde, duas características psíquicas
que atuaram como causas de predisposição para sua subseqüente doença histérica:
(1)Sua vida
familiar monótona e a ausência de ocupação intelectual adequada deixavam-na com
um excedente não utilizado de vivacidade e energia mentais, tendo esse
excedente encontrado uma saída na atividade constante de sua imaginação.
(2)Isso a levou
ao hábito dos devaneios (seu “teatro particular”), que lançou as bases para uma
dissociação de sua personalidade mental. Não obstante, uma dissociação desse
grau ainda se acha nos limites da normalidade. Os devaneios e as reflexões
durante ocupações mais ou menos mecânicas não implicam, em si mesmos, uma divisão
patológica da consciência visto que, ao serem interrompidos - quando, por
exemplo, alguém dirige a palavra à pessoa - a unidade normal da consciência é
restaurada; não implicam tampouco a existência de amnésia. No caso de Anna O.,
porém, esse hábito preparou o terreno em que o afeto de angústia e pavor pôde
estabelecer-se na forma que descrevi, tão logo esse afeto transformou os
devaneios habituais da paciente numa absence alucinatória. É notável que
a primeira manifestação da doença em seus primórdios já exibisse de modo tão
completo suas principais características, que depois permaneceram inalteradas
por quase dois anos. Estas compreendiam a existência de um segundo estado de
consciência, que surgiu primeiro como uma absence temporária e depois se organizou
sob a forma de uma “double conscience”; uma inibição da fala,
determinada pelo afeto de angústia, que encontrou uma descarga fortuita nos
versos em língua inglesa; posteriormente, a parafasia e a perda da língua
materna, que foi substituída por um inglês excelente; e, por fim, a paralisia
acidental do braço direito, em virtude da pressão, que depois evoluiu para uma
paresia espástica e anestesia do lado direito. O mecanismo pelo qual esta
segunda afecção veio a existir mostrou-se em inteira consonância com a teoria
da histeria traumática de Charcot - um ligeiro trauma ocorrido durante um
estado de hipnose.
Mas, enquanto a
paralisia experimentalmente provocada por Charcot em seus pacientes se
estabilizava de imediato, e enquanto a paralisia causada em vítimas de neuroses
traumáticas devidas a grave choque traumático logo se estabelece, o sistema
nervoso dessa moça ofereceu uma resistência bem-sucedida durante quatro meses.
Sua contratura, bem como as outras perturbações que se acompanharam, só se
estabeleceu durante as curtas absences e em sua condition seconde,
deixando-a, durante seu estado normal, com pleno controle do corpo, e em posse
de seus sentidos, de modo que nada foi observado nem por ela própria nem por
aqueles que a cercavam, se bem que a atenção deles estivesse enfocada no pai
enfermo da paciente e, por conseguinte, desviada dela.
Entretanto, uma
vez que suas absences, com sua amnésia total, e fenômenos histéricos
concomitantes, tornaram-se cada vez mais freqüentes a partir da época de sua
primeira auto-hipnose alucinatória, as oportunidades se multiplicaram para a
formação de novos sintomas da mesma espécie, e os que já se haviam formado
tornaram-se mais fortemente entrincheirados pela freqüente repetição. Além
disso, qualquer afeto angustiante súbito passou gradativamente a ter o mesmo
resultado de uma absence (embora, a rigor, seja possível que esses
afetos causassem de fato uma absence temporária em todos os
casos); algumas coincidências fortuitas formaram associações patológicas e
perturbações sensoriais ou motoras, que daí por diante passaram a surgir junto
com o afeto. Mas até então isso só havia ocorrido durante momentos passageiros.
Antes de ficar permanentemente acamada, a paciente já havia desenvolvido todo o
conjunto de fenômenos histéricos, sem que ninguém o soubesse. Só depois de ela
ter entrado em colapso completo, graças ao esgotamento acarretado pela falta de
alimentos, insônia e angústia constante, e só depois de ter começado a passar
mais tempo em sua condition seconde do que em seu estado normal, foi que
os fenômenos histéricos se estenderam a este último e passaram da condição de
sintomas agudos intermitentes à de sintomas crônicos.
Surge agora a
questão de determinar até que ponto se pode confiar nas declarações da paciente
e de saber se as ocasiões e o modo de origem dos fenômenos foram realmente tais
como ela os representou. Quanto aos fatos mais importantes e fundamentais, o
grau de confiabilidade de seu relato me parece estar fora de dúvida. Quanto ao
fato de os sintomas desaparecerem depois de “verbalizados”, não posso empregar
isso como prova; é bem possível que isso se explique pela sugestão. Mas sempre
achei que a paciente era inteiramente fiel à verdade e digna de toda confiança.
As coisas que me relatou estavam intimamente vinculadas com o que lhe era mais
sagrado. O que quer que pudesse ser verificado através de outras pessoas era
plenamente confirmado. Até mesmo a moça mais bem-dotada seria incapaz de
engendrar uma trama de dados com tal grau de coerência interna como o exibido
na história deste caso. Não se pode duvidar, contudo, de que precisamente sua
coerência talvez a tenha levado (em absoluta boa-fé) a atribuir a alguns dos
seus sintomas uma causa desencadeadora que na verdade não possuíam. Mas também
a essa suspeita considero injustificada. A própria insignificância de tantas
dessas causas e o caráter irracional de tantas das conexões envolvidas depõem a
favor de sua realidade. A paciente não conseguia entender como é que a música
para dançar a fazia tossir; uma construção dessa natureza é por demais
destituída de sentido para ter sido deliberada. (Pareceu-me muito provável,
aliás, que cada um de seus dramas de consciência acarretasse um de seus
habituais espasmos da glote e que os impulsos motores que sentia - pois ela
gostava muito de dançar - transformassem o espasmo numa tussis nervosa.)
Por conseguinte, em minha opinião, as declarações da paciente mereciam toda a
confiança e correspondiam aos fatos.
E agora devemos
considerar até que ponto é justificável supor que a histeria se produza de
maneira análoga em outros pacientes e que o processo seja semelhante quando
nenhuma condition seconde tão claramente distinta tenha-se organizado.
Para sustentar esse ponto de vista, posso assinalar o fato de que, também no
presente caso, a história da evolução da doença teria permanecido inteiramente
desconhecida, tanto da paciente quanto do médico, se não fosse a peculiaridade
de a paciente se recordar de coisas na hipnose, como descrevi, e de conseguir
relacioná-las. Enquanto estava em seu estado de vigília, ela não tinha nenhum
conhecimento de tudo isso. Portanto, é impossível, nos outros casos, chegar-se
ao que está acontecendo através de um exame dos pacientes em estado de vigília,
pois, com a melhor boa vontade do mundo, eles não podem dar informação alguma a
ninguém. E já ressaltei como as pessoas que cercavam a paciente eram pouco
capazes de observar aquilo que estava acontecendo. Por conseguinte, só seria
possível descobrir o estado de coisas em outros pacientes por meio de um método
semelhante ao que foi proporcionado, no caso de Anna O., por suas
auto-hipnoses. Por enquanto, podemos apenas externar o ponto de vista de que
seqüências de fatos semelhantes aos aqui descritos ocorrem com maior freqüência
do que nos levou a supor nossa ignorância do mecanismo patogênico em causa.
Quando a
paciente ficou de cama e sua consciência passou a oscilar de forma constante
entre o estado normal e o “secundário”, toda a série de sintomas histéricos,
que haviam surgido isoladamente e até então se achavam latentes, tornou-se
manifesta, como já vimos, como sintomas crônicos. Acrescentou-se então a estes
um novo grupo de fenômenos que pareciam ter tido uma origem diferente: as
paralisias espásticas das extremidades esquerdas e a paresia dos músculos
elevadores da cabeça. Eu os distingo dos outros fenômenos porque, uma vez que
tivessem desaparecido, nunca mais retornavam, mesmo na forma mais breve ou
branda, ou durante a fase conclusiva e de recuperação, quando todos os outros
sintomas se tornaram de novo ativos após terem ficado inativos por algum tempo.
Da mesma forma, jamais vieram à tona nas análises hipnóticas e não foram
rastreados até as fontes emocionais ou imaginativas. Inclino-me a pensar,
portanto, que seu surgimento não se deveu ao mesmo processo psíquico dos outros
sintomas, mas que cabe atribuí-lo a uma extensão secundária daquela condição
desconhecida que constitui o fundamento somático dos fenômenos histéricos.
Durante toda a
doença seus dois estados de consciência persistiram lado a lado: o primário, em
que ela era bastante normal psiquicamente, e o secundário, que bem pode ser
assemelhado a um sonho, em vista de sua abundância de produções imaginárias e
alucinações, suas grandes lacunas de memória e a falta de inibição e controle
em suas associações. Nesse estado secundário, a paciente ficava numa situação
de alienação. O fato de que toda a condição mental da paciente estava na
dependência da intrusão desse estado secundário no normal parece lançar uma
considerável luz sobre pelo menos um tipo de psicose histérica. Cada uma de
suas hipnoses à noite oferecia provas de que a paciente estava inteiramente
lúcida e bem ordenada em sua mente e normal no tocante a seus sentimentos e a
sua volição, desde que nenhum dos produtos de seu estado secundário atuasse
como um estímulo “no inconsciente”. A psicose extremamente acentuada que surgia
sempre que havia um intervalo considerável nesse processo de desabafo revelou o
grau em que esses produtos influenciavam os fatos psíquicos de seu estado
latentes, tornou-se manifesta, como já vimos, como sintomas crônicos.
Acrescentou-se então a estes um novo grupo de fenômenos que pareciam ter tido
uma origem diferente: as paralisias espásticas das extremidades esquerdas e a
paresia dos músculos elevadores da cabeça. Eu os distingo dos outros fenômenos
porque, uma vez que tivessem desaparecido, nunca mais retornavam, mesmo na
forma mais breve ou branda, ou durante a fase conclusiva e de recuperação,
quando todos os outros sintomas se tornaram de novo ativos após terem ficado
inativos por algum tempo. Da mesma forma, jamais vieram à tona nas análises
hipnóticas e não foram rastreados até as fontes emocionais ou imaginativas.
Inclino-me a pensar, portanto, que seu surgimento não se deveu ao mesmo
processo psíquico dos outros sintomas, mas que cabe atribuí-lo a uma extensão
secundária daquela condição desconhecida que constitui o fundamento somático
dos fenômenos histéricos.
Durante toda a
doença seus dois estados de consciência persistiram lado a lado: o primário, em
que ela era bastante normal psiquicamente, e o secundário, que bem pode ser
assemelhado a um sonho, em vista de sua abundância de produções imaginárias e
alucinações, suas grandes lacunas de memória e a falta de inibição e controle
em suas associações. Nesse estado secundário, a paciente ficava numa situação
de alienação. O fato de que toda a condição mental da paciente estava na
dependência da intrusão desse estado secundário no normal parece lançar uma
considerável luz sobre pelo menos um tipo de psicose histérica. Cada uma de
suas hipnoses à noite oferecia provas de que a paciente estava inteiramente
lúcida e bem ordenada em sua mente e normal no tocante a seus sentimentos e a
sua volição, desde que nenhum dos produtos de seu estado secundário atuasse
como um estímulo “no inconsciente”. A psicose extremamente acentuada que surgia
sempre que havia um intervalo considerável nesse processo de desabafo revelou o
grau em que esses produtos influenciavam os fatos psíquicos de seu estado
“normal”. É difícil evitar expressar a situação afirmando que a paciente estava
dividida em duas personalidades, das quais uma era mentalmente normal, e a
outra, insana. Em minha opinião, a nítida divisão entre os dois estados nessa
paciente só vem revelar com maior clareza aquilo que ocasionou um grande número
de problemas inexplicados em muitos outros pacientes histéricos. Foi
especialmente observável, em Anna O., o grau em que os produtos de seu “mau
eu”, conforme ela própria o denominava, afetavam seu senso ético mental. Se
esses produtos não tivessem sido continuamente eliminados, ter-nos-íamos
confrontado com uma histérica do tipo malévolo - teimosa, indolente,
desagradável e rabugenta; mas o que se passava era que, após a remoção desses
estímulos, seu verdadeiro caráter, que era o oposto de tudo isso, sempre
ressurgia de imediato.
Não obstante,
embora seus dois estados fossem assim nitidamente separados, não só o estado
secundário invadia o primeiro, como também - e isso se dava com freqüência em
todas as ocasiões, mesmo quando ela se encontrava numa condição muito ruim - um
observador lúcido e calmo ficava sentado, conforme ela dizia, num canto de seu
cérebro, contemplando toda aquela loucura a seu redor. Essa persistência do
pensamento claro enquanto a psicose estava em pleno processo encontrava
expressão numa forma muito curiosa. Numa ocasião em que, depois de terem
cessado os fenômenos histéricos, a paciente estava atravessando uma depressão
temporária, ela apresentou grande número de temores e auto-recriminações
infantis, entre eles a idéia de que de modo algum estivera doente e tudo aquilo
fora simulado. Observações semelhantes, como sabemos, têm sido feitas com
freqüência. Depois que um distúrbio dessa natureza desapareceu e os dois
estados de consciência voltaram a se fundir num só, os pacientes, lançando um
olhar retrospectivo para o passado, se vêem como a personalidade única e
indivisa que se dava conta de todo aquele absurdo; acham que poderiam tê-lo
impedido se assim tivessem desejado e se sentem como se tivessem praticado todo
o mal de forma deliberada. - Deve-se acrescentar que esse raciocínio normal que
persistia durante o estado secundário deve ter variado enormemente de
intensidade e, muitas vezes, até deve ter estado ausente de todo.
Já descrevi o
surpreendente fato de que, do começo ao fim da doença, todos os estímulos
decorrentes do estado secundário, junto com suas conseqüências, eram eliminados
de maneira permanente ao receberem expressão verbal na hipnose, e resta-me
apenas acrescentar a certeza de que isso não foi uma invenção minha imposta à
paciente por sugestão. Fui apanhado inteiramente de surpresa, e só depois de
todos os sintomas serem assim eliminados em toda uma série de situações é que
desenvolvi uma técnica terapêutica a partir dessa experiência.
A cura final da
histeria merece mais algumas palavras. Ela foi acompanhada, como já tive
oportunidade de dizer, por perturbações consideráveis e uma deterioração do
estado mental da paciente. Tive impressão muito forte de que os numerosos
produtos do seu estado secundário que ficaram latentes forçavam agora sua
entrada na consciência; e embora de início fossem recordados apenas em seu
estado secundário, estavam ainda assim sobrecarregando e perturbando seu estado
normal. Resta verificar se não deveríamos procurar a mesma origem nos outros
casos em que a histeria crônica termina numa psicose.
CASO
2 - SRA EMMY VON N., IDADE 40 ANOS, DA LIVÔNIA (FREUD)
Em 1º de maio de
1889, comecei o tratamento de uma senhora de cerca de quarenta anos, cujos
sintomas e personalidade me interessaram de tal forma que lhe dediquei grande
parte de meu tempo e decidi fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para
recuperá-la. Era histérica e podia ser posta com a maior facilidade num estado
de sonambulismo; ao tomar ciência disso, resolvi fazer uso da técnica de
investigação sob hipnose, de Breuer, que eu viera a conhecer pelo relato que
ele me fizera do bem-sucedido tratamento de sua primeira paciente. Essa foi
minha primeira tentativa de lidar com aquele método terapêutico | ver em [1] e
[2]|. Estava ainda longe de tê-lo dominado; de fato, não fui bastante à frente
na análise dos sintomas, nem o segui de maneira suficientemente sistemática.
Talvez possa apresentar melhor um quadro da condição da paciente e de minha
conduta clínica reproduzindo as anotações que fiz todas as noites durante as
três primeiras semanas do tratamento. Onde quer que a experiência posterior me
haja proporcionado melhor compreensão, eu a incorporarei em notas de rodapé e
comentários intercalados.
1º de maio de
1889. - Essa senhora, quando a vi pela primeira
vez, estava deitava num sofá com a cabeça repousando numa almofada de couro.
Parecia ainda jovem e as feições eram delicadas e marcantes. O rosto tinha uma
expressão tensa e penosa, as pálpebras estavam cerradas e os olhos, baixos; a
testa apresentava profundas rugas e as dobras nasolabiais eram acentuadas.
Falava em voz baixa, como se tivesse dificuldade, e a fala ficava de tempos em
tempos sujeita a interrupções espásticas, a ponto de ela gaguejar. Conservava
os dedos firmemente entrelaçados, e eles exibiam uma agitação incessante,
parecida com a que ocorre na atetose. Havia freqüentes movimentos convulsivos
semelhantes a tiques, no rosto e nos músculos do pescoço, durante os quais
alguns destes, especialmente o esternoclidomastóideo direito, se tornavam muito
salientes. Além disso, ela interrompia com freqüência suas observações emitindo
um curioso “estalido” com a boca, um som impossível de imitar.
O que a paciente
me dizia era perfeitamente coerente e revelava um grau inusitado de instrução e
inteligência. Isso fazia com que parecesse ainda mais estranho que, a cada dois
ou três minutos, ela de súbito se calasse, contorcesse o rosto numa expressão
de horror e nojo, estendesse a mão em minha direção, abrindo e entortando os
dedos, e exclamasse numa voz alterada, carregada de angústia: “Fique quieto! -
Não diga nada! - Não me toque!” É provável que estivesse sob a influência de
alguma alucinação recorrente de natureza apavorante e que, com essa fórmula,
estivesse mantendo afastado o material intromissivo. Essas interpolações
chegavam ao fim tão de súbito quanto começavam, e a paciente retomava seu
relato anterior, sem dar continuidade a sua excitação momentânea e sem explicar
ou pedir desculpas por seu comportamento - provavelmente, portanto, sem que ela
própria notasse a interpolação.
Tomei
conhecimento do seguinte sobre as circunstâncias de sua vida: Sua família era
originária da Alemanha Central, mas duas de suas gerações haviam fixado
residência nas províncias bálticas da Rússia, onde possuía grandes
propriedades. Ela era a décima terceira de quatorze filhos. Apenas quatro
dentre eles sobreviveram. A paciente recebeu uma educação cuidadosa, mas sob a
disciplina rígida de uma mãe excessivamente enérgica e severa. Quando contava
vinte e três anos, casou-se com um homem muito bem-dotado e capaz, que
alcançara uma posição elevada como grande industrial, mas que era muito mais
velho do que ela. Depois de um casamento de curta duração, ele morreu de
derrame cerebral. A esse fato, bem como à tarefa de educar as duas filhas,
então com dezesseis e quatorze anos, muitas vezes enfermas e que sofriam de
distúrbios nervosos, ela atribuía sua própria doença. Desde a morte do marido,
quatorze anos antes, vivera constantemente doente, com variados graus de
gravidade. Há quatro anos, seu estado sofrera uma melhora temporária com uma
série de massagens combinadas com banhos elétricos. Afora isso, todos os seus
esforços para melhorar de saúde têm sido infrutíferos. Ela viajou muito e tem
um vivo interesse por muitas coisas. Atualmente, mora numa casa de campo num
ponto do Báltico, perto de uma grande cidade. Há vários meses tem estado outra
vez muito doente, sofrendo de depressão e insônia e atormentada por dores; foi
até Abbazia na vã esperança de obter melhoras, e nas últimas seis semanas está
em Viena, até agora sob os cuidados de um médico de excelente reputação.
Sugeri que ela
se separasse das duas filhas, que têm governanta, e se internasse numa casa de
saúde, onde eu poderia vê-la todos os dias. Concordou com isso sem levantar a
menor objeção.
Na noite de 2
de maio visitei-a na casa de saúde. Notei que se assustava muito sempre que
a porta se abria de modo inesperado. Assim, providenciei para que, ao
visitá-la, as enfermeiras e os médicos internos batessem com força na porta e
só entrassem depois de ela dizer que podiam fazê-lo. Mesmo assim, ela ainda
fazia trejeitos faciais e dava um pulo toda vez que alguém entrava.
Sua principal
queixa hoje foi sobre sensações de frio e dor na perna esquerda, que se
originavam nas costas, acima da crista do ilíaco. Ordenei que lhe dessem banhos
quentes e lhe aplicarei massagens por todo o corpo duas vezes ao dia.
Ela é uma
excelente paciente para o hipnotismo. Bastou eu levantar um dedo diante dela e
ordenar-lhe que dormisse para que se reclinasse com uma expressão atordoada e
confusa. Sugeri que ela dormiria bem, que todos os seus sintomas melhorariam, e
assim por diante. Ela ouviu tudo isso com os olhos fechados, mas sem dúvida com
uma atenção inconfundivelmente concentrada, e suas feições aos poucos se
relaxaram e assumiram uma aparência pacífica. Depois dessa primeira hipnose,
conservou uma tênue lembrança de minhas palavras, mas, já na segunda, houve
completo sonambulismo (com amnésia). Tinha-a avisado de que pretendia
hipnotizá-la, ao que ela não opusera nenhuma dificuldade. Ela nunca fora
hipnotizada antes, mas pode-se supor que já leu sobre o hipnotismo, embora eu
não saiba dizer quais são suas idéias sobre o estado hipnótico.
Esse tratamento
à base de banhos quentes, massagens duas vezes ao dia e sugestão hipnótica
prosseguiu por mais alguns dias. Ela dormia bem, melhorava a olhos vistos e
passava a maior parte do dia tranqüilamente deitada. Não lhe foi proibido ver
as filhas, ler, ou cuidar da correspondência.
8 de maio, manhã. - Ela me entreteve, num estado que parecia normal, com histórias
aterradoras sobre animais. Lera no Frankfurter Zeitung, que estava na
mesa em frente a ela, uma história de como um aprendiz amarrara um menino e lhe
pusera na boca um rato branco. O menino morrera de susto. O Dr. K. lhe dissera
ter mandado uma caixa cheia de ratos brancos para Tiflis. Ao narrar-me isso,
ela demonstrava todos os sinais de horror. Torcia e retorcia as mãos várias
vezes. “Fique quieto! - Não diga nada! - Não me toque! - Imagine só se houvesse
uma criatura dessas na cama!” (Estremeceu.) “Pense só, quando for aberta! Há um
rato morto entre eles - um que foi ro-o-í-do!”
Durante a
hipnose tentei eliminar essas alucinações com animais. Enquanto ela dormia,
apanhei o Frankfurter Zeitung. Achei a história do menino que fora
maltratado, mas sem nenhuma referência a camundongos ou ratos. Logo, ela os
havia introduzido a partir de seu delírio enquanto lia. (À noite, falei-lhe de
nossa conversa sobre os ratos brancos. Ela não sabia de nada daquilo, ficou
muito surpresa e deu boas risadas.)
À tarde teve o
que chamou de uma “cãibra no pescoço”, que no entanto, como disse, “só durou
pouco tempo - umas poucas horas”.
Noite. - Pedi-lhe que, sob hipnose, falasse, o que, depois de certo esforço,
ela conseguiu fazer. Falava baixo e refletia por um momento, cada vez, antes de
responder. Sua expressão se alterava de acordo com o tema de suas observações e
se acalmava tão logo minha sugestão punha termo à impressão nela causada pelo
que dizia. Perguntei-lhe por que se assustava com tanta facilidade e ela
respondeu: “Está relacionado com as lembranças de minha meninice.” “Quando?”
“Primeiro, quando eu tinha cinco anos e meus irmãos e irmãs costumavam atirar
animais mortos em mim. Foi aí que tive meu primeiro desmaio e espasmos. Mas
minha tia disse que aquilo era uma vergonha e que eu não devia ter daqueles
ataques, de modo que eles pararam. Depois me assustei de novo quando tinha sete
anos, e inesperadamente, vi minha irmã no caixão; e outra vez quando contava
oito anos e meu irmão me aterrorizou uma porção de vezes, enrolando-se em
lençóis como um fantasma; e também quando tinha nove anos e vi minha tia no
caixão e de repente o queixo dela caiu.”
É claro que essa
série de causas desencadeadoras traumáticas que ela citou em resposta a minha
pergunta sobre a razão de ser tão propensa a se assustar já estava pronta em
sua memória. Ela não poderia ter reunido tão depressa esses episódios de
diferentes períodos de sua infância no curto intervalo transcorrido entre minha
pergunta e sua resposta. No fim de cada uma das histórias ela se crispava toda
e assumia uma expressão de medo e horror. Ao final da última, escancarou a boca
e ficou ofegante. As palavras com que descreveu o tema pavoroso de sua
experiência foram pronunciadas com dificuldade e entremeadas de estertores.
Depois, suas feições se tranqüilizaram.
Em resposta a
uma pergunta, disse-me que enquanto descrevia essas cenas via-as diante de si,
numa forma plástica e em suas cores naturais. Contou que, em geral, pensava
nessas experiências com muita freqüência e o fizera nos últimos dias. Sempre
que isso acontecia, via essas cenas com toda a nitidez da realidade. Compreendo
agora por que tantas vezes ela me entretém com cenas de animais e quadros de
cadáveres. Minha terapia consiste em eliminar esses quadros, de modo que ela
não possa mais vê-los diante de si. Para reforçar minha sugestão, passei
suavemente a mão por seus olhos várias vezes.
9 de maio, |manhã.| - Sem que lhe tivesse dado nenhuma outra sugestão,
ela dormiu bem. Mas sentiu dores gástricas pela manhã. Estas surgiram ontem, no
jardim, onde ela permaneceu muito tempo com as filhas. Concordou em que eu
limitasse as visitas das moças a duas horas e meia. Alguns dias atrás
recriminara a si própria por deixar as filhas sozinhas. Encontrei-a um tanto
agitada hoje; a testa estava enrugada, a fala era hesitante e ela produzia
aqueles estalidos característicos. Enquanto era massageada, disse-me apenas que
a governanta das filhas lhe levara um atlas etnológico e que algumas
fotografias de índios norte-americanos vestidos como animais lhe produziram um
grande choque. “Pense só se eles ganhassem vida!” (Estremeceu.)
Sob hipnose
perguntei-lhe por que se assustara tanto com essas fotografias, visto já não
ter mais medo de animais. Respondeu que a tinham feito recordar as visões que
tivera (aos dezenove anos) na época da morte do irmão. (Deixarei para depois as
indagações sobre essa lembrança.) A seguir, perguntei-lhe se sempre gaguejara e
há quanto tempo tinha o tique (o estalido peculiar): A gagueira, disse, surgira
quando estava doente; tinha o tique há cinco anos, desde o tempo em que
estivera sentada à cabeceira da filha mais nova, quando esta esteve muito
doente, e desejara ficar absolutamente quieta. Tentei reduzir a
importância dessa lembrança, ressaltando que, afinal de contas, nada acontecera
à filha, e assim por diante. A coisa surgia, disse-me ela, sempre que ficava
apreensiva ou assustada. Dei-lhe instruções para que não se assustasse com os
retratos dos peles-vermelhas, mas que risse à vontade deles e até chamasse para
eles minha atenção. E isso de fato aconteceu depois de ela despertar: olhou
para o livro, perguntou-me se o tinha visto, abriu-o na página e riu alto das
figuras grotescas, sem o menor indício de medo e sem que suas feições
denotassem a menor tensão. O Dr. Breuer entrou subitamente com o médico interno
para visitá-la. Ela se assustou e começou a produzir o estalido característico,
de modo que eles logo se retiraram. A paciente me explicou que ficara agitada
daquela maneira por ser desagradavelmente afetada pelo fato de o médico interno
também entrar a todo instante.
Eu também havia
eliminado suas dores gástricas durante a hipnose, tocando-a levemente no
abdome, e lhe disse que, embora ela esperasse pelo retorno da dor depois do
almoço, isso não aconteceria.
Noite. - Pela primeira vez ela se mostrou alegre e falante e deu mostras de
um senso de humor que eu não teria esperado numa mulher tão séria; e entre
outras coisas, com a acentuada sensação de estar melhor, zombou do tratamento
feito por meu antecessor. De há muito pretendia, segundo me disse, desistir
daquele tratamento, mas não conseguia encontrar o método certo de fazê-lo, até
que uma observação fortuita feita pelo Dr. Breuer, numa ocasião em que a
visitou, indicou-lhe a solução. Quando pareci surpreso com isso, assustou-se e
começou a recriminar-se asperamente por ter sido indiscreta. Ao que parece,
porém, consegui reassegurá-la. - Ela não tinha sentido as dores gástricas,
embora as houvesse esperado.
Sob hipnose
pedi-lhe que me contasse outras experiências que tivessem dado margem a um medo
duradouro. Ela forneceu uma segunda seqüência dessa espécie, que datava do
final de sua juventude, com a mesma rapidez da primeira seqüência, e me
assegurou mais uma vez que todas essas cenas surgiram diante dela muitas vezes,
nitidamente e em cores. Uma delas era de como viu uma prima ser levada para um
asilo de loucos (quando ela estava com quinze anos). Ela havia tentado pedir
socorro, mas não conseguira e perdera a capacidade de falar até a noite do mesmo
dia. Visto que ela falava em hospícios com muita freqüência em seu estado de
vigília, interrompi-a e perguntei em que outras ocasiões ela se preocupara com
a loucura. Ela me contou que sua própria mãe tinha passado algum tempo num
hospício. Em certa época, tiveram uma empregada cuja antiga patroa estivera
muito tempo internada numa dessas instituições e que costumava contar-lhes
histórias aterradoras de como os pacientes eram amarrados a cadeiras,
espancados, etc. Ao narrar-me isso, retorceu as mãos, horrorizada; estava vendo
tudo diante dos olhos. Esforcei-me por corrigir-lhe as idéias sobre os
manicômios e lhe assegurei que ela conseguiria ouvir falar de instituições
dessa natureza sem referi-las a si mesma. Com isso, suas feições se relaxaram.
Prosseguiu com
sua relação de lembranças aterradoras. Uma, aos quinze anos, de como encontrara
a mãe, que tivera um derrame cerebral, estendida no chão (a mãe viveu mais
quatro anos); de novo, aos dezenove, de como chegou a casa certo dia e
encontrou a mãe morta, com o rosto contorcido. Naturalmente, tive uma
dificuldade considerável em atenuar-lhe essas lembranças. Após uma explicação
bastante longa, assegurei-lhe que também esse quadro só lhe surgiria outra vez
de forma indistinta e sem intensidade. - Outra lembrança era a da maneira como,
aos dezenove anos, ela levantou uma pedra e encontrou debaixo dela um sapo, o
que a fez perder a fala durante horas.
Durante essa
hipnose convenci-me de que ela sabia de tudo o que acontecera na última
hipnose, enquanto na vida de vigília não tem nenhum conhecimento disso.
10 de maio,
manhã. - Pela primeira vez, deram-lhe hoje um banho
de farelo, em vez de seu habitual banho morno. Achei-a com uma expressão de
aborrecimento e angústia, com as mãos envoltas num xale. Queixava-se de frio e
dores. Quando lhe perguntei o que se passava, disse-me que o banho fora
incomodamente curto e provocara dores. Durante a massagem, começou por dizer
que ainda se sentia mal por ter atraiçoado o Dr. Breuer ontem. Acalmei-a com
uma pequena mentira e disse que eu já sabia daquilo o tempo todo, ao que sua
agitação (estalidos, trejeitos faciais) cessou. Todas as vezes, portanto, mesmo
enquanto a massageio, minha influência já começa a afetá-la; a paciente fica
mais tranqüila e mais lúcida, e mesmo sem que haja perguntas sob hipnose
consegue descobrir a causa de seu mau humor daquele dia. Tampouco sua conversa
durante a massagem é tão sem objetivo como poderia parecer. Pelo contrário,
encerra uma reprodução razoavelmente completa das lembranças e das novas
impressões que a afetaram desde nossa última conversa e, muitas vezes, de
maneira bem inesperada, progride até as reminiscências patogênicas, que ela vai
desabafando sem ser solicitada. É como se tivesse adotado meu método e se
valesse de nossa conversa, aparentemente sem constrangimento e guiada pelo
acaso, como um complemento de sua hipnose. Por exemplo, hoje começou a falar
sobre sua família e, com muitos rodeios, passou ao assunto de um primo. Este
não era muito bom da cabeça e os pais mandaram arrancar-lhe todos os dentes de
uma só vez. Ela acompanhou a história com expressões de horror e ficou
repetindo sua fórmula protetora (“Fique quieto! - Não diga nada! - Não me
toque!”). Depois disso, seu rosto se descontraiu e ela ficou alegre. Assim, seu
comportamento na vida de vigília é dirigido pelas experiências que teve durante
o sonambulismo, embora acredite, enquanto está acordada, nada saber a respeito
delas.
Sob hipnose
repeti minha pergunta quanto àquilo que a perturbara e recebi as mesmas
respostas, mas na ordem inversa: (1) sua conversa indiscreta de ontem, e (2)
suas dores provocadas por ter sentido muito desconforto no banho. -
Perguntei-lhe hoje o significado de sua frase “Fique quieto!”, etc. Explicou
que, quando tinha pensamentos assustadores, temia que eles fossem interrompidos
em seu curso, porque então tudo ficaria confuso e as coisas ficariam ainda
piores. O “Fique quieto!” relacionava-se com o fato de que as formas animais
que lhe apareciam quando ela se achava em mau estado começavam a mover-se e a
atacá-la se alguém fizesse um movimento em sua presença. A exortação final “Não
me toque!” provinha das seguintes experiências: contou-me como, quando o irmão
estivera muito doente por ter ingerido muita morfina - ela estava com dezenove
anos na ocasião - costumava muitas vezes agarrá-la, e como, de outra feita, um
conhecido enlouquecera de súbito em sua casa e a tinha segurado pelo braço
(houve um terceiro exemplo semelhante, do qual não se recordava com exatidão);
e por último, como, quando tinha vinte e oito anos e a filha estava muito
doente, a criança se agarrara nela com tanta força em seu delírio que ela quase
fora sufocada. Embora esses quatro exemplos fossem tão separados no tempo, ela
os relatou numa única frase e numa sucessão tão rápida que poderiam ter
constituído um único episódio em quatro atos. A propósito, todos os relatos que
me fazia de traumas como esses, dispostos em grupos, começavam por um “como”,
sendo os traumas componentes separados por um “e”. Uma vez que percebi que a fórmula
protetora se destinava a salvaguardá-la contra uma repetição dessas
experiências, eliminei esse medo por meio da sugestão e, de fato, jamais a ouvi
dizer a fórmula de novo.
Noite. - Encontrei-a muito animada. Contou-me, sorridente, que se assustara
com um cãozinho que havia latido para ela no jardim. Seu rosto, porém, estava
um pouco contraído, e havia certa agitação interna, que só desapareceu quando
ela me perguntou se eu estava aborrecido com alguma coisa que ela dissera
durante a massagem nessa manhã e respondi “não”. Sua menstruação recomeçou
hoje, após um intervalo que mal chegou a uma quinzena. Prometi-lhe regulá-la
por sugestão hipnótica e, sob hipnose, fixei o intervalo em 28 dias.
Em hipnose,
também lhe perguntei se se recordava da última coisa que me contara; ao
perguntar-lhe isso, o que eu tinha em mente era uma tarefa que restara da noite
passada, mas ela começou, muito corretamente, pelo “não me toque” da hipnose de
hoje de manhã. Assim, levei-a de volta ao assunto de ontem. Eu lhe havia
perguntado qual a origem de sua gagueira e ela respondera “não sei”.
Pedira-lhe, portanto, que se lembrasse disso na hora da hipnose de hoje. Em
conseqüência, me respondeu hoje, sem nenhuma reflexão adicional, mas com grande
agitação e com dificuldades espásticas na fala: “Como os cavalos certa vez
saíram em disparada com as crianças na carruagem; e como outra vez eu estava
passando de carruagem pela floresta com as meninas, durante uma tempestade, e
uma árvore bem à frente dos cavalos foi atingida por um raio e os cavalos se
assustaram e eu pensei: ‘Agora você precisa ficar bem quietinha, senão seus
gritos vão assustar os cavalos ainda mais e o cocheiro não conseguirá contê-los
de jeito nenhum.’ Surgiu a partir daquele momento.” A paciente ficou extraordinariamente
agitada ao contar-me essa história. Soube também por ela que a gagueira tinha
começado logo após a primeira dessas duas ocasiões, mas havia desaparecido
pouco depois e então se estabelecera de uma vez por todas após a segunda
ocasião semelhante. Apaguei sua lembrança plástica dessas cenas, mas pedi-lhe
que as imaginasse mais uma vez. Ela pareceu tentar fazê-lo e permaneceu quieta
enquanto atendia a meu pedido; a partir de então, falou durante a hipnose sem
qualquer impedimento espástico.
Verificando que
ela estava disposta a ser comunicativa, perguntei-lhe que outros fatos em sua
vida a haviam assustado tanto a ponto de a terem deixado com lembranças
plásticas. Ela respondeu fornecendo-me uma coleção de tais experiências: - |1|
Como um ano após a morte da mãe, estava visitando uma francesa que era sua
amiga, quando lhe disseram que fosse ao quarto contíguo com outra moça para
buscar um dicionário e ela viu, sentado na cama, alguém que tinha a aparência
idêntica à da mulher que ela acabara de deixar no outro aposento. Ficou toda
rígida e pregada no chão. Depois, ficara sabendo que se tratava de um manequim
especialmente preparado. Asseverei que o que a paciente tinha visto fora uma
alucinação e apelei para seu bom senso, e então seu rosto se relaxou. |2| Como
cuidara do irmão enfermo e este tivera acessos terríveis por causa da morfina,
aterrorizando-a e agarrando-a. Lembrei que ela já havia mencionado essa
experiência hoje de manhã e, a título de experimentação, perguntei-lhe em que
outras ocasiões esse “agarramento” havia ocorrido. Para minha agradável
surpresa, ela fez uma longa pausa dessa vez antes de responder e então
perguntou, num tom de dúvida: “Minha filhinha?” Ficou inteiramente incapaz de
recordar-se das outras duas ocasiões (ver atrás |em [1]|). Minha proibição - o
apagamento de suas lembranças - tinha sido, portanto, eficaz. - E mais: |3|
como, enquanto cuidava do irmão, o rosto pálido da tia havia aparecido de
súbito por cima do biombo. Ela acabara de convertê-lo ao catolicismo.
Vi que havia
chegado à raiz de seu constante temor das surpresas e pedi-lhe outros exemplos.
Prosseguiu: como tinha na casa dela um amigo que gostava de entrar furtivamente
no quarto, de modo que de repente estava lá; como ela ficara muito doente após
a morte da mãe e fora para uma casa de saúde, e um lunático havia entrado por
engano em seu quarto várias vezes, à noite, chegando bem perto de sua cama; e
por fim, como, na vinda de Abbazia para cá, um estranho abrira quatro vezes a
porta de sua cabine e cada vez fixara nela um olhar demorado. A Sra. Emmy tinha
ficado tão apavorada que chegou a chamar o condutor.
Apaguei todas
essas lembranças, despertei-a e lhe garanti que ela dormiria bem à noite, tendo
deixado de fazer-lhe essa sugestão na hipnose. A melhora de seu estado geral
foi revelada por sua observação de que não lera nada hoje, pois estava vivendo
num sonho muito feliz - ela, que sempre tinha que estar fazendo alguma coisa em
virtude de sua inquietude interior.
11 de maio,
manhã. - Hoje teve uma entrevista com o Dr. N., o
ginecologista, que deve examinar sua filha mais velha por causa das
complicações menstruais. Encontrei a Sra. Emmy bastante agitada, embora isso se
traduzisse em sinais físicos mais leves que antes. De vez em quando, exclamava:
“Estou com medo, estou com tanto medo que acho que vou morrer.” Perguntei-lhe
de que estava com medo. Era o Dr. N.? Não sabia, respondeu; simplesmente estava
com medo. Sob a hipnose, que induzi antes da chegada de meu colega, declarou
ter medo de que me tivesse ofendido por alguma coisa que dissera durante a
massagem, ontem, que lhe parecera indelicada. Também tinha medo de tudo o que
era novo e, por conseguinte, do novo médico. Consegui acalmá-la e, embora se
assustasse uma ou duas vezes na presença do Dr. N., ela se comportou muito bem
e não produziu nenhum de seus estalidos nem houve qualquer inibição da fala.
Depois que ele se foi, tornei a colocá-la sob hipnose para eliminar qualquer
possível resíduo da excitação provocada pela visita. Ela própria ficou muito
contente com seu comportamento e depositou grandes esperanças no tratamento;
tentei convencê-la, a partir desse exemplo, de que não é preciso ter medo do
que é novo, já que o que é novo também contém o que é bom.
Noite. - Estava muito animada e desabafou um grande número de dúvidas e
escrúpulos em nossa conversa antes da hipnose. Durante a hipnose, perguntei-lhe
que acontecimento de sua vida havia produzido efeito mais duradouro sobre ela e
que mais surgia em sua memória. A morte do marido, respondeu. Fiz com que me
descrevesse esse fato com todos os pormenores e ela o fez, com todos os sinais
da mais profunda emoção, mas sem nenhum estalido e sem gaguejar: - Como,
começou a dizer, tinham ido a um lugar de que ambos gostavam muito na Riviera
e, ao atravessarem uma ponte, ele caíra de repente no chão e lá ficara inerte
por alguns minutos, mas depois se levantara, parecendo estar muito bem; como,
pouco tempo depois, quando ela estava de cama após seu segundo parto, o marido,
que estivera tomando o café da manhã numa mesinha ao lado de sua cama e lendo o
jornal, levantara-se de súbito, olhando-a de modo muito estranho, dera alguns
passos à frente e, em seguida, caíra morto; ela havia se levantado da cama, e
os médicos que foram chamados se esforçaram para reanimá-lo, o que ela ouviu do
quarto contíguo, mas em vão. E, prosseguiu a Sra. Emmy, como o bebê, que
contava então algumas semanas de idade, fora tomado de grave moléstia, que
durou seis meses, durante a qual ela própria ficara de cama com muita febre. -
E vieram então, em ordem cronológica, suas reclamações contra essa criança, que
ela externou rapidamente, com uma expressão zangada no rosto, da maneira como
alguém falaria de uma pessoa que se houvesse tornado um incômodo. Essa criança,
disse, se comportara de forma muito estranha por longo tempo; gritava o tempo
todo e não dormia, e desenvolvera uma paralisia da perna esquerda cuja
recuperação parecera apresentar muito poucas esperanças. Aos quatro anos, a
criança tivera visões; aprendera a andar e a falar, tardiamente, de modo que
por muito tempo fora julgada idiota. De acordo com os médicos, tivera
encefalite e mielite e ela não sabia mais o quê. Interrompi-a nesse ponto e a
fiz ver que essa mesma criança era hoje uma menina normal, que gozava de
perfeita saúde, e impossibilitei-a de voltar a ver qualquer dessas coisas
melancólicas, não apenas apagando suas lembranças das mesmas na forma plástica,
mas também removendo toda a sua recordação dessas coisas, como se nunca
tivessem existido em sua mente. Prometi-lhe que isso a levaria a libertar-se da
expectativa de infortúnios que não cessava de atormentá-la e também das dores
por todo o corpo, das quais se queixara precisamente durante sua narrativa,
depois de passarmos vários dias sem ouvir falar nelas.
Para minha surpresa,
depois dessa minha sugestão, ela começou a falar, sem qualquer transição, sobre
o Príncipe L., cuja fuga de um hospício era objeto de muitos comentários nessa
época. Externou novos temores sobre os hospícios - de que as pessoas que lá se
encontravam recebiam duchas de água gelada na cabeça e eram postas num aparelho
que as fazia girar ininterruptamente até se acalmarem. Quando, há três dias,
ela se queixara pela primeira vez do seu medo dos hospícios, eu a havia
interrompido após sua primeira história, a de que os pacientes eram amarrados a
cadeiras. Vi então que nada tinha ganho com essa interrupção e que não posso me
furtar a escutar suas histórias com todos os detalhes até a última palavra.
Depois de reparar essas falhas, livrei-a também dessa nova safra de temores.
Apelei para seu bom senso e lhe disse que ela realmente deveria acreditar mais
em mim do que na moça tola de quem ouvira aquelas histórias horripilantes sobre
a maneira como se trabalha nos hospícios. Como notei que ela às vezes ainda gaguejava
ao narrar-me essas outras coisas, perguntei-lhe mais uma vez de onde provinha a
gagueira. Nenhuma resposta. - “A senhora não sabe?” - “Não.” - “Por que não?” -
“Por que não?” - “Porque não posso saber!” (Pronunciou estas últimas
palavras com violência e raiva). Essa declaração me parece ser a prova do êxito
de minha sugestão, mas ela me expressou o desejo de que a despertasse da
hipnose, e assim fiz.
12 de maio, |manhã|. - Contrariamente a minha expectativa, ela dormira mal
e por pouco tempo. Encontrei-a num estado de grande angústia, embora,
incidentalmente, sem demonstrar seus costumeiros sinais físicos desta. Não
disse o que estava acontecendo, mas apenas que tivera sonhos ruins e ficava
vendo as mesmas coisas. “Como seria horrível”, disse, “se eles se tornassem
realidade”. Durante a massagem, ela abordou alguns pontos em resposta a minhas
perguntas. Ficou alegre então; falou-me de sua vida social na casa do Báltico
que lhe coubera por morte do marido, das pessoas importantes que recebe da
cidade vizinha, etc.
Hipnose. - Ela tivera alguns sonhos de horror. Os pés e braços das cadeiras se
haviam transformado todos em cobras; um monstro com bico de abutre estraçalhava
e comia todo o seu corpo; outros animais selvagens saltavam sobre ela, etc.
Passou então a outros delírios com animais, que, contudo, qualificou
acrescentando: “Isso foi real” (não um sonho): como (numa ocasião anterior) ela
fora apanhar um novelo de lã e era um rato que saíra correndo; como estivera
fazendo uma caminhada e um grande sapo saltara de repente sobre ela, e assim
por diante. Compreendi que minha proibição geral fora ineficaz e que teria de
afastar dela suas impressões assustadoras uma a uma. Aproveitei também a
oportunidade para lhe perguntar por que ela sofria de dores gástricas e de onde
provinham. (Creio que todos os seus acessos de zoopsia |alucinações com
animais| são acompanhados de dores gástricas.) Sua resposta, dada a
contragosto, foi que não sabia. Pedi-lhe que se lembrasse até amanhã. Disse-me
então, num claro tom de queixa, que eu não devia continuar a perguntar-lhe de
onde provinha isso ou aquilo, mas que a deixasse contar-me o que tinha a dizer.
Concordei com isso e ela prosseguiu, sem nenhum preâmbulo: “Quando o levaram
embora, não pude acreditar que ele estivesse morto.” (Estava, portanto, falando
sobre o marido mais uma vez, e compreendi então que a causa de seu mau humor
era que ela estivera sofrendo em virtude dos resíduos não revelados dessa
história.) Depois disso, contou-me, odiara a filha por três anos, pois sempre
disse a si mesma que talvez tivesse podido restaurar a saúde do marido se não
estivesse de cama por causa da criança. Além disso, após a morte do marido, não
tinha havido nada senão insultos e agitações. Os parentes dele, que sempre
foram contra o casamento e que tinham ficado com raiva por eles serem tão
felizes juntos, espalharam o boato de que ela o havia envenenado, de modo que
ela desejara abrir um inquérito. Os parentes tinham-na envolvido em toda
espécie de processos legais, com a ajuda de um jornalista suspeito. O miserável
espalhara agentes a fim de incitar as pessoas contra ela. Fazia com que os
jornais locais publicassem artigos difamantes a seu respeito e depois lhe
mandava recortes. Essa fora a origem de sua insociabilidade e de seu ódio por
todos os estranhos. Após eu dizer algumas palavras tranqüilizadoras sobre o que
me contara, ela disse que se sentia melhor.
13 de maio, |manhã|. - Mais uma vez ela dormira mal, por causa de dores
gástricas. Não tinha jantado. Também não se queixou de dores no braço direito.
Mas estava de bom humor; mostrou-se alegre e, desde ontem, tem-me tratado com
especial distinção. Pediu minha opinião sobre toda espécie de coisas que lhe
pareciam importantes e ficou excessivamente agitada, por exemplo, quando tive
de procurar as toalhas necessárias à massagem, e assim por diante. Seu estalido
e seu tique facial eram freqüentes.
Hipnose. - Ontem à noite, súbito lhe ocorrera por que os animaizinhos que ela
via se tornavam tão grandes. Isso lhe acontecera pela primeira vez em D -,
durante um espetáculo teatral em que um enorme lagarto aparecia em cena. Essa
lembrança a havia atormentado muito ontem também.
O motivo do
reaparecimento dos estalidos foi que ontem ela teve dores abdominais e tentou
não gemer para não demonstrá-las. Não tinha nenhuma idéia da verdadeira causa
desencadeadora do estalido (ver em |[1]|.) Também se recordou de que eu lhe
dera instruções para descobrir a origem de suas dores gástricas. Não o sabia,
contudo, e me pediu que a ajudasse. Perguntei-lhe se, talvez, em alguma ocasião
após uma grande excitação, ela se haveria forçado a comer. Ela confirmou isso.
Após a morte do marido, perdera inteiramente o apetite por muito tempo e havia
comido apenas por um sentimento de obrigação, e as dores gástricas haviam de
fato começado naquela época. Eliminei então essas dores passando a mão algumas
vezes sobre seu epigástrio. A seguir, por conta própria, ela começou a falar
sobre as coisas que mais a haviam afetado. “Já lhe contei”, disse, “que não
gostava da criança. Mas devo acrescentar que ninguém poderia adivinhar isso por
meu comportamento. Fiz tudo o que era necessário. Até hoje me recrimino por ter
gostado mais da primogênita”.
14 de maio, |manhã.| - Estava bem e alegre e dormira até 7h30min da manhã.
Queixou-se apenas de ligeiras dores na região radial da mão e na cabeça e
rosto. O que ela me diz antes da hipnose vai adquirindo um significado cada vez
maior. Hoje não teve quase nada de horrível para apresentar. Queixou-se de
dores e perda de sensibilidade na perna direita. Disse-me que teve um surto de
inflamação abdominal em 1871; mal se havia recuperado, ficou tratando do irmão
doente, e foi então que as dores apareceram pela primeira vez, chegando até a
levar a uma paralisia temporária da perna direita.
Durante a
hipnose, perguntei-lhe se agora lhe seria possível participar da vida social,
ou se ainda estava muito temerosa. Respondeu-me que ainda lhe era desagradável
ter alguém de pé atrás dela ou mesmo a seu lado. A esse respeito, falou-me de
outras ocasiões em que fora desagradavelmente surpreendida pelo súbito
aparecimento de alguém. Certa feita, por exemplo, quando passeava com as filhas
na ilha de Rügen, dois indivíduos de aparência suspeita haviam saído de uns
arbustos e lhes dirigido insultos. Em Abbazia, quando estava passeando certa
noite, um mendigo saíra de repente de detrás de uma pedra e se ajoelhara diante
dela. Parece que era um louco inofensivo. Por último, contou-me como sua
isolada casa de campo fora arrombada à noite, o que muito a havia alarmado. É
fácil ver, entretanto, que a origem essencial desse medo das pessoas foi a
perseguição a que ela se viu sujeita após a morte do marido.
Noite. - Embora parecesse muito animada, saudou-me com a exclamação: “Estou
morta de medo; oh, mal posso lhe dizer, eu me odeio!” Afinal fui informado de
que ela havia recebido a visita do Dr. Breuer e levara um susto ao vê-lo
aparecer. Como ele percebeu isso, ela lhe assegurou que fora “só aquela vez”.
Ficou profundamente penalizada por minha causa, por ter traído esse vestígio de
seu antigo nervosismo. Em mais de uma ocasião tive oportunidade de notar,
nestes últimos dias, o quanto ela é severa consigo mesma, como tende a se
culpar com severidade pelos ínfimos sinais de negligência - quando as toalhas
para a massagem não estão em seu lugar habitual ou quando o jornal para eu ler
enquanto ela adormece não se encontra prontamente à mão. Após a eliminação da
primeira e mais superficial camada de lembranças torturantes, sua personalidade
moralmente supersensível, com tendência à autodepreciação, veio à tona. Tanto
em seu estado de vigília como sob a hipnose, eu lhe disse (o que correspondeu
ao velho preceito legal “de minimis non curat lex” que existe uma
multidão de coisinhas insignificantes entre o que é bom e o que é mau - coisas
sobre as quais ninguém precisa censurar-se. Ela não aceitou minha lição,
suponho, tal como não o faria um monge medieval, que vê o dedo de Deus ou a
tentação do Demônio em cada fato trivial de sua vida e que é incapaz de
imaginar o mundo, sequer por um momento fugaz ou em seu menor recanto, como
destituído de uma referência a ele próprio.
Em sua hipnose,
ela trouxe à baila algumas outras imagens apavorantes (em Abbazia, por exemplo,
via cabeças ensangüentadas em cada onda do mar). Fi-la repetir as instruções
que lhe dera enquanto estava acordada.
15 de maio, |manhã.| - Ela dormira até as 8h30min da manhã, mas depois
ficara inquieta, tendo-me recebido com ligeiros sinais de seu tique, dos
estalidos e da inibição da fala. “Estou morta de medo”, disse mais uma vez. Em
resposta a uma pergunta, falou-me que a pensão onde se encontravam suas filhas
ficava no quarto andar de um prédio e lá se chegava de elevador. Ontem havia
insistido em que as filhas usassem o elevador tanto para descer como para
subir, e agora se recriminava por isso, porque não se devia confiar
inteiramente no ascensor. O próprio dono da pensão tinha dito isso. Teria eu
ouvido, perguntou, a história da Condessa Sch., que encontrara a morte em Roma
num acidente dessa natureza? Por coincidência, conheço essa pensão e sei que o
elevador é propriedade particular do dono da mesma; não me parece provável que
esse homem, que chama uma atenção especial para o elevador num anúncio, fosse
ele próprio advertir alguém contra sua utilização. Pareceu-me que teríamos aí
uma das paramnésias acarretadas pela angústia. Dei a minha opinião à Sra. Emmy
e consegui, sem nenhuma dificuldade, fazê-la rir da improbabilidade de seus
temores. Exatamente por essa razão, não pude acreditar que esta fosse a causa
da sua angústia e decidi formular a pergunta a sua consciência hipnótica.
Durante a massagem, que hoje reiniciei após um intervalo de alguns dias, ela me
contou uma série de histórias sem ligação umas com as outras, que talvez tenham
sido reais - sobre um sapo que foi encontrado num porão, uma mãe excêntrica
quecuidava do filho idiota de maneira estranha, uma mulher que foi trancada num
hospício porque sofria de melancolia - e que revelavam o tipo de recordações
que lhe passavam pela cabeça quando ela estava intranqüila. Depois de se livrar
dessas histórias, ficou muito animada. Descreveu a vida em sua propriedade e
seus contatos com homens preeminentes da Rússia teutônica e da Alemanha setentrional
e, na verdade, achei extremamente difícil conciliar atividades desse tipo com o
quadro de uma mulher tão gravemente neurótica.
Assim,
perguntei-lhe em sua hipnose por que ela estava tão desassossegada esta manhã.
Em vez de suas dúvidas sobre o elevador, informou-me ter sentido medo de que
sua menstruação recomeçasse e tornasse a interferir na massagem.
Fiz então com
que ela me contasse a história das dores na perna. Começou da mesma forma que
ontem |falando sobre haver cuidado do irmão| e prosseguiu com uma longa série
de exemplos de experiências, alternadamente aflitivas e irritantes, que tivera
ao mesmo tempo que as dores na perna e cujo efeito fora o de torná-las cada vez
piores, até mesmo a ponto de ela ficar com paralisia bilateral e perda de
sensibilidade nas pernas. O mesmo se aplicava às dores do braço. Elas também
surgiram enquanto a paciente cuidava de algum doente, ao mesmo tempo que as
cãibras no pescoço.”Quanto a estas, fiquei sabendo apenas que se seguiram a
alguns curiosos estados de inquietude acompanhados de depressão, que já
existiam antes. Consistem num “aperto gelado” na nuca, juntamente com o
surgimento da rigidez e um frio doloroso em todas as extremidades da paciente,
incapacidade de falar e completa prostração. Duram de seis a doze horas.
Falharam minhas tentativas de demonstrar que esse complexo de sintomas
representava uma lembrança. Fiz-lhe algumas perguntas com a finalidade de
descobrir se seu irmão, enquanto a paciente o assistia durante o delírio dele,
alguma vez a agarrara pelo pescoço; mas ela negou e disse não saber de onde
provinham esses acessos.
Noite. - Ela estava muito animada e demonstrava grande senso de humor.
Contou-me, aliás, que o caso do elevador não era como me havia relatado. O
proprietário só dissera aquilo para dar uma desculpa pelo fato de o elevador
não ser utilizado para descer. Ela me fez um grande número de perguntas que
nada tinham de patológicas. Tem sofrido de lancinantes dores no rosto, na mão
junto ao polegar e na perna. Fica rígida e sente dores no rosto se ficar
sentada sem se mexer ou se olhar fixamente para algum ponto por um período
considerável de tempo. Quando levanta qualquer coisa pesada, isso lhe causa
dores no braço. - O exame da perna direita revelou sensibilidade relativamente boa
na coxa, alto grau de insensibilidade na parte inferior da perna e no pé e
menor na região das nádegas e do quadril.
Sob hipnose, ela
me informou que ocasionalmente ainda tem idéias assustadoras, como a de que
algo pode acontecer com suas filhas, que elas poderiam adoecer ou morrer, ou
que o irmão dela, que está agora em lua-de-mel, poderia sofrer um acidente, ou
que a esposa dele poderia morrer (porque os casamentos de todos os seus irmãos
e irmãs tinham sido muito curtos). Não consegui arrancar da paciente quaisquer
outros temores. Proibi-a de sentir qualquer necessidade de se assustar quando
não houvesse nenhum motivo para isso. Prometeu-me desistir disso “porque o
senhor está pedindo”. Dei-lhe outras sugestões quanto às dores, à perna, etc.
16 de maio, |manhã|. - Ela havia dormindo bem. Queixava-se ainda de dores
no rosto, braços e pernas. Estava muito alegre. Sua hipnose não rendeu nada.
Apliquei um pincel farádico em sua perna insensibilizada.
Noite. - Sobressaltou-se assim que entrei: “Estou muito contente com sua
vinda”, disse, “estou muito assustada”. Ao mesmo tempo, dava todos os sinais de
terror, juntamente com a gagueira e o tique. Primeiro fiz com que me contasse,
em estado de vigília, o que tinha acontecido. Retorcendo os dedos e estendendo as
mãos para a frente, pintou um quadro nítido de seu terror ao dizer: “Um
camundongo enorme passou de repente sobre minha mão no jardim e desapareceu num
segundo; as coisas ficaram deslizando para trás e para a frente.” (Uma ilusão
do jogo de sombras?) “Um bando inteiro de ratinhos estava sentado nas árvores.
- O senhor não está ouvindo os cavalos batendo com as patas no circo? - Há um
homem gemendo no quarto ao lado; deve estar sentindo dores depois de sua
operação. - Será que estou em Rügen? Eu tinha uma estufa como essa lá?” Ela
estava confusa com a multidão de pensamentos que se entrecruzavam em seu
cérebro e com o esforço que fazia para separá-los do ambiente que a cercava de
fato. Quando lhe formulei perguntas sobre coisas atuais, tais como se as filhas
estavam aqui, não soube dar nenhuma resposta.
Tentei
desembaraçar por meio da hipnose a confusão que lhe ia pela mente.
Perguntei-lhe o que era que a assustava. Repetiu a história do camundongo, com
todos os sinais de terror, e acrescentou que, quando descia os degraus, viu um
animal horrível deitado, que desapareceu imediatamente. Disse-lhe que isso eram
alucinações e lhe instruí para que não se assustasse com os camundongos; só os
bêbados é que os viam (ela detestava bêbados). Contei-lhe a história do Bispo
Hatto. Ela também a conhecia, e ouviu-a horrorizada. - “Como foi que a senhora
veio a pensar no circo?” perguntei-lhe então. Disse-me que tinha ouvido
claramente os cavalos batendo com as patas nos estábulos ali perto e acabando
presos nos arreios, o que poderia machucá-los. Quando isso acontecia, Johann
costumava sair para desamarrá-los. Neguei que houvesse estábulos por perto ou
que alguém no quarto contíguo tivesse gemido. Ela sabia onde estava? Respondeu
que agora sabia, mas antes pensara estar em Rügen. Perguntei-lhe como
tinha chegado a essa lembrança. Tinham estado conversando no jardim, disse,
sobre como fazia calor numa parte dele, e imediatamente lhe viera a idéia do
terraço sem sombra em Rügen. Muito bem, perguntei-lhe, quais eram as recordações
tristes que guardava de sua estada em Rügen? Ela citou uma série delas. Lá
sentira as dores mais terríveis nas pernas e nos braços; quando saía em
excursões, fora várias vezes apanhada por um nevoeiro e se perdera; duas vezes,
quando passeava, um touro tinha corrido atrás dela, e assim por diante. Como é
quando tinha tido essa crise hoje? - Como (respondeu)? Escrevera grande número
de cartas; tinha levado três horas e isso lhe deixara a cabeça confusa. - Pude
presumir, por conseguinte, que seu surto delirante fora provocado pelo cansaço
e que seu conteúdo fora determinado por associações tais como a do lugar sem
sombra do jardim, etc. Repeti todos os conselhos que tinha o hábito de lhe dar
e deixei-a recomposta para dormir.
17 de maio, |manhã|. - Ela passou a noite muito bem. No banho de farelo que
tomou hoje, deu alguns gritos, por ter confundido o farelo com vermes. Fui
informado disso pela enfermeira. A própria paciente relutou em falar-me a
respeito. Estava quase exageradamente alegre, mas interrompia-se com
exclamações de horror e asco e fazia caretas que expressavam terror. Também
gaguejou mais do que nos últimos dias. Contou-me haver sonhado, na noite
passada, que estava caminhando sobre uma porção de sanguessugas. Na noite
anterior tinha tido sonhos horríveis. Tivera que amortalhar um grande número de
defuntos e colocá-los em caixões, mas não os tampava. (Obviamente, uma
lembrança do marido.) Disse-me ainda que, no decurso de sua vida, tivera
inúmeros incidentes com animais. O pior tinha sido com um morcego que ficara
preso em seu guarda-roupa, de modo que ela se precipitara para fora do quarto
sem nenhuma roupa. Para curá-la desse medo, o irmão lhe dera um belo broche com
a forma de um morcego, mas ela nunca pudera usá-lo.
Sob hipnose,
explicou-me que seu medo de vermes provinha de ter recebido como presente,
certa vez, uma linda almofada para alfinetes; na manhã seguinte, porém, quando
quis usá-la, uma porção de vermezinhos saíram da almofada, que tinha sido
enchida com farelo que não estava bem seco. (Uma alucinação? Talvez um fato
real.) Pedi-lhe que me contasse outras histórias de animais. Certa feita, disse
ela, quando passeava com o marido num parque de São Petersburgo, todo o caminho
que levava a um pequeno lago estava recoberto de sapos, de modo que foram
obrigados a voltar. Houve épocas em que ela ficara impossibilitada de estender
a mão para qualquer pessoa, temendo que a mão se transformasse num animal
terrível, como tantas vezes tinha acontecido. Tentei libertá-la de seu medo de
animais designando-os um por um e perguntando-lhe se tinha medo deles. Em
alguns casos, respondeu “não”; em outros, “não devo ter medo deles”.
Perguntei-lhe por que havia gaguejado e se mexido tanto ontem. Respondeu que
sempre fazia isso quando estava muito assustada. - Mas por que tinha estado tão
assustada ontem? - Porque todas as espécies de pensamentos opressivos
lhe haviam passado pela cabeça no jardim: em particular, a idéia de como
poderia impedir que algo se acumulasse de novo dentro dela depois que seu
tratamento terminasse. Repeti as três razões que eu já lhe tinha dado para
sentir-se reassegurada: (1) que ela se tornara mais sadia e mais capaz de ter
resistência, (2) que adquiriria o hábito de contar seus pensamentos a alguém
com quem mantivesse estreitas relações, e (3) que, daí por diante, consideraria
indiferente um grande número de coisas que até então a haviam oprimido. Ela
prosseguiu dizendo que também estivera preocupada porque não me havia
agradecido pela visita que eu lhe fizera ao fim do dia, e temia que eu perdesse
a paciência com ela em vista de sua recente recaída. Ficara muito perturbada e
alarmada porque o médico interno perguntara a um senhor no jardim se ele agora
se sentia capaz de enfrentar sua operação. A esposa estava sentada ao lado dele,
e ela (a paciente) não pôde deixar de pensar que talvez aquela fosse a última
noite do pobre homem. Após esta última explicação, sua depressão pareceu
dissipar-se.
Noite. - Ela estava muito animada e satisfeita. A hipnose não produziu
absolutamente nada. Dediquei-me a cuidar de suas dores musculares e
restaurar-lhe a sensibilidade da perna direita. Isso foi conseguido com muita
facilidade na hipnose, mas sua sensibilidade restaurada tornou a perder-se
parcialmente quando ela despertou. Antes de eu deixá-la, externou seu espanto
de que há tanto tempo não tivesse cãibras no pescoço, já que elas costumavam
sobrevir antes de cada tempestade.
18 de maio. - Há anos não dormia tão bem como na noite passada. Depois do banho,
porém, queixou-se de frio na nuca, contrações e dores no rosto, nas mãos e nos
pés. Suas feições estavam tensas, e os punhos, cerrados. A hipnose não revelou
qualquer conteúdo psíquico subjacente às cãibras no pescoço. Melhorei-as
através de massagens, depois que ela havia despertado.
Espero que este
resumo do histórico das três primeiras semanas do tratamento seja suficiente
para fornecer um quadro nítido do estado da paciente, da natureza de meus
esforços terapêuticos e da medida de seu êxito. Passarei agora a ampliar o
relato do caso.
O delírio que
acabo de descrever foi também a última perturbação importante no estado da Sra.
Emmy von N. Visto que eu não tomava a iniciativa de procurar os sintomas e sua
base, mas esperava que algo surgisse na paciente ou que ela me revelasse algum
pensamento que lhe estivesse causando angústia, suas hipnoses logo deixaram de
produzir material. Assim, passei a usá-las principalmente com a finalidade de
proporcionar-lhe máximas que ficassem sempre em sua mente e que a protegessem
contra recaídas em estados semelhantes quando voltasse para casa. Naquela
época, eu estava sob total influência do livro de Bernheim sobre sugestão e
previa mais resultados dessas medidas didáticas do que o faria hoje. O estado
de minha paciente melhorou tão depressa que ela logo me assegurou que não se
sentia tão bem desde a morte do marido. Após um tratamento que durou ao todo
sete semanas, permiti-lhe que voltasse para sua casa no Báltico.
Não fui eu, mas
o Dr. Breuer, quem recebeu notícias dela cerca de sete meses depois. Seu estado
de saúde continuara bom durante vários meses, mas depois havia voltado a piorar
como resultado de um novo choque psíquico. Sua filha mais velha, durante a
primeira estada de ambas em Viena, já havia tido, como a mãe, cãibras no
pescoço e ligeiros estados histéricos; em particular, porém, sofrera de dores
ao andar, em virtude de uma retroversão do útero. A conselho meu, procurara
para tratamento o Dr. N., um de nossos mais famosos ginecologistas, que recolocara
o útero em sua posição por meio de massagens, havendo ela ficado livre de
problemas durante vários meses. Seus problemas reapareceram, contudo, enquanto
as duas estavam em casa, e a mãe chamou um ginecologista da cidade
universitária vizinha. Ele receitou para a moça um tratamento local e geral
que, todavia, acarretou uma grave doença nervosa (ela estava, na época, com
dezessete anos). É provável que isso já fosse um indício da sua predisposição
patológica que iria manifestar-se um ano depois numa alteração do caráter. |Ver
em [1].| A mãe, que havia entregue a moça às mãos dos médicos com sua habitual
mistura de docilidade e desconfiança, foi dominada pelas mais violentas
auto-recriminações após o infeliz resultado do tratamento. Uma associação de
idéias que eu não tinha investigado levou-a à conclusão de que eu e o Dr. N.
éramos os responsáveis pela doença da filha, porque havíamos feito pouco caso
da gravidade de seu estado. Por um ato de vontade, por assim dizer, ela desfez
os efeitos do meu tratamento e de imediato recaiu nos estados dos quais eu a
havia libertado. Um ilustre médico de suas redondezas, a quem procurou para
obter orientação, juntamente com o Dr. Breuer, que se correspondia com ela,
conseguiram convencê-la da inocência dos dois alvos de suas acusações; mas,
mesmo depois que isso se dissipou, a aversão formada contra mim nessa época
permaneceu como um resíduo histérico, e ela declarou que lhe era impossível
reiniciar o tratamento comigo. A conselho da mesma autoridade médica, recorreu
à ajuda de um sanatório na Alemanha setentrional. Por desejo de Breuer,
expliquei ao médico encarregado as modificações da terapia hipnótica que eu
julgara eficazes no caso dessa paciente.
Essa tentativa
de transferência falhou completamente. Desde o início ela parece ter mostrado
uma disposição contrária ao médico. Esgotava-se na resistência ao que quer que
fosse feito por ela. Ficou deprimida, perdeu o sono e o apetite e só se
recuperou depois que uma amiga sua, que foi visitá-la no sanatório, na verdade
a seqüestrou às escondidas e tratou-a em sua casa. Pouco tempo depois,
exatamente um ano após seu primeiro encontro comigo, ela estava de novo em
Viena e mais uma vez se entregou a meus cuidados.
Achei-a muito
melhor do que esperava pelos relatos que recebera por carta. Podia
movimentar-se e estava livre da angústia, e grande parte do que eu conseguira
um ano antes ainda se mantinha. Sua principal queixa era com relação a
freqüentes estados de confusão - “tempestades na cabeça”, como as denominava.
Além disso, sofria de insônia e muitas vezes ficava em prantos por horas a fio.
Sentia-se triste numa determinada hora do dia (cinco horas). Esse era o horário
habitual em que, no inverno, pudera visitar a filha na casa de saúde. Gaguejava
e emitia o estalido com grande freqüência e esfregava as mãos como se estivesse
enfurecida, e quando lhe perguntei se estava vendo muitos animais, apenas
respondeu: “Oh, fique quieto!”
À minha primeira
tentativa de induzir a hipnose, cerrou os punhos e exclamou: “Não deixarei que
me apliquem nenhuma injeção antipirética; prefiro ter minhas dores! Não gosto
do Dr. R.; ele me é antipático.” Compreendi que ela estava presa à lembrança de
ser hipnotizada no sanatório, e acalmou-se tão logo eu a trouxe de volta à
situação atual.
Logo no início
do tratamento |reiniciado| tive uma experiência instrutiva. Eu lhe havia
perguntado há quanto tempo a gagueira voltara, e ela respondera de forma
hesitante (sob hipnose) que tinha sido desde um choque que experimentara em D -
durante o inverno. Um garçom do hotel em que estava hospedada havia se
escondido em seu quarto de dormir. Na escuridão, disse ela, confundira o objeto
com um sobretudo e estendera a mão para apanhá-lo, tendo o homem de repente
“dado um pulo para o alto”. Eliminei essa imagem mental e, de fato, a partir
daquele momento, ela deixou de gaguejar visivelmente, quer na hipnose, quer na
vida de vigília. Não me recordo do que foi que me levou a testar o êxito da
minha sugestão, mas quando voltei na mesma noite, perguntei-lhe, num tom aparentemente
inocente, como eu poderia trancar a porta quando fosse embora (quando ela
estivesse deitada dormindo), de modo que ninguém pudesse entrar furtivamente no
quarto. Para meu assombro, ela levou um susto horrível e começou a rilhar os
dentes e esfregar as mãos. Revelou que tivera um choque violento desse tipo em
D -, mas não consegui persuadi-la a me contar a história. Percebi que tinha em
mente a mesma história que me narrar aquela manhã, durante a hipnose, e que eu
julgara haver apagado. Em sua hipnose seguinte, contou-me a história com maior
riqueza de detalhes e maior verossimilhança. Agitada, estivera andando pelo
corredor de um lado para o outro e encontrara aberta a porta do quarto da
empregada. Tentou entrar e sentar-se. A empregada lhe bloqueou o caminho, mas a
paciente não se deixou deter e entrou, e foi então que viu contra a parede o
objeto escuro que veio a se revelar como sendo um homem. Evidentemente, o fator
erótico dessa pequena aventura é que a levara a fazer um relato falso da mesma.
Isso me ensinou que uma história incompleta sob hipnose não produz nenhum
efeito terapêutico. Acostumei-me a considerar incompleta qualquer história que
não trouxesse nenhuma melhora, e aos poucos tornei-me capaz de ler nos rostos
dos pacientes se eles não estariam ocultando uma parte essencial de suas
confissões.
O trabalho que
tive de levar a efeito com ela nessa ocasião consistiu em lidar, por meio da
hipnose, com as impressões desagradáveis que ela recebera durante o tratamento
da filha e quando de sua própria estada no sanatório. Ela estava cheia de
raiva, reprimida, pelo médico que a tinha obrigado, sob hipnose, a soletrar a
palavra “s…a…p…o” e me fez prometer que jamais a faria dizer isso. A esse
respeito, aventurei-me a fazer uma brincadeira prática numa de minhas sugestões
a ela. Este foi o único abuso da hipnose - aliás um abuso muito inocente - cuja
culpa para com essa paciente tenho de confessar. Assegurei-lhe que sua estada
no sanatório em “-tal” |“vale”| se tornaria tão remota para ela que nem
sequer conseguiria lembrar-se do nome, e sempre que quisesse referir-se a ele
hesitaria entre “-berg” |“colina”|, “-tal”, “-wald”
|“bosque”|, e assim por diante. Isso efetivamente aconteceu, e logo o único
sinal remanescente de sua inibição da fala foi sua incerteza sobre esse nome.
Por fim, após uma observação do Dr. Breuer, aliviei-a dessa paramnésia
compulsiva.
Travei com o que
ela descrevia como “as tempestades na cabeça” uma luta mais longa do que com os
resíduos dessas experiências. Quando a vi pela primeira vez num desses estados,
estava deitada no sofá com as feições transtornadas e todo o corpo em
permanente agitação. Ficava a pressionar a testa com as mãos e a chamar, em
tons de súplica e desânimo, o nome “Emmy”, que era o de sua filha mais velha e
também o seu. Sob hipnose, confessou-me que esse estado era uma repetição dos
numerosos acessos de desespero pelos quais se vira dominada durante o
tratamento da filha, quando, depois de passar horas tentando descobrir algum
meio de corrigir seus efeitos negativos, não se lhe apresentava nenhuma saída.
Quando, em tais ocasiões, sentia que seus pensamentos ficavam confusos, adotava
o hábito de chamar pelo nome da filha, de modo que pudesse ajudá-la a
desanuviar a cabeça; e isso porque, durante o período em que a doença da filha
lhe estava impondo novos deveres e ela sentia que seu próprio estado nervoso
mais uma vez começava a dominá-la, ela determinou que o que quer que tivesse a
ver com a moça devia ficar isento de confusão, por mais caótico que tudo o mais
pudesse estar em sua cabeça.
No decurso de
algumas semanas conseguimos eliminar também essas lembranças, e a Sra. Emmy
permaneceu sob minha observação por mais algum tempo, sentindo-se perfeitamente
bem. Ao final da sua estada aconteceu algo que passarei a descrever com
pormenores, visto que lança a mais intensa luz sobre o caráter da paciente e a
maneira pela qual seus estados se produziam.
Visitei-a um
belo dia na hora do almoço e surpreendi-a no ato de atirar no jardim algo
embrulhado em papel, que foi apanhado pelos filhos do porteiro. Em resposta à
minha pergunta, ela admitiu que era o seu pudim (seco) e que a mesma coisa
acontecia todos os dias. Isso me levou a investigar o que sobrava dos outros
pratos e verifiquei que restava mais da metade da comida. Quando lhe perguntei
por que comia tão pouco, respondeu que não tinha o hábito de comer mais e que
passava mal se o fizesse; a Sra. Emmy tinha a mesma constituição do pai, que
também tinha o hábito de comer pouco. Quando lhe perguntei o que bebia, disse-me
que só podia tolerar líquidos espessos, como leite, café ou chocolate; beber
água, comum ou mineral, lhe perturbava a digestão. Isso tinha todos os sinais
de uma escolha neurótica. Tirei uma amostra de sua urina e verifiquei que
estava altamente concentrada e sobrecarregada de uratos.
Julguei portanto
aconselhável recomendar-lhe que bebesse mais e resolvi também aumentar a
quantidade de seus alimentos. É verdade que ela de modo algum parecia magra a
ponto de chamar atenção, mas mesmo assim achei que valeria a pena fazê-la comer
mais um pouco. Quando, em minha visita seguinte, ordenei-lhe que ingerisse água
alcalina e proibi-a de lidar com o pudim da maneira como fazia, demonstrou
agitação considerável. “Farei isso porque o senhor está pedindo”, disse “mas posso
dizer-lhe de antemão que dará mau resultado, porque é contrário à minha
natureza, e o mesmo aconteceu com meu pai”. Quando lhe perguntei sob hipnose
por que não podia comer mais nem beber água, respondeu num tom mal-humorado:
“Não sei.” No dia seguinte, a enfermeira informou que ela havia comido tudo o
que lhe fora servido e bebera um copo de água alcalina. Mas encontrei a própria
Sra. Emmy numa profunda depressão e num estado de humor muito irritado.
Queixou-se de sentir dores gástricas muito violentas. “Eu lhe disse o que
aconteceria”, falou. “Sacrificamos todos os bons resultados pelos quais vimos
lutando há tanto tempo. Estraguei minha digestão, como sempre acontece quando
como mais ou bebo água, e agora terei de morrer de fome por cinco dias a uma
semana antes que possa tolerar qualquer coisa.” Assegurei-lhe que não havia
nenhuma necessidade de ela morrer de fome e que era impossível estragar a
digestão dessa forma: suas dores se deviam somente à angústia em relação a
comer e beber. Ficou claro que essa explicação minha não causou nela a mais
leve impressão, pois quando, logo depois, tentei fazê-la dormir, pela primeira
vez não consegui provocar a hipnose; e o olhar furioso que ela me dirigiu
convenceu-me de que estava em franca rebelião e de que a situação era muito
grave. Desisti de tentar hipnotizá-la e anunciei que lhe daria vinte e quatro
horas para pensar bem e aceitar a opinião de que suas dores gástricas provinham
apenas de seu medo. No fim desse período, eu lhe perguntaria se ainda era de opinião
que sua digestão podia ser estragada por uma semana pela ingestão de um copo de
água mineral e de uma modesta refeição; se ela dissesse que sim, eu lhe pediria
que fosse embora. Essa pequena cena apresentava um acentuado contraste com
nossas relações normais, que eram as mais amistosas.
Encontrei-a
vinte e quatro horas depois, dócil e submissa. Quando lhe perguntei o que
pensava sobre a origem de suas dores gástricas, ela respondeu, porque era
incapaz de subterfúgios: “Penso que provêm da minha angústia, mas só porque o
senhor é dessa opinião.” Em seguida, coloquei-a em hipnose e perguntei mais uma
vez: “Por que a senhora não consegue comer mais?”
A resposta veio
prontamente e consistiu, mais uma vez, numa série de razões dispostas em ordem
cronológica a partir de seu acervo de lembranças: “Estou pensando em como,
quando eu era criança, muitas vezes acontecia que, por malcriação, recusava-me
a comer carne ao jantar. Minha mãe era muito severa a esse respeito e, sob a
ameaça de um castigo exemplar, eu era obrigada, duas horas depois, a comer a
carne, que era deixada no mesmo prato. A essa altura a carne já estava muito
fria e a gordura, muito dura” (ela demonstrou sua repulsa) “…Ainda posso ver o
garfo na minha frente… um de seus dentes era meio torto. Sempre que me sento à
mesa vejo os pratos diante de mim, com a carne e a gordura frias. E me lembro
como, muitos anos depois, morei com meu irmão, que era oficial e teve aquela
doença horrível. Eu sabia que era contagiosa e tinha um medo terrível de apanhar
sua faca e seu garfo por engano” (estremeceu) “…e apesar disso, fazia minhas
refeições com ele, para que ninguém soubesse que ele estava doente. E como,
logo depois disso, cuidei de meu outro irmão quando esteve muito doente de
tuberculose. Sentávamos ao lado de sua cama, e a escarradeira ficava sempre
sobre a mesa, aberta” (estremeceu de novo) “…ele tinha o hábito de escarrar por
sobre os pratos na escarradeira. Isso sempre me provocava muita náusea, mas eu
não podia demonstrá-la, temendo magoar os sentimentos dele. E essas
escarradeiras ainda estão na mesa sempre que faço uma refeição, e ainda me
causam náuseas.” Naturalmente, removi com cuidado todo esse conjunto de
fomentadores da repulsa e então lhe perguntei por que ela não conseguia beber
água. Quando tinha dezessete anos, respondeu, a família havia passado alguns
meses em Munique e quase todos os membros haviam contraído catarro gástrico,
graças à água potável de má qualidade. No caso dos outros, o distúrbio foi logo
aliviado pelos cuidados médicos, mas com ela havia persistido. Tampouco
melhorara com a água mineral que lhe fora recomendada. Quando o médico a
receitou, ela logo pensou: “isso não vai adiantar nada”. A partir daquela
ocasião, essa intolerância pela água comum e pela água mineral repetiu-se
inúmeras vezes.
O efeito
terapêutico dessas descobertas sob hipnose foi imediato e duradouro. Ela não
passou fome durante uma semana, mas logo no dia seguinte comeu e bebeu sem
nenhuma dificuldade. Dois meses depois, informou-me numa carta: “Estou comendo
muitíssimo bem e ganhei bastante peso. Já bebi quarenta garrafas de água. O
senhor acha que devo continuar?”
Revi a Sra. von
N. na primavera do ano seguinte em sua propriedade rural perto de D-. Nessa
ocasião, sua filha mais velha, por cujo nome ela havia chamado durante suas
“tempestades na cabeça”, entrou numa fase de desenvolvimento anormal. Exibia
ambições desenfreadas, inteiramente desproporcionais a seus escassos dons, e
tornou-se desobediente e até violenta para com a mãe. Eu ainda gozava da confiança
da Sra. Emmy e fui chamado para dar minha opinião sobre o estado da moça. Tive
uma impressão desfavorável da alteração psicológica que se processara na jovem
e, para chegar a um prognóstico, também tive que levar em conta o fato de que
todos os seus meio-irmãos e irmãs (os filhos do primeiro matrimônio do Sr. von
N.) tinham sucumbido à paranóia. Também na família de sua mãe não faltava uma
hereditariedade neuropática, embora nenhum de seus parentes mais próximos
houvesse desenvolvido psicose crônica. Comuniquei à Sra. von N., sem qualquer
reserva, a opinião que me havia pedido, e ela a recebeu com calma e
compreensão. Ela havia engordado, e sua saúde era florescente. Tinha-se sentido
relativamente bem durante os nove meses decorridos desde o término de seu
último tratamento. Fora perturbada apenas por ligeiras cãibras no pescoço e
outros males de pequena monta. Nos vários dias que passei em sua casa vim a
compreender, pela primeira vez, toda a extensão de seus deveres, ocupações e
interesses intelectuais. Conheci também o médico da família, que não tinha
muitas queixas da paciente: logo, até certo ponto, ela fizera as pazes com a
profissão médica.
Em inúmeros
aspectos, portanto, ela estava mais saudável e mais apta; porém, apesar de
todas as minhas sugestões de melhora, verificara-se pouca alteração em seu
caráter fundamental. Ela não parecia ter aceito a existência de uma categoria
de “coisas sem importância”. Sua inclinação para atormentar-se era muito pouco
menor do que na época do tratamento, e tampouco sua disposição histérica
estivera estagnada durante esse bom período. Ela se queixava, por exemplo, de
uma impossibilidade de fazer viagens de trem, de qualquer duração. Isso
aparecera nos últimos meses. Uma tentativa necessariamente apressada de aliviá-la
dessa dificuldade resultou apenas na produção de diversas impressões
desagradáveis e insignificantes deixadas por algumas viagens recentes que ela
fizera a D- e suas imediações. Entretanto, ela parecia relutar em ser
comunicativa sob hipnose, e comecei mesmo a suspeitar de que estava a ponto de
se afastar mais uma vez da minha influência e de que a finalidade secreta de
sua inibição em relação aos trens era impedir que fizesse uma nova viagem a
Viena.
Foi também
durante esses dias que ela formulou suas queixas a respeito de lacunas na
memória, “em especial quanto aos fatos mais importantes” |ver em [1]|, donde
concluí que o trabalho que eu executara dois anos antes tinha sido inteiramente
eficaz e duradouro. - Um dia, ela passeava comigo por uma avenida que se
estendia da casa até uma enseada no mar e me arrisquei a perguntar se o caminho
costumava ficar infestado de sapos. Como resposta, ela me lançou um olhar de
censura, embora não acompanhado de sinais de horror; ampliou isso um momento
depois, com as palavras “mas os daqui são reais”. Durante a hipnose, que
induzi para lidar com sua inibição a respeito dos trens, ela própria pareceu
insatisfeita com as respostas que me deu e externou o temor de que, no futuro,
era provável que fosse menos obediente sob hipnose do que antes. Decidi-me a
convencê-la do contrário. Escrevi algumas palavras num pedaço de papel,
entreguei-o a ela e disse: “No almoço de hoje a senhora me servirá um copo de
vinho tinto, da mesma forma que ontem. Quando eu levar o copo aos lábios, a
senhora dirá: ‘Oh, por favor, sirva-me também um copo de vinho’, e quando eu
estender a mão para apanhar a garrafa, dirá: ‘Não, obrigada; afinal, acho que
não vou querer’. A senhora então porá a mão em sua bolsa, retirará dela um
pedaço de papel e encontrará essas mesmas palavras escritas nele”. Isso foi
pela manhã. Algumas horas depois, o pequeno episódio ocorreu exatamente como eu
o havia predisposto, e de maneira tão natural que nenhuma das muitas pessoas
presentes notou qualquer coisa. Quando me pediu o vinho, ela revelou visíveis
sinais de uma luta interna - pois nunca bebia vinho - e depois de haver
recusado a bebida com evidente alívio, pôs a mão na bolsa e retirou o pedaço de
papel em que figuravam as últimas palavras que havia pronunciado. Balançou a
cabeça e olhou-me com assombro.
Após minha
visita em maio de 1890, minhas notícias da Sra. von N.foram ficando cada vez
mais escassas. Soube indiretamente que o estado deplorável da filha, que lhe
causava todas as espécies de aflições e agitações, acabou por minar-lhe a
saúde. Por fim, no verão de 1893, recebi dela um bilhete pedindo-me permissão
para ser hipnotizada por outro médico, visto que voltara a ficar doente e não
podia vir a Viena. A princípio, não compreendi por que minha permissão era necessária,
até me recordar que, em 1890, por sua própria solicitação, eu a havia protegido
de ser hipnotizada por qualquer outra pessoa, para que não houvesse nenhum
risco de ela ficar aflita ao se colocar sob o controle de algum médico que lhe
fosse antipático, tal como acontecera em -berg (-tal, -wald). Por
conseguinte, renunciei por escrito a minha prerrogativa exclusiva.
Continua na parte 2
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