Psicopatologia Psicanalítica - Princípios

Sobre os princípios da psicopatologia
psicanalítica: sexuação e invenção
Tânia Coelho dos Santos

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Acredito que essa pesquisa sobre os fundamentos da psicopatologia
psicanalítica contribua para atualizar os princípios da direção da cura
psicanalítica, retomando-os a partir dos impasses da sexuação. Isso é
importante para orientar os praticantes da psicanálise aplicada sobre
o que podemos esperar – sem abrir mão dos princípios dessa prática –
no âmbito dos efeitos terapêuticos. Acredito que essa discussão
contribua para renovar a controvérsia sobre a diferença estrutural entre
a neurose e a psicose na contemporaneidade.
Palavras-chave: Psicopatologia psicanalítica, pulsão, sexuação, invenção





A pesquisa em psicanálise não se reduz à repetição dos clássicos,ao contrário do que muitos críticos de nosso método de trabalho costumam
afirmar. Ela nos exige atualizar as ferramentas teóricas e a experiência
clínica para enfrentar os efeitos do progresso das ciências: as novas
configurações do mal-estar e do sofrimento psíquico na civilização. Para
a atualização do nosso conhecimento, é preciso incorporar urgentemente
as transformações epistemológicas do discurso da ciência. Parece um
paradoxo, mas o sujeito sobre o qual a psicanálise opera é o sujeito da
ciência, logo, essas mudanças têm efeitos muito importantes nas rela-
ções da pulsão com o Outro. Em particular, aquelas que são efeito da
própria difusão do discurso analítico e da radicalização das ideologias
individualistas, na medida em que contribuem para a absolutização do
direito ao gozo, empobrecendo as obrigações que sedimentam os laços
sociais. Elas se refletem nos impasses novos que o sujeito encontra para
tomar seu lugar no campo da fala, pois são a conseqüência dos novos
imperativos ordenadores da cultura, imperativos estes que impulsionam
ao consumo, aos excessos e às satisfações excluídas do circuito da fala.
Novas modalidades de sintoma, com efeitos inusitados sobre o laço
social, desafiam o ato analítico, requerendo a renovação do campo da
interpretação e da formação do psicanalista. Enfrentá-los, contornando
o risco de rebaixar o campo do inconsciente – campo da fala e da
linguagem – à comunicação intersubjetiva, nos exige avançar a pesquisa
psicanalítica.
Precisamos compreender melhor como se estruturam esses novos
sintomas pois, freqüentemente, não sabemos dizer se são neuroses ou
psicoses ou, até, se são novas neuroses e novas psicoses. Em
conseqüência das mudanças na civilização, precisamos retomar os
princípios da teoria e da prática psicanalítica para expandir as
modalidades de tratamento, para subsidiar a psicanálise aplicada com fins
terapêuticos em instituições de saúde, escolares e jurídicas. É preciso
incentivar a pesquisa universitária sobre os princípios da prática
psicanalítica, os finais de análise e a própria finalidade de uma psicanálise,
para que a universidade possa assumir o papel que ela deve ter na
formação de psicanalistas e pesquisadores em teoria psicanalítica.

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Em resposta a essas perguntas começamos por tomar como método fazerdo vício virtude (Coelho dos Santos, mar.2004, p. 63-74). Se a posição subjetiva
dominante nos dias de hoje é a reivindicação de ser tratado como uma exceção
(Coelho dos Santos e Azeredo, dez.2005, p. 77-96; Coelho dos Santos e Freitas,
set.2005, p. 246-60) e se o lugar do Outro na contemporaneidade oscila entre a
impotência e a impossibilidade, a clínica psicanalítica hoje deve partir do caso a
caso. É a conseqüência da precariedade dos universais, quando o simbólico é
mais inconsistente e mais fragmentado, e não temos mais certeza de que o
complexo de Édipo seja o sintoma coletivo. Não é suficiente classificar o sujeito
como neurótico ou psicótico, de acordo com a presença ou a ausência do Nomedo-Pai.
Muitas vezes, um ponto de vista continuista, baseado na quantidade
pulsional, aponta que alguns sintomas neuróticos podem ser tão graves quanto
outros tantos sintomas psicóticos. Na história do movimento psicanalítico, alguns
desses pacientes foram classificados como borderlines e tratados por meio da
contratransferência como recurso técnico.
O surgimento de uma teoria da técnica baseada na contratransferência foi
o índice de que alguns analistas, e Wilhelm Reich em particular, já percebiam
que a distinção entre neurose e psicose não era muitas vezes tão nítida. Foi o
sinal de que os poderes da interpretação do inconsciente, como um retorno do
recalcado, eram insuficientes diante das novas modalidades de sofrimento
psíquico. O desejo do analista, conceito lacaniano, não é – ao contrário do que
se costuma repetir – sem relações com a contratransferência. Mais além do
inconsciente – que é estruturado como a linguagem – há um real da pulsão que
é sem lei, em jogo na relação analítica. O desejo do analista, conceito lacaniano,
foi fundamental para acolher a potência crítica, mas também superar a técnica
de contratransferência (Coelho dos Santos, mar.2004, p. 68-71). Avançamos a
nossa pesquisa em direção ao mais além do Édipo e do inconsciente, abordando
o real sem lei da pulsão, por meio da inexistência da relação sexual. O desacordo
entre o saber e o gozo enraíza-se na diferença sexual e na dissimetria dos gozos
feminino e masculino.
Uma nova abordagem dos limites da interpretação
Para tratar os novos sintomas, que muitas vezes parecem inclassificáveis
– nem neuróticos, nem psicóticos – é preciso que a investigação psicanalítica
não reduza o Nome-do-Pai ao prisma exclusivo do complexo de Édipo (Coelho
dos Santos, 2005, p. 61-92). Em conseqüência da universalização dos direitos
do homem e do progresso da ciência, existe uma tendência ideológica muito forte


e poderosa na contemporaneidade à homogeneização dos sexos e das gerações.Essa ideologia, que nasceu com os movimentos sociais pela igualdade entre os
sexos e as gerações produziu – quando de seu nascimento, nas décadas de 1960
e 1970, e o faz mais ativamente hoje – o desbussolamento do homem
contemporâneo assim como a confusão de referências identificatórias.
O significante mestre, base da identificação, vacila, apaga-se ou é rebaixado.
O índice mais evidente dessa nova configuração de valores é a quase inexistência
de homens excepcionais. No lugar dos grandes inventores, escritores,
governantes, políticos e visionários, a cena pública exibe hoje, sem pudor, uma
grande quantidade de personagens medíocres, de cultura de massa, de
governantes impotentes, de políticos corruptos, de homens míopes e
manipuladores (Miller, 2003). Dificilmente continuaremos a pensar a função do
Nome-do-pai, por meio da força constituinte, da autoridade obscura, poética,
infundada do homem excepcional ou do texto sagrado. O declínio desse lugar
sagrado e dissimétrico vai de par com o esvaziamento do valor da transmissão
da experiência entre as gerações (Coelho dos Santos, 2004, p. 1-32).
Não é apenas o declínio da diferença geracional que afeta o indivíduo
contemporâneo de uma tendência à desidentificação. Também a desvalorização
da diferença sexual tem efeitos de desregulação do corpo, do prazer e do gozo.
O advento do discurso da ciência, apoiado na assunção de que todos os homens
nascem livres e iguais, vem desenvolvendo uma concepção de ciência baseada
em evidências estatísticas que impõem várias modalidades de avaliação dos
indivíduos de acordo com um padrão, ou um tipo de homem/mulher médio. O
efeito dessa nova mentalidade avaliadora e homogeneizante é o de nos levar a
presumir que existe um homem/mulher sem qualidades, o que desembocou na
psicopatologia prêt à porter do DSM-IV.
No lugar da fina psicopatologia clássica, herdada da psiquiatria e
desenvolvida pela psicanálise, temos uma nova literatura científica que se refere
a sintomas que nos parecem ilegíveis, porque nascem com essa forma de recusa
do inconsciente e da singularidade do sujeito (Miller, nov.2005-abr.2006) . A
dúvida quanto ao diagnóstico é uma constante na prática atual. Como as psicoses
são hoje muito menos delirantes, e podem ser estabilizadas por meio de
psicoterapias e medicamentos, muitas vezes não se distinguem das novas formas
da neurose. Também as neuroses são muito menos alimentadas pelo sentido. No
lugar da renúncia à sexualidade, verificamos uma tendência muito acentuada em
direção a modalidades substitutas de satisfação: compulsões, adições, pânico,
depressões que dispensam o sentido, pois se referem a um objeto determinado.
No lugar das grandes doenças do Outro consistente – neuroses, psicoses e
perversões – temos muito mais doenças da mentalidade. Estas últimas se
distinguem por uma precariedade simbólica que alguns pesquisadores em

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psicanálise acreditam ter relação com a fraqueza da metáfora paterna, mas quese manifestam como uma subjetividade carente de autonomia e responsabilidade
(Coelho dos Santos, set.2005, p. 74-81).
Como Jacques Lacan havia formulado no conhecido artigo “A ciência e a
verdade” (1965/1966, p. 855-878), cabe à psicanálise reintroduzir na consideração
científica o Nome-do-Pai. O declínio de toda autoridade simbólica na cultura
recomenda que no lugar de buscar a função do Nome-do-Pai sob a forma do
ideal, do indivíduo excepcional, nos inclinemos, preferencialmente, para os efeitos
do complexo de castração, da diferença sexual e da dissimetria essencial entre a
modalidade de gozo feminino e masculino. Desse modo, fui levada a reduzir a
questão da função paterna ao seu núcleo mínimo: um homem que coloca uma
mulher no lugar de objeto-causa do seu desejo. Deixei de procurar sua autoridade
obscura e infundada nos emblemas e brasões do pai idealizado. Essa estrutura
mínima, o desejo do homem por uma mulher, será ela suficiente para sustentar
o fardo pesado da autoridade paterna na constituição do sujeito, e separar meninos
e meninas de suas mães?
A clínica do real
Partir de um mínimo estrutural, em tempos de desprezo pela estrutura, exige
ir além da alternativa entre presença e ausência do Nome-do-Pai, como critérios
distintivos da neurose e da psicose, para tratar os casos inclassificáveis da clínica
contemporânea. Seguindo a orientação sugerida pelos investigadores do Campo
Freudiano, sob a coordenação de Jacques-Alain Miller (cf. Miller et al., 1997),
estudei a possibilidade de estruturar uma abordagem diagnóstica baseada no
critério da quantidade pulsional. Uma clínica continuista, baseada no real da
pulsão, em acréscimo à clínica estrutural clássica, baseada no Nome-do-Pai e
no inconsciente (Miller et al., 1999). Ela nos remete mais diretamente àquilo que
regula a angústia: o sofrimento psíquico, a invasão de gozo. No curso dessa
elaboração fui levada a reconsiderar o papel do complexo de castração na
abordagem da questão do sintoma neurótico ou psicótico como modo de
regulação ou de desregulação pulsional. Justamente nesse ponto, fui obrigada a
reconhecer que, porque o gozo não se reduz ao sentido, o homem e a mulher
não podem ser reduzidos ao “sujeito do significante”; nem a particularidade do
seu desejo pode ser homogeneizada sob a fórmula do fantasma unissex:  <> a
(Coelho dos Santos, 2005b, p. 37-53). Acredito que na neurose, bem como na
psicose, o sintoma que regula o gozo é diferente conforme o sexo (Coelho dos
Santos et al., no prelo).

Comecei a testar a hipótese de que a diferença estrutural entre neurose epsicose não é um critério suficiente para classificar e tratar o sofrimento psíquico.
É preciso reintroduzir a diferença entre os modos de regulação do real pulsional
de homens e mulheres. A regulação fálica, própria ao sexo masculino, é muito
diferente da desregulação erotomaníaca, própria ao gozo feminino. Na psicose,
observamos muitas vezes um “empuxo à mulher”. Entretanto, o excesso pulsional
e a desregulação numa mulher não são necessariamente psicoses. Em tempos
de declínio da função paterna é preciso ter em conta a dissimetria dos modos de
gozo masculino e feminino. Passei, então, a refazer o percurso do conceito de
complexo de castração em Freud (1923, p. 177-86). Destaquei as linhas principais
da constituição do sujeito, menino ou menina, diante da diferença sexual (Freud,
1925, p. 303-22). Em particular sua consideração acerca das diferenças entre
as atitudes frente ao complexo de castração, bem como a entrada e a saída do
Édipo em meninos e meninas. É o temor de ser castrado que leva o menino a
sair do Édipo. A menina entra no Édipo em conseqüência do sentimento de injúria
narcísica por não ter sido contemplada pela mãe com a posse do pênis (Freud,
1924, p. 215-26).
Retomei, à luz dos seminários de Lacan, a importância distintiva do pai
para um e para o outro sexo. Ele é o agente imaginário da castração para o
menino, que interdita o objeto incestuoso e se torna um traço na identificação
constitutiva do supereu. Para a menina, ele é aquele que tem o pênis e pode dá-
lo, bem como pode dar um filho como seu substituto. Diferentemente do menino,
o pai não interdita propriamente o objeto incestuoso, nem se faz um traço de
identificação no caso das meninas (Freud, 1931, p. 257-81). Pude renovar o
sentido, tantas vezes mal-interpretado, da afirmação freudiana de que as mulheres
não têm um supereu “tão inexorável, tão impessoal e tão independente de suas
origens emocionais como exigimos que o seja nos homens” (Freud, 1925,
p. 319-20). Essa dupla matriz ganha toda sua importância quando se trata de
avaliar os resultados de uma análise. O rochedo da castração gira em torno do
destino dos restos das relações com o mesmo sexo, que Freud chamou de repúdio
da feminilidade. Os homens temem a castração, e por essa razão temem submeterse
a um outro homem. As mulheres aferram-se à reivindicação do falo, como
defesa contra os resíduos de suas relações libidinais arcaicas com sua mãe (Freud,
1933, p. 139-65). O repúdio da feminilidade, para um e para o outro sexo, a
sexuação como homem ou como mulher, é o resto irredutível de uma análise
(Freud, 1937, p. 239-87). A psicologia de cada um, seu caráter conforme o seu
sexo, é o rochedo da castração. Nesse ponto, a pulsão, na fronteira entre o
somático e o psíquico, é um acontecimento provocado pela incorporação do
significante a um corpo anatômicamente sexuado. Somente a incorporação do
significante, homem ou mulher, permite ao ser humanizado pela linguagem asceder

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à sexualidade psíquica. É sobre esse terreno real da pulsão que as elucubraçõesfantasmáticas do inconsciente vão se assentar. É preciso, para compreender
melhor os transtornos da sexuação, referir-se à diferença entre o real e o
inconsciente.
Efetuei um percurso nas formulações lacanianas sobre a diferença entre
os sexos (Coelho dos Santos, 2005c, p. 65-117). Verifiquei que no seu esforço
de significantização do complexo de Édipo, e na intenção de elevar o mito à
dignidade da estrutura, esse psicanalista promoveu, durante alguns anos de sua
elaboração, uma teoria da constituição do sujeito relativamente indiferente à
diferença sexual. O axioma: “o sujeito é o que um significante representa para
um outro significante”, que tantas vezes repetimos, não nos exige saber se o
sujeito do significante é um homem ou uma mulher. As virtudes econômicas dessa
formalização tenderam a reduzir as diferenças imaginárias entre os sexos, em
particular as anatômicas, à diferença simbólica entre dois significantes. O que
vem a ser um homem ou uma mulher? Quando se trata tão-somente de
significantes, parece que o sexo anatômico não é o aspecto mais relevante em
jogo, e sim a pura nomeação (Freud, 1937, p. 117-43).
Ao acentuar a distinção entre a pulsão e o instinto, Lacan promoveu a tese
de que a pulsão não tem objeto, destacando o valor enigmático do desejo sexual.
No fantasma inconsciente, são os objetos parciais que servem às finalidades de
satisfação pulsional. Essa ferramenta conceitual ressaltou demasiadamente a idéia
de que a sexualidade é autoerótica, e completamente desligada das finalidades
naturais da biologia. Essa tendência foi reforçada pela formalização da fantasia
inconsciente. A fórmula do fantasma, <>a, implica que consideremos que todo
sujeito é sujeito do significante identificado ao traço paterno ideal e que deseja
um objeto parcial, resto do gozo não significantizado (Lacan, 1964). A fórmula
é unissex e o objeto do gozo fantasmático é auto-erótico. Como explicar então a
orientação de um sexo em direção ao outro? Como é que se chega, uma vez que
se parte do fantasma auto-erótico e unissex, ao encontro do parceiro
heterossexuado e à cópula? (Freud, 1937, p. 143-65).
As leituras da sexuação, ensejadas pelo seu Seminário XX, Mais, ainda,
(Lacan, 1972/1973, p. 73-82) aprofundaram a redução do sexo anatômico às
suas conseqüências psíquicas (Coelho dos Santos, maio-out.2006). As fórmulas
da sexuação promovem uma teorização do funcionamento psíquico masculino e
feminino, como suplências da relação sexual que não há. Elas nos levaram a
acreditar que qualquer indivíduo poderia, idealmente, situar-se do lado masculino
ou feminino da tábua da sexuação. O que é feito da diferença anatômica entre
os sexos? Minha hipótese é a seguinte: pelo fato de na psicose masculina existir
freqüentemente um empuxo no sentido de encarnar e fazer existir “A Mulher”
absoluta, acreditou-se que essa posição subjetiva comprovaria que o sexo

anatômico é independente do sexo psíquico. Uma outra evidência abusivamenteutilizada em apoio da dissociação entre sexo anatômico e sexo psíquico é o fato
de que algumas mulheres histéricas exibem teatralmente uma certa virilidade,
resultado de uma identificação com o homem. Ambas as evidências contribuíram
para apagar as marcas do exame delicado, que Freud perseguiu, das
“conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”.
Recentemente, Jacques-Alain Miller esforçou-se para desenvolver uma tese
acerca da biologia em jogo na obra de Lacan. Destacou em particular a idéia de
que o sintoma é um acontecimento significante de corpo (Miller, fev.2000, p. 7-
60). Deste modo, acredito que é preciso deslocar a questão da sexuação do campo
dos efeitos do complexo de castração, do Édipo e da função paterna, para o
campo mais precoce da incidência da língua. Antes mesmo que um ser falante
compareça como acontecimento significante de corpo, ele é falado pelo Outro
materno. Uma das primeiras marcas que uma criança recebe é a designação rígida
como menino ou menina. Por essa razão, entre as marcas precoces desta
nomeação primeira funda-se a possibilidade de que alguém reconheça, ou não,
“sua anatomia como seu destino.”
Em seu artigo, “A partilha sexual”, Miller (1999b, p. 7-28) nos apresenta
toda uma tipologia do caráter masculino e feminino, bastante subversiva das
representações tradicionais dos gêneros. Desenvolve, conforme os efeitos de uma
lógica opositiva entre o ter e o não ter, a psicologia essencialmente prudente
própria ao masculino. Avança, por outro lado, aquilo que é próprio às mulheres:
a posição destemida e a tendência a afrontar todo aquele que pretende ocupar o
lugar de exceção. O que explica essa vocação feminina para a confrontação é,
como ele nos propõe, o fato de a mulher não ter nada a perder. Quem não tem
nada a perder, também não se submete à regulação fálica. Penso que essa tipologia
é extremamente útil para compreender a diferença essencial entre os sintomas
masculinos e femininos. Ela surge da dissimetria essencial entre o modo de gozo
feminino (excesso sem lei) e masculino (lei fálica). O homem, identificado ao
pai como exceção (), deseja a mulher como objeto a, causa do seu desejo. As
mulheres, por sua vez, procuram no homem a conjunção falo/pênis, que lhes
proporciona um certo efeito de identificação e de regulação do excesso pulsional.
Entretanto, isso não é tudo. Tal como Freud, Lacan reconhece que o continente
negro da feminilidade não é o mesmo que a sexualidade feminina. A feminilidade,
ele a formaliza por meio do matema S (), que designa o gozo feminino como a
fala enquanto tal. Do seu parceiro ela espera que ele fale, que ele lhe enderece
palavras de amor. O impasse entre os sexos nasce dessa dissimetria entre o gozo
sexual feminino e o masculino. O gozo da mulher é tecido no discurso amoroso,
enquanto que o homem aborda silenciosamente seu objeto fantasmático (Lacan,
1972/1973, p. 73-82).

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Penso que as conseqüências mais férteis dessa formalização se destacamem seu Seminário inédito RSI (1975/76), quando ele redefine a função paterna
reduzindo-a ao seu osso: a escolha que faz um homem de uma mulher como
objeto do seu desejo (Coelho dos Santos, 2006, p. 57-72). Uma mulher precisa
consentir em fazer às vezes desse objeto causa do desejo. No seminário seguinte,
intitulado “Le Sinthome” (Lacan, 1975/1976, p. 101), ele desenvolve uma nova
ética, a da responsabilidade sexual. Uma mulher é, para um homem, um sinthoma.
Um homem é, para uma mulher, pior que um sintoma, uma aflição.
Do Nome-do-Pai ao real sem lei: sexuação e invenção
Com base nessa breve revisão das minhas principais considerações teóricas
atuais, situo algumas questões a serem mais profundamente investigadas. Acredito
que essa pesquisa sobre os fundamentos da psicopatologia psicanalítica contribua
para atualizar os “princípios da direção da cura psicanalítica”, retomando-os a
partir dos impasses da sexuação. Isso é importante para orientar os praticantes
da psicanálise aplicada sobre o que podemos esperar (sem abrir mão dos
princípios dessa prática) no âmbito dos efeitos terapêuticos. Acredito que essa
discussão contribua para renovar a controvérsia sobre a diferença entre a neurose
e a psicose na contemporaneidade.
A antiga grafia da palavra sintoma – sinthoma – vem aqui designar o que
ele tem de mais essencial, seu osso. É em torno dessa diferença de grafia que
vou desenvolver as novas etapas da minha pesquisa. Os sintomas de um sujeito
masculino são os resíduos das fixações auto-eróticas e o índice da não dissolução
do complexo de Édipo. O sinthoma é outra coisa. Como Lacan precisou, uma
mulher é, para um homem, um sinthoma (Lacan, 2005, p. 101). Uma mulher é
o sinthoma de um homem, eu interpreto assim, porque ela localiza para ele o
excesso da pulsão de morte. Uma mulher encarna, para um homem, o real sem
lei da pulsão. Quero investigar mais detidamente as raízes da posição sexuada
masculina em suas relações com o Nome-do-Pai. Em particular, trata-se de
averiguar o laço entre a identificação (S1) e as modalidades de escolha da parceira,
com base no objeto a. Dada a estrutura normal do desejo fetichista masculino,
como se traça a via que leva à paternidade para cada um? É preciso renovar a
distinção entre a posição sexuada masculina da neurose obsessiva, uma vez que
a tradição lacaniana muitas vezes tende a reduzir uma a outra.
Freud distinguia a sexualidade feminina (Weiblich sexualität) e a feminilidade
(Weiblichkeit). Distinguir os sintomas femininos, do sinthoma masculino. Haverá

do lado da mulher um sinthoma? Segundo Lacan, “... um homem é para umamulher pior que um sintoma, uma aflição” (Lacan, 1975/1976, p. 101). Pelo estudo
dos relatos de final de análise (Coelho dos Santos, 2006, p. 57-72) , venho
tentando desdobrar as modalidades do consentimento feminino à posição de objeto
do desejo de um homem (Coelho dos Santos, nov.2006). Como uma mulher se
acomoda no fantasma masculino? Em que medida essa acomodação ao fantasma
de um homem, é reveladora do famoso continente negro da feminilidade, ou das
obscuras relações primitivas de uma menina com sua mãe? Será que um homem
sempre precisa fazer um certo cálculo sobre as relações de uma mulher com
sua mãe, para levá-la a consentir em encarnar o que, para ele, é um objeto a?
(Laurent, maio-out.2006). Por outro lado, uma mulher precisa, segundo Lacan,
localizar no corpo do homem o significante do seu desejo (Lacan, 1958, p. 685-
696). Isso é suficiente para localizar o real sem lei do gozo feminino? Existe
conjunção ou disjunção entre a relação de uma mulher a S() – o discurso
amoroso – e ao falo? Como distinguir os efeitos terapêuticos de um final de
análise propriamente dito quanto a esse ponto?
A palavra sinthoma é utilizada, no Seminário XXIII, com outro sentido ainda,
quando Lacan se refere aos efeitos de uma análise. A hipótese do inconsciente,
ele esclarece, não é nada mais que o efeito da crença em Deus, no Nome-doPai.
Ela é correlativa da suposição de saber ao Real. Ainda de acordo com Lacan
nesse mesmo seminário, podemos “prescindir do Nome-do-Pai, à condição de
sabermos nos servir dele” (Lacan, 1975/1976, p. 136). Como exemplo desse
ultrapassamento, ele apresenta a invenção do Real, isto é, seu próprio sinthoma.
O Real é o nome que Lacan inventa para o campo da pulsão de morte, afastandose,
por meio da invenção de uma nova escrita borromeana da pulsão, da energética
freudiana. O que significa, entretanto, esse outro uso da palavra sinthoma, que
designaria um passo no sentido de prescindir, sabendo se servir do Nome-doPai?
(Coelho dos Santos, 2005d). Será que a invenção de uma escrita é sempre
o caminho masculino para se separar da submissão a um outro homem? É o
modo masculino de tratar o repúdio da feminilidade? Será que Lacan nos oferece,
por meio de seu próprio caso, ao final da análise, a invenção como um
ultrapassamento da ameaça de castração?
Finalmente, Lacan define o analista como um sinthoma. Como se articulam
então, ao final da análise, a sexuação e a invenção para homens e mulheres?
Deveríamos designar pelo artigo definido, o psicanalista e a psicanalista? Que
lições podemos retirar desse esforço lacaniano de circunscrever e nomear a pulsão
de morte e o incurável no final das análises para repensar as estruturas, as
construções e o tratamento possível da psicose?

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Resumos
(Sobre los principios de la psicopatología psicoanalítica: sexuación e invención)
Estimo que esta investigación sobre los fundamentos de la psicopatología
psicoanalítica contribuirá para actualizar los principios de la dirección de la cura
psicoanalítica, retomándolos a partir de los impases de la sexuación. Esto es importante
para orientar a los practicantes del psicoanálisis aplicado sobre aquello que se puede
esperar – sin que se tenga que abrir mano de los principios de ésta práctica – en el
ámbito de los efectos terapéuticos. Pienso que esta discusión será un aporte para
renovar la controversia sobre la diferencia entre neurosis y psicosis en los días de hoy.
Palabras clave: Psicopatología psicoanalítica, pulsiones, sexuación, invención
(Sur les principes de la psychopathologie psychanalytique: sexuation et invention)
Le but de la présente recherche sur les fondements de la psychopathologie
psychanalytique est de contribuer à la mise à jour des principes de la direction de la
guérison psychanalytique à partir des impasses de la sexuation. Ceci joue un rôle
important dans l’orientation des pratiquants de la psychanalyse appliquée par rapport
à ce qu’on peut attendre dans le domaine des effets thérapeutiques, sans renoncer aux

principes de cette pratique. Nous sommes convaincus que cette discussion va contribuerau renouvellement du débat sur la différence des structures névrotiques et psychotiques
dans la contemporanéité.
Mots clés: Psychopathologie psychanalytique, pulsions, sexuation, invention
(On the principles of psychoanalytic psychopathology: sexuation and invention)
It is hoped that this study based on psychoanalytic psychopathology will be useful
in updating some of the principles of psychoanalytical treatment by relating them to
impasses in sexuation. This is an important factor in orienting practitioners of
psychoanalysis regarding the therapeutic effects that can be expected, without their
having to abandon their principals. It is hoped that this discussion will contribute to
the debate on the structural differences between neurosis and psychosis.
Key words: Psychoanalytical psychopathology, drives, sexuality, invention
TANIA COELHO DOS SANTOS
Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PUC-RJ (Rio de Janeiro, RJ, Brasil);
doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUCRJ;
Pós-Doc no Départmant de Psychanalyse da Universidade Paris-VIII, França; membro da
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (São Paulo, SP, Brasil);
membro da Escola Brasileira de Psicanálise (Rio de Janeiro, RJ, Brasil) e da Associação Mundial
de Psicanálise (Buenos Aires, Argentina).
Rua Prof. Julio Lohman, 430 – Joatinga
22611-170 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Fonefax: (21) 493-6306
e-mail: taniacs@openlink.com.br
Versão inicial recebida em fevereiro de 2007
Versão aprovada para publicação em outubro de 2007