Um caso de histeria.
Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade e outros trabalhos
VOLUME VII
(1901-1905)
Dr. Sigmund Freud
FRAGMENTO DA
ANÁLISE DE UM CASO DE HISTERIA (1905[1901])
NOTA DO EDITOR INGLÊS (JAMES STRACHEY)
BRUCHSTÜCK EINER
HYSTERIE-ANALYSE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
(1901 24
de jan. Conclusão do primeiro manuscrito sob o título de “Traum und Hysterie”
[“Sonhos e Histeria”].)
1905 Mschr. Psychiat. Neurol., 18 (4 e 5), out.
e nov., 285-310 e 408-467
1909 S.K.S.N., II, 1-110. (1912, 2ª ed.; 1921,
3ª ed.)
1924 G.S., 8, 3-126.
1932 Vier Krankengeschichten, 5-141.
1942 G.W., 5, 163-286.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Fragment of an Analysis of a Case of Hysteria’
1925 C.P., 3, 13-
146. (Tr. Alix e James Strachey.)
A
presente tradução inglesa é uma versão corrigida da que foi publicada em 1925.
Embora
este caso clínico só tenha sido publicado em outubro e novembro de 1905, sua
maior parte foi escrita em janeiro de 1901. A descoberta das cartas de Freud a
Wilhelm Fliess (Freud, 1950a) proporcionou-nos um grande número de
evidências contemporâneas sobre o assunto.
Em 14 de
outubro de 1900 (Carta 139), Freud diz a Fliess que começara pouco antes a
tratar de uma nova paciente, “uma jovem de dezoito anos”. Esta moça era
evidentemente “Dora”, e, como sabemos pelo próprio caso clínico (ver em [1]),
seu tratamento terminou cerca de três meses depois, em 31 de dezembro. Durante
todo aquele outono Freud estivera dedicado a sua Sobre a Psicopatologia da
Vida Cotidiana (1901b) e, em 10 de janeiro, ele escreve (numa carta
não publicada) que está simultaneamente empenhado em dois trabalhos: A Vida
Cotidiana e “Sonhos e Histeria, Fragmento de uma Análise”, que, como nos
diz seu prefácio (ver em [1]), era o título original do presente trabalho. Em
25 de janeiro (Carta 140) ele escreve: “ ‘Sonhos e Histeria’ foi concluído
ontem. É um fragmento de análise de um caso de histeria em que as explicações
se agrupam em torno de dois sonhos. Portanto,é, na realidade, uma continuação
do livro sobre os sonhos. [A Interpretação dos Sonhos (1900a)
fora publicada um ano antes.] Contém ainda resoluções de sintomas históricos e
considerações sobre a base sexual-orgânica de toda a enfermidade. De qualquer
forma, é a coisa mais sutil que já escrevi, e produzirá um efeito ainda mais
aterrador que de hábito. Cumpre-se com o próprio dever, entretanto, e o que se
escreve não é para um presente fugaz. O trabalho já foi aceito por Ziehen.”
Este era co-editor, com Wernicke, do Monatsschrift für Psychiatrie und
Neurologie, no qual o trabalho veio finalmente a aparecer. Alguns dias
depois, em 30 de janeiro (Carta 141), Freud continua: “Espero que você não se
decepcione com ‘Sonhos e Histeria’. Seu interesse principal continua sendo a
psicologia - uma estimativa da importância dos sonhos e uma descrição de
algumas das peculiaridades do pensamento inconsciente. Há apenas vislumbres do
orgânico - as zonas erógenas e a bissexualidade. Mas ele [o orgânico] é
claramente mencionado e reconhecido, ficando aberto o caminho para seu exame
exaustivo em outra oportunidade. Trata-se de uma histeria com tussis nervosa
e afonia, cujas origens podem ser encontradas nas características de uma
chupadora de dedo; e o papel principal nos processos psíquicos em conflito é
desempenhado pela oposição entre uma atração pelos homens e outra pelas
mulheres.” Esses excertos mostram como este trabalho forma um elo entre A Interpretação
dos Sonhos e os Três Ensaios. O primeiro é seu antecedente, e o
segundo, sua conseqüência.
Em 15 de
fevereiro (Carta 142), Freud anuncia a Fliess que Sobre a Psicopatologia da
Vida Cotidiana estará terminado em poucos dias e que então as duas obras
ficarão prontas para ser corrigidas e enviadas aos editores. Mas, na verdade, a
história dessas obras foi muito diferente. Em 8 de maio (Carta 143), Freud já
está revendo as primeiras provas de Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana
(que foi devidamente publicada nas edições de julho e agosto do Monatsschrift),
mas esclarece, agora, que ainda não se decidiu a publicar o caso clínico. Em 9
de junho, todavia (em outra carta não publicada), ele anuncia que “ ‘Sonhos e
Histeria’ foi despachado e enfrentará o olhar estarrecido do público no
outono”. Não temos informações sobre como Freud veio novamente a mudar de idéia
e postergou a publicação por mais quatro anos. Em sua biografia de Freud, o Dr.
Ernest Jones informa (Volume 2, p. 286) que a primeira revista para a qual o
caso clínico foi enviado foi Journal für Psychologie und Neurologie. Seu
editor, Brodmann, desistiu de publicá-lo, aparentemente por considerá-lo uma
quebra do sigilo profissional.
Não há
meio de determinar até que ponto Freud revisou o trabalho antes de sua
publicação final em 1905. Todas as evidências internas, contudo, sugerem que
ele o alterou muito pouco. A última seção do “Posfácio” (ver em [1] e [2]) foi
certamente acrescentada, assim como algumas passagens, pelo menos nas “Notas
Preliminares”, e certas notas de rodapé. Salvo esses pequenos acréscimos,
porém, é lícito considerar que o ensaio representa os métodos técnicos e as
concepções teóricas de Freud no período imediatamente posterior à publicação de
A Interpretação dos Sonhos. Talvez pareça surpreendente que sua teoria
da sexualidade tivesse alcançado tal ponto de desenvolvimento tantos anos antes
da publicação dos Três Ensaios (1905d), que de fato apareceram
quase simultaneamente a este trabalho. Mas nota de rodapé da p. 55 corrobora
explicitamente o fato. Além disso, os leitores da correspondência com Fliess
hão de estar cientes de que grande parte desta teoria já existia em época ainda
anterior. Para citar apenas um exemplo, o dito de Freud no sentido de que as
psiconeuroses são o “negativo” das perversões (ver em [1]) ocorre com palavras
quase idênticas numa carta a Fliess de 24 de janeiro de 1897 (Carta 57). Mesmo
antes dessa época, já houvera uma alusão a essa idéia numa carta de 12 de
dezembro de 1896 (Carta 52), que também introduz a noção de “zonas erógenas” e
prenuncia a teoria das “pulsões parciais”.
É
curioso que por quatro vezes, em seus escritos posteriores, Freud situe seu
tratamento de “Dora” no ano errado - 1899, ao invés de 1900. O engano ocorre
duas vezes na primeira seção de sua “História do Movimento Psicanalítico” (1914d)
e é repetido duas vezes na nota de rodapé que ele acrescentou ao caso clínico
em 1923 (ver em [1]). Não há nenhuma dúvida de que o outono de 1900 foi a data
correta, já que, além das evidências externas citadas acima, essa data é
claramente fixada pelo “1902” estampado ao final do próprio trabalho (ver em
[1]).
O
seguinte resumo cronológico, baseado nos dados fornecidos no relato do caso
clínico, talvez facilite ao leitor acompanhar os acontecimentos da narrativa:
1882 Nascimento de Dora.
1888 (Et.
6) Pai tuberculoso. Família muda-se
para B
1889 (Et.
7) Enurese noturna.
1890 (Et.
8) Dispnéia.
1892 (Et.
10) Deslocamento da retina do pai.
1894 (Et.
12) Crise confusional do pai. Visita dele a Freud. Enxaqueca e tosse nervosa.
1896 (Et.
14) Cena do beijo.
1898 (Et.
16) (Princípios do verão:) Primeira
visita de Dora a Freud. (Fins de junho:) Cena junto ao lago. (Inverno:) Morte
da tia. Dora em Viena.
1899 (Et.
17) (Março:) Apendicite. (Outono:) A família
deixa B e se muda para a cidade onde ficava a fábrica.
1900 (Et.
18) A família se muda para Viena. Ameaça
de suicídio. (Outubro a dezembro:) Tratamento com Freud.
1901 (Janeiro:) Redação do caso
clínico.
1902 (Abril:) Última visita de Dora a
Freud.
1905 Publicação do caso clínico.
NOTAS PRELIMINARES
Em 1895
e 1896 formulei algumas teses sobre a patogênese dos sintomas histéricos e
sobre os processos psíquicos que ocorrem na histeria. E agora que, passados muitos
anos, proponho-me fundamentá-las mediante o relato pormenorizado de um caso
clínico e de seu tratamento, não posso furtar-me a algumas observações
preliminares, com o propósito, em parte, de justificar por vários ângulos meu
procedimento e, em parte, de reduzir a proporções moderadas as expectativas que
isso possa despertar.
Foi sem
dúvida incômodo para mim ter de publicar os resultados de minhas investigações,
aliás de natureza surpreendente e pouco gratificante, sem que meus colegas
tivessem possibilidade de testá-los e verificá-los. Não menos embaraçoso,
porém, é começar agora a expor ao juízo público parte do material em que se
basearam aqueles resultados. Não deixarei de ser censurado por isso. Só que, se
antes fui acusado de não comunicar nada sobre meus pacientes, agora dirão que
forneço sobre eles informações que não deveriam ser comunicadas. Espero apenas
que sejam as mesmas pessoas a mudarem assim de pretexto para suas censuras e,
desse modo, renuncio antecipadamente a qualquer possibilidade de algum dia
eliminar suas objeções.
Contudo,
mesmo que eu não dê importância a esses críticos estreitos e malévolos, a
publicação de meus casos clínicos continua a ser para mim um problema de
difícil solução. As dificuldades são, em parte, de natureza técnica, mas em
parte se devem à índole das próprias circunstâncias. Se é verdade que a
causação das enfermidades histéricas se encontra nas intimidades da vida
psicossexual dos pacientes, e que os sintomas histéricos são a expressão de
seus mais secretos desejos recalcados, a elucidação completa de um caso de
histeria estará fadada a revelar essas intimidades e denunciar esses segredos.
É certo que os doentes nunca falariam se lhes ocorresse que suas confissões
teriam a possibilidade de ser utilizadas cientificamente, e é igualmente certo
que seria totalmente inútil pedir-lhes que eles mesmos autorizassem a
publicação do caso. Nessas circunstâncias, as pessoas delicadas, bem como as
meramente tímidas, dariam primazia ao dever do sigilo médico e lamentariam não
poder prestar nenhum esclarecimento à ciência. Em minha opinião, entretanto, o
médico assume deveres não só em relação a cada paciente, mas também em relação
à ciência; seus deveres para com a ciência, em última análise, não significam
outra coisa senão seus deveres para com os muitos outros pacientes que sofrem
ou sofrerão um dia do mesmo mal. Assim, a comunicação do que se acredita saber
sobre a causação e a estrutura da histeria converte-se num dever, e é uma
vergonhosa covardia omiti-la quando se pode evitar um dano pessoal direto ao
paciente em questão. Creio ter feito tudo para impedir que minha paciente sofra
qualquer dano dessa ordem. Escolhi uma pessoa cujas peripécias não tiveram
Viena por cenário, mas antes uma cidadezinha distante de província, e cujas
circunstâncias pessoais devem, portanto, ser praticamente desconhecidas em
Viena. Desde o início, guardei com tal cuidado o sigilo do tratamento que
apenas outro colega médico, digno de minha total confiança, pode saber que essa
moça foi minha paciente. Desde o término do tratamento, esperei ainda quatro
anos para sua publicação, até tomar conhecimento de que na vida da paciente
sobreveio uma modificação de tal ordem que me permite supor que seu próprio
interesse nos acontecimentos e processos anímicos a serem aqui relatados terá
desaparecido. Como é evidente, não conservei nenhum nome que pudesse colocar na
pista algum leitor dos círculos leigos; além disso, a publicação do caso numa
revista especializada e estritamente científica servirá como garantia contra
esses leitores não habilitados. Naturalmente, não posso impedir que a própria
paciente sofra uma impressão penosa, caso a história de sua própria doença
venha a cair acidentalmente em suas mãos. Mas ela não saberá por este relato
nada de que já não tenha conhecimento, e poderá perguntar a si mesma quem, além
dela, poderia descobrir que é ela o objeto deste trabalho.
Sei que
existem - ao menos nesta cidade - muitos médicos que (por revoltante que possa
parecer) preferem ler um caso clínico como este, não como uma contribuição à
psicopatologia das neuroses, mas como um roman à clef destinado a
seu deleite particular. A esse gênero de leitores posso assegurar que todos os
casos clínicos que eu venha a publicar no futuro serão protegidos contra sua perspicácia
por garantias semelhantes de sigilo, muito embora este propósito imponha
restrições extraordinárias a minha disponibilidade do material.
Nesta
história clínica - a única que até agora consegui fazer romper as limitações
impostas pelo sigilo médico e por circunstâncias desfavoráveis - os aspectos
sexuais são discutidos com toda a franqueza possível, os órgãos e funções da
vida sexual são chamados por seus nomes exatos, e o leitor pudico poderá
convencer-se, por minha descrição, de que não hesitei em conversar sobre tais
assuntos nessa linguagem mesmo com uma jovem. Acaso devo defender-me também
dessa censura? Reclamei para mim simplesmente os direitos do ginecologista - ou
melhor, direitos muito mais modestos - e acrescentarei que seria um sinal de
singular e perversa lascívia supor que essas conversas possam ser um bom meio
para excitar ou satisfazer os apetites sexuais. De resto, sinto-me inclinado a
expressar minha opinião a esse respeito com algumas palavras tomadas de
empréstimo.
“É
deplorável ter de dar lugar a tais protestos e declarações num trabalho
científico, mas que ninguém recrimine a mim por isso; acuse-se, antes, o
espírito da época, em virtude do qual chegamos a um estado de coisas em que
nenhum livro sério pode estar seguro de sobreviver.” (Schmidt, 1902, Prefácio).
Passo
agora a comunicar o modo como superei as dificuldades técnicas da elaboração do
relatório deste caso clínico. Essas dificuldades são muito consideráveis para o
médico que tem de realizar cotidianamente seis ou oito desses tratamentos
psicoterapêuticos e não pode tomar notas durante a própria sessão com o
paciente, pois isso despertaria a desconfiança dele e perturbaria a apreensão
do material a ser recebido por parte do médico. Além disso, ainda é para mim um
problema não resolvido o modo como devo registrar para publicação a história de
um tratamento mais prolongado. No presente caso, duas circunstâncias vieram em
meu auxílio: primeiro, a duração do tratamento não ultrapassou três meses, e
segundo, os esclarecimentos do caso se agruparam em torno de dois sonhos (um
relatado no meio do tratamento e outro no fim) cujo enunciado foi registrado
imediatamente após a sessão, assim proporcionando um ponto de apoio seguro para
a teia de interpretações e lembranças deles decorrente. Quanto à própria
história clínica, só a redigi de memória após terminado o tratamento, enquanto
minha lembrança do caso ainda estava fresca e aguçada por meu interesse em sua
publicação. Por isso o registro não é absolutamente - fonograficamente - fiel,
mas pode-se atribuir-lhe alto grau de fidedignidade. Nada de essencial foi
alterado nele, embora em vários trechos, para maior coerência expositiva, a
seqüência das explicações tenha sido modificada.
Passo
agora a salientar o que será encontrado neste relato e o que falta nele. O
trabalho levava originalmente o título de “Sonhos e Histeria”, que me parecia
peculiarmente apto a mostrar como a interpretação dos sonhos se entrelaça na
história de um tratamento e como, com sua ajuda, podem preencher-se as amnésias
e elucidarem-se os sintomas. Não foi sem boas razões que, no ano de 1910, dei a
um laborioso e exaustivo estudo sobre o sonho (A Interpretação dos Sonhos)
precedência sobre as publicações que tencionava fazer acerca da psicologia das
neuroses. Aliás, pude verificar por sua acolhida quão insuficiente é o grau de
compreensão com que tais esforços são ainda hoje recebidos pelos colegas. E
nesse caso, não era válida a objeção de que o material em que eu baseara minhas
assertivas fora retido, sendo, portanto, impossível promover-se uma convicção
de sua veracidade fundamentada em verificações. Ocorre que qualquer um pode
submeter seus próprios sonhos ao exame analítico, e a técnica de interpretação
dos sonhos é facilmente assimilável pelas instruções e exemplos que ali
forneci. Hoje, como naquela época, devo insistir em que o aprofundamento nos
problemas do sonho é um pré-requisito indispensável para a compreensão dos
processos psíquicos da histeria e das outras psiconeuroses, e que ninguém que
pretenda furtar-se a esse trabalho preparatório tem a menor perspectiva de
avançar um único passo nesse campo. Portanto, como este caso clínico pressupõe
o conhecimento da interpretação dos sonhos, sua leitura parecerá extremamente
insatisfatória àqueles que não atenderem a esse pressuposto. Em vez do
esclarecimento buscado, eles só encontrarão motivos de perplexidade nestas
páginas, e certamente se inclinarão a projetar a causa dessa perplexidade no
autor e a declará-lo fantasioso. Na realidade, essa perplexidade está ligada
aos fenômenos da própria neurose; sua presença ali só é ocultada por nossa
familiaridade médica com os fatos, e ressurge a cada tentativa de explicá-los.
Só seria possível eliminá-la por completo se conseguíssemos rastrear cada
elemento da neurose até fatores com que já estivéssemos familiarizados. Mas
tudo indica, ao contrário, que seremos levados pelo estudo das neuroses a fazer
muitas novas suposições, que depois se converterão pouco a pouco em objeto de
um conhecimento mais seguro. O novo sempre despertou perplexidade e
resistência.
Todavia,
seria errôneo supor que os sonhos e sua interpretação ocupam em todas as
psicanálises uma posição tão destacada quanto neste exemplo.
Se o
presente caso clínico parece tão privilegiado no que tange à utilização dos
sonhos, em outros aspectos se revelou mais precário do que eu teria desejado.
Mas suas deficiências prendem-se justamente às circunstâncias que
possibilitaram sua publicação. Como já disse, eu não teria sabido como lidar
com o material do relato de um tratamento que se tivesse estendido por um ano
inteiro. Este relato, que cobre apenas três meses, pôde ser rememorado e
revisto, mas seus resultados permanecem incompletos em mais de um aspecto. O
tratamento não prosseguiu até alcançar a meta prevista, tendo sido interrompido
por vontade da própria paciente depois de chegar a certo ponto. Nessa ocasião,
alguns dos enigmas do caso não tinham sequer sido abordados, e outros se haviam
esclarecido de maneira incompleta, ao passo que, se o trabalho tivesse
prosseguido, teríamos sem dúvida avançado em todos os pontos até o mais
completo esclarecimento possível. Assim só posso oferecer aqui um fragmento de
análise.
Os
leitores familiarizados com a técnica de análise exposta nos Estudos sobre a
Histeria [Breuer e Freud, 1895] talvez fiquem surpresos por não ter sido
possível, em três meses, encontrar uma solução completa ao menos para os
sintomas abordados. Isso se tornará compreensível mediante minha explicação de
que, desde os Estudos, a técnica psicanalítica sofreu uma revolução
radical. Naquela época, o trabalho [de análise] partia dos sintomas e visava a
esclarecê-los um após outro. Desde então, abandonei essa técnica por achá-la
totalmente inadequada para lidar com a estrutura mais fina da neurose. Agora
deixo que o próprio paciente determine o tema do trabalho cotidiano, e assim
parto da superfície que seu inconsciente ofereça a sua atenção naquele momento.
Mas desse modo, tudo o que se relaciona com a solução de determinado sintoma
emerge em fragmentos, entremeado com vários contextos e distribuído por épocas
amplamente dispersas. Apesar dessa aparente desvantagem, a nova técnica é muito
superior à antiga, e é incontestavelmente a única possível.
Ante o
caráter incompleto de meus resultados analíticos, não me restou senão seguir o
exemplo daqueles descobridores que têm a felicidade de trazer à luz do dia,
após longo sepultamento, as inestimáveis embora mutiladas relíquias da
antigüidade. Restaurei o que faltava segundo os melhores modelos que me eram
conhecidos de outras análises, mas, como um arqueólogo consciencioso, não
deixei de assinalar em cada caso o ponto onde minha construção se superpõe ao
que é autêntico.
Há outra
espécie de deficiência que eu mesmo introduzi intencionalmente. É que, em geral,
não reproduzi o trabalho interpretativo a que as associações e comunicações da
paciente tiveram de ser submetidas, expondo apenas seus resultados. À parte os
sonhos, portanto, a técnica do trabalho analítico só foi revelada em muito
poucos pontos. Ocorre que meu objetivo neste caso clínico era demonstrar a
estrutura íntima da doença neurótica e o determinismo de seus sintomas; só
levaria a uma inextricável confusão se eu tentasse, ao mesmo tempo, cumprir
também a outra tarefa. Para a fundamentação das regras técnicas, a maioria das
quais foi descoberta de maneira empírica, seria preciso coligir material de
muitos casos clínicos. Contudo, não se deve imaginar que foi particularmente
grande a abreviação produzida pela omissão da técnica neste caso. Justamente a
parte mais difícil do trabalho técnico nunca entrou em jogo com essa paciente,
pois o fator da “transferência”, considerado no final do caso clínico (ver a
partir de [1]), não foi abordado durante o curto tratamento.
De uma
terceira espécie de deficiência neste relato, nem a paciente nem o autor têm
culpa. Ao contrário, é óbvio que um único caso clínico, ainda que fosse
completo e não desse margem a nenhuma dúvida, não poderia dar resposta a todas
as questões levantadas pelo problema da histeria. Não pode dar-nos conhecimento
de todos os tipos dessa doença, nem de todas as formas da estrutura interna da
neurose, nem de todas as espécies possíveis de relação entre o psíquico e o
somático encontradas na histeria. Não é justo esperar de um único caso mais do
que ele pode oferecer. E quanto aos que até agora não quiseram acreditar na
validade universal e sem exceções da etiologia psicossexual da histeria, eles
dificilmente ficarão convencidos disso tomando conhecimento de um único caso
clínico. Melhor fariam em adiar seu julgamento até adquirirem por seu próprio
trabalho o direito de ter uma convicção.
O QUADRO CLÍNICO
Tendo
demonstrado em A Interpretação dos Sonhos, publicada em 1900, que os
sonhos em geral podem ser interpretados e que, uma vez concluído o trabalho de
interpretação, podem ser substituídos por pensamentos impecavelmente
construídos, passíveis de ser inseridos num ponto reconhecível no encadeamento
anímico, gostaria de dar nas páginas seguintes um exemplo da única aplicação
prática que a arte de interpretar sonhos parece admitir. Já mencionei em meu livro
como foi que deparei com o problema dos sonhos. Encontrei-o em meu caminho
quando me empenhava em curar as psiconeuroses por meio de determinado método
psicoterapêutico, pois, entre outros eventos de sua vida anímica, meus
pacientes também me contavam sonhos que pareciam reclamar inserção na longa
trama de relações tecida entre um sintoma da doença e uma idéia patogênica.
Nessa época, aprendi a traduzir a linguagem dos sonhos em formas de expressão
de nossa própria linguagem do pensamento, compreensíveis sem maior auxílio.
Esse conhecimento, posso asseverar, é imprescindível para o psicanalista, pois
o sonho é um dos caminhos pelos quais pode aceder à consciência o material
psíquico que, em virtude da oposição criada por seu conteúdo, foi bloqueado da
consciência, recalcado, e assim se tornou patogênico. O sonho é, em suma, um
dos desvios por onde se pode fugir ao recalcamento, um dos principais
recursos do que se conhece como modo indireto de representação no psíquico. O
presente fragmento da história do tratamento de uma jovem histérica destina-se
a mostrar de que forma a interpretação dos sonhos se insere no trabalho de
análise. Ao mesmo tempo, dar-me-á uma primeira oportunidade de trazer a
público, com extensão suficiente para evitar outros mal-entendidos, parte de
minhas concepções sobre os processos psíquicos e condições orgânicas da
histeria. Não mais preciso desculpar-me pela extensão, já que agora se admite
que as severas exigências que a histeria faz ao médico e ao investigador só
podem ser satisfeitas pelo mais dedicado aprofundamento, e não por uma atitude
de superioridade e desprezo. Decerto,
Nicht Kunst und Wissenschaft allein,
Geduld will bei dem
Werke sein!
Se eu
começasse por apresentar um relato clínico integral e acabado, isso colocaria o
leitor em condições muito diferentes das do observador médico. As informações
dos parentes do enfermo - neste caso, do pai da moça de dezoito anos - em geral
fornecem um quadro muito desfigurado do curso da doença. Na verdade, começo o
tratamento solicitando que me seja narrada toda a biografia do paciente e a
história de sua doença, mas, ainda assim, as informações que recebo nunca
bastam para me orientar. Esse primeiro relato se compara a um rio não navegável
cujo leito é ora bloqueado por massas rochosas, ora dividido entre baixios e
bancos de areia. Não posso deixar de me surpreender com a maneira como os
autores conseguem apresentar relatos clínicos tão acabados e precisos dos casos
de histeria. Na realidade, os pacientes são incapazes de fornecer tais relatos
a seu próprio respeito. De fato, podem dar ao médico muitas informações
coerentes sobre este ou aquele período de suas vidas, mas logo se segue outro
período em relação ao qual suas comunicações escasseiam, deixando lacunas e
enigmas; e em outras ocasiões fica-se diante de novos períodos de total
obscuridade, não iluminados por urna única informação que tenha serventia. As
ligações, inclusive as aparentes, são em sua maioria desconexas, e a seqüência
dos diferentes acontecimentos é incerta. Durante o próprio relato, os pacientes
corrigem repetidamente um pormenor ou uma data, talvez para retornar, depois de
muita hesitação, a sua versão inicial. A incapacidade dos doentes desfazerem
uma exposição ordenada de sua biografia no que ela coincide com a história de
sua doença não é característica apenas da neurose, mas tem também grande
importância teórica. Essa deficiência tem os seguintes fundamentos: em primeiro
lugar, os pacientes retêm consciente e intencionalmente parte do que lhes é
perfeitamente conhecido e que deveriam contar, por não terem ainda superado
seus sentimentos de timidez e vergonha (ou discrição, quando há outras pessoas em
jogo); esta seria a contribuição da falta consciente de franqueza. Em
segundo lugar, parte do conhecimento amnésico de que o paciente dispõe em
outras ocasiões não lhe ocorre enquanto ele narra sua história, sem que ele
tenha nenhuma intenção de retê-la: é a contribuição da insinceridade inconsciente.
Em terceiro lugar, nunca faltam as amnésias verdadeiras - lacunas da memória em
que caíram não apenas lembranças antigas como até mesmo recordações bem
recentes - e as ilusões de memória [paramnésias], formadas secundariamente para
preencher essas lacunas. Quando os fatos em si são guardados na memória,
o propósito subjacente às amnésias pode ser cumprido com igual segurança
destruindo-se uma ligação, e a maneira mais certa de desfazer uma ligação é
alterar a ordem cronológica dos acontecimentos. Esta última sempre se revela o
elemento mais vulnerável do acervo da memória e o mais facilmente sujeito ao
recalcamento. Muitas lembranças são encontradas, por assim dizer, num primeiro
estágio de recalcamento, apresentando-se cercadas de dúvidas. Decorrido algum
tempo, essas dúvidas seriam substituídas por um esquecimento ou por uma
falsificação da memória.
A
existência desse estado de coisas no tocante às lembranças ligadas à história
da doença é o correlato necessário e teoricamente indispensável dos sintomas
patológicos. Depois, no decorrer do tratamento, o paciente fornece os fatos
que, embora sempre fossem de seu conhecimento, tinham sido retidos por ele ou
não lhe haviam ocorrido. As ilusões de memória se revelam insustentáveis e as
lacunas são preenchidas. Só quando o tratamento se aproxima do seu término é
que temos diante de nós uma história clínica inteligível, coerente e sem
lacunas. Se o objetivo prático do tratamento é eliminar todos os sintomas
possíveis e substituí-los por pensamentos conscientes, podemos considerar como
segundo objetivo, de cunho teórico, reparar todos os danos à memória do
paciente. Esses dois objetivos são coincidentes: quando se alcança um, também o
outro é atingido; um mesmo caminho conduz a ambos.
Pela
natureza das coisas que compõem o material da psicanálise, compete-nos o dever,
em nossos casos clínicos, de prestar tanta atenção às circunstâncias puramente
humanas e sociais dos enfermos quanto aos dados somáticos e aos sintomas patológicos.
Acima de tudo, nosso interesse se dirigirá para as circunstâncias familiares do
paciente - e isso, como se verá mais adiante, não apenas com o objetivo de
investigar a hereditariedade, mas também em função de outros vínculos.
O
círculo familiar de nossa paciente de dezoito anos incluía, além dela própria,
seus pais e um irmão um ano e meio mais velho que ela. O pai era a pessoa
dominante desse círculo, tanto por sua inteligência e seus traços de caráter
como pelas circunstâncias de sua vida, que forneceram o suporte sobre o qual se
erigiu a história infantil e patológica da paciente. Na época em que aceitei a
jovem em tratamento, seu pai já beirava os cinqüenta anos e era um homem de
atividade e talento bastante incomuns, um grande industrial com situação
econômica muito cômoda. A filha era muito carinhosamente apegada a ele e, por
essa razão, seu senso crítico precocemente despertado escandalizava-se ainda
mais com muitos dos atos e peculiaridades do pai.
Essa
ternura por ele era ainda aumentada em virtude das muitas e graves doenças de
que padecera o pai desde que ela contava seis anos de idade. Nessa época ele
ficara tuberculoso, e isso ocasionara a mudança da família para uma cidadezinha
de clima propício, situada numa de nossas províncias do sul; ali a afecção
pulmonar teve uma rápida melhora, mas em virtude das precauções ainda
consideradas necessárias, esse lugar, que chamarei de B , continuou a ser nos
dez anos seguintes a residência principal tanto dos pais quanto dos filhos.
Quando o pai já estava bem de saúde, costumava ausentar-se temporariamente para
visitar suas fábricas; na época mais quente do verão, a família mudava-se para
uma estação de águas nas montanhas.
Quando a
menina tinha cerca de dez anos, o pai teve de submeter-se a tratamento em
quarto escuro por causa de um descolamento de retina. Em conseqüência desse
infortúnio, sua visão ficou permanentemente reduzida. A doença mais grave
ocorreu cerca de dois anos depois; consistiu numa crise confusional, seguida de
sintomas de paralisia e ligeiras perturbações psíquicas. Um amigo dele, de cujo
papel ainda nos ocuparemos mais adiante (ver em [1]), convenceu-o, mal
tendo seu estado melhorado um pouco, a viajar para Viena com seu médico e
consultar-se comigo. Hesitei por algum tempo, sem saber se deveria supor a
existência de uma paralisia tabética, mas finalmente me decidi por um
diagnóstico de afecção vascular difusa; e como o paciente admitiu ter tido uma
infecção específica antes do casamento, receitei-lhe um tratamento antiluético enérgico,
em conseqüência do qual cederam todos os distúrbios que ainda persistiam. Foi
sem dúvida graças a essa minha feliz intervenção que, quatro anos depois, ele
me apresentou sua filha, que nesse meio-tempo ficara inequivocamente neurótica,
e passados mais dois anos entregou-a a mim para tratamento psicoterápico.
Entrementes,
eu também conhecera em Viena uma irmã um pouco mais velha dele, em quem
reconheci uma forma grave de psiconeurose sem nenhum dos sintomas
caracteristicamente histéricos. Depois de uma vida acabrunhada por um casamento
infeliz, essa mulher morreu de um marasmo que progrediu rapidamente e cujos
sintomas, aliás, nunca foram totalmente esclarecidos.
Um irmão
mais velho do pai de minha paciente, a quem tive oportunidade de conhecer, era
um solteirão hipocondríaco.
As
simpatias da própria moça, que, como disse, tornou-se minha paciente aos
dezoito anos, sempre penderam para o lado paterno da família e, depois de
adoecer, ela tomara como modelo a tia que acabei de mencionar. Tampouco me era
duvidoso que fora dessa família que ela derivara não só seus dotes e sua
precocidade intelectual, como também a predisposição à doença. Não cheguei a
conhecer sua mãe. Pelas comunicações do pai e da moça, fui levado a imaginá-la
como uma mulher inculta e acima de tudo fútil, que, a partir da doença e do
conseqüente distanciamento de seu marido, concentrara todos os seus interesses
nos assuntos domésticos, e assim apresentava o quadro do que se poderia chamar
de “psicose da dona-de-casa”. Sem nenhuma compreensão pelos interesses mais
ativos dos filhos, ocupava o dia todo em limpar e manter limpos a casa, os
móveis e os utensílios, a tal ponto que se tornava quase impossível usá-los ou
desfrutar deles. Esse estado, do qual se encontram indícios com bastante
freqüência nas donas-de-casa normais, não pode deixar de ser comparado com as
formas de lavagem obsessiva e outras obsessões pela limpeza. Mas tais mulheres,
como acontecia no caso da mãe de nossa paciente, desconhecem por completo sua
doença, faltando-lhes, portanto, uma característica essencial da “neurose
obsessiva”. As relações entre mãe e filha eram muito inamistosas havia vários
anos. A filha menosprezavaa mãe, criticava-a duramente e se subtraíra por
completo de sua influência.
Em
épocas anteriores, o único irmão da moca, um ano e meio mais velho, fora o
modelo que ela ambicionara seguir. Nos últimos anos, porém, as relações entre
ambos se haviam tornado mais distantes. O rapaz procurava afastar-se o máximo
possível das discussões da família, mas, quando se via obrigado a tomar
partido, apoiava a mãe. Assim, a costumeira atração sexual aproximara pai e
filha, de um lado, e mãe e filho, de outro.
Nossa
paciente, a quem doravante darei o nome de “Dora”, já aos oito anos
começara a apresentar sintomas neuróticos. Nessa época, passou a sofrer de uma
dispnéia crônica com acessos ocasionais muito mais agudos, o primeiro dos quais
ocorreu após uma pequena excursão pelas montanhas, sendo por isso atribuído ao
esforço excessivo. No curso de seis meses, graças ao repouso e aos cuidados com
que foi tratada, esse estado cedeu gradativamente. O médico da família parece
não ter hesitado nem por um momento em diagnosticar o distúrbio como puramente
nervoso e excluir qualquer causa orgânica para a dispnéia, mas é evidente que
considerou esse diagnóstico compatível com a etiologia do esforço excessivo.
A menina
passou pelas doenças infecciosas habituais da infância sem sofrer qualquer dano
permanente. Segundo ela própria me contou (com intenção mais simbolizante!) (ver
em [1]), seu irmão costumava ser o primeiro a contrair a doença em forma
branda, seguindo-se então ela com manifestações mais graves. Por volta dos doze
anos ela começou a sofrer de dores de cabeça unilaterais do tipo de enxaquecas,
bem como de acessos de tosse nervosa. A princípio esses dois sintomas sempre
apareciam juntos, mas depois se separaram e tiveram desdobramentos diferentes.
A enxaqueca tornou-se mais rara e, por volta dos dezesseis anos, desapareceu
completamente. Mas os acessos de tussis nervosa, que sem dúvida tinham
começado com uma gripe comum, continuaram por todo o tempo. Quando, aos dezoito
anos, ela entrou em tratamento comigo, tossia novamente de maneira
característica. O número desses acessos não pôde ser determinado, mas sua
duração era de três a cinco semanas, e numa ocasião se estendeu por vários
meses. O sintoma mais incômodo durante a primeira metade de uma dessas crises,
pelo menos nos últimos anos, costumava ser a perda completa da voz. O
diagnóstico de que mais uma vez se tratava de nervosismo fora estabelecido
desde longa data, mas os vários métodos de tratamento usuais, inclusive
hidroterapia e aplicação local de eletricidade, não haviam produzido nenhum
resultado. Foi nessas circunstâncias que a criança transformou-se numa jovem
madura, de juízo muito independente, que se acostumou a rir dos esforços dos
médicos e acabou por renunciar inteiramente à assistência deles. Além disso,
ela sempre se opusera a procurar orientação médica, embora não fizesse nenhuma
objeção à pessoa de seu médico de família. Qualquer proposta de consultar um
novo médico despertava sua resistência, e também a mim ela só veio movida pela
autoridade do pai.
Vi-a
pela primeira vez no início do verão, quando estava com dezesseis anos,
sofrendo de tosse e rouquidão, e já nessa época propus um tratamento psíquico,
que não foi adotado porque também essa crise, que durara mais do que as outras,
desapareceu espontaneamente. No inverno seguinte, após a morte de sua amada
tia, ela esteve em Viena na casa do tio e das filhas dele, e aqui adoeceu com
um quadro febril então diagnosticado como apendicite. No outono
seguinte, como a saúde do pai parecia justificar essa medida, a família deixou
definitivamente a estação de B , mudando-se a princípio para a cidade onde ficava
a fábrica do pai e, depois, decorrido pouco menos de um ano, fixando residência
permanente em Viena.
Entrementes
Dora havia crescido e se transformara numa moça em flor, com feições
inteligentes e agradáveis, mas que era fonte de sérias preocupações para seus
pais. O desânimo e uma alteração do caráter se tinham tornado agora os
principais traços de sua doença. Era evidente que não estava satisfeita consigo
mesma nem com a família, tinha uma atitude inamistosa em relação ao pai e se
dava muito mal com a mãe, que estava determinada a fazê-la participar das
tarefas domésticas. Dora procurava evitar os contactos sociais; quando a fadiga
e a falta de concentração de que se queixava o permitiam, ocupava-se em ouvir
conferências para mulheres e se dedicava a estudos mais sérios. Um dia, seus
pais ficaram muito alarmados ao encontrarem, dentro ou sobre a escrivaninha da
moça, uma carta em que ela se despedia deles porque não podia mais suportar a vida.
É verdade que o pai, homem de bastante discernimento, calculou que a moça não
tinha intenções sérias de suicídio, mas, mesmo assim, ficou muito abalado; e
quando um dia, após uma ligeira troca de palavras entre ele e a filha, esta
teve um primeiro ataque de perda da consciência - acontecimento também
posteriormente encoberto por uma amnésia -, ficou decidido, apesar de sua
relutância, que ela deveria tratar-se comigo.
Sem
dúvida este caso clínico, tal como o esbocei até agora, não parece em seu
conjunto digno de ser comunicado. Trata-se de uma “petite hystérie” com
os mais comuns de todos os sintomas somáticos e psíquicos: dispnéia, tussis
nervosa, afonia e possivelmente enxaquecas, junto com depressão,
insociabilidade histérica e um taedium vitae que provavelmente não era
muito levado a sério. Sem dúvida já se publicaram casos mais interessantes de
histeria, amiúde registrados com maior cuidado, pois nas páginas que se seguem
nada se encontrará sobre estigmas de sensibilidade cutânea, limitação do campo
visual ou coisas semelhantes. Permito-me observar, contudo, que todas essas
coleções de estranhos e assombrosos fenômenos da histeria não nos fizeram
avançar grande coisa em nosso conhecimento dessa moléstia, que ainda continua a
ser enigmática. O que nos falta é justamente a elucidação dos casos mais comuns
e de seus sintomas mais freqüentes e típicos. Eu me daria por satisfeito se as
circunstâncias me tivessem permitido dar um esclarecimento completo deste caso
de pequena histeria. Segundo minhas experiências com outros pacientes, não
tenho nenhuma dúvida de que meu método analítico me teria bastado para fazê-lo.
Em 1896,
pouco depois da publicação de meus Estudos sobre a Histeria, em
colaboração com o Dr. J. Breuer [1895], pedi a um eminente colega sua opinião
sobre a teoria psicológica da histeria ali defendida. Ele respondeu sem rodeios
que a considerava uma generalização injustificável de conclusões que poderiam
ser corretas para uns poucos casos. Desde então tenho visto inúmeros casos de
histeria, ocupando-me de cada um por vários dias, semanas ou anos, e em nenhum
deles deixei de descobrir as condições psíquicas postuladas nos Estudos,
ou seja, o trauma psíquico, o conflito dos afetos e, como acrescentei em
publicações posteriores, a comoção na esfera sexual. Quando se trata de coisas
que se tornaram patogênicas por seu afã de ocultar-se, decerto não se deve
esperar que o doente vá ao encontro do médico exibi-las, nem tampouco deve este
contentar-se com o primeiro “Não” que se oponha às investigações.
No caso
de Dora, graças à já tão salientada inteligência do pai, não foi preciso que eu
mesmo procurasse os pontos de referência vitais, pelo menos no tocante à
conformação mais recente de sua doença. Contou-me o pai que ele e a família
tinham feito uma amizade íntima em B com
um casal ali radicado já há muitos anos. A Sra. K. cuidara dele durante sua
longa enfermidade, tendo assim feito jus à sua eterna gratidão. O Sr. K. sempre
fora extremamente amável com sua filha Dora, levando-a a passear com ele quando
estava em B e dando-lhe pequenos
presentes, mas ninguém via nenhum mal nisso. Dora tratava com o mais extremo
cuidado os dois filhinhos dos K., dedicando-lhes uma atenção quase maternal.
Quando pai e filha vieram consultar-me dois anos antes, no verão, estavam
justamente prestes a viajar para ir ao encontro do Sr. e Sra. K., que passavam
o verão num de nossos lagos nos Alpes. Dora deveria passar várias semanas na
casa dos K., enquanto seu pai pretendia regressar dentro de poucos dias.
Durante esse período, também o Sr. K. estivera lá. Mas quando o pai se
preparava para partir, a moça de repente declarou com extrema firmeza que iria
com ele, e de fato assim fez. Só depois de alguns dias esclareceu seu estranho
comportamento, contando à mãe, para que esta por sua vez o transmitisse ao pai,
que o Sr. K. tivera a audácia de lhe fazer uma proposta amorosa, durante uma
caminhada depois de um passeio pelo lago. Chamado a prestar contas de seu
comportamento ao pai e ao tio da moça quando do encontro seguinte entre eles, o
acusado negou do modo mais enfático qualquer atitude de sua parte que pudesse
ter dado margem a essa interpretação, e começou a lançar suspeitas sobre a
moça, que, segundo soubera pela Sra. K., só mostrava interesse pelos assuntos
sexuais, e que até na própria casa dele junto ao lago lera a Fisiologia do
Amor, de Mantegazza, e livros semelhantes. Provavelmente, excitada por tais
leituras, ela teria “imaginado” toda a cena que descrevera.
“Não
tenho dúvida”, disse o pai, “de que esse incidente é responsável pelo
abatimento, irritabilidade e idéias suicidas de Dora. Ela vive insistindo em
que eu rompa relações com o Sr. K., e em particular com a Sra. K., a quem antes
positivamente venerava. Mas não posso fazer isso, primeiro porque eu mesmo
acredito que a história de Dora sobre a impertinência imoral do homem é uma
fantasia que se impôs a ela, e segundo porque estou ligado à Sra. K. por laços
de honrosa amizade e não quero magoá-la. A pobre mulher já é muito infeliz com
o marido, a quem, por sinal, não tenho em grande conceito; ela mesma já sofreu
muito dos nervos e tem em mim seu único apoio. Considerando meu estado de
saúde, não preciso assegurar-lhe que não há nada de ilícito por trás de nossas
relações. Somos apenas dois pobres coitados que consolamos um ao outro como
podemos através de um interesse amistoso. O senhor bem sabe que não tenho nada
disso com minha própria mulher. Mas Dora, que herdou minha obstinação, é
inabalável em seu ódio pelos K. Seu último ataque ocorreu depois de uma
conversa em que ela tornou a me fazer a mesma exigência [de romper com os K.].
Por favor, tente agora colocá-la no bom caminho.”
Não se
harmonizava muito com essas declarações o fato de que o pai, em outras
conversas, procurava atribuir a culpa maior pelo comportamento insuportável de
Dora à mãe, cujas peculiaridades tiravam todo o gosto pela vida doméstica. Mas
eu resolvera desde longa data suspender meu juízo sobre o verdadeiro estado de
coisas até que tivesse ouvido também o outro lado.
A
experiência de Dora com o Sr. K. - suas propostas amorosas a ela e a
conseqüente afronta a sua honra - parece fornecer, no caso de nossa paciente, o
trauma psíquico que Breuer e eu declaramos, no devido tempo, ser a
condição prévia indispensável para a gênese de um estado patológico histérico.
Mas este novo caso também mostra todas as dificuldades que depois me fizeram ir
além dessa teoria, acrescidas de uma nova dificuldade de cunho mais
especial. Como é tão freqüente nos casos clínicos de histeria, o trauma que
sabemos ter ocorrido na vida do paciente não basta para esclarecer a
especificidade do sintoma, para determiná-lo; entenderíamos tanto ou tão pouco
de toda a história se, em vez de tussis nervosa, afonia, abatimento e taedium
vitae, outros sintomas tivessem resultado do trauma. Mas há ainda a
consideração de que alguns desses sintomas (a tosse e a perda da voz) tinham
sido produzidos pela paciente anos antes do trauma, e que suas primeiras
manifestações remontavam à infância, pois tinham ocorrido no oitavo ano de
vida. Portanto, se não queremos abandonar a teoria do trauma, devemos
retroceder até a infância da moça e buscar ali influências ou impressões que
pudessem ter surtido efeito análogo ao de um trauma.Além disso, é digno de nota
que, mesmo na investigação de casos em que os primeiros sintomas não se tinham
instalado na infância, fui levado a reconstituir a biografia dos
pacientes até seus primeiros anos de vida.
Superadas
as primeiras dificuldades do tratamento, Dora comunicou-me uma experiência
anterior com o Sr. K., mais bem talhada ainda para operar como um trauma
sexual. Estava então com quatorze anos. O Sr. K. combinara com ela e com sua
mulher para que, à tarde, elas fossem encontrá-lo em sua loja comercial, na
praça principal de B , para dali
assistirem a um festival religioso. Mas ele induziu sua mulher a ficar em casa,
despachou os empregados e estava sozinho quando a moça entrou na loja. Ao se
aproximar a hora da procissão, pediu à moça que o aguardasse na porta que dava
para a escada que levava ao andar superior, enquanto ele abaixava as portas
corrediças externas. Em seguida voltou e, ao invés de sair pela porta aberta,
estreitou subitamente a moça contra si e depôs-lhe um beijo nos lábios. Era
justamente a situação que, numa mocinha virgem de quatorze anos, despertaria
uma nítida sensação de excitação sexual. Mas Dora sentiu naquele momento uma
violenta repugnância, livrou-se do homem e passou correndo por ele em direção à
escada, daí alcançando a porta da rua. Mesmo assim, as relações com o Sr. K.
prosseguiram; nenhum dos dois jamais mencionou essa pequena cena, e Dora afirma
tê-la guardado em segredo até sua confissão durante o tratamento. Por algum
tempo depois disso, ela evitou ficar a sós com o Sr. K. Por essa época, os K.
tinham combinado fazer uma excursão de alguns dias, da qual Dora também deveria
participar. Depois da cena do beijo na loja, ela se recusou a acompanhá-los,
sem dar nenhuma razão.
Nessa
cena - a segunda da seqüência, mas a primeira na ordem temporal -, o
comportamento dessa menina de quatorze anos já era total e completamente
histérico. Eu tomaria por histérica, sem hesitação, qualquer pessoa em quem uma
oportunidade de excitação sexual despertasse sentimentos preponderante ou
exclusivamente desprazerosos, fosse ela ou não capaz de produzir sintomas
somáticos. Esclarecer o mecanismo dessa inversão do afeto é uma das
tarefas mais importantes e, ao mesmo tempo, uma das mais difíceis da psicologia
das neuroses. Em minha própria opinião, ainda estou bem longe de alcançar essa
meta, e no contexto desta comunicação posso também acrescentar que até do que
sei só me será possível apresentar uma parte.
O caso
de nossa paciente Dora ainda não fica suficientemente caracterizado
acentuando-se apenas a inversão do afeto; é preciso dizer, além disso, que
houve aqui um deslocamento da sensação. Ao invés da sensação genital que
uma jovem sadia não teria deixado de sentir em tais circunstâncias, Dora
foi tomada da sensação de desprazer própria da membrana mucosa da entrada do
tubo digestivo - isto é, pela repugnância. A estimulação de seus lábios pelo
beijo foi sem dúvida importante para localizar a sensação nesse ponto
específico, mas creio reconhecer também o efeito de outro fator.
A
repugnância que Dora sentiu nessa ocasião não se tornou um sintoma permanente,
e mesmo na época do tratamento existia apenas potencialmente, por assim dizer.
Ela se alimentava mal e confessou certa aversão pelos alimentos. Por outro
lado, a cena deixara outra conseqüência, sob a forma de uma alucinação
sensorial que ocorria de tempos em tempos e chegou a se verificar enquanto ela
a relatou a mim. Disse continuar sentindo na parte superior do corpo a pressão
daquele abraço. Segundo certas regras da formação de sintomas que vim a
conhecer, e ao mesmo tempo levando em conta algumas outras particularidades da
paciente, que de outra forma seriam inexplicáveis - por exemplo, não queria
passar por nenhum homem a quem visse em conversa animada ou terna com uma
mulher -, formei para mim mesmo a seguinte reconstrução da cena. Creio que,
durante o abraço apaixonado, ela sentiu não só o beijo em seus lábios, mas
também a pressão do membro ereto contra seu ventre. Essa percepção revoltante
para ela foi eliminada de sua memória, recalcada e substituída pela sensação
inocente de pressão sobre o tórax, que
extraía de sua fonte recalcada uma intensidade excessiva. Uma vez mais,
portanto, vemos um deslocamento da parte inferior para a parte superior
do corpo. Por outro lado, a compulsão em seu comportamento construía-se como se
proviesse da lembrança inalterada da cena: ela não gostava de passar por nenhum
homem a quem julgasse em estado de excitação sexual porque não queria voltar a
ver o sinal somático desse estado.
Vale
ressaltar que, aqui, três sintomas - a repugnância, a sensação de pressão na
parte superior do corpo e a evitação dos homens em conversa afetuosa -
provinham de uma mesma experiência, e somente levando em conta a inter-relação
desses três signos é que se torna possível compreender o processo de formação
dos sintomas. O nojo corresponde ao sintoma do recalcamento da zona erógena dos
lábios (mimada demais em Dora, como veremos (em [1]), pelo sugar
infantil). A pressão do membro ereto provavelmente levou a uma alteração
análoga no órgão feminino correspondente, o clitóris, e a excitação dessa segunda
zona erógena foi fixada no tórax por deslocamento para a sensação simultânea de
pressão. O horror aos homens que pudessem achar-se em estado de excitação
sexual obedece ao mecanismo de uma fobia destinada a dar proteção contra o
reavivamento da percepção recalcada.
Para
evidenciar a possibilidade dessa complementação da história, perguntei à
paciente com extrema cautela se ela conhecia o sinal corporal da excitação no
corpo do homem. Sua resposta foi “Sim” quanto ao momento atual, mas, no tocante
àquela época, ela achava que não. Desde o início tive com esta paciente o
máximo cuidado de não lhe fornecer nenhum novo conhecimento na esfera da vida
sexual, não por escrupulosidade, mas porque queria submeter meus pressupostos a
uma prova rigorosa neste caso. Por isso, só chamava uma coisa por seu nome
quando as alusões dela se tinham tornado tão claras que parecia haver muito
pouco risco em traduzi-las para a linguagem direta. Sua resposta sempre pronta
e franca era que ela já sabia disso,mas de onde vinha esse conhecimento
era um enigma que suas lembranças não permitiam resolver. Ela esquecera a fonte
de todos esses conhecimentos.
Se me é
lícito representar dessa maneira a cena do beijo ocorrido na loja, chego à
seguinte derivação para a repugnância. A sensação de nojo parece ser,
originalmente, uma reação ao cheiro (e depois também à visão) dos excrementos.
Mas os órgãos genitais, e em especial o membro masculino, podem lembrar as
funções excretoras, porque aqui o órgão, além de desempenhar a função sexual,
serve também à da micção. Na verdade, esta é a primeira das duas a ser
conhecida, e é a única conhecida durante o período pré-sexual. É assim que a
repugnância se inclui nas manifestações afetivas da vida sexual. É o “inter
urinas et faeces nascimur” dos Padres da Igreja, que adere à vida sexual e dela
não pode desprender-se, a despeito de todos os esforços de idealização.
Gostaria, contudo, de enfatizar expressamente minha opinião de que o problema
não fica resolvido pela simples indicação dessa via associativa. O fato de que
essa associação pode ser evocada ainda não explica que ela de fato o
seja. E não o é, em circunstâncias normais. O conhecimento das vias não torna
dispensável o conhecimento das forças que por elas transitam.
Não me
era fácil, além disso, dirigir a atenção de minha paciente para suas relações
com o Sr. K. Ela afirmava ter rompido com essa pessoa. A camada mais
superficial de todas as suas associações durante as sessões, e tudo aquilo de
que se conscientizava com facilidade e que era conscientemente lembrado da
véspera sempre se relacionava com o pai. Era bem verdade que ela não podia
perdoá-lo por continuar a manter relações com o Sr. K. e, mais particularmente,
com a Sra. K. Mas encarava essas relações de maneira muito diferente da que o
pai queria deixar transparecer. Para ela não havia nenhuma dúvida de que o que
ligava seu pai àquela mulher jovem e bonita era um relacionamento amoroso
corriqueiro. Nada que pudesse contribuir para corroborar essa tese escapava à
sua percepção, que nesse sentido era implacavelmente aguda; aqui não havia
nenhuma lacuna em sua memória. O relacionamento com os K. tinha começado
antes da doença grave do pai, mas só se tornou íntimo quando, no curso dessa
enfermidade, a jovem senhora assumiu oficialmente a posição de enfermeira,
enquanto a mãe de Dora se mantinha afastada do leito do doente. Nas primeiras
férias de verão após a recuperação do pai, aconteceram coisas que deveriam ter
aberto os olhos de todos para a verdadeira natureza daquela “amizade”. As duas
famílias tinham alugado um conjunto de aposentos em comum no hotel, e um belo
dia a Sra. K. anunciou que não podia continuar no quarto que até então
partilhara com um de seus filhos; poucos dias depois, o pai de Dora deixou seu
próprio quarto e ambos se mudaram para outros - os quartos da extremidade,
separados apenas pelo corredor-, enquanto os aposentos que haviam abandonado
não ofereciam tal garantia contra interferências. Mais tarde, sempre que Dora
repreendia o pai por causa da Sra. K., ele costumava dizer que não podia
entender sua hostilidade e que, ao contrário, seus filhos tinham todas as
razões para serem gratos a ela. A mãe, a quem Dora foi pedir uma explicação
sobre esse misterioso comentário, disse-lhe que, naquela época, papai estava tão
triste que quisera suicidar-se nos bosques; a Sra. K., suspeitando disso, fora
atrás dele e o persuadira com suas súplicas a se preservar para os seus.
Naturalmente, Dora não acreditava nisso; sem dúvida, os dois tinham sido vistos
juntos no bosque e papai inventara a história do suicídio para
justificar o encontro deles.
Quando
retornaram a B , o pai visitava todos os dias a Sra. K. em determinados horários,
enquanto o marido dela estava na loja. Todo mundo comentara isso e as pessoas
interrogavam Dora de maneira significativa a esse respeito. O próprio Sr. K.
muitas vezes se queixara amargamente à mãe de Dora, embora poupasse a filha de
qualquer alusão ao assunto - o que ela parecia atribuir a uma delicadeza da
parte dele. Nos passeios de todos em comum, seu pai e a Sra. K. sempre sabiam
arranjar as coisas de modo a ficarem a sós. Não havia dúvida alguma de que ela
aceitava dinheiro dele, pois fazia gastos que seria impossível sustentar com
seus recursos ou com os do marido. O pai começara também a dar grandes
presentes à Sra. K. e, para disfarçá-los, tornou-se ao mesmo tempo
particularmente generoso com a mãe de Dora e com ela própria. E a Sra. K., até
então doentia, ela mesma obrigada a passar meses num sanatório para doentes
nervosos por não poder andar, tornara-se agora uma mulher sadia e cheia de
vida.
Mesmo
depois de deixarem B [mudando-se para a
cidade onde ficava a fábrica], esse relacionamento de anos prosseguiu, pois de
tempos em tempos o pai declarava não suportar o rigor do clima e ter de fazer
algo por sua saúde; começava a tossir e a se queixar, até que de repente partia
para B de onde escrevia as mais alegres
cartas. Todas essas doenças não passavam de pretextos para que ele revisse sua
amiga. Depois, um belo dia, ficou decidido que eles se mudariam para Viena, e
Dora começou a suspeitar de uma combinação. E de fato, mal se haviam passado
três semanas desde que estavam em Viena, ela soube que também os K. se tinham
transferido para lá. No momento, contou-me ela, continuavam em Viena, e era
freqüente ela topar com o pai na rua em companhia da Sra. K. Também encontrava
amiúde o Sr. K.; ele sempre a acompanhava com o olhar e, certa feita, quando a
encontrou sozinha, seguiu-a por um longo trecho para ver aonde ela ia e se não
estaria indo a um encontro.
O pai
era insincero, havia um traço de falsidade em seu caráter, só pensava em sua
própria satisfação e tinha o dom de arranjar as coisas da maneira que mais lhe
conviesse: tais foram as críticas mais freqüentes que ouvi de Dora um dia,
quando o pai tornou a sentir que seu estado havia piorado e viajou para B por várias semanas, ao que a arguta Dora
prontamente se inteirou de que também a Sra. K. fizera uma viagem para a mesma
cidade para fazer uma visita a seus parentes.
Não pude
contestar de maneira geral essa caracterização do pai; também era fácil ver por
qual recriminação particular Dora estava justificada. Quando ficava com o ânimo
mais exasperado, impunha-se a ela a concepção de ter sido entregue ao Sr. K.
como prêmio pela tolerância dele para com as relações entre sua mulher e o pai
de Dora; e por trás da ternura desta pelo pai podia-se pressentir sua fúria por
ser usada dessa maneira. Noutras ocasiões, ela sabia muito bem que era culpada
de exagero ao falar assim. Naturalmente, os dois homens nunca haviam firmado um
pacto formal de que ela fosse tratada como objeto de troca, tanto mais que seu
pai teria recuado horrorizado ante tal insinuação. Mas ele era um desses homens
que sabem como fugir a um conflito falseando seu julgamento sobre uma das
alternativas em oposição. Se lhe tivessem chamado a atenção para a
possibilidade de que uma adolescente corresse perigo na companhia constante e não
vigiada de um homem insatisfeito com sua própria mulher, ele certamente teria
respondido que podia confiar na filha, que um homem como K. jamais poderia ser
perigoso para ela e que seu amigo era incapaz de tais intenções. Ou então: que
Dora ainda era uma criança e era tratada como criança por K. Mas, na realidade,
ocorre que cada um dos dois homens evitava extrair da conduta do outro qualquer
conseqüência que pudesse ser inconveniente para suas próprias pretensões.
Assim, o Sr. K. pôde enviar flores a Dora todos os dias por um ano inteiro
enquanto esteve por perto, aproveitar todas as oportunidades de dar-lhe
presentes valiosos e passar todo o seu tempo livre na companhia dela, sem que
os pais da moça discernissem nesse comportamento o caráter de uma corte amorosa.
Quando
surge no tratamento psicanalítico uma seqüência correta, fundamentada e
incontestável de pensamentos, isso bem pode representar um momento de embaraço
para o médico, do qual o paciente se aproveita para perguntar: “Tudo isso é
perfeitamente verdadeiro e correto, não é? Que quer o Sr. modificar, agora que
lhe contei?” Mas logo se evidencia que o paciente está usando tais pensamentos
inatacáveis pela análise para acobertar outros que se querem subtrair da
crítica e da consciência. Um rosário de censuras a outras pessoas leva-nos a
suspeitar da existência de um rosário de autocensuras de conteúdo idêntico.
Basta que se volte cada censura isolada para a própria pessoa do falante. Há
algo de inegavelmente automático nessa maneira de defender-se de uma
autocensura dirigindo a mesma censura contra outrem. Encontra-se um modelo
disso nos argumentos tu quoque das crianças; quando uma delas é acusada
de mentirosa, retruca sem hesitar: “Você é que é.” Um adulto empenhado em
revidar um insulto procuraria um ponto fraco real de seu oponente e não poria a
ênfase principal na repetição do mesmo conteúdo. Na paranóia, essa projeção da
censura em outrem sem qualquer alteração do conteúdo, e portanto, sem nenhum
apoio na realidade, torna-se manifesta como processo de formação do delírio.
Também
as censuras de Dora a seu pai estavam assim “forradas” ou “revestidas” de
autocensuras de conteúdo idêntico, quase sem exceção, como se verá em detalhe.
Tinha razão em achar que seu pai não queria esclarecer o comportamento do Sr.
K. em relação a ela para não ser molestado em seu próprio relacionamento com a
Sra. K. Mas Dora fizera precisamente a mesma coisa. Tornara-se cúmplice desse
relacionamento e repudiara todos os sinais que pudessem mostrar sua verdadeira
natureza. Só da aventura no lago (ver em [1]) é que datavam sua visão clara do
assunto e suas exigências ao pai. Durante todos os anos anteriores ela fizera o
possível para favorecer as relações do pai com a Sra. K. Nunca ia vê-la quando
suspeitava de que seu pai estivesse lá. Sabia que, nesse caso, as crianças
seriam afastadas, e rumava pelo caminho em que estava certa de encontrá-las,
indo passear com elas. Na casa de Dora tinha havido uma pessoa que cedo quis
abrir-lhe os olhos para as relações do pai com a Sra. K. e induzi-la a tomar
partido contra essa mulher. Fora sua última governanta, uma moça
solteira e mais velha, muito lida e de opiniões avançadas. Mestra e aluna se
deram esplendidamente por algum tempo, até que, de repente, Dora se desentendeu
com ela e insistiu em sua dispensa. Enquanto a governanta teve alguma
influência, usou-a para acirrar os ânimos contra a Sra. K. Disse à mãe de Dora
que era incompatível com sua dignidade tolerar tal intimidade entre seu marido
e uma estranha e chamou a atenção de Dora para tudo o que saltava aos olhos
naquele relacionamento. Mas seus esforços foram em vão, pois Dora continuava
ternamente ligada à Sra. K. e não queria saber de nenhum motivo que fizesse as
relações do pai com ela parecerem indecentes. Por outro lado, percebia muito
bem os motivos que impeliam sua governanta. Cega num sentido, Dora tinha a
percepção bem aguçada no outro. Notou que a governanta estava apaixonada por
seu pai. Quando ele estava em casa, ela parecia uma pessoa completamente
diferente, podendo ser divertida e obsequiosa. Na época em que a família morava
na cidade industrial e a Sra. K. não estava no horizonte, sua animosidade se
voltava contra a mãe de Dora, que era então sua rival mais imediata. Mas Dora
ainda não levava nada disso a mal. Só se zangou ao observar que ela própria era
totalmente indiferente para a governanta, cuja afeição demonstrada por ela de
fato era dirigida a seu pai. Enquanto o pai estava ausente da cidade
industrial, a moça não tinha tempo para ela, não queria passear com ela e não
se interessava por seus estudos. Mal o pai voltava de B , ela tornava a se
mostrar prestimosa em toda sorte de serviço e ajuda. Por isso Dora a deixou de
lado.
A pobre
mulher elucidara com clareza indesejada uma parte do comportamento de Dora. O
que a governanta às vezes era para Dora, esta fora para os filhos do Sr. K.
Fora uma mãe para eles, instruindo-os, passeando com eles e lhes oferecendo um
substituto completo para o escasso interesse que a verdadeira mãe lhes
demonstrava. O Sr. e a Sra. K. freqüentemente falavam em divórcio, que nunca se
concretizou porque o Sr. K., que era um pai afetuoso, não queria abrir mão de
nenhum dos dois filhos. O interesse comum pelos filhos fora desde o início um
elo entre o Sr. K. e Dora. Evidentemente, ocupar-se de crianças era para Dora
um disfarce destinado a ocultar dela mesma e dos outros alguma outra coisa.
De seu
comportamento para com as crianças, considerado à luz da conduta da governanta
com ela própria, extraía-se a mesma conclusão que de sua tácita aquiescência às
relações do pai com a Sra. K., a saber, que em todos aqueles anos ela estivera
apaixonada pelo Sr. K. Quando formulei essa conclusão, não obtive dela nenhum
assentimento. É verdade que me disse de imediato que também outras pessoas (por
exemplo, uma prima que passara algum tempo com eles em B ) lhe tinham dito:
“Ora, você é simplesmente louca por este homem!” Mas ela própria não queria
lembrar-se de nenhum sentimento dessa ordem. Mais tarde, quando a abundância do
material surgido tornou-lhe difícil persistir na negativa, ela admitiu que
poderia ter estado enamorada do Sr. K. em B , mas declarou que desde a cena do
lago isso havia acabado. De qualquer forma, era certo que a censura, por
fazer ouvidos de mercador aos chamados imperativos do dever e por arranjar as
coisas da maneira mais conveniente do ponto de vista do próprio enamoramento,
ou seja, a censura que ela fazia contra o pai recaía sobre sua própria pessoa.
A outra
censura, de que as doenças do pai eram criadas como um pretexto e exploradas em
proveito próprio, coincide também com todo um fragmento de sua própria história
secreta. Um dia, Dora queixou-se de um sintoma supostamente novo, que consistia
em dores de estômago dilacerantes, e acertei em cheio ao perguntar: “A quem
você está copiando nisso?” No dia anterior ela fora visitar as primas, filhas
da tia que morrera. A mais jovem ficara noiva e com isso a mais velha adoecera
com umas dores de estômago,sendo mandada para Semering. Dora achava que
era apenas inveja por parte da mais velha, pois ela sempre adoecia quando
queria alguma coisa, e o que queria agora era afastar-se de casa para não ter
de assistir à felicidade da irmã. Mas suas próprias dores de estômago
diziam que Dora se identificara com a prima, assim declarada simuladora, fosse
porque ela também invejava o amor da moça mais afortunada, fosse porque via sua
própria história refletida na da irmã mais velha, que tivera recentemente um
caso amoroso de final infeliz. Mas Dora também aprendera, observando a Sra. K.,
quanto proveito se podia tirar das doenças. O Sr. K. passava parte do ano
viajando; sempre que voltava, encontrava sua mulher adoentada, embora, como
Dora sabia, ela tivesse gozado de boa saúde até o dia anterior. Dora
compreendeu que era a presença do marido que fazia a mulher adoecer, e que esta
considerava a doença bem-vinda para escapar aos deveres conjugais que tanto
detestava. Nesse ponto inseriu-se uma observação repentina de Dora sobre suas
próprias alternações entre doença e saúde nos primeiros anos de sua infância em
B , e assim fui levado a suspeitar de
que seus próprios estados de saúde dependiam de alguma outra coisa, tal como os
da Sra. K. É que na técnica da psicanálise existe uma regra de que uma conexão
interna ainda não revelada se anuncia pela contigüidade, pela proximidade
temporal entre as associações, exatamente como, na escrita, um a e um b postos
lado a lado significam que se pretendeu formar com eles a sílaba ab. Dora
tivera um grande número de acessos de tosse acompanhados de perda da voz. Teria
a presença ou ausência do homem amado exercido alguma influência sobre o
aparecimento e desaparecimento dos sintomas patológicos? Se assim fosse, em
algum ponto se deveria revelar uma coincidência denunciadora. Perguntei-lhe
qual tinha sido a duração média desses ataques. “Três a seis semanas, talvez.”
Quanto tempo duravam as ausências do Sr. K.? “Três a seis semanas, também”,
teve ela de admitir. Com suas doenças, portanto, ela demonstrava seu amor por
K., tal como a mulher dele demonstrava sua aversão. Bastava supor que seu
comportamento fora o oposto do da Sra. K.: enferma quando ele estava ausente e
sadia quando ele voltava. Isso realmente parece ter acontecido pelo menos
durante o primeiro período dos ataques. Em épocas posteriores, sem dúvida,
tornou-se necessário obscurecer a coincidência entre seus ataques de doença e a
ausência do homem secretamente amado,para que a constância dessa coincidência
não traísse seu segredo. A duração dos acessos permaneceria, depois, como uma
marca de seu sentido originário.
Lembrei-me
de ter visto e ouvido tempos atrás, na clínica de Charcot [1885-6], que nas
pessoas que sofrem de mutismo histérico a escrita funcionava vicariamente em
lugar da fala. Elas escreviam com maior fluência, mais depressa e melhor do que
as outras ou elas mesmas anteriormente. O mesmo acontecera com Dora. Nos
primeiros dias de suas crises de afonia “a escrita sempre lhe fluía da mão com
especial facilidade”. Essa peculiaridade, como expressão de uma função
fisiológica substitutiva criada pela necessidade, na verdade não requeria
esclarecimento psicológico, mas era notável a facilidade com que este era
encontrado. O Sr. K. lhe escrevia profusamente quando em viagem, e lhe mandava
cartões-postais; houve ocasiões em que só ela estava a par da data de seu
regresso, enquanto este apanhava sua mulher de surpresa. Além disso,
corresponder-se com um ausente com quem não se pode falar não é mais
compreensível do que, tendo perdido a voz, tentar fazer-se entender pela
escrita. A afonia de Dora, portanto, admitia a seguinte interpretação
simbólica: quando o amado estava longe, ela renunciava à fala; esta perdia seu
valor, já que não podia falar com ele. Por outro lado, a escrita ganhava
importância como único meio de se manter em relação com o ausente.
Devo,
então, afirmar que em todos os casos em que há crises periódicas de afonia
devemos diagnosticar a existência de um amado que se ausenta temporariamente?
Por certo não é esta minha intenção. A determinação do sintoma no caso de Dora
é por demais específica para que se possa pensar na repetição freqüente dessa
mesma etiologia acidental. Mas, que valor tem então o esclarecimento da afonia
em nosso caso? Não nos teremos simplesmente deixado enganar por um jeu
d’esprit? Creio que não. Aqui convém lembrar a questão tão freqüentemente
levantada de saber se os sintomas da histeria são de origem psíquica ou
somática ou, admitindo-se o primeiro caso, se todos têm necessariamente um
condicionamento psíquico. Esta pergunta, como tantas outras a que os
investigadores têm voltado repetidamente sem sucesso, não é adequada. As
alternativas nelas expostas não cobrem a essência real dos fatos. Até onde
posso ver, todo sintoma histérico requer a participação de ambos os lados. Não
pode ocorrer sem a presença de uma certa complacência somática
fornecida por algum processo normal ou patológico no interior de um órgão do
corpo ou com ele relacionado. Porém não se produz mais de uma vez - e é do
caráter do sintoma histérico a capacidade de se repetir - a menos que tenha uma
significação psíquica, um sentido. O sintoma histérico não traz em si
esse sentido, mas este lhe é emprestado, soldado a ele, por assim dizer, e em
cada caso pode ser diferente, segundo a natureza dos pensamentos suprimidos que
lutam por se expressar. Todavia, há uma série de fatores que operam para tornar
menos arbitrárias as relações entre os pensamentos inconscientes e os processos
somáticos de que estes dispõem como meio de expressão, assim como para aproximá-las
de algumas formas típicas. Para a terapia, os determinantes mais importantes
são os fornecidos pelo material psíquico acidental; os sintomas são dissolvidos
buscando-se sua significação psíquica. Uma vez removido tudo o que se pode
eliminar pela psicanálise, fica-se em condições de formar toda sorte de
conjecturas, provavelmente acertadas, sobre as bases somáticas dos sintomas,
que em geral são constitucionais e orgânicas. Tampouco no caso dos acessos de
tosse e afonia de Dora nos contentaremos com uma interpretação psicanalítica,
mas indicaremos por trás dela o fator orgânico de que partiu a “complacência
somática” que lhe possibilitou expressar sua afeição por um amado
temporariamente ausente. E se neste caso a conexão entre a expressão sintomática
e o conteúdo dos pensamentos inconscientes nos parecer fruto de um habilidoso e
impressionante artifício, ficaremos reconfortados em saber que ela cria a mesma
impressão em todos os outros casos e em todos os outros exemplos.
Estou
pronto a ouvir, nesta altura, que não há grande vantagem em sermos informados,
graças à psicanálise, de que não mais precisamos buscar a chave do problema da
histeria numa “labilidade peculiar das moléculas nervosas” ou numa
suscetibilidade aos “estados hipnóides”, mas numa “complacência somática”. Em
resposta a essa observação, quero frisar que dessa maneira o enigma não só
recuou um pouco, mas também se tornou um pouco menor. Já não temos de lidar com
o enigma inteiro, mas apenas da parte dele em que se inclui a característica
particular da histeria que a diferencia das outras psiconeuroses. Os
processos psíquicos em todas as psiconeuroses são os mesmos durante um extenso
percurso, até que entre em cena a “complacência somática” que proporciona aos
processos psíquicos inconscientes uma saída no corporal. Quando esse fator não
se faz presente, surge da situação total algo diferente de um sintoma
histérico, mas ainda de natureza afim: uma fobia, talvez, ou uma idéia
obsessiva - em suma, um sintoma psíquico.
Volto
agora à censura pela “simulação” de doença que Dora fez ao pai. Logo se
evidenciou que a ela correspondiam não só autocensuras concernentes a estados
patológicos anteriores, mas também outras relativas à época atual. Nesse ponto,
cabe comumente ao médico a tarefa de adivinhar e complementar aquilo que a
análise lhe oferece apenas sob a forma de alusões. Tive de assinalar à paciente
que seu atual estado de saúde era tão determinado por motivos e tão tendencioso
quanto fora a doença da Sra. K., que ela entendera tão bem. Não havia nenhuma
dúvida, disse eu, de que ela visava a um objetivo que esperava alcançar através
de sua doença. Este não podia ser outro senão o de fazer seu pai afastar-se da
Sra. K. Mediante súplicas ou argumentos ela não conseguia; talvez esperasse ter
êxito assustando o pai (vide a carta de despedida), despertando sua compaixão
(por meio dos ataques de desmaios) (ver em [1]), ou se tudo isso fosse em vão,
pelo menos se vingaria dele. Ela sabia muito bem, prossegui, o quanto ele lhe
era apegado e que seus olhos se enchiam de lágrimas quando lhe perguntavam pelo
estado da filha. Eu estava plenamente convencido de que ela se recuperaria
imediatamente se o pai lhe dissesse que tinha sacrificado a Sra. K, em prol da
saúde dela. Mas, acrescentei, eu esperava que ele não se deixasse persuadir a
fazê-lo, pois então ela ficaria conhecendo a poderosa arma que tinha nas mãos e
por certo não deixaria de servir-se em todas as ocasiões futuras de sua
possibilidade de adoecer. Se o pai não cedesse, porém, eu deveria estar
preparado para isto: ela não renunciaria tão facilmente a sua doença.
Omito os
detalhes que mostraram quão plenamente correto era tudo isso, preferindo
acrescentar algumas observações gerais sobre o papel desempenhado na histeria
pelos motivos da doença. Os motivos do adoecimento devem ser nitidamente
distinguidos, enquanto conceito, das possibilidades de adoecer - do material de
que se formam os sintomas. Eles não têm participação alguma na formação de
sintomas e nem sequer estão presentes no início da doença. Só aparecem
secundariamente, mas é apenas com seu advento que se constitui plenamente a enfermidade.
Pode-se contar com sua existência em todos os casos em que haja um sofrimento
real e de longa data. A princípio, o sintoma é para a vida psíquica um hóspede
indesejável: tudo está contra ele, e é por isso que pode dissipar-se com tanta
facilidade, aparentemente por si só, sob a influência do tempo. No início, não
tem nenhum emprego útil na economia doméstica psíquica, porém com muita
freqüência encontra serventia secundariamente. Uma ou outra corrente psíquica
acha cômodo servir-se do sintoma, que assim adquire uma função secundária
e fica como que ancorado na vida anímica. Aquele que pretende curar o doente
tropeça então, para seu assombro, numa grande resistência, que lhe
ensina que a intenção do paciente de se livrar de seus males não é nem tão
cabal nem tão séria quanto parecia. Imaginemos um trabalhador, um pedreiro,
digamos, que tenha caído de uma construção e ficado aleijado, e que agora ganhe
a vida mendigando nas esquinas. Chega um milagreiro e promete endireitar-lhe a
perna torta e devolver-lhe a marcha. Não se deve esperar, acho eu, ver uma
expressão de particular contentamento em seu rosto. Sem dúvida, na época em que
sofreu a lesão, ele há de ter-se sentido extremamente infeliz, ao compreender
que nunca mais poderia voltar a trabalhar e teria de passar fome ou viver de
esmolas. Desde então, porém, o que antes o deixara sem seu ganha-pão tornou-se
sua fonte de renda: ele vive de sua invalidez. Se esta lhe for tirada, talvez
ele fique totalmente desamparado; nesse meio tempo, ele esqueceu seu ofício,
perdeu seus hábitos de trabalho e se acostumou à indolência, e talvez também à
bebida.
Os
motivos para adoecer muitas vezes começam a se fazer sentir já na infância. A
menina sedenta de amor, que a contragosto partilha com seus irmãos a afeição
dos pais, percebe que toda esta volta a afluir-lhe quando seu adoecimento
desperta a preocupação deles. Agora ela conhece um meio de atrair o amor dos
pais, e se valerá dele tão logo disponha do material psíquico para produzir uma
doença. Quando essa menina se transforma em mulher e, em total contradição com
as exigências de sua infância, casa-se com um homem pouco atencioso que sufoca
sua vontade, explora impiedosamente sua capacidade de trabalho e não lhe dá nem
ternura nem dinheiro, a doença é a única arma que lhe resta para afirmar-se na
vida. Ela lhe proporciona a ansiada consideração, força o marido a fazer
sacrifícios pecuniários e a demonstrar-lhe um respeito que não teria se ela
estivesse com saúde, e o obriga a tratá-la com prudência caso ela se recupere,
pois do contrário poderá haver uma recaída. O caráter aparentemente objetivo e
involuntário de seu estado patológico, que o médico encarregado de tratá-la por
certo defenderá, possibilita esse uso oportuno, sem autocensuras conscientes,
de um meio que ela constatara ser eficaz na infância.
E ainda
assim essas doenças são obra da intenção! Em geral, esses estados patológicos
se destinam a uma determinada pessoa, de modo que desaparecem quando ela se
afasta. As opiniões mais rudes e banais sobre a natureza dos distúrbios
histéricos, como as que se ouvem de parentes incultos e de enfermeiras, de
certa forma são corretas. É verdade que a mulher que jaz paralisada na cama se
levantaria de um salto se irrompesse um incêndio em seu quarto, e que a esposa
excessivamente mimada esqueceria todos os seus sofrimentos se um filho seu
adoecesse com risco de vida ou se alguma catástrofe ameaçasse a situação do
lar. Todos os que assim falam dos pacientes estão certos, a não ser num único
ponto: desconsideram a distinção psicológica entre consciente e inconsciente, o
que talvez seja permissível quando se trata de crianças, mas com adultos já não
tem cabimento. Por isso é que de nada servem todas essas afirmações de que é
“apenas uma questão de vontade” e todas as exortações e insultos dirigidos ao
doente. Primeiro é preciso tentar, pelas vias indiretas da análise, fazer com
que a pessoa convença a si mesma da existência dessa intenção de adoecer.
Na
histeria, é no combate aos motivos da doença que reside, de modo bastante
geral, o ponto fraco para qualquer terapia, inclusive a psicanálise. Para o
destino as coisas são mais fáceis: ele não precisa atacar a constituição ou o
material patogênico do enfermo; basta-lhe eliminar o motivo de adoecimento para
que o doente fique temporária ou até permanentemente livre de seu mal. Quão
menor seria o número de curas milagrosas e desaparecimentos espontâneos dos sintomas
que nós, os médicos, teríamos de admitir na histeria, se nos fosse dado
conhecer mais amiúde os interesses vitais que os doentes nos ocultam! Ora um
prazo se esgotou, ora desapareceu a consideração por alguma outra pessoa, ora
uma situação foi fundamentalmente alterada por algum acontecimento externo, e
eis que todo distúrbio até então pertinaz desaparece de um só golpe, de modo
aparentemente espontâneo, mas, na verdade, por ter sido privado de seu motivo
mais poderoso - um dos usos que tinha na vida do enfermo.
Em todos
os casos plenamente desenvolvidos é provável que se encontrem motivos que
sustentam a condição do doente. Mas há casos com motivos puramente internos,
como, por exemplo, a autopunição, ou seja, o arrependimento e a penitência.
Neles, verifica-se que a tarefa terapêutica é mais fácil de solucionar
do que nos casos em que a doença se relaciona com a consecução de algum
objetivo externo. No caso de Dora, esse objetivo era claramente o de
sensibilizar o pai e afastá-lo da Sra. K.
Nenhum
dos atos do pai parecia irritá-la tanto quanto sua presteza em tomar a cena do
lago como produto da fantasia dela. Dora ficava fora de si ante a idéia de se
pensar que ela simplesmente imaginara algo naquela ocasião. Durante muito tempo
fiquei em apuros para adivinhar que autocensura se ocultaria por trás de sua
recusa apaixonada dessa explicação. Era justificável suspeitar de que houvesse
algo oculto, pois uma censura que não acerta o alvo tampouco ofende em termos
duradouros. Por outro lado, cheguei à conclusão de que o relato de Dora devia
corresponder à verdade em todos os aspectos. Mal ela percebera a intenção do
Sr. K., não deixara que ele terminasse de falar, esbofeteara-o no rosto e se
afastara às carreiras. Seu comportamento, depois que ela se foi, deve ter
parecido tão incompreensível para o homem quanto para nós, pois ele já deveria
ter depreendido desde muito antes, por pequenos indícios, que tinha assegurada
a afeição da moça. Na discussão do segundo sonho encontraremos tanto a solução
desse enigma quanto a autocensura em vão buscada no começo (ver a partir de
[1]).
Como as
acusações contra o pai se repetiam com cansativa monotonia e ao mesmo tempo sua
tosse continuava, fui levado a achar que esse sintoma poderia ter algum
significado relacionado com o pai. Além disso, as exigências que costumo fazer
à explicação de um sintoma estavam longe de ser satisfeitas. Segundo uma regra
que eu pudera confirmar repetidamente pela experiência mas que ainda não me
atrevera a consolidar num princípio geral, o sintoma significa a representação
- a realização - de uma fantasia de conteúdo sexual, isto é, uma situação
sexual. Melhor dizendo, pelo menos um dos significados de um sintoma
corresponde à representação de uma fantasia sexual, enquanto para os outros
significados não se impõe tal limitação do conteúdo. Quando se empreende o
trabalho psicanalítico, logo se constata que os sintomas têm mais de um
significado e servem para representar simultaneamente diversos cursos
inconscientes de pensamento. E eu acrescentaria que, na minha opinião, um único
curso de pensamento ou fantasia inconsciente dificilmente bastará para a
produção de um sintoma.
Logo
surgiu uma oportunidade de atribuir à tosse nervosa de Dora uma interpretação
desse tipo, mediante uma situação sexual fantasiada. Quando ela insistiu mais
uma vez em que a Sra. K. só amava seu pai porque ele era “ein vermögender
Mann” [“um homem de posses”], certos pormenores da maneira como se
expressou (que omito aqui, como a maioria dos aspectos puramente técnicos da análise)
levaram-me a notar que por trás dessa frase se ocultava seu oposto, ou seja,
que o seu pai era “ein unvermögender Mann” [“um homem sem recursos”].
Isso só poderia ser entendido num sentido sexual - que seu pai, como homem, era
sem recursos, era impotente. Depois que Dora confirmou essa
interpretação com base em seu conhecimento consciente, assinalei a contradição
em que ela caía quando, por um lado, continuava a insistir em que as relações
do pai com a Sra. K. eram um caso amoroso corriqueiro e, por outro, asseverava
que o pai era impotente e, portanto, incapaz de tirar proveito de tal
relacionamento. Sua resposta mostrou que ela não precisava reconhecer a
contradição. Ela sabia muito bem, disse, que há mais de uma maneira de se obter
satisfação sexual. A fonte desse conhecimento, aliás, novamente lhe era
inidentificável. Como lhe perguntei se ela se estava referindo ao uso de outros
órgãos que não os genitais na relação sexual e ela respondeu afirmativamente,
pude prosseguir dizendo que, nesse caso, ela devia estar pensando precisamente
nas partes do corpo que nela se achavam em estado de irritação - a garganta e a
cavidade bucal. Obviamente, ela não queria saber de seus pensamentos a tal
ponto, e de fato, se era isso que possibilitava o sintoma, não poderia mesmo
ser-lhe inteiramente claro. Mas era irrecusável a complementação de que, com
sua tosse espasmódica - que, como de hábito, tinha por estímulo uma sensação de
cócega na garganta -, ela representava uma cena de satisfação sexual per os
entre as duas pessoas cuja ligação amorosa a ocupava tão incessantemente. Muito
pouco tempo depois de ela aceitar em silêncio essa explicação, a tosse
desapareceu - o que se afinava muito bem com minha visão; mas não quero
atribuir um valor excessivo a essa mudança, visto que ela já se produzira
tantas vezes espontaneamente.
Caso
esse trechinho da análise tenha despertado no leitor médico, além do ceticismo
a que ele tem direito, também estranheza, e horror, estou disposto a averiguar,
neste ponto, se essas duas reações são justificáveis. A estranheza, penso eu, é
motivada por minha ousadia em falar sobre coisas tão delicadas e desagradáveis
com uma jovem - ou, de modo geral, com qualquer mulher sexualmente ativa. O
horror sem dúvida concerne à possibilidade de que uma moça virgem possa
conhecer semelhantes práticas e ocupar-se delas em sua fantasia. Em ambos os
pontos eu recomendaria moderação e prudência. Não há motivos para indignação em
nenhum dos dois casos. Pode-se falar com moças e muIheres sobre toda sorte de
assuntos sexuais sem causar-lhes qualquer prejuízo e sem acarretar suspeitas
sobre si mesmo, desde que, em primeiro lugar, adote-se uma certa maneira de
fazê-lo, e, em segundo, consiga-se despertar nelas a convicção de que isso é
inevitável. Afinal, nessas mesmas condições, o ginecologista se permite
submetê-las a todos os desnudamentos possíveis. A melhor maneira de falar sobre
tais coisas é ser seco e direto; e ela é, ao mesmo tempo, a que mais se afasta
da lascívia com que os mesmos temas são tratados na “sociedade”, com a qual as
moças e mulheres estão plenamente acostumadas. Dou aos órgãos e funções do
corpo seus nomes técnicos, e os comunico - refiro-me aos nomes - quando por
acaso são ignorados. J’apelle un chat un chat. Certamente já ouvi falar
de pessoas - médicos e leigos - que se escandalizam com uma terapia em que
ocorrem tais conversas, e que parecem invejar a mim ou a meus pacientes pela
excitação que, segundo suas expectativas, tal método deve proporcionar. Mas
conheço demasiadamente bem o decoro desses senhores para me irritar com eles.
Resistirei à tentação de escrever uma sátira a seu respeito. Mas há uma coisa
que quero dizer: muitas vezes, depois de tratar por algum tempo de uma paciente
para quem, de início, não foi fácil a franqueza nas questões sexuais, tive a
satisfação de ouvi-la exclamar: “Ora, afinal, seu tratamento é muito mais
decente do que a conversa do Sr. X!”
Antes de
se empreender o tratamento de um caso de histeria, é preciso estar convencido
da impossibilidade de evitar a menção de temas sexuais, ou pelo menos estar
disposto a se deixar convencer pela experiência. A atitude correta é: “pour
faire une omelette il faut casser des oeufs”. Os próprios pacientes são
fáceis de convencer, e há inúmeras oportunidades para isso no decorrer do
tratamento. Não há por que recriminar-se por falar com eles sobre os fatos da
vida sexual normal ou anormal. Com um pouco de cautela, não se faz mais do que
traduzir em idéias conscientes o que já se sabia no inconsciente, e toda a
eficácia do tratamento se baseia em nosso conhecimento de que a ação do afeto
ligado a uma idéia inconsciente é mais intensa e, como ele não pode ser
inibido, mais prejudicial que a do afeto ligado a uma idéia consciente. Nunca
se corre qualquer perigo de corromper uma jovem inexperiente; quando não há no
inconsciente nenhum conhecimento sobre os processos sexuais, tampouco surge
qualquer sintoma histérico. Quando se constata uma histeria, não há como falar
em “inocência dos pensamentos” no sentido usado pelos pais e educadores. Nas
crianças de dez, doze ou quatorze anos, sejam elas meninos ou meninas, pude
convencer-me da confiabilidade desta afirmação, sem exceções.
Quanto à
segunda reação emocional, que já não se dirige a mim e sim a minha paciente -
supondo-se que minha visão dela esteja correta -, e que considera horrível o
caráter perverso de suas fantasias, cabe-me frisar que não compete ao médico
tal condenação apaixonada. Entre outras coisas, considero despropositado que um
médico, ao escrever sobre as aberrações das pulsões sexuais, sirva-se de cada
oportunidade para intercalar no texto expressões de sua repugnância pessoal
ante coisas tão revoltantes. Estamos diante de um fato, e é de se esperar que
nos acostumemos a ele pondo de lado nossos próprios gostos. Precisamos aprender
a falar sem indignação sobre o que chamamos de perversões sexuais - essas
transgressões da função sexual tanto na esfera do corpo quanto na do objeto
sexual. Já a indefinição dos limites do que se deve chamar de vida sexual
normal nas diferentes raças e épocas deveria arrefecer tal ardor fanático.
Tampouco nos devemos esquecer de que a perversão que nos é mais repelente, o
amor sensual de um homem por outro, não só era tolerada num povo culturalmente
tão superior a nós quanto os gregos, como também lhe eram atribuídas entre eles
importantes funções sociais. Na vida sexual de cada um de nós, ora aqui, ora
ali, todos transgredimos um pouquinho os estreitos limites do que se considera
normal. As perversões não são bestialidades nem degenerações no sentido
patético dessas palavras. São o desenvolvimento de germes contidos, em sua
totalidade, na disposição sexual indiferenciada da criança, e cuja supressão ou
redirecionamento para objetivos assexuais mais elevados - sua “sublimação”
- destina-se a fornecer a energia para um grande número de nossas realizações
culturais. Portanto, quando alguém se torna grosseira e manifestamente
pervertido, seria mais correto dizer que permaneceu como tal, pois
exemplifica um estágio de inibição do desenvolvimento. Todos os
psiconeuróticos são pessoas de inclinações perversas fortemente acentuadas, mas
recalcadas e tornadas inconscientes no curso de seu desenvolvimento. Por isso
suas fantasias inconscientes exibem um conteúdo idêntico ao das ações
documentadas nos perversos, mesmo que eles não tenham lido a Psychopathia
Sexualis de Krafft-Ebing, livro a que as pessoas ingênuas atribuem uma
parcela tão grande de culpa na gênese das tendências perversas. As
psiconeuroses são, por assim dizer, o negativo das perversões. Nos neuróticos,
a constituição sexual, na qual está contida a expressão da hereditariedade,
atua em combinação com as influências acidentais de sua vida que possam
perturbar o desenvolvimento da sexualidade normal. O curso d’água que encontra
um obstáculo em seu leito reflui para leitos antigos que antes pareciam
destinados a permanecer secos. As forças impulsoras da formação dos sintomas
histéricos não provêm apenas da sexualidade normal recalcada, mas também
das moções perversas inconscientes.
As menos
chocantes dentre as chamadas perversões sexuais são amplamente difundidas por
toda a população, como sabe todo o mundo, exceto os médicos que escrevem sobre
o assunto. Ou melhor, esses autores também sabem, só que se empenham em
esquecê-lo no momento em que tomam da pena para escrever a respeito. Portanto,
não surpreende que nossa histérica de quase dezenove anos soubesse da
existência desse tipo de relação sexual (sucção do órgão masculino), criasse
uma fantasia inconsciente dessa natureza e a expressasse através da sensação de
cócega na garganta e da tosse. Tampouco seria assombroso que ela chegasse a tal
fantasia mesmo sem contar com qualquer esclarecimento externo, como pude
comprovar com certeza em outras pacientes. É que, no caso dela, um fato digno
de nota proporcionava a precondição somática para tal criação independente de
uma fantasia que coincide com a prática dos perversos. Ela lembrava muito bem
de ter sido, na infância, uma “chupadora de dedo”. O pai também se recordava de
tê-la feito abandonar esse hábito, que persistira até os quatro ou cinco anos
de idade. A própria Dora tinha clara na memória a imagem de uma cena de sua
tenra infância em que, sentada num canto do assoalho, ela chupava o polegar
esquerdo, enquanto com a mão direita puxava o lóbulo da orelha do irmão,
sentado quieto a seu lado. Essa é a forma completa da autogratificação pelo ato
de chupar, tal como também me foi descrita por outras pacientes que depois se
tornaram anestésicas e histéricas.
Uma
dessas pacientes deu-me uma informação que esclarece perfeitamente a origem
desse estranho hábito. Essa jovem senhora, que nunca deixara o hábito de chupar
o dedo, via-se numa lembrança de infância, supostamente da primeira metade de
seu segundo ano de vida, mamando no seio de sua ama e, ao mesmo tempo,
puxando-lhe ritmicamente o lóbulo da orelha. Ninguém há de contestar, penso eu,
que a membrana mucosa dos lábios e da boca pode ser considerada como uma zona
erógena primária, já que parte dessa significação é ainda
preservada no beijo tido como normal. A intensa atividade dessa zona erógena em
idade precoce constitui, portanto, a condição para a complacência somática
posterior do trato da membrana mucosa que começa nos lábios. Se depois, numa
época em que já se conhece o objeto sexual propriamente dito, o membro
masculino, surgem circunstâncias que tornam a aumentar a excitação da zona da
boca, que preservou seu caráter erógeno, não é preciso um grande dispêndio de
força criadora para substituir, na situação de satisfação, o mamilo originário
e o dedo que fazia as vezes dele pelo objeto sexual atual, o pênis. Assim, essa
fantasia perversa e sumamente escandalosa de chupar o pênis tem a mais inocente
das origens; é a nova versão do que se pode chamar de impressão pré-histórica
de sugar o seio da mãe ou da ama - uma impressão comumente revivida no contato
com crianças que estejam sendo amamentadas. Na maioria das vezes, o úbere da
vaca serve de representação intermediária adequada entre o mamilo e o pênis.
A
recém-mencionada interpretação do sintoma da garganta de Dora também pode dar
margem a outra observação. Pode-se perguntar de que modo essa situação sexual
fantasiada se harmoniza com nossa outra explicação, a saber, a de que o
aparecimento e desaparecimento das manifestações patológicas refletia a
presença e ausência do homem amado, e, portanto, no tocante à conduta da Sra.
K., expressava o seguinte pensamento: “Se eu fosse mulher dele, eu o
amaria de maneira muito diferente; adoeceria (de saudade, digamos) quando ele
estivesse fora e ficaria curada (de alegria) quando voltasse para casa.” A isso
devo responder, por minha experiência na resolução dos sintomas histéricos, que
não é necessário que os diversos significados de um sintoma sejam compatíveis
entre si, ou seja, que se complementem num todo articulado. Basta que a
interarticulação seja constituída pelo tema que deu origem às diversas
fantasias. Em nosso caso, além disso, tal compatibilidade não está excluída; um
dos dois significados se relaciona mais com a tosse, e o outro, com a afonia e
o caráter cíclico do distúrbio. Uma análise mais acurada provavelmente
permitiria reconhecer um número muito maior de elementos anímicos nos
pormenores da enfermidade.
Já
constatamos que, com bastante regularidade, um sintoma corresponde simultaneamente
a diversos significados; acrescentemos agora que também pode expressar diversos
significados sucessivamente. No decorrer dos anos, um sintoma pode
alterar um de seus significados ou seu sentido principal, ou então o papel
principal pode passar de um significado para outro. Há como que um traço
conservador no caráter das neuroses: uma vez formado, se possível, o sintoma é
preservado, mesmo que o pensamento inconsciente que nele encontrou expressão
tenha perdido seu significado. Mas também é fácil explicar mecanicamente essa
tendência à conservação do sintoma: é tão difícil a produção de um sintoma
dessa natureza, são tantas as condições favorecedoras necessárias à
transposição de uma excitação puramente psíquica para o corporal - isso que denominei
de “conversão” -, e é tão raro dispor-se da complacência somática
necessária à conversão, que o impulso para a descarga da excitação vinda do
inconsciente utiliza, tanto quanto possível, qualquer via de descarga já
transitável. Muito mais fácil do que criar uma nova conversão parece ser a
produção de vínculos associativos entre um novo pensamento carente de descarga
e o antigo, que já não precisa dela. Pela via assim facilitada flui a excitação
da nova fonte excitante para o antigo ponto de descarga, e o sintoma se
assemelha, segundo as palavras do Evangelho, a um odre velho repleto de vinho
novo. Por estas observações, a parte somática do sintoma histérico parece ser a
mais estável e a mais difícil de substituir, enquanto a psíquica se afigura
como o elemento mais variável e mais facilmente substituível. Todavia, não se
deve pretender inferir dessa relação nenhuma hierarquia entre os dois
elementos. Para a terapia psíquica, a parte psíquica é sempre a mais
significativa.
No caso
de Dora, a incessante repetição dos mesmos pensamentos sobre as relações entre
seu pai e a Sra. K. possibilitou extrair da análise um outro material ainda
mais importante.
Uma
seqüência de pensamentos como essa pode ser descrita como hiperintensa, ou
melhor, reforçada ou hipervalente [“überwertig”] na acepção de
Wernicke [1900, 140]. Ela mostra seu caráter patológico, a despeito do conteúdo
aparentemente correto, pela peculiaridade singular de que, por maiores que
sejam os esforços de pensamento conscientes e voluntários da pessoa, não se
pode dissipá-la ou eliminá-la. Uma seqüência normal de pensamentos, por mais
intensa que seja, acaba podendo ser eliminada. Dora achava, com toda razão, que
seus pensamentos sobre o pai reclamavam um julgamento especial. “Não
consigo pensar em outra coisa”, queixava-se ela repetidamente. “Meu irmão me
diz que nós, os filhos, não temos o direito de criticar esses atos do papai,
que não nos devemos preocupar com isso, e que talvez devamos até alegrar-nos
por ele ter encontrado uma mulher a quem pode se afeiçoar, já que mamãe o
compreende tão pouco. Também vejo isso, e gostaria de pensar como meu irmão,
mas não posso. Não posso perdoá-lo.”
Ora, que
fazer diante de tal pensamento hipervalente, depois de se tomar conhecimento de
sua fundamentação consciente, bem como dos protestos ineficazes feitos contra
ele? Diz-se que essa seqüência hiperintensa de pensamentos deve seu reforço
ao inconsciente. Ela é impossível de resolver pelo trabalho do pensamento,
seja porque suas raízes chegam até o material inconsciente, recalcado, seja
porque outro pensamento inconsciente se oculta por trás dela. Este último é, na
maioria das vezes, seu oposto direto. Os opostos sempre estão estreitamente
interligados e, muitas vezes, separam-se em duplas de tal maneira, que um
pensamento é consciente com hiperintensidade, enquanto sua contrapartida é
recalcada e inconsciente. Essa relação entre os dois pensamentos é um
efeito do processo de recalcamento. Com efeito, o recalcamento muitas vezes se
efetua por meio de um reforço excessivo do oposto do pensamento a ser
recalcado. A esse processo chamo reforço reativo, e designo por pensamento
reativo o pensamento que se afirma na consciência com hiperintensidade e
que, à maneira de um preconceito, mostra-se indestrutível. Os dois pensamentos
comportam-se então entre si como as duas agulhas de um galvanômetro estático. O
pensamento reativo mantém o pensamento objetável sob recalcamento por meio de
um certo excesso de intensidade, mas, em vista disso, ele próprio fica
“amortecido” e invulnerável aos esforços conscientes do pensamento. Portanto, a
maneira de retirar o reforço do pensamento hiperintensificado consiste
em tornar consciente seu oposto recalcado.
Não
devemos excluir a expectativa de encontrar casos que não apresentam apenas um
desses fundamentos da hipervalência, mas sim a concorrência de ambos. Podem
ainda surgir outras complicações, mas é fácil articulá-las com o esquema geral.
Apliquemos
agora nossa teoria ao exemplo fornecido pelo caso de Dora. Começaremos
pela primeira hipótese, ou seja, de que a raiz de sua preocupação obsessiva com
as relações entre seu pai e a Sra. K. lhe era desconhecida por situar-se no
inconsciente. Não é difícil adivinhar a natureza dessa raiz a partir da
situação e das manifestações de Dora. Seu comportamento obviamente ia muito
além da esfera de interesse de uma filha; ela se sentia e agia mais como uma
esposa ciumenta, como se consideraria compreensível em sua mãe. Por sua
exigência ao pai (“ou ela ou eu”), pelas cenas que costumava criar e pela
ameaça de suicídio que deixou entrever, é evidente que ela se estava colocando
no lugar da mãe. E se adivinhamos com acerto a fantasia de situação sexual
subjacente a sua tosse, nessa fantasia ela deveria estar-se colocando no lugar
da Sra. K. Portanto, identificava-se com as duas mulheres, a que o pai amara um
dia e a que amava agora. É óbvia a conclusão que sua inclinação pelo pai era
muito maior do que ela sabia ou estava disposta a admitir, ou seja, que estava
apaixonada por ele.
Aprendi
a ver nessas relações amorosas inconscientes entre pai e filha ou entre mãe e
filho, conhecidas por suas conseqüências anormais, uma revivificação de germes
dos sentimentos infantis. Expus em outros lugares em que tenra idade a
atração sexual se faz sentir entre pais e filhos, e mostrei que a lenda de
Édipo provavelmente deve ser considerada como a elaboração poética do que há de
típico nessas relações. É provável que se encontre na maioria dos seres humanos
um traço nítido dessa inclinação precoce da filha pelo pai e do filho pela mãe,
e deve-se presumir que ela seja mais intensa, já desde o início, no caso das
crianças constitucionalmente destinadas à neurose, que têm amadurecimento
precoce e são famintas de amor. Entram então em jogo certas influências que não
abordaremos aqui e que levam à fixação desse impulso amoroso rudimentar, ou que
o reforçam de tal modo que ele se transforma, ainda na infância ou, no máximo,
na puberdade, em algo equiparável a uma inclinação sexual e que, como esta, tem
a libido a seu dispor. As circunstâncias externas de nossa paciente não
eram nada desfavoráveis a tal suposição. Sua predisposição sempre a atraíra
para o pai, e as numerosas doenças deste hão de ter forçosamente aumentado sua
ternura por ele. Em muitas dessas doenças, ele não permitia que ninguém senão
ela lhe prestasse os pequenos serviços que seu tratamento requeria; orgulhoso
do desenvolvimento precoce da inteligência dela, ele a tornara, ainda criança,
sua confidente. Com o aparecimento da Sra. K., na verdade não foi a mãe, e sim
ela, que foi desalojada de mais de uma posição.
Quando
comuniquei a Dora que só me era possível supor que sua inclinação pelo pai, já
em época precoce, deveria ter tido o caráter de um completo enamoramento, é
verdade que ela me deu sua resposta corriqueira: “Não me lembro disso.” Logo em
seguida, porém, contou-me algo análogo sobre uma prima de sete anos (por parte
da mãe), em quem ela freqüentemente julgava ver uma espécie de reflexo de sua
própria infância. Essa menina tornara a testemunhar uma discussão acalorada
entre os pais e sussurrou no ouvido de Dora, que acabava de chegar para uma
visita: “Você não pode imaginar como odeio essa pessoa!” (apontando para a mãe)
“E um dia, quando ela morrer, vou me casar com papai.” Costumo ver nessas associações,
que trazem à tona algo que concorda com o conteúdo de uma afirmação minha, uma
confirmação vinda do inconsciente. Nenhuma outra espécie de “sim” pode ser
extraída do inconsciente; não existe, em absoluto, um “não” inconsciente.
Por anos
a fio Dora não externalizara essa paixão pelo pai; ao contrário, manteve-se por
muito tempo na mais cordial harmonia com a mulher que a suplantara junto a ele
e, como sabemos através de suas autocensuras, ainda facilitou as relações dessa
mulher com seu pai. Esse amor pelo pai, portanto, fora recentemente reavivado
e, sendo esse o caso, podemos perguntar-nos com que finalidade isso ocorreu.
Obviamente, como sintoma reativo para suprimir alguma outra coisa que, por
conseguinte, ainda era poderosa no inconsciente. Considerando a situação, não
pude deixar de supor, em primeiro lugar, que o suprimido era seu amor pelo Sr.
K. Foi-me forçoso presumir que ela ainda estava apaixonada por ele, mas que
desde a cena do lago, por motivos desconhecidos, seu amor tropeçava numa violenta
resistência, que a moça retomara e reforçara sua velha afeição pelo pai para
não ter de notar nada em sua consciência sobre esse amor dos primeiros anos de
sua adolescência, que agora se tornara penoso para ela. Assim pude também
discernir um conflito que muito se prestava para desorganizar a vida anímica da
moça. Por um lado, muito a consternava ter de rejeitar a proposta desse homem e
ela sentia muita saudade da pessoa dele e de todos os pequenos sinais de sua
afeição; por outro lado, esses impulsos de ternura e saudade eram combatidos
por motivos poderosos, dentre os quais era fácil perceber seu orgulho. Desse
modo, ela conseguiu convencer-se de que havia rompido com o Sr. K. - era esse o
lucro que retirava desse processo típico de recalcamento -, mas, ainda assim,
era obrigada a recorrer a sua afeição infantil pelo pai e a exagerá-la, para se
proteger do enamoramento que assediava constantemente sua consciência. O fato
de ela ser quase incessantemente dominada pelo mais amargo ciúme parecia ainda
admitir mais uma determinação.
Não
trouxe nenhum desapontamento para minhas expectativas que essa exposição dos
fatos provocasse em Dora a mais enfática negativa. O “não” ouvido do paciente
depois de se apresentar pela primeira vez um pensamento recalcado à sua
percepção consciente não faz senão constatar a existência de um recalcamento e
sua firmeza; serve, por assim dizer, para medir a força deste. Quando esse
“não”, em vez de ser considerado como expressão de um juízo imparcial (do qual,
por certo, o doente não é capaz), é ignorado, dando-se prosseguimento ao
trabalho, logo aparecem as primeiras provas de que, nesses casos, o “não”
significa o desejado “sim”. Dora admitiu que não conseguia ficar tão zangada
com o Sr. K. quanto ele merecia. Contou-me que um dia o encontrara na rua
quando estava em companhia de uma prima que não o conhecia. A prima exclamara
repentinamente: “Dora, o que há com você? Você ficou pálida como um cadáver!”
Ela própria não sentira nada dessa alteração, mas expliquei-lhe que a fisionomia
e a expressão dos afetos obedecem mais ao inconsciente do que ao
consciente e são traiçoeiras para o primeiro. De outra feita, Dora apareceu-me
no pior mau humor, depois de vários dias em que estivera sempre no melhor dos
ânimos. Não soube explicá-lo; estava muito contrariada, declarou; era
aniversário de seu tio e ela não se animava a cumprimentá-lo, não sabia por
quê. Minha arte interpretativa estava embotada nesse dia; deixei que ela
continuasse falando e, de repente, ela se lembrou de que era também aniversário
do Sr. K., fato este que não deixei de aproveitar contra ela. Já então não foi
difícil explicar por que os lindos presentes que ela ganhara em seu
aniversário, alguns dias antes, não lhe trouxeram nenhuma alegria. É que
faltava um presente, o do Sr. K., que obviamente fora antes o mais precioso de
todos.
Não
obstante, Dora continuou por algum tempo a negar minha afirmação, até que,
próximo do término da análise, a prova conclusiva de sua exatidão veio à tona
(ver em [1]).
Devo
agora considerar uma outra complicação a que certamente não daria espaço, fosse
eu um escritor empenhado na criação de um espaço anímico desse tipo para um
conto, e não um médico empenhado em sua dissecação. O elemento que apontarei
agora só serve para turvar e confundir a beleza e a poesia do conflito que
pudemos supor em Dora; ele é justificadamente sacrificado pela censura do
escritor, que sem dúvida simplifica e abstrai quando faz as vezes de psicólogo.
Mas no fundo da realidade, que me esforço por retratar aqui, a regra é a
complicação dos motivos, a acumulação e a combinação das moções anímicas - em
suma, a sobredeterminação. Por trás da seqüência hipervalente de pensamentos
que se ocupavam com as relações entre o pai de Dora e a Sra. K. ocultava-se, de
fato, um impulso de ciúme cujo objeto era essa mulher - ou seja, um impulso que
só se poderia fundamentar numa inclinação para o mesmo sexo. Há muito se sabe e
já se tem assinalado que, na puberdade, com freqüência, tanto os meninos quanto
as meninas, mesmo nos casos normais, mostram claros indícios da existência de
uma inclinação para pessoas do mesmo sexo. A amizade entusiástica por uma
colega de escola, acompanhada de juras, beijos, promessas de correspondência
eterna e toda a sensibilidade do ciúme, é o precursor comum da primeira paixão
intensa de uma moça por um homem. Em circunstâncias favoráveis, a corrente
homossexual amiúde seca por completo, mas, quando não se é feliz no amor por um
homem, ela torna a ser despertada pela libido nos anos posteriores e é aumentada
em maior ou menor intensidade. Se nas pessoas sadias isso pode ser confirmado
sem esforço e se levarmos em conta nossas observações anteriores (ver em [1] e
[2]) sobre o maior desenvolvimento, nos neuróticos, dos germes normais da
perversão, devemos também esperar, na constituição destes, uma predisposição
homossexual mais forte. E deve ser assim, pois até hoje nunca passei por uma só
psicanálise de um homem ou de uma mulher sem ter de levar em conta uma corrente
homossexual bastante significativa. Nas mulheres e moças histéricas cuja libido
sexual voltada para o homem é energicamente suprimida, constata-se com
regularidade que a libido dirigida para as mulheres é vicariamente reforçada e
até parcialmente consciente.
Não
continuarei abordando aqui esse importante tema, particularmente indispensável
ao entendimento da histeria masculina, porque a análise de Dora terminou antes
que pudesse lançar luz sobre essas circunstâncias. Mas convém lembrar a já
citada governanta (ver em [1]) com quem, a princípio, Dora conviveu na mais
íntima troca de idéias até descobrir que ela não a apreciava nem a tratava bem
por sua própria causa, e sim por causa de seu pai, e então obrigá-la a deixar a
casa. Dora também costumava repisar com notável freqüência e com ênfase
peculiar a história de uma outra desavença que até mesmo a ela parecia
inexplicável. Sempre se dera particularmente bem com sua segunda prima, a mesma
que depois ficou noiva (ver em [1]), partilhando com ela toda sorte de segredos.
Na primeira vez em que o pai voltou a B
depois do passeio interrompido no lago, e Dora naturalmente se recusou a
acompanhá-lo, pediram a essa prima que viajasse com ele, e ela aceitou. Daí em
diante, Dora sentira frieza em relação a ela, e se surpreendia, ela própria, ao
verificar o quanto a outra lhe era agora indiferente, por mais que, como
admitia, não pudesse fazer à prima nenhuma grande censura. Essas
susceptibilidades levaram-me a perguntar quais tinham sido suas relações com a
Sra. K. até a época do rompimento. Inteirei-me, então, de que a jovem mulher e
a menina apenas adolescente tinham vivido durante anos na mais estreita
intimidade. Quando Dora se hospedava com os K., costumava partilhar o quarto
com a Sra. K., sendo o marido desalojado. Dora era a confidente e conselheira
da mulher em todas as dificuldades de sua vida conjugal; não havia nada de que
não conversassem. Medéia ficou muito contente em ver Creusa tornar-se amiga de
seus dois filhos, e também não fez nada para estorvar o relacionamento entre a
moça e o pai das crianças. Como foi que Dora conseguiu apaixonar-se pelo homem
sobre quem sua adorada amiga tinha tantas coisas ruins a dizer constitui um
interessante problema psicológico, sem dúvida solucionável quando
compreendermos que, no inconsciente, os pensamentos vivem muito comodamente
lado a lado, e até os opostos se toleram sem antagonismo - um estado de coisas
que, com bastante freqüência, persiste até mesmo no consciente.
Quando
Dora falava sobre a Sra. K., costumava elogiar seu “adorável corpo alvo” num
tom mais apropriado a um amante do que a uma rival derrotada. Noutra ocasião,
mais triste do que com raiva, ela me disse estar convencida de que os presentes
que o pai lhe oferecia eram escolhidos pela Sra. K., pois reconhecia seu gosto.
De outra feita ainda, ela assinalou que a haviam presenteado, evidentemente por
intervenção da Sra. K., com algumas jóias que eram exatamente idênticas às que
vira na casa dela, expressando então em voz alta o desejo de possuí-las. Na
verdade, devo dizer que nunca ouvi dela uma só palavra áspera ou irada sobre
essa mulher, embora, do ponto de vista de seus pensamentos hipervalentes,
devesse ver nela a principal causadora de suas desventuras. Dora parecia
comportar-se de maneira inconseqüente,mas sua aparente inconseqüência era
justamente a expressão de uma corrente complicadora de sentimentos. De fato,
como se comportara para com Dora essa amiga tão entusiasticamente amada? Depois
que Dora formulou sua acusação contra o Sr. K e seu pai escreveu para ele
pedindo-lhe uma explicação, o Sr. K. respondeu, inicialmente, protestando a
mais alta estima por ela e se oferecendo para ir até a cidade industrial a fim
de esclarecer todos os mal-entendidos. Passadas algumas semanas, quando o pai
de Dora falou com ele em B , já não se tocou mais na estima. Ao contrário, o
Sr. K. depreciou a moça e jogou seu trunfo: uma moça que lia tais livros e se
interessava por aquelas coisas não podia ter nenhuma pretensão ao respeito de
um homem. A Sra. K., portanto, a havia traído e caluniado, pois somente com ela
é que Dora falara sobre Mantegazza e sobre temas proibidos. Era uma repetição
do que acontecera com a governanta: a Sra. K. também não a amara por ela mesma,
e sim por causa do pai. Ela a havia sacrificado sem um momento de hesitação
para que seu relacionamento com o pai de Dora não fosse perturbado. Essa ofensa
talvez a tenha tocado mais de perto e tido maior efeito patogênico do que a
outra com que ela tentou encobri-la, ou seja, a de ter sido sacrificada pelo
pai. Acaso a amnésia tão obstinadamente perseverante a respeito das fontes de
seu conhecimento proibido (ver em [1] e [2]) não apontaria diretamente para o
valor emocional da acusação que lhe foi feita e, por conseguinte, para sua
traição pela amiga?
Creio não
estar errado, portanto, em supor que a seqüência hipervalente de pensamentos de
Dora, que a fazia ocupar-se das relações entre seu pai e a Sra. K.,
destinava-se não apenas a suprimir seu amor pelo Sr. K., que antes fora
consciente, mas também a ocultar o amor pela Sra. K., que era inconsciente num
sentido mais profundo. A seqüência hipervalente de pensamentos era diretamente
oposta a esta última corrente. Dora dizia a si mesma incessantemente que seu
pai a sacrificara a essa mulher, fazia demonstrações ruidosas de que a invejava
pela posse do pai e, dessa maneira, ocultava de si mesma o oposto que: invejava
o pai pelo amor da Sra. K. e que não perdoava à mulher amada a desilusão que
ela lhe causara com sua traição. A moção de ciúme feminino estava ligada, no
inconsciente, ao ciúme que um homem sentiria. Essas correntes de sentimentos
masculinos, ou, melhor dizendo, ginecofílicos, devem ser consideradas
típicas da vida amorosa inconsciente das moças histéricas.
O PRIMEIRO SONHO
Justamente
no momento em que havia perspectivas de esclarecer um ponto obscuro da infância
de Dora através do material que se impunha à análise, ela me informou que,
algumas noites antes, voltara a ter um sonho que já lhe ocorrera repetidas
vezes exatamente da mesma maneira. Um sonho periodicamente repetido, já por
essa simples característica, estava fadado a despertar minha curiosidade; e de
fato, era justificável, no interesse do tratamento, considerar o entrelaçamento
desse sonho na trama da análise. Resolvi, portanto, proceder a uma investigação
particularmente cuidadosa.
Eis o
sonho, tal como Dora o relatou: “Uma casa estava em chamas. Papai
estava ao lado da minha cama e me acordou. Vesti-me rapidamente. Mamãe ainda
queria salvar sua caixa de jóias, mas papai disse: `Não quero que eu e meus
dois filhos nos queimemos por causa da sua caixa de jóias.’ Descemos a escada
às pressas e, logo que me vi do lado de fora, acordei.”
Como se
tratava de um sonho recorrente, naturalmente lhe perguntei quando o tivera pela
primeira vez. Não sabia dizer. Mas se recordava de ter tido o sonho três
noites sucessivas em L (o lugar no lago
onde ocorrera a cena com o Sr. K.), e agora voltara a tê-lo algumas noites
atrás, aqui [em Viena]. Naturalmente, a ligação assim estabelecida entre o
sonho e os acontecimentos de L aumentou
minhas expectativas a respeito de sua solução. Mas primeiro eu queria descobrir
qual fora o motivo de sua recente repetição, e, por conseguinte, pedi a Dora,
que por alguns pequenos exemplos antes analisados já estava instruída na
interpretação dos sonhos, que decompusesse o sonho e me comunicasse o que lhe
ocorria a propósito dele.
-
“Ocorre-me uma coisa”, disse ela, “mas não pode ter nenhuma relação com isso,
porque é muito recente, ao passo que sem dúvida eu já tivera o sonho antes.”
- Não
tem importância, vá em frente - respondi; - é justamente a última coisa que se
adequa ao sonho.
- “Está
bem; nesses últimos dias papai teve uma discussão com mamãe porque ela tranca a
sala de jantar à noite. É que o quarto de meu irmão não tem entrada
independente, e só se pode chegar a ele pela sala de jantar. Papai não quer que
meu irmão fique trancado assim à noite. Diz ele que isso não é bom; pode
acontecer alguma coisa durante a noite que torne necessário sair.”
- E isso
a fez pensar no risco de um incêndio?
- “Sim”.
- Bem,
peço-lhe que preste muita atenção a suas próprias expressões. Talvez precisemos
delas. Você disse que “pode acontecer alguma coisa durante a noite
que torne necessário sair.”
Dora,
porém, descobrira agora o vínculo entre a causa recente e a causa original do
sonho, pois prosseguiu:
-
“Quando chegamos a L naquela ocasião,
papai e eu, ele manifestou abertamente sua angústia diante da possibilidade de
um incêndio. Chegamos em meio a uma violenta tempestade e vimos que a casinha
de madeira não tinha pára-raios. Logo, a angústia era muito natural.”
Cabia-me
agora estabelecer a relação entre os acontecimentos em L e os sonhos do mesmo teor que ela tivera
nessa época. Assim, perguntei: Você teve o sonho nas primeiras noites em L ou nas últimas, antes de sua partida? Quer
dizer, antes ou depois da conhecida cena no bosque? (De fato, eu sabia que a
cena não ocorrera logo no primeiro dia, e que depois disso ela ainda
permanecera alguns dias em L sem deixar
transparecer nenhum indício do incidente.)
Sua
primeira resposta foi “Não sei”, mas, passados alguns momentos, acrescentou:
“Mas creio que foi depois.”
Portanto,
agora eu sabia que o sonho fora uma reação àquela experiência. Mas por que se
repetira ali três vezes? Continuei perguntando: Quanto tempo você ainda ficou
em L depois da cena?
- “Mais
quatro dias, e no quinto fui embora com papai.”
- Agora
tenho certeza de que o sonho foi o efeito imediato de sua experiência com o Sr.
K. Foi em L que você teve o sonho pela
primeira vez, e não antes. Você introduziu essa incerteza na lembrança
apenas para obliterar em si mesma a ligação. Mas para mim, os números ainda não
se ajustam muito. Se você ainda ficou em L
mais quatro noites, poderia ter tido o sonho mais quatro vezes. Será que
foi isso?
Ela não
contradisse mais minha afirmação, porém, ao invés de responder a minha
pergunta, prosseguiu: “Na tarde seguinte ao nosso passeio pelo lago, do
qual o Sr. K. e eu voltamos ao meio-dia, eu tinha-me recostado no sofá do
quarto, como de costume, para dormir um pouco. De repente, acordei e vi o Sr.
K. parado em frente a mim…”
- Quer
dizer, tal como você viu seu pai no sonho ao lado de sua cama?
- “Foi.
Mandei que ele explicasse o que estava procurando ali. Como resposta, ele disse
que não ia deixar de entrar no seu próprio quarto quando quisesse; além disso,
queria apanhar alguma coisa. Com isso, fiquei prevenida, perguntei à Sra. K. se
não havia uma chave do quarto e, na manhã seguinte (no segundo dia), tranquei-me
enquanto fazia minha toalete. À tarde, quando quis me trancar para deitar de
novo no sofá, a chave tinha sumido. Estou convencida de que o Sr. K. a havia
retirado.”
Aí está,
portanto, o tema de trancar ou não o quarto, que surgiu na primeira associação
ao sonho e que, casualmente, também desempenhou um papel na causa
recente do sonho. Pertenceria também a esse contexto a frase “Vestia-me
rapidamente”?
- “Foi
então que resolvi não ficar mais na casa dos K. na ausência do papai. Nas manhãs
seguintes, eu não podia deixar de temer que o Sr. K. me surpreendesse enquanto
fazia minha toalete, e por isso sempre me vestia muito rapidamente.
É que papai ficava no hotel, e a Sra. K. sempre saía cedo para fazer alguma
excursão com ele. Mas o Sr. K. não voltou a me importunar.”
-
Compreendo. Na tarde do segundo dia, você formou o propósito de escapar dessas
perseguições, e então, na segunda, terceira e quarta noites depois da cena no
bosque, teve tempo de repetir esse propósito enquanto dormia. (Já na segunda
tarde - antes do sonho, portanto, - você sabia que na manhã seguinte, a
terceira, não teria a chave para se trancar enquanto se vestia, e pôde então
formar o propósito de se vestir o mais depressa possível.) Mas seu sonho se
repetia todas as noites justamente por corresponder a um propósito. O
propósito persiste até ser realizado. Você como que disse a si mesma: “Não
terei tranqüilidade, não poderei ter um sono tranqüilo enquanto não estiver
fora desta casa.” É o inverso disso que você diz no sonho: “Logo que me vi
do lado de fora, acordei.”
lnterrompo
aqui o relato da análise para comparar esse pequeno fragmento de interpretação
dos sonhos com minhas teses gerais sobre o mecanismo da formação dos sonhos. Em
meu livro A Interpretação dos Sonhos (1900a), afirmei que todo
sonho é um desejo que se representa como realizado, que a representação é
encobridora quando se trata de um desejo recalcado, que pertence ao
inconsciente, e que, salvo no caso dos sonhos das crianças, só o desejo
inconsciente ou um desejo que chegue até o inconsciente possui a força para
formar um sonho. Creio que minha teoria conseguiria com mais certeza obter
aceitação geral se eu me tivesse contentado com a afirmação de que todo sonho
tem um sentido possível de ser descoberto mediante um certo processo de
interpretação. Uma vez completa a interpretação, poder-se-ia substituir o sonho
por pensamentos que se enquadrariam na vida anímica de vigília num ponto
facilmente reconhecível. E teria então podido prosseguir dizendo que esse sentido
do sonho é tão diversificado quanto os processos de pensamento da vigília. Numa
ocasião se trataria de um desejo realizado, noutra, de um temor realizado,
noutra ainda, de uma reflexão prosseguida durante o sono, ou de um propósito
(como no sonho de Dora), de um fragmento de produção mental durante o sono etc.
Essa exposição sem dúvida teria sido atraente por sua simplicidade, e poderia
ter-se apoiado num grande número de exemplos bem interpretados, como no caso do
sonho aqui analisado.
Em vez
disso, formulei uma tese geral que restringe o sentido dos sonhos a uma única
forma de pensamento - a representação de desejos -, e assim provoquei a
inclinação universal à discordância. Devo dizer, porém, que não me achei no
direito ou no dever de simplificar um processo psicológico para torná-lo mais
agradável aos leitores, quando minha investigação mostrava nele uma complicação
cuja solução, para ser homogênea, teria primeiro de ser encontrada em outro
lugar. Por isso, tem para mim um valor especial demonstrar que as aparentes
exceções, como esse sonho de Dora, que a princípio se afigurou como a
continuação de um propósito diurno durante o sono, não fazem senão corroborar
novamente a regra contestada. (Ver a partir de [1])
Certamente,
temos ainda uma grande parte do sonho por interpretar. Minhas perguntas
prosseguiram:
- Como é
isso da caixa de jóias que sua mãe queria salvar?
- “Mamãe
gosta muito de jóias e ganhou várias do papai.”
- E
você?
- “Eu
também gostava muito de jóias antes; desde a doença não tenho usado nenhuma. Um
dia, faz uns quatro anos (um ano antes do sonho), houve uma grande discussão
entre papai e mamãe por causa de uma jóia. Mamãe queria para ela algo especial,
umas gotas de pérolas [Tropfen von Perlen] para usar como pingentes nas
orelhas. Mas papai não gostava disso e, em vez das gotas, trouxe-lhe uma
pulseira. Ela ficou furiosa e disse que, já que ele tinha gasto tanto dinheiro
num presente de que ela não gostava, melhor seria que o desse a outra pessoa.”
- E você
terá pensado que o aceitaria com prazer?
- “Não
sei, não tenho a menor idéia de como mamãe entra no sonho; ela não estava
conosco em L nessa época.”
- Depois
lhe explicarei isso. Não lhe ocorre nada mais sobre a caixa de jóias [Schrmuckkästchen]?
Até agora, você só falou sobre as jóias [Schmuck], e nada sobre a
caixinha [Kästchen].
- “Sim,
o Sr. K. me presenteara pouco tempo antes com uma caixinha de jóias
dispendiosa.”
- Então
seria muito apropriado retribuir o presente. Talvez você não saiba que “caixa
de jóias” é uma expressão muito apreciada para a mesma coisa a que você aludiu,
não faz muito tempo, com a bolsinha que estava usando: os genitais
femininos.
- “Sabia
que o senhor ia dizer isso.”
- Ou
seja, você sabia disso… Agora o sentido do sonho está ficando ainda mais
claro. Você disse a si mesma: esse homem está me perseguindo; quer forçar a
entrada em meu quarto, minha “caixa de jóias” está em perigo e, se acontecer
alguma desgraça, a culpa é do papai. Foi por isso que escolheu, no sonho, uma
situação que expressa o oposto, um perigo de que seu pai a salva. Nessa parte
do sonho, em geral, tudo está transformado em seu oposto; você logo saberá por
quê. O mistério certamente reside em sua mãe. Como é que a mamãe entra no
sonho? Ela é, como você sabe, sua rival anterior nos favores de seu pai. No
episódio da pulseira, você teria aceito de bom grado o que sua mãe rejeitou.
Agora, vamos substituir “aceitar” por “dar” e “rejeitar” por “recusar”. Isso
quer dizer, então, que você estaria disposta a dar a seu pai o que sua mãe lhe
recusava, e a coisa que se trata teria a ver com uma jóia. Pois bem,
lembre-se agora da caixa de jóias que o Sr. K. lhe deu. Você tem aí o ponto de
partida para uma seqüência paralela de pensamentos, na qual seu pai deve ser
substituído pelo Sr. K., tal como aconteceu na situação de ele estar em frente
a sua cama. Ele lhe deu uma caixa de jóias e, portanto, você tem de
presenteá-lo com sua caixa de jóias; por isso falei há pouco em “retribuição do
presente”. Nessa seqüência de pensamentos, sua mãe deve ser substituída pela
Sra. K., que estava presente, ela sim, naquela ocasião. Logo, você está
disposta a dar ao Sr. K. o que a mulher dele lhe recusa. Aí está o pensamento
que você teve de recalcar com tanto esforço e que tornou necessária a
transformação de todos os elementos em seu oposto. O sonho torna a corroborar o
que eu já lhe tinha dito antes de você sonhá-lo: que você está evocando seu
antigo amor por seu pai para se proteger de seu amor pelo Sr. K. Mas, o que
mostram todos esses esforços? Não só que você temeu o Sr. K., mas que temeu
ainda mais a si mesma, temeu ceder à tentação dele. Confirmam também, portanto,
quão intenso era seu amor por ele.
Naturalmente,
Dora não quis acompanhar-me nessa parte da interpretação. Mas eu conseguira dar
um passo adiante na interpretação do sonho, que parecia indispensável tanto
para a anamnese do caso quanto para a teoria dos sonhos. Prometi comunicar isso
a Dora na sessão seguinte.
O fato é
que eu não podia esquecer a indicação que parecia brotar das já citadas palavras
ambíguas (pode acontecer uma desgraça durante a noite que torne necessário
sair). A isso se acrescentou o fato de que o esclarecimento do sonho me
pareceria incompleto enquanto não se satisfizesse um certo requisito, que
certamente não quero estabelecer como universal, mas cuja satisfação procuro buscar.
Um sonho de formação regular apóia-se, por assim dizer, em duas pernas, uma das
quais está em contato com a causa atual essencial, e a outra, com algum
acontecimento relevante da infância. Entre esses dois fatores, a experiência
infantil e a atual, o sonho estabelece uma ligação esforçando-se por remodelar
o presente segundo o modelo do passado mais remoto. É que o desejo que
cria o sonho sempre provém da infância e sempre tenta retransformá-la em
realidade, corrigir o presente segundo a infância. Eu acreditava já poder
discernir claramente, no conteúdo do sonho de Dora, os elementos passíveis de
se combinarem numa alusão a um acontecimento da infância.
Iniciei
sua elucidação com um pequeno experimento que, como de hábito, teve êxito.
Casualmente, havia sobre a mesa uma grande caixa de fósforos. Pedi a Dora que
olhasse em volta para ver se notava sobre a mesma algo de especial que não
costumasse estar ali. Não viu nada. Perguntei-lhe então se sabia por que as
crianças eram proibidas de brincar com fósforos.
- “Sim,
é por causa do perigo de incêndio. Os filhos de meu tio gostam muito de brincar
com fósforos.”
- Não é
só por isso. Elas são advertidas de “não brincar com fogo”, e isso é
acompanhado de uma certa crença.
Dora
nada sabia a respeito. - Pois bem, teme-se que elas molhem a cama. A antítese
entre água e fogo por certo se encontra na base
disso. Talvez elas sonhem com fogo e depois tentem apagá-lo com água. Não sei
dizer com exatidão. Mas vejo que a oposição entre água e fogo no sonho presta a
você extraordinários serviços. Sua mãe queria salvar a caixa de jóias para que
ela não fosse queimada; nos pensamentos do sonho, em contrapartida,
trata-se de que a “caixa de jóias” não fique molhada. Mas fogo não é
empregado apenas como oposto de água; serve também como representação direta do
amor, de estar enamorado, ardendo de paixão. Portanto, de “fogo” parte uma via
que, passando por esse sentido simbólico, chega aos pensamentos amorosos,
enquanto que a outra via, por intermédio do oposto “água” e depois de fazer uma
ramificação que estabelece outro vínculo com “amor” (pois também este deixa as
coisas molhadas), leva a outra direção. Mas, para onde? Pense em sua própria
expressão: à noite, pode acontecer uma desgraça que torne forçoso sair.
Não significaria isso uma necessidade física? E, se você transpuser essa
desgraça para a infância, que outra coisa ela poderia ser senão molhar a cama?
E o que é que se costuma fazer para evitar que as crianças molhem a cama? Não
são elas despertadas do sono durante a noite, exatamente como seu pai
acordou você no sonho? Esse seria, portanto, o acontecimento real que lhe
permitiu substituir o Sr. K., que realmente a despertou do sono, por seu pai.
Devo então inferir que você continuou a molhar a cama por mais tempo do que
costuma acontecer com as crianças. O mesmo deve ter ocorrido com seu irmão,
pois seu pai disse: “Não quero que meus dois filhos… pereçam. Seu irmão
nada tem a ver com a situação atual dos K., nem tampouco foi a L . Que dizem
suas lembranças sobre isso?
-
“Quanto a mim, não sei nada” - respondeu ela -, “mas meu irmão molhava a cama
até os seis ou sete anos, e muitas vezes isso lhe aconteceu até de dia.”
Eu
estava a ponto de lhe fazer uma observação sobre como é mais fácil recordar uma
coisa assim a respeito de um irmão do que de si mesmo, quando ela prosseguiu,
com a memória recuperada:
- “Sim,
isso também me aconteceu por algum tempo, mas só no sétimo ou oitavo ano. Deve
ter sido grave, porque agora me lembro que o médico foi consultado. Durou até
pouco antes de minha asma nervosa” (ver em [1]).
- Que
disse o médico a respeito?
-
“Explicou que era uma debilidade nervosa; passaria logo, achou ele; e receitou
um tônico.”
A
interpretação do sonho agora me parecia completa. No dia seguinte,
porém, Dora ainda me trouxe um aditamento. Esquecera de contar que todas as
vezes, depois de acordar, sentia cheiro de fumaça. A fumaça, é claro, combinava
bem com o fogo, mas indicava, além disso, que o sonho tinha uma relação
especial comigo, pois, quando ela afirmava que por trás disto ou daquilo não
havia nada escondido, eu costumava retrucar: “onde há fumaça há fogo.” Mas Dora
fez a essa interpretação puramente pessoal a objeção de que o Sr. K. e seu pai
eram fumantes apaixonados, como eu também, aliás. Ela mesma fumara durante sua
estada no lago, e o Sr. K. acabara de enrolar-lhe um cigarro pouco antes de
iniciar sua lastimável corte. Ela também acreditava lembrar com certeza que o
cheiro de fumaça não aparecera pela primeira vez apenas na ocasião do último
reaparecimento do sonho, mas também nas três vezes em que ele ocorreu em L .
Posto que se recusasse a fornecer-me outras informações, coube a mim determinar
como inserir esse aditamento na trama dos pensamentos do sonho. Como ponto de
referência, pude servir-me do fato de que a sensação da fumaça só havia surgido
como um acréscimo ao sonho, ou seja, deveria ter tido que superar um esforço
especial do recalcamento. Por conseguinte, provavelmente se relacionava
com o pensamento mais obscuramente representado e mais bem recalcado no sonho,
ou seja, a tentação de se mostrar disposta a ceder ao homem. Sendo assim,
dificilmente poderia significar outra coisa senão a ânsia de um beijo, que,
trocado com um fumante, necessariamente cheiraria a fumo; mas tinha havido um
beijo entre eles cerca de dois anos antes, e por certo ter-se-ia
repetido mais de uma vez se a moça tivesse cedido ao galanteio. Os pensamentos
ligados à tentação, portanto, pareciam ter remontado à cena anterior e revivido
a lembrança do beijo contra cuja atração sedutora a pequena “chupadora de dedo”
se protegera, a seu tempo, por meio do asco. Por fim, considerando os indícios
de uma transferência para mim, posto que também sou fumante, cheguei à
conclusão de que um dia, durante uma sessão, provavelmente lhe ocorrera que ela
desejaria ser beijada por mim. Esse teria sido o pretexto que a levou a repetir
o sonho de advertência e a formar a intenção de interromper o tratamento. Tudo
se encaixa muito bem dessa maneira, mas, devido às particularidades da
“transferência”, fica privado de comprovação. (ver em [1])
Agora eu
poderia hesitar entre considerar primeiramente o partido a ser tirado desse
sonho para a história clínica do caso, ou começar por abordar a objeção que,
com base nele, pode-se fazer a teoria dos sonhos. Opto pela primeira
alternativa.
Vale a
pena examinar detidamente a significação da enurese para a história primitiva
do neurótico. A bem da clareza, limito-me a destacar que o caso de Dora, no
aspecto de molhar a cama, não era o habitual. Essa perturbação não
apenas persistira além da época admitida como normal, mas também, segundo o
depoimento explícito de Dora, primeiro desaparecera e depois tornara a surgir
em época relativamente tardia, após o sexto ano de vida (ver em [1]). Ao que eu
saiba, esse tipo de enurese não tem outra causa mais provável do que a
masturbação, a qual, na etiologia da enurese em geral, desempenha um papel que
ainda não foi suficientemente apreciado. Em minha experiência, as próprias
crianças tiveram um dia um conhecimento muito claro dessa ligação, e daí
decorrem todas as suas conseqüências psíquicas, como se elas nunca a tivessem
esquecido. Ora, na época em que Dora relatou o sonho, estávamos empenhados numa
linha de investigação que levava diretamente à admissão de que ela se
masturbara na infância. Pouco antes, ela havia perguntado exatamente por que
havia adoecido, e, antes que eu lhe desse uma resposta, pusera a culpa no pai.
A justificação disso não provinha de seus pensamentos inconscientes, mas de um
conhecimento consciente. A jovem sabia, para minha surpresa, qual tinha sido a
natureza da doença de seu pai. Depois de ele regressar de meu consultório (ver
em [1] e [2]), ela entreouvira uma conversa em que o nome da doença fora
mencionado. Em época ainda anterior, na ocasião do descolamento da retina (ver
em [1]), um oculista consultado deve ter aludido à etiologia luética, pois a
menina curiosa e preocupada, dessa vez, ouvira uma tia idosa dizer a sua mãe:
“Ele já era doente antes do casamento”, e acrescentar algo que lhe fora
incompreensível, mas que, posteriormente, ela interpretara para si mesma como
ligado a coisas indecorosas.
Portanto,
o pai adoecera por levar uma vida leviana, e ela supunha que lhe tivesse
transmitido o estado doentio por hereditariedade. Tive o cuidado de não lhe
dizer que, como já afirmei (em [1]), também eu sou de opinião que os
descendentes dos luéticos são muito particularmente predispostos a graves
neuropsicoses. Esse curso de pensamento acusatório ao pai prosseguiu através do
material inconsciente. Por um período de vários dias ela se identificou com a
mãe através de pequenos sintomas e peculiaridades, o que lhe deu oportunidade
de produzir alguns comportamentos realmente insuportáveis; deu-me então a
entender que estava pensando numa temporada que passara em Franzensbad,
que ela visitara em companhia da mãe - já não sei em que ano. A mãe sofria de
dores no baixo ventre e de uma secreção (catarro) que tornaram necessário um
tratamento em Franzensbad. Dora era de opinião - mais uma vez, provavelmente
justificada - que essa doença era devida a seu pai, que assim teria transmitido
sua doença venérea à mãe dela. Era muito compreensível que, ao extrair essa
conclusão, ela, como a maioria dos leigos, confundisse gonorréia com sífilis, e
também o hereditário com o transmissível pelo contato. Sua persistência nessa
identificação [com a mãe] quase me forçou a perguntar-lhe se ela também tinha
alguma doença venérea, e foi então que me inteirei de que ela estava com um
catarro (fluor albus) de cujo início não conseguia lembrar-se.
Compreendi
então que, por trás da seqüência de pensamentos que acusava expressamente o
pai, ocultava-se, como de hábito, uma autoacusação. Fui em direção a ela
assegurando-lhe que, a meu ver, a leucorréia das mocinhas apontava
primordialmente para a masturbação, e que todas as outras causas comumente
atribuídas a essa queixa eram relegadas para segundo plano pela masturbação.
Assim, ela estava em vias de responder a sua própria pergunta sobre exatamente
por que havia adoecido mediante a confissão de que se havia masturbado,
provavelmente na infância. Ela negou terminantemente lembrar-se de qualquer
coisa assim. Passados alguns dias, porém, fez algo que tive de considerar como
mais um passo a aproximá-la da confissão. Ocorre que, nesse dia, ela trazia na
cintura uma bolsinha porta-moedas do formato que havia entrado em voga (coisa
que nunca fizera antes e nem faria depois) e, enquanto falava estendida no
divã, pôs-se a brincar com ela: abria-a, introduzia um dedo, tornava a
fechá-la, etc. olhei-a por algum tempo e depois lhe expliquei o que vem a ser
um ato sintomático. Chamo de atos sintomáticos as funções que as
pessoas executam, como se costuma dizer, de maneira automática e inconsciente,
sem reparar nelas, como que brincando, querendo negar-lhes qualquer
significação e, se inquiridas, explicando-as como indiferentes e casuais. A
observação mais cuidadosa, porém, mostra que tais ações, das quais a
consciência nada sabe ou nada quer saber, expressam pensamentos e impulsos
inconscientes, sendo, portanto, valiosas e instrutivas enquanto manifestações
permitidas do inconsciente. Há dois modos de conduta consciente frente aos atos
sintomáticos. Quando se pode atribuir-lhes uma motivação irrelevante, toma-se
conhecimento deles; quando falta à consciência um pretexto dessa ordem, em
geral não se observa em absoluto que estão sendo executados. No caso de Dora, a
motivação era fácil: “Por que não usaria eu uma bolsinha dessas, já que agora
está na moda?” Mas tal justificativa não descarta a possibilidade de que o
referido ato tenha uma origem inconsciente. Por outro lado, nem essa origem nem
o sentido atribuído ao ato podem ser comprovados de maneira concludente. Temos
de contentar-nos em constatar que tal sentido se ajusta excepcionalmente bem à
trama da situação em pauta, à ordem do dia do inconsciente.
Em outra
oportunidade apresentarei uma coletânea desses atos sintomáticos, tal como
podem ser observados nas pessoas sadias e nos neuróticos. Suas interpretações
são amiúde muito fáceis. A bolsinha de dupla abertura de Dora não passava de
uma representação dos órgãos genitais, e sua maneira de brincar com ela,
abrindo-a e ali inserindo seu dedo, era uma comunicação pantomímica bastante
desembaraçada, mas inconfundível, do que gostaria de fazer: masturbar-se. Faz
pouco tempo ocorreu-me um caso similar, muito divertido. Em meio à sessão, uma
paciente mais velha apanhou uma caixinha de marfim, pretensamente para se
refrescar com um bombom, esforçou-se por abri-la e depois a entregou a mim,
para que eu me convencesse de como era difícil fazê-lo. Externei minha suspeita
de que essa caixinha deveria significar algo especial, pois era a primeira vez
que eu a via, embora sua dona me viesse consultando há mais de um ano. Retrucou
então a dama vivamente: “Sempre trago essa caixinha comigo, carrego-a para onde
quer que vá!” Só se acalmou depois que a fiz notar, rindo, quão bem suas palavras
se adequavam a um outro sentido. A caixa - Dose [em alemão], - ,
assim como a bolsinha e a caixa de jóias, mais uma vez não era outra coisa
senão um substituto para a concha de Vênus, para a genitália feminina!
Há na
vida muito desse simbolismo, que comumente nos passa despercebido. Quando me
propus a tarefa de trazer à luz o que os seres humanos guardam escondido, não
mediante a compulsão da hipnose, mas a partir do que eles dizem e mostram,
julguei que tal tarefa fosse mais difícil do que realmente é. Quem tem olhos
para ver e ouvidos para ouvir fica convencido de que os mortais não conseguem
guardar nenhum segredo. Aqueles cujos lábios calam denunciam-se com as pontas
dos dedos; a denúncia lhes sai por todos os poros. Por isso, a tarefa de tornar
consciente o que há de mais secreto no anímico é perfeitamente exeqüível.
O ato
sintomático de Dora com a bolsinha não foi o precursor imediato do sonho. A
sessão que nos levou ao relato do sonho começou por outro ato sintomático.
Quando entrei na sala onde ela me aguardava, ela escondeu às pressas uma carta
que estava lendo. Naturalmente, perguntei-lhe de quem era, e a princípio ela se
recusou a dizer-me. Surgiu então algo que era extremamente irrelevante e não
tinha nenhuma relação com nosso tratamento. Tratava-se de uma carta de sua avó
em que esta a exortava a escrever-lhe com mais freqüência. Creio que Dora
queria apenas brincar de “segredo” comigo e indicar que estava prestes a deixar
que seu segredo fosse arrancado pelo médico. Expliquei então a mim mesmo sua
antipatia por qualquer novo médico por sua angústia de que, fosse ao examiná-la
(pelo catarro), fosse ao fazer-lhe perguntas (pela comunicação do hábito de
urinar na cama), ele pudesse adivinhar a razão de seu sofrimento: a
masturbação. Mais tarde, ela sempre falava com muito desprezo dos médicos a
quem, antes, obviamente superestimara. (ver em [1])
Acusações
ao pai por tê-la feito adoecer, e mais a auto-acusação por trás disso; leucorréia,
brincadeira com a bolsinha; enurese depois dos seis anos; e um segredo que não
se queria deixar arrancar pelos médicos: considero estabelecida sem nenhuma
lacuna a prova circunstancial da masturbação infantil. No caso de Dora, eu
começara a suspeitar da masturbação quando ela me falou sobre as dores
estomacais da prima (ver em [1]) e em seguida se identificou com ela,
queixando-se por dias a fio de sensações dolorosas similares. É sabido que, com
freqüência, as dores gástricas surgem justamente nos masturbadores. Segundo uma
comunicação pessoal que me foi feita por Wilhelm Fliess, são precisamente essas
as gastralgias passíveis de ser interrompidas mediante a aplicação de cocaína
no “ponto gástrico” por ele descoberto no nariz, e curadas mediante sua cauterização.
Dora me confirmou ter consciência de duas coisas: de que ela mesma sofrera
muitas vezes de espasmos gástricos e de que tinha boas razões para considerar
sua prima uma masturbadora. É muito comum os pacientes reconhecerem em outros
uma relação que suas resistências emocionais os impossibilitam de reconhecer em
sua própria pessoa. Dora não mais negou essa relação, embora ainda não se
lembrasse de nada. Até mesmo a cronologia da enurese, durando “até pouco antes
do surgimento da asma nervosa” (ver em [1]), parece-me clinicamente
valorizável. Os sintomas histéricos quase nunca se apresentam enquanto as
crianças se masturbam, mas só depois, na abstinência; constituem um
substituto de satisfação masturbatória, que continua a ser desejada no
inconsciente até que surja alguma outra satisfação mais normal, caso esta ainda
seja possível. Dessa última condição depende a possibilidade de cura da
histeria pelo casamento e pelas relações sexuais normais. Caso a satisfação no
casamento volte a ser interrompida - por exemplo, devido ao coito interrompido,
ao distanciamento psíquico etc. -, a libido torna a refluir para seu antigo
curso e se manifesta mais uma vez nos sintomas histéricos.
Gostaria
de acrescentar infomações precisas sobre quando e mediante que influência
especial a masturbação de Dora foi suprimida, mas a incompletude da análise
obriga-me a apresentar aqui um material cheio de lacunas. Tive conhecimento de
que ela urinava na cama até pouco antes de adoecer pela primeira vez com
dispnéia. Ora, o único esclarecimento que pôde prestar sobre esse primeiro
ataque foi que, nessa ocasião, seu pai saíra em viagem pela primeira vez desde
que melhorara de saúde. Nesse pequeno fragmento de lembrança preservado deve
haver uma relação alusiva à etiologia da dispnéia. Os atos sintomáticos e
outros sinais de Dora forneceram-me boas razões para supor que a menina, cujo
quarto era contíguo ao dos pais, teria entreouvido uma visita noturna do pai a
sua mulher e escutado a respiração ofegante do homem (aliás, habitualmente
entrecortada) durante o coito. As crianças, nesses casos, pressentem o sexual
nesse ruído insólito. A rigor, os movimentos expressivos da excitação sexual já
se acham prontos nelas como mecanismos inatos. Indiquei, anos atrás, que a
dispnéia e as palpitações da histeria e da neurose de angústia são apenas
fragmentos isolados do ato do coito, e em muitos casos, como no de Dora,
pude reconduzir o sintoma da dispnéia, da asma nervosa, à mesma origem casual:
ao som entreouvido da relação sexual entre adultos. Sob a influência da
excitação concomitante experimentada nessa ocasião, é perfeitamente possível
que tenha sobrevindo uma reviravolta na sexualidade da menina, substituindo sua
inclinação para a masturbação por uma inclinação para a angústia. Tempos depois,
estando o pai ausente e a menina enamorada a pensar nele com saudade,
repetiu-se a impressão então havida, sob a forma de um ataque de asma. Pela
lembrança preservada do que ensejou esse súbito adoecimento, pode-se ainda
conjecturar a seqüência angustiada de pensamentos que acompanhou o ataque. Este
lhe surgiu pela primeira vez depois de ela se haver extenuado numa excursão
pelas montanhas (ver em [1]), na qual provavelmente sentira um pouco de
dispnéia real. A isto somou-se a idéia de que seu pai estava proibido de
escalar montanhas, de que não podia extenuar-se por ter o fôlego curto;
seguiu-se a lembrança de quanto ele se havia extenuado com a mãe naquela noite
(acaso isso não o teria prejudicado?); depois veio a preocupação de saber se
ela mesma não se haveria esforçado demais na masturbação, que levava igualmente
ao orgasmo sexual acompanhado de uma ligeira dispnéia; e por fim houve o
retorno intensificado da dispnéia como sintoma. Parte desse material ainda me
foi possível deduzir da análise, mas a outra eu mesmo tive de complementar.
Pelo modo como se constatou a masturbação, já pudemos ver que o material
concernente a um determinado tema só pode ser coligido fragmento por fragmento,
em diferentes épocas e contextos.
Surge
agora uma série de perguntas da máxima importância sobre a etiologia da
histeria: será lícito considerar o caso de Dora como típico no tocante à
etiologia? Será que ele representa o único tipo de causação? etc. No entanto,
creio estar no caminho certo ao adiar minha resposta a essas perguntas para
depois da comunicação de um número mais amplo de casos similares analisados.
Além disso, eu deveria começar por retificar a formulação das perguntas. Em vez
de me pronunciar por um “sim” ou um “não” a propósito de se dever buscar a etiologia
desse caso patológico na masturbação infantil, eu teria de discutir
primeiramente o conceito de etiologia nas psiconeuroses. O ponto de
vista desde o qual eu poderia responder mostrar-se-ia então sensivelmente
distante do ponto de vista desde o qual a pergunta me é formulada. No tocante a
este caso, basta chegarmos à convicção de que a masturbação infantil é
demonstrável e não é nada acidental nem irrelevante para a conformação do
quadro patológico.
O exame
da significação do fluor albus confessado por Dora acena com uma
compreensão ainda maior dos sintomas. A palavra “catarro”, com a qual ela
aprendeu a designar sua afecção na época em que uma queixa similar forçou sua
mãe a visitar Franzensbad (ver em [1]), não passa de outra “reviravolta no
sentido” (ver em [1]) através do qual toda a série de pensamentos sobre
a culpa de seu pai pela doença obteve acesso à manifestação no sintoma da
tosse. Essa tosse, sem dúvida originariamente surgida de um diminuto catarro
real, era ainda uma imitação do pai, cujos pulmões estavam afetados, e pôde
expressar sua compaixão e inquietação por ele. Além disso, porém, também
proclamava ao mundo, por assim dizer, algo que talvez ainda não se tivesse
tornado consciente para ela: “Sou a filha de papai. Tal como ele, tenho um
catarro. Ele me fez adoecer, assim como fez mamãe adoecer. Tenho dele as
paixões pérfidas que são castigadas pela doença.”
Podemos
agora fazer uma tentativa de reunir os diversos determinantes que encontramos
para os ataques de tosse e rouquidão. Na camada mais inferior da estratificação
devemos presumir a presença de uma irritação real e organicamente condicionada
da garganta, ou seja, o grão de areia em torno do qual a ostra forma a pérola.
Esse estímulo era passível de fixação por dizer respeito a uma região do corpo
que, na menina, conservava em alto grau a significação de uma zona erógena. Por
conseguinte, estava apto a dar expressão à libido excitada. Ficou fixado
através do que foi, provavelmente, seu primeiro revestimento psíquico - a
imitação compassiva do pai enfermo - e, depois, através das auto-acusações por
causa do “catarro”. Esse mesmo grupo de sintomas, além disso, mostrou-se
passível de representar as relações dela com o Sr. K., seu pesar pela ausência
dele e o desejo de ser para ele uma esposa melhor. Depois que uma parte da
libido voltou-se novamente para o pai, o sintoma obteve o que talvez seja sua
significação última: representar a relação sexual com o pai pela identificação
de Dora com a Sra. K. Gostaria de afiançar, em contrapartida, que esta série de
modo algum está completa. Infelizmente, a análise incompleta não nos permite
seguir a cronologia das reviravoltas no sentido, nem esclarecer a sucessão e a
coexistência dos diversos significados. Só de uma análise completa é lícito
esperar o cumprimento dessas exigências.
Não
posso agora deixar de tocar em algumas relações adicionais entre o catarro
genital e os sintomas histéricos de Dora. No tempo em que ainda se estava muito
longe de chegar a um esclarecimento psíquico da histeria, eu costumava ouvir de
colegas mais velhos e experientes a afirmação de que, nas pacientes histéricas
que apresentavam leucorréia, o agravamento do catarro era regularmente seguido
pela agudização dos achaques histéricos, em particular a perda de apetite e os vômitos.
Ninguém tinha um conhecimento claro da relação aí indicada, mas creio que se
tendia a adotar a visão dos ginecologistas, que, como é sabido, supõem em ampla
escala uma influência perturbadora direta e orgânica das afecções genitais
sobre as funções nervosas, embora a comprovação terapêutica dessa teoria seja a
conta certa para deixar a maioria de nós desamparados. Dado o estado atual de
nossos conhecimentos, tampouco se pode dar por excluída tal influência direta e
orgânica, porém, em todo caso, seu revestimento psíquico é mais facilmente
demonstrável. Entre nossas mulheres, o orgulho pela configuração dos órgãos
genitais é uma parte muito especial de sua vaidade; as afecções deles,
consideradas capazes de inspirar repugnância ou mesmo asco, atuam incrivelmente
no sentido de melindrá-las, rebaixar sua auto-estima e torná-las irritadiças,
suscetíveis e desconfiadas. A secreção anormal da mucosa da vagina é vista como
fonte de repugnância.
Lembremo-nos
de que em Dora, depois do beijo do Sr. K., houve uma viva sensação de asco, e
de que encontramos razões para complementar o relato que ela nos fez dessa cena
conjecturando que, durante o abraço, ela sentira a pressão do membro ereto do
homem em seu ventre (ver a partir de [1]). Sabemos agora, além disso, que a
mesma governanta que ela fez ser despedida por sua infidelidade lhe dissera,
por sua própria experiência de vida, que todos os homens eram frívolos e
indignos de confiança. Para Dora, isso devia significar que todos os homens
eram como seu pai. Mas ela considerava que o pai sofria de uma doença venérea,
e que teria transmitido essa doença a ela e a sua mãe. Foi-lhe então possível
imaginar que todos os homens sofriam de doenças venéreas, e sua concepção
destas se formara, naturalmente, a partir de sua experiência única e pessoal
com elas. Sofrer de uma doença venérea, por conseguinte, significava para ela
estar acometida de uma secreção enojante. Não seria essa uma outra motivação do
asco por ela sentido no momento do abraço? Esse asco, transferido para o
contato com o homem, seria então um sentimento projetado segundo o mecanismo
primitivo mencionado anteriormente (ver em [1]) e estaria referido, em última
instância, a sua própria leucorréia.
Suspeito
estarmos tratando aqui de cursos inconscientes de pensamento urdidos sobre uma
trama orgânica pré-estruturada, tal como uma grinalda sobre a armação de arame,
de sorte que, numa outra ocasião, pode-se encontrar outras vias de pensamento
intercaladas entre os mesmos pontos de partida e de chegada. Mas o conhecimento
dos vínculos de pensamento que se mostraram eficazes em cada indivíduo é de
valor insubstituível para a resolução dos sintomas. Unicamente por força da
interrupção prematura da análise é que tivemos de recorrer, no caso de Dora, a
conjecturas e complementações. O que aqui apresento para preencher as lacunas
apóia-se inteiramente em outros casos analisados a fundo.
O sonho
mediante cuja análise obtivemos as informações precedentes corresponde, como
vimos, a um propósito que Dora levou consigo para o sono. Por isso se repetiu
todas as noites, até que o propósito fosse realizado, e reapareceu anos depois,
ao surgir uma ocasião para que ela formasse um propósito análogo. O propósito
poderia expressar-se conscientemente da seguinte maneira: “Preciso afastar-me
dessa casa, na qual, como vi, minha virgindade corre perigo; partirei com papai
e, pela manhã, ao fazer minha toalete, tomarei minhas precauções para não ser
surpreendida.” Esses pensamentos encontram nítida expressão no sonho; pertencem
a uma corrente [psíquica] que, na vida de vigília, chegou à consciência e se
tornou dominante. Por trás deles se pode discernir uma cadeia mais obscura de
pensamentos substitutos que correspondia à corrente contrária e, por isso
mesmo, foi suprimida. Essa segunda cadeia de pensamentos culminava na tentação
de entregar-se ao homem, em agradecimento pelo amor e pela ternura que ele lhe
demonstrara nos últimos anos, e talvez tenha invocado a lembrança do único
beijo que até então Dora recebera dele. Contudo, segundo a teoria desenvolvida
em meu livro A Interpretação dos Sonhos, tais elementos não bastam para
a formação de um sonho. O sonho não é um propósito que se representa como
executado, mas um desejo que se representa como realizado e precisamente, além
disso, um desejo proveniente da vida infantil. Temos a obrigação de verificar
se essa tese não é contradita por nosso sonho.
O sonho
contém, de fato, um material infantil que não guarda relação alguma, à primeira
vista, com o propósito de Dora de escapar da casa do Sr. K. e da tentação de
sua presença. Para que emergiria a lembrança de quando ela urinava na cama, em
criança, e do trabalho que seu pai então tivera para habituá-la à limpeza?
Pode-se dar a isso a resposta de que somente com a ajuda dessa cadeia de
pensamentos era possível suprimir os intensos pensamentos de tentação e fazer
prevalecer o propósito formado contra eles. A menina decidira fugir com
o pai; na realidade, estava fugindo para o pai, em função da angústia
frente ao homem que a assediava; convocou uma inclinação infantil pelo pai para
que esta a protegesse de sua inclinação recente por um estranho. O próprio pai
era culpado pelo perigo atual, pois a havia entregue a esse estranho, movido por
seus próprios interesses amorosos. Quão mais belo tinha sido quando esse mesmo
pai não amava a ninguém mais do que a ela, e se empenhara em salvá-la dos
perigos que então a ameaçavam! O desejo infantil e hoje inconsciente de colocar
o pai no lugar do estranho é uma potência formadora de sonhos. Havendo uma
situação passada semelhante a uma situação presente, embora tendo por diferença
essa substituição de pessoas, ela passa a ser a situação principal do sonho. E
tal situação de fato existiu; justamente como fizera o Sr. K. na véspera, seu
pai estivera um dia em frente à cama dela e a acordara; quem sabe com um beijo,
como talvez o Sr. K. tivesse pretendido fazer. Portanto, o propósito de fugir
da casa, por si só, não seria formador de um sonho, mas transformou-se nisso ao
se associar com outro propósito fundamentado num desejo infantil. O desejo de
substituir o Sr. K. pelo pai forneceu a força impulsora [pulsional] para o
sonho. Relembro aqui a interpretação a que me compeliu, em Dora, a cadeia
reforçada de pensamentos sobre as relações de seu pai com a Sra. K.: a de que
uma inclinação infantil pelo pai fora invocada para que fosse possível manter
sob recalcamento o amor recalcado pelo Sr. K. (ver a partir de [1]). Essa
reviravolta na vida anímica de Dora é o que o sonho espelha.
No
tocante à relação entre os pensamentos de vigília que têm prosseguimento
durante o sono - os restos diurnos - e o desejo inconsciente formador do sonho,
fiz em A Interpreração dos Sonhos algumas observações que aqui
cito inalteradas, porque nada tenho a acrescentar-lhes e porque a análise desse
sonho de Dora torna a provar que não é outra a relação existente:
“Estou
pronto a admitir que há toda uma classe de sonhos cuja instigação provém
principalmente, ou até de maneira exclusiva, dos restos da vida diurna; e penso
que até meu desejo de enfim tornar-me Professor Extraordinário poderia ter-me
deixado dormir em paz aquela noite, se a preocupação com a saúde de meu
amigo não houvesse persistido desde o dia anterior. Mas a preocupação, por si
só, não teria formado um sonho. A força impulsora requerida pelo sonho
tinha de ser suprida por um desejo; cabia à preocupação apoderar-se de um
desejo que atuasse como força propulsora do sonho.
“A
situação pode ser explicada por uma analogia. O pensamento diurno pode
perfeitamente desempenhar o papel de empresário do sonho; mas o
empresário, que, como se costuma dizer, tem a idéia e a iniciativa para
executá-la, não pode fazer nada sem o capital; precisa de um capitalista que
possa arcar com o gasto, e capitalista que fornece o desembolso psíquico para o
sonho é, invariável e indiscutivelmente, sejam quais forem os pensamentos do
dia anterior, um desejo oriundo do inconsciente.”
Quem
tiver aprendido a conhecer a delicadeza da estrutura dessas formações que são
os sonhos não ficará surpreso com o fato de que esse desejo de Dora, de que seu
pai tomasse o lugar do homem tentador, não tenha trazido à memória um material
infantil qualquer, mas justamente um material que mantinha as mais íntimas relações
com a supressão dessa tentação. É que, se Dora se sentia incapaz de ceder ao
amor por esse homem, se recalcava esse amor em vez de entregar-se a ele, a
nenhum outro fator essa decisão se prendia mais intimamente do que a seu gozo
sexual prematuro e as conseqüências dele - a enurese, o catarro e o asco. Tal
história primitiva, conforme o somatório dos determinantes constitucionais,
pode constituir o fundamento para dois tipos de conduta frente às exigências do
amor na maturidade: ou uma entrega plena à sexualidade, sem nenhuma resistência
e beirando a perversão, ou, por reação, o repúdio da sexualidade no adoecimento
neurótico. Em nossa paciente, a constituição e o nível de sua educação
intelectual e moral decidiram em favor da segunda alternativa.
Quero
ainda chamar especial atenção para o fato de que, a partir da análise desse
sonho, tivemos acesso a detalhes de vivências patogenicamente ativas que, de
outro modo, teriam sido inacessíveis à memória ou, pelo menos, à reprodução. A
lembrança do urinar na cama durante a infância, como vimos, já fora recalcada.
Quanto aos detalhes do assédio por parte do Sr. K., Dora nunca os mencionara,
pois não lhe ocorriam.
Acrescento
ainda algumas observações sobre a síntese desse sonho. O trabalho do
sonho começa na tarde do segundo dia após a cena no bosque, depois que Dora
notou que já não poderia trancar a porta de seu quarto (ver em [1]). Foi então
que disse a si mesma: “Corro sério perigo aqui”, e formou o propósito de não
ficar sozinba na casa, mas sim partir com o pai. Esse propósito tornou-se
passível de formar um sonho por ter encontrado prosseguimento no inconsciente.
Seu equivalente ali foi a invocação do amor infantil pelo pai como proteção
contra a tentação atual. A virada assim ocorrida nela fixou-se e a levou para a
postura representada por sua cadeia hipervalente de pensamentos (ciúme
da Sra. K. por causa do pai, como se estivesse apaixonada por ele). Lutavam
nela a tentação de ceder ao homem que a cortejava e uma oposição composta a
fazê-lo. Esta se compunha de motivos de decoro e prudência, de impulsos hostis
causados pela revelação da governanta (ciúme e orgulho ferido, como veremos
adiante em [1]), e de um elemento neurótico - a aversão à sexualidade a que
estava predisposta e que se enraizava em sua história infantil. O amor pelo
pai, invocado para protegê-la da tentação, provinha dessa mesma história
infantil.
O sonho
transforma o propósito de fugir para o pai, entranhado no inconsciente, numa
situação que mostra realizado o desejo de que o pai a salvasse do perigo. Para
isso foi preciso pôr de lado um pensamento que constituía um obstáculo - o de
que justamente o pai a expusera a esse perigo. Quanto à moção hostil contra o
pai (propensão à vingança), aqui suprimida, dela tomaremos conhecimento como um
dos motores do segundo sonho (ver a partir de [1]).
De
acordo com as condições da formação dos sonhos, a situação fantasiada é
escolhida de modo a reproduzir uma situação infantil. É um triunfo especial
conseguir-se transformar uma situação recente, justamente a que ocasionou o
sonho, numa situação infantil. Em nosso caso, isso foi conseguido por uma mera
casualidade do material. Tal como o Sr. K. postou-se diante do sofá e a
acordou, o pai muitas vezes a acordara na infância. Toda a mudança pôde simbolizar-se
de maneira muito oportuna substituindo-se o Sr. K. pelo pai nessa situação.
Mas o
pai costumava acordá-la, naquela época, para que ela não molhasse a cama. Esse
“molhar” tornou-se decisivo para o restante do conteúdo do sonho, apesar de ser
nele representado apenas por uma alusão distante e por seu oposto.
O oposto
de “molhado” e “água” pode facilmente ser “ardente” e “fogo”. A casualidade de
o pai, ao chegarem àquele lugar [L ], ter expressado angústia ante o perigo de
fogo (ver em [1]) contribuiu para decidir que o perigo do qual o pai deveria
salvá-la seria um incêndio. Nesse acaso e na oposição a “molhar” baseou-se a
situação escolhida para a imagem onírica: havia um incêndio e o pai estava em
frente a sua cama para despertá-la. O enunciado fortuito do pai não teria
alcançado essa importância no sonho se não se harmonizasse tão esplendidamente
com a corrente de sentimentos dominante, que queria ver nele a qualquer preço o
protetor e salvador. “Ele pressentiu o perigo logo depois de nossa chegada, e
tinha razão!” (Na realidade, ele é que havia exposto a moça a esse perigo.)
Nos
pensamentos oníricos, cabe ao “molhar”, por ligações muito fáceis de
estabelecer, o papel de ponto nodal entre vários círculos de representações.
“Molhar” pertencia não só ao molhar a cama, mas também ao círculo de
pensamentos de tentação sexual suprimidos por trás desse conteúdo onírico. Dora
sabia haver também um molhar-se na relação sexual, sabia que, no coito, o homem
oferece à mulher algo líquido em forma de gotas. Sabia ainda que o
perigo reside justamente nisso, e que era tarefa sua proteger sua genitália
para que não fosse molhada.
Com
“molhar” e “gotas” abre-se ao mesmo tempo outro círculo de associações: o do catarro
enojante que, em seus anos mais maduros, sem dúvida tinha para ela o mesmo
significado do molhar a cama na infância. “Molhado” tem aqui o mesmo sentido de
“sujo”. Os órgãos genitais, que deveriam manter-se limpos, já se haviam sujado
com o catarro, e além disso o mesmo ocorrera com a mãe dela (ver em [1]). Dora
parecia entender a mania de limpeza da mãe como uma reação contra essa
imundície.
Os dois
círculos se reúnem num só: “Mamãe recebeu as duas coisas de papai, o
umedecimento sexual e a secreção que suja.” O ciúme sentido pela mãe era
inseparável do círculo de pensamentos ligados ao amor infantil pelo pai, aqui
invocado para dar proteção. Mas esse material ainda não era passível de
representação. No entanto, encontrando-se uma lembrança que mantivesse com os
dois círculos do “molhar” uma relação similarmente boa, mas que evitasse o
chocante, esta poderia assumir a representação do material no conteúdo do
sonho.
Tal
lembrança foi encontrada no episódio das “gotas” [Tropfen] como jóia
desejada pela mãe (ver em [1]). Aparentemente, a ligação dessa reminiscência
com os dois círculos, o do umedecimento sexual e o de ficar suja, era externa e
superficial, mediada pelas palavras, pois “gotas” foi usada como uma
“reviravolta” (ver em [1]), uma palavra de duplo sentido, enquanto
“jóia” [“Schmuck”], no lugar de “limpo”, é um oposto um tanto
forçado para “sujo”. Na realidade, porém, é possível demonstrar as mais firmes
ligações em termos do conteúdo. A lembrança proveio do material do ciúme de
Dora pela mãe, que se enraizava na infância mas persistiu por muito mais tempo.
Através dessas duas pontes verbais foi possível transferir para uma única
reminiscência, a das “gotas-jóia” [Schmucktropfen], todo o sentido preso
às representações da relação sexual entre os pais, do adoecimento pela secreção
e da incômoda mania de limpeza da mãe.
Contudo,
faltava ainda mais uma transposição para que isso pudesse entrar no conteúdo do
sonho. Neste, não foram as “gotas”, mais próximas do “molhar” originário, e sim
“jóia”, mais distante, que chegou a obter ingresso. “Assim, ao se inserir esse
elemento na situação onírica já fixada anteriormente, foi possível dizer:
“Mamãe ainda queria salvar suas jóias.” Na nova alteração para “caixinha de
jóias” [Schmuckkästchen] fez-se então sentir, a posteriori, a
influência de elementos do círculo subjacente, relativo à tentação vinda do Sr.
K. Este não a presenteara com jóias, mas sim com uma “caixinha” para elas (ver
em [1]) - o substituto de todas as distinções e mostras de ternura pelas quais
ela deveria agora mostrar-se agradecida. E o composto assim formado, “caixa de
jóias”, tinha ainda um valor especial como substituto. Acaso “caixinha de
jóias” [Schmuckkästchen] não é uma imagem corriqueira para designar a
genitália feminina imaculada e intacta? E não é, por outro lado, uma palavra
inocente e, portanto, primorosamente apropriada tanto para ocultar quanto para
aludir aos pensamentos sexuais por trás do sonho?
Assim,
diz-se em dois lugares do conteúdo do sonho “caixa de jóias da mamãe”, e esse
elemento substitui a menção ao ciúme infantil de Dora, às gotas (ou seja, ao
umedecimento sexual), ao sujar-se com a secreção e, por outro lado, aos
pensamentos de tentação atuais que pressionam pela retribuição do amor e
retratam a situação sexual iminente - ansiada e ameaçadora. O elemento “caixa
de jóias”, mais do que qualquer outro, foi um produto da condensação e do
deslocamento, e um compromisso entre correntes opostas. Sua origem múltipla -
em fontes infantis e atuais - é certamente apontada por seu duplo aparecimento
no conteúdo do sonho.
O sonho
foi a reação a uma nova vivência de efeito excitante, que deve necessariamente
ter despertado a lembrança da única vivência de anos anteriores análoga a ela.
Trata-se da cena do beijo na loja do. Sr. K., durante a qual surgiu a
repugnância (ver em [1]). Mas essa mesma cena era associativamente acessível,
partindo-se de outras direções: do círculo de pensamentos ligados ao catarro
(ver em [1]) e da tentação atual. Portanto, ela trouxe uma contribuição própria
para o conteúdo do sonho, a qual teve de adaptar-se à situação onírica
pré-formada. “Havia um incêndio…” - o beijo sem dúvida tinha gosto de fumaça
[fumo], e por isso no sonho sente-se o cheiro de fumaça, que persiste até
depois de Dora acordar (ver em [1]).
Por
inadvertência, deixei lamentavelmente uma lacuna na análise desse sonho.
Atribui-se ao pai o dito “Não quero que meus dois filhos… (“em conseqüência da
masturbação”, cabe sem dúvida acrescentar aqui, partindo dos pensamentos
oníricos) pereçam”. Tais ditos oníricos são usualmente compostos de
fragmentos de ditos reais, proferidos ou ouvidos. Eu deveria ter-me informado
sobre a origem real desse dito. O resultado dessa investigação teria por certo
tornado mais complicada a estrutura do sonho, mas teria também permitido
conhecê-lo com maior transparência.
Acaso se
deve supor que esse sonho, ao ocorrer em L , teve exatamente o mesmo conteúdo
que em sua repetição durante o tratamento? Não parece necessário. A experiência
mostra que as pessoas amiúde afirmam ter tido o mesmo sonho, quando, na
verdade, as aparições isoladas do sonho recorrente se diferenciam por numerosos
detalhes e outras alterações de considerável importância. Assim, uma de minhas
pacientes me informou ter tido novamente na noite anterior, e da mesma maneira,
seu sonho favorito e recorrente: estava nadando no mar azul, sentindo prazer em
furar as ondas etc. A investigação mais atenta mostrou que sobre a base comum
surgia ora este detalhe, ora aquele; numa ocasião, inclusive, ela estava
nadando num mar gelado e cercada por icebergs. Outros sonhos que a
paciente não procurava apresentar como idênticos revelaram-se intimamente
ligados ao sonho recorrente. Uma vez, por exemplo, ela viu numa fotografia em
tamanho natural, ao mesmo tempo, as partes superior e inferior da ilha de
Helgoland; no mar havia um barco onde se achavam duas pessoas a quem ela
conhecera na juventude etc.
É certo
que o sonho de Dora ocorrido durante o tratamento havia adquirido um novo
sentido atual, talvez sem modificar seu conteúdo manifesto. Entre seus
pensamentos oníricos ele incluiu uma referência a meu tratamento e correspondeu
a uma renovação do antigo propósito de escapar de um perigo. Se não estava em
jogo nenhuma ilusão de memória por parte de Dora quando ela declarou que já em
L percebera a fumaça depois de acordar,
cabe reconhecer que meu provérbio “onde há fumaça há fogo” (ver em [1]) foi
introduzido com muita habilidade na forma acabada do sonho, onde parece ter
servido para sobredeterminar o último elemento. Inegavelmente, foi mera
casualidade que o pretexto mais recente do sonho - o trancamento da sala de
jantar pela mãe, com o que o irmão ficava encerrado em seu quarto (ver em [1])
- trouxesse um vínculo com a perseguição do Sr. K. em L , onde Dora amadureceu
sua decisão ao descobrir que não poderia trancar-se no quarto. Talvez o irmão
não tivesse aparecido no sonho nas ocasiões anteriores, de modo que o dito
“meus dois filhos” só entrou em seu conteúdo depois da última ocasião que o
ensejou.
O SEGUNDO SONHO
Algumas
semanas depois do primeiro sonho ocorreu o segundo, com cuja resolução
interrompeu-se a análise. Não se pode torná-lo tão transparente quanto o
primeiro, mas ele possibilitou uma confirmação desejada de uma posição que se
tornara necessária sobre o estado anímico da paciente (ver em [1]), preencheu
uma lacuna de sua memória (ver em [1]) e permitiu obter um profundo
conhecimento da gênese de outro de seus sintomas (ver em [1]).
Narrou
Dora: “Eu estava passeando por uma cidade que não conhecia, vendo ruas e praças
que me eram estranhas. Cheguei então a uma casa onde eu morava, fui até meu
quarto e ali encontrei uma carta de mamãe. Dizia que, como eu saíra de casa sem
o conhecimento de meus pais, ela não quisera escrever-me que papai estava doente.
`Agora ele morreu e, se quiser, você pode vir.’ Fui então para a estação
[Bahnhof] e perguntei umas cem vezes: `Onde fica a estação?’ Recebia sempre
a resposta: `Cinco minutos.’ Vi depois à minha frente um bosque espesso no qual
penetrei, e ali fiz a pergunta a um homem que encontrei. Disse-me: `Mais duas
horas e meia.’ Pediu-me que o deixasse acompanhar-me. Recusei e fui
sozinha. Vi a estação à minha frente e não conseguia alcancá-la. Aí me veio o
sentimento habitual de angústia de quando, nos sonhos, não se consegue ir
adiante. Depois, eu estava em casa; nesse meio tempo, tinha de ter viajado, mas
nada sei sobre isso. Dirigi-me à portaria e perguntei ao porteiro por nossa
casa. A criada abriu para mim e respondeu: `A mamãe e os outros
já estão no cemitério [Friedhof]’.”
A
interpretação desse sonho não prosseguiu sem alguma dificuldade. Devido às
circunstâncias peculiares - ligadas a seu conteúdo - em que interrompemos a
análise, nem todo o sonho ficou esclarecido, e também a isso se prende que
minha memória não tenha conservado, com igual segurança em todos os pontos, a
ordem em que as deduções foram feitas. Começarei por mencionar o tema sobre o
qual versava a análise em curso quando se deu a interferência do sonho. Desde
algum tempo, a própria Dora vinha formulando perguntas sobre a ligação entre
suas ações e os motivos presumíveis delas. Uma dessas perguntas era: “Por que
foi que, nos primeiros dias depois da cena do lago, eu nada disse sobre ela?”
Segunda pergunta: “Por que, então, de repente contei isso a meus pais?” Eu
considerava que, de modo geral, ainda era preciso explicar o que a levara a
sentir-se tão gravemente melindrada pela proposta do Sr. K., tanto mais que eu
começava a me aperceber de que, para o Sr. K., a proposta a Dora não
significara nenhuma tentativa leviana de sedução. Quanto a ela ter dado
conhecimento do episódio a seus pais, eu o encarava como um ato já praticado
sob a influência de uma sede doentia de vingança. Uma jovem normal, penso eu,
lidaria sozinha com essas questões.
Portanto,
apresentarei o material surgido na análise desse sonho na ordem bastante
confusa em que se oferece à minha reprodução.
Ela
vagava sozinha por uma cidade estranha e via ruas e praças. Assegurou-me que
certamente não era B , em que eu pensara primeiro, mas uma cidade em que nunca
estivera. Como era natural, prossegui: ela poderia ter visto quadros ou
fotografias das quais retirara as imagens do sonho. Depois dessa observação
veio o adendo sobre o monumento numa das praças e, logo a seguir, o
reconhecimento de sua fonte. Nas festas de Natal tinham-lhe enviado um
álbum com paisagens de uma estação de águas alemã, e justamente na véspera ela
o procurara para mostrá-lo a alguns parentes que estavam hospedados em sua
casa. Ele estava numa caixa de fotografias que não se conseguia encontrar, e
Dora perguntou à mãe: “Onde está a caixa?”. Uma das
paisagens mostrava uma praça com um monumento. Mas o autor do presente era um
jovem engenheiro com quem Dora travara rápido conhecimento na cidade fabril. O
rapaz aceitara um posto na Alemanha para chegar mais depressa a sua autonomia,
aproveitava todas as oportunidades para fazer-se lembrar a Dora, e era fácil
adivinhar que tencionava, a seu tempo, quando sua posição melhorasse, apresentar-se
a Dora como pretendente. Mas ainda não era chegado o momento, havia de esperar.
A
perambulação pela cidade estranha estava sobredeterminada. Levou a um dos
ensejos oferecidos durante o dia. Nas festas chegara a visita de um priminho a
quem Dora teve de mostrar a cidade de Viena. Essa causa diurna decerto lhe fora
sumamente indiferente. Mas o primo lhe trouxe à lembrança sua breve estada em
Dresden pela primeira vez. Naquela ocasião, ela perambulara como uma estranha,
embora não deixasse, naturalmente, de visitar a famosa galeria. Um outro primo,
que estivera com eles e conhecia Dresden, quisera servir de guia no percurso
pela galeria. Mas ela o recusara e seguira sozinha, detendo-se diante
dos quadros que lhe agradavam. Diante da Madona Sistina deixou-se ficar duas
horas, sonhadoramente perdida em silenciosa admiração. Ante a pergunta
sobre o que tanto lhe agradara no quadro, não soube dar nenhuma resposta clara.
Finalmente, disse: “A Madona.”
É
indubitável que essas associações realmente pertençam ao material formador do
sonho. Incluem componentes que reencontramos inalterados no conteúdo do sonho
(“ela recusou e foi sozinha” e “duas horas”). Ressalto desde já que as
“imagens” são um ponto nodal na trama dos pensamentos do sonho (as paisagens do
álbum, os quadros em Dresden). Destacaria também, para investigação posterior,
o tema da Madona, da mãe virgem. Mas o que veio acima de tudo é que,
nessa primeira parte do sonho, ela se identifica com um rapaz. Ele vagueia por
terras estrangeiras, esforça-se por atingir uma meta, mas é retido, precisa de
paciência, tem de esperar. Se Dora tinha em mente o engenheiro, seria muito
condizente que essa meta fosse a posse de uma mulher, da própria pessoa dela.
Em vez disso, era… uma estação, que aliás, pela relação entre a pergunta do
sonho e a pergunta realmente formulada, nos é lícito substituir por
caixa. Uma caixa e uma mulher: isso já começa a combinar melhor.
Ela
perguntou umas cem vezes… Isso levou a outra causa do sonho, essa menos
indiferente. Na noite da véspera, em meio a uma reunião doméstica, o pai lhe
pedira que fosse buscar o conhaque; não dormia sem antes beber conhaque. Dora
pediu à mãe a chave do bufê, mas ela estava absorta na conversa e não lhe deu
resposta alguma, até que, com o exagero da impaciência, Dora exclamou: “Já lhe
perguntei umas cem vezes onde está a chave.” Na realidade, ela
naturalmente só repetira a pergunta umas cinco vezes.
“Onde
está a chave?” parece-me ser o equivalente masculino da pergunta
“Onde está a caixa?”. Portanto, são perguntas… pelos órgãos genitais.
Nessa
mesma reunião familiar, alguém fizera um brinde ao pai de Dora, expressando a
esperança de que por muito tempo ainda ele gozasse da melhor saúde etc. Nisso,
uma expressão singular toldou o rosto cansado do pai, e ela compreendeu os
pensamentos que ele teve de sufocar. Pobre enfermo! Quem poderia saber quanto
tempo de vida ainda lhe restava?
Com isso
chegamos ao conteúdo da carta no sonho. O pai estava morto e ela saíra
de casa por seu próprio arbítrio. A partir dessa carta, relembrei prontamente a
Dora a carta de despedida que ela escrevera aos pais, ou que pelo menos fora
composta para eles (ver em [1]). Essa carta se destinava a dar um susto no pai
para que ele desistisse da Sra. K., ou pelo menos a se vingar dele, caso não
fosse possível induzi-lo a isso. Estamos diante do tema da morte dela ou da
morte do pai (cf. cemitério, mais adiante no sonho). Acaso estaremos no
caminho errado ao supor que a situação constitutiva da fachada do sonho
correspondia a uma fantasia de vingança contra o pai? Os pensamentos
compassivos do dia anterior se harmonizariam muito bem com isso. Ora, a
fantasia rezava que ela saía de casa, indo para o estrangeiro, e que com isso o
pai ficava com o coração partido pelo desgosto e pela saudade dela. Então
estaria vingada. Dora compreendia muito bem de que é que o pai sentia falta,
não podendo agora dormir sem o conhaque. Assinalemos a sede de
vingança como um novo elemento para uma síntese posterior dos pensamentos
do sonho.
Mas o
conteúdo da carta deve ser passível de uma determinação adicional. De onde
proviria a frase “se você quiser”? A propósito disso ocorreu a Dora o adendo de
que, depois da palavra “quiser”, havia um ponto de interrogação, e com isso ela
também reconheceu essas palavras como uma citação extraída da carta da Sra. K.
que contivera o convite para L (o lugar
junto ao lago). De maneira estranhíssima, após a intercalação “se você quiser
vir”, havia nessa carta um ponto de interrogação colocado bem no meio da frase.
Assim,
estamos outra vez de volta à cena do lago (ver em [1]) e aos enigmas ligados a
ela. Pedi a Dora que me descrevesse essa cena minuciosamente. A princípio, ela
não revelou grandes novidades. O Sr. K. fizera uma introdução razoavelmente
séria, mas ela não o deixara terminar. Mal compreendeu do que se tratava,
deu-lhe uma bofetada no rosto e se afastou às pressas. Eu queria saber que
palavras ele empregara, mas Dora só se lembrou de uma de suas alegações: “Sabe,
não tenho nada com minha mulher.” Naquele momento, para não tornar a
encontrá-lo, ela quisera voltar para L
contornando o lago a pé, e perguntou a um homem com quem cruzou a que
distância ficava. Ante a resposta “duas horas e meia”, desistiu dessa
intenção e voltou em busca do barco, que partiu logo depois. O Sr. K. também
estava lá novamente, aproximou-se dela e lhe pediu que o desculpasse e não
contasse nada sobre o incidente. Mas ela não lhe deu resposta alguma… É mesmo,
o bosque do sonho era muito parecido com o bosque na orla do lago, no qual se
desenrolara a cena que ela acabava de me descrever mais uma vez. Justamente
esse mesmo bosque denso é que ela vira na véspera, num quadro de exposição
secessionista. Ao fundo do quadro viam-se ninfas.
Nesse
ponto, uma suspeita transformou-se em certeza para mim. Bahnhof [“estação”;
literalmente, “pátio de ferrovia”] e Friedhof [“cemitério”;
literalmente, “pátio de paz”], em lugar da genitália feminina, já eram bastante
inusitados, mas guiaram minha atenção já aguçada para uma palavra de formação
similar, “Vorhof” [“vestíbulo”; literalmente, “pátio anterior”], termo
anatômico para designar uma região específica da genitália feminina. Mas isso
poderia ser um equívoco por excesso de engenho. Agora, porém, com o acréscimo
das “ninfas” que se viam ao fundo do “bosque denso”, já não podia haver
dúvidas. Era uma geografia simbólica do sexo! “Ninfas”, como é sabido pelos
médicos, embora não pelos leigos (embora mesmo entre os primeiros não seja
muito usual), é como se chamam os pequenos lábios que ficam no fundo do “bosque
denso” dos pêlos pubianos. Mas quem usa termos técnicos como “vestíbulo” e
“ninfas” há de ter extraído seu conhecimento dos livros, e justamente não de
livros populares, mas de manuais de anatomia ou de alguma enciclopédia, refúgio
habitual dos jovens devorados pela curiosidade sexual. Portanto, se essa
interpretação estava certa, ocultava-se por trás da primeira situação do sonho
uma fantasia de defloração, como quando um homem se esforça por penetrar
na genitália feminina.
Partilhei
minhas conclusões com Dora. A impressão causada deve ter sido imperiosa, pois
emergiu imediatamente um pequenino fragmento esquecido do sonho: que ela foi
calmamente para seu quarto e pôs-se a ler um livro grande que estava
sobre sua escrivaninha. A ênfase recai aqui sobre dois detalhes:
“calmamente” e “grande”, relacionado com o livro. Perguntei: “Ele tinha o
formato de uma enciclopédia?” Dora disse que sim. Ora, as crianças nunca lêem
calmamente sobre matérias proibidas numa enciclopédia. Fazem-no tremendo de
medo e espiam inquietas para ver se alguém vem vindo. Os pais estorvam muito
essas leituras. Mas a força realizadora de desejos que é própria do sonho
melhorara radicalmente essa situação incômoda. O pai estava morto e os demais
já tinham ido para o cemitério. Ela podia ler calmamente o que bem lhe
aprouvesse. Não significaria isso que uma de suas razões para a vingança era
também a revolta contra a coerção exercida pelos pais? Se seu pai estivesse
morto, ela poderia ler ou amar como quisesse.
A princípio,
ela se recusou a lembrar-se de algum dia ter lido uma enciclopédia, e depois
admitiu que uma lembrança dessa ordem emergira nela, embora de conteúdo
inocente. Na época em que a tia a quem tanto amava estivera gravemente enferma
e já se havia decidido a viagem de Dora a Viena, chegou de outro tio uma carta
anunciando que eles não poderiam ir a Viena, já que um filho dele, primo de
Dora, portanto, adoecera perigosamente de uma apendicite. Na ocasião, ela
consultou uma enciclopédia para saber quais eram os sintomas da apendicite. Do
que leu então ela ainda recorda a dor característica localizada no abdômen.
Lembrei-me
então de que, pouco depois da morte da tia, Dora sofrera em Viena de uma
suposta apendicite (ver em [1]). Até esse momento, eu não me atrevera a incluir
essa doença entre suas produções histéricas. Contou-me ela que, nos primeiros
dias, teve febre alta e sentiu no baixo ventre a mesma dor sobre a qual lera na
enciclopédia. Puseram-lhe compressas frias, mas ela não conseguiu suportá-las;
no segundo dia, em meio a violentas dores, chegou sua menstruação, que desde
seu adoecimento tornara-se muito irregular. Nessa época, ela sofria
constantemente de constipação intestinal.
Não
parecia correto conceber esse estado como puramente histérico. Se
indubitavelmente ocorre a febre histérica, parecia arbitrário, por outro lado,
atribuir a febre dessa doença questionável à histeria, e não a uma causa
orgânica atuante na ocasião. Eu estava a ponto de abandonar essa pista quando a
própria Dora veio em meu auxílio, trazendo seu último adendo ao sonho: “ela
se via com singular nitidez subindo as escadas.”
Naturalmente,
eu exigia para isso um determinante especial. Dora objetou que, afinal, tinha
de subir a escada se pretendia chegar a seu apartamento, que ficava num andar
alto. Foi-me fácil repelir essa objeção, levantada talvez não muito a sério,
assinalando que, se no sonho ela pudera viajar da cidade estranha até Viena
omitindo o percurso de trem, também poderia ter deixado de fora a subida da escada.
Ela prosseguiu então no relato: depois da apendicite, tivera dificuldade em
caminhar, pois arrastava o pé direito. Isso persistira por muito tempo, e
portanto de bom grado ela evitava as escadas. Até hoje, o pé ainda se arrastava
muitas vezes. Os médicos por ela consultados a pedido do pai muito se haviam
admirado com essa seqüela extremamente incomum de uma apendicite, sobretudo
porque a dor abdominal não voltou a aparecer e de modo algum acompanhava
o arrastar do pé.
Tratava-se,
portanto, de um autêntico sintoma histérico. Por mais que a febre da época
fosse considerada orgânica - talvez por um dos ataques tão freqüentes de
influenza sem localização particular -, estava agora comprovado que a neurose
se apoderara desse evento fortuito e se valera dele para uma de suas
manifestações. Assim, Dora havia arranjado para si uma doença sobre a qual lera
na enciclopédia, punindo-se por essa leitura; e teve de reconhecer que o
castigo não podia, em absoluto, referir-se à leitura do artigo inocente, mas
que se deu mediante um deslocamento, depois que a essa leitura seguiu-se uma
outra, mais carregada de culpa, que hoje se ocultava na lembrança por trás
da leitura inocente contemporânea. Talvez ainda fosse possível investigar sobre
que temas ela lera naquela ocasião.
Que
significava, então, aquele estado que pretendia imitar uma peritiflite? A
seqüela da afecção - o arrastar de uma perna - era inteiramente incompatível
com uma peritiflite, e por certo deveria adequar-se melhor ao sentido secreto,
e talvez sexual, do quadro patológico; se fosse possível esclarecê-lo, ele
poderia lançar luz sobre o sentido buscado. Tentei encontrar uma via de acesso
para esse enigma. Tinha havido indicações temporais no sonho, e o tempo nunca é
indiferente no acontecer biológico. Assim, perguntei quando ocorrera a
apendicite, se antes ou depois da cena do lago. A resposta imediata, que
solucionou de um só golpe todas as dificuldades, foi: nove meses depois. Esse
intervalo é bem característico. A suposta apendicite realizara, portanto, com
os modestos recursos à disposição da paciente (as dores e o fluxo menstrual), a
fantasia de um parto. Naturalmente, Dora conhecia o significado
desse prazo, e não pôde desmentir a probabilidade de ter lido na enciclopédia,
naquela ocasião, a respeito da gravidez e do parto. Mas o que tinha isso a ver
com o arrastar da perna? Eu podia agora arriscar uma conjectura. É assim que se
anda quando se torce o pé. Portanto, ela dera um “passo em falso” e era
perfeitamente correto que desse à luz nove meses depois da cena junto ao lago.
Mas ainda me cabia colocar uma outra exigência. Tais sintomas só se formam,
segundo minha convicção, quando se tem um modelo infantil para eles. Por
minhas experiências feitas até agora, devo sustentar firmemente que as lembranças
que se tem de épocas posteriores não dispõem da força necessária para se impor
como sintomas. Eu não ousava esperar que Dora me fornecesse o material infantil
desejado, posto que ainda não posso afirmar a validade universal da tese acima,
por mais que me agradasse fazê-lo. Aqui, porém, a confirmação veio de imediato.
Sim, quando pequena, ela torcera certa vez esse mesmo pé; estava em B e, ao descer as escadas, escorregara
num degrau; o pé, justamente o mesmo que ela arrastava depois, inchara e tivera
de ser enfaixado, deixando-a em repouso por algumas semanas. Isso foi pouco
tempo antes da asma nervosa que lhe sobreveio no oitavo ano de vida (ver em
[1]).
Agora
era preciso tirar proveito da comprovação dessa fantasia: “Se você passou por
um parto nove meses depois da cena do lago, e se até hoje arca com as
conseqüências do passo em falso, isso prova que, no inconsciente, você lamentou
o desfecho da cena. Assim, em seu pensamento inconsciente, tratou de
corrigi-lo. A premissa de sua fantasia de parto é que, de fato, algo
aconteceu naquela ocasião, que você vivenciou e experimentou então tudo o que,
mais tarde, teve de extrair da enciclopédia. Como vê, seu amor pelo Sr. K. não
terminou com aquela cena, mas, como afirmei, persistiu até o dia de hoje, embora
em seu inconsciente.” Dora não mais o contradisse.
Esses
trabalhos para esclarecer o segundo sonho haviam requerido duas sessões.
Quando, ao término da segunda, expressei minha satisfação ante o conseguido,
ela respondeu em tom desdenhoso: “ - Ora, será que apareceu tanta coisa assim?”
E com isso preparei-me para a chegada de outras revelações.
Dora
iniciou a terceira sessão com estas palavras:
“ - O
senhor sabe, doutor, que hoje estou aqui pela última vez?”
- Não
posso saber, pois você não me disse nada a esse respeito.
“ - É,
eu me propusera agüentar até o Ano Novo, mas não quero esperar mais pela
cura.”
- Você
sabe que tem sempre a liberdade de se retirar. Mas hoje ainda vamos continuar
trabalhando. Quando foi que tomou essa decisão?
“ - Faz
uns quatorze dias, creio.”
- Isso
soa como uma empregada ou uma governanta: um aviso prévio de quatorze dias.
“ -
Havia também uma governanta que deu aviso prévio na casa dos K. quando os
visitei em L , no lago.”
- É
mesmo? Você nunca me contou nada sobre ela. Conte-me, por favor.
“- Bem,
havia uma mocinha na casa, como governanta das crianças, que exibia um
comportamento estranhíssimo em relação ao Sr. K. Não o cumprimentava, não lhe
dava nenhuma resposta, nunca lhe entregava nada à mesa quando ele lhe pedia, em
suma, tratava-o como se fosse vento. Aliás, ele também não era muito mais
cortês com ela. Um ou dois dias antes da cena do lago, a moça me chamou à
parte; tinha algo a me comunicar. Contou-me então que o Sr. K., numa época em
que sua mulher estivera ausente por várias semanas, tinha-se aproximado dela,
fizera-lhe um assédio insistente e lhe pedira que fosse solícita com ele,
dizendo que não tinha nada com sua mulher etc.”
- Ora,
são as mesmas palavras que ele usou ao fazer-lhe sua proposta, e em função das
quais você lhe deu a bofetada no rosto.
“- É.
Ela cedeu, mas em pouco tempo ele já não lhe dava importância, e desde então
ela passou a odiá-lo.”
- E essa
governanta deu um aviso prévio?
“- Não,
estava pretendendo fazê-lo. Disse-me que, tão logo se sentiu abandonada, contou
o acontecido a seus pais, que são gente decente que mora em algum lugar da
Alemanha. Os pais lhe exigiram que abandonasse a casa imediatamente e, como
isso não foi feito, escreveram dizendo que não queriam mais saber dela, que ela
nunca mais poderia voltar para casa.”
- E por
que ela não foi embora?
“- Disse
que ainda queria esperar um pouco para ver se o Sr. K. não se modificaria. Não
suportava viver daquela maneira. Se não visse nenhuma mudança, daria o aviso
prévio e sairia.”
- E o
que aconteceu com a moça?
“- Só
sei que foi embora.”
- Não
teve nenhum filho dessa aventura?
“- Não.”
Em meio
à análise, portanto - aliás, em perfeito acordo com as regras -, ali vinha à
luz um fragmento de material efetivo que ajudava a solucionar problemas
previamente levantados. Pude dizer a Dora:
- Agora
conheço o motivo daquela bofetada com que você respondeu à proposta do Sr. K.
Não foi a afronta pela impertinência dele, mas uma vingança por ciúme. Quando a
mocinha lhe contou sua história, você ainda pôde valer-se de sua arte de pôr de
lado tudo o que não convinha a seus sentimentos. Mas no momento em que o Sr. K.
usou as palavras “Não tenho nada com minha mulher”, que ele também dissera à
senhorita, novas emoções foram despertadas em você e fizeram pender a balança.
Você disse a si mesma: “Como se atreve ele a me tratar cono uma governanta, uma
serviçal?” A esse orgulho ferido somaram-se o ciúme e os motivos de prudência
conscientes: definitivamente, era demais. Para provar o quanto você
ficou impressionada com a história da governanta, relembro suas repetidas
identificações com ela no sonho e em sua própria conduta. Você contou a seus
pais, o que até aqui não havíamos compreendido, tal como a moça escreveu aos
pais dela. Está-se despedíndo de mim como uma governanta, com um aviso prévio
de quatorze dias. A carta do sonho, que lhe permite voltar para casa, é a
contrapartida da carta dos pais da moça, em que ela é proibida de fazê-lo.
“ - E
por que, então, não contei a meus pais imediatamente?”
- Quanto
tempo deixou passar?
“ - A
cena ocorreu no último dia de junho; em 14 de julho contei-a a mamãe.”
- Outra
vez, portanto, quatorze dias, o prazo característico para uma criada! Agora
posso responder à sua pergunta. Você compreendeu muito bem a pobre moça. Ela
não queria ir-se de imediato porque ainda tinha esperanças, porque esperava que
o Sr. K. voltasse a lhe dar sua ternura. Esse deve ter sido também o seu
motivo. Você aguardou esse prazo para ver se ele renovaria suas propostas; daí
teria concluído que ele estava agindo a sério, e que não queria brincar com
você como fizera com a governanta.
“ - Nos
primeiros dias depois da partida ele ainda me mandou um cartão-postal.”
- Sim,
mas como não veio nada mais, você deu livre curso a sua vingança. Posso até
imaginar que, nessa época, ainda havia lugar para a intenção colateral,
mediante a acusação, de induzi-lo a viajar até o local onde você morava.
“ - …
Que foi, aliás, o que ele primeiro se ofereceu a fazer”, interrompeu ela.
- Então
sua saudade dele ter-se-ia apaziguado - aqui, ela assentiu com a cabeça, coisa
que eu não havia esperado - e ele poderia ter-lhe dado a satisfação que você
reclamava.
“ - Que
satisfação?”
- É que
estou começando a suspeitar de que você levou a questão com o Sr. K. muito mais
a sério do que quis revelar até agora. Não havia entre os K. conversas
freqüentes sobre divórcio?
“ -
Certamente; primeiro ela não queria, por causa dos filhos, e agora ela quer,
mas ele não quer mais.”
- Será
que não pensou que ele queria divorciar-se da mulher para se casar com você? E
que agora já não quer fazê-lo, por não ter nenhuma substituta? Há dois anos,
sem dúvida, você era muito jovem, mas você mesma me contou que sua mãe ficou
noiva aos dezessete anos, e depois esperou dois anos pelo marido. A história
amorosa da mãe costuma ser um modelo para a filha. Por isso, você também queria
esperar, e achou que ele estava apenas aguardando que você amadurecesse
o bastante para se tornar mulher dele. Imagino que esse tenha sido um projeto
de vida muito sério para você. E não tem sequer o direito de afirmar que essa
intenção estivesse excluída para o Sr. K., pois você me contou sobre ele o
bastante para apontar diretamente para esse propósito. Tampouco a
conduta dele em L contradiz isso. Você
não o deixou terminar sua fala e não sabe o que ele queria dizer-lhe. Aliás, o
projeto não seria tão impossível de realizar. As relações entre seu pai e a
Sra. K., que provavelmente você só apoiou por tanto tempo por causa disso,
davam-lhe a certeza de que se conseguiria o consentimento da mulher para o
divórcio, e com seu pai você consegue o que quer. Na verdade, se a tentação em
L houvesse tido outro desfecho, essa
teria sido a única solução possível para todas as partes. Penso também que por
isso você lamentou tanto o outro desenlace e o corrigiu na fantasia que se
apresentou como uma apendicite. Assim, deve ter sido uma grande decepção para
você que, em vez de uma proposta renovada, suas acusações tenham tido como
resultado as negativas e as calúnias do Sr. K. Você admite que nada a enfurece
mais do que acreditarem que você imaginou a cena do lago (ver em [1]). Agora
sei do que é que não quer ser lembrada: é de ter imaginado que a proposta
estava sendo feita a sério e que o Sr. K. não desistiria até que você se
casasse com ele.
Dora me
escutara sem me contradizer como de costume. Parecia emocionada; despediu-se da
maneira mais amável, com votos calorosos para o Ano-Novo, e… nunca mais voltou.
O pai, que ainda me visitou algumas vezes, garantiu que ela voltaria;
notava-se, dizia, que ela estava ansiosa pela continuação do tratamento. Mas
ele não era totalmente sincero. Havia apoiado o tratamento enquanto lhe fora
possível esperar que eu “dissuadisse” Dora da idéia de que entre ele e a Sra.
K. havia algo além de uma amizade. Seu interesse desvaneceu-se ao notar que não
era minha intenção promover esse resultado. Eu sabia que ela não retornaria.
Foi um indubitável ato de vingança que, no momento em que minhas esperanças de
um término feliz do tratamento estavam no auge, ela partisse de maneira tão
inesperada e aniquilasse essas esperanças. Também sua tendência a prejudicar a
si mesma beneficiou-se desse procedimento. Quem, como eu, invoca os mais
maléficos e maldomados demônios que habitam o peito humano, com eles travando
combate, deve estar preparado para não sair ileso dessa luta. Será que eu
poderia ter conservado a moça em tratamento, se tivesse eu mesmo representado
um papel, se exagerasse o valor de sua permanência para mim e lhe mostrasse um
interesse caloroso que, mesmo atenuado por minha posição de médico, teria
equivalido a um substituto da ternura por que ela ansiava? Não sei. Já que em
todos os casos parte dos fatores encontrados sob a forma de resistência
permanecem desconhecidos, sempre evitei desempenhar papéis e me contentei com
uma arte psicológica mais modesta. A despeito de todo o interesse teórico e de
todo o empenho médico de curar, tenho muito presente que a influência psíquica
necessariamente tem limites, e respeito como tais também a vontade e a
compreensão do paciente.
Tampouco
sei se o Sr. K. teria logrado mais se lhe fosse revelado que aquela botetada no
rosto de modo algum significara um “não” definitivo de Dora, mas que expressara
o ciúme recém-despertado nela, enquanto as moções mais intensas de sua vida
anímica ainda tomavam o partido dele. Se ele não tivesse dado ouvidos a esse
primeiro “não” e houvesse persistido em sua proposta com uma paixão mais
convincente, o resultado bem poderia ter sido um triunfo da afeição da moça
sobre todas as suas dificuldades internas. Mas creio que, talvez com a mesma
facilidade, isso poderia tê-la apenas provocado a satisfazer nele, com
intensidade ainda maior, sua sede de vingança. Nunca se pode calcular para que
lado penderá a decisão no conflito entre os motivos, se para a eliminação ou o
reforço do recalcamento. A incapacidade para o atendimento de uma demanda
amorosa real é um dos traços mais essenciais da neurose; os doentes são
dominados pela oposição entre a realidade e a fantasia. Aquilo por que mais
intensamente anseiam em suas fantasias é justamente aquilo de que fogem quando
lhes é apresentado pela realidade, e com maior gosto se entregam a suas
fantasias quando já não precisam temer a realização delas. A barreira levantada
pelo recalcamento, no entanto, pode cair sob o assalto de excitações violentas
de causa real; a neurose ainda pode ser derrotada pela realidade. Mas não
podemos avaliar genericamente em quem e de que maneira essa cura seria
possível.
POSFÁCIO
É
verdade que anunciei esta comunicação como um fragmento de análise; mas hão de
tê-la achado incompleta em proporções muito maiores do que seu título levaria a
esperar. Convém, portanto, que eu tente indicar os motivos dessas omissões nada
acidentais.
Falta
uma série de resultados da análise, em parte porque, quando da interrupção do
trabalho, eles não estavam suficientemente reconhecidos, e em parte porque
teriam requerido um prosseguimento para se chegar a alguma conclusão geral.
Noutros pontos, onde me pareceu admissível, apontei o rumo provável em que cada
solução seria encontrada. Além disso, omiti por completo a técnica, que nada
tem de óbvia e unicamente através da qual se pode extrair da matéria-prima das
associações do enfermo o metal puro dos valiosos pensamentos inconscientes.
Isso traz a desvantagem de o leitor não poder confirmar, nesta exposição, o
acerto de meu procedimento. Contudo, pareceu-me totalmente impraticável lidar
ao mesmo tempo com a técnica da análise e com a estrutura interna de um caso de
histeria; para mim, isso seria uma tarefa quase impossível, e a leitura seria
certamente intragável para o leitor. A técnica exige uma exposição totalmente
separada, que a esclareça mediante numerosos exemplos extraídos dos mais
diversos casos e possa prescindir do resultado obtido em cada um deles.
Tampouco tentei fundamentar aqui as premissas psicológicas vislumbradas em
minhas descrições dos fenômenos psíquicos. Nada se produziria com uma
fundamentação descuidada, e uma que fosse minuciosa constituiria uma obra por
si só. Posso apenas assegurar que abordei o estudo dos fenômenos revelados pela
observação dos psiconeuróticos sem estar comprometido com nenhum sistema
psicológico definido, e que depois modifiquei vez após outra minhas opiniões, até
me parecerem adequadas para dar conta da trama das observações efetuadas. Não
me orgulho por ter evitado a especulação, porém o material para estas hipóteses
foi obtido mediante a mais ampla e laboriosa observação. Em particular, é
possível que a firmeza de meu ponto de vista na questão do inconsciente seja
chocante, uma vez que opero com representações, cursos de pensamento e moções
inconscientes como se fossem objetos da psicologia tão bons e incontestáveis
quanto todo o consciente; mas de uma coisa estou certo: quem quer que empreenda
a investigação desse mesmo campo de fenômenos com o mesmo método não poderá
deixar de situar-se no mesmo ponto de vista, apesar de todas as dissuasões dos
filósofos.
Os
colegas que consideram puramente psicológica minha teoria da histeria, e que
por isso a qualificam de antemão como incapaz de solucionar um problema
patológico, deduzirão deste ensaio que sua objeção transfere injustificadamente
para a teoria o que constitui uma característica da técnica. Apenas a técnica terapêutica
é puramente psicológica; a teoria de modo algum deixa de apontar para as bases
orgânicas da neurose, muito embora não as procure em alguma alteração
anatomopatológica e substitua provisoriamente pela função orgânica a alteração
química esperada, mas ainda impossível de conceber atualmente. Ninguém há de
querer negar o caráter de fator orgânico da função sexual, na qual vejo a
fundamentação da histeria e das psiconeuroses em geral. Suspeito que nenhuma
teoria da vida sexual possa evitar a hipótese da existência de determinadas
substâncias sexuais de ação excitante. De fato, dentre todos os quadros
patológicos de que tomamos conhecimento na clínica, as intoxicações e a
abstinência quando do uso crônico de certos venenos são os que mais se
aproximam das autênticas psiconeuroses.
Tampouco
me estendi neste ensaio, entretanto, acerca do que hoje se pode dizer sobre a
“complacência somática”, os germes infantis da perversão, as zonas erógenas e a
predisposição para a bissexualidade; apenas destaquei os pontos em que a
análise tropeça nesses fundamentos orgânicos dos sintomas. Mais não se poderia
fazer com um caso isolado, e tive as mesmas razões antes apontadas para evitar
uma discussão passageira desses fatores. Há aqui uma oportunidade abundante
para trabalhos posteriores, baseados num grande número de análises.
Com esta
publicação tão incompleta, eu quis alcançar duas coisas. Em primeiro lugar,
como um complemento a meu livro sobre a interpretação dos sonhos, mostrar como
essa arte, que de outro modo seria inútil, pode ser proveitosa para a
descoberta do oculto e do recalcado na vida anímica; aliás, na análise dos dois
sonhos aqui comunicados, levou-se em consideração a técnica da interpretação
dos sonhos, semelhante à técnica psicanalítica. Em segundo lugar, quis
despertar interesse numa série de situações que a ciência ainda hoje desconhece
por completo, já que somente a aplicação desse procedimento específico permite
desvendá-las. Ninguém podia ter uma noção exata da complicação dos processos
psíquicos na histeria, da justaposição das mais diversas moções, do vínculo
recíproco entre os opostos, dos recalques e deslocamentos etc. A ênfase de
Janet na idée fixe, que se converte no sintoma, não significa
nada além de uma esquematização realmente precária. Não se pode evitar a
suposição de que certas excitações cujas respectivas representações não são
passíveis de se conscientizar atuam diferentemente umas sobre as outras, têm
cursos diferentes e levam a manifestações diversas das que chamamos “normais”,
cujo conteúdo de representação torna-se consciente para nós. Uma vez
esclarecidas as coisas até esse ponto, nada mais poderá estorvar a compreensão
de uma terapia que suprime os sintomas neuróticos transformando as
representações do primeiro tipo em representações normais.
Empenhava-me
também em mostrar que a sexualidade não intervém simplesmente como um deus
ex machina que se apresentasse uma única vez em algum ponto da engrenagem
dos processos característicos da histeria, mas que fornece a força impulsora para
cada sintoma singular e para cada manifestação singular de um sintoma. Os
fenômenos patológicos são, dito de maneira franca, a atividade sexual do
doente. Um caso isolado nunca permitirá demonstrar uma tese tão geral, mas
só posso repetir vez após outra, pois jamais constato outra coisa, que a
sexualidade é a chave do problema das psiconeuroses, bem como das neuroses em
geral. Quem a desprezar nunca será capaz de abrir essa porta. Ainda aguardo as
investigações capazes de refutar ou restringir essa tese. O que tenho ouvido
até agora não passam de manifestações de desagrado pessoal ou de incredulidade,
às quais basta contrapor o dito de Charcot: “Ça n’empêche pas d’exister.”
O caso
de cuja história clínica e terapêutica aqui publiquei um fragmento tampouco é
apropriado para situar em sua justa luz o valor da terapia psicanalítica. Não
apenas a brevidade do tratamento, que mal chegou a três meses, como também
outro fator, inerente ao próprio caso, impediram que a cura se concluísse com a
melhora obtenível em outros casos, uma melhora admitida pelo enfermo e por seus
parentes, que mais ou menos se aproxima de uma recuperação completa. Obtém-se
tal resultado satisfatório quando as manifestações patológicas são
exclusivamente sustentadas pelo conflito interno entre as moções concernentes à
sexualidade. Nesses casos, vê-se melhorar o estado do doente à medida que,
traduzindo o material patogênico em material normal, contribui-se para o
solucionamento de seus problemas psíquicos. O rumo tomado é diverso quando os
sintomas se colocam a serviço de motivos vitais externos, como acontecera com
Dora nos últimos dois anos. Fica-se surpreso, e pode-se facilmente errar o
caminho, quando se toma conhecimento de que o estado do doente não dá sinal de
se modificar nem mesmo depois de o trabalho ter progredido muito. Na realidade,
porém, as coisas não são tão ruins; é certo que os sintomas não desaparecem
enquanto o trabalho prossegue, e sim algum tempo depois, uma vez dissolvidos os
vínculos com o médico. O adiamento da cura ou da melhora só é realmente causado
pela pessoa do médico.
Devo
estender-me um pouco mais para tornar essa questão inteligível. Durante o
tratamento psicanalítico, pode-se dizer com segurança que uma nova formação de
sintomas fica regularmente sustada. A produtividade da neurose, porém, de modo
algum se extingue, mas se exerce na criação de um gênero especial de formações
de pensamento, em sua maioria inconscientes, às quais se pode dar o nome de “transferências”.
O que
são as transferências? São reedições, reproduções das moções e fantasias que,
durante o avanço da análise, soem despertar-se e tornar-se conscientes, mas com
a característica (própria do gênero) de substituir uma pessoa anterior pela
pessoa do médico. Dito de outra maneira: toda uma série de experiências
psíquicas prévia é revivida, não como algo passado, mas como um vínculo atual
com a pessoa do médico. Algumas dessas transferências em nada se diferenciam de
seu modelo, no tocante ao conteúdo, senão por essa substituição. São, portanto,
para prosseguir na metáfora, simples reimpressões, reedições inalteradas.
Outras se fazem com mais arte: passam por uma moderação de seu conteúdo, uma sublimação,
como costumo dizer, podendo até tornar-se conscientes ao se apoiarem em alguma
particularidade real habilmente aproveitada da pessoa ou das circunstâncias do
médico. São, portanto, edições revistas, e não mais reimpressões.
Quando
se penetra na teoria da técnica analítica, chega-se à concepção de que a transferência
é uma exigência indispensável. Na prática, pelo menos, fica-se convencido de
que não há nenhum meio de evitá-la, e de que essa última criação da doença deve
ser combatida como todas as anteriores. Ocorre que essa parte do trabalho é de
longe a mais difícil. Interpretar os sonhos, extrair das associações do enfermo
os pensamentos e lembranças inconscientes, e outras artes similares de tradução
são fáceis de aprender: o próprio doente sempre fornece o texto para elas.
Somente a transferência é que se tem de apurar quase que independentemente, a
partir de indícios ínfimos e sem incorrer em arbitrariedades. Mas ela é
incontornável, já que é utilizada para produzir todos os empecilhos que tornam
o material inacessível ao tratamento, e já que só depois de resolvida a
transferência é que surge no enfermo o sentimento de convicção sobre o acerto
das ligações construídas [durante a análise].
Tender-se-á
a considerar uma séria desvantagem desse procedimento, aliás nada cômodo, que
ele próprio multiplique o trabalho do médico, criando uma nova espécie de
produtos psíquicos patológicos, e talvez se queira até inferir da existência
das transferências algum prejuízo para o doente através do tratamento
analítico. Ambas as suposições estariam erradas. O trabalho do médico não é
multiplicado pela transferência; de fato, é-lhe indiferente ter de superar a
respectiva moção do enfermo ligada a sua pessoa ou a alguma outra. Mas o
tratamento tampouco obriga o doente, com a transferência, a qualquer nova
tarefa que de outro modo ele não executasse. Se também se produzem curas da
neurose em instituições das quais o tratamento psicanalítico está excluído, se
é possível dizer que a histeria não é curada pelo método, e sim pelo médico, e
se é freqüente obter-se como resultado uma espécie de dependência cega e de
cativeiro permanente do enfermo perante o médico que o livrou de seus sintomas
através da sugestão hipnótica, a explicação científica de tudo isso há de ser
vista nas “transferências” que o doente faz regularmente para a pessoa do
médico. O tratamento psicanalítico não cria a transferência, mas simplesmente a
revela, como a tantas outras coisas ocultas na vida anímica. A única diferença
manifesta-se em que, espontaneamente, o enfermo só evoca transferências ternas
e amistosas que contribuam para sua cura; não podendo ser esse o caso, ele se
afasta o mais rápido possível, sem ser influenciado pelo médico que não lhe é
“simpático”. Na psicanálise, por outro lado, de acordo com sua colocação
diferenciada dos motivos, despertam-se todas as moções [do paciente], inclusive
as hostis; mediante sua conscientização elas são aproveitadas para fins de
análise, e com isso a transferência é repetidamente aniquilada. A transferência,
destinada a constituir o maior obstáculo à psicanálise, converte-se em sua mais
poderosa aliada quando se consegue detectá-la a cada surgimento e traduzi-la
para o paciente.
Fui
obrigado a falar da transferência porque somente através desse fator pude
esclarecer as particularidades da análise de Dora. O que constitui seu grande
mérito e que a fez parecer adequada para uma primeira publicação introdutória,
a saber, sua transparência incomum, está intimamente ligado a seu grande
defeito, que levou a sua interrupção prematura. Não consegui dominar a tempo a
transferência; graças à solicitude com que Dora punha à minha disposição no
tratamento uma parte do material patogênico, esqueci a precaução de estar
atento aos primeiros sinais da transferência que se preparava com outra parte
do mesmo material, ainda ignorada por mim. Desde o início ficou claro que em
sua fantasia eu substituía seu pai, o que era fácil de compreender em vista de
nossa diferença de idade. Dora chegou até a me comparar com ele
conscientemente, buscando, angustiada, assegurar-se de minha completa
sinceridade para com ela, já que seu pai “preferia sempre o segredo e os
rodeios tortuosos”. Depois, ao surgir o primeiro sonho, no qual ela se alertava
a abandonar o tratamento tal como antes deixara a casa do Sr. K., eu mesmo
deveria ter-me precavido, dizendo-lhe: “Agora você fez uma transferência do Sr.
K. para mim. Acaso terá notado algo que a leve a suspeitar de más intenções
semelhantes às do Sr. K. (diretamente ou por meio de alguma sublimação)? Ou
será que algo em mim chamou sua atenção, ou que você soube de alguma coisa a
meu respeito que me fez cair em suas graças, como lhe ocorreu antes com o Sr.
K.?” Então a atenção dela ter-se-ia voltado para algum detalhe de nosso
relacionamento, em minha pessoa ou nas minhas condições, por trás do qual se esconderia
algo análogo, mas incomparavelmente mais importante, a respeito do Sr. K.; e
mediante a resolução dessa transferência a análise teria obtido acesso a um
novo material mnêmico, provavelmente ligado a fatos reais. Mas fiquei surdo a
essa primeira advertência, pensando haver tempo, de sobra, já que não se
apresentavam outros estágios da transferência e ainda não se esgotara o
material para análise. Assim, fui surpreendido pela transferência e, por
causa desse “x” que me fazia lembrar-lhe o Sr. K., ela se vingou de mim
como queria vingar-se dele, e me abandonou como se acreditara enganada e
abandonada por ele. Assim, atuou uma parte essencial de suas lembranças
e fantasias, em vez de reproduzi-las no tratamento. Naturalmente, não sei dizer
qual era esse “x”: desconfio que se relacionasse com dinheiro, ou com
ciúmes de uma outra paciente que, uma vez curada, continuara a manter relações
com minha família. Quando as transferências se deixam abarcar precocemente na
análise, o curso desta é opacificado e retardado, mas sua existência fica mais
assegurada contra as resistências repentinas e insuperáveis.
No
segundo sonho de Dora, a transferência é substituída por diversas alusões
claras. Quando ela o narrou, eu ainda não sabia (só fiquei sabendo dois dias
depois) que só nos restavam duas horas de trabalho, o mesmo tempo que
ela passara em frente à Madona Sistina (ver em [1]) e também, introduzindo uma
correção (duas horas em vez de duas horas e meia), o que lhe fora indicado como
a extensão do trajeto ao redor do lago, que ela não seguira (ver em
[1]). As aspirações e a espera no sonho, relacionadas com o rapaz na Alemanha e
provenientes da espera de que o Sr. K. pudesse casar-se com ela, já se haviam
expressado na transferência dias antes: o tratamento se prolongava muito e ela
não tinha paciência de esperar tanto, muito embora, nas primeiras semanas,
houvesse demonstrado discernimento suficiente para escutar, sem fazer tais
objeções, meu anúncio de que seu pleno restabelecimento talvez requeresse um
ano. A recusa a ser acompanhada e a preferência por ir sozinha, manifestas no
sonho e igualmente originárias da visita à galeria de Dresden, eram algo que eu
próprio deveria experimentar no dia marcado. Tinham sem dúvida esse sentido: “Já
que todos os homens são tão detestáveis, prefiro não me casar. Esta é minha vingança.”
Quando,
no decorrer do tratamento, as moções de crueldade e os motivos de vingança já
usados na vida do paciente para sustentar seus sintomas transferem-se para o
médico, antes que ele tenha tido tempo de afastá-los de sua pessoa
reconduzindo-os a suas origens, não surpreende que o estado do enfermo não
exiba a influência de seu empenho terapêutico. De que maneira pode o doente
vingar-se com mais eficácia do que demonstrando, em sua própria pessoa, quão
impotente e incapaz é o médico? Ainda assim, não me inclino a subestimar o
valor terapêutico nem mesmo de tratamentos tão fragmentários quanto foi o de
Dora.
Só
depois de decorridos quinze meses do término do tratamento e da redação deste
texto recebi notícias do estado de minha paciente e, por conseguinte, dos
resultados da terapia. Numa data nada indiferente, o dia 1º de abril - sabemos
que as indicações temporais nunca foram desprovidas de sentido para ela -, Dora
apresentou-se diante de mim para concluir sua história e pedir-me ajuda
novamente, mas uma olhadela para sua expressão revelou-me que ela não levava a
sério esse pedido. Nas quatro ou cinco semanas após deixar o tratamento ela
andou numa “atrapalhação”, segundo disse. Sobreveio então uma grande melhora:
os ataques rarearam e seu estado de ânimo se elevou. Em maio daquele ano morreu
um dos filhos do casal K., que sempre fora doentio. Ela aproveitou a
oportunidade dessa perda para fazer-lhes uma visita de condolências, e os K. a
receberam como se nada houvesse acontecido naqueles últimos três anos. Nessa
ocasião, ela se reconciliou com eles, vingou-se deles e levou seu assunto a uma
conclusão que lhe foi satisfatória. À mulher, disse: “Sei que você tem um relacionamento
com papai”, e esta não o negou. Quanto ao marido, provocou-o a confessar a cena
do lago antes contestada por ele, e levou ao pai essa notícia justificatória.
Desde então não retomou seu relacionamento com essa família.
Depois
disso, ela foi muito bem até meados de outubro, época em que lhe sobreveio
outro ataque de afonia que perdurou três semanas. Surpreso diante dessa
comunicação, perguntei-lhe se tinha havido algo que ensejasse isso e soube que
o ataque se seguira a um susto violento. Ela vira alguém ser atropelado por uma
carruagem. Por fim, saiu-se com a informação de que o acidente não atingira
outra pessoa senão o Sr. K. Deparara com ele na rua um dia, num lugar de
tráfego intenso; ele se quedara diante dela, como que desconcertado, e nesse estado
de distração fora derrubado por uma carruagem. A propósito, ela se
convencera de que ele havia escapado sem nenhum dano considerável. Ainda lhe
causava uma ligeira emoção ouvir falar no relacionamento de seu pai com a Sra.
K., mas ela já não se imiscuía nisso. Estava dedicada a seus estudos e não
pensava em se casar.
Viera
buscar minha ajuda por causa de uma nevralgia facial do lado direito, que agora
persistia dia e noite. - Desde quando? perguntei-lhe. “Exatamente há quatorze
dias.” Não pude deixar de sorrir, pois foi-me possível demonstrar-lhe que
justamente quatorze dias antes ela lera uma notícia referente a mim nos
jornais, o que ela confirmou (isso foi em 1902).
A
suposta nevralgia facial correspondia, portanto, a uma autopunição, ao remorso
pela bofetada que ela dera naquele dia no Sr. K. e pela transferência vingativa
daí feita para mim. Não sei que tipo de auxílio ela queria pedir-me, mas
prometi perdoá-la por ter-me privado da satisfação de livrá-la muito mais
radicalmente de seus padecimentos.
Passaram-se
novamente vários anos desde sua visita. A moça se casou, e por certo com aquele
rapaz que, se todos os indícios não me enganam, fora mencionado em suas
associações no início da análise do segundo sonho. Tal como o primeiro sonho
significara o afastamento do homem amado em direção ao pai, ou seja, a fuga da
vida para a doença, esse segundo sonho anunciou que ela se desprenderia do pai
e ficaria recuperada para a vida.
TRÊS ENSAIOS
SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE (1905)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DREI
ABHANDLUNGEN ZUR SEXUAL THEORIE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1905 Leipzig e Viena: Deuticke, ii + 83
págs.
1910 2ª Ed., Leipzig e Viena: Deuticke,
iii + 87 págs. (Com acréscimos)
1915 3ª Ed., Leipzig e Viena: Deuticke,
vi + 101 págs. (Com acréscimos)
1920 4ª Ed., Leipzig e Viena: Deuticke:
viii + l04 págs. (Com acréscimos)
1922 5ª Ed., Leipzig e Viena: Deuticke:
viii + l04 págs. (Sem alterações)
1924 G.S., 5, 3-119 (Com
acréscimos)
1925 6ª Ed., Leipzig e Viena: Deuticke,
120 págs. (= G S. 5)
1942 G.W., 5, 29-145 (Sem alterações)
1972
S.A., 5, pp. 37-145.
“Vorwort zur vierten Auflage”
1920 Int. Z. Psychoanal., 6, p. 247.
1920 Leipzig e Viena: Deuticke, pp. vii-viii.
1922 Leipzig e Viena: Deuticke, pp. vii-viii.
1924
G.S., 5, pág. 5.
1925
Leipzig e Viena: Deuticke, p. 5.
1942 G.W.,
5, pp. 31-2.
1972 S.A.,
5, pp. 45-6.
(b)
TRADUÇÕES EM INGLÊS:
Three Contributions to the Sexual Theory
1910
Nova York: Journal of Nerv. and Ment. Dis. Publ. Co. (Série de Monografias nº 7), x + 91 págs. (Trad.
de A.A. Brill; Introd. de J.J. Putnam.)
Three Contributions to the Theory of Sexc
1916 2ª Ed. da de 1910, acima, xi + 117
págs. (Com acréscimos)
1918 3ª
Ed., xii + 117 págs.
1930 4ª Ed., xiv + l04 págs. (Revisada)
1938 Basic Writings, 553-629
(Reedição da ed. de 1930, acima.)
Three Essays on the Theory of Sexuality
1949
Londres: Imago Publishing Co., 133 págs. (Trad.
de James Strachey.)
A
presente tradução [inglesa] é uma versão corrigida e ampliada da que se
publicou em 1949.
Os
Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, juntamente com A Interpretação dos Sonhos, figuram
sem dúvida como as contribuições mais significativas e originais de Freud para
o conhecimento humano. Não obstante, na forma em que costumamos ler esses
ensaios, é difícil avaliar a natureza exata de seu impacto quando da primeira
publicação. É que, no decorrer de edições sucessivas num período de vinte anos,
eles foram submetidos por seu autor a mais modificações e acréscimos do que
qualquer outro de seus escritos, salvo, talvez, pela própria Interpretação
dos Sonhos. Esta edição difere num importante aspecto de todas as que a
antecederam, seja em alemão ou em inglês. Embora se baseie na sexta edição
alemã de 1925, última a ser publicada durante a vida de Freud, ela indica, com
as respectivas datas, todas as alterações substanciais introduzidas na obra
desde sua primeira edição. Em todos os pontos em que se suprimiu ou modificou
grandemente o material nas edições posteriores, o trecho omitido ou a versão
anterior são fornecidos em notas de rodapé. Isso permitirá ao leitor ter uma
noção mais clara de como eram estes ensaios em sua forma original.
Provavelmente
causará surpresa, por exemplo, saber que a íntegra das seções sobre as teorias
sexuais infantis e sobre a organização pré-genital da libido (ambas no segundo
ensaio) só foi acrescentada em 1915, dez anos após a primeira edição do livro.
Esse mesmo ano trouxe também o acréscimo da seção sobre a teoria da libido, no
terceiro ensaio. Menos surpreendente é que os avanços da bioquímica tenham
tornado necessário (em 1920) reescrever o parágrafo sobre as bases químicas da
sexualidade. Nesse ponto, a rigor, a surpresa funciona mais no sentido inverso,
pois a versão original desse parágrafo, aqui impressa numa nota, mostra a
notável antevisão de Freud nesse aspecto e revela quão pouco se fez necessário
alterar suas concepções (ver em [1]).
Entretanto,
a despeito dos acréscimos consideráveis feitos ao livro após sua publicação
original, sua essência já estava presente em 1905, sendo mesmo possível
rastrear-lhe as origens até datas ainda mais remotas. A história completa do
interesse de Freud pelo assunto pode agora, graças à publicação da
correspondência com Fliess (1950a), ser pormenorizadamente acompanhada,
mas basta-nos aqui indicar seus contornos gerais. As observações clínicas da
importância dos fatores sexuais na causação da neurose de angústia e da
neurastenia, inicialmente, e das psiconeuroses, mais tarde, foram o que levou
Freud pela primeira vez a uma investigação geral do tema da sexualidade. Suas
primeiras abordagens, durante o início da década de 1890, partiram dos pontos
de vista da fisiologia e da química. Por exemplo, encontra-se uma hipótese
neurofisiológica sobre os processos de excitação e descarga sexuais na Seção
III de seu primeiro artigo sobre a neurose de angústia (1895b); um
notável diagrama ilustrando essa hipótese aparece no Rascunho G das cartas a
Fliess, aproximadamente na mesma época, mas já fora mencionado um ano antes (no
Rascunho D). A insistência de Freud nas bases químicas da sexualidade remonta
pelo menos a essa época (mas há também uma alusão ao tema no Rascunho D,
provavelmente datado da primavera de 1894). Nesse caso, Freud acreditava dever
muito às sugestões de Fliess, como fica demonstrado, entre outros pontos, em
suas associações ao famoso sonho da injeção de Irma, no verão de 1895 (A
Interpretação dos Sonhos, Capítulo II). Era também a Fliess que devia
algumas sugestões sobre o tema correlato da bissexualidade (ver em [1]), que
Freud mencionou numa carta de 6 de dezembro de 1896 (Carta 52) e que, mais
tarde, veio a considerar como um “fator decisivo” (ver em [1]), embora sua
opinião final sobre a atuação desse fator o tenha colocado em desacordo com
Fliess. É nessa mesma carta de fins de 1896 (Freud, l950a, Carta 52) que
encontramos a primeira referência às zonas erógenas (passíveis de estimulação
na infância, porém mais tarde sufocadas) e a seus vínculos com as perversões.
No início do mesmo ano (Rascunho K, de 1º de janeiro de 1896) - e aqui podemos
ver indícios de uma abordagem mais psicológica -, surge também uma discussão
sobre as forças recalcadoras, o asco, a vergonha e a moral.
Contudo,
embora tantos elementos da teoria de Freud sobre a sexualidade já estivessem em
sua mente por volta de 1896, sua pedra angular ainda estava por ser descoberta.
Desde os primórdios tinha havido uma suspeita de que os fatores casuais da
histeria remontavam à infância; há uma alusão a esse fato nos parágrafos
iniciais da “Comunicação Preliminar” de Breuer e Freud, de 1893. Por volta de
1895 (ver, por exemplo, a Parte II do “Projeto”, impressa como um apêndice à
correspondência com Fliess), Freud dispunha de uma explicação completa da
histeria, com base nos efeitos traumáticos da sedução sexual na primeira
infância. Durante todos esses anos anteriores a 1897, porém, a sexualidade
infantil era encarada como nada além de um fator latente, passível de vir à
luz, com resultados desastrosos, somente pela intervenção de um adulto. É
verdade que se poderia supor uma aparente exceção a isso a partir do contraste
traçado por Freud entre a causação da histeria e a da neurose obsessiva: a
primeira, afirmava ele, remontava a experiências sexuais passivas na infância,
ao passo que a segunda se originaria em experiências ativas. Mas Freud
deixa muito claro, em seu segundo ensaio sobre “As Neuropsicoses de Defesa”
(1896b), onde essa distinção é traçada, que as experiências ativas
subjacentes à neurose obsessiva são invariavelmente precedidas por
experiências passivas, donde, mais uma vez, a mobilização da sexualidade
infantil se deveria, em última análise, à interferência externa. Foi somente no
verao de 1897 que Freud se viu forçado a abandonar sua teoria da sedução.
Anunciou esse acontecimento em sua carta a Fliess de 21 de setembro (Carta 69),
e sua descoberta quase simultânea do complexo de Édipo, feita em sua
auto-análise (Cartas 70 e 71, de 3 e 15 de outubro), levou inevitavelmente ao
reconhecimento de que as moções sexuais atuavam normalmente nas crianças de
mais tenra idade, sem nenhuma necessidade de estimulação externa. Com essa
descoberta, a teoria sexual de Freud estava realmente completa.
Levou
alguns anos, porém, para que ele acatasse por inteiro sua própria descoberta.
Num trecho do ensaio sobre “A Sexualidade na Etiologia das Neuroses” (1898a),
por exemplo, ele se pronuncia ora a favor, ora contra ela. De um lado, afirma
que as crianças são “capazes de todas as funções sexuais psíquicas e de muitas
das somáticas” e que é errôneo supor que sua vida sexual só comece na
puberdade. De outro lado, entretanto, declara que “a organização e a evolução
da espécie humana buscam evitar qualquer atividade sexual considerável na
infância”, que as forças motoras sexuais dos seres humanos devem ser
armazenadas e somente liberadas na puberdade, e que isso explica por que as
experiências sexuais infantis estão fadadas a ser patogênicas. O importante,
prossegue ele, são os efeitos posteriores produzidos por tais experiências
na maturidade, graças ao desenvolvimento do aparelho sexual somático e psíquico
ocorrido no entretempo. Até mesmo na primeira edição de A Interpretação dos
Sonhos (1900a) vê-se um trecho curioso, ao final do Capítulo III
(ver em [1]), onde Freud comenta que temos “em alta conta a felicidade da
infância, por ser ela ainda inocente de desejos sexuais”. (Uma nota corretiva
foi acrescentada a esse trecho em 1911, por sugestão de Jung, segundo afirma
Ernest Jones.) Isso foi, sem dúvida, um remanescente de um rascunho inicial do
livro, pois em outros trechos (por exemplo, na discussão do complexo de Édipo
no Capítulo V) ele escreve, de maneira perfeitamente inequívoca, sobre a
existência de desejos sexuais mesmo nas crianças normais. E é evidente que, ao
redigir seu caso clínico de “Dora” (no início de 1901), já estavam firmemente
estabelecidas as linhas principais de sua teoria da sexualidade. (Ver em [1].)
Ainda
assim, porém, Freud não tinha pressa em publicar seus resultados. Concluída e
prestes a ser lançada A Interpretação dos Sonhos, em 11 de outubro de
1899 (Carta 121), escreveu ele a Fliess: “É possível que uma teoria da
sexualidade seja a sucessora imediata do livro dos sonhos.” E, decorridos três
meses, em 26 de janeiro de 1900 (Carta 128): “Estou colhendo material para a
teoria sexual e esperando que alguma centelha inflame o material já acumulado.”
Mas a centelha demoraria muito a surgir. Salvo pelo pequeno ensaio Sobre os
Sonhos e pela Psicopatologia da Vida Cotidiana, ambos lançados antes
do outono de 1901, Freud nada publicou de importante nos cinco anos que se
seguiram.
E então,
repentinamente, em 1905, lançou três obras fundamentais: seu livro sobre O
Chiste, os Três Ensaios e o caso clínico de “Dora”. É certo que este
último fora escrito, em sua maior parte, quatro anos antes (ver a partir de
[1]), sendo publicado em outubro e novembro de 1905. As outras duas obras foram
lançadas quase simultaneamente alguns meses antes, embora se ignorem as datas
exatas (ver uma discussão mais extensa a esse respeito no Prefácio do Editor ao
livro sobre o chiste (1905c), em [1]).
Nas
edições alemãs, as seções só aparecem numeradas no primeiro ensaio, e mesmo
neste, a rigor, antes de 1924, só eram numeradas até a metade do texto. Para
facilitar as referências, estendemos aqui a numeração das seções ao segundo e
terceiro ensaios.
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
O autor,
que não se deixa enganar sobre as lacunas e obscuridades deste pequeno escrito,
ainda assim resistiu à tentação de incorporar-lhe os resultados das
investigações dos últimos cinco anos, por não querer destruir seu caráter de
documento unitário. Por isso reproduz o texto original com alterações míninas e
se contenta em acrescentar algumas notas de rodapé, que se distinguem das
antigas por levarem um asterisco. Ademais, é seu fervoroso desejo que este
livro envelheça rapidamente, obtida uma aceitação universal para o que outrora
trouxe de novo e substituídas as imperfeições que contém por teses mais
corretas.
Viena,
dezembro de 1909.
PREFÁCIO À TERCEIRA EDIÇÃO
Depois
de observar por um decênio a recepção e os efeitos deste livro, cabe-me dotar
esta terceira edição de algumas observações prévias destinadas a corrigir
mal-entendidos e expectativas irrealizáveis em relação a ele. É preciso frisar,
acima de tudo, que a exposição aqui encontrada parte inteiramente da
experiência médica cotidiana, à qual os resultados da investigação
psicanalítica pretendem trazer aprofundamento e relevância científica. Os Tres
Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade não podem conter nada além daquilo
que a psicanálise precisa supor ou permite confirmar. Exclui-se, portanto, a
possibilidade de que algum dia se ampliem a ponto de constituir uma “teoria
sexual”, e é compreensível que não tomem posição acerca de muitos problemas
importantes da vida sexual. Mas nem por isso se deve acreditar que tais
capítulos omitidos desse grande tema sejam desconhecidos do autor, ou que este
os tenha desprezado por considerá-los secundários.
A
subordinação deste escrito às experiências psicanalíticas, que levaram a sua
redação, mostra-se ainda não apenas na escolha do material, como também em sua
ordenação. Ao longo de todo ele observa-se uma certa seqüência de instâncias,
dá-se prioridade aos fatores acidentais, deixam-se em segundo plano os fatores
disposicionais, e o desenvolvimento ontogenético é considerado antes do
filogenético. É que o acidental desempenha na análise o papel preponderante,
sendo esta dominada por ele quase por completo; o disposicional só vem à luz
por trás dele, como algo despertado pelo vivenciar, mas cuja apreciação
ultrapassa amplamente o campo de trabalho da psicanálise.
Uma
proporção semelhante domina a relação entre a ontogênese e a filogênese. A
ontogênese pode ser vista como uma repetição da filogênese, na medida em que
esta não seja modificada por uma vivência mais recente. A predisposição
filogenética faz-se notar por trás do processo ontogenético. No fundo, porém, a
predisposição é justamente o precipitado de uma vivência prévia da espécie, à
qual se vem agregar a experiência mais nova do indivíduo como soma dos fatores
acidentais.
Junto a
sua total dependência da investigação psicanalítica, devo destacar, como
característica desse meu trabalho, sua deliberada dependência da investigação
biológica. Evitei cuidadosamente introduzir expectativas científicas
provenientes da biologia sexual geral, ou da biologia das espécies animais em
particular, no estudo da função sexual do ser humano que nos é possibilitado
pela técnica da psicanálise. A rigor, meu objetivo foi sondar o quanto se pode
apurar sobre a biologia da vida sexual humana com os meios acessíveis à
investigação psicológica; era-me lícito assinalar os pontos de contato e
concordância resultantes dessa investigação, mas não havia por que me
desconcertar com o fato de o método psicanalítico, em muitos pontos
importantes, levar a opiniões e resultados consideravelmente diversos dos de
base meramente biológica.
Introduzi
nesta terceira edição um número abundante de inserções, mas renunciei a
identificá-las, como na edição anterior, mediante algum sinal particular. O
trabalho científico em nosso campo teve seu progresso lentificado nos últimos
tempos, mas era indispensável uma certa complementação deste escrito caso se
pretendesse mantê-lo em contato com a literatura psicanalítica mais recente.
Viena, outubro de 1914.
PREFÁCIO À QUARTA EDIÇÃO
Dissipadas
as correntes da guerra, pode-se verificar com satisfação que o interesse pela
psicanálise permanece ileso no mundo em geral, Mas nem todas as partes da doutrina
tiveram o mesmo destino. As colocações e constatações puramente psicológicas da
psicanálise sobre o inconsciente, o recalcamento, o conflito que leva à doença,
o lucro extraído da doença, os mecanismos da formação de sintomas etc., gozam
de crescente reconhecimento e são consideradas até mesmo por aqueles que em
princípio as contestam. Mas a parte da doutrina que faz fronteira com a
biologia, cujas bases são fornecidas neste pequeno escrito, continua a
enfrentar um dissenso indiminuto, e as próprias pessoas que por algum tempo se
ocuparam intensamente da psicanálise foram movidas a abandoná-la para abraçar
novas concepções, destinadas a restringir mais uma vez o papel do fator sexual
na vida anímica normal e patológica.
Ainda
assim, não posso decidir-me pela suposição de que essa parte da doutrina
psicanalítica possa afastar-se muito mais que as outras da realidade apurada. A
memória e o reexame constantemente reiterado dizem-me que ela brotou de uma
observação igualmente esmerada e isenta de expectativas; ademais, o
esclarecimento dessa dissociação percebida no reconhecimento público não
apresenta nenhuma dificuldade. Em primeiro lugar, os primórdios aqui descritos
da vida sexual humana só podem ser confirmados por investigadores que tenham
paciência e habilidade técnica suficientes para reconduzir a análise até os
primeiros anos da infância do paciente. É freqüente, ademais, não haver
possibilidade disso, porquanto a prática médica exige que se despache com mais
rapidez, aparentemente, o caso patológico. Salvo pelos médicos que exercem a
psicanálise, entretanto, ninguém pode ter acesso algum a esse campo, nem
qualquer possibilidade de formar por si um juízo que não seja influenciado por
suas próprias aversões e preconceitos. Soubessem os homens aprender através da
observação direta das crianças, estes três ensaios poderiam não ter sido
escritos.
Mas
convém lembrar ainda que parte do conteúdo deste escrito - a saber, sua
insistência na importância da vida sexual para todas as realizações humanas e a
ampliação aqui ensaiada do conceito de sexualidade - tem constituído, desde
sempre, o mais forte motivo para a resistência que se opõe à psicanálise. No
afã de encontrar tópicos grandiloqüentes, chegou-se até a falar no
“pan-sexualismo” da psicanálise e a fazer a esta a absurda censura de que ela
explicaria “tudo” a partir da sexualidade. Só é possível assombrar-se com isso
quando se esquece quão confuso e distraído se pode ficar em decorrência dos
fatores afetivos. Já faz um bom tempo que o filósofo Arthur Schopenhauer
mostrou aos homens em que medida seus feitos e interesses são determinados por
aspirações sexuais - o sentido corriqueiro da expressão -, e parece incrível
que todo um mundo de leitores tenha conseguido banir de sua mente, de maneira
tão completa, uma advertência tão impressionante! E quanto à “ampliação” do
conceito de sexualidade, que a análise das crianças e dos chamados perversos
tornou necessária, todos aqueles que desde seu ponto de vista superior olham
desdenhosamente para a psicanálise deveriam lembrar-se de quanto essa
sexualidade ampliada da psicanálise se aproxima do Eros do divino
Platão. (Cf. Nachmansohn, 1915.)
Viena,
maio de 1920.
AS ABERRAÇÕES SEXUAIS
O fato
da existência de necessidades sexuais no homem e no animal expressa-se na
biologia pelo pressuposto de uma “pulsão sexual”. Segue-se nisso a analogia com
a pulsão de nutrição: a fome. Falta à linguagem vulgar [no caso da pulsão
sexual] uma designação equivalente à palavra “fome”; a ciência vale-se, para
isso, de “libido”.
A
opinião popular faz para si representações bem definidas da natureza e das
características dessa pulsão sexual. Ela estaria ausente na infância, far-se-ia
sentir na época e em conexão com o processo de maturação da puberdade, seria
exteriorizada nas manifestações de atração irresistível que um sexo exerce
sobre o outro, e seu objetivo seria a união sexual, ou pelo menos os atos que
levassem nessa direção. Mas temos plena razão para ver nesses dados uma imagem
muito infiel da realidade; olhando-os mais de perto, constata-se que estão
repletos de erros, imprecisões e conclusões apressadas.
Introduzamos
aqui dois termos: chamemos de objeto sexual a pessoa de quem provém a
atração sexual, e de alvo sexual a ação para a qual a pulsão impele.
Assim fazendo, a observação cientificamente esquadrinhada mostrará um grande
número de desvios em ambos, o objeto sexual e o alvo sexual, e a relação destes
com a suposta norma exige uma investigação minuciosa.
(1)
DESVIOS COM RESPElTO AO OBJETO SEXUAL
A teoria
popular sobre a pulsão sexual tem seu mais belo equivalente na fábula poética
da divisão do ser humano em duas metades - homem e mulher - que aspiram a
unir-se de novo no amor. Por isso causa grande surpresa tomar conhecimento de
que há homens cujo objeto sexual não é a mulher, mas o homem, e mulheres para
quem não o homem, e sim a mulher, representa o objeto sexual. Diz-se dessas
pessoas que são “de sexo contrário”, ou melhor, “invertidas”, e chama-se o fato
de inversão. O número de tais pessoas é bastante considerável, embora
haja dificuldades em apurá-lo com precisão.
(A) A
INVERSÃO
COMPORTAMENTO
DOS INVERTIDOS
As
pessoas em questão comportam-se de maneira muito diversificada em vários
aspectos.
(a) Podem ser invertidos absolutos,
ou seja, seu objeto sexual só pode ser do mesmo sexo, enquanto o sexo oposto
nunca é para eles objeto de anseio sexual, mas antes os deixa frios ou até lhes
desperta aversão sexual. Quando se trata de homens, essa aversão os incapacita
de praticarem o ato sexual normal, ou então não extraem dessa prática nenhum
gozo.
(b) Podem ser invertidos anfígenos
(hermafroditas sexuais), ou seja, seu objeto sexual tanto pode pertencer ao
mesmo sexo quanto ao outro; falta à inversão, portanto, o caráter de
exclusividade.
(c) Podem ser invertidos ocasionais,
ou seja, em certas condições externas, dentre as quais destacam-se a
inacessibilidade do objeto sexual normal e a imitação, elas podem tomar como
objeto sexual uma pessoa do mesmo sexo e encontrar satisfação no ato sexual com
ela.
Os
invertidos mostram ainda um comportamento variado no juízo que fazem da
peculiaridade de sua pulsão sexual. Alguns aceitam a inversão como algo
natural, tal como os normais aceitam a orientação de sua libido, e defendem
energicamente sua igualdade de direitos com os normais. Outros, porém,
rebelam-se contra o fato de sua inversão e a sentem como uma compulsão
patológica.
Outras
variações concernem às relações temporais. O traço da inversão pode vir de
longa data no indivíduo, até onde sua memória consegue alcançar, ou só se ter
feito notar em determinada época, antes ou depois da puberdade. Esse caráter
pode conservar-se por toda a vida, ou ser temporariamente suspenso, ou ainda
constituir um episódio no caminho para o desenvolvimento normal; e pode até
exteriorizar-se pela primeira vez em época posterior da vida, após um longo
período de atividade sexual normal. Observou-se também uma oscilação periódica
entre o objeto sexual normal e o invertido. Particularmente interessantes são
os casos em que a libido se altera no sentido da inversão depois de se ter uma
experiência penosa com o objeto sexual normal.
Em
geral, essas diferentes séries de variações coexistem independentemente umas
das outras. Em sua forma mais extrema, talvez se possa supor regularmente que a
inversão existiu desde época muito prematura e que a pessoa se sente em
consonância com sua peculiaridade.
Muitos
autores se recusariam a reunir num só conjunto os casos aqui enumerados e
prefeririam frisar as diferenças em vez das semelhanças entre esses grupos, o
que se prende a sua maneira favorita de encarar a inversão. No entanto, por
mais legítimas que sejam essas distinções, é impossível desconhecer que todos
os graus intermediários são abundantemente encontrados, de modo que o estabelecimento
de séries como que se impõe por si só.
CONCEPÇÃO
DA INVERSÃO
A
primeira apreciação da inversão consistiu em concebê-la como um sinal inato de
degeneração nervosa, e estava em consonância com o fato de os observadores
médicos terem deparado com ela pela primeira vez em doentes nervosos ou pessoas
que davam a impressão de sê-lo. Essa caracterização contém dois elementos que
devem ser apreciados separadamente: o caráter inato e a degeneração.
DEGENERAÇÃO
A
degeneração está exposta às objeções que se levantam, em geral, contra o uso
indiscriminado dessa palavra. Tornou-se costume imputar à degeneração todos os
tipos de manifestação patológica que não sejam de origem diretamente traumática
ou infecciosa. A classificação dos degenerados feita por Magnan faz com que nem
mesmo a mais primorosa conformação geral da função nervosa fique excluída da
aplicabilidade do conceito de degeneração. Nessas circunstâncias, pode-se
indagar que benefício e que novo conteúdo possui em geral o juízo
“degeneração”. Parece mais oportuno falar em degeneração apenas quando:
(1)
houver uma conjugação de muitos desvios graves em relação à norma;
(2) a
capacidade de funcionamento e de sobrevivência parecer em geral gravemente
prejudicada.
Vários
fatores permitem ver que os invertidos não são degenerados nesse sentido
legítimo da palavra:
(1)
Encontra-se a inversão em pessoas que não exibem nenhum outro desvio grave da
norma;
(2) Do
mesmo modo, encontramo-la em pessoas cuja eficiência não está prejudicada e que
inclusive se destacam por um desenvolvimento intelectual e uma cultura ética
particularmente elevados.
(3) Se
abstrairmos os pacientes encontrados em nossa experiência médica e procurarmos
abarcar um horizonte mais amplo, depararemos em duas direções com fatos que
impedem que se conceba a inversão como um sinal de degeneração:
(a) É preciso considerar que nos povos
antigos, no auge de sua cultura, a inversão era um fenômeno freqüente, quase
que uma instituição dotada de importantes funções.
(b) Ela é extremamente difundida em muitos
povos selvagens e primitivos, ao passo que o conceito de degeneração costuma
restringir-se à civilização elevada (cf. I. Bloch); e mesmo entre os povos
civilizados da Europa, o clima e a raça exercem a mais poderosa influência
sobre a disseminação e o juízo que se faz da inversão.
CARÁTER
INATO
Como é
compreensível, o caráter inato só é alegado no tocante à primeira e mais
extrema classe dos invertidos, e na verdade com base na asseveração dessas
pessoas de que em nenhum momento de sua vida mostrou-se a elas outra orientação
de sua pulsão sexual. Já a existência das duas outras classes, especialmente da
terceira [os invertidos “ocasionais”], dificilmente se compatibiliza com a
concepção de um caráter inato. Por isso os que sustentam essa opinião tendem a
separar o grupo dos invertidos absolutos de todos os demais, o que tem como
conseqüência a renúncia a uma concepção universalmente válida da inversão.
Assim, a inversão teria um caráter inato numa série de casos, enquanto noutros
poderia ter-se originado de outra maneira.
O oposto
disso é a concepção alternativa de que a inversão é um caráter adquirido
da pulsão sexual. Ela se apóia nas seguintes considerações:
(1) Na
vida de muitos invertidos (mesmo absolutos) pode-se demonstrar a influência de
uma impressão sexual prematura cuja conseqüência duradoura é representada pela
inclinação homossexual.
(2) Na
vida de muitos outros é possível indicar as influências externas favorecedoras
e inibidoras que levaram, em época mais prematura ou mais tardia, à fixação da
inversão (relacionamentos exclusivos com o mesmo sexo, companheirismo na
guerra, detenção em presídios, os riscos da relação heterossexual, celibato,
fraqueza sexual etc.).
(3) A
inversão pode ser eliminada pela sugestão hipnótica, o que seria assombroso
numa característica inata.
Dentro
dessa perspectiva, pode-se até contestar a própria existência de uma inversão
inata. É possível objetar (cf. Havelock Ellis [1915]) que um exame mais
rigoroso dos casos reivindicados em prol da inversão inata provavelmente também
traria à luz uma vivência da primeira infância que foi determinante para a
orientação da libido. Essa vivência simplesmente não se teria preservado na
memória consciente da pessoa, mas seria possível trazê-la de volta à lembrança
mediante a influência apropriada. Segundo esses autores, a inversão só poderia
ser qualificada como uma variação freqüente da pulsão sexual, passível de ser
determinada por uma quantidade de circunstâncias externas de vida.
Mas a aparente
certeza assim adquirida chega ao fim através da observação contrária de que
muitas pessoas ficam sujeitas às mesmas influências sexuais (inclusive na
meninice: sedução, masturbação mútua), sem por isso se tornarem invertidas ou
assim continuarem permanentemente. Somos portanto impelidos à suposição de que
a alternativa inato/adquirido é incompleta, ou então não abarca todas as
situações presentes na inversão.
EXPLICAÇÃO
DA INVERSÃO
Nem a
hipótese de que a inversão é inata, nem tampouco a conjectura alternativa de
que é adquirida explicam sua natureza. No primeiro caso, é preciso dizer o que
há nela de inato, para que não se concorde com a explicação rudimentar de que a
pessoa traz consigo, em caráter inato, o vínculo da pulsão sexual com determinado
objeto sexual. No outro caso, cabe perguntar se as múltiplas influências
acidentais bastariam para explicar a aquisição da inversão, sem necessidade de
que algo no indivíduo fosse ao encontro delas. A negação deste último fator,
segundo nossas colocações anteriores, é inadmissível.
O
RECURSO À BISSEXUALIDADE
Desde
Lydston [1889], Kiernan [1888] e Chevalier [1893] tem-se recorrido, para
esclarecer a possibilidade de uma inversão sexual, a uma série de idéias que
contém uma nova contradição das opiniões populares. Estas admitem que o ser
humano ou é homem ou é mulher. A ciência, porém, conhece casos em que os
caracteres sexuais parecem confusos e é portanto difícil determinar o sexo,
antes de mais nada no campo anatômico. A genitália dessas pessoas combina
caracteres masculinos e femininos (hermafroditismo). Em casos raros, os dois
tipos de aparelho sexual coexistem plenamente desenvolvidos (hermafroditismo
verdadeiro), porém com muito mais freqüência acham-se ambos atrofiados.
Mas a
importância dessas anormalidades está em que elas facilitam de maneira
inesperada a compreensão da formação normal. É que certo grau de
hermafroditismo anatômico constitui a norma; em nenhum indivíduo masculino ou
feminino de conformação normal faltam vestígios do aparelho do sexo oposto, que
persistiram sem nenhuma função como órgãos rudimentares, ou que se modificaram
para tomar a seu encargo outras funções.
A
concepção resultante desses fatos anatômicos conhecidos de longa data é a de
uma predisposição originariamente bissexual, que, no curso do desenvolvimento,
vai-se transformando em monossexualidade, com resíduos ínfimos do sexo
atrofiado.
Era
sugestivo transpor essa concepção para o campo psíquico e explicar a inversão
em todas as suas variedades como a expressão de um hermafroditismo psíquico. E
para resolver a questão restaria apenas constatar uma coincidência regular da
inversão com os sinais anímicos e somáticos do hermafroditismo.
Só que
essa expectativa não se realizou. Não é possível imaginar relações tão estreitas
entre o suposto hibridismo psíquico e o hibridismo anatômico comprovável. O que
amiúde se constata nos invertidos é uma redução generalizada da pulsão sexual
(cf. Havelock Ellis [1915]) e uma ligeira atrofia anatômica dos órgãos. Amiúde,
mas de modo algum regularmente ou mesmo predominantemente. Portanto, cabe
reconhecer que a inversão e o hermafroditismo somático são, no conjunto,
independentes entre si.
Tem-se
ainda atribuído grande importância aos chamados caracteres sexuais secundários
e terciários e a sua freqüente presença acentuada nos invertidos (cf. Havelock
Ellis [1915]). Também nisso há muito de acerto, mas não se deve esquecer que em
geral os caracteres sexuais secundários e terciários de um sexo aparecem com
muitíssima freqüência no outro; são, portanto, indícios de hermafroditismo, mas
nem por isso revela-se uma mudança do objeto sexual no sentido da inversão.
O
hermafroditismo psíquico ganharia corpo se, com a inversão do objeto sexual,
houvesse em paralelo ao menos uma mudança das demais qualidades anímicas,
pulsões e traços de caráter para a variante típica do sexo oposto. Mas só se
pode esperar tal inversão do caráter com alguma regularidade nas mulheres
invertidas, pois nos homens a mais plena virilidade anímica é compatível com a inversão.
A persistir na colocação de um hermafroditismo psíquico, é preciso acrescentar
que suas manifestações nos diversos campos permitem identificar apenas um
ínfimo condicionamento recíproco. O mesmo se aplica, aliás, ao hibridismo
somático; segundo Halban (1903), também as atrofias de órgãos específicos e os
caracteres sexuais secundários aparecem com bastante independência uns dos
outros.
A
doutrina da bissexualidade foi exprimida em sua mais crua forma por um
porta-voz dos invertidos masculinos: “um cérebro feminino num corpo masculino”.
Entretanto, ignoramos quais seriam as características de um “cérebro feminino”.
A substituição do problema psicológico pelo anatômico é tão inútil quanto
injustificada. A tentativa de explicação de Krafft-Ebing parece concebida de
maneira mais exata que a de Ulrichs, embora em essência não difira dela;
segundo Krafft-Ebing [1895, 5], a disposição bissexual dota o indivíduo tanto
de centros cerebrais masculinos e femininos quanto de órgãos sexuais somáticos.
Esses centros começam a desenvolver-se na época da puberdade, na maioria das
vezes sob a influência das glândulas sexuais, que independem deles na
disposição [originária]. Mas a esses “centros” masculinos e femininos aplica-se
o mesmo que dissemos sobre os cérebros masculinos e femininos, e, a propósito,
nem sequer sabemos se cabe presumir, para as funções sexuais, áreas cerebrais
delimitadas (“centros”) como as que supomos, por exemplo, para a fala.
Ainda
assim, duas idéias permanecem de pé após essas discussões: de algum modo, há
uma disposição bissexual implicada na inversão, embora não saibamos em que
consiste essa disposição além da formação anatômica; e lida-se também com
perturbações que afetam a pulsão sexual em seu desenvolvimento.
OBJETO
SEXUAL DOS INVERTIDOS
A teoria
do hermafroditismo psíquico pressupõe que o objeto sexual dos invertidos seja o
oposto do normal. O homem invertido sucumbiria, como a mulher, ao encanto
proveniente dos atributos masculinos do corpo e da alma; sentir-se-ia como uma
mulher e buscaria o homem.
No
entanto, por melhor que isso se aplique a toda uma série de invertidos, ainda
está longe de revelar uma característica universal da inversão. Não há dúvida
alguma de que uma grande parcela dos invertidos masculinos preserva o caráter psíquico
da virilidade, traz relativamente poucos caracteres secundários do sexo oposto
e, com efeito, busca em seu objeto sexual traços psíquicos femininos. Não fosse
assim, seria incompreensível o fato de a prostituição masculina, que hoje como
na Antigüidade se oferece aos invertidos, copiar as mulheres em todas as
exteriorizações da indumentária e do porte; tal imitação, de outro modo,
ofenderia necessariamente o ideal dos invertidos. Nos gregos, entre os quais os
homens mais viris figuravam entre os invertidos, está claro que o que inflamava
o amor do homem não era o caráter masculino do efebo, mas sua semelhança
física com a mulher, bem como seus atributos anímicos femininos: a timidez, o
recato e a necessidade de ensinamentos e assistência. Mal se tornava homem, o
efebo deixava de ser um objeto sexual para o homem, e talvez ele próprio se
transformasse num amante de efebos. Nesses casos, portanto, como em muitos
outros, o objeto sexual não é do mesmo sexo, mas uma conjugação dos caracteres
de ambos os sexos, como que um compromisso entre uma moção que anseia pelo
homem e outra que anseia pela mulher, com a condição imprescindível da
masculinidade do corpo (da genitália): é, por assim dizer, o reflexo especular
da própria natureza bissexual.
A
situação é menos ambígua nas mulheres, entre as quais as invertidas ativas
exibem com particular freqüência os caracteres somáticos e anímicos do homem e
anseiam pela feminilidade em seu objeto sexual, muito embora, também nesse
caso, um conhecimento mais estreito pudesse revelar uma variedade maior.
ALVO
SEXUAL DOS INVERTIDOS
O fato
importante a ser retido é que de modo algum se pode chamar de uniforme a meta
sexual dos invertidos. Nos homens, a relação sexual per anum não
coincide em absoluto com a inversão; a masturbação é com igual freqüência seu
alvo exclusivo, e as restrições ao alvo sexual - a ponto de ele ser um mero
extravasamento da emoção - são aqui ainda mais comuns do que no amor
heterossexual. Também entre as mulheres invertidas são múltiplos os alvos
sexuais, parecendo privilegiado entre elas o contato com a mucosa bucal.
CONCLUSÃO
É
verdade que nos vemos impossibilitados de esclarecer satisfatoriamente a origem
da inversão a partir do material apresentado até agora, mas podemos notar que
nesta indagação chegamos a um conhecimento que talvez se revele mais importante
para nós do que a solução da tarefa acima. Chamou-nos a atenção que
imaginávamos como demasiadamente íntima a ligação entre a pulsão sexual e o
objeto sexual. A experiência obtida nos casos considerados anormais nos ensina
que, neles, há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma solda, que
corríamos o risco de não ver em conseqüência da uniformidade do quadro normal,
em que a pulsão parece trazer consigo o objeto. Assim, somos instruídos a
afrouxar o vínculo que existe em nossos pensamentos entre a pulsão e o objeto.
É provável que, de início, a pulsão sexual seja independente de seu objeto, e
tampouco deve ela sua origem aos encantos deste.
(B)
ANlMAlS E PESSOAS SEXUALMENTE IMATURAS COMO OBJETOS SEXUAIS
Enquanto
as pessoas cujos objetos sexuais não pertencem ao sexo normalmente apropriado,
ou seja, os invertidos, afiguram-se ao observador como uma coletânea de
indivíduos talvez bastante válidos em outros aspectos, os casos em que se
escolhem pessoas sexualmente imaturas (crianças) como objetos sexuais são desde
logo encarados como aberrações esporádicas. Só excepcionalmente as crianças são
objetos sexuais exclusivos; em geral, passam a desempenhar esse papel quando um
indivíduo covarde ou impotente presta-se a usá-las como substituto, ou quando
uma pulsão urgente (impreterível) não pode apropriar-se, no momento, de nenhum
objeto mais adequado. Ainda assim, é esclarecedor sobre a natureza da pulsão
sexual o fato de ela admitir tão ampla variação e tamanho rebaixamento de seu
objeto, coisa que a fome, muito mais energicamente agarrada a seu objeto, só
permitiria nos casos mais extremos. Uma observação similar é válida quanto à
relação sexual com animais, que não é nada rara, sobretudo entre os camponeses,
e onde a atração sexual parece ultrapassar a barreira da espécie.
Por
motivos estéticos, de bom grado se atribuiriam estas e outras aberrações graves
da pulsão sexual à loucura, mas isso não é possível. A experiência ensina que
não se observam entre os loucos quaisquer perturbações da pulsão sexual
diferentes das encontradas entre os sadios, bem como em raças e classes
inteiras. Assim, com a mais insólita freqüência encontra-se o abuso sexual
contra as crianças entre os professores e as pessoas que cuidam de crianças,
simplesmente porque a eles se oferece a melhor oportunidade para isso. Os
loucos apenas exibem tal aberração em grau intensificado, ou então, o que é
particularmente significativo, elevado a uma prática exclusiva e substituindo a
satisfação sexual normal.
Essa
curiosíssima relação entre as variações sexuais e a escala que vai da saúde à
perturbação mental dá o que pensar. Eu opinaria que este fato, ainda por
esclarecer, seria uma indicação de que as moções da vida sexual, mesmo
normalmente, encontram-se entre as menos dominadas pelas atividades anímicas
superiores. Segundo minha experiência, quem é mentalmente anormal em algum
outro aspecto, seja em termos sociais ou éticos, habitualmente também o é em
sua vida sexual. Mas muitos são os anormais na vida sexual que, em todos os
outros pontos, correspondem à média, e que passaram pessoalmente pelo
desenvolvimento cultural humano, cujo ponto mais fraco continua a ser a
sexualidade.
Ora,
como resultado mais genérico dessas discussões extrairíamos o entendimento de
que, numa grande quantidade de condições e num número surpreendentemente
elevado de indivíduos, a índole e o valor do objeto sexual passam para segundo
plano. O essencial e constante na pulsão sexual é alguma outra coisa.
(2)
DESVIOS COM RESPEITO AO ALVO SEXUAL
Considera-se
como alvo sexual normal a união dos genitais no ato designado como coito, que
leva à descarga da tensão sexual e à extinção temporária da pulsão sexual (uma
satisfação análoga à saciação da fome). Todavia, mesmo no processo sexual mais
normal reconhecem-se os rudimentos daquilo que, se desenvolvido, levaria às
aberrações descritas como perversões. É que certas relações
intermediárias com o objeto sexual (a caminho do coito), tais como apalpá-lo e
contemplá-lo, são reconhecidas como alvos sexuais preliminares. Essas
atividades, de um lado, trazem prazer em si mesmas, e de outro, intensificam a
excitação que deve perdurar até que se alcance o alvo sexual definitivo. Além
disso, a um desses contatos, o das mucosas labiais das duas pessoas - o beijo -
, atribuiu-se em muitos povos (dentre eles os mais altamente civilizados) um
elevado valor sexual, apesar de as partes do corpo nele implicadas não
pertencerem ao aparelho sexual, mas constituírem a entrada do tubo digestivo.
Aí estão, portanto, fatores que permitem ligar as perversões à vida sexual
normal e que também são aplicáveis à classificação delas. As perversões são ou (a)
transgressões anatômicas quanto às regiões do corpo destinadas à união sexual,
ou (b) demoras nas relações intermediárias com o objeto sexual, que
normalmente seriam atravessadas com rapidez a caminho do alvo sexual final.
(A)
TRANSGRESSÕES ANATÔMICAS
SUPERVALORIZAÇÃO
DO OBJETO SEXUAL
Somente
em raríssimos casos a valorização psíquica com que é aquinhoado o objeto
sexual, enquanto alvo desejado da pulsão sexual, restringe-se a sua genitália;
ela se propaga, antes, por todo o seu corpo, e tende a abranger todas as
sensações provenientes do objeto sexual. A mesma supervalorização irradia-se
pelo campo psíquico e se manifesta como uma cegueira lógica (enfraquecimento do
juízo) perante as realizações anímicas e as perfeições do objeto sexual, e
também como uma submissão crédula aos juízos dele provenientes. Assim é que a
credulidade do amor passa a ser uma fonte importante, se não a fonte originária
da autoridade.
Ora, é
essa supervalorização sexual que não suporta bem a restrição do alvo sexual à
união dos órgãos genitais propriamente ditos e que contribui para elevar as
atividades ligadas a outras partes do corpo à condição de alvos sexuais.
A
importância desse fator da supervalorização sexual pode ser estudada em
melhores condições no homem, cuja vida amorosa é a única a ter-se tornado
acessível à investigação, enquanto a da mulher, em parte por causa da atrofia
cultural, em parte por sua discrição e insinceridade convencionais, permanece
envolta numa obscuridade ainda impenetrável.
USO
SEXUAL DA MUCOSA DOS LÁBIOS E DA BOCA
O uso da
boca como órgão sexual é considerado como perversão quando os lábios (língua)
de uma pessoa entram em contato com a genitália de outra, mas não quando ambas
colocam em contato a mucosa labial. Nesta exceção reside o ponto de ligação com
o normal. Quem, por considerá-las perversões, detesta as outras práticas,
certamente usuais desde os primórdios da humanidade, cede nisso a um claro sentimento
de asco que o resguarda de aceitar tal alvo sexual. Mas os limites desse
asco são, muitas vezes, puramente convencionais; aquele que beija com ardor os
lábios de uma bela jovem talvez usasse com asco a escova de dentes dela, embora
não tenha nenhuma razão para supor que sua própria cavidade bucal seja mais
limpa que a da moça. Chama a atenção, aqui, o fator do asco, que estorva a
supervalorização libidinosa do objeto sexual, mas que, por sua vez, pode ser
vencido pela libido. Poder-se-ia ver no asco uma das forças que levaram à
restrição do alvo sexual. Em geral, estas se detêm ante a genitália. Mas não há
dúvida alguma de que também os genitais do sexo oposto, em si mesmos, podem
constituir objetos de asco, e de que esse comportamento é uma das
características de todos os histéricos (sobretudo as mulheres). A força da
pulsão sexual gosta de se exercer na dominação desse asco. (Ver a partir de
[1].)
USO
SEXUAL DO ORIFÍCIO ANAL
No que
concerne ao ânus, reconhece-se com clareza ainda maior do que nos casos
anteriores que é a repugnância que apõe nesse alvo sexual o selo da perversão.
Mas que eu não seja acusado de partidarismo por observar que a fundamentação
desse asco no fato de tal parte do corpo servir à excreção e entrar em contato
com o asqueroso em si - os excrementos - não é muito mais convincente do que a
razão fornecida pelas moças histéricas para explicar seu asco ante o órgão
genital masculino: que ele serve à micção.
O papel
sexual da mucosa do ânus de modo algum se restringe à relação sexual entre
homens, nem tampouco a predileção por ela é característica da sensibilidade dos
invertidos. Parece, ao contrário, que o paedicatio do homem deve seu
papel à analogia com o ato praticado com a mulher, ao passo que a masturbação
recíproca é o alvo sexual mais facilmente encontrado na relação sexual dos
invertidos.
SIGNIFICAÇÃO
DE OUTRAS PARTES DO CORPO
A
propagação do interesse sexual para outras partes do corpo, com todas as suas
variações em princípio nada nos oferece de novo; nada acrescenta ao
conhecimento da pulsão sexual, que nisso não faz senão proclamar sua intenção
de se apoderar do objeto sexual em todos os sentidos. Mas ao lado da
supervalorização sexual apresenta-se, nas transgressões anatômicas, um segundo
fator que é alheio ao conhecimento popular. Certos lugares do corpo, como as
mucosas bucal e anal, que aparecem repetidamente nessas práticas, como que
reivindicam ser considerados e tratados, eles mesmos, como genitais. Veremos
mais adiante que essa reivindicação se justifica pelo desenvolvimento da pulsão
sexual e que é atendida na sintomatologia de certos estados patológicos.
SUBSTITUIÇÃO
IMPRÓPRIA DO OBJETO SEXUAL - FETICHISMO
Uma
impressão muito peculiar resulta dos casos em que o objeto sexual normal é
substituído por outro que guarda certa relação com ele, mas que é totalmente
impróprio para servir ao alvo sexual normal. Do ponto de vista da
classificação, por certo teríamos feito melhor em mencionar esse grupo
sumamente interessante de aberrações da pulsão sexual já entre os desvios com
respeito ao objeto sexual, mas o adiamos até tomar conhecimento do fator da supervalorização
sexual, da qual dependem esses fenômenos ligados ao abandono do alvo sexual.
O
substituto do objeto sexual geralmente é uma parte do corpo (os pés, os
cabelos) muito pouco apropriada para fins sexuais, ou então um objeto inanimado
que mantém uma relação demonstrável com a pessoa a quem substitui, de
preferência com a sexualidade dela (um artigo de vestuário, uma peça íntima).
Comparou-se esse substituto, não injustificadamente, com o fetiche em que o
selvagem vê seu deus incorporado.
A
transição para os casos de fetichismo com renúncia ao alvo sexual, seja este
normal ou perverso, constitui-se dos casos em que se exige do objeto sexual uma
condição fetichista para que o alvo sexual seja alcançado (determinada cor dos
cabelos, certas roupas, ou mesmo defeitos físicos). Nenhuma outra variação da
pulsão sexual nas raias do patológico merece tanto o nosso interesse quanto
essa, dada a singularidade dos fenômenos a que dá lugar. Um certo rebaixamento
da aspiração ao alvo sexual normal (fraqueza de execução no aparelho sexual)
parece ser pré-requisito disso em todos os casos. O ponto de ligação com o
normal é proporcionado pela supervalorização psicologicamente necessária do
objeto sexual, que se propaga inevitavelmente por tudo o que está
associativamente ligado ao objeto. Por isso certo grau desse fetichismo costuma
ser próprio do amor normal, sobretudo nos estágios de enamoramento em que o
alvo sexual normal é inatingível ou sua satisfação parece impedida:
Schaff mir ein
Halstuch von ihrer Brust,
Ein
Strumpfband meiner Liebeslust
O caso
só se torna patológico quando o anseio pelo fetiche se fixa, indo além da
condição mencionada, e se coloca no lugar do alvo sexual normal, e ainda,
quando o fetiche se desprende de determinada pessoa e se torna o único objeto
sexual. São essas as condições gerais para que meras variações da pulsão sexual
se transformem em aberrações patológicas.
Na
escolha do fetiche manifesta-se - como Binet [1888] foi o primeiro a sustentar
e como depois se comprovou abundantemente - a influência persistente de uma
impressão sexual recebida, na maioria das vezes, na primeira infância, o que se
pode comparar com a proverbial persistência do primeiro amor (“on revient
toujours à ses premiers amours”). Essa derivação é particularmente clara
nos casos em que há apenas um condicionamento fetichista do objeto sexual.
Voltaremos a deparar, em outro ponto (ver em [1]), com a significação das
impressões sexuais precoces.
Em
outros casos, o que leva à substituição do objeto pelo fetiche é uma conexão
simbólica de pensamentos que, na maioria das vezes, não é consciente para a
pessoa. Os trajetos dessas conexões nem sempre podem ser indicados com certeza
(o pé, por exemplo, é um antiquíssimo símbolo sexual que já aparece no mito, e
as “peles” decerto devem seu papel de fetiche à associação com os pêlos do mons
Veneris). Não obstante, nem mesmo esse simbolismo parece independer sempre
das experiências sexuais da infância.
(B)
FIXAÇÕES DE ALVOS SEXUAIS PROVISÓRIOS
SURGIMENTO
DE NOVAS INTENÇÕES
Todas as
condições externas e internas que dificultam ou adiam a consecução do alvo
sexual normal (impotência, preço elevado do objeto sexual, riscos do ato
sexual) reforçam, como é compreensível, a tendência a demorar-se nos atos
preliminares e a formar a partir deles novos alvos sexuais, que podem tomar o
lugar dos normais. Um exame mais atento sempre mostra que esses novos
propósitos, mesmo os que se afiguram mais estranhos, já se esboçam no processo
sexual normal.
O TOCAR
E O OLHAR
Uma
certa dose de uso do tato, ao menos para os seres humanos, é indispensável para
que se atinja o alvo sexual normal. Sabe-se também, universalmente, que fonte
de prazer, por um lado, e que afluxo de excitação renovada, por outro, são
proporcionados pelas sensações de contato com a pele do objeto sexual. Portanto,
demorar-se no tocar, desde que o ato sexual seja levado adiante, dificilmente
pode contar entre as perversões.
O mesmo
se dá com o ver, que em última análise deriva do tocar. A impressão visual
continua a ser o caminho mais freqüente pelo qual se desperta a excitação
libidinosa, e é com a transitabilidade desse caminho - se é que esse tipo de
consideração teleológica é permissível -
que conta a seleção natural ao fazer com que o objeto sexual se desenvolva em
termos de beleza. A progressiva ocultação do corpo advinda com a civilização
mantém desperta a curiosidade sexual, que ambiciona completar o objeto sexual
através da revelação das partes ocultas, mas que pode ser desviada
(“sublimada”) para a arte, caso se consiga afastar o interesse dos genitais e
voltá-lo para a forma do corpo como um todo. A demora nesse alvo sexual
intermediário do olhar carregado de sexo surge, em certa medida, na maioria das
pessoas normais, e de fato lhes dá a possibilidade de orientarem uma parcela de
sua libido para alvos artísticos mais elevados. Por outro lado, o prazer de ver
[escopofilia] transforma-se em perversão (a) quando se restringe
exclusivamente à genitália, (b) quando se liga à superação do asco (o voyeur
- espectador das funções excretórias), ou (c) quando suplanta o alvo
sexual normal, em vez de ser preparatório a ele. Este último é marcantemente o
caso dos exibicionistas, que, se posso deduzi-lo após diversas análises, exibem
seus genitais para conseguir ver, em contrapartida, a genitália do outro.
Na perversão
que aspira a olhar e ser olhado distingue-se um traço curiosíssimo, do qual nos
ocuparemos ainda mais intensamente na aberração a ser examinada a seguir, ou
seja: nela, o alvo sexual apresenta-se numa configuração dupla, nas formas ativa
e passiva.
A força
que se opõe ao prazer de ver, mas pode eventualmente ser superada por ele (como
vimos antes no caso do asco), é a vergonha.
SADISMO
E MASOQUISMO
A
inclinação a infligir dor ao objeto sexual, bem como sua contrapartida, que são
as mais freqüentes e significativas de todas as perversões, foram denominadas
por Krafft-Ebing, em formas ativa e passiva, de “sadismo” e “masoquismo”
(passivo). Outros autores [p. ex., Schrenck-Notzing (1899)] preferem a
designação mais estrita de algolagnia, que destaca o prazer na dor, a
crueldade, enquanto os termos escolhidos por Krafft-Ebing colocam em primeiro
plano o prazer em qualquer forma de humilhação ou sujeição.
No
tocante à algolagnia ativa, o sadismo, suas raízes são fáceis de apontar nas
pessoas normais. A sexualidade da maioria dos varões exibe uma mescla de agressão,
de inclinação a subjugar, cuja importância biológica talvez resida na
necessidade de vencer a resistência do objeto sexual de outra maneira que não
mediante o ato de cortejar. Assim, o sadismo corresponderia a um
componente agressivo autonomizado e exagerado da pulsão sexual, movido por
deslocamento para o lugar preponderante.
O
conceito de sadismo oscila, na linguagem corriqueira, desde uma atitude
meramente ativa ou mesmo violenta para com o objeto sexual até uma satisfação
exclusivamente condicionada pela sujeição e maus-tratos a ele infligidos. Num
sentido estrito, somente este último caso extremo merece o nome de perversão.
De
maneira similar, a designação de “masoquismo” abrange todas as atitudes
passivas perante a vida sexual e o objeto sexual, a mais extrema das quais
parece ser o condicionamento da satisfação ao padecimento de dor física ou
anímica advinda do objeto sexual. O masoquismo enquanto perversão parece
distanciar-se mais do alvo sexual normal do que sua contrapartida; em primeiro
lugar, pode-se pôr em dúvida se ele aparece alguma vez como fenômeno primário,
ou se, pelo contrário, surge regularmente do sadismo mediante uma
transformação. É freqüente poder-se reconhecer que o masoquismo não é outra
coisa senão uma continuação do sadismo que se volta contra a própria pessoa,
que com isso assume, para começar, o lugar do objeto sexual. A análise clínica
dos casos extremos de perversão masoquista mostra a colaboração de uma ampla
série de fatores (como o complexo de castração e a consciência de culpa) no
exagero e fixação da atitude sexual passiva originária.
A dor,
que com isso é superada, alinha-se com o asco e a vergonha que se opunham à
libido como resistência.
O
sadismo e o masoquismo ocupam entre as perversões um lugar especial, já que o
contraste entre atividade e passividade que jaz em sua base pertence às
características universais da vida sexual.
Que a
crueldade e a pulsão sexual estão intimamente correlacionadas é-nos ensinado,
acima de qualquer dúvida, pela história da civilização humana, mas no
esclarecimento dessa correlação não se foi além de acentuar o fator agressivo
da libido. Segundo alguns autores, essa agressão mesclada à pulsão sexual é, na
realidade, um resíduo de desejos canibalísticos e, portanto, uma
co-participação do aparelho de dominação, que atende à satisfação de outra
grande necessidade ontogeneticamente mais antiga. Afirmou-se também que toda
dor contém em si mesma a possibilidade de uma sensação prazerosa.
Contentamo-nos aqui em afirmar que o esclarecimento dessa perversão de modo
algum tem sido satisfatório e que, possivelmente, diversas aspirações anímicas
nela se combinam para produzir um efeito único.
A
particularidade mais notável dessa perversão reside, porém, em que suas formas
ativa e passiva costumam encontrar-se juntas numa mesma pessoa. Quem sente
prazer em provocar dor no outro na relação sexual é também capaz de gozar, como
prazer, de qualquer dor que possa extrair das relações sexuais. O sádico é
sempre e ao mesmo tempo um masoquista, ainda que o aspecto ativo ou passivo da
perversão possa ter-se desenvolvido nele com maior intensidade e represente sua
atividade sexual predominante.
Assim,
vemos que algumas das inclinações à perversão apresentam-se regularmente como pares
de opostos, o que, em conjunto com um material a ser posteriormente
apresentado, pode reivindicar uma elevada significação teórica. É ainda
evidente que a existência do par de opostos sadismo-masoquismo não é dedutível,
em termos imediatistas, da mescla de agressão. Ao contrário, ficaríamos
tentados a relacionar a presença simultânea desses opostos com a oposição entre
masculino e feminino que se combina na bissexualidade, oposição que amiúde é
substituída na psicanálise pelo contraste entre ativo e passivo.
(3)
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE AS PERVERSÕES
VARIAÇÃO
E DOENÇA
É
natural que os médicos, que inicialmente estudaram as perversões em exemplos
bem marcados e em condições especiais, tenham-se inclinado a adjudicar-lhes o
caráter de um sinal de degeneração ou doença, tal como havia ocorrido com a
inversão. Não obstante, é ainda mais fácil descartar tal opinião no presente
caso. A experiência cotidiana mostrou que a maioria dessas transgressões, no
mínimo as menos graves dentre elas, são um componente que raramente falta na
vida sexual das pessoas sadias e que é por elas julgado como qualquer outra
intimidade. Quando as circunstâncias são favoráveis, também as pessoas normais
podem substituir durante um bom tempo o alvo sexual normal por uma dessas
perversões, ou arranjar-lhe um lugar ao lado dele. Em nenhuma pessoa sadia
falta algum acréscimo ao alvo sexual normal que se possa chamar de perverso, e
essa universalidade basta, por si só, para mostrar quão imprópria é a
utilização reprobatória da palavra perversão. Justamente no campo da vida
sexual é que se tropeça com dificuldades peculiares e realmente insolúveis, no
momento, quando se quer traçar uma fronteira nítida entre o que é mera variação
dentro da amplitude do fisiológico e o que constitui sintomas patológicos.
Ainda
assim, em muitas dessas perversões a qualidade do novo alvo sexual é de tal
ordem que requer uma apreciação especial. Algumas delas afastam-se tanto do
normal em seu conteúdo que não podemos deixar de declará-las “patológicas”,
sobretudo nos casos em que a pulsão sexual realiza obras assombrosas (lamber
excrementos, abusar de cadáveres) na superação das resistências (vergonha,
asco, horror ou dor). Nem mesmo nesses casos, porém, pode-se ter uma expectativa
certeira de que em seus autores se revelem regularmente pessoas com outras
anormalidades graves ou doentes mentais. Tampouco nesses casos pode-se passar
por cima do fato de que pessoas cuja conduta é normal em outros aspectos
colocam-se como doentes apenas no campo da vida sexual, sob o domínio da mais
irrefreável de todas as pulsões. Por outro lado, a anormalidade manifesta nas
outras relações da vida costuma mostrar invariavelmente um fundo de conduta
sexual anormal.
Na
maioria dos casos podemos encontrar o caráter patológico da perversão, não no
conteúdo do novo alvo sexual, mas em sua relação com a normalidade. Quando a
perversão não se apresenta ao lado do alvo e do objeto sexuais normais,
nos casos em que a situação é propícia a promovê-la e há circunstâncias
desfavoráveis impedindo a normalidade, mas antes suplanta e substitui o normal
em todas as circunstâncias, ou seja, quando há nela as características de exclusividade
e fixação, então nos vemos autorizados, na maioria das vezes, a julgá-la
como um sintoma patológico.
A
PARTICIPAÇÃO DO ANÍMICO NAS PERVERSÕES
Talvez
justamente nas perversões mais abjetas é que devamos reconhecer a mais
abundante participação psíquica na transformação da pulsão sexual. Eis aí a obra
de um trabalho anímico ao qual não se pode negar, a despeito de seu resultado
atroz, o valor de uma idealização da pulsão. A onipotência do amor talvez nunca
se mostre com maior intensidade do que nessas aberrações. O mais nobre e o mais
vil, por toda parte da sexualidade, aparecem na mais íntima dependência mútua
(“vom Himmel durch die Welt zur Hölle”).
DUAS
CONCLUSÕES
Do
estudo das perversões resultou-nos a visão de que a pulsão sexual tem de lutar
contra certas forças anímicas que funcionam como resistências, destacando-se
entre elas com máxima clareza a vergonha e o asco. É lícito conjecturar que
essas forças contribuam para circunscrever a pulsão dentro dos limites
considerados normais, e que, caso se desenvolvam precocemente no indivíduo,
antes que a pulsão sexual alcance a plenitude de sua força, sem dúvida serão
elas que irão apontar o rumo de seu desenvolvimento.
Observamos
ainda que algumas das perversões investigadas só se tornam compreensíveis
mediante a convergência de diversos motivos. Se elas admitem uma análise - uma
decomposição -, então devem ser de natureza composta. Com isso podemos ter um
indício de que talvez a própria pulsão sexual não seja uma coisa simples, mas
reúna componentes que voltam a separar-se nas perversões. A clínica nos
alertaria, portanto, para a existência de fusões que perderiam sua
expressão como tais na conduta normal uniforme.
(4) A
PULSÃO SEXUAL NOS NEURÓTICOS
A
PSICANÁLISE
Uma
importante contribuição para o conhecimento da pulsão sexual em pessoas que ao
menos se aproximam do normal é extraída de uma fonte acessível apenas por
determinado caminho. Existe apenas um meio de obter informações exaustivas e
sem erro sobre a vida sexual dos chamados “psiconeuróticos” ([os que sofrem de]
histeria, neurose obsessiva, da erroneamente chamada neurastenia, e certamente
também de dementia praecox e paranóia): submetê-los à investigação
psicanalítica, da qual se serve o procedimento terapêutico introduzido por
Josef Breuer e eu em 1893 e então chamado de “catártico”.
Devo
primeiramente esclarecer, repetindo o que já disse em outras publicações, que
essas psiconeuroses, até onde chegam minhas experiências, baseiam-se em forças
pulsionais de cunho sexual. Não quero dizer com isso apenas que a energia da
pulsão sexual faz uma contribuição para as forças que sustentam os fenômenos
patológicos (os sintomas), e sim asseverar expressamente que essa contribuição
é a única fonte energética constante da neurose e a mais importante de todas,
de tal sorte que a vida sexual das pessoas em pauta expressa-se de maneira
exclusiva, ou predominante, ou apenas parcial, nesses sintomas. Como exprimi em
outro lugar [1905e, Posfácio, ver em [1]], os sintomas são a atividade
sexual dos doentes. A prova dessa afirmação deriva do número crescente de
psicanálises de histéricos e outros neuróticos que venho realizando há vinte e
cinco anos, e sobre cujos resultados já prestei contas minuciosamente em outras
publicações, como ainda continuarei a fazer.
A
psicanálise elimina os sintomas dos histéricos partindo da premissa de que tais
sintomas são um substituto - uma transcrição, por assim dizer - de uma série de
processos, desejos e aspirações investidos de afeto, aos quais, mediante um
processo psíquico especial (o recalcamento), nega-se a descarga através
de uma atividade psíquica passível de consciência. Assim, essas formações de
pensamento que foram retidas num estado de inconsciência aspiram a uma
expressão apropriada a seu valor afetivo, a uma descarga, e, no caso da
histeria, encontram-na mediante o processo de conversão em fenômenos
somáticos - justamente os sintomas histéricos. Pela retransformação sistemática
(com a ajuda de uma técnica especial) dos sintomas em representações investidas
de afeto já agora conscientizadas, fica-se em condições de averiguar com a
máxima precisão a natureza e a origem dessas formações psíquicas antes
inconscientes.
RESULTADOS
DA PSICANÁLISE
Verificou-se
por esse caminho que os sintomas representam um substituto de aspirações que
extraem sua força da fonte da pulsão sexual. Harmoniza-se plenamente com isso o
que sabemos sobre o caráter dos histéricos (aqui tomados por modelo de todos os
psiconeuróticos) antes de seu adoecimento, bem como sobre as ocasiões que
precipitam a doença. O caráter histérico permite identificar um grau de recalcamento
sexual que ultrapassa a medida normal; uma intensificação da resistência à
pulsão sexual (que já ficamos conhecendo como vergonha, asco e moralidade); e
uma fuga como que instintiva a qualquer ocupação do intelecto com o problema do
sexo, que tem como conseqüência, nos casos mais acentuados, a manutenção de uma
completa ignorância sexual, mesmo depois de alcançado o período de maturidade
sexual.
Esse
traço de caráter, tão essencial na histeria, não raro escapa à observação casual,
ficando encoberto pelo segundo fator constitucional da histeria, ou seja, o
desenvolvimento desmedido da pulsão sexual; somente a análise psicológica sabe
desvendá-lo em todas as oportunidades e solucionar a enigmática contradição da
histeria, registrando a presença desse par de opostos: uma necessidade sexual
desmedida e uma excessiva renúncia ao sexual.
O ensejo
para o adoecimento apresenta-se à pessoa de disposição histérica quando, em
conseqüência de sua própria maturação progressiva ou das circunstâncias
externas de sua vida, as exigências reais do sexo tornam-se algo sério para
ela. Entre a premência da pulsão e o antagonismo da renúncia ao sexual situa-se
a saída para a doença, que não soluciona o conflito, mas procura escapar a ele
pela transformação das aspirações libidinosas em sintomas. Não passa de exceção
aparente o fato de uma pessoa histérica, um homem, por exemplo, adoecer por
causa de uma emoção banal, de um conflito que não gire em torno de um interesse
sexual. Nesses casos, a psicanálise consegue demonstrar regularmente que a
doença foi possibilitada pelo componente sexual do conflito, que privou os
processos anímicos de uma execução normal.
NEUROSE
E PERVERSÃO
Boa
parte da oposição contra estas minhas teses se esclarece pelo fato de que a
sexualidade, da qual derivo os sintomas psiconeuróticos, é considerada
coincidente com a pulsão sexual normal. Só que a psicanálise ensina ainda mais.
Ela mostra que de modo algum os sintomas surgem apenas à custa da chamada
pulsão sexual normal (pelo menos não de maneira exclusiva ou predominante), mas
que representam a expressão convertida de pulsões que seriam designadas de perversas
(no sentido mais lato) se pudessem expressar-se diretamente, sem desvio pela
consciência, em propósitos da fantasia e em ações. Portanto, os sintomas se
formam, em parte, às expensas da sexualidade anormal; a neurose é, por assim
dizer, o negativo da perversão.
A pulsão
sexual dos psiconeuróticos permite discernir todas as aberrações que estudamos
como variações da vida sexual normal e como manifestações da patológica.
(a) Na vida anímica de todos os neuróticos
(sem exceção) encontram-se moções de inversão, de fixação da libido em pessoas
do mesmo sexo. Sem uma discussão a fundo é impossível apreciar adequadamente a
importância desse fator para a configuração do quadro patológico; só posso
asseverar que a tendência inconsciente para a inversão nunca está ausente e, em
particular, presta os maiores serviços ao esclarecimento da histeria masculina.
(b)
No inconsciente dos psiconeuróticos é possível demonstrar, como formadoras do
sintoma, todas as tendências à transgressão anatômica, encontrando-se entre
elas com particular freqüência e intensidade as que reivindicam para as mucosas
da boca e do ânus o papel dos genitais.
(c) Um papel muito destacado entre os
formadores de sintomas das psiconeuroses é desempenhado pelas pulsões parciais,
que na maioria das vezes aparecem como pares de opostos e das quais já tomamos
conhecimento como portadoras de novos alvos sexuais - a pulsão do prazer de ver
e do exibicionismo, e a pulsão de crueldade em suas formas ativa e passiva. A
contribuição desta última é indispensável à compreensão da natureza sofrida dos
sintomas e domina quase invariavelmente uma parte da conduta social do doente.
É também por intermédio dessa ligação da libido com a crueldade que se dá a
transformação do amor em ódio, das moções afetuosas em moções hostis, que é
característica de um grande número de casos de neurose e até, ao que parece, da
paranóia em geral.
O interesse
por esses resultados aumenta ainda mais a partir de certas particularidades dos
fatos.
(a) Sempre que se descobre no inconsciente
uma pulsão desse tipo, passível de ser pareada com um oposto, em geral pode-se
demonstrar que este último também é eficaz. Toda perversão “ativa”, portanto, é
acompanhada por sua contrapartida passiva: quem é exibicionista no inconsciente
é também, ao mesmo tempo, voyeur; quem sofre as conseqüências das moções
sádicas recalcadas encontra outro reforço para seu sintoma nas fontes da
tendência masoquista. O completo acordo com a conduta nas perversões
“positivas” correspondentes decerto é muito digno de nota, embora, nos quadros
patológicos, uma ou outra das inclinações opostas desempenhe o papel
preponderante.
(b) Nos casos mais patentes de psiconeurose
é raro encontrar desenvolvida apenas uma dessas pulsões perversas; na maioria
das vezes encontramos um grande número delas e, em geral, vestígios de todas.
Mas a intensidade de cada pulsão isolada é independente do desenvolvimento das
outras. Também nesse aspecto o estudo das perversões “positivas” proporciona
uma contrapartida exata.
(5)
PULSÕES PARCIAIS E ZONAS ERÓGENAS
Se
juntarmos o que a investigação das perversões positivas e negativas nos
permitiu averiguar, parecerá plausível reconduzi-las a uma série de “pulsões
parciais” que, no entanto, não são primárias, já que permitem uma decomposição
ulterior. Por “pulsão” podemos entender, a princípio, apenas o representante
psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui continuamente, para
diferenciá-la do “estímulo”, que é produzido por excitações isoladas vindas de
fora. Pulsão, portanto, é um dos conceitos da delimitação entre o anímico e o
físico. A hipótese mais simples e mais indicada sobre a natureza da pulsão
seria que, em si mesma, ela não possui qualidade alguma, devendo apenas ser
considerada como uma medida da exigência de trabalho feita à vida anímica. O
que distingue as pulsões entre si e as dota de propriedades específicas é sua
relação com suas fontes somáticas e seus alvos. A fonte da pulsão
é um processo excitatório num órgão, e seu alvo imediato consiste na supressão
desse estímulo orgânico.
Outra
hipótese provisória de que não podemos furtar-nos na teoria das pulsões afirma
que os órgãos do corpo fornecem dois tipos de excitação, baseados em diferenças
de natureza química. A uma dessas classes de excitação designamos como a que é
especificamente sexual, e referimo-nos ao órgão em causa como a “zona erógena”
da pulsão parcial que parte dele.
Nas
inclinações perversas que reivindicam para a cavidade bucal e para o orifício
anal um sentido sexual, o papel das zonas erógenas é imediatamente perceptível.
Elas se comportam em todos os aspectos como uma parte do aparelho sexual. Na
histeria, esses lugares do corpo e os tratos de mucosa que partem deles
transformam-se na sede de novas sensações e de alterações da inervação - e
mesmo de processos comparáveis à ereção -, tal como os próprios órgãos genitais
diante das excitações dos processos sexuais normais.
O
sentido das zonas erógenas como aparelhos acessórios e substitutos da genitália
evidencia-se com maior clareza, dentre as psiconeuroses, na histeria, mas isso
não implica que ele deva ser menos valorizado nas outras formas de doença.
Nestas (neurose obsessiva, paranóia), ele é apenas menos reconhecível, pois a
formação dos sintomas se dá em regiões do aparelho anímico mais afastadas dos
centros específicos que dominam o corpo. Na neurose obsessiva, o que mais se
destaca é a significação dos impulsos que criam novos alvos sexuais e parecem
independentes das zonas erógenas. Não obstante, na escopofilia e no
exibicionismo o olho corresponde a uma zona erógena; no caso da dor e da
crueldade como componentes da pulsão sexual, é a pele que assume esse mesmo
papel - a pele, que em determinadas partes do corpo diferenciou-se nos órgãos
sensoriais e se transmudou em mucosa, sendo assim a zona erógena
[por excelência].
(6)
ESCLARECIMENTOS SOBRE A APARENTE
PREPONDERÂNCIA DA SEXUALIDADE PERVERSA NAS PSICONEUROSES
A
discussão precedente talvez tenha colocado sob um prisma falso a sexualidade
dos psiconeuróticos. Talvez tenha criado a aparência de que, em virtude de sua
predisposição, os psiconeuróticos aproximam-se estreitamente dos perversos em
sua conduta sexual e se distanciam dos normais na mesma medida. É bem possível,
de fato, que a disposição constitucional desses doentes contenha, além de um
grau desmedido de recalcamento sexual e de uma intensidade hiperpotente da
pulsão sexual, uma tendência incomum à perversão no sentido mais lato. Ainda
assim, a investigação de casos mais brandos mostra que esta última suposição
não é necessariamente indispensável, ou que, pelo menos, ao formar um juízo
sobre esses efeitos patológicos, é preciso descontar a atuação de um outro
fator. Na maioria dos psiconeuróticos, a doença só aparece depois da puberdade,
a partir das solicitações da vida sexual normal. É contra esta que se orienta
de modo preponderante o recalcamento. Ou então a doença se instaura mais
tardiamente, quando a libido fica privada de satisfação pelas vias normais. Em
ambos os casos a libido se comporta como uma corrente cujo leito principal foi
bloqueado; ela inunda então as vias colaterais que até ali talvez tivessem
permanecido vazias. Assim, também o que parece ser uma enorme tendência à
perversão (apesar de negativa) nos psiconeuróticos pode estar colateralmente
condicionado, e, em todo caso, deve ser colateralmente intensificado. O fato é
que se tem de alinhar o recalcamento sexual, enquanto fator interno, com os
fatores externos que, como a restrição da liberdade, a inacessibilidade do
objeto sexual normal, os riscos do ato sexual normal etc., permitem que surjam
perversões em indivíduos que, de outro modo, talvez permanecessem normais.
Nesse
aspecto, os diversos casos de neurose podem portar-se de maneira diferente:
num, prepondera a força inata da tendência à perversão, noutro, o aumento
colateral dessa mesma tendência por ser a libido desviada do alvo e do objeto
sexuais normais. Seria errôneo presumir uma oposição onde existe de fato uma
relação de cooperação. A neurose sempre produz seus efeitos máximos quando a
constituição e a vivência cooperam no mesmo sentido. Uma constituição marcante
talvez possa prescindir do apoio de impressões provenientes da vida, e um
grande abalo na vida talvez provoque a neurose até mesmo numa constituição
corriqueira. Aliás, essa visão da importância etiológica do inato e do
acidentalmente vivenciado é igualmente válida em outros campos.
Entretanto,
caso se prefira a hipótese de que uma tendência particularmente marcante para
as perversões é uma das peculiaridades da constituição psiconeurótica, abre-se
a perspectiva de se poder distinguir uma multiplicidade dessas constituições,
segundo a preponderância inata desta ou daquela zona erógena, desta ou daquela
pulsão parcial. Como acontece com tantas outras coisas nesse campo, ainda não
se investigou se há uma relação especial entre a disposição perversa e a
escolha da forma específica da doença.
(7)
INDICAÇÃO DO INFANTILISMO DA SEXUALIDADE
Ao
demonstrar as moções perversas enquanto formadoras de sintomas nas
psiconeuroses, aumentamos extraordinariamente o número de seres humanos que
poderiam ser considerados perversos. Não é só que os próprios neuróticos
constituam uma classe muito numerosa, há também que levar em conta que séries
descendentes e ininterruptas ligam a neurose, em todas as suas configurações, à
saúde; por isso Moebius pôde dizer, com boas justificativas, que todos somos um
pouco histéricos. Assim, a extraordinária difusão das perversões força-nos a
supor que tampouco a predisposição às perversões é uma particularidade rara,
mas deve, antes, fazer parte da constituição que passa por normal.
É
discutível, como vimos, que as perversões remontem a condições inatas ou
resultem, como supôs Binet quanto ao fetichismo (ver em [1]), de experiências
ao acaso. Agora se nos oferece a conclusão de que há sem dúvida algo inato na
base das perversões, mas esse algo é inato em todos os seres humanos,
embora, enquanto disposição, possa variar de intensidade e ser acentuado pelas
influências da vida. Trata-se, pois, das raízes inatas da pulsão sexual dadas
pela constituição, as quais, numa série de casos (as perversões), convertem-se
nas verdadeiras portadoras da atividade sexual (perversa), outras vezes passam
por uma supressão (recalcamento) insuficiente, de tal sorte que podem atrair
indiretamente para si, na qualidade de sintomas patológicos, parte da energia
sexual, e que permitem, nos casos mais favoráveis situados entre os dois
extremos, mediante uma restrição eficaz e outras elaborações, a origem da
chamada vida sexual normal.
Mas
devemos dizer ainda que essa suposta constituição que exibe os germes de todas
as perversões só é demonstrável na criança, mesmo que nela todas as pulsões só
possam emergir com intensidade moderada. Vislumbramos assim a fórmula de que os
neuróticos preservaram o estado infantil de sua sexualidade ou foram
retransportados para ele. Desse modo, nosso interesse volta-se para a vida
sexual da criança, e procederemos ao estudo do jogo de influências que domina o
processo de desenvolvimento da sexualidade infantil até seu desfecho na
perversão, na neurose ou na vida sexual normal.
A SEXUALIDADE INFANTIL
O DESCASO
PARA COM O INFANTIL
Faz
parte da opinião popular sobre a pulsão sexual que ela está ausente na infância
e só desperta no período da vida designado da puberdade. Mas esse não é apenas
um erro qualquer, e sim um equívoco de graves conseqüências, pois é o principal
culpado de nossa ignorância de hoje sobre as condições básicas da vida sexual.
Um estudo aprofundado das manifestações sexuais da infância provavelmente nos
revelaria os traços essenciais da pulsão sexual, desvendaria sua evolução e nos
permitiria ver como se compõe a partir de diversas fontes.
É digno
de nota que os autores que se ocuparam do esclarecimento das propriedades e
reações do indivíduo adulto tenham prestado muito mais atenção à fase
pré-histórica representada pela vida dos antepassados - ou seja, atribuído uma
influência muito maior à hereditariedade - do que à outra fase pré-histórica,
àquela que se dá na existência individual da pessoa, a saber, a infância. É
que, como se pode supor, a influência desse período da vida seria mais fácil de
compreender e teria direito a ser considerada antes da influência da
hereditariedade. É certo que na literatura sobre o assunto encontramos notas
ocasionais acerca da atividade sexual precoce em crianças pequenas, sobre
ereções, masturbação e até mesmo atividades semelhantes ao coito. Mas elas são
sempre citadas apenas como processos excepcionais, curiosidades ou exemplos
assustadores de depravação precoce. Nenhum autor, ao que eu saiba, reconheceu
com clareza a normatividade da pulsão sexual na infância, e, nos escritos já
numerosos sobre o desenvolvimento infantil, o capítulo sobre o “Desenvolvimento
Sexual” costuma ser omitido.
AMNÉSIA
INFANTIL
A razão
dessa estranha negligência pode ser buscada, em parte, nas considerações
convencionais que os autores respeitam em conseqüência de sua própria criação,
e em parte, num fenômeno psíquico que até agora escapou a qualquer explicação.
Refiro-me à singular amnésia que, na maioria das pessoas (mas não em
todas!), encobre os primeiros anos da infância, até os seis ou oito anos de
idade. Até o momento, não nos ocorreu ficar surpresos ante o fato dessa
amnésia, e no entanto, teríamos boas razões para isso. De fato, somos
informados de que, durante esses anos, dos quais só preservamos na memória
algumas lembranças incompreensíveis e fragmentadas, reagíamos com vivacidade
frente às impressões, sabíamos expressar dor e alegria de maneira humana,
mostrávamos amor, ciúme e outras paixões que então nos agitavam violentamente,
e até formulávamos frases que eram registradas pelos adultos como uma boa prova
de discernimento e de uma capacidade incipiente de julgamento. E de tudo isso,
quando adultos, nada sabemos por nós mesmos. Por que terá nossa memória ficado
tão para trás em relação a nossas outras atividades anímicas? Ora, temos razões
para crer que em nenhuma outra época da vida a capacidade de recepção e
reprodução é maior do que justamente nos anos da infância.
Por
outro lado, devemos supor, ou podemos convencer-nos disso mediante a investigação
psicológica de outrem, que as mesmas impressões por nós esquecidas deixaram,
ainda assim, os mais profundos rastros em nossa vida anímica e se tornaram
determinantes para todo o nosso desenvolvimento posterior. Não há como falar,
portanto, em nenhum declínio real das impressões infantis, mas sim numa amnésia
semelhante à que observamos nos neuróticos em relação às vivências posteriores,
e cuja essência consiste num mero impedimento da consciência (recalcamento).
Mas quais são as forças que efetuam esse recalcamento das impressões infantis?
Quem solucionasse esse enigma teria também esclarecido a amnésia histérica.
Todavia,
não queremos deixar de destacar que a existência da amnésia infantil fornece um
novo ponto de comparação entre o estado anímico da criança e o dos
psiconeuróticos. Já deparamos com outro desses pontos (ver em [1]) quando se
impôs a nós a fórmula de que a sexualidade dos psiconeuróticos preserva o
estado infantil ou é reconduzida a ele. E se a própria amnésia infantil também
tiver de ser relacionada com as moções sexuais da infância?
Aliás,
ligar a amnésia infantil à histérica é mais do que um mero jogo de palavras. A
amnésia histérica, que está a serviço do recalcamento, só é explicável pela
circunstância de que o indivíduo já possui um acervo de traços anêmicos que
deixaram de estar à disposição da consciência e que agora, através de uma
ligação associativa, apoderam-se daquilo sobre o que atuam as forças repulsoras
do recalcamento. Pode-se dizer que sem a amnésia infantil não haveria amnésia
histérica. [Cf. Freud, l950a, Carta 84, de 10 de março de 1898.]
Creio,
pois, que a amnésia infantil, que converte a infância de cada um numa espécie
de época pré-histórica e oculta dele os primórdios de sua própria vida
sexual, carrega a culpa por não se dar valor ao período infantil no
desenvolvimento da vida sexual. Um observador isolado não pode preencher as
lacunas assim geradas em nosso conhecimento. Já em 1896 frisei a significação
da infância para a origem de certos fenômenos importantes que dependem da vida
sexual, e desde então nunca deixei de trazer para primeiro plano o fator
infantil na sexualidade.
(1) O
PERÍODO DE LATÊNCIA SEXUAL DA INFÂNCIA E SUAS RUPTURAS
As
constatações extraordinariamente amiudadas de moções sexuais pretensamente
excepcionais e anormativas na infância, bem como a revelação das lembranças
infantis do neurótico, até então inconscientes, talvez permitam traçar o
seguinte quadro das condutas sexuais da infância:
Parece
certo que o recém-nascido traz consigo germes de moções sexuais que continuam a
se desenvolver por algum tempo, mas depois sofrem uma supressão progressiva, a
qual, por sua vez, pode ser rompida por avanços regulares do desenvolvimento
sexual ou suspensa pelas peculiaridades individuais. Nada se sabe ao certo
sobre a regularidade e a periodicidade desse curso oscilante de
desenvolvimento. Parece, no entanto, que a vida sexual da criança costuma
expressar-se numa forma acessível à observação por volta dos três ou quatro
anos de idade.
AS
INIBIÇÕES SEXUAIS
Durante
esse período de latência total ou apenas parcial erigem-se as forças anímicas
que, mais tarde, surgirão como entraves no caminho da pulsão sexual e
estreitarão seu curso à maneira de diques (o asco, o sentimento de vergonha, as
exigências dos ideais estéticos e morais). Nas crianças civilizadas, tem-se a
impressão de que a construção desses diques é obra da educação, e certamente a
educação tem muito a ver com isso. Na realidade, porém, esse desenvolvimento é
organicamente condicionado e fixado pela hereditariedade, podendo produzir-se,
no momento oportuno, sem nenhuma ajuda da educação. Esta fica inteiramente
dentro do âmbito que lhe compete ao limitar-se a seguir o que foi organicamente
prefixado e imprimi-lo de maneira um pouco mais polida e profunda.
FORMAÇÃO
REATIVA E SUBLIMAÇÃO
Com que
meios se erigem essas construções tão importantes para a cultura e normalidade
posteriores da pessoa? Provavelmente, às expensas das próprias moções sexuais
infantis, cujo afluxo não cessa nem mesmo durante esse período de latência, mas
cuja energia - na totalidade ou em sua maior parte - é desviada do uso sexual e
voltada para outros fins. Os historiadores da cultura parecem unânimes em supor
que, mediante esse desvio das forças pulsionais sexuais das metas sexuais e por
sua orientação para novas metas, num processo que merece o nome de sublimação,
adquirem-se poderosos componentes para todas as realizações culturais.
Acrescentaríamos, portanto, que o mesmo processo entra em jogo no
desenvolvimento de cada indivíduo, e situaríamos seu início no período de
latência sexual da infância.
Também
sobre o mecanismo desse processo de sublimação pode-se arriscar uma conjectura.
As moções sexuais desses anos da infância seriam, por um lado, inutilizáveis,
já que estão diferidas as funções reprodutoras - o que constitui o traço
principal do período de latência - , e por outro, seriam perversas em si, ou
seja, partiriam de zonas erógenas e se sustentariam em pulsões que, dada a
direção do desenvolvimento do indivíduo, só poderiam provocar sensações
desprazerosas. Por conseguinte, elas despertam forças anímicas contrárias
(moções reativas) que, para uma supressão eficaz desse desprazer, erigem os
diques psíquicos já mencionados: asco, vergonha e moral.
RUPTURAS
DO PERÍODO DE LATÊNCIA
Sem nos
iludirmos quanto à natureza hipotética e quanto à clareza insuficiente de
nossos conhecimentos acerca dos processos do período infantil de latência ou
adiamento, voltemos à realidade para indicar que esse emprego da sexualidade
infantil representa um ideal educativo do qual o desenvolvimento de cada um
quase sempre se afasta em algum ponto, amiúde em grau considerável. Vez por
outra irrompe um fragmento de manifestação sexual que se furtou à sublimação,
ou preserva-se alguma atividade sexual ao longo de todo o período de latência,
até a irrupção acentuada da pulsão sexual na puberdade. Na medida em que
prestam alguma atenção à sexualidade infantil, os educadores portam-se como se
compartilhassem nossas opiniões sobre a construção das forças defensivas morais
à custa da sexualidade, e como se soubessem que a atividade sexual torna a
criança ineducável, pois perseguem como “vícios” todas as suas manifestações
sexuais, mesmo que não possam fazer muita coisa contra elas. Nós, porém, temos
todos os motivos para voltar nosso interesse para esses fenômenos temidos pela
educação, pois deles esperamos o esclarecimento da configuração originária da
pulsão sexual.
(2) AS
MANIFESTAÇÕES DA SEXUALIDADE INFANTIL
O
CHUCHAR
Por
motivos que se deduzirão posteriormente, tomaremos como modelo das
manifestações sexuais infantis o chuchar (sugar com deleite), ao qual o
pediatra húngaro Lindner (1879) dedicou um excelente estudo.
O
chuchar [Ludeln ou Lutschen], que já aparece no lactente e pode continuar
até a maturidade ou persistir por toda a vida, consiste na repetição rítmica de
um contato de sucção com a boca (os lábios), do qual está excluído qualquer
propósito de nutrição. Uma parte dos próprios lábios, a língua ou qualquer
outro ponto da pele que esteja ao alcance - até mesmo o dedão do pé - são
tomados como objeto sobre o qual se exerce essa sucção. Uma pulsão preênsil
surgida ao mesmo tempo pode manifestar-se através de puxadas rítmicas
simultâneas do lóbulo da orelha e apoderar-se de uma parte de outra pessoa (em
geral, a orelha) para o mesmo fim. O sugar com deleite alia-se a uma absorção
completa da atenção e leva ao adormecimento, ou mesmo a uma reação motora numa
espécie de orgasmo. Não raro, combina-se com a fricção de alguma parte sensível
do corpo, como os seios ou a genitália externa. Por esse caminho, muitas
crianças passam do chuchar para a masturbação.
O
próprio Lindner reconheceu a natureza sexual dessa ação e a destacou de maneira
irrestrita. Na meninice, o chuchar é freqüentemente equiparado aos outros “maus
costumes” sexuais da criança. De numerosos pediatras e neurologistas tem-se
erguido um protesto muito enérgico contra essa concepção, parcialmente baseado,
sem dúvida, na confusão entre “sexual” e “genital”. Esse protesto levanta uma
questão difícil e irrecusável: por qual característica genérica podemos
reconhecer as manifestações sexuais da criança? Parece-me que a concatenação de
fenômenos que pudemos discernir através da investigação psicanalítica nos
autoriza a ver no chuchar uma manifestação sexual e a estudar justamente nele
os traços essenciais da atividade sexual infantil.
AUTO-EROTlSMO
Temos a
obrigação de fazer um exame aprofundado desse exemplo. Como traço mais
destacado dessa prática sexual, salientemos que a pulsão não está dirigida para
outra pessoa; satisfaz-se no próprio corpo, é auto-erótica, para dizê-lo
com a feliz denominação introduzida por Havelock Ellis [1910].
Está
claro, além disso, que o ato da criança que chucha é determinado pela busca de
um prazer já vivenciado e agora relembrado. No caso mais simples, portanto, a
satisfação é encontrada mediante a sucção rítmica de alguma parte da pele ou da
mucosa. É fácil adivinhar também em que ocasiões a criança teve as primeiras
experiências desse prazer que agora se esforça por renovar. A primeira e mais
vital das atividades da criança - mamar no seio materno (ou em seus
substitutos) - há de tê-la familiarizado com esse prazer. Diríamos que os
lábios da criança comportaram-se como uma zona erógena, e a estimulação
pelo fluxo cálido de leite foi sem dúvida a origem da sensação prazerosa. A
princípio, a satisfação da zona erógena deve ter-se associado com a necessidade
de alimento. A atividade sexual apóia-se primeiramente numa das funções que
servem à preservação da vida, e só depois torna-se independente delas. Quem já
viu uma criança saciada recuar do peito e cair no sono, com as faces coradas e
um sorriso beatífico, há de dizer a si mesmo que essa imagem persiste também
como norma da expressão da satisfação sexual em épocas posteriores da vida. A
necessidade de repetir a satisfação sexual dissocia-se então da necessidade de
absorção de alimento - uma separação que se torna inevitável quando aparecem os
dentes e o alimento já não é exclusivamente ingerido por sucção, mas é também
mastigado. A criança não se serve de um objeto externo para sugar, mas prefere
uma parte de sua própria pele, porque isso lhe é mais cômodo, porque a torna
independente do mundo externo, que ela ainda não consegue dominar, e porque desse
modo ela se proporciona como que uma segunda zona erógena, se bem que de nível
inferior. A inferioridade dessa segunda região a levará, mais tarde, a buscar
em outra pessoa a parte correspondente, os lábios. (“Pena eu não poder beijar a
mim mesmo”, dir-se-ia subjazer a isso.)
Nem
todas as crianças praticam esse chuchar. É de se supor que cheguem a fazê-lo
aquelas em quem a significação erógena da zona labial for constitucionalmente
reforçada. Persistindo essa significação, tais crianças, uma vez adultas, serão
ávidas apreciadoras do beijo, tenderão a beijos perversos ou, se forem homens,
terão um poderoso motivo para beber e fumar. Caso sobrevenha o recalcamento,
porém, sentirão nojo da comida e produzirão vômitos histéricos. Por força da
dupla finalidade da zona labial, o recalcamento se estende à pulsão de
nutrição. Muitas de minhas pacientes com distúrbios alimentares, globus
hystericus, constricção na garganta e vômitos foram, na infância, firmes
adeptas do chuchar.
No
chuchar ou sugar com deleite já podemos observar as três características
essenciais de uma manifestação sexual infantil. Esta nasce apoiando-se numa das
funções somáticas vitais, ainda não conhece nenhum objeto sexual, sendo auto-erótica,
e seu alvo sexual acha-se sob o domínio de uma zona erógena. Antecipemos
que essas características são válidas também para a maioria das outras
atividades das pulsões sexuais infantis.
(3) O
ALVO SEXUAL DA SEXUALIDADE INFANTIL
CARACTERÍSTICAS
DAS ZONAS ERÓGENAS
Do
exemplo do chuchar podemos ainda deduzir várias coisas para a caracterização do
que é uma zona erógena. Trata-se de uma parte da pele ou da mucosa em que
certos tipos de estimulação provocam uma sensação prazerosa de determinada
qualidade. Não há dúvida de que os estímulos produtores de prazer estão ligados
a condições especiais que desconhecemos. Entre elas, o caráter rítmico deve
desempenhar algum papel, impondo-se aqui a analogia com as cócegas. Menos
seguro, parece, é se o caráter da sensação prazerosa provocada pelo estímulo
pode ser designado de “particular”, particularidade esta em que estaria contido
justamente o fator sexual. Em matéria de prazer e desprazer, a psicologia ainda
tateia tanto no escuro que as hipóteses mais prudentes são as mais recomendáveis.
Mais adiante, talvez deparemos com razões que pareçam sustentar a idéia de uma
qualidade particular da sensação prazerosa.
A
propriedade erógena pode ligar-se de maneira mais marcante a certas partes do
corpo. Existem zonas erógenas predestinadas, como mostra o exemplo do chuchar.
Mas esse exemplo ensina também que qualquer outro ponto da pele ou da mucosa
pode tomar a seu encargo as funções de uma zona erógena, devendo, portanto, ter
certa aptidão para isso. Assim, a qualidade do estímulo, mais do que a natureza
das partes do corpo, é que tem a ver com a produção da sensação prazerosa. A
criança chuchadora perscruta seu corpo para sugar alguma parte dele, que
depois, por hábito, torna-se a preferida; quando tropeça casualmente numa das
partes predestinadas (os mamilos, a genitália), esta decerto retém a
preferência. Uma capacidade de deslocamento inteiramente análoga reaparece na
sintomatologia da histeria. Nessa neurose, o recalcamento afeta sobretudo as
zonas genitais propriamente ditas, e estas transmitem sua excitabilidade a
outras zonas erógenas, de outro modo relegadas na vida adulta, que então se
comportam exatamente como genitais. Além disso, porém, tal como ocorre no
chuchar, qualquer outra parte do corpo pode ser provida da excitabilidade da
genitália e alçada à condição de zona erógena. As zonas erógenas e histerógenas
exibem as mesmas características.
O ALVO
SEXUAL INFANTIL
O alvo
sexual da pulsão infantil consiste em provocar a satisfação mediante a
estimulação apropriada da zona erógena que de algum modo foi escolhida. Essa
satisfação deve ter sido vivenciada antes para que reste daí uma necessidade de
repeti-la, e é lícito esperarmos que a natureza tenha tomado medidas seguras
para que essa vivência não fique entregue ao acaso. Já tomamos conhecimento do
que é que promove a satisfação dessa finalidade no caso da zona labial: é a
ligação simultânea dessa parte do corpo com a alimentação. Ainda depararemos
com outros dispositivos semelhantes como fontes da sexualidade. O estado de necessidade
de repetir uma satisfação transparece de duas maneiras: por um sentimento
peculiar de tensão, que tem, antes, o caráter de desprazer, e por uma sensação
de prurido ou estimulação centralmente condicionada e projetada para a
zona erógena periférica. Por isso, pode-se também formular o alvo sexual de
outra maneira: ele viria substituir a sensação de estimulação projetada na zona
erógena pelo estímulo externo que a abolisse ao provocar a sensação de
satisfação. Esse estímulo externo consiste, na maioria das vezes, numa
manipulação análoga ao sugar.
Está em
perfeito acordo com nossos conhecimentos fisiológicos que a necessidade possa
também ser evocada perifericamente, através de uma modificação real na zona
erógena. Só é um tanto estranho que, para ser abolido, um estímulo pareça
exigir a colocação de um segundo no mesmo lugar.
(4) AS
MANlFESTAÇÕES SEXUAIS MASTURBATÓRIAS
Só pode
alegrar-nos sumamente descobrir que, uma vez compreendida a pulsão vinda de uma
única zona erógena, não temos muito mais coisas importantes a aprender sobre a
atividade sexual das crianças. As diferenças mais significativas dizem respeito
às providências necessárias à satisfação, que, no caso da zona labial,
consistiam no sugar, e que terão de ser substituídas por outras ações
musculares conforme a posição e a natureza das outras zonas.
ATIVIDADE
DA ZONA ANAL
Tal como
a zona dos lábios, a zona anal está apta, por sua posição, a mediar um apoio da
sexualidade em outras funções corporais. É de se presumir que a importância erógena
dessa parte do corpo seja originariamente muito grande. lnteiramo-nos pela
psicanálise, não sem certo assombro, das transmutações por que normalmente
passam as excitações sexuais dela provenientes e da freqüência com que essa
zona conserva durante toda a vida uma parcela considerável de excitabilidade
genital. Os distúrbios intestinais tão freqüentes na infância providenciam para
que não faltem a essa zona excitações intensas. Os catarros intestinais na mais
tenra idade deixam a criança “nervosa”, como se costuma dizer; no adoecimento
neurótico posterior, eles têm uma influência determinante na manifestação
somática da neurose e colocam à disposição dela toda a soma das perturbações
intestinais. Considerando-se a significação erógena da zona rectal, que se
preserva ao menos em sua transmutação, tampouco podemos rir da influência das
hemorróidas, às quais a medicina antiga atribuía tanta importância no
esclarecimento dos estados neuróticos.
As
crianças que tiram proveito da estimulabilidade erógena da zona anal
denunciam-se por reterem as fezes até que sua acumulação provoca violentas
contrações musculares e, na passagem pelo ânus, pode exercer uma estimulação
intensa na mucosa. Com isso, hão de produzir-se sensações de volúpia ao lado
das sensações dolorosas. Um dos melhores presságios de excentricidade e
nervosismo posteriores é a recusa obstinada do bebê a esvaziar o intestino ao
ser posto no troninho, ou seja, quando isso é desejado pela pessoa que cuida
dele, ficando essa função reservada para quando aprouver a ele próprio.
Naturalmente, não é que lhe interesse sujar a cama; ele está apenas
providenciando para que não lhe escape o dividendo de prazer que vem junto com
a defecação. Mais uma vez, os educadores têm razão ao chamarem de perversas [schlimm]
as crianças que “retardam” essas funções.
O
conteúdo intestinal, que, enquanto corpo estimulador, comporta-se frente a uma
área de mucosa sexualmente sensível como precursor de outro órgão destinado a
entrar em ação depois da fase da infância, tem ainda para o lactante outros
importantes sentidos. É obviamente tratado como parte de seu próprio corpo,
representando o primeiro “presente”: ao desfazer-se dele, a criaturinha pode
exprimir sua docilidade perante o meio que a cerca, e ao recusá-lo, sua obstinação.
Do sentido de “presente”, esse conteúdo passa mais tarde ao de “bebê”, que,
segundo uma das teorias sexuais infantis (ver em [1]), é adquirido pela comida
e nasce pelo intestino.
A
retenção da massa fecal, a princípio intencionalmente praticada para tirar
proveito da estimulação como que masturbatória da zona anal, ou para ser
empregada na relação com as pessoas que cuidam da criança, é, aliás, uma das
raízes da constipação tão freqüente nos neuropatas. Além disso, o sentido pleno
da zona anal espelha-se no fato de se encontrarem muito poucos neuróticos que
não tenham seus rituais escatológicos especiais, suas cerimônias e coisas
similares, por eles cuidadosamente mantidos em segredo.
A
estimulação masturbatória efetiva da zona anal com a ajuda do dedo, provocada
por uma comichão centralmente determinada ou perifericamente mantida, não é
nada rara nas crianças mais velhas.
ATIVIDADE
DA ZONA GENITAL
Entre as
zonas erógenas do corpo infantil encontra-se uma que decerto não desempenha o
papel principal nem pode ser a portadora das moções sexuais mais antigas, mas
que está destinada a grandes coisas no futuro. Nas crianças tanto de sexo
masculino quanto feminino, está ligada à micção (glande, clitóris) e, nas
primeiras, acha-se dentro de uma bolsa de mucosa, de modo que não pode
faltar-lhe a estimulação por secreções que aticem precocemente a excitação
sexual. As atividades sexuais dessa zona erógena, que faz parte dos órgãos
sexuais propriamente ditos, são sem dúvida o começo da futura vida sexual
“normal”.
Por sua
posição anatômica, pelas secreções em que estão banhadas, pela lavagem e
fricção advindas dos cuidados com o corpo e por certas excitações acidentais
(como as migrações de vermes intestinais nas meninas), é inevitável que a
sensação prazerosa que essas partes do corpo são capazes de produzir se faça
notar à criança já na fase de amamentação, despertando uma necessidade de
repeti-la. Considerada a soma dos dispositivos existentes e ponderando que as
providências para manter a limpeza mal podem atuar de modo diferente da
sujeira, custa evitar a conclusão de que é através do onanismo do lactante, do
qual praticamente nenhum indivíduo escapa, que se estabelece a futura primazia
dessa zona erógena na atividade sexual. A ação que elimina o estímulo e provoca
a satisfação consiste num contato por fricção manual ou numa pressão (decerto
preparada nos moldes de um reflexo) exercida com a mão ou unindo as coxas. Este
último método é de longe o mais freqüente nas meninas. Nos meninos, a
preferência pela mão já indica a importante contribuição que a pulsão de
dominação está destinada a fazer para a atividade sexual masculina.
A bem da
clareza, convém eu indicar que é preciso distinguir três fases da masturbação
infantil. A primeira é própria do período de lactância, a segunda pertence à
breve florescência da atividade sexual por volta do quarto ano de vida, e
somente a terceira corresponde ao onanismo da puberdade, amiúde o único a ser
levado em conta.
A
SEGUNDA FASE DA MASTURBAÇÃO INFANTIL
O
onanismo do lactante parece desaparecer após um curto prazo, mas seu
prosseguimento ininterrupto até a puberdade pode constituir o primeiro grande
desvio do desenvolvimento a que se aspira para os seres humanos inseridos na
cultura. Em algum momento da infância posterior ao período de amamentação,
comumente antes do quarto ano, a pulsão sexual dessa zona genital costuma
redespertar e novamente durar algum tempo, até ser detida por uma nova
supressão, ou prosseguir ininterruptamente. As circunstâncias possíveis são
muito variadas e só é viável apreciá-las mediante uma análise mais rigorosa dos
casos individuais. Mas todos os detalhes dessa segunda fase de atividade
sexual infantil deixam atrás de si as mais profundas marcas (inconscientes) na
memória da pessoa, determinam o desenvolvimento de seu caráter, caso ela
permaneça sadia, e a sintomatologia de sua neurose, caso venha a adoecer depois
da puberdade. Nesta última eventualidade, constatamos que esse período sexual
foi esquecido e que as lembranças conscientes que o testemunham foram
deslocadas; já afirmei que eu também vincularia a amnésia infantil normal com
essa atividade sexual infantil. Através da investigação psicanalítica é
possível tornar consciente o esquecido e, desse modo, eliminar uma compulsão
que provém do material psíquico inconsciente.
O
RETORNO DA MASTURBAÇÃO DA LACTÂNCIA
A
excitação sexual do período de lactância retorna nos anos infantis já
indicados, seja como um estímulo de prurido centralmente condicionado, que
exorta a uma satisfação masturbatória, seja como um processo da natureza de uma
polução, que, em analogia com as poluções da maturidade, chega à satisfação sem
a ajuda de ação alguma. Este último caso é o mais freqüente nas meninas e na
segunda metade da infância; não é inteiramente compreensível em termos do que o
condiciona e, muitas vezes, embora não regularmente, parece ter como premissa
um período anterior de onanismo ativo. A sintomatologia dessas manifestações
sexuais é escassa; o que dá sinal do aparelho sexual ainda não desenvolvido é,
na maioria das vezes, o aparelho urinário, que funciona, por assim dizer, como
tutor dele. A maioria dos chamados distúrbios vesicais dessa época são
perturbações sexuais; a enurese noturna, quando não representa um ataque epilético,
corresponde a uma polução.
Para o
reaparecimento da atividade sexual são decisivas as causas internas e as
contingências externas, ambas as quais podem ser inferidas, nos casos de doença
neurótica, a partir da forma dos sintomas, sendo descobertas com certeza
através da investigação psicanalítica. Sobre as causas internas falaremos mais
adiante; as contingências fortuitas externas ganham nesse período uma
importância grande e duradoura. Em primeiro plano situa-se a influência da
sedução, que trata a criança prematuramente como um objeto sexual e que, em
circunstâncias que causam forte impressão, ensina-a a conhecer a satisfação das
zonas genitais - uma satisfação que ela fica quase sempre obrigada a renovar
pelo onanismo. Tal influência pode provir de adultos ou de outras crianças; não
me é possível admitir que, em meu ensaio sobre “A Etiologia da Histeria” (1896c),
eu tenha superestimado sua freqüência ou sua importância, embora eu ainda não
soubesse, na época, que os indivíduos que permanecem normais podem ter tido na
infância as mesmas experiências, e por isso tenha dado maior valor à sedução do
que aos fatores da constituição e do desenvolvimento sexuais. É evidente que a
sedução não é necessária para despertar a vida sexual da criança, podendo esse
despertar surgir também, espontaneamente, de causas internas.
DISPOSIÇÃO
PERVERSA POLIMORFA
É
instrutivo que a criança, sob a influência da sedução, possa tornar-se perversa
polimorfa e ser induzida a todas as transgressões possíveis. Isso mostra que
traz em sua disposição a aptidão para elas; por isso sua execução encontra
pouca resistência, já que, conforme a idade da criança, os diques anímicos
contra os excessos sexuais - a vergonha, o asco e a moral - ainda não foram
erigidos ou estão em processo de construção. Nesse aspecto, a criança não se
comporta de maneira diversa da mulher inculta média, em quem se conserva a
mesma disposição perversa polimorfa. Em condições usuais, ela pode permanecer
sexualmente normal, mas, guiada por um sedutor habilidoso, terá gosto em todas
as perversões e as reterá em sua atividade sexual. Essa mesma disposição
polimorfa, e portanto infantil, é também explorada pelas prostitutas no
exercício de sua profissão, e no imenso número de mulheres prostituídas ou em
quem se deve supor uma aptidão para a prostituição, embora tenham escapado ao
exercício dela, é impossível não reconhecer nessa tendência uniforme a toda
sorte de perversões algo que é universalmente humano e originário.
PULSÕES
PARCIAIS
De
resto, a influência da sedução não ajuda a revelar as circunstâncias iniciais
da pulsão sexual, mas antes confunde nossa visão dela, uma vez que apresenta
prematuramente à criança um objeto sexual de que, a princípio, a pulsão sexual
infantil não mostra nenhuma necessidade. Contudo, devemos admitir que também a
vida sexual infantil, apesar da dominação preponderante das zonas erógenas,
exibe componentes que desde o início envolvem outras pessoas como objetos
sexuais. Dessa natureza são as pulsões do prazer de olhar e de exibir, bem como
a de crueldade, que aparecem com certa independência das zonas erógenas e só
mais tarde entram em relações estreitas com a vida genital, mas que já na
infância se fazem notar como aspirações autônomas, inicialmente separadas da
atividade sexual erógena. A criança pequena é, antes de mais nada, desprovida
de vergonha, e em certos períodos de seus primeiros anos mostra uma satisfação
inequívoca no desnudamento do corpo, com ênfase especial nas partes sexuais. A
contrapartida dessa inclinação tida como perversa - a curiosidade de ver a
genitália de outras pessoas - provavelmente só se torna manifesta um pouco mais
tarde na infância, quando o obstáculo do sentimento de vergonha já atingiu
certo desenvolvimento. Sob a influência da sedução, a perversão de ver pode
alcançar grande importância na vida sexual da criança. Entretanto, minhas
investigações da meninice tanto de pessoas sadias quanto de doentes neuróticos
forçam-me a concluir que a pulsão de ver pode surgir na criança como uma
manifestação sexual espontânea. As crianças pequenas cuja atenção foi atraída,
em algum momento, para sua própria genitália - geralmente pela masturbação -
costumam dar o passo adicional sem ajuda externa e desenvolver um vivo
interesse pelos genitais de seus coleguinhas. Dado que as oportunidades de
satisfazer tal curiosidade em geral só se apresentam quando da satisfação das
duas necessidades excrementícias, tais crianças tornam-se voyeurs,
zelosos espectadores da micção e da defecação de outrem. Uma vez sobrevindo o
recalcamento dessas inclinações, a curiosidade de ver a genitália alheia (seja
do mesmo sexo ou do sexo oposto) persiste como uma pressão torturante, que em
muitos casos de neurose fornece, posteriormente, a mais poderosa força
impulsora para a formação do sintoma.
Com
independência ainda maior das outras atividades sexuais vinculadas às zonas
erógenas desenvolve-se na criança o componente de crueldade da pulsão sexual. A
crueldade é perfeitamente natural no caráter infantil, já que a trava que faz a
pulsão de dominação deter-se ante a dor do outro - a capacidade de
compadecer-se - tem um desenvolvimento relativamente tardio. É sabido que ainda
não se teve êxito na análise psicológica exaustiva dessa pulsão; podemos supor
que o impulso cruel provenha da pulsão de dominação e surja na vida sexual numa
época em que os genitais ainda não assumiram seu papel posterior. Assim, ela
domina uma fase da vida sexual que mais adiante descreveremos como organização
pré-genital. As crianças que se distinguem por uma crueldade peculiar para com
os animais e os companheiros despertam, em geral justificadamente, a suspeita
de uma atividade sexual intensa e precoce advinda das zonas erógenas, e mesmo
no amadurecimento precoce e simultâneo de todas as pulsões sexuais, a atividade
sexual erógena parece ser primária. A ausência da barreira da compaixão traz
consigo o risco de que esse vínculo estabelecido na infância entre as pulsões
cruéis e as erógenas torne-se depois indissolúvel na vida.
Desde as
Confissões de Jean Jacques Rousseau, a estimulação dolorosa da pele das
nádegas tem sido reconhecida por todos os educadores como uma das raízes
erógenas da pulsão passiva de crueldade (masoquismo). Disso eles concluíram com
acerto que o castigo corporal, que quase sempre incide nessa parte do corpo,
deve ser evitado em todas as crianças cuja libido, através das exigências
posteriores da educação cultural, possa ser forçada para vias colaterais.
(5) A
INVESTIGAÇÃO SEXUAL INFANTIL
A PULSÃO
DE SABER
Ao mesmo
tempo em que a vida sexual da criança chega a sua primeira florescência, entre
os três e os cinco anos, também se inicia nela a atividade que se inscreve na
pulsão de saber ou de investigar. Essa pulsão não pode ser computada entre os
componentes pulsionais elementares, nem exclusivamente subordinada à
sexualidade. Sua atividade corresponde, de um lado, a uma forma sublimada de
dominação e, de outro, trabalha com a energia escopofílica. Suas relações com a
vida sexual entretanto, são particularmente significativas, já que constatamos
pela psicanálise que, na criança, a pulsão de saber é atraída, de maneira
insuspeitadamente precoce e inesperadamente intensa, pelos problemas sexuais, e
talvez seja até despertada por eles.
O ENIGMA
DA ESFINGE
Não são
interesses teóricos, mas práticos, que põem em marcha a atividade
investigatória na criança. A ameaça trazida para suas condições existenciais
pela chegada conhecida ou suspeitada de um novo bebê, assim como o medo de que
esse acontecimento traga consigo a perda de cuidados e de amor, tornam a
criança pensativa e perspicaz. O primeiro problema de que ela se ocupa, em
consonância com essa história do despertar da pulsão de saber, não é a questão
da diferença sexual, e sim o enigma; de onde vêm os bebês? Numa distorção
facilmente anulável, esse é também o enigma proposto pela Esfinge de Tebas. Ao
contrário, o fato de existirem dois sexos é inicialmente aceito pela criança
sem nenhuma rebeldia ou hesitação. Para o menino, é natural presumir uma
genitália igual à sua em todas as pessoas que ele conhece, sendo-lhe impossível
conjugar a falta dela com sua representação dessas outras pessoas.
COMPLEXO
DE CASTRAÇÃO E INVEJA DO PÊNIS
Essa
convicção é energicamente sustentada pelos meninos, obstinadamente defendida
contra a tradição que logo resulta da observação, e somente abandonada após
sérias lutas internas (o complexo de castração). As formações substitutivas
desse pênis perdido das mulheres desempenham um grande papel na forma assumida
pelas diversas perversões.
A
suposição de uma genitália idêntica (masculina) em todos os seres humanos é a
primeira das notáveis e momentosas teorias sexuais infantis. Tem pouca
serventia para a criança que a ciência biológica dê razão a seu preconceito e
tenha de reconhecer o clitóris feminino como um autêntico substituto do pênis.
Já a garotinha não incorre em semelhantes recusas ao avistar os genitais do
menino, com sua conformação diferente. Está pronta a reconhecê-lo de imediato e
é tomada pela inveja do pênis, que culmina no desejo de ser também um menino, tão
importante em suas conseqüências.
TEORIAS
DO NASCIMENTO
Muitas
pessoas recordam com clareza a intensidade com que se interessaram, no período
pré-púbere, pela questão da proveniência dos bebês. As soluções anatômicas
então concebidas foram dos mais diversos tipos: eles sairiam do seio, ou se
recortariam do ventre, ou o umbigo se abriria para deixá-los passar. Fora da
análise, é muito raro haver lembranças de uma investigação correspondente nos
primeiros anos da infância; há muito ela sucumbiu ao recalcamento, mas seus
resultados são uniformes: os filhos chegam quando se come determinada coisa
(como nos contos de fadas) e nascem pelo intestino, como na eliminação de
fezes. Essas teorias infantis fazem lembrar condições existentes no reino
animal, sobretudo a cloaca dos tipos de animais inferiores aos mamíferos.
A
CONCEPÇÃO SÁDICA DA RELAÇÃO SEXUAL
Quando
as crianças em tão tenra idade assistem à relação sexual entre adultos, o que é
ensejado pela convicção dos mais velhos de que a criança pequena não pode
entender nada de sexual, elas não podem deixar de conceber o ato sexual como
uma espécie de sevícia ou subjugação, ou seja, de encará-lo num sentido sádico.
A psicanálise também nos permite verificar que uma impressão dessa natureza na
primeira infância contribui em muito para a predisposição a um deslocamento
sádico posterior do alvo sexual. Ademais, as crianças se ocupam muito com o
problema de saber em que consiste a relação sexual, ou, como dizem elas, em que
consiste ser casado, e costumam buscar a solução do mistério em alguma
atividade conjunta proporcionada pelas funções de micção ou defecação.
O
FRACASSO TÍPICO DA INVESTIGAÇÃO SEXUAL INFANTIL
Em
geral, pode-se dizer das teorias sexuais infantis que elas são reflexos da
própria constituição sexual da criança, e que, apesar de seus erros grotescos,
testemunham uma maior compreensão dos processos sexuais do que se pretenderia
de seus criadores. As crianças também percebem as alterações provocadas na mãe
pela gravidez e sabem interpretá-las corretamente; a fábula da cegonha é amiúde
contada a uma platéia que a recebe com desconfiança profunda, embora quase
sempre silenciosa. Mas como dois elementos permanecem desconhecidos na
investigação sexual infantil, a saber, o papel do sêmen fecundante e a existência
do orifício sexual feminino - os mesmos pontos, aliás, em que a organização
sexual infantil ainda está atrasada -, os esforços do pequeno investigador são
geralmente infrutíferos, e acabam numa renúncia que não raro deixa como seqüela
um prejuízo permanente para a pulsão de saber. A investigação sexual desses
primeiros anos da infância é sempre feita na solidão; significa um primeiro
passo para a orientação autônoma no mundo e estabelece um intenso alheamento da
criança frente às pessoas de seu meio que antes gozavam de sua total confiança.
(6) AS
FASES DE DESENVOLVIMENTO DA ORGANIZAÇÃO SEXUAL
Até
agora, destacamos como características da vida sexual infantil o fato de ela
ser essencialmente auto-erótica (seu objeto encontra-se no próprio corpo) e de
suas pulsões parciais serem inteiramente desvinculadas e independentes entre si
em seus esforços pela obtenção de prazer. O desfecho do desenvolvimento
constitui a chamada vida sexual normal do adulto, na qual a obtenção de prazer
fica a serviço da função reprodutora, e as pulsões parciais, sob o primado de
uma única zona erógena, formam uma organização sólida para a consecução do alvo
sexual num objeto sexual alheio.
ORGANIZAÇÕESPRÉ-GENITAIS
O estudo
das inibições e perturbações desse processo de desenvolvimento, com a ajuda da
psicanálise, permite-nos identificar os rudimentos e etapas preliminares de tal
organização das pulsões parciais, que ao mesmo tempo resultam numa espécie de
regime sexual. Essas fases da organização sexual são normalmente atravessadas
sem dificuldade, revelando-se apenas por alguns indícios. Somente nos casos
patológicos é que são ativadas e se tornam passíveis de conhecimento pela
observação grosseira.
Chamaremos
pré-genitais às organizações da vida sexual em que as zonas genitais
ainda não assumiram seu papel preponderante. Até aqui tomamos conhecimento de
duas delas, que dão a impressão de constituir recaídas em estados anteriores da
vida animal.
A
primeira dessas organizações sexuais pré-genitais é a oral, ou, se
preferirmos, canibalesca. Nela, a atividade sexual ainda não se separou
da nutrição, nem tampouco se diferenciaram correntes opostas em seu interior. O
objeto de uma atividade é também o da outra, e o alvo sexual consiste na incorporação
do objeto - modelo do que mais tarde irá desempenhar, sob a forma da identificação,
um papel psíquico tão importante. Como resíduo dessa hipotética fase de
organização que nos foi imposta pela patologia podemos ver o chuchar, no qual a
atividade sexual, desligada da atividade de alimentação, renunciou ao objeto
alheio em troca de um objeto situado no próprio corpo.
Uma
segunda fase pré-genital é a da organização sádico-anal. Nela, a divisão
em opostos que perpassa a vida sexual já se constituiu, mas eles ainda não
podem ser chamados de masculino e feminino, e sim ativo e passivo.
A atividade é produzida pela pulsão de dominação através da musculatura do
corpo, e como órgão do alvo sexual passivo o que se faz valer é, antes de mais
nada, a mucosa erógena do intestino; mas há para essas duas aspirações opostas
objetos que não coincidem. Ao lado disso, outras pulsões parciais atuam de
maneira auto-erótica. Nessa fase, portanto, já é possível demonstrar a
polaridade sexual e o objeto alheio, faltando ainda a organização e a
subordinação à função reprodutora.
AMBIVALÊNCIA
Essa
forma da organização sexual pode conservar-se por toda a vida e atrair
permanentemente para si uma boa parcela da atividade sexual. O predomínio do
sadismo e o papel de cloaca desempenhado pela zona anal conferem-lhe um cunho
singularmente arcaico. Como característica adicional, é próprio dela que os
pares opostos de pulsões estejam desenvolvidos de maneira aproximadamente
igual, num estado de coisas descrito pela oportuna designação de
“ambivalência”, introduzida por Bleuler.
A
hipótese das organizações pré-genitais da vida sexual repousa na análise das
neuroses e é difícil apreciá-la independentemente do conhecimento destas.
Podemos esperar que a continuidade dos esforços analíticos venha a fornecer-nos
muito mais informações sobre a estrutura e o desenvolvimento da função sexual
normal.
Para
completar o quadro da vida sexual infantil, é preciso acrescentar que, com
freqüência ou regularmente, já na infância se efetua uma escolha objetal como a
que mostramos ser característica da fase de desenvolvimento da puberdade, ou
seja, o conjunto das aspirações sexuais orienta-se para uma única pessoa, na
qual elas pretendem alcançar seus objetivos. Na infância, portanto, essa é a
maior aproximação possível da forma definitiva assumida pela vida sexual depois
da puberdade. A diferença desta última reside apenas em que a concentração das
pulsões parciais e sua subordinação ao primado da genitália não são conseguidas
na infância, ou só o são de maneira muito incompleta. Assim, o estabelecimento
desse primado a serviço da reprodução é a última fase por que passa a
organização sexual.
OS DOIS
TEMPOS DA ESCOLHA OBJETAL
Pode-se
considerar como ocorrência típica que a escolha de objeto se efetue em dois
tempos, em duas ondas. A primeira delas começa entre os dois e os cinco anos e
retrocede ou é detida pelo período de latência; caracteriza-se pela natureza
infantil de seus alvos sexuais. A segunda sobrevém com a puberdade e determina
a configuração definitiva da vida sexual.
Mas a
existência da bitemporalidade da escolha objetal, que se reduz essencialmente
ao efeito do período de latência, é de suma importância para o desarranjo desse
estado final. Os resultados da escolha objetal infantil prolongam-se pelas
épocas posteriores; ou se conservam como tal ou passam por uma renovação na
época da puberdade. Contudo, revelam-se inutilizáveis, em conseqüência do
recalcamento que se desenvolve entre as duas fases. Seus alvos sexuais foram
amenizados e agora representam o que se pode descrever como a corrente de
ternura da vida sexual. Somente a investigação psicanalítica pode demonstrar
que, por trás dessa ternura, dessa veneração e respeito, ocultam-se as antigas
aspirações sexuais, agora imprestáveis, das pulsões parciais infantis. A
escolha de objeto da época da puberdade tem de renunciar aos objetos infantis e
recomeçar como uma corrente sensual. A não confluência dessas duas
correntes tem como conseqüência, muitas vezes, a impossibilidade de se alcançar
um dos ideais da vida sexual - a conjugação de todos os desejos num único
objeto.
(7) AS
FONTES DA SEXUALIDADE INFANTIL
No
esforço de rastrear as origens da pulsão sexual, descobrimos até agora que a
excitação sexual nasce (a) como a reprodução de uma satisfação
vivenciada em relação a outros processos orgânicos, (b) pela estimulação
periférica apropriada das zonas erógenas, e (c) como expressão de
algumas “pulsões” que ainda não nos são inteiramente compreensíveis em sua
origem, como a pulsão de ver e a pulsão para a crueldade. A investigação
psicanalítica, que retrocede de uma época posterior para a infância, e a
observação contemporânea da criança conjugam-se para nos apontar outras fontes
que fluem regularmente para a excitação sexual. A observação de crianças tem a
desvantagem de trabalhar com dados facilmente passíveis de mal-entendidos, e a
psicanálise é dificultada pelo fato de só poder chegar a seus dados e
conclusões depois de longos rodeios; em cooperação, entretanto, os dois métodos
obtêm um grau satisfatório de certeza de conhecimentos.
Pela
investigação das zonas erógenas, já descobrimos que essas regiões da pele
meramente mostram uma intensificação especial de um tipo de estimulabilidade
que, em certo grau, é próprio de toda a superfície cutânea. Portanto, não nos
surpreenderá constatar que é possível atribuir efeitos erógenos muito claros a
certos tipos de estimulação geral da pele. Entre esses, destacamos acima de
tudo os estímulos térmicos, o que talvez facilite nossa compreensão do efeito
terapêutico dos banhos quentes.
EXCITAÇÕES
MECÂNICAS
Devemos
ainda arrolar aqui a produção de excitação sexual pela agitação mecânica e
ritmada do corpo, na qual devemos distinguir três formas de atuação estimulatória:
no aparato sensorial dos nervos vestibulares, na pele e nas áreas profundas
(músculos, aparelho articular). A existência das sensações prazerosas assim
geradas - vale enfatizar que é lícito empregarmos indistintamente, numa vasta
medida, “excitação sexual” e “satisfação”, cabendo-nos o dever de buscar mais
adiante uma explicação para isso [ver em [1]]-, a existência dessas sensações
prazerosas, produzidas por certos tipos de agitação mecânica do corpo, é
confirmada pelo fato de as crianças gostarem tanto das brincadeiras de
movimento passivo, como serem balançadas e jogadas para o alto, e de pedirem
incessantemente que sejam repetidas. Sabe-se que é costumeiro usar o recurso de
embalar as crianças inquietas para fazê-las adormecer. O balanço das carruagens
e, mais tarde, das viagens de trem exerce um efeito tão fascinante nas crianças
mais velhas que pelo menos todos os meninos, em algum momento da vida, quiseram
ser condutores de trem ou cocheiros quando crescessem. Eles dedicam um
intrigante interesse de extraordinária intensidade a tudo o que se relaciona
com as ferrovias, e, na idade em que se ativa a fantasia (pouco antes da
puberdade), fazem disso o núcleo de um simbolismo singularmente sexual. É
evidente que a compulsão a estabelecer tal vínculo entre as viagens
ferroviárias e a sexualidade provém do caráter prazeroso das sensações de
movimento. Sobrevindo então o recalcamento, que converte tantas das predileções
infantis em seu oposto, essas mesmas pessoas, quando adolescentes ou adultas,
reagirão com náuseas aos balanços e sacolejos, ficarão terrivelmente esgotadas
pelas viagens de trem, ou tenderão a sofrer ataques de angústia nas viagens,
protegendo-se da repetição dessa experiência dolorosa através de um pavor
das ferrovias.
Alinha-se
aqui o fato, ainda não compreendido, de que a conjugação do susto com a
agitação mecânica produz a grave neurose traumática histeriforme. Podemos ao
menos supor que essas influências, que numa intensidade ínfima transformam-se
em fontes de excitação sexual, provoquem, em medida excessiva, uma profunda
desordem no mecanismo ou na química sexual.
ATIVIDADE
MUSCULAR
É sabido
que a atividade muscular intensa é, para a criança, uma necessidade de cuja
satisfação ela extrai um prazer extraordinário. Se esse prazer tem algo a ver
com a sexualidade, se encerra em si mesmo uma satisfação sexual, ou se pode
converter-se no ensejo de uma excitação sexual, tudo isso é passível de
considerações críticas que, de fato, podem também apontar contra a colocação
contida nos parágrafos precedentes, a saber, que o prazer extraído das
sensações de movimento passivo é de natureza sexual ou produz excitação sexual.
Mas o fato é que uma série de pessoas informa ter vivenciado os primeiros
sinais de excitação em sua genitália no curso de brigas ou lutas com seus
companheiros de brincadeiras, situação na qual, além do esforço muscular
generalizado, há ainda um estreito contato com a pele do oponente. A tendência
a travar lutas musculares com determinada pessoa, bem como, em épocas posteriores,
a inclinação às disputas verbais [“Provoca-se o que se ama”] são um bom sinal
de que a escolha de objeto recaiu sobre essa pessoa. Na promoção da excitação
sexual através da atividade muscular caberia reconhecer uma das raízes da
pulsão sádica. Em muitos indivíduos, a vinculação infantil entre as lutas
corporais e a excitação sexual é co-determinante da orientação privilegiada que
assumirá, mais tarde, sua pulsão sexual.
PROCESSOS
AFETIVOS
Menores
são as dúvidas a que ficam sujeitas as outras fontes de excitação sexual na
criança. É fácil demonstrar, tanto pela observação contemporânea quanto pela
investigação posterior, que todos os processos afetivos mais intensos,
inclusive as excitações assustadoras, propagam-se para a sexualidade, o que,
aliás, pode contribuir para a compreensão do efeito patogênico de tais abalos
anímicos. Nos escolares, o pavor de fazer uma prova ou a tensão diante de uma
tarefa difícil de solucionar podem ser importantes não só para seu
relacionamento com a escola, mas também para a irrupção de manifestações
sexuais, na medida em que, nessas circunstâncias, é muito freqüente surgir uma
sensação estimuladora que incita ao contato com a genitália, ou ainda um
processo da natureza de uma polução, como todas as suas conseqüências desconcertantes.
O comportamento das crianças na escola, que propõe aos professores um número
bastante grande de enigmas, merece, em geral, ser relacionado com o desabrochar
de sua sexualidade. O efeito sexualmente excitante de muitos afetos que em si
são desprazerosos, tais como a angústia, o medo ou o horror, conserva-se num
grande número de seres humanos por toda a vida, e sem dúvida explica por que
tantas pessoas correm atrás da oportunidade de vivenciar tais sensações, desde
que haja apenas certas circunstâncias secundárias (a pertença a um mundo
imaginário, à leitura ou ao teatro) para atenuar a gravidade da sensação
desprazerosa.
Presumindo-se
que também as sensações de dor intensa provoquem o mesmo efeito erógeno,
sobretudo quando a dor é abrandada ou mantida a distância por alguma condição
concomitante, estaria nessa vinculação uma das principais raízes da pulsão
sadomasoquista, de cujas múltiplas complexidades vamos assim ganhando aos
poucos algum discernimento.
TRABALHO
INTELECTUAL
Por fim,
é inequívoco que a concentração da atenção numa tarefa intelectual, bem como o
esforço intelectual em geral, têm por conseqüência produzir em muitas pessoas,
tanto jovens quanto adultas, uma excitação sexual concomitante, o que por certo
constitui a única base justificável para a tão duvidosa prática de derivar as
perturbações nervosas do “excesso de trabalho” intelectual.
Correndo
agora os olhos por essas provas e indícios fornecidos sobre as fontes da
excitação sexual infantil, e que não foram completos nem exaustivos, podemos
vislumbrar ou reconhecer os seguintes traços universais: parece que as mais
abundantes providências são tomadas para que o processo da excitação sexual -
cuja natureza decerto se tornou bastante enigmática para nós - seja posto em
andamento. Cuidam disso, antes de mais nada, e de maneira mais ou menos direta,
as excitações das superfícies sensíveis - a pele e os órgãos sensoriais -, e,
da maneira mais imediata, a influência dos estímulos sobre certas áreas
designadas como zonas erógenas. O elemento decisivo nessas fontes de excitação
sexual é, sem dúvida, a qualidade do estímulo, embora o fator da intensidade
(no caso da dor) não seja de todo indiferente. Além disso, porém, existem no
organismo dispositivos cuja conseqüência é fazer com que a excitação sexual
surja como um efeito concomitante num grande número de processos internos, tão
logo a intensidade desses processos ultrapasse certos limites quantitativos. O
que chamamos de pulsões parciais da sexualidade deriva diretamente dessas
fontes internas da excitação sexual , ou então se compõe de contribuições
vindas dessas fontes e das zonas erógenas. É possível que nada de maior
importância ocorra no organismo sem fornecer seus componentes para a excitação
da pulsão sexual.
Não me
parece possível, no momento, trazer maior clareza e segurança a essas
proposições gerais, e responsabilizo dois fatores por isso: primeiro, a
novidade de todo o método de abordagem, e segundo, a circunstância de a
natureza da excitação sexual ser-nos inteiramente desconhecida. Ainda assim, eu
não gostaria de renunciar a duas observações que prometem abrir-nos amplas
perspectivas:
AS
DIFERENTES CONSTITUIÇÕES SEXUAIS
(a) Assim como antes vimos ser possível
(ver em [1] e [2]) basear uma multiplicidade de constituições sexuais inatas na
formação diferenciada das zonas erógenas, podemos agora experimentar a mesma
coisa com a inclusão das fontes indiretas de excitação sexual. Podemos presumir
que essas fontes façam contribuições em todos os indivíduos, mas não tenham em
todas as pessoas a mesma intensidade, e que na conformação privilegiada de cada
fonte da excitação sexual situe-se outra contribuição para diferenciar as
diversas constituições sexuais.
VIAS DE
INFLUÊNCIA RECÍPROCA
(b) Se abandonarmos a expressão figurada a
que nos apegamos por tanto tempo ao falar em “fontes” da excitação sexual,
poderemos chegar à hipótese de que todas as vias de ligação que levam à
sexualidade, vindo de outras funções, devem também ser percorríveis na direção
inversa. Por exemplo, se o fato de a zona labial ser patrimônio comum de duas
funções é a razão por que a ingestão de alimentos gera uma satisfação sexual,
esse mesmo fator nos permite compreender que haja distúrbios na nutrição quando
as funções erógenas da zona comum são perturbadas. E, uma vez, que sabemos que
a concentração de atenção é capaz de provocar excitação sexual, somos levados a
supor que, atuando pela mesma via só que em sentido inverso, o estado de
excitação sexual pode influenciar a disponibilidade de atenção dirigível a
algo. Boa parte da sintomatologia das neuroses, que deduzo das perturbações nos
processos sexuais, expressa-se em perturbações de outras funções não-sexuais do
corpo; essa circunstância, até agora incompreensível, torna-se menos enigmática
quando se considera que representa apenas a contrapartidadas influências sob as
quais se dá a produção da excitação sexual.
Mas as
mesmas vias pelas quais as perturbações sexuais se propagam para as outras
funções do corpo devem também prestar, na saúde, um outro importante serviço.
Por elas se daria a atração das forças pulsionais da sexualidade para outros
alvos não-sexuais, ou seja, a sublimação da sexualidade. Mas devemos encerrar
com a confissão de que é ainda muito pouco o que se conhece com certeza sobre
essas vias, que sem dúvida existem e provavelmente são percorríveis em ambas as
direções.
AS TRANSFORMAÇÕES DA PUBERDADE
Com a
chegada da puberdade introduzem-se as mudanças que levam a vida sexual infantil
a sua configuração normal definitiva. Até esse momento, a pulsão sexual era
predominantemente auto-erótica; agora, encontra o objeto sexual. Até ali, ela
atuava partindo de pulsões e zonas erógenas distintas que, independendo umas
das outras, buscavam um certo tipo de prazer como alvo sexual exclusivo. Agora,
porém, surge um novo alvo sexual para cuja consecução todas as pulsões parciais
se conjugam, enquanto as zonas erógenas subordinam-se ao primado da zona
genital. Posto que o novo alvo sexual atribui aos dois sexos funções muito
diferentes, o desenvolvimento sexual de ambos passa agora a divergir muito. O
do homem é o mais conseqüente e também o mais facilmente acessível a nossa
compreensão, enquanto o da mulher representa até mesmo uma espécie de
involução. A normalidade da vida sexual só é assegurada pela exata convergência
das duas correntes dirigidas ao objeto sexual e à meta sexual: a de ternura e a
sensual. A primeira destas comporta em si o que resta da primitiva
eflorescência infantil da sexualidade. É como a travessia de um túnel perfurado
desde ambas as extremidades.
O novo
alvo sexual do homem consiste na descarga dos produtos sexuais; o anterior - a
obtenção do prazer - de modo algum lhe é estranho, mas antes, o mais alto grau
de prazer se vincula a esse ato último do processo sexual. A pulsão sexual
coloca-se agora a serviço da função reprodutora; torna-se altruísta, por assim
dizer. Para que essa transformação tenha êxito, é preciso contar, em seu
processo, com as disposições originárias e com todas as particularidades das
pulsões.
Como em
todas as outras ocasiões em que se devem realizar no organismo novas
combinações e composições que levam a mecanismos complexos, também aqui há uma
oportunidade para perturbações patológicas, caso essas reordenações não se
realizem. Todas as perturbações patológicas da vida sexual devem ser
consideradas, justificadamente, como inibições do desenvolvimento.
(1) O
PRIMADO DAS ZONAS GENITAIS E O PRÉ-PRAZER
O ponto
de partida e o alvo final do processo de desenvolvimento aqui descrito são
claros a nossos olhos. As transições intermediárias ainda nos são obscuras em
muitos aspectos; teremos de deixar subsistir nelas mais de um enigma.
Escolheu-se
o que mais se destaca nos processos da puberdade como o que constitui sua
essência: o crescimento manifesto da genitália externa, que exibira, durante o
período de latência da infância, uma relativa inibição. Ao mesmo tempo, o
desenvolvimento dos genitais internos avançou o bastante para que eles possam
descarregar produtos sexuais ou, conforme o caso, recebê-los para promover a
formação de um novo ser vivo. Assim ficou pronto um aparelho altamente
complexo, à espera do momento em que será utilizado.
Esse
aparelho deve ser acionado por estímulos, e a observação nos permite saber que
os estímulos podem afetá-los por três caminhos: vindo do mundo externo,
mediante a excitação das zonas erógenas já conhecidas, do interior do
organismo, por vias que ainda temos de explorar, e da vida anímica, que por sua
vez é um repositório de impressões externas e um receptor de excitações
internas. Pelos três caminhos provoca-se o mesmo efeito, ou seja, um estado que
se designa como “excitação sexual” e que se exprime por dois tipos de sinais,
anímicos e somáticos. O indício anímico consiste num sentimento peculiar de
tensão, de caráter extremamente premente; entre os múltiplos indícios corporais
situa-se, em primeiro lugar, uma série de alterações nos genitais, como o
inequívoco sentido de serem disposições preliminares, preparativos para o ato
sexual (a ereção do membro masculino e a umidificação da vagina).
TENSÃO
SEXUAL
O
caráter de tensão da excitação sexual suscita um problema cuja solução é tão
difícil quanto seria importante para a compreensão dos processos sexuais.
Apesar de todas as diferenças de opinião que reinam sobre esse ponto na
psicologia, devo insistir em que um sentimento de tensão tem de trazer em si o
caráter de desprazer. Para mim, o decisivo é que tal sentimento traz consigo
uma pressão para alterar a situação psíquica, impulsiona de uma maneira que é
totalmente estranha à natureza do prazer sentido. Mas, se a tensão da excitação
sexual for computada como um sentimento de desprazer, esbarraremos no fato de
que ela é inequivocamente experimentada como prazerosa. Sempre que é produzida
por processos sexuais, a tensão faz-se acompanhar pelo prazer, até mesmo nas
alterações preparatórias dos genitais evidencia-se uma espécie de satisfação.
Como, então, relacionar essa tensão desprazerosa com esse sentimento de prazer?
Tudo o
que se relaciona com o problema do prazer e do desprazer toca num dos pontos
mais sensíveis da psicologia atual. Procuraremos aprender o máximo possível a
partir das condições do caso em pauta e evitar qualquer abordagem mais estreita
do problema em sua totalidade.
Lancemos
primeiramente um olhar para o modo como as zonas erógenas se encaixam na nova
ordem. Sobre elas recai um papel importante na introdução da excitação sexual.
O olho, talvez o ponto mais afastado do objeto sexual, é o que com mais
freqüência pode ser estimulado, na situação de cortejar um objeto, pela
qualidade peculiar cuja causa no objeto sexual costuma ser chamada de “beleza”.
Daí se chamarem “atrativos” os méritos do objeto sexual. A essa estimulação já
se liga, por um lado, um prazer, e pelo outro ela tem como conseqüência um
aumento da excitação sexual ou a produção dela, caso ainda esteja faltando. Se
a isso vem somar-se a excitação de outra zona erógena, por exemplo, a da mão
que é tocada, o efeito é o mesmo: uma sensação de prazer, de um lado, que logo
se intensifica pelo prazer proveniente das alterações preparatórias [da
genitália], e, de outro, um aumento da tensão sexual, que logo se converte no
mais evidente desprazer quando não lhe é permitido o acesso a um prazer
ulterior. Talvez mais transparente ainda seja um outro caso: por exemplo,
quando se estimula por contato, numa pessoa não excitada sexualmente, uma dada
zona erógena, digamos, a pele do seio de uma mulher. Esse contato logo provoca
uma sensação prazerosa, mas, ao mesmo tempo, presta-se como nenhum outro para
despertar uma excitação sexual que exige um aumento do prazer. O problema está
justamente em saber como é que o prazer vivenciado pode despertar a necessidade
de um prazer ainda maior.
O
MECANISMO DO PRÉ-PRAZER
Ora, o
papel desempenhado nisso pelas zonas erógenas é claro. O que vale para uma
delas vale para todas. Elas são todas usadas para proporcionar, mediante sua
estimulação apropriada, um certo aumento do prazer; este leva a um acréscimo de
tensão que, por sua vez, tem de produzir a energia motora necessária para levar
a cabo o ato sexual. A penúltima etapa desse ato, mais uma vez, é a estimulação
apropriada de uma zona erógena (a própria zona genital, na glande peniana) pelo
objeto mais adequado para isso (a mucosa da vagina); e do prazer gerado por
essa excitação obtém-se, dessa vez por via reflexa, a energia motora requerida
para a expulsão das substâncias sexuais. Esse último prazer é o de intensidade
mais elevada e difere dos anteriores por seu mecanismo. É inteiramente provocado
pela descarga: em sua totalidade, é um prazer de satisfação, e com ele se
extingue temporariamente a tensão da libido.
Não me
parece injustificável fixar através de uma denominação essa diferença de
natureza entre o prazer advindo da excitação das zonas erógenas e o que é
produzido pela expulsão das substâncias sexuais. O primeiro pode ser
convenientemente designado de pré-prazer, em oposição ao prazer final
ou prazer de satisfação da atividade sexual. O pré-prazer, portanto, é o mesmo
que já pudera ser produzido, embora em menor escala, pela pulsão sexual
infantil; o prazer final é novo e, portanto, provavelmente está ligado a
condições que só surgem na puberdade. A fórmula para a nova função das zonas
erógenas tem, assim, o seguinte teor: elas são empregadas para possibilitar,
por meio do pré-prazer delas extraído, como na infância, a produção do prazer
maior da satisfação.
Pude
recentemente elucidar outro exemplo, retirado de uma esfera muito diferente do
acontecer anímico, em que se alcança igualmente um efeito maior de prazer
através de uma sensação prazerosa insignificante, que atua, assim, como um
prêmio de incentivo. Surgiu também ali a oportunidade de nos aprofundarmos mais
na natureza do prazer.
OS
PERIGOS DO PRÉ-PRAZER
A
ligação do pré-prazer com a vida sexual infantil, entretanto, é corroborada
pelo papel patogênico que pode competir a ele. Do mecanismo em que está
incluído o pré-prazer pode resultar, evidentemente, um perigo para a consecução
do alvo sexual normal, perigo este que surge quando, em algum ponto dos
processos sexuais preparatórios, o pré-prazer se revela demasiadamente grande,
e pequena demais sua contribuição para a tensão. Falta então a força pulsional
para que o processo sexual seja levado adiante, todo o caminho se encurta, e a
ação preparatória correspondente toma o lugar do alvo sexual normal. A
experiência nos ensina que a precondição dessa eventualidade perniciosa é que,
já na vida infantil, a zona erógena em questão ou a pulsão parcial
correspondente haja contribuído numa medida incomum para a obtenção de prazer.
Quando a isso vem ainda somar-se fatores que promovem a fixação, é fácil surgir
em época posterior da vida uma compulsão que resiste à incorporação desse
pré-prazer específico num novo contexto. É dessa natureza, de fato, o mecanismo
de muitas perversões, que consistem numa demora nos atos preparatórios do
processo sexual.
O
malogro da função do mecanismo sexual por culpa do pré-prazer é mais facilmente
evitado quando, já na vida infantil, pronuncia-se igualmente o primado das
zonas genitais. As medidas para isso parecem realmente ser tomadas na segunda
metade da infância (dos oito anos até a puberdade). Durante esses anos, as
zonas genitais já se comportam de maneira semelhante à da maturidade: convertem-se
na sede de sensações de excitação e alterações preparatórias sempre que se
sente algum prazer pela satisfação de outras zonas erógenas, embora esse efeito
continue desprovido de finalidade, ou seja, não contribua em nada para o
prosseguimento do processo sexual. Já na infância, portanto, junto ao prazer de
satisfação, surge uma certa dose de tensão sexual, se bem que menos constante e
menos profusa, e agora podemos entender por que, ao discutir as fontes da
sexualidade, foi-nos igualmente lícito dizer que o processo em questão
provocava, quer uma satisfação sexual, quer uma excitação sexual. [Ver em [1].]
Observe-se que, no percurso para o conhecimento, começamos por fazer uma idéia
muito exagerada da diferença entre a vida sexual infantil e a madura, e agora
fazemos uma emenda a isso. Não só os desvios da vida sexual normal, como também
a configuração normal desta são determinados pelas manifestações infantis da
sexualidade.
(2) O
PROBLEMA DA EXCITAÇÃO SEXUAL
Ficaram-nos
ainda inteiramente por esclarecer tanto a origem quanto a natureza da tensão
sexual que surge simultaneamente com o prazer ao serem satisfeitas as zonas
erógenas. A suposição mais óbvia, ou seja, a de que essa tensão brota de algum
modo do próprio prazer, não só é muito improvável em si, como fica também
anulada ao considerarmos que, no prazer máximo, o que se vincula à descarga dos
produtos sexuais, não se produz tensão alguma, porém, ao contrário, toda a
tensão é abolida. Assim, prazer e tensão sexual só podem estar relacionados de
maneira indireta.
O PAPEL
DAS SUBSTÂNCIAS SEXUAIS
À parte
o fato de que, normalmente, só a descarga das substâncias sexuais põe fim à
excitação sexual, temos ainda outros pontos de referência para relacionar a
tensão sexual com os produtos sexuais. Numa vida de continência, o aparelho
sexual costuma livrar-se das substâncias sexuais durante a noite, a intervalos
variáveis, mas não desordenados, com uma sensação de prazer e no curso da
alucinação onírica de um ato sexual. No tocante a esse processo - a polução noturna
-, é difícil evitar a concepção de que a tensão sexual, que sabe descobrir o
atalho alucinatório como substituto do ato em si, é uma função da acumulação de
sêmen nos reservatórios de produtos sexuais. Depõem no mesmo sentido as
experiências feitas sobre o caráter esgotável do mecanismo sexual. Quando se
esgota a reserva de sêmen, não só a execução do ato sexual é impossível, como
também cessa a estimulabilidade das zonas erógenas, cuja excitação já não é
capaz de provocar nenhum prazer. Assim nos inteiramos, de passagem, de que
certa dose de tensão sexual é necessária até mesmo para a excitabilidade das
zonas erógenas.
Somos
assim levados ao que, se não estou equivocado, é a hipótese bastante difundida
de que a acumulação das substâncias sexuais cria e mantém a tensão sexual; isso
talvez se deva à pressão desses produtos nas paredes de seus receptáculos, que
atuariam como um estímulo num centro medular cujo estado seria percebido pelos
centros superiores e geraria, na consciência, a conhecida sensação de tensão.
Se a excitação das zonas erógenas aumenta a tensão sexual, isso só poderia
acontecer pressupondo-se que elas tenham uma ligação anatômica prefigurada com
esses centros, elevem o tônus de excitação neles e, sendo suficiente a tensão,
ponham em marcha o ato sexual, ou, sendo ela insuficiente, estimulem a produção
das substâncias sexuais.
Os
pontos fracos dessa doutrina, que vemos aceita, por exemplo, na exposição de
Krafft-Ebing sobre os processos sexuais, residem em que, tendo sido criada para
explicar a atividade sexual do homem adulto, ela pouco leva em conta três
situações cujo esclarecimento deveria igualmente proporcionar. São elas as
situações das crianças, das mulheres e dos homens castrados. Em nenhum desses
três casos é possível falar numa acumulação de produtos sexuais no mesmo
sentido que no homem, o que dificulta uma aplicação uniforme desse esquema;
todavia, cabe admitir desde logo que seria possível encontrar meios pelos quais
também esses casos lhe ficariam subordinados. De qualquer modo, persiste a
advertência de que não devemos imputar ao fator da acumulação de produtos
sexuais realizações de que ele não parece capaz.
APRECIAÇÃO
DOS ÓRGÃOS SEXUAIS INTERNOS
As
observações feitas em homens castrados parecem mostrar que a excitação sexual
pode independer em grau considerável da produção de substâncias sexuais.
Ocasionalmente, sua libido escapa ao prejuízo trazido pela operação de
castração, embora a regra seja a limitação de libido, que aliás é o que motiva
essa medida. Além disso, há muito se sabe que as doenças que eliminam a
produção de células sexuais masculinas deixam intactas a libido e a potência do
indivíduo agora estéril. Portanto, de modo algum é tão assombroso quanto o
considera Rieger [1900] que a perda das glândulas sexuais masculinas na
maturidade possa não ter maior influência no comportamento anímico do
indivíduo. É certo que a castração praticada em idade precoce, antes da
puberdade, aproxima-se, em seu efeito, do objetivo de suprimir os caracteres
sexuais, embora aqui, além da perda das glândulas sexuais em si, também possa
entrar em jogo uma inibição do desenvolvimento de outros fatores, vinculada a
essa perda.
TEORIA
QUÍMICA
As
experiências feitas com a extirpação das gônadas (testículos e ovários) de
animais, bem como o correspondente reimplante desses órgãos em vertebrados do
sexo oposto, finalmente lançaram uma luz parcial sobre a origem da excitação
sexual e, com isso, reduziram ainda mais a importância da eventual acumulação
de produtos celulares sexuais. Tornou-se possível o experimento (E. Steinach)
de transformar um macho numa fêmea e, inversamente, uma fêmea num macho,
processo em que a conduta psicossexual dos animais se altera de acordo com os
caracteres sexuais somáticos e ao mesmo tempo que eles. Mas essa influência
determinante do sexo não deve ser atribuída à participação das gônadas que
produz as células sexuais específicas (espermatozóides e óvulo), mas sim a seu
tecido intersticial, que por isso tem sido destacado pelos autores como
“glândula da puberdade”. É muito possível que as investigações posteriores
venham a revelar que essa glândula da puberdade tem normalmente uma disposição
hermafrodita, com o que ficaria anatomicamente fundamentada a doutrina da
bissexualidade dos animais superiores; e já é provável que essa glândula não
seja o único órgão relacionado com a produção da excitação sexual e dos
caracteres sexuais. De qualquer modo, essa nova descoberta biológica ajusta-se
ao que já verificamos antes sobre o papel da glândula tireóide na sexualidade.
Assim, estamos autorizados a supor que na porção intersticial das gônadas
produzem-se substâncias químicas especiais que, absorvidas na corrente
sangüínea, carregam de tensão sexual determinadas partes do sistema nervoso
central. Já temos conhecimento, a partir do caso das substâncias tóxicas
introduzidas no corpo como algo estranho, de tal transformação de um estímulo
tóxico num estímulo que atua em determinado órgão. Quanto ao modo como a
excitação sexual é gerada pela estimulação das zonas erógenas, uma vez
carregado o aparelho central, e às interações surgidas no curso desses
processos sexuais entre os efeitos dos estímulos puramente tóxicos e os dos
fisiológicos, isso ainda só pode ser tratado hipoteticamente e não constitui
tarefa oportuna aqui. Basta que nos atenhamos, como o essencial nessa concepção
dos processos sexuais, à hipótese de que existem substâncias peculiares
provenientes do metabolismo sexual. Essa colocação aparentemente arbitrária
apóia-se num conhecimento pouco levado em conta, porém digno da mais alta
consideração. As neuroses, que só podem ser atribuídas a perturbações na vida
sexual, mostram a mais extrema semelhança clínica com os fenômenos de
intoxicação e abstinência decorrentes do uso habitual de substâncias tóxicas produtoras
de prazer (alcalóides).
(3) A
TEORIA DA LIBIDO
Combinam
bem com essas hipóteses sobre a base química da excitação sexual as noções de
que nos valemos para procurar dominar as manifestações psíquicas da vida
sexual. Estabelecemos o conceito da libido como uma força
quantitativamente variável que poderia medir os processos e transformações
ocorrentes no âmbito da excitação sexual. Diferenciamos essa libido, no tocante
a sua origem particular, da energia que se supõe subjacente aos processos
anímicos em geral, e assim lhe conferimos também um caráter qualitativo. Ao
separar a energia libidinosa de outras formas de energia psíquica, damos
expressão à premissa de que os processos sexuais do organismo diferenciam-se
dos processos de nutrição por uma química especial. A análise das perversões e
das psiconeuroses levou-nos à compreensão de que essa excitação sexual é
fornecida não só pelas chamadas partes sexuais, mas por todos os órgãos do
corpo. Chegamos assim à representação [Vorstellung] de um quantum
de libido a cujo substituto [Vertretung] psíquico damos o nome de libido
do ego, e cuja produção, aumento ou diminuição, distribuição e deslocamento
devem fornecer-nos possibilidades de explicar os fenômenos psicossexuais
observados.
Essa
libido do ego, no entanto, só é convenientemente acessível ao estudo analítico
depois de ter sido psiquicamente empregada para investir os objetos sexuais, ou
seja, quando se converteu em libido do objeto. Vemo-la então
concentrar-se nos objetos, fixar-se neles ou abandoná-los, passar de uns para
outros e, partindo dessas posições, nortear no indivíduo a atividade sexual que
leva à satisfação, ou seja, à extinção parcial e temporária da libido. A
psicanálise das chamadas neuroses de transferência (histeria e neurose
obsessiva) nos proporciona uma clara visão disso.
Podemos
ainda inteirar-nos, no tocante aos destinos da libido, de que ela é retirada
dos objetos, mantém-se em suspenso em estados particulares de tensão e, por
fim, é trazida de volta para o interior do ego, assim se reconvertendo em
libido do ego. Em contraste com a libido do objeto, também chamamos a libido do
ego de libido narcísica. Do ponto de observação da psicanálise podemos
contemplar, como que por sobre uma fronteira cuja ultrapassagem não nos é
permitida, a movimentação da libido narcísica, formando assim uma idéia da
relação entre ela e a libido objetal. A libido narcísica ou do ego parece-nos
ser o grande reservatório de onde partem as catexias de objeto e no qual elas
voltam a ser recolhidas, e a catexia libidinosa narcísica do ego se nos afigura
como o estado originário realizado na primeira infância, que é apenas encoberto
pelas emissões posteriores de libido, mas no fundo se conserva por trás delas.
Deveria
ser tarefa de uma teoria da libido, no campo dos distúrbios neuróticos e
psicóticos, expressar todos os fenômenos observados e os processos deduzidos em
termos da economia libidinal. É fácil inferir que, nesse contexto, cabe aos
destinos da libido do ego a significação maior, sobretudo quando se trata de
explicar as perturbações psicóticas mais profundas. A dificuldade reside,
então, em que o veículo de nossas investigações, a psicanálise, só nos
proporciona informações seguras, por enquanto, sobre as transformações da libido
de objeto, mas não consegue estabelecer uma distinção imediata entre a libido e
as outras formas de energia que operam no ego.
Por
isso, de momento, a continuação da teoria da libido só é possível pelo caminho
da especulação. Entretanto, renuncia-se a tudo o que foi ganho até agora com a
observação psicanalítica quando, a exemplo de C.G. Jung, dissolve-se o próprio
conceito de libido ao equacioná-lo com a força pulsional psíquica em geral. A
distinção entre as moções pulsionais sexuais e as restantes, e, portanto, a
restrição do conceito de libido às primeiras, encontra forte apoio na hipótese
já discutida de uma química particular da função sexual.
(4)
DIFERENCIAÇÃO ENTRE O HOMEM E A MULHER
Sabe-se
que somente com a puberdade se estabelece a separação nítida entre os
caracteres masculinos e femininos, num contraste que tem, a partir daí, uma
influência mais decisiva do que qualquer outro sobre a configuração da vida
humana. É certo que já na infância se reconhecem bem as disposições masculinas
e femininas; o desenvolvimento das inibições da sexualidade (vergonha, nojo,
compaixão etc.) ocorre nas garotinhas mais cedo e com menor resistência do que
nos meninos; nelas, em geral, a tendência ao recalcamento sexual parece maior,
e quando se tornam visíveis as pulsões parciais da sexualidade, elas preferem a
forma passiva. Mas a atividade auto-erótica das zonas erógenas é idêntica em
ambos os sexos, e essa conformidade suprime na infância a possibilidade de uma
diferenciação sexual como a que se estabelece depois da puberdade. Com respeito
às manifestações auto-eróticas e masturbatórias da sexualidade, poder-se-ia
formular a tese de que a sexualidade das meninas tem um caráter inteiramente
masculino. A rigor, se soubéssemos dar aos conceitos de “masculino” e “ feminino”
um conteúdo mais preciso, seria possível defender a alegação de que a libido é,
regular e normativamente, de natureza masculina, quer ocorra no homem ou na
mulher, e abstraindo seu objeto, seja este homem ou mulher.
Desde
que me familiarizei com a noção de bissexualidade, passei a considerá-la como o
fator decisivo e penso que, sem levá-la em conta, dificilmente se poderá chegar
a uma compreensão das manifestações sexuais efetivamente no homem e na mulher.
ZONAS
DOMINANTES NO HOMEM E NA MULHER
Afora
isso, só tenho a acrescentar o seguinte: nas meninas, a zona erógena dominante
situa-se no clitóris e é, portanto, homóloga à zona genital masculina, a
glande. Tudo o que pude averiguar pela experiência sobre a masturbação nas
meninas relacionou-se com o clitóris, e não com as partes da genitália externa
que são posteriormente significativas para as funções sexuais. Chego mesmo a
duvidar de que a menina, sob a influência da sedução, possa ser levada a outra
coisa que não a masturbação clitoridiana; a ocorrência disso é totalmente
excepcional. As descargas espontâneas de excitação sexual, tão corriqueiras
justamente na menina pequena, expressam-se em contrações do clitóris, e as
freqüentes ereções deste órgão facultam à menina formular um juízo acertado, mesmo
sem nenhuma instrução, sobre as manifestações sexuais do sexo oposto: ela
meramente transfere para os meninos as sensações de seus próprios processos
sexuais.
Quando
se quer compreender a transformação da menina em mulher, é preciso acompanhar
as vicissitudes posteriores dessa excitabilidade do clitóris. A puberdade, que
no menino traz um avanço tão grande da libido, distingue-se, na menina, por uma
nova onda de recalcamento que afeta justamente a sexualidade do clitóris. O que
assim sucumbe ao recalcamento é uma parcela de sexualidade masculina. O reforço
das inibições sexuais criado por esse recalcamento da puberdade na mulher
fornece então um estímulo à libido do homem, e obriga a um aumento de sua
atividade; com essa intensificação da libido aumenta também a supervalorização
sexual, que só aparece plenamente diante da mulher que recusa, que renega sua
sexualidade. Quando enfim o ato sexual é permitido, o próprio clitóris é
excitado e compete a ele o papel de retransmitir essa excitação para as partes
femininas vizinhas, assim como as lascas de lenha resinosa podem ser
aproveitadas para atear fogo a um pedaço de lenha mais dura. Para que se efetue
essa transferência, é preciso amiúde um certo intervalo de tempo, durante o
qual a moça fica insensível. Essa anestesia pode tornar-se permanente, quando a
zona clitoridiana se recusa a abrir mão de sua excitabilidade, o que é
preparado justamente por sua atividade intensa na vida infantil. Sabe-se que,
muitas vezes, a anestesia da mulher é apenas aparente e localizada. Elas ficam
anestesiadas na vagina, porém de modo algum são incapazes de excitação no
clitóris ou mesmo em outras zonas. A esses determinantes erógenos da anestesia
vêm então somar-se os determinantes psíquicos, igualmente condicionados pelo recalcamento.
Quando a
mulher transfere a excitabilidade erógena do clitóris para a vagina, ela muda a
zona dominante para sua atividade sexual posterior, ao passo que o homem
conserva a dele desde a infância. Nessa mudança da zona erógena dominante,
assim como na onda de recalcamento da puberdade, que elimina, por assim dizer,
a masculinidade infantil, residem os principais determinantes da propensão das
mulheres para a neurose, especialmente a histeria. Esses determinantes,
portanto, estão intimamente relacionados com a natureza da feminilidade.
(5) O
ENCONTRO DO OBJETO
Durante
os processos da puberdade firma-se o primado das zonas genitais e, no homem, o
ímpeto do membro agora capaz de ereção remete imperiosamente para o novo alvo
sexual: a penetração numa cavidade do corpo que excite sua zona genital. Ao
mesmo tempo, consuma-se no lado psíquico o encontro do objeto para qual o
caminho fora preparado desde a mais tenra infância. Na época em que a mais
primitiva satisfação sexual estava ainda vinculada à nutrição, a pulsão sexual
tinha um objeto fora do corpo próprio, no seio materno. Só mais tarde vem a
perdê-lo, talvez justamente na época em que a criança consegue formar para si
uma representação global da pessoa a quem pertence o órgão que lhe dispensava
satisfação. Em geral, a pulsão sexual torna-se auto-erótica, e só depois de
superado o período de latência é que se restabelece a relação originária. Não é
sem boas razões que, para a criança, a amamentação no seio materno toma-se
modelar para todos os relacionamentos amorosos. O encontro do objeto é, na
verdade, um reencontro.
O OBJETO
SEXUAL NAFASE DE AMAMENTAÇÃO
Todavia,
desses primeiros e mais importantes de todos os vínculos sexuais, resta, mesmo
depois que a atividade sexual se separa da nutrição, uma parcela significativa
que ajuda a preparar a escolha do objeto e, dessa maneira, restaurar a
felicidade perdida. Durante todo o período de latência a criança aprende a amar
outras pessoas que a ajudam em seu desamparo e satisfazem suas necessidades, e
o faz segundo o modelo de sua relação de lactente com a ama e dando
continuidade a ele. Talvez se queira contestar a identificação do amor sexual
com os sentimentos ternos e a estima da criança pelas pessoas que cuidam dela,
mas penso que uma investigação psicológica mais rigorosa permitirá estabelecer
essa identidade acima de qualquer dúvida. O trato da criança com a pessoa que a
assiste é, para ela, uma fonte incessante de excitação e satisfação sexuais
vindas das zonas erógenas, ainda mais que essa pessoa - usualmente, a mãe -
contempla a criança com os sentimentos derivados de sua própria vida sexual:
ela a acaricia, beija e embala, e é perfeitamente claro que a trata como o
substituto de um objeto sexual plenamente legítimo. A mãe provavelmente se horrorizaria
se lhe fosse esclarecido que, com todas as suas expressões de ternura, ela está
despertando a pulsão sexual de seu filho e preparando a intensidade posterior
desta. Ela considera seu procedimento como um amor “puro”, assexual, já que
evita cuidadosamente levar aos genitais da criança mais excitações do que as
inevitáveis no cuidado com o corpo. Mas a pulsão sexual, como bem sabemos, não
é despertada apenas pela excitação da zona genital; aquilo a que chamamos
ternura um dia exercerá seus efeitos, infalivelmente, também sobre as zonas
genitais. Aliás, se a mãe compreendesse melhor a suma importância das pulsões
para a vida anímica como um todo, para todas as realizações éticas e psíquicas,
ela se pouparia das auto-recriminações mesmo depois desse esclarecimento.
Quando ensina seu filho a amar, está apenas cumprindo sua tarefa; afinal, ele
deve transformar-se num ser humano capaz, dotado de uma vigorosa necessidade
sexual, e que possa realizar em sua vida tudo aquilo a que os seres humanos são
impelidos pela pulsão. É verdade que o excesso de ternura por parte dos pais
torna-se pernicioso, na medida em que acelera a maturidade sexual e também,
“mimando” a criança, torna-a incapaz de renunciar temporariamente ao amor em
épocas posteriores da vida, ou de se contentar com menor dose dele. Um dos
melhores prenúncios de neurose posterior é quando a criança se mostra
insaciável em sua demanda de ternura dos pais; por outro lado, são justamente
os pais neuropáticos, que em geral tendem a exibir uma ternura desmedida, os
que mais contribuem, com suas carícias, para despertar a disposição da criança
para o adoecimento neurótico. Deduz-se desse exemplo, aliás, que os pais
neuróticos têm caminhos mais diretos que o da herança para transferir sua
perturbação para seus filhos.
ANGÚSTIA
INFANTIL
As
próprias crianças se comportam, desde cedo, como se sua afeição pelas pessoas
que a assistem fosse da natureza do amor sexual. A angústia das crianças não é,
originariamente, nada além da expressão da falta que sentem da pessoa amada;
por isso elas se angustiam diante de qualquer estranho; temem a escuridão
porque, nesta, não vêem a pessoa amada, e se deixam acalmar quando podem
segurar-lhe a mão na obscuridade. Atribuir a todos os bichos-papões da infância
e a todas as histórias horripilantes contadas pelas babás a culpa por
provocarem nervosismo na criança é superestimar-lhes o efeito. Só as crianças
propensas ao estado de angústia é que acolhem essas histórias, que em outras
não causam nenhuma impressão; e só tendem ao estado de angústia as crianças com
uma pulsão sexual desmedida, ou prematuramente desenvolvida, ou que se tornou
muito exigente em função dos mimos excessivos. Nesse aspecto, a criança
porta-se como o adulto, na medida em que transforma sua libido em angústia
quando não pode satisfazê-la; e inversamente, o adulto neurotizado pela libido
insatisfeita comporta-se como uma criança em sua angústia: começa a sentir medo
tão logo fica sozinho, ou seja, sem uma pessoa de cujo amor se acredite seguro,
e a querer aplacar esse medo através das medidas mais pueris.
A
BARREIRA DO INCESTO
Quando a
ternura dos pais pelo filho é bem-sucedida em evitar que a pulsão seja
prematuramente despertada nele, ou seja, antes que se dêem as condições
somáticas da puberdade, e despertada com tal força que a excitação anímica
irrompa de maneira inconfundível no sistema genital, essa ternura pode cumprir
sua tarefa de orientar esse filho, na maturidade, em sua escolha do objeto
sexual. Sem dúvida, o caminho mais curto para o filho seria escolher como
objetos sexuais as mesmas pessoas a quem ama, desde a infância, com uma libido,
digamos, amortecida. Com o adiamento da maturação sexual, entretanto, ganhou-se
tempo para erigir, junto a outros entraves à sexualidade, a barreira do incesto,
para que assim se integrem os preceitos morais que excluem expressamente da
escolha objetal, na qualidade de parentes consangüíneos, as pessoas amadas na
infância. O respeito a essa barreira é, acima de tudo, uma exigência cultural
da sociedade, esta tem de se defender da devastação, pela família, dos
interesses que lhe são necessários para o estabelecimento de unidades sociais
superiores, e por isso, em todos os indivíduos, mas em especial nos
adolescentes, lança mão de todos os recursos para afrouxar-lhes os laços com a
família, os únicos que eram decisivos na infância.
Mas é na
[esfera da] representação que se consuma inicialmente a escolha do objeto, e a
vida sexual do jovem em processo de amadurecimento não dispõe de outro espaço
que não o das fantasias, ou seja, o das representações não destinadas a
concretizar-se. Nessas fantasias, as inclinações infantis voltam a emergir em
todos os seres humanos, agora reforçadas pela premência somática, e entre elas,
com freqüência uniforme e em primeiro lugar, o impulso sexual da criança em
direção aos pais, quase sempre já diferenciado através da atração pelo sexo
oposto: a do filho pela mãe e a da filha pelo pai. Contemporaneamente à
subjugação e ao repúdio dessas fantasias claramente incestuosas consuma-se uma
das realizações psíquicas mais significativas, porém também mais dolorosas, do
período da puberdade: o desligamento da autoridade dos pais, unicamente através
do qual se cria a oposição, tão importante para o progresso da cultura, entre a
nova e a velha gerações. Em cada uma das etapas do curso de desenvolvimento por
que todos os indivíduos são obrigados a passar, um certo número deles fica
retido, de modo que há pessoas que nunca superam a autoridade dos pais e não
retiram deles sua ternura, ou só o fazem de maneira muito incompleta. Em sua
maioria, são moças que, para a alegria dos pais, persistem em seu amor infantil
muito além da puberdade, e é muito instrutivo constatar que é a essas moças que
falta, em seu posterior casamento, a capacidade de dar ao marido o que é devido
a ele. Tornam-se esposas frias e permanecem sexualmente anestesiadas. Com isso
se aprende que o amor sexual e o que parece ser um amor não-sexual pelos pais
alimentam-se das mesmas fontes, ou seja, o segundo corresponde apenas a uma fixação
infantil da libido.
Quanto
mais perto se chega das perturbações mais profundas do desenvolvimento
psicossexual, mais se destaca, de maneira inequívoca, a importância da escolha
objetal incestuosa. Nos psiconeuróticos, grande parte da atividade psicossexual
destinada ao encontro do objeto, ou a totalidade dela, permanece no
inconsciente, em decorrência de seu repúdio da sexualidade. Para as moças com
uma necessidade exagerada de ternura e um horror igualmente desmedido às
exigências reais da vida sexual, torna-se uma tentação irresistível, por um
lado, realizar em sua vida o ideal do amor assexual, e por outro, ocultar sua
libido por trás de uma ternura que possam expressar sem auto-recriminações,
agarrando-se por toda a vida a sua inclinação infantil, renovada na puberdade,
para os pais ou irmãos. A psicanálise mostra a essas pessoas, sem esforço, que
elas estão enamoradas, no sentido corriqueiro da palavra, desses seus
parentes consangüíneos, uma vez que, com a ajuda dos sintomas e outras
manifestações da doença, rastreia-lhes os pensamentos inconscientes e os traduz
em pensamentos conscientes. Também nos casos em que uma pessoa anteriormente
sadia adoece após uma experiência amorosa infeliz, pode-se descobrir com
segurança que o mecanismo de seu adoecimento consiste numa reversão de sua
libido para as pessoas preferidas na infância.
AS
REPERCUSSÕES DA ESCOLHA OBJETAL INFANTIL
Mesmo
quem teve a felicidade de evitar a fixação incestuosa de sua libido não escapa
inteiramente a sua influência. Observa-se um eco muito claro dessa fase do
desenvolvimento quando o primeiro enamoramento sério de um rapaz, como é tão
freqüente, recai sobre uma mulher madura, e o da moça, sobre um homem mais
velho e dotado de autoridade, já que essas figuras lhes podem revivescer as
imagens da mãe e do pai. Talvez a escolha do objeto se dê, em geral, mediante
um apoio mais livre nesses modelos. O homem, sobretudo, busca a imagem mnêmica
da mãe, tal como essa imagem o dominou desde os primórdios da infância; e está
em perfeita harmonia com isso que a mãe, ainda viva, oponha-se a essa reedição
dela mesma e a trate com hostilidade. Em vista dessa importância do
relacionamento infantil com os pais para a escolha posterior do objeto sexual,
é fácil compreender que qualquer perturbação desse relacionamento terá as mais
graves conseqüências para a vida sexual na maturidade; também ao ciúme dos
amantes nunca falta uma raiz infantil, ou pelo menos um reforço infantil. As
desavenças entre os pais ou seu casamento infeliz condicionam a mais grave
predisposição para o desenvolvimento sexual perturbado ou o adoecimento
neurótico dos filhos.
A
afeição infantil pelos pais é sem dúvida o mais importante, embora não o único,
dos vestígios que, reavivados na puberdade, apontam o caminho para a escolha do
objeto. Outros rudimentos com essa mesma origem permitem ao homem, sempre
apoiado em sua infância, desenvolver mais de uma orientação sexual e
criar condições muito diversificadas para sua escolha objetal.
PREVENÇÃO
DA INVERSÃO
Uma das
tarefas implícitas na escolha do objeto consiste em não se desencontrar do sexo
oposto. Isso, como é sabido, não se soluciona sem um certo tateamento. Com
freqüência, as primeiras moções depois da puberdade se extraviam, sem que haja
nenhum dano permanente. Dessoir [1894] assinalou acertadamente a regularidade
que se deixa entrever nas amizades apaixonadas dos rapazes e moças adolescentes
por outros do mesmo sexo. A grande força que repele a inversão permanente do
objeto sexual é, sem dúvida, a atração que os caracteres sexuais opostos
exercem entre si; no contexto desta discussão, nada podemos dizer para
esclarecê-la. Mas esse fator não basta, por si só, para excluir a inversão;
diversos outros fatores auxiliares vêm juntar-se a ele. Acima de tudo, há o
entrave autoritário da sociedade; quando a inversão não é considerada um crime,
vê-se que ela responde plenamente às inclinações sexuais de um número nada
pequeno de indivíduos. Pode-se ainda presumir, no tocante ao homem, que sua
lembrança infantil de ternura da mãe e de outras pessoas do sexo feminino a
quem ficava entregue quando criança contribui energicamente para nortear sua
escolha para a mulher, ao passo que a intimidação sexual precoce que
experimentou por parte do pai e sua atitude competitiva com relação a ele desvia-o
de seu próprio sexo. Mas ambos os fatores aplicam-se também à menina, cuja
atividade sexual fica sob a guarda especial da mãe. Daí resulta uma relação
hostil com o mesmo sexo, que influencia decisivamente a escolha do objeto no
sentido considerado normal. A educação dos meninos por pessoas do sexo
masculino (pelos escravos, na antigüidade) parece favorecer o homossexualismo;
a freqüência da inversão na aristocracia de hoje torna-se um pouco mais
inteligível diante de seu emprego de criados do sexo masculino, bem como pelos
maiores cuidados pessoais que a mãe dedica aos filhos. Em muitos histéricos,
vê-se que a ausência precoce de um dos pais (por morte, divórcio ou separação),
em função da qual o remanescente absorveu a totalidade do amor da criança, foi
o determinante do sexo da pessoa posteriormente escolhida como objeto sexual,
com isso possibilitando-se a inversão permanente.
Continua na parte 2