Freud - Obras Completas V

A interpretação dos sonhos
(Segunda parte)
e
Sobre os sonhos
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VOLUME V
(1900-1901)



DIE
TRAUMDEUTUNG
von
Dr. SIGMUND FREUD

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FLECTERE SI NEQUEO SUPEROS, ACHERONTA MOVEBO.
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LEIPZIG UND WIEN.
FRANZ DEUTICKE.
1900-1901

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Capítulo VI (continuação)

(D) CONSIDERAÇÃO À REPRESENTABILIDADE

Ocupamo-nos até agora com a investigação dos meios pelos quais os sonhos representam as relações entre os pensamentos oníricos. No curso dessa pesquisa, porém, tocamos mais de uma vez no tópico adicional da natureza geral das modificações por que passa o material dos pensamentos do sonho para fins de formação de um sonho. Aprendemos que esse material, despojado em grande parte de suas relações, é submetido a um processo de compressão, enquanto que, ao mesmo tempo, os deslocamentos de intensidade entre seus elementos promovem necessariamente uma transposição psíquica dos valores do material. Os deslocamentos que examinamos até agora mostraram consistir na substituição de alguma representação particular por outra estreitamente associada a ela em algum aspecto, e foram utilizados para facilitar a condensação, na medida em que, por meio deles, em vez de dois elementos, um único elemento intermediário comum a ambos penetra no sonho. Ainda não nos referimos a nenhum outro tipo de deslocamento. As análises nos mostram, contudo, que existe uma outra espécie, e que ela se revela numa mudança da expressão verbal dos pensamentos em causa. Em ambos os casos, há um deslocamento ao longo de uma cadeia de associações; mas um processo de tal natureza pode ocorrer em várias esferas psíquicas, e o resultado do deslocamento pode ser, num caso, a substituição de um elemento por outro, enquanto o resultado em outro caso pode ser o de um elemento isolado ter sua forma verbal substituída por outra.
Esta segunda espécie de deslocamento que ocorre na formação dos sonhos tem não apenas grande interesse teórico, como é também especialmente adequada para explicar o aparecimento do fantástico absurdo em que os sonhos se disfarçam. A direção tomada pelo deslocamento geralmente resulta no fato de uma expressão insípida e abstrata do pensamento onírico ser trocada por uma expressão pictórica e concreta. A vantagem e, conseqüentemente, o objetivo dessa troca saltam os olhos. Uma coisa pictórica é, do ponto de vista do sonho, uma coisa passível de ser representada: pode ser introduzida numa situação em que as expressões abstratas oferecem à representação nos sonhos o mesmo tipo de dificuldades que um editorialpolítico num jornal ofereceria a um ilustrador. Mas não somente a representabilidade, como também os interesses da condensação e da censura podem beneficiar-se dessa troca. Um pensamento onírico não é utilizável enquanto expresso em forma abstrata, mas, uma vez que tenha sido transformado em linguagem pictórica, os contrastes e identificações do tipo que o trabalho do sonho requer, e que ele cria quando já não estão presentes, podem ser estabelecidos com mais facilidade do que antes entre a nova forma de expressão e o restante do material subjacente ao sonho. Isso se dá porque, em todas as línguas, os termos concretos, em decorrência da história de seu desenvolvimento, são mais ricos em associações do que os conceituais. Podemos supor que boa parte do trabalho intermediário executado durante a formação de um sonho, que procura reduzir os pensamentos oníricos dispersos à expressão mais sucinta e unificada possível, se processe no sentido de encontrar transformações verbais apropriadas para os pensamentos isolados. Qualquer pensamento cuja forma de expressão porventura seja fixa, por outras razões, atua de maneira determinante e seletiva sobre as possíveis formas de expressão destinadas aos outros pensamentos, e talvez o faça desde o início - como ocorre ao se compor um poema. Quando um poema tem de ser escrito em rimas, o segundo verso de um dístico é limitado por duas condições: precisa expressar um significado apropriado e a expressão desse significado deve rimar com o primeiro verso. Sem dúvida, o melhor poema será aquele em que deixarmos de notar a intenção de encontrar uma rima, em que os dois pensamentos, por influência mútua, tiverem escolhido desde o início uma expressão verbal que permita surgir uma rima com apenas um ligeiro ajustamento subseqüente.
Em alguns casos, esse tipo de mudança de expressão ajuda a condensação onírica ainda mais diretamente, descobrindo uma forma de palavras que, devido a sua ambigüidade, seja capaz de dar expressão a mais de um dos pensamentos do sonho. Dessa maneira, todo o campo do chiste verbal é posto à disposição do trabalho do sonho. Não há por que nos surpreendermos com o papel desempenhado pelas palavras na formação dos sonhos. As palavras, por serem o ponto nodal de numerosas representações, podem ser consideradas como predestinadas à ambigüidade; e as neuroses (por exemplo, na estruturação de obsessões e fobias), não menos do que os sonhos, servem-se à vontade das vantagens assim oferecidas pelas palavras para fins de condensação e disfarce.É fácil demonstrar que também a distorção do sonho se beneficia do deslocamento de expressão. Quando uma palavra ambígua é empregada em lugar de duas inequívocas, o resultado é desnorteador; e quando nosso sóbrio método cotidiano de expressão é substituído por um método pictórico, nossa compreensão fica paralisada, particularmente visto que um sonho nunca nos diz se seus elementos devem ser interpretados literalmente ou num sentido figurado, ou se devem ser ligados ao material dos pensamentos oníricos diretamente ou por intermédio de alguma locução intercalada. [1] Ao se interpretar qualquer elemento onírico, é em geral duvidoso:
(a) se ele deve ser tomado num sentido positivo ou negativo (como uma relação antitética),
(b) se deve ser interpretado historicamente (como uma lembrança),
(c) se deve ser interpretado simbolicamente, ou
(d) se sua interpretação deve depender de seu enunciado. Contudo, apesar de toda essa ambigüidade, é lícito dizer que as produções do trabalho do sonho, que, convém lembrar, não são feitas com a intenção de serem entendidas, não apresentam a seus tradutores maior dificuldade do que as antigas inscrições hieroglíficas àqueles que procuram lê-las.
Já apresentei vários exemplos de representações nos sonhos que só se mantêm unidas pela ambigüidade de seu enunciado. (Por exemplo, “Ela abriu a boca como devia” no sonho da injeção de Irma [em [1]], e “Afinal, não pude ir”, no sonho que citei por último [em [1]].) Registrarei agora um sonho em que um papel considerável foi desempenhado pela transformação de pensamentos abstratos em imagens. A distinção entre esse tipo de interpretação dos sonhos e a interpretação por meio do simbolismo pode ainda ser traçada com muita nitidez. No caso da interpretação simbólica dos sonhos, a chave da simbolização é arbitrariamente escolhida pelo intérprete, ao passo que, em nossos casos de disfarce verbal, as chaves são geralmente conhecidas e estabelecidas pelo uso lingüístico firmemente consagrado. Quando se dispõe de idéia certa no momento exato, é possível solucionar no todo ou em parte esse tipo de sonhos, até mesmo independentemente das informações do sonhador.
Uma senhora conhecida minha teve o seguinte sonho: Ela estava na Ópera. Encenava-se uma ópera de Wagner, que durara até quinze para as oito da manhã. Havia mesas postas nas primeiras filas da platéia, onde as pessoas estavam comendo e bebendo. Seu primo, que acabara de voltar da lua-de-mel, estava sentado a uma das mesas com sua jovem esposa, e havia um aristocrata sentado ao lado deles. A mulher de seu primo, ao que parecia, trouxera-o com ela da lua-de-mel, muito abertamente, como quem trouxesse um chapéu. No meio das poltronas havia uma torre alta, com uma plataforma no topo circundada por uma grade de ferro. Lá em cima estava o maestro, que tinha as feições de Hans Richter. Ele corria em círculos junto à grade e transpirava violentamente; e dessa posição regia a orquestra, que estava agrupada em torno da base da torre. Ela própria estava sentada num camarote com uma amiga (que eu conhecia). Sua irmã mais nova queria, das poltronas, entregar-lhe um grande pedaço de carvão, sob a alegação de que ela não sabia que iria demorar tanto, e àquela altura devia estar simplismente congelando. (Como se os camarotes precisassem ser aquecidos durante o longo espetáculo.)
Muito embora tivesse bem focalizado numa única situação, o sonho, sob outros aspectos, era bastante absurdo: a torre no meio da platéia, por exemplo, com o maestro regendo a orquestra lá do alto! E, acima de tudo, o carvão que sua irmã lhe entregou! Abstive-me deliberadamente de pedir uma análise do sonho. Mas, como tivesse algum conhecimento das relações pessoais da sonhadora, pude interpretar certas partes do sonho independentemente dela. Eu sabia que ela simpatizara muito com um músico cuja carreira fora prematuramente interrompida pela loucura. Assim, resolvi considerar a torre entre as poltronas em sentido metafórico. Emergiu então a idéia de que o homem que ela queria ver no lugar de Hans Richter erguia-se qual uma torre muito acima dos outros membros da orquestra. A torre poderia ser descrita como uma imagem composta formada por aposição. A parte inferior de sua estrutura representava a grandeza do homem; a grade do topo, por trás da qual ele corria em círculos como um prisioneiro ou um animal enjaulado - o que era uma alusão ao nome do infeliz - representava seu destino final. As duas idéias poderiam ter-se reunido na palavra Narrenturm.
Tendo assim descoberto o modo de representação adotado pelo sonho, poderíamos tentar utilizar a mesma chave para solucionar seu segundo aparente absurdo - o carvão entregue à sonhadora por sua irmã. “Carvão” devia significar “amor secreto”:
Kein Feuer, keine Kohle
kann brennen so heiss
als wie heimliche Liebe,
von der niemand nichts weiss.
Ela própria e sua amiga tinham ficado solteiras [alemão “sitzen geblieben”, literalmente, “ficado sentadas”]. Sua irmã mais nova, que ainda tinha perspectivas de casamento, entregou-lhe o carvão “por não ter sabido que iria demorar tanto”. O sonho não especificava o que demoraria tanto. Se isso fosse uma história, diríamos “a encenação”; mas, como se trata de um sonho, podemos tomar a oração como uma entidade independente, decidir que foi empregada de maneira ambígua e acrescentar as palavras “até ela se casar”. Nossa interpretação do “amor secreto” é ainda apoiada pela menção ao primo da sonhadora, sentado com a mulher nas poltronas da platéia, pelo romance ostensivo atribuído a esta última. O sonho foi dominado pela antítese entre amor secreto e amor aparente e entre o ardor da própria sonhadora e a frieza da jovem esposa. Em ambos os casos, além disso, havia alguém “altamente situado” - um termo que se aplica igualmente ao aristocrata e ao músico no qual se haviam depositado tão grandes esperanças. [1]
A discussão precedente levou-nos enfim à descoberta de um terceiro fator cuja participação na transformação dos pensamentos do sonho em conteúdo onírico não deve ser subestimada: a saber, a consideração à representabilidade no material psíquico peculiar que os sonhos utilizam - ou seja, na sua maior parte, a representabilidade em imagens visuais. Dentre os vários pensamentos acessórios ligados aos pensamentos oníricos essenciais, dá-se preferência àqueles que admitem representação visual; e o trabalho do sonho não se furta ao esforço de remodelar pensamentos inadaptáveis numa nova forma verbal - mesmo numa que seja menos usual -, contanto que esse processo facilite a representação e, desse modo, alivie a pressão psicológica causada pela constrição da ação de pensar. Essa vertedura do conteúdo de um pensamento num outro molde pode, ao mesmo tempo, atender às finalidades da atividade de condensação e criar ligações, que de outro modo talvez não se fizessem presentes, com algum outro pensamento; quanto a este segundo pensamento, ele já pode ter tido sua forma original de expressão modificada, com vistas a juntar-se ao primeiro a meio caminho.
Herbert Silberer (1909) [1] apontou uma boa maneira de observar diretamente a transformação de pensamentos em imagens no processo de formação dos sonhos e, assim, estudar isoladamente esse fator do trabalho do sonho. Quando, achando-se num estado de fadiga e sonolência, ele se impunha alguma tarefa intelectual, verificava que, muitas vezes, um pensamento lhe escapava e em seu lugar surgia uma imagem, que ele então podia reconhecer como um substituto do pensamento. Silberer descreve esses substitutos com o termo não muito apropriado de “auto-simbólicos”. Citarei aqui alguns exemplos do artigo de Silberer [ibid., 519-22] e terei oportunidade, em virtude de certas características dos fenômenos em pauta, de voltar a eles posteriormente. [Ver em [1]]
Exemplo 1. -Pensei em ter de revisar um trecho irregular num ensaio.
Símbolo. - Vi-me aplainando um pedaço de madeira.”
‘’Exemplo 5. - Eu me esforçava por convercer-me do objetivo de certos estudos metafísicos que me propunha fazer. Seu objetivo, refleti, era o esforço de conquistar formas de consciência e camadas de existência cada vez mais elevadas na busca dos fundamentos da existência.
Símbolo. - Eu estava empurrando uma longa faca por baixo de um bolo, como se quisesse levantar uma fatia.
Interpretação. - Meu movimento com a faca significava ‘meu esforço de conquista’ em questão. (…) Eis a explicação do simbolismo. Vez por outra, cabe a mim nas refeições cortar um bolo e distribuir as porções. Realizo essa tarefa com uma faca longa e flexível, o que exige algum cuidado. Em particular, levantar habilmente as fatias depois de terem sido cortadas traz certas dificuldades; a faca deve ser empurrada cuidadosamente por baixo da fatia (correspondente ao lento ‘esforço de conquista’ para chegar aos ‘fundamentos’). Mas há ainda um simbolismo nessa imagem, pois o bolo do símbolo era um bolo ‘Dobos’ - um bolo com diversas ‘camadas’ através das quais, ao cortá-lo, a faca tem de penetrar (as ‘camadas’ da consciência e do pensamento).”
Exemplo 9. - Eu perdera o fio da meada numa cadeia de idéias. Tentei reencontrá-lo, mas tive de admitir que o ponto de partida me escapara completamente.
Símbolo. - Parte de uma matriz de linotipo com as últimas linhas caídas.”
Em vista do papel desempenhado pelos chistes, citações, canções e provérbios na vida mental das pessoas cultas, estaria em total acordo com nossas expectativas que esses tipos de disfarce fossem utilizados com extrema freqüência para representar os pensamentos do sonho. Qual é, por exemplo, num sonho, o significado de diversas carroças, cada qual repleta de uma espécie diferente de legume? Elas representam um contraste desejado com “Kraute und Rüben” [literalmente, “couves e nabos”], isto é, com “de pernas para o ar”, e portanto, com “desordem”. Surpreende-me que esse sonho só me tenha sido relatado uma vez.Só no caso de alguns temas emergiu um simbolismo onírico universalmente válido, com base em alusões e substitutos verbais genericamente conhecidos. Além disso, boa parte desse simbolismo é partilhada pelos sonhos com as psiconeuroses, as lendas e os usos populares.
De fato, ao examinarmos o assunto mais detidamente, devemos reconhecer o fato de que o trabalho do sonho nada faz de original ao efetuar essas substituições. Para atingir seus objetivos - neste caso, possibilitar uma representação tolhida pela censura - ele simplesmente percorre as vias que já encontra estabelecidas no inconsciente; e dá preferência às transformações do material recalcado que também se podem tornar conscientes sob a forma de chistes ou alusões, e de que se acham tão repletas as fantasias dos pacientes neuróticos. Neste ponto, chegamos de repente ao entendimento das interpretações de sonhos feitas por Scherner, cuja exatidão essencial defendi em outros trechos [em [1] e [2]]. A preocupação da imaginação com o corpo do próprio sujeito de modo algum é peculiar aos sonhos ou característica apenas deles. Minhas análises têm-me indicado que ele está habitualmente presente nos pensamentos inconscientes dos neuróticos e que deriva da curiosidade sexual, a qual, nos rapazes ou moças em crescimento, volta-se para os órgãos genitais do sexo oposto e também para os do próprio sexo. Tampouco a casa, como acertadamente insistiram Scherner [1861] e Volkelt [1875], é o único círculo de representações empregado para simbolizar o corpo; e isto se aplica tanto aos sonhos quanto às fantasias inconscientes da neurose. É verdade que conheço pacientes que preservaram o simbolismo arquitetônico para o corpo e os órgãos genitais.
(O interesse sexual estende-se muito além da esfera da genitália externa.) Para esses pacientes, os pilares e as colunas representam as pernas (como nos Cânticos de Salomão), todo portão representa um dos orifícios corporais (um“buraco”), todo encanamento de água é um lembrete do aparelho urinário, e assim por diante. Mas o círculo de representações que gira em torno da vida das plantas ou da cozinha pode, com igual presteza, ser escolhido para ocultar imagens sexuais. No primeiro caso, o caminho foi bem preparado pelo uso lingüístico, ele próprio um precipitado de símiles imaginativos que remontam à longínqua antigüidade: por exemplo, a vinha do Senhor, a semente e o jardim da donzela nos Cânticos de Salomão.
Os detalhes mais repulsivos e também os mais íntimos da vida sexual podem ser pensados e sonhados em alusões aparentemente inocentes a atividades culinárias; e os sintomas da histeria jamais poderiam ser interpretados se nos esquecêssemos de que o simbolismo sexual pode encontrar seu melhor esconderijo por trás do que é corriqueiro e inconspícuo. Há um sentido sexual válido por trás da intolerância da criança neurótica ao sangue ou à carne crua ou de suas náuseas ante a visão de ovos ou macarrão, e por trás do enorme exagero, nos neuróticos, do natural horror humano às cobras. Sempre que as neuroses se valem de disfarces, estão percorrendo trilhas por onde passou toda a humanidade nas épocas mais remotas da civilização - trilhas de cuja continuada existência em nossos dias, sob o mais diáfano dos véus, encontram-se provas nos usos lingüísticos, nas superstições e nos costumes.
Insiro aqui o “florido” sonho de uma de minhas pacientes que já prometi [em [1]] registrar. Indiquei por meio de grifos seus elementos que devem receber uma interpretação sexual. A sonhadora perdeu muito de sua simpatia por esse lindo sonho depois que ele foi interpretado.
(a) SONHO INTRODUTÓRIO: Ela entrou na cozinha, onde estavam suas duas empregadas, e as repreendeu por não terem aprontado sua “comidinha”. Ao mesmo tempo, viu uma grande quantidade de louça emborcada para secar, louça comum de barro amontoada em pilhas. Acréscimo posterior: As duas empregadas foram buscar água e tiveram de entrar numa espécie de rio que chegava até bem junto da casa, entrando pelo quintal.
(b) SONHO PRINCIPAL: Ela estava descendo de uma elevação sobre umas paliçadas ou cercas de construção estranha reunidas sob grandes painéis e que consistiam em quadradinhos de pau-a-pique. Não eram feitos para se subir; ela teve dificuldade em encontrar um lugar onde pôr os pés e ficou contente por seu vestido não ter-se prendido em lugar nenhum, de modo que ela continuou à medida que prosseguia. Ela segurava um UM GRANDE RAMO na mão; na realidade, era como uma árvore, todo recoberto de FLORES VERMELHAS que se ramificavam e espalhavam. Havia uma idéia de que fossem FLORES de cerejeira; mas também pareciam CAMÉLIAS duplas, embora, é claro, estas não cresçam em árvores. Ao descer, ela estava primeiro com UMA, depois, de repente, com DUAS, e depois com UMA outra vez. Ao chegar lá embaixo, as FLORES da parte inferior já estavam bem DESBOTADAS. Então, depois que já havia descido, ela viu um criado que - sentiu-se inclinada a dizer - estava penteando uma árvore semelhante, ou seja, estava usando um PEDAÇO DE MADEIRA para arrancar umas MECHAS ESPESSAS DE CABELO que dela pendiam como musgo. Outros trabalhadores haviam cortado RAMOS semelhantes de um JARDIM e tinham-nos jogado na ESTRADA, onde FICARAM CAÍDOS, de modo que MUITAS PESSOAS PEGARAM ALGUNS. Mas ela perguntou se isso estava certo - se poderia PEGAR UM TAMBÉM. Um HOMEM jovem (alguém que ela conhecia, um forasteiro) estava de pé no jardim; dirigiu-se a ele para perguntar de que modo tais RAMOS poderiam ser TRANSPLANTADOS PARA SEU PRÓPRIO JARDIM.
Ele a abraçou, ao que ela se debateu e perguntou o que ele estava pensando, e se achava que podiam abraçá-la daquela maneira. Ele lhe disse que não havia mal nenhum, que era permitido. Em seguida, disse estar disposto a entrar no OUTRO JARDIM com ela, para lhe mostrar como era feito o plantio, e acrescentou algo que ela não conseguiu entender bem: “Seja como for, preciso de três JARDAS (depois ela forneceu esse dado como três jardas quadradas) ou três braças de terra.” Era como se ele lhe estivesse pedindo alguma coisa em troca de sua boa vontade, como se pretendesse RECOMPENSAR-SE NO JARDIM DELA, ou como se quisesse BURLAR alguma lei, para tirar vantagem disso sem causar mal a ela. Se ele realmente lhe mostrou algo, ela não tinha nenhuma idéia.
Esse sonho, que expus em virtude de seus elementos simbólicos, pode ser descrito como “biográfico”. Tais sonhos ocorrem com freqüência durante a psicanálise, mas talvez sejam bastante raros fora dela.
Naturalmente,[1] disponho desse tipo de material em profusão, mas relatá-lo nos envolveria muito profundamente num exame das condições neuróticas. Tudo leva à mesma conclusão, a saber, que não há necessidade de se presumir a operação de qualquer atividade simbolizadora peculiar da mente no trabalho do sonho, mas sim que os sonhos se servem de quaisquer simbolizações que já estejam presentes no pensamento inconsciente, por se ajustarem melhor aos requisitos da formação do sonho, em virtude de sua representabilidade, e também, em geral, por escaparem da censura.

 (E) REPRESENTAÇÃO POR SÍMBOLOS NOS SONHOS - OUTROS SONHOS TÍPICOS

A análise deste último sonho, de cunho biográfico, é uma prova clara de que reconheci desde o início a presença do simbolismo nos sonhos. Mas foi apenas gradualmente, e à medida que minha experiência foi aumentando, que cheguei a uma apreciação plena de sua extensão e importância, e o fiz sob a influência das contribuições de Wilhelm Stekel (1911), sobre quem não será fora de propósito dizer algumas palavras aqui. [1925.]
Esse autor, que talvez tenha prejudicado a psicanálise tanto quanto a beneficiou, trouxe à baila um grande número de traduções insuspeitadas dos símbolos; a princípio, elas foram recebidas com ceticismo, mas depois, foram confirmadas em sua maior parte e tiveram de ser aceitas. Não estarei minimizando o valor dos serviços de Stekel ao acrescentar que a reserva cética com que suas propostas foram recebidas não deixava de ter sua justificativa. E isso porque os exemplos com que ele confirmava suas interpretações eram amiúde pouco convincentes, e ele utilizou um método que deve ser rejeitado como cientificamente indigno de confiança. Stekel chegou a suas interpretações dos símbolos por meio da intuição, graças a um dom peculiar para a compreensão direta deles. Mas não se pode contar com a existência desse dom em termos gerais; sua eficácia está isenta de qualquer crítica e, por conseguinte, seus resultados não podem pleitear credibilidade. É como se se procurasse basear o diagnóstico das doenças infecciosas nas impressões olfativas recebidas à cabeceira do paciente - embora, indubitavelmente, tenha havido clínicos capazes de realizar mais do que as outras pessoas por meio do sentido do olfato (que geralmente é atrofiado), e querealmente conseguiam diagnosticar um caso de febre entérica através do olfato. [1925.]
Os avanços da experiência psicanalítica trouxeram à nossa atenção pacientes que demonstravam esse tipo de compreensão direta do simbolismo onírico num grau surpreendente. Muitas vezes, eram pessoas que sofriam de demência precoce, de modo que, por algum tempo, houve uma tendência a suspeitar de que todo sonhador dotado dessa apreensão dos símbolos fosse vítima daquela doença. Mas não é esse o caso. Trata-se de um dom ou peculiaridade pessoal que não possui nenhum significado patológico visível. [1925.]
Depois de nos familiarizarmos com o abundante emprego do simbolismo que é feito para representar o material sexual nos sonhos, está fadada a surgir a questão de saber se muitos desses símbolos não ocorrem com um significado permanentemente fixo, como os “logogramas” da taquigrafia; e ficamos tentados a elaborar um novo “livro dos sonhos”, baseados no princípio da decifração [ver em [1]]. Quanto a esse ponto, há que dizer o seguinte: esse simbolismo não é peculiar aos sonhos, mas característico da representação inconsciente, em particular no povo, e é encontrado no folclore e nos mitos populares, nas lendas, nas expressões idiomáticas, na sabedoria dos provérbios e nos chistes correntes em grau mais completo do que nos sonhos. [1909.]
Seríamos, portanto, levados muito além da esfera da interpretação dos sonhos, se fôssemos fazer justiça à importância dos símbolos e examinar os numerosos problemas, basicamente ainda não solucionados, ligados ao conceito de símbolo. Devemos restringir-nos aqui a assinalar que a representação por símbolos encontra-se entre os métodos indiretos de representação, mas que todo tipo de indicações nos adverte contra englobá-las com outras formas de representação indireta, sem que sejamos capazes de formar um quadro conceitual claro de suas características distintivas. Em diversos casos, o elemento comum entre um símbolo e o que ele representa é óbvio; em outros, acha-se oculto, e a escolha do símbolo parece enigmática. São precisamente estes últimos casos que devem ser capazes de lançar luzsobre o sentido último da relação simbólica, e eles indicam que esta é de natureza genética. As coisas que estão hoje simbolicamente ligadas provavelmente estiveram unidas em épocas pré-históricas pela identidade conceitual e lingüística. A relação simbólica parece ser uma relíquia e um marco de identidade anterior. No tocante a isso, podemos observar como, em muitos casos, o emprego de um símbolo comum se estende por mais tempo do que o uso de uma língua comum, como já foi ressaltado por Schubert (1814). Diversos símbolos são tão antigos quanto a própria linguagem, enquanto outros (por exemplo “dirigível”, “Zeppelin”) vão sendo continuamente cunhados inclusive em nossos dias. [1914.]
Os sonhos se valem desse simbolismo para a representação disfarçada de seus pensamentos latentes. Aliás, muitos dos símbolos são, habitualmente ou quase habitualmente, empregados para expressar a mesma coisa. Não obstante, a plasticidade peculiar do material psíquico [nos sonhos] nunca deve ser esquecida. Muitas vezes, um símbolo tem de ser interpretado em seu sentido próprio, e não simbolicamente, ao passo que, em outras ocasiões, o sonhador pode tirar de suas lembranças particulares o poder de empregar como símbolos sexuais toda sorte de coisas que não são comumente empregadas como tal. Quando um sonhador dispõe de uma escolha entre diversos símbolos, ele se decide em favor do que está ligado, em seu tema, ao restante do material de seus pensamentos - em outras palavras, daquele que tem motivos individuais para sua aceitação, além dos motivos típicos. [1909; última frase, 1914.]
Embora as investigações posteriores à época de Scherner tenham tornado impossível contestar a existência do simbolismo onírico - até mesmoHavelock Ellis [1911, 109] admite ser indubitável que nossos sonhos estão plenos de simbolismo -, é preciso confessar, ainda assim, que a presença de símbolos nos sonhos não só facilita sua interpretação como também a torna mais difícil. Em geral, a técnica de interpretar segundo as associações livres do sonhador deixa-nos em apuros quando chegamos aos elementos simbólicos do conteúdo do sonho. A consideração pela crítica científica nos proíbe de voltarmos ao julgamento arbitrário do intérprete de sonhos, tal como era empregado nos tempos antigos e parece ter sido revivido nas interpretações imprudentes de Stekel. Somos assim obrigados, ao lidar com os elementos do conteúdo do sonho que devem ser reconhecidos como simbólicos, a adotar uma técnica combinada que, por um lado, baseie-se nas associações do sonhador e, por outro, preencha as lacunas provenientes do conhecimento dos símbolos pelo intérprete. Devemos aliar uma cautela crítica na solução de símbolos a um estudo cuidadoso destes em sonhos que forneçam exemplos particularmente claros de seu uso, a fim de desarmarmos qualquer acusação de arbitrariedade na interpretação dos sonhos. As incertezas que ainda se prendem a nossas atividades como intérpretes de sonhos decorrem, em parte, de nossos conhecimentos incompletos, que podem ser progressivamente ampliados à medida que avançarmos, mas decorrem, em parte, de certas características dos próprios símbolos oníricos. Freqüentemente, eles possuem mais de um ou mesmo vários significados e, como ocorre com a escrita chinesa, a interpretação correta só pode ser alcançada, em cada ocasião, partindo-se do contexto. Essa ambigüidade dos símbolos vincula-se à característica dos sonhos de admitirem uma “superinterpretação” [ver em [1]] - de representarem num único conteúdo pensamentos e desejos que são, muitas vezes, de natureza amplamente divergente. [1914.]
Levando em conta essas restrições e ressalvas, darei agora prosseguimento ao tema. O Imperador e a Imperatriz (ou o Rei e a Rainha) de fato representam, em geral, os pais do sonhador; e o Príncipe ou Princesa representa a própria pessoa que sonha. [1909.] Mas a mesma alta autoridade é atribuída tanto aos grandes homens quanto ao Imperador, e por essa razão, Goethe, por exemplo, aparece como um símbolo paterno em alguns sonhos (Hitschmann, 1913). [1919.] - Todos os objetos alongados, tais como varas, troncos de árvores e guarda-chuvas (sendo o ato de abrir este último comparável a uma ereção) podem representar o órgão masculino [1909] - bem como o fazem todas as armas longas e afiadas, como facas, punhais e lanças. [1911.]
Outro símbolo freqüente, embora não inteiramente inteligível, da mesma coisa são as lixas de unhas - possivelmente por causa do movimentode esfregar para cima e para baixo. [1909.] - As caixas, estojos, arcas, armários e fornos representam o ventre [1909], o mesmo acontecendo com os objetos ocos, navios e toda sorte de recipientes. [1919.] - Os quartos, nos sonhos, costumam ser mulheres (“Frauenzimmer” [ver em [1]]); quando se representam as várias entradas e saídas deles, essa interpretação dificilmente fica sujeita a dúvidas. [1909.][1] - Com respeito a isso, o interesse em saber se o quarto está aberto ou trancado é facilmente inteligível. (Cf. o primeiro sonho de Dora em meu “Fragmento da Análise de um Caso de Histeria”, 1905e. [Nota de rodapé próxima ao início da Seção II.]) Não há necessidade de designar explicitamente a chave que abre o quarto; em sua balada do Conde Eberstein, Uhland utilizou o simbolismo de fechaduras e chaves para compor um encantador exemplo de obscenidade. [1911] - Sonhar que se passa por uma série de cômodos representa um bordel ou um harém. [1909.]
Mas, como demonstrou Sachs [1914] através de alguns exemplos claros, também pode ser empregado (por antítese) para representar o casamento. [1914.] - Encontramos um vínculo interessante com as investigações sexuais da infância quando alguém sonha com dois quartos que eram originalmente um, ou quando vê um quarto que lhe é familiar dividido em dois no sonho, ou vice-versa. Na infância, os órgãos genitais femininos e o ânus são considerados como uma área única - o “traseiro” (segundo a “teoria da cloaca” própria da infância), e só mais tarde é que se faz a descoberta de que essa região do corpo compreende duas cavidades e orifícios separados. [1919.] - Os degraus, escadas de mão ou escadarias, ou, conforme o caso, subir ou descer por eles, são representações do ato sexual. - As paredes lisas pelas quais sobe o sonhador e as fachadas decasas pelas quais ele desce - muitas vezes, com grande angústia - correspondem a corpos humanos eretos, e provavelmente repetem no sonho lembranças de um bebê subindo em seus pais ou na babá. As paredes “lisas” são homens; em seu medo, o sonhador freqüentemente se agarra a “projeções” nas fachadas das casas. [1911.]
- As mesas, as mesas postas para a refeição e as tábuas também representam mulheres - sem dúvida por antítese, visto que os contornos de seus corpos são eliminados nos símbolos. [1909.] “Madeira” parece, por suas conexões lingüísticas, representar, de modo geral, “material” feminino. O nome da Ilha da “Madeira” significa “madeira” em português. [1911.] Visto que “cama e mesa” constituem o casamento, esta última muitas vezes ocupa o lugar da primeira nos sonhos, e o complexo de idéias sexuais é, na medida do possível, transposto para o complexo de comer. [1909.] - No tocante às peças do vestuário, um chapéu feminino pode amiúde ser interpretado com certeza como um órgão genital e, além disso, como o de um homem.
O mesmo se aplica a um sobretudo ou casaco [alemão “Mantel”], embora, neste caso, não fique claro até que ponto o emprego do símbolo se deva a uma assonância verbal. Nos sonhos produzidos por homens, a gravata aparece amiúde como símbolo do pênis. Sem dúvida, isso ocorre não apenas porque as gravatas são objetos longos, pendentes e peculiares aos homens, mas também porque podem ser escolhidas de acordo com o gosto - uma liberdade que, no caso do objeto simbolizado, é proibida pela Natureza.
Os homens que se valem desse símbolo nos sonhos são, com freqüência, muito extravagantes com as gravatas na vida real e possuem coleções inteiras delas. [1911.] - É altamente provável que todos os aparelhos e máquinas complicados que aparecem nos sonhos representem os órgãos genitais (e, em geral, os masculinos) [1919] - na descrição dos quais o simbolismo dos sonhos é tão infatigável quanto o “trabalho do chiste”. [1909.] Tampouco há qualquer dúvida de que todas as armas e instrumentos são usados como símbolos do órgão masculino: por exemplo, arados, martelos, rifles, revólveres, punhais, sabres, etc. [1919.] - Da mesma forma, muitas paisagens nos sonhos, especialmente qualquer uma que tenha pontes ou colinas cobertas de vegetação, podem ser claramente reconhecidas como descrições dos órgãos genitais.
[1911.] Marcinowski (1912a) publicou uma coletânea de sonhos ilustrados por seus autores com desenhos que aparentemente representam paisagens e outras localidades que aparecem nos sonhos. Esses desenhos ressaltam muito nitidamente a distinção entre o sentido manifesto e o sentido latente de um sonho. Enquanto, para olhos inocentes, eles aparecem como planos, mapas e assim por diante, uma inspeção mais detida mostra que representam o corpo humano, os órgãos genitais, etc., e só então é que os sonhos se tornam inteligíveis. (Ver a esse respeito os trabalhos de Pfister [1911-12 e 1913] sobre criptogramas e quebra-cabeças pictográficos.) [1914.] Também no caso de neologismos ininteligíveis, vale a pena considerar se eles não poderiam constituir-se de componentes com um significado sexual. [1911.] - As crianças, nos sonhos freqüentemente representam os órgãos genitais, e, de fato, tanto os homens quanto as mulheres têm o hábito de se referir afetuosamente a seus órgãos genitais como os “pequeninos”. [1909.] Stekel [1909, 473] tem razão em reconhecer um “irmãozinho” como o pênis. [1925.] Brincar com uma criancinha, bater nela, etc., muitas vezes representam a masturbação nossonhos. [1911.] - Para representar simbolicamente a castração, o trabalho do sonho utiliza a calvície, o corte de cabelos, a queda dos dentes e a decapitação. Quando um dos símbolos comuns do pênis aparece duplicado ou multiplicado num sonho, isso deve ser considerado como um rechaço da castração. O aparecimento, nos sonhos, de lagartos - animais cujas caudas voltam a crescer quando arrancadas - tem o mesmo significado. (Cf. o sonho com lagartos em [1]) - Muitos dos animais que são utilizados como símbolos genitais na mitologia e no folclore desempenham o mesmo papel nos sonhos: por exemplo, peixes, caracóis, gatos, camundongos (por causa dos pêlos pubianos) e, acima de tudo, os símbolos mais importantes do órgão masculino - as cobras. Os animaizinhos e os vermes representam crianças pequenas - por exemplo, irmãos e irmãs indesejados. Ver-se infestado por vermes constitui, muitas vezes, um sinal de gravidez. [1919.] - Um símbolo bem recente do órgão masculino nos sonhos merece menção: o dirigível, cujo uso nesse sentido se justifica por sua relação com voar, bem como, às vezes, por sua forma. [1911.]
Diversos outros símbolos foram apresentados, com exemplos comprobatórios, por Stekel, mas ainda não foram suficientemente verificados. [1911.] Os escritos de Stekel, e em particular seu Die Sprache des Traumes (1911), contêm a mais completa coleção de interpretações de símbolos. Muitos destes indicam penetração, e um exame ulterior demonstrou que são corretos: por exemplo, sua seção sobre o simbolismo da morte. Mas a falta de senso crítico desse autor e sua tendência à generalização a qualquer preço lançam dúvidas sobre outras de suas interpretações ou as tornam inutilizáveis, de modo que é altamente aconselhável ter cautela ao aceitar suas conclusões. Portanto, contento-me em chamar a atenção apenas para algumas de suas descobertas. [1914.]
Segundo Stekel, “direita” e “esquerda” têm, nos sonhos, um sentido ético. “A via à direita significa sempre o caminho da retidão, e a da esquerda, o do crime. Assim, ‘esquerda’ pode representar homossexualismo, incesto ou perversão, e ‘direita’ pode representar casamento, relações sexuais com uma prostituta e assim por diante, sempre encarados do ponto de vista moral individual do sujeito.” (Stekel, 1909, 466 e segs.) - Os parentes, nos sonhos, geralmente desempenham o papel de órgãos genitais (ibid., 473). Só posso confirmar isso no caso de filhos, filhas e irmãs menores - isto é, apenas na medida em que eles se enquadram na categoria de “pequeninos”. Por outro lado, deparei com casos indubitáveis em que “irmãs” simbolizavam os seios, e “irmãos”, os hemisférios maiores. - Stekel explica que a impossibilidade de alcançar uma carruagem significa pesar por uma diferença de idade que não se pode alcançar (ibid., 479). - A bagagem com que se viaja é uma carga de pecados, diz ele, que tem um efeito opressivo (loc. cit.). [1911.] Mas precisamente a bagagem muitas vezes se revela um símbolo inconfundível dos órgãos genitais do próprio sonhador. [1914.] - Stekel também atribui significados simbólicos fixos aos números, tais como amiúde aparecem nos sonhos [ibid., 497 e segs.]. Mas essas explicações não parecem nem suficientemente verificadas nem genericamente válidas, embora as interpretações dele costumem parecer plausíveis nos casos individuais. [1911.] Seja como for, o número três tem sido confirmado sob muitos ângulos como um símbolo dos órgãos genitais masculinos. [1914.]
Uma das generalizações propostas por Stekel concerne ao duplo significado dos símbolos genitais. [1914.] “Onde”, pergunta ele, “haverá um símbolo que - contanto que a imaginação o admita de algum modo - não possa ser empregado tanto num sentido masculino como feminino?” [1911, 73.] Seja como for, a oração entre travessões elimina grande parte da certeza dessa afirmação, visto que, de fato, a imaginação nem sempre admite isso. Mas penso que vale a pena observar que, em minha experiência, a generalização de Stekel não pode ser mantida em face da maior complexidade dos fatos. Além dos símbolos que podem, com igual freqüência, representar os órgãos genitais masculinos e femininos, existem alguns que designam um dos sexos predominantemente ou quase exclusivamente, e ainda outros que são conhecidos apenas com um significado masculino ou feminino. Pois é fato que a imaginação não admite que objetos e armas longos e rígidos sejam utilizados como símbolos dos órgãos genitais femininos, ou que objetos ocos, tais como arcas, estojos, etc., sejam empregados como símbolo dos órgãos masculinos. É verdade que a tendência dos sonhos e das fantasias inconscientes a empregarem bissexualmente os símbolos sexuais trai uma característicaarcaica, porquanto, na infância, a distinção entre os órgãos genitais dos dois sexos é desconhecida e a mesma espécie de genitália é atribuída a ambos. [1911.] Mas também é possível que se seja erroneamente levado a supor que um símbolo sexual seja bissexual, caso se esqueça de que, em alguns sonhos, há uma inversão geral do sexo, de modo que o que é masculino é representado como feminino, e vice-versa. Tais sonhos podem, por exemplo, expressar o desejo de uma mulher de ser homem. [1925.]
Os órgãos genitais também podem ser representados nos sonhos por outras partes do corpo: o órgão masculino, por uma mão ou um pé, e o orifício genital feminino, pela boca, um ouvido ou mesmo um olho. As secreções do corpo humano - muco, lágrimas, urina, sêmen, etc. - podem substituir umas às outras nos sonhos. Esta última afirmativa de Stekel [1911, 49], que é correta em termos gerais, foi justificadamente criticada por Reitler (1913b) como exigindo uma certa ressalva: o que de fato acontece é que as secreções importantes, como o sêmen, são substituídas por secreções irrelevantes. [1919.]
Espera-se que essas indicações muito incompletas possam servir para estimular outros a empreenderem um estudo geral mais cuidadoso do assunto. [1909.] Eu próprio tentei dar uma explicação mais elaborada do simbolismo dos sonhos em minhas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1916-17 [Conferência X]). [1919.]
Acrescentarei agora alguns exemplos do emprego desses símbolos nos sonhos, com a idéia de indicar como se torna impossível chegar à interpretação de um sonho quando se exclui o simbolismo onírico, e como se é irresistivelmente levado a aceitá-lo em muitos casos. [1911.] Ao mesmo tempo, contudo, gostaria de externar uma advertência categórica contra a supervalorização da importância dos símbolos na interpretação dos sonhos, contra a restrição do trabalho de traduzir os sonhos a uma simples tradução de símbolos, e contra o abandono da técnica de utilização das associações do sonhador. As duas técnicas de interpretação dos sonhos devem ser complementares uma à outra; mas, tanto na prática como na teoria, o primeiro lugar continua a ser ocupado pelo processo que descrevi inicialmente e que atribuiuma importância decisiva aos comentários feitos pelo sonhador, ao passo que a tradução de símbolos, tal como a expliquei, está também a nosso dispor como método auxiliar. [1909.]
I
UM CHAPÉU COMO SÍMBOLO DE UM HOMEM (OU DOS ÓRGÃOS GENITAIS MASCULINOS) [1911]
 (Extrato do sonho de uma jovem que sofria de agorafobia decorrente de medos de sedução.)
Eu ia andando pela rua, no verão, usando um chapéu de palha de formato peculiar; sua parte central estava virada para cima e as partes laterais pendiam para baixo” (a descrição tornou-se hesitante neste ponto), “de tal modo que um lado estava mais baixo que o outro. Euestava alegre e com um espírito autoconfiante, e, ao passar por um grupo de jovens oficiais, pensei: ‘Nenhum de vocês pode me fazer mal algum!’
Como nada lhe ocorresse em relação ao chapéu no sonho, eu disse: “Sem dúvida, o chapéu era um órgão genital masculino, com sua parte central erguida e as duas partes laterais pendentes. Talvez possa parecer estranho que um chapéu seja um homem, mas você deve estar lembrada da expressão ‘Unter die Haube kommen‘ [‘achar um marido’ (literalmente, ‘entrar debaixo da touca’)].” Intencionalmente, não lhe fiz nenhuma interpretação sobre o detalhe das duas partes laterais que pendiam desigualmente, embora sejam precisamente esses detalhes que apontam o caminho na determinação de uma interpretação. Prossegui dizendo que, como tinha um marido com órgãos genitais tão bons, não havia necessidade de ela temer os oficiais - nenhuma necessidade, bem entendido, de que ela desejasse alguma coisa deles, visto que, em geral, ela ficava impossibilitada de ir passear sem proteção e desacompanhada, devido a suas fantasias de ser seduzida. Eu já lhe pudera dar esta última explicação sobre sua angústia em várias ocasiões, com base em outro material.
A maneira como a paciente reagiu a esse material foi notável. Ela retirou sua descrição do chapéu e sustentou jamais ter dito que as duas partes laterais estavam penduradas. Eu tinha certeza demais do que ouvira para me deixar confundir, e mantive minha posição. Ela ficou em silêncio algum tempo e, depois disso, encontrou coragem bastante para perguntar o que significava um dos testículos de seu marido ser mais caído do que o outro, e se o mesmo acontecia com todos os homens. Desse modo, o detalhe notável do chapéu foi explicado e a interpretação foi aceita por ela.
Na época em que minha paciente me contou esse sonho, eu há muito estava familiarizado com o chapéu como símbolo. Outros casos menos transparentes haviam-me levado a supor que o chapéu também pode representar os órgãos genitais femininos.
II
UMA “FILHINHA” COMO ÓRGÃO GENITAL - “SERATROPELADA” COMO SÍMBOLO DAS RELAÇÕES SEXUAIS
[1911]
 (Outro sonho da mesma paciente agorafóbica.)

Sua mãe mandara sua filhinha embora, de modo que ela teve de seguir sozinha. Entrou então num trem com a mãe e viu sua pequerrucha andar diretamente até os trilhos, de modo que estava fadada a ser atropelada. Ouviu o estalar de seus ossos. (Isso produziu nela uma sensação desconfortável, mas nenhum pavor real.) Olhou ao redor, pela janela do vagão do trem, para ver se as partes não podiam ser vistas por trás. Em seguida, repreendeu a mãe por ter feito a pequerrucha ir embora sozinha.
ANÁLISE. - Não é nada fácil dar uma interpretação completa do sonho. Ele fazia parte de um ciclo de sonhos e só podia ser entendido na íntegra se considerado em relação aos outros. Há dificuldade em obter, com suficiente isolamento, o material necessário para estabelecer o simbolismo. - Em primeiro lugar, a paciente declarou que a viagem de trem devia ser interpretada historicamente, como uma alusão a uma viagem que ela fizera ao sair de um sanatório de doenças nervosas por cujo diretor, é desnecessário dizer, tinha-se apaixonado. A mãe a havia levado embora, e o médico aparecera na estação e lhe entregara um buquê de flores como presente de despedida. Fora muito embaraçoso que a mãe testemunhasse essa homenagem. Nesse ponto, portanto, a mãe figurava como interferindo em suas tentativas de ter um caso amoroso; e fora, de fato, o papel desempenhado por essa senhora severa durante a adolescência da paciente. - Sua associação seguinte relacionou-se com a frase “olhou ao redor para ver se as partes não podiam ser vistas por trás”. A fachada do sonho levaria, naturalmente, a se pensar nas partes de sua filhinha, que tinha sido atropelada e mutilada. Mas sua associação tomou um rumo inteiramente diverso. Lembrou-se ela de que, certa vez, vira o pai despido no banheiro, por trás; passou então a falar nas distinções entre os sexos e ressaltou o fato de que os órgãos genitais do homem podem ser vistos por trás, mas os da mulher, não. Em relação a isso, ela própria interpretou “a filhinha” como significando os órgãos genitais, e“sua pequerrucha” - a paciente tinha uma filha de quatro anos - como sua própria genitália. Repreendeu a mãe por ter esperado que ela vivesse como se não tivesse órgãos genitais, e assinalou que a mesma recriminação fora expressa na primeira frase do sonho: “sua mãe mandara sua filhinha embora, de modo que ela teve de seguir sozinha”. Na imaginação dela, “andar sozinha pelas ruas” significava não ter um homem, não ter nenhuma relação sexual (“coire”, em latim [de onde se origina “coitus”], significa literalmente “ir com”) - e ela não gostava disso. Todos os seus relatos indicavam que, quando menina, ela de fato sofrera com o ciúme da mãe devido à preferência demonstrada para com a filha pelo pai. [1]
A interpretação mais profunda desse sonho foi indicada por outro sonho da mesma noite, no qual a paciente se identificou com seu irmão. Ela realmente fora uma menina com características de menino, e muitas vezes lhe disseram que ela deveria ser um menino. Essa identificação com o irmão deixou particularmente claro que “a pequerrucha” significava um órgão genital. A mãe estava ameaçando seu irmão (ou ela) de castração, o que só poderia ser um castigo por brincar com o pênis; assim, a identificação também provou que ela própria se masturbara quando criança - uma lembrança que até então só tivera quando aplicada a seu irmão. A informação fornecida pelo segundo sonho mostrou que ela devia ter tomado conhecimento do órgão masculino numa idade precoce e depois esquecido isso. Ademais, o segundo sonho aludia à teoria sexual infantil segundo a qual meninas são meninos castrados. [Cf. Freud, 1908c.] Quando lhe sugeri que ela tivera essa crença infantil, confirmou imediatamente o fato, dizendo-me ter ouvido a anedota do garotinho que diz à garotinha: “Cortado?”, ao que a menininha responde: “Não, foi sempre assim.”
Portanto, mandar a pequerrucha (o órgão genital) embora no primeiro sonho também se relacionava à ameaça de castração. Sua queixa final contra a mãe era por não tê-la dado à luz como um menino.
O fato de que “ser atropelada” simboliza as relações sexuais não ficaria óbvio partindo-se desse sonho, embora tenha sido confirmado por muitas outras fontes.
III
OS ÓRGÃOS GENITAIS REPRESENTADOSPOR EDIFÍCIOS, DEGRAUS E POÇOS [1911]
 (Sonho de um rapaz inibido por seu complexo paterno.)

Ele estava passeando com o pai num lugar que certamente deveria ser o Prater, já que ele viu a ROTUNDA, com um PEQUENO ANEXO EM FRENTE A ELA ao qual estava preso UM BALÃO CATIVO, embora parecesse bem MOLE. O pai lhe perguntou para que servia aquilo tudo; ele ficou surpreso com a pergunta, mas lhe explicou. A seguir, entraram num pátio onde havia uma grande folha de estanho estendida. Seu pai queria ARRANCAR um pedaço grande dela, mas primeiro olhou em volta para ver se havia alguém. Ele lhe disse que bastaria ele falar com o contramestre para poder levar um pedaço sem nenhum problema. UMA ESCADA descia desse pátio até UM POÇO, cujas paredes eram acolchoadas com uma espécie de material macio, muito parecidas com uma poltrona de couro. Na extremidade do poço havia uma plataforma alongada, e então começava outro POÇO…
ANÁLISE. - Esse sonhador pertencia a um tipo de pessoas cujas perspectivas terapêuticas não são favoráveis: até certo ponto, não oferecem absolutamente nenhuma resistência à análise, mas, a partir daí, revelam-se quase inacessíveis. Ele interpretou esse sonho quase sem ajuda. “A Rotunda”, disse, “eram meus órgãos genitais, e o balão cativo em frente a ela era meu pênis, de cuja flacidez tenho motivos para me queixar.” Entrando então em maiores detalhes, podemos traduzir a Rotunda como o traseiro (habitualmente considerado pelas crianças como parte dos órgãos genitais) e o pequeno anexo à frente dele como o saco escrotal. O pai lhe perguntava, no sonho, o que era tudo aquilo, isto é, qual a finalidade e a função dos órgãos genitais. Pareceu plausível inverter essa situação e transformar o sonhador no indagador. Visto que ele de fato jamais fizera essas perguntas ao pai, tivemos de encarar o pensamento do sonho como um desejo, ou considerá-locomo uma oração condicional, tal como: “Se eu tivesse pedido a meu pai esclarecimentos sexuais…” Logo encontraremos a continuação desse pensamento em outra parte do sonho.
O pátio onde estava estendida a folha de estanho não deve ser tomado simbolicamente à primeira vista. Derivava das dependências comerciais do pai do sonhador. Por motivos de discrição, usei “estanho” em lugar de outro material, com o qual o pai realmente lidava, mas não fiz nenhuma outra modificação na linguagem do sonho. O sonhador havia ingressado na firma do pai e fizera violenta objeção às práticas um tanto suspeitas de que dependiam, em parte, os rendimentos da empresa. Por conseguinte, o pensamento onírico que acabo de interpretar poderia prosseguir desta forma: “(Se lhe tivesse perguntado), ele me teria enganado do mesmo modo que engana seus clientes.” No tocante ao “arrancar” que serviu para representar a desonestidade do pai nos negócios, o próprio sonhador apresentou uma segunda explicação - a saber, que isso representava a masturbação. Não só eu já estava familiarizado com essa interpretação (ver em [1]), como havia algo para confirmá-la no fato de que a natureza secreta da masturbação foi representada por seu inverso: podia ser praticada abertamente. Exatamente como esperaríamos, a atividade masturbatória foi também deslocada para o pai do sonhador, tal como a pergunta na primeira cena do sonho. Ele interpretou prontamente o poço como uma vagina, tendo em conta o acolchoado macio de suas paredes. Acrescentei, com base em meus próprios conhecimentos derivados de outras fontes, que tanto descer quanto subir escadas, em outros casos, descrevia relações sexuais vaginais. (Ver minhas observações [em Freud 1910d], citadas anteriormente, em [1])
O próprio sonhador deu uma explicação biográfica do fato de o primeiro poço ser seguido por uma plataforma alongada e, logo depois, por outro poço. Ele tivera relações sexuais por algum tempo, mas depois as havia abandonado por causa de inibições, e agora esperava poder reiniciá-las com a ajuda do tratamento. O sonho, porém, foi-se tornando mais vago ao chegar ao final, e deve parecer provável a quem quer que esteja familiarizado com essas coisas que a influência de outro tema já se estivesse fazendo sentir na segunda cena do sonho, e que foi sugerida pelos negócios do pai, por sua conduta fraudulenta e pela interpretação do primeiro poço como uma vagina: tudo isso apontava para uma ligação com a mãe do sonhador. [1]
IV
O ÓRGÃO MASCULINO REPRESENTADO POR PESSOAS E O ÓRGÃO FEMININO REPRESENTADO POR UMA PAISAGEM [1911]
 (Sonho de uma mulher inculta cujo marido era policial, relatado porB. Dattner.)

…Então alguém invadiu a casa e ela se assustou e chamou um policial. Mas ele entrara calmamente numa igrejaà qual se chegava subindo alguns degraus, acompanhado de dois vagabundos. Atrás da igreja havia uma colina e, mais acima, um bosque cerrado. O policial usava capacete, gola com insígnia de metal e uma capa. Tinha a barba castanha. Os dois vagabundos, que acompanhavam pacificamente o policial, tinham aventais semelhantes a sacos atados na cintura. Em frente à igreja uma trilha levava até a colina; de ambos os lados cresciam relva e moitas cerradas, que se iam tornando cada vez mais espessas e, no alto da colina, transformavam-se num bosque comum.

V
SONHOS DE CASTRAÇÃO EM CRIANÇAS
[1919]
(a) Um menino de três anos e cinco meses, que obviamente não gostava da idéia de que seu pai voltasse da frente de batalha, acordou certa manhãperturbado e excitado. Pôs-se a repetir: “Por que papai estava carregando a cabeça numa bandeja? Ontem de noite papai estava carregando a cabeça numa bandeja.
(b) Um estudante que agora sofre de grave neurose obsessiva recorda-se de ter tido o seguinte sonho repetidamente durante o sexto ano de vida: Ia ao barbeiro para mandar cortar o cabelo. Uma mulher grande e de aspecto severo se dirigia a ele e lhe cortava fora a cabeça. Ele reconhecia a mulher como sua mãe.

VI
SIMBOLISMO URINÁRIO
[1914]
A seqüência de desenhos reproduzida [em [1]] foi encontrada por Ferenczi num jornal humorístico húngaro chamado Fidibusz, e ele percebeu de imediato quão bem os desenhos poderiam ser utilizados para ilustrar a teoria dos sonhos. Otto Rank já os reproduziu num trabalho (1912a, [99]).
Os desenhos trazem o título “Sonho de uma Ama-seca Francesa”; mas é somente o último quadro, que mostra a babá sendo despertada pelos gritos da criança, que nos diz que os sete quadros anteriores representam as fases de um sonho. O primeiro quadro retrata o estímulo que teria feito a moça adormecida acordar: o garotinho toma ciência de uma necessidade e pede ajuda para satisfazê-la. Mas, no sonho, a sonhadora, em vez de se achar no quarto de dormir, está levando a criança para passear. No segundo quadro, ela já o levou à esquina de uma rua onde ele está urinando - e pode continuar a dormir. Mas o estímulo para despertar continua; na verdade, aumenta. O garotinho, verificando que não está sendo atendido, grita cada vez mais alto. Quanto mais imperiosamente insiste em que a babá acorde e o auxilie, mais insistente se torna a certeza do sonho de que tudo vai bem e de que não há necessidade de ela acordar. Ao mesmo tempo, o sonho traduz o estímulo crescente nas dimensões crescentes de seus símbolos. A corrente de água produzida pelo menino que urina vai-se avolumando cada vez mais. No quarto quadro, já é grande o bastante para fazer flutuar um barco a remo; mas seguem-se uma gôndola, um veleiro e, por fim, um transatlântico. O engenhoso artista, dessa maneira, retratou habilmente a luta entre o desejo obstinado de dormir e um estímulo inexaurível para acordar.
SONHO DE UMA AMA-SECA FRANCESA

VII

UM SONHO COM ESCADA
[1911]

 (Relatado e Interpretado por Otto Rank.)
“Tenho de agradecer ao mesmo colega a quem devo o sonho do estímulo dental [registrado em [1]] por um sonho de polução igualmente transparente:
“ ‘Eu ia descendo às pressas a escada [de um bloco de apartamentos], perseguindo uma menininha que me havia feito alguma coisa, a fim de castigá-la. No pé da escada, alguém (uma mulher adulta?) deteve a criança para mim. Agarrei-a, mas não sei se bati nela, pois de repente me vi no meio da escada copulando com a menina (como se fosse no ar). Não era uma verdadeira cópula; eu apenas esfregava minha genitália em seus órgãos genitais externos e, enquanto o fazia, eu os via com extrema nitidez, bem como a cabeça dela, que estava voltada para cima e para o lado. Durante o ato sexual eu via penderem acima de mim, à minha esquerda (também como se fora no ar), duas pequenas pinturas - paisagens representando uma casa circundada de árvores. Na parte inferior do quadro menor, em vez da assinatura do pintor, eu via meu próprio nome, como se a pintura se destinasse a ser um presente de aniversário para mim. A seguir, vi uma etiqueta diante dos dois quadros, que dizia que também se podiam conseguir pinturas mais baratas. (Vi então a mim mesmo, muito indistintamente, como se estivesse deitado na cama no patamar), e fui despertado pela sensação de umidade causada pela polução que tivera.
“INTERPRETAÇÃO. - Na noite do dia do sonho, o sonhador estivera numa livraria e, enquanto esperava ser atendido, olhara para alguns quadros que ali se achavam expostos e que representavam temas semelhantes aos do sonho. Aproximara-se de um quadrinho que lhe agradara particularmente para ver o nome do artista - mas este lhe era inteiramente desconhecido.
“Posteriormente, na mesma noite, quando estava com alguns amigos, ele ouvira a história de uma empregada da Boêmia que se vangloriava de que seu filho ilegítimo fora ‘feito na escada’. O sonhador indagara sobre os pormenores desse fato bastante incomum e soubera que a empregada tinha voltado para sua terra com seu admirador, indo para a casa dos pais, onde não houvera nenhuma oportunidade de relações sexuais, e que, em sua excitação, o homem copulara com ela na escada. O sonhador aludira jocosamente a uma expressão maliciosa empregada para descrever vinhos adulterados e dissera que, de fato, a criança provinha de uma ‘vindima de escada de adega’.
Basta isso no tocante às conexões com o dia anterior, que surgiram com certa insistência no conteúdo onírico e foram reproduzidas pelo sonhador sem qualquer dificuldade. Mas ele trouxe à baila, com igual facilidade, um antigo fragmento de lembrança infantil que também fora usado no sonho. A escada pertencia à casa onde ele passara a maior parte de sua infância e, em particular, onde pela primeira vez travara conhecimento consciente com os problemas do sexo. Com freqüência, brincara nessa escada e, entre outras coisas, costumava deslizar pelo corrimão, descendo montado nele - o que lhe dera sensações sexuais. Também no sonho, ele correra escada abaixo com extraordinária rapidez - de fato, com tanta rapidez que, segundo seu próprio relato específico, não pusera os pés nos degraus, um a um, mas ‘voara’ escada abaixo, como as pessoas costumam dizer. Caso se leve em consideração a experiência infantil, a parte inicial do sonho parece representar o fator da excitação sexual. - Mas o sonhador também fizera muitas vezes brincadeiras de natureza sexual com os filhos dos vizinhos nessa mesma escada e no prédio adjacente, e satisfizera seus desejos da mesma forma que no sonho.
“Se tivermos em mente que as pesquisas de Freud sobre o simbolismo sexual (1910d [ver em [1]]) indicaram que, nos sonhos, as escadarias e subir escadas representam quase invariavelmente a cópula, o sonho se tornará bem transparente. Sua força motivadora, como a rigor ficou demonstrado por seu resultado - uma polução - era de natureza puramente libidinal. A excitação sexual do sonhador foi despertada durante o sono, sendo isso representado no sonho por sua precipitação escada abaixo. O elemento sádico da excitação sexual, baseado nas brincadeiras da infância, foi indicado pela perseguição e sujeição da criança. A excitação libidinal aumentou e exerceu pressão no sentido da ação sexual - representada no sonho por ele agarrar a criança e levá-la até o meio da escada. Até esse ponto,o sonho fora apenas simbolicamente sexual, e teria sido inteiramente ininteligível para qualquer intérprete inexperiente de sonhos. Mas esse tipo de satisfação simbólica não foi suficiente para garantir um sono tranqüilo, em vista da intensidade da excitação libidinal. A excitação levou a um orgasmo e, assim, revelou o fato de que todo o simbolismo da escada representava a cópula. - Este sonho fornece uma confirmação especialmente clara do ponto de vista de Freud de que uma das razões da utilização do subir escadas como símbolo sexual é a natureza rítmica de ambas as atividades, pois o sonhador declarou expressamente que o elemento definido de maneira mais clara no sonho inteiro foi o ritmo do ato sexual e seu movimento para cima e para baixo.
“Devo acrescentar uma palavra no tocante aos dois quadros que, independentemente de seu significado real, também figuraram num sentido simbólico como Weibsbilder.Isso ficou demonstrado de imediato por haver um quadro grande e um pequeno, do mesmo modo que uma menina grande (ou adulta) e uma pequena apareceram no sonho. O fato de que ‘também se podiam conseguir pinturas mais baratas’ levou ao complexo das prostitutas, enquanto que, por outro lado, o aparecimento do prenome do sonhador no quadro pequeno e a idéia de este se destinar a ser um presente de aniversário para ele foram indícios do complexo paterno. (‘Nascido na escada’ = ‘gerado pela cópula’.)
“A cena final imprecisa, na qual o sonhador se viu deitado na cama no patamar e experimentou uma sensação de umidade, parece apontar, além da masturbação infantil, para uma época ainda mais remota da infância, e ter seu protótipo em cenas igualmente prazerosas de molhar a cama.”

VIII

UM SONHO MODIFICADO COM ESCADAS
[1911]

Um de meus pacientes, um homem cuja abstinência sexual lhe foi imposta por uma neurose grave e cujas fantasias [inconscientes] se fixavamna mãe, sonhava repetidamente estar subindo escadas na companhia dela. Certa vez, fiz-lhe o comentário de que uma dose moderada de masturbação provavelmente lhe faria menos mal do que sua auto-restrição compulsiva, tendo isso provocado o seguinte sonho:
Seu professor de piano o repreendia por negligenciar seus estudos de piano e por não praticar os “Études” de Moscheles e o “Gradus ad Parnassum” de Clementi.
À guisa de comentário, ele ressaltou que “Gradus” também são “degraus” e que o próprio teclado é uma escadaria, já que contém escalas [escadas de mão].
Cabe dizer que não há nenhum grupo de idéias que seja incapaz de representar fatos e desejos sexuais.

IX

O SENTIMENTO DE REALIDADE EA REPRESENTAÇÃO DA REPETIÇÃO
[1919]

Um homem que conta agora trinta e cinco anos relatou um sonho do qual se lembrava nitidamente e que declarou ter tido aos quatro anos de idade. O advogado que estava encarregado do testamento de seu pai - ele perdera o pai aos três anos - trouxera duas pêras grandes. Deram-lhe uma para comer; a outra ficou no parapeito da janela da sala de estar. Ele acordou com a convicção da realidade do que havia sonhado e se pôs a pedir obstinadamente a segunda pêra à mãe, insistindo em que estava no parapeito da janela. Sua mãe rira disso.
ANÁLISE. - O advogado era um velho cavalheiro jovial que, como o paciente parecia recordar, realmente levara algumas pêras certa vez. O parapeito da janela era tal como ele o vira no sonho. Nada mais lhe ocorreu em relação a isso - apenas que a mãe lhe contara um sonho pouco antes. Havia dois pássaros pousados em sua cabeça, e ela se perguntara quando iriam embora; eles não foram, mas um deles voou até sua boca e sugou-a.
A falta de associações do paciente nos dá o direito de tentar uma interpretação por substituição simbólica. As duas pêras - “pommes ou poires” - eram os seios da mãe, que o haviam nutrido; o parapeito dajanela era a projeção formada pelo busto dela - como as sacadas nos sonhos com casas (ver em [1]). Seu sentimento de realidade depois de acordar foi justificado, pois sua mãe realmente o amamentara e, a rigor, fizera-o por muito mais tempo que de hábito; e os seios da mãe ainda lhe estavam disponíveis. O sonho deve ser traduzido por “Dê-me (ou mostre-me) de novo seu seio, mãe, no qual eu costumava beber no passado”. “No passado” foi representado por ele comer uma das pêras; “de novo” foi representado por seu desejo pela outra. A repetição temporal de um ato é regularmente indicada nos sonhos pela multiplicação numérica de um objeto.
É extremamente notável, por certo, que o simbolismo já desempenhe seu papel no sonho de uma criança de quatro anos. Mas isso é a regra, e não a exceção. Pode-se afirmar com segurança que os sonhadores dispõem do simbolismo desde o princípio.
A seguinte lembrança não-influenciada de uma moça que conta agora vinte e sete anos mostra em que idade precoce o simbolismo é empregado, tanto fora da vida onírica quanto dentro dela. Ela estava entre os três e quatro anos de idade. Sua ama levou-a ao banheiro, juntamente com um irmão onze meses mais novo que ela e uma prima cuja idade se situava entre as dos dois, para satisfazerem suas necessidades antes de saírem a passeio. Sendo a mais velha, ela se sentou no vaso sanitário, enquanto os outros dois sentaram-se em urinóis. Ela perguntou à prima: “Você também tem uma bolsa? Walter tem uma salsichinha; eu tenho uma bolsa.” A prima respondeu: “É, eu também tenho uma bolsa.” A ama ouviu, achando muita graça, o que eles diziam, e relatou a conversa à mãe das crianças, que reagiu com severa reprimenda.
Interpolei aqui um sonho (registrado num trabalho de Alfred Robitsek, 1912) em que o simbolismo lindamente escolhido possibilitou uma interpretação, apenas com uma ligeira ajuda da sonhadora.

X

A QUESTÃO DO SIMBOLISMO NOS SONHOSDAS PESSOAS NORMAIS
[1914]

 “Uma objeção freqüentemente levantada pelos adversários da psicanálise, e que foi recentemente externada por Havelock Ellis (1911, 168), é o argumento de que, embora o simbolismo onírico talvez possa ocorrer como um produto da mente neurótica, não é encontrado em pessoas normais. Ora, a pesquisa psicanalítica não encontra nenhuma distinção fundamental, mas apenas quantitativa, entre a vida normal e a vida neurótica; e, de fato, a análise dos sonhos, onde os complexos recalcados são atuantes tanto nas pessoas sadias quando nas doentes, mostra uma identidade completa nos mecanismos e no simbolismo delas. Os sonhos ingênuos das pessoas sadias, na realidade, muitas vezes encerram um simbolismo muito mais simples, mais compreensível e mais característico do que os sonhos dos neuróticos, pois nestes, como resultado da ação mais poderosa da censura e, conseqüentemente, de uma distorção onírica mais extensa, o simbolismo pode ser obscuro e difícil de interpretar. O sonho registrado abaixo servirá para ilustrar esse fato. Foi sonhado por uma moça que não é neurótica, mas tem um caráter um tanto pudico e reservado. No decorrer de uma conversa que tive com ela, fiquei sabendo que estava noiva, mas que havia certas dificuldades que se antepunham a seu casamento e que, provavelmente, levariam ao adiamento dele. Por livre e espontânea vontade, ela me relatou o seguinte sonho.
‘Estou arrumando o centro de uma mesa com flores para um aniversário.’ Em resposta a uma pergunta, ela me disse que, no sonho, parecia estar em sua própria casa (onde não estava morando no momento) e tinha ‘uma sensação de felicidade’.
“O simbolismo ‘popular’ possibilitou-me traduzir o sonho sem necessidade de ajuda. Era uma expressão de seus desejos nupciais: a mesa, com seu centro de flores, simbolizava ela própria e seus órgãos genitais; a moça representava como realizados seus desejos ligados ao futuro, pois seuspensamentos já estavam ocupados com o nascimento de um bebê; logo, o casamento já ficara para trás há muito tempo.
“Frisei-lhe que ‘o “centro” de uma mesa‘ era uma expressão inusitada (o que ela admitiu), mas não pude, é claro, formular-lhe diretamente outras perguntas sobre esse ponto. Evitei cuidadosamente sugerir-lhe o significado dos símbolos, e apenas perguntei o que lhe vinha à cabeça em relação às partes isoladas do sonho. No curso da análise, sua reserva cedeu lugar a um evidente interesse na interpretação e a uma franqueza possibilitada pela seriedade da conversa.
“Quando lhe perguntei quais tinham sido as flores, sua primeira resposta foi: ‘flores caras; tem-se de pagar por elas‘, e, em seguida, que tinham sido ‘lírios do vale, violetas e cravinas ou cravos‘. Presumi que o termo ‘lírio’ aparecera no sonho em seu sentido popular, como símbolo da castidade; ela confirmou essa suposição, pois sua associação com ‘lírio’ foi ‘pureza‘. ‘Vale’ é um símbolo feminino freqüente nos sonhos, de modo que a combinação casual dos dois símbolos no nome inglês dessa flor foi empregado no simbolismo onírico para frisar a preciosidade de sua virgindade - ‘flores caras, tem-se de pagar por elas‘ - e para expressar sua expectativa de que seu marido soubesse como apreciar-lhe o valor. A expressão ‘flores caras, etc.‘, como se verá, possuía um significado diferente no caso de cada um dos três símbolos florais.
‘Violetas‘, aparentemente, era bem assexual; mas, com muita ousadia, ao que me pareceu, pensei poder desvendar um sentido secreto para essa palavra, num elo inconsciente com a palavra francesa ‘viol‘ [‘estupro’]. Para minha surpresa, a sonhadora forneceu como associação o termo inglês ‘violate‘ [‘violar’]. O sonho utilizara a grande similaridade casual entre as palavras ‘violet‘ e ‘violate‘ - a diferença em sua pronúncia está apenas na tonicidade diferenciada de suas sílabas finais - para expressar, ‘na linguagem das flores’, as idéias da sonhadora sobre a violência da defloração (outro termo que emprega o simbolismo das flores) e, possivelmente, também, um traço masoquista de seu caráter. Um belo exemplo das ‘pontes verbais’ [ver em [1]] atravessadas pelas vias que levam ao inconsciente. As palavras ‘tem-se de pagar por elas‘ significavam ter de pagar com a vida para ser esposa e mãe.
“No tocante a ‘cravinas’ [pinks], que ela passou a chamar de ‘cravos’ [carnations], pensei na ligação entre essa palavra e ‘carnal’. Mas a associação da sonhadora foi ‘cor’. Ela acrescentou que ‘cravos’ eram as flores que seu noivo lhe dava com freqüência e em grande quantidade. No final de suas observações, ela confessou, súbita e espontaneamente, nãoter dito a verdade: o que lhe ocorrera não tinha sido ‘cor‘, mas ‘encarnação‘ [incarnation] - a palavra que eu havia esperado. Aliás, o próprio termo ‘cor’ não era uma associação muito remota, mas determinada pelo significado de ‘cravo‘ [carnation] (cor de carne) - em outras palavras, determinada pelo mesmo complexo. Essa falta de sinceridade mostrou ser esse o ponto em que a resistência era maior, e correspondeu ao fato de ser esse o ponto onde o simbolismo era mais claro e onde a luta entre a libido e seu recalcamento atingia o nível mais intenso em relação a esse tema fálico. O comentário da sonhadora no sentido de que seu noivo muitas vezes lhe dava esse tipo de flores foi uma indicação não só do duplo sentido do termo ‘cravos‘ [carnations], como também de seu significado fálico no sonho. O oferecimento de flores, fator excitante do sonho oriundo da vida corrente da moça, foi empregado para expressar uma troca de dádivas sexuais: ela fazia de sua virgindade um presente e, em troca, esperava uma vida emocional e sexual plena. Também nesse ponto, as palavras ‘flores caras, tem-se de pagar por elas‘ devem ter tido o que, sem dúvida, era literalmente um significado financeiro. - Assim, o simbolismo das flores, nesse sonho, abrangia a feminilidade virginal, a masculinidade e uma alusão ao defloramento pela violência. Vale a pena salientar, nesse sentido, que o simbolismo sexual das flores, que de fato ocorre muito comumente em outros contextos, simboliza os órgãos sexuais humanos através das flores, que são os órgãos sexuais das plantas. Talvez seja verdade, de modo geral, que as ofertas de flores entre aqueles que se amam tenham esse significado inconsciente.
“O aniversário para o qual ela se estava preparando no sonho significava, sem dúvida, o nascimento de um bebê. Ela se estava identificando com o noivo e o estava representando como ‘arrumando-a’ para um nascimento - isto é, copulando com ela. O pensamento latente talvez tenha sido: ‘Se eu fosse ele, não esperaria - defloraria minha noiva sem lhe pedir licença - empregaria a violência’. Isso foi indicado pelo termo ‘violar‘ e, desse modo, o componente sádico da libido encontrou expressão.
“Numa camada mais profunda do sonho, a frase ‘Estou arrumando…‘ deve sem dúvida, ter um significado auto-erótico, isto é, infantil.
“A sonhadora revelou também uma consciência, possibilitada a ela apenas em sonho, de sua deficiência física: viu a si própria como uma mesa, sem projeções, e, por isso mesmo depositou ainda mais ênfase na preciosidade do ‘centro‘ - noutra ocasião empregou as palavras ‘um centro de flores‘ - isto é, em sua virgindade. O atributo horizontal de mesa também deve ter dado alguma contribuição para o símbolo.
“A concentração do sonho deve ser observada: nada havia nele de supérfluo, cada palavra era um símbolo.
“Posteriormente, a sonhadora produziu um adendo ao sonho: ‘Estou decorando as flores com papel crepom verde.’ Acrescentou tratar-se de um ‘papel de fantasia‘, do tipo usado para cobrir vasos de flores comuns. E prosseguiu: ‘Para ocultar coisas desarrumadas, qualquer coisa visível que não fosse agradável aos olhos; há uma lacuna, um pequeno espaço nas flores. O papel parece veludo ou musgo‘. - Para ‘decorar‘ ela forneceu a associação ‘decoro‘, como eu havia esperado. Disse que a cor verde predominava, e sua associação com ela foi ‘esperança‘ - outro elo com a gravidez. - Nessa parte do sonho, o fator principal não foi a identificação com um homem; as idéias de vergonha e de auto-revelação vieram para o primeiro plano. Ela se estava embelezando para ele e admitindo defeitos físicos de que se envergonhava e que estava tentando corrigir. Suas associações ‘veludo‘ e ‘musgo‘ constituíam uma indicação clara de uma referência aos pêlos pubianos.
“Esse sonho, portanto, deu expressão a pensamentos de que a moça mal tinha ciência em sua vida de vigília - pensamentos concernentes ao amor sensual e seus órgãos. Ela estava sendo ‘arrumada para um aniversário’ - isto é, estava copulando com alguém. O medo de ser deflorada estava encontrando expressão, o mesmo acontecendo, talvez, com as idéias de um sofrimento prazeroso. Ela admitia para si própria suas deficiências físicas e as supercompensava mediante uma supervalorização da virgindade. Sua vergonha apresentava como desculpa para os sinais de sensualidade o fato de que a finalidade desta era a produção de um bebê. Também as considerações materiais, estranhas ao espírito dos enamorados, encontraram um meio de expressar-se. O afeto ligado a esse sonho simples - uma sensação de felicidade - indicou que poderosos complexos emocionais nele haviam encontrado satisfação.”
Ferenczi (1917) salientou, acertadamente, que o significado dos símbolos e a significação dos sonhos podem ser alcançados com particular facilidade a partir, precisamente, dos sonhos das pessoas que não são iniciadas na psicanálise.
Neste ponto, intercalarei um sonho produzido por uma figura histórica contemporânea. Faço-o porque, no sonho, um objeto que de qualquer modorepresentaria apropriadamente um órgão masculino tem um atributo adicional que o estabeleceu da maneira mais clara possível como um símbolo fálico. Dificilmente se poderia tomar o fato de um chicote crescer até um comprimento interminável em qualquer outro sentido que não o de uma ereção. Afora isso, ademais, o sonho é um excelente exemplo do modo como pensamentos de natureza séria, muito distantes de qualquer coisa sexual, podem vir a ser representados por material sexual infantil.

XI
UM SONHO DE BISMARCK [1919]

“Em sua obra Gedanken und Erinnerungen [1898, 2, 194; tradução inglesa de A. J. Butler, Bismarck, the Man and the Statesman, 1898, 2, 209 e segs.], Bismarck cita uma carta que escreveu ao Imperador Guilherme I em 18 de dezembro de 1881, no curso da qual ocorre o seguinte trecho: ‘A comunicação de Vossa Majestade estimula-me a relatar um sonho que tive na primavera de 1863, nos piores dias do Conflito, do qual nenhuma visão humana poderia vislumbrar qualquer saída possível. Sonhei (como relatei antes de qualquer outra coisa a minha mulher e a outras testemunhas na manhã seguinte) que cavalgava por uma estreita trilha alpina, com um precipício à direita e rochas à esquerda. O caminho foi-se estreitando, de tal modo que o cavalo recusou-se a prosseguir e era impossível dar meia-volta ou desmontar, devido à falta de espaço. Então, com o chicote na mão esquerda, golpeei a rocha lisa e invoquei o nome de Deus. O chicote cresceu até atingir um comprimento interminável, a muralha rochosa desmoronou como um pedaço de cenário num palco e abriu-se um caminho largo com uma vista das colinas e florestas, como uma paisagem da Boêmia; havia tropas prussianas com estandartes, e mesmo em meu sonho me veio imediatamente a idéia de que eu deveria relatar isso a Vossa Majestade. Esse sonho se realizou e acordei regozijante e fortalecido…’
“A ação desse sonho enquadra-se em duas seções. Na primeira parte, o sonhador viu-se num impasse do qual foi miraculosamente resgatado nasegunda. A difícil situação em que cavalo e cavaleiro foram colocados é uma imagem onírica facilmente reconhecível da posição crítica do estadista, que ele talvez tivesse sentido com particular amargura ao ponderar sobre os problemas de sua política na noite anterior ao sonho. No trecho citado acima, o próprio Bismarck utiliza o mesmo símile [de não haver nenhuma ‘saída’ possível] ao descrever a desesperança de sua situação na época. O significado da imagem onírica, portanto, deve ter sido bem óbvio para ele. Ao mesmo tempo, é-nos apresentado um belo exemplo do ‘fenômeno funcional’ de Silberer [ver em [1]]. O processo ocorrido na mente do sonhador - com cada uma das soluções tentadas por seus pensamentos esbarrando em obstáculos intransponíveis, ao mesmo tempo que, ainda assim, ele não sabia e não podia desvencilhar-se do exame desses problemas - foi retratado com extrema propriedade pelo cavaleiro que não podia avançar nem recuar. Seu orgulho, que impedia que ele pensasse em render-se ou renunciar, foi expresso no sonho pelas palavras ‘era impossível dar meia-volta ou desmontar’. Na qualidade de homem de ação que se empenhava incessantemente e lutava pelo bem de outrem, deve ter sido fácil para Bismarck assemelhar-se a um cavalo; e, de fato, ele assim fez em muitas ocasiões, como por exemplo em seu célebre dito: ‘Um bom cavalo morre trabalhando’. Nesse sentido, as palavras ‘o cavalo recusou-se a prosseguir’ significavam nada mais nada menos do que o fato de que o extenuado estadista sentia uma necessidade de fugir às inquietações do presente imediato, ou, para expressá-lo de outra forma, de que estava no ato de se libertar dos grilhões do princípio de realidade através do sono e do sonho. A realização de desejo, que se tornou tão destacada na segunda parte do sonho, já tinha sido sugerida nas palavras ‘trilha alpina’. Sem dúvida, Bismarck já sabia, nessa ocasião, que iria passar suas próximas férias nos Alpes - em Gastein; assim, o sonho, levando-o até lá, liberou-o de um só golpe de todos os fardos dos negócios de Estado.
“Na segunda parte do sonho, os desejos do sonhador foram representados como realizados de duas maneiras: indisfarçada e obviamente, e além disso, simbolicamente. Sua realização foi simbolicamente representada pelo desaparecimento da rocha obstrutiva e pelo surgimento, em seu lugar, de um caminho amplo - a ‘saída’ à procura da qual ele estava, em sua forma mais conveniente; e foi indisfarçadamente representada na imagem das tropas prussianas que avançavam. Para explicar essa visão profética, não há absolutamente nenhuma necessidade de construir hipóteses místicas; a teoria freudiana da realização de desejo basta plenamente.Já por ocasião desse sonho, Bismarck desejava uma guerra vitoriosa contra a Áustria como a melhor saída para os conflitos internos da Prússia. Assim, o sonho estava representando esse desejo como realizado, justamente como é postulado por Freud, quando o sonhador viu as tropas prussianas com seus estandartes na Boêmia, isto é, em solo inimigo. A única peculiaridade do caso foi que o sonhador em que estamos aqui interessados não se contentava com a realização de seu desejo num sonho, mas sabia como obtê-la na realidade. Um aspecto que não pode deixar de impressionar qualquer um que esteja familiarizado com a técnica psicanalítica da interpretação é o chicote - que crescia até atingir um ‘comprimento interminável’. Os chicotes, bastões, lanças e objetos semelhantes nos são familiares como símbolos fálicos; mas, quando um chicote possui ainda a característica mais notável de um falo, que é sua extensibilidade, mal pode restar alguma dúvida. O exagero do fenômeno - seu crescimento até um ‘comprimento interminável’ - parece sugerir uma hipercatexia proveniente de fontes infantis. O fato de o sonhador ter tomado o chicote nas mãos foi uma alusão clara à masturbação, embora a referência não dissesse respeito, é claro, às circunstâncias contemporâneas do sonhador, mas a desejos infantis do passado remoto. A interpretação descoberta pelo Dr. Stekel [1909, 466 e segs.], de que, nos sonhos, a ‘esquerda’ representa o que é errado, proibido e pecaminoso, vem muito a calhar aqui, pois bem poderia aplicar-se à masturbação praticada na infância em face da proibição. Entre essa camada infantil mais profunda e a mais superficial, que se relacionava com os planos imediatos do estadista, é possível identificar uma camada intermediária que se relacionava com as outras duas. Todo o episódio de uma libertação miraculosa da necessidade, ao bater numa pedra e, ao mesmo tempo, invocar Deus como auxiliar, tem uma notável semelhança com a cena bíblica em que Moisés extrai água de uma rocha para os sedentos Filhos de Israel. Podemos presumir, sem hesitação, que essa passagem, com todos os seus pormenores, era familiar a Bismarck, que provinha de uma família protestante amante da Bíblia. Não seria improvável que, nessa época de conflito, Bismarck se comparasse a Moisés, o líder, a quem o povo que ele procurou libertar recompensou com rebelião, ódio e ingratidão. Aqui, portanto, teríamos a ligação com os desejos contemporâneosdo sonhador. Mas, por outro lado, o texto da Bíblia contém alguns detalhes que se aplicam bem a uma fantasia masturbatória. Moisés tomou a vara em face da ordem de Deus, e o Senhor o puniu por essa transgressão dizendo-lhe que ele deveria morrer sem entrar na Terra Prometida. O ato proibido de apanhar a vara (no sonho, um ato inequivocamente fálico), a produção de líquido ao golpear com ela e a ameaça de morte - aí encontramos reunidos todos os principais fatores da masturbação infantil. Podemos observar com interesse o processo de revisão que fundiu essas duas imagens heterogêneas (originando-se, uma, da mente de um estadista de gênio, e outra, dos impulsos da mente primitiva de uma criança) e que, por esse meio, conseguiu eliminar todos os fatores aflitivos. O fato de que segurar a vara era um ato proibido e de rebelião não mais foi indicado senão simbolicamente, através da mão ‘esquerda’ que o praticou. Por outro lado, Deus foi invocado no conteúdo manifesto do sonho, como que para negar tão ostensivamente quanto possível qualquer idéia de uma proibição ou segredo. Das duas profecias feitas por Deus a Moisés - de que ele veria a Terra Prometida, mas nela não entraria - a primeira é claramente representada como realizada (‘a vista das colinas e florestas’), enquanto a segunda, altamente aflitiva, não é mencionada em absoluto. A água foi provavelmente sacrificada às exigências da elaboração secundária [ver em [1]], que se esforçou com êxito por fundir esta cena e a primeira numa só unidade; em vez de água, a própria rocha caiu.
“Poder-se-ia esperar que ao término de uma fantasia masturbatória infantil que tivesse incluído o tema da proibição, a criança desejasse que as pessoas de autoridade em seu ambiente nada soubessem do que havia acontecido. No sonho, esse desejo foi representado por seu oposto, pelo desejo de informar ao Rei imediatamente do que acontecera. Mas essa inversão se ajustava de maneira excelente e muito discreta na fantasia de vitória contida na camada superficial dos pensamentos oníricos e numa parcela do conteúdo manifesto do sonho. Um sonho como esse, de vitória e conquista, é amiúde uma capa para que um desejo seja bem-sucedido numa conquista erótica; certas características do sonho, como, por exemplo, a de ter havido um obstáculo ao avanço do sonhador, mas, depois de ele fazer uso de um chicote extensível, ter-se aberto um caminho amplo, poderiam apontar nessa direção, mas elas fornecem uma base insuficiente para se inferir que uma tendência definida de pensamentos e desejos desse tipo teria perpassado o sonho. Temos aqui um exemplo perfeito de distorção totalmente bem-sucedida do sonho. O que quer que tenha havido nele de desagradável foi trabalhado, de modo que nunca emergiu através da camadasuperficial que se estendeu sobre o sonho como um manto protetor. Em conseqüência disso, foi possível evitar qualquer liberação de angústia. O sonho foi um caso ideal de desejo realizado com êxito, sem infringir a censura, de modo que bem podemos crer que o sonhador tenha despertado dele ‘regozijante e fortalecido’.”
Como último exemplo, eis aqui:

XII
O SONHO DE UM QUÍMICO
[1909]

Isso foi sonhado por um homem jovem que se vinha esforçando por abandonar o hábito de se masturbar, em prol de relações sexuais com mulheres.
PREÂMBULO. - No dia anterior ao sonho, ele estivera dando instruções a um aluno sobre a reação de Grignard, na qual o magnésio é dissolvido em éter absolutamente puro através da ação catalisadora do iodo. Dois dias antes, quando a mesma reação estava sendo executada, ocorrera uma explosão que havia queimado a mão de um dos manipuladores.
SONHO. - (I) Ele devia estar fazendo brometo de fenil-magnésio. Via o aparelho com particular nitidez, mas substituíra o magnésio por ele próprio. Percebeu-se então num estado singularmente instável. Ficou a dizer consigo mesmo: “Isso está certo, as coisas estão funcionando, meus pés já estão começando a se dissolver, meus joelhos estão ficando moles.” Então, estendeu as mãos e apalpou os pés. Entrementes (como, não sabia dizer), tirou as pernas do vaso e disse a si mesmo, mais uma vez: “Isso não pode estar certo. É, mas está.” Nesse ponto, acordou parcialmente e examinou o sonho consigo mesmo, para poder relatá-lo a mim. Estava positivamente assustado com a solução do sonho. Sentiu-se extremamente excitado durante esse período de semi-adormecimento e ficou a repetir: “Fenil, fenil.”
(II) Ele estava em  ing com sua família inteira e deveria estar em Schottentor às onze e meia para se encontrar com uma certa mulher. Mas só acordou às onze e meia, e disse para consigo: “É muito tarde. Não se pode chegar lá antes de meio-dia e meia.” No momento seguinte, viu toda a família sentada à mesa; via sua mãe com particular nitidez, e a empregada carregando a terrina de sopa. Então, pensou: “Bem já que começamos a almoçar, é tarde demais para eu sair.”
ANÁLISE. - Ele não tinha nenhuma dúvida de que mesmo a primeira parte do sonho tinha alguma relação com a mulher com ele se iria encontrar. (Tivera o sonho na noite anterior ao esperado rendez-vous.) Considerava o aluno a quem dera instruções como uma pessoa particularmente desagradável.Tinha-lhe dito “Isso não está certo” porque o magnésio não dera nenhum sinal de ser afetado. E o aluno havia respondido, como se estivesse inteiramente despreocupado: “É, não está.” O aluno devia representar ele próprio (o paciente), que era tão indiferente em relação à análise quanto o aluno a respeito da síntese. O “ele” do sonho que executava a operação representava a mim. Quão desagradável eu deveria considerá-lo por ser tão indiferente ao resultado!
Por outro lado, ele (o paciente) era o material que estava sendo utilizado para a análise (ou síntese). O que estava em jogo era o êxito do tratamento. A referência a suas pernas, no sonho, fez com que se lembrasse de uma experiência da noite anterior. Estava tendo uma aula de dança e se encontrara com uma moça a quem muito desejava conquistar. Abraçara-a com tanta força contra si que, em certo momento, ela deu um grito. Ao relaxar a pressão contra as pernas dela, sentira sua forte pressão receptiva contra a parte inferior das coxas dele, descendo até os joelhos - o ponto mencionado em seu sonho. De modo que, nesse sentido, a mulher é que era o magnésio no comentário de que as coisas finalmente estavam funcionando. Ele era feminino em relação a mim, assim como era masculino em relação à mulher. Se estava funcionando com a dama, estava funcionando com ele no tratamento. O fato de ele se apalpar e as sensações nos joelhos apontavam para a masturbação e se encaixavam com sua fadiga do dia anterior. - Seu encontro com a moça fora marcado, de fato, para as onze e meia. O desejo de não comparecer a ele, dormindo demais, e de ficar em casa com seus objetos sexuais (isto é, de se ater à masturbação) correspondiam a sua resistência.
No tocante à repetição da palavra “fenil”, ele me disse que sempre apreciara muito todos esses radicais que terminavam em “-il”, por serem muito fáceis de usar: benzil, acetil, etc. Isso nada explicava. Mas, quando lhe sugeri “Schlemihl” como outro radical da série, ele riu gostosamente e me disse que, durante o verão, lera um livro de Marcel Prévost no qual havia um capítulo sobre “Les exclus de l’amour”, que de fato continha algumas observações sobre “les Schlémiliés”. Ao lê-las, ele dissera consigo mesmo: “É assim mesmo que eu sou.” - Se tivesse faltado ao encontro, isso teria sido outro exemplo de sua “schlemihlidade”.
Poder-se-ia supor que a ocorrência do simbolismo sexual nos sonhos já foi experimentalmente confirmada por alguns trabalhos efetuados por K.Schrötter, em moldes propostos por H. Swoboda. Sujeitos em hipnose profunda receberam sugestões de Schrötter, havendo estas levado à produção de sonhos dos quais grande parte do conteúdo foi determinada pelas sugestões. Se ele desse ao sujeito a sugestão de que ele deveria sonhar com relações sexuais normais ou anormais, o sonho, obedecendo à sugestão, utilizaria símbolos que nos são familiares a partir da psicanálise em lugar do material sexual. Por exemplo, quando se deu a um sujeito do sexo feminino a sugestão de que sonhasse estar tendo relações homossexuais com uma amiga, esta apareceu no sonho carregando uma bolsa surrada, com uma etiqueta que trazia os dizeres “Só para damas”. Afirmou-se que a mulher que teve esse sonho nunca tivera nenhum conhecimento do simbolismo nos sonhos ou da interpretação destes. Surgem, contudo, dificuldades em formarmos uma opinião sobre o valor desses interessantes experimentos, pela infeliz circunstância de o Dr. Schrötter ter-se suicidado pouco depois de efetuá-los. O único registro deles encontra-se numa comunicação preliminar publicada no Zentralblatt für Psychoanalyse (Schrötter, 1912). [1914.]
Resultados semelhantes foram publicados por Roffenstein em 1923. Alguns experimentos realizados por Betlheim e Hartmann (1924) foram de particular interesse, visto não terem feito uso da hipnose. Esses experimentadores contaram anedotas de natureza grosseiramente sexual a pacientes que sofriam da síndrome de Korsakoff e observaram as distorções que ocorriam quando as anedotas eram reproduzidas pelos pacientes nesses estados confusionais. Constataram que os símbolos que nos são familiares a partir da interpretação dos sonhos passavam a aparecer (por exemplo, subir escadas, apunhalar e atirar como símbolos de copulação, e facas e cigarros como símbolos do pênis). Os autores atribuíram especial importância ao aparecimento do símbolo da escada, pois, como observaram acertadamente, “nenhum desejo consciente de distorcer poderia ter chegado a um símbolo dessa natureza”. [1925.]
Somente agora, depois de termos avaliado adequadamente a importância do simbolismo nos sonhos, é que se nos torna possível retomar o tema dos sonhos típicos, interrompido em [1]. [1914.] Penso termos razões para dividir esses sonhos, grosso modo, em duas classes: os que realmente têm sempre o mesmo sentido e os que, apesar de terem conteúdo idêntico ou semelhante, devem, não obstante, ser interpretados de maneira extremamente variada. Entre os sonhos típicos da primeira categoria já tratei [em [1]], com certa riqueza de detalhes, dos sonhos com exames. [1909.]

Os sonhos com a perda de um trem merecem ser postos ao lado dos sonhos com exames por causa da similaridade de seu afeto, e sua explicação mostra que estaremos certos ao fazê-lo. Eles são sonhos de consolação para outra espécie de angústia sentida no sono - o medo de morrer. “Partir” numa viagem é um dos símbolos mais comuns e mais reconhecidos da morte. Esses sonhos dizem, de maneira consoladora, “Não se preocupe, você não morrerá (partirá)”, tal como os sonhos com exames dizem, alentadoramente, “Não tenha medo, nenhum mal lhe acontecerá desta vez, tampouco”. A dificuldade de compreender esses dois tipos de sonhos se deve ao fato de que o sentimento de angústia está ligado precisamente à expressão de consolo. [1911.]
O sentido dos sonhos “com um estímulo dental” [cf. em [1]] [2], que muitas vezes tive de analisar em pacientes, escapou-me por muito tempo porque, para minha surpresa, havia invariavelmente resistências fortíssimas a sua interpretação. Provas esmagadoras fizeram com que, finalmente, eu não mais tivesse nenhuma dúvida de que, nos homens, a força motora desses sonhos não derivava de outra coisa senão dos desejos masturbatórios do período da puberdade. Analisarei dois desses sonhos, um dos quais é também um “sonho de voar”. Ambos foram sonhados pela mesma pessoa - um rapaz com fortes inclinações homossexuais que, todavia, eram inibidas na vida real.
Ele estava assistindo a uma encenação de “Fidélio” e se achava sentado nas primeiras filas da Ópera ao lado de L., um homem que lhe era agradável e com que gostaria de fazer amizade. De repente, ele saiu voando pelos ares, bem por cima das poltronas, levou a mão à boca e arrancou dois de seus dentes.
Ele próprio disse, a propósito do vôo, que era como se tivesse sido “jogado” no ar. Como se tratava de uma representação de Fidélio, as palavras

Wer ein holdes Weib errungen…

poderiam parecer adequadas. Mas nem mesmo a conquista da mais adorável das mulheres estava entre os desejos do sonhador. Dois outros versos seriam mais apropriados:

Wem der grosse Wurf gelungen,
Eines Freundes Freund zu sein…
O sonho efetivamente continha essa “grande jogada”, que, contudo, não era apenas a realização de um desejo. Escondia também a dolorosa reflexão de que o sonhador muitas vezes fora infeliz em suas tentativas de amizade, e fora “jogado fora”. Também escondia seu temor de que esse infortúnio pudesse repetir-se em relação ao rapaz ao lado de quem ele estava desfrutando da representação de Fidélio. E então se seguiu o que o desdenhoso sonhador encarava como uma confissão vergonhosa: a de que, certa vez, após ter sido rejeitado por um de seus amigos, ele se masturbara duas vezes seguidas, no estado de excitação sensual provocado por seu desejo.
Eis aqui o segundo sonho: Ele estava sendo tratado por dois professores universitários de suas relações, e não por mim. Um deles estava fazendo alguma coisa com seu pênis. Ele temia uma operação. O outro empurrava-lhe a boca com um bastão de ferro, de modo que ele perdeu um ou dois dentes. Estava amarrado com quatro panos de seda.
Dificilmente se pode duvidar de que esse sonho tivesse um sentido sexual. Os panos de seda identificaram-no com um homossexual que ele conhecia. O sonhador nunca praticara o coito e nunca procurara ter relações sexuais com homens na vida real; e imaginava as relações sexuais segundo o modelo da masturbação da puberdade com que outrora estivera familiarizado.
As numerosas modificações do sonho típico com estímulos dentais (por exemplo, sonhos de que um dente é arrancado por outra pessoa, etc.) devem penso eu, ser explicadas da mesma maneira. É possível, porém, que nosintrigue descobrir como foi que os “estímulos dentais” passaram a ter esse significado. Mas eu gostaria de chamar atenção para a freqüência com que o recalcamento sexual se vale de transposições de uma parte inferior do corpo para uma parte superior. Graças a elas, torna-se possível, na histeria, que toda sorte de sensações e intenções sejam efetivadas, se não ali onde são apropriadas - em relação aos órgãos genitais -, pelo menos em relação a outras partes não objetáveis do corpo. Um exemplo de transposição dessa natureza é a substituição dos órgãos genitais pelo rosto no simbolismo do pensamento inconsciente. O uso lingüístico segue o mesmo modelo, ao reconhecer as nádegas [“Hinterbacken”, literalmente, “bochechas traseiras”] como homólogas às bochechas, e ao traçar um paralelo entre os “labia” e os lábios que delimitam o orifício da boca. As comparações entre o nariz e o pênis são comuns, tornando-se a similaridade mais completa pela presença de pêlos em ambos os lugares. A única estrutura que não oferece qualquer possibilidade de analogia são os dentes; e é precisamente essa combinação de semelhança e dissimilaridade que torna os dentes tão apropriados para fins de representação quando alguma pressão é exercida pelo recalcamento sexual.
Não posso pretender que a interpretação dos sonhos com estímulos dentais como sonhos masturbatórios - uma interpretação cuja correção me parece indubitável - tenha sido inteiramente esclarecida. Dei a explicação que pude e devo deixar o que resta sem solução. Mas posso chamar atenção para outro paralelo encontrado no uso lingüístico. Em nossa parte do mundo, o ato da masturbação é vulgarmente descrito como “sich einen ausreissen” ou “sich einen herunterreissen” [literalmente, “dar uma puxada para fora” ou “dar uma puxada para baixo”]. [1] Nada sei da fonte dessa terminologia ou das imagens em que se baseia; mas “um dente” se enquadraria muito bem na primeira das duas expressões.
Segundo a crença popular, os sonhos com dentes que são arrancados devem ser interpretados como significando a morte de um parente, mas a psicanálise pode, no máximo, confirmar essa interpretação somente no sentido jocoso a que aludi acima. Nesse contexto, porém, citarei um sonho com estímulo dental que foi posto a minha disposição por Otto Rank.
“Um colega meu, que há algum tempo vem dedicando vivo interesse aos problemas da interpretação de sonhos, enviou-me a seguinte contribuição ao tema dos sonhos com estímulos dentais.
“ ‘Há pouco tempo, sonhei que estava no dentista e ele perfurava com a broca um dente posterior em meu maxilar inferior. Trabalhou nele por tanto tempo, que o dente ficou inutilizado. Segurou-o então com um fórceps e o extraiu com uma facilidade tão grande que provocou meu assombro. Disse-me que não me preocupasse com aquilo, pois não se tratava do dente que ele estava realmente tratando, e o colocou na mesa, onde o dente (um incisivo superior, ao que me pareceu então) desfez-se em várias camadas. Levantei-me da cadeira do dentista, aproximei-me mais do dente, com um sentimento de curiosidade, e levantei uma questão médica que me interessava. O dentista explicou-me, enquanto separava as várias partes do dente impressionantemente alvo e as esmagava (pulverizava-as) com um instrumento, que ele estava ligado à puberdade e que era só antes da puberdade que os dentes se soltavam com tanta facilidade e que, no caso das mulheres, o fator decisivo era o nascimento de um filho.
“Percebi então (enquanto estava parcialmente adormecido, creio eu) que o sonho se fizera acompanhar de uma polução, que, no entanto, não pude relacionar com certeza a qualquer parte específica do sonho; fiquei muito inclinado a pensar que ela já havia ocorrido enquanto o dente era arrancado.
“ ‘Passei então a sonhar com uma ocorrência que já não consigo recordar, mas que terminava por eu deixar meu chapéu e meu paletó em algum lugar (possivelmente, na sala de espera do consultório do dentista), na esperança de que alguém os trouxesse a mim, e por sair às pressas, vestindo apenas meu sobretudo, para apanhar um trem que estava de partida. Consegui, no último momento, saltar para o último vagão, onde já havia alguém de pé. Não pude, entretanto, chegar até o interior do vagão, mas fui obrigado a viajar numa situação desconfortável da qual tentei, afinal com êxito, escapar.Entramos num grande túnel e dois trens, indo em direção oposta a nós, passaram por dentro de nosso trem, como se ele fosse o túnel. Eu olhava pela janela de um vagão como se estivesse do lado de fora.
“ ‘As seguintes experiências e idéias do dia anterior fornecem material para uma interpretação do sonho:
“ ‘(I). Eu vinha, de fato, fazendo um tratamento dentário recentemente, e na ocasião do sonho, sentia dores contínuas no dente do maxilar inferior que era perfurado à broca no sonho, e no qual o dentista, também na realidade, havia trabalhado por mais tempo do que eu queria. Na manhã do dia do sonho, eu fora mais uma vez ao dentista por causa da dor, e ele me sugerira que eu devia extrair outro dente no mesmo maxilar do que ele vinha tratando, dizendo que a dor provavelmente provinha desse outro. Este era um “dente do siso”, que estava nascendo exatamente nessa época. Eu levantara, a propósito disso, uma questão relativa à consciência médica do dentista.
“ ‘(II). Na tarde do mesmo dia, eu fora obrigado a pedir desculpas a uma senhora pelo mau humor de que estava tomado, devido a minha dor de dente, ao que ela me dissera que estava com medo de mandar extrair um dente cuja coroa se desfizera quase por completo. Ela achava que extrair as “presas” era especialmente doloroso e perigoso, embora, por outro lado, um de seus conhecidos lhe tivesse dito que era mais fácil extrair dentes do maxilar superior, que era onde ficava o dela. Esse conhecido também lhe dissera que, certa vez, extraíra o dente errado sob anestesia, e isso aumentara o pavor que ela sentia da operação necessária. Ela me havia então perguntado se as “presas” eram molares ou caninos e o que se sabia a respeito delas. Ressaltei-lhe, por um lado, o elemento de superstição em todas essas opiniões, embora, ao mesmo tempo, frisasse o núcleo de verdade de certas visões populares. Ela pôde então repetir-me o que acreditava ser uma crença popular muito antiga e difundida - a de que, se uma mulher grávida tivesse dor de dentes, teria um menino.
“ ‘(III). Esse dito me interessou, ligado ao que diz Freud, em sua Interpretação dos Sonhos, sobre o significado típico dos sonhos com estímulos dentais como substitutos da masturbação, visto que, no dito popular [citado pela senhora], o dente e a genitália masculina (ou um menino) também foram relacionados. Na noite do mesmo dia, portanto, li todo o trecho pertinente em A Interpretação dos Sonhos e ali encontrei, entre outras coisas, as seguintes afirmações, cuja influência sobre meu sonho pode ser observada tão claramente quanto a das duas outras experiências que mencionei. Freud escreve, a propósito dos sonhos com estímulos dentais, que, nos homens, a força motora desses sonhos nãoderivava de outra coisa senão os desejos masturbatórios do período da puberdade’ [em [1]]. E mais: ‘As numerosas modificações do sonho típico com estímulos dentais (por exemplo, sonhos de que um dente é arrancado por outra pessoa, etc.) devem, penso eu, ser aplicadas da mesma maneira. É possível, porém, que nos intrigue descobrir como foi que os “estímulos dentais” passaram a ter esse significado. Mas eu gostaria de chamar atenção para a freqüência com que o recalcamento sexual se vale de transposições de uma parte inferior do corpo para uma parte superior.’ (No sonho em exame, do maxilar inferior para o superior.) ‘Graças a elas, torna-se possível, na histeria, que toda sorte de sensações e intenções sejam efetivadas, se não ali onde são apropriadas - em relação aos órgãos genitais -, pelo menos em relação a outras partes não objetáveis do corpo’ [em [1]]. E novamente: ‘Mas posso chamar atenção para outro paralelo encontrado no uso lingüístico. Em nossa parte do mundo, o ato da masturbação é vulgarmente descrito como “sich einen ausreissen” ou “sich einen herunterreissen”’ [em [1]]. Eu já estava familiarizado com essa expressão, nos primeiros anos de minha mocidade, como uma descrição da masturbação, e nenhum intérprete experiente dos sonhos terá qualquer dificuldade em descobrir o caminho que vai desse até o material infantil subjacente ao sonho. Acrescentarei apenas que a facilidade com que o dente, que depois de sua extração transformou-se num incisivo superior, soltou-se no sonho me fez lembrar uma ocasião de minha infância em que eu próprio arranquei um incisivo superior que estava mole, facilmente e sem dor. Esse fato, do qual ainda hoje me lembro com clareza em todos os seus detalhes, ocorreu no mesmo período precoce ao qual remontam minhas primeiras tentativas conscientes de masturbação. (Esta era uma lembrança encobridora.)
“ ‘A referência de Freud a uma afirmativa de C. G. Jung no sentido de que os ‘sonhos com estímulos dentais que ocorrem nas mulheres têm o sentido de sonhos com nascimentos’ [em [1]], bem como a crença popular no significado da dor de dentes nas mulheres grávidas, explicaram o contraste estabelecido no sonho entre o fator decisivo no caso de mulheres e homens (puberdade). A esse respeito, recordo-me de um sonho anterior que tive logo após uma visita ao dentista, e no qual sonhei que as coroas de ouro que tinham acabado de ser fixadas caíam; isso muito me aborreceu no sonho, por causa da considerável despesa que eu fizera e da qual ainda não me havia recuperado inteiramente na época. Esse outro sonho tornou-se então inteligível para mim (em vista de certa experiência minha) como um reconhecimento das vantagens materiais da masturbação sobre o amor objetal: esteúltimo, do ponto de vista econômico, seria, sob todos os aspectos, menos desejável (cf. as coroas de ouro); e creio que a observação da senhora sobre o significado da dor de dentes nas mulheres grávidas havia despertado novamente em mim essas seqüências de idéias.’
“Isso é o bastante no que concerne à interpretação proposta por meu colega, que é altamente esclarecedora e à qual, penso eu, não se pode levantar qualquer objeção. Nada tenho a acrescentar a ela, salvo, talvez, uma sugestão quanto ao sentido provável da segunda parte do sonho. Esta parece ter representado a transição do sonhador entre a masturbação e as relações sexuais, que foi aparentemente realizada com grande dificuldade (cf. o túnel pelo qual os trens entravam e saíam em várias direções), bem como o perigo destas últimas (cf. a gravidez e o sobretudo [ver em [1]]). O sonhador se valeu, para essa finalidade, das pontes verbais ‘Zahn-ziehen (Zug)‘ e ‘Zahn-reissen (Reisen)‘.
“Por outro lado, teoricamente, o caso me parece interessante sob dois aspectos. Em primeiro lugar, oferece provas em favor da descoberta de Freud de que a ejaculação nos sonhos acompanha o ato de extrair dentes. Qualquer que seja a forma em que a polução aparece, somos obrigados a considerá-la como uma satisfação masturbatória promovida sem a assistência de qualquer estimulação mecânica. Além disso, neste caso, a satisfação que acompanhou a polução não foi, como geralmente acontece, dirigida a um objeto, ainda que apenas imaginário, mas não teve objeto se é que se pode dizer isso; foi completamente auto-erótica, ou, no máximo, exibiu um ligeiro vestígio de homossexualidade (com referência ao dentista).
“O segundo ponto que me parece merecer ênfase é o seguinte. Pode-se plausivelmente objetar que não há necessidade alguma de se considerar o presente caso como uma confirmação do ponto de vista de Freud, visto que os fatos do dia anterior seriam suficientes, por si mesmos, para tornarem inteligível o conteúdo do sonho. A ida do sonhador ao dentista, sua conversa com a dama e a leitura de A Interpretação dos Sonhos explicariam suficientemente bem como foi que ele chegou a produzir esse sonho, especialmente uma vez que seu sono foi perturbado por uma dor de dentes: chegariam mesmo a explicar, se necessário, como foi que o sonho serviu para ele se desfazer da dor que lhe perturbava o sono - por meio da representação de se livrar do dente dolorido e, simultaneamente, por afogar com a libido a sensação dolorosa que o sonhador temia. Mas, mesmo que se dê o máximo desconto possível a tudo isso, não se pode sustentar seriamente que a simples leitura das explicações de Freud pudesse estabelecer no sonhador a ligação entre a extração de um dente e o ato da masturbação, ou que pudesse sequer acionar essa ligação, a menos que ela se houvesse estabelecido há muito tempo, como o próprio sonhador admite ter acontecido (na expressão ‘sich einen ausreissen‘). Essa ligação pode ter sido revivida não apenas por sua conversa com a senhora, como também por uma circunstância que ele relatou subseqüentemente. E isso porque, ao ler A Interpretação dos Sonhos, ele não estava disposto, por motivos compreensíveis, a crer nesse sentido típico dos sonhos com estímulos dentais e sentira o desejo de saber se tal sentido se aplicava a todos os sonhos dessa espécie. O presente sonho confirmou o fato de que era isso o que ocorria, ao menos no que lhe dizia respeito, e assim lhe mostrou por que ele fora obrigado a sentir dúvidas sobre o assunto. Também nesse aspecto, portanto, o sonho foi a realização de um desejo - a saber, o desejo de se convencer da faixa de aplicação e da validade desse ponto de vista de Freud.”
O segundo grupo de sonhos típicos abrange aqueles em que o sonhador voa ou flutua no ar, cai, nada, etc. Qual o sentido desses sonhos? É impossível dar uma resposta geral. Como ficaremos sabendo, eles significam algo diferente em cada um dos casos; é apenas a matéria-prima das sensações neles contidas que deriva sempre da mesma fonte. [1909.]
As informações proporcionadas pelos tratamentos psicanalíticos forçam-me a concluir que também esses sonhos reproduzem impressões da infância, ou seja, relacionam-se com jogos que envolvem movimento, que são extraordinariamente atraentes para as crianças. Não há um único tio que não tenha mostrado a uma criança como voar, correndo com ela pela sala em seus braços estendidos, ou que não tenha brincado de deixá-la cair, fazendo-a cavalgar em seu joelho e, de repente, estirando a perna, ou levantando-a bem alto e, subitamente, fingindo que vai deixá-la cair. As crianças adoram essas experiências e nunca se cansam de pedir que sejam repetidas, especialmente quando há nelas algo que cause um pequeno susto ou tonteira. Nos anos posteriores, elas repetem essas experiências nos sonhos; nestes, porém, deixam de fora as mãos que as sustinham, de modo que flutuam ou caem sem apoio. O prazer que as criancinhas extraem das brincadeiras desse tipo (bem como dos balanços e gangorras) é bem conhecido; quando passam a ver façanhas acrobáticas no circo, sua lembrança desses jogos é reavivada. Os ataques histéricos dos meninos, por vezes, consistem simplesmente em reproduções de façanhas dessa natureza, executadas com grande habilidade. Não é incomum a ocorrência de que esses jogos de movimento, embora inocentes em si mesmos, dêem margem a sensações sexuais. As traquinagens [“Hetzen”] infantis, se é que posso empregar um termo que comumente descreve todas essas atividades, são o que se repete nos sonhos de voar, cair, ter tonteiras e assim por diante, ao passo que as sensações prazerosas ligadas a essas experiências transformam-se em angústia. Mas, com bastante freqüência, como toda mãe sabe, a traquinagem entre crianças acaba realmente em altercações e lágrimas. [1900.]
Assim, tenho boas razões para rejeitar a teoria de que o que provoca os sonhos com vôos e quedas é o estado de nossas sensações tácteis durante o sono, ou as sensações do movimento de nossos pulmões, e assim por diante. A meu ver, essas próprias sensações são reproduzidas como parte da lembrança à qual remonta o sonho: isto é, são parte do conteúdo do sonho, e não sua fonte. [1900.]
Esse material, portanto, consistindo em sensações de movimento de tipos semelhantes e oriundas da mesma fonte, é utilizado para representar toda sorte possível de pensamentos oníricos. Os sonhos de voar ou flutuar no ar (em geral, de cunho prazeroso) exigem as mais diversas interpretações; com algumas pessoas, essas interpretações têm de ser de caráter individual, ao passo que, com outras, podem ser até mesmo de natureza típica. Uma de minhas pacientes costumava sonhar, com muita freqüência, que estava flutuando a certa altura acima da rua, sem tocar o chão. Ela era muito baixa e tinha horror à contaminação envolvida no contato com outras pessoas. Seu sonho de flutuação realizava seus dois desejos, elevando seus pés do chão e alçando sua cabeça até uma camada mais alta de ar. Em outras mulheres, verifiquei que os sonhos de voar expressavam o desejo de “ser como um pássaro”, enquanto outras, no sonho, tornavam-se anjos durante a noite, por não terem sido chamadas de anjos durante o dia. A estreita ligação entre voar e a representação de pássaros explica por que, nos homens, os sonhos de voar costumam ter um sentido francamente sensual; e não nos surpreenderemos ao ouvir dizer que este ou aquele sonhador se sente muito orgulhoso de seus poderes de vôo. [1909.]
O Dr. Paul Federn (de Viena [e, posteriormente, de Nova Iorque]) formulou a atraente teoria de que bom número desses sonhos de vôo são sonhos de ereção, pois o fenômeno notável da ereção, em torno do qual a imaginação humana tem girado constantemente, não pode deixar de ser impressionante, uma vez que envolve uma aparente suspensão das leis da gravidade. (Cf. nesse contexto, os falos alados dos antigos.) [1911.]
É notável que Mourly Vold, um pesquisador de sonhos de espírito sóbrio e que não se inclina a interpretações de qualquer espécie, também apóie a interpretação erótica dos sonhos de voar ou flutuar (Vold, 1910-12, 2, 791). Ele se refere ao fator erótico como “o mais poderoso motivo dos sonhos de flutuar”, chama atenção para a intensa sensação de vibração no corpo que acompanha tais sonhos e ressalta a freqüência com que estão ligados a ereções ou poluções. [1914.]
Os sonhos de cair, por outro lado, são mais amiúde caracterizados pela angústia. Sua interpretação não oferece nenhuma dificuldade no caso das mulheres, que quase sempre aceitam o uso simbólico da queda como um modo de descrever a rendição a uma tentação erótica. Tampouco chegamos ainda a esgotar as fontes infantis dos sonhos de estar caindo. Quase toda criança caiu numa ocasião ou noutra, e depois foi apanhada e mimada; ou, caso tenha caído do berço à noite, foi levada para a cama da mãe ou da babá. [1909.]
As pessoas que têm sonhos freqüentes de estar nadando e sentem grande alegria em furar as ondas, e assim por diante, foram, em geral, pessoas que urinavam na cama, e repetem em seus sonhos um prazer de que há muito aprenderam a se abster. Logo veremos [em [1]], através de mais de um exemplo, o que é que os sonhos de estar nadando são mais facilmente usados para representar. [1909.]
A interpretação dos sonhos com fogo justifica a regra de educação infantil que proíbe a uma criança “brincar com fogo” - de modo que não molhe a cama à noite. Pois, também no caso deles, há uma lembrança subjacente da enurese da infância. Em meu “Fragmento da Análise de um Caso de Histeria” [1905e, Parte II, primeiro sonho de Dora], forneci uma análise e síntese completas de um desses sonhos com fogo, ligado à história clínica da sonhadora, e mostrei quais impulsos da idade adulta esse material infantil pode ser utilizado para representar. [1911.]
Seria possível mencionar todo um grupo de outros sonhos “típicos”, se adotássemos esse termo no sentido de que o mesmo conteúdo manifesto dos sonhos é freqüentemente encontrado nos sonhos de pessoas diferentes. Por exemplo, poderíamos mencionar os sonhos de estar passando por ruas estreitas ou atravessando grupos inteiros de salas [cf. em [1]], e os sonhos com ladrões - contra os quais, a propósito, as pessoas nervosas tomam precauções antes de irem dormir [ver em [1]]; os sonhos de estar sendo perseguido por animais selvagens (ou por touros ou cavalos) [ver em [1]], ou de ser ameaçado por facas, punhais ou lanças - sendo estas duas últimas categorias do conteúdo manifesto dos sonhos de pessoas que sofrem de angústia - e muitos mais. Uma pesquisa especialmente devotada a esse material recompensaria plenamente o trabalho envolvido. Mas, em vez disso, tenho duas observações a fazer, embora elas não se apliquem exclusivamente aos sonhos típicos. [1909.]
Quanto maior o interesse pela solução dos sonhos, mais se é levado a reconhecer que a maioria dos sonhos dos adultos versa sobre material sexual e dá expressão a desejos eróticos. Um juízo sobre esse ponto só pode ser formado pelos que realmente analisam os sonhos, ou seja, por aqueles que atravessam o conteúdo manifesto dos sonhos até chegar aos pensamentos oníricos latentes, e nunca pelos que se contentam em fazer uma anotação apenas do conteúdo manifesto (como Näcke, por exemplo, em seus escritos sobre sonhos sexuais). Permitam-me dizer, desde logo, que este fato não é nada surpreendente, e está em completa harmonia com os princípios de minha explicação dos sonhos. Nenhuma outra pulsão é submetida, desde a infância, a tanta supressão quanto a pulsão sexual, com seus numerosos componentes [cf. meus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, 1905d]; de nenhuma outra pulsão restam tantos e tão poderosos desejos inconscientes, prontos a produzir sonhos no estado de sono. Ao interpretarmos os sonhos, nunca nos devemos esquecer da importância dos complexos sexuais, embora também devamos, é claro, evitar o exagero de lhes atribuir importância exclusiva. [1909.]
Podemos asseverar em relação a muitos sonhos, se forem cuidadosamente interpretados, que eles são bissexuais, visto que, incontestavelmente, admitem uma ‘’superinterpretação’’ na qual se realizam os impulsos homossexuais do sonhador - impulsos, vale dizer, que são contrários a suas atividades sexuais normais. Sustentar, contudo, como o fazem Steckel (1911, [71]) a Adler (1910, etc.), que todos os sonhos devem ser interpretados bissexualmente parece-me ser uma generalização igualmente indemonstrável e implausível, e que não estou preparado a apoiar. Em particular, não posso descartar o fato óbvio de que existem numerosos sonhos que satisfazem outras necessidades que não as que são eróticas no sentido mais amplo do termo: os sonhos com a fome e a sede, os sonhos de conveniência, etc. Da mesma forma, as declarações do tipo “o espectro da morte encontra-se por trás de todos os sonhos” (Stekel [1911, 34]), ou “todo sonho mostra um avanço da orientação feminina para a masculina” (Adler [1910]), me parecem ir muito além de qualquer coisa que possa ser legitimamente sustentada na interpretação dos sonhos. [1911.]
A asserção de que todos os sonhos exigem uma interpretação sexual, contra a qual os críticos se enfurecem de modo tão incessante, não ocorre em parte alguma de minha A Interpretação dos Sonhos. Não se encontra em nenhuma das numerosas edições deste livro e está em evidente contradição com outros pontos de vista nele expressos. [1919.]
Já indiquei [em [1]] que sonhos surpreendentemente inocentes podem encarnar desejos cruamente eróticos, e poderia confirmá-lo por numerosos novos exemplos. Mas é também verdade que muitos sonhos que parecem indiferentes e que não seriam considerados sob nenhum aspecto peculiar remontam, na análise, a impulsos desejantes que são inconfundivelmente sexuais e, muitas vezes, de natureza inesperada. Quem, por exemplo teria suspeitado da presença de um desejo sexual no seguinte sonho, antes de ele ser interpretado? O sonhador forneceu este relato: Um pouco atrás de dois imponentes palácios havia uma casinha com as portas fechadas. Minha mulher conduziu-me pelo trecho de rua que levava à pequena casa e abriu a porta com um empurrão; a seguir, esgueirei-me com rapidez e facilidade para o interior de um pátio que subia por uma elevação. Qualquer um, no entanto, que tenha tido um pouquinho de experiência na tradução de sonhos refletirá, de imediato, que penetrar em espaços estreitos e abrir portas fechadas encontram-se entre os símbolos sexuais mais comuns, e perceberá facilmente nesse sonho a representação de uma tentativa de coitus a tergo (entre as duas imponentes nádegas do corpo feminino). A passagem estreita que subia por uma inclinação representava, é claro, a vagina. A ajuda atribuída pelo sonhador a sua mulher força-nos a concluir que, na realidade, era apenas a consideração por ela que o impedia de fazer esse tipo de tentativa. Verificou-se que, no dia do sonho, fora morar na casa do sonhador uma moça que o atraíra e que lhe dera a impressão de que não levantaria grandes objeções a uma abordagem dessa espécie. A casinha entre os dois palácios era uma reminiscência do Hradshin [Cidadela] de Praga e era mais uma referência à mesma moça, que provinha desse lugar. [1909.]
Quando insisto junto a um de meus pacientes sobre a freqüência dos sonhos de Édipo, nos quais o sonhador tem relações sexuais com a própria mãe, ele muitas vezes responde: “Não tenho nenhuma lembrança de ter tido um sonho desses”. Logo depois, contudo, surge a lembrança de algum outro sonho inconspícuo e indiferente, que o paciente sonhou repetidas vezes. A análise mostra então que este é, de fato, um sonho com o mesmo conteúdo - mais uma vez, um sonho de Édipo. Posso afirmar com certeza que os sonhos disfarçados de relações sexuais com a própria mãe são muitas vezes mais freqüentes do que os sonhos diretos. [1909.]
Em alguns sonhos com paisagens ou outras localidades dá-se ênfase, no próprio sonho, a um sentimento convicto de que já se esteve lá antes. As ocorrências de “déjà vu” nos sonhos têm significado especial. Esses lugares são, invariavelmente, os órgãos genitais da mãe de quem sonha; não existe, de fato, nenhum outro lugar sobre o qual se possa asseverar com tal convicção que já se esteve lá antes. [1909.]
Apenas numa ocasião fiquei perplexo com um neurótico obsessivo que me contou um sonho no qual visitava uma casa em que já estivera duas vezes. Mas esse paciente específico já me narrara, há bastante tempo, um episódio ocorrido quanto tinha 6 anos. Certa feita, ele estivera partilhando da cama da mãe e fizera uso indevido dessa oportunidade, enfiando o dedo na genitália dela enquanto ela dormia. [1914.]
Grande número de sonhos, [1] amiúde acompanhados de angústia e tendo por conteúdo temas como atravessar espaços estreitos ou estar na água, baseiam-se em fantasias da vida intra-uterina, da existência no ventre e do ato do nascimento. O que se segue foi o sonho de um rapaz que, em sua imaginação, tirara partido de uma oportunidade intra-uterina para observar os pais copulando.
Ele estava num poço profundo, que tinha uma janela como a do Túnel Semmering. A princípio, viu uma paisagem deserta pela janela, mas depois inventou um quadro para se encaixar naquele espaço que surgiu imediatamente e preencheu a lacuna. O quadro representava um campo que estava sendo lavrado a fundo por algum instrumento; e o ar puro, juntamente com a idéia de trabalho árduo que acompanhava a cena e com os torrões de terra preto-azulados, produziam uma impressão encantadora. Aí, ele foi adiante e viu um livro sobre educação aberto diante de si… e ficou surpreso que nele se dispensasse tanta atenção aos sentimentos sexuais (das crianças); e isso o levou a pensar em mim.
Eis aqui um interessante sonho com água, produzido por uma paciente, que serviu a uma finalidade especial no tratamento. Em sua estação de veraneio, no Lago de ---, ela mergulhou nas águas escuras, exatamente no ponto em que a pálida lua se espelhava.
Sonhos como esse são sonhos de nascimento. Sua interpretação é alcançada invertendo-se o acontecimento relatado no sonho manifesto; assim, em vez de “mergulhar na água”, temos “sair da água”, isto é, nascer. Podemos descobrir o local de onde nasce uma criança trazendo à mente o emprego, em gíria, da palavra “lune” em francês [a saber, “traseiro”]. A lua pálida era, portanto, o branco traseiro que as crianças logo supõem ser o lugarde onde vieram. Qual era o sentido de a paciente desejar ter nascido em sua estação de veraneio? Perguntei-lhe, e ela respondeu sem hesitar: “Não é justamente como se eu houvesse renascido através do tratamento?” Assim, o sonho foi um convite para que eu continuasse a tratá-la na estação de férias - isto é, para que a visitasse ali. Talvez também houvesse nele uma sugestão muito tímida do desejo da própria paciente de vir a ser mãe.
Citarei outro sonho de nascimento, junto com sua interpretação, extraído de um artigo de Ernest Jones [1910b].Ela estava na praia contemplando um garotinho, que parecia ser dela, entrando na água com dificuldade. Assim fez até que a água o cobriu, e ela só conseguia ver-lhe a cabeça subindo e descendo perto da superfície. A cena então mudou para o saguão apinhado de um hotel. O marido a deixou e ela ‘começou a conversar com’ um estranho. A segunda metade do sonho revelou-se, na análise, como representando sua fuga do marido e a entrada em relações íntimas com uma terceira pessoa. (…) A primeira parte do sonho foi uma fantasia de nascimento bastante evidente. Nos sonhos, como na mitologia, a saída da criança das águas uterinas é comumente representada, por distorção, como a entrada da criança na água; entre muitos outros, os nascimentos de Adônis, Osíris, Moisés e Baco são ilustrações famosas disso. A subida e descida da cabeça na água relembraram de imediato à paciente a sensação dos movimentos do feto que ela experimentara em sua única gestação. Pensar no menino entrando na água induziu a um devaneio no qual ela se via retirando-o da água, levando-o para um berçário, dando-lhe banho, vestindo-o, e instalando-o em sua casa.
“A segunda metade do sonho, portanto, representou pensamentos concernentes à fuga amorosa, que pertenciam à primeira metade do conteúdo latente subjacente; a primeira metade do sonho correspondeu à segunda metade do conteúdo latente, a fantasia de nascimento. Além dessa inversão da ordem, ocorreram outras inversões em cada metade do sonho. Na primeirametade, a criança entrava na água, e então sua cabeça vinha à tona; nos pensamentos oníricos subjacentes, ocorreu primeiro a sensação dos primeiros movimentos do feto e, em seguida, a criança saiu da água (uma dupla inversão). Na segunda metade, o marido a deixava; nos pensamentos oníricos, ela deixava o marido.”
Abraham (1909, 22 e segs.) relatou outro sonho de nascimento, produzido por uma jovem que se confrontava com seu primeiro parto. Um canal subterrâneo conduzia diretamente à água, partindo de um lugar no chão de seu quarto - (canal genital - líquido amniótico). Ela erguia a porta de um alçapão no chão e uma criatura vestida numa pele marrom, muito semelhante a uma foca, aparecia prontamente. Essa criatura vinha a ser o irmão mais novo da sonhadora, para quem ela sempre fora como uma mãe. [1911.]
Rank [1912a] mostrou, a partir de uma série de sonhos, que os sonhos de nascimento utilizam o mesmo simbolismo dos que têm um estímulo urinário. O estímulo erótico é representado nos segundos como um estímulo urinário; e a estratificação do sentido nesses sonhos corresponde a uma mudança que se processou no sentido do símbolo desde a primeira infância. [1914.]
Este é um ponto apropriado para se retornar a um tópico que foi interrompido num capítulo anterior (em [1]) [1]: o problema do papel desempenhado na formação dos sonhos por estímulos orgânicos que perturbam o sono. Os sonhos que ocorrem sob a influência deles exibem abertamente não só a tendência usual à realização de desejo e ao atendimento da finalidade da conveniência, como também, muitas vezes, exibem um simbolismo perfeitamente claro, pois não raro um estímulo desperta o sonhador depois de este ter feito uma vã tentativa de lidar com ele num sonho sob um disfarce simbólico. Isso se aplica aos sonhos com polução ou orgasmo, bem como aos provocados por uma necessidade de urinar ou defecar. “A natureza peculiar dos sonhos acompanhados de ejaculação não somente nos coloca em condições de revelar diretamente certos símbolos sexuais já conhecidos como típicos, mas que não obstante foram violentamente contestados, como também nos permite convencer-nos de que certas situações aparentemente inocentes não passam de um prelúdio simbólico a cenas claramente sexuais. Estas últimas são, em geral, representadas sem disfarces nos sonhos relativamente raros que são acompanhados de polução, ao passo que, com bastante freqüência, culminam em sonhos de angústia, que têm o mesmo resultado de despertar o sonhador.” [Rank, ibid., 55.]
O simbolismo dos sonhos com estímulos urinários é especialmente transparente e tem sido reconhecido desde as épocas mais remotas. Já Hipócrates expressava a visão de que os sonhos com fontes e nascentes indicam um distúrbio da bexiga (Havelock Ellis [1911, 164]). Scherner [1861, 189] estudou a multiplicidade do simbolismo dos estímulos urinários e asseverou que “qualquer estímulo urinário de intensidade considerável transforma-se invariavelmente em estimulação das regiões sexuais e de suas representações simbólicas. (…) Os sonhos com estímulos urinários são, amiúde, ao mesmo tempo, representantes de sonhos sexuais”. [Ibid., 192.]
Otto Rank, cuja abordagem, em seu trabalho sobre a estratificação dos símbolos nos sonhos que provocam o despertar [Rank, 1912a], estou seguindo aqui, fez parecer altamente provável que um grande número de sonhos com estímulos urinários tenha sido, de fato, causado por estímulo sexual, que fez uma primeira tentativa de encontrar satisfação, regressivamente, na forma infantil do erotismo uretral. [Ibid., 78.] São particularmente instrutivos os casos em que o estímulo urinário assim instalado leva a acordar e esvaziar a bexiga, mas nos quais o sonho, não obstante, tem prosseguimento e a necessidade se expressa então em imagens indisfarçadamente eróticas.
Os sonhos com estímulo intestinal lançam luz, de maneira análoga, sobre o simbolismo neles envolvido, e ao mesmo tempo confirmam a ligação entre o ouro e as fezes, que é também apoiada por numerosas provas oriundas da antropologia social. (Ver Freud, 1908b; Rank, 1912a; Dattner, 1913; e Reik, 1915.) [Ver também Freud (1957a).] “Assim, por exemplo, uma mulher que estava recebendo tratamento médico em vista de um distúrbio intestinal sonhou com alguém que estava enterrando um tesouro nas imediações de uma pequena cabana de madeira que se assemelhava a uma rústica instalação sanitária externa. Havia uma segunda parte do sonho em que ela limpava o traseiro de sua filhinha, que se sujara.” [Rank, 1912a, 55.]
Os sonhos de salvamento estão ligados aos sonhos de nascimento. Nos sonhos das mulheres, salvar, e especialmente salvar das águas, tem o mesmo significado de dar à luz; mas o sentido se modifica quando o sonhador é um homem. [1911.]
Os ladrões, assaltantes e fantasmas, dos quais algumas pessoas sentem medo antes de ir dormir, e que às vezes perseguem suas vítimas depois de estarem adormecidas, são todos originários de uma mesma categoria de reminiscência infantil. São os visitantes noturnos que levantam as crianças e as carregam para impedir que molhem a cama, ou que levantam a roupa da cama para se certificarem de onde elas puseram as mãos enquanto dormiam. As análises de alguns desses sonhos de angústia tornaram-me possível identificar esses visitantes noturnos com maior exatidão. Em todos os casos, os ladrões representavam o pai do sujeito adormecido, ao passo que os fantasmas correspondiam a figuras femininas de camisolas brancas. [1909.]

 (F) ALGUNS EXEMPLOS. - CÁLCULOS E DITOS NOS SONHOS

Antes de destinar o quarto dos fatores que regem a formação dos sonhos a seu lugar adequado [em [1]], proponho citar diversos exemplos de minha coleção. Estes servirão, em parte, para ilustrar a interação dos três fatores que já nos são conhecidos e, em parte, para fornecer provas confirmatórias do que foram, até agora, assertivas não fundamentadas, ou para indicar algumas conclusões que inevitavelmente decorrem delas. Ao fazer uma exposição do trabalho do sonho, tive enorme dificuldade em corroborar minhas descobertas através de exemplos. Os exemplos que confirmam proposições específicas só trazem convicção ao serem tratados no contexto da interpretação de um sonho como um todo. Caso sejam desligados de seu contexto, perdem sua virtude, enquanto que, por outro lado, uma interpretação de sonho que seja levada mesmo um pouquinho abaixo da superfície logo se torna tão volumosa que nos faz perder o fio da seqüência de idéias que se destinava a ilustrar. Esta dificuldade técnica deverá servir de desculpa minha se, no que se segue, eu concatenar toda sorte de coisas cujo único elo comum seja sua ligação com o conteúdo das seções precedentes deste capítulo. [1900.]
Começarei por dar alguns exemplos de modos de representação peculiares ou inusitados nos sonhos.
Uma senhora teve o seguinte sonho: Uma criada estava de pé numa escada, como se estivesse limpando uma janela, e tinha com ela um chimpanzé e um gato-gorila (ela depois corrigiu isto para um gato angorá). A empregada atirou violentamente os animais na sonhadora; o chimpanzé se aconchegou a ela, o que foi muito repulsivo. - Este sonho atingiu seu propósito mediante um expediente extremamente simples: tomou uma figurade retórica literalmente e deu uma representação exata de seu enunciado. “Macaco”, assim como os nomes de animais em geral, são empregados como insultos; e a situação do sonho não significava nada mais, nada menos, do que “atirar insultos”. No curso da atual série de sonhos, encontraremos diversos outros exemplos da utilização desse recurso simples durante o trabalho do sonho. [1900.]
Outro sonho adotou um procedimento muito semelhante. Uma mulher teve um filho com o crânio marcadamente deformado. A sonhadora ouvira dizer que a criança crescera assim devido a sua posição no útero. O médico disse que o crânio poderia ficar com uma conformação melhor mediante compressão, mas que isso danificaria o cérebro da criança. Ela refletiu que, como se tratava de um menino, isso lhe causaria menos mal. - Esse sonho continha uma representação plástica do conceito abstrato de “impressões causadas nas crianças”, com o qual a sonhadora deparara no curso das explicações que lhe foram dadas durante o tratamento. [1900.]
O trabalho do sonho adotou um método ligeiramente diferente no seguinte exemplo. O sonho referia-se a uma excursão ao Hilmteich, perto de Graz. O tempo lá fora estava terrível. Havia um péssimo hotel, a água gotejava das pareces do quarto e as roupas de cama estavam úmidas. (Esta última parte do sonho foi narrada menos diretamente do que a apresentei.) O sentido do sonho era o de “supérfluo”. Essa idéia abstrata, que estava presente nos pensamentos do sonho, recebeu primeiramente uma distorção algo forçada e foi posta numa forma como “transbordante”, “transbordando” ou “fluido”, após o que foi representada em diversas imagens semelhantes: água do lado de fora, água nas paredes no lado de dentro, água na umidade das roupas de cama - tudo fluindo ou “transbordando”. [1900.]
Não ficaremos surpresos em constatar que, para fins de representação nos sonhos, a grafia das palavras é muito menos importante do que seu som, especialmente se tivermos em mente que a mesma regra é válida ao se rimarem versos. Rank (1910, 482) registrou com pormenores e analisou de maneira integral o sonho de uma moça, no qual ela descrevia como estava andando pelos campos e cortando ricas espigas [“Ähren”] de cevada e trigo. Um amigo de sua juventude veio em sua direção, mas ela tentou evitar o encontro com ele. A análise mostrou que o sonho dizia respeito a um beijo- um “beijo respeitoso” [“Kuss in Ehren”, pronunciado da mesma forma que “Ähren”, com o significado literal de “beijo em sinal de honra”. No próprio sonho, as “Ähren”, que tinham de ser cortadas, e não arrancadas, figuravam como espigas de milho, enquanto, condensadas com “Ehren”, representavam um grande número de outros pensamentos [latentes]. [1911.]
Por outro lado, em outros casos, o curso da evolução lingüística facilitou muito as coisas para os sonhos, pois a linguagem tem sob seu comando toda uma gama de palavras que originalmente possuíam um significado pictórico e concreto, mas são hoje empregadas num sentido descolorido e abstrato. Tudo o que o sonho precisa fazer é imprimir a essas palavras seu significado anterior e pleno, ou recuar um pouco até uma fase anterior de seu desenvolvimento. Um homem sonhou, por exemplo, que seu irmão estava numa Kasten [“caixa”]. No decorrer da interpretação, a Kasten foi substituída por um Schrank [“armário” - também utilizado em sentido abstrato para significar “barreira”, “restrição”]. O pensamento do sonho fora no sentido de que seu irmão deveria restringir-se [“sich einschränken”] - em vez de o próprio sonhador fazê-lo. [1909.]
Outro homem sonhou que subia até o cimo de uma montanha que dominava um panorama extremamente vasto e incomum. Nesse caso, estava ele se identificando com um irmão que editava um panorama sobre assuntos do Extremo Oriente. [1911.]
Em Der Grüne Heinrich relata-se um sonho em que um cavalo fogoso corria por um belo campo de aveia, cada grão da qual era “uma amêndoa doce, uma passa e uma nova moeda de um penny… tudo embrulhado em seda vermelha e atado com um pedaço de cerda de porco”. O autor (ou o sonhador) nos dá uma interpretação imediata dessa imagem onírica: o cavalo estava sentindo uma comichão agradável e exclamava “Der Hafer sticht mich!” [1914.]

Segundo Henzen [1890], os sonhos que envolvem trocadilhos e jogos de linguagem ocorrem com particular freqüência nas antigas sagas nórdicas, nas quais mal se consegue encontrar um sonho que não contenha uma ambigüidade ou um jogo de palavras. [1914.]
Constituiria uma tarefa por si só coligir esses modos de representação e classificá-los de acordo com seus princípios subjacentes. [1909.] Algumas dessas representações quase poderiam ser descritas como chistes e dão a sensação de que nunca se poderia compreendê-las sem a ajuda de quem sonhou. [1911.]
(1) Um homem sonhou que lhe perguntavam pelo nome de alguém, mas que não conseguia pensar nele. Ele próprio explicou que o significado disso era que “ele jamais sonharia com uma coisa dessas”. [1911.]
(2) Uma paciente contou-me um sonho em que todas as pessoas eram especialmente grandes. “Isso significa”, prosseguiu ela, “que o sonho deve ter a ver com fatos de minha tenra infância, pois naquela época, é claro, todas as pessoas adultas me pareciam enormemente grandes”. [Ver em [1].] Ela própria não aparecia no conteúdo desse sonho. - O fato de um sonho referir-se à infância pode também ser expresso de outra maneira, a saber, por uma tradução do tempo em espaço. Os personagens e cenas são vistos como se estivessem a grande distância, no fim de uma longa estrada, ou como se estivessem sendo olhados pelo lado errado de um par de binóculos. [1911.]
(3) Um homem que, em sua vida profissional, tendia a utilizar uma fraseologia abstrata e vaga, embora fosse bastante perspicaz de modo geral, sonhou, certa ocasião, que chegava a uma estação ferroviária no exato momento em que estava chegando um trem. O que aconteceu então foi que a plataforma se moveu em direção ao trem, enquanto este ficava totalmente parado… uma inversão absurda do que realmente acontece. Esse pormenor não passava de uma indicação de que deveríamos esperar encontrar outra inversão no conteúdo do sonho. [Ver em [1]] A análise do sonho fez com que o paciente se recordasse de alguns livros de gravuras nos quais havia ilustrações de homens de cabeça para baixo e andando apoiados nas mãos. [1911.]

(4) Noutra ocasião, o mesmo sonhador me relatou um breve sonho que era quase uma reminiscência da técnica dos rébus. Sonhou que seu tio lhe dava um beijo num automóvel. Passou imediatamente a me dar a interpretação, que eu mesmo jamais teria adivinhado: a saber, que o sonho significava auto-erotismo. O conteúdo desse sonho poderia ter sido produzido como um chiste na vida de vigília. [1911.]
(5) Um homem sonhou que estava tirando uma mulher de trás de uma cama. O sentido disso foi que ele lhe estava dando preferência. [1914.]
(6) Um homem sonhou que era um oficial sentado à mesa em frente ao Imperador. Isso significou que se estava colocando em oposição ao pai. [1914.]
(7) Um homem sonhou que estava tratando de alguém que tinha um membro quebrado. A análise demonstrou que o osso quebrado [“Knochenbruch”] representava um casamento desfeito [“Ehebruch”, propriamente “adultério”]. [1914.]
(8) Nos sonhos, a hora do dia muitas vezes representa a idade do sonhador em algum período específico de sua infância. Assim, num sonho, “cinco e um quarto da manhã” significava a idade de cinco anos e três meses, o que era importante, visto que essa era a idade do sonhador por ocasião do nascimento de seu irmão mais novo. [1914.]
(9) Eis aqui outro método de representar as idades num sonho. Uma mulher sonhou que estava andando com duas menininhas cujas idades diferiam em quinze meses. Ela foi incapaz de se recordar de qualquer família de suas relações a quem isso se aplicasse. Ela mesma propôs a interpretação de que as duas crianças representavam ela própria e de que o sonho a fazia lembrar que os dois acontecimentos traumáticos de sua infância estavam separados um do outro precisamente por esse intervalo. Um ocorrera quando ela contava três anos e meio, e o outro, quando tinha quatro e três quartos. [1914.]
(10) Não surpreende que uma pessoa que esteja em tratamento psicanalítico muitas vezes sonhe com ele e seja levada a dar expressão, em seus sonhos, às numerosas idéias e expectativas que o tratamento suscita. A imagem mais freqüentemente escolhida para representá-lo é a de uma viagem, geralmente de automóvel, por ser este um veículo moderno e complicado. A velocidade do carro é então utilizada pelo paciente como uma oportunidade para dar vazão a comentários irônicos. - Se “o inconsciente”, como elemento dos pensamentos de vigília do sujeito, tiver de ser representado num sonho, poderá ser substituído com muita propriedade por regiões subterrâneas. - Estas, quando ocorrem sem qualquer referência ao tratamento analítico, representam o corpo feminino ou o ventre da mulher. - “Embaixo”, nos sonhos, amiúde se relaciona com os órgãos genitais; “em cima”, ao contrário, relaciona-se com o rosto, a boca ou o seio. - Os animais selvagens são empregados pelo trabalho do sonho, em geral, para representar os impulsos arrebatados de que o sonhador tem medo, quer sejam os seus próprios, quer os de outras pessoas. (Torna-se então necessário apenas um ligeiro deslocamento para que os animais selvagens passem a representar as pessoas possuídas por essas paixões. Não é grande a distância entre isso e os casos em que um pai temido é representado por um animal de rapina, um cão ou um cavalo selvagem - uma forma de representação que lembra o totemismo.) Poder-se-ia dizer que os animais selvagens são empregados para representar a libido, uma força temida pelo ego e combatida por meio do recalque. É também freqüente o sonhador separar de si mesmo sua neurose, sua “personalidade enferma”, e retratá-la como uma pessoa independente. [1919.]
(11) Eis aqui um exemplo registrado por Hanns Sachs (1911): “Sabemos, por A Interpretação dos Sonhos, de Freud, que o trabalho do sonho se vale de diferentes métodos para dar forma sensorial a palavras ou expressões. Se, por exemplo, a expressão a ser representada é ambígua, o trabalho do sonho pode explorar esse fato utilizando a ambigüidade como um ponto de desvio: quando um dos sentidos da palavra está presente nos pensamentos oníricos, o outro pode ser introduzido no sonho manifesto. Foi o que ocorreu no seguinte sonho curto, no qual se empregaram, de maneira engenhosa, para fins de representação, impressões apropriadas do dia anterior. Eu estava sofrendo de um resfriado no “dia do sonho” e, sendo assim, resolvera, à noite, que se me fosse possível, evitaria sair da cama durante a madrugada. No sonho, eu parecia estar simplesmente dando continuidade ao que estivera fazendo durante o dia. Tinha estado ocupado em colar recortes de jornais num álbum e fizera o melhor possível para colocar cada um no lugar que lhe era adequado. Sonhei que estava tentando colar um recorte no álbum. Mas ele não cabia na página [‘er geht aber nicht auf die Seite’], o que me causava muita dor. Acordei e percebi que a dor do sonho persistia sob a forma de uma dor em meu corpo, e fui obrigado a abandonar a decisão que tomara antes de me deitar. Meu sonho, em sua qualidade de guardião do meu sono, dera-me a ilusão de realizar meu desejo de ficar na cama, por meio de uma representação plástica da frase ambígua ‘er geht aber nicht auf die Seite‘ [‘mas ele não vai ao banheiro’].” [1914.]
Podemos chegar a afirmar que o trabalho do sonho se serve, com o propósito de dar uma representação visual dos pensamentos oníricos, de quaisquer métodos a seu alcance, quer a crítica de vigília os considere legítimos ou ilegítimos. Isso expõe o trabalho do sonho a dúvidas e ridicularizações por parte de todos os que apenas ouviram falar da interpretação dos sonhos, mas nunca a praticaram. O livro de Stekel, Die Sprache des Traumes (1911), é particularmente rico em exemplos desse tipo. Tenho evitado, contudo, citar exemplos dele, por causa da falta de senso crítico do autor e da arbitrariedade de sua técnica, que dão margem a dúvidas até mesmo nos espíritos não preconceituosos. [Ver em [1].] [1919.]
(12) [1914.] Os seguintes exemplos foram extraídos de um trabalho de V. Tausk (1914) sobre o uso de roupas e cores na produção de sonhos.
(a) A. sonhou que via uma ex-governanta sua num vestido de lustrina [“Lüster”] preta que estava muito apertado em suas nádegas. - Isso foi explicado como tendo o sentido de que a governanta era lasciva [“lüstern”].
(b) C. sonhou ver uma moça na Estrada de ---, banhada de luz branca e usando uma blusa branca. - O sonhador tivera relações íntimas com uma certa Srta. White [Branca] pela primeira vez nessa estrada.

(c) A Sra. D. sonhou ver o ator vienense Blasel, de oitenta anos de idade, deitado num sofá e envergando uma armadura completa [“in voller Rüstung”]. Ele começou a saltar sobre as mesas e cadeiras, sacou de um punhal, olhou-se no espelho e brandiu o punhal no ar como se estivesse lutando com um inimigo imaginário. - Interpretação: A sonhadora sofria de uma antiga afecção da bexiga [“Blase”]. Deitava-se num divã em sua análise; quando se olhava no espelho, pensava consigo mesma que, apesar de sua idade e da moléstia, ainda parecia estar em plena forma [“rüstig”].
(13) [1919.] UMA “GRANDE REALIZAÇÃO” NUM SONHO. - Um homem sonhou que era uma mulher grávida deitada na cama. Achou a situação muito desagradável. Exclamou: “Preferia estar… (durante a análise, depois de se recordar de uma enfermeira, conclui a frase com as palavras “quebrando pedras”). Por trás da cama pendia um mapa cuja extremidade inferior era mantida esticada por uma barra de madeira. Ele arrancou a barra, segurando-lhe as duas extremidades. Ela se quebrou no sentido transversal, mas dividiu-se em duas metades no sentido do comprimento. Esta ação o aliviou e, ao mesmo tempo, ajudou no parto.
Sem qualquer ajuda, ele interpretou a quebra da barra [“Leiste”] como uma grande realização [“Leistung”]. Estava fugindo de sua situação incômoda (no tratamento), arrancando-se de sua atitude feminina… O detalhe absurdo de a barra de madeira não se quebrar simplesmente, mas dividir-se no sentido longitudinal, foi assim explicado: o sonhador lembrou-se de que essa combinação de duplicar e destruir era uma alusão à castração. Os sonhos muitas vezes representam a castração pela presença de dois símbolos do pênis, como a expressão desafiadora de um desejo antitético [ver em [1]]. Aliás, “Leiste” [“virilha”] é uma parte do corpo nas proximidades dos órgãos genitais. O sonhador resumiu a interpretação do sonho como significando que ele levara a melhor sobre a ameaça de castração que o levara a adotar uma atitude feminina. [1]

(14) [1919.] Numa análise que eu estava conduzindo em francês, surgiu para interpretação um sonho em que eu aparecia como um elefante. Naturalmente, perguntei ao sonhador por que fui representado naquela forma. “Vous me trompez” [“O senhor está me enganando”] foi sua resposta (“trompe” = “tromba”).
O trabalho do sonho pode amiúde conseguir representar material muito refratário, como são os nomes próprios, por um emprego forçado de associações inusitadas. Num de meus sonhos, o velho Brücke me confiara a tarefa de fazer uma dissecação;… retirei algo que parecia um pedaço de papel prateado amassado. (Voltarei a esse sonho mais adiante [ver em [1]].) A associação com isso (à qual cheguei com certa dificuldade) foi “Stanniol”. Percebi então que eu estava pensando no nome Stannius, o autor de uma dissertação sobre o sistema nervoso dos peixes, a qual eu muito admirara em minha juventude. A primeira tarefa científica que meu professor [Brücke] me confiou relacionava-se, de fato, com o sistema nervoso de um peixe, o Ammocoetes [Freud, 1877a]. Era claramente impossível empregar o nome desse peixe num quebra-cabeça pictórico. [1900.]
Neste ponto, não consigo resistir ao registro de um sonho peculiar, que também merece ser notado por ter sido sonhado por uma criança, e que é facilmente explicável analiticamente. “Lembro-me de ter sonhado muitas vezes, quando criança”, disse uma senhora “que Deus usava na cabeça um chapéu pontiagudo de papel. Muitas vezes, costumavam colocar um desses chapéus em minha cabeça às refeições, para me impedir de olhar os pratos das outras crianças para ver qual era o tamanho das porções que lhes eram servidas. Como tinha ouvido dizer que Deus era onisciente, o sentido do sonho era que eu sabia tudo - apesar do chapéu que me fora colocado na cabeça.” [1909.]
A natureza do trabalho do sonho [1] e o modo como manipula seu material, os pensamentos oníricos, são instrutivamente exibidos ao considerarmos os números e cálculos que ocorrem nos sonhos. Além disso, os números, nos sonhos, são supersticiosamente encarados como sendo especialmente significativos no tocante ao futuro. Escolherei, portanto, alguns exemplos dessa natureza, retirados de minha coleção.

I

Extrato de um sonho ocorrido a uma senhora pouco antes do término de seu tratamento: Ela ia pagar alguma coisa. Sua filha tirou 3 florins e 65 kreuzers de sua bolsa (da mãe). A sonhadora lhe disse: ‘’O que você está fazendo? Custa apenas 21 kreuzers.” Devido a meu conhecimento da situação da sonhadora, esse fragmento de sonho me foi inteligível sem qualquer outra explicação de sua parte. Essa sonhadora viera do exterior e sua filha estava na escola em Viena. Ela estaria em condições de prosseguir em seu tratamento comigo desde que a filha permanecesse em Viena. O ano letivo da menina terminaria em três semanas, e isso significava também o término do tratamento da senhora. No dia anterior ao sonho, a diretora lhe perguntara se ela não consideraria deixar a filha na escola por mais um ano. Dessa sugestão, ela passara evidentemente a refletir que, nesse caso, também poderia continuar seu tratamento. Era a isso que o sonho se referia. Um anoequivale a 365 dias. As três semanas que restavam, tanto do ano letivo como do tratamento, equivaliam a 21 dias (embora as horas de tratamento fossem inferiores a isso). Os números, que nos pensamentos oníricos se referiam a períodos de tempo, estavam ligados, no próprio sonho, a somas em dinheiro - não que não houvesse um sentido mais profundo em questão, pois ‘’tempo é dinheiro’’. 365 kreuzers montam apenas a 3 florins e 65 kreuzers; e a insignificância das quantias ocorridas no sonho era, obviamente, o resultado da realização de desejo. O desejo da sonhadora reduziu o custo tanto do tratamento quanto das anuidades escolares.

II

Os números ocorridos num outro sonho envolveram circunstâncias mais complicadas. Uma senhora que, embora ainda jovem, era casada há muitos anos, recebeu a notícia de que uma conhecida sua, Elise L., que era quase exatamente sua contemporânea, acabara de ficar noiva. Teve então o seguinte sonho. Ela estava no teatro com o marido. Um setor das poltronas da platéia estava inteiramente vazio. O marido lhe disse que Elise L. e seu noivo também tinham querido ir, mas só haviam conseguido lugares ruins - três por 1 florim e 50 kreuzers - e, naturalmente, não puderam aceitá-los. Ela pensou que, realmente, não teria havido mal algum se eles tivessem feito isso.
Qual seria a origem do 1 florim e 50 kreuzers? Isso provinha do que, a rigor, fora um acontecimento irrelevante da véspera. Sua cunhada recebera do marido 150 florins, como um presente, e se apressara a livrar-se deles comprando uma jóia. Convém notar que 150 florins são cem vezes mais do que 1 florim e 50 kreuzers. De onde teria vindo o três, que era o número das entradas de teatro? A única ligação aqui era que sua amiga, que acabara de ficar noiva, era o mesmo número de meses - três - mais nova que ela. Chegou-se à solução do sonho com a descoberta do sentido das poltronas vazias. Elas constituíam uma alusão inalterada a um pequeno incidente que dera a seu marido uma boa desculpa para caçoar dela. Ela planejara ir a uma das peças que tinham sido anunciadas para a semana seguinte e se dera ao trabalho de adquirir entradas com vários dias de antecedência, e tivera, portanto, de pagar uma taxa de reserva. Ao chegarem ao teatro, eles verificaramque um lado da casa estava quase vazio. Não tinha havido nenhuma necessidade de que ela se apressasse tanto.
Permitiram-me agora pôr os pensamentos oníricos em lugar do sonho: “Foi absurdo casar tão cedo. Não havia nenhuma necessidade de eu me apressar tanto. Pelo exemplo de Elise L., vejo que, no final, eu teria arranjado um marido. A rigor, teria conseguido um cem vezes melhor” (um tesouro), “se pelo menos tivesse esperado” (em antítese à pressa da cunhada). “Meu dinheiro” (ou dote) “poderia ter comprado três homens igualmente bons.”
Pode-se observar que o sentido e o contexto dos números foram alterados em escala muito maior nesse sonho do que no anterior. Os processos de modificação e distorção foram mais longe aqui, devendo isto ser explicado pelo fato de os pensamentos oníricos terem de superar neste caso um grau especialmente elevado de resistência endopsíquica para poderem obter representação. Tampouco devemos desprezar o fato de que houve um elemento de absurdo no sonho, a saber, de três lugares serem tomados por duas pessoas. Vou-me adiantar à minha discussão sobre o absurdo nos sonhos [em [1]], assinalando que esse detalhe absurdo no conteúdo do sonho visou a representar o mais intensamente enfatizado dos pensamentos oníricos, a saber, “foi absurdo casar tão cedo”. O absurdo que tinha de encontrar um lugar no sonho foi engenhosamente suprido pelo número 3, que derivava, ele próprio, de um ponto de distinção inteiramente sem importância entre as duas pessoas que estavam sendo comparadas - a diferença de 3 meses entre a idade delas. A redução dos 150 florins reais para um florim e 50 correspondeu ao baixo valor atribuído pela sonhadora a seu marido (ou tesouro) em seus pensamentos suprimidos. [1]

III

O exemplo seguinte exibe os métodos de cálculo empregados pelos sonhos, que os levaram a um descrédito tão grande. Um homem sonhou que estava acomodado numa cadeira em casa dos B. - uma família com a qual se dera antes - e lhes dizia: “Foi um grande erro vocês não terem deixadoeu ficar com Mali.” - “Quantos anos você tem?perguntou então à moça. - “Nasci em 1882”, respondeu ela. - “Oh, então você tem 28 anos.
Visto que o sonho data de 1898, é evidente que isso foi um erro de cálculo, e a incapacidade do sonhador para fazer somas mereceria ser comparada à de um paralítico geral, a não ser que pudesse ser explicada de alguma outra forma. Meu paciente era uma dessas pessoas que, sempre que lhes acontece porem os olhos numa mulher, não conseguem afastar dela seus pensamentos. A paciente que, já havia alguns meses, costumava chegar regularmente a meu consultório depois dele, e com quem ele assim esbarrava, era uma jovem; ele constantemente fazia perguntas a respeito dela e se esmerava ao máximo para lhe causar uma boa impressão. Foi a idade dela que ele calculou em 28 anos. Basta isto à guisa de explicação do resultado do cálculo aparente. Aliás, 1882 era o ano em que ele se havia casado. - Posso acrescentar que ele era incapaz de resistir a entabular conversa com os dois outros membros do sexo feminino com quem deparava em minha casa - as duas empregadas (nenhuma delas jovem, de modo algum) uma ou outra das quais costumava abrir-lhe a porta; ele explicava a falta de receptividade delas como sendo devida a considerarem-no um cavalheiro idoso de hábitos assentados.

IV

Eis aqui outro sonho que trata de números, caracterizado pela clareza da maneira pela qual foi determinado, ou antes, sobredeterminado. Devo tanto o sonho quanto sua interpretação ao Dr. B. Dattner. “O senhorio do meu bloco de apartamentos, que é agente de polícia, sonhou que estava em serviço de rua. (Isso era a realização de um desejo.) Um inspetor que tinha na gola o número 22, seguido de 62 ou 26, aproximou-se dele. De qualquer maneira, havia vários dois nele.
“O simples fato de que, ao relatar o sonho, ele decompôs o número 2262 demonstrou que seus componentes tinham sentidos isolados. Recordou-se ele de que, na véspera, tinha havido uma conversa na delegacia sobre o tempo de serviço dos policiais. O ensejo disso fora um inspetor que se havia aposentado com seus proventos aos 62 anos. O sonhador tinha apenas 22 anos de serviço e faltavam 2 anos e 2 meses para que tivesse direito a uma pensão de 90%. O sonho representava, em primeiro lugar, a realização de um desejo há muito acalentado pelo sonhador - o de chegar ao posto de inspetor. O oficial superior com o ‘2262’ na gola era ele próprio. Estava em serviço de rua - outro de seus desejos favoritos -, servira seus 2 anos e 2 meses restantes e agora, tal como o inspetor de 62 anos de idade, podia aposentar-se com a pensão integral.” [1]
Ao tomarmos em conjunto estes e alguns exemplos que darei mais adiante [em [1]], podemos dizer com segurança que o trabalho do sonho, a rigor, não efetua cálculo algum, quer correta, quer incorretamente; ele simplesmente coloca sob a forma de cálculo números que se acham presentes nos pensamentos oníricos e podem servir de alusões a um material que não pode ser representado de nenhuma outra maneira. Nesse aspecto, o trabalho do sonho trata os números como um meio para a expressão de seu propósito, precisamente da mesma forma que trata qualquer outra representação, inclusive os nomes próprios e os ditos que ocorrem reconhecivelmente como representações de palavras. [Ver o segundo parágrafo que se segue.]
É que o trabalho do sonho não pode realmente criar ditos. [Ver em [1] e [2].] Por mais que figurem nos sonhos ditos e conversas, sejam eles racionais ou irracionais, a análise invariavelmente prova que tudo o que o sonho fez foi extrair dos pensamentos oníricos fragmentos de ditos realmente pronunciados ou ouvidos. Ele trata esses fragmentos de maneira extremamente arbitrária. Não somente os arranca de seu contexto e os corta em pedaços, incorporando algumas partes e rejeitando outras, como amiúde os reúne numa nova ordem, de modo que um dito que figura no sonho como um todo integrado revela, na análise, compor-se de três ou quatro fragmentos desconexos. Ao produzir essa nova versão, o sonho muitas vezes abandona o sentido que as palavras possuíam originalmente nos pensamentos oníricos e lhes dá um novo sentido. Se examinarmos detidamente um dito que ocorra num sonho, verificaremos que ele consiste, por um lado, de partes relativamente claras e compactas e, por outro, de partes que servem de material de ligação e que, provavelmente, foram inseridas num estágio posterior, do mesmo modo que, na leitura, inserimos quaisquer letras ou sílabas que possam ter sido acidentalmente omitidas. Assim, os ditos nos sonhos têm uma estrutura similar à da brecha, na qual blocos razoavelmente grandes de vários tipos de rocha são consolidados por uma massa intermediária de ligação. [Ver em [1].]
Rigorosamente falando, essa descrição aplica-se apenas aos ditos nos sonhos que possuem algo da qualidade sensorial da fala, e que são descritos pela própria pessoa que sonha como sendo ditos. Outros tipos de ditos, que não são, por assim dizer, sentidos pelo sonhador como tendo sido ouvidos ou pronunciados (isto é, que não têm nenhum acompanhamento acústico oumotor no sonho), são meramente pensamentos como os que ocorrem em nossa atividade de pensamento da vigília, e são amiúde transportados sem modificação para nossos sonhos. Outra fonte abundante desse tipo de ditos indiferenciados, embora difícil de acompanhar, parece ser proporcionada pelo material que foi lido. Mas o que quer que se destaque acentuadamente nos sonhos como um dito pode ser rastreado até sua origem em ditos reais que tenham sido proferidos ou ouvidos pelo sonhador.
Alguns exemplos indicando que os ditos nos sonhos têm essa origem já foram fornecidos por mim no curso de análises de sonhos que citei para fins inteiramente diversos. Assim, no “inocente” sonho com o mercado relatado em [1], as palavras proferidas, “isso não se consegue mais”, serviram para me identificar com o açougueiro, enquanto uma parte do outro dito, “não reconheço isso; não vou levá-lo”, foi responsável, de fato, por tornar o sonho “inocente”. A sonhadora, como se poderá recordar, após lhe ter sido feita certa sugestão pela cozinheira na véspera, respondera com as palavras: “Não reconheço isso; comporte-se direito!” A primeira parte desse dito, que soou de forma inocente, foi transportada para o sonho à guisa de alusão à sua segunda parte, que se ajustava esplendidamente à fantasia subjacente ao sonho, mas que, ao mesmo tempo, a teria traído.
Eis aqui outro exemplo que pode servir por muitos, todos conducentes à mesma conclusão.
O sonhador estava num grande pátio onde alguns cadáveres estavam sendo queimados. “Vou embora!disse ele, “não suporto ver isso”. (Isso não foi claramente um dito.) Encontrou-se então com os dois aprendizes de açougueiro. “E então”, perguntou, “estava gostoso?” “Não”, respondeu um deles, “nem um bocadinho” - como se tivesse sido carne humana.
O pretexto inocente do sonho foi o seguinte. O sonhador e sua mulher, depois do jantar, tinham feito uma visita a seus vizinhos, que eram pessoas excelentes, mas não exatamente apetitosas. A idosa e hospitaleira senhora estava justamente ceando e tentara forçá-lo (existe uma expressão de sentido sexual que é jocosamente empregada entre os homens para expressar esta idéia) a provar um pouco. Ele declinara, dizendo não ter mais nenhum apetite: “Vamos”, retrucara ela, “você consegue!”, ou alguma coisa nesse sentido. Assim, ele fora obrigado a provar e a cumprimentara pela ceia, dizendo: “Estava muito gostoso.” Ao ver-se novamente a sós com sua mulher, ele reclamara da insistência da vizinha e também da qualidade da comida. O pensamento “Não suporto ver isso”, que também no sonho não chegou a emergir como um dito em sentido estrito, era uma alusão aos encantos físicos da senhora de quem partira o convite, e deve ser considerado como significando que ele não tinha nenhum desejo de olhá-los.
Maiores esclarecimentos podem ser extraídos de outro sonho, que relatarei a propósito disso por causa do dito muito claro que formou seu ponto central, embora tenha de adiar sua explicação integral para depois de minha discussão dos afetos nos sonhos [em [1]]. Tive um sonho muito claro. Eu fora ao laboratório de Brücke à noite e, em resposta a uma leve batida na porta, abrira-a para o  (falecido) Professor Fleischl, que entrou com diversos estranhos e, após trocar algumas palavras, sentou-se à sua mesa. Isso foi seguido por um segundo sonho. Meu amigo Fl. [Fliess] tinha vindo discretamente a Viena em julho. Encontrei-o na rua, conversando com meu (falecido) amigo P., e fui com eles a algum lugar onde se sentaram um diante do outro, como se estivessem a uma pequena mesa. Sentei-me à cabeceira, em sua parte mais estreita. Fl. falou sobre sua irmã e disse que em três quartos de hora ela estava morta, acrescentando algo assim como “esse foi o limiar”. Como P. não conseguisse entendê-lo, Fl. voltou-se para mim e me perguntou quanto eu havia falado com P. sobre suas coisas. Diante disso, dominado por estranhas emoções, tentei explicar a Fl. que P. (não podia entender coisa alguma, é claro, porque) não estava vivo. Mas o que realmente disse - e eu próprio notei o erro - foi “NON VIXIT”. Dirigi então a P. um olhar penetrante. Ante meu olhar fixo, ele empalideceu; e sua forma tornou-se indistinta e seus olhos adquiriram um tom azul doentio - e por fim, ele se dissolveu. Fiquei muito satisfeito com isso e compreendi então que Ernst Fleischl também não passara de uma aparição, um “revenant” [“fantasma” - literalmente, “aquele que retorna”]; e me pareceu perfeitamente possível que pessoas assim só existissem enquanto se quisesse, e que pudessem ser descartadas se outra pessoa o desejasse.
Esse belo espécime reúne muitas das características dos sonhos - o fato de eu ter exercido minhas faculdades críticas durante o sono e de eu próprio haver notado meu erro quando disse ”Non vixit”, em vez de “Non vivit” [isto é, “ele não viveu”, em vez de “ele não estava vivo”]; minha maneira despreocupada de lidar com pessoas que estavam mortas e eram reconhecidas como mortas no próprio sonho; o absurdo de minha inferência final e a grande satisfação que me proporcionou. De fato, esse sonho exibe tantas dessas características intrigantes que eu daria muito para poder fornecer a solução completa de seus enigmas. A rigor, porém, sou incapaz de fazê-lo - ou seja, de fazer o que fiz no sonho, de sacrificar à minha ambição pessoas a quem valorizo imensamente. Qualquer escamoteamento, contudo, destruiria o que sei muito bem ser o sentido do sonho; por isso me contentarei, tanto aqui como num contexto posterior [em [1]], em selecionar apenas alguns de seus elementos para interpretação.
A característica central do sonho foi uma cena em que aniquilei P. com um olhar. Seus olhos se transformaram num azul estranho e sinistro e ele se dissolveu. Essa cena foi inequivocamente copiada de outra que eu realmente vivenciara. Na ocasião que tenho em mente, eu era instrutor no Instituto de Fisiologia e tinha de começar a trabalhar de manhã cedo. Chegou aos ouvidos de Brücke que, às vezes, eu chegava tarde ao laboratório dos alunos. Certa manhã, ele apareceu pontualmente na hora em que o laboratório abria e aguardou minha chegada. Suas palavras foram breves e incisivas. Mas o importante não foram as palavras. O que me desarmou foram os terríveis olhos azuis com que me fitou e que me reduziram a zero - exatamente como aconteceu com P. no sonho, onde, para meu alívio, os papéis se inverteram. Ninguém que consiga lembrar-se dos olhos desse grande homem, que preservaram sua beleza marcante mesmo na velhice, e que algum dia o tenha visto enfurecido, achará difícil imaginar as emoções do jovem pecador.
Muito tempo se passou, entretanto, antes que eu conseguisse descobrir a origem do “Non vixit” com que proferi minha sentença no sonho. Finalmente, porém, ocorreu-me que essas duas palavras tinham alto grau de clareza no sonho, não como palavras ouvidas ou faladas, mas como palavras vistas. Percebi então, de imediato, de onde provinham. No pedestal do Monumento ao Imperador José de Hofburg [Palácio Imperial], em Viena, acham-se inscritas estas palavras expressivas:
Saluti patriae vixitnon diu sed Totus.
Extraí dessa inscrição apenas o bastante para que se encaixasse numa cadeia de idéias hostil entre os pensamentos oníricos, o suficiente para dar a entender que “esse sujeito não tem nada que dar opinião no assunto - ele nem sequer está vivo”. E isso me fez recordar que eu tivera o sonho poucos dias depois da inauguração do monumento em homenagem a Fleischl nas galerias da Universidade. Nessa época, eu tornara a ver o monumento a Brücke e devo ter refletido (inconscientemente) com pesar sobre o fato de que a morte prematura de meu brilhante amigo P., cuja vida inteira fora devotada à ciência, furtara-lhe o merecido direito a um monumento naquele mesmo recinto. Assim, dei-lhe esse monumento em meu sonho; e, aliás, como me recordei, seu primeiro nome era Josef [José].
Pelas regras da interpretação dos sonhos, nem assim eu tinha direito a passar do Non vixit derivado de minha recordação do Monumento ao Imperador José ao Non vivit exigido pelo sentido dos pensamentos oníricos. Devia haver algum outro elemento nos pensamentos do sonho que ajudasse a tornar possível a transição. Ocorreu-me então ser digno de nota que, na cena do sonho, havia uma convergência de uma corrente de sentimento hostil e uma afetiva para com meu amigo P., estando a primeira na superfície e a segunda oculta, mas ambas representadas na expressão única Non vixit. Como fosse digno de homenagens pela ciência, erigi-lhe um monumento comemorativo; mas, como era culpado de um desejo malévolo (que se expressou no final do sonho), eu o aniquilei. Notei que esta última frase tinha uma cadência toda especial, e devo ter tido algum modelo em minha mente. Onde se poderia encontrar uma antítese dessa natureza, uma justaposição como essa de duas reações opostas a uma única pessoa, ambas alegando ser completamente justificadas e, ainda assim, não incompatíveis? Somente numa passagem da literatura - mas uma passagem que exerce profunda impressão sobre o leitor: no discurso de autojustificação de Brutus em Júlio César, de Shakespeare [iii, 2]; “Como César me amou, choro por ele; como foi afortunado, regozijo-me com isso; como era bravo, respeito-o; mas, como foi ambicioso, matei-o”. Não eram a estrutura formal dessas frases e seu sentido antitético precisamente os mesmos que no pensamento onírico eu desvendara? Assim, eu estivera desempenhando o papel de Brutus no sonho. Se ao menos pudesse encontrar outra prova, no conteúdo do sonho, para confirmar esse surpreendente traço de união colateral! Ocorreu-me uma prova possível: “Meu amigo Fl. veio a Viena em julho.” Não havia nenhuma base na realidade para esse detalhe do sonho. Que eu soubesse, meu amigo Fl. nunca estivera em Viena em julho. Mas o mês de julho recebeu esse nome a partir de Júlio César e poderia, portanto, representar muito bem a alusão que eu queria à idéia intermediária de eu desempenhar o papel de Brutus.
Por estranho que pareça, realmente desempenhei o papel de Brutus um dia. Certa ocasião, atuei na cena entre Brutus e César, de Schiller, ante uma platéia de crianças. Tinha quatorze anos na época e estava representando com um sobrinho um ano mais velho que eu. Ele viera da Inglaterra visitar-nos; e também ele era um revenant, pois era o companheiro de brincadeiras de meus primeiros anos de vida que nele retornavam. Até o final de meus três anos, tínhamos sido inseparáveis. Tínhamos amado um ao outro e lutado um com o outro; e essa relação infantil, como já sugeri acima [em [1] e [2]], exerceu uma influência decisiva sobre todas as minhas relações subseqüentes com contemporâneos. Desde aquela época, meu sobrinho John tem tido muitas reencarnações, que reviveram ora um lado, ora outro de sua personalidade, inalteravelmente fixada em minha memória inconsciente. Deve ter havido ocasiões em que ele me tratou muito mal, e devo ter demonstrado coragem perante meu tirano, pois, anos mais tarde, falaram-me muitas vezes sobre um breve discurso feito por mim em minha própria defesa, quando meu pai, que era ao mesmo tempo avô de John, me disse em tom de acusação:“Por que você está batendo no John?” Minha resposta - eu ainda não tinha dois anos nessa época - foi “Bati nele porque ele me bateu”. Deve ter sido essa cena de minha infância que desviou o “Non vivit” para “Non vixit”, pois, na linguagem das crianças mais velhas, o termo usado para bater é “wichsen” [pronunciado como o inglês “vixen”]. O trabalho do sonho não se envergonha de usar elos como esse. Havia pouco fundamento na realidade para minha hostilidade em relação a meu amigo P., que era muito superior a mim e, por esse motivo, se adequava perfeitamente para figurar como uma nova edição do meu antigo companheiro de folguedos. Essa hostilidade, portanto, certamente remontaria a minhas complicadas relações infantis com John. [Ver ainda em [1]] [2]
Como já disse, voltarei a este sonho posteriormente.

(G) SONHOS ABSURDOS - ATIVIDADE INTELECTUAL NOS SONHOS

No curso de nossas interpretações dos sonhos esbarramos tantas vezes no elemento do absurdo que não mais podemos adiar o momento de investigar sua origem e seu eventual significado. E isso, porque convém lembrar que o caráter absurdo dos sonhos tem proporcionado àqueles que negam o valor deles um de seus principais argumentos para encará-los como o produto sem sentido de uma atividade mental reduzida e fragmentada [ver em [1]].
Começarei por dar alguns exemplos nos quais o absurdo é apenas aparente e desaparece tão logo o sentido do sonho é examinado mais detidamente. Eis aqui dois ou três sonhos que versam (por acaso, como talvez pareça à primeira vista) sobre o pai morto do sonhador.

I

Este é o sonho de um paciente que perdera o pai seis anos antes. O pai sofrera uma grave calamidade. Estava viajando no trem noturno, que descarrilara. Os assentos do vagão se entrechocaram e sua cabeça foi comprimida de um lado ao outro. O sonhador o viu então deitado numa cama, com um ferimento no supercílio esquerdo que se estendia em direção vertical. Ficou surpreso de que tivesse havido uma calamidade com o pai (visto que já estava morto, como acrescentou ao relatar-me o sonho). Como estavam claros os olhos dele!
De acordo com a teoria dominante dos sonhos, teríamos de explicar o conteúdo desse sonho da seguinte maneira. Para começar, devemos supor que, enquanto imaginava o acidente, o sonhador deve ter-se esquecido de que o pai jazia em seu túmulo há vários anos; mas, à medida que o sonho prosseguiu, essa lembrança deve ter emergido, levando à surpresa ante seu próprio sonho enquanto ele ainda dormia. A análise nos ensina, contudo, que é visivelmente inútil procurar esse tipo de explicações. O sonhador encomendaraum busto do pai a um escultor e o vira pela primeira vez dois dias antes do sonho. Era nisso que ele havia pensado como uma calamidade. O escultor nunca vira seu pai e trabalhara utilizando fotografias. No dia imediatamente anterior ao sonho, o sonhador, em sua devoção filial, mandara um velho criado da família ao estúdio para ver se ele faria a mesma opinião da cabeça de mármore, a saber, que era muito estreita nas têmporas de um lado ao outro. O paciente passou então a recordar o material que contribuíra para a produção do sonho. Sempre que seu pai era atormentado por preocupações de negócios ou dificuldades familiares, ele tinha o hábito de pressionar as mãos sobre as têmporas, como se sentisse a cabeça larga demais e quisesse comprimi-la. - Quando o paciente contava quatro anos, estivera presente na ocasião em que uma pistola, que fora acidentalmente carregada, havia disparado e enegrecido os olhos do pai. (‘’Como estavam claros os olhos dele!‘’) - No ponto da testa em que o sonho situou o ferimento do pai aparecia um sulco profundo, durante sua vida, sempre que ele estava pensativo ou triste. O fato de esse sulco ter sido substituído no sonho por um ferimento levou à segunda causa excitante do sonho. O sonhador tirara uma fotografia de sua filhinha. A chapa lhe havia escorregado das mãos e, quando ele a apanhou, havia uma rachadura que se estendia perpendicularmente pela testa da menina, indo até o supercílio. Ele não pôde evitar uma premonição supersticiosa a esse respeito, visto que, dias antes do falecimento de sua mãe, ele quebrara uma chapa fotográfica com o retrato dela.
O absurdo desse sonho não passava, assim, do resultado de um descuido na expressão verbal, que não soube distinguir o busto e a fotografia da pessoa real. Qualquer um de nós poderia dizer [olhando para uma fotografia]: “Há algo errado com papai, não acha?’’ A aparência de absurdo no sonho teria sido fácil de evitar; e, se nos fosse dado julgar por esse exemplo único, ficaríamos inclinados a pensar que o aparente absurdo fora permitido ou mesmo deliberado.

II

Eis aqui outro exemplo, semelhante em quase todos os aspectos, de um de meus próprios sonhos. (Perdi meu pai em 1896.) Após sua morte, meu pai desempenhava um papel político entre os magiares e os reunira politicamente. Vi nesse ponto uma imagem pequena e indistinta: uma multidão de homens, como se estivessem no Reichstag; alguém de pé sobre uma ou duas cadeiras, com outras pessoas ao seu redor. Lembrei-me de como ele separecera com Garibaldi em seu leito de morte, e fiquei contente de que aquela promessa se tivesse realizado.
Que poderia ser mais absurdo do que isso? Foi um sonho ocorrido numa época em que os húngaros tinham sido arrastados pela obstrução parlamentar para um estado de ilegalidade e mergulhado na crise da qual foram salvos por Koloman Széll. O detalhe trivial de a cena do sonho aparecer em imagens de tamanho tão diminuto não deixou de ter importância para sua interpretação. Nossos pensamentos oníricos costumam ser representados em imagens visuais que parecem ter mais ou menos o tamanho natural. A imagem que eu via em meu sonho, contudo, era a reprodução de uma xilogravura inserida numa história ilustrada da Áustria, que exibia Maria Teresa no Reichstag [Dieta] de Pressburg no famoso episódio de Moriamur pro rege nostro. Tal como Maria Teresa na fotografia, meu pai, no sonho, estava cercado pela multidão. Mas ele estava de pé sobre uma ou duas cadeiras [“cadeira” = “Stuhl”]. Ele os tinha reunido e, portanto, era um juiz-presidente [“Stuhlrichter”, literalmente, “Juiz de cadeira”.] (Um elo de ligação foi proporcionado pela expressão [alemã] coloquial “não precisaremos de nenhum juiz”.) - Os que o estávamos rodeando havíamos de fato observado como meu pai se parecia, em seu leito de morte, com Garibaldi. Ele tivera uma elevação de temperatura post-mortem, ficando suas maçãs do rosto enrubescidas e cada vez mais vermelhas… Ao recordar isso, meus pensamentos prosseguiram involuntariamente:

Und hinter ihm in wesenlosem Scheine
Lag, was uns alle bändigt, das Gemeine.

Esses pensamentos elevados prepararam o terreno [na análise] para o aparecimento de algo que era comum [“gemein”] em outro sentido. A elevação de temperatura post-mortem de meu pai correspondeu às palavras “após sua morte” no sonho. Seu sofrimento mais agudo fora causado por uma paralisia completa (obstrução) dos intestinos durante suas últimas semanas. Daí decorreu toda sorte de pensamentos desrespeitosos. Um de meus contemporâneos que perdera o pai enquanto ainda estava no curso secundário - nessa ocasião, eu mesmo ficara profundamente emocionado e me oferecera para ser seu amigo - certa feita me contou, desdenhosamente, como uma de suas parentas passara por uma experiência dolorosa. Seu pai caíra morto na rua e fora levado para casa; quando despiram o cadáver, verificou-se que no momento da morte, ou post-mortem, ele tivera uma evacuação [“Stuhl”]. A filha se sentira tão desgostosa com isso que não conseguia impedir que esse detalhe odioso lhe perturbasse a lembrança do pai. Chegamos aqui ao desejo que se corporificou nesse sonho. “Erguer-se ante os olhos dos filhos, após a morte, grande e imaculado” - quem não desejaria isto? O que aconteceu com o absurdo do sonho? Seu aparente absurdo deve-se apenas ao fato de ele ter fornecido uma imagem literal de uma figura de retórica que é em si perfeitamente legítima e na qual habitualmente desprezamos qualquer absurdo envolvido na contradição entre duas partes. Nesse exemplo, mais uma vez, é impossível fugir à impressão de que o aparente absurdo é intencional e foi deliberadamente produzido. [1]
A freqüência com que as pessoas mortas aparecem em sonhos, [1] interagindo e se associando conosco como se estivessem vivas, tem causado surpresa desnecessária e produzido algumas explicações notáveis, que põem em grande destaque nossa falta de compreensão dos sonhos. Não obstante, a explicação desses sonhos é muito óbvia. É freqüentemente nos apanharmos pensando: “Se meu pai fosse vivo, o que diria sobre isto?” Os sonhos são incapazes de expressar um “se” dessa ordem, salvo representando a pessoa em questão como presente em alguma situação específica. Assim, por exemplo, um rapaz que recebera uma grande herança do avô sonhou, numa época em que se recriminava por ter gasto uma considerável soma de dinheiro, que seu avô estava vivo novamente e lhe pedia contas. E quando, por não cairmos nessa cilada, protestamos que afinal de contas a pessoa em questão está morta,o que consideramos como uma crítica ao sonho é, na realidade, uma idéia consoladora de que a pessoa morta não viveu para testemunhar o acontecimento, ou um sentimento de satisfação por ela já não poder interferir.
Há um outro tipo de absurdo que ocorre nos sonhos com parentes mortos mas não expressa ridicularização nem escárnio. Indica um extremo grau de repúdio e, desse modo, possibilita representar uma idéia recalcada que o sonhador preferiria encarar como totalmente impensável. Parece impossível elucidar tais sonhos, a menos que se tenha em mente o fato de que os sonhos não estabelecem diferença entre o que é desejado e o que é real. Por exemplo, um homem que cuidara do pai durante sua última doença e ficara profundamente acabrunhado com sua morte teve o seguinte sonho absurdo algum tempo depois. O pai estava vivo de novo e conversava com ele em seu estilo usual, mas (isso é que foi notável) ele havia realmente morrido, só que não o sabia. Este sonho só se torna inteligível se, após as palavras “mas ele havia realmente morrido”, inserirmos “em conseqüência do desejo do sonhador”, e se explicarmos que o que “ele não sabia” era que o sonhador tivera esse desejo. Enquanto cuidava do pai, o filho desejara repetidamente que ele morresse, isto é, tivera o que, a rigor, era um pensamento piedoso, no sentido de que a morte poderia pôr termo aos sofrimentos dele. Durante o luto, após a morte do pai, até mesmo esse desejo compassivo tornou-se tema de auto-recriminação inconsciente, como se, por meio disso, ele tivesse realmente contribuído para abreviar a vida do homem enfermo. O despertar dos impulsos infantis primitivos do sonhador contra o pai tornou possível que essa auto-recriminação se expressasse como um sonho; mas foi precisamente o fato de o instigador do sonho e os pensamentos diurnos serem tão diametralmente opostos que exigiu o aspecto absurdo do sonho. [1]
É verdade que os sonhos com mortos amados pelo sonhador levantam problemas difíceis na interpretação do sonho e que nem sempre podem ser satisfatoriamente solucionados. A razão disso se encontra na ambivalência emocional de cunho particularmente acentuado que domina a relação do sonhador com a pessoa morta. É muito comum, nos sonhos dessa espécie, a pessoa morta ser tratada, de início, como se estivesse viva, depois, subitamente, revelar-se morta e, numa parte posterior do sonho, estar viva outra vez. Isso tem o efeito de confundir. Por fim, ocorreu-me que essa alternância entre morte e vida visa a representar a indiferença do sonhador. (“Tanto se me dá que ele esteja vivo ou morto.”) Essa indiferença, evidentemente, não é real, mas apenas desejada; destina-se a ajudar o sonhador a repudiar suas atitudes emocionais muito intensas e amiúde contraditórias, tornando-se assim uma representação onírica de sua ambivalência. - Em outros sonhos em que o sonhador interage com pessoas mortas, a seguinte regra muitas vezes ajuda a nos orientar: não havendo no sonho nenhuma menção ao fato de que o homem morto está morto, o sonhador se está equiparando com ele - está sonhando com sua própria morte. Se, no curso do sonho, o sonhador de repente diz a si próprio com surpresa, “ora, mas ele já morreu há tanto tempo”, está repudiando essa equiparação e negando que o sonho signifique sua própria morte. - Mas de bom grado confesso a impressão de que a interpretação dos sonhos está longe de ter revelado todos os segredos dos sonhos dessa natureza.

III

No exemplo que exporei a seguir, pude surpreender o trabalho do sonho no próprio ato de fabricar intencionalmente um absurdo para o qual não havia margem alguma no material. Foi extraído do sonho que me despertou de meu encontro com o Conde Thun quando eu estava partindo em viagem de férias. [Ver em [1]] Eu estava num tílburi e ordenei ao cocheiro que me levasse a uma estação. “Não posso ir com o senhor ao longo da própria linha férrea”, disse eu, depois de ele ter levantado alguma objeção, como se eu o tivesse fatigado demais. Era como se eu tivesse viajado com ele parte da distância que normalmente se percorre de trem. A análise produziu as seguintes explicações dessa história confusa e sem sentido. No dia anterior,eu alugara um tílburi para me levar a uma rua afastada em Dornbach. O condutor, contudo, não sabia onde ficava a rua e, como tendem a fazer essas excelentes pessoas, ficou a dar voltas e mais voltas, até que, finalmente, notei o que estava acontecendo e lhe indiquei o caminho certo, acrescentando alguns comentários sarcásticos. Uma cadeia de idéias à qual eu retornaria depois, na análise, levou-me desse condutor aos aristocratas. Na ocasião, foi apenas a idéia passageira de que o que nos impressiona nos aristocratas, a nós da plebe burguesa, é a preferência que eles têm por ocupar o lugar do condutor. O Conde Thun, de fato, era o condutor do carro do Estado na Áustria. A frase seguinte do sonho, todavia, referia-se a meu irmão, que eu estava assim identificando com o condutor do veículo. Naquele ano, eu havia cancelado uma viagem que faria com ele à Itália. (“Não posso ir com você pela própria linha do trem.”) E esse cancelamento fora uma espécie de castigo pelas queixas que ele costumava fazer no sentido de que eu tinha o hábito de cansá-lo demais nessas viagens (isso apareceu no sonho sem alterações), ao insistir em me deslocar muito depressa de um lugar para outro e em ver demasiadas belezas num único dia. Na noite do sonho, meu irmão me acompanhara até a estação, mas descera pouco antes de chegarmos lá, na estação ferroviária suburbana adjacente ao terminal da linha principal, para ir a Purkersdorf pela linha suburbana. Fiz-lhe notar que ele poderia ficar um pouco mais comigo indo até Purkersdorf pela linha principal, em vez da suburbana. Isso levou ao trecho do sonho em que percorri de tílburi parte da distância que normalmente se percorre de trem. Foi uma inversão do que havia ocorrido na realidade - uma espécie de argumento “tu quoque”. O que eu dissera a meu irmão tinha sido: “você pode percorrer na linha principal, em minha companhia, a distância que percorreria pela linha suburbana”. Provoquei toda a confusão do sonho ao colocar “carro” no lugar de “linha suburbana” (o que, aliás, foi muito útil para reunir as figuras do condutor e de meu irmão). Dessa maneira, consegui produzir no sonho algo sem sentido, que parece quase impossível de desenredar e é quase uma contradição direta do meu comentário anterior no sonho (“Não posso ir com o senhor pela própria linha do trem”). Dado, porém, que não havia necessidade alguma de eu confundir a ferrovia suburbana com um carro, devo ter preparado propositadamente toda essa história enigmática do sonho.
Mas, com que propósito? Agora descobriremos o significado do absurdo nos sonhos e os motivos que fazem com que ele seja consentido ou mesmo criado. A solução do mistério neste sonho foi a seguinte: eu precisava que houvesse nesse sonho algo de absurdo e ininteligível ligado à palavra fahren, porque os pensamentos oníricos incluíam um certo juízo que pedia representação. Uma noite, quando me encontrava na casa da hospitaleira e espirituosa senhora que aparecia como “zeladora” numa das outras cenas do mesmo sonho, eu ouvira duas charadas, que não pude solucionar. Uma vez que elas eram conhecidas do restante do grupo, fiz um papel um tanto ridículo em minhas vãs tentativas de encontrar as respostas. Elas dependiam de trocadilhos com as palavras “Nachkommen” e “Vorfahren” e, creio eu, diziam o seguinte:

Der Herr befiehlt’s,
Der Kutscher tut’s.
Ein jeder hat’s,
Im Grabe ruht’s.

[O patrão manda,
O cocheiro faz:
Todos o têm,
Na tumba jaz.]

(Resposta: “Vorfahren” [“Seguir viagem“ e “ascendência”; mais literalmente, “ir adiante” e “antepassados”].)
O que causava uma confusão especial era que a primeira metade da segunda charada era idêntica à da primeira:


Der Herr befiehlt’s,
Der Kutscher tut’s.
Nicht jeder hat’s,
In der Wiege ruht’s.

[O patrão manda,
cocheiro faz:
Nem todos o têm,
No berço jaz.]

(Resposta: “Nachkommen” [“Seguir atrás” e “descendência”; mais literalmente, “vir depois” e “descendentes”].)
Quando vi o Conde Thun seguir viagem com tanta imponência e quando, depois disso, entrei no estado de espírito de Fígaro, com suas observações sobre a bondade dos grandes senhores por se terem dado ao trabalho de nascer (de se tornarem descendência), essas duas charadas foram adotadas pelo trabalho do sonho como pensamentos intermediários. Visto que os aristocratas podiam ser facilmente confundidos com condutores e visto que houve época, em nossa parte do mundo, em que um condutor era chamado de “Schwager” [“cocheiro” e “cunhado”], o trabalho de condensação pôde introduzir meu irmão na mesma imagem. Entretanto, o pensamento onírico que agia por trás de tudo isso dizia: “É absurdo orgulhar-se dos ancestrais; é preferível ser um antepassado”. Esse julgamento de que algo “é absurdo” foi o que produziu a aparência de absurdo no sonho. E isso também esclarece o enigma remanescente nessa obscura região do sonho, ou seja, a razão por que pensei já ter viajado com o condutor antes [vorhergefahren (“viajado antes”) - vorgefahren (“seguido viagem”) - “Vorfahren” (“ascendência”)].
Um sonho se torna absurdo, portanto, quando o julgamento de que algo “é absurdo” figura entre os elementos incluídos nos pensamentos oníricos - isto é, quando qualquer das cadeias de idéias inconscientes do sonhador tem por motivo a crítica ou a ridicularização. O absurdo, por conseguinte, é um dos métodos pelos quais o trabalho do sonho representa uma contradição - juntamente com outros métodos como a inversão, no conteúdo do sonho, de uma relação material nos pensamentos oníricos ([em [1]], ou a exploração da sensação de inibição motora [em [1]]. Todavia, o absurdo num sonho não deve ser traduzido por um simples “não”; destina-se a reproduzir o estado de ânimo dos pensamentos oníricos que combina o escárnio ou o riso com a contradição. É somente com tal finalidade em vista que o trabalho do sonho produz algo ridículo. Também aqui ele dá uma forma manifesta a uma parcela do conteúdo latente. [1]
Na realidade, já deparamos com um exemplo convincente de um sonho absurdo com esse tipo de sentido: o sonho - interpretei-o sem nenhuma análise - da encenação de uma ópera de Wagner que durou até quinze para as oito da manhã e no qual a orquestra era regida de uma torre, etc. (ver em [1]). Ele evidentemente queria dizer: “Este é um mundo às avessas e uma sociedade maluca; a pessoa que merece algo não o consegue, e a pessoa que não se importa com algo realmente o consegue” - e nesse aspecto, a sonhadora estava comparando seu destino com o de sua prima. Tampouco é por mero acaso que nossos primeiros exemplos de absurdo nos sonhos se relacionaram com um pai morto. Nesses casos, as condições para a criação de sonhos absurdos se reúnem de maneira característica. A autoridade exercida pelo pai provoca a crítica de seus filhos já numa tenra idade, e a severidade das exigências que lhes faz leva-os, para seu próprio alívio, a ficarem de olhos abertos para qualquer fraqueza do pai; entretanto, a devoção filial evocada em nossa mente pela figura do pai, particularmente após sua morte, torna mais rigorosa a censura, que impede qualquer crítica desse tipo de ser conscientemente expressa.

IV

Eis outro sonho absurdo sobre um pai morto. Recebi uma comunicação da câmara municipal de minha terra natal, referente aos honorários devidos pela manutenção de alguém no hospital no ano de 1851, que fora exigida por um ataque que esse alguém tivera em minha casa. Isso me pareceuengraçado, pois, em primeiro lugar, eu ainda não era nascido em 1851 e, em segundo, meu pai, com quem isso poderia estar relacionado, já estava morto. Fui vê-lo no quarto ao lado, onde ele estava deitado em sua cama, e lhe contei isso. Para minha surpresa, ele se lembrou de que, em 1851, tinha-se embriagado certa vez e tivera de ser trancafiado ou detido. Isso acontecera numa época em que ele trabalhava para a firma T --. “Quer dizer que você também costumava beber?, perguntei;” “você se casou logo depois disso?” Calculei que, naturalmente, eu nascera em 1856, que parecia ser o ano imediatamente seguinte ao ano em questão.
A partir da discussão anterior, concluiríamos que a insistência com que este sonho exibia seus absurdos só poderia ser tomada como indicadora da presença, nos pensamentos oníricos, de uma polêmica particularmente acirrada e apaixonada. Assim sendo, ficaremos extremamente surpresos ao observar que, neste sonho, a polêmica se deu abertamente, e que meu pai foi o objeto explícito de ridicularização. Tal franqueza parece contradizer nossos pressupostos acerca da ação da censura ligada ao trabalho do sonho. A situação se tornará mais clara, porém, ao se perceber que, neste exemplo, meu pai foi simplesmente apresentado como um testa-de-ferro e que a disputa realmente se dava com outra pessoa que só apareceu no sonho numa única alusão. Enquanto que, normalmente, o sonho versa sobre uma rebelião contra outra pessoa por trás de quem se oculta o pai do sonhador, aqui se deu o oposto. Meu pai fora transformado num espantalho para encobrir outra pessoa; e o sonho teve permissão de tratar dessa maneira indisfarçada uma figura que, em geral, era tratada como sagrada, porque, ao mesmo tempo, eu sabia com certeza que não era realmente a ele que se aludia. Que era esse o estado de coisas ficou demonstrado pela causa excitante do sonho. É que ele ocorreu depois de eu ter tomado conhecimento de que um de meus colegas mais velhos, cuja opinião era considerada acima de qualquer crítica, havia expressado sua desaprovação e surpresa ante o fato de o tratamento psicanalítico de um de meus pacientes já ter entrado em seu quinto ano. As primeiras frases do sonho aludiam, sob um disfarce transparente, ao fato de, por algum tempo, esse colega haver assumido as obrigações que meu pai já não podia cumprir (“honorários devidos”, “manutenção no hospital”) e de, quando nossas relações começaram a ser menos amistosas, eu ter-me envolvido no mesmo tipo de conflito emocionalque, ao surgir um desentendimento entre pai e filho, é inevitavelmente produzido, graças à posição ocupada pelo pai e à assistência anteriormente prestada por ele. Os pensamentos oníricos protestaram amargamente contra a reprimenda de que eu não estava progredindo mais depressa - reprimenda que, aplicando-se primeiro a meu tratamento do paciente, estendeu-se depois a outras coisas. Conheceria ele alguém, pensei, que pudesse ir mais depressa? Será que não percebia que, salvo por meus métodos de tratamento, essas condições eram inteiramente incuráveis e duravam a vida toda? O que eram quatro ou cinco anos comparados a uma vida inteira, especialmente considerando que a existência do paciente fora tão facilitada durante o tratamento?
Grande parte da impressão de absurdo desse sonho foi ocasionada pelo encadeamento de frases de diferentes partes dos pensamentos oníricos sem qualquer transição. Assim, a frase “Fui vê-lo no quarto ao lado”, etc., abandonou o assunto de que vinham tratando as frases anteriores e reproduziu corretamente as circunstâncias em que informei a meu pai ter ficado noivo sem consultá-lo. Essa frase, portanto, relembrava-me o admirável desprendimento demonstrado pelo ancião nessa oportunidade, contrastando-o com o comportamento de um terceiro - de mais outra pessoa. Convém observar que o sonho recebeu permissão para ridicularizar meu pai porque, nos pensamentos oníricos, ele era reconhecido, com irrestrita admiração, como um modelo para outras pessoas. E da própria natureza de toda censura que, dentre as coisas proibidas, ela permita que se digam as que são falsas, e não as que são verdadeiras. A frase seguinte, no sentido de ele se lembrar que “tinha-se embriagado certa vez e fora trancafiado por isso”, já não dizia respeito a nada que se relacionasse com meu pai na realidade. Aqui, a figura que ele representava era nada mais, nada menos que o grande Meynert, cujas pegadas eu seguira com profunda veneração e cujo comportamento para comigo, após um breve período de predileção, transformara-se em hostilidade indisfarçada. O sonho me fez lembrar que ele próprio me contara que, em certa época de sua juventude, entregara-se ao hábito de se embriagar com clorofórmio e que, por causa disso, tivera de ir para um sanatório. Fez-me lembrar também de outro incidente com ele, pouco antes de sua morte. Havíamos travado uma acirrada controvérsia, por escrito, sobre o tema da histeria masculina, cuja existência ele negava. Quando o visitei durante suaenfermidade fatal e indaguei sobre suas condições, ele se estendeu um pouco sobre seu estado e terminou com estas palavras: “Você sabe, sempre fui um dos casos mais claros de histeria masculina”. Estava assim admitindo, para minha satisfação e espanto, aquilo que por tanto tempo contestara obstinadamente. Mas a razão por que me foi possível, nessa cena do sonho, utilizar meu pai como um disfarce para Meynert não residia em qualquer analogia que eu houvesse descoberto entre as duas figuras. A cena era uma representação concisa, mas inteiramente apropriada, de uma frase condicional nos pensamentos oníricos, cuja íntegra dizia: “Se ao menos eu tivesse sido a segunda geração, o filho de um professor ou de um Hofrat [conselheiro áulico], certamente teria progredido mais depressa”. No sonho, transformei meu pai num Hofrat e professor. - O mais clamoroso e perturbador absurdo do sonho reside em seu tratamento da data 1851, que me parecia não diferir de 1856, como se uma diferença de cinco anos não tivesse importância alguma. Mas isso era exatamente o que os pensamentos oníricos procuravam expressar. Quatro ou cinco anos eram o intervalo durante o qual desfrutei do apoio do colega que mencionei antes nesta análise; mas eram também o período durante o qual eu fizera minha noiva esperar por nosso casamento; e era também, por uma coincidência fortuita, avidamente explorada pelos pensamentos oníricos, o tempo que fiz meu paciente mais antigo esperar por uma recuperação completa. “O que são cinco anos?” perguntavam os pensamentos oníricos; “no que me concerne, esse prazo não é nada; não conta. Tenho bastante tempo à minha frente. E, assim como acabei conseguindo aquilo, embora não acreditassem, também realizarei isto.” Afora isso, contudo, o número 51 em si, sem os algarismos relativos ao século, foi determinado num outro sentido, a rigor, oposto; e foi também por isso que apareceu no sonho diversas vezes. Cinqüenta e um é a idade que parece particularmente perigosa para os homens; conheci colegas que morreram subitamente nessa idade e, entre eles, um que, após longas demoras, fora nomeado professor poucos dias antes de sua morte.

V

Aqui temos mais um sonho absurdo que joga com números. Um de meus conhecidos, o Sr. M., fora atacado num ensaio com um injustificado grau de violência, ao que todos pensamos, por ninguém menos que Goethe. O Sr. M., naturalmente, ficou arrasado com o ataque. Queixou-se amargamente dele com algumas pessoas que o acompanhavam à mesa; sua veneração por Goethe, entretanto, não foi afetada por essa experiência pessoal. Tentei esclarecer um pouco os dados cronológicos, que me pareciam improváveis. Goethe morreu em 1832. Uma vez que seu ataque ao Sr. M. teria naturalmente sido feito antes disso, o Sr. M. devia ser um homem muito jovem na ocasião. Pareceu-me uma noção plausível que tivesse dezoito anos. Eu não tinha muita certeza, porém, do ano em que escrevíamos, de modo que todo o meu cálculo se desfazia na obscuridade. A propósito, o ataque estava contido no famoso ensaio de Goethe sobre a “Natureza”.
Logo encontraremos meios de justificar o absurdo desse sonho. O Sr. M., com que eu travara conhecimento em meio a algumas pessoas que me acompanhavam à mesa, pedira-me não muito antes que examinasse seu irmão, que estava apresentando sinais de paralisia geral. A suspeita era correta; na ocasião dessa visita, aconteceu um episódio embaraçoso, pois no decorrer da conversa, o paciente, sem nenhuma razão justificável, revelou coisas íntimas sobre seu irmão ao falar de suas loucuras juvenis. Eu havia perguntado ao paciente o ano de seu nascimento e o fizera efetuar várias pequenas somas, para testar a debilitação de sua memória - embora, aliás, ele ainda ficasse perfeitamente à altura dos testes. Logo pude ver que, no sonho, eu próprio me havia comportado como um paralítico. (Eu não tinha muita certeza do ano, porém, em que escrevíamos.) Outra parte do material do sonho derivava de outra fonte recente. O editor de uma revista médica, com quem eu mantinha relações amistosas, publicara uma crítica altamente desfavorável, “arrasadora”, do último livro de meu amigo berlinense Fl. [Fliess]. A crítica fora escrita por um profissional muito jovem, que tinha pouco discernimento. Achei que tinha o direito de intervir e repreendi o editor por isso. Ele expressou um vivo pesar por haver publicado a crítica, mas se recusou a fazer qualquer retificação. Assim, cortei relações com a revista, mas, em minha carta de desligamento, expressei a esperança de que nossas relações pessoais não fossem afetadas pelo acontecimento. A terceira fontedo sonho fora um relato que eu acabara de escutar de uma paciente a respeito da doença mental de seu irmão e de como ele havia entrado em delírio frenético, aos gritos de ‘’Natureza! Natureza!‘’. Os médicos acreditavam que sua exclamação proviesse do fato de ele ter lido o notável ensaio de Goethe sobre esse assunto, e que isso mostrava que ele se vinha extenuando em seus estudos de filosofia natural. Quanto a mim, preferi pensar no sentido sexual em que essa palavra é usada aqui, até mesmo pelas pessoas menos instruídas. Essa minha idéia ao menos não foi refutada pelo fato de o pobre rapaz, em seguida, ter mutilado seus próprios órgãos genitais. Ele tinha dezoito anos na ocasião de seu surto.
Posso acrescentar que o livro de meu amigo que fora tão severamente criticado (“fica-se pensando se o autor é que é louco, ou se nós mesmos o somos”, dissera outro crítico) versava sobre os dados cronológicos da vida, e mostrava que a duração da vida de Goethe era um múltiplo de um número [de dias] que tem importância na biologia. Logo, é fácil perceber que, no sonho, eu me estava colocando no lugar de meu amigo. (Tentei esclarecer um pouco os dados cronológicos.) Mas comportei-me como um paralítico, e o sonho foi um amontoado de absurdos. Desse modo, os pensamentos oníricos diziam com ironia: “Naturalmente, ele [meu amigo F.] é que é o tolo, o maluco, e vocês [os críticos] é que são os gênios que sabem de tudo. É claro que, por acaso, não seria o inverso, não é mesmo?” Havia muitos exemplos dessa inversão no sonho. Por exemplo, Goethe atacava o rapaz, o que é absurdo, ao passo que ainda é fácil para um homem bastante jovem atacar Goethe, que é imortal. Além disso, fiz os cálculos a partir do ano da morte de Goethe, ao passo que fizera o paralítico calcular a partir do ano de seu nascimento. [Ver em [1], onde esse sonho já foi mencionado.]
Mas eu também me havia comprometido a mostrar que nenhum sonho é induzido por outros motivos que não os egoístas. [Ver em [1]] Logo, preciso explicar o fato de, no presente sonho, ter tornado minha a causa de meu amigo e ter-me colocado em seu lugar. A força de minha convicção crítica na vida de vigília não basta para explicar isso. A história do paciente de dezoito anos, contudo, e as diferentes interpretações de sua exclamação “Natureza!” eram alusões à oposição em que eu mesmo me encontrava perante muitos médicos, por causa de minha crença na etiologia sexual das psiconeuroses. Podia dizer a mim mesmo: “O tipo de crítica que foi aplicado a seu amigo será aplicado a você - na verdade, em certa medida, já foi”. O “ele” do sonho, portanto, pode ser substituído por “nós”: “Sim, vocês têm toda razão, nós é que somos os tolos.” Havia no sonho um lembrete muito claro de que “mea res agitur”, na alusão ao ensaio breve maisprimorosamente escrito de Goethe, pois quando, ao final de meu tempo de escola, eu hesitava na escolha de uma carreira, foi escutar esse ensaio lido em voz alta numa conferência pública que me fez optar pelo estudo das ciências naturais. [1]

VI

Num ponto anterior deste volume, dispus-me a mostrar que outro sonho em que meu próprio eu não aparecia era, não obstante, egoísta. Em [1], relatei um curto sonho no qual o Professor M. dizia: “Meu filho, o Míope…” e expliquei que este era apenas um sonho introdutório, preliminar a outro em que eu realmente desempenhava um papel. Eis aqui o sonho principal que faltava, introduzindo uma forma verbal absurda e ininteligível que requer explicação.
Por causa de certos acontecimentos que haviam ocorrido na cidade de Roma, tornara-se necessário retirar as crianças para local seguro e isso foi feito. A cena transcorreu depois em frente a um portal, portas duplas no estilo antigo (a “Porta Romana” em Siena, como me dei conta durante o próprio sonho). Eu estava sentado na borda de uma fonte, extremamente deprimido e quase em lágrimas. Uma figura feminina - uma criada ou freira - trouxe dois meninos e os entregou ao pai deles, que não era eu. O mais velho dos dois era claramente meu filho maior; não vi o rosto do outro. A mulher que trouxera o menino pediu-lhe que lhe desse um beijo de despedida. Ela era singular por ter um nariz vermelho. O menino recusou-se a beijá-la, mas, estendendo a mão em sinal de despedida, disse “AUF GESERES” a ela e, depois, “AUF UNGESERES” a nós dois (ou a um de nós). Tive a impressão de que esta segunda frase denotava uma preferência.
Este sonho foi construído com base num emaranhado de pensamentos provocados por uma peça a que eu assistira, chamada Das neue Ghetto [ONovo Gueto]. O problema judaico, a preocupação com o futuro dos filhos, a quem não se pode dar uma pátria, a preocupação de educá-los de tal maneira que possam movimentar-se livremente através das fronteiras - tudo isso era facilmente reconhecível entre os pensamentos oníricos correspondentes.
Junto às águas da Babilônia nos sentamos e choramos.” Siena, como Roma, é famosa por suas belas fontes. Quando Roma aparecia num de meus sonhos, era preciso que eu encontrasse um substituto para ela em alguma localidade que me fosse conhecida (ver em [1]). Perto da Porta Romana, em Siena, víramos um edifício grande e feericamente iluminado. Soubemos que era o Manicomio, o asilo de loucos. Pouco antes de ter o sonho, eu ouvira dizer que um homem de credo religioso igual ao meu fora obrigado a renunciar a um cargo que obtivera com grande esforço num manicômio estatal.
Nosso interesse é despertado pela frase “Auf Geseres” (num ponto em que a situação do sonho levaria a esperar por “Auf Wiedersehen‘’), bem como por seu oposto inteiramente sem sentido, ‘’Auf Ungeseres”. De acordo com informações que recebi de filologistas, “Geseres” é uma palavra hebraica genuína, derivada do verbo “goiser”, e sua melhor tradução é “sofrimentos impostos” ou “fatalidade”. O uso dessa palavra na gíria nos inclinaria a supor que seu significado é de “pranto e lamentação”. “Ungeseres” era um neologismo particular meu e foi a primeira palavra a chamar minha atenção, só que, de início, nada pude extrair dela. Entretanto, o breve comentário ao final do sonho, no sentido de que “Ungeseres” denotava uma preferência sobre “Geseres”, abriu a porta às associações e, ao mesmo tempo, a uma elucidação da palavra. Uma relação análoga ocorre no caso do caviar: o caviar sem sal [“ungesalzen”] é mais apreciado que o salgado [“gesalzen”]. “Caviar para o general”, pretensões aristocráticas; por trás disso havia uma alusão jocosa a uma pessoa de minha casa que, por ser mais moça do que eu, cuidaria de meus filhos no futuro, ao que eu esperava. Isso se harmonizou com o fato de que outra pessoa de minha casa, nossa excelente babá, fora reconhecivelmente retratada na empregada ou freira do sonho. Não existia ainda, contudo, nenhuma idéia transicional entre “salgado - sem sal” e “Geseres - Ungeseres”. Esta foi fornecida por “fermentado - não fermentado” [“gesäuert - ungesäuert”]. Em sua fuga do Egito, os Filhos de Israel não tinham tempo para deixar que sua massa de pão crescesse e, em memória disso, até hoje comem pão sem fermento na Páscoa. Neste ponto, posso inserir uma repentina associação que me ocorreu durante essa parte da análise. Lembrei-me de como, na Páscoa anterior, meu amigo de Berlim e eu estávamos passeando pelas ruas de Breslau, cidade em que éramos forasteiros. Uma garotinhaperguntou-me o caminho para determinada rua e fui obrigado a confessar que não sabia; e comentei com meu amigo: “Vamos esperar que, quando crescer, essa garotinha mostre mais discriminação na escolha das pessoas a quem pedir que a orientem”. Pouco depois, avistei uma placa numa porta com os dizeres “Dr. Herodes. Horário de Consulta…” “Tomara”, comentei, “que nosso colega não seja médico de crianças”. Entrementes, meu amigo ia me expondo suas idéias sobre a significação biológica da simetria bilateral e iniciara uma frase com as palavras ‘’Se tivéssemos um olho no meio da testa, como um Ciclope…” Isso levou ao comentário do Professor no sonho introdutório, “Meu filho, o Míope…”, e fui então levado à fonte principal de “Geseres”. Muitos anos antes, quando esse filho do Professor M., hoje um pensador independente, sentava-se ainda nos bancos escolares, foi acometido por uma doença dos olhos que, declarou o médico, dava motivos para preocupação. Ele explicou que, enquanto a afecção permanecesse de um lado só, não teria importância, mas, se passasse para o outro olho, seria um caso grave. A afecção desapareceu completamente no primeiro olho, mas, pouco depois, apareceram realmente sinais de que o outro estava sendo afetado. A mãe do menino, aterrorizada, imediatamente mandou chamar o médico ao local afastado do interior onde se encontravam. O médico, porém, passou-se então para o outro lado. “Por que a senhora está fazendo esse ‘Geseres‘?”, indagou à mãe numa exclamação; “se um dos lados ficou bom, o outro também ficará’’. E tinha razão.
E agora devemos considerar a relação de tudo isso comigo e com minha família. O banco de escola em que o filho do Professor M. dera seus primeiros passos no conhecimento fora presenteado por sua mãe a meu filho mais velho, em cujos lábios, no sonho, pus as frases de despedida. É fácil adivinhar um dos desejos a que essa transferência deu margem. É que a construção do banco da escola visava também a poupar a criança da miopia e de um distúrbio unilateral. Daí o aparecimento, no sonho, de “Míope” (e, por trás disso, “Ciclope”) e da referência à bilateralidade. Minha preocupação com a unilateralidade tinha mais de um sentido: podia referir-se não apenas à unilateralidade física, mas também à unilateralidade do desenvolvimento intelectual. E não seria precisamente essa preocupação que, à sua maneira louca, a cena do sonho contradizia? Depois de se voltar para um lado para dizer palavras de despedida, a criança se voltou para o outro lado para dizero contrário, como que visando a restaurar o equilíbrio. Era como se estivesse agindo com a devida atenção à simetria bilateral!
É freqüente, portanto, os sonhos serem mais profundos quando parecem mais insensatos. Em todas as épocas da história, aqueles que tinham algo a dizer mas não podiam dizê-lo sem perigo enfiaram prontamente a carapuça do bobo. A platéia a que se dirigia seu discurso proibido tolerava-o mais facilmente quando podia, ao mesmo tempo, rir e lisonjear-se com a idéia de que as palavras inoportunas eram claramente absurdas. O Príncipe da peça, que teve de se disfarçar de louco, comportou-se exatamente como fazem os sonhos na realidade; assim, podemos dizer dos sonhos o que dizia Hamlet de si próprio, ocultando as condições verdadeiras sob um manto de graça e ininteligibilidade: “Sou louco apenas com o nor-noroeste; quando sopra o vento sul, sei distinguir um falcão de uma garça!”
Dessa maneira, solucionei o problema do absurdo nos sonhos, demonstrando que os pensamentos oníricos nunca são absurdos - nunca, pelo menos, nos sonhos das pessoas sadias - e que o trabalho do sonho produz sonhos absurdos e sonhos que contêm elementos absurdos isolados quando se depara com a necessidade de representar alguma crítica, ridicularização ou escárnio que possa estar presente nos pensamentos oníricos.
Minha tarefa seguinte é mostrar que o trabalho do sonho não consiste em nada além de uma combinação dos três fatores que já mencionei - e de um quarto que ainda tenho de mencionar [ver em [1]]; que não executa outra função senão a de traduzir os pensamentos oníricos de acordo com as quatro condições a que está sujeito; e que a questão de a mente atuar nos sonhos com todas as suas faculdades intelectuais ou com apenas parte delasestá mal colocada e desconsidera os fatos. Uma vez, contudo, que existem muitos sonhos em cujo conteúdo se exprimem juízos, fazem-se críticas e se expressam valorizações, em que se sente surpresa ante algum elemento singular do sonho, em que se fazem tentativas de explicação e se entra em argumentações, devo agora passar a enfrentar as objeções decorrentes desse tipo de fatos mediante a apresentação de alguns exemplos escolhidos.
Minha resposta [em síntese] é a seguinte: Tudo o que aparece nos sonhos como atividade aparente da função de julgamento deve ser encarado, não como uma realização intelectual do trabalho do sonho, mas como pertencente ao material dos pensamentos oníricos e deles tendo sido retirada para o conteúdo manifesto do sonho como uma estrutura acabada. Posso até levar mais longe esta asserção. Mesmo os juízos formulados depois de acordar sobre um sonho que foi lembrado e os sentimentos em nós despertados pela reprodução de tal sonho fazem parte, em grande medida, do conteúdo latente do sonho e devem ser incluídos em sua interpretação.

I

Já citei um exemplo notável disto [em [1]]. [1] Uma paciente recusou-se a me contar um sonho porque “não era suficientemente claro”. Ela vira alguém no sonho, mas não sabia se era seu marido ou seu pai. Seguiu-se então um segundo fragmento de sonho em que aparecia uma lata de lixo [Misttügerl], e isso deu origem à seguinte recordação: quando montara residência pela primeira vez, ela um dia comentara em tom de brincadeira, na presença de um jovem parente que estava visitando a casa, que sua tarefa seguinte seria adquirir uma nova lata de lixo. Na manhã do outro dia, chegou-lhe uma dessas latas, mas estava cheia de lírios-do-vale. Esse fragmento do sonho servira para representar uma expressão coloquial [alemã]: “não criado com meu próprio esterco”. Concluída a análise, constatou-se que os pensamentos oníricos estavam relacionados com os efeitos secundários de uma história que a sonhadora ouvira quando jovem, a respeito de como uma moça tivera um bebê e não se sabia com clareza quem erarealmente o pai. Aqui, portanto, a representação onírica transbordara para os pensamentos de vigília: um dos elementos dos pensamentos oníricos encontrou representação num julgamento de vigília formulado sobre o sonho como um todo.

II

Aqui temos um caso semelhante. Um de meus pacientes teve um sonho que lhe pareceu interessante, porque, imediatamente após acordar, ele disse a si mesmo: “Preciso contar isso ao médico”. O sonho foi analisado e produziu as mais claras alusões a um caso amoroso que ele havia iniciado durante o tratamento e sobre o qual decidira não me dizer nada.

III

Eis um terceiro exemplo, de minha própria experiência. Estava indo para o hospital com P. por um bairro em que havia casas e jardins. Ao mesmo tempo, tinha a noção de que já vira esse bairro muitas vezes em sonhos. Não sabia orientar-me muito bem por ali. Ele me indicou uma estrada que levava, dobrando a esquina, a um restaurante (fechado, não um jardim). Lá, perguntei pela Sra. Doni e fui informado de que ela morava num quartinho dos fundos com três filhos. Dirigi-me para lá, mas, antes de chegar, encontrei uma figura indistinta com minhas duas filhinhas; levei-as comigo depois de ter ficado com elas um pouquinho. Uma espécie de recriminação contra minha mulher por havê-las deixado lá.
Quando acordei, tive um sentimento de grande satisfação, cuja razão expliquei a mim mesmo como sendo que eu iria descobrir, a partir dessa análise, o significado do “Já sonhei com isso antes”. De fato, porém, a análise não me ensinou nada sobre isso; o que me revelou foi que a satisfaçãopertencia ao conteúdo latente do sonho e não a qualquer juízo emitido sobre ele. Minha satisfação prendia-se ao fato de meu casamento haver-me trazido filhos. P. era uma pessoa cujo rumo na vida correra por algum tempo paralelo ao meu, que depois me deixara para trás tanto social quanto materialmente, mas cujo casamento não trouxera filhos. Os dois acontecimentos que ocasionaram o sonho servirão, em vez de uma análise completa, para indicar seu sentido. Na véspera, eu havia lido num jornal o anúncio da morte da Sra. Dona A---y (que transformei em “Doni” no sonho), que morrera de parto. Minha mulher me disse que a falecida fora atendida pela mesma parteira que a assistira no nascimento de nossos dois filhos mais novos. O nome ‘’Dona’’ me chamara a atenção porque eu o tinha encontrado pela primeira vez pouco antes, num romance inglês. A segunda ocasião do sonho foi fornecida pela data em que ocorreu. Foi na noite anterior ao aniversário de meu filho mais velho - que parece possuir alguns dotes poéticos.

IV

Experimentei o mesmo sentimento de satisfação ao acordar do sonho absurdo de meu pai haver desempenhado um papel político entre os magiares após sua morte, e a razão que dei a mim mesmo para esse sentimento foi que ele era uma continuação do sentimento que acompanhara a última parte do sonho. [Ver em [1].] Lembrei-me de como ele se parecera com Garibaldi em seu leito de morte, e fiquei contente de que aquilo se tivesse realizado… (Havia uma continuação que eu tinha esquecido). A análise permitiu-me preencher essa lacuna no sonho. Era uma menção a meu segundo filho, a quem eu dera o prenome de uma grande figura histórica [Cromwell] que me atraíra intensamente na juventude, especialmente depois de minha visita à Inglaterra. Durante o ano que antecedeu o nascimento desse filho, eu havia decidido usar esse nome, caso fosse um menino, e com ele saudei o recém-nascido, com um sentimento de extrema satisfação. (É fácil perceber como a megalomania suprimida dos pais se transfere, em seus pensamentos, para os filhos, e parece bastante provável que esta seja uma das maneiras pela qual a supressão desse sentimento, que se faz necessária na vida real, é efetivada.) O direito do menino de aparecer no contexto desse sonho decorreu do fato de que ele acabara de ter a mesma infelicidade - facilmente perdoável tanto numa criança quanto num moribundo - de sujar as roupas de cama. Compare-se, em relação a isso, Stuhlrichter [“juiz-presidente”, literalmente “juiz de cadeira” ou “de fezes”] e o desejo expresso no sonho de se erguer ante os olhos dos filhos grande e imaculado. [Ver adiante em [1].]

V

Passo agora a considerar as expressões de juízo emitidas no próprio sonho, mas não continuadas na vida de vigília ou transpostas para ela. Na busca de exemplos delas, minha tarefa será grandemente auxiliada se eu puder fazer uso de sonhos que já registrei com outros objetivos em vista. O sonho do ataque de Goethe ao Sr. M. [em [1]] parece conter um grande número de atos de juízo. “Tentei esclarecer um pouco os dados cronológicos, que me pareciam improváveis.” Isto tem toda a aparência de ser uma crítica à idéia absurda de que Goethe pudesse ter feito um ataque literário a um jovem de minhas relações. “Pareceu-me uma noção plausível que tivesse dezoito anos.” Também isso soa exatamente como o resultado de um cálculo, embora, é verdade, um cálculo idiota. Por fim, “eu não tinha muita certeza, porém, do ano em que escrevíamos” parece ser um exemplo de incerteza ou dúvida num sonho.
Desse modo, todos esses pareciam ser atos de julgamento feitos pela primeira vez no sonho. Mas a análise mostrou que seu enunciado pode ser tomado de outra maneira, à luz da qual eles se tornam indispensáveis para a interpretação do sonho, enquanto, ao mesmo tempo, todo e qualquer vestígio de absurdo é eliminado. A frase “Tentei esclarecer um pouco os dados cronológicos” colocou-me no lugar de meu amigo [Fliess], que estava realmente procurando lançar luz sobre os dados cronológicos da vida. Isso retira da frase sua importância como um juízo que protestasse contra o absurdo das frases anteriores. A oração intercalada, “que me pareceram improváveis”, era da mesma categoria que a subseqüente, ‘’Pareceu-me uma noção plausível”. Eu tinha usado quase exatamente essas palavras com a senhora que me contara o caso clínico de seu irmão: “Parece-me uma noção improvável que seus gritos de ‘Natureza! Natureza!’ tenham tido algo que ver com Goethe; parece-me muito mais plausível que essas palavras tenham tido o sentido sexual com que a senhora está familiarizada”. É verdade que aqui se emitiu um julgamento - não no sonho, porém, mas na realidade, e numa ocasião que foi relembrada e explorada pelos pensamentos oníricos. O conteúdo do sonho apropriou-se desse juízo exatamente como de qualquer outro fragmento dos pensamentos oníricos. O número “18”, ao qual o juízo do sonho estava absurdamente ligado, preserva um vestígio do contexto real do qual o juízo foi extraído. Por fim, “Eu não tinha muita certeza, porém, do ano em que escrevíamos” destinou-se simplesmente a levar mais longe minha identificação com o paciente paralítico, em cujo exame, feito por mim, esse aspecto fora realmente levantado.

A solução do que constitui na aparência atos de julgamento nos sonhos pode servir para nos lembrar as regras estabelecidas no início deste livro [em [1]] para se executar o trabalho de interpretação: a saber, que devemos desprezar a aparente coerência entre os componentes do sonho como uma ilusão não essencial, e que devemos rastrear a origem de cada um de seus elementos independentemente. O sonho é um conglomerado que, para fins de investigação, deve ser novamente decomposto em fragmentos. [Ver em [1].] Por outro lado, contudo, é preciso observar que está em ação nos sonhos uma força psíquica que cria essa concatenação aparente, ou seja, que submete o material produzido pelo trabalho do sonho a uma “elaboração secundária”. Isso nos coloca frente a frente com as manifestações de uma força cuja importância avaliaremos posteriormente [em [1]], como o quarto dos fatores que participam da construção dos sonhos.

VI

Aqui temos mais um exemplo de um processo de julgamento operando num sonho que já registrei. No sonho absurdo da comunicação proveniente da câmara municipal [em [1]], perguntei: “Você se casou logo depois disso? Calculei que, naturalmente, eu nascera em 1856, que parecia ser o ano imediatamente seguinte ao ano em questão”. Tudo isso estava revestido da forma de um conjunto de conclusões lógicas. Meu pai se casara em 1851, imediatamente após seu ataque; eu, é claro, era o mais velho da família e nascera em 1856; Q.E.D. Como sabemos, essa falsa conclusão foi tirada a bem da realização de desejo, e o pensamento onírico predominante dizia: “Quatro ou cinco anos não são nada; isso não conta”. Todos os passos desse conjunto de conclusões lógicas, por mais semelhantes que sejam em seu conteúdo e forma, poderiam ser explicados de outra maneira como determinados pelos pensamentos oníricos. Era o paciente, cuja longa análise meu colega criticara, que decidira casar-se imediatamente após o término do tratamento. A forma de minha conversa com meu pai no sonho se parecia com um interrogatório ou um exame e relembrou-me também um professor da Universidade que costumava anotar pormenores exaustivos dos estudantes que se inscreviam para suas aulas: “Data de nascimento?” - “1856” - “Patre?” Em resposta a isto, dava-se o primeiro nome do pai com uma terminação latina e nós, os estudantes, presumíamos que o Hofrat tirava do prenome do pai conclusões que nem sempre podiam ser tiradas do nome do próprio aluno. Assim, tirar uma conclusão no sonho não passava de umarepetição do tirar conclusões que aparecia como um fragmento do material dos pensamentos oníricos. Algo de novo emerge disto. Quando aparece uma conclusão no conteúdo do sonho, não há dúvida de que ela decorre dos pensamentos oníricos, mas pode estar presente nestes como um fragmento de material relembrado ou pode reunir uma série de pensamentos oníricos numa cadeia lógica. De qualquer modo, porém, uma conclusão no sonho representa uma conclusão nos pensamentos oníricos.
Neste ponto, podemos reiniciar nossa análise do sonho. O interrogatório do professor levou a uma lembrança do registro dos Estudantes Universitários (que, no meu tempo, era redigido em latim). Levou ainda a reflexões sobre o curso de meus estudos acadêmicos. Também os cinco anos prescritos para os estudos médicos foram muito pouco para mim. Prossegui em meu trabalho, imperturbável, por vários anos mais e, em meu círculo de relações, era encarado como malandro e duvidavam que algum dia eu o concluiria. Então me decidi rapidamente a fazer meus exames e passei a despeito do atraso. Aqui estava um novo reforço dos pensamentos oníricos com que eu confrontava meus críticos desafiadoramente: “Ainda que vocês não o acreditem, por eu não me haver apressado, eu vou conseguir, vou levar meus estudos médicos a uma conclusão. As coisas já aconteceram assim muitas vezes”.
Esse mesmo sonho, em seu trecho inicial, continha algumas frases às quais dificilmente se poderia recusar o nome de argumentação. Essa argumentação nem ao menos era absurda e bem poderia ter-me ocorrido no pensamento de vigília: Achei engraçada, no sonho, a comunicação da câmara municipal, uma vez que, em primeiro lugar, eu ainda não viera ao mundo em 1851 e, em segundo, meu pai, com quem isso poderia estar relacionado, já estava morto. Ambas essas afirmações eram não apenas corretas em si mesmas, mas concordavam precisamente com os argumentos reais que eu apresentaria se realmente recebesse uma comunicação desse tipo. Minha análise anterior do sonho mostrou que ele brotara de pensamentos oníricos profundamente amargos e derrisórios (ver em [1]). Se pudermos também presumir que havia fortes razões para a atividade da censura, compreenderemos que o trabalho do sonho tinha todos os motivos para produzir uma refutação perfeitamente válidade uma sugestão absurda, seguindo o modelo contido nos pensamentos oníricos. A análise mostrou, no entanto, que o trabalho do sonho não tivera liberdade de ação para estabelecer esse paralelo, mas fora obrigado, para esse fim, a utilizar material oriundo dos pensamentos oníricos. Era exatamente como se houvesse uma equação algébrica, contendo (além de algarismos) sinais de soma e de subtração, índices e radicais, e como se alguém tivesse de copiá-la sem entendê-la, passando tanto os símbolos operacionais quanto os algarismos para sua cópia, mas misturando-os todos. Os dois argumentos [no conteúdo do sonho] puderam ter sua origem traçada até o seguinte material: era-me aflitivo pensar que algumas das premissas subjacentes e minhas explicações psicológicas das psiconeuroses estavam fadadas a despertar ceticismo e riso quando encontradas pela primeira vez. Por exemplo, eu fora levado a supor que as impressões do segundo ano de vida e, por vezes, até mesmo o primeiro, deixavam um traço duradouro na vida emocional daqueles que mais tarde iriam adoecer, e que essas impressões - embora distorcidas e exageradas em muitos aspectos pela memória - poderiam constituir o primeiro e mais profundo fundamento dos sintomas histéricos. Os pacientes, a quem eu explicava isso em algum momento apropriado, costumavam parodiar esse conhecimento recém-adquirido, declarando que estavam prontos a buscar lembranças datadas de uma época em que ainda não tinham nascido. Era perfeitamente esperável que minha descoberta do inesperado papel desempenhado pelo pai nos primeiros impulsos sexuais das pacientes deparasse com uma recepção semelhante (ver a discussão em [1]). Não obstante, eu tinha a sólida convicção de que essas duas hipóteses eram verdadeiras. À guisa de confirmação, lembrei-me de alguns exemplos em que a morte do pai ocorrera quando a criança ainda estava em idade muito tenra, e nos quais certos acontecimentos posteriores, doutra maneira inexplicáveis, provavam que a criança, ainda assim, havia preservado, inconscientemente, lembranças da figura que tão cedo desaparecera de sua vida. Eu estava ciente de que essas minhas duas asserções repousavam na extração de conclusões cuja validade seria contestada. Assim, foi uma vitória da realização de desejo que precisamente o material das conclusões que eu temia serem contestadas fosse empregado pelo trabalho do sonho para tirar conclusões que era impossível contestar.

VII

No início de um sonho em que mal toquei até agora [ver em [1]], havia uma clara expressão de assombro ante o tema que havia emergido. O velho Brücke devia ter-me atribuído alguma tarefa; ESTRANHAMENTE, relacionava-se com a dissecação da parte inferior de meu próprio corpo, minha pélvis e minhas pernas, que eu via diante de mim como se estivesse na sala de dissecação, mas sem notar sua ausência em mim mesmo e também sem nenhum traço de qualquer sentimento de horror. Louise N. estava de pé a meu lado e fazendo o trabalho comigo. A pélvis tinha sido esvicerada e era visível ora em seu aspecto superior, ora no inferior, estando os dois misturados. Podiam-se ver espessas protuberâncias cor de carne (que, no próprio sonho, fizeram-me pensar em hemorróidas). Algo que estava em cima disso e que se assemelhava a papel prateado amassado também teve de ser cuidadosamente retirado. Depois, eu estava novamente de posse de minhas pernas, andando pela cidade. Mas (por estar cansado) apanhei um táxi. Para meu espanto, o táxi entrou pela porta de uma casa que se abriu e o deixou passar por um corredor que dobrava uma esquina no final e, por fim, levava de novo ao ar livre. Finalmente, eu estava excursionando numa paisagem mutável com um guia alpino que carregava meus pertences. Parte do caminho ele me carregou também, por consideração por minhas pernas cansadas. O terreno era pantanoso e andávamos pela beirada; havia pessoas sentadas no chão como peles-vermelhas ou ciganos - entre elas, uma moça. Antes disso, eu estivera avançando sobre o terreno escorregadio com uma constante sensação de surpresa por poder fazê-lo tão bem após a dissecação. Por fim, chegamos a uma casinha de madeira em cuja extremidade havia uma janela aberta. Lá, o guia me colocou no chão e pôs duas tábuas de madeira, que já estavam preparadas sobre o peitoril da janela, de modo a fazer uma ponte sobre o abismo que tinha de ser cruzado a partir da janela. Nesse ponto, fiquei realmente amedrontado por causa de minhas pernas, mas, em vez da esperada travessia, vi dois homens adultos deitados em bancos de madeira que ficavam junto às paredes da cabana e o que pareciam ser duas crianças dormindo ao lado deles. Era como se o que iria possibilitar a travessia não fossem as tábuas, mas as crianças. Acordei sobressaltado.
Quem quer que já tenha feito até mesmo a menor idéia da extensão da condensação nos sonhos facilmente imaginará o número de páginas que seria preenchido por uma análise integral desse sonho. Felizmente, contudo, nopresente contexto, só preciso tomar um ponto dele, que fornece um exemplo de assombro nos sonhos, como exibido pela interpolação “estranhamente”. Fora este o pretexto do sonho: Louise N., a dama que me assistia em meu trabalho no sonho, andara me visitando. “Empreste-me alguma coisa para ler”, dissera. Ofereci-lhe She [Ela], de Rider Haggard. “Um livro estranho, mas repleto de um sentido oculto”, comecei a explicar-lhe; “o eterno feminino, a imortalidade de nossas emoções…” Nesse ponto, ela me interrompeu. “Já o conheço. Não tem nada de sua própria autoria?” - “Não, minhas próprias obras imortais ainda não foram escritas.” - “Bem, e quando é que podemos esperar por essas suas chamadas explicações últimas, que você prometeu que até nós acharíamos legíveis”, perguntou ela, com uma ponta de sarcasmo. Nesse ponto, percebi que alguém mais me estava admoestando por sua boca e silenciei. Refleti sobre a dose de autodisciplina que me estava custando oferecer ao público até mesmo meu livro sobre sonhos - onde eu teria de revelar tanto do meu próprio caráter.

Das Best was du wissen kannst.
Darfst du den Buben doch nicht sagen.

A tarefa que me fora imposta no sonho, de fazer a dissecação de meu próprio corpo, era, portanto, minha auto-análise, que estava ligada a meu fornecimento de uma explicação de meus sonhos. Era apropriado que o velho Brücke entrasse aqui; já nos primeiros anos de meu trabalho científico, ocorreu-me deixar pendente uma descoberta minha, até que uma enérgica repreensão dele me forçou a publicá-la. Os outros pensamentos iniciados por minha conversa com Louise N. eram profundos demais para se tornarem conscientes. Desviaram-se na direção do material que fora evocado em mim pela menção de She, de Rider Haggard. O juízo “estranhamente” remontava a esse livro e a outro, Heart of the World [O Coração do Mundo], do mesmo autor; e numerosos elementos do sonho derivavam-se desses dois romances imaginativos. O terreno pantanoso pelo qual as pessoas tinham de ser carregadas e o abismo que tinham de atravessar por meio de tábuas trazidas por elas foram retirados de She; os peles-vermelhas, a moça e a casa de madeira, de Heart of the World. Em ambos os romances, o guia é uma mulher;ambos versam sobre viagens perigosas, enquanto She descreve uma estrada cheia de riscos e quase nunca trilhada, que leva a uma região ainda não descoberta. A sensação de cansaço em minhas pernas, segundo uma anotação que descobri ter feito sobre o sonho, fora uma sensação real durante o dia. Provavelmente combinava com um estado de ânimo abatido e com uma reflexão dubitativa: “Por quanto tempo minhas pernas me carregarão?” O final da aventura em She é que a guia, em vez de descobrir a imortalidade para si própria e para os outros, perece no misterioso fogo subterrâneo. Um temor desse tipo estava inequivocamente em ação nos pensamentos oníricos. A “casa de madeira” era também, sem dúvida, um ataúde, ou seja, a sepultura. Mas o trabalho do sonho realizou uma obra-prima em sua representação desse mais indesejado de todos os pensamentos, através de uma realização de desejo. É que eu já estivera numa sepultura antes, mas era uma sepultura etrusca desenterrada perto de Orvieto, uma câmara estreita com dois bancos de pedra ao longo das paredes, onde jaziam os esqueletos de dois homens adultos. O interior da casa de madeira no sonho tinha a aparência exata dela, só que a pedra fora substituída por madeira. O sonho parece ter dito: “Se tens de descansar numa sepultura, que seja uma sepultura etrusca”. E, efetuando essa substituição, ele transformou a mais lúgubre das expectativas numa que era altamente desejável. Infelizmente, como em breve saberemos [em [1]], o sonho pode transformar em seu oposto a representação que acompanha um afeto, mas nem sempre o próprio afeto. Por conseguinte, acordei “sobressaltado”, mesmo depois de ter emergido com êxito a idéia de que os filhos talvez possam realizar o que o pai não conseguiu - uma nova alusão ao estranho romance em que a identidade de uma pessoa é preservada através de uma série de gerações por mais de dois mil anos. [1]

VIII

Incluída em outro de meus sonhos houve uma expressão de surpresa ante algo que eu experimentara nele, mas a surpresa foi acompanhada por uma tentativa tão notável, rebuscada e quase brilhante de explicação que, nem que seja apenas por ela, não posso resistir a submeter o sonho inteiroà análise, independentemente de ele possuir dois outros pontos que despertam nosso interesse. Eu estava viajando pela linha ferroviária Südbahn na noite de 18 para 19 de julho, e, enquanto dormia, escutei a chamada: “Hollthurn, dez minutos”. Pensei imediatamente em holotúrias [lesmas-do-mar] - num museu de história natural - que este fora o lugar em que homens valentes haviam lutado em vão contra o poder superior do governante de seu país - sim, a Contra-Reforma na Áustria - era como se fosse um lugar na Estíria ou no Tirol. Vi então indistintamente um pequeno museu em que as relíquias ou pertences desses homens eram preservados. Eu gostaria de sair, mas hesitei em fazê-lo. Havia mulheres com frutas na plataforma. Estavam acocoradas no chão e erguiam seus cestos convidativamente. - Hesitei porque não tinha certeza de que haveria tempo, mas ainda não estávamos em movimento. - De repente, eu estava em outro compartimento, onde os estofamentos e os assentos eram tão estreitos que as costas ficavam diretamente pressionadas contra o fundo do vagão. Fiquei surpreso com isso, mas refleti que PODERIA TER TROCADO DE VAGÃO ENQUANTO ME ACHAVA EM ESTADO DE SONO. Havia diversas pessoas, inclusive um irmão e irmã ingleses; uma fileira de livros era claramente visível sobre uma prateleira na parede. Vi “The Wealth of Nations” [A Riqueza das Nações] e “Matter and Motion” [Matéria e Movimento], de Clerk Maxwell, um volume grosso e encadernado em tecido marrom. O homem perguntou a sua irmã por um livro de Schiller, se ela o havia esquecido. Era como se os livros fossem ora meus, ora deles. Nesse ponto, senti-me inclinado a intervir na conversa num sentido confirmatório ou consubstanciador… Acordei transpirando por todo o corpo, pois todas as janelas estavam fechadas. O trem estava parado em Marburg [na Estíria].
Enquanto estava anotando o sonho, ocorreu-me um novo fragmento dele, que minha memória havia tentado omitir. Disse [em inglês] ao irmão e à irmã, referindo-me a determinada obra: “It is from…”, mas me corrigi: “It is by…” “Sim”, comentou o homem com a irmã, “ele disse isso corretamente.’’

O sonho começava pelo nome da estação, que devia sem dúvida ter-me acordado parcialmente. Substituí seu nome, Marburg, por Hollturn. O fato de eu ter ouvido “Marburg” quando anunciado pela primeira vez, ou talvez depois, foi comprovado pela menção a Schiller no sonho, pois ele nascera em Marburg, embora não na Marburg da Estíria. Embora viajasse na primeira classe, eu estava nessa ocasião fazendo minha viagem em condições muito desconfortáveis. O trem estava inteiramente lotado e, em meu compartimento, eu encontrara uma dama e um cavalheiro que pareciam muito aristocráticos e não tiveram a civilidade ou não acharam que valesse a pena disfarçar sua contrariedade por minha intrusão. Minha saudação polida não teve resposta. Embora o homem e sua mulher estivessem sentados lado a lado (de costas para a locomotiva), a mulher, não obstante, apressou-se, bem diante dos meus olhos, a ocupar o assento da janela em frente a ela, colocando nele um guarda-chuva. A porta foi imediatamente fechada e algumas observações mordazes foram trocadas entre eles sobre a questão da abertura das janelas. Provavelmente, perceberam de imediato que eu ansiava por ar fresco. Era uma noite quente e a atmosfera no compartimento completamente fechado logo se tornou sufocante. Minhas experiências de viagem ensinaram-me que esse tipo de conduta desumana e despótica é característica de pessoas que estão viajando com passagens grátis ou meias-passagens. Quando veio o condutor e lhe mostrei a passagem que havia comprado por um alto preço, saíram da boca da dama, em tom altaneiro e quase ameaçador, as palavras: “Meu marido tem passe livre”. Ela era uma figura imponente de traços insatisfeitos, cuja idade não estava longe da fase da decadência da beleza feminina; o homem não proferiu uma só palavra, mas permaneceu sentado e imóvel. Tentei dormir. Em meu sonho, vinguei-me terrivelmente de meus desagradáveis companheiros; ninguém poderia suspeitar dos insultos e humilhações que se ocultavam por trás dos fragmentos esparsos da primeira metade do sonho. Uma vez satisfeita essa necessidade, um segundo desejo se fez sentir - mudar de compartimento. A cena se modifica com tanta freqüência nos sonhos, e sem que a menor objeção seja levantada, que não seria nada surpreendente que eu tivesse prontamente substituído meus companheiros de viagem por outros mais agradáveis, extraídos de minha memória. Mas ali estava um caso em que algo se ressentiu da mudança de cena e achou necessário explicá-la. Como e que, subitamente, fui ter noutro compartimento? Não tinha lembrança de ter-me mudado. Só podia haver uma explicação: devo ter deixado o vagão enquanto me achava em estado de sono - um acontecimento raro, mas do qual se encontram exemplos na experiência de um neuropatologista. Sabemos de pessoas que empreenderam viagens de trem num estado crepuscular, sem trair sua condição anormal por sinal algum, até que, em algum ponto da jornada, de repente voltaram a si completamente e ficaram atônitas diante da lacuna em sua memória. No próprio sonho, por conseguinte, eu me estava declarando um desses casos de “automatisme ambulatoire”.
A análise tornou possível encontrar outra solução. A tentativa de explicação, que pareceu tão excepcional quando fui obrigado a atribuí-la ao trabalho do sonho, não fora uma tentativa original de minha própria autoria, mas copiada da neurose de um de meus pacientes. Já em outro ponto [em [1]] falei sobre um homem extremamente culto e, na vida real, de coração bondoso, que, pouco depois da morte dos pais, começou a censurar-se por ter inclinações homicidas, e a seguir caiu vítima das medidas de cautela que foi obrigado a adotar como salvaguarda. Era um caso de obsessões graves, acompanhadas de completo discernimento. A princípio, andar pelas ruas tornou-se um fardo para ele, pela compulsão a certificar-se de por onde desaparecera toda e qualquer pessoa com quem tivesse deparado; se alguém de repente escapava a seu olhar vigilante, ficavam-lhe a sensação aflitiva e a idéia de que talvez o tivesse eliminado. O que estava por trás disso era, entre outras coisas, uma fantasia de “Caim” - porque “todos os homens são irmãos”. Devido à impossibilidade de realizar essa tarefa, ele desistiu das caminhadas e passava a vida encarcerado entre quatro paredes. Mas as notícias de assassinatos cometidos lá fora eram constantemente levadas a seu quarto pelos jornais, e sua consciência lhe sugeria, sob a forma de uma dúvida, que talvez ele fosse o assassino procurado. A certeza de realmente não ter abandonado sua casa durante semanas protegeu-o dessas acusações por algum tempo, até que um dia veio-lhe à cabeça a possibilidade de que talvez tivesse deixado a casa enquanto se achava em estado inconsciente e, desse modo, podido cometer o assassinato sem saber nada arespeito. Dessa ocasião em diante, trancou a porta da frente da casa e entregou a chave à sua velha governanta, com instruções estritas para nunca deixá-la cair em suas mãos, mesmo que ele a pedisse.
Essa, portanto, foi a origem de minha tentativa de explicação no sentido de ter trocado de vagões enquanto me achava em estado inconsciente; fora transposta para o sonho, prontinha, do material dos pensamentos oníricos, e estava obviamente destinada, no sonho, a servir ao propósito de me identificar com a figura desse paciente. Minha lembrança dele fora despertada por uma associação fácil. Minha última viagem noturna, algumas semanas antes, fora feita na companhia desse mesmo homem. Ele estava curado e viajava comigo para as províncias e para visitar parentes seus, que me haviam mandado chamar. Tínhamos um compartimento para nós; deixamos todas as janelas abertas a noite inteira e passamos um tempo muito agradável enquanto permaneci acordado. Eu sabia que a raiz de sua doença tinham sido os impulsos hostis contra seu pai, que datavam da infância e envolviam uma situação sexual. Assim, na medida em que me identificava com ele, eu estava procurando confessar alguma coisa análoga. E, de fato, a segunda cena do sonho terminou numa fantasia um tanto extravagante de que meus dois idosos companheiros de viagem me haviam tratado de maneira tão insociável porque minha chegada impedira o intercâmbio afetuoso que haviam planejado para aquela noite. Essa fantasia remontava, contudo, a uma cena da primeira infância em que o filho, provavelmente movido pela curiosidade sexual, irrompera no dormitório dos pais e dele fora expulso pelas ordens do pai.
É desnecessário, penso eu, acumular outros exemplos. Simplesmente serviriam para confirmar o que depreendemos dos que já citei - que um ato de julgamento num sonho é apenas uma repetição de algum protótipo nos pensamentos oníricos. Em regra geral, a repetição é mal aplicada e interpolada num contexto inapropriado, mas, ocasionalmente, como em nossos últimos exemplos, é empregada com tal habilidade que, de início, pode dar a impressão de uma atividade intelectual independente no sonho. A partir deste ponto, podemos voltar nossa atenção para a atividade psíquica que, embora não pareça acompanhar invariavelmente a construção dos sonhos, ainda assim, sempre que o faz, empenha-se em fundir os elementos de um sonho que sejam de origem díspar num todo que faça sentido e esteja isento de contradições. Antes de abordarmos esse assunto, porém, temos a premente necessidade de considerar as expressões de afeto que ocorrem nos sonhos e compará-las com os afetos que a análise revela nos pensamentos oníricos.

(H) OS AFETOS NOS SONHOS

Uma observação aguda de Stricker [1879, 51] despertou nossa atenção para o fato de que a expressão do afeto nos sonhos não pode ser tratada da mesma forma depreciativa com que, depois de acordar, estamos acostumados a descartar seu conteúdo. “Se temo ladrões num sonho, os ladrões, é certo, são imaginários - mas o temor é real.” [Ver em [1].] E isso se aplica igualmente quando me sinto alegre num sonho. Nosso sentimento nos diz que um afeto experimentado num sonho não é de modo algum inferior a outro de igual intensidade sentido na vida de vigília; e os sonhos insistem com maior energia em seu direito de serem incluídos entre nossas experiências anímicas reais no tocante a sua parte afetiva do que em relação a seu conteúdo de representações. Em nosso estado de vigília, contudo, não podemos de fato incluí-los dessa maneira, pois não podemos fazer nenhuma avaliação psíquica de um afeto a menos que ele esteja vinculado a algum material de representações. Quando o afeto e a idéia são incompatíveis em seu caráter e intensidade, nosso juízo de vigília fica desorientado.
Tem sido sempre motivo de surpresa que, nos sonhos, o conteúdo de representações não se faça acompanhar pelas conseqüências afetivas que consideraríamos inevitáveis no pensamento de vigília. Strümpell [1877, 27 e segs.] declarou que, nos sonhos, as representações ficam despidas de seus valores psíquicos [ver em [1]]. Mas não faltam, nos sonhos, exemplos de natureza contrária, onde uma intensa expressão de afeto aparece ligada a um tema que não parece dar margem a qualquer expressão dessa ordem. Num sonho, posso estar numa situação horrível, perigosa e repulsiva sem sentir nenhum medo ou repulsa, ao passo que noutra ocasião, pelo contrário, posso ficar apavorado ante algo inofensivo e encantado com alguma coisa pueril.
Esse enigma específico da vida onírica desaparece, talvez mais repentina e completamente do que qualquer outro, tão logo passamos do conteúdo manifesto para o conteúdo latente do sonho. Já não precisamos incomodar-nos com o enigma, visto que ele não mais existe. A análise nos mostra que o material de representações passou por deslocamentos e substituições, ao passo que os afetos permaneceram inalterados. Não é de admirar que o material de representações que foi modificado pela distorção onírica, já não seja compatível com o afeto, que é retido sem modificação; tampouco resta qualquer coisa que cause surpresa depois que a análise recoloca o material certo em sua posição anterior.
No caso de um complexo psíquico que tenha ficado sob a influência da censura imposta pela resistência, os afetos são o componente menos influenciado e o único que nos pode dar um indício de como preencher os pensamentos que faltam. Isso é observado ainda mais claramente nas psiconeuroses do que nos sonhos. Seus afetos são sempre apropriados, ao menos em sua qualidade, embora devamos descontar um aumento de sua intensidade devido a deslocamentos da atenção neurótica. Quando um histérico fica surpreso por ter-se assustado com algo banal ou quando um homem que sofre de obsessões fica surpreso ante as auto-recriminações tão aflitivas que decorrem de um nada, ambos se equivocam, pois consideram o conteúdo de representações - a banalidade ou o nada - como sendo o essencial; e travam uma luta inglória, por tomarem esse conteúdo de representações como o ponto de partida de sua atividade de pensamento. A psicanálise pode colocá-los na trilha certa ao reconhecer o afeto como sendo, pelo contrário, justificado, e ao procurar a representação que corresponde a ele, mas que foi recalcada e trocada por um substituto. Uma premissa necessária a tudo isso é que a descarga de afeto e o conteúdo de representações não constituem uma unidade orgânica indissolúvel como a que estamos habituados a atribuir-lhes, mas que essas duas entidades separadas podem estar meramente soldadas e, desse modo, podem ser desligadas uma da outra pela análise. A interpretação dos sonhos mostra que é esse efetivamente o caso.

Começarei por apresentar um exemplo em que a análise explicou a aparente ausência de afeto num caso em que o conteúdo de representações teria exigido sua liberação.

I

Ela viu três leões num deserto, um dos quais estava rindo; mas não sentiu medo deles. Depois, contudo, deve ter fugido deles, porque estava tentando subir numa árvore; mas descobriu que sua prima, que era professora de francês, já estava lá em cima, etc.
A análise trouxe à tona o seguinte material. A causa precipitante indiferente do sonho foi uma frase de sua composição de inglês: “A juba é o adorno do leão”. Seu pai usava uma barba que lhe emoldurava o rosto como uma juba. Sua professora de inglês chamava-se Srta. Lyons. Um conhecido lhe enviara as baladas de Loewe [a palavra alemã para “leão”]. Esses, portanto, eram os três leões; por que deveria ela temê-los? Ela lera uma história em que um negro, que havia incitado seus companheiros à revolta, era caçado com cães e subia numa árvore para se salvar. A sonhadora passou então, com extremo bom humor, a apresentar diversas lembranças fragmentadas, tais como o conselho de como apanhar leões extraído do Fliegend Blätter: “Pegue um deserto e passe-o por uma peneira, e o que sobrar serão os leões.’’ E também a anedota muito divertida, mas não muito conveniente, do oficial a quem perguntaram por que não se esforçava mais por cair nas boas graças do chefe de seu departamento, e que respondeu que tentara insinuar-se, mas seu superior já estava em cima. Todo o material tornou-se inteligível quando se descobriu que a dama recebera, no dia do sonho, a visita do superior de seu marido. Ele fora muito cortês com ela e lhe beijara a mão, e ela não sentira o mínimo receio dele, embora fosse um “grande figurão” [em alemão, “grosses Tier” = “grande animal”] e desempenhasse o papel de um “leão da sociedade” na capital do país de onde ela provinha. Assim, esse leão era como o de Sonho de uma Noite de Verão, que ocultava a figura de Snug, o marceneiro; e o mesmo se aplica a todos os leões do sonho, que não são temidos pela sonhadora.

II

Como meu segundo exemplo, posso citar o sonho da jovem que viu o filhinho de sua irmã morto num caixão [em [1] e [2]], mas que,posso agora acrescentar, não sentiu dor nem pesar. Sabemos pela análise por que isso se deu. O sonho simplesmente disfarçava o desejo dela de rever o homem por quem estava apaixonada, e seu afeto tinha de estar de acordo com o desejo, e não com seu disfarce. Dessa maneira, não havia razão para o pesar.
Em alguns sonhos, o afeto pelo menos permanece em contato com o material de representações que substituiu aquele a que o afeto se ligava originalmente. Noutros, a dissolução do complexo foi mais longe. O afeto surge totalmente desligado da idéia a que corresponde e é introduzido nalgum outro ponto do sonho, onde se ajusta à nova disposição dos elementos oníricos. A situação é então similar à que encontramos no caso dos atos de julgamento nos sonhos [em [1]] Quando se extrai uma conclusão importante nos pensamentos oníricos, também o sonho contém uma; mas a conclusão no sonho pode ser deslocada para um material inteiramente diferente. Não raro, esse deslocamento segue o princípio da antítese.
Esta última possibilidade é exemplificada no sonho seguinte, que submeti a uma análise extremamente exaustiva.

III

Um castelo à beira-mar; depois, já não ficava imediatamente junto ao mar, mas num estreito canal que conduzia ao mar. O Governador era um Sr. P. Eu estava parado com ele num grande salão de recepção - com três janelas em frente às quais se erguiam cercas de rosas com a aparência de ameias numa fortaleza. Eu estava ligado à guarnição como uma espécie de oficial de marinha voluntário. Temíamos a chegada de vasos de guerra inimigos, pois estávamos em guerra. O Sr. P. tencionava partir e me deu instruções sobre o que deveria ser feito se acontecesse o que temíamos. Sua mulher inválida estava com os filhos no castelo ameaçado. Caso o bombardeio começasse, o grande salão deveria ser evacuado. Ele respirou com dificuldade e se virou para sair; eu o detive e lhe perguntei como iria comunicar-me com ele em caso de necessidade. Ele acrescentou algo em resposta, mas, imediatamente, caiu morto. Sem dúvida eu lhe impusera um esforço desnecessário com minhas perguntas. Após sua morte, que não me causou maior impressão, fiquei pensando se sua viúva continuaria no castelo, se eu deveria comunicar a morte dele ao Alto Comando e se deveria assumir o comando do castelo, como o seguinte na ordem hierárquica. Estava parado à janela, observando osnavios que passavam. Eram navios mercantes que cruzavam rapidamente as águas escuras, alguns deles com diversas chaminés e outros com conveses abaulados (exatamente como os prédios da estação no sonho introdutório - não relatado aqui). Então, meu irmão estava de pé a meu lado e ambos olhávamos da janela para o canal. À visão de um navio, ficamos assustados e exclamamos: “Aí vem o navio de guerra!” Mas constatou-se que eram apenas os mesmos navios que eu já conhecia, retornando. Surgiu então um navio pequeno, cortado ao meio de maneira cômica. Em seu convés, viam-se alguns objetos curiosos em forma de xícara ou de caixa. Exclamamos a uma só voz: “É o navio do desjejum!”
Os movimentos rápidos dos navios, o azul profundo e escuro da água e a fumaça castanha das chaminés - tudo se combinava para criar uma impressão tensa e sinistra.
Os locais do sonho resultaram de uma junção de diversas viagens minhas ao Adriático (a Miramare, Duino, Veneza e Aquiléia). Uma curta mas agradável viagem de Páscoa que eu fizera a Aquiléia com meu irmão, algumas semanas antes do sonho, ainda estava viva em minha memória. O sonho também continha alusões à guerra naval entre os Estados Unidos e a Espanha e às inquietações a que ela dera margem quanto ao destino de meus parentes na América. Em dois pontos do sonho, havia afetos em questão. Em determinado ponto, um afeto que seria previsível estava ausente: chamara-se expressamente a atenção para o fato de que a morte do Governador não me causara nenhuma impressão. Noutro ponto, quando pensei ver o vaso de guerra, fiquei assustado e senti todas as sensações de medo enquanto dormia. Neste sonho bem construído, os afetos foram distribuídos de tal maneira que se evitou qualquer contradição marcante. Não havia razão para que eu ficasse assustado com a morte do Governador e era bastante razoável que, como Comandante do Castelo, sentisse medo à vista da belonave. A análise mostrou, porém, que o Sr. P. era apenas um substituto para mim mesmo. (No sonho, eu era o substituto dele.) Era eu o Governador que morria subitamente. Os pensamentos oníricos versavam sobre o futuro de minha família após minha morte prematura. Era este o único pensamento aflitivo entre os pensamentos oníricos, e deve ter sido dele que o medo foi desligado e vinculado, no sonho, à visão do navio de guerra.Por outro lado, a análise revelou que a região dos pensamentos oníricos de onde foi retirado o vaso de guerra estava repleta das mais alegres recordações. Fora um ano antes, em Veneza, e num dia magicamente belo, estávamos à janela de nosso quarto em frente a Riva degli Schiavoni, olhando para a lagoa azul onde, naquele dia, havia mais movimento do que de hábito. Esperava-se por navios ingleses que teriam uma cerimônia de recepção. De repente, minha mulher gritou, alegre como uma criança: “Aí vem o navio de guerra inglês!” No sonho, fiquei assustado com essas mesmas palavras. (Vemos mais uma vez que os ditos no sonho decorrem de ditos na vida real [Ver em [1]]; mostrarei em breve que o elemento “inglês” na exclamação de minha mulher tampouco escapou ao trabalho do sonho.) Aqui, portanto, no processo de transformar os pensamentos oníricos no conteúdo manifesto do sonho, transformei a alegria em medo, e basta-me apenas sugerir que essa transformação, ela própria, estava dando expressão a uma parte do conteúdo onírico latente. Este exemplo prova, contudo, que o trabalho do sonho é livre para desligar um afeto de suas conexões nos pensamentos oníricos e introduzi-lo em qualquer ponto que escolher no sonho manifesto.
Aproveito esta oportunidade para fazer uma análise algo detalhada do “navio do desjejum”, cujo aparecimento no sonho deu uma conclusão tão absurda a uma situação que, até ali, mantivera-se num nível racional. Quando, posteriormente, reparei com mais exatidão nesse objeto onírico, ocorreu-me que ele era preto e que, devido ao fato de estar cortado em sua parte mais larga, no meio, tinha grande semelhança, nessa extremidade, com uma classe de objetos que haviam despertado nosso interesse nos museus das cidades etruscas. Tratava-se de bandejas retangulares de cerâmica preta, com duas alças, sobre as quais havia coisas parecidas com xícaras de chá ou café, que não diferiam muito de um de nossos modernos aparelhos de café. Em resposta a nossas indagações, soubemos que aquilo era o “toilette” (conjunto de toalete) de uma dama etrusca, com recipientes para cosméticos e pó-de-arroz, e havíamos comentado, por brincadeira, que seria uma boa idéia levar um deles conosco para a dona da casa. O objeto do sonho, por conseguinte, significava uma “toilette” preta, isto é, um traje de luto, e fazia referência direta a uma morte. A outra extremidade do objeto onírico fez-me lembrar dos barcos fúnebres em que, nos tempos primitivos, os cadáveres eramcolocados e entregues ao mar como sepultura. Isso levou ao ponto que explicava por que os barcos retornavam no sonho:

Still, auf gerettetem Boot, treibt in den Hafen der Greis.

Era o retorno após um naufrágio [“Schiffbruch”, literalmente, “quebra do navio”] - o navio do desjejum estava quebrado ao meio. Mas qual seria a origem do nome do navio “do desjejum”? Era aqui que entrava a palavra ‘’inglês’’, que sobrara dos navios de guerra. A palavra inglesa ‘’breakfast’’. [‘’desjejum’’] significa ‘’quebra do jejum’’. A “quebra” relacionava-se, mais uma vez, com o naufrágio [“quebra do navio”], e o jejum estava ligado ao traje ou toilette preto.
Mas apenas o nome navio do desjejum é que foi uma nova construção do sonho. A coisa existia e me fizera lembrar de uma das mais agradáveis partes de minha última viagem. Desconfiando da comida que seria oferecida em Aquiléia, tínhamos levado provisões conosco de Gorizia e comprado uma garrafa de excelente vinho ístrio em Aquiléia. E, enquanto o pequeno vapor singrava lentamente pelo “Canale delle Mee”, atravessando a lagoa deserta até Grado, nós, que éramos os únicos passageiros, comemos nosso desjejum no convés em excelente estado de espírito, e raramente houve um que nos soubesse melhor. Esse, portanto, era o “navio do desjejum”, e foi precisamente por trás dessa lembrança da mais festiva joie de vivre que o sonho ocultou os mais sombrios pensamentos sobre um futuro desconhecido e sinistro. [1]
O desligamento entre os fatos e o material de representações que os gerou é a coisa mais notável que lhes ocorre durante a formação dos sonhos; mas não é a única nem a mais essencial alteração por eles sofrida no percurso dos pensamentos oníricos para o sonho manifesto. Se compararmos os afetos dos pensamentos oníricos com os do sonho, uma coisa logo ficará clara. Sempre que há um afeto no sonho, ele também é encontrado nos pensamentos oníricos. Mas o inverso não é verdadeiro. O sonho é, em geral, mais pobre de afetos que o material psíquico de cuja manipulação ele proveio. Quando reconstruo os pensamentos oníricos, habitualmente encontro neles os maisintensos impulsos psíquicos esforçando-se por se fazerem sentir e lutando, em geral, contra outros que lhes são nitidamente opostos. Quando, em seguida, torno a me voltar para o sonho, não é raro ele parecer descolorido e sem qualquer tom afetivo mais intenso. O trabalho do sonho reduziu ao nível do indiferente não apenas o conteúdo, mas, amiúde, também o tom afetivo de meus pensamentos. Poder-se-ia dizer que o trabalho do sonho acarreta uma supressão dos afetos. Tomemos, por exemplo, o sonho da monografia de botânica [em [1]]. Os pensamentos a ele correspondentes consistiam num apelo apaixonadamente agitado em prol de minha liberdade de agir como escolhesse e de dirigir minha vida como a mim, e apenas a mim, parecesse certo. O sonho deles surgido tem um toque de indiferença: “Eu escrevera uma monografia; ela estava diante de mim; continha pranchas coloridas; plantas secas acompanhavam cada exemplar”. Isso faz lembrar a paz que desce sobre um campo de batalha recoberto de cadáveres; não resta nenhum traço da luta que nele se travou.
As coisas podem ser diferentes; vívidas manifestações de afeto podem introduzir-se no próprio sonho. Por ora, no entanto, vou deter-me no fato incontestável de que um grande número de sonhos parece ser indiferente, ao passo que nunca é possível penetrar nos pensamentos oníricos sem ficar profundamente emocionado.
Não se pode fornecer aqui nenhuma explicação teórica completa dessa supressão do afeto no decorrer do trabalho do sonho. Ela precisaria ser precedida de uma investigação extremamente minuciosa da teoria dos afetos e do mecanismo do recalcamento. [Ver em [1]]. Permitir-me-ei apenas uma referência a dois pontos. Sou compelido - por outras razões - a retratar a liberação dos afetos como um processo centrífugo dirigido para o interior do corpo e análogo aos processos de inervação motora e secretória. Ora, assim como, no estado de sono, o envio de impulsos motores em direção ao mundo externo parece ficar suspenso, também é possível que a convocação centrífuga de afetos pelo pensamento inconsciente se torne mais difícil durante o sono. Nesse caso, os impulsos afetivos sobrevindos no decurso dos pensamentos oníricos seriam, por sua própria natureza, impulsos fracos, e conseqüentemente, os que penetrassem no sonho seriam não menos fracos.Segundo este ponto de vista, portanto, a “supressão do afeto” não seria, de maneira alguma, conseqüência do trabalho do sonho, mas resultaria do estado de sono. Isso pode ser verdade, mas não a verdade inteira. Precisamos também ter em mente que qualquer sonho relativamente complexo mostra ser uma solução de compromisso produzida por um conflito entre forças psíquicas. Por um lado, os pensamentos que formam o desejo são obrigados a lutar contra a oposição de uma instância censora e, por outro, vimos com freqüência que, no próprio pensamento inconsciente, toda cadeia de idéias está atrelada a seu oposto contraditório. Uma vez que todas essas cadeias de idéias são passíveis de afeto, dificilmente estaremos errados, no todo, se encararmos a supressão do afeto como uma conseqüência da inibição que esses contrários exercem uns sobre os outros e que a censura exerce sobre as pulsões por ela suprimidas. A inibição do afeto, por conseguinte, deve ser considerada como a segunda conseqüência da censura dos sonhos, tal como a distorção onírica é sua primeira conseqüência.
Darei aqui como exemplo um sonho em que o colorido afetivo indiferente do conteúdo pode ser explicado pela antítese entre os pensamentos oníricos. Trata-se de um sonho curto, que encherá de repulsa todos os leitores.

IV

Uma colina, sobre a qual havia algo como uma privada ao ar livre: um assento muito comprido com um grande buraco em sua extremidade. A borda traseira estava densamente coberta de pequenos montes de fezes de todos os tamanhos e graus de frescura. Havia arbustos por trás do assento. Urinei no assento; um longo filete de urina lavou e limpou tudo; os montes de fezes desprenderam-se facilmente e caíram na abertura. Era como se, no final, ainda restassem alguns.
Por que não senti repugnância durante esse sonho?
Porque, como a análise mostrou, os mais prazerosos e gratificantes pensamentos contribuíram para promovê-lo. O que me ocorreu de imediato na análise foram as estrebarias de Augias, limpas por Hércules. Esse Hércules era eu. A colina e os arbustos vinham de Aussee, onde estavam meus filhos na ocasião. Eu havia descoberto a etiologia infantil das neuroses e, assim, salvara meus próprios filhos da doença. O assento (exceto, naturalmente, pelo buraco) era uma cópia exata de um móvel que fora presenteado por uma paciente agradecida. Desse modo, lembrava-me do quanto meus pacientes me respeitavam. De fato, até mesmo o museu de excremento humano podiareceber uma interpretação capaz de encher-me o coração de júbilo. Por mais que me pudesse repugnar na realidade, ele era, no sonho, uma reminiscência das belas terras da Itália, onde, como todos sabemos, os banheiros das cidades pequenas são equipados exatamente dessa maneira. O jorro de urina que limpou tudo era um sinal inequívoco de grandeza. Era assim que Gulliver havia extinguido o grande incêndio de Lilliput - embora, incidentalmente, isso lhe tivesse granjeado o desfavor da minúscula rainha. Mas também Gargantua, o super-homem de Rabelais, vingara-se dos parisienses do mesmo modo, sentando-se escarranchado sobre a Notre Dame e dirigindo seu jato de urina para a cidade. Ainda na noite anterior, antes de dormir, eu estivera folheando as ilustrações de Garnier para Rabelais. E, estranhamente, ali estava outra prova de que era eu o super-homem. A plataforma de Notre Dame era meu recanto favorito em Paris; todas as tardes livres, eu costumava subir as torres da igreja e por lá ficar, entre os monstros e os demônios. O fato de todas as fezes desaparecerem tão depressa sob o jato fez-me lembrar o lema “Afflavit et dissipati sunt”, que um dia tencionei colocar como epígrafe de um capítulo sobre a terapia da histeria.
E agora, vamos à verdadeira causa excitante do sonho. Fora uma tarde quente de verão e, à noite, eu havia proferido minha palestra sobre a ligação entre a histeria e as perversões, e tudo o que tivera a dizer desagradara-me intensamente e me parecera completamente desprovido de qualquer valor. Estava cansado e não sentia nenhum vestígio de prazer em meu difícil trabalho; ansiava por estar longe de toda aquela escavação da sujeira humana, para poder reunir-me a meus filhos e depois visitar as belezas da Itália. Nesse estado de espírito, fui da sala de conferências para um café, onde fiz um modesto lanche ao ar livre, uma vez que não tinha apetite. Um de meus ouvintes, entretanto, foi comigo e me pediu licença para sentar-se a meu lado enquanto eu tomava meu café e me engasgava com um bolinho. Começou a lisonjear-me, dizendo o quanto havia aprendido comigo, como agora via tudo com novos olhos e como eu havia limpado as estrebarias augíacas dos erros e preconceitos em minha teoria das neuroses. Disse-me, em resumo, que eu era realmente um grande homem. Meu estado de ânimo não combinava com esse cântico de louvor; lutei contra meu sentimento de repugnância, fui para casa cedo para fugir dele e, antes de me deitar, folheei as páginas de Rabelais e li um dos contos de Conrad Ferdinand Meyer, “Die Leiden eines Knaben” (“Os Infortúnios de um Menino”).
Foi esse o material de que emergiu o sonho. O conto de Meyer trouxe, além disso, uma rememoração de cenas de minha infância. (Cf. o último episódio do sonho sobre o Conde Thun [ ver em [1]]). O humor diurno de irritação e asco persistiu no sonho, na medida em que foi capaz de suprir quase todo o material de seu conteúdo manifesto. Durante a noite, entretanto, emergiu um estado de espírito contrário, de poderosa e até exagerada auto-afirmação, que deslocou o anterior. O conteúdo do sonho tinha de descobrir uma forma que lhe permitisse expressar no mesmo material tanto os delírios de inferioridade quanto a megalomania. O compromisso entre eles produziu um conteúdo onírico ambíguo, mas também, resultou num colorido afetivo indiferente, devido à inibição mútua desses impulsos contrários.
De acordo com a teoria da realização de desejo, esse sonho não se teria tornado possível se a cadeia antitética de idéias megalomaníacas (que, é verdade, fora suprimida, mas tinha um colorido prazeroso) não houvesse surgido além da sensação de nojo. Porque o que é aflitivo não pode ser representado num sonho; nada que seja aflitivo em nossos pensamentos oníricos consegue penetrar à força num sonho, a menos que, ao mesmo tempo, empreste um disfarce à realização de um desejo [Ver em [1]].
Existe ainda outra maneira alternativa pela qual o trabalho do sonho pode lidar com os afetos nos pensamentos oníricos, além de permitir-lhes passagem ou reduzi-los a nada. Ele pode transformá-los em seu oposto. Já travamos conhecimento com a regra interpretativa segundo a qual todo elemento de um sonho, para fins de interpretação, pode representar seu oposto com tanta facilidade quanto a si próprio. [Ver em [1].] Nunca podemos dizer de antemão se representa um ou outro; somente o contexto pode decidir. Uma suspeita dessa verdade evidentemente penetrou na consciência popular: os “livros de sonhos”, com grande freqüência, adotam o princípio dos contrários em sua interpretação dos sonhos. Essa transformação de uma coisa em seu oposto é possibilitada pela íntima cadeia associativa que vincula a representação de uma coisa* a seu oposto em nossos pensamentos. Como qualquer outro tipo de deslocamento, ela pode atender aos propósitos da censura, mas é também, com freqüência, um produto da realização de desejo, pois esta não consiste em nada além da substituição de uma coisadesagradável por seu oposto. Tal como as representações de coisa podem aparecer nos sonhos transformadas em seu oposto, o mesmo pode acontecer com os afetos ligados aos pensamentos oníricos; e parece provável que essa inversão do afeto seja ocasionada, em regra geral, pela censura onírica. Na vida social que nos proporcionou nossa analogia familiar com a censura onírica, também fazemos uso da supressão e da inversão do afeto, principalmente para fins de dissimulação. Se estou falando com alguém a quem sou obrigado a tratar com consideração, embora querendo dizer-lhe algo hostil, é quase mais importante que eu oculte dele qualquer expressão de meu afeto do que abrande a forma verbal de meus pensamentos. Se me dirigisse a ele com palavras que não fossem impolidas, mas as fizesse acompanhar por um olhar ou gesto de ódio e desprezo, o efeito que eu produziria nele não seria muito diferente do que se lhe lançasse em rosto meu desprezo, abertamente. Por conseguinte, a censura me ordena, acima de tudo, a suprimir meus afetos; e, se eu for um mestre da dissimulação, fingirei o afeto oposto - sorrirei quando estiver zangado e parecerei afetuoso quando desejar destruir.
Já nos deparamos com um excelente exemplo desse tipo de inversão de afeto, efetuada num sonho a serviço da censura onírica. No sonho com “meu tio da barba amarela” [em [1]], senti extrema afeição por meu amigo R., enquanto e porque os pensamentos oníricos o chamavam de simplório. Foi desse exemplo de inversão do afeto que derivamos nossa primeira pista da existência de uma censura do sonho. Tampouco é necessário presumir, nesses casos, que o trabalho do sonho crie tais afetos contrários a partir do nada; em geral, ele já os encontra à mão no material dos pensamentos oníricos e simplesmente os intensifica com a força psíquica originária dos motivos de defesa, até que eles possam predominar para fins de formação do sonho. No sonho com meu tio que acabei de mencionar, o carinhoso afeto antitético provavelmente surgiu de uma fonte infantil (como foi sugerido pela última parte do sonho), porque a relação tio-sobrinho, devido à natureza peculiar das mais remotas experiências de minha infância (cf. análise em [1] [e adiante, em [1]]), tornara-se a fonte de todas as minhas amizades e todos os meus ódios.
Um excelente exemplo desse tipo de inversão do afeto [1] é encontrado num sonho registrado por Ferenczi (1916): “Um cavalheiro idoso foi acordado certa noite por sua mulher, que ficara alarmada porque ele estava gargalhando muito alto e desenfreadamente em seu sono. Mais tarde, ohomem relatou ter tido o seguinte sonho: Estava deitado na cama e um cavalheiro que me era conhecido entrou no quarto; tentei acender a luz mas não pude fazê-lo: tentei de novo, repetidas vezes, mas em vão. Aí, minha mulher saiu da cama para me ajudar, mas também não conseguiu. No entanto, como se sentisse embaraçada diante do cavalheiro por estar ‘en negligé’ acabou desistindo e voltou para a cama. Tudo isso foi tão engraçado que não pude deixar de rir às gargalhadas. Minha mulher perguntou: “Por que você está rindo? Por que está rindo?”, mas apenas continuei rindo até acordar. - No dia seguinte, o cavalheiro estava muito deprimido e com dor de cabeça; todo aquele riso o havia perturbado, pensou.
“O sonho parece menos divertido quando é considerado analiticamente. O ‘cavalheiro que lhe era conhecido’ e que entrara no quarto era, nos pensamentos oníricos latentes, a representação da Morte como o ‘grande Desconhecido’ - uma imagem que lhe viera à mente durante o dia anterior. O idoso cavalheiro, que sofria de arteriosclerose, tivera boas razões, na véspera, para pensar em morrer. A gargalhada desenfreada tomou o lugar dos soluços e lágrimas ante a idéia de que deveria morrer. Era a luz da vida que ele já não conseguia acender. Esse pensamento sombrio poderia ter estado vinculado a tentativas de cópula que ele fizera pouco antes, mas que haviam falhado apesar da ajuda de sua mulher en negligé. Ele se apercebeu de que já estava descendo a serra. O trabalho do sonho conseguiu transformar a idéia sombria da impotência e da morte numa cena cômica, e seus soluços, em gargalhadas.”
Há uma classe de sonhos que tem um direito especial a ser descrita como “sonhos hipócritas”, e que submete a uma dura prova a teoria da realização de desejo. [1] Minha atenção foi despertada por eles quando a Dra. M. Hilferding apresentou o seguinte relato de um sonho de Peter Rosegger para debate na Sociedade Psicanalítica de Viena.
Escreve Rosegger em sua história Fremd gemacht!: “Em geral, costumo dormir bem, mas foram muitas as noites em que perdi meu repouso - é que, juntamente com minha modesta carreira de estudioso e homem deletras, por muitos anos arrastei comigo, como um fantasma do qual não podia libertar-me, a sombra de uma vida de alfaiate.
“Não é que durante o dia eu refletisse com muita freqüência ou intensidade sobre meu passado. Quem já se despira da pele de um filisteu e estava procurando conquistar a Terra e o Céu tinha outras coisas a fazer. E nem tampouco, quando jovem e impetuoso, eu dera a menor atenção a meus sonhos noturnos. Só mais tarde, quando me veio o hábito de refletir sobre tudo, ou quando o filisteu em mim começou a despertar um tantinho, foi que me perguntei por que era que, toda vez que sonhava, eu era sempre um aprendiz de alfaiate e assim passava tanto tempo com meu mestre e trabalhava de graça em sua oficina. Sabia perfeitamente, enquanto me sentava assim a seu lado, costurando e passando a ferro, que meu lugar certo já não era ali e que, como cidadão, eu tinha outras coisas com que me ocupar. Mas estava sempre em férias, sempre em férias de verão, e era assim que ficava sentado ao lado de meu mestre, como seu auxiliar. Isso muitas vezes me aborrecia, e eu ficava triste com a perda de tempo em que bem poderia ter encontrado coisas melhores e mais úteis para fazer. Vez por outra, quando algo saía errado, tinha de suportar uma repreensão de meu mestre, embora nunca se falasse em salário. Muitas vezes, sentado ali, com as costas vergadas na oficina escura, pensei em dar-lhe aviso-prévio e me demitir. Um dia, cheguei até a fazê-lo, mas meu mestre não prestou a menor atenção, e cedo lá estava sentado de novo a seu lado, cosendo.
“Depois dessas jornadas tediosas, que alegria era acordar! E eu me determinara então que, se esse sonho persistente voltasse a surgir, eu o afastaria de mim energicamente e exclamaria: ‘Isso não passa de conversa fiada, estou deitado na cama e quero dormir…’ Mas, na noite seguinte, lá estava eu de novo sentado na oficina do alfaiate.
“E assim continuou por anos, com sinistra regularidade. Ora, um dia aconteceu estarmos trabalhando, meu mestre e eu, na casa de Alpelhofer (o camponês em cuja casa eu trabalhara quando me iniciei como aprendiz) e meu mestre se mostrou particularmente insatisfeito com meu trabalho: ‘Gostaria de saber onde é que você está com a cabeça’, disse-me, e me lançou um olhar sombrio. A coisa mais sensata a fazer, pensei, seria levantar-me e dizer que só estava com ele para agradá-lo, e depois sair. Mas não o fiz. Não formulei nenhuma objeção quando meu mestre tomou um aprendiz e me ordenou que lhe desse espaço no banco. Mudei-me para o canto e continuei a coser. No mesmo dia, outro diarista foi também contratado, um hipócrita choramingão - era natural da Boêmia - que havia trabalhado em nossa alfaiataria dezenove anos antes e que um dia caíra no riacho, ao voltar daestalagem. Quando procurei um assento, não havia mais lugar. Voltei-me para meu mestre interrogativamente e ele me disse ‘Você não tem dotes de alfaiate, pode ir! Está despedido!’ Diante disso, meu susto foi tão esmagador que acordei.
“A luz cinzenta da manhã entrava em pálidos clarões pelas janelas sem cortinas de minha casa, tão conhecida. As obras de arte me rodeavam; ali, em minha bela estante, estavam o eterno Homero, o gigantesco Dante, o incomparável Shakespeare, o glorioso Goethe - todos os magníficos imortais. Do quarto ao lado vinham as vozes claras e juvenis das crianças que acordavam, brincando com sua mãe. Senti-me como se tivesse reencontrado aquela vida espiritual idilicamente doce, pacífica e poética em que tantas vezes e de maneira tão profunda eu experimentara uma meditativa felicidade humana. Contudo, irritava-me que não me tivesse antecipado a meu mestre para dar-lhe o aviso-prévio, mas tivesse sido despedido por ele.
“E quão atônito fiquei! Desde a noite em que meu mestre me despediu, gozei paz; não sonhei mais com os tempos de alfaiate que estavam tão distantes em meu passado - aqueles tempos que tinham sido tão alegres em sua despretensão, mas haviam projetado uma sombra tão extensa sobre meus anos posteriores.”
Nessa série de sonhos de um escritor que fora aprendiz de alfaiate em sua mocidade, é difícil reconhecer o domínio da realização de desejo. Todo o prazer do sonhador estava em sua existência diurna, ao passo que, em seus sonhos, era ainda perseguido pela sombra de uma vida infeliz da qual enfim escapara. Alguns sonhos meus de natureza semelhante permitiram-me lançar um pouco de luz sobre o assunto. Quando médico recém-formado, trabalhei por muito tempo no Instituto de Química sem nunca me tornar competente nas habilidades que essa ciência exige; e por essa razão, em minha vida de vigília, jamais gostei de pensar nesse episódio estéril e realmente humilhante de minha aprendizagem. Por outro lado, tenho um sonho regularmente recorrente de trabalhar no laboratório, fazer análises e ter diversas experiências ali. Esses sonhos são tão desagradáveis quanto os sonhos com exames e nunca são muito nítidos. Enquanto interpretava um deles, minha atenção acabou sendo atraída pela palavra “análise‘’, que me forneceu uma chave para sua compreensão. Desde aqueles tempos, tornei-me um “analista”, e hoje efetuo análises altamente elogiadas, embora seja verdade que se trata de “psico-análises”. Agora ficou claro para mim: se passei a sentir orgulho de fazer esse tipo de análises em minha vida diurna e me sinto inclinado a vangloriar-me de ter alcançado tanto sucesso, meus sonhos relembram-me durante a noite aquelas outras análisesmalsucedidas de que não tenho razão alguma para me orgulhar. São os sonhos de punição de um parvenu, como os sonhos do aprendiz de alfaiate que se transformara num famoso escritor. Mas como é possível que um sonho, no conflito entre o orgulho de um parvenu e sua autocrítica, tome o partido desta e escolha como seu conteúdo uma advertência sensata, em vez de uma realização de desejo proibida? Como já disse, a resposta a essa pergunta levanta dificuldades. Podemos concluir que a base do sonho formou-se, em primeiro lugar, de uma fantasia exageradamente ambiciosa, mas que os pensamentos humilhantes que jogaram água fria na fantasia penetraram no sonho em vez dela. Convém lembrar que existem na mente impulsos masoquistas que podem ser responsáveis por uma inversão como essa. Eu não faria objeção a que essa classe de sonhos fosse distinguida dos “sonhos de realização de desejo” sob o nome de “sonhos de punição”. Não encararia isso como algo que implicasse qualquer restrição da teoria dos sonhos que propus até aqui; isso não passaria de um expediente lingüístico para atender às dificuldades daqueles que acham estranho que os opostos possam convergir. Mas um exame mais atento de alguns desses sonhos traz algo mais à luz. Numa parte indistinta do pano de fundo de um de meus sonhos com o laboratório, eu tinha uma idade que me situava precisamente no ano mais sombrio e mais infrutífero de minha carreira médica. Eu ainda estava sem emprego e não tinha idéia de como poderia ganhar a vida: ao mesmo tempo, todavia, descobri repentinamente que tinha diante de mim uma opção entre diversas mulheres com quem poderia casar-me! Portanto, eu era jovem outra vez e, acima de tudo, ela era jovem outra vez - a mulher que partilhou comigo todos esses anos difíceis. O instigador inconsciente do sonho revelou-se, desse modo, como sendo um dos desejos que corroem constantemente o homem que está envelhecendo. O conflito que se travava em outros níveis da psique entre a vaidade e a autocrítica determinara, é verdade, o conteúdo do sonho, mas só o desejo mais profundamente enraizado de ser jovem é que possibilitou a esse conflito aparecer como um sonho. Mesmo quando acordados, às vezes dizemos a nós mesmos: “As coisas vão muito bem agora e a situação era difícil nos velhos tempos; mesmo assim era uma beleza - eu era ainda jovem”.
Outro grupo de sonhos, [1] que muitas vezes encontrei em mim mesmo e reconheci como hipócritas, tem como conteúdo uma reconciliação com pessoas com quem as relações de amizade cessaram há muito tempo. Nesses casos, a análise habitualmente revela alguma situação que poderia instar-se a abandonar os últimos remanescentes de consideração por esses ex-amigos e tratá-los como estranhos ou inimigos. O sonho, porém, prefere retratar a relação oposta. [Ver em [1].]
Ao formarmos qualquer juízo sobre os sonhos relatados pelos escritores, é razoável supormos que eles tenham omitido do relato pormenores do conteúdo do sonho que considerassem dispensáveis ou perturbadores. Seus sonhos, nesse caso, levantarão problemas que seriam rapidamente resolvidos se seu conteúdo fosse comunicado na íntegra.
Otto Rank me fez notar que o conto de fadas de Grimm sobre “O Pequeno Alfaiate, ou Sete de um só Golpe” contém um sonho muito semelhante de um parvenu. O alfaiate, que se tornara herói e genro do Rei, sonha uma noite com seu antigo ofício, deitado ao lado da esposa, a Princesa. Ela, ficando desconfiada, põe guardas armados na noite seguinte para escutar as palavras do sonhador e prendê-lo. Mas o alfaiatezinho é advertido e providencia para que seu sonho seja corrigido.
O complicado processo de eliminação, diminuição e inversão por meio do qual os afetos dos pensamentos oníricos acabam por transformar-se nos dos sonhos pode ser satisfatoriamente compreendido em sínteses apropriadas de sonhos que tenham sido completamente analisados. Citarei mais alguns exemplos de afetos nos sonhos, que mostram realizadas algumas das possibilidades que enumerei.

V

Se retornarmos ao sonho sobre a estranha tarefa de que me encarregou o velho Brücke, de fazer uma dissecação de minha própria pélvis [em [1] será lembrado que, no próprio sonho, faltou-me o sentimento de horror [“Grauen”] que lhe seria apropriado. Ora, isso foi uma realização de desejo em mais de um sentido. A dissecação significava a auto-análise que eu estava realizando, por assim dizer, com a publicação deste livro sobre os sonhos - um processo que me fora tão penoso na realidade que adiei por mais de um ano a impressão do manuscrito já concluído. Surgiu então um desejo de que eu pudesse vencer esse sentimento de aversão; daí eu não ter tido nenhum sentimento de horror [“Grauen”] no sonho. Mas também me agradaria muito não ter de ficar grisalho. “Grauen”, no outro sentido do termo. Eu já estava ficando bastante grisalho, e os fios cor de gris em meus cabelos eram outro lembrete de que não deveria demorar-me mais. E, como vimos, a idéia de que teria de deixar a cargo de meus filhos a consecução do objetivo de minha difícil jornada impôs sua representação no final do sonho.
Consideremos agora os dois sonhos em que uma expressão de satisfação foi transposta para o momento seguinte ao despertar. No primeiro caso, a razão fornecida para a satisfação era a expectativa de que eu agora descobriria o que significava “Já sonhei com isso antes”, ao passo que a satisfação realmente se referia ao nascimento de meus primeiros filhos [ver  [1]]. No outro caso, a razão aparente era minha convicção de que algo que fora “prognosticado” estava agora se tornando realidade, quando a referência real era semelhante à do sonho anterior: tratava-se da satisfação com que acolhi o nascimento de meu segundo filho [em [1]]. Aqui, os afetos que dominavam os pensamentos oníricos persistiram nos sonhos, mas é seguro afirmar que em nenhum sonho as coisas podem ser tão simples assim. Se penetrarmos um pouco mais a fundo nas duas análises, descobriremos que essa satisfação que havia escapado à censura recebera um acréscimo de outra fonte. Essa outra fonte tinha motivos para temer a censura e seu afeto teria indubitavelmente despertado oposição, se ela não se tivesse escudado no afeto similar e legítimo e de satisfação, proveniente da fonte permissível, e se insinuado, por assim dizer, sob sua asa.
Infelizmente, não posso demonstrar isso no caso efetivo desses sonhos, mas um exemplo extraído de outra esfera da vida deixará claro o que quero dizer. Suponhamos o caso seguinte: há uma pessoa de minhas relações a quem odeio, de maneira que tenho uma viva inclinação a ficar contente quando alguma coisa adversa lhe acontece. Entretanto, o lado moral de minha natureza não faz concessões a esse impulso. Não me atrevo a expressar o desejo de que ela seja infeliz e, caso ela depare com algum infortúnio imerecido, suprimo minha satisfação diante disso e me imponhomanifestações e pensamentos de pesar. Todos já devem ter passado por essa situação numa ou noutra época. Mas sucede então que a pessoa odiada, por alguma transgressão sua, envolve-se num merecido dissabor; quando isso acontece, posso dar rédea solta à minha satisfação por ela ter recebido uma punição justa e, nisto, estou de acordo com muitas outras pessoas que são imparciais. Posso observar, contudo, que minha satisfação parece mais intensa que a dessas outras pessoas; ela recebeu um acréscimo da fonte de meu ódio, até então impedida de manifestar seu afeto, mas que, com a alteração das circunstâncias, já não é mais obstada em fazê-lo. Na vida social, isso geralmente ocorre sempre que as pessoas antipáticas ou os membros de uma minoria impopular se mostram sem razão. Sua punição não costuma corresponder a seus erros, mas a seu erros acrescidos da má vontade dirigida contra eles, a qual antes não tivera nenhuma conseqüência. Sem dúvida é verdade que aqueles que infligem o castigo estão com isso cometendo uma injustiça; mas ficam impedidos de percebê-la pela satisfação resultante da retirada de uma supressão que por muito tempo fora mantida dentro deles. Em casos como esse, o afeto é justificado em sua qualidade, mas não em sua quantidade, e a autocrítica tranqüilizada quanto ao primeiro aspecto tende, com extrema facilidade, a se descuidar do exame do segundo. Uma vez aberta uma porta, é fácil irromperem por ela mais pessoas do que originalmente se tencionava deixar entrar.
Um traço marcante das pessoas neuróticas - o fato de uma causa passível de liberar um afeto tender a produzir nelas um resultado qualitativamente justificado, mas quantitativamente excessivo - pode ser explicado dentro dessa mesma linha, na medida em que admita alguma explicação psicológica. O excesso provém de fontes de afeto que antes permaneceram inconscientes e suprimidas. Essas fontes conseguem estabelecer um elo associativo com a causa liberadora real, e a desejada facilitação [Bahnung] da liberação de seu próprio afeto é aberta pela outra fonte de afeto, que é inobjetável e legítima. Nossa atenção é assim atraída para o fato de que, ao considerarmos as instâncias suprimidas e supressoras, não devemos encarar sua relação como sendo exclusivamente de inibição recíproca. Igual atenção deve ser dada aos casos em que as duas instâncias provocam um efeito patológico, atuando lado a lado e se intensificando mutuamente.
Apliquemos agora essas indicações sobre os mecanismos psíquicos a um entendimento das expressões de afeto nos sonhos. Uma satisfação que seja exibida num sonho e possa, é claro, ter seu lugar exato imediatamente apontado nos pensamentos oníricos nem sempre é completamente elucidada apenas por essa referência. Em geral, é necessário buscar outra fonte delanos pensamentos do sonho, uma fonte que esteja sob a pressão da censura. Em resultado dessa pressão, essa fonte normalmente produziria, não satisfação, mas o afeto contrário. Graças à presença da primeira fonte do afeto, porém, a segunda fonte fica habilitada a subtrair do recalque seu afeto de satisfação e a permitir que ele funcione como uma intensificação da satisfação da primeira fonte. Assim, parece que os afetos nos sonhos são alimentados por uma confluência de diversas fontes e sobredeterminados em sua referência ao material dos pensamentos oníricos. Durante o trabalho do sonho, as fontes de afeto passíveis de produzir o mesmo afeto unem-se para gerá-lo.
Podemos obter algum discernimento dessas complicações mediante a análise daquele belo espécime de sonho cujo ponto central era formado pelas palavras “Non vixit”. (Ver em [1] e segs.) Nesse sonho, externalizações de afeto de diversas qualidades reuniram-se em dois pontos do conteúdo manifesto. Sentimentos hostis e aflitivos - “dominado por estranhas emoções” foram as palavras utilizadas no próprio sonho - superpuseram-se no ponto em que aniquilei meu oponente e amigo com duas palavras. E de novo, ao final do sonho, fiquei extremamente satisfeito e cheguei a aprovar a possibilidade, que na vida de vigília sabia ser absurda, de existirem revenants que pudessem ser eliminados por um simples desejo.
Ainda não relatei a causa excitante do sonho. Foi de grande importância e levou a uma compreensão profunda do mesmo. Eu recebera de meu amigo de Berlim, a quem me referi como “Fl.” [Fliess], a notícia de que ele estava prestes a sofrer uma operação e de que eu obteria novas informações sobre seu estado com alguns de seus parentes em Viena. As primeiras notícias que recebi após a operação não foram tranqüilizadoras e me deixaram inquieto. Eu preferiria muito ir ter com ele pessoalmente, mas, exatamente nessa ocasião, estava acometido de uma enfermidade dolorosa que transformava qualquer espécie de movimento numa tortura para mim. Os pensamentos oníricos informaram-me então que eu temia pela vida de meu amigo. Como era de meu conhecimento, sua única irmã, que nunca cheguei a conhecer, tinha morrido muito jovem, após uma doença fulminante. (No sonho, Fl. falou sobre sua irmã e disse que em três quartos de hora ela estava morta.)Devo ter imaginado que a constituição dele não era muito mais resistente que a de sua irmã, e que, depois de receber notícias muito piores sobre ele, eu acabaria fazendo a viagem, afinal - e chegaria tarde demais, pelo que nunca cessaria de me censurar. Essa recriminação por chegar tarde demais tornou-se o ponto central do sonho, mas foi representada por uma cena em que Brücke, o venerado professor de meus tempos de estudante, a dirigia a mim com uma expressão terrível em seus olhos azuis. Logo se evidenciará o que foi que fez a situação [referente a Fl.] transmudar-se nesses moldes. A cena em si [com Brücke] não podia ser reproduzida pelo sonho na forma como eu a vivenciara. A outra figura do sonho pôde conservar os olhos azuis, mas o papel aniquilador foi atribuído a mim - uma inversão que, obviamente, foi obra da realização de desejo. Meu desassossego a respeito da recuperação de meu amigo, minhas autocensuras por não ir vê-lo, a vergonha que senti por isso - ele tinha vindo a Viena (para ver-me) “discretamente” -, a necessidade que eu tinha de me considerar desculpado por minha doença - tudo isso se combinou para produzir a tormenta emocional que foi claramente percebida em meu sono e que devastava essa região dos pensamentos oníricos.
Mas havia na causa excitante do sonho outra coisa, que teve em mim um efeito inteiramente oposto. Junto com as notícias desfavoráveis dos primeiros dias após a operação, recebi a advertência de não discutir o assunto com ninguém. Senti-me ofendido com isso, pois implicava uma desconfiança desnecessária de minha discrição. Dava-me plena conta de que essas instruções não haviam partido de meu amigo e se deviam à falta de tato ou ao excesso de zelo por parte do intermediário, mas afetou-me de maneira muito desagradável essa censura velada, pois não era inteiramente injustificada. Como todos sabemos, somente as censuras que têm algum fundamento é que “colam”; só elas é que nos perturbam. O que tenho em mente não se relaciona, é verdade, com esse amigo, mas com um período muito anterior de minha vida. Naquela ocasião, causei problemas entre dois amigos (ambos os quais haviam também decidido honrar-me com esse título) por dizer a um deles, sem necessidade alguma, no decorrer da conversa, o que o outro havia falado a seu respeito.
Também nessa ocasião tinham-me feito censuras, e elas ainda estavam em minha memória. Um dos dois amigos em questão era o Professor Fleischl; posso descrever o outro por seu prenome “Josef” - que era também o de P., meu amigo e oponente no sonho.
A recriminação por eu ser incapaz de guardar um segredo foi atestada no sonho pelo elemento “discreto” e pela pergunta de Fl. sobre quanto eu havia falado com P. sobre suas coisas. Mas foi a intervenção dessa lembrança [de minha antiga indiscrição e suas conseqüências] que transportou do presente para a época em que trabalhei no laboratório de Brücke a recriminação contra mim por chegar tarde demais. E, ao transformar a segunda pessoa da cena onírica de aniquilamento num Josef, fiz com que essa cena representasse não apenas a recriminação feita a mim por chegar tarde demais, mas também a recriminação, muito mais intensamente recalcada, por eu ser incapaz de guardar um segredo. Aqui, são excepcionalmente visíveis os processos de condensação e deslocamento em ação no sonho, bem como suas razões de ser.
Minha ligeira raiva, no presente, pela advertência que eu recebera de não deixar escapar nada [sobre a doença de Fl.] recebeu reforços de fontes situadas nas profundezas de minha mente, e assim se avolumou numa corrente de sentimentos hostis contra pessoas de quem eu realmente gostava. A fonte desse reforço brotava de minha infância. Já assinalei [em [1]] como minhas amizades calorosas, e também minhas inimizades com contemporâneos, remontam a minhas relações da infância com um sobrinho que era um ano mais velho que eu; como ele era superior a mim, como cedo aprendi a me defender dele, como éramos amigos inseparáveis e como, de acordo com o testemunho dos mais velhos, às vezes brigávamos um com outro e… lhes fazíamos queixas um do outro. Todos os meus amigos têm sido, num certo sentido, reencarnações dessa primeira figura que “früh sich einst dem trüben Blick gezeigt”: têm sido revenants. Meu próprio sobrinhoreapareceu em minha meninice e, nessa ocasião, representamos juntos os papéis de César e Brutus. Minha vida afetiva sempre insistiu em que eu tivesse um amigo íntimo e um inimigo odiado. Sempre me foi possível reabastecer-me de ambos, e não raro essa situação ideal da infância se reproduziu tão completamente que amigo e inimigo convergiram numa só pessoa - embora não, é claro, ambos ao mesmo tempo ou com oscilações constantes, como talvez tenha acontecido em minha tenra infância.
Não me proponho discutir neste ponto como é que, nessas circunstâncias, uma oportunidade recente de geração de um afeto pode retornar a uma situação infantil e ser substituída por essa situação no que concerne à produção do afeto. [Ver em [1].] Essa questão faz parte da psicologia do pensamento inconsciente e encontraria lugar adequado numa elucidação psicológica das neuroses. Para fins da interpretação dos sonhos, presumamos que surja ou seja construída na fantasia uma lembrança da infância, mais ou menos com o seguinte conteúdo: as duas crianças entraram em disputa por causa de certo objeto. (Qual era esse objeto é uma questão que pode ficar em aberto, embora a lembrança ou pseudo-lembrança tenha um objeto bastante específico em vista.) Cada uma delas alega ter chegado antes da outra e, portanto, ter mais direito a ele. Vão às vias de fato e a força prevalece sobre o direito. Pelas indicações do sonho, é possível que eu mesmo soubesse que estava errado (“eu próprio notei o erro”). Dessa vez, porém, fui o mais forte e continuei senhor do terreno. O vencido correu para seu avô - meu pai - e queixou-se de mim; defendi-me com as palavras que conheço pelo relato de meu pai: “Bati nele porque ele me bateu”. Essa lembrança, ou mais provavelmente fantasia, que me veio à mente enquanto eu analisava o sonho - sem outras indicações, eu mesmo não saberia dizer como1 - constituiu um elemento intermediário nos pensamentos oníricos, que reuniu os afetos neles desencadeados tal como um poço recebe a água que para ele flui. Desse ponto em diante, os pensamentos oníricos seguiram mais ou menos esta linha: “É bem feito de me tenha tido de me dar lugar. Por que tentou tirar a mim do meu lugar? Não preciso de você; posso muito bem encontrar outra pessoa para brincar comigo”, etc. Esses pensamentos penetraram então nas vias que levaram a sua representação no sonho. Houve época em que tive de censurar meu amigo Josef [P.] por uma atitude deste mesmo tipo: “Ôte-toi que je m’y mette!” Ele seguira meus passos como demonstrador no laboratório de Brücke, mas a promoção lá era lenta e tediosa. Nenhum dos dois assistentesde Brücke estava inclinado a sair de seu lugar, e a juventude era impaciente. Meu amigo, que sabia não ter esperança de viver muito e a quem nenhum laço de intimidade ligava seu superior imediato, por vezes expressava em voz alta sua impaciência; e como o superior [Fleischl] estava gravemente enfermo, o desejo de P. de vê-lo fora do caminho talvez tivesse um sentido mais torpe que a simples esperança de promoção do homem. Como não deixa de ser natural, alguns anos antes, eu próprio acalentara um desejo ainda mais vivo de preencher uma vaga. Onde quer que haja hierarquia e promoção, está aberto o caminho para desejos que pedem supressão. O Príncipe Hal, de Shakespeare, mesmo junto ao leito de seu pai enfermo, não pôde resistir à tentação de experimentar a coroa. Mas, como seria de se esperar, o sonho puniu meu amigo e não a mim por esse desejo impiedoso.
“Como foi ambicioso, matei-o.” Como não pudesse esperar pelo afastamento de outro homem, ele próprio foi afastado. Foram esses meus pensamentos logo depois de ter assistido à inauguração, na universidade, do monumento comemorativo - não a ele, mas ao outro homem. Assim, parte da satisfação que senti no sonho deveria ser interpretada como: “Um castigo justo! É bem feito para você!”
No funeral de meu amigo [P.], um rapaz fizera o que pareceu ser um comentário inoportuno no sentido de que o orador que pronunciara o discurso fúnebre havia deixado implícito que, sem esse homem, o mundo se acabaria. Ele havia expressado os sentimentos sinceros de alguém em cujo pesar um certo exagero estava interferindo. Mas esse seu comentário foi o ponto de partida dos seguintes pensamentos oníricos. “É bem verdade que ninguém é insubstituível. Quantas pessoas já acompanhei até a sepultura! Mas ainda estou vivo. Sobrevivi a todos; fiquei senhor do terreno.” Esse tipo de pensamento, ocorrendo-me num momento em que temia talvez não encontrar meu amigo [Fl.] vivo se fizesse a viagem para vê-lo, só poderia ser interpretado no sentido de eu estar radiante por ter, mais uma vez, sobrevivido a alguém, por ter sido ele e não eu a morrer e por eu ter ficado senhor do terreno, como ficara na cena fantasiada de minha infância. Essa satisfação de origem infantil por ficar senhor do terreno constituiu a maior parte do afeto queapareceu no sonho. Eu estava radiante por sobreviver e dei expressão a meu deleite com todo o egoísmo ingênuo exibido na anedota do casal em que um dos cônjuges diz ao outro: “Se um de nós morrer, vou-me mudar para Paris”. Era-me óbvio assim que não seria eu a morrer.
Não se pode negar que interpretar e relatar os próprios sonhos exige elevado grau de autodisciplina. Fica-se condenado a emergir como o único vilão entre a multidão de personagens nobres com quem se partilha a própria vida. Assim, pareceu-me muito natural que os revenants só existissem enquanto se quisesse e fossem elimináveis mediante um desejo. Já vimos pelo quê foi punido meu amigo Josef. Mas os revenants eram uma série de reencarnações do amigo de minha infância. Desse modo, era também fonte de satisfação para mim o fato de sempre ter conseguido achar substitutos sucessivos para aquela figura; e senti que seria capaz de encontrar um substituto para o amigo a quem estava agora a ponto de perder: ninguém era insubstituível.
Mas e a censura onírica, que era feito dela? Por que não levantara as mais enérgicas objeções contra essa seqüência de idéias flagrantemente egoísta? E por que não transformara a satisfação ligada a essa cadeia de idéias num agudo desprazer? A explicação, penso eu, foi que outras seqüências de idéias inobjetáveis ligadas às mesmas pessoas encontraram uma satisfação simultânea e encobriram, com seu afeto, o afeto proveniente da fonte infantil proibida. Em outra camada de meus pensamentos, durante a cerimônia de inauguração do monumento, eu assim refletira: “Quantos amigos valiosos já perdi, uns por morte, outros por um rompimento em nossa amizade! Quão afortunado foi ter encontrado para eles um substituto e ter ganho um que significa para mim mais do que os outros jamais poderiam significar, e, numa época da vida em que não é fácil fazer novas amizades, nunca perder a dele!” Minha satisfação por ter encontrado um substituto para esses amigos perdidos teve permissão de penetrar no sonho sem interferência, mas, junto com ela, insinuou-se a satisfação hostil decorrente da fonte infantil. É verdade, sem dúvida, que a afeição infantil serviu para reforçar minha afeição contemporânea e justificada. Mas também o ódio infantil conseguiu fazer-se representar.
Mas o sonho conteve, além disso, uma alusão clara a outra cadeia de idéias que poderia legitimamente levar à satisfação. Pouco tempo antes, apósuma longa espera, nascera uma filha de meu amigo [Fl.]. Eu sabia quão profundamente ele havia pranteado a irmã que perdera tão cedo, e lhe escrevi dizendo estar certo de que ele transferira o amor que por ela sentira para a filha, e que a nenenzinha enfim lhe permitiria esquecer sua perda irreparável.
Portanto, esse grupo de pensamentos ligava-se mais uma vez ao pensamento intermediário do conteúdo latente do sonho [ver em [1]-[2]] de onde se bifurcavam as vias associativas em direções contrárias: “Ninguém é insubstituível! Não há nada além de revenants: todos aqueles que perdemos retornam!” E então os laços associativos entre os componentes contraditórios dos pensamentos oníricos foram estreitados pela circunstância fortuita de a filhinha de meu amigo ter o mesmo nome da menina com quem eu costumava brincar em criança, que tinha minha idade e era irmã de meu primeiro amigo e oponente. [Ver em [1].] Deu-me grande satisfação saber que o bebê iria chamar-se “Pauline”. E, numa alusão a essa coincidência, substituí um Josef por outro no sonho e descobri ser impossível eliminar a semelhança entre as letras iniciais dos nomes “Fleischl” e “Fl.”. Desse ponto, meus pensamentos passaram para a questão do nome de meus próprios filhos. Insistira em que o nome deles fosse escolhido, não segundo a moda do momento, mas em memória de pessoas de quem eu havia gostado. O nome transformava as crianças em revenants. E afinal, refleti, ter filhos não seria nosso único acesso à imortalidade?
Resta-me apenas acrescentar mais algumas observações sobre a questão do afeto nos sonhos, de outro ponto de vista. É possível que um elemento dominante na psique da pessoa adormecida seja constituído por aquilo a que chamamos “disposição de ânimo” - ou tendência a algum afeto -, e isto pode então exercer uma influência determinante em seus sonhos. Tal disposição de ânimo pode brotar de suas experiências ou pensamentos da véspera, ou suas fontes podem ser somáticas. [Ver em [1]] De qualquer modo, será acompanhada pelas cadeias de idéias que lhe forem apropriadas. Do ponto de vista da formação do sonho, é indiferente que, como às vezes acontece, esses conteúdos de representações dos pensamentos oníricos determinem primariamente a disposição de ânimo, ou sejam eles próprios secundariamente despertados por uma disposição emocional do sonhador que, por sua vez, seja explicável em termos somáticos. Seja como for, a formação dos sonhos está sujeira à condição de só poder representar algo que seja a realização de um desejo, e de apenas dos desejos poder extrair sua força psíquica impulsora. Uma disposição de ânimo atual e operante é tratada da mesma maneira que uma sensação que surja e se torne atuante durante o sono (ver em [1]), a qual pode ser desprezada ou reinterpretadano sentido de uma realização de desejo. As disposições de ânimo aflitivas durante o sono podem tornar-se a força propulsora de um sonho, despertando desejos enérgicos que o sonho é chamado a realizar. O material a que se ligam as disposições de ânimo é trabalhado até poder ser utilizado para expressar a realização de um desejo. Quanto mais intenso e dominante é o papel desempenhado nos pensamentos oníricos pela disposição anímica aflitiva, mais certo é que os impulsos desejantes mais intensamente suprimidos se valham dessa oportunidade para chegar à representação. É que, como já está presente o desprazer que, de outro modo, por si só produziriam necessariamente, eles já encontram realizada a parte mais difícil de sua tarefa - a tarefa de se imporem à representação. Aqui, mais uma vez, somos confrontados com o problema dos sonhos de angústia; e estes, como iremos constatar, constituem um caso marginal da função onírica. [Ver em [1]]
(I) ELABORAÇÃO SECUNDÁRIA [1]


E agora podemos enfim voltar-nos para o quarto dos fatores implicados na formação dos sonhos. Ao prosseguirmos em nossa investigação do conteúdo dos sonhos da maneira como a iniciamos - isto é, comparando eventos manifestos no conteúdo do sonho com suas fontes nos pensamentos oníricos -, chegamos a elementos cuja explicação requer um pressuposto inteiramente novo. O que tenho em mente são casos em que o sonhador fica surpreso, irritado ou enojado no sonho e, além disso, com algum fragmento do próprio conteúdo onírico. Como demonstrei em diversos exemplos [na última seção). a maioria desses sentimentos críticos nos sonhos não se dirige, de fato, ao conteúdo do sonho, mas mostra constituir-se de partes dos pensamentos oníricos que foram apropriadas e usadas para um fim conveniente. Entretanto, parte desse material não se presta a essa explicação; seu correlato no material dos pensamentos oníricos não se encontra em parte alguma. Qual é, por exemplo, o sentido de uma observação crítica tão freqüentemente encontrada nos sonhos, ou seja, “Isto é apenas um sonho”? [Ver em [1].] Temos aí uma verdadeira crítica ao sonho, tal como se poderia fazer na vida de vigília. Com bastante freqüência, ademais, ela é de fato o prelúdio do despertar; e com freqüência ainda maior, é precedida por algum sentimento aflitivo que se tranqüiliza ante o reconhecimento de que se trata de um estado de sonho. Quando ocorre num sonho o pensamento “isto é apenas um sonho”, ele tem em vista o mesmo propósito das palavras pronunciadas no palco por la belle Hélène, na ópera cômica de Offenbach que leva esse nome: visa a reduzir a importância do que acaba de ser vivenciado e a tornar possível tolerar o que vem a seguir. Serve para fazer adormecer uma dada instância que, nesse momento, teria todos os motivos para ser acionada e proibir a continuação do sonho - ou da cena da ópera. É mais cômodo, porém, continuar a dormir e tolerar o sonho, porque, afinal, “é apenas um sonho”. Ameu ver, esse juízo crítico desdenhoso, “é apenas um sonho”, aparece no sonho quando a censura, que nunca está inteiramente adormecida, sente que foi apanhada desprevenida por um sonho que já se deixou passar. É tarde demais para suprimi-lo e, por conseguinte, a censura utiliza essas palavras para combater o sentimento de angústia ou aflição por ele suscitado. Essa expressão é um exemplo de esprit d’escalier por parte da censura psíquica.
Esse exemplo, contudo, fornece-nos uma prova convincente que nem tudo que está contido num sonho decorre dos pensamentos oníricos, mas que pode haver contribuições para seu conteúdo advindas de uma função psíquica que é indistinguível de nossos pensamentos de vigília. Surge então a questão de determinar se isso ocorre apenas em casos excepcionais, ou se a instância psíquica que, no mais, atua apenas como censura tem uma participação habitual na formação dos sonhos.
Não podemos hesitar em decidir pela segunda alternativa. Não há dúvida de que a instância censora, cuja influência só reconhecemos, até aqui, nas limitações e omissões no conteúdo do sonho, é também responsável por intercalações e acréscimos a ele. É fácil reconhecer tais intercalações. São freqüentemente relatadas com hesitação e introduzidas por um “como se”; não são particularmente vívidas por si só e são sempre introduzidas em pontos em que podem servir de elo entre dois fragmentos do conteúdo onírico ou preencher uma lacuna entre duas partes do sonho. São menos fáceis de reter na memória do que os autênticos derivados do material dos pensamentos oníricos; quando o sonho é esquecido, elas são sua primeira parte a desaparecer, e tenho fortes suspeitas de que a queixa corriqueira de se haver sonhado muito, mas esquecido a maior parte do sonho e conservado apenas fragmentos [em [1]], baseia-se no rápido desaparecimento justamente desses pensamentos agregadores. Numa análise completa, essas intercalações por vezes se deixam trair pelo fato de nenhum material ligado a elas ser encontrado nos pensamentos oníricos. Mas um exame cuidadoso leva-me a considerar esse caso como o menos freqüente; grosso modo, os pensamentos agregadores reconduzem, mesmo assim, a algum material nos pensamentos oníricos, mas a um material que não poderia reivindicar aceitação no sonho, nem por seu próprio valor, nem por ser sobredeterminado. Somente em casos extremos, ao que parece, é que a função psíquica de formação de sonhos que ora estamos examinando passa a fazer novas criações. Tanto quanto possível, ela empregaqualquer coisa apropriada que possa encontrar no material dos pensamentos oníricos.
O que distingue e, ao mesmo tempo, revela essa parte do trabalho do sonho é sua finalidade. Essa função se comporta da maneira que o poeta maliciosamente atribui aos filósofos: preenche as lacunas da estrutura do sonho com trapos e remendos. Como resultado de seus esforços, o sonho perde sua aparência de absurdo e incoerência e se aproxima do modelo de uma experiência inteligível. Mas seus esforços nem sempre são coroados de êxito. Ocorrem sonhos que, a uma visão superficial, podem afigurar-se impecavelmente lógicos e racionais; partem de uma situação possível, dão-lhe prosseguimento através de uma cadeia de modificações coerentes e - embora com muito menor freqüência - levam-na a uma conclusão que não causa surpresa. Os sonhos dessa natureza foram submetidos a uma extensa elaboração por essa função psíquica aparentada ao pensamento de vigília; parecem ter um sentido, mas esse sentido é o mais afastado possível de sua verdadeira significação. Se os analisamos, podemos convencer-nos de que foi nesses sonhos que a elaboração secundária manipulou o material da maneira mais livre possível e preservou ao mínimo as relações existentes nesse material. São sonhos dos quais se poderia dizer que já foram interpretados uma vez, antes de serem submetidos à interpretação de vigília. Em outros sonhos, essa elaboração tendenciosa tem êxito apenas em parte; a coerência parece prevalecer até certo ponto, mas depois o sonho se torna disparatado ou confuso, embora talvez, mais adiante, possa apresentar pela segunda vez uma aparência de racionalidade. Noutros sonhos, ainda, a elaboração falha por completo; vemo-nos desamparados frente a um amontoado de material fragmentário e sem nenhum sentido.
Não desejo negar categoricamente que essa quarta força na formação do sonho - que logo reconheceremos como uma velha conhecida, visto que, de fato, é a única das quatro com que estamos familiarizados em outros contextos - não desejo negar que esse quarto fator tem a capacidade de criar novas contribuições para os sonhos. É certo, porém, que, tal como os outros,ele exerce sua influência principalmente por suas preferências e seleções do material psíquico já formado nos pensamentos oníricos. Ora, há um caso em que lhe é poupado, em grande medida, o trabalho de, por assim dizer, estruturar uma fachada para o sonho - a saber, o caso em que já existe uma formação dessa natureza no material dos pensamentos oníricos, pronta para ser usada. Tenho o hábito de descrever esse elemento dos pensamentos oníricos que tenho em mente como uma “fantasia”. Talvez eu evite mal-entendidos se mencionar o “sonho diurno” [ou devaneio] como algo análogo a ela na vida de vigília. O papel desempenhado em nossa vida anímica por essas estruturas ainda não foi plenamente reconhecido e elucidado pelos psiquiatras, embora M. Benedikt tenha conseguido o que me parece um início muito promissor nessa direção. A importância dos sonhos diurnos não escapou à visão infalível dos escritores imaginativos; há, por exemplo, um célebre relato de Alphonse Daudet, em Le Nabab, dos devaneios de um dos personagens secundários da história. [Ver em [1].] O estudo das psiconeuroses leva à surpreendente descoberta de que essas fantasias ou sonhos diurnos são os precursores imediatos dos sintomas histéricos, ou pelo menos de uma série deles. Os sintomas histéricos não estão ligados a lembranças reais, mas a fantasias construídas com base em lembranças. A freqüente ocorrência de fantasias diurnas conscientes traz essas estruturas ao nosso conhecimento; mas tal como há fantasias conscientes dessa natureza, também há grande número de fantasias inconscientes, que têm de permanecer inconscientes por causa de seu conteúdo e por se originarem de material recalcado. Uma investigação mais detida das características dessas fantasias diurnas revela-nos como é acertado que essas formações recebam a mesma designação que damos aos produtos de nosso pensamento durante a noite - ou seja, a designação de “sonhos”. Elas partilham com os sonhos noturnos um grande número de suas propriedades e, de fato, sua investigação poderia terservido como a melhor e mais curta abordagem à compreensão dos sonhos noturnos.
Como os sonhos, elas são realizações de desejos; como os sonhos, baseiam-se, em grande medida, nas impressões de experiências infantis; como os sonhos, beneficiam-se de certo grau de relaxamento da censura. Se examinarmos sua estrutura, perceberemos como o motivo de desejo que atua em sua produção mistura, rearranja e compõe num novo todo o material de que eles são construídos. Eles estão, para as lembranças infantis de que derivam, exatamente na mesma relação em que estão alguns dos palácios barrocos de Roma para as antigas ruínas cujos pisos e colunas forneceram o material para as estruturas mais recentes.
A função de “elaboração secundária” que atribuímos ao quarto dos fatores envolvidos na formação do conteúdo dos sonhos mostra-nos em ação, mais uma vez, a atividade que consegue ter livre vazão na criação de sonhos diurnos sem ser inibida por quaisquer outras influências. Poderíamos simplificar isso dizendo que este nosso quarto fator procura configurar o material que lhe é oferecido em algo semelhante a um sonho diurno. No entanto, se um desses sonhos diurnos já tiver sido formado na trama dos pensamentos oníricos, esse quarto fator do trabalho do sonho preferirá apossar-se do sonho diurno já pronto e procurará introduzi-lo no conteúdo do sonho. Há alguns sonhos que consistem meramente na repetição de uma fantasia diurna que talvez tenha permanecido inconsciente, como, por exemplo, o sonho em que o menino andava numa biga com os heróis da Guerra de Tróia [em [1]]. Em meu sonho do “autodidasker” [em [1]], pelo menos a segunda parte foi uma reprodução fiel de uma fantasia diurna, inocente em si mesma, de uma conversa com o Professor N. Em vista das complexas condições que o sonho tem de satisfazer em sua gênese, é muito mais freqüente a fantasia já pronta formar apenas um fragmento do sonho, ou apenas uma parcela da fantasia irromper no sonho. A partir daí, a fantasia é tratada, em geral, como qualquer outra parcela do material latente, embora freqüentemente permaneça reconhecível como uma entidade no sonho. Muitas vezes, partes de meus sonhos sobressaem como causadoras de uma impressão diferente das demais. Parecem-me, por assim dizer, mais fluentes, mais concatenadas e, ao mesmo tempo, mais fugazes que outras partes do mesmo sonho. Estas, bem sei, sãofantasias inconscientes que penetraram na trama do sonho, mas jamais consegui delimitar uma delas com clareza. Afora isso, tais fantasias, como qualquer outro componente dos pensamentos oníricos, são comprimidas, condensadas, superpostas umas às outras e assim por diante. Há, todavia, casos transicionais, desde o caso em que elas constituem, inalteradas, o conteúdo (ou pelo menos a fachada) do sonho, e o extremo oposto, em que são representadas no conteúdo do sonho apenas por um de seus elementos ou por uma alusão distante. O que acontece às fantasias presentes nos pensamentos oníricos é também, evidentemente, determinado por quaisquer vantagens que elas tenham a oferecer aos requisitos da censura e à exigência de condensação.
Ao selecionar exemplos de interpretação de sonhos, tenho evitado, na medida do possível, os sonhos em que as fantasias inconscientes desempenhem papel considerável, pois a introdução desse elemento psíquico específico teria exigido extensas discussões sobre a psicologia do pensamento inconsciente. Não obstante, não posso escapar inteiramente a um exame das fantasias neste contexto, dado que, muitas vezes, elas penetram nos sonhos em sua íntegra e, com freqüência ainda maior, é possível vislumbrá-las claramente por trás do sonho. Citarei, portanto, mais um sonho, que parece compor-se de duas fantasias diferentes e opostas, coincidentes entre si em alguns pontos, e das quais uma é superficial, enquanto a segunda constitui, por assim dizer, uma interpretação da primeira. [Ver anteriormente, em [1].]
O sonho - o único do qual não tenho notas cuidadosas - era mais ou menos o seguinte. O sonhador, um rapaz solteiro, estava sentado no restaurante onde costumava comer, e que foi realisticamente representado no sonho. Surgiram então várias pessoas para tirá-lo dali, e uma delas queria prendê-lo. Ele disse a seus companheiros de mesa: “Depois eu pago; vou voltar”. Mas eles exclamaram, com sorrisos zombeteiros: “Já conhecemos essa história; isso é o que todos dizem!” Um dos convivas gritou-lhe: “Lá sevai mais um!’’ Depois o conduziram a um aposento estreito, onde encontrou uma figura feminina com uma criança no colo. Uma das pessoas que o acompanhava disse: “Este é o Sr. Müller”. Um inspetor de polícia, ou algum funcionário parecido, estava remexendo num punhado de cartões ou papéis e, ao fazê-lo, repetia “Müller, Müller, Müller”. Por fim, formulou uma pergunta ao sonhador, à qual este respondeu com um “Sim”. Em seguida, ele se voltou para olhar para a figura feminina e observou que ela agora usava uma grande barba.
Não há aqui nenhuma dificuldade em separar os dois componentes. O superficial era uma fantasia de prisão, que parece como que recém-construída pelo trabalho do sonho. Mas, por trás dele, é visível um material que foi apenas ligeiramente remodelado pelo trabalho do sonho: uma fantasia de casamento. Os traços comuns a ambas as fantasias emergem com especial clareza, tal como numa das fotografias superpostas de Galton. A promessa do rapaz (que até então era solteiro) de que voltaria a se reunir com os companheiros de jantar à mesa, o ceticismo de seus companheiros (já escolados pela experiência), a exclamação “lá se vai mais um (para se casar)” - todos esses traços se encaixavam facilmente na interpretação alternativa. O mesmo se aplica ao “Sim” com que ele respondeu à pergunta do funcionário. O remexer na pilha de papéis, a constante repetição do mesmo nome, correspondia a uma característica menos importante, porém, reconhecível, das festas de casamento, a saber, a leitura de um maço de telegramas de felicitações, todos endereçados com o mesmo nome. A fantasia do casamento, na realidade, levou a melhor sobre a fantasia encobridora de prisão, com o aparecimento da noiva em pessoa no sonho. Através de uma indagação - o sonho não foi analisado -, pude descobrir por que, ao final dele, a noiva usava barba. Na véspera, o sonhador estivera andando pela rua com um amigo que era tão arredio ao casamento quanto ele, e lhe chamara a atenção para uma beldade de cabelos negros que passara por eles. “É”, comentara o amigo, “se pelo menos essas mulheres, em poucos anos, não ficassem com uma barba igual à do pai…” Não faltaram a esse sonho, naturalmente, elementos em que a distorção onírica tivesse ido mais a fundo. É bem possível, por exemplo, que as palavras “depois eu pago” se referissem ao que ele temia ser a atitude do sogro quanto à questão do dote. De fato, é evidente que toda sorte de receios impedia o sonhador de se atirar com algum prazer à fantasia de casamento. Um desses receios, o medo de que o casamento pudesse custar-lhe a liberdade, encarnou-se em sua transformação numa cena de prisão.

Se voltarmos por um momento ao ponto em que o trabalho do sonho se serve de bom grado de uma fantasia já pronta, em vez de compô-la a partir do material dos pensamentos oníricos, talvez nos achemos em condições de solucionar um dos mais interessantes enigmas relacionados com os sonhos. Em [1], relatei a famosa história de como Maury, depois de ser atingido na nuca por um pedaço de madeira enquanto dormia, despertou de um longo sonho que era como uma história completa tendo por cenário a época da Revolução Francesa. Visto que o sonho, tal como relatado, foi coerente e totalmente projetado com vistas a fornecer uma explicação para o estímulo que acordou o sonhador e cuja ocorrência ele não poderia ter previsto, a única hipótese possível parece ser a de que todo esse sonho complexo deve ter sido composto e ter ocorrido no curto espaço de tempo decorrido entre o contato do pedaço de madeira com as vértebras cervicais de Maury e seu conseqüente despertar. Nunca ousaríamos atribuir tal rapidez à atividade de pensamento na vida de vigília, e portanto, seríamos levados a concluir que o trabalho do sonho possui a vantagem de acelerar extraordinariamente nossos processos de pensamento.
Fortes objeções ao que se converteu prontamente numa conclusão popular têm sido levantadas por alguns autores mais modernos (Le Lorrain, 1894 e 1895; Egger 1895, e outros). Por um lado, eles lançam dúvidas sobre a exatidão do relato que Maury fez de seu sonho; e por outro, tentam mostrar que a rapidez das operações de nossos pensamentos de vigília não é menor do que a desse sonho, depois de descontados os exageros. O debate levantou questões de princípio cuja solução não me parece imediata. Mas devo confessar que os argumentos apresentados (por Egger, por exemplo), particularmente contra o sonho de Maury com a guilhotina, não me convencem. Eu mesmo proporia a seguinte explicação para esse sonho. Acaso será tão improvável que o sonho de Maury represente uma fantasia já pronta e armazenada em sua memória por muitos anos, e que foi despertada - ou, diria eu, “aludida” - no momento em que ele tomou conhecimento do estímulo que o acordou? Se assim fosse, teríamos escapado a toda a dificuldade de compreender como é que uma história tão longa, com todos os seus pormenores, poderia ter sido composta no curtíssimo intervalo de que dispunha o sonhador, visto que a história já teria sido composta. Se o pedaço de madeira tivesse atingido a nuca de Maury quando acordado, teria havido oportunidade para um pensamento como “Isto é o mesmo que ser guilhotinado”. Mas, como foi durante o sono que a tábua o atingiu, o trabalho do sonho serviu-se do estímulo incidente para produzir sem demora uma realização de desejo, como se pensasse (isto deve ser tomado puramente emsentido figurado): “Eis aqui uma boa oportunidade de realizar uma fantasia de desejo que se formou em tal ou qual época durante a leitura”. Dificilmente se poderia contestar, penso eu, que a história do sonho era precisamente do tipo que os jovens tendem a construir sob a influência de impressões intensamente excitantes. Quem - e, menos ainda, qual o francês ou o estudioso da história da civilização - poderia deixar de ser cativado pelas narrativas do Reinado do Terror, quando homens e mulheres da aristocracia, a fina flor da nação, mostravam-se capazes de morrer com ânimo sereno e de conservar sua agudeza de espírito e a elegância de suas maneiras até o último momento do fatal chamado? Quão tentador para um jovem mergulhar em tudo isso em sua imaginação - ver-se dizendo adeus a uma dama, beijando-lhe a mão e galgando, intrépido, o cadafalso! Ou, se a ambição fosse o motivo principal da fantasia, quão tentador para ele ocupar o lugar de um daqueles temíveis personagens que, pela simples força de suas idéias e de sua flamejante eloqüência, dominavam a cidade onde, nessa época, pulsava convulsivamente o coração da humanidade - que foram levados por suas convicções a enviar milhares de homens à morte e prepararam o terreno para a transformação da Europa, enquanto, todo o tempo, suas próprias cabeças não tinham segurança e estavam destinadas a cair um dia sob a lâmina da guilhotina - quão tentador imaginar-se como um dos girondinos, talvez, ou como o heróico Danton! Há uma característica na lembrança que Maury guardou do sonho - a de ser “conduzido ao local da execução, cercado por uma multidão imensa” - que parece sugerir que sua fantasia era, de fato, desse tipo ambicioso.
Tampouco era necessário que essa fantasia de há muito preparada fosse revivida durante o sono; bastaria apenas que fosse tocada. O que quero dizer é o seguinte; quando soam alguns compassos musicais e alguém comenta (como acontece no Don Giovanni) que são do Fígaro, de Mozart, despertam-se em mim, de uma só vez, inúmeras lembranças, nenhuma das quais pode penetrar isoladamente em minha consciência no primeiro momento. A frase-chave serve como um posto avançado através do qual toda a rede é simultaneamente posta em estado de excitação. É bem possível que o mesmo se dê no caso do pensamento inconsciente. O estímulo despertador excita o posto avançado psíquico que dá acesso a toda a fantasia da guilhotina. Mas a fantasia não é repassada durante o sono, e sim apenas na lembrança da pessoa antes adormecida, após seu despertar. Depois de acordar, ela lembra em todos os detalhes a fantasia que foi instigada em sua íntegra no sonho. Não há como certificar-se, nesse caso, de que se está realmente recordando algo que se sonhou. Essa mesma explicação - de que se trata de fantasiasjá prontas que são excitadas como um todo pelo estímulo despertador - pode ser aplicada a outros sonhos que se concentram num estímulo despertador, como, por exemplo, o sonho de Napoleão com a batalha, antes da explosão da máquina infernal [em [1], e [2]].
Entre os sonhos [1] coligidos por Justine Tobowolska em sua dissertação sobre a passagem manifesta do tempo nos sonhos, o mais instrutivo me parece ser o que relatou Macario (1857, 46) como sonhado por um autor dramático, Casimir Bonjour (Tobowolska [1900], 53). Certa noite, Bonjour desejava assistir à primeira apresentação de uma de suas peças, mas estava tão fatigado que, enquanto sentado nos bastidores, cochilou no momento exato em que o pano subia. Durante o sono, passou por todos os cinco atos da peça e observou todos os vários sinais de emoção exibidos pela platéia quando das diferentes cenas. No fim do espetáculo, ficou radiante ao ouvir seu nome gritado com as mais vivas demonstrações de aplauso. De repente, acordou. Não podia acreditar no que via nem no que ouvia, pois o espetáculo ainda não passara das primeiras linhas da primeira cena, e ele não teria dormido por mais de dois minutos. Por certo, não é demasiadamente precipitado supor, no caso desse sonho, que o fato de o sonhador ter passado por todos os cinco atos da peça e observado a atitude do público em relação aos diferentes trechos dela não precisa ter decorrido de nenhuma nova produção de material durante o sono, mas pode ter reproduzido uma atividade de fantasia já concluída (no sentido que descrevi). Tobowolska, como outros autores, ressalta o fato de que os sonhos com uma passagem acelerada das representações têm a característica comum de parecerem singularmente coerentes, ao contrário de outros sonhos, e que a lembrança deles é muito mais sumária do que pormenorizada. Essa seria realmente uma característica que tais fantasias já prontas, tocadas pelo trabalho do sonho, estariam fadadas a possuir, embora esta seja uma conclusão que os autores em causa não chegam a tirar. Não assevero, contudo, que todos os sonhos de despertar admitam essa explicação, ou que o problema da passagem acelerada das representações nos sonhos possa, desse modo, ser inteiramente descartado.
Neste ponto, é impossível evitarmos o exame da relação entre essa elaboração secundária do conteúdo dos sonhos e os demais fatores do trabalho do sonho. Deveremos acaso supor que o que acontece é que, aprincípio, os fatores formadores do sonho - a tendência à condensação, o imperativo de fugir à censura e a consideração à representabilidade pelos recursos psíquicos acessíveis ao sonho - compõem um conteúdo onírico provisório a partir do material fornecido, e que esse conteúdo é subseqüentemente remoldado para conformar-se tanto quanto possível às exigências de uma segunda instância? Isto é muito improvável. Devemos antes presumir que, desde o início, as exigências dessa segunda instância constituem uma das condições que o sonho precisa satisfazer, e que essa condição, tal como as formuladas pela condensação, pela censura imposta pela resistência e pela representabilidade, atua simultaneamente num sentido indutivo e seletivo sobre o conjunto do material presente nos pensamentos oníricos. De qualquer modo, porém, dentre as quatro condições para a formação do sonho, a que conhecemos por último é aquela cujas exigências parecem exercer a influência menos compulsória nos sonhos.
A consideração que se segue torna altamente provável que a função psíquica que empreende o que descrevemos como elaboração secundária do conteúdo dos sonhos deva ser identificada com a atividade de nosso pensamento de vigília. Nosso pensamento desperto (pré-consciente) comporta-se ante qualquer material perceptivo com que se depare exatamente do mesmo modo que se comporta a função ora examinada em relação ao conteúdo dos sonhos. É próprio de nosso pensamento de vigília estabelecer ordem nesse material, nele estruturar relações e fazê-lo conformar-se a nossas expectativas de um todo inteligível. [Ver em [1] e [2].] A rigor, chegamos a nos exceder nisso. Os adeptos da prestidigitação conseguem iludir-nos por confiarem nesse nosso hábito intelectual. Em nosso empenho de criar um padrão inteligível com impressões sensoriais que são oferecidas, muitas vezes incidimos nos mais estranhos erros, ou até falseamos a verdade do material que nos é apresentado.
As provas disso são por demais conhecidas de todos para que haja qualquer necessidade de insistirmos nelas ainda mais. Em nossas leituras, passamos por cima de erros tipográficos que destroem o sentido e temos a ilusão de que o que estamos lendo é correto. Diz-se que o editor de um popular periódico francês apostou que mandaria o tipógrafo inserir as palavras “em frente” ou “atrás” em todas as frases de um longo artigo sem que um únicode seus leitores o notasse. Ganhou a aposta. Há muitos anos, li num jornal um exemplo cômico de falsa ligação. Certa feita, durante uma sessão da Câmara francesa, uma bomba lançada por um anarquista explodiu no próprio recinto e Dupuy dominou o pânico subseqüente com as corajosas palavras: “La séance continue”. Os visitantes das galerias foram solicitados a dar suas impressões como testemunhas do atentado. Havia entre eles dois homens das províncias. Um deles disse ser verdade que ouvira uma detonação ao final de um dos discursos, mas presumira que fosse um costume parlamentar disparar um tiro sempre que um orador se sentava. O segundo, que provavelmente já tinha ouvido vários discursos, chegara à mesma conclusão, exceto pelo fato de supor que só se disparava um tiro em homenagem a algum discurso particularmente bem-sucedido.
Não há duvida, pois, de que nosso pensamento normal é que é a instância psíquica que aborda o conteúdo dos sonhos com a exigência de que ele seja inteligível, que o submete a uma primeira interpretação e que, conseqüentemente, gera um completo desentendimento dele. [Ver em [1].] Para fins de nossa interpretação, persiste como regra essencial desconsiderar invariavelmente a aparente continuidade de um sonho como sendo de origem suspeita, e percorrer o mesmo caminho de volta ao material dos pensamentos oníricos, quer o sonho em si seja claro ou confuso.
Percebemos agora, aliás, do que é que depende a escala de qualidade dos sonhos entre a confusão e a clareza, examinada em [1]. As partes do sonho em que a elaboração secundária conseguiu surtir algum efeito são claras, ao passo que as outras em que seus esforços falharam são confusas. Visto que as partes confusas do sonho, ao mesmo tempo, são freqüentemente menos vívidas, podemos concluir que o trabalho secundário do sonho também deve ser responsabilizado por uma contribuição à intensidade plástica dos diferentes elementos do sonho.
Quando procuro algo com que comparar a forma final assumida pelo sonho, tal como aparece depois que o pensamento normal faz sua contribuição, não consigo pensar em nada melhor do que as inscrições enigmáticas com que o Fliegende Blätter vem há muito entretendo os seus leitores. Eles pretendem levar o leitor a crer que uma certa frase - para efeito de contraste, uma frase em dialeto e tão chula quanto possível - é uma inscrição latina. Para esse fim, as letras contidas nas palavras são separadas de sua combinação em sílabas e dispostas numa nova ordem. Aqui e ali surge uma autêntica palavra latina; em outros pontos, parecemos ver abreviações de termos latinos, e ainda em outros pontos da inscrição, deixamo-nos ser levados a fazer vista grossa à falta de sentido das letras isoladas por partes da inscrição que parecem estar apagadas ou mostrando lacunas. Se quisermos evitar o engodo do chiste, teremos de desprezar tudo o que faça parecer uma inscrição, olhar firmemente para as letras, não prestar atenção a seu arranjo aparente e, desse modo, combiná-las em palavras pertencentes a nossa própria língua materna.
A elaboração secundária [1] é o único fator do trabalho do sonho que tem sido observado pela maioria dos autores no assunto e cuja importância tem sido apreciada. Havelock Ellis (1911, 10-11) fez uma exposição divertida do seu funcionamento: “Com efeito, podemos até imaginar a consciência adormecida dizendo a si própria: ‘Aí vem nosso amo, a Consciência de Vigília, que atribui tão enorme importância à razão e à lógica, e assim por diante. Rápido! apanhem as coisas, ponham-nas em ordem - qualquer ordem serve - antes que ele entre para tomar posse.’”
A identidade entre seu método de trabalho e o do pensamento de vigília foi enunciada com particular clareza por Delacroix (1904, 926): “Cette fonction d’interprétation n’est pas particulière au rêve; c’est le même travail de coordination logique que nous faisons sur nos sensations pendant la veille.” James Sully [1893, 355-6] é da mesma opinião, assim como Tobowolska (1900,93): “Sur ces successions incohérentes d’hallucinations, l’esprit s’efforce de faire le même travail de coordination logique qu’il fait pendant la veille sur les sensations. II relie entre elles par un lien imaginaire toutes ces images décousues et bouche les écarts trop grands qui se trouvaient entre elles.”

De acordo com alguns autores, esse processo de arranjo e interpretação se inicia durante o próprio sonho e continua após o despertar. Assim, diz Paulhan (1894, 546): “Cependant j’ai souvent pensé qu’il pouvait y avoir une certaine déformation, ou plutôt réformation, du rêve dans le souvenir … La tendance systématisante de l’imagination pourrait fort bien achever après le réveil ce qu’elle a ébauché pendant le sommeil. De la sorte, la rapidité réelle de la pensée sarait augmentée en apparencè par les perfectionnements dûs à l’imagination éveilée.”Bernard-Leroy e Tobowolska (1901, 592): “Dans le rêve, au contraire, l’interprétation et la coordination se font non seulement à l’aide des données du rêve, mais encore à l’aide de celles de la veille…”
Inevitavelmente, portanto, esse único fator reconhecido na formação dos sonhos teve sua importância superestimada, de modo que a ele se atribuiu toda a proeza da criação dos sonhos. Esse ato de criação, como supõem Goblot (1896, 288 e seg.) e mais ainda, Foucault (1906) é executado no momento do despertar, pois esses dois autores atribuem ao pensamento de vigília a capacidade de formar um sonho a partir dos pensamentos surgidos durante o sono. Bernard-Leroy e Tobowolska (1901) assim comentam essa concepção. “On a cru pouvoir placer le rêve au moment du réveil, et ils ont attribué à la pensée de la veille la fonction de construire le rêve avec les images présentes dans la pensée du sommeil.”
Dessa discussão da elaboração secundária passarei ao exame de outro fator do trabalho do sonho recentemente trazido à luz por algumas observações sutilmente perceptivas feitas por Herbert Silberer. Como mencionei antes (em [1]), Silberer apanhou em flagrante, por assim dizer, o processo de transformação dos pensamentos em imagens, impondo-se uma atividade intelectual em estados de fadiga e sonolência. Nessas ocasiões, o pensamento com que ele estava às voltas desaparecia e era substituído por uma visão que se revelava um substituto do que, em geral, eram pensamentosabstratos. (Cf. os exemplos do trecho que acabo de citar.) Ora, acontece que, nesses experimentos, a imagem que surgia, e que poderia ser comparada a um elemento de um sonho, por vezes representava algo diverso do pensamento que estava sendo abordado- a saber, a própria fadiga, a dificuldade e o desprazer frente a esse trabalho. Representava, em outras palavras, o estado subjetivo e o modo de funcionamento da pessoa que empreendia o esforço, em vez do objeto de seu empenho. Silberer descreveu tais ocorrências, que eram muito freqüentes em seu caso, como um “fenômeno funcional”, em contraste com o “fenômeno material” que seria esperável.
Por exemplo: “Uma tarde, estava deitado em meu sofá, sentindo-me extremamente sonolento; mesmo assim, forcei-me a pensar num problema filosófico. Queria comparar as concepções de Kant e Schopenhauer sobre o Tempo. Como resultado de minha sonolência, eu não conseguia manter os argumentos de ambos na mente ao mesmo tempo, o que era necessário para estabelecer o confronto. Após várias tentativas inúteis, gravei mais uma vez na mente as deduções de Kant, com toda a força de minha vontade, para que pudesse aplicá-las à formulação do problema por Schopenhauer. Voltei então minha atenção para este último, mas quando tentei retornar outra vez a Kant, verifiquei que sua tese me escapara de novo e tentei em vão captá-la novamente. Esse esforço inútil de recuperar o dossier de Kant que estava armazenado em alguma parte de minha cabeça foi subitamente representado perante meus olhos fechados como um símbolo concreto e plástico, como se fosse uma imagem onírica: “Eu pedia uma informação a um secretário descortês que estava curvado sobre sua escrivaninha e se recusava a dar ouvidos a meu pedido insistente. Ele se aprumou um pouco e me lançou um olhar desagradável e duro”. (Silberer, 1909, 513 e seg. [O grifo é de Freud.])
Eis alguns outros exemplos relacionados com a oscilação entre dormir e acordar:
“Exemplo N.º 2. - Circunstâncias: Pela manhã, ao despertar. Enquanto me achava em certo nível de sono (um estado crepuscular), refletindo sobre um sonho anterior e, de certo modo, continuando a sonhá-lo, senti-me chegar mais perto da consciência da vigília, mas quis permanecer no estado crepuscular.
Cena: Ia dando um passo para atravessar um regato, mas recuei o pé na mesma hora, com a intenção de permanecer deste lado.” (Silberer, 1912, 625.)
“Exemplo N.º 6. - Circunstâncias iguais à do exemplo N.º 4” (em que ele queria ficar na cama um pouco mais, porém sem dormir até tarde). “Queria entregar-me ao sono mais um pouquinho.”
“Cena: Estava me despedindo de alguém e combinava com ele (ou ela) encontrá-lo (la) novamente dentro em breve.” (Ibid., 627.)
O fenômeno “funcional”, “a representação de um estado em vez de um objeto”, foi observado por Silberer principalmente nas condições de adormecimento e despertar. É evidente que a interpretação dos sonhos só se interessa pelo segundo caso. Silberer tem dado exemplos que revelam de modo convincente que, em muitos sonhos, as últimas partes do conteúdo manifesto, que são imediatamente seguidas pelo despertar, representam nada mais, nada menos que uma intenção de acordar ou o processo de acordar. A representação pode ocorrer em termos de imagens como atravessar um umbral (“simbolismo do umbral”), sair de um quarto e entrar noutro, partir, voltar para casa, despedir-se de um companheiro, mergulhar n’água etc. Não posso, entretanto, deixar de observar que tenho deparado com elementos oníricos passíveis de ser relacionados com o simbolismo do umbral, seja em meus próprios sonhos, seja nos dos sujeitos a quem tenho analisado, com freqüência muito menor do que seria esperável pelas comunicações de Silberer.
De modo algum é inconcebível ou improvável que esse simbolismo do umbral venha a lançar luz sobre alguns elementos situados no meio da trama dos sonhos - nos lugares, por exemplo, onde há uma questão de oscilações na profundidade do sono e de uma inclinação para interromper o sonho. Não se apresentaram, porém, exemplos convincentes disso. O que parece ocorrer com mais freqüência são os casos de sobredeterminação, nos quais parte de um sonho que tenha derivado seu conteúdo material da interconexão dos pensamentos oníricos é empregada para representar, além disso, algum estado de atividade mental.
Esse interessantíssimo fenômeno funcional de Silberer, sem nenhuma culpa de seu descobridor, tem levado a muitos abusos, pois tem sido encarado como um apoio à antiga inclinação a se darem interpretações abstratas e simbólicas aos sonhos. A preferência pela “categoria funcional” é levada a tal ponto por certas pessoas que elas se referem ao fenômeno funcional onde quer que ocorram atividades intelectuais ou processos afetivos nos pensamentos oníricos, embora esse material não tenha nem mais nem menosdireito do qualquer outro a penetrar num sonho na qualidade de resto diurno. [Cf. [1] e [2].]
Estamos prontos a reconhecer o fato de que os fenômenos de Silberer constituem uma segunda contribuição do pensamento de vigília à formação dos sonhos, embora esteja presente com menos regularidade e seja menos significativo do que o primeiro, já introduzido sob a designação de “elaboração secundária”. Mostrou-se que parte da atenção que atua durante o dia continua a ser orientada para os sonhos durante o estado de sono, que os controla e critica e se reserva o poder de interrompê-los. Pareceu plausível reconhecer na instância anímica que assim permanece desperta o censor a quem tivemos de atribuir tão poderosa influência restritiva sobre a forma assumida pelos sonhos. O que as observações de Silberer acrescentaram a isso foi o fato de que, em certas circunstâncias, uma espécie de auto-observação participa disso e presta uma contribuição ao conteúdo do sonho. As relações prováveis dessa instância auto-observadora, que talvez seja particularmente acentuada nas mentes filosóficas, com a percepção endopsíquica, os delírios de observação, a consciência e o censor de sonhos poderão ser mais apropriadamente tratadas em outro lugar.
Tentarei agora resumir esta longa exposição sobre o trabalho do sonho. Havíamos deparado com a questão de saber se a alma emprega irrestritamente todas as suas faculdades na formação dos sonhos, ou apenas um fragmento funcionalmente restrito delas. Nossas investigações levaram-nos a rejeitar por completo essa forma de colocar a questão, como sendo inadequada às circunstâncias. Entretanto, se tivéssemos de responder à pergunta com base nos termos em que foi formulada, seríamos obrigados a responder afirmativamente a ambas as alternativas, ainda que pareçam mutuamente exclusivas. É possível distinguir duas funções isoladas na atividade anímica durante a formação do sonho: a produção dos pensamentos oníricos e sua transformação no conteúdo do sonho. Os pensamentos oníricos são inteiramente racionais e formados com o dispêndio de toda a energia psíquica de que somos capazes. Situam-se entre processos de pensamento que não se tornaram conscientes - processos dos quais, após alguma modificação,também brotam nossos pensamentos conscientes. Por muitas que sejam as questões interessantes e enigmáticas envolvidas nos pensamentos oníricos, tais questões não têm, afinal, nenhuma relação especial com os sonhos e não precisam ser tratadas entre os problemas destes. Por outro lado, a segunda função da atividade anímica na formação do sonho - a transformação dos pensamentos inconscientes no conteúdo do sonho - é peculiar à vida onírica e dela característica. Esse trabalho do sonho, propriamente dito, diverge ainda mais de nossa visão do pensamento de vigília do que tem sido suposto até pelo mais obstinado depreciador do funcionamento psíquico durante a formação dos sonhos. O trabalho do sonho não é apenas mais descuidado, mais irracional, mais esquecido e mais incompleto do que o pensamento de vigília; é inteiramente diferente deste em termos qualitativos e, por essa razão, não é, em princípio, comparável com ele. Não pensa, não calcula e nem julga de nenhum modo; restringe-se a dar às coisas uma nova forma. É exaustivamente descritível mediante a enumeração das condições que tem de satisfazer ao produzir seu resultado. Esse produto, o sonho, tem, acima de tudo, de escapar à censura, e com esse propósito em vista, o trabalho do sonho se serve do deslocamento das intensidades psíquicas a ponto de chegar a uma transmutação de todos os valores psíquicos. Os pensamentos têm de ser reproduzidos, exclusiva ou predominantemente, no material dos traços mnêmicos visuais e acústicos, e essa necessidade impõe ao trabalho do sonho uma consideração à representabilidade, que ela atende efetuando novos deslocamentos. É provável que se tenham de produzir intensidades maioresdo que as disponíveis nos pensamentos oníricos durante a noite, e para essa finalidade serve a ampla condensação efetuada com os componentes dos pensamentos oníricos. Pouca atenção é dada às relações lógicas entre os pensamentos; estas recebem, em última análise, uma representação disfarçada em certas características formais dos sonhos. Qualquer afeto ligado aos pensamentos oníricos sofre menos modificação do que seu conteúdo de representações. Tais afetos, via de regra, são suprimidos; quando retidos, são desligados das representações a que pertencem propriamente, sendo reunidos os afetos de caráter semelhante. Apenas uma única parcela do trabalho do sonho, e uma parcela que atua em grau irregular - a reelaboração do material pelo pensamento de vigília parcialmente desperto -, ajusta-se em certa medida à visão que outros autores procuraram aplicar a toda a atividade da formação do sonho. [1]

Capítulo VII - A PSICOLOGIA DOS PROCESSOS ONÍRICOS

Entre os sonhos que me foram comunicados por outras pessoas há um que merece especialmente nossa atenção neste ponto. Foi-me contado por uma paciente que dele tomou conhecimento numa conferência sobre os sonhos: sua origem real ainda me é desconhecida. Seu conteúdo impressionou essa dama, contudo, e ela tratou de “ressonhá-lo”, ou seja, de repetir alguns de seus elementos num sonho dela própria, de tal modo que, assim se apoderando dele, pudesse expressar sua concordância com ele num determinado ponto.
As condições preliminares desse sonho-padrão foram as seguintes: um pai estivera de vigília à cabeceira do leito de seu filho enfermo por dias e noites a fio. Após a morte do menino, ele foi para o quarto contíguo para descansar, mas deixou a porta aberta, de maneira a poder enxergar de seu quarto o aposento em que jazia o corpo do filho, com velas altas a seu redor. Um velho fora encarregado de velá-lo e se sentou ao lado do corpo, murmurando preces. Após algumas horas de sono, o pai sonhou que seu filho estava de pé junto a sua cama, que o tomou pelo braço e lhe sussurou em tom de censura: “Pai, não vês que estou queimando?” Ele acordou, notou um clarão intenso no quarto contíguo, correu até lá e constatou que o velho vigia caíra no sono e que a mortalha e um dos braços do cadáver de seu amado filho tinham sido queimados por uma vela acesa que tombara sobre eles.
A explicação desse sonho comovente é bem simples e, segundo me disse minha paciente, foi corretamente fornecida pelo conferencista. O clarão de luz chegou pela porta aberta aos olhos do homem adormecido e o levou à conclusão a que teria chegado se tivesse acordado, ou seja, que uma vela caída havia ateado fogo em alguma coisa nas proximidades do corpo. É possível até que, ao dormir, ele sentisse uma certa preocupação de que o velho não fosse capaz de cumprir sua tarefa.
Não é que eu tenha qualquer modificação a sugerir nessa interpretação, salvo para acrescentar que o conteúdo do sonho deve ter sido sobredeterminado e que as palavras proferidas pelo menino devem ter sido compostas deexpressões que ele realmente proferira em vida e que estavam ligadas a acontecimentos importantes no espírito do pai. Por exemplo, “Estou queimando” pode ter sido dito em meio à febre da doença fatal da criança e “Pai não vês?” talvez tenha derivado de alguma outra situação altamente carregada de afeto que nos é desconhecida.
Entretanto, depois de reconhecermos que o sonho foi um processo dotado de sentido e passível de ser inserido na cadeia de experiências psíquicas do sonhador, podemos ainda conjeturar por que teria um sonho ocorrido em tais circunstâncias, quando se fazia necessário o mais rápido despertar possível. E aqui observaremos que também esse sonho abrigou a realização de um desejo. O filho morto comportou-se no sonho como vivo; ele próprio advertiu o pai, veio até sua cama e o segurou pelo braço, tal como provavelmente fizera na ocasião de cuja lembrança se originou a primeira parte das palavras da criança no sonho. Em nome da realização desse desejo, o pai prolongou seu sono por um momento. O sonho foi preferido a uma reflexão desperta, porque podia mostrar o menino vivo outra vez. Se o pai tivesse primeiro acordado, e depois feito a inferência que o levou a ir até o quarto contíguo, teria, por assim dizer, abreviado a vida de seu filho por esse breve lapso de tempo.
Não há dúvida sobre qual é a peculiaridade que atrai nosso interesse para esse curto sonho. Até aqui, estivemos principalmente interessados no sentido secreto dos sonhos e no método para descobri-lo, bem como nos meios empregados pelo trabalho do sonho para ocultá-lo. Os problemas da interpretação do sonho ocuparam até aqui o centro da descrição. E agora esbarramos num sonho que não levanta problemas de interpretação e cujo sentido é óbvio, mas que, não obstante, como vimos, preserva as características essenciais que diferenciam tão notavelmente os sonhos da vida de vigília e, por conseguinte, requerem explicação. Só depois de havermos resolvido tudo o que diz respeito ao trabalho de interpretação é que poderemos começar a nos aperceber de quão incompleta é nossa psicologia dos sonhos.
Entretanto, antes de partirmos por esse novo caminho, será bom fazermos uma pausa e olharmos em torno, para ver se, no curso de nossa jornada até este ponto, não teremos desprezado algo importante. É que deve ficar claramente entendido que a parte fácil e agradável de nossa viagem ficou para trás. Até aqui, a menos que eu esteja muito equivocado, todos os caminhos por onde viajamos nos conduziram à luz - ao esclarecimento e a uma compreensão mais completa. Contudo, mal nos empenhamos em penetrar mais a fundo nos processos anímicos envolvidos no ato de sonhar, todos os caminhos terminam na escuridão. Não há possibilidade de explicaros sonhos como um processo psíquico, uma vez que explicar algo significa fazê-lo remontar a alguma coisa já conhecida, e não há, no momento, nenhum conhecimento psicológico estabelecido a que possamos subordinar aquilo que o exame psicológico dos sonhos nos habilita a inferir como base de sua explicação. Pelo contrário, seremos obrigados a formular diversas novas hipóteses que toquem provisoriamente na estrutura do aparelho psíquico e no jogo das forças que nele atuam. Precisamos, porém, ter o cuidado de não levar essas hipóteses muito além de suas primeiras articulações lógicas, ou seu valor se perderá em incertezas. Ainda que não façamos inferências falsas e levemos em conta todas as possibilidades lógicas, a provável imperfeição de nossas premissas ameaça levar nossos cálculos a um completo malogro. Nem mesmo partindo da mais minuciosa investigação dos sonhos ou de qualquer outra função psíquica, tomada isoladamente, é possível chegar a conclusões sobre a construção e os métodos de funcionamento do instrumento anímico, ou, pelo menos, prová-las integralmente. Para chegar a esse resultado, será necessário correlacionar todas as implicações já estabelecidas, derivadas de um estudo comparativo de toda uma série de funções. Portanto, as hipóteses psicológicas a que formos levados por uma análise dos processos oníricos deverão ficar em suspenso, por assim dizer, até que possam ser relacionadas com os resultados de outras investigações que busquem chegar ao âmago do mesmo problema a partir de outro ângulo de abordagem.

(A) O ESQUECIMENTO DOS SONHOS

Sugiro, por conseguinte, que nos voltemos primeiro para um tema que levanta uma dificuldade até agora não considerada, mas que, não obstante, é capaz de jogar por terra todos os nossos esforços de interpretação dos sonhos. Já se objetou, em mais de uma ocasião, que de fato não temos nenhum conhecimento dos sonhos que nos dispomos a interpretar ou, falando mais corretamente, que não temos nenhuma garantia de conhecê-los tal como realmente ocorreram. [Ver em [1]]
Em primeiro lugar, o que lembramos de um sonho, aquilo em que exercemos nossa arte interpretativa, já foi mutilado pela infidelidade de nossa memória, que parece singularmente incapaz de reter um sonho e bem pode ter perdido exatamente as partes mais importantes de seu conteúdo. É muito freqüente, ao procurarmos voltar a atenção para um de nossos sonhos, descobrirmos-nos lamentando o fato de que, embora tenhamos sonhado mais, não conseguimos recordar nada além de um único fragmento, ele próprio relembrado com peculiar incerteza.
Em segundo lugar, temos todas as razões para suspeitar de que nossa lembrança dos sonhos é não apenas fragmentada, mas positivamente inexata e falseada. Por um lado, podemos duvidar de se o que sonhamos foi realmente tão desconexo e nebuloso quanto é nossa lembrança dele e, por outro, também se pode pôr em dúvida se um sonho foi realmente tão coerente quanto o é no relato que dele fornecemos; se, na tentativa de reproduzi-lo, não preenchemos com material novo e arbitrariamente escolhido o que nunca esteve lá ou o que foi esquecido; se não lhe acrescentamos adornos e acabamentos, e o arredondamos de tal maneira que não há possibilidade de determinar qual pode ter sido seu conteúdo original. Na verdade, um autor, Spitta (1882, [338]), chega a ponto de sugerir que, se o sonho mostra qualquer tipo de ordem ou coerência, tais qualidades só são introduzidas nele ao tentarmos evocá-lo. [Ver em [1].] Assim, parece haver um risco de que a própria coisa cujo valor nos propusemos determinar escape-nos completamente por entre os dedos.

Até aqui, ao interpretarmos os sonhos, temos desconsiderado tais advertências. Ao contrário, aceitamos como igualmente importante interpretar tanto os componentes mais ínfimos, menos destacados e mais incertos do conteúdo dos sonhos quanto os que são preservados com mais nitidez e certeza. O sonho da injeção de Irma continha a frase “Chamei imediatamente o Dr. M.” [em [1]] e presumimos que nem mesmo esse detalhe teria penetrado no sonho, a menos que tivesse uma origem específica. Foi assim que chegamos à história da infortunada paciente a cuja cabeceira eu havia “imediatamente” chamado meu colega mais experimentado. No sonho aparentemente absurdo que tratou a diferença entre 51 e 56 como um valor desprezível, o número 51 foi mencionado diversas vezes. [Ver em [1].] Em vez de encarar isso como uma coisa banal ou indiferente, inferimos daí que havia uma segunda linha de pensamentos no conteúdo latente do sonho, levando ao número 51; e por essa trilha chegamos a meus temores de que 51 anos fossem o limite de minha vida, em flagrante contraste com a cadeia de pensamentos dominante no sonho, que era pródiga em seu alarde de uma vida longa. No sonho do “Non vixit” [em [1]], houve uma interpolação discreta que a princípio me passou despercebida: “Como P. não conseguisse entendê-lo, Fl. me perguntou”, etc. Quando a interpretação estancou, retornei a essas palavras e foram elas que me levaram à fantasia infantil que se revelou um ponto nodal intermediário nos pensamentos oníricos. [Ver em [1]] Chegou-se a isso através dos versos:

Selten habt ihr mich verstanden,
Selten auch verstand ich Euch,
Nur wenn wir im Kot uns fander,
So verstanden wir uns gleich.

Em toda análise se poderiam encontrar exemplos para mostrar que precisamente os elementos mais triviais de um sonho são indispensáveis a sua interpretação e que o trabalho em andamento é interrompido quando se tarda a prestar atenção a esses elementos. Ao interpretar sonhos, atribuímos idêntica importância a cada um dos matizes de expressão lingüística em que eles nos foram apresentados. E mesmo quando o texto do sonho, tal como o tínhamos, era sem sentido ou insuficiente - como se o esforço de fornecer dele um relato correto tivesse fracassado - levamos também essa falha em consideração. Em suma, tratamos como Sagrada Escritura aquilo que os autores precedentes haviam encarado como uma improvisação arbitrária, remendada às pressas no embaraço do momento. Essa contradição requer uma explicação.
A explicação nos é favorável, embora sem tirar a razão dos outros autores. À luz de nosso recém-adquirido entendimento da origem dos sonhos, a contradição desaparece por completo. É verdade que distorcemos os sonhos ao tentar reproduzi-los; aí reencontramos em ação o processo que descrevemos como a elaboração secundária (e muitas vezes mal formulada) do sonho pela instância encarregada do pensamento normal [em [1]]. Mas essa mesma distorção não passa de uma parte da elaboração a que os pensamentos oníricos são regularmente submetidos em decorrência da censura do sonho. Os outros autores notaram ou suspeitaram aqui do papel de distorção do sonho que atua de maneira ostensiva; quanto a nós, estamos menos interessados nisso, pois sabemos que um processo de distorção muito mais extenso, embora menos óbvio, já fez o sonho brotar dos pensamentos oníricos ocultos. O único erro cometido pelos autores precedentes foi supor que a modificação do sonho, no processo de ser lembrado e posto em palavras, é arbitrária e não admite maior análise, sendo, portanto, passível de nos fornecer uma imagem enganosa do sonho. Eles subestimaram a extensão do determinismo nos eventos psíquicos. Não há neles nada de arbitrário. De modo bastante geral, pode-se demonstrar que, se um elemento deixa de ser determinado por certa cadeia de pensamentos, sua determinação é imediatamente comandada por outra. Por exemplo, posso tentar pensar arbitrariamente num número, mas isso é impossível: o número que me ocorre é inequívoca e necessariamente determinado por pensamentos que haja em mim, ainda que estejam distantes de minha intenção imediata. Do mesmo modo, as modificações a que os sonhos são submetidos na redação [Redaktion] da vida de vigília tampouco são arbitrárias. Estão associativamente ligadas ao material que substituem e servem para indicar-nos o caminho para esse material, que, por sua vez, pode ser substituto de alguma outra coisa.
Ao analisar os sonhos de meus pacientes, às vezes submeto essa asserção ao seguinte teste, que nunca me falhou: quando o primeiro relato que me é feito de um sonho por um paciente é muito difícil de compreender, peço-lhe que o repita. Ao fazer isso, ele raramente emprega as mesmas palavras. Entretanto, as partes do sonho que ele descreve em termos diferentes são-me reveladas, por esse fato, como o ponto fraco do disfarce do sonho: servem para mim como serviu para Hagen o sinal bordado no manto de Siegfried. É esse o ponto por onde se pode iniciar a interpretação do sonho. Minha solicitação de que o paciente repetisse seu relato do sonho advertiu-o de que eu tinha o propósito de me empenhar particularmente em solucioná-lo; assim, sob a pressão da resistência, ele encobre às pressas os pontos fracos do disfarce do sonho, substituindo quaisquer expressões que ameacem trair seu sentido por outras menos reveladoras. Desse modo, atrai minha atenção para a expressão que abandonou. O empenho do sonhador em impedir a solução do sonho fornece-nos uma base para inferir o cuidado com que seu manto foi tecido.
Menos justificativa tiveram os autores precedentes para devotar tanto espaço à dúvida com que nosso juízo recebe os relatos de sonhos. É que essa dúvida não tem nenhuma justificativa intelectual. Em geral, não há garantia de exatidão de nossa memória, mas, mesmo assim, cedemos à compulsão de dar crédito a seus dados com muito mais freqüência do que seria obviamente justificado. A dúvida sobre a exatidão do relato de um sonho ou de certos pormenores dele é também um derivado da censura onírica, da resistência à irrupção dos pensamentos oníricos na consciência. Essa resistência não se esgotou nem mesmo com os deslocamentos e substituições que ocasionou; persiste sob a forma de uma dúvida ligada ao material que foi admitido [na consciência]. Ficamos especialmente inclinados a interpretar mal essa dúvida na medida em que ela tem o cuidado de nunca atacar os elementos mais intensos do sonho, mas apenas os fracos e indistintos. Como já sabemos,porém, uma completa transmutação de todos os valores psíquicos se dá entre os pensamentos oníricos e o sonho [em [1]]. A distorção só é possibilitada pela retirada do valor psíquico; habitualmente, ela se expressa por esse meio e às vezes se contenta em não pedir mais nada. Assim, quando um elemento indistinto do conteúdo do sonho é, além disso, atacado pela dúvida, temos aí uma indicação segura de estarmos lidando com um derivado mais ou menos direto de um dos pensamentos oníricos proscritos. O estado de coisas é como o que se instaurava após uma grande revolução numa das repúblicas da Antigüidade ou da Renascença. As famílias nobres e poderosas que antes haviam dominado o cenário eram mandadas para o exílio e todos os altos postos eram ocupados por recém-chegados. Apenas os membros mais empobrecidos e impotentes das famílias derrotadas ou seus dependentes distantes tinham permissão de permanecer na cidade e, mesmo assim, não desfrutavam de plenos direitos civis e eram encarados com desconfiança. A desconfiança, nessa analogia, corresponde à dúvida no caso que estamos considerando. É por isso que, ao analisar um sonho, insisto em que toda a escala de estimativas de certeza seja abandonada e que a mais ínfima possibilidade de que possa ter ocorrido no sonho algo de tal ou qual natureza seja tratada como uma certeza completa. Ao rastrear a origem de qualquer elemento do sonho, descobrir-se-á que, a menos que essa atitude seja firmemente adotada, a análise chegará a uma paralisação. Quando se lança qualquer dúvida sobre o valor do elemento em questão, o resultado psíquico, no paciente, é que não lhe ocorre nenhuma das representações involuntárias subjacentes a esse elemento. Esse resultado não é evidente por si só. Não seria absurdo que alguém dissesse: “Não sei ao certo se tal ou qual coisa entrou no sonho, mas eis o que me ocorre a respeito”. De fato, porém, ninguém jamais diz isso, e é precisamente o fato de a dúvida produzir esse efeito de interrupção na análise que a revela como um derivado e um instrumento da resistência psíquica. A psicanálise é justificadamente desconfiada. Uma de suas regras é que tudo o que interrompe o progresso do trabalho analítico é uma resistência.

Também o esquecimento dos sonhos permanece inexplicável enquanto não se leva em consideração o poder da censura psíquica. Em diversos casos, a sensação de se haver sonhado muito durante a noite e de se haver retido apenas uma pequena parcela disso pode, na realidade, ter outro sentido: por exemplo, o de que o trabalho do sonho esteve perceptivelmente ativo a noite inteira, mas só deixou atrás de si um sonho curto. [Ver em [1], [2] e [3].] Decerto é indubitável que nos esquecemos cada vez mais dos sonhos à medida que o tempo passa após o despertar; muitas vezes os esquecemos apesar dos mais esmerados esforços de relembrá-los. Entretanto, sou de opinião que a extensão desse esquecimento costuma ser superestimada; e de maneira similar se superestima o grau em que as lacunas do sonho limitam nosso conhecimento dele. Com freqüência, se pode resgatar, por meio da análise, tudo o que foi perdido pelo esquecimento do conteúdo do sonho; pelo menos, num número bastante grande de casos, pode-se reconstruir, a partir de um único fragmento remanescente, não o sonho, é verdade - o que, de qualquer modo, não tem nenhuma importância -, mas todos os pensamentos oníricos. Isso exige certa dose de atenção e autodicisplina na condução da análise; isto é tudo - mas mostra que não faltou a atuação de um propósito hostil [isto é, resistente] no esquecimento do sonho. [1]

Uma prova convincente do fato de que o esquecimento dos sonhos é tendencioso e serve aos propósitos da resistência é fornecida quando se tem a possibilidade de observar, nas análises, um estágio preliminar de esquecimento. Não é infreqüente que, no meio do trabalho de interpretação, uma parte omitida do sonho venha à luz e seja descrita como tendo sido esquecida até então. Ora, uma parte do sonho assim resgatada do esquecimento é, invariavelmente, a mais importante; situa-se sempre no caminho mais curto para a solução do sonho e por isso foi mais exposta à resistência do que qualquer outra parte. Entre os exemplos de sonhos dispersos neste volume, há um em que parte do conteúdo foi assim acrescentada como uma reflexão posterior. Trata-se do sonho em que me vinguei de dois desagradáveis companheiros de viagem e que tive de deixar quase sem interpretação por ser grosseiramente indecente. [Ver em [1]] A porção omitida era a seguinte: “Eu disse [em inglês], referindo-me a uma das obras de Schiller: ‘It is from…’, mas, notando o engano, corrigi-me: ‘It is by…’ ‘Sim’, comentou o homem com sua irmã, ‘ele disse isso corretamente.” ‘

As autocorreções nos sonhos, que parecem tão maravilhosas a certos autores, não precisam ocupar nossa atenção. Indicarei, em vez disso, a lembrança que serviu de modelo para meu erro verbal nesse sonho. Quando tinha dezenove anos, visitei a Inglaterra pela primeira vez e passei um dia inteiro nas praias do Mar da Irlanda. Naturalmente, regalei-me com a oportunidade de recolher animais marinhos deixados para trás pela maré e estava ocupado com uma estrela-do-mar - as palavras “Hollthurn” e “holotúria‘’ [lesma-do-mar] ocorreram no início do sonho - quando uma encantadora garotinha aproximou-se de mim e perguntou: “É uma estrela-do-mar? Está viva?” [It is alive] “Sim”, respondi, “está viva” [he is alive]” e, em seguida, embaraçado com meu erro, repeti a frase corretamente. O sonho substituiu o erro verbal então cometido por outro em que um alemão está igualmente sujeito a incorrer: Das Buch ist von Schiller” deveria ser traduzido não por “from”, mas por “by. Após tudo o que já aprendemos sobre os propósitos do trabalho do sonho e sua escolha afoita de métodos para atingi-los, não ficaremos surpresos em saber que ele efetuou essa substituição por causa do magnífico exemplo de condensação possibilitado pela identidade fonética entre o inglês “from” e o adjetivo alemão “fromm” [“devoto”, “beatífico”]. Mas como foi que minha inocente lembrança da beira-mar entrou no sonho? Ela funcionou como o exemplo mais inocente possível de meu emprego de uma palavra indicativa de gênero ou sexo no lugar errado - de eu trazer à baila o sexo (a palavra “he”) onde ele não era cabível. Essa, aliás, foi uma das chaves para a solução do sonho. Ademais, ninguém que tenha conhecimento da origem atribuída ao título “Matter and Motion” [“Matéria e Movimento”], de Clerk Maxwell [mencionado no sonho, em [1]] terá qualquer dificuldade em preencher as lacunas: “Le Malade Imaginaire”, de “Molière - “La matière est-elle laudable?” - Movimento dos intestinos.
Além disso, estou em condições de oferecer uma demonstração ocular do fato de que o esquecimento dos sonhos, em grande parte, é produto da resistência. Vem um de meus pacientes e me conta que teve um sonho, masesqueceu todo e qualquer vestígio dele: portanto, é como se nunca tivesse acontecido. Prosseguimos com nosso trabalho. Deparo com uma resistência; por isso, explico algo ao paciente e o auxilio, através do incentivo e da pressão, a chegar a um acordo com algum pensamento desagradável. Mal consigo fazer isso, ele exclama: “Agora me lembro do que foi que sonhei!” A mesma resistência que estava interferindo em nosso trabalho desse dia também o fizera esquecer o sonho. Superando essa resistência, resgatei o sonho para sua memória.
Exatamente da mesma maneira, quando um paciente atinge determinado ponto em seu trabalho, é possível que consiga lembrar-se de um sonho ocorrido há três ou quatro dias, ou até mais, e que até então permanecera esquecido.
A experiência psicanalítica  forneceu-nos ainda outra prova de que o esquecimento dos sonhos depende muito mais da resistência que do fato, acentuado pelas autoridades, de serem os estados de vigília e sono estranhos um ao outro [em [1]]. Não raro me acontece, tal como a outros analistas e a pacientes em tratamento, depois de ser despertado por um sonho, por assim dizer, passar imediatamente, e em plena posse de minhas faculdades intelectuais, a interpretá-lo. Nessas situações, muitas vezes me recusei a descansar enquanto não chegasse a uma compreensão completa do sonho; contudo, foi minha experiência, algumas vezes, depois de finalmente acordar pela manhã, constatar que havia esquecido inteiramente tanto minha atividade interpretativa quanto o conteúdo do sonho, embora sabendo que tivera um sonho e que o interpretara. É muito mais freqüente o sonho arrastar consigo para o esquecimento os resultados de minha atividade interpretativa do que minha atividade intelectual conseguir preservá-lo na memória. Não obstante, não existe entre minha atividade interpretativa e meus pensamentos de vigília o abismo psíquico que as autoridades supõem para explicar o esquecimento dos sonhos.
Morton Prince (1910 [141]) levantou objeções a minha explicação do esquecimento dos sonhos, mediante a alegação de que o esquecimento é apenas um caso particular da amnésia ligada aos estadosmentais dissociados, de que é impossível estender minha explicação dessa amnésia especial a outros tipos e de que, por conseguinte, minha explicação é destituída de valor até mesmo para seu propósito imediato. Seus leitores são assim lembrados de que, ao longo de todas as descrições que faz desses estados dissociados, ele nunca tentou descobrir uma explicação dinâmica para tais fenômenos. Se o tivesse feito, teria inevitavelmente descoberto que o recalque (ou, mais precisamente, a resistência criada por ele) é a causa tanto das dissociações quanto da amnésia ligada ao conteúdo psíquico destas.
Uma observação que pude fazer durante a preparação deste manuscrito mostrou-me que os sonhos não são mais esquecidos do que outros atos mentais e podem ser comparados, sem nenhuma desvantagem, com outras funções mentais, no que concerne a sua retenção na memória. Eu havia conservado registros de um grande número dos meus próprios sonhos que, por uma razão ou outra, não pudera interpretar por completo na época ou deixara inteiramente sem interpretação. E agora, passados um a dois anos, tentei interpretar alguns deles com a intenção de obter mais material para ilustrar meus pontos de vista. Essas tentativas tiveram êxito na totalidade dos casos; a rigor, pode-se dizer que a interpretação progrediu com mais facilidade após esse longo intervalo do que na época em que o sonho era uma experiência recente. Uma possível explicação disso é que, entrementes, superei algumas das resistências internas que antes me obstruíam. Ao fazer essas interpretações posteriores, comparei os pensamentos oníricos que evocara na época do sonho com a produção atual, geralmente muito mais abundante, e constatei que os antigos estavam sempre incluídos entre os novos. Meu assombro diante disso foi prontamente sustado pela consideração de que, desde longa data, desenvolvi o hábito de fazer com que meus pacientes, que às vezes me contam sonhos de anos anteriores, interpretem-nos - pelo mesmo procedimento e com o mesmo sucesso - como se os houvessem sonhado na noite anterior. Quando chegar à discussão dos sonhos de angústia, apresentarei dois exemplos dessas interpretações adiadas. [Ver em [1]] Fui levado a fazer minha primeira experiência dessa natureza pela justificável expectativa de que nisso, como em outros aspectos, os sonhos se comportariam como sintomas neuróticos. Quando trato um psiconeurótico - um histérico, digamos - pela psicanálise, sou forçado a chegar a uma explicação tanto dos sintomas mais primitivos e há muito desaparecidos de sua doença quanto dos sintomas contemporâneos que o trouxeram a mim para tratamento; e, a rigor, considero o problema primitivo mais fácil de solucionar do que o imediato. Já em 1895, foi-me possível dar uma explicação, nos Estudos sobre a Histeria [Breuer e Freud, 1895], do primeiro ataque histérico que uma mulher com mais de quarenta anos tivera aos quinze anos de idade. [Essa paciente era a Sra. Cäcilie M., mencionada ao final do Caso Clínico V.]
E quero aqui mencionar alguns outros pontos um tanto desconexos sobre a questão da interpretação dos sonhos, que talvez ajudem a orientar os leitores que se sintam porventura inclinados a conferir minhas afirmações mediante um trabalho posterior com seus próprios sonhos.
Ninguém deve esperar que uma interpretação de seus sonhos lhe caia no colo como um maná dos céus. A prática é necessária até mesmo para perceber fenômenos endópticos ou outras sensações de que nossa atenção está normalmente afastada; e isso ocorre apesar de não haver nenhum motivo psíquico lutando contra tais percepções. É decididamente mais difícil captar as “representações involuntárias”. Quem quer que procure fazê-lo deve familiarizar-se com as expectativas levantadas nesta obra e, de acordo com as regras nela estabelecidas, esforçar-se, durante o trabalho, por se abster de qualquer crítica, qualquer parti pris e qualquer inclinação afetiva ou intelectual. Deve ter em mente o conselho de Claude Bernard aos experimentadores de um laboratório de fisiologia: “travailler comme une bête” - isto é, trabalhar com a mesma persistência de um animal e com idêntica despreocupação com o resultado. Se esse conselho for seguido, já não será difícil a tarefa.
Nem sempre se pode consumar a interpretação de um sonho de uma só vez. Depois de seguirmos uma cadeia de associações, não raro sentimos esgotada nossa capacidade; nada mais se pode saber do sonho nesse dia. O mais aconselhável, nesse caso, é interromper o trabalho e retomá-lo em outro dia: outra parte do conteúdo do sonho poderá então atrair nossa atenção e dar-nos acesso a outra camada dos pensamentos oníricos. Esse procedimento poderia ser descrito como interpretação “fracionada” do sonho.

Só com extrema dificuldade é que o principiante na tarefa de interpretar sonhos se deixa persuadir de que sua tarefa não chega ao fim quando ele tem nas mãos uma interpretação completa - uma interpretação que faz sentido, é coerente e esclarece todos os elementos do conteúdo do sonho. É que um mesmo sonho pode ter também outra interpretação, uma “superinterpretação” que lhe escapou. De fato, não é fácil ter uma concepção da abundância das cadeias inconscientes de pensamento ativas em nosso psiquismo, todas lutando por encontrar expressão. Tampouco é fácil dar crédito à perícia exibida pelo trabalho do sonho na descoberta permanente de formas de expressão capazes de abrigar diversos sentidos - como o Alfaiatezinho do conto de fadas que acertou sete moscas com um só golpe. Meus leitores estarão sempre inclinados a me acusar de introduzir uma quantidade desnecessária de engenhosidade em minhas interpretações; mas a experiência real lhes ensinaria que não é bem assim. [Ver em [1].]
Por outro lado, [1] não posso confirmar a opinião, originalmente formulada por Silberer [p. ex., 1914, Parte II, Seção 5], de que todos os sonhos (ou muitos sonhos, ou certas classes de sonhos) requerem duas interpretações diferentes, que se afirma até mesmo possuírem uma relação fixa entre si. Afirma-se que uma dessas interpretações, que Silberer chama de “psicanalítica”, dá ao sonho um ou outro sentido, geralmente de cunho infantil-sexual; quanto à outra interpretação, mais importante, a que ele dá o nome de “anagógica”, diz-se que revela os pensamentos mais sérios, muitas vezes de implicações profundas, que o trabalho do sonho tomou como material. Silberer não forneceu provas confirmadoras dessa opinião através do relato de uma série de sonhos analisados nessas duas direções. E tenho de objetar que inexiste o fato alegado. A despeito do que ele diz, a maioria dos sonhos não requer ‘’superinterpretação” e, mais particularmente, é insuscetível à interpretação “anagógica”. Tal como ocorre com muitas outras teorias formuladas em anos recentes, é impossível desprezar o fato de que as opiniões de Silberer são influenciadas, até certo ponto, por uma tendência que visa a disfarçar as circunstâncias fundamentais em que se formam os sonhos e desviar o interesse de suas raízes pulsionais. Em certo número de casos, pude corroborar as afirmações de Silberer. A análise demonstrou que, em tais casos, o trabalho do sonho viu-se diante do problema de transformar em sonho uma série de pensamentos altamente abstratos da vida de vigília, insuscetíveis a receber qualquer representação direta. Esforçou-se por resolver esse problema apoderando-se de outro grupo do material intelectual um tanto frouxamente relacionado com os pensamentos abstratos (muitas vezes, de maneira que se poderia descrever como “alegórica”) e, ao mesmo tempo, passível de ser representado com menor dificuldade. A interpretação abstrata de um sonho assim surgido é dada pelo sonhador sem qualquer dificuldade; a interpretação “correta” do material interpolado deve ser buscada pelos métodos que agora nos são familiares.
Caso se pergunte se é possível interpretar todos os sonhos, a resposta deve ser negativa. Não se deve esquecer que, na interpretação de um sonho, tem-se como oponentes as forças psíquicas que foram responsáveis por sua distorção. É numa relação de forças, portanto, que se determina se nosso interesse intelectual, nossa capacidade de autodisciplina, nossos conhecimentos psicológicos e nossa prática de interpretar sonhos irão habilitar-nos a dominar nossas resistências internas. É sempre possível caminhar um pouco: o bastante, pelo menos, para nos convencermos de que o sonho é uma estrutura provida de sentido, e, em geral, o bastante para entrever qual é esse sentido. Com muita freqüência, um sonho que vem logo a seguir permite-nos confirmar e levar adiante a interpretação que adotamos experimentalmente para seu antecessor. Muitas vezes, uma série de sonhos que se estende por um período de semanas ou meses está baseada num fundo comum e, por conseguinte, deve ser interpretada como um conjunto interligado. [Ver em [1] e [2].] No caso de dois sonhos consecutivos, observa-se com freqüência que um deles toma como ponto central algo que se acha apenas na periferia do outro e vice-versa, de maneira que também suas interpretações são mutuamente complementares. Já forneci exemplos que mostram que os diferentes sonhos de uma mesma noite, em regra bastante geral, devem ser tratados como um todo único em sua interpretação. [Ver em [1]]
Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é freqüente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. [Ver em [1].] Os pensamentos oníricos a que somos levados pela interpretação não podem,pela natureza das coisas, ter um fim definido; estão fadados a ramificar-se em todas as direções dentro da intricada rede de nosso mundo do pensamento. É de algum ponto em que essa trama é particularmente fechada que brota o desejo do sonho, tal como um cogumelo de seu micélio.
Mas temos de retornar aos fatos concernentes ao esquecimento dos sonhos, pois deixamos de tirar deles uma importante conclusão. Vimos que a vida de vigília mostra uma tendência inequívoca a esquecer qualquer sonho que se tenha formado durante a noite, seja como um todo, logo após o despertar, seja aos bocadinhos no correr do dia; e reconhecemos que o principal responsável por esse esquecimento é a resistência anímica ao sonho, resistência essa que já fez o que pôde contra ele durante a noite. Mas, se é assim, uma questão se coloca: como é que o sonho pode chegar a se formar em face dessa resistência? Tomemos o caso mais extremo, em que a vida de vigília se descarta de um sonho como se ele nunca houvesse ocorrido. Um exame da interação das forças psíquicas nesse caso deverá levar-nos a inferir que o sonho de fato não teria ocorrido se a resistência fosse tão acentuada durante a noite quanto o é durante o dia. Temos de concluir que, no decorrer da noite, a resistência perde parte de seu poder, embora saibamos que não o perde inteiramente, uma vez que já mostramos o papel que desempenha na formação dos sonhos como agente deformador. Mas somos levados a supor que seu poder fique diminuído à noite e que isso possibilite a formação dos sonhos. Fica então fácil compreender como, depois de recuperar a plenitude de sua força no momento do despertar, ela passa imediatamente a se livrar daquilo que foi obrigada a permitir enquanto enfraquecida. Diz-nos a psicologia descritiva que o principal sine qua non para a formação de sonhos é que a mente esteja em estado de sono; e agora podemos explicar esse fato; o estado de sono possibilita a formação de sonhos porque reduz o poder da censura endopsíquica.
É sem dúvida tentador encarar essa inferência como a única possível a partir dos fatos do esquecimento dos sonhos e fazer dela a base para outras conclusões quanto às condições de energia que prevalecem durante o sono e a vigília. Por ora, entretanto, deter-nos-emos aqui. Quando tivermos penetrado um pouco mais a fundo na psicologia dos sonhos, veremos que os fatores que possibilitam sua formação também podem ser concebidos de outra maneira. Talvez a resistência à conscientização dos pensamentos oníricos possa ser evitada sem que tenha havido qualquer redução em seu poder. E parece plausível que ambos os fatores que favorecem a formação dos sonhos - a redução e a evitação da resistência - sejam simultaneamentepossibilitados pelo estado de sono. Farei aqui uma interrupção, embora vá retomar este tema dentro em breve. [Ver em [1]]
Existe outro conjunto de objeções a nosso método de interpretação dos sonhos, do qual devemos agora tratar. Nosso procedimento consiste em abandonar todas as representações-meta que normalmente dirigem nossas reflexões, focalizar nossa atenção num único elemento do sonho e, então, tomar nota de todos os pensamentos involuntários que possam ocorrer-nos a propósito dele. Tomamos então a parte seguinte do sonho e repetimos o processo com ela. Deixamo-nos impelir por nossos pensamentos, qualquer que seja a direção em que nos conduzam, e assim vagamos a esmo de uma coisa para outra. Mas nutrimos a firme crença de que, no final, sem qualquer intervenção ativa de nossa parte, chegaremos aos pensamentos oníricos de que se originou o sonho.
Nossos críticos objetam a isso nos seguintes termos: não há nada de maravilhoso no fato de um elemento isolado do sonho nos conduzir a algum lugar; toda representação pode ser associada com algo. O que é excepcional é que uma cadeia de pensamentos tão arbitrária e sem objetivo nos leve aos pensamentos oníricos. A probabilidade é que nos estejamos iludindo. Seguimos uma cadeia de associações que parte de um elemento até que, por uma razão ou outra, ela parece romper-se. Se tomarmos então um segundo elemento, é de se esperar que o caráter originalmente irrestrito de nossas associações se estreite, pois ainda temos a cadeia anterior de associações em nossa memória e, por essa razão, aos analisarmos a segunda representação onírica, é mais provável que esbarremos em associações que tenham algo em comum com as da primeira cadeia. Iludimo-nos então com a idéia de havermos descoberto um pensamento que é um ponto de ligação entre dois elementos do sonho. Uma vez que nos damos total liberdade para ligar os pensamentos como bem entendermos, e visto que, na realidade, as únicas transições que excluímos de uma representação para outra são as que vigem no pensamento normal, não teremos nenhuma dificuldade, com o correr do tempo, em compor, a partir de alguns “pensamentos intermediários”, algo que descrevemos como sendo os pensamentos oníricos e que - embora sem qualquer garantia, pois não dispomos de outros conhecimentos do que sejam os pensamentos oníricos - alegamos ser o substituto psíquico do sonho. Mas tudo isso é completamente arbitrário; estamos meramente explorando ligações fortuitas de uma maneira que propicia um efeito engenhoso. Assim, quem quer que se dê a todo esse trabalho inútil poderá excogitar para qualquer sonho a interpretação que mais lhe aprouver.

Se de fato nos levantassem tais objeções, poderíamos defender-nos apelando para a impressão causada por nossas interpretações, para as surpreendentes ligações com outros elementos do sonho que emergem enquanto seguimos uma de suas representações isoladas, e para a improbabilidade de que se pudesse chegar a algo capaz de dar uma explicação tão exaustiva do sonho senão seguindo ligações psíquicas já estabelecidas. Poderíamos também assinalar, em nossa defesa, que nosso procedimento na interpretação dos sonhos é idêntico ao procedimento pelo qual resolvemos os sintomas histéricos; e nisso, a correção de nosso método é atestada pela emergência e desaparecimento coincidentes dos sintomas, ou, para usar um símile, as afirmações feitas no texto são corroboradas pelas ilustrações que as acompanham. Mas não temos nenhuma razão para nos esquivarmos do problema de como é possível chegar-se a um objetivo preexistente seguindo o curso fortuito de uma cadeia de pensamentos arbitrária e sem meta alguma; e isso porque, embora talvez não possamos solucionar o problema, podemos esvaziá-lo por completo.
Ocorre que é demonstravelmente inverídico que estejamos sendo arrastados por uma corrente de representações sem meta alguma quando, no processo de interpretar um sonho, abandonamos a reflexão e deixamos que emerjam representações involuntárias. Pode-se demonstrar que a única coisa de que conseguimos libertar-nos são as representações-meta que nos são conhecidas; mal fazemos isso, as representações-meta desconhecidas - ou, como dizemos sem precisão, “inconscientes” - assumem o comando e, daí por diante, determinam o curso das representações involuntárias. Nenhuma influência que possamos exercer sobre nossos processos anímicos nos facultará pensar sem representações-meta, nem tenho conhecimento de qualquer estado de confusão psíquica que seja capaz de fazê-lo. Os psiquiatrasrenunciaram com excessiva pressa, nesse aspecto, a sua crença na concatenação dos processos psíquicos. Sei com certeza que não ocorrem cadeias de pensamento desprovidas de representações-meta nem na histeria e na paranóia, nem na formação ou resolução dos sonhos. É possível que elas não ocorram em nenhum dos distúrbios psíquicos endógenos. Até mesmo os delírios dos estados confusionais podem ter sentido, se aceitarmos a brilhante sugestão de Leuret [1834, 131] de que eles só nos são inteligíveis por causa das lacunas que apresentam. Eu próprio formei a mesma opinião a cada vez que tive oportunidade de observá-los. Os delírios são obra de uma censura que já não se dá ao trabalho de ocultar seu funcionamento; em vez de colaborar para produzir uma nova versão que seja inobjetável, ela suprime brutalmente tudo aquilo a que desaprova, de maneira que o que resta se torna muito desconexo. Essa censura age exatamente como a censura dos jornais na fronteira russa, que só permite que os periódicos estrangeiros caiam nas mãos dos leitores por quem tem o dever de zelar depois de colocar uma tarja negra sobre diversos trechos.
É possível que um livre jogo das representações com uma cadeia de associações fortuita seja encontrado nos processos cerebrais orgânicos destrutivos; o que é encarado como tal nas psiconeuroses é sempre explicável como um efeito da influência da censura numa cadeia de pensamentos empurrada para o primeiro plano por representações-meta que permaneceram ocultas. Tem-se considerado como sinal infalível de que uma associação está isenta da influência das representações-meta o fato de as associações (ou imagens) em questão parecerem inter-relacionadas de um modo que se descreve como “superficial” - por assonância, ambigüidade verbal, coincidência temporal sem relação interna de sentido, ou por qualquer associação do tipo que permitimos nos chistes ou nos trocadilhos. Essa característica está presente nas cadeias de pensamento que vão dos elementos do sonho até os pensamentos intermediários e, destes, até os pensamentos oníricos propriamente ditos; já vimos exemplos disso - não sem espanto - em muitas análises de sonhos. Nenhuma ligação era solta demais, nenhum chiste era precário demais para servir de ponte entre um pensamento e outro. Mas a verdadeira explicação desse estado de coisas tolerante não tarda em ser descoberta. Sempre que um elemento psíquico está vinculado a outro por uma associação objetável ou superficial, há também entre eles um vínculo legítimo e mais profundo que está submetido à resistência da censura.
A verdadeira razão do predomínio de associações superficiais não está no abandono das representações-meta, mas sim na pressão da censura. As associações superficiais substituem as profundas quando a censura torna intransitáveis as vias normais de ligação. Podemos imaginar, a título de analogia, uma região montanhosa onde uma interrupção geral do tráfego (devida a inundações, por exemplo) bloqueou as estradas principais, mais importantes, porém onde as comunicações ainda são mantidas através de trilhas inconvenientes e íngremes, normalmente utilizadas apenas pelos caçadores.
Aqui se podem distinguir dois casos, embora, em essência, eles sejam o mesmo. No primeiro, a censura se volta apenas contra a ligação entre dois pensamentos que, separadamente, não suscitam objeção. Nesse caso, os dois pensamentos penetram sucessivamente na consciência; a ligação entre eles permanece oculta e, em seu lugar, ocorre-nos entre os dois uma ligação superficial em que, de outra maneira, nunca teríamos pensado. Essa ligação costuma estar vinculada a uma parte do complexo de representações muito diferente daquela em que se baseia a ligação suprimida e essencial. O segundocaso é aquele em que os dois pensamentos, por si só, são submetidos à censura por causa de seu conteúdo. Sendo assim, nenhum dos dois aparece em sua forma verdadeira, mas apenas numa forma modificada que a substitui, e os dois pensamentos substitutos são escolhidos de maneira a possuírem uma associação superficial que reproduza o vínculo essencial que relaciona os dois pensamentos substituídos. Em ambos os casos, a pressão da censura resultou num deslocamento de uma associação normal e séria para uma associação superficial e aparentemente absurda.
Uma vez que estamos cientes da ocorrência desses deslocamentos, não hesitamos, na interpretação dos sonhos, em confiar tanto nas associações superficiais quanto nas outras.
Na psicanálise das neuroses, faz-se o mais amplo uso desses dois teoremas - que, quando se abandonam as representações-meta conscientes, as representações-meta ocultas assumem o controle do fluxo de representações, e que as associações superficiais são apenas substitutos, por deslocamento, de associações mais profundas e suprimidas. A rigor, esses teoremas transformaram-se em pilares básicos da técnica psicanalítica. Quando instruo um paciente a abandonar qualquer tipo de reflexão e me dizer tudo o que lhe vier à cabeça, estou confiando firmemente na premissa de que ele não conseguirá abandonar as representações-meta inerentes ao tratamento, e sinto-me justificado para inferir que o que se afigura como as coisas mais inocentes e arbitrárias que ele me conta está de fato relacionado com sua enfermidade. Há uma outra representação-meta de que o paciente não desconfia - uma que se relaciona comigo. A plena avaliação da importância desses dois teoremas, bem como as informações mais pormenorizadas sobre eles, enquadram-se no âmbito de uma exposição da técnica da psicanálise. Aqui atingimos, portanto, um dos pontos limítrofes em que, segundo nosso programa, devemos abandonar o tema da interpretação dos sonhos.

Há uma conclusão verdadeira que podemos extrair dessas objeções, qual seja, que não precisamos supor que todas as associações ocorridas durante o trabalho de interpretação tenham tido lugar no trabalho do sonho durante a noite. [Ver em [1] e [2].] É verdade que, ao fazermos a interpretação no estado de vigília, seguimos um caminho que retrocede dos elementos do sonho para os pensamentos oníricos, e que o trabalho do sonho seguira um rumo inverso. Mas é altamente improvável que esses caminhos sejam transitáveis em ambos os sentidos. Ao contrário, parece que, durante o dia, enveredamos por novas cadeias de pensamentos e que essas veredas estabelecem contato com os pensamentos intermediários e com os pensamentos oníricos ora num ponto, ora noutro. É fácil perceber como, dessa maneira, o novo material diurno se imiscui nas cadeias interpretativas. É provável também que o aumento da resistência instaurado desde a noite torne necessários novos e mais tortuosos desvios. O número e a natureza dos fios colaterais [ver em [1]] que assim tecemos durante o dia não têm a menor importância psicológica, desde que nos conduzam aos pensamentos oníricos de que estamos à procura.

continua na Parte2