A interpretação dos sonhos
(Segunda parte)
e
Sobre os sonhos
VOLUME V
(1900-1901)
DIE
TRAUMDEUTUNG
von
Dr. SIGMUND FREUD
--------------------------------
FLECTERE SI NEQUEO SUPEROS, ACHERONTA MOVEBO.
--------------------------------
LEIPZIG UND WIEN.
FRANZ DEUTICKE.
1900-1901
---------------------------
Capítulo VI (continuação)
(D)
CONSIDERAÇÃO À REPRESENTABILIDADE
Ocupamo-nos até
agora com a investigação dos meios pelos quais os sonhos representam as relações
entre os pensamentos oníricos. No curso dessa pesquisa, porém, tocamos mais de
uma vez no tópico adicional da natureza geral das modificações por que passa o
material dos pensamentos do sonho para fins de formação de um sonho. Aprendemos
que esse material, despojado em grande parte de suas relações, é submetido a um
processo de compressão, enquanto que, ao mesmo tempo, os deslocamentos de
intensidade entre seus elementos promovem necessariamente uma transposição
psíquica dos valores do material. Os deslocamentos que examinamos até agora
mostraram consistir na substituição de alguma representação particular por
outra estreitamente associada a ela em algum aspecto, e foram utilizados para
facilitar a condensação, na medida em que, por meio deles, em vez de dois
elementos, um único elemento intermediário comum a ambos penetra no sonho.
Ainda não nos referimos a nenhum outro tipo de deslocamento. As análises nos
mostram, contudo, que existe uma outra espécie, e que ela se revela numa
mudança da expressão verbal dos pensamentos em causa. Em ambos os casos,
há um deslocamento ao longo de uma cadeia de associações; mas um processo de
tal natureza pode ocorrer em várias esferas psíquicas, e o resultado do
deslocamento pode ser, num caso, a substituição de um elemento por outro,
enquanto o resultado em outro caso pode ser o de um elemento isolado ter sua forma
verbal substituída por outra.
Esta segunda
espécie de deslocamento que ocorre na formação dos sonhos tem não apenas grande
interesse teórico, como é também especialmente adequada para explicar o
aparecimento do fantástico absurdo em que os sonhos se disfarçam. A direção
tomada pelo deslocamento geralmente resulta no fato de uma expressão insípida e
abstrata do pensamento onírico ser trocada por uma expressão pictórica e
concreta. A vantagem e, conseqüentemente, o objetivo dessa troca saltam os
olhos. Uma coisa pictórica é, do ponto de vista do sonho, uma coisa passível
de ser representada: pode ser introduzida numa situação em que as
expressões abstratas oferecem à representação nos sonhos o mesmo tipo de
dificuldades que um editorialpolítico num jornal ofereceria a um ilustrador.
Mas não somente a representabilidade, como também os interesses da condensação
e da censura podem beneficiar-se dessa troca. Um pensamento onírico não é
utilizável enquanto expresso em forma abstrata, mas, uma vez que tenha sido
transformado em linguagem pictórica, os contrastes e identificações do tipo que
o trabalho do sonho requer, e que ele cria quando já não estão presentes, podem
ser estabelecidos com mais facilidade do que antes entre a nova forma de
expressão e o restante do material subjacente ao sonho. Isso se dá porque, em
todas as línguas, os termos concretos, em decorrência da história de seu
desenvolvimento, são mais ricos em associações do que os conceituais. Podemos
supor que boa parte do trabalho intermediário executado durante a formação de
um sonho, que procura reduzir os pensamentos oníricos dispersos à expressão
mais sucinta e unificada possível, se processe no sentido de encontrar
transformações verbais apropriadas para os pensamentos isolados. Qualquer
pensamento cuja forma de expressão porventura seja fixa, por outras razões,
atua de maneira determinante e seletiva sobre as possíveis formas de expressão
destinadas aos outros pensamentos, e talvez o faça desde o início - como ocorre
ao se compor um poema. Quando um poema tem de ser escrito em rimas, o segundo
verso de um dístico é limitado por duas condições: precisa expressar um
significado apropriado e a expressão desse significado deve rimar com o
primeiro verso. Sem dúvida, o melhor poema será aquele em que deixarmos de
notar a intenção de encontrar uma rima, em que os dois pensamentos, por
influência mútua, tiverem escolhido desde o início uma expressão verbal que permita
surgir uma rima com apenas um ligeiro ajustamento subseqüente.
Em alguns casos,
esse tipo de mudança de expressão ajuda a condensação onírica ainda mais
diretamente, descobrindo uma forma de palavras que, devido a sua ambigüidade,
seja capaz de dar expressão a mais de um dos pensamentos do sonho. Dessa
maneira, todo o campo do chiste verbal é posto à disposição do trabalho do
sonho. Não há por que nos surpreendermos com o papel desempenhado pelas
palavras na formação dos sonhos. As palavras, por serem o ponto nodal de
numerosas representações, podem ser consideradas como predestinadas à
ambigüidade; e as neuroses (por exemplo, na estruturação de obsessões e
fobias), não menos do que os sonhos, servem-se à vontade das vantagens assim
oferecidas pelas palavras para fins de condensação e disfarce.É fácil demonstrar que também a distorção do sonho se beneficia do
deslocamento de expressão. Quando uma palavra ambígua é empregada em lugar de
duas inequívocas, o resultado é desnorteador; e quando nosso sóbrio método
cotidiano de expressão é substituído por um método pictórico, nossa compreensão
fica paralisada, particularmente visto que um sonho nunca nos diz se seus
elementos devem ser interpretados literalmente ou num sentido figurado, ou se
devem ser ligados ao material dos pensamentos oníricos diretamente ou por
intermédio de alguma locução intercalada. [1] Ao se interpretar qualquer
elemento onírico, é em geral duvidoso:
(a) se ele deve
ser tomado num sentido positivo ou negativo (como uma relação antitética),
(b) se deve ser
interpretado historicamente (como uma lembrança),
(c) se deve ser
interpretado simbolicamente, ou
(d) se sua
interpretação deve depender de seu enunciado. Contudo, apesar de toda essa
ambigüidade, é lícito dizer que as produções do trabalho do sonho, que, convém
lembrar, não são feitas com a intenção de serem entendidas, não
apresentam a seus tradutores maior dificuldade do que as antigas inscrições
hieroglíficas àqueles que procuram lê-las.
Já apresentei
vários exemplos de representações nos sonhos que só se mantêm unidas pela
ambigüidade de seu enunciado. (Por exemplo, “Ela abriu a boca como devia” no
sonho da injeção de Irma [em [1]], e “Afinal, não pude ir”, no sonho que citei
por último [em [1]].) Registrarei agora um sonho em que um papel considerável
foi desempenhado pela transformação de pensamentos abstratos em imagens. A
distinção entre esse tipo de interpretação dos sonhos e a interpretação por
meio do simbolismo pode ainda ser traçada com muita nitidez. No caso da interpretação
simbólica dos sonhos, a chave da simbolização é arbitrariamente escolhida pelo
intérprete, ao passo que, em nossos casos de disfarce verbal, as chaves são
geralmente conhecidas e estabelecidas pelo uso lingüístico firmemente
consagrado. Quando se dispõe de idéia certa no momento exato, é possível
solucionar no todo ou em parte esse tipo de sonhos, até mesmo independentemente
das informações do sonhador.
Uma senhora
conhecida minha teve o seguinte sonho: Ela estava na Ópera. Encenava-se uma
ópera de Wagner, que durara até quinze para as oito da manhã. Havia mesas
postas nas primeiras filas da platéia, onde as pessoas estavam comendo e
bebendo. Seu primo, que acabara de voltar da lua-de-mel, estava sentado a uma
das mesas com sua jovem esposa, e havia um aristocrata sentado ao lado deles. A
mulher de seu primo, ao que parecia, trouxera-o com ela da lua-de-mel, muito
abertamente, como quem trouxesse um chapéu. No meio das poltronas havia uma
torre alta, com uma plataforma no topo circundada por uma grade de ferro. Lá em
cima estava o maestro, que tinha as feições de Hans Richter. Ele corria em
círculos junto à grade e transpirava violentamente; e dessa posição regia a
orquestra, que estava agrupada em torno da base da torre. Ela própria estava
sentada num camarote com uma amiga (que eu conhecia). Sua irmã mais nova
queria, das poltronas, entregar-lhe um grande pedaço de carvão, sob a alegação
de que ela não sabia que iria demorar tanto, e àquela altura devia estar
simplismente congelando. (Como se os camarotes precisassem ser aquecidos
durante o longo espetáculo.)
Muito embora
tivesse bem focalizado numa única situação, o sonho, sob outros aspectos, era
bastante absurdo: a torre no meio da platéia, por exemplo, com o maestro
regendo a orquestra lá do alto! E, acima de tudo, o carvão que sua irmã lhe
entregou! Abstive-me deliberadamente de pedir uma análise do sonho. Mas, como
tivesse algum conhecimento das relações pessoais da sonhadora, pude interpretar
certas partes do sonho independentemente dela. Eu sabia que ela simpatizara
muito com um músico cuja carreira fora prematuramente interrompida pela
loucura. Assim, resolvi considerar a torre entre as poltronas em sentido
metafórico. Emergiu então a idéia de que o homem que ela queria ver no lugar de
Hans Richter erguia-se qual uma torre muito acima dos outros membros da
orquestra. A torre poderia ser descrita como uma imagem composta formada por
aposição. A parte inferior de sua estrutura representava a grandeza do homem; a
grade do topo, por trás da qual ele corria em círculos como um prisioneiro ou
um animal enjaulado - o que era uma alusão ao nome do infeliz -
representava seu destino final. As duas idéias poderiam ter-se reunido na
palavra “Narrenturm”.
Tendo assim
descoberto o modo de representação adotado pelo sonho, poderíamos tentar
utilizar a mesma chave para solucionar seu segundo aparente absurdo - o carvão
entregue à sonhadora por sua irmã. “Carvão” devia significar “amor secreto”:
Kein Feuer, keine Kohle
kann brennen so heiss
als wie heimliche Liebe,
von der niemand nichts weiss.
Ela própria e
sua amiga tinham ficado solteiras [alemão “sitzen geblieben”,
literalmente, “ficado sentadas”]. Sua irmã mais nova, que ainda tinha
perspectivas de casamento, entregou-lhe o carvão “por não ter sabido que iria
demorar tanto”. O sonho não especificava o que demoraria tanto. Se
isso fosse uma história, diríamos “a encenação”; mas, como se trata de um
sonho, podemos tomar a oração como uma entidade independente, decidir que foi
empregada de maneira ambígua e acrescentar as palavras “até ela se casar”.
Nossa interpretação do “amor secreto” é ainda apoiada pela menção ao primo da
sonhadora, sentado com a mulher nas poltronas da platéia, pelo romance ostensivo
atribuído a esta última. O sonho foi dominado pela antítese entre amor secreto
e amor aparente e entre o ardor da própria sonhadora e a frieza da jovem
esposa. Em ambos os casos, além disso, havia alguém “altamente situado” - um
termo que se aplica igualmente ao aristocrata e ao músico no qual se haviam
depositado tão grandes esperanças. [1]
A discussão
precedente levou-nos enfim à descoberta de um terceiro fator cuja
participação na transformação dos pensamentos do sonho em conteúdo onírico não
deve ser subestimada: a saber, a consideração à representabilidade no
material psíquico peculiar que os sonhos utilizam - ou seja, na sua maior
parte, a representabilidade em imagens visuais. Dentre os vários pensamentos
acessórios ligados aos pensamentos oníricos essenciais, dá-se preferência
àqueles que admitem representação visual; e o trabalho do sonho não se furta ao
esforço de remodelar pensamentos inadaptáveis numa nova forma verbal - mesmo
numa que seja menos usual -, contanto que esse processo facilite a
representação e, desse modo, alivie a pressão psicológica causada pela
constrição da ação de pensar. Essa vertedura do conteúdo de um pensamento num
outro molde pode, ao mesmo tempo, atender às finalidades da atividade de
condensação e criar ligações, que de outro modo talvez não se fizessem
presentes, com algum outro pensamento; quanto a este segundo pensamento, ele já
pode ter tido sua forma original de expressão modificada, com vistas a
juntar-se ao primeiro a meio caminho.
Herbert Silberer
(1909) [1] apontou uma boa maneira de observar diretamente a transformação
de pensamentos em imagens no processo de formação dos sonhos e, assim, estudar
isoladamente esse fator do trabalho do sonho. Quando, achando-se num estado de
fadiga e sonolência, ele se impunha alguma tarefa intelectual, verificava que,
muitas vezes, um pensamento lhe escapava e em seu lugar surgia uma imagem, que
ele então podia reconhecer como um substituto do pensamento. Silberer descreve
esses substitutos com o termo não muito apropriado de “auto-simbólicos”.
Citarei aqui alguns exemplos do artigo de Silberer [ibid., 519-22] e
terei oportunidade, em virtude de certas características dos fenômenos em
pauta, de voltar a eles posteriormente. [Ver em [1]]
“Exemplo 1.
-Pensei em ter de revisar um trecho irregular num ensaio.
“Símbolo.
- Vi-me aplainando um pedaço de madeira.”
‘’Exemplo 5.
- Eu me esforçava por convercer-me do objetivo de certos estudos metafísicos
que me propunha fazer. Seu objetivo, refleti, era o esforço de conquistar
formas de consciência e camadas de existência cada vez mais elevadas na busca
dos fundamentos da existência.
“Símbolo.
- Eu estava empurrando uma longa faca por baixo de um bolo, como se quisesse
levantar uma fatia.
“Interpretação.
- Meu movimento com a faca significava ‘meu esforço de conquista’ em questão.
(…) Eis a explicação do simbolismo. Vez por outra, cabe a mim nas refeições
cortar um bolo e distribuir as porções. Realizo essa tarefa com uma faca longa
e flexível, o que exige algum cuidado. Em particular, levantar habilmente as
fatias depois de terem sido cortadas traz certas dificuldades; a faca deve ser
empurrada cuidadosamente por baixo da fatia (correspondente ao lento ‘esforço
de conquista’ para chegar aos ‘fundamentos’). Mas há ainda um simbolismo nessa
imagem, pois o bolo do símbolo era um bolo ‘Dobos’ - um bolo com diversas
‘camadas’ através das quais, ao cortá-lo, a faca tem de penetrar (as ‘camadas’
da consciência e do pensamento).”
“Exemplo 9.
- Eu perdera o fio da meada numa cadeia de idéias. Tentei reencontrá-lo, mas
tive de admitir que o ponto de partida me escapara completamente.
“Símbolo.
- Parte de uma matriz de linotipo com as últimas linhas caídas.”
Em vista do
papel desempenhado pelos chistes, citações, canções e provérbios na vida mental
das pessoas cultas, estaria em total acordo com nossas expectativas que esses
tipos de disfarce fossem utilizados com extrema freqüência para representar os
pensamentos do sonho. Qual é, por exemplo, num sonho, o significado de
diversas carroças, cada qual repleta de uma espécie diferente de legume? Elas
representam um contraste desejado com “Kraute und Rüben” [literalmente,
“couves e nabos”], isto é, com “de pernas para o ar”, e portanto, com
“desordem”. Surpreende-me que esse sonho só me tenha sido relatado uma vez.Só
no caso de alguns temas emergiu um simbolismo onírico universalmente válido,
com base em alusões e substitutos verbais genericamente conhecidos. Além
disso, boa parte desse simbolismo é partilhada pelos sonhos com as
psiconeuroses, as lendas e os usos populares.
De fato, ao
examinarmos o assunto mais detidamente, devemos reconhecer o fato de que o
trabalho do sonho nada faz de original ao efetuar essas substituições. Para
atingir seus objetivos - neste caso, possibilitar uma representação tolhida
pela censura - ele simplesmente percorre as vias que já encontra estabelecidas
no inconsciente; e dá preferência às transformações do material recalcado que
também se podem tornar conscientes sob a forma de chistes ou alusões, e de que
se acham tão repletas as fantasias dos pacientes neuróticos. Neste ponto,
chegamos de repente ao entendimento das interpretações de sonhos feitas por
Scherner, cuja exatidão essencial defendi em outros trechos [em [1] e [2]]. A
preocupação da imaginação com o corpo do próprio sujeito de modo algum é
peculiar aos sonhos ou característica apenas deles. Minhas análises têm-me
indicado que ele está habitualmente presente nos pensamentos inconscientes dos
neuróticos e que deriva da curiosidade sexual, a qual, nos rapazes ou moças em
crescimento, volta-se para os órgãos genitais do sexo oposto e também para os
do próprio sexo. Tampouco a casa, como acertadamente insistiram Scherner [1861]
e Volkelt [1875], é o único círculo de representações empregado para simbolizar
o corpo; e isto se aplica tanto aos sonhos quanto às fantasias inconscientes da
neurose. É verdade que conheço pacientes que preservaram o simbolismo
arquitetônico para o corpo e os órgãos genitais.
(O interesse
sexual estende-se muito além da esfera da genitália externa.) Para esses
pacientes, os pilares e as colunas representam as pernas (como nos Cânticos
de Salomão), todo portão representa um dos orifícios corporais
(um“buraco”), todo encanamento de água é um lembrete do aparelho urinário, e
assim por diante. Mas o círculo de representações que gira em torno da vida
das plantas ou da cozinha pode, com igual presteza, ser escolhido para ocultar
imagens sexuais. No primeiro caso, o caminho foi bem preparado pelo uso
lingüístico, ele próprio um precipitado de símiles imaginativos que remontam à
longínqua antigüidade: por exemplo, a vinha do Senhor, a semente e o jardim da
donzela nos Cânticos de Salomão.
Os detalhes mais
repulsivos e também os mais íntimos da vida sexual podem ser pensados e
sonhados em alusões aparentemente inocentes a atividades culinárias; e os
sintomas da histeria jamais poderiam ser interpretados se nos esquecêssemos de
que o simbolismo sexual pode encontrar seu melhor esconderijo por trás do que é
corriqueiro e inconspícuo. Há um sentido sexual válido por trás da intolerância
da criança neurótica ao sangue ou à carne crua ou de suas náuseas ante a visão
de ovos ou macarrão, e por trás do enorme exagero, nos neuróticos, do natural
horror humano às cobras. Sempre que as neuroses se valem de disfarces, estão
percorrendo trilhas por onde passou toda a humanidade nas épocas mais remotas
da civilização - trilhas de cuja continuada existência em nossos dias, sob o
mais diáfano dos véus, encontram-se provas nos usos lingüísticos, nas
superstições e nos costumes.
Insiro aqui o
“florido” sonho de uma de minhas pacientes que já prometi [em [1]] registrar.
Indiquei por meio de grifos seus elementos que devem receber uma interpretação
sexual. A sonhadora perdeu muito de sua simpatia por esse lindo sonho depois
que ele foi interpretado.
(a) SONHO
INTRODUTÓRIO: Ela entrou na cozinha, onde estavam suas duas empregadas, e as
repreendeu por não terem aprontado sua “comidinha”. Ao mesmo tempo, viu uma
grande quantidade de louça emborcada para secar, louça comum de barro amontoada
em pilhas. Acréscimo posterior: As duas empregadas foram buscar água e
tiveram de entrar numa espécie de rio que chegava até bem junto da casa,
entrando pelo quintal.
(b) SONHO
PRINCIPAL: Ela estava descendo de uma elevação sobre umas
paliçadas ou cercas de construção estranha reunidas sob grandes painéis e que
consistiam em quadradinhos de pau-a-pique. Não eram feitos para se
subir; ela teve dificuldade em encontrar um lugar onde pôr os pés e ficou
contente por seu vestido não ter-se prendido em lugar nenhum, de modo que ela
continuou à medida que prosseguia. Ela segurava um UM GRANDE
RAMO na mão; na realidade, era como uma árvore, todo recoberto
de FLORES VERMELHAS que se ramificavam e espalhavam. Havia
uma idéia de que fossem FLORES de cerejeira; mas também pareciam
CAMÉLIAS duplas, embora, é claro, estas não cresçam em árvores. Ao descer,
ela estava primeiro com UMA, depois, de repente, com DUAS, e
depois com UMA outra vez. Ao chegar lá embaixo, as
FLORES da parte inferior já estavam bem DESBOTADAS. Então, depois que
já havia descido, ela viu um criado que - sentiu-se inclinada a dizer - estava
penteando uma árvore semelhante, ou seja, estava usando um PEDAÇO DE
MADEIRA para arrancar umas MECHAS ESPESSAS DE CABELO que dela pendiam
como musgo. Outros trabalhadores haviam cortado RAMOS semelhantes de um
JARDIM e tinham-nos jogado na ESTRADA, onde FICARAM CAÍDOS, de
modo que MUITAS PESSOAS PEGARAM ALGUNS. Mas ela perguntou se isso estava
certo - se poderia PEGAR UM TAMBÉM. Um HOMEM jovem (alguém que ela
conhecia, um forasteiro) estava de pé no jardim; dirigiu-se a ele para
perguntar de que modo tais RAMOS poderiam ser TRANSPLANTADOS PARA
SEU PRÓPRIO JARDIM.
Ele a
abraçou, ao que ela se debateu e perguntou o que ele estava pensando, e se
achava que podiam abraçá-la daquela maneira. Ele lhe disse que não havia mal
nenhum, que era permitido. Em seguida,
disse estar disposto a entrar no OUTRO JARDIM com ela, para lhe mostrar
como era feito o plantio, e acrescentou algo que ela não conseguiu entender
bem: “Seja como for, preciso de três JARDAS (depois ela forneceu esse
dado como três jardas quadradas) ou três braças de terra.” Era como se ele lhe
estivesse pedindo alguma coisa em troca de sua boa vontade, como se pretendesse
RECOMPENSAR-SE NO JARDIM DELA, ou como se quisesse BURLAR alguma lei,
para tirar vantagem disso sem causar mal a ela. Se ele realmente lhe mostrou
algo, ela não tinha nenhuma idéia.
Esse sonho, que
expus em virtude de seus elementos simbólicos, pode ser descrito como
“biográfico”. Tais sonhos ocorrem com freqüência durante a psicanálise, mas
talvez sejam bastante raros fora dela.
Naturalmente,[1]
disponho desse tipo de material em profusão, mas relatá-lo nos envolveria muito
profundamente num exame das condições neuróticas. Tudo leva à mesma conclusão,
a saber, que não há necessidade de se presumir a operação de qualquer atividade
simbolizadora peculiar da mente no trabalho do sonho, mas sim que os sonhos se
servem de quaisquer simbolizações que já estejam presentes no pensamento
inconsciente, por se ajustarem melhor aos requisitos da formação do sonho, em
virtude de sua representabilidade, e também, em geral, por escaparem da
censura.
(E) REPRESENTAÇÃO POR SÍMBOLOS NOS SONHOS -
OUTROS SONHOS TÍPICOS
A análise deste
último sonho, de cunho biográfico, é uma prova clara de que reconheci desde o
início a presença do simbolismo nos sonhos. Mas foi apenas gradualmente, e à
medida que minha experiência foi aumentando, que cheguei a uma apreciação plena
de sua extensão e importância, e o fiz sob a influência das contribuições de
Wilhelm Stekel (1911), sobre quem não será fora de propósito dizer algumas
palavras aqui. [1925.]
Esse autor, que
talvez tenha prejudicado a psicanálise tanto quanto a beneficiou, trouxe à
baila um grande número de traduções insuspeitadas dos símbolos; a princípio,
elas foram recebidas com ceticismo, mas depois, foram confirmadas em sua maior
parte e tiveram de ser aceitas. Não estarei minimizando o valor dos serviços de
Stekel ao acrescentar que a reserva cética com que suas propostas foram
recebidas não deixava de ter sua justificativa. E isso porque os exemplos com
que ele confirmava suas interpretações eram amiúde pouco convincentes, e ele
utilizou um método que deve ser rejeitado como cientificamente indigno de
confiança. Stekel chegou a suas interpretações dos símbolos por meio da
intuição, graças a um dom peculiar para a compreensão direta deles. Mas não se
pode contar com a existência desse dom em termos gerais; sua eficácia está
isenta de qualquer crítica e, por conseguinte, seus resultados não podem
pleitear credibilidade. É como se se procurasse basear o diagnóstico das
doenças infecciosas nas impressões olfativas recebidas à cabeceira do paciente
- embora, indubitavelmente, tenha havido clínicos capazes de realizar mais do
que as outras pessoas por meio do sentido do olfato (que geralmente é
atrofiado), e querealmente conseguiam diagnosticar um caso de febre entérica
através do olfato. [1925.]
Os avanços da
experiência psicanalítica trouxeram à nossa atenção pacientes que demonstravam
esse tipo de compreensão direta do simbolismo onírico num grau surpreendente. Muitas
vezes, eram pessoas que sofriam de demência precoce, de modo que, por algum
tempo, houve uma tendência a suspeitar de que todo sonhador dotado dessa
apreensão dos símbolos fosse vítima daquela doença. Mas não é esse o caso.
Trata-se de um dom ou peculiaridade pessoal que não possui nenhum significado
patológico visível. [1925.]
Depois de nos
familiarizarmos com o abundante emprego do simbolismo que é feito para representar
o material sexual nos sonhos, está fadada a surgir a questão de saber se muitos
desses símbolos não ocorrem com um significado permanentemente fixo, como os
“logogramas” da taquigrafia; e ficamos tentados a elaborar um novo “livro dos
sonhos”, baseados no princípio da decifração [ver em [1]]. Quanto a esse ponto,
há que dizer o seguinte: esse simbolismo não é peculiar aos sonhos, mas
característico da representação inconsciente, em particular no povo, e é
encontrado no folclore e nos mitos populares, nas lendas, nas expressões
idiomáticas, na sabedoria dos provérbios e nos chistes correntes em grau mais
completo do que nos sonhos. [1909.]
Seríamos,
portanto, levados muito além da esfera da interpretação dos sonhos, se fôssemos
fazer justiça à importância dos símbolos e examinar os numerosos problemas,
basicamente ainda não solucionados, ligados ao conceito de símbolo. Devemos restringir-nos aqui a assinalar que a representação por
símbolos encontra-se entre os métodos indiretos de representação, mas que todo
tipo de indicações nos adverte contra englobá-las com outras formas de
representação indireta, sem que sejamos capazes de formar um quadro conceitual
claro de suas características distintivas. Em diversos casos, o elemento comum
entre um símbolo e o que ele representa é óbvio; em outros, acha-se oculto, e a
escolha do símbolo parece enigmática. São precisamente estes últimos casos que
devem ser capazes de lançar luzsobre o sentido último da relação simbólica, e
eles indicam que esta é de natureza genética. As coisas que estão hoje
simbolicamente ligadas provavelmente estiveram unidas em épocas pré-históricas
pela identidade conceitual e lingüística. A relação simbólica parece ser
uma relíquia e um marco de identidade anterior. No tocante a isso, podemos
observar como, em muitos casos, o emprego de um símbolo comum se estende por
mais tempo do que o uso de uma língua comum, como já foi ressaltado por
Schubert (1814). Diversos símbolos são tão antigos quanto a própria
linguagem, enquanto outros (por exemplo “dirigível”, “Zeppelin”) vão sendo
continuamente cunhados inclusive em nossos dias. [1914.]
Os sonhos se
valem desse simbolismo para a representação disfarçada de seus pensamentos
latentes. Aliás, muitos dos símbolos são, habitualmente ou quase habitualmente,
empregados para expressar a mesma coisa. Não obstante, a plasticidade peculiar
do material psíquico [nos sonhos] nunca deve ser esquecida. Muitas vezes, um
símbolo tem de ser interpretado em seu sentido próprio, e não simbolicamente,
ao passo que, em outras ocasiões, o sonhador pode tirar de suas lembranças
particulares o poder de empregar como símbolos sexuais toda sorte de coisas que
não são comumente empregadas como tal. Quando um sonhador dispõe de uma
escolha entre diversos símbolos, ele se decide em favor do que está ligado, em
seu tema, ao restante do material de seus pensamentos - em outras palavras,
daquele que tem motivos individuais para sua aceitação, além dos motivos
típicos. [1909; última frase, 1914.]
Embora as
investigações posteriores à época de Scherner tenham tornado impossível
contestar a existência do simbolismo onírico - até mesmoHavelock Ellis [1911,
109] admite ser indubitável que nossos sonhos estão plenos de simbolismo -, é
preciso confessar, ainda assim, que a presença de símbolos nos sonhos não só
facilita sua interpretação como também a torna mais difícil. Em geral, a
técnica de interpretar segundo as associações livres do sonhador deixa-nos em
apuros quando chegamos aos elementos simbólicos do conteúdo do sonho. A consideração
pela crítica científica nos proíbe de voltarmos ao julgamento arbitrário do
intérprete de sonhos, tal como era empregado nos tempos antigos e parece ter
sido revivido nas interpretações imprudentes de Stekel. Somos assim obrigados,
ao lidar com os elementos do conteúdo do sonho que devem ser reconhecidos como
simbólicos, a adotar uma técnica combinada que, por um lado, baseie-se nas
associações do sonhador e, por outro, preencha as lacunas provenientes do
conhecimento dos símbolos pelo intérprete. Devemos aliar uma cautela crítica na
solução de símbolos a um estudo cuidadoso destes em sonhos que forneçam
exemplos particularmente claros de seu uso, a fim de desarmarmos qualquer
acusação de arbitrariedade na interpretação dos sonhos. As incertezas que ainda
se prendem a nossas atividades como intérpretes de sonhos decorrem, em parte,
de nossos conhecimentos incompletos, que podem ser progressivamente ampliados à
medida que avançarmos, mas decorrem, em parte, de certas características dos
próprios símbolos oníricos. Freqüentemente, eles possuem mais de um ou mesmo
vários significados e, como ocorre com a escrita chinesa, a interpretação
correta só pode ser alcançada, em cada ocasião, partindo-se do contexto. Essa
ambigüidade dos símbolos vincula-se à característica dos sonhos de admitirem
uma “superinterpretação” [ver em [1]] - de representarem num único conteúdo
pensamentos e desejos que são, muitas vezes, de natureza amplamente divergente.
[1914.]
Levando em conta
essas restrições e ressalvas, darei agora prosseguimento ao tema. O Imperador e
a Imperatriz (ou o Rei e a Rainha) de fato representam, em geral, os pais do
sonhador; e o Príncipe ou Princesa representa a própria pessoa que sonha.
[1909.] Mas a mesma alta autoridade é atribuída tanto aos grandes homens quanto
ao Imperador, e por essa razão, Goethe, por exemplo, aparece como um símbolo
paterno em alguns sonhos (Hitschmann, 1913). [1919.] - Todos os objetos
alongados, tais como varas, troncos de árvores e guarda-chuvas (sendo o ato de
abrir este último comparável a uma ereção) podem representar o órgão masculino
[1909] - bem como o fazem todas as armas longas e afiadas, como facas, punhais
e lanças. [1911.]
Outro símbolo
freqüente, embora não inteiramente inteligível, da mesma coisa são as lixas de
unhas - possivelmente por causa do movimentode esfregar para cima e para baixo.
[1909.] - As caixas, estojos, arcas, armários e fornos representam o ventre
[1909], o mesmo acontecendo com os objetos ocos, navios e toda sorte de
recipientes. [1919.] - Os quartos, nos sonhos, costumam ser mulheres (“Frauenzimmer”
[ver em [1]]); quando se representam as várias entradas e saídas deles,
essa interpretação dificilmente fica sujeita a dúvidas. [1909.][1] - Com
respeito a isso, o interesse em saber se o quarto está aberto ou trancado é
facilmente inteligível. (Cf. o primeiro sonho de Dora em meu “Fragmento da
Análise de um Caso de Histeria”, 1905e. [Nota de rodapé próxima ao início da
Seção II.]) Não há necessidade de designar explicitamente a chave que abre o
quarto; em sua balada do Conde Eberstein, Uhland utilizou o simbolismo de
fechaduras e chaves para compor um encantador exemplo de obscenidade. [1911] -
Sonhar que se passa por uma série de cômodos representa um bordel ou um harém.
[1909.]
Mas, como
demonstrou Sachs [1914] através de alguns exemplos claros, também pode ser
empregado (por antítese) para representar o casamento. [1914.] - Encontramos um
vínculo interessante com as investigações sexuais da infância quando alguém
sonha com dois quartos que eram originalmente um, ou quando vê um quarto que
lhe é familiar dividido em dois no sonho, ou vice-versa. Na infância, os órgãos
genitais femininos e o ânus são considerados como uma área única - o “traseiro”
(segundo a “teoria da cloaca” própria da infância), e só mais tarde é que se faz a descoberta de que essa região do corpo
compreende duas cavidades e orifícios separados. [1919.] - Os degraus,
escadas de mão ou escadarias, ou, conforme o caso, subir ou descer por eles,
são representações do ato sexual. - As paredes lisas pelas quais sobe o
sonhador e as fachadas decasas pelas quais ele desce - muitas vezes, com grande
angústia - correspondem a corpos humanos eretos, e provavelmente repetem no
sonho lembranças de um bebê subindo em seus pais ou na babá. As paredes “lisas”
são homens; em seu medo, o sonhador freqüentemente se agarra a “projeções” nas
fachadas das casas. [1911.]
- As mesas, as
mesas postas para a refeição e as tábuas também representam mulheres - sem
dúvida por antítese, visto que os contornos de seus corpos são eliminados nos
símbolos. [1909.] “Madeira” parece, por suas conexões lingüísticas,
representar, de modo geral, “material” feminino. O nome da Ilha da “Madeira”
significa “madeira” em português. [1911.] Visto que “cama e mesa”
constituem o casamento, esta última muitas vezes ocupa o lugar da primeira nos
sonhos, e o complexo de idéias sexuais é, na medida do possível, transposto
para o complexo de comer. [1909.] - No tocante às peças do vestuário, um chapéu
feminino pode amiúde ser interpretado com certeza como um órgão genital e, além
disso, como o de um homem.
O mesmo se
aplica a um sobretudo ou casaco [alemão “Mantel”], embora, neste caso,
não fique claro até que ponto o emprego do símbolo se deva a uma assonância
verbal. Nos sonhos produzidos por homens, a gravata
aparece amiúde como símbolo do pênis. Sem dúvida, isso ocorre não apenas porque
as gravatas são objetos longos, pendentes e peculiares aos homens, mas também
porque podem ser escolhidas de acordo com o gosto - uma liberdade que, no caso
do objeto simbolizado, é proibida pela Natureza.
Os homens que se
valem desse símbolo nos sonhos são, com freqüência, muito extravagantes com as
gravatas na vida real e possuem coleções inteiras delas. [1911.] - É altamente
provável que todos os aparelhos e máquinas complicados que aparecem nos sonhos
representem os órgãos genitais (e, em geral, os masculinos) [1919] - na
descrição dos quais o simbolismo dos sonhos é tão infatigável quanto o
“trabalho do chiste”. [1909.] Tampouco há qualquer dúvida de que
todas as armas e instrumentos são usados como símbolos do órgão masculino: por
exemplo, arados, martelos, rifles, revólveres, punhais, sabres, etc. [1919.] -
Da mesma forma, muitas paisagens nos sonhos, especialmente qualquer uma que
tenha pontes ou colinas cobertas de vegetação, podem ser claramente
reconhecidas como descrições dos órgãos genitais.
[1911.]
Marcinowski (1912a) publicou uma coletânea de sonhos ilustrados por seus
autores com desenhos que aparentemente representam paisagens e outras localidades
que aparecem nos sonhos. Esses desenhos ressaltam muito nitidamente a distinção
entre o sentido manifesto e o sentido latente de um sonho. Enquanto, para olhos
inocentes, eles aparecem como planos, mapas e assim por diante, uma inspeção
mais detida mostra que representam o corpo humano, os órgãos genitais, etc., e
só então é que os sonhos se tornam inteligíveis. (Ver a esse respeito os
trabalhos de Pfister [1911-12 e 1913] sobre criptogramas e quebra-cabeças
pictográficos.) [1914.] Também no caso de neologismos ininteligíveis, vale a
pena considerar se eles não poderiam constituir-se de componentes com um
significado sexual. [1911.] - As crianças, nos sonhos freqüentemente
representam os órgãos genitais, e, de fato, tanto os homens quanto as mulheres
têm o hábito de se referir afetuosamente a seus órgãos genitais como os
“pequeninos”. [1909.] Stekel [1909, 473] tem razão em reconhecer um
“irmãozinho” como o pênis. [1925.] Brincar com uma criancinha, bater nela,
etc., muitas vezes representam a masturbação nossonhos. [1911.] - Para
representar simbolicamente a castração, o trabalho do sonho utiliza a calvície,
o corte de cabelos, a queda dos dentes e a decapitação. Quando um dos símbolos
comuns do pênis aparece duplicado ou multiplicado num sonho, isso deve ser
considerado como um rechaço da castração. O aparecimento, nos sonhos, de
lagartos - animais cujas caudas voltam a crescer quando arrancadas - tem o
mesmo significado. (Cf. o sonho com lagartos em [1]) - Muitos dos animais que
são utilizados como símbolos genitais na mitologia e no folclore desempenham o
mesmo papel nos sonhos: por exemplo, peixes, caracóis, gatos, camundongos (por
causa dos pêlos pubianos) e, acima de tudo, os símbolos mais importantes do
órgão masculino - as cobras. Os animaizinhos e os vermes representam crianças
pequenas - por exemplo, irmãos e irmãs indesejados. Ver-se infestado por vermes
constitui, muitas vezes, um sinal de gravidez. [1919.] - Um símbolo bem recente
do órgão masculino nos sonhos merece menção: o dirigível, cujo uso nesse
sentido se justifica por sua relação com voar, bem como, às vezes, por sua
forma. [1911.]
Diversos outros
símbolos foram apresentados, com exemplos comprobatórios, por Stekel, mas ainda
não foram suficientemente verificados. [1911.] Os escritos de Stekel, e em
particular seu Die Sprache des Traumes (1911), contêm a mais completa
coleção de interpretações de símbolos. Muitos destes indicam penetração, e um
exame ulterior demonstrou que são corretos: por exemplo, sua seção sobre o
simbolismo da morte. Mas a falta de senso crítico desse autor e sua tendência à
generalização a qualquer preço lançam dúvidas sobre outras de suas
interpretações ou as tornam inutilizáveis, de modo que é altamente aconselhável
ter cautela ao aceitar suas conclusões. Portanto, contento-me em chamar a
atenção apenas para algumas de suas descobertas. [1914.]
Segundo Stekel,
“direita” e “esquerda” têm, nos sonhos, um sentido ético. “A via à direita
significa sempre o caminho da retidão, e a da esquerda, o do crime. Assim,
‘esquerda’ pode representar homossexualismo, incesto ou perversão, e ‘direita’
pode representar casamento, relações sexuais com uma prostituta e assim por
diante, sempre encarados do ponto de vista moral individual do sujeito.”
(Stekel, 1909, 466 e segs.) - Os parentes, nos sonhos, geralmente
desempenham o papel de órgãos genitais (ibid., 473). Só posso confirmar
isso no caso de filhos, filhas e irmãs menores - isto é, apenas na medida
em que eles se enquadram na categoria de “pequeninos”. Por outro lado, deparei
com casos indubitáveis em que “irmãs” simbolizavam os seios, e “irmãos”, os
hemisférios maiores. - Stekel explica que a impossibilidade de alcançar uma
carruagem significa pesar por uma diferença de idade que não se pode alcançar (ibid.,
479). - A bagagem com que se viaja é uma carga de pecados, diz ele, que tem um
efeito opressivo (loc. cit.). [1911.] Mas precisamente a bagagem muitas vezes
se revela um símbolo inconfundível dos órgãos genitais do próprio sonhador.
[1914.] - Stekel também atribui significados simbólicos fixos aos números, tais
como amiúde aparecem nos sonhos [ibid., 497 e segs.]. Mas essas
explicações não parecem nem suficientemente verificadas nem genericamente
válidas, embora as interpretações dele costumem parecer plausíveis nos casos
individuais. [1911.] Seja como for, o número três tem sido confirmado
sob muitos ângulos como um símbolo dos órgãos genitais masculinos. [1914.]
Uma das
generalizações propostas por Stekel concerne ao duplo significado dos símbolos genitais.
[1914.] “Onde”, pergunta ele, “haverá um símbolo que - contanto que a
imaginação o admita de algum modo - não possa ser empregado tanto num sentido
masculino como feminino?” [1911, 73.] Seja como for, a oração entre travessões
elimina grande parte da certeza dessa afirmação, visto que, de fato, a
imaginação nem sempre admite isso. Mas penso que vale a pena observar que, em
minha experiência, a generalização de Stekel não pode ser mantida em face da
maior complexidade dos fatos. Além dos símbolos que podem, com igual
freqüência, representar os órgãos genitais masculinos e femininos, existem
alguns que designam um dos sexos predominantemente ou quase exclusivamente, e
ainda outros que são conhecidos apenas com um significado masculino ou
feminino. Pois é fato que a imaginação não admite que objetos e armas longos e
rígidos sejam utilizados como símbolos dos órgãos genitais femininos, ou que
objetos ocos, tais como arcas, estojos, etc., sejam empregados como símbolo dos
órgãos masculinos. É verdade que a tendência dos sonhos e das fantasias
inconscientes a empregarem bissexualmente os símbolos sexuais trai uma
característicaarcaica, porquanto, na infância, a distinção entre os órgãos
genitais dos dois sexos é desconhecida e a mesma espécie de genitália é
atribuída a ambos. [1911.] Mas também é possível que se seja erroneamente
levado a supor que um símbolo sexual seja bissexual, caso se esqueça de que, em
alguns sonhos, há uma inversão geral do sexo, de modo que o que é masculino é
representado como feminino, e vice-versa. Tais sonhos podem, por exemplo,
expressar o desejo de uma mulher de ser homem. [1925.]
Os órgãos
genitais também podem ser representados nos sonhos por outras partes do corpo:
o órgão masculino, por uma mão ou um pé, e o orifício genital feminino, pela
boca, um ouvido ou mesmo um olho. As secreções do corpo humano - muco,
lágrimas, urina, sêmen, etc. - podem substituir umas às outras nos sonhos. Esta
última afirmativa de Stekel [1911, 49], que é correta em termos gerais, foi
justificadamente criticada por Reitler (1913b) como exigindo uma certa
ressalva: o que de fato acontece é que as secreções importantes, como o sêmen,
são substituídas por secreções irrelevantes. [1919.]
Espera-se que
essas indicações muito incompletas possam servir para estimular outros a
empreenderem um estudo geral mais cuidadoso do assunto. [1909.] Eu próprio tentei dar uma explicação mais elaborada do simbolismo dos
sonhos em minhas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1916-17
[Conferência X]). [1919.]
Acrescentarei
agora alguns exemplos do emprego desses símbolos nos sonhos, com a idéia de
indicar como se torna impossível chegar à interpretação de um sonho quando se
exclui o simbolismo onírico, e como se é irresistivelmente levado a aceitá-lo
em muitos casos. [1911.] Ao mesmo tempo, contudo, gostaria de externar uma
advertência categórica contra a supervalorização da importância dos símbolos na
interpretação dos sonhos, contra a restrição do trabalho de traduzir os sonhos
a uma simples tradução de símbolos, e contra o abandono da técnica de
utilização das associações do sonhador. As duas técnicas de interpretação dos
sonhos devem ser complementares uma à outra; mas, tanto na prática como na
teoria, o primeiro lugar continua a ser ocupado pelo processo que descrevi
inicialmente e que atribuiuma importância decisiva aos comentários feitos pelo
sonhador, ao passo que a tradução de símbolos, tal como a expliquei, está
também a nosso dispor como método auxiliar. [1909.]
I
UM CHAPÉU COMO
SÍMBOLO DE UM HOMEM (OU DOS ÓRGÃOS GENITAIS MASCULINOS) [1911]
(Extrato do sonho de uma jovem que sofria de
agorafobia decorrente de medos de sedução.)
“Eu ia
andando pela rua, no verão, usando um chapéu de palha de formato peculiar; sua
parte central estava virada para cima e as partes laterais pendiam para baixo”
(a descrição tornou-se hesitante neste ponto), “de tal modo que um lado
estava mais baixo que o outro. Euestava alegre e com um espírito autoconfiante,
e, ao passar por um grupo de jovens oficiais, pensei: ‘Nenhum de vocês pode me
fazer mal algum!’ ”
Como nada lhe
ocorresse em relação ao chapéu no sonho, eu disse: “Sem dúvida, o chapéu era um
órgão genital masculino, com sua parte central erguida e as duas partes
laterais pendentes. Talvez possa parecer estranho que um chapéu seja um homem,
mas você deve estar lembrada da expressão ‘Unter die Haube kommen‘
[‘achar um marido’ (literalmente, ‘entrar debaixo da touca’)].”
Intencionalmente, não lhe fiz nenhuma interpretação sobre o detalhe das duas
partes laterais que pendiam desigualmente, embora sejam precisamente esses
detalhes que apontam o caminho na determinação de uma interpretação. Prossegui
dizendo que, como tinha um marido com órgãos genitais tão bons, não havia
necessidade de ela temer os oficiais - nenhuma necessidade, bem entendido, de
que ela desejasse alguma coisa deles, visto que, em geral, ela ficava
impossibilitada de ir passear sem proteção e desacompanhada, devido a suas
fantasias de ser seduzida. Eu já lhe pudera dar esta última explicação sobre
sua angústia em várias ocasiões, com base em outro material.
A maneira como a
paciente reagiu a esse material foi notável. Ela retirou sua descrição do
chapéu e sustentou jamais ter dito que as duas partes laterais estavam
penduradas. Eu tinha certeza demais do que ouvira para me deixar confundir, e
mantive minha posição. Ela ficou em silêncio algum tempo e, depois disso,
encontrou coragem bastante para perguntar o que significava um dos testículos
de seu marido ser mais caído do que o outro, e se o mesmo acontecia com todos
os homens. Desse modo, o detalhe notável do chapéu foi explicado e a
interpretação foi aceita por ela.
Na época em que
minha paciente me contou esse sonho, eu há muito estava familiarizado com o
chapéu como símbolo. Outros casos menos transparentes haviam-me levado a supor
que o chapéu também pode representar os órgãos genitais femininos.
II
UMA “FILHINHA”
COMO ÓRGÃO GENITAL - “SERATROPELADA” COMO SÍMBOLO DAS RELAÇÕES SEXUAIS
[1911]
(Outro sonho da mesma paciente agorafóbica.)
Sua mãe mandara
sua filhinha embora, de modo que ela teve de seguir sozinha. Entrou então num
trem com a mãe e viu sua pequerrucha andar diretamente até os trilhos, de modo
que estava fadada a ser atropelada. Ouviu o estalar de seus ossos. (Isso produziu
nela uma sensação desconfortável, mas nenhum pavor real.) Olhou ao redor, pela
janela do vagão do trem, para ver se as partes não podiam ser vistas por trás.
Em seguida, repreendeu a mãe por ter feito a pequerrucha ir embora sozinha.
ANÁLISE. - Não é
nada fácil dar uma interpretação completa do sonho. Ele fazia parte de um ciclo
de sonhos e só podia ser entendido na íntegra se considerado em relação aos
outros. Há dificuldade em obter, com suficiente isolamento, o material
necessário para estabelecer o simbolismo. - Em primeiro lugar, a paciente
declarou que a viagem de trem devia ser interpretada historicamente, como uma
alusão a uma viagem que ela fizera ao sair de um sanatório de doenças nervosas
por cujo diretor, é desnecessário dizer, tinha-se apaixonado. A mãe a havia
levado embora, e o médico aparecera na estação e lhe entregara um buquê de
flores como presente de despedida. Fora muito embaraçoso que a mãe
testemunhasse essa homenagem. Nesse ponto, portanto, a mãe figurava como
interferindo em suas tentativas de ter um caso amoroso; e fora, de fato, o
papel desempenhado por essa senhora severa durante a adolescência da paciente.
- Sua associação seguinte relacionou-se com a frase “olhou ao redor para ver se
as partes não podiam ser vistas por trás”. A fachada do sonho levaria,
naturalmente, a se pensar nas partes de sua filhinha, que tinha sido atropelada
e mutilada. Mas sua associação tomou um rumo inteiramente diverso. Lembrou-se
ela de que, certa vez, vira o pai despido no banheiro, por trás; passou então a
falar nas distinções entre os sexos e ressaltou o fato de que os órgãos
genitais do homem podem ser vistos por trás, mas os da mulher, não. Em relação
a isso, ela própria interpretou “a filhinha” como significando os órgãos
genitais, e“sua pequerrucha” - a paciente tinha uma filha de quatro anos - como
sua própria genitália. Repreendeu a mãe por ter esperado que ela vivesse como
se não tivesse órgãos genitais, e assinalou que a mesma recriminação fora
expressa na primeira frase do sonho: “sua mãe mandara sua filhinha embora, de
modo que ela teve de seguir sozinha”. Na imaginação dela, “andar sozinha pelas
ruas” significava não ter um homem, não ter nenhuma relação sexual (“coire”,
em latim [de onde se origina “coitus”], significa literalmente “ir com”) - e
ela não gostava disso. Todos os seus relatos indicavam que, quando menina, ela
de fato sofrera com o ciúme da mãe devido à preferência demonstrada para com a
filha pelo pai. [1]
A interpretação
mais profunda desse sonho foi indicada por outro sonho da mesma noite, no qual
a paciente se identificou com seu irmão. Ela realmente fora uma menina com
características de menino, e muitas vezes lhe disseram que ela deveria ser um
menino. Essa identificação com o irmão deixou particularmente claro que “a pequerrucha”
significava um órgão genital. A mãe estava ameaçando seu irmão (ou ela) de
castração, o que só poderia ser um castigo por brincar com o pênis; assim, a
identificação também provou que ela própria se masturbara quando criança - uma
lembrança que até então só tivera quando aplicada a seu irmão. A informação
fornecida pelo segundo sonho mostrou que ela devia ter tomado conhecimento do
órgão masculino numa idade precoce e depois esquecido isso. Ademais, o segundo
sonho aludia à teoria sexual infantil segundo a qual meninas são meninos
castrados. [Cf. Freud, 1908c.] Quando lhe sugeri que ela tivera essa crença
infantil, confirmou imediatamente o fato, dizendo-me ter ouvido a anedota do
garotinho que diz à garotinha: “Cortado?”, ao que a menininha responde: “Não,
foi sempre assim.”
Portanto, mandar
a pequerrucha (o órgão genital) embora no primeiro sonho também se relacionava
à ameaça de castração. Sua queixa final contra a mãe era por não tê-la dado à
luz como um menino.
O fato de que
“ser atropelada” simboliza as relações sexuais não ficaria óbvio partindo-se
desse sonho, embora tenha sido confirmado por muitas outras fontes.
III
OS ÓRGÃOS
GENITAIS REPRESENTADOSPOR EDIFÍCIOS, DEGRAUS E POÇOS [1911]
(Sonho de um rapaz inibido por seu complexo
paterno.)
Ele estava
passeando com o pai num lugar que certamente deveria ser o Prater, já que ele viu a ROTUNDA, com um PEQUENO
ANEXO EM FRENTE A ELA ao qual estava preso UM BALÃO CATIVO, embora
parecesse bem MOLE. O pai lhe perguntou para que servia aquilo tudo; ele
ficou surpreso com a pergunta, mas lhe explicou. A seguir, entraram num pátio
onde havia uma grande folha de estanho estendida. Seu pai queria ARRANCAR um
pedaço grande dela, mas primeiro olhou em volta para ver se havia alguém. Ele
lhe disse que bastaria ele falar com o contramestre para poder levar um pedaço
sem nenhum problema. UMA ESCADA descia desse pátio até UM POÇO, cujas
paredes eram acolchoadas com uma espécie de material macio, muito parecidas com
uma poltrona de couro. Na extremidade do poço havia uma plataforma alongada, e
então começava outro POÇO…
ANÁLISE. - Esse
sonhador pertencia a um tipo de pessoas cujas perspectivas terapêuticas não são
favoráveis: até certo ponto, não oferecem absolutamente nenhuma resistência à
análise, mas, a partir daí, revelam-se quase inacessíveis. Ele interpretou esse
sonho quase sem ajuda. “A Rotunda”, disse, “eram meus órgãos genitais, e o
balão cativo em frente a ela era meu pênis, de cuja flacidez tenho motivos para
me queixar.” Entrando então em maiores detalhes, podemos traduzir a Rotunda
como o traseiro (habitualmente considerado pelas crianças como parte dos órgãos
genitais) e o pequeno anexo à frente dele como o saco escrotal. O pai lhe
perguntava, no sonho, o que era tudo aquilo, isto é, qual a finalidade e a
função dos órgãos genitais. Pareceu plausível inverter essa situação e
transformar o sonhador no indagador. Visto que ele de fato jamais fizera essas
perguntas ao pai, tivemos de encarar o pensamento do sonho como um desejo, ou
considerá-locomo uma oração condicional, tal como: “Se eu tivesse pedido a meu
pai esclarecimentos sexuais…” Logo encontraremos a continuação desse pensamento
em outra parte do sonho.
O pátio onde
estava estendida a folha de estanho não deve ser tomado simbolicamente à
primeira vista. Derivava das dependências comerciais do pai do sonhador. Por
motivos de discrição, usei “estanho” em lugar de outro material, com o qual o
pai realmente lidava, mas não fiz nenhuma outra modificação na linguagem do
sonho. O sonhador havia ingressado na firma do pai e fizera violenta objeção às
práticas um tanto suspeitas de que dependiam, em parte, os rendimentos da
empresa. Por conseguinte, o pensamento onírico que acabo de interpretar poderia
prosseguir desta forma: “(Se lhe tivesse perguntado), ele me teria enganado do
mesmo modo que engana seus clientes.” No tocante ao “arrancar” que serviu para
representar a desonestidade do pai nos negócios, o próprio sonhador apresentou
uma segunda explicação - a saber, que isso representava a masturbação. Não só
eu já estava familiarizado com essa interpretação (ver em [1]), como
havia algo para confirmá-la no fato de que a natureza secreta da masturbação
foi representada por seu inverso: podia ser praticada abertamente. Exatamente
como esperaríamos, a atividade masturbatória foi também deslocada para o pai do
sonhador, tal como a pergunta na primeira cena do sonho. Ele interpretou
prontamente o poço como uma vagina, tendo em conta o acolchoado macio de suas
paredes. Acrescentei, com base em meus próprios conhecimentos derivados de
outras fontes, que tanto descer quanto subir escadas, em outros casos,
descrevia relações sexuais vaginais. (Ver minhas observações [em Freud 1910d],
citadas anteriormente, em [1])
O próprio
sonhador deu uma explicação biográfica do fato de o primeiro poço ser seguido
por uma plataforma alongada e, logo depois, por outro poço. Ele tivera relações
sexuais por algum tempo, mas depois as havia abandonado por causa de inibições,
e agora esperava poder reiniciá-las com a ajuda do tratamento. O sonho, porém,
foi-se tornando mais vago ao chegar ao final, e deve parecer provável a quem
quer que esteja familiarizado com essas coisas que a influência de outro tema
já se estivesse fazendo sentir na segunda cena do sonho, e que foi sugerida
pelos negócios do pai, por sua conduta fraudulenta e pela interpretação do
primeiro poço como uma vagina: tudo isso apontava para uma ligação com a mãe do
sonhador. [1]
IV
O ÓRGÃO
MASCULINO REPRESENTADO POR PESSOAS E O ÓRGÃO FEMININO REPRESENTADO POR UMA
PAISAGEM [1911]
(Sonho de uma mulher inculta cujo marido era
policial, relatado porB. Dattner.)
“…Então
alguém invadiu a casa e ela se assustou e chamou um policial. Mas ele entrara
calmamente numa igreja, à
qual se chegava subindo alguns degraus, acompanhado de dois
vagabundos. Atrás da igreja havia uma colina e, mais acima, um bosque
cerrado. O policial usava capacete, gola com insígnia de metal e
uma capa. Tinha a barba castanha. Os dois vagabundos, que
acompanhavam pacificamente o policial, tinham aventais semelhantes a sacos
atados na cintura. Em frente à igreja uma trilha levava até a
colina; de ambos os lados cresciam relva e moitas cerradas, que se iam tornando
cada vez mais espessas e, no alto da colina, transformavam-se num bosque comum.”
V
SONHOS DE
CASTRAÇÃO EM CRIANÇAS
[1919]
(a) Um
menino de três anos e cinco meses, que obviamente não gostava da idéia de que
seu pai voltasse da frente de batalha, acordou certa manhãperturbado e
excitado. Pôs-se a repetir: “Por que papai estava carregando a cabeça numa
bandeja? Ontem de noite papai estava carregando a cabeça numa bandeja.”
(b) Um estudante
que agora sofre de grave neurose obsessiva recorda-se de ter tido o seguinte sonho
repetidamente durante o sexto ano de vida: Ia ao barbeiro para mandar cortar
o cabelo. Uma mulher grande e de aspecto severo se dirigia a ele e lhe cortava
fora a cabeça. Ele reconhecia a mulher como sua mãe.
VI
SIMBOLISMO
URINÁRIO
[1914]
A seqüência de
desenhos reproduzida [em [1]] foi encontrada por Ferenczi num jornal
humorístico húngaro chamado Fidibusz, e ele percebeu de imediato quão
bem os desenhos poderiam ser utilizados para ilustrar a teoria dos sonhos. Otto
Rank já os reproduziu num trabalho (1912a, [99]).
Os desenhos
trazem o título “Sonho de uma Ama-seca Francesa”; mas é somente o último
quadro, que mostra a babá sendo despertada pelos gritos da criança, que nos diz
que os sete quadros anteriores representam as fases de um sonho. O primeiro
quadro retrata o estímulo que teria feito a moça adormecida acordar: o
garotinho toma ciência de uma necessidade e pede ajuda para satisfazê-la. Mas,
no sonho, a sonhadora, em vez de se achar no quarto de dormir, está levando a
criança para passear. No segundo quadro, ela já o levou à esquina de uma rua
onde ele está urinando - e pode continuar a dormir. Mas o estímulo para
despertar continua; na verdade, aumenta. O garotinho, verificando que não está
sendo atendido, grita cada vez mais alto. Quanto mais imperiosamente insiste em
que a babá acorde e o auxilie, mais insistente se torna a certeza do sonho de
que tudo vai bem e de que não há necessidade de ela acordar. Ao mesmo tempo, o
sonho traduz o estímulo crescente nas dimensões crescentes de seus símbolos. A
corrente de água produzida pelo menino que urina vai-se avolumando cada vez
mais. No quarto quadro, já é grande o bastante para fazer flutuar um barco a
remo; mas seguem-se uma gôndola, um veleiro e, por fim, um transatlântico. O
engenhoso artista, dessa maneira, retratou habilmente a luta entre o desejo
obstinado de dormir e um estímulo inexaurível para acordar.
SONHO DE UMA
AMA-SECA FRANCESA
VII
UM SONHO COM
ESCADA
[1911]
(Relatado e Interpretado por Otto Rank.)
“Tenho de
agradecer ao mesmo colega a quem devo o sonho do estímulo dental [registrado em
[1]] por um sonho de polução igualmente transparente:
“ ‘Eu ia
descendo às pressas a escada [de um bloco de apartamentos], perseguindo uma
menininha que me havia feito alguma coisa, a fim de castigá-la. No pé da
escada, alguém (uma mulher adulta?) deteve a criança para mim. Agarrei-a, mas
não sei se bati nela, pois de repente me vi no meio da escada copulando com a
menina (como se fosse no ar). Não era uma verdadeira cópula; eu apenas
esfregava minha genitália em seus órgãos genitais externos e, enquanto o fazia,
eu os via com extrema nitidez, bem como a cabeça dela, que estava voltada para
cima e para o lado. Durante o ato sexual eu via penderem acima de mim, à minha
esquerda (também como se fora no ar), duas pequenas pinturas - paisagens
representando uma casa circundada de árvores. Na parte inferior do quadro
menor, em vez da assinatura do pintor, eu via meu próprio nome, como se a
pintura se destinasse a ser um presente de aniversário para mim. A seguir, vi
uma etiqueta diante dos dois quadros, que dizia que também se podiam conseguir
pinturas mais baratas. (Vi então a mim mesmo, muito indistintamente, como se
estivesse deitado na cama no patamar), e fui despertado pela sensação de
umidade causada pela polução que tivera.’
“INTERPRETAÇÃO.
- Na noite do dia do sonho, o sonhador estivera numa livraria e, enquanto
esperava ser atendido, olhara para alguns quadros que ali se achavam expostos e
que representavam temas semelhantes aos do sonho. Aproximara-se de um quadrinho
que lhe agradara particularmente para ver o nome do artista - mas este lhe era
inteiramente desconhecido.
“Posteriormente,
na mesma noite, quando estava com alguns amigos, ele ouvira a história de uma
empregada da Boêmia que se vangloriava de que seu filho ilegítimo fora ‘feito
na escada’. O sonhador indagara sobre os pormenores desse fato bastante incomum
e soubera que a empregada tinha voltado para sua terra com seu admirador, indo
para a casa dos pais, onde não houvera nenhuma oportunidade de relações
sexuais, e que, em sua excitação, o homem copulara com ela na escada. O
sonhador aludira jocosamente a uma expressão maliciosa empregada para descrever
vinhos adulterados e dissera que, de fato, a criança provinha de uma ‘vindima
de escada de adega’.
Basta isso no
tocante às conexões com o dia anterior, que surgiram com certa insistência no
conteúdo onírico e foram reproduzidas pelo sonhador sem qualquer dificuldade.
Mas ele trouxe à baila, com igual facilidade, um antigo fragmento de lembrança
infantil que também fora usado no sonho. A escada pertencia à casa onde ele
passara a maior parte de sua infância e, em particular, onde pela primeira vez
travara conhecimento consciente com os problemas do sexo. Com freqüência,
brincara nessa escada e, entre outras coisas, costumava deslizar pelo corrimão,
descendo montado nele - o que lhe dera sensações sexuais. Também no sonho, ele
correra escada abaixo com extraordinária rapidez - de fato, com tanta rapidez
que, segundo seu próprio relato específico, não pusera os pés nos degraus, um a
um, mas ‘voara’ escada abaixo, como as pessoas costumam dizer. Caso se leve em
consideração a experiência infantil, a parte inicial do sonho parece
representar o fator da excitação sexual. - Mas o sonhador também fizera muitas
vezes brincadeiras de natureza sexual com os filhos dos vizinhos nessa mesma
escada e no prédio adjacente, e satisfizera seus desejos da mesma forma que no
sonho.
“Se tivermos em
mente que as pesquisas de Freud sobre o simbolismo sexual (1910d [ver em [1]])
indicaram que, nos sonhos, as escadarias e subir escadas representam quase
invariavelmente a cópula, o sonho se tornará bem transparente. Sua força
motivadora, como a rigor ficou demonstrado por seu resultado - uma polução -
era de natureza puramente libidinal. A excitação sexual do sonhador foi
despertada durante o sono, sendo isso representado no sonho por sua precipitação
escada abaixo. O elemento sádico da excitação sexual, baseado nas brincadeiras
da infância, foi indicado pela perseguição e sujeição da criança. A excitação
libidinal aumentou e exerceu pressão no sentido da ação sexual - representada
no sonho por ele agarrar a criança e levá-la até o meio da escada. Até esse
ponto,o sonho fora apenas simbolicamente sexual, e teria sido
inteiramente ininteligível para qualquer intérprete inexperiente de sonhos. Mas
esse tipo de satisfação simbólica não foi suficiente para garantir um sono
tranqüilo, em vista da intensidade da excitação libidinal. A excitação levou a
um orgasmo e, assim, revelou o fato de que todo o simbolismo da escada
representava a cópula. - Este sonho fornece uma confirmação especialmente clara
do ponto de vista de Freud de que uma das razões da utilização do subir escadas
como símbolo sexual é a natureza rítmica de ambas as atividades, pois o
sonhador declarou expressamente que o elemento definido de maneira mais clara
no sonho inteiro foi o ritmo do ato sexual e seu movimento para cima e para
baixo.
“Devo
acrescentar uma palavra no tocante aos dois quadros que, independentemente de
seu significado real, também figuraram num sentido simbólico como ‘Weibsbilder‘.Isso
ficou demonstrado de imediato por haver um quadro grande e um pequeno, do mesmo
modo que uma menina grande (ou adulta) e uma pequena apareceram no sonho. O
fato de que ‘também se podiam conseguir pinturas mais baratas’ levou ao
complexo das prostitutas, enquanto que, por outro lado, o aparecimento do
prenome do sonhador no quadro pequeno e a idéia de este se destinar a ser um
presente de aniversário para ele foram indícios do complexo paterno. (‘Nascido
na escada’ = ‘gerado pela cópula’.)
“A cena final
imprecisa, na qual o sonhador se viu deitado na cama no patamar e experimentou
uma sensação de umidade, parece apontar, além da masturbação infantil, para uma
época ainda mais remota da infância, e ter seu protótipo em cenas igualmente
prazerosas de molhar a cama.”
VIII
UM SONHO
MODIFICADO COM ESCADAS
[1911]
Um de meus
pacientes, um homem cuja abstinência sexual lhe foi imposta por uma neurose
grave e cujas fantasias [inconscientes] se fixavamna mãe, sonhava repetidamente
estar subindo escadas na companhia dela. Certa vez, fiz-lhe o comentário de que
uma dose moderada de masturbação provavelmente lhe faria menos mal do que sua
auto-restrição compulsiva, tendo isso provocado o seguinte sonho:
Seu professor de
piano o repreendia por negligenciar seus estudos de piano e por não praticar os
“Études” de Moscheles e o “Gradus ad Parnassum” de Clementi.
À guisa de
comentário, ele ressaltou que “Gradus” também são “degraus” e que o próprio
teclado é uma escadaria, já que contém escalas [escadas de mão].
Cabe dizer que
não há nenhum grupo de idéias que seja incapaz de representar fatos e desejos
sexuais.
IX
O SENTIMENTO DE
REALIDADE EA REPRESENTAÇÃO DA REPETIÇÃO
[1919]
Um homem que
conta agora trinta e cinco anos relatou um sonho do qual se lembrava
nitidamente e que declarou ter tido aos quatro anos de idade. O advogado que
estava encarregado do testamento de seu pai - ele perdera o pai aos três
anos - trouxera duas pêras grandes. Deram-lhe uma para comer; a outra ficou
no parapeito da janela da sala de estar. Ele acordou com a convicção da realidade
do que havia sonhado e se pôs a pedir obstinadamente a segunda pêra à mãe,
insistindo em que estava no parapeito da janela. Sua mãe rira disso.
ANÁLISE. - O
advogado era um velho cavalheiro jovial que, como o paciente parecia recordar,
realmente levara algumas pêras certa vez. O parapeito da janela era tal como
ele o vira no sonho. Nada mais lhe ocorreu em relação a isso - apenas que a mãe
lhe contara um sonho pouco antes. Havia dois pássaros pousados em sua cabeça, e
ela se perguntara quando iriam embora; eles não foram, mas um deles voou até
sua boca e sugou-a.
A falta de
associações do paciente nos dá o direito de tentar uma interpretação por substituição
simbólica. As duas pêras - “pommes ou poires” - eram os seios da mãe,
que o haviam nutrido; o parapeito dajanela era a projeção formada pelo busto
dela - como as sacadas nos sonhos com casas (ver em [1]). Seu sentimento de
realidade depois de acordar foi justificado, pois sua mãe realmente o
amamentara e, a rigor, fizera-o por muito mais tempo que de hábito; e os seios
da mãe ainda lhe estavam disponíveis. O sonho deve ser traduzido por “Dê-me
(ou mostre-me) de novo seu seio, mãe, no qual eu costumava beber no passado”.
“No passado” foi representado por ele comer uma das pêras; “de novo” foi
representado por seu desejo pela outra. A repetição temporal de um ato é
regularmente indicada nos sonhos pela multiplicação numérica de um objeto.
É extremamente
notável, por certo, que o simbolismo já desempenhe seu papel no sonho de uma
criança de quatro anos. Mas isso é a regra, e não a exceção. Pode-se afirmar
com segurança que os sonhadores dispõem do simbolismo desde o princípio.
A seguinte
lembrança não-influenciada de uma moça que conta agora vinte e sete anos mostra
em que idade precoce o simbolismo é empregado, tanto fora da vida onírica
quanto dentro dela. Ela estava entre os três e quatro anos de idade. Sua ama
levou-a ao banheiro, juntamente com um irmão onze meses mais novo que ela e uma
prima cuja idade se situava entre as dos dois, para satisfazerem suas
necessidades antes de saírem a passeio. Sendo a mais velha, ela se sentou no
vaso sanitário, enquanto os outros dois sentaram-se em urinóis. Ela perguntou à
prima: “Você também tem uma bolsa? Walter tem uma salsichinha; eu tenho uma
bolsa.” A prima respondeu: “É, eu também tenho uma bolsa.” A ama ouviu, achando
muita graça, o que eles diziam, e relatou a conversa à mãe das crianças, que
reagiu com severa reprimenda.
Interpolei aqui
um sonho (registrado num trabalho de Alfred Robitsek, 1912) em que o simbolismo
lindamente escolhido possibilitou uma interpretação, apenas com uma ligeira
ajuda da sonhadora.
X
A QUESTÃO DO
SIMBOLISMO NOS SONHOSDAS PESSOAS NORMAIS
[1914]
“Uma objeção freqüentemente levantada pelos
adversários da psicanálise, e que foi recentemente externada por Havelock Ellis
(1911, 168), é o argumento de que, embora o simbolismo onírico talvez possa
ocorrer como um produto da mente neurótica, não é encontrado em pessoas
normais. Ora, a pesquisa psicanalítica não encontra nenhuma distinção
fundamental, mas apenas quantitativa, entre a vida normal e a vida neurótica;
e, de fato, a análise dos sonhos, onde os complexos recalcados são atuantes
tanto nas pessoas sadias quando nas doentes, mostra uma identidade completa nos
mecanismos e no simbolismo delas. Os sonhos ingênuos das pessoas sadias, na
realidade, muitas vezes encerram um simbolismo muito mais simples, mais
compreensível e mais característico do que os sonhos dos neuróticos, pois
nestes, como resultado da ação mais poderosa da censura e, conseqüentemente, de
uma distorção onírica mais extensa, o simbolismo pode ser obscuro e difícil de
interpretar. O sonho registrado abaixo servirá para ilustrar esse fato. Foi
sonhado por uma moça que não é neurótica, mas tem um caráter um tanto pudico e
reservado. No decorrer de uma conversa que tive com ela, fiquei sabendo que
estava noiva, mas que havia certas dificuldades que se antepunham a seu casamento
e que, provavelmente, levariam ao adiamento dele. Por livre e espontânea
vontade, ela me relatou o seguinte sonho.
“ ‘Estou
arrumando o centro de uma mesa com flores para um aniversário.’ Em
resposta a uma pergunta, ela me disse que, no sonho, parecia estar em sua
própria casa (onde não estava morando no momento) e tinha ‘uma sensação de
felicidade’.
“O simbolismo
‘popular’ possibilitou-me traduzir o sonho sem necessidade de ajuda. Era uma
expressão de seus desejos nupciais: a mesa, com seu centro de flores,
simbolizava ela própria e seus órgãos genitais; a moça representava como
realizados seus desejos ligados ao futuro, pois seuspensamentos já estavam
ocupados com o nascimento de um bebê; logo, o casamento já ficara para trás há
muito tempo.
“Frisei-lhe que
‘o “centro” de uma mesa‘ era uma expressão inusitada (o que ela
admitiu), mas não pude, é claro, formular-lhe diretamente outras perguntas
sobre esse ponto. Evitei cuidadosamente sugerir-lhe o significado dos símbolos,
e apenas perguntei o que lhe vinha à cabeça em relação às partes isoladas do
sonho. No curso da análise, sua reserva cedeu lugar a um evidente interesse na
interpretação e a uma franqueza possibilitada pela seriedade da conversa.
“Quando lhe
perguntei quais tinham sido as flores, sua primeira resposta foi: ‘flores
caras; tem-se de pagar por elas‘, e, em seguida, que tinham sido ‘lírios
do vale, violetas e cravinas ou cravos‘. Presumi que o termo ‘lírio’
aparecera no sonho em seu sentido popular, como símbolo da castidade; ela confirmou
essa suposição, pois sua associação com ‘lírio’ foi ‘pureza‘. ‘Vale’
é um símbolo feminino freqüente nos sonhos, de modo que a combinação casual dos
dois símbolos no nome inglês dessa flor foi empregado no simbolismo onírico
para frisar a preciosidade de sua virgindade - ‘flores caras, tem-se de
pagar por elas‘ - e para expressar sua expectativa de que seu marido
soubesse como apreciar-lhe o valor. A expressão ‘flores caras, etc.‘,
como se verá, possuía um significado diferente no caso de cada um dos três
símbolos florais.
“ ‘Violetas‘,
aparentemente, era bem assexual; mas, com muita ousadia, ao que me pareceu,
pensei poder desvendar um sentido secreto para essa palavra, num elo
inconsciente com a palavra francesa ‘viol‘ [‘estupro’]. Para minha surpresa, a
sonhadora forneceu como associação o termo inglês ‘violate‘ [‘violar’].
O sonho utilizara a grande similaridade casual entre as palavras ‘violet‘
e ‘violate‘ - a diferença em sua pronúncia está apenas na tonicidade
diferenciada de suas sílabas finais - para expressar, ‘na linguagem das
flores’, as idéias da sonhadora sobre a violência da defloração (outro termo
que emprega o simbolismo das flores) e, possivelmente, também, um traço
masoquista de seu caráter. Um belo exemplo das ‘pontes verbais’ [ver em [1]]
atravessadas pelas vias que levam ao inconsciente. As palavras ‘tem-se de
pagar por elas‘ significavam ter de pagar com a vida para ser esposa e mãe.
“No tocante a
‘cravinas’ [pinks], que ela passou a chamar de ‘cravos’ [carnations],
pensei na ligação entre essa palavra e ‘carnal’. Mas a associação da sonhadora
foi ‘cor’. Ela acrescentou que ‘cravos’ eram as flores que seu
noivo lhe dava com freqüência e em grande quantidade. No final de suas
observações, ela confessou, súbita e espontaneamente, nãoter dito a verdade: o
que lhe ocorrera não tinha sido ‘cor‘, mas ‘encarnação‘ [incarnation]
- a palavra que eu havia esperado. Aliás, o próprio termo ‘cor’ não era uma
associação muito remota, mas determinada pelo significado de ‘cravo‘
[carnation] (cor de carne) - em outras palavras, determinada pelo mesmo
complexo. Essa falta de sinceridade mostrou ser esse o ponto em que a
resistência era maior, e correspondeu ao fato de ser esse o ponto onde o
simbolismo era mais claro e onde a luta entre a libido e seu recalcamento
atingia o nível mais intenso em relação a esse tema fálico. O comentário da
sonhadora no sentido de que seu noivo muitas vezes lhe dava esse tipo de flores
foi uma indicação não só do duplo sentido do termo ‘cravos‘ [carnations],
como também de seu significado fálico no sonho. O oferecimento de flores, fator
excitante do sonho oriundo da vida corrente da moça, foi empregado para
expressar uma troca de dádivas sexuais: ela fazia de sua virgindade um presente
e, em troca, esperava uma vida emocional e sexual plena. Também nesse ponto, as
palavras ‘flores caras, tem-se de pagar por elas‘ devem ter tido o que,
sem dúvida, era literalmente um significado financeiro. - Assim, o simbolismo
das flores, nesse sonho, abrangia a feminilidade virginal, a masculinidade e
uma alusão ao defloramento pela violência. Vale a pena salientar, nesse
sentido, que o simbolismo sexual das flores, que de fato ocorre muito comumente
em outros contextos, simboliza os órgãos sexuais humanos através das flores,
que são os órgãos sexuais das plantas. Talvez seja verdade, de modo geral, que
as ofertas de flores entre aqueles que se amam tenham esse significado
inconsciente.
“O aniversário
para o qual ela se estava preparando no sonho significava, sem dúvida, o
nascimento de um bebê. Ela se estava identificando com o noivo e o estava
representando como ‘arrumando-a’ para um nascimento - isto é, copulando com
ela. O pensamento latente talvez tenha sido: ‘Se eu fosse ele, não esperaria -
defloraria minha noiva sem lhe pedir licença - empregaria a violência’. Isso
foi indicado pelo termo ‘violar‘ e, desse modo, o componente sádico da
libido encontrou expressão.
“Numa camada
mais profunda do sonho, a frase ‘Estou arrumando…‘ deve sem dúvida, ter
um significado auto-erótico, isto é, infantil.
“A sonhadora
revelou também uma consciência, possibilitada a ela apenas em sonho, de sua
deficiência física: viu a si própria como uma mesa, sem projeções, e, por isso
mesmo depositou ainda mais ênfase na preciosidade do ‘centro‘ - noutra
ocasião empregou as palavras ‘um centro de flores‘ - isto é, em sua
virgindade. O atributo horizontal de mesa também deve ter dado alguma
contribuição para o símbolo.
“A concentração
do sonho deve ser observada: nada havia nele de supérfluo, cada palavra era um
símbolo.
“Posteriormente,
a sonhadora produziu um adendo ao sonho: ‘Estou decorando as flores com
papel crepom verde.’ Acrescentou tratar-se de um ‘papel de fantasia‘,
do tipo usado para cobrir vasos de flores comuns. E prosseguiu: ‘Para
ocultar coisas desarrumadas, qualquer coisa visível que não fosse agradável aos
olhos; há uma lacuna, um pequeno espaço nas flores. O papel parece veludo ou
musgo‘. - Para ‘decorar‘ ela forneceu a associação ‘decoro‘,
como eu havia esperado. Disse que a cor verde predominava, e sua associação com
ela foi ‘esperança‘ - outro elo com a gravidez. - Nessa parte do sonho,
o fator principal não foi a identificação com um homem; as idéias de vergonha e
de auto-revelação vieram para o primeiro plano. Ela se estava embelezando para
ele e admitindo defeitos físicos de que se envergonhava e que estava tentando
corrigir. Suas associações ‘veludo‘ e ‘musgo‘ constituíam uma
indicação clara de uma referência aos pêlos pubianos.
“Esse sonho,
portanto, deu expressão a pensamentos de que a moça mal tinha ciência em sua
vida de vigília - pensamentos concernentes ao amor sensual e seus órgãos. Ela
estava sendo ‘arrumada para um aniversário’ - isto é, estava copulando com
alguém. O medo de ser deflorada estava encontrando expressão, o mesmo acontecendo,
talvez, com as idéias de um sofrimento prazeroso. Ela admitia para si própria
suas deficiências físicas e as supercompensava mediante uma supervalorização da
virgindade. Sua vergonha apresentava como desculpa para os sinais de
sensualidade o fato de que a finalidade desta era a produção de um bebê. Também
as considerações materiais, estranhas ao espírito dos enamorados, encontraram
um meio de expressar-se. O afeto ligado a esse sonho simples - uma sensação de
felicidade - indicou que poderosos complexos emocionais nele haviam encontrado
satisfação.”
Ferenczi (1917) salientou, acertadamente, que o significado dos símbolos e a
significação dos sonhos podem ser alcançados com particular facilidade a
partir, precisamente, dos sonhos das pessoas que não são iniciadas na
psicanálise.
Neste ponto,
intercalarei um sonho produzido por uma figura histórica contemporânea. Faço-o
porque, no sonho, um objeto que de qualquer modorepresentaria apropriadamente
um órgão masculino tem um atributo adicional que o estabeleceu da maneira mais
clara possível como um símbolo fálico. Dificilmente se poderia tomar o fato de
um chicote crescer até um comprimento interminável em qualquer outro sentido
que não o de uma ereção. Afora isso, ademais, o sonho é um excelente exemplo do
modo como pensamentos de natureza séria, muito distantes de qualquer coisa
sexual, podem vir a ser representados por material sexual infantil.
XI
UM SONHO DE
BISMARCK [1919]
“Em sua obra Gedanken
und Erinnerungen [1898, 2, 194; tradução inglesa de A. J. Butler, Bismarck,
the Man and the Statesman, 1898, 2, 209 e segs.], Bismarck cita uma carta
que escreveu ao Imperador Guilherme I em 18 de dezembro de 1881, no curso da
qual ocorre o seguinte trecho: ‘A comunicação de Vossa Majestade estimula-me a
relatar um sonho que tive na primavera de 1863, nos piores dias do Conflito, do
qual nenhuma visão humana poderia vislumbrar qualquer saída possível. Sonhei
(como relatei antes de qualquer outra coisa a minha mulher e a outras
testemunhas na manhã seguinte) que cavalgava por uma estreita trilha alpina,
com um precipício à direita e rochas à esquerda. O caminho foi-se estreitando,
de tal modo que o cavalo recusou-se a prosseguir e era impossível dar
meia-volta ou desmontar, devido à falta de espaço. Então, com o chicote na mão
esquerda, golpeei a rocha lisa e invoquei o nome de Deus. O chicote cresceu até
atingir um comprimento interminável, a muralha rochosa desmoronou como um
pedaço de cenário num palco e abriu-se um caminho largo com uma vista das
colinas e florestas, como uma paisagem da Boêmia; havia tropas prussianas com
estandartes, e mesmo em meu sonho me veio imediatamente a idéia de que eu
deveria relatar isso a Vossa Majestade. Esse sonho se realizou e acordei
regozijante e fortalecido…’
“A ação desse
sonho enquadra-se em duas seções. Na primeira parte, o sonhador viu-se num impasse
do qual foi miraculosamente resgatado nasegunda. A difícil situação em que
cavalo e cavaleiro foram colocados é uma imagem onírica facilmente reconhecível
da posição crítica do estadista, que ele talvez tivesse sentido com particular
amargura ao ponderar sobre os problemas de sua política na noite anterior ao
sonho. No trecho citado acima, o próprio Bismarck utiliza o mesmo símile [de
não haver nenhuma ‘saída’ possível] ao descrever a desesperança de sua situação
na época. O significado da imagem onírica, portanto, deve ter sido bem óbvio
para ele. Ao mesmo tempo, é-nos apresentado um belo exemplo do ‘fenômeno
funcional’ de Silberer [ver em [1]]. O processo ocorrido na mente do sonhador -
com cada uma das soluções tentadas por seus pensamentos esbarrando em
obstáculos intransponíveis, ao mesmo tempo que, ainda assim, ele não sabia e
não podia desvencilhar-se do exame desses problemas - foi retratado com extrema
propriedade pelo cavaleiro que não podia avançar nem recuar. Seu orgulho, que
impedia que ele pensasse em render-se ou renunciar, foi expresso no sonho pelas
palavras ‘era impossível dar meia-volta ou desmontar’. Na qualidade de homem de
ação que se empenhava incessantemente e lutava pelo bem de outrem, deve ter
sido fácil para Bismarck assemelhar-se a um cavalo; e, de fato, ele assim fez
em muitas ocasiões, como por exemplo em seu célebre dito: ‘Um bom cavalo morre
trabalhando’. Nesse sentido, as palavras ‘o cavalo recusou-se a prosseguir’
significavam nada mais nada menos do que o fato de que o extenuado estadista
sentia uma necessidade de fugir às inquietações do presente imediato, ou, para
expressá-lo de outra forma, de que estava no ato de se libertar dos grilhões do
princípio de realidade através do sono e do sonho. A realização de desejo, que
se tornou tão destacada na segunda parte do sonho, já tinha sido sugerida nas
palavras ‘trilha alpina’. Sem dúvida, Bismarck já sabia, nessa ocasião, que
iria passar suas próximas férias nos Alpes - em Gastein; assim, o sonho,
levando-o até lá, liberou-o de um só golpe de todos os fardos dos negócios de
Estado.
“Na segunda
parte do sonho, os desejos do sonhador foram representados como realizados de
duas maneiras: indisfarçada e obviamente, e além disso, simbolicamente. Sua
realização foi simbolicamente representada pelo desaparecimento da rocha
obstrutiva e pelo surgimento, em seu lugar, de um caminho amplo - a ‘saída’ à
procura da qual ele estava, em sua forma mais conveniente; e foi
indisfarçadamente representada na imagem das tropas prussianas que avançavam.
Para explicar essa visão profética, não há absolutamente nenhuma necessidade de
construir hipóteses místicas; a teoria freudiana da realização de desejo basta
plenamente.Já por ocasião desse sonho, Bismarck desejava uma guerra vitoriosa
contra a Áustria como a melhor saída para os conflitos internos da Prússia.
Assim, o sonho estava representando esse desejo como realizado, justamente como
é postulado por Freud, quando o sonhador viu as tropas prussianas com seus
estandartes na Boêmia, isto é, em solo inimigo. A única peculiaridade do caso
foi que o sonhador em que estamos aqui interessados não se contentava com a
realização de seu desejo num sonho, mas sabia como obtê-la na realidade.
Um aspecto que não pode deixar de impressionar qualquer um que esteja
familiarizado com a técnica psicanalítica da interpretação é o chicote - que
crescia até atingir um ‘comprimento interminável’. Os chicotes, bastões, lanças
e objetos semelhantes nos são familiares como símbolos fálicos; mas, quando um
chicote possui ainda a característica mais notável de um falo, que é sua
extensibilidade, mal pode restar alguma dúvida. O exagero do fenômeno - seu crescimento
até um ‘comprimento interminável’ - parece sugerir uma hipercatexia
proveniente de fontes infantis. O fato de o sonhador ter tomado o chicote nas
mãos foi uma alusão clara à masturbação, embora a referência não dissesse
respeito, é claro, às circunstâncias contemporâneas do sonhador, mas a desejos
infantis do passado remoto. A interpretação descoberta pelo Dr. Stekel [1909,
466 e segs.], de que, nos sonhos, a ‘esquerda’ representa o que é errado,
proibido e pecaminoso, vem muito a calhar aqui, pois bem poderia aplicar-se à
masturbação praticada na infância em face da proibição. Entre essa camada
infantil mais profunda e a mais superficial, que se relacionava com os planos
imediatos do estadista, é possível identificar uma camada intermediária que se
relacionava com as outras duas. Todo o episódio de uma libertação miraculosa da
necessidade, ao bater numa pedra e, ao mesmo tempo, invocar Deus como auxiliar,
tem uma notável semelhança com a cena bíblica em que Moisés extrai água de uma
rocha para os sedentos Filhos de Israel. Podemos presumir, sem hesitação, que
essa passagem, com todos os seus pormenores, era familiar a Bismarck, que
provinha de uma família protestante amante da Bíblia. Não seria improvável que,
nessa época de conflito, Bismarck se comparasse a Moisés, o líder, a quem o
povo que ele procurou libertar recompensou com rebelião, ódio e ingratidão.
Aqui, portanto, teríamos a ligação com os desejos contemporâneosdo sonhador.
Mas, por outro lado, o texto da Bíblia contém alguns detalhes que se aplicam
bem a uma fantasia masturbatória. Moisés tomou a vara em face da ordem de Deus,
e o Senhor o puniu por essa transgressão dizendo-lhe que ele deveria morrer sem
entrar na Terra Prometida. O ato proibido de apanhar a vara (no sonho, um ato
inequivocamente fálico), a produção de líquido ao golpear com ela e a ameaça de
morte - aí encontramos reunidos todos os principais fatores da masturbação
infantil. Podemos observar com interesse o processo de revisão que fundiu essas
duas imagens heterogêneas (originando-se, uma, da mente de um estadista de
gênio, e outra, dos impulsos da mente primitiva de uma criança) e que, por esse
meio, conseguiu eliminar todos os fatores aflitivos. O fato de que segurar a
vara era um ato proibido e de rebelião não mais foi indicado senão
simbolicamente, através da mão ‘esquerda’ que o praticou. Por outro lado, Deus
foi invocado no conteúdo manifesto do sonho, como que para negar tão
ostensivamente quanto possível qualquer idéia de uma proibição ou segredo. Das
duas profecias feitas por Deus a Moisés - de que ele veria a Terra Prometida,
mas nela não entraria - a primeira é claramente representada como realizada (‘a
vista das colinas e florestas’), enquanto a segunda, altamente aflitiva, não é
mencionada em absoluto. A água foi provavelmente sacrificada às exigências da
elaboração secundária [ver em [1]], que se esforçou com êxito por fundir esta
cena e a primeira numa só unidade; em vez de água, a própria rocha caiu.
“Poder-se-ia
esperar que ao término de uma fantasia masturbatória infantil que tivesse
incluído o tema da proibição, a criança desejasse que as pessoas de autoridade
em seu ambiente nada soubessem do que havia acontecido. No sonho, esse desejo
foi representado por seu oposto, pelo desejo de informar ao Rei imediatamente
do que acontecera. Mas essa inversão se ajustava de maneira excelente e muito
discreta na fantasia de vitória contida na camada superficial dos pensamentos
oníricos e numa parcela do conteúdo manifesto do sonho. Um sonho como esse, de
vitória e conquista, é amiúde uma capa para que um desejo seja bem-sucedido
numa conquista erótica; certas características do sonho, como, por
exemplo, a de ter havido um obstáculo ao avanço do sonhador, mas, depois de ele
fazer uso de um chicote extensível, ter-se aberto um caminho amplo, poderiam
apontar nessa direção, mas elas fornecem uma base insuficiente para se inferir
que uma tendência definida de pensamentos e desejos desse tipo teria perpassado
o sonho. Temos aqui um exemplo perfeito de distorção totalmente bem-sucedida do
sonho. O que quer que tenha havido nele de desagradável foi trabalhado, de modo
que nunca emergiu através da camadasuperficial que se estendeu sobre o sonho
como um manto protetor. Em conseqüência disso, foi possível evitar qualquer
liberação de angústia. O sonho foi um caso ideal de desejo realizado com êxito,
sem infringir a censura, de modo que bem podemos crer que o sonhador tenha
despertado dele ‘regozijante e fortalecido’.”
Como último
exemplo, eis aqui:
XII
O SONHO DE UM
QUÍMICO
[1909]
Isso foi sonhado
por um homem jovem que se vinha esforçando por abandonar o hábito de se
masturbar, em prol de relações sexuais com mulheres.
PREÂMBULO. - No
dia anterior ao sonho, ele estivera dando instruções a um aluno sobre a reação
de Grignard, na qual o magnésio é dissolvido em éter absolutamente puro através
da ação catalisadora do iodo. Dois dias antes, quando a mesma reação estava
sendo executada, ocorrera uma explosão que havia queimado a mão de um dos
manipuladores.
SONHO. - (I) Ele
devia estar fazendo brometo de fenil-magnésio. Via o aparelho com particular
nitidez, mas substituíra o magnésio por ele próprio. Percebeu-se então num
estado singularmente instável. Ficou a dizer consigo mesmo: “Isso está certo,
as coisas estão funcionando, meus pés já estão começando a se dissolver, meus
joelhos estão ficando moles.” Então, estendeu as mãos e apalpou os pés.
Entrementes (como, não sabia dizer), tirou as pernas do vaso e disse a si
mesmo, mais uma vez: “Isso não pode estar certo. É, mas está.” Nesse ponto,
acordou parcialmente e examinou o sonho consigo mesmo, para poder relatá-lo a
mim. Estava positivamente assustado com a solução do sonho.
Sentiu-se extremamente excitado durante esse período de semi-adormecimento e
ficou a repetir: “Fenil, fenil.”
(II) Ele
estava em ing com sua família inteira e
deveria estar em Schottentor às onze e meia para se encontrar com
uma certa mulher. Mas só acordou às onze e meia, e disse para consigo: “É muito
tarde. Não se pode chegar lá antes de meio-dia e meia.” No momento seguinte,
viu toda a família sentada à mesa; via sua mãe com particular nitidez, e a
empregada carregando a terrina de sopa. Então, pensou: “Bem já que começamos a
almoçar, é tarde demais para eu sair.”
ANÁLISE. - Ele
não tinha nenhuma dúvida de que mesmo a primeira parte do sonho tinha alguma
relação com a mulher com ele se iria encontrar. (Tivera o sonho na noite
anterior ao esperado rendez-vous.) Considerava o aluno a quem dera
instruções como uma pessoa particularmente desagradável.Tinha-lhe dito “Isso
não está certo” porque o magnésio não dera nenhum sinal de ser afetado. E o
aluno havia respondido, como se estivesse inteiramente despreocupado: “É, não
está.” O aluno devia representar ele próprio (o paciente), que era tão
indiferente em relação à análise quanto o aluno a respeito da síntese. O “ele”
do sonho que executava a operação representava a mim. Quão desagradável eu
deveria considerá-lo por ser tão indiferente ao resultado!
Por outro lado,
ele (o paciente) era o material que estava sendo utilizado para a análise (ou
síntese). O que estava em jogo era o êxito do tratamento. A referência a suas
pernas, no sonho, fez com que se lembrasse de uma experiência da noite
anterior. Estava tendo uma aula de dança e se encontrara com uma moça a quem muito
desejava conquistar. Abraçara-a com tanta força contra si que, em certo
momento, ela deu um grito. Ao relaxar a pressão contra as pernas dela, sentira
sua forte pressão receptiva contra a parte inferior das coxas dele, descendo
até os joelhos - o ponto mencionado em seu sonho. De modo que, nesse sentido, a
mulher é que era o magnésio no comentário de que as coisas finalmente estavam
funcionando. Ele era feminino em relação a mim, assim como era masculino em
relação à mulher. Se estava funcionando com a dama, estava funcionando com ele
no tratamento. O fato de ele se apalpar e as sensações nos joelhos apontavam
para a masturbação e se encaixavam com sua fadiga do dia anterior. - Seu
encontro com a moça fora marcado, de fato, para as onze e meia. O desejo de não
comparecer a ele, dormindo demais, e de ficar em casa com seus objetos sexuais
(isto é, de se ater à masturbação) correspondiam a sua resistência.
No tocante à
repetição da palavra “fenil”, ele me disse que sempre apreciara muito todos
esses radicais que terminavam em “-il”, por serem muito fáceis de usar: benzil,
acetil, etc. Isso nada explicava. Mas, quando lhe sugeri “Schlemihl”
como outro radical da série, ele riu gostosamente e me disse que, durante o
verão, lera um livro de Marcel Prévost no qual havia um capítulo sobre “Les
exclus de l’amour”, que de fato continha algumas observações sobre “les
Schlémiliés”. Ao lê-las, ele dissera consigo mesmo: “É assim mesmo que eu
sou.” - Se tivesse faltado ao encontro, isso teria sido outro exemplo de sua “schlemihlidade”.
Poder-se-ia
supor que a ocorrência do simbolismo sexual nos sonhos já foi experimentalmente
confirmada por alguns trabalhos efetuados por K.Schrötter, em moldes propostos
por H. Swoboda. Sujeitos em hipnose profunda receberam sugestões de Schrötter,
havendo estas levado à produção de sonhos dos quais grande parte do conteúdo
foi determinada pelas sugestões. Se ele desse ao sujeito a sugestão de que ele
deveria sonhar com relações sexuais normais ou anormais, o sonho, obedecendo à
sugestão, utilizaria símbolos que nos são familiares a partir da psicanálise em
lugar do material sexual. Por exemplo, quando se deu a um sujeito do sexo
feminino a sugestão de que sonhasse estar tendo relações homossexuais com uma
amiga, esta apareceu no sonho carregando uma bolsa surrada, com uma etiqueta
que trazia os dizeres “Só para damas”. Afirmou-se que a mulher que teve esse
sonho nunca tivera nenhum conhecimento do simbolismo nos sonhos ou da
interpretação destes. Surgem, contudo, dificuldades em formarmos uma opinião
sobre o valor desses interessantes experimentos, pela infeliz circunstância de
o Dr. Schrötter ter-se suicidado pouco depois de efetuá-los. O único registro
deles encontra-se numa comunicação preliminar publicada no Zentralblatt für
Psychoanalyse (Schrötter, 1912). [1914.]
Resultados
semelhantes foram publicados por Roffenstein em 1923. Alguns experimentos
realizados por Betlheim e Hartmann (1924) foram de particular interesse, visto
não terem feito uso da hipnose. Esses experimentadores contaram anedotas de
natureza grosseiramente sexual a pacientes que sofriam da síndrome de Korsakoff
e observaram as distorções que ocorriam quando as anedotas eram reproduzidas
pelos pacientes nesses estados confusionais. Constataram que os símbolos que
nos são familiares a partir da interpretação dos sonhos passavam a aparecer
(por exemplo, subir escadas, apunhalar e atirar como símbolos de copulação, e
facas e cigarros como símbolos do pênis). Os autores atribuíram especial
importância ao aparecimento do símbolo da escada, pois, como observaram
acertadamente, “nenhum desejo consciente de distorcer poderia ter chegado a um
símbolo dessa natureza”. [1925.]
Somente agora,
depois de termos avaliado adequadamente a importância do simbolismo nos sonhos,
é que se nos torna possível retomar o tema dos sonhos típicos, interrompido em
[1]. [1914.] Penso termos razões para dividir esses sonhos, grosso modo,
em duas classes: os que realmente têm sempre o mesmo sentido e os que, apesar
de terem conteúdo idêntico ou semelhante, devem, não obstante, ser
interpretados de maneira extremamente variada. Entre os sonhos típicos da
primeira categoria já tratei [em [1]], com certa riqueza de detalhes, dos
sonhos com exames. [1909.]
Os sonhos com a
perda de um trem merecem ser postos ao lado dos sonhos com exames por causa da
similaridade de seu afeto, e sua explicação mostra que estaremos certos ao
fazê-lo. Eles são sonhos de consolação para outra espécie de angústia sentida
no sono - o medo de morrer. “Partir” numa viagem é um dos símbolos mais comuns
e mais reconhecidos da morte. Esses sonhos dizem, de maneira consoladora, “Não
se preocupe, você não morrerá (partirá)”, tal como os sonhos com exames dizem,
alentadoramente, “Não tenha medo, nenhum mal lhe acontecerá desta vez,
tampouco”. A dificuldade de compreender esses dois tipos de sonhos se deve
ao fato de que o sentimento de angústia está ligado precisamente à expressão de
consolo. [1911.]
O sentido dos
sonhos “com um estímulo dental” [cf. em [1]] [2], que muitas vezes tive
de analisar em pacientes, escapou-me por muito tempo porque, para minha
surpresa, havia invariavelmente resistências fortíssimas a sua interpretação.
Provas esmagadoras fizeram com que, finalmente, eu não mais tivesse nenhuma
dúvida de que, nos homens, a força motora desses sonhos não derivava de outra
coisa senão dos desejos masturbatórios do período da puberdade. Analisarei dois
desses sonhos, um dos quais é também um “sonho de voar”. Ambos foram sonhados
pela mesma pessoa - um rapaz com fortes inclinações homossexuais que, todavia,
eram inibidas na vida real.
Ele estava
assistindo a uma encenação de “Fidélio” e se achava sentado nas primeiras filas
da Ópera ao lado de L., um homem que lhe era agradável e com que gostaria de
fazer amizade. De repente, ele saiu voando pelos ares, bem por cima das
poltronas, levou a mão à boca e arrancou dois de seus dentes.
Ele próprio
disse, a propósito do vôo, que era como se tivesse sido “jogado” no ar. Como se
tratava de uma representação de Fidélio, as palavras
Wer ein holdes
Weib errungen…
poderiam parecer
adequadas. Mas nem mesmo a conquista da mais adorável das mulheres estava entre
os desejos do sonhador. Dois outros versos seriam mais apropriados:
Wem der grosse Wurf
gelungen,
Eines Freundes
Freund zu sein…
O sonho
efetivamente continha essa “grande jogada”, que, contudo, não era apenas a
realização de um desejo. Escondia também a dolorosa reflexão de que o sonhador
muitas vezes fora infeliz em suas tentativas de amizade, e fora “jogado fora”.
Também escondia seu temor de que esse infortúnio pudesse repetir-se em relação
ao rapaz ao lado de quem ele estava desfrutando da representação de Fidélio.
E então se seguiu o que o desdenhoso sonhador encarava como uma confissão
vergonhosa: a de que, certa vez, após ter sido rejeitado por um de seus amigos,
ele se masturbara duas vezes seguidas, no estado de excitação sensual provocado
por seu desejo.
Eis aqui o
segundo sonho: Ele estava sendo tratado por dois professores universitários
de suas relações, e não por mim. Um deles estava fazendo alguma coisa com seu
pênis. Ele temia uma operação. O outro empurrava-lhe a boca com um bastão de
ferro, de modo que ele perdeu um ou dois dentes. Estava amarrado com quatro
panos de seda.
Dificilmente se
pode duvidar de que esse sonho tivesse um sentido sexual. Os panos de seda
identificaram-no com um homossexual que ele conhecia. O sonhador nunca
praticara o coito e nunca procurara ter relações sexuais com homens na vida
real; e imaginava as relações sexuais segundo o modelo da masturbação da
puberdade com que outrora estivera familiarizado.
As numerosas
modificações do sonho típico com estímulos dentais (por exemplo, sonhos de que
um dente é arrancado por outra pessoa, etc.) devem penso eu, ser explicadas da
mesma maneira. É possível, porém, que nosintrigue descobrir
como foi que os “estímulos dentais” passaram a ter esse significado. Mas eu
gostaria de chamar atenção para a freqüência com que o recalcamento sexual se
vale de transposições de uma parte inferior do corpo para uma parte superior.
Graças a elas, torna-se possível, na histeria, que toda sorte de sensações e
intenções sejam efetivadas, se não ali onde são apropriadas - em relação aos
órgãos genitais -, pelo menos em relação a outras partes não objetáveis do
corpo. Um exemplo de transposição dessa natureza é a substituição dos órgãos
genitais pelo rosto no simbolismo do pensamento inconsciente. O uso lingüístico
segue o mesmo modelo, ao reconhecer as nádegas [“Hinterbacken”,
literalmente, “bochechas traseiras”] como homólogas às bochechas, e ao traçar
um paralelo entre os “labia” e os lábios que delimitam o orifício da
boca. As comparações entre o nariz e o pênis são comuns, tornando-se a
similaridade mais completa pela presença de pêlos em ambos os lugares. A única
estrutura que não oferece qualquer possibilidade de analogia são os dentes; e é
precisamente essa combinação de semelhança e dissimilaridade que torna os
dentes tão apropriados para fins de representação quando alguma pressão é
exercida pelo recalcamento sexual.
Não posso
pretender que a interpretação dos sonhos com estímulos dentais como sonhos
masturbatórios - uma interpretação cuja correção me parece indubitável - tenha
sido inteiramente esclarecida. Dei a
explicação que pude e devo deixar o que resta sem solução. Mas posso chamar
atenção para outro paralelo encontrado no uso lingüístico. Em nossa parte do
mundo, o ato da masturbação é vulgarmente descrito como “sich einen
ausreissen” ou “sich einen herunterreissen” [literalmente, “dar uma
puxada para fora” ou “dar uma puxada para baixo”]. [1] Nada sei da
fonte dessa terminologia ou das imagens em que se baseia; mas “um dente” se
enquadraria muito bem na primeira das duas expressões.
Segundo a crença
popular, os sonhos com dentes que são arrancados devem ser interpretados como
significando a morte de um parente, mas a psicanálise pode, no máximo,
confirmar essa interpretação somente no sentido jocoso a que aludi acima. Nesse
contexto, porém, citarei um sonho com estímulo dental que foi posto a minha
disposição por Otto Rank.
“Um colega meu,
que há algum tempo vem dedicando vivo interesse aos problemas da interpretação
de sonhos, enviou-me a seguinte contribuição ao tema dos sonhos com estímulos dentais.
“ ‘Há pouco
tempo, sonhei que estava no dentista e ele perfurava com a broca um dente
posterior em meu maxilar inferior. Trabalhou nele por tanto tempo, que o dente
ficou inutilizado. Segurou-o então com um fórceps e o extraiu com uma
facilidade tão grande que provocou meu assombro. Disse-me que não me
preocupasse com aquilo, pois não se tratava do dente que ele estava realmente
tratando, e o colocou na mesa, onde o dente (um incisivo superior, ao que me
pareceu então) desfez-se em várias camadas. Levantei-me da cadeira do dentista,
aproximei-me mais do dente, com um sentimento de curiosidade, e levantei uma
questão médica que me interessava. O dentista explicou-me, enquanto separava as
várias partes do dente impressionantemente alvo e as esmagava (pulverizava-as)
com um instrumento, que ele estava ligado à puberdade e que era só antes da
puberdade que os dentes se soltavam com tanta facilidade e que, no caso das
mulheres, o fator decisivo era o nascimento de um filho.
“Percebi então
(enquanto estava parcialmente adormecido, creio eu) que o sonho se fizera
acompanhar de uma polução, que, no entanto, não pude relacionar com certeza a
qualquer parte específica do sonho; fiquei muito inclinado a pensar que ela já
havia ocorrido enquanto o dente era arrancado.
“ ‘Passei então
a sonhar com uma ocorrência que já não consigo recordar, mas que terminava por
eu deixar meu chapéu e meu paletó em algum lugar (possivelmente, na sala de
espera do consultório do dentista), na esperança de que alguém os trouxesse a
mim, e por sair às pressas, vestindo apenas meu sobretudo, para apanhar um trem
que estava de partida. Consegui, no último momento, saltar para o último vagão,
onde já havia alguém de pé. Não pude, entretanto, chegar até o interior do
vagão, mas fui obrigado a viajar numa situação desconfortável da qual tentei,
afinal com êxito, escapar.Entramos num grande túnel e dois trens, indo em
direção oposta a nós, passaram por dentro de nosso trem, como se ele fosse o
túnel. Eu olhava pela janela de um vagão como se estivesse do lado de fora.
“ ‘As seguintes
experiências e idéias do dia anterior fornecem material para uma interpretação
do sonho:
“ ‘(I). Eu
vinha, de fato, fazendo um tratamento dentário recentemente, e na ocasião do
sonho, sentia dores contínuas no dente do maxilar inferior que era perfurado à
broca no sonho, e no qual o dentista, também na realidade, havia trabalhado por
mais tempo do que eu queria. Na manhã do dia do sonho, eu fora mais uma vez ao
dentista por causa da dor, e ele me sugerira que eu devia extrair outro dente
no mesmo maxilar do que ele vinha tratando, dizendo que a dor provavelmente
provinha desse outro. Este era um “dente do siso”, que estava nascendo
exatamente nessa época. Eu levantara, a propósito disso, uma questão relativa à
consciência médica do dentista.
“ ‘(II). Na
tarde do mesmo dia, eu fora obrigado a pedir desculpas a uma senhora pelo mau
humor de que estava tomado, devido a minha dor de dente, ao que ela me dissera
que estava com medo de mandar extrair um dente cuja coroa se desfizera quase
por completo. Ela achava que extrair as “presas” era especialmente doloroso e
perigoso, embora, por outro lado, um de seus conhecidos lhe tivesse dito que
era mais fácil extrair dentes do maxilar superior, que era onde ficava o dela.
Esse conhecido também lhe dissera que, certa vez, extraíra o dente errado sob
anestesia, e isso aumentara o pavor que ela sentia da operação necessária. Ela
me havia então perguntado se as “presas” eram molares ou caninos e o que se
sabia a respeito delas. Ressaltei-lhe, por um lado, o elemento de superstição
em todas essas opiniões, embora, ao mesmo tempo, frisasse o núcleo de verdade
de certas visões populares. Ela pôde então repetir-me o que acreditava ser uma
crença popular muito antiga e difundida - a de que, se uma mulher grávida
tivesse dor de dentes, teria um menino.
“ ‘(III). Esse
dito me interessou, ligado ao que diz Freud, em sua Interpretação dos Sonhos,
sobre o significado típico dos sonhos com estímulos dentais como substitutos da
masturbação, visto que, no dito popular [citado pela senhora], o dente e a
genitália masculina (ou um menino) também foram relacionados. Na noite do mesmo
dia, portanto, li todo o trecho pertinente em A Interpretação dos Sonhos
e ali encontrei, entre outras coisas, as seguintes afirmações, cuja influência
sobre meu sonho pode ser observada tão claramente quanto a das duas outras
experiências que mencionei. Freud escreve, a propósito dos sonhos com estímulos
dentais, que, nos homens, a força motora desses sonhos nãoderivava de outra
coisa senão os desejos masturbatórios do período da puberdade’ [em [1]]. E
mais: ‘As numerosas modificações do sonho típico com estímulos dentais (por
exemplo, sonhos de que um dente é arrancado por outra pessoa, etc.) devem,
penso eu, ser aplicadas da mesma maneira. É possível, porém, que nos intrigue
descobrir como foi que os “estímulos dentais” passaram a ter esse significado.
Mas eu gostaria de chamar atenção para a freqüência com que o recalcamento
sexual se vale de transposições de uma parte inferior do corpo para uma parte
superior.’ (No sonho em exame, do maxilar inferior para o superior.) ‘Graças a
elas, torna-se possível, na histeria, que toda sorte de sensações e intenções
sejam efetivadas, se não ali onde são apropriadas - em relação aos órgãos
genitais -, pelo menos em relação a outras partes não objetáveis do corpo’ [em
[1]]. E novamente: ‘Mas posso chamar atenção para outro paralelo encontrado no
uso lingüístico. Em nossa parte do mundo, o ato da masturbação é vulgarmente
descrito como “sich einen ausreissen” ou “sich einen herunterreissen”’
[em [1]]. Eu já estava familiarizado com essa expressão, nos primeiros anos de
minha mocidade, como uma descrição da masturbação, e nenhum intérprete
experiente dos sonhos terá qualquer dificuldade em descobrir o caminho que vai
desse até o material infantil subjacente ao sonho. Acrescentarei apenas que a
facilidade com que o dente, que depois de sua extração transformou-se num
incisivo superior, soltou-se no sonho me fez lembrar uma ocasião de minha infância
em que eu próprio arranquei um incisivo superior que estava mole, facilmente e
sem dor. Esse fato, do qual ainda hoje me lembro com clareza em todos os seus
detalhes, ocorreu no mesmo período precoce ao qual remontam minhas primeiras
tentativas conscientes de masturbação. (Esta era uma lembrança encobridora.)
“ ‘A referência
de Freud a uma afirmativa de C. G. Jung no sentido de que os ‘sonhos com
estímulos dentais que ocorrem nas mulheres têm o sentido de sonhos com
nascimentos’ [em [1]], bem como a crença popular no significado da dor
de dentes nas mulheres grávidas, explicaram o contraste estabelecido no sonho
entre o fator decisivo no caso de mulheres e homens (puberdade). A esse
respeito, recordo-me de um sonho anterior que tive logo após uma visita ao
dentista, e no qual sonhei que as coroas de ouro que tinham acabado de ser
fixadas caíam; isso muito me aborreceu no sonho, por causa da considerável
despesa que eu fizera e da qual ainda não me havia recuperado inteiramente na
época. Esse outro sonho tornou-se então inteligível para mim (em vista de certa
experiência minha) como um reconhecimento das vantagens materiais da
masturbação sobre o amor objetal: esteúltimo, do ponto de vista econômico,
seria, sob todos os aspectos, menos desejável (cf. as coroas de ouro); e
creio que a observação da senhora sobre o significado da dor de dentes nas
mulheres grávidas havia despertado novamente em mim essas seqüências de
idéias.’
“Isso é o
bastante no que concerne à interpretação proposta por meu colega, que é
altamente esclarecedora e à qual, penso eu, não se pode levantar qualquer
objeção. Nada tenho a acrescentar a ela, salvo, talvez, uma sugestão quanto ao
sentido provável da segunda parte do sonho. Esta parece ter representado a
transição do sonhador entre a masturbação e as relações sexuais, que foi
aparentemente realizada com grande dificuldade (cf. o túnel pelo qual os trens
entravam e saíam em várias direções), bem como o perigo destas últimas (cf. a
gravidez e o sobretudo [ver em [1]]). O sonhador se valeu, para essa
finalidade, das pontes verbais ‘Zahn-ziehen (Zug)‘ e ‘Zahn-reissen (Reisen)‘.
“Por outro lado,
teoricamente, o caso me parece interessante sob dois aspectos. Em primeiro
lugar, oferece provas em favor da descoberta de Freud de que a ejaculação nos
sonhos acompanha o ato de extrair dentes. Qualquer que seja a forma em que a
polução aparece, somos obrigados a considerá-la como uma satisfação
masturbatória promovida sem a assistência de qualquer estimulação mecânica.
Além disso, neste caso, a satisfação que acompanhou a polução não foi, como
geralmente acontece, dirigida a um objeto, ainda que apenas imaginário, mas não
teve objeto se é que se pode dizer isso; foi completamente auto-erótica, ou, no
máximo, exibiu um ligeiro vestígio de homossexualidade (com referência ao
dentista).
“O segundo ponto
que me parece merecer ênfase é o seguinte. Pode-se plausivelmente objetar que
não há necessidade alguma de se considerar o presente caso como uma confirmação
do ponto de vista de Freud, visto que os fatos do dia anterior seriam
suficientes, por si mesmos, para tornarem inteligível o conteúdo do sonho. A
ida do sonhador ao dentista, sua conversa com a dama e a leitura de A
Interpretação dos Sonhos explicariam suficientemente bem como foi que ele
chegou a produzir esse sonho, especialmente uma vez que seu sono foi perturbado
por uma dor de dentes: chegariam mesmo a explicar, se necessário, como foi que
o sonho serviu para ele se desfazer da dor que lhe perturbava o sono - por meio
da representação de se livrar do dente dolorido e, simultaneamente, por afogar
com a libido a sensação dolorosa que o sonhador temia. Mas, mesmo que se dê o
máximo desconto possível a tudo isso, não se pode sustentar seriamente que a
simples leitura das explicações de Freud pudesse estabelecer no sonhador a
ligação entre a extração de um dente e o ato da masturbação, ou que pudesse
sequer acionar essa ligação, a menos que ela se houvesse estabelecido há muito
tempo, como o próprio sonhador admite ter acontecido (na expressão ‘sich
einen ausreissen‘). Essa ligação pode ter sido revivida não apenas por sua
conversa com a senhora, como também por uma circunstância que ele relatou
subseqüentemente. E isso porque, ao ler A Interpretação dos Sonhos, ele
não estava disposto, por motivos compreensíveis, a crer nesse sentido típico
dos sonhos com estímulos dentais e sentira o desejo de saber se tal sentido se
aplicava a todos os sonhos dessa espécie. O presente sonho confirmou o fato de
que era isso o que ocorria, ao menos no que lhe dizia respeito, e assim lhe
mostrou por que ele fora obrigado a sentir dúvidas sobre o assunto. Também
nesse aspecto, portanto, o sonho foi a realização de um desejo - a saber, o
desejo de se convencer da faixa de aplicação e da validade desse ponto de vista
de Freud.”
O segundo grupo
de sonhos típicos abrange aqueles em que o sonhador voa ou flutua no ar, cai,
nada, etc. Qual o sentido desses sonhos? É impossível dar uma resposta geral.
Como ficaremos sabendo, eles significam algo diferente em cada um dos casos; é
apenas a matéria-prima das sensações neles contidas que deriva sempre da mesma
fonte. [1909.]
As informações
proporcionadas pelos tratamentos psicanalíticos forçam-me a concluir que também
esses sonhos reproduzem impressões da infância, ou seja, relacionam-se com
jogos que envolvem movimento, que são extraordinariamente atraentes para as
crianças. Não há um único tio que não tenha mostrado a uma criança como voar,
correndo com ela pela sala em seus braços estendidos, ou que não tenha brincado
de deixá-la cair, fazendo-a cavalgar em seu joelho e, de repente, estirando a
perna, ou levantando-a bem alto e, subitamente, fingindo que vai deixá-la cair.
As crianças adoram essas experiências e nunca se cansam de pedir que sejam repetidas,
especialmente quando há nelas algo que cause um pequeno susto ou tonteira. Nos
anos posteriores, elas repetem essas experiências nos sonhos; nestes, porém,
deixam de fora as mãos que as sustinham, de modo que flutuam ou caem sem apoio.
O prazer que as criancinhas extraem das brincadeiras desse tipo (bem como dos
balanços e gangorras) é bem conhecido; quando passam a ver façanhas acrobáticas
no circo, sua lembrança desses jogos é reavivada. Os ataques histéricos dos
meninos, por vezes, consistem simplesmente em reproduções de façanhas dessa
natureza, executadas com grande habilidade. Não é incomum a ocorrência de que
esses jogos de movimento, embora inocentes em si mesmos, dêem margem a
sensações sexuais. As traquinagens [“Hetzen”] infantis, se é que posso
empregar um termo que comumente descreve todas essas atividades, são o que se
repete nos sonhos de voar, cair, ter tonteiras e assim por diante, ao passo que
as sensações prazerosas ligadas a essas experiências transformam-se em
angústia. Mas, com bastante freqüência, como toda mãe sabe, a traquinagem entre
crianças acaba realmente em altercações e lágrimas. [1900.]
Assim, tenho
boas razões para rejeitar a teoria de que o que provoca os sonhos com vôos e
quedas é o estado de nossas sensações tácteis durante o sono, ou as sensações
do movimento de nossos pulmões, e assim por diante. A meu ver, essas próprias
sensações são reproduzidas como parte da lembrança à qual remonta o sonho: isto
é, são parte do conteúdo do sonho, e não sua fonte. [1900.]
Esse material,
portanto, consistindo em sensações de movimento de tipos semelhantes e oriundas
da mesma fonte, é utilizado para representar toda sorte possível de pensamentos
oníricos. Os sonhos de voar ou flutuar no ar (em geral, de cunho prazeroso)
exigem as mais diversas interpretações; com algumas pessoas, essas
interpretações têm de ser de caráter individual, ao passo que, com outras,
podem ser até mesmo de natureza típica. Uma de minhas pacientes costumava
sonhar, com muita freqüência, que estava flutuando a certa altura acima da rua,
sem tocar o chão. Ela era muito baixa e tinha horror à contaminação envolvida
no contato com outras pessoas. Seu sonho de flutuação realizava seus dois
desejos, elevando seus pés do chão e alçando sua cabeça até uma camada mais alta
de ar. Em outras mulheres, verifiquei que os sonhos de voar expressavam o
desejo de “ser como um pássaro”, enquanto outras, no sonho, tornavam-se anjos
durante a noite, por não terem sido chamadas de anjos durante o dia. A
estreita ligação entre voar e a representação de pássaros explica por que, nos
homens, os sonhos de voar costumam ter um sentido francamente sensual; e
não nos surpreenderemos ao ouvir dizer que este ou aquele sonhador se sente
muito orgulhoso de seus poderes de vôo. [1909.]
O Dr. Paul
Federn (de Viena [e, posteriormente, de Nova Iorque]) formulou a atraente teoria de que bom número desses sonhos de vôo são sonhos de
ereção, pois o fenômeno notável da ereção, em torno do qual a imaginação humana
tem girado constantemente, não pode deixar de ser impressionante, uma vez que
envolve uma aparente suspensão das leis da gravidade. (Cf. nesse contexto, os
falos alados dos antigos.) [1911.]
É notável que
Mourly Vold, um pesquisador de sonhos de espírito sóbrio e que não se inclina a
interpretações de qualquer espécie, também apóie a interpretação erótica dos
sonhos de voar ou flutuar (Vold, 1910-12, 2, 791). Ele se refere ao fator
erótico como “o mais poderoso motivo dos sonhos de flutuar”, chama atenção para
a intensa sensação de vibração no corpo que acompanha tais sonhos e ressalta a
freqüência com que estão ligados a ereções ou poluções. [1914.]
Os sonhos de
cair, por outro lado, são mais amiúde caracterizados pela angústia. Sua
interpretação não oferece nenhuma dificuldade no caso das mulheres, que quase
sempre aceitam o uso simbólico da queda como um modo de descrever a rendição a
uma tentação erótica. Tampouco chegamos ainda a esgotar as fontes infantis dos
sonhos de estar caindo. Quase toda criança caiu numa ocasião ou noutra, e
depois foi apanhada e mimada; ou, caso tenha caído do berço à noite, foi levada
para a cama da mãe ou da babá. [1909.]
As pessoas que
têm sonhos freqüentes de estar nadando e sentem grande alegria em furar as
ondas, e assim por diante, foram, em geral, pessoas que urinavam na cama, e
repetem em seus sonhos um prazer de que há muito aprenderam a se abster. Logo
veremos [em [1]], através de mais de um exemplo, o que é que os sonhos de estar
nadando são mais facilmente usados para representar. [1909.]
A interpretação
dos sonhos com fogo justifica a regra de educação infantil que proíbe a uma
criança “brincar com fogo” - de modo que não molhe a cama à noite. Pois, também
no caso deles, há uma lembrança subjacente da enurese da infância. Em meu
“Fragmento da Análise de um Caso de Histeria” [1905e, Parte II, primeiro sonho
de Dora], forneci uma análise e síntese completas de um desses sonhos com fogo,
ligado à história clínica da sonhadora, e mostrei quais impulsos da idade
adulta esse material infantil pode ser utilizado para representar. [1911.]
Seria possível
mencionar todo um grupo de outros sonhos “típicos”, se adotássemos esse termo
no sentido de que o mesmo conteúdo manifesto dos sonhos é freqüentemente
encontrado nos sonhos de pessoas diferentes. Por exemplo, poderíamos mencionar
os sonhos de estar passando por ruas estreitas ou atravessando grupos inteiros
de salas [cf. em [1]], e os sonhos com ladrões - contra os quais, a propósito,
as pessoas nervosas tomam precauções antes de irem dormir [ver em [1]]; os
sonhos de estar sendo perseguido por animais selvagens (ou por touros ou
cavalos) [ver em [1]], ou de ser ameaçado por facas, punhais ou lanças - sendo
estas duas últimas categorias do conteúdo manifesto dos sonhos de pessoas que
sofrem de angústia - e muitos mais. Uma pesquisa especialmente devotada a esse
material recompensaria plenamente o trabalho envolvido. Mas, em vez disso,
tenho duas observações a fazer, embora elas não se apliquem
exclusivamente aos sonhos típicos. [1909.]
Quanto maior o
interesse pela solução dos sonhos, mais se é levado a reconhecer que a maioria
dos sonhos dos adultos versa sobre material sexual e dá expressão a desejos
eróticos. Um juízo sobre esse ponto só pode ser formado pelos que realmente
analisam os sonhos, ou seja, por aqueles que atravessam o conteúdo manifesto
dos sonhos até chegar aos pensamentos oníricos latentes, e nunca pelos que se
contentam em fazer uma anotação apenas do conteúdo manifesto (como Näcke, por
exemplo, em seus escritos sobre sonhos sexuais). Permitam-me dizer, desde logo,
que este fato não é nada surpreendente, e está em completa harmonia com os
princípios de minha explicação dos sonhos. Nenhuma outra pulsão é submetida,
desde a infância, a tanta supressão quanto a pulsão sexual, com seus numerosos
componentes [cf. meus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, 1905d];
de nenhuma outra pulsão restam tantos e tão poderosos desejos inconscientes,
prontos a produzir sonhos no estado de sono. Ao interpretarmos os sonhos, nunca
nos devemos esquecer da importância dos complexos sexuais, embora também
devamos, é claro, evitar o exagero de lhes atribuir importância exclusiva.
[1909.]
Podemos
asseverar em relação a muitos sonhos, se forem cuidadosamente interpretados,
que eles são bissexuais, visto que, incontestavelmente, admitem uma
‘’superinterpretação’’ na qual se realizam os impulsos homossexuais do sonhador
- impulsos, vale dizer, que são contrários a suas atividades sexuais normais.
Sustentar, contudo, como o fazem Steckel (1911, [71]) a Adler (1910, etc.), que
todos os sonhos devem ser interpretados bissexualmente parece-me ser uma
generalização igualmente indemonstrável e implausível, e que não estou
preparado a apoiar. Em particular, não posso descartar o fato óbvio de que
existem numerosos sonhos que satisfazem outras necessidades que não as que são
eróticas no sentido mais amplo do termo: os sonhos com a fome e a sede, os
sonhos de conveniência, etc. Da mesma forma, as declarações do tipo “o espectro
da morte encontra-se por trás de todos os sonhos” (Stekel [1911, 34]), ou “todo
sonho mostra um avanço da orientação feminina para a masculina” (Adler [1910]),
me parecem ir muito além de qualquer coisa que possa ser legitimamente
sustentada na interpretação dos sonhos. [1911.]
A asserção de
que todos os sonhos exigem uma interpretação sexual, contra a qual os críticos
se enfurecem de modo tão incessante, não ocorre em parte alguma de minha A
Interpretação dos Sonhos. Não se encontra em nenhuma das numerosas edições
deste livro e está em evidente contradição com outros pontos de vista nele
expressos. [1919.]
Já indiquei [em
[1]] que sonhos surpreendentemente inocentes podem encarnar desejos cruamente
eróticos, e poderia confirmá-lo por numerosos novos exemplos. Mas é também
verdade que muitos sonhos que parecem indiferentes e que não seriam
considerados sob nenhum aspecto peculiar remontam, na análise, a impulsos
desejantes que são inconfundivelmente sexuais e, muitas vezes, de natureza
inesperada. Quem, por exemplo teria suspeitado da presença de um desejo sexual
no seguinte sonho, antes de ele ser interpretado? O sonhador forneceu este
relato: Um pouco atrás de dois imponentes palácios havia uma casinha com as
portas fechadas. Minha mulher conduziu-me pelo trecho de rua que levava à
pequena casa e abriu a porta com um empurrão; a seguir, esgueirei-me com
rapidez e facilidade para o interior de um pátio que subia por uma elevação.
Qualquer um, no entanto, que tenha tido um pouquinho de experiência na tradução
de sonhos refletirá, de imediato, que penetrar em espaços estreitos e abrir
portas fechadas encontram-se entre os símbolos sexuais mais comuns, e perceberá
facilmente nesse sonho a representação de uma tentativa de coitus a tergo
(entre as duas imponentes nádegas do corpo feminino). A passagem estreita que
subia por uma inclinação representava, é claro, a vagina. A ajuda atribuída
pelo sonhador a sua mulher força-nos a concluir que, na realidade, era apenas a
consideração por ela que o impedia de fazer esse tipo de tentativa.
Verificou-se que, no dia do sonho, fora morar na casa do sonhador uma moça que
o atraíra e que lhe dera a impressão de que não levantaria grandes objeções a
uma abordagem dessa espécie. A casinha entre os dois palácios era uma
reminiscência do Hradshin [Cidadela] de Praga e era mais uma referência à mesma
moça, que provinha desse lugar. [1909.]
Quando insisto
junto a um de meus pacientes sobre a freqüência dos sonhos de Édipo, nos quais
o sonhador tem relações sexuais com a própria mãe, ele muitas vezes responde:
“Não tenho nenhuma lembrança de ter tido um sonho desses”. Logo depois,
contudo, surge a lembrança de algum outro sonho inconspícuo e indiferente, que
o paciente sonhou repetidas vezes. A análise mostra então que este é, de fato,
um sonho com o mesmo conteúdo - mais uma vez, um sonho de Édipo. Posso afirmar
com certeza que os sonhos disfarçados de relações sexuais com a própria
mãe são muitas vezes mais freqüentes do que os sonhos diretos. [1909.]
Em alguns sonhos
com paisagens ou outras localidades dá-se ênfase, no próprio sonho, a um
sentimento convicto de que já se esteve lá antes. As ocorrências de “déjà
vu” nos sonhos têm significado especial. Esses lugares são,
invariavelmente, os órgãos genitais da mãe de quem sonha; não existe, de fato,
nenhum outro lugar sobre o qual se possa asseverar com tal convicção que já se
esteve lá antes. [1909.]
Apenas numa
ocasião fiquei perplexo com um neurótico obsessivo que me contou um sonho no
qual visitava uma casa em que já estivera duas vezes. Mas esse paciente
específico já me narrara, há bastante tempo, um episódio ocorrido quanto tinha
6 anos. Certa feita, ele estivera partilhando da cama da mãe e fizera uso
indevido dessa oportunidade, enfiando o dedo na genitália dela enquanto ela
dormia. [1914.]
Grande número de
sonhos, [1] amiúde acompanhados de angústia e tendo por conteúdo temas
como atravessar espaços estreitos ou estar na água, baseiam-se em fantasias da
vida intra-uterina, da existência no ventre e do ato do nascimento. O que se
segue foi o sonho de um rapaz que, em sua imaginação, tirara partido de uma
oportunidade intra-uterina para observar os pais copulando.
Ele estava num
poço profundo, que tinha uma janela como a do Túnel Semmering. A princípio, viu uma paisagem deserta pela janela, mas depois
inventou um quadro para se encaixar naquele espaço que surgiu imediatamente e
preencheu a lacuna. O quadro representava um campo que estava sendo lavrado a
fundo por algum instrumento; e o ar puro, juntamente com a idéia de trabalho
árduo que acompanhava a cena e com os torrões de terra preto-azulados,
produziam uma impressão encantadora. Aí, ele foi adiante e viu um livro sobre
educação aberto diante de si… e ficou surpreso que nele se dispensasse tanta
atenção aos sentimentos sexuais (das crianças); e isso o levou a pensar em mim.
Eis aqui um
interessante sonho com água, produzido por uma paciente, que serviu a uma
finalidade especial no tratamento. Em sua estação de veraneio, no Lago de
---, ela mergulhou nas águas escuras, exatamente no ponto em que a pálida lua
se espelhava.
Sonhos como esse
são sonhos de nascimento. Sua interpretação é alcançada invertendo-se o
acontecimento relatado no sonho manifesto; assim, em vez de “mergulhar na
água”, temos “sair da água”, isto é, nascer. Podemos
descobrir o local de onde nasce uma criança trazendo à mente o emprego, em
gíria, da palavra “lune” em francês [a saber, “traseiro”]. A lua pálida
era, portanto, o branco traseiro que as crianças logo supõem ser o lugarde onde
vieram. Qual era o sentido de a paciente desejar ter nascido em sua estação
de veraneio? Perguntei-lhe, e ela respondeu sem hesitar: “Não é justamente como
se eu houvesse renascido através do tratamento?” Assim, o sonho foi um convite
para que eu continuasse a tratá-la na estação de férias - isto é, para que a
visitasse ali. Talvez também houvesse nele uma sugestão muito tímida do desejo
da própria paciente de vir a ser mãe.
Citarei outro
sonho de nascimento, junto com sua interpretação, extraído de um artigo de
Ernest Jones [1910b]. “Ela estava na praia contemplando um
garotinho, que parecia ser dela, entrando na água com dificuldade. Assim fez
até que a água o cobriu, e ela só conseguia ver-lhe a cabeça subindo e descendo
perto da superfície. A cena então mudou para o saguão apinhado de um hotel. O
marido a deixou e ela ‘começou a conversar com’ um estranho. A segunda
metade do sonho revelou-se, na análise, como representando sua fuga do marido e
a entrada em relações íntimas com uma terceira pessoa. (…) A primeira parte do
sonho foi uma fantasia de nascimento bastante evidente. Nos sonhos, como na
mitologia, a saída da criança das águas uterinas é comumente representada, por
distorção, como a entrada da criança na água; entre muitos outros, os
nascimentos de Adônis, Osíris, Moisés e Baco são ilustrações famosas disso. A
subida e descida da cabeça na água relembraram de imediato à paciente a
sensação dos movimentos do feto que ela experimentara em sua única gestação.
Pensar no menino entrando na água induziu a um devaneio no qual ela se via
retirando-o da água, levando-o para um berçário, dando-lhe banho, vestindo-o, e
instalando-o em sua casa.
“A segunda
metade do sonho, portanto, representou pensamentos concernentes à fuga amorosa,
que pertenciam à primeira metade do conteúdo latente subjacente; a primeira
metade do sonho correspondeu à segunda metade do conteúdo latente, a fantasia
de nascimento. Além dessa inversão da ordem, ocorreram outras inversões em cada
metade do sonho. Na primeirametade, a criança entrava na água, e então
sua cabeça vinha à tona; nos pensamentos oníricos subjacentes, ocorreu primeiro
a sensação dos primeiros movimentos do feto e, em seguida, a criança saiu
da água (uma dupla inversão). Na segunda metade, o marido a deixava; nos
pensamentos oníricos, ela deixava o marido.”
Abraham (1909,
22 e segs.) relatou outro sonho de nascimento, produzido por uma jovem que se
confrontava com seu primeiro parto. Um canal subterrâneo conduzia diretamente à
água, partindo de um lugar no chão de seu quarto - (canal genital - líquido
amniótico). Ela erguia a porta de um alçapão no chão e uma criatura vestida
numa pele marrom, muito semelhante a uma foca, aparecia prontamente. Essa
criatura vinha a ser o irmão mais novo da sonhadora, para quem ela sempre fora
como uma mãe. [1911.]
Rank [1912a]
mostrou, a partir de uma série de sonhos, que os sonhos de nascimento utilizam
o mesmo simbolismo dos que têm um estímulo urinário. O estímulo erótico é
representado nos segundos como um estímulo urinário; e a estratificação do
sentido nesses sonhos corresponde a uma mudança que se processou no sentido do
símbolo desde a primeira infância. [1914.]
Este é um ponto
apropriado para se retornar a um tópico que foi interrompido num capítulo
anterior (em [1]) [1]: o problema do papel desempenhado na formação dos
sonhos por estímulos orgânicos que perturbam o sono. Os sonhos que ocorrem sob
a influência deles exibem abertamente não só a tendência usual à realização de
desejo e ao atendimento da finalidade da conveniência, como também, muitas
vezes, exibem um simbolismo perfeitamente claro, pois não raro um estímulo
desperta o sonhador depois de este ter feito uma vã tentativa de lidar com
ele num sonho sob um disfarce simbólico. Isso se aplica aos sonhos com
polução ou orgasmo, bem como aos provocados por uma necessidade de urinar ou
defecar. “A natureza peculiar dos sonhos acompanhados de ejaculação não somente
nos coloca em condições de revelar diretamente certos símbolos sexuais já
conhecidos como típicos, mas que não obstante foram violentamente contestados,
como também nos permite convencer-nos de que certas situações aparentemente
inocentes não passam de um prelúdio simbólico a cenas claramente sexuais. Estas
últimas são, em geral, representadas sem disfarces nos sonhos relativamente
raros que são acompanhados de polução, ao passo que, com bastante freqüência,
culminam em sonhos de angústia, que têm o mesmo resultado de despertar o
sonhador.” [Rank, ibid., 55.]
O simbolismo dos
sonhos com estímulos urinários é especialmente transparente e tem sido
reconhecido desde as épocas mais remotas. Já Hipócrates expressava a visão de
que os sonhos com fontes e nascentes indicam um distúrbio da bexiga (Havelock
Ellis [1911, 164]). Scherner [1861, 189] estudou a multiplicidade do simbolismo
dos estímulos urinários e asseverou que “qualquer estímulo urinário de
intensidade considerável transforma-se invariavelmente em estimulação das
regiões sexuais e de suas representações simbólicas. (…) Os sonhos com
estímulos urinários são, amiúde, ao mesmo tempo, representantes de sonhos
sexuais”. [Ibid., 192.]
Otto Rank, cuja
abordagem, em seu trabalho sobre a estratificação dos símbolos nos sonhos que
provocam o despertar [Rank, 1912a], estou seguindo aqui, fez parecer altamente
provável que um grande número de sonhos com estímulos urinários tenha sido, de
fato, causado por estímulo sexual, que fez uma primeira tentativa de
encontrar satisfação, regressivamente, na forma infantil do erotismo uretral. [Ibid.,
78.] São particularmente instrutivos os casos em que o estímulo urinário
assim instalado leva a acordar e esvaziar a bexiga, mas nos quais o sonho, não
obstante, tem prosseguimento e a necessidade se expressa então em imagens
indisfarçadamente eróticas.
Os sonhos com
estímulo intestinal lançam luz, de maneira análoga, sobre o simbolismo neles
envolvido, e ao mesmo tempo confirmam a ligação entre o ouro e as fezes, que é
também apoiada por numerosas provas oriundas da antropologia social. (Ver
Freud, 1908b; Rank, 1912a; Dattner, 1913; e Reik, 1915.) [Ver também Freud
(1957a).] “Assim, por exemplo, uma mulher que estava recebendo tratamento
médico em vista de um distúrbio intestinal sonhou com alguém que estava
enterrando um tesouro nas imediações de uma pequena cabana de madeira que se
assemelhava a uma rústica instalação sanitária externa. Havia uma segunda parte
do sonho em que ela limpava o traseiro de sua filhinha, que se sujara.” [Rank,
1912a, 55.]
Os sonhos de
salvamento estão ligados aos sonhos de nascimento. Nos sonhos das mulheres,
salvar, e especialmente salvar das águas, tem o mesmo significado de dar à luz;
mas o sentido se modifica quando o sonhador é um homem. [1911.]
Os ladrões,
assaltantes e fantasmas, dos quais algumas pessoas sentem medo antes de ir
dormir, e que às vezes perseguem suas vítimas depois de estarem adormecidas,
são todos originários de uma mesma categoria de reminiscência infantil. São os
visitantes noturnos que levantam as crianças e as carregam para impedir que
molhem a cama, ou que levantam a roupa da cama para se certificarem de onde
elas puseram as mãos enquanto dormiam. As análises de alguns desses sonhos de
angústia tornaram-me possível identificar esses visitantes noturnos com maior
exatidão. Em todos os casos, os ladrões representavam o pai do sujeito
adormecido, ao passo que os fantasmas correspondiam a figuras femininas de camisolas
brancas. [1909.]
(F) ALGUNS EXEMPLOS. - CÁLCULOS E DITOS NOS
SONHOS
Antes de
destinar o quarto dos fatores que regem a formação dos sonhos a seu lugar
adequado [em [1]], proponho citar diversos exemplos de minha coleção. Estes
servirão, em parte, para ilustrar a interação dos três fatores que já nos são
conhecidos e, em parte, para fornecer provas confirmatórias do que foram, até
agora, assertivas não fundamentadas, ou para indicar algumas conclusões que
inevitavelmente decorrem delas. Ao fazer uma exposição do trabalho do sonho,
tive enorme dificuldade em corroborar minhas descobertas através de exemplos.
Os exemplos que confirmam proposições específicas só trazem convicção ao serem
tratados no contexto da interpretação de um sonho como um todo. Caso sejam
desligados de seu contexto, perdem sua virtude, enquanto que, por outro lado,
uma interpretação de sonho que seja levada mesmo um pouquinho abaixo da
superfície logo se torna tão volumosa que nos faz perder o fio da seqüência de
idéias que se destinava a ilustrar. Esta dificuldade técnica deverá servir de
desculpa minha se, no que se segue, eu concatenar toda sorte de coisas cujo
único elo comum seja sua ligação com o conteúdo das seções precedentes deste
capítulo. [1900.]
Começarei por
dar alguns exemplos de modos de representação peculiares ou inusitados nos
sonhos.
Uma senhora teve
o seguinte sonho: Uma criada estava de pé numa escada, como se estivesse
limpando uma janela, e tinha com ela um chimpanzé e um gato-gorila (ela
depois corrigiu isto para um gato angorá). A empregada atirou violentamente
os animais na sonhadora; o chimpanzé se aconchegou a ela, o que foi muito
repulsivo. - Este sonho atingiu seu propósito mediante um expediente
extremamente simples: tomou uma figurade retórica literalmente e deu uma
representação exata de seu enunciado. “Macaco”, assim como os nomes de animais
em geral, são empregados como insultos; e a situação do sonho não significava
nada mais, nada menos, do que “atirar insultos”. No curso da atual série de
sonhos, encontraremos diversos outros exemplos da utilização desse recurso
simples durante o trabalho do sonho. [1900.]
Outro sonho
adotou um procedimento muito semelhante. Uma mulher teve um filho com o
crânio marcadamente deformado. A sonhadora ouvira dizer que a criança crescera
assim devido a sua posição no útero. O médico disse que o crânio poderia ficar
com uma conformação melhor mediante compressão, mas que isso danificaria o
cérebro da criança. Ela refletiu que, como se tratava de um menino, isso lhe
causaria menos mal. - Esse sonho continha uma representação plástica do
conceito abstrato de “impressões causadas nas crianças”, com o qual a sonhadora
deparara no curso das explicações que lhe foram dadas durante o tratamento.
[1900.]
O trabalho do sonho
adotou um método ligeiramente diferente no seguinte exemplo. O sonho referia-se
a uma excursão ao Hilmteich, perto de Graz. O tempo lá fora estava
terrível. Havia um péssimo hotel, a água gotejava das pareces do quarto e as
roupas de cama estavam úmidas. (Esta última parte do sonho foi narrada
menos diretamente do que a apresentei.) O sentido do sonho era o de
“supérfluo”. Essa idéia abstrata, que estava presente nos pensamentos do sonho,
recebeu primeiramente uma distorção algo forçada e foi posta numa forma como
“transbordante”, “transbordando” ou “fluido”, após o que foi representada
em diversas imagens semelhantes: água do lado de fora, água nas paredes no lado
de dentro, água na umidade das roupas de cama - tudo fluindo ou
“transbordando”. [1900.]
Não ficaremos
surpresos em constatar que, para fins de representação nos sonhos, a grafia das
palavras é muito menos importante do que seu som, especialmente se tivermos em
mente que a mesma regra é válida ao se rimarem versos. Rank (1910, 482)
registrou com pormenores e analisou de maneira integral o sonho de uma moça, no
qual ela descrevia como estava andando pelos campos e cortando ricas espigas [“Ähren”]
de cevada e trigo. Um amigo de sua juventude veio em sua direção, mas ela
tentou evitar o encontro com ele. A análise mostrou que o sonho dizia
respeito a um beijo- um “beijo respeitoso” [“Kuss in Ehren”, pronunciado
da mesma forma que “Ähren”, com o significado literal de “beijo em sinal
de honra”. No próprio sonho, as “Ähren”, que tinham de ser cortadas, e não
arrancadas, figuravam como espigas de milho, enquanto, condensadas com “Ehren”,
representavam um grande número de outros pensamentos [latentes]. [1911.]
Por outro lado,
em outros casos, o curso da evolução lingüística facilitou muito as coisas para
os sonhos, pois a linguagem tem sob seu comando toda uma gama de palavras que
originalmente possuíam um significado pictórico e concreto, mas são hoje
empregadas num sentido descolorido e abstrato. Tudo o que o sonho precisa fazer
é imprimir a essas palavras seu significado anterior e pleno, ou recuar um
pouco até uma fase anterior de seu desenvolvimento. Um homem sonhou, por
exemplo, que seu irmão estava numa Kasten [“caixa”]. No decorrer da
interpretação, a Kasten foi substituída por um Schrank [“armário”
- também utilizado em sentido abstrato para significar “barreira”,
“restrição”]. O pensamento do sonho fora no sentido de que seu irmão deveria
restringir-se [“sich einschränken”] - em vez de o próprio sonhador
fazê-lo. [1909.]
Outro homem
sonhou que subia até o cimo de uma montanha que dominava um panorama
extremamente vasto e incomum. Nesse caso, estava ele se identificando com
um irmão que editava um panorama sobre assuntos do Extremo
Oriente. [1911.]
Em Der
Grüne Heinrich relata-se um sonho em que um cavalo fogoso corria por um
belo campo de aveia, cada grão da qual era “uma amêndoa doce, uma passa e uma
nova moeda de um penny… tudo embrulhado em seda vermelha e atado com um
pedaço de cerda de porco”. O autor (ou o sonhador) nos dá uma interpretação
imediata dessa imagem onírica: o cavalo estava sentindo uma comichão agradável
e exclamava “Der Hafer sticht mich!” [1914.]
Segundo Henzen
[1890], os sonhos que envolvem trocadilhos e jogos de linguagem ocorrem com
particular freqüência nas antigas sagas nórdicas, nas quais mal se consegue
encontrar um sonho que não contenha uma ambigüidade ou um jogo de palavras.
[1914.]
Constituiria uma
tarefa por si só coligir esses modos de representação e classificá-los de
acordo com seus princípios subjacentes. [1909.] Algumas dessas representações
quase poderiam ser descritas como chistes e dão a sensação de que nunca se
poderia compreendê-las sem a ajuda de quem sonhou. [1911.]
(1) Um homem
sonhou que lhe perguntavam pelo nome de alguém, mas que não conseguia pensar
nele. Ele próprio explicou que o significado disso era que “ele jamais
sonharia com uma coisa dessas”. [1911.]
(2) Uma paciente contou-me um sonho em que todas as pessoas eram
especialmente grandes. “Isso significa”, prosseguiu ela, “que o sonho deve
ter a ver com fatos de minha tenra infância, pois naquela época, é claro, todas
as pessoas adultas me pareciam enormemente grandes”. [Ver em [1].] Ela
própria não aparecia no conteúdo desse sonho. - O fato de um sonho referir-se à
infância pode também ser expresso de outra maneira, a saber, por uma tradução
do tempo em espaço. Os personagens e cenas são vistos como se estivessem a
grande distância, no fim de uma longa estrada, ou como se estivessem sendo
olhados pelo lado errado de um par de binóculos. [1911.]
(3) Um homem
que, em sua vida profissional, tendia a utilizar uma fraseologia abstrata e
vaga, embora fosse bastante perspicaz de modo geral, sonhou, certa ocasião, que
chegava a uma estação ferroviária no exato momento em que estava chegando um
trem. O que aconteceu então foi que a plataforma se moveu em direção ao trem,
enquanto este ficava totalmente parado… uma inversão absurda do que
realmente acontece. Esse pormenor não passava de uma indicação de que
deveríamos esperar encontrar outra inversão no conteúdo do sonho. [Ver em [1]]
A análise do sonho fez com que o paciente se recordasse de alguns livros de
gravuras nos quais havia ilustrações de homens de cabeça para baixo e andando
apoiados nas mãos. [1911.]
(4) Noutra
ocasião, o mesmo sonhador me relatou um breve sonho que era quase uma
reminiscência da técnica dos rébus. Sonhou que seu tio lhe dava um beijo num
automóvel. Passou imediatamente a me dar a interpretação, que eu mesmo
jamais teria adivinhado: a saber, que o sonho significava auto-erotismo. O
conteúdo desse sonho poderia ter sido produzido como um chiste na vida de
vigília. [1911.]
(5) Um homem
sonhou que estava tirando uma mulher de trás de uma cama. O sentido
disso foi que ele lhe estava dando preferência. [1914.]
(6) Um homem
sonhou que era um oficial sentado à mesa em frente ao Imperador. Isso
significou que se estava colocando em oposição ao pai. [1914.]
(7) Um homem
sonhou que estava tratando de alguém que tinha um membro quebrado. A
análise demonstrou que o osso quebrado [“Knochenbruch”] representava um
casamento desfeito [“Ehebruch”, propriamente “adultério”]. [1914.]
(8) Nos sonhos,
a hora do dia muitas vezes representa a idade do sonhador em algum período
específico de sua infância. Assim, num sonho, “cinco e um quarto da manhã”
significava a idade de cinco anos e três meses, o que era importante, visto que
essa era a idade do sonhador por ocasião do nascimento de seu irmão mais novo.
[1914.]
(9) Eis aqui
outro método de representar as idades num sonho. Uma mulher sonhou que estava
andando com duas menininhas cujas idades diferiam em quinze meses. Ela foi
incapaz de se recordar de qualquer família de suas relações a quem isso se
aplicasse. Ela mesma propôs a interpretação de que as duas crianças representavam
ela própria e de que o sonho a fazia lembrar que os dois acontecimentos
traumáticos de sua infância estavam separados um do outro precisamente por esse
intervalo. Um ocorrera quando ela contava três anos e meio, e o outro, quando
tinha quatro e três quartos. [1914.]
(10) Não
surpreende que uma pessoa que esteja em tratamento psicanalítico muitas vezes
sonhe com ele e seja levada a dar expressão, em seus sonhos, às numerosas
idéias e expectativas que o tratamento suscita. A imagem mais freqüentemente
escolhida para representá-lo é a de uma viagem, geralmente de automóvel, por
ser este um veículo moderno e complicado. A velocidade do carro é então
utilizada pelo paciente como uma oportunidade para dar vazão a comentários
irônicos. - Se “o inconsciente”, como elemento dos pensamentos de vigília do
sujeito, tiver de ser representado num sonho, poderá ser substituído com muita
propriedade por regiões subterrâneas. - Estas, quando ocorrem sem
qualquer referência ao tratamento analítico, representam o corpo feminino ou o
ventre da mulher. - “Embaixo”, nos sonhos, amiúde se relaciona com os órgãos
genitais; “em cima”, ao contrário, relaciona-se com o rosto, a boca ou o seio.
- Os animais selvagens são empregados pelo trabalho do sonho, em geral, para
representar os impulsos arrebatados de que o sonhador tem medo, quer sejam os
seus próprios, quer os de outras pessoas. (Torna-se então necessário apenas um
ligeiro deslocamento para que os animais selvagens passem a representar as
pessoas possuídas por essas paixões. Não é grande a distância entre isso e
os casos em que um pai temido é representado por um animal de rapina, um cão ou
um cavalo selvagem - uma forma de representação que lembra o totemismo.)
Poder-se-ia dizer que os animais selvagens são empregados para representar a
libido, uma força temida pelo ego e combatida por meio do recalque. É também
freqüente o sonhador separar de si mesmo sua neurose, sua “personalidade
enferma”, e retratá-la como uma pessoa independente. [1919.]
(11) Eis aqui um
exemplo registrado por Hanns Sachs (1911): “Sabemos, por A Interpretação dos
Sonhos, de Freud, que o trabalho do sonho se vale de diferentes métodos
para dar forma sensorial a palavras ou expressões. Se, por exemplo, a expressão
a ser representada é ambígua, o trabalho do sonho pode explorar esse fato
utilizando a ambigüidade como um ponto de desvio: quando um dos sentidos da
palavra está presente nos pensamentos oníricos, o outro pode ser introduzido no
sonho manifesto. Foi o que ocorreu no seguinte sonho curto, no qual se
empregaram, de maneira engenhosa, para fins de representação, impressões
apropriadas do dia anterior. Eu estava sofrendo de um resfriado no “dia do
sonho” e, sendo assim, resolvera, à noite, que se me fosse possível, evitaria
sair da cama durante a madrugada. No sonho, eu parecia estar simplesmente dando
continuidade ao que estivera fazendo durante o dia. Tinha estado ocupado em
colar recortes de jornais num álbum e fizera o melhor possível para colocar
cada um no lugar que lhe era adequado. Sonhei que estava tentando colar um
recorte no álbum. Mas ele não cabia na página [‘er geht aber nicht auf die
Seite’], o que me causava muita dor. Acordei e percebi que a dor do sonho
persistia sob a forma de uma dor em meu corpo, e fui obrigado a abandonar a
decisão que tomara antes de me deitar. Meu sonho, em sua qualidade de guardião
do meu sono, dera-me a ilusão de realizar meu desejo de ficar na cama, por meio
de uma representação plástica da frase ambígua ‘er geht aber nicht auf die
Seite‘ [‘mas ele não vai ao banheiro’].” [1914.]
Podemos chegar a
afirmar que o trabalho do sonho se serve, com o propósito de dar uma
representação visual dos pensamentos oníricos, de quaisquer métodos a seu
alcance, quer a crítica de vigília os considere legítimos ou ilegítimos. Isso
expõe o trabalho do sonho a dúvidas e ridicularizações por parte de todos os
que apenas ouviram falar da interpretação dos sonhos, mas nunca a
praticaram. O livro de Stekel, Die Sprache des Traumes (1911), é
particularmente rico em exemplos desse tipo. Tenho evitado, contudo, citar
exemplos dele, por causa da falta de senso crítico do autor e da arbitrariedade
de sua técnica, que dão margem a dúvidas até mesmo nos espíritos não
preconceituosos. [Ver em [1].] [1919.]
(12) [1914.] Os
seguintes exemplos foram extraídos de um trabalho de V. Tausk (1914) sobre o
uso de roupas e cores na produção de sonhos.
(a) A. sonhou
que via uma ex-governanta sua num vestido de lustrina [“Lüster”] preta que
estava muito apertado em suas nádegas. - Isso foi explicado como tendo o
sentido de que a governanta era lasciva [“lüstern”].
(b) C. sonhou ver
uma moça na Estrada de ---, banhada de luz branca e usando uma blusa
branca. - O sonhador tivera relações íntimas com uma certa Srta. White
[Branca] pela primeira vez nessa estrada.
(c) A Sra. D.
sonhou ver o ator vienense Blasel, de oitenta anos de idade, deitado num
sofá e envergando uma armadura completa [“in voller Rüstung”]. Ele começou a
saltar sobre as mesas e cadeiras, sacou de um punhal, olhou-se no espelho e
brandiu o punhal no ar como se estivesse lutando com um inimigo imaginário.
- Interpretação: A sonhadora sofria de uma antiga afecção da bexiga [“Blase”].
Deitava-se num divã em sua análise; quando se olhava no espelho, pensava
consigo mesma que, apesar de sua idade e da moléstia, ainda parecia estar em
plena forma [“rüstig”].
(13) [1919.] UMA
“GRANDE REALIZAÇÃO” NUM SONHO. - Um homem sonhou que era uma mulher grávida
deitada na cama. Achou a situação muito desagradável. Exclamou: “Preferia
estar… (durante a análise, depois de se recordar de uma enfermeira, conclui
a frase com as palavras “quebrando pedras”). Por trás da cama pendia um mapa
cuja extremidade inferior era mantida esticada por uma barra de madeira. Ele
arrancou a barra, segurando-lhe as duas extremidades. Ela se quebrou no sentido
transversal, mas dividiu-se em duas metades no sentido do comprimento. Esta
ação o aliviou e, ao mesmo tempo, ajudou no parto.
Sem qualquer
ajuda, ele interpretou a quebra da barra [“Leiste”] como uma grande
realização [“Leistung”]. Estava fugindo de sua situação incômoda (no
tratamento), arrancando-se de sua atitude feminina… O detalhe absurdo de a
barra de madeira não se quebrar simplesmente, mas dividir-se no sentido
longitudinal, foi assim explicado: o sonhador lembrou-se de que essa combinação
de duplicar e destruir era uma alusão à castração. Os sonhos muitas vezes
representam a castração pela presença de dois símbolos do pênis, como a
expressão desafiadora de um desejo antitético [ver em [1]]. Aliás, “Leiste”
[“virilha”] é uma parte do corpo nas proximidades dos órgãos genitais. O
sonhador resumiu a interpretação do sonho como significando que ele levara a
melhor sobre a ameaça de castração que o levara a adotar uma atitude feminina. [1]
(14) [1919.]
Numa análise que eu estava conduzindo em francês, surgiu para interpretação um
sonho em que eu aparecia como um elefante. Naturalmente, perguntei ao sonhador
por que fui representado naquela forma. “Vous me trompez” [“O senhor
está me enganando”] foi sua resposta (“trompe” = “tromba”).
O trabalho do
sonho pode amiúde conseguir representar material muito refratário, como são os
nomes próprios, por um emprego forçado de associações inusitadas. Num de meus
sonhos, o velho Brücke me confiara a tarefa de fazer uma
dissecação;… retirei algo que parecia um pedaço de papel prateado amassado.
(Voltarei a esse sonho mais adiante [ver em [1]].) A associação com isso (à
qual cheguei com certa dificuldade) foi “Stanniol”. Percebi então que eu
estava pensando no nome Stannius, o autor de uma dissertação sobre o sistema
nervoso dos peixes, a qual eu muito admirara em minha juventude. A primeira
tarefa científica que meu professor [Brücke] me confiou relacionava-se, de
fato, com o sistema nervoso de um peixe, o Ammocoetes [Freud, 1877a]. Era
claramente impossível empregar o nome desse peixe num quebra-cabeça pictórico.
[1900.]
Neste ponto, não
consigo resistir ao registro de um sonho peculiar, que também merece ser notado
por ter sido sonhado por uma criança, e que é facilmente explicável
analiticamente. “Lembro-me de ter sonhado muitas vezes, quando criança”, disse
uma senhora “que Deus usava na cabeça um chapéu pontiagudo de papel.
Muitas vezes, costumavam colocar um desses chapéus em minha cabeça às refeições,
para me impedir de olhar os pratos das outras crianças para ver qual era o
tamanho das porções que lhes eram servidas. Como tinha ouvido dizer que Deus
era onisciente, o sentido do sonho era que eu sabia tudo - apesar do chapéu que
me fora colocado na cabeça.” [1909.]
A natureza do
trabalho do sonho [1] e o modo como manipula seu material, os
pensamentos oníricos, são instrutivamente exibidos ao considerarmos os números
e cálculos que ocorrem nos sonhos. Além disso, os números, nos sonhos, são
supersticiosamente encarados como sendo especialmente significativos no tocante
ao futuro. Escolherei, portanto, alguns exemplos dessa natureza, retirados
de minha coleção.
I
Extrato de um
sonho ocorrido a uma senhora pouco antes do término de seu tratamento: Ela
ia pagar alguma coisa. Sua filha tirou 3 florins e 65 kreuzers de sua bolsa (da
mãe). A sonhadora lhe disse: ‘’O que você está fazendo? Custa apenas 21 kreuzers.”
Devido a meu conhecimento da situação da sonhadora, esse fragmento de sonho me
foi inteligível sem qualquer outra explicação de sua parte. Essa sonhadora
viera do exterior e sua filha estava na escola em Viena. Ela estaria em
condições de prosseguir em seu tratamento comigo desde que a filha permanecesse
em Viena. O ano letivo da menina terminaria em três semanas, e isso significava
também o término do tratamento da senhora. No dia anterior ao sonho, a diretora
lhe perguntara se ela não consideraria deixar a filha na escola por mais um
ano. Dessa sugestão, ela passara evidentemente a refletir que, nesse caso,
também poderia continuar seu tratamento. Era a isso que o sonho se referia. Um
anoequivale a 365 dias. As três semanas que restavam, tanto do ano letivo como
do tratamento, equivaliam a 21 dias (embora as horas de tratamento fossem inferiores
a isso). Os números, que nos pensamentos oníricos se referiam a períodos de
tempo, estavam ligados, no próprio sonho, a somas em dinheiro - não que não
houvesse um sentido mais profundo em questão, pois ‘’tempo é dinheiro’’. 365
kreuzers montam apenas a 3 florins e 65 kreuzers; e a insignificância das
quantias ocorridas no sonho era, obviamente, o resultado da realização de
desejo. O desejo da sonhadora reduziu o custo tanto do tratamento quanto das
anuidades escolares.
II
Os números
ocorridos num outro sonho envolveram circunstâncias mais complicadas. Uma
senhora que, embora ainda jovem, era casada há muitos anos, recebeu a notícia
de que uma conhecida sua, Elise L., que era quase exatamente sua contemporânea,
acabara de ficar noiva. Teve então o seguinte sonho. Ela estava no teatro
com o marido. Um setor das poltronas da platéia estava inteiramente vazio. O
marido lhe disse que Elise L. e seu noivo também tinham querido ir, mas só
haviam conseguido lugares ruins - três por 1 florim e 50 kreuzers - e,
naturalmente, não puderam aceitá-los. Ela pensou que, realmente, não teria
havido mal algum se eles tivessem feito isso.
Qual seria a
origem do 1 florim e 50 kreuzers? Isso provinha do que, a rigor, fora um
acontecimento irrelevante da véspera. Sua cunhada recebera do marido 150
florins, como um presente, e se apressara a livrar-se deles comprando uma jóia.
Convém notar que 150 florins são cem vezes mais do que 1 florim e 50
kreuzers. De onde teria vindo o três, que era o número das entradas de
teatro? A única ligação aqui era que sua amiga, que acabara de ficar noiva, era
o mesmo número de meses - três - mais nova que ela. Chegou-se à solução
do sonho com a descoberta do sentido das poltronas vazias. Elas constituíam uma
alusão inalterada a um pequeno incidente que dera a seu marido uma boa desculpa
para caçoar dela. Ela planejara ir a uma das peças que tinham sido anunciadas
para a semana seguinte e se dera ao trabalho de adquirir entradas com vários
dias de antecedência, e tivera, portanto, de pagar uma taxa de reserva. Ao
chegarem ao teatro, eles verificaramque um lado da casa estava quase vazio. Não
tinha havido nenhuma necessidade de que ela se apressasse tanto.
Permitiram-me
agora pôr os pensamentos oníricos em lugar do sonho: “Foi absurdo casar
tão cedo. Não havia nenhuma necessidade de eu me apressar tanto. Pelo
exemplo de Elise L., vejo que, no final, eu teria arranjado um marido. A rigor,
teria conseguido um cem vezes melhor” (um tesouro), “se pelo
menos tivesse esperado” (em antítese à pressa da cunhada). “Meu
dinheiro” (ou dote) “poderia ter comprado três homens igualmente bons.”
Pode-se observar
que o sentido e o contexto dos números foram alterados em escala muito maior
nesse sonho do que no anterior. Os processos de modificação e distorção foram
mais longe aqui, devendo isto ser explicado pelo fato de os pensamentos
oníricos terem de superar neste caso um grau especialmente elevado de
resistência endopsíquica para poderem obter representação. Tampouco devemos
desprezar o fato de que houve um elemento de absurdo no sonho, a saber, de três
lugares serem tomados por duas pessoas. Vou-me adiantar à minha
discussão sobre o absurdo nos sonhos [em [1]], assinalando que esse detalhe
absurdo no conteúdo do sonho visou a representar o mais intensamente enfatizado
dos pensamentos oníricos, a saber, “foi absurdo casar tão cedo”. O absurdo que
tinha de encontrar um lugar no sonho foi engenhosamente suprido pelo número 3,
que derivava, ele próprio, de um ponto de distinção inteiramente sem importância
entre as duas pessoas que estavam sendo comparadas - a diferença de 3 meses
entre a idade delas. A redução dos 150 florins reais para um florim e 50
correspondeu ao baixo valor atribuído pela sonhadora a seu marido (ou tesouro)
em seus pensamentos suprimidos. [1]
III
O exemplo
seguinte exibe os métodos de cálculo empregados pelos sonhos, que os levaram a
um descrédito tão grande. Um homem sonhou que estava acomodado numa cadeira
em casa dos B. - uma família com a qual se dera antes - e lhes dizia:
“Foi um grande erro vocês não terem deixadoeu ficar com Mali.” - “Quantos
anos você tem?” perguntou então à moça. - “Nasci em 1882”,
respondeu ela. - “Oh, então você tem 28 anos.”
Visto que o
sonho data de 1898, é evidente que isso foi um erro de cálculo, e a
incapacidade do sonhador para fazer somas mereceria ser comparada à de um
paralítico geral, a não ser que pudesse ser explicada de alguma outra forma.
Meu paciente era uma dessas pessoas que, sempre que lhes acontece porem os
olhos numa mulher, não conseguem afastar dela seus pensamentos. A paciente que,
já havia alguns meses, costumava chegar regularmente a meu consultório depois
dele, e com quem ele assim esbarrava, era uma jovem; ele constantemente fazia
perguntas a respeito dela e se esmerava ao máximo para lhe causar uma boa
impressão. Foi a idade dela que ele calculou em 28 anos. Basta isto à guisa de
explicação do resultado do cálculo aparente. Aliás, 1882 era o ano em que ele
se havia casado. - Posso acrescentar que ele era incapaz de resistir a
entabular conversa com os dois outros membros do sexo feminino com quem
deparava em minha casa - as duas empregadas (nenhuma delas jovem, de modo
algum) uma ou outra das quais costumava abrir-lhe a porta; ele explicava a
falta de receptividade delas como sendo devida a considerarem-no um cavalheiro
idoso de hábitos assentados.
IV
Eis aqui outro
sonho que trata de números, caracterizado pela clareza da maneira pela qual foi
determinado, ou antes, sobredeterminado. Devo tanto o sonho quanto sua interpretação
ao Dr. B. Dattner. “O senhorio do meu bloco de apartamentos, que é agente de
polícia, sonhou que estava em serviço de rua. (Isso era a realização de
um desejo.) Um inspetor que tinha na gola o número 22, seguido de 62 ou 26,
aproximou-se dele. De qualquer maneira, havia vários dois nele.
“O simples fato
de que, ao relatar o sonho, ele decompôs o número 2262 demonstrou que seus
componentes tinham sentidos isolados. Recordou-se ele de que, na véspera, tinha
havido uma conversa na delegacia sobre o tempo de serviço dos policiais. O
ensejo disso fora um inspetor que se havia aposentado com seus proventos aos 62
anos. O sonhador tinha apenas 22 anos de serviço e faltavam 2 anos e 2 meses
para que tivesse direito a uma pensão de 90%. O sonho representava, em primeiro
lugar, a realização de um desejo há muito acalentado pelo sonhador - o de
chegar ao posto de inspetor. O oficial superior com o ‘2262’ na gola era ele
próprio. Estava em serviço de rua - outro de seus desejos favoritos -, servira
seus 2 anos e 2 meses restantes e agora, tal como o inspetor de 62 anos de
idade, podia aposentar-se com a pensão integral.” [1]
Ao tomarmos em
conjunto estes e alguns exemplos que darei mais adiante [em [1]], podemos dizer
com segurança que o trabalho do sonho, a rigor, não efetua cálculo algum, quer
correta, quer incorretamente; ele simplesmente coloca sob a forma de
cálculo números que se acham presentes nos pensamentos oníricos e podem servir
de alusões a um material que não pode ser representado de nenhuma outra
maneira. Nesse aspecto, o trabalho do sonho trata os números como um meio para
a expressão de seu propósito, precisamente da mesma forma que trata qualquer
outra representação, inclusive os nomes próprios e os ditos que ocorrem
reconhecivelmente como representações de palavras. [Ver o segundo parágrafo que
se segue.]
É que o trabalho
do sonho não pode realmente criar ditos. [Ver em [1] e [2].] Por mais
que figurem nos sonhos ditos e conversas, sejam eles racionais ou irracionais,
a análise invariavelmente prova que tudo o que o sonho fez foi extrair dos
pensamentos oníricos fragmentos de ditos realmente pronunciados ou ouvidos. Ele
trata esses fragmentos de maneira extremamente arbitrária. Não somente os
arranca de seu contexto e os corta em pedaços, incorporando algumas partes e
rejeitando outras, como amiúde os reúne numa nova ordem, de modo que um dito
que figura no sonho como um todo integrado revela, na análise, compor-se de
três ou quatro fragmentos desconexos. Ao produzir essa nova versão, o sonho
muitas vezes abandona o sentido que as palavras possuíam originalmente nos
pensamentos oníricos e lhes dá um novo sentido. Se examinarmos detidamente
um dito que ocorra num sonho, verificaremos que ele consiste, por um lado, de partes
relativamente claras e compactas e, por outro, de partes que servem de material
de ligação e que, provavelmente, foram inseridas num estágio posterior, do
mesmo modo que, na leitura, inserimos quaisquer letras ou sílabas que possam
ter sido acidentalmente omitidas. Assim, os ditos nos sonhos têm uma estrutura
similar à da brecha, na qual blocos razoavelmente grandes de vários tipos de
rocha são consolidados por uma massa intermediária de ligação. [Ver em [1].]
Rigorosamente
falando, essa descrição aplica-se apenas aos ditos nos sonhos que possuem algo
da qualidade sensorial da fala, e que são descritos pela própria pessoa que
sonha como sendo ditos. Outros tipos de ditos, que não são, por assim dizer,
sentidos pelo sonhador como tendo sido ouvidos ou pronunciados (isto é, que não
têm nenhum acompanhamento acústico oumotor no sonho), são meramente pensamentos
como os que ocorrem em nossa atividade de pensamento da vigília, e são amiúde
transportados sem modificação para nossos sonhos. Outra fonte abundante desse
tipo de ditos indiferenciados, embora difícil de acompanhar, parece ser
proporcionada pelo material que foi lido. Mas o que quer que se destaque
acentuadamente nos sonhos como um dito pode ser rastreado até sua origem em
ditos reais que tenham sido proferidos ou ouvidos pelo sonhador.
Alguns exemplos
indicando que os ditos nos sonhos têm essa origem já foram fornecidos por mim
no curso de análises de sonhos que citei para fins inteiramente diversos.
Assim, no “inocente” sonho com o mercado relatado em [1], as palavras
proferidas, “isso não se consegue mais”, serviram para me identificar com o
açougueiro, enquanto uma parte do outro dito, “não reconheço isso; não vou
levá-lo”, foi responsável, de fato, por tornar o sonho “inocente”. A sonhadora,
como se poderá recordar, após lhe ter sido feita certa sugestão pela cozinheira
na véspera, respondera com as palavras: “Não reconheço isso; comporte-se
direito!” A primeira parte desse dito, que soou de forma inocente, foi
transportada para o sonho à guisa de alusão à sua segunda parte, que se
ajustava esplendidamente à fantasia subjacente ao sonho, mas que, ao mesmo
tempo, a teria traído.
Eis aqui outro
exemplo que pode servir por muitos, todos conducentes à mesma conclusão.
O sonhador
estava num grande pátio onde alguns cadáveres estavam sendo queimados. “Vou embora!” disse ele, “não suporto ver isso”. (Isso
não foi claramente um dito.) Encontrou-se então com os dois aprendizes de
açougueiro. “E então”, perguntou, “estava gostoso?” “Não”, respondeu um deles, “nem
um bocadinho” - como se tivesse sido carne humana.
O pretexto
inocente do sonho foi o seguinte. O sonhador e sua mulher, depois do jantar,
tinham feito uma visita a seus vizinhos, que eram pessoas excelentes, mas não
exatamente apetitosas. A idosa e hospitaleira senhora estava justamente
ceando e tentara forçá-lo (existe uma expressão de sentido
sexual que é jocosamente empregada entre os homens para expressar esta idéia)
a provar um pouco. Ele declinara, dizendo não ter mais nenhum apetite: “Vamos”,
retrucara ela, “você consegue!”, ou alguma coisa nesse sentido. Assim, ele fora
obrigado a provar e a cumprimentara pela ceia, dizendo: “Estava muito gostoso.”
Ao ver-se novamente a sós com sua mulher, ele reclamara da insistência da
vizinha e também da qualidade da comida. O pensamento “Não suporto ver isso”,
que também no sonho não chegou a emergir como um dito em sentido estrito, era
uma alusão aos encantos físicos da senhora de quem partira o convite, e deve
ser considerado como significando que ele não tinha nenhum desejo de olhá-los.
Maiores
esclarecimentos podem ser extraídos de outro sonho, que relatarei a propósito
disso por causa do dito muito claro que formou seu ponto central, embora tenha
de adiar sua explicação integral para depois de minha discussão dos afetos nos
sonhos [em [1]]. Tive um sonho muito claro. Eu fora ao laboratório de Brücke
à noite e, em resposta a uma leve batida na porta, abrira-a para o (falecido) Professor Fleischl, que
entrou com diversos estranhos e, após trocar algumas palavras, sentou-se à sua
mesa. Isso foi seguido por um segundo sonho. Meu amigo Fl. [Fliess] tinha
vindo discretamente a Viena em julho. Encontrei-o na rua, conversando com meu
(falecido) amigo P., e fui com eles a algum lugar onde se sentaram um diante do
outro, como se estivessem a uma pequena mesa. Sentei-me à cabeceira, em sua
parte mais estreita. Fl. falou sobre sua irmã e disse que em três quartos de
hora ela estava morta, acrescentando algo assim como “esse foi o limiar”. Como
P. não conseguisse entendê-lo, Fl. voltou-se para mim e me perguntou
quanto eu havia falado com P. sobre suas coisas. Diante disso, dominado por
estranhas emoções, tentei explicar a Fl. que P. (não podia entender coisa
alguma, é claro, porque) não estava vivo. Mas o que realmente disse - e eu
próprio notei o erro - foi “NON VIXIT”. Dirigi então a P. um olhar penetrante.
Ante meu olhar fixo, ele empalideceu; e sua forma tornou-se indistinta e seus
olhos adquiriram um tom azul doentio - e por fim, ele se dissolveu. Fiquei
muito satisfeito com isso e compreendi então que Ernst Fleischl também não
passara de uma aparição, um “revenant” [“fantasma” - literalmente, “aquele que
retorna”]; e me pareceu perfeitamente possível que pessoas assim só existissem
enquanto se quisesse, e que pudessem ser descartadas se outra pessoa o
desejasse.
Esse belo
espécime reúne muitas das características dos sonhos - o fato de eu ter
exercido minhas faculdades críticas durante o sono e de eu próprio haver notado
meu erro quando disse ”Non vixit”, em vez de “Non vivit” [isto é,
“ele não viveu”, em vez de “ele não estava vivo”]; minha maneira despreocupada
de lidar com pessoas que estavam mortas e eram reconhecidas como mortas no
próprio sonho; o absurdo de minha inferência final e a grande satisfação que me
proporcionou. De fato, esse sonho exibe tantas dessas características
intrigantes que eu daria muito para poder fornecer a solução completa de seus
enigmas. A rigor, porém, sou incapaz de fazê-lo - ou seja, de fazer o que fiz
no sonho, de sacrificar à minha ambição pessoas a quem valorizo imensamente.
Qualquer escamoteamento, contudo, destruiria o que sei muito bem ser o sentido
do sonho; por isso me contentarei, tanto aqui como num contexto posterior [em
[1]], em selecionar apenas alguns de seus elementos para interpretação.
A característica
central do sonho foi uma cena em que aniquilei P. com um olhar. Seus olhos se
transformaram num azul estranho e sinistro e ele se dissolveu. Essa cena foi
inequivocamente copiada de outra que eu realmente vivenciara. Na ocasião que
tenho em mente, eu era instrutor no Instituto de Fisiologia e tinha de começar
a trabalhar de manhã cedo. Chegou aos ouvidos de Brücke que, às vezes,
eu chegava tarde ao laboratório dos alunos. Certa manhã, ele apareceu
pontualmente na hora em que o laboratório abria e aguardou minha chegada. Suas
palavras foram breves e incisivas. Mas o importante não foram as palavras. O
que me desarmou foram os terríveis olhos azuis com que me fitou e que me
reduziram a zero - exatamente como aconteceu com P. no sonho, onde, para meu alívio,
os papéis se inverteram. Ninguém que consiga lembrar-se dos olhos desse grande
homem, que preservaram sua beleza marcante mesmo na velhice, e que algum dia o
tenha visto enfurecido, achará difícil imaginar as emoções do jovem pecador.
Muito tempo se
passou, entretanto, antes que eu conseguisse descobrir a origem do “Non
vixit” com que proferi minha sentença no sonho. Finalmente, porém,
ocorreu-me que essas duas palavras tinham alto grau de clareza no sonho, não
como palavras ouvidas ou faladas, mas como palavras vistas. Percebi
então, de imediato, de onde provinham. No pedestal do Monumento ao Imperador
José de Hofburg [Palácio Imperial], em Viena, acham-se inscritas estas palavras
expressivas:
Saluti patriae
vixitnon diu sed Totus.
Extraí dessa
inscrição apenas o bastante para que se encaixasse numa cadeia de idéias hostil
entre os pensamentos oníricos, o suficiente para dar a entender que “esse
sujeito não tem nada que dar opinião no assunto - ele nem sequer está vivo”. E
isso me fez recordar que eu tivera o sonho poucos dias depois da inauguração do
monumento em homenagem a Fleischl nas galerias da Universidade. Nessa
época, eu tornara a ver o monumento a Brücke e devo ter refletido
(inconscientemente) com pesar sobre o fato de que a morte prematura de meu
brilhante amigo P., cuja vida inteira fora devotada à ciência, furtara-lhe o
merecido direito a um monumento naquele mesmo recinto. Assim, dei-lhe esse
monumento em meu sonho; e, aliás, como me recordei, seu primeiro nome era Josef
[José].
Pelas regras da
interpretação dos sonhos, nem assim eu tinha direito a passar do Non vixit
derivado de minha recordação do Monumento ao Imperador José ao Non vivit
exigido pelo sentido dos pensamentos oníricos. Devia haver algum outro elemento
nos pensamentos do sonho que ajudasse a tornar possível a transição. Ocorreu-me
então ser digno de nota que, na cena do sonho, havia uma convergência de uma
corrente de sentimento hostil e uma afetiva para com meu amigo P., estando a
primeira na superfície e a segunda oculta, mas ambas representadas na expressão
única Non vixit. Como fosse digno de homenagens pela ciência,
erigi-lhe um monumento comemorativo; mas, como era culpado de um desejo
malévolo (que se expressou no final do sonho), eu o aniquilei. Notei que
esta última frase tinha uma cadência toda especial, e devo ter tido algum
modelo em minha mente. Onde se poderia encontrar uma antítese dessa natureza,
uma justaposição como essa de duas reações opostas a uma única pessoa, ambas
alegando ser completamente justificadas e, ainda assim, não incompatíveis?
Somente numa passagem da literatura - mas uma passagem que exerce profunda
impressão sobre o leitor: no discurso de autojustificação de Brutus em Júlio
César, de Shakespeare [iii, 2]; “Como César me amou, choro por ele; como
foi afortunado, regozijo-me com isso; como era bravo, respeito-o; mas, como foi
ambicioso, matei-o”. Não eram a estrutura formal dessas frases e seu sentido
antitético precisamente os mesmos que no pensamento onírico eu desvendara?
Assim, eu estivera desempenhando o papel de Brutus no sonho. Se ao menos
pudesse encontrar outra prova, no conteúdo do sonho, para confirmar esse
surpreendente traço de união colateral! Ocorreu-me uma prova possível: “Meu
amigo Fl. veio a Viena em julho.” Não havia nenhuma base na realidade para
esse detalhe do sonho. Que eu soubesse, meu amigo Fl. nunca estivera em Viena
em julho. Mas o mês de julho recebeu esse nome a partir de Júlio César e
poderia, portanto, representar muito bem a alusão que eu queria à idéia intermediária
de eu desempenhar o papel de Brutus.
Por estranho que
pareça, realmente desempenhei o papel de Brutus um dia. Certa ocasião, atuei
na cena entre Brutus e César, de Schiller, ante uma platéia de crianças.
Tinha quatorze anos na época e estava representando com um sobrinho um ano mais
velho que eu. Ele viera da Inglaterra visitar-nos; e também ele era um revenant,
pois era o companheiro de brincadeiras de meus primeiros anos de vida que nele
retornavam. Até o final de meus três anos, tínhamos sido inseparáveis. Tínhamos
amado um ao outro e lutado um com o outro; e essa relação infantil, como já
sugeri acima [em [1] e [2]], exerceu uma influência decisiva sobre todas as
minhas relações subseqüentes com contemporâneos. Desde aquela época, meu sobrinho
John tem tido muitas reencarnações, que reviveram ora um lado, ora outro de sua
personalidade, inalteravelmente fixada em minha memória inconsciente. Deve ter
havido ocasiões em que ele me tratou muito mal, e devo ter demonstrado coragem
perante meu tirano, pois, anos mais tarde, falaram-me muitas vezes sobre um
breve discurso feito por mim em minha própria defesa, quando meu pai, que era
ao mesmo tempo avô de John, me disse em tom de acusação:“Por que você está
batendo no John?” Minha resposta - eu ainda não tinha dois anos nessa época -
foi “Bati nele porque ele me bateu”. Deve ter sido essa cena de minha infância
que desviou o “Non vivit” para “Non vixit”, pois, na linguagem
das crianças mais velhas, o termo usado para bater é “wichsen”
[pronunciado como o inglês “vixen”]. O trabalho do sonho não se
envergonha de usar elos como esse. Havia pouco fundamento na realidade para
minha hostilidade em relação a meu amigo P., que era muito superior a mim e,
por esse motivo, se adequava perfeitamente para figurar como uma nova edição do
meu antigo companheiro de folguedos. Essa hostilidade, portanto, certamente
remontaria a minhas complicadas relações infantis com John. [Ver ainda em [1]] [2]
Como já disse,
voltarei a este sonho posteriormente.
(G)
SONHOS ABSURDOS - ATIVIDADE INTELECTUAL NOS SONHOS
No curso de
nossas interpretações dos sonhos esbarramos tantas vezes no elemento do absurdo
que não mais podemos adiar o momento de investigar sua origem e seu eventual
significado. E isso, porque convém lembrar que o caráter absurdo dos sonhos tem
proporcionado àqueles que negam o valor deles um de seus principais argumentos
para encará-los como o produto sem sentido de uma atividade mental reduzida e
fragmentada [ver em [1]].
Começarei por
dar alguns exemplos nos quais o absurdo é apenas aparente e desaparece tão logo
o sentido do sonho é examinado mais detidamente. Eis aqui dois ou três sonhos
que versam (por acaso, como talvez pareça à primeira vista) sobre o pai morto
do sonhador.
I
Este é o sonho
de um paciente que perdera o pai seis anos antes. O pai sofrera uma grave
calamidade. Estava viajando no trem noturno, que descarrilara. Os assentos do
vagão se entrechocaram e sua cabeça foi comprimida de um lado ao outro. O
sonhador o viu então deitado numa cama, com um ferimento no supercílio esquerdo
que se estendia em direção vertical. Ficou surpreso de que tivesse havido uma
calamidade com o pai (visto que já estava morto, como acrescentou ao
relatar-me o sonho). Como estavam claros os olhos dele!
De acordo com a
teoria dominante dos sonhos, teríamos de explicar o conteúdo desse sonho da
seguinte maneira. Para começar, devemos supor que, enquanto imaginava o
acidente, o sonhador deve ter-se esquecido de que o pai jazia em seu túmulo há
vários anos; mas, à medida que o sonho prosseguiu, essa lembrança deve ter
emergido, levando à surpresa ante seu próprio sonho enquanto ele ainda dormia.
A análise nos ensina, contudo, que é visivelmente inútil procurar esse tipo de
explicações. O sonhador encomendaraum busto do pai a um escultor e o vira pela
primeira vez dois dias antes do sonho. Era nisso que ele havia pensado como uma
calamidade. O escultor nunca vira seu pai e trabalhara utilizando fotografias.
No dia imediatamente anterior ao sonho, o sonhador, em sua devoção filial,
mandara um velho criado da família ao estúdio para ver se ele faria a mesma
opinião da cabeça de mármore, a saber, que era muito estreita nas têmporas de
um lado ao outro. O paciente passou então a recordar o material que contribuíra
para a produção do sonho. Sempre que seu pai era atormentado por preocupações
de negócios ou dificuldades familiares, ele tinha o hábito de pressionar as
mãos sobre as têmporas, como se sentisse a cabeça larga demais e quisesse
comprimi-la. - Quando o paciente contava quatro anos, estivera presente na
ocasião em que uma pistola, que fora acidentalmente carregada, havia disparado
e enegrecido os olhos do pai. (‘’Como estavam claros os olhos dele!‘’) -
No ponto da testa em que o sonho situou o ferimento do pai aparecia um sulco profundo,
durante sua vida, sempre que ele estava pensativo ou triste. O fato de esse
sulco ter sido substituído no sonho por um ferimento levou à segunda causa
excitante do sonho. O sonhador tirara uma fotografia de sua filhinha. A chapa
lhe havia escorregado das mãos e, quando ele a apanhou, havia uma rachadura que
se estendia perpendicularmente pela testa da menina, indo até o supercílio. Ele
não pôde evitar uma premonição supersticiosa a esse respeito, visto que, dias
antes do falecimento de sua mãe, ele quebrara uma chapa fotográfica com o
retrato dela.
O absurdo desse
sonho não passava, assim, do resultado de um descuido na expressão verbal, que
não soube distinguir o busto e a fotografia da pessoa real. Qualquer um de nós
poderia dizer [olhando para uma fotografia]: “Há algo errado com papai, não
acha?’’ A aparência de absurdo no sonho teria sido fácil de evitar; e, se nos
fosse dado julgar por esse exemplo único, ficaríamos inclinados a pensar que o
aparente absurdo fora permitido ou mesmo deliberado.
II
Eis aqui outro
exemplo, semelhante em quase todos os aspectos, de um de meus próprios sonhos.
(Perdi meu pai em 1896.) Após sua morte, meu pai desempenhava um papel
político entre os magiares e os reunira politicamente. Vi nesse ponto uma
imagem pequena e indistinta: uma multidão de homens, como se estivessem no
Reichstag; alguém de pé sobre uma ou duas cadeiras, com outras pessoas ao seu
redor. Lembrei-me de como ele separecera com Garibaldi em seu leito de morte, e
fiquei contente de que aquela promessa se tivesse realizado.
Que poderia ser
mais absurdo do que isso? Foi um sonho ocorrido numa época em que os
húngaros tinham sido arrastados pela obstrução parlamentar para um estado de
ilegalidade e mergulhado na crise da qual foram salvos por Koloman Széll. O
detalhe trivial de a cena do sonho aparecer em imagens de tamanho tão diminuto
não deixou de ter importância para sua interpretação. Nossos pensamentos
oníricos costumam ser representados em imagens visuais que parecem ter mais ou
menos o tamanho natural. A imagem que eu via em meu sonho, contudo, era a
reprodução de uma xilogravura inserida numa história ilustrada da Áustria, que
exibia Maria Teresa no Reichstag [Dieta] de Pressburg no famoso episódio de “Moriamur
pro rege nostro”. Tal como Maria Teresa na fotografia, meu pai, no
sonho, estava cercado pela multidão. Mas ele estava de pé sobre uma ou duas
cadeiras [“cadeira” = “Stuhl”]. Ele os tinha reunido e,
portanto, era um juiz-presidente [“Stuhlrichter”, literalmente, “Juiz de
cadeira”.] (Um elo de ligação foi proporcionado pela expressão [alemã]
coloquial “não precisaremos de nenhum juiz”.) - Os que o estávamos rodeando
havíamos de fato observado como meu pai se parecia, em seu leito de morte, com
Garibaldi. Ele tivera uma elevação de temperatura post-mortem, ficando
suas maçãs do rosto enrubescidas e cada vez mais vermelhas… Ao recordar isso,
meus pensamentos prosseguiram involuntariamente:
Und hinter ihm
in wesenlosem Scheine
Lag, was uns alle bändigt, das Gemeine.
Esses
pensamentos elevados prepararam o terreno [na análise] para o aparecimento de
algo que era comum [“gemein”] em outro sentido. A elevação de
temperatura post-mortem de meu pai correspondeu às palavras “após sua
morte” no sonho. Seu sofrimento mais agudo fora causado por uma paralisia
completa (obstrução) dos intestinos durante suas últimas semanas. Daí
decorreu toda sorte de pensamentos desrespeitosos. Um de meus contemporâneos
que perdera o pai enquanto ainda estava no curso secundário - nessa ocasião, eu
mesmo ficara profundamente emocionado e me oferecera para ser seu amigo - certa
feita me contou, desdenhosamente, como uma de suas parentas passara por uma
experiência dolorosa. Seu pai caíra morto na rua e fora levado para casa;
quando despiram o cadáver, verificou-se que no momento da morte, ou post-mortem,
ele tivera uma evacuação [“Stuhl”]. A filha se sentira tão desgostosa
com isso que não conseguia impedir que esse detalhe odioso lhe perturbasse a
lembrança do pai. Chegamos aqui ao desejo que se corporificou nesse sonho.
“Erguer-se ante os olhos dos filhos, após a morte, grande e imaculado” - quem
não desejaria isto? O que aconteceu com o absurdo do sonho? Seu aparente
absurdo deve-se apenas ao fato de ele ter fornecido uma imagem literal de uma figura
de retórica que é em si perfeitamente legítima e na qual habitualmente
desprezamos qualquer absurdo envolvido na contradição entre duas partes. Nesse
exemplo, mais uma vez, é impossível fugir à impressão de que o aparente absurdo
é intencional e foi deliberadamente produzido. [1]
A freqüência com
que as pessoas mortas aparecem em sonhos, [1] interagindo e se
associando conosco como se estivessem vivas, tem causado surpresa desnecessária
e produzido algumas explicações notáveis, que põem em grande destaque nossa
falta de compreensão dos sonhos. Não obstante, a explicação desses sonhos é
muito óbvia. É freqüentemente nos apanharmos pensando: “Se meu pai fosse vivo,
o que diria sobre isto?” Os sonhos são incapazes de expressar um “se” dessa
ordem, salvo representando a pessoa em questão como presente em alguma situação
específica. Assim, por exemplo, um rapaz que recebera uma grande herança do avô
sonhou, numa época em que se recriminava por ter gasto uma considerável soma de
dinheiro, que seu avô estava vivo novamente e lhe pedia contas. E quando, por
não cairmos nessa cilada, protestamos que afinal de contas a pessoa em questão
está morta,o que consideramos como uma crítica ao sonho é, na realidade, uma
idéia consoladora de que a pessoa morta não viveu para testemunhar o
acontecimento, ou um sentimento de satisfação por ela já não poder interferir.
Há um outro tipo
de absurdo que ocorre nos sonhos com parentes mortos mas não expressa
ridicularização nem escárnio. Indica um
extremo grau de repúdio e, desse modo, possibilita representar uma idéia
recalcada que o sonhador preferiria encarar como totalmente impensável. Parece
impossível elucidar tais sonhos, a menos que se tenha em mente o fato de que os
sonhos não estabelecem diferença entre o que é desejado e o que é real. Por
exemplo, um homem que cuidara do pai durante sua última doença e ficara
profundamente acabrunhado com sua morte teve o seguinte sonho absurdo algum
tempo depois. O pai estava vivo de novo e conversava com ele em seu estilo
usual, mas (isso é que foi notável) ele havia realmente morrido, só que
não o sabia. Este sonho só se torna inteligível se, após as palavras “mas
ele havia realmente morrido”, inserirmos “em conseqüência do desejo do
sonhador”, e se explicarmos que o que “ele não sabia” era que o sonhador tivera
esse desejo. Enquanto cuidava do pai, o filho desejara repetidamente que ele
morresse, isto é, tivera o que, a rigor, era um pensamento piedoso, no sentido
de que a morte poderia pôr termo aos sofrimentos dele. Durante o luto, após a
morte do pai, até mesmo esse desejo compassivo tornou-se tema de
auto-recriminação inconsciente, como se, por meio disso, ele tivesse realmente
contribuído para abreviar a vida do homem enfermo. O despertar dos impulsos
infantis primitivos do sonhador contra o pai tornou possível que essa
auto-recriminação se expressasse como um sonho; mas foi precisamente o fato de
o instigador do sonho e os pensamentos diurnos serem tão diametralmente opostos
que exigiu o aspecto absurdo do sonho. [1]
É verdade que os
sonhos com mortos amados pelo sonhador levantam problemas difíceis na
interpretação do sonho e que nem sempre podem ser satisfatoriamente
solucionados. A razão disso se encontra na ambivalência emocional de cunho
particularmente acentuado que domina a relação do sonhador com a pessoa morta.
É muito comum, nos sonhos dessa espécie, a pessoa morta ser tratada, de início,
como se estivesse viva, depois, subitamente, revelar-se morta e, numa parte
posterior do sonho, estar viva outra vez. Isso tem o efeito de confundir. Por
fim, ocorreu-me que essa alternância entre morte e vida visa a representar a indiferença
do sonhador. (“Tanto se me dá que ele esteja vivo ou morto.”) Essa indiferença,
evidentemente, não é real, mas apenas desejada; destina-se a ajudar o sonhador
a repudiar suas atitudes emocionais muito intensas e amiúde contraditórias,
tornando-se assim uma representação onírica de sua ambivalência. - Em
outros sonhos em que o sonhador interage com pessoas mortas, a seguinte regra
muitas vezes ajuda a nos orientar: não havendo no sonho nenhuma menção ao fato
de que o homem morto está morto, o sonhador se está equiparando com ele - está
sonhando com sua própria morte. Se, no curso do sonho, o sonhador de repente
diz a si próprio com surpresa, “ora, mas ele já morreu há tanto tempo”, está
repudiando essa equiparação e negando que o sonho signifique sua própria morte.
- Mas de bom grado confesso a impressão de que a interpretação dos sonhos está
longe de ter revelado todos os segredos dos sonhos dessa natureza.
III
No exemplo que
exporei a seguir, pude surpreender o trabalho do sonho no próprio ato de
fabricar intencionalmente um absurdo para o qual não havia margem alguma no
material. Foi extraído do sonho que me despertou de meu encontro com o Conde
Thun quando eu estava partindo em viagem de férias. [Ver em [1]] Eu estava
num tílburi e ordenei ao cocheiro que me levasse a uma estação. “Não posso ir
com o senhor ao longo da própria linha férrea”, disse eu, depois de ele ter
levantado alguma objeção, como se eu o tivesse fatigado demais. Era como se eu
tivesse viajado com ele parte da distância que normalmente se percorre de trem.
A análise produziu as seguintes explicações dessa história confusa e sem
sentido. No dia anterior,eu alugara um tílburi para me levar a uma rua afastada
em Dornbach. O condutor, contudo, não sabia onde ficava a rua e, como
tendem a fazer essas excelentes pessoas, ficou a dar voltas e mais voltas, até
que, finalmente, notei o que estava acontecendo e lhe indiquei o caminho certo,
acrescentando alguns comentários sarcásticos. Uma cadeia de idéias à qual eu
retornaria depois, na análise, levou-me desse condutor aos aristocratas. Na
ocasião, foi apenas a idéia passageira de que o que nos impressiona nos
aristocratas, a nós da plebe burguesa, é a preferência que eles têm por ocupar
o lugar do condutor. O Conde Thun, de fato, era o condutor do carro do Estado
na Áustria. A frase seguinte do sonho, todavia, referia-se a meu irmão, que eu
estava assim identificando com o condutor do veículo. Naquele ano, eu havia
cancelado uma viagem que faria com ele à Itália. (“Não posso ir com você
pela própria linha do trem.”) E esse cancelamento fora uma espécie de
castigo pelas queixas que ele costumava fazer no sentido de que eu tinha o
hábito de cansá-lo demais nessas viagens (isso apareceu no sonho sem
alterações), ao insistir em me deslocar muito depressa de um lugar para outro e
em ver demasiadas belezas num único dia. Na noite do sonho, meu irmão me
acompanhara até a estação, mas descera pouco antes de chegarmos lá, na estação
ferroviária suburbana adjacente ao terminal da linha principal, para ir a Purkersdorf
pela linha suburbana. Fiz-lhe notar que ele poderia ficar um pouco mais comigo
indo até Purkersdorf pela linha principal, em vez da suburbana. Isso levou ao
trecho do sonho em que percorri de tílburi parte da distância que
normalmente se percorre de trem. Foi uma inversão do que havia ocorrido na
realidade - uma espécie de argumento “tu quoque”. O que eu dissera a meu
irmão tinha sido: “você pode percorrer na linha principal, em minha companhia,
a distância que percorreria pela linha suburbana”. Provoquei toda a confusão do
sonho ao colocar “carro” no lugar de “linha suburbana” (o que, aliás, foi muito
útil para reunir as figuras do condutor e de meu irmão). Dessa maneira,
consegui produzir no sonho algo sem sentido, que parece quase impossível de
desenredar e é quase uma contradição direta do meu comentário anterior no sonho
(“Não posso ir com o senhor pela própria linha do trem”). Dado, porém,
que não havia necessidade alguma de eu confundir a ferrovia suburbana com um
carro, devo ter preparado propositadamente toda essa história enigmática do
sonho.
Mas, com que
propósito? Agora descobriremos o significado do absurdo nos sonhos e os motivos
que fazem com que ele seja consentido ou mesmo criado. A solução do mistério
neste sonho foi a seguinte: eu precisava que houvesse nesse sonho algo de
absurdo e ininteligível ligado à palavra “fahren”, porque os
pensamentos oníricos incluíam um certo juízo que pedia representação. Uma
noite, quando me encontrava na casa da hospitaleira e espirituosa senhora que
aparecia como “zeladora” numa das outras cenas do mesmo sonho, eu ouvira duas
charadas, que não pude solucionar. Uma vez que elas eram conhecidas do restante
do grupo, fiz um papel um tanto ridículo em minhas vãs tentativas de encontrar
as respostas. Elas dependiam de trocadilhos com as palavras “Nachkommen”
e “Vorfahren” e, creio eu, diziam o seguinte:
Der Herr befiehlt’s,
Der Kutscher tut’s.
Ein jeder hat’s,
Im Grabe ruht’s.
[O patrão manda,
O cocheiro faz:
Todos o têm,
Na tumba jaz.]
(Resposta: “Vorfahren”
[“Seguir viagem“ e “ascendência”; mais literalmente, “ir adiante” e
“antepassados”].)
O que causava
uma confusão especial era que a primeira metade da segunda charada era idêntica
à da primeira:
Der Herr befiehlt’s,
Der Kutscher tut’s.
Nicht jeder hat’s,
In der Wiege ruht’s.
[O patrão manda,
cocheiro faz:
Nem todos o têm,
No berço jaz.]
(Resposta: “Nachkommen”
[“Seguir atrás” e “descendência”; mais literalmente, “vir depois” e
“descendentes”].)
Quando vi o
Conde Thun seguir viagem com tanta imponência e quando, depois disso,
entrei no estado de espírito de Fígaro, com suas observações sobre a bondade
dos grandes senhores por se terem dado ao trabalho de nascer (de se tornarem descendência),
essas duas charadas foram adotadas pelo trabalho do sonho como pensamentos
intermediários. Visto que os aristocratas podiam ser facilmente confundidos com
condutores e visto que houve época, em nossa parte do mundo, em que um condutor
era chamado de “Schwager” [“cocheiro” e “cunhado”], o trabalho de
condensação pôde introduzir meu irmão na mesma imagem. Entretanto, o pensamento
onírico que agia por trás de tudo isso dizia: “É absurdo orgulhar-se dos
ancestrais; é preferível ser um antepassado”. Esse julgamento de que algo “é
absurdo” foi o que produziu a aparência de absurdo no sonho. E isso também
esclarece o enigma remanescente nessa obscura região do sonho, ou seja, a razão
por que pensei já ter viajado com o condutor antes [vorhergefahren
(“viajado antes”) - vorgefahren (“seguido viagem”) - “Vorfahren”
(“ascendência”)].
Um sonho se
torna absurdo, portanto, quando o julgamento de que algo “é absurdo” figura
entre os elementos incluídos nos pensamentos oníricos - isto é, quando qualquer
das cadeias de idéias inconscientes do sonhador tem por motivo a crítica ou a
ridicularização. O absurdo, por conseguinte, é um dos métodos pelos quais o
trabalho do sonho representa uma contradição - juntamente com outros métodos
como a inversão, no conteúdo do sonho, de uma relação material nos pensamentos
oníricos ([em [1]], ou a exploração da sensação de inibição motora [em [1]].
Todavia, o absurdo num sonho não deve ser traduzido por um simples “não”;
destina-se a reproduzir o estado de ânimo dos pensamentos oníricos que
combina o escárnio ou o riso com a contradição. É somente com tal finalidade em
vista que o trabalho do sonho produz algo ridículo. Também aqui ele dá uma
forma manifesta a uma parcela do conteúdo latente. [1]
Na realidade, já
deparamos com um exemplo convincente de um sonho absurdo com esse tipo de
sentido: o sonho - interpretei-o sem nenhuma análise - da encenação de uma
ópera de Wagner que durou até quinze para as oito da manhã e no qual a
orquestra era regida de uma torre, etc. (ver em [1]). Ele evidentemente queria
dizer: “Este é um mundo às avessas e uma sociedade maluca; a
pessoa que merece algo não o consegue, e a pessoa que não se importa com algo realmente
o consegue” - e nesse aspecto, a sonhadora estava comparando seu destino com o
de sua prima. Tampouco é por mero acaso que nossos primeiros exemplos de
absurdo nos sonhos se relacionaram com um pai morto. Nesses casos, as condições
para a criação de sonhos absurdos se reúnem de maneira característica. A
autoridade exercida pelo pai provoca a crítica de seus filhos já numa tenra
idade, e a severidade das exigências que lhes faz leva-os, para seu próprio
alívio, a ficarem de olhos abertos para qualquer fraqueza do pai; entretanto, a
devoção filial evocada em nossa mente pela figura do pai, particularmente após
sua morte, torna mais rigorosa a censura, que impede qualquer crítica desse
tipo de ser conscientemente expressa.
IV
Eis outro sonho
absurdo sobre um pai morto. Recebi uma comunicação da câmara municipal de
minha terra natal, referente aos honorários devidos pela manutenção de alguém
no hospital no ano de 1851, que fora exigida por um ataque que esse alguém
tivera em minha casa. Isso me pareceuengraçado, pois, em primeiro lugar, eu
ainda não era nascido em 1851 e, em segundo, meu pai, com quem isso poderia
estar relacionado, já estava morto. Fui vê-lo no quarto ao lado, onde ele
estava deitado em sua cama, e lhe contei isso. Para minha surpresa, ele se
lembrou de que, em 1851, tinha-se embriagado certa vez e tivera de ser
trancafiado ou detido. Isso acontecera numa época em que ele trabalhava para a
firma T --. “Quer dizer que você também costumava beber?, perguntei;” “você se
casou logo depois disso?” Calculei que, naturalmente, eu nascera em 1856, que
parecia ser o ano imediatamente seguinte ao ano em questão.
A partir da
discussão anterior, concluiríamos que a insistência com que este sonho exibia
seus absurdos só poderia ser tomada como indicadora da presença, nos
pensamentos oníricos, de uma polêmica particularmente acirrada e apaixonada.
Assim sendo, ficaremos extremamente surpresos ao observar que, neste sonho, a
polêmica se deu abertamente, e que meu pai foi o objeto explícito de
ridicularização. Tal franqueza parece contradizer nossos pressupostos acerca da
ação da censura ligada ao trabalho do sonho. A situação se tornará mais clara,
porém, ao se perceber que, neste exemplo, meu pai foi simplesmente apresentado
como um testa-de-ferro e que a disputa realmente se dava com outra pessoa que só
apareceu no sonho numa única alusão. Enquanto que, normalmente, o sonho versa
sobre uma rebelião contra outra pessoa por trás de quem se oculta o pai do
sonhador, aqui se deu o oposto. Meu pai fora transformado num espantalho para
encobrir outra pessoa; e o sonho teve permissão de tratar dessa maneira
indisfarçada uma figura que, em geral, era tratada como sagrada, porque, ao
mesmo tempo, eu sabia com certeza que não era realmente a ele que se aludia.
Que era esse o estado de coisas ficou demonstrado pela causa excitante do
sonho. É que ele ocorreu depois de eu ter tomado conhecimento de que um de
meus colegas mais velhos, cuja opinião era considerada acima de qualquer
crítica, havia expressado sua desaprovação e surpresa ante o fato de o
tratamento psicanalítico de um de meus pacientes já ter entrado em seu quinto
ano. As primeiras frases do sonho aludiam, sob um disfarce
transparente, ao fato de, por algum tempo, esse colega haver assumido as
obrigações que meu pai já não podia cumprir (“honorários devidos”, “manutenção
no hospital”) e de, quando nossas relações começaram a ser menos amistosas,
eu ter-me envolvido no mesmo tipo de conflito emocionalque, ao surgir um
desentendimento entre pai e filho, é inevitavelmente produzido, graças à
posição ocupada pelo pai e à assistência anteriormente prestada por ele. Os
pensamentos oníricos protestaram amargamente contra a reprimenda de que eu não
estava progredindo mais depressa - reprimenda que, aplicando-se primeiro a
meu tratamento do paciente, estendeu-se depois a outras coisas. Conheceria ele
alguém, pensei, que pudesse ir mais depressa? Será que não percebia que, salvo
por meus métodos de tratamento, essas condições eram inteiramente incuráveis e
duravam a vida toda? O que eram quatro ou cinco anos comparados a uma
vida inteira, especialmente considerando que a existência do paciente fora tão
facilitada durante o tratamento?
Grande parte da
impressão de absurdo desse sonho foi ocasionada pelo encadeamento de frases de
diferentes partes dos pensamentos oníricos sem qualquer transição. Assim, a
frase “Fui vê-lo no quarto ao lado”, etc., abandonou o assunto de que
vinham tratando as frases anteriores e reproduziu corretamente as
circunstâncias em que informei a meu pai ter ficado noivo sem consultá-lo. Essa
frase, portanto, relembrava-me o admirável desprendimento demonstrado pelo
ancião nessa oportunidade, contrastando-o com o comportamento de um terceiro -
de mais outra pessoa. Convém observar que o sonho recebeu permissão para
ridicularizar meu pai porque, nos pensamentos oníricos, ele era reconhecido,
com irrestrita admiração, como um modelo para outras pessoas. E da própria
natureza de toda censura que, dentre as coisas proibidas, ela permita que se
digam as que são falsas, e não as que são verdadeiras. A frase seguinte,
no sentido de ele se lembrar que “tinha-se embriagado certa vez e fora
trancafiado por isso”, já não dizia respeito a nada que se relacionasse com
meu pai na realidade. Aqui, a figura que ele representava era nada mais, nada
menos que o grande Meynert, cujas pegadas eu seguira com profunda
veneração e cujo comportamento para comigo, após um breve período de
predileção, transformara-se em hostilidade indisfarçada. O sonho me fez lembrar
que ele próprio me contara que, em certa época de sua juventude, entregara-se
ao hábito de se embriagar com clorofórmio e que, por causa disso, tivera
de ir para um sanatório. Fez-me lembrar também de outro incidente com
ele, pouco antes de sua morte. Havíamos travado uma acirrada controvérsia,
por escrito, sobre o tema da histeria masculina, cuja existência ele negava.
Quando o visitei durante suaenfermidade fatal e indaguei sobre suas condições,
ele se estendeu um pouco sobre seu estado e terminou com estas palavras: “Você
sabe, sempre fui um dos casos mais claros de histeria masculina”. Estava assim
admitindo, para minha satisfação e espanto, aquilo que por tanto tempo
contestara obstinadamente. Mas a razão por que me foi possível, nessa cena do
sonho, utilizar meu pai como um disfarce para Meynert não residia em qualquer
analogia que eu houvesse descoberto entre as duas figuras. A cena era uma
representação concisa, mas inteiramente apropriada, de uma frase condicional
nos pensamentos oníricos, cuja íntegra dizia: “Se ao menos eu tivesse sido a
segunda geração, o filho de um professor ou de um Hofrat [conselheiro
áulico], certamente teria progredido mais depressa”. No sonho,
transformei meu pai num Hofrat e professor. - O mais clamoroso e
perturbador absurdo do sonho reside em seu tratamento da data 1851, que me
parecia não diferir de 1856, como se uma diferença de cinco anos não tivesse
importância alguma. Mas isso era exatamente o que os pensamentos oníricos
procuravam expressar. Quatro ou cinco anos eram o intervalo durante o
qual desfrutei do apoio do colega que mencionei antes nesta análise; mas eram
também o período durante o qual eu fizera minha noiva esperar por nosso
casamento; e era também, por uma coincidência fortuita, avidamente explorada
pelos pensamentos oníricos, o tempo que fiz meu paciente mais antigo esperar
por uma recuperação completa. “O que são cinco anos?” perguntavam os
pensamentos oníricos; “no que me concerne, esse prazo não é nada; não conta.
Tenho bastante tempo à minha frente. E, assim como acabei conseguindo aquilo,
embora não acreditassem, também realizarei isto.” Afora isso, contudo, o
número 51 em si, sem os algarismos relativos ao século, foi determinado num
outro sentido, a rigor, oposto; e foi também por isso que apareceu no sonho
diversas vezes. Cinqüenta e um é a idade que parece particularmente perigosa
para os homens; conheci colegas que morreram subitamente nessa idade e, entre
eles, um que, após longas demoras, fora nomeado professor poucos dias antes de
sua morte.
V
Aqui temos mais
um sonho absurdo que joga com números. Um de meus conhecidos, o Sr. M., fora
atacado num ensaio com um injustificado grau de violência, ao que todos
pensamos, por ninguém menos que Goethe. O Sr. M., naturalmente, ficou arrasado
com o ataque. Queixou-se amargamente dele com algumas pessoas que o
acompanhavam à mesa; sua veneração por Goethe, entretanto, não foi afetada por
essa experiência pessoal. Tentei esclarecer um pouco os dados cronológicos, que
me pareciam improváveis. Goethe morreu em 1832. Uma vez que seu ataque ao Sr.
M. teria naturalmente sido feito antes disso, o Sr. M. devia ser um homem muito
jovem na ocasião. Pareceu-me uma noção plausível que tivesse dezoito anos. Eu
não tinha muita certeza, porém, do ano em que escrevíamos, de modo que todo o
meu cálculo se desfazia na obscuridade. A propósito, o ataque estava contido no
famoso ensaio de Goethe sobre a “Natureza”.
Logo
encontraremos meios de justificar o absurdo desse sonho. O Sr. M., com que eu
travara conhecimento em meio a algumas pessoas que me acompanhavam à mesa,
pedira-me não muito antes que examinasse seu irmão, que estava apresentando
sinais de paralisia geral. A suspeita era correta; na ocasião dessa
visita, aconteceu um episódio embaraçoso, pois no decorrer da conversa, o
paciente, sem nenhuma razão justificável, revelou coisas íntimas sobre seu
irmão ao falar de suas loucuras juvenis. Eu havia perguntado ao paciente
o ano de seu nascimento e o fizera efetuar várias pequenas somas, para testar a
debilitação de sua memória - embora, aliás, ele ainda ficasse perfeitamente à
altura dos testes. Logo pude ver que, no sonho, eu próprio me havia comportado
como um paralítico. (Eu não tinha muita certeza do ano, porém, em que
escrevíamos.) Outra parte do material do sonho derivava de outra fonte
recente. O editor de uma revista médica, com quem eu mantinha relações
amistosas, publicara uma crítica altamente desfavorável, “arrasadora”,
do último livro de meu amigo berlinense Fl. [Fliess]. A crítica fora escrita
por um profissional muito jovem, que tinha pouco discernimento. Achei
que tinha o direito de intervir e repreendi o editor por isso. Ele expressou um
vivo pesar por haver publicado a crítica, mas se recusou a fazer qualquer
retificação. Assim, cortei relações com a revista, mas, em minha carta de
desligamento, expressei a esperança de que nossas relações pessoais não
fossem afetadas pelo acontecimento. A terceira fontedo sonho fora um relato
que eu acabara de escutar de uma paciente a respeito da doença mental de seu
irmão e de como ele havia entrado em delírio frenético, aos gritos de ‘’Natureza!
Natureza!‘’. Os médicos acreditavam que sua exclamação proviesse do fato de
ele ter lido o notável ensaio de Goethe sobre esse assunto, e que isso mostrava
que ele se vinha extenuando em seus estudos de filosofia natural. Quanto a mim,
preferi pensar no sentido sexual em que essa palavra é usada aqui, até mesmo
pelas pessoas menos instruídas. Essa minha idéia ao menos não foi refutada pelo
fato de o pobre rapaz, em seguida, ter mutilado seus próprios órgãos genitais. Ele
tinha dezoito anos na ocasião de seu surto.
Posso
acrescentar que o livro de meu amigo que fora tão severamente criticado
(“fica-se pensando se o autor é que é louco, ou se nós mesmos o somos”, dissera
outro crítico) versava sobre os dados cronológicos da vida, e mostrava
que a duração da vida de Goethe era um múltiplo de um número [de dias]
que tem importância na biologia. Logo, é fácil perceber que, no sonho, eu me
estava colocando no lugar de meu amigo. (Tentei esclarecer um pouco os dados
cronológicos.) Mas comportei-me como um paralítico, e o sonho foi um
amontoado de absurdos. Desse modo, os pensamentos oníricos diziam com ironia: “Naturalmente,
ele [meu amigo F.] é que é o tolo, o maluco, e vocês [os críticos] é
que são os gênios que sabem de tudo. É claro que, por acaso, não seria o
inverso, não é mesmo?” Havia muitos exemplos dessa inversão no sonho.
Por exemplo, Goethe atacava o rapaz, o que é absurdo, ao passo que ainda é
fácil para um homem bastante jovem atacar Goethe, que é imortal. Além disso,
fiz os cálculos a partir do ano da morte de Goethe, ao passo que fizera
o paralítico calcular a partir do ano de seu nascimento. [Ver em [1],
onde esse sonho já foi mencionado.]
Mas eu também me
havia comprometido a mostrar que nenhum sonho é induzido por outros motivos que
não os egoístas. [Ver em [1]] Logo, preciso explicar o fato de, no presente
sonho, ter tornado minha a causa de meu amigo e ter-me colocado em seu lugar. A
força de minha convicção crítica na vida de vigília não basta para explicar
isso. A história do paciente de dezoito anos, contudo, e as diferentes
interpretações de sua exclamação “Natureza!” eram alusões à oposição em
que eu mesmo me encontrava perante muitos médicos, por causa de minha crença na
etiologia sexual das psiconeuroses. Podia dizer a mim mesmo: “O tipo de crítica
que foi aplicado a seu amigo será aplicado a você - na verdade, em certa
medida, já foi”. O “ele” do sonho, portanto, pode ser substituído por
“nós”: “Sim, vocês têm toda razão, nós é que somos os tolos.” Havia no
sonho um lembrete muito claro de que “mea res agitur”, na alusão ao
ensaio breve maisprimorosamente escrito de Goethe, pois quando, ao final de meu
tempo de escola, eu hesitava na escolha de uma carreira, foi escutar esse
ensaio lido em voz alta numa conferência pública que me fez optar pelo estudo
das ciências naturais. [1]
VI
Num ponto
anterior deste volume, dispus-me a mostrar que outro sonho em que meu próprio
eu não aparecia era, não obstante, egoísta. Em [1], relatei um curto sonho no
qual o Professor M. dizia: “Meu filho, o Míope…” e expliquei que este
era apenas um sonho introdutório, preliminar a outro em que eu realmente
desempenhava um papel. Eis aqui o sonho principal que faltava, introduzindo uma
forma verbal absurda e ininteligível que requer explicação.
Por causa de
certos acontecimentos que haviam ocorrido na cidade de Roma, tornara-se
necessário retirar as crianças para local seguro e isso foi feito. A cena
transcorreu depois em frente a um portal, portas duplas no estilo antigo (a
“Porta Romana” em Siena, como me dei conta durante o próprio sonho). Eu estava
sentado na borda de uma fonte, extremamente deprimido e quase em lágrimas. Uma
figura feminina - uma criada ou freira - trouxe dois meninos e os entregou ao
pai deles, que não era eu. O mais velho dos dois era claramente meu filho
maior; não vi o rosto do outro. A mulher que trouxera o menino pediu-lhe que
lhe desse um beijo de despedida. Ela era singular por ter um nariz vermelho. O
menino recusou-se a beijá-la, mas, estendendo a mão em sinal de despedida,
disse “AUF GESERES” a ela e, depois, “AUF UNGESERES” a nós dois (ou a um de
nós). Tive a impressão de que esta segunda frase denotava uma preferência.
Este sonho foi
construído com base num emaranhado de pensamentos provocados por uma peça a que
eu assistira, chamada Das neue Ghetto [ONovo Gueto]. O problema
judaico, a preocupação com o futuro dos filhos, a quem não se pode dar uma
pátria, a preocupação de educá-los de tal maneira que possam movimentar-se
livremente através das fronteiras - tudo isso era facilmente reconhecível entre
os pensamentos oníricos correspondentes.
“Junto às
águas da Babilônia nos sentamos e choramos.” Siena, como Roma, é famosa por
suas belas fontes. Quando Roma aparecia num de meus sonhos, era preciso que eu
encontrasse um substituto para ela em alguma localidade que me fosse conhecida
(ver em [1]). Perto da Porta Romana, em Siena, víramos um edifício grande e
feericamente iluminado. Soubemos que era o Manicomio, o asilo de loucos.
Pouco antes de ter o sonho, eu ouvira dizer que um homem de credo religioso
igual ao meu fora obrigado a renunciar a um cargo que obtivera com grande
esforço num manicômio estatal.
Nosso interesse
é despertado pela frase “Auf Geseres” (num ponto em que a situação do
sonho levaria a esperar por “Auf Wiedersehen‘’), bem como por seu oposto
inteiramente sem sentido, ‘’Auf Ungeseres”. De acordo com informações
que recebi de filologistas, “Geseres” é uma palavra hebraica genuína,
derivada do verbo “goiser”, e sua melhor tradução é “sofrimentos
impostos” ou “fatalidade”. O uso dessa palavra na gíria nos inclinaria a supor
que seu significado é de “pranto e lamentação”. “Ungeseres” era um
neologismo particular meu e foi a primeira palavra a chamar minha atenção, só
que, de início, nada pude extrair dela. Entretanto, o breve comentário ao final
do sonho, no sentido de que “Ungeseres” denotava uma preferência sobre “Geseres”,
abriu a porta às associações e, ao mesmo tempo, a uma elucidação da palavra.
Uma relação análoga ocorre no caso do caviar: o caviar sem sal [“ungesalzen”]
é mais apreciado que o salgado [“gesalzen”]. “Caviar para o
general”, pretensões aristocráticas; por trás disso havia uma alusão jocosa a
uma pessoa de minha casa que, por ser mais moça do que eu, cuidaria de meus
filhos no futuro, ao que eu esperava. Isso se harmonizou com o fato de que
outra pessoa de minha casa, nossa excelente babá, fora reconhecivelmente
retratada na empregada ou freira do sonho. Não existia ainda, contudo, nenhuma
idéia transicional entre “salgado - sem sal” e “Geseres - Ungeseres”.
Esta foi fornecida por “fermentado - não fermentado” [“gesäuert
- ungesäuert”]. Em sua fuga do Egito, os Filhos de Israel não tinham
tempo para deixar que sua massa de pão crescesse e, em memória disso, até hoje
comem pão sem fermento na Páscoa. Neste ponto, posso inserir uma repentina
associação que me ocorreu durante essa parte da análise. Lembrei-me de como, na
Páscoa anterior, meu amigo de Berlim e eu estávamos passeando pelas ruas de
Breslau, cidade em que éramos forasteiros. Uma garotinhaperguntou-me o caminho
para determinada rua e fui obrigado a confessar que não sabia; e comentei com
meu amigo: “Vamos esperar que, quando crescer, essa garotinha mostre mais
discriminação na escolha das pessoas a quem pedir que a orientem”. Pouco
depois, avistei uma placa numa porta com os dizeres “Dr. Herodes. Horário de
Consulta…” “Tomara”, comentei, “que nosso colega não seja médico de crianças”.
Entrementes, meu amigo ia me expondo suas idéias sobre a significação biológica
da simetria bilateral e iniciara uma frase com as palavras ‘’Se
tivéssemos um olho no meio da testa, como um Ciclope…” Isso levou ao comentário
do Professor no sonho introdutório, “Meu filho, o Míope…”, e fui
então levado à fonte principal de “Geseres”. Muitos anos antes, quando
esse filho do Professor M., hoje um pensador independente, sentava-se ainda nos
bancos escolares, foi acometido por uma doença dos olhos que, declarou o
médico, dava motivos para preocupação. Ele explicou que, enquanto a afecção
permanecesse de um lado só, não teria importância, mas, se passasse para
o outro olho, seria um caso grave. A afecção desapareceu completamente
no primeiro olho, mas, pouco depois, apareceram realmente sinais de que o outro
estava sendo afetado. A mãe do menino, aterrorizada, imediatamente mandou
chamar o médico ao local afastado do interior onde se encontravam. O médico,
porém, passou-se então para o outro lado. “Por que a senhora está
fazendo esse ‘Geseres‘?”, indagou à mãe numa exclamação; “se um
dos lados ficou bom, o outro também ficará’’. E tinha razão.
E agora devemos
considerar a relação de tudo isso comigo e com minha família. O banco de escola
em que o filho do Professor M. dera seus primeiros passos no conhecimento fora
presenteado por sua mãe a meu filho mais velho, em cujos lábios, no sonho, pus
as frases de despedida. É fácil adivinhar um dos desejos a que essa
transferência deu margem. É que a construção do banco da escola visava também a
poupar a criança da miopia e de um distúrbio unilateral. Daí o
aparecimento, no sonho, de “Míope” (e, por trás disso, “Ciclope”)
e da referência à bilateralidade. Minha preocupação com a
unilateralidade tinha mais de um sentido: podia referir-se não apenas à
unilateralidade física, mas também à unilateralidade do desenvolvimento
intelectual. E não seria precisamente essa preocupação que, à sua maneira
louca, a cena do sonho contradizia? Depois de se voltar para um lado
para dizer palavras de despedida, a criança se voltou para o outro lado
para dizero contrário, como que visando a restaurar o equilíbrio. Era como
se estivesse agindo com a devida atenção à simetria bilateral!
É freqüente,
portanto, os sonhos serem mais profundos quando parecem mais insensatos. Em
todas as épocas da história, aqueles que tinham algo a dizer mas não podiam
dizê-lo sem perigo enfiaram prontamente a carapuça do bobo. A platéia a que se
dirigia seu discurso proibido tolerava-o mais facilmente quando podia, ao mesmo
tempo, rir e lisonjear-se com a idéia de que as palavras inoportunas eram
claramente absurdas. O Príncipe da peça, que teve de se disfarçar de louco,
comportou-se exatamente como fazem os sonhos na realidade; assim, podemos dizer
dos sonhos o que dizia Hamlet de si próprio, ocultando as condições verdadeiras
sob um manto de graça e ininteligibilidade: “Sou louco apenas com o
nor-noroeste; quando sopra o vento sul, sei distinguir um falcão de uma garça!”
Dessa maneira,
solucionei o problema do absurdo nos sonhos, demonstrando que os pensamentos
oníricos nunca são absurdos - nunca, pelo menos, nos sonhos das pessoas sadias
- e que o trabalho do sonho produz sonhos absurdos e sonhos que contêm
elementos absurdos isolados quando se depara com a necessidade de representar
alguma crítica, ridicularização ou escárnio que possa estar presente nos
pensamentos oníricos.
Minha tarefa
seguinte é mostrar que o trabalho do sonho não consiste em nada além de uma
combinação dos três fatores que já mencionei - e de
um quarto que ainda tenho de mencionar [ver em [1]]; que não executa outra
função senão a de traduzir os pensamentos oníricos de acordo com as quatro
condições a que está sujeito; e que a questão de a mente atuar nos sonhos com
todas as suas faculdades intelectuais ou com apenas parte delasestá mal
colocada e desconsidera os fatos. Uma vez, contudo, que existem muitos sonhos
em cujo conteúdo se exprimem juízos, fazem-se críticas e se expressam
valorizações, em que se sente surpresa ante algum elemento singular do sonho,
em que se fazem tentativas de explicação e se entra em argumentações, devo
agora passar a enfrentar as objeções decorrentes desse tipo de fatos mediante a
apresentação de alguns exemplos escolhidos.
Minha resposta
[em síntese] é a seguinte: Tudo o que aparece nos sonhos como atividade
aparente da função de julgamento deve ser encarado, não como uma realização
intelectual do trabalho do sonho, mas como pertencente ao material dos
pensamentos oníricos e deles tendo sido retirada para o conteúdo manifesto do
sonho como uma estrutura acabada. Posso até levar mais longe esta asserção.
Mesmo os juízos formulados depois de acordar sobre um sonho que foi
lembrado e os sentimentos em nós despertados pela reprodução de tal sonho fazem
parte, em grande medida, do conteúdo latente do sonho e devem ser incluídos em
sua interpretação.
I
Já citei um
exemplo notável disto [em [1]]. [1] Uma paciente recusou-se a me contar
um sonho porque “não era suficientemente claro”. Ela vira alguém no sonho, mas
não sabia se era seu marido ou seu pai. Seguiu-se então um segundo fragmento de
sonho em que aparecia uma lata de lixo [Misttügerl], e isso deu origem à
seguinte recordação: quando montara residência pela primeira vez, ela um dia
comentara em tom de brincadeira, na presença de um jovem parente que estava
visitando a casa, que sua tarefa seguinte seria adquirir uma nova lata de lixo.
Na manhã do outro dia, chegou-lhe uma dessas latas, mas estava cheia de
lírios-do-vale. Esse fragmento do sonho servira para representar uma expressão
coloquial [alemã]: “não criado com meu próprio esterco”. Concluída a
análise, constatou-se que os pensamentos oníricos estavam relacionados com os
efeitos secundários de uma história que a sonhadora ouvira quando jovem, a
respeito de como uma moça tivera um bebê e não se sabia com clareza quem
erarealmente o pai. Aqui, portanto, a representação onírica transbordara
para os pensamentos de vigília: um dos elementos dos pensamentos oníricos
encontrou representação num julgamento de vigília formulado sobre o sonho como
um todo.
II
Aqui temos um
caso semelhante. Um de meus pacientes teve um sonho que lhe pareceu
interessante, porque, imediatamente após acordar, ele disse a si mesmo: “Preciso
contar isso ao médico”. O sonho foi analisado e produziu as mais claras
alusões a um caso amoroso que ele havia iniciado durante o tratamento e sobre o
qual decidira não me dizer nada.
III
Eis um terceiro
exemplo, de minha própria experiência. Estava indo para o hospital com P.
por um bairro em que havia casas e jardins. Ao mesmo tempo, tinha a noção de
que já vira esse bairro muitas vezes em sonhos. Não sabia orientar-me muito bem
por ali. Ele me indicou uma estrada que levava, dobrando a esquina, a um
restaurante (fechado, não um jardim). Lá, perguntei pela Sra. Doni e fui
informado de que ela morava num quartinho dos fundos com três filhos. Dirigi-me
para lá, mas, antes de chegar, encontrei uma figura indistinta com minhas duas
filhinhas; levei-as comigo depois de ter ficado com elas um pouquinho. Uma
espécie de recriminação contra minha mulher por havê-las deixado lá.
Quando acordei,
tive um sentimento de grande satisfação, cuja razão expliquei a mim
mesmo como sendo que eu iria descobrir, a partir dessa análise, o significado
do “Já sonhei com isso antes”. De fato, porém,
a análise não me ensinou nada sobre isso; o que me revelou foi que a
satisfaçãopertencia ao conteúdo latente do sonho e não a qualquer juízo emitido
sobre ele. Minha satisfação prendia-se ao fato de meu casamento haver-me
trazido filhos. P. era uma pessoa cujo rumo na vida correra por algum tempo
paralelo ao meu, que depois me deixara para trás tanto social quanto materialmente,
mas cujo casamento não trouxera filhos. Os dois acontecimentos que ocasionaram
o sonho servirão, em vez de uma análise completa, para indicar seu sentido. Na
véspera, eu havia lido num jornal o anúncio da morte da Sra. Dona A---y (que
transformei em “Doni” no sonho), que morrera de parto. Minha mulher me disse
que a falecida fora atendida pela mesma parteira que a assistira no nascimento
de nossos dois filhos mais novos. O nome ‘’Dona’’ me chamara a atenção porque
eu o tinha encontrado pela primeira vez pouco antes, num romance inglês. A
segunda ocasião do sonho foi fornecida pela data em que ocorreu. Foi na noite
anterior ao aniversário de meu filho mais velho - que parece possuir alguns
dotes poéticos.
IV
Experimentei o
mesmo sentimento de satisfação ao acordar do sonho absurdo de meu pai haver
desempenhado um papel político entre os magiares após sua morte, e a razão que
dei a mim mesmo para esse sentimento foi que ele era uma continuação do
sentimento que acompanhara a última parte do sonho. [Ver em [1].] Lembrei-me
de como ele se parecera com Garibaldi em seu leito de morte, e fiquei contente
de que aquilo se tivesse realizado… (Havia uma continuação que eu tinha
esquecido). A análise permitiu-me preencher essa lacuna no sonho. Era uma
menção a meu segundo filho, a quem eu dera o prenome de uma grande figura
histórica [Cromwell] que me atraíra intensamente na juventude, especialmente
depois de minha visita à Inglaterra. Durante o ano que antecedeu o nascimento
desse filho, eu havia decidido usar esse nome, caso fosse um menino, e com ele
saudei o recém-nascido, com um sentimento de extrema satisfação. (É
fácil perceber como a megalomania suprimida dos pais se transfere, em seus
pensamentos, para os filhos, e parece bastante provável que esta seja uma das
maneiras pela qual a supressão desse sentimento, que se faz necessária na vida
real, é efetivada.) O direito do menino de aparecer no contexto desse sonho
decorreu do fato de que ele acabara de ter a mesma infelicidade - facilmente
perdoável tanto numa criança quanto num moribundo - de sujar as roupas de cama.
Compare-se, em relação a isso, Stuhlrichter [“juiz-presidente”,
literalmente “juiz de cadeira” ou “de fezes”] e o desejo expresso no sonho de
se erguer ante os olhos dos filhos grande e imaculado. [Ver adiante em
[1].]
V
Passo agora a
considerar as expressões de juízo emitidas no próprio sonho, mas não
continuadas na vida de vigília ou transpostas para ela. Na busca de exemplos
delas, minha tarefa será grandemente auxiliada se eu puder fazer uso de sonhos
que já registrei com outros objetivos em vista. O sonho do ataque de Goethe ao
Sr. M. [em [1]] parece conter um grande número de atos de juízo. “Tentei
esclarecer um pouco os dados cronológicos, que me pareciam improváveis.”
Isto tem toda a aparência de ser uma crítica à idéia absurda de que Goethe
pudesse ter feito um ataque literário a um jovem de minhas relações. “Pareceu-me
uma noção plausível que tivesse dezoito anos.” Também isso soa exatamente
como o resultado de um cálculo, embora, é verdade, um cálculo idiota. Por fim,
“eu não tinha muita certeza, porém, do ano em que escrevíamos” parece
ser um exemplo de incerteza ou dúvida num sonho.
Desse modo,
todos esses pareciam ser atos de julgamento feitos pela primeira vez no sonho.
Mas a análise mostrou que seu enunciado pode ser tomado de outra maneira, à luz
da qual eles se tornam indispensáveis para a interpretação do sonho, enquanto,
ao mesmo tempo, todo e qualquer vestígio de absurdo é eliminado. A frase “Tentei
esclarecer um pouco os dados cronológicos” colocou-me no lugar de meu amigo
[Fliess], que estava realmente procurando lançar luz sobre os dados
cronológicos da vida. Isso retira da frase sua importância como um juízo que
protestasse contra o absurdo das frases anteriores. A oração intercalada, “que
me pareceram improváveis”, era da mesma categoria que a subseqüente, ‘’Pareceu-me
uma noção plausível”. Eu tinha usado quase exatamente essas palavras com a
senhora que me contara o caso clínico de seu irmão: “Parece-me uma noção
improvável que seus gritos de ‘Natureza! Natureza!’ tenham tido algo que
ver com Goethe; parece-me muito mais plausível que essas palavras tenham
tido o sentido sexual com que a senhora está familiarizada”. É verdade que aqui
se emitiu um julgamento - não no sonho, porém, mas na realidade, e numa ocasião
que foi relembrada e explorada pelos pensamentos oníricos. O conteúdo do sonho
apropriou-se desse juízo exatamente como de qualquer outro fragmento dos
pensamentos oníricos. O número “18”, ao qual o juízo do sonho estava
absurdamente ligado, preserva um vestígio do contexto real do qual o juízo foi
extraído. Por fim, “Eu não tinha muita certeza, porém, do ano em que
escrevíamos” destinou-se simplesmente a levar mais longe minha
identificação com o paciente paralítico, em cujo exame, feito por mim, esse
aspecto fora realmente levantado.
A solução do que
constitui na aparência atos de julgamento nos sonhos pode servir para nos
lembrar as regras estabelecidas no início deste livro [em [1]] para se executar
o trabalho de interpretação: a saber, que devemos desprezar a aparente
coerência entre os componentes do sonho como uma ilusão não essencial, e que
devemos rastrear a origem de cada um de seus elementos independentemente. O
sonho é um conglomerado que, para fins de investigação, deve ser novamente
decomposto em fragmentos. [Ver em [1].] Por outro lado, contudo, é preciso
observar que está em ação nos sonhos uma força psíquica que cria essa
concatenação aparente, ou seja, que submete o material produzido pelo trabalho do
sonho a uma “elaboração secundária”. Isso nos coloca frente a frente com as
manifestações de uma força cuja importância avaliaremos posteriormente [em
[1]], como o quarto dos fatores que participam da construção dos sonhos.
VI
Aqui temos mais
um exemplo de um processo de julgamento operando num sonho que já registrei. No
sonho absurdo da comunicação proveniente da câmara municipal [em [1]],
perguntei: “Você se casou logo depois disso? Calculei que, naturalmente, eu
nascera em 1856, que parecia ser o ano imediatamente seguinte ao ano em questão”.
Tudo isso estava revestido da forma de um conjunto de conclusões lógicas. Meu
pai se casara em 1851, imediatamente após seu ataque; eu, é claro, era o mais
velho da família e nascera em 1856; Q.E.D. Como sabemos, essa falsa conclusão
foi tirada a bem da realização de desejo, e o pensamento onírico predominante
dizia: “Quatro ou cinco anos não são nada; isso não conta”. Todos os
passos desse conjunto de conclusões lógicas, por mais semelhantes que sejam em
seu conteúdo e forma, poderiam ser explicados de outra maneira como
determinados pelos pensamentos oníricos. Era o paciente, cuja longa
análise meu colega criticara, que decidira casar-se imediatamente após o
término do tratamento. A forma de minha conversa com meu pai no sonho se
parecia com um interrogatório ou um exame e relembrou-me também um professor da
Universidade que costumava anotar pormenores exaustivos dos estudantes que se
inscreviam para suas aulas: “Data de nascimento?” - “1856” - “Patre?”
Em resposta a isto, dava-se o primeiro nome do pai com uma terminação latina e
nós, os estudantes, presumíamos que o Hofrat tirava do prenome do
pai conclusões que nem sempre podiam ser tiradas do nome do próprio
aluno. Assim, tirar uma conclusão no sonho não passava de umarepetição
do tirar conclusões que aparecia como um fragmento do material dos
pensamentos oníricos. Algo de novo emerge disto. Quando aparece uma
conclusão no conteúdo do sonho, não há dúvida de que ela decorre dos
pensamentos oníricos, mas pode estar presente nestes como um fragmento de
material relembrado ou pode reunir uma série de pensamentos oníricos numa
cadeia lógica. De qualquer modo, porém, uma conclusão no sonho representa uma
conclusão nos pensamentos oníricos.
Neste ponto,
podemos reiniciar nossa análise do sonho. O interrogatório do professor levou a
uma lembrança do registro dos Estudantes Universitários (que, no meu tempo, era
redigido em latim). Levou ainda a reflexões sobre o curso de meus estudos
acadêmicos. Também os cinco anos prescritos para os estudos médicos
foram muito pouco para mim. Prossegui em meu trabalho, imperturbável, por
vários anos mais e, em meu círculo de relações, era encarado como malandro e
duvidavam que algum dia eu o concluiria. Então me decidi rapidamente a
fazer meus exames e passei a despeito do atraso. Aqui estava um novo
reforço dos pensamentos oníricos com que eu confrontava meus críticos
desafiadoramente: “Ainda que vocês não o acreditem, por eu não me haver
apressado, eu vou conseguir, vou levar meus estudos médicos a uma conclusão.
As coisas já aconteceram assim muitas vezes”.
Esse mesmo
sonho, em seu trecho inicial, continha algumas frases às quais dificilmente se
poderia recusar o nome de argumentação. Essa argumentação nem ao menos era
absurda e bem poderia ter-me ocorrido no pensamento de vigília: Achei
engraçada, no sonho, a comunicação da câmara municipal, uma vez que, em
primeiro lugar, eu ainda não viera ao mundo em 1851 e, em segundo, meu pai, com
quem isso poderia estar relacionado, já estava morto. Ambas essas
afirmações eram não apenas corretas em si mesmas, mas concordavam precisamente
com os argumentos reais que eu apresentaria se realmente recebesse uma
comunicação desse tipo. Minha análise anterior do sonho mostrou que ele brotara
de pensamentos oníricos profundamente amargos e derrisórios (ver em [1]). Se
pudermos também presumir que havia fortes razões para a atividade da censura,
compreenderemos que o trabalho do sonho tinha todos os motivos para produzir uma
refutação perfeitamente válidade uma sugestão absurda, seguindo o modelo
contido nos pensamentos oníricos. A análise mostrou, no entanto, que o trabalho
do sonho não tivera liberdade de ação para estabelecer esse paralelo, mas fora
obrigado, para esse fim, a utilizar material oriundo dos pensamentos oníricos.
Era exatamente como se houvesse uma equação algébrica, contendo (além de
algarismos) sinais de soma e de subtração, índices e radicais, e como se alguém
tivesse de copiá-la sem entendê-la, passando tanto os símbolos operacionais quanto
os algarismos para sua cópia, mas misturando-os todos. Os dois argumentos [no
conteúdo do sonho] puderam ter sua origem traçada até o seguinte material:
era-me aflitivo pensar que algumas das premissas subjacentes e minhas
explicações psicológicas das psiconeuroses estavam fadadas a despertar
ceticismo e riso quando encontradas pela primeira vez. Por exemplo, eu fora
levado a supor que as impressões do segundo ano de vida e, por vezes, até mesmo
o primeiro, deixavam um traço duradouro na vida emocional daqueles que mais
tarde iriam adoecer, e que essas impressões - embora distorcidas e exageradas
em muitos aspectos pela memória - poderiam constituir o primeiro e mais
profundo fundamento dos sintomas histéricos. Os pacientes, a quem eu explicava
isso em algum momento apropriado, costumavam parodiar esse conhecimento
recém-adquirido, declarando que estavam prontos a buscar lembranças datadas de
uma época em que ainda não tinham nascido. Era perfeitamente esperável
que minha descoberta do inesperado papel desempenhado pelo pai nos primeiros
impulsos sexuais das pacientes deparasse com uma recepção semelhante (ver a
discussão em [1]). Não obstante, eu tinha a sólida convicção de que essas duas
hipóteses eram verdadeiras. À guisa de confirmação, lembrei-me de alguns
exemplos em que a morte do pai ocorrera quando a criança ainda estava em idade
muito tenra, e nos quais certos acontecimentos posteriores, doutra maneira
inexplicáveis, provavam que a criança, ainda assim, havia preservado,
inconscientemente, lembranças da figura que tão cedo desaparecera de sua vida.
Eu estava ciente de que essas minhas duas asserções repousavam na extração
de conclusões cuja validade seria contestada. Assim, foi uma vitória da
realização de desejo que precisamente o material das conclusões que eu temia
serem contestadas fosse empregado pelo trabalho do sonho para tirar conclusões
que era impossível contestar.
VII
No início de um
sonho em que mal toquei até agora [ver em [1]], havia uma clara expressão de
assombro ante o tema que havia emergido. O velho Brücke devia ter-me
atribuído alguma tarefa; ESTRANHAMENTE, relacionava-se com a dissecação
da parte inferior de meu próprio corpo, minha pélvis e minhas pernas, que eu
via diante de mim como se estivesse na sala de dissecação, mas sem notar sua
ausência em mim mesmo e também sem nenhum traço de qualquer sentimento de
horror. Louise N. estava de pé a meu lado e fazendo o trabalho comigo. A pélvis
tinha sido esvicerada e era visível ora em seu aspecto superior, ora no
inferior, estando os dois misturados. Podiam-se ver espessas protuberâncias cor
de carne (que, no próprio sonho, fizeram-me pensar em hemorróidas). Algo que
estava em cima disso e que se assemelhava a papel prateado amassado também
teve de ser cuidadosamente retirado. Depois, eu estava novamente de posse de
minhas pernas, andando pela cidade. Mas (por estar cansado) apanhei um táxi. Para
meu espanto, o táxi entrou pela porta de uma casa que se abriu e o deixou
passar por um corredor que dobrava uma esquina no final e, por fim, levava de
novo ao ar livre. Finalmente, eu estava excursionando numa paisagem
mutável com um guia alpino que carregava meus pertences. Parte do caminho ele
me carregou também, por consideração por minhas pernas cansadas. O terreno era
pantanoso e andávamos pela beirada; havia pessoas sentadas no chão como
peles-vermelhas ou ciganos - entre elas, uma moça. Antes disso, eu estivera
avançando sobre o terreno escorregadio com uma constante sensação de surpresa por
poder fazê-lo tão bem após a dissecação. Por fim, chegamos a uma casinha de
madeira em cuja extremidade havia uma janela aberta. Lá, o guia me colocou no
chão e pôs duas tábuas de madeira, que já estavam preparadas sobre o peitoril
da janela, de modo a fazer uma ponte sobre o abismo que tinha de ser cruzado a
partir da janela. Nesse ponto, fiquei realmente amedrontado por causa de minhas
pernas, mas, em vez da esperada travessia, vi dois homens adultos deitados em
bancos de madeira que ficavam junto às paredes da cabana e o que pareciam ser
duas crianças dormindo ao lado deles. Era como se o que iria possibilitar a
travessia não fossem as tábuas, mas as crianças. Acordei sobressaltado.
Quem quer que já
tenha feito até mesmo a menor idéia da extensão da condensação nos sonhos
facilmente imaginará o número de páginas que seria preenchido por uma análise
integral desse sonho. Felizmente, contudo, nopresente contexto, só preciso
tomar um ponto dele, que fornece um exemplo de assombro nos sonhos, como exibido
pela interpolação “estranhamente”. Fora este o pretexto do sonho: Louise
N., a dama que me assistia em meu trabalho no sonho, andara me visitando.
“Empreste-me alguma coisa para ler”, dissera. Ofereci-lhe She [Ela],
de Rider Haggard. “Um livro estranho, mas repleto de um sentido oculto”,
comecei a explicar-lhe; “o eterno feminino, a imortalidade de nossas emoções…”
Nesse ponto, ela me interrompeu. “Já o conheço. Não tem nada de sua própria
autoria?” - “Não, minhas próprias obras imortais ainda não foram escritas.” -
“Bem, e quando é que podemos esperar por essas suas chamadas explicações
últimas, que você prometeu que até nós acharíamos legíveis”, perguntou
ela, com uma ponta de sarcasmo. Nesse ponto, percebi que alguém mais me estava
admoestando por sua boca e silenciei. Refleti sobre a dose de autodisciplina
que me estava custando oferecer ao público até mesmo meu livro sobre sonhos -
onde eu teria de revelar tanto do meu próprio caráter.
Das Best was du wissen kannst.
Darfst du den Buben doch nicht sagen.
A tarefa que me
fora imposta no sonho, de fazer a dissecação de meu próprio corpo, era,
portanto, minha auto-análise, que estava ligada a meu fornecimento de
uma explicação de meus sonhos. Era apropriado que o velho Brücke entrasse aqui;
já nos primeiros anos de meu trabalho científico, ocorreu-me deixar pendente
uma descoberta minha, até que uma enérgica repreensão dele me forçou a
publicá-la. Os outros pensamentos iniciados por minha conversa com Louise N.
eram profundos demais para se tornarem conscientes. Desviaram-se na direção do
material que fora evocado em mim pela menção de She, de Rider Haggard. O
juízo “estranhamente” remontava a esse livro e a outro, Heart of the
World [O Coração do Mundo], do mesmo autor; e numerosos elementos do
sonho derivavam-se desses dois romances imaginativos. O terreno pantanoso pelo
qual as pessoas tinham de ser carregadas e o abismo que tinham de atravessar
por meio de tábuas trazidas por elas foram retirados de She; os
peles-vermelhas, a moça e a casa de madeira, de Heart of the World. Em
ambos os romances, o guia é uma mulher;ambos versam sobre viagens perigosas,
enquanto She descreve uma estrada cheia de riscos e quase nunca
trilhada, que leva a uma região ainda não descoberta. A sensação de cansaço em
minhas pernas, segundo uma anotação que descobri ter feito sobre o sonho, fora
uma sensação real durante o dia. Provavelmente combinava com um estado de ânimo
abatido e com uma reflexão dubitativa: “Por quanto tempo minhas pernas me
carregarão?” O final da aventura em She é que a guia, em vez de
descobrir a imortalidade para si própria e para os outros, perece no misterioso
fogo subterrâneo. Um temor desse tipo estava inequivocamente em ação nos
pensamentos oníricos. A “casa de madeira” era também, sem dúvida, um ataúde, ou
seja, a sepultura. Mas o trabalho do sonho realizou uma obra-prima em sua
representação desse mais indesejado de todos os pensamentos, através de uma
realização de desejo. É que eu já estivera numa sepultura antes, mas era uma
sepultura etrusca desenterrada perto de Orvieto, uma câmara estreita com dois
bancos de pedra ao longo das paredes, onde jaziam os esqueletos de dois homens
adultos. O interior da casa de madeira no sonho tinha a aparência exata dela,
só que a pedra fora substituída por madeira. O sonho parece ter dito: “Se
tens de descansar numa sepultura, que seja uma sepultura etrusca”. E, efetuando
essa substituição, ele transformou a mais lúgubre das expectativas numa que era
altamente desejável. Infelizmente, como em breve saberemos [em [1]], o
sonho pode transformar em seu oposto a representação que acompanha um
afeto, mas nem sempre o próprio afeto. Por conseguinte, acordei “sobressaltado”,
mesmo depois de ter emergido com êxito a idéia de que os filhos talvez possam
realizar o que o pai não conseguiu - uma nova alusão ao estranho romance em que
a identidade de uma pessoa é preservada através de uma série de gerações por
mais de dois mil anos. [1]
VIII
Incluída em
outro de meus sonhos houve uma expressão de surpresa ante algo que eu
experimentara nele, mas a surpresa foi acompanhada por uma tentativa tão
notável, rebuscada e quase brilhante de explicação que, nem que seja apenas por
ela, não posso resistir a submeter o sonho inteiroà análise,
independentemente de ele possuir dois outros pontos que despertam nosso
interesse. Eu estava viajando pela linha ferroviária Südbahn na noite de
18 para 19 de julho, e, enquanto dormia, escutei a chamada: “Hollthurn, dez
minutos”. Pensei imediatamente em holotúrias [lesmas-do-mar] - num
museu de história natural - que este fora o lugar em que homens valentes haviam
lutado em vão contra o poder superior do governante de seu país - sim, a
Contra-Reforma na Áustria - era como se fosse um lugar na Estíria ou no Tirol.
Vi então indistintamente um pequeno museu em que as relíquias ou pertences
desses homens eram preservados. Eu gostaria de sair, mas hesitei em fazê-lo.
Havia mulheres com frutas na plataforma. Estavam acocoradas no chão e erguiam
seus cestos convidativamente. - Hesitei porque não tinha certeza de que haveria
tempo, mas ainda não estávamos em movimento. - De repente, eu estava em
outro compartimento, onde os estofamentos e os assentos eram tão estreitos que
as costas ficavam diretamente pressionadas contra o fundo do vagão. Fiquei
surpreso com isso, mas refleti que PODERIA TER TROCADO DE VAGÃO ENQUANTO ME
ACHAVA EM ESTADO DE SONO. Havia diversas pessoas, inclusive um irmão e irmã
ingleses; uma fileira de livros era claramente visível sobre uma prateleira na
parede. Vi “The Wealth of Nations” [A Riqueza das Nações] e “Matter and
Motion” [Matéria e Movimento], de Clerk Maxwell, um volume grosso e
encadernado em tecido marrom. O homem perguntou a sua irmã por um livro de
Schiller, se ela o havia esquecido. Era como se os livros fossem ora meus, ora
deles. Nesse ponto, senti-me inclinado a intervir na conversa num sentido
confirmatório ou consubstanciador… Acordei transpirando por todo o corpo, pois
todas as janelas estavam fechadas. O trem estava parado em Marburg [na
Estíria].
Enquanto estava
anotando o sonho, ocorreu-me um novo fragmento dele, que minha memória havia
tentado omitir. Disse [em inglês] ao irmão e à irmã, referindo-me a
determinada obra: “It is from…”, mas me corrigi: “It is by…” “Sim”, comentou o
homem com a irmã, “ele disse isso corretamente.’’
O sonho começava
pelo nome da estação, que devia sem dúvida ter-me acordado parcialmente.
Substituí seu nome, Marburg, por Hollturn. O fato de eu ter ouvido
“Marburg” quando anunciado pela primeira vez, ou talvez depois, foi comprovado
pela menção a Schiller no sonho, pois ele nascera em Marburg, embora não na
Marburg da Estíria. Embora viajasse na primeira classe, eu estava nessa
ocasião fazendo minha viagem em condições muito desconfortáveis. O trem estava
inteiramente lotado e, em meu compartimento, eu encontrara uma dama e um
cavalheiro que pareciam muito aristocráticos e não tiveram a civilidade ou não
acharam que valesse a pena disfarçar sua contrariedade por minha intrusão.
Minha saudação polida não teve resposta. Embora o homem e sua mulher estivessem
sentados lado a lado (de costas para a locomotiva), a mulher, não obstante,
apressou-se, bem diante dos meus olhos, a ocupar o assento da janela em frente
a ela, colocando nele um guarda-chuva. A porta foi imediatamente fechada e
algumas observações mordazes foram trocadas entre eles sobre a questão da
abertura das janelas. Provavelmente, perceberam de imediato que eu ansiava por
ar fresco. Era uma noite quente e a atmosfera no compartimento completamente
fechado logo se tornou sufocante. Minhas experiências de viagem ensinaram-me
que esse tipo de conduta desumana e despótica é característica de pessoas que
estão viajando com passagens grátis ou meias-passagens. Quando veio o condutor
e lhe mostrei a passagem que havia comprado por um alto preço, saíram da boca
da dama, em tom altaneiro e quase ameaçador, as palavras: “Meu marido tem passe
livre”. Ela era uma figura imponente de traços insatisfeitos, cuja idade não
estava longe da fase da decadência da beleza feminina; o homem não proferiu uma
só palavra, mas permaneceu sentado e imóvel. Tentei dormir. Em meu sonho,
vinguei-me terrivelmente de meus desagradáveis companheiros; ninguém poderia
suspeitar dos insultos e humilhações que se ocultavam por trás dos fragmentos
esparsos da primeira metade do sonho. Uma vez satisfeita essa necessidade, um
segundo desejo se fez sentir - mudar de compartimento. A cena se modifica com
tanta freqüência nos sonhos, e sem que a menor objeção seja levantada, que não
seria nada surpreendente que eu tivesse prontamente substituído meus
companheiros de viagem por outros mais agradáveis, extraídos de minha memória.
Mas ali estava um caso em que algo se ressentiu da mudança de cena e achou
necessário explicá-la. Como e que, subitamente, fui ter noutro compartimento?
Não tinha lembrança de ter-me mudado. Só podia haver uma explicação: devo
ter deixado o vagão enquanto me achava em estado de sono - um acontecimento
raro, mas do qual se encontram exemplos na experiência de um neuropatologista.
Sabemos de pessoas que empreenderam viagens de trem num estado crepuscular, sem
trair sua condição anormal por sinal algum, até que, em algum ponto da jornada,
de repente voltaram a si completamente e ficaram atônitas diante da lacuna em
sua memória. No próprio sonho, por conseguinte, eu me estava declarando um
desses casos de “automatisme ambulatoire”.
A análise tornou
possível encontrar outra solução. A tentativa de explicação, que pareceu tão
excepcional quando fui obrigado a atribuí-la ao trabalho do sonho, não fora uma
tentativa original de minha própria autoria, mas copiada da neurose de um de
meus pacientes. Já em outro ponto [em [1]] falei sobre um homem extremamente
culto e, na vida real, de coração bondoso, que, pouco depois da morte dos pais,
começou a censurar-se por ter inclinações homicidas, e a seguir caiu vítima das
medidas de cautela que foi obrigado a adotar como salvaguarda. Era um caso de
obsessões graves, acompanhadas de completo discernimento. A princípio, andar pelas
ruas tornou-se um fardo para ele, pela compulsão a certificar-se de por onde
desaparecera toda e qualquer pessoa com quem tivesse deparado; se alguém de
repente escapava a seu olhar vigilante, ficavam-lhe a sensação aflitiva e a
idéia de que talvez o tivesse eliminado. O que estava por trás disso era, entre
outras coisas, uma fantasia de “Caim” - porque “todos os homens são irmãos”.
Devido à impossibilidade de realizar essa tarefa, ele desistiu das caminhadas e
passava a vida encarcerado entre quatro paredes. Mas as notícias de
assassinatos cometidos lá fora eram constantemente levadas a seu quarto pelos
jornais, e sua consciência lhe sugeria, sob a forma de uma dúvida, que talvez
ele fosse o assassino procurado. A certeza de realmente não ter abandonado sua
casa durante semanas protegeu-o dessas acusações por algum tempo, até que um
dia veio-lhe à cabeça a possibilidade de que talvez tivesse deixado a casa
enquanto se achava em estado inconsciente e, desse modo, podido cometer o
assassinato sem saber nada arespeito. Dessa ocasião em diante, trancou a porta
da frente da casa e entregou a chave à sua velha governanta, com instruções
estritas para nunca deixá-la cair em suas mãos, mesmo que ele a pedisse.
Essa, portanto,
foi a origem de minha tentativa de explicação no sentido de ter trocado de
vagões enquanto me achava em estado inconsciente; fora transposta para o sonho,
prontinha, do material dos pensamentos oníricos, e estava obviamente destinada,
no sonho, a servir ao propósito de me identificar com a figura desse paciente.
Minha lembrança dele fora despertada por uma associação fácil. Minha última
viagem noturna, algumas semanas antes, fora feita na companhia desse mesmo
homem. Ele estava curado e viajava comigo para as províncias e para visitar
parentes seus, que me haviam mandado chamar. Tínhamos um compartimento para
nós; deixamos todas as janelas abertas a noite inteira e passamos um tempo
muito agradável enquanto permaneci acordado. Eu sabia que a raiz de sua doença
tinham sido os impulsos hostis contra seu pai, que datavam da infância e
envolviam uma situação sexual. Assim, na medida em que me identificava com ele,
eu estava procurando confessar alguma coisa análoga. E, de fato, a segunda cena
do sonho terminou numa fantasia um tanto extravagante de que meus dois idosos
companheiros de viagem me haviam tratado de maneira tão insociável porque minha
chegada impedira o intercâmbio afetuoso que haviam planejado para aquela noite.
Essa fantasia remontava, contudo, a uma cena da primeira infância em que o
filho, provavelmente movido pela curiosidade sexual, irrompera no dormitório
dos pais e dele fora expulso pelas ordens do pai.
É desnecessário,
penso eu, acumular outros exemplos. Simplesmente serviriam para confirmar o que
depreendemos dos que já citei - que um ato de julgamento num sonho é apenas uma
repetição de algum protótipo nos pensamentos oníricos. Em regra geral, a
repetição é mal aplicada e interpolada num contexto inapropriado, mas,
ocasionalmente, como em nossos últimos exemplos, é empregada com tal habilidade
que, de início, pode dar a impressão de uma atividade intelectual independente
no sonho. A partir deste ponto, podemos voltar nossa atenção para a atividade
psíquica que, embora não pareça acompanhar invariavelmente a construção dos
sonhos, ainda assim, sempre que o faz, empenha-se em fundir os elementos de um
sonho que sejam de origem díspar num todo que faça sentido e esteja isento de
contradições. Antes de abordarmos esse assunto, porém, temos a premente
necessidade de considerar as expressões de afeto que ocorrem nos sonhos e
compará-las com os afetos que a análise revela nos pensamentos oníricos.
(H)
OS AFETOS NOS SONHOS
Uma observação
aguda de Stricker [1879, 51] despertou nossa atenção para o fato de que a
expressão do afeto nos sonhos não pode ser tratada da mesma forma depreciativa
com que, depois de acordar, estamos acostumados a descartar seu conteúdo.
“Se temo ladrões num sonho, os ladrões, é certo, são imaginários - mas o temor
é real.” [Ver em [1].] E isso se aplica igualmente quando me sinto alegre
num sonho. Nosso sentimento nos diz que um afeto experimentado num sonho não é
de modo algum inferior a outro de igual intensidade sentido na vida de vigília;
e os sonhos insistem com maior energia em seu direito de serem incluídos entre
nossas experiências anímicas reais no tocante a sua parte afetiva do que em
relação a seu conteúdo de representações. Em nosso estado de vigília, contudo,
não podemos de fato incluí-los dessa maneira, pois não podemos fazer nenhuma
avaliação psíquica de um afeto a menos que ele esteja vinculado a algum
material de representações. Quando o afeto e a idéia são incompatíveis em seu
caráter e intensidade, nosso juízo de vigília fica desorientado.
Tem sido sempre
motivo de surpresa que, nos sonhos, o conteúdo de representações não se faça
acompanhar pelas conseqüências afetivas que consideraríamos inevitáveis no
pensamento de vigília. Strümpell [1877, 27 e segs.] declarou que, nos sonhos,
as representações ficam despidas de seus valores psíquicos [ver em [1]]. Mas
não faltam, nos sonhos, exemplos de natureza contrária, onde uma intensa
expressão de afeto aparece ligada a um tema que não parece dar margem a
qualquer expressão dessa ordem. Num sonho, posso estar numa situação horrível,
perigosa e repulsiva sem sentir nenhum medo ou repulsa, ao passo que noutra
ocasião, pelo contrário, posso ficar apavorado ante algo inofensivo e encantado
com alguma coisa pueril.
Esse enigma
específico da vida onírica desaparece, talvez mais repentina e completamente do
que qualquer outro, tão logo passamos do conteúdo manifesto para o conteúdo
latente do sonho. Já não precisamos incomodar-nos com o enigma, visto que ele
não mais existe. A análise nos mostra que o material de representações
passou por deslocamentos e substituições, ao passo que os afetos permaneceram
inalterados. Não é de admirar que o material de representações que foi
modificado pela distorção onírica, já não seja compatível com o afeto, que é
retido sem modificação; tampouco resta qualquer coisa que cause surpresa depois
que a análise recoloca o material certo em sua posição anterior.
No caso de um
complexo psíquico que tenha ficado sob a influência da censura imposta pela
resistência, os afetos são o componente menos influenciado e o único que
nos pode dar um indício de como preencher os pensamentos que faltam. Isso é
observado ainda mais claramente nas psiconeuroses do que nos sonhos. Seus
afetos são sempre apropriados, ao menos em sua qualidade, embora devamos
descontar um aumento de sua intensidade devido a deslocamentos da atenção
neurótica. Quando um histérico fica surpreso por ter-se assustado com algo
banal ou quando um homem que sofre de obsessões fica surpreso ante as
auto-recriminações tão aflitivas que decorrem de um nada, ambos se equivocam,
pois consideram o conteúdo de representações - a banalidade ou o nada - como
sendo o essencial; e travam uma luta inglória, por tomarem esse conteúdo de
representações como o ponto de partida de sua atividade de pensamento. A
psicanálise pode colocá-los na trilha certa ao reconhecer o afeto como sendo,
pelo contrário, justificado, e ao procurar a representação que corresponde a
ele, mas que foi recalcada e trocada por um substituto. Uma premissa necessária
a tudo isso é que a descarga de afeto e o conteúdo de representações não
constituem uma unidade orgânica indissolúvel como a que estamos habituados a
atribuir-lhes, mas que essas duas entidades separadas podem estar meramente soldadas
e, desse modo, podem ser desligadas uma da outra pela análise. A interpretação
dos sonhos mostra que é esse efetivamente o caso.
Começarei por
apresentar um exemplo em que a análise explicou a aparente ausência de afeto
num caso em que o conteúdo de representações teria exigido sua liberação.
I
Ela viu três
leões num deserto, um dos quais estava rindo; mas não sentiu medo deles.
Depois, contudo, deve ter fugido deles, porque estava tentando subir numa
árvore; mas descobriu que sua prima, que era professora de francês, já estava
lá em cima, etc.
A análise trouxe
à tona o seguinte material. A causa precipitante indiferente do sonho foi uma
frase de sua composição de inglês: “A juba é o adorno do leão”. Seu pai usava
uma barba que lhe emoldurava o rosto como uma juba. Sua professora de inglês
chamava-se Srta. Lyons. Um conhecido lhe enviara as baladas de Loewe [a palavra
alemã para “leão”]. Esses, portanto, eram os três leões; por que deveria ela
temê-los? Ela lera uma história em que um negro, que havia incitado seus
companheiros à revolta, era caçado com cães e subia numa árvore para se salvar.
A sonhadora passou então, com extremo bom humor, a apresentar diversas
lembranças fragmentadas, tais como o conselho de como apanhar leões extraído do
Fliegend Blätter: “Pegue um deserto e passe-o por uma peneira, e o que
sobrar serão os leões.’’ E também a anedota muito divertida, mas não muito
conveniente, do oficial a quem perguntaram por que não se esforçava mais por
cair nas boas graças do chefe de seu departamento, e que respondeu que tentara
insinuar-se, mas seu superior já estava em cima. Todo o material
tornou-se inteligível quando se descobriu que a dama recebera, no dia do sonho,
a visita do superior de seu marido. Ele fora muito cortês com ela e lhe beijara
a mão, e ela não sentira o mínimo receio dele, embora fosse um “grande
figurão” [em alemão, “grosses Tier” = “grande animal”] e desempenhasse o
papel de um “leão da sociedade” na capital do país de onde ela provinha.
Assim, esse leão era como o de Sonho de uma Noite de Verão, que ocultava
a figura de Snug, o marceneiro; e o mesmo se aplica a todos os leões do sonho,
que não são temidos pela sonhadora.
II
Como meu segundo
exemplo, posso citar o sonho da jovem que viu o filhinho de sua irmã morto num
caixão [em [1] e [2]], mas que,posso agora acrescentar, não sentiu dor nem
pesar. Sabemos pela análise por que isso se deu. O sonho simplesmente
disfarçava o desejo dela de rever o homem por quem estava apaixonada, e seu
afeto tinha de estar de acordo com o desejo, e não com seu disfarce. Dessa
maneira, não havia razão para o pesar.
Em alguns
sonhos, o afeto pelo menos permanece em contato com o material de
representações que substituiu aquele a que o afeto se ligava originalmente.
Noutros, a dissolução do complexo foi mais longe. O afeto surge totalmente
desligado da idéia a que corresponde e é introduzido nalgum outro ponto do
sonho, onde se ajusta à nova disposição dos elementos oníricos. A situação é
então similar à que encontramos no caso dos atos de julgamento nos sonhos [em
[1]] Quando se extrai uma conclusão importante nos pensamentos oníricos, também
o sonho contém uma; mas a conclusão no sonho pode ser deslocada para um
material inteiramente diferente. Não raro, esse deslocamento segue o princípio
da antítese.
Esta última
possibilidade é exemplificada no sonho seguinte, que submeti a uma análise
extremamente exaustiva.
III
Um castelo à
beira-mar; depois, já não ficava imediatamente junto ao mar, mas num estreito
canal que conduzia ao mar. O Governador era um Sr. P. Eu estava parado com ele
num grande salão de recepção - com três janelas em frente às quais se erguiam
cercas de rosas com a aparência de ameias numa fortaleza. Eu estava ligado à
guarnição como uma espécie de oficial de marinha voluntário. Temíamos a chegada
de vasos de guerra inimigos, pois estávamos em guerra. O Sr. P. tencionava
partir e me deu instruções sobre o que deveria ser feito se acontecesse o que
temíamos. Sua mulher inválida estava com os filhos no castelo ameaçado. Caso o
bombardeio começasse, o grande salão deveria ser evacuado. Ele respirou com
dificuldade e se virou para sair; eu o detive e lhe perguntei como iria
comunicar-me com ele em caso de necessidade. Ele acrescentou algo em resposta,
mas, imediatamente, caiu morto. Sem dúvida eu lhe impusera um esforço
desnecessário com minhas perguntas. Após sua morte, que não me causou maior
impressão, fiquei pensando se sua viúva continuaria no castelo, se eu deveria
comunicar a morte dele ao Alto Comando e se deveria assumir o comando do
castelo, como o seguinte na ordem hierárquica. Estava parado à janela,
observando osnavios que passavam. Eram navios mercantes que cruzavam
rapidamente as águas escuras, alguns deles com diversas chaminés e outros com
conveses abaulados (exatamente como os prédios da estação no sonho introdutório
- não relatado aqui). Então, meu irmão estava de pé a meu lado e ambos
olhávamos da janela para o canal. À visão de um navio, ficamos assustados e
exclamamos: “Aí vem o navio de guerra!” Mas constatou-se que eram apenas os
mesmos navios que eu já conhecia, retornando. Surgiu então um navio pequeno,
cortado ao meio de maneira cômica. Em seu convés, viam-se alguns objetos
curiosos em forma de xícara ou de caixa. Exclamamos a uma só voz: “É o navio do
desjejum!”
Os movimentos
rápidos dos navios, o azul profundo e escuro da água e a fumaça castanha das
chaminés - tudo se combinava para criar uma impressão tensa e sinistra.
Os locais do
sonho resultaram de uma junção de diversas viagens minhas ao Adriático (a
Miramare, Duino, Veneza e Aquiléia). Uma curta mas agradável viagem de Páscoa
que eu fizera a Aquiléia com meu irmão, algumas semanas antes do sonho, ainda
estava viva em minha memória. O sonho também
continha alusões à guerra naval entre os Estados Unidos e a Espanha e às
inquietações a que ela dera margem quanto ao destino de meus parentes na
América. Em dois pontos do sonho, havia afetos em questão. Em determinado
ponto, um afeto que seria previsível estava ausente: chamara-se expressamente a
atenção para o fato de que a morte do Governador não me causara nenhuma
impressão. Noutro ponto, quando pensei ver o vaso de guerra, fiquei assustado e
senti todas as sensações de medo enquanto dormia. Neste sonho bem construído,
os afetos foram distribuídos de tal maneira que se evitou qualquer contradição
marcante. Não havia razão para que eu ficasse assustado com a morte do
Governador e era bastante razoável que, como Comandante do Castelo, sentisse
medo à vista da belonave. A análise mostrou, porém, que o Sr. P. era apenas um
substituto para mim mesmo. (No sonho, eu era o substituto dele.)
Era eu o Governador que morria subitamente. Os pensamentos oníricos
versavam sobre o futuro de minha família após minha morte prematura. Era este o
único pensamento aflitivo entre os pensamentos oníricos, e deve ter sido dele
que o medo foi desligado e vinculado, no sonho, à visão do navio de guerra.Por
outro lado, a análise revelou que a região dos pensamentos oníricos de onde foi
retirado o vaso de guerra estava repleta das mais alegres recordações. Fora um
ano antes, em Veneza, e num dia magicamente belo, estávamos à janela de nosso
quarto em frente a Riva degli Schiavoni, olhando para a lagoa azul onde,
naquele dia, havia mais movimento do que de hábito. Esperava-se por navios
ingleses que teriam uma cerimônia de recepção. De repente, minha mulher gritou,
alegre como uma criança: “Aí vem o navio de guerra inglês!” No sonho,
fiquei assustado com essas mesmas palavras. (Vemos mais uma vez que os ditos no
sonho decorrem de ditos na vida real [Ver em [1]]; mostrarei em breve que o
elemento “inglês” na exclamação de minha mulher tampouco escapou ao trabalho do
sonho.) Aqui, portanto, no processo de transformar os pensamentos oníricos no
conteúdo manifesto do sonho, transformei a alegria em medo, e basta-me apenas
sugerir que essa transformação, ela própria, estava dando expressão a uma parte
do conteúdo onírico latente. Este exemplo prova, contudo, que o trabalho do
sonho é livre para desligar um afeto de suas conexões nos pensamentos oníricos
e introduzi-lo em qualquer ponto que escolher no sonho manifesto.
Aproveito esta
oportunidade para fazer uma análise algo detalhada do “navio do desjejum”, cujo
aparecimento no sonho deu uma conclusão tão absurda a uma situação que, até
ali, mantivera-se num nível racional. Quando, posteriormente, reparei com mais
exatidão nesse objeto onírico, ocorreu-me que ele era preto e que, devido ao
fato de estar cortado em sua parte mais larga, no meio, tinha grande
semelhança, nessa extremidade, com uma classe de objetos que haviam despertado
nosso interesse nos museus das cidades etruscas. Tratava-se de bandejas
retangulares de cerâmica preta, com duas alças, sobre as quais havia coisas
parecidas com xícaras de chá ou café, que não diferiam muito de um de nossos
modernos aparelhos de café. Em resposta a nossas indagações, soubemos
que aquilo era o “toilette” (conjunto de toalete) de uma dama etrusca,
com recipientes para cosméticos e pó-de-arroz, e havíamos comentado, por
brincadeira, que seria uma boa idéia levar um deles conosco para a dona da
casa. O objeto do sonho, por conseguinte, significava uma “toilette”
preta, isto é, um traje de luto, e fazia referência direta a uma morte. A outra
extremidade do objeto onírico fez-me lembrar dos barcos fúnebres em que,
nos tempos primitivos, os cadáveres eramcolocados e entregues ao mar como
sepultura. Isso levou ao ponto que explicava por que os barcos retornavam no
sonho:
Still, auf gerettetem Boot, treibt in den Hafen
der Greis.
Era o retorno
após um naufrágio [“Schiffbruch”, literalmente, “quebra do navio”] - o
navio do desjejum estava quebrado ao meio. Mas qual seria a origem do nome do
navio “do desjejum”? Era aqui que entrava a palavra ‘’inglês’’, que sobrara dos
navios de guerra. A palavra inglesa ‘’breakfast’’. [‘’desjejum’’] significa ‘’quebra
do jejum’’. A “quebra” relacionava-se, mais uma vez, com o naufrágio [“quebra
do navio”], e o jejum estava ligado ao traje ou toilette preto.
Mas apenas o nome
navio do desjejum é que foi uma nova construção do sonho. A coisa existia e me
fizera lembrar de uma das mais agradáveis partes de minha última viagem.
Desconfiando da comida que seria oferecida em Aquiléia, tínhamos levado
provisões conosco de Gorizia e comprado uma garrafa de excelente vinho ístrio
em Aquiléia. E, enquanto o pequeno vapor singrava lentamente pelo “Canale
delle Mee”, atravessando a lagoa deserta até Grado, nós, que éramos os
únicos passageiros, comemos nosso desjejum no convés em excelente estado de
espírito, e raramente houve um que nos soubesse melhor. Esse, portanto, era o “navio
do desjejum”, e foi precisamente por trás dessa lembrança da mais festiva
joie de vivre que o sonho ocultou os mais sombrios pensamentos sobre um
futuro desconhecido e sinistro. [1]
O desligamento
entre os fatos e o material de representações que os gerou é a coisa mais
notável que lhes ocorre durante a formação dos sonhos; mas não é a única nem a
mais essencial alteração por eles sofrida no percurso dos pensamentos oníricos
para o sonho manifesto. Se compararmos os afetos dos pensamentos oníricos com
os do sonho, uma coisa logo ficará clara. Sempre que há um afeto no sonho, ele
também é encontrado nos pensamentos oníricos. Mas o inverso não é verdadeiro. O
sonho é, em geral, mais pobre de afetos que o material psíquico de cuja
manipulação ele proveio. Quando reconstruo os pensamentos oníricos,
habitualmente encontro neles os maisintensos impulsos psíquicos esforçando-se
por se fazerem sentir e lutando, em geral, contra outros que lhes são
nitidamente opostos. Quando, em seguida, torno a me voltar para o sonho, não é
raro ele parecer descolorido e sem qualquer tom afetivo mais intenso. O
trabalho do sonho reduziu ao nível do indiferente não apenas o conteúdo, mas,
amiúde, também o tom afetivo de meus pensamentos. Poder-se-ia dizer que o
trabalho do sonho acarreta uma supressão dos afetos. Tomemos, por
exemplo, o sonho da monografia de botânica [em [1]]. Os pensamentos a ele
correspondentes consistiam num apelo apaixonadamente agitado em prol de minha
liberdade de agir como escolhesse e de dirigir minha vida como a mim, e apenas
a mim, parecesse certo. O sonho deles surgido tem um toque de indiferença: “Eu
escrevera uma monografia; ela estava diante de mim; continha pranchas
coloridas; plantas secas acompanhavam cada exemplar”. Isso faz lembrar a paz
que desce sobre um campo de batalha recoberto de cadáveres; não resta nenhum
traço da luta que nele se travou.
As coisas podem
ser diferentes; vívidas manifestações de afeto podem introduzir-se no próprio
sonho. Por ora, no entanto, vou deter-me no fato incontestável de que um grande
número de sonhos parece ser indiferente, ao passo que nunca é possível penetrar
nos pensamentos oníricos sem ficar profundamente emocionado.
Não se pode
fornecer aqui nenhuma explicação teórica completa dessa supressão do afeto no
decorrer do trabalho do sonho. Ela precisaria ser precedida de uma investigação
extremamente minuciosa da teoria dos afetos e do mecanismo do recalcamento.
[Ver em [1]]. Permitir-me-ei apenas uma referência a dois pontos. Sou
compelido - por outras razões - a retratar a liberação dos afetos como um
processo centrífugo dirigido para o interior do corpo e análogo aos processos
de inervação motora e secretória. Ora, assim como, no estado de sono, o
envio de impulsos motores em direção ao mundo externo parece ficar suspenso,
também é possível que a convocação centrífuga de afetos pelo pensamento
inconsciente se torne mais difícil durante o sono. Nesse caso, os impulsos
afetivos sobrevindos no decurso dos pensamentos oníricos seriam, por sua própria
natureza, impulsos fracos, e conseqüentemente, os que penetrassem no sonho
seriam não menos fracos.Segundo este ponto de vista, portanto, a “supressão do
afeto” não seria, de maneira alguma, conseqüência do trabalho do sonho, mas
resultaria do estado de sono. Isso pode ser verdade, mas não a verdade inteira.
Precisamos também ter em mente que qualquer sonho relativamente complexo mostra
ser uma solução de compromisso produzida por um conflito entre forças
psíquicas. Por um lado, os pensamentos que formam o desejo são obrigados a
lutar contra a oposição de uma instância censora e, por outro, vimos com
freqüência que, no próprio pensamento inconsciente, toda cadeia de idéias está
atrelada a seu oposto contraditório. Uma vez que todas essas cadeias de idéias
são passíveis de afeto, dificilmente estaremos errados, no todo, se encararmos
a supressão do afeto como uma conseqüência da inibição que esses contrários
exercem uns sobre os outros e que a censura exerce sobre as pulsões por ela
suprimidas. A inibição do afeto, por conseguinte, deve ser considerada como
a segunda conseqüência da censura dos sonhos, tal como a distorção onírica é
sua primeira conseqüência.
Darei aqui como
exemplo um sonho em que o colorido afetivo indiferente do conteúdo pode ser
explicado pela antítese entre os pensamentos oníricos. Trata-se de um sonho
curto, que encherá de repulsa todos os leitores.
IV
Uma colina,
sobre a qual havia algo como uma privada ao ar livre: um assento muito comprido
com um grande buraco em sua extremidade. A borda traseira estava densamente
coberta de pequenos montes de fezes de todos os tamanhos e graus de frescura.
Havia arbustos por trás do assento. Urinei no assento; um longo filete de urina
lavou e limpou tudo; os montes de fezes desprenderam-se facilmente e caíram na
abertura. Era como se, no final, ainda restassem alguns.
Por que não
senti repugnância durante esse sonho?
Porque, como a
análise mostrou, os mais prazerosos e gratificantes pensamentos contribuíram
para promovê-lo. O que me ocorreu de imediato na análise foram as estrebarias
de Augias, limpas por Hércules. Esse Hércules era eu. A colina e os arbustos
vinham de Aussee, onde estavam meus filhos na ocasião. Eu havia descoberto a
etiologia infantil das neuroses e, assim, salvara meus próprios filhos da
doença. O assento (exceto, naturalmente, pelo buraco) era uma cópia exata de um
móvel que fora presenteado por uma paciente agradecida. Desse modo, lembrava-me
do quanto meus pacientes me respeitavam. De fato, até mesmo o museu de
excremento humano podiareceber uma interpretação capaz de encher-me o coração
de júbilo. Por mais que me pudesse repugnar na realidade, ele era, no sonho,
uma reminiscência das belas terras da Itália, onde, como todos sabemos, os
banheiros das cidades pequenas são equipados exatamente dessa maneira. O jorro
de urina que limpou tudo era um sinal inequívoco de grandeza. Era assim que
Gulliver havia extinguido o grande incêndio de Lilliput - embora,
incidentalmente, isso lhe tivesse granjeado o desfavor da minúscula rainha. Mas
também Gargantua, o super-homem de Rabelais, vingara-se dos parisienses do
mesmo modo, sentando-se escarranchado sobre a Notre Dame e dirigindo seu jato
de urina para a cidade. Ainda na noite anterior, antes de dormir, eu estivera
folheando as ilustrações de Garnier para Rabelais. E, estranhamente, ali estava
outra prova de que era eu o super-homem. A plataforma de Notre Dame era meu
recanto favorito em Paris; todas as tardes livres, eu costumava subir as torres
da igreja e por lá ficar, entre os monstros e os demônios. O fato de todas
as fezes desaparecerem tão depressa sob o jato fez-me lembrar o lema “Afflavit
et dissipati sunt”, que um dia tencionei colocar como epígrafe de um
capítulo sobre a terapia da histeria.
E agora, vamos à
verdadeira causa excitante do sonho. Fora uma tarde quente de verão e, à noite,
eu havia proferido minha palestra sobre a ligação entre a histeria e as
perversões, e tudo o que tivera a dizer desagradara-me intensamente e me
parecera completamente desprovido de qualquer valor. Estava cansado e não
sentia nenhum vestígio de prazer em meu difícil trabalho; ansiava por estar
longe de toda aquela escavação da sujeira humana, para poder reunir-me a meus
filhos e depois visitar as belezas da Itália. Nesse estado de espírito, fui da
sala de conferências para um café, onde fiz um modesto lanche ao ar livre, uma
vez que não tinha apetite. Um de meus ouvintes, entretanto, foi comigo e me
pediu licença para sentar-se a meu lado enquanto eu tomava meu café e me
engasgava com um bolinho. Começou a lisonjear-me, dizendo o quanto havia
aprendido comigo, como agora via tudo com novos olhos e como eu havia limpado
as estrebarias augíacas dos erros e preconceitos em minha teoria das neuroses.
Disse-me, em resumo, que eu era realmente um grande homem. Meu estado de ânimo
não combinava com esse cântico de louvor; lutei contra meu sentimento de
repugnância, fui para casa cedo para fugir dele e, antes de me deitar, folheei
as páginas de Rabelais e li um dos contos de Conrad Ferdinand Meyer, “Die
Leiden eines Knaben” (“Os Infortúnios de um Menino”).
Foi esse o
material de que emergiu o sonho. O conto de Meyer trouxe, além disso, uma
rememoração de cenas de minha infância. (Cf. o último episódio do sonho sobre o
Conde Thun [ ver em [1]]). O humor diurno de irritação e asco persistiu no
sonho, na medida em que foi capaz de suprir quase todo o material de seu
conteúdo manifesto. Durante a noite, entretanto, emergiu um estado de espírito
contrário, de poderosa e até exagerada auto-afirmação, que deslocou o anterior.
O conteúdo do sonho tinha de descobrir uma forma que lhe permitisse expressar
no mesmo material tanto os delírios de inferioridade quanto a megalomania. O
compromisso entre eles produziu um conteúdo onírico ambíguo, mas também,
resultou num colorido afetivo indiferente, devido à inibição mútua desses
impulsos contrários.
De acordo com a
teoria da realização de desejo, esse sonho não se teria tornado possível se a
cadeia antitética de idéias megalomaníacas (que, é verdade, fora suprimida, mas
tinha um colorido prazeroso) não houvesse surgido além da sensação de nojo.
Porque o que é aflitivo não pode ser representado num sonho; nada que seja
aflitivo em nossos pensamentos oníricos consegue penetrar à força num sonho, a
menos que, ao mesmo tempo, empreste um disfarce à realização de um desejo [Ver
em [1]].
Existe ainda
outra maneira alternativa pela qual o trabalho do sonho pode lidar com os
afetos nos pensamentos oníricos, além de permitir-lhes passagem ou reduzi-los a
nada. Ele pode transformá-los em seu oposto. Já travamos conhecimento
com a regra interpretativa segundo a qual todo elemento de um sonho, para fins
de interpretação, pode representar seu oposto com tanta facilidade quanto a si
próprio. [Ver em [1].] Nunca podemos dizer de antemão se representa um ou
outro; somente o contexto pode decidir. Uma suspeita dessa verdade
evidentemente penetrou na consciência popular: os “livros de sonhos”, com
grande freqüência, adotam o princípio dos contrários em sua interpretação dos
sonhos. Essa transformação de uma coisa em seu oposto é possibilitada pela
íntima cadeia associativa que vincula a representação de uma coisa* a seu
oposto em nossos pensamentos. Como qualquer outro tipo de deslocamento, ela
pode atender aos propósitos da censura, mas é também, com freqüência, um
produto da realização de desejo, pois esta não consiste em nada além da
substituição de uma coisadesagradável por seu oposto. Tal como as
representações de coisa podem aparecer nos sonhos transformadas em seu oposto,
o mesmo pode acontecer com os afetos ligados aos pensamentos oníricos; e parece
provável que essa inversão do afeto seja ocasionada, em regra geral, pela
censura onírica. Na vida social que nos proporcionou nossa analogia familiar
com a censura onírica, também fazemos uso da supressão e da inversão do afeto,
principalmente para fins de dissimulação. Se estou falando com alguém a quem
sou obrigado a tratar com consideração, embora querendo dizer-lhe algo hostil,
é quase mais importante que eu oculte dele qualquer expressão de meu afeto
do que abrande a forma verbal de meus pensamentos. Se me dirigisse a ele com
palavras que não fossem impolidas, mas as fizesse acompanhar por um olhar ou
gesto de ódio e desprezo, o efeito que eu produziria nele não seria muito
diferente do que se lhe lançasse em rosto meu desprezo, abertamente. Por
conseguinte, a censura me ordena, acima de tudo, a suprimir meus afetos; e, se
eu for um mestre da dissimulação, fingirei o afeto oposto - sorrirei
quando estiver zangado e parecerei afetuoso quando desejar destruir.
Já nos deparamos
com um excelente exemplo desse tipo de inversão de afeto, efetuada num sonho a
serviço da censura onírica. No sonho com “meu tio da barba amarela” [em [1]],
senti extrema afeição por meu amigo R., enquanto e porque os pensamentos
oníricos o chamavam de simplório. Foi desse exemplo de inversão do afeto que
derivamos nossa primeira pista da existência de uma censura do sonho. Tampouco
é necessário presumir, nesses casos, que o trabalho do sonho crie tais afetos
contrários a partir do nada; em geral, ele já os encontra à mão no material dos
pensamentos oníricos e simplesmente os intensifica com a força psíquica
originária dos motivos de defesa, até que eles possam predominar para fins de
formação do sonho. No sonho com meu tio que acabei de mencionar, o carinhoso
afeto antitético provavelmente surgiu de uma fonte infantil (como foi sugerido
pela última parte do sonho), porque a relação tio-sobrinho, devido à natureza
peculiar das mais remotas experiências de minha infância (cf. análise em [1] [e
adiante, em [1]]), tornara-se a fonte de todas as minhas amizades e todos os
meus ódios.
Um excelente
exemplo desse tipo de inversão do afeto [1] é encontrado num sonho
registrado por Ferenczi (1916): “Um cavalheiro idoso foi acordado certa noite
por sua mulher, que ficara alarmada porque ele estava gargalhando muito alto e
desenfreadamente em seu sono. Mais tarde, ohomem relatou ter tido o seguinte
sonho: Estava deitado na cama e um cavalheiro que me era conhecido entrou no
quarto; tentei acender a luz mas não pude fazê-lo: tentei de novo, repetidas
vezes, mas em vão. Aí, minha mulher saiu da cama para me ajudar, mas também não
conseguiu. No entanto, como se sentisse embaraçada diante do cavalheiro por
estar ‘en negligé’ acabou desistindo e voltou para a cama. Tudo isso foi tão
engraçado que não pude deixar de rir às gargalhadas. Minha mulher perguntou:
“Por que você está rindo? Por que está rindo?”, mas apenas continuei rindo até
acordar. - No dia seguinte, o cavalheiro estava muito deprimido e com dor
de cabeça; todo aquele riso o havia perturbado, pensou.
“O sonho parece
menos divertido quando é considerado analiticamente. O ‘cavalheiro que lhe
era conhecido’ e que entrara no quarto era, nos pensamentos oníricos latentes,
a representação da Morte como o ‘grande Desconhecido’ - uma imagem que lhe
viera à mente durante o dia anterior. O idoso cavalheiro, que sofria de
arteriosclerose, tivera boas razões, na véspera, para pensar em morrer. A
gargalhada desenfreada tomou o lugar dos soluços e lágrimas ante a idéia de que
deveria morrer. Era a luz da vida que ele já não conseguia acender. Esse
pensamento sombrio poderia ter estado vinculado a tentativas de cópula que ele
fizera pouco antes, mas que haviam falhado apesar da ajuda de sua mulher en
negligé. Ele se apercebeu de que já estava descendo a serra. O trabalho do
sonho conseguiu transformar a idéia sombria da impotência e da morte numa cena
cômica, e seus soluços, em gargalhadas.”
Há uma classe de
sonhos que tem um direito especial a ser descrita como “sonhos hipócritas”, e
que submete a uma dura prova a teoria da realização de desejo. [1] Minha
atenção foi despertada por eles quando a Dra. M. Hilferding apresentou o
seguinte relato de um sonho de Peter Rosegger para debate na Sociedade
Psicanalítica de Viena.
Escreve Rosegger
em sua história “Fremd gemacht!”: “Em geral, costumo dormir bem,
mas foram muitas as noites em que perdi meu repouso - é que, juntamente com
minha modesta carreira de estudioso e homem deletras, por muitos anos arrastei
comigo, como um fantasma do qual não podia libertar-me, a sombra de uma vida de
alfaiate.
“Não é que
durante o dia eu refletisse com muita freqüência ou intensidade sobre meu
passado. Quem já se despira da pele de um filisteu e estava procurando
conquistar a Terra e o Céu tinha outras coisas a fazer. E nem tampouco, quando
jovem e impetuoso, eu dera a menor atenção a meus sonhos noturnos. Só mais
tarde, quando me veio o hábito de refletir sobre tudo, ou quando o filisteu em
mim começou a despertar um tantinho, foi que me perguntei por que era que, toda
vez que sonhava, eu era sempre um aprendiz de alfaiate e assim passava tanto
tempo com meu mestre e trabalhava de graça em sua oficina. Sabia perfeitamente,
enquanto me sentava assim a seu lado, costurando e passando a ferro, que meu
lugar certo já não era ali e que, como cidadão, eu tinha outras coisas com que
me ocupar. Mas estava sempre em férias, sempre em férias de verão, e era assim
que ficava sentado ao lado de meu mestre, como seu auxiliar. Isso muitas vezes
me aborrecia, e eu ficava triste com a perda de tempo em que bem poderia ter
encontrado coisas melhores e mais úteis para fazer. Vez por outra, quando algo
saía errado, tinha de suportar uma repreensão de meu mestre, embora nunca se
falasse em salário. Muitas vezes, sentado ali, com as costas vergadas na
oficina escura, pensei em dar-lhe aviso-prévio e me demitir. Um dia, cheguei
até a fazê-lo, mas meu mestre não prestou a menor atenção, e cedo lá estava
sentado de novo a seu lado, cosendo.
“Depois dessas
jornadas tediosas, que alegria era acordar! E eu me determinara então que, se
esse sonho persistente voltasse a surgir, eu o afastaria de mim energicamente e
exclamaria: ‘Isso não passa de conversa fiada, estou deitado na cama e quero
dormir…’ Mas, na noite seguinte, lá estava eu de novo sentado na oficina do
alfaiate.
“E assim
continuou por anos, com sinistra regularidade. Ora, um dia aconteceu estarmos
trabalhando, meu mestre e eu, na casa de Alpelhofer (o camponês em cuja casa eu
trabalhara quando me iniciei como aprendiz) e meu mestre se mostrou
particularmente insatisfeito com meu trabalho: ‘Gostaria de saber onde é que
você está com a cabeça’, disse-me, e me lançou um olhar sombrio. A coisa mais
sensata a fazer, pensei, seria levantar-me e dizer que só estava com ele para
agradá-lo, e depois sair. Mas não o fiz. Não formulei nenhuma objeção quando
meu mestre tomou um aprendiz e me ordenou que lhe desse espaço no banco.
Mudei-me para o canto e continuei a coser. No mesmo dia, outro diarista foi
também contratado, um hipócrita choramingão - era natural da Boêmia - que havia
trabalhado em nossa alfaiataria dezenove anos antes e que um dia caíra no
riacho, ao voltar daestalagem. Quando procurei um assento, não havia mais lugar.
Voltei-me para meu mestre interrogativamente e ele me disse ‘Você não tem dotes
de alfaiate, pode ir! Está despedido!’ Diante disso, meu susto foi tão
esmagador que acordei.
“A luz cinzenta
da manhã entrava em pálidos clarões pelas janelas sem cortinas de minha casa,
tão conhecida. As obras de arte me rodeavam; ali, em minha bela estante,
estavam o eterno Homero, o gigantesco Dante, o incomparável Shakespeare, o
glorioso Goethe - todos os magníficos imortais. Do quarto ao lado vinham as
vozes claras e juvenis das crianças que acordavam, brincando com sua mãe.
Senti-me como se tivesse reencontrado aquela vida espiritual idilicamente doce,
pacífica e poética em que tantas vezes e de maneira tão profunda eu
experimentara uma meditativa felicidade humana. Contudo, irritava-me que não me
tivesse antecipado a meu mestre para dar-lhe o aviso-prévio, mas tivesse sido
despedido por ele.
“E quão atônito
fiquei! Desde a noite em que meu mestre me despediu, gozei paz; não sonhei mais
com os tempos de alfaiate que estavam tão distantes em meu passado - aqueles
tempos que tinham sido tão alegres em sua despretensão, mas haviam projetado
uma sombra tão extensa sobre meus anos posteriores.”
Nessa série de
sonhos de um escritor que fora aprendiz de alfaiate em sua mocidade, é difícil
reconhecer o domínio da realização de desejo. Todo o prazer do sonhador estava
em sua existência diurna, ao passo que, em seus sonhos, era ainda perseguido
pela sombra de uma vida infeliz da qual enfim escapara. Alguns sonhos meus de
natureza semelhante permitiram-me lançar um pouco de luz sobre o assunto.
Quando médico recém-formado, trabalhei por muito tempo no Instituto de Química
sem nunca me tornar competente nas habilidades que essa ciência exige; e por
essa razão, em minha vida de vigília, jamais gostei de pensar nesse episódio
estéril e realmente humilhante de minha aprendizagem. Por outro lado, tenho um
sonho regularmente recorrente de trabalhar no laboratório, fazer análises e ter
diversas experiências ali. Esses sonhos são tão desagradáveis quanto os sonhos
com exames e nunca são muito nítidos. Enquanto interpretava um deles, minha
atenção acabou sendo atraída pela palavra “análise‘’, que me forneceu uma chave
para sua compreensão. Desde aqueles tempos, tornei-me um “analista”, e hoje
efetuo análises altamente elogiadas, embora seja verdade que se trata de
“psico-análises”. Agora ficou claro para mim: se passei a sentir orgulho de
fazer esse tipo de análises em minha vida diurna e me sinto inclinado a
vangloriar-me de ter alcançado tanto sucesso, meus sonhos relembram-me durante
a noite aquelas outras análisesmalsucedidas de que não tenho razão alguma para
me orgulhar. São os sonhos de punição de um parvenu, como os sonhos do
aprendiz de alfaiate que se transformara num famoso escritor. Mas como é
possível que um sonho, no conflito entre o orgulho de um parvenu e sua
autocrítica, tome o partido desta e escolha como seu conteúdo uma advertência
sensata, em vez de uma realização de desejo proibida? Como já disse, a resposta
a essa pergunta levanta dificuldades. Podemos concluir que a base do sonho
formou-se, em primeiro lugar, de uma fantasia exageradamente ambiciosa, mas que
os pensamentos humilhantes que jogaram água fria na fantasia penetraram no
sonho em vez dela. Convém lembrar que existem na mente impulsos masoquistas que
podem ser responsáveis por uma inversão como essa. Eu não faria objeção a que
essa classe de sonhos fosse distinguida dos “sonhos de realização de desejo”
sob o nome de “sonhos de punição”. Não encararia isso como algo que
implicasse qualquer restrição da teoria dos sonhos que propus até aqui; isso
não passaria de um expediente lingüístico para atender às dificuldades daqueles
que acham estranho que os opostos possam convergir. Mas um exame mais
atento de alguns desses sonhos traz algo mais à luz. Numa parte indistinta do
pano de fundo de um de meus sonhos com o laboratório, eu tinha uma idade que me
situava precisamente no ano mais sombrio e mais infrutífero de minha carreira
médica. Eu ainda estava sem emprego e não tinha idéia de como poderia ganhar a
vida: ao mesmo tempo, todavia, descobri repentinamente que tinha diante de mim
uma opção entre diversas mulheres com quem poderia casar-me! Portanto, eu era
jovem outra vez e, acima de tudo, ela era jovem outra vez - a mulher que
partilhou comigo todos esses anos difíceis. O instigador inconsciente do
sonho revelou-se, desse modo, como sendo um dos desejos que corroem
constantemente o homem que está envelhecendo. O conflito que se travava em
outros níveis da psique entre a vaidade e a autocrítica determinara, é verdade,
o conteúdo do sonho, mas só o desejo mais profundamente enraizado de ser jovem
é que possibilitou a esse conflito aparecer como um sonho. Mesmo quando
acordados, às vezes dizemos a nós mesmos: “As coisas vão muito bem agora e a
situação era difícil nos velhos tempos; mesmo assim era uma beleza - eu era
ainda jovem”.
Outro grupo de
sonhos, [1] que muitas vezes encontrei em mim mesmo e reconheci como
hipócritas, tem como conteúdo uma reconciliação com pessoas com quem as
relações de amizade cessaram há muito tempo. Nesses casos, a análise
habitualmente revela alguma situação que poderia instar-se a abandonar os
últimos remanescentes de consideração por esses ex-amigos e tratá-los como
estranhos ou inimigos. O sonho, porém, prefere retratar a relação oposta. [Ver
em [1].]
Ao formarmos
qualquer juízo sobre os sonhos relatados pelos escritores, é razoável supormos
que eles tenham omitido do relato pormenores do conteúdo do sonho que
considerassem dispensáveis ou perturbadores. Seus sonhos, nesse caso,
levantarão problemas que seriam rapidamente resolvidos se seu conteúdo fosse
comunicado na íntegra.
Otto Rank me fez
notar que o conto de fadas de Grimm sobre “O Pequeno Alfaiate, ou Sete de um só
Golpe” contém um sonho muito semelhante de um parvenu. O alfaiate, que
se tornara herói e genro do Rei, sonha uma noite com seu antigo ofício, deitado
ao lado da esposa, a Princesa. Ela, ficando desconfiada, põe guardas armados na
noite seguinte para escutar as palavras do sonhador e prendê-lo. Mas o
alfaiatezinho é advertido e providencia para que seu sonho seja corrigido.
O complicado
processo de eliminação, diminuição e inversão por meio do qual os afetos dos
pensamentos oníricos acabam por transformar-se nos dos sonhos pode ser
satisfatoriamente compreendido em sínteses apropriadas de sonhos que tenham
sido completamente analisados. Citarei mais alguns exemplos de afetos nos
sonhos, que mostram realizadas algumas das possibilidades que enumerei.
V
Se retornarmos ao
sonho sobre a estranha tarefa de que me encarregou o velho Brücke, de fazer uma
dissecação de minha própria pélvis [em [1] será lembrado que, no próprio sonho,
faltou-me o sentimento de horror [“Grauen”] que lhe seria apropriado.
Ora, isso foi uma realização de desejo em mais de um sentido. A dissecação
significava a auto-análise que eu estava realizando, por assim dizer, com a
publicação deste livro sobre os sonhos - um processo que me fora tão penoso na
realidade que adiei por mais de um ano a impressão do manuscrito já concluído.
Surgiu então um desejo de que eu pudesse vencer esse sentimento de aversão; daí
eu não ter tido nenhum sentimento de horror [“Grauen”] no sonho. Mas
também me agradaria muito não ter de ficar grisalho. “Grauen”, no outro
sentido do termo. Eu já estava ficando bastante grisalho, e os fios cor de gris
em meus cabelos eram outro lembrete de que não deveria demorar-me mais. E, como
vimos, a idéia de que teria de deixar a cargo de meus filhos a consecução do
objetivo de minha difícil jornada impôs sua representação no final do sonho.
Consideremos
agora os dois sonhos em que uma expressão de satisfação foi transposta para o
momento seguinte ao despertar. No primeiro caso, a razão fornecida para a
satisfação era a expectativa de que eu agora descobriria o que significava “Já
sonhei com isso antes”, ao passo que a satisfação realmente se referia ao
nascimento de meus primeiros filhos [ver
[1]]. No outro caso, a razão aparente era minha convicção de que algo
que fora “prognosticado” estava agora se tornando realidade, quando a
referência real era semelhante à do sonho anterior: tratava-se da satisfação
com que acolhi o nascimento de meu segundo filho [em [1]]. Aqui, os afetos que
dominavam os pensamentos oníricos persistiram nos sonhos, mas é seguro afirmar
que em nenhum sonho as coisas podem ser tão simples assim. Se
penetrarmos um pouco mais a fundo nas duas análises, descobriremos que essa
satisfação que havia escapado à censura recebera um acréscimo de outra fonte.
Essa outra fonte tinha motivos para temer a censura e seu afeto teria
indubitavelmente despertado oposição, se ela não se tivesse escudado no afeto
similar e legítimo e de satisfação, proveniente da fonte permissível, e se
insinuado, por assim dizer, sob sua asa.
Infelizmente,
não posso demonstrar isso no caso efetivo desses sonhos, mas um exemplo
extraído de outra esfera da vida deixará claro o que quero dizer. Suponhamos o
caso seguinte: há uma pessoa de minhas relações a quem odeio, de maneira que
tenho uma viva inclinação a ficar contente quando alguma coisa adversa lhe
acontece. Entretanto, o lado moral de minha natureza não faz concessões a esse
impulso. Não me atrevo a expressar o desejo de que ela seja infeliz e, caso ela
depare com algum infortúnio imerecido, suprimo minha satisfação diante disso e
me imponhomanifestações e pensamentos de pesar. Todos já devem ter passado por
essa situação numa ou noutra época. Mas sucede então que a pessoa odiada, por
alguma transgressão sua, envolve-se num merecido dissabor; quando isso
acontece, posso dar rédea solta à minha satisfação por ela ter recebido uma
punição justa e, nisto, estou de acordo com muitas outras pessoas que são
imparciais. Posso observar, contudo, que minha satisfação parece mais intensa
que a dessas outras pessoas; ela recebeu um acréscimo da fonte de meu ódio, até
então impedida de manifestar seu afeto, mas que, com a alteração das
circunstâncias, já não é mais obstada em fazê-lo. Na vida social, isso
geralmente ocorre sempre que as pessoas antipáticas ou os membros de uma
minoria impopular se mostram sem razão. Sua punição não costuma corresponder a
seus erros, mas a seu erros acrescidos da má vontade dirigida contra
eles, a qual antes não tivera nenhuma conseqüência. Sem dúvida é verdade que
aqueles que infligem o castigo estão com isso cometendo uma injustiça; mas
ficam impedidos de percebê-la pela satisfação resultante da retirada de uma
supressão que por muito tempo fora mantida dentro deles. Em casos como esse, o
afeto é justificado em sua qualidade, mas não em sua quantidade,
e a autocrítica tranqüilizada quanto ao primeiro aspecto tende, com extrema
facilidade, a se descuidar do exame do segundo. Uma vez aberta uma porta, é
fácil irromperem por ela mais pessoas do que originalmente se tencionava deixar
entrar.
Um traço
marcante das pessoas neuróticas - o fato de uma causa passível de liberar um
afeto tender a produzir nelas um resultado qualitativamente justificado, mas
quantitativamente excessivo - pode ser explicado dentro dessa mesma linha, na
medida em que admita alguma explicação psicológica. O excesso provém de fontes
de afeto que antes permaneceram inconscientes e suprimidas. Essas fontes
conseguem estabelecer um elo associativo com a causa liberadora real, e
a desejada facilitação [Bahnung] da liberação de seu próprio afeto é
aberta pela outra fonte de afeto, que é inobjetável e legítima. Nossa
atenção é assim atraída para o fato de que, ao considerarmos as instâncias
suprimidas e supressoras, não devemos encarar sua relação como sendo exclusivamente
de inibição recíproca. Igual atenção deve ser dada aos casos em que as duas
instâncias provocam um efeito patológico, atuando lado a lado e se
intensificando mutuamente.
Apliquemos agora
essas indicações sobre os mecanismos psíquicos a um entendimento das expressões
de afeto nos sonhos. Uma satisfação que seja exibida num sonho e possa,
é claro, ter seu lugar exato imediatamente apontado nos pensamentos oníricos
nem sempre é completamente elucidada apenas por essa referência. Em geral, é
necessário buscar outra fonte delanos pensamentos do sonho, uma fonte que
esteja sob a pressão da censura. Em resultado dessa pressão, essa fonte
normalmente produziria, não satisfação, mas o afeto contrário. Graças à
presença da primeira fonte do afeto, porém, a segunda fonte fica habilitada a
subtrair do recalque seu afeto de satisfação e a permitir que ele funcione como
uma intensificação da satisfação da primeira fonte. Assim, parece que os afetos
nos sonhos são alimentados por uma confluência de diversas fontes e
sobredeterminados em sua referência ao material dos pensamentos oníricos. Durante
o trabalho do sonho, as fontes de afeto passíveis de produzir o mesmo afeto
unem-se para gerá-lo.
Podemos obter
algum discernimento dessas complicações mediante a análise daquele belo
espécime de sonho cujo ponto central era formado pelas palavras “Non vixit”.
(Ver em [1] e segs.) Nesse sonho, externalizações de afeto de diversas
qualidades reuniram-se em dois pontos do conteúdo manifesto. Sentimentos hostis
e aflitivos - “dominado por estranhas emoções” foram as palavras utilizadas no
próprio sonho - superpuseram-se no ponto em que aniquilei meu oponente e amigo
com duas palavras. E de novo, ao final do sonho, fiquei extremamente satisfeito
e cheguei a aprovar a possibilidade, que na vida de vigília sabia ser absurda,
de existirem revenants que pudessem ser eliminados por um simples
desejo.
Ainda não
relatei a causa excitante do sonho. Foi de grande importância e levou a uma
compreensão profunda do mesmo. Eu recebera de meu amigo de Berlim, a quem me
referi como “Fl.” [Fliess], a notícia de que ele estava prestes a sofrer uma
operação e de que eu obteria novas informações sobre seu estado com alguns de
seus parentes em Viena. As primeiras notícias que recebi após a operação não
foram tranqüilizadoras e me deixaram inquieto. Eu preferiria muito ir ter com
ele pessoalmente, mas, exatamente nessa ocasião, estava acometido de uma
enfermidade dolorosa que transformava qualquer espécie de movimento numa
tortura para mim. Os pensamentos oníricos informaram-me então que eu temia pela
vida de meu amigo. Como era de meu conhecimento, sua única irmã, que nunca
cheguei a conhecer, tinha morrido muito jovem, após uma doença fulminante. (No
sonho, Fl. falou sobre sua irmã e disse que em três quartos de hora ela
estava morta.)Devo ter imaginado que a constituição dele não era muito
mais resistente que a de sua irmã, e que, depois de receber notícias muito
piores sobre ele, eu acabaria fazendo a viagem, afinal - e chegaria tarde
demais, pelo que nunca cessaria de me censurar. Essa recriminação por
chegar tarde demais tornou-se o ponto central do sonho, mas foi representada
por uma cena em que Brücke, o venerado professor de meus tempos de estudante, a
dirigia a mim com uma expressão terrível em seus olhos azuis. Logo se
evidenciará o que foi que fez a situação [referente a Fl.] transmudar-se nesses
moldes. A cena em si [com Brücke] não podia ser reproduzida pelo sonho na forma
como eu a vivenciara. A outra figura do sonho pôde conservar os olhos azuis,
mas o papel aniquilador foi atribuído a mim - uma inversão que, obviamente, foi
obra da realização de desejo. Meu desassossego a respeito da recuperação de meu
amigo, minhas autocensuras por não ir vê-lo, a vergonha que senti por isso - ele
tinha vindo a Viena (para ver-me) “discretamente” -, a necessidade
que eu tinha de me considerar desculpado por minha doença - tudo isso se
combinou para produzir a tormenta emocional que foi claramente percebida em meu
sono e que devastava essa região dos pensamentos oníricos.
Mas havia na
causa excitante do sonho outra coisa, que teve em mim um efeito inteiramente
oposto. Junto com as notícias desfavoráveis dos primeiros dias após a operação,
recebi a advertência de não discutir o assunto com ninguém. Senti-me ofendido
com isso, pois implicava uma desconfiança desnecessária de minha discrição.
Dava-me plena conta de que essas instruções não haviam partido de meu amigo e
se deviam à falta de tato ou ao excesso de zelo por parte do intermediário, mas
afetou-me de maneira muito desagradável essa censura velada, pois não era
inteiramente injustificada. Como todos sabemos, somente as censuras que têm
algum fundamento é que “colam”; só elas é que nos perturbam. O que tenho em
mente não se relaciona, é verdade, com esse amigo, mas com um período muito
anterior de minha vida. Naquela ocasião, causei problemas entre dois amigos
(ambos os quais haviam também decidido honrar-me com esse título) por dizer a
um deles, sem necessidade alguma, no decorrer da conversa, o que o outro havia
falado a seu respeito.
Também nessa
ocasião tinham-me feito censuras, e elas ainda estavam em minha memória. Um
dos dois amigos em questão era o Professor Fleischl; posso descrever o outro
por seu prenome “Josef” - que era também o de P., meu amigo e oponente no
sonho.
A recriminação
por eu ser incapaz de guardar um segredo foi atestada no sonho pelo elemento
“discreto” e pela pergunta de Fl. sobre quanto eu havia falado com P. sobre
suas coisas. Mas foi a intervenção dessa lembrança [de minha antiga
indiscrição e suas conseqüências] que transportou do presente para a época em
que trabalhei no laboratório de Brücke a recriminação contra mim por chegar
tarde demais. E, ao transformar a segunda pessoa da cena onírica de
aniquilamento num Josef, fiz com que essa cena representasse não apenas a
recriminação feita a mim por chegar tarde demais, mas também a recriminação,
muito mais intensamente recalcada, por eu ser incapaz de guardar um segredo.
Aqui, são excepcionalmente visíveis os processos de condensação e deslocamento
em ação no sonho, bem como suas razões de ser.
Minha ligeira
raiva, no presente, pela advertência que eu recebera de não deixar escapar nada
[sobre a doença de Fl.] recebeu reforços de fontes situadas nas profundezas de
minha mente, e assim se avolumou numa corrente de sentimentos hostis contra
pessoas de quem eu realmente gostava. A fonte desse reforço brotava de minha
infância. Já assinalei [em [1]] como minhas amizades calorosas, e também minhas
inimizades com contemporâneos, remontam a minhas relações da infância com um
sobrinho que era um ano mais velho que eu; como ele era superior a mim, como
cedo aprendi a me defender dele, como éramos amigos inseparáveis e como, de
acordo com o testemunho dos mais velhos, às vezes brigávamos um com outro e…
lhes fazíamos queixas um do outro. Todos os meus amigos têm sido, num certo
sentido, reencarnações dessa primeira figura que “früh sich einst dem trüben
Blick gezeigt”: têm sido revenants. Meu próprio sobrinhoreapareceu
em minha meninice e, nessa ocasião, representamos juntos os papéis de César e
Brutus. Minha vida afetiva sempre insistiu em que eu tivesse um amigo íntimo e
um inimigo odiado. Sempre me foi possível reabastecer-me de ambos, e não raro
essa situação ideal da infância se reproduziu tão completamente que amigo e
inimigo convergiram numa só pessoa - embora não, é claro, ambos ao mesmo tempo
ou com oscilações constantes, como talvez tenha acontecido em minha tenra
infância.
Não me proponho
discutir neste ponto como é que, nessas circunstâncias, uma oportunidade
recente de geração de um afeto pode retornar a uma situação infantil e ser
substituída por essa situação no que concerne à produção do afeto. [Ver em
[1].] Essa questão faz parte da psicologia do pensamento inconsciente e encontraria
lugar adequado numa elucidação psicológica das neuroses. Para fins da
interpretação dos sonhos, presumamos que surja ou seja construída na fantasia
uma lembrança da infância, mais ou menos com o seguinte conteúdo: as duas
crianças entraram em disputa por causa de certo objeto. (Qual era esse objeto é
uma questão que pode ficar em aberto, embora a lembrança ou pseudo-lembrança
tenha um objeto bastante específico em vista.) Cada uma delas alega ter chegado
antes da outra e, portanto, ter mais direito a ele. Vão às vias de fato e a
força prevalece sobre o direito. Pelas indicações do sonho, é possível que eu
mesmo soubesse que estava errado (“eu próprio notei o erro”). Dessa vez,
porém, fui o mais forte e continuei senhor do terreno. O vencido correu para
seu avô - meu pai - e queixou-se de mim; defendi-me com as palavras que conheço
pelo relato de meu pai: “Bati nele porque ele me bateu”. Essa lembrança, ou
mais provavelmente fantasia, que me veio à mente enquanto eu analisava o sonho
- sem outras indicações, eu mesmo não saberia dizer como1 - constituiu um
elemento intermediário nos pensamentos oníricos, que reuniu os afetos neles
desencadeados tal como um poço recebe a água que para ele flui. Desse ponto em
diante, os pensamentos oníricos seguiram mais ou menos esta linha: “É bem feito
de me tenha tido de me dar lugar. Por que tentou tirar a mim do meu lugar? Não
preciso de você; posso muito bem encontrar outra pessoa para brincar comigo”,
etc. Esses pensamentos penetraram então nas vias que levaram a sua
representação no sonho. Houve época em que tive de censurar meu amigo Josef
[P.] por uma atitude deste mesmo tipo: “Ôte-toi que je m’y mette!” Ele
seguira meus passos como demonstrador no laboratório de Brücke, mas a promoção
lá era lenta e tediosa. Nenhum dos dois assistentesde Brücke estava inclinado a
sair de seu lugar, e a juventude era impaciente. Meu amigo, que sabia não ter
esperança de viver muito e a quem nenhum laço de intimidade ligava seu superior
imediato, por vezes expressava em voz alta sua impaciência; e como o superior
[Fleischl] estava gravemente enfermo, o desejo de P. de vê-lo fora do caminho
talvez tivesse um sentido mais torpe que a simples esperança de promoção do
homem. Como não deixa de ser natural, alguns anos antes, eu próprio acalentara
um desejo ainda mais vivo de preencher uma vaga. Onde quer que haja hierarquia
e promoção, está aberto o caminho para desejos que pedem supressão. O
Príncipe Hal, de Shakespeare, mesmo junto ao leito de seu pai enfermo, não pôde
resistir à tentação de experimentar a coroa. Mas, como seria de se
esperar, o sonho puniu meu amigo e não a mim por esse desejo impiedoso.
“Como foi
ambicioso, matei-o.” Como não pudesse esperar pelo afastamento de
outro homem, ele próprio foi afastado. Foram esses meus pensamentos logo depois
de ter assistido à inauguração, na universidade, do monumento comemorativo -
não a ele, mas ao outro homem. Assim, parte da satisfação que senti no sonho
deveria ser interpretada como: “Um castigo justo! É bem feito para você!”
No funeral de
meu amigo [P.], um rapaz fizera o que pareceu ser um comentário inoportuno no
sentido de que o orador que pronunciara o discurso fúnebre havia deixado
implícito que, sem esse homem, o mundo se acabaria. Ele havia expressado os
sentimentos sinceros de alguém em cujo pesar um certo exagero estava
interferindo. Mas esse seu comentário foi o ponto de partida dos seguintes
pensamentos oníricos. “É bem verdade que ninguém é insubstituível. Quantas
pessoas já acompanhei até a sepultura! Mas ainda estou vivo. Sobrevivi a todos;
fiquei senhor do terreno.” Esse tipo de pensamento, ocorrendo-me num momento em
que temia talvez não encontrar meu amigo [Fl.] vivo se fizesse a viagem para
vê-lo, só poderia ser interpretado no sentido de eu estar radiante por ter, mais
uma vez, sobrevivido a alguém, por ter sido ele e não eu a morrer e por
eu ter ficado senhor do terreno, como ficara na cena fantasiada de minha
infância. Essa satisfação de origem infantil por ficar senhor do terreno
constituiu a maior parte do afeto queapareceu no sonho. Eu estava radiante
por sobreviver e dei expressão a meu deleite com todo o egoísmo ingênuo exibido
na anedota do casal em que um dos cônjuges diz ao outro: “Se um de nós morrer,
vou-me mudar para Paris”. Era-me óbvio assim que não seria eu a morrer.
Não se pode
negar que interpretar e relatar os próprios sonhos exige elevado grau de
autodisciplina. Fica-se condenado a emergir como o único vilão entre a multidão
de personagens nobres com quem se partilha a própria vida. Assim, pareceu-me
muito natural que os revenants só existissem enquanto se quisesse e
fossem elimináveis mediante um desejo. Já vimos pelo quê foi punido meu amigo
Josef. Mas os revenants eram uma série de reencarnações do amigo de
minha infância. Desse modo, era também fonte de satisfação para mim o fato de
sempre ter conseguido achar substitutos sucessivos para aquela figura; e senti
que seria capaz de encontrar um substituto para o amigo a quem estava agora a
ponto de perder: ninguém era insubstituível.
Mas e a censura
onírica, que era feito dela? Por que não levantara as mais enérgicas objeções
contra essa seqüência de idéias flagrantemente egoísta? E por que não
transformara a satisfação ligada a essa cadeia de idéias num agudo desprazer? A
explicação, penso eu, foi que outras seqüências de idéias inobjetáveis ligadas
às mesmas pessoas encontraram uma satisfação simultânea e encobriram, com seu
afeto, o afeto proveniente da fonte infantil proibida. Em outra camada de meus
pensamentos, durante a cerimônia de inauguração do monumento, eu assim
refletira: “Quantos amigos valiosos já perdi, uns por morte, outros por um
rompimento em nossa amizade! Quão afortunado foi ter encontrado para eles um
substituto e ter ganho um que significa para mim mais do que os outros jamais
poderiam significar, e, numa época da vida em que não é fácil fazer novas
amizades, nunca perder a dele!” Minha satisfação por ter encontrado um
substituto para esses amigos perdidos teve permissão de penetrar no sonho sem
interferência, mas, junto com ela, insinuou-se a satisfação hostil decorrente
da fonte infantil. É verdade, sem dúvida, que a afeição infantil serviu para
reforçar minha afeição contemporânea e justificada. Mas também o ódio infantil
conseguiu fazer-se representar.
Mas o sonho
conteve, além disso, uma alusão clara a outra cadeia de idéias que poderia
legitimamente levar à satisfação. Pouco tempo antes, apósuma longa espera,
nascera uma filha de meu amigo [Fl.]. Eu sabia quão profundamente ele havia
pranteado a irmã que perdera tão cedo, e lhe escrevi dizendo estar certo de que
ele transferira o amor que por ela sentira para a filha, e que a nenenzinha
enfim lhe permitiria esquecer sua perda irreparável.
Portanto, esse
grupo de pensamentos ligava-se mais uma vez ao pensamento intermediário do
conteúdo latente do sonho [ver em [1]-[2]] de onde se bifurcavam as vias
associativas em direções contrárias: “Ninguém é insubstituível! Não há nada
além de revenants: todos aqueles que perdemos retornam!” E então os
laços associativos entre os componentes contraditórios dos pensamentos oníricos
foram estreitados pela circunstância fortuita de a filhinha de meu amigo ter o
mesmo nome da menina com quem eu costumava brincar em criança, que tinha minha
idade e era irmã de meu primeiro amigo e oponente. [Ver em [1].] Deu-me
grande satisfação saber que o bebê iria chamar-se “Pauline”. E, numa
alusão a essa coincidência, substituí um Josef por outro no sonho e descobri
ser impossível eliminar a semelhança entre as letras iniciais dos nomes
“Fleischl” e “Fl.”. Desse ponto, meus pensamentos passaram para a questão do
nome de meus próprios filhos. Insistira em que o nome deles fosse escolhido,
não segundo a moda do momento, mas em memória de pessoas de quem eu havia
gostado. O nome transformava as crianças em revenants. E afinal,
refleti, ter filhos não seria nosso único acesso à imortalidade?
Resta-me apenas
acrescentar mais algumas observações sobre a questão do afeto nos sonhos, de
outro ponto de vista. É possível que um elemento dominante na psique da pessoa
adormecida seja constituído por aquilo a que chamamos “disposição de ânimo” -
ou tendência a algum afeto -, e isto pode então exercer uma influência
determinante em seus sonhos. Tal disposição de ânimo pode brotar de suas
experiências ou pensamentos da véspera, ou suas fontes podem ser somáticas.
[Ver em [1]] De qualquer modo, será acompanhada pelas cadeias de idéias que lhe
forem apropriadas. Do ponto de vista da formação do sonho, é indiferente que,
como às vezes acontece, esses conteúdos de representações dos pensamentos
oníricos determinem primariamente a disposição de ânimo, ou sejam eles próprios
secundariamente despertados por uma disposição emocional do sonhador que, por
sua vez, seja explicável em termos somáticos. Seja como for, a formação dos sonhos
está sujeira à condição de só poder representar algo que seja a realização de
um desejo, e de apenas dos desejos poder extrair sua força psíquica impulsora.
Uma disposição de ânimo atual e operante é tratada da mesma maneira que uma
sensação que surja e se torne atuante durante o sono (ver em [1]), a qual pode
ser desprezada ou reinterpretadano sentido de uma realização de desejo. As
disposições de ânimo aflitivas durante o sono podem tornar-se a força
propulsora de um sonho, despertando desejos enérgicos que o sonho é chamado a
realizar. O material a que se ligam as disposições de ânimo é trabalhado até
poder ser utilizado para expressar a realização de um desejo. Quanto mais
intenso e dominante é o papel desempenhado nos pensamentos oníricos pela disposição
anímica aflitiva, mais certo é que os impulsos desejantes mais intensamente
suprimidos se valham dessa oportunidade para chegar à representação. É que,
como já está presente o desprazer que, de outro modo, por si só produziriam
necessariamente, eles já encontram realizada a parte mais difícil de sua tarefa
- a tarefa de se imporem à representação. Aqui, mais uma vez, somos
confrontados com o problema dos sonhos de angústia; e estes, como iremos
constatar, constituem um caso marginal da função onírica. [Ver em [1]]
(I)
ELABORAÇÃO SECUNDÁRIA [1]
E agora podemos
enfim voltar-nos para o quarto dos fatores implicados na formação dos sonhos.
Ao prosseguirmos em nossa investigação do conteúdo dos sonhos da maneira como a
iniciamos - isto é, comparando eventos manifestos no conteúdo do sonho com suas
fontes nos pensamentos oníricos -, chegamos a elementos cuja explicação requer
um pressuposto inteiramente novo. O que tenho em mente são casos em que o
sonhador fica surpreso, irritado ou enojado no sonho e, além disso, com algum
fragmento do próprio conteúdo onírico. Como demonstrei em diversos exemplos [na
última seção). a maioria desses sentimentos críticos nos sonhos não se dirige,
de fato, ao conteúdo do sonho, mas mostra constituir-se de partes dos
pensamentos oníricos que foram apropriadas e usadas para um fim conveniente.
Entretanto, parte desse material não se presta a essa explicação; seu correlato
no material dos pensamentos oníricos não se encontra em parte alguma. Qual é,
por exemplo, o sentido de uma observação crítica tão freqüentemente encontrada
nos sonhos, ou seja, “Isto é apenas um sonho”? [Ver em [1].] Temos aí uma
verdadeira crítica ao sonho, tal como se poderia fazer na vida de vigília. Com
bastante freqüência, ademais, ela é de fato o prelúdio do despertar; e com
freqüência ainda maior, é precedida por algum sentimento aflitivo que se
tranqüiliza ante o reconhecimento de que se trata de um estado de sonho. Quando
ocorre num sonho o pensamento “isto é apenas um sonho”, ele tem em vista o
mesmo propósito das palavras pronunciadas no palco por la belle Hélène,
na ópera cômica de Offenbach que leva esse nome: visa a reduzir a
importância do que acaba de ser vivenciado e a tornar possível tolerar o que
vem a seguir. Serve para fazer adormecer uma dada instância que, nesse momento,
teria todos os motivos para ser acionada e proibir a continuação do sonho - ou
da cena da ópera. É mais cômodo, porém, continuar a dormir e tolerar o sonho,
porque, afinal, “é apenas um sonho”. Ameu ver, esse juízo crítico
desdenhoso, “é apenas um sonho”, aparece no sonho quando a censura, que nunca
está inteiramente adormecida, sente que foi apanhada desprevenida por um sonho
que já se deixou passar. É tarde demais para suprimi-lo e, por conseguinte, a censura
utiliza essas palavras para combater o sentimento de angústia ou aflição por
ele suscitado. Essa expressão é um exemplo de esprit d’escalier
por parte da censura psíquica.
Esse exemplo,
contudo, fornece-nos uma prova convincente que nem tudo que está contido num
sonho decorre dos pensamentos oníricos, mas que pode haver contribuições para
seu conteúdo advindas de uma função psíquica que é indistinguível de nossos
pensamentos de vigília. Surge então a questão de determinar se isso ocorre
apenas em casos excepcionais, ou se a instância psíquica que, no mais, atua
apenas como censura tem uma participação habitual na formação dos
sonhos.
Não podemos
hesitar em decidir pela segunda alternativa. Não há dúvida de que a instância
censora, cuja influência só reconhecemos, até aqui, nas limitações e omissões
no conteúdo do sonho, é também responsável por intercalações e acréscimos a
ele. É fácil reconhecer tais intercalações. São freqüentemente relatadas com
hesitação e introduzidas por um “como se”; não são particularmente vívidas por
si só e são sempre introduzidas em pontos em que podem servir de elo entre dois
fragmentos do conteúdo onírico ou preencher uma lacuna entre duas partes do
sonho. São menos fáceis de reter na memória do que os autênticos derivados do
material dos pensamentos oníricos; quando o sonho é esquecido, elas são sua
primeira parte a desaparecer, e tenho fortes suspeitas de que a queixa
corriqueira de se haver sonhado muito, mas esquecido a maior parte do sonho e
conservado apenas fragmentos [em [1]], baseia-se no rápido desaparecimento
justamente desses pensamentos agregadores. Numa análise completa, essas
intercalações por vezes se deixam trair pelo fato de nenhum material ligado a
elas ser encontrado nos pensamentos oníricos. Mas um exame cuidadoso leva-me a
considerar esse caso como o menos freqüente; grosso modo, os pensamentos
agregadores reconduzem, mesmo assim, a algum material nos pensamentos oníricos,
mas a um material que não poderia reivindicar aceitação no sonho, nem por seu
próprio valor, nem por ser sobredeterminado. Somente em casos extremos, ao que
parece, é que a função psíquica de formação de sonhos que ora estamos
examinando passa a fazer novas criações. Tanto quanto possível, ela
empregaqualquer coisa apropriada que possa encontrar no material dos
pensamentos oníricos.
O que distingue
e, ao mesmo tempo, revela essa parte do trabalho do sonho é sua finalidade.
Essa função se comporta da maneira que o poeta maliciosamente atribui aos
filósofos: preenche as lacunas da estrutura do sonho com trapos e remendos.
Como resultado de seus esforços, o sonho perde sua aparência de absurdo e
incoerência e se aproxima do modelo de uma experiência inteligível. Mas seus
esforços nem sempre são coroados de êxito. Ocorrem sonhos que, a uma visão
superficial, podem afigurar-se impecavelmente lógicos e racionais; partem de
uma situação possível, dão-lhe prosseguimento através de uma cadeia de
modificações coerentes e - embora com muito menor freqüência - levam-na a uma
conclusão que não causa surpresa. Os sonhos dessa natureza foram submetidos a
uma extensa elaboração por essa função psíquica aparentada ao pensamento de
vigília; parecem ter um sentido, mas esse sentido é o mais afastado possível de
sua verdadeira significação. Se os analisamos, podemos convencer-nos de que foi
nesses sonhos que a elaboração secundária manipulou o material da maneira mais
livre possível e preservou ao mínimo as relações existentes nesse material. São
sonhos dos quais se poderia dizer que já foram interpretados uma vez, antes de
serem submetidos à interpretação de vigília. Em outros sonhos, essa
elaboração tendenciosa tem êxito apenas em parte; a coerência parece prevalecer
até certo ponto, mas depois o sonho se torna disparatado ou confuso, embora
talvez, mais adiante, possa apresentar pela segunda vez uma aparência de
racionalidade. Noutros sonhos, ainda, a elaboração falha por completo; vemo-nos
desamparados frente a um amontoado de material fragmentário e sem nenhum
sentido.
Não desejo negar
categoricamente que essa quarta força na formação do sonho - que logo
reconheceremos como uma velha conhecida, visto que, de fato, é a única das
quatro com que estamos familiarizados em outros contextos - não desejo negar
que esse quarto fator tem a capacidade de criar novas contribuições para os
sonhos. É certo, porém, que, tal como os outros,ele exerce sua influência
principalmente por suas preferências e seleções do material psíquico já formado
nos pensamentos oníricos. Ora, há um caso em que lhe é poupado, em grande
medida, o trabalho de, por assim dizer, estruturar uma fachada para o sonho - a
saber, o caso em que já existe uma formação dessa natureza no material dos
pensamentos oníricos, pronta para ser usada. Tenho o hábito de descrever esse
elemento dos pensamentos oníricos que tenho em mente como uma “fantasia”.
Talvez eu evite mal-entendidos se mencionar o “sonho diurno” [ou devaneio]
como algo análogo a ela na vida de vigília. O papel desempenhado em
nossa vida anímica por essas estruturas ainda não foi plenamente reconhecido e
elucidado pelos psiquiatras, embora M. Benedikt tenha conseguido o que me
parece um início muito promissor nessa direção. A importância dos sonhos
diurnos não escapou à visão infalível dos escritores imaginativos; há, por
exemplo, um célebre relato de Alphonse Daudet, em Le Nabab, dos
devaneios de um dos personagens secundários da história. [Ver em [1].] O
estudo das psiconeuroses leva à surpreendente descoberta de que essas fantasias
ou sonhos diurnos são os precursores imediatos dos sintomas histéricos, ou pelo
menos de uma série deles. Os sintomas histéricos não estão ligados a lembranças
reais, mas a fantasias construídas com base em lembranças. A freqüente
ocorrência de fantasias diurnas conscientes traz essas estruturas ao nosso
conhecimento; mas tal como há fantasias conscientes dessa natureza, também há
grande número de fantasias inconscientes, que têm de permanecer inconscientes
por causa de seu conteúdo e por se originarem de material recalcado. Uma
investigação mais detida das características dessas fantasias diurnas
revela-nos como é acertado que essas formações recebam a mesma designação que
damos aos produtos de nosso pensamento durante a noite - ou seja, a designação
de “sonhos”. Elas partilham com os sonhos noturnos um grande número de suas
propriedades e, de fato, sua investigação poderia terservido como a melhor e
mais curta abordagem à compreensão dos sonhos noturnos.
Como os sonhos,
elas são realizações de desejos; como os sonhos, baseiam-se, em grande medida,
nas impressões de experiências infantis; como os sonhos, beneficiam-se de certo
grau de relaxamento da censura. Se examinarmos sua estrutura, perceberemos como
o motivo de desejo que atua em sua produção mistura, rearranja e compõe num
novo todo o material de que eles são construídos. Eles estão, para as
lembranças infantis de que derivam, exatamente na mesma relação em que estão
alguns dos palácios barrocos de Roma para as antigas ruínas cujos pisos e
colunas forneceram o material para as estruturas mais recentes.
A função de “elaboração
secundária” que atribuímos ao quarto dos fatores envolvidos na formação do
conteúdo dos sonhos mostra-nos em ação, mais uma vez, a atividade que consegue
ter livre vazão na criação de sonhos diurnos sem ser inibida por quaisquer
outras influências. Poderíamos simplificar isso dizendo que este nosso quarto
fator procura configurar o material que lhe é oferecido em algo semelhante a um
sonho diurno. No entanto, se um desses sonhos diurnos já tiver sido formado na
trama dos pensamentos oníricos, esse quarto fator do trabalho do sonho
preferirá apossar-se do sonho diurno já pronto e procurará introduzi-lo no
conteúdo do sonho. Há alguns sonhos que consistem meramente na repetição de
uma fantasia diurna que talvez tenha permanecido inconsciente, como, por
exemplo, o sonho em que o menino andava numa biga com os heróis da Guerra de
Tróia [em [1]]. Em meu sonho do “autodidasker” [em [1]], pelo menos a segunda
parte foi uma reprodução fiel de uma fantasia diurna, inocente em si mesma, de
uma conversa com o Professor N. Em vista das complexas condições que o sonho
tem de satisfazer em sua gênese, é muito mais freqüente a fantasia já pronta
formar apenas um fragmento do sonho, ou apenas uma parcela da fantasia
irromper no sonho. A partir daí, a fantasia é tratada, em geral, como qualquer
outra parcela do material latente, embora freqüentemente permaneça reconhecível
como uma entidade no sonho. Muitas vezes, partes de meus sonhos sobressaem como
causadoras de uma impressão diferente das demais. Parecem-me, por assim dizer,
mais fluentes, mais concatenadas e, ao mesmo tempo, mais fugazes que outras
partes do mesmo sonho. Estas, bem sei, sãofantasias inconscientes que
penetraram na trama do sonho, mas jamais consegui delimitar uma delas com
clareza. Afora isso, tais fantasias, como qualquer outro componente dos
pensamentos oníricos, são comprimidas, condensadas, superpostas umas às outras
e assim por diante. Há, todavia, casos transicionais, desde o caso em que elas
constituem, inalteradas, o conteúdo (ou pelo menos a fachada) do sonho, e o
extremo oposto, em que são representadas no conteúdo do sonho apenas por um
de seus elementos ou por uma alusão distante. O que acontece às fantasias
presentes nos pensamentos oníricos é também, evidentemente, determinado por quaisquer
vantagens que elas tenham a oferecer aos requisitos da censura e à exigência de
condensação.
Ao selecionar
exemplos de interpretação de sonhos, tenho evitado, na medida do possível, os
sonhos em que as fantasias inconscientes desempenhem papel considerável, pois a
introdução desse elemento psíquico específico teria exigido extensas discussões
sobre a psicologia do pensamento inconsciente. Não obstante, não posso escapar
inteiramente a um exame das fantasias neste contexto, dado que, muitas vezes, elas
penetram nos sonhos em sua íntegra e, com freqüência ainda maior, é possível
vislumbrá-las claramente por trás do sonho. Citarei, portanto, mais um
sonho, que parece compor-se de duas fantasias diferentes e opostas,
coincidentes entre si em alguns pontos, e das quais uma é superficial, enquanto
a segunda constitui, por assim dizer, uma interpretação da primeira. [Ver
anteriormente, em [1].]
O sonho - o
único do qual não tenho notas cuidadosas - era mais ou menos o seguinte. O
sonhador, um rapaz solteiro, estava sentado no restaurante onde costumava
comer, e que foi realisticamente representado no sonho. Surgiram então várias
pessoas para tirá-lo dali, e uma delas queria prendê-lo. Ele disse a seus
companheiros de mesa: “Depois eu pago; vou voltar”. Mas eles exclamaram, com
sorrisos zombeteiros: “Já conhecemos essa história; isso é o que todos dizem!”
Um dos convivas gritou-lhe: “Lá sevai mais um!’’ Depois o conduziram a um
aposento estreito, onde encontrou uma figura feminina com uma criança no colo.
Uma das pessoas que o acompanhava disse: “Este é o Sr. Müller”. Um inspetor de
polícia, ou algum funcionário parecido, estava remexendo num punhado de cartões
ou papéis e, ao fazê-lo, repetia “Müller, Müller, Müller”. Por fim, formulou
uma pergunta ao sonhador, à qual este respondeu com um “Sim”. Em seguida, ele
se voltou para olhar para a figura feminina e observou que ela agora usava uma
grande barba.
Não há aqui
nenhuma dificuldade em separar os dois componentes. O superficial era uma fantasia
de prisão, que parece como que recém-construída pelo trabalho do sonho.
Mas, por trás dele, é visível um material que foi apenas ligeiramente
remodelado pelo trabalho do sonho: uma fantasia de casamento. Os traços
comuns a ambas as fantasias emergem com especial clareza, tal como numa das
fotografias superpostas de Galton. A promessa do rapaz (que até então era
solteiro) de que voltaria a se reunir com os companheiros de jantar à mesa, o
ceticismo de seus companheiros (já escolados pela experiência), a exclamação
“lá se vai mais um (para se casar)” - todos esses traços se encaixavam
facilmente na interpretação alternativa. O mesmo se aplica ao “Sim” com que ele
respondeu à pergunta do funcionário. O remexer na pilha de papéis, a constante
repetição do mesmo nome, correspondia a uma característica menos importante,
porém, reconhecível, das festas de casamento, a saber, a leitura de um maço de
telegramas de felicitações, todos endereçados com o mesmo nome. A fantasia do
casamento, na realidade, levou a melhor sobre a fantasia encobridora de prisão,
com o aparecimento da noiva em pessoa no sonho. Através de uma indagação - o
sonho não foi analisado -, pude descobrir por que, ao final dele, a noiva usava
barba. Na véspera, o sonhador estivera andando pela rua com um amigo que era
tão arredio ao casamento quanto ele, e lhe chamara a atenção para uma beldade
de cabelos negros que passara por eles. “É”, comentara o amigo, “se pelo menos
essas mulheres, em poucos anos, não ficassem com uma barba igual à do pai…” Não
faltaram a esse sonho, naturalmente, elementos em que a distorção onírica
tivesse ido mais a fundo. É bem possível, por exemplo, que as palavras “depois
eu pago” se referissem ao que ele temia ser a atitude do sogro quanto à questão
do dote. De fato, é evidente que toda sorte de receios impedia o sonhador de se
atirar com algum prazer à fantasia de casamento. Um desses receios, o medo de
que o casamento pudesse custar-lhe a liberdade, encarnou-se em sua
transformação numa cena de prisão.
Se voltarmos por
um momento ao ponto em que o trabalho do sonho se serve de bom grado de uma
fantasia já pronta, em vez de compô-la a partir do material dos pensamentos
oníricos, talvez nos achemos em condições de solucionar um dos mais
interessantes enigmas relacionados com os sonhos. Em [1], relatei a famosa
história de como Maury, depois de ser atingido na nuca por um pedaço de madeira
enquanto dormia, despertou de um longo sonho que era como uma história completa
tendo por cenário a época da Revolução Francesa. Visto que o sonho, tal como
relatado, foi coerente e totalmente projetado com vistas a fornecer uma
explicação para o estímulo que acordou o sonhador e cuja ocorrência ele não
poderia ter previsto, a única hipótese possível parece ser a de que todo esse
sonho complexo deve ter sido composto e ter ocorrido no curto espaço de tempo
decorrido entre o contato do pedaço de madeira com as vértebras cervicais de
Maury e seu conseqüente despertar. Nunca ousaríamos atribuir tal rapidez à
atividade de pensamento na vida de vigília, e portanto, seríamos levados a
concluir que o trabalho do sonho possui a vantagem de acelerar
extraordinariamente nossos processos de pensamento.
Fortes objeções
ao que se converteu prontamente numa conclusão popular têm sido levantadas por
alguns autores mais modernos (Le Lorrain, 1894 e 1895; Egger 1895, e outros).
Por um lado, eles lançam dúvidas sobre a exatidão do relato que Maury fez de
seu sonho; e por outro, tentam mostrar que a rapidez das operações de nossos
pensamentos de vigília não é menor do que a desse sonho, depois de descontados
os exageros. O debate levantou questões de princípio cuja solução não me parece
imediata. Mas devo confessar que os argumentos apresentados (por Egger, por
exemplo), particularmente contra o sonho de Maury com a guilhotina, não me
convencem. Eu mesmo proporia a seguinte explicação para esse sonho. Acaso será
tão improvável que o sonho de Maury represente uma fantasia já pronta e
armazenada em sua memória por muitos anos, e que foi despertada - ou, diria eu,
“aludida” - no momento em que ele tomou conhecimento do estímulo que o acordou?
Se assim fosse, teríamos escapado a toda a dificuldade de compreender como é
que uma história tão longa, com todos os seus pormenores, poderia ter sido
composta no curtíssimo intervalo de que dispunha o sonhador, visto que a
história já teria sido composta. Se o pedaço de madeira tivesse atingido a nuca
de Maury quando acordado, teria havido oportunidade para um pensamento como
“Isto é o mesmo que ser guilhotinado”. Mas, como foi durante o sono que a tábua
o atingiu, o trabalho do sonho serviu-se do estímulo incidente para produzir
sem demora uma realização de desejo, como se pensasse (isto deve ser
tomado puramente emsentido figurado): “Eis aqui uma boa oportunidade de
realizar uma fantasia de desejo que se formou em tal ou qual época durante a
leitura”. Dificilmente se poderia contestar, penso eu, que a história do sonho
era precisamente do tipo que os jovens tendem a construir sob a influência de
impressões intensamente excitantes. Quem - e, menos ainda, qual o francês ou o
estudioso da história da civilização - poderia deixar de ser cativado pelas
narrativas do Reinado do Terror, quando homens e mulheres da aristocracia, a
fina flor da nação, mostravam-se capazes de morrer com ânimo sereno e de conservar
sua agudeza de espírito e a elegância de suas maneiras até o último momento do
fatal chamado? Quão tentador para um jovem mergulhar em tudo isso em sua
imaginação - ver-se dizendo adeus a uma dama, beijando-lhe a mão e galgando,
intrépido, o cadafalso! Ou, se a ambição fosse o motivo principal da fantasia,
quão tentador para ele ocupar o lugar de um daqueles temíveis personagens que,
pela simples força de suas idéias e de sua flamejante eloqüência, dominavam a
cidade onde, nessa época, pulsava convulsivamente o coração da humanidade - que
foram levados por suas convicções a enviar milhares de homens à morte e
prepararam o terreno para a transformação da Europa, enquanto, todo o tempo,
suas próprias cabeças não tinham segurança e estavam destinadas a cair um dia
sob a lâmina da guilhotina - quão tentador imaginar-se como um dos girondinos,
talvez, ou como o heróico Danton! Há uma característica na lembrança que Maury
guardou do sonho - a de ser “conduzido ao local da execução, cercado por uma
multidão imensa” - que parece sugerir que sua fantasia era, de fato, desse tipo
ambicioso.
Tampouco era
necessário que essa fantasia de há muito preparada fosse revivida durante o
sono; bastaria apenas que fosse tocada. O que quero dizer é o seguinte; quando
soam alguns compassos musicais e alguém comenta (como acontece no Don
Giovanni) que são do Fígaro, de Mozart, despertam-se em mim, de uma
só vez, inúmeras lembranças, nenhuma das quais pode penetrar isoladamente em
minha consciência no primeiro momento. A frase-chave serve como um posto
avançado através do qual toda a rede é simultaneamente posta em estado de
excitação. É bem possível que o mesmo se dê no caso do pensamento inconsciente.
O estímulo despertador excita o posto avançado psíquico que dá acesso a toda a
fantasia da guilhotina. Mas a fantasia não é repassada durante o sono, e sim
apenas na lembrança da pessoa antes adormecida, após seu despertar. Depois de
acordar, ela lembra em todos os detalhes a fantasia que foi instigada em sua
íntegra no sonho. Não há como certificar-se, nesse caso, de que se está
realmente recordando algo que se sonhou. Essa mesma explicação - de que se
trata de fantasiasjá prontas que são excitadas como um todo pelo estímulo
despertador - pode ser aplicada a outros sonhos que se concentram num estímulo
despertador, como, por exemplo, o sonho de Napoleão com a batalha, antes da
explosão da máquina infernal [em [1], e [2]].
Entre os sonhos [1]
coligidos por Justine Tobowolska em sua dissertação sobre a passagem manifesta
do tempo nos sonhos, o mais instrutivo me parece ser o que relatou Macario
(1857, 46) como sonhado por um autor dramático, Casimir Bonjour (Tobowolska
[1900], 53). Certa noite, Bonjour desejava assistir à primeira apresentação de
uma de suas peças, mas estava tão fatigado que, enquanto sentado nos
bastidores, cochilou no momento exato em que o pano subia. Durante o sono,
passou por todos os cinco atos da peça e observou todos os vários sinais de
emoção exibidos pela platéia quando das diferentes cenas. No fim do espetáculo,
ficou radiante ao ouvir seu nome gritado com as mais vivas demonstrações de
aplauso. De repente, acordou. Não podia acreditar no que via nem no que ouvia,
pois o espetáculo ainda não passara das primeiras linhas da primeira cena, e
ele não teria dormido por mais de dois minutos. Por certo, não é demasiadamente
precipitado supor, no caso desse sonho, que o fato de o sonhador ter passado
por todos os cinco atos da peça e observado a atitude do público em relação aos
diferentes trechos dela não precisa ter decorrido de nenhuma nova produção de
material durante o sono, mas pode ter reproduzido uma atividade de fantasia já
concluída (no sentido que descrevi). Tobowolska, como outros autores, ressalta
o fato de que os sonhos com uma passagem acelerada das representações têm a
característica comum de parecerem singularmente coerentes, ao contrário de
outros sonhos, e que a lembrança deles é muito mais sumária do que
pormenorizada. Essa seria realmente uma característica que tais fantasias já
prontas, tocadas pelo trabalho do sonho, estariam fadadas a possuir, embora
esta seja uma conclusão que os autores em causa não chegam a tirar. Não
assevero, contudo, que todos os sonhos de despertar admitam essa
explicação, ou que o problema da passagem acelerada das representações nos
sonhos possa, desse modo, ser inteiramente descartado.
Neste ponto, é
impossível evitarmos o exame da relação entre essa elaboração secundária do
conteúdo dos sonhos e os demais fatores do trabalho do sonho. Deveremos acaso
supor que o que acontece é que, aprincípio, os fatores formadores do sonho - a
tendência à condensação, o imperativo de fugir à censura e a consideração à
representabilidade pelos recursos psíquicos acessíveis ao sonho - compõem um
conteúdo onírico provisório a partir do material fornecido, e que esse conteúdo
é subseqüentemente remoldado para conformar-se tanto quanto possível às
exigências de uma segunda instância? Isto é muito improvável. Devemos antes
presumir que, desde o início, as exigências dessa segunda instância constituem
uma das condições que o sonho precisa satisfazer, e que essa condição, tal como
as formuladas pela condensação, pela censura imposta pela resistência e pela
representabilidade, atua simultaneamente num sentido indutivo e seletivo sobre
o conjunto do material presente nos pensamentos oníricos. De qualquer modo,
porém, dentre as quatro condições para a formação do sonho, a que conhecemos
por último é aquela cujas exigências parecem exercer a influência menos
compulsória nos sonhos.
A consideração
que se segue torna altamente provável que a função psíquica que empreende o que
descrevemos como elaboração secundária do conteúdo dos sonhos deva ser
identificada com a atividade de nosso pensamento de vigília. Nosso pensamento
desperto (pré-consciente) comporta-se ante qualquer material perceptivo
com que se depare exatamente do mesmo modo que se comporta a função ora
examinada em relação ao conteúdo dos sonhos. É próprio de nosso pensamento de
vigília estabelecer ordem nesse material, nele estruturar relações e fazê-lo
conformar-se a nossas expectativas de um todo inteligível. [Ver em [1] e [2].]
A rigor, chegamos a nos exceder nisso. Os adeptos da prestidigitação conseguem
iludir-nos por confiarem nesse nosso hábito intelectual. Em nosso empenho de
criar um padrão inteligível com impressões sensoriais que são oferecidas,
muitas vezes incidimos nos mais estranhos erros, ou até falseamos a verdade do
material que nos é apresentado.
As provas disso
são por demais conhecidas de todos para que haja qualquer necessidade de
insistirmos nelas ainda mais. Em nossas leituras, passamos por cima de erros
tipográficos que destroem o sentido e temos a ilusão de que o que estamos lendo
é correto. Diz-se que o editor de um popular periódico francês apostou que
mandaria o tipógrafo inserir as palavras “em frente” ou “atrás” em todas as
frases de um longo artigo sem que um únicode seus leitores o notasse. Ganhou a
aposta. Há muitos anos, li num jornal um exemplo cômico de falsa ligação. Certa
feita, durante uma sessão da Câmara francesa, uma bomba lançada por um
anarquista explodiu no próprio recinto e Dupuy dominou o pânico subseqüente com
as corajosas palavras: “La séance continue”. Os visitantes das galerias
foram solicitados a dar suas impressões como testemunhas do atentado. Havia
entre eles dois homens das províncias. Um deles disse ser verdade que ouvira
uma detonação ao final de um dos discursos, mas presumira que fosse um costume
parlamentar disparar um tiro sempre que um orador se sentava. O segundo, que
provavelmente já tinha ouvido vários discursos, chegara à mesma
conclusão, exceto pelo fato de supor que só se disparava um tiro em homenagem a
algum discurso particularmente bem-sucedido.
Não há duvida,
pois, de que nosso pensamento normal é que é a instância psíquica que aborda o
conteúdo dos sonhos com a exigência de que ele seja inteligível, que o submete
a uma primeira interpretação e que, conseqüentemente, gera um completo
desentendimento dele. [Ver em [1].] Para fins de nossa interpretação,
persiste como regra essencial desconsiderar invariavelmente a aparente
continuidade de um sonho como sendo de origem suspeita, e percorrer o mesmo
caminho de volta ao material dos pensamentos oníricos, quer o sonho em si seja
claro ou confuso.
Percebemos
agora, aliás, do que é que depende a escala de qualidade dos sonhos entre a
confusão e a clareza, examinada em [1]. As partes do sonho em que a elaboração
secundária conseguiu surtir algum efeito são claras, ao passo que as outras em
que seus esforços falharam são confusas. Visto que as partes confusas do sonho,
ao mesmo tempo, são freqüentemente menos vívidas, podemos concluir que o
trabalho secundário do sonho também deve ser responsabilizado por uma
contribuição à intensidade plástica dos diferentes elementos do sonho.
Quando procuro
algo com que comparar a forma final assumida pelo sonho, tal como aparece
depois que o pensamento normal faz sua contribuição, não consigo pensar em nada
melhor do que as inscrições enigmáticas com que o Fliegende Blätter vem
há muito entretendo os seus leitores. Eles pretendem levar o leitor a crer que
uma certa frase - para efeito de contraste, uma frase em dialeto e tão chula
quanto possível - é uma inscrição latina. Para esse fim, as letras contidas nas
palavras são separadas de sua combinação em sílabas e dispostas numa nova
ordem. Aqui e ali surge uma autêntica palavra latina; em outros pontos,
parecemos ver abreviações de termos latinos, e ainda em outros pontos da
inscrição, deixamo-nos ser levados a fazer vista grossa à falta de sentido das letras
isoladas por partes da inscrição que parecem estar apagadas ou mostrando
lacunas. Se quisermos evitar o engodo do chiste, teremos de desprezar tudo o
que faça parecer uma inscrição, olhar firmemente para as letras, não prestar
atenção a seu arranjo aparente e, desse modo, combiná-las em palavras
pertencentes a nossa própria língua materna.
A elaboração
secundária [1] é o único fator do trabalho do sonho que tem sido
observado pela maioria dos autores no assunto e cuja importância tem sido
apreciada. Havelock Ellis (1911, 10-11) fez uma exposição divertida do seu
funcionamento: “Com efeito, podemos até imaginar a consciência adormecida
dizendo a si própria: ‘Aí vem nosso amo, a Consciência de Vigília, que atribui
tão enorme importância à razão e à lógica, e assim por diante. Rápido! apanhem
as coisas, ponham-nas em ordem - qualquer ordem serve - antes que ele entre
para tomar posse.’”
A identidade
entre seu método de trabalho e o do pensamento de vigília foi enunciada com
particular clareza por Delacroix (1904, 926): “Cette fonction
d’interprétation n’est pas particulière au rêve; c’est le même travail de
coordination logique que nous faisons sur nos sensations pendant la veille.”
James Sully [1893, 355-6] é da mesma opinião, assim como Tobowolska (1900,93): “Sur
ces successions incohérentes d’hallucinations, l’esprit s’efforce de faire le
même travail de coordination logique qu’il fait pendant la veille sur les
sensations. II relie entre elles par un lien imaginaire toutes ces images
décousues et bouche les écarts trop grands qui se trouvaient entre elles.”
De acordo com
alguns autores, esse processo de arranjo e interpretação se inicia durante o
próprio sonho e continua após o despertar. Assim, diz Paulhan (1894, 546): “Cependant
j’ai souvent pensé qu’il pouvait y avoir une certaine déformation, ou plutôt
réformation, du rêve dans le souvenir … La tendance systématisante de
l’imagination pourrait fort bien achever après le réveil ce qu’elle a ébauché
pendant le sommeil. De la sorte, la rapidité réelle de la pensée sarait
augmentée en apparencè par les perfectionnements dûs à l’imagination éveilée.”Bernard-Leroy
e Tobowolska (1901, 592): “Dans le rêve, au contraire, l’interprétation et
la coordination se font non seulement à l’aide des données du rêve, mais encore
à l’aide de celles de la veille…”
Inevitavelmente,
portanto, esse único fator reconhecido na formação dos sonhos teve sua
importância superestimada, de modo que a ele se atribuiu toda a proeza da
criação dos sonhos. Esse ato de criação, como supõem Goblot (1896, 288 e seg.)
e mais ainda, Foucault (1906) é executado no momento do despertar, pois esses
dois autores atribuem ao pensamento de vigília a capacidade de formar um sonho
a partir dos pensamentos surgidos durante o sono. Bernard-Leroy e Tobowolska
(1901) assim comentam essa concepção. “On a cru pouvoir placer le rêve au
moment du réveil, et ils ont attribué à la pensée de la veille la fonction de
construire le rêve avec les images présentes dans la pensée du sommeil.”
Dessa discussão
da elaboração secundária passarei ao exame de outro fator do trabalho do sonho
recentemente trazido à luz por algumas observações sutilmente perceptivas
feitas por Herbert Silberer. Como mencionei antes (em [1]), Silberer apanhou em
flagrante, por assim dizer, o processo de transformação dos pensamentos em
imagens, impondo-se uma atividade intelectual em estados de fadiga e
sonolência. Nessas ocasiões, o pensamento com que ele estava às voltas
desaparecia e era substituído por uma visão que se revelava um substituto do
que, em geral, eram pensamentosabstratos. (Cf. os exemplos do trecho que acabo
de citar.) Ora, acontece que, nesses experimentos, a imagem que surgia, e que
poderia ser comparada a um elemento de um sonho, por vezes representava algo
diverso do pensamento que estava sendo abordado- a saber, a própria fadiga, a
dificuldade e o desprazer frente a esse trabalho. Representava, em outras
palavras, o estado subjetivo e o modo de funcionamento da pessoa que empreendia
o esforço, em vez do objeto de seu empenho. Silberer descreveu tais
ocorrências, que eram muito freqüentes em seu caso, como um “fenômeno
funcional”, em contraste com o “fenômeno material” que seria esperável.
Por exemplo:
“Uma tarde, estava deitado em meu sofá, sentindo-me extremamente sonolento;
mesmo assim, forcei-me a pensar num problema filosófico. Queria comparar as
concepções de Kant e Schopenhauer sobre o Tempo. Como resultado de minha
sonolência, eu não conseguia manter os argumentos de ambos na mente ao mesmo
tempo, o que era necessário para estabelecer o confronto. Após várias
tentativas inúteis, gravei mais uma vez na mente as deduções de Kant, com toda
a força de minha vontade, para que pudesse aplicá-las à formulação do problema
por Schopenhauer. Voltei então minha atenção para este último, mas quando
tentei retornar outra vez a Kant, verifiquei que sua tese me escapara de novo e
tentei em vão captá-la novamente. Esse esforço inútil de recuperar o dossier
de Kant que estava armazenado em alguma parte de minha cabeça foi subitamente
representado perante meus olhos fechados como um símbolo concreto e plástico,
como se fosse uma imagem onírica: “Eu pedia uma informação a um secretário
descortês que estava curvado sobre sua escrivaninha e se recusava a dar ouvidos
a meu pedido insistente. Ele se aprumou um pouco e me lançou um olhar
desagradável e duro”. (Silberer, 1909, 513 e seg. [O grifo é de Freud.])
Eis alguns
outros exemplos relacionados com a oscilação entre dormir e acordar:
“Exemplo N.º 2.
- Circunstâncias: Pela manhã, ao despertar. Enquanto me achava em certo nível
de sono (um estado crepuscular), refletindo sobre um sonho anterior e, de certo
modo, continuando a sonhá-lo, senti-me chegar mais perto da consciência da
vigília, mas quis permanecer no estado crepuscular.
“Cena: Ia
dando um passo para atravessar um regato, mas recuei o pé na mesma hora, com a
intenção de permanecer deste lado.” (Silberer, 1912, 625.)
“Exemplo N.º 6.
- Circunstâncias iguais à do exemplo N.º 4” (em que ele queria ficar na cama um
pouco mais, porém sem dormir até tarde). “Queria entregar-me ao sono mais um
pouquinho.”
“Cena: Estava
me despedindo de alguém e combinava com ele (ou ela) encontrá-lo (la) novamente
dentro em breve.” (Ibid., 627.)
O fenômeno
“funcional”, “a representação de um estado em vez de um objeto”, foi observado
por Silberer principalmente nas condições de adormecimento e despertar. É
evidente que a interpretação dos sonhos só se interessa pelo segundo caso.
Silberer tem dado exemplos que revelam de modo convincente que, em muitos
sonhos, as últimas partes do conteúdo manifesto, que são imediatamente seguidas
pelo despertar, representam nada mais, nada menos que uma intenção de acordar
ou o processo de acordar. A representação pode ocorrer em termos de imagens
como atravessar um umbral (“simbolismo do umbral”), sair de um quarto e entrar
noutro, partir, voltar para casa, despedir-se de um companheiro, mergulhar
n’água etc. Não posso, entretanto, deixar de observar que tenho deparado com
elementos oníricos passíveis de ser relacionados com o simbolismo do umbral,
seja em meus próprios sonhos, seja nos dos sujeitos a quem tenho analisado, com
freqüência muito menor do que seria esperável pelas comunicações de Silberer.
De modo algum é
inconcebível ou improvável que esse simbolismo do umbral venha a lançar luz
sobre alguns elementos situados no meio da trama dos sonhos - nos lugares, por
exemplo, onde há uma questão de oscilações na profundidade do sono e de uma
inclinação para interromper o sonho. Não se apresentaram, porém, exemplos
convincentes disso. O que parece ocorrer com mais freqüência são
os casos de sobredeterminação, nos quais parte de um sonho que tenha derivado
seu conteúdo material da interconexão dos pensamentos oníricos é empregada para
representar, além disso, algum estado de atividade mental.
Esse
interessantíssimo fenômeno funcional de Silberer, sem nenhuma culpa de seu
descobridor, tem levado a muitos abusos, pois tem sido encarado como um apoio à
antiga inclinação a se darem interpretações abstratas e simbólicas aos sonhos.
A preferência pela “categoria funcional” é levada a tal ponto por certas
pessoas que elas se referem ao fenômeno funcional onde quer que ocorram
atividades intelectuais ou processos afetivos nos pensamentos oníricos, embora
esse material não tenha nem mais nem menosdireito do qualquer outro a penetrar
num sonho na qualidade de resto diurno. [Cf. [1] e [2].]
Estamos prontos
a reconhecer o fato de que os fenômenos de Silberer constituem uma segunda
contribuição do pensamento de vigília à formação dos sonhos, embora esteja
presente com menos regularidade e seja menos significativo do que o primeiro,
já introduzido sob a designação de “elaboração secundária”. Mostrou-se que
parte da atenção que atua durante o dia continua a ser orientada para os sonhos
durante o estado de sono, que os controla e critica e se reserva o poder de
interrompê-los. Pareceu plausível reconhecer na instância anímica que assim
permanece desperta o censor a quem tivemos de atribuir tão poderosa
influência restritiva sobre a forma assumida pelos sonhos. O que as
observações de Silberer acrescentaram a isso foi o fato de que, em certas
circunstâncias, uma espécie de auto-observação participa disso e presta uma
contribuição ao conteúdo do sonho. As relações prováveis dessa instância
auto-observadora, que talvez seja particularmente acentuada nas mentes
filosóficas, com a percepção endopsíquica, os delírios de observação, a
consciência e o censor de sonhos poderão ser mais apropriadamente tratadas em
outro lugar.
Tentarei agora
resumir esta longa exposição sobre o trabalho do sonho. Havíamos deparado com a
questão de saber se a alma emprega irrestritamente todas as suas faculdades na
formação dos sonhos, ou apenas um fragmento funcionalmente restrito delas.
Nossas investigações levaram-nos a rejeitar por completo essa forma de colocar
a questão, como sendo inadequada às circunstâncias. Entretanto, se tivéssemos
de responder à pergunta com base nos termos em que foi formulada, seríamos
obrigados a responder afirmativamente a ambas as alternativas, ainda que
pareçam mutuamente exclusivas. É possível distinguir duas funções isoladas na
atividade anímica durante a formação do sonho: a produção dos pensamentos
oníricos e sua transformação no conteúdo do sonho. Os pensamentos oníricos são
inteiramente racionais e formados com o dispêndio de toda a energia psíquica de
que somos capazes. Situam-se entre processos de pensamento que não se tornaram
conscientes - processos dos quais, após alguma modificação,também brotam nossos
pensamentos conscientes. Por muitas que sejam as questões interessantes e
enigmáticas envolvidas nos pensamentos oníricos, tais questões não têm, afinal,
nenhuma relação especial com os sonhos e não precisam ser tratadas entre os
problemas destes. Por outro lado, a segunda função da atividade anímica na
formação do sonho - a transformação dos pensamentos inconscientes no conteúdo
do sonho - é peculiar à vida onírica e dela característica. Esse trabalho do
sonho, propriamente dito, diverge ainda mais de nossa visão do pensamento de
vigília do que tem sido suposto até pelo mais obstinado depreciador do
funcionamento psíquico durante a formação dos sonhos. O trabalho do sonho não é
apenas mais descuidado, mais irracional, mais esquecido e mais incompleto do
que o pensamento de vigília; é inteiramente diferente deste em termos
qualitativos e, por essa razão, não é, em princípio, comparável com ele. Não
pensa, não calcula e nem julga de nenhum modo; restringe-se a dar às coisas uma
nova forma. É exaustivamente descritível mediante a enumeração das condições
que tem de satisfazer ao produzir seu resultado. Esse produto, o sonho, tem,
acima de tudo, de escapar à censura, e com esse propósito em vista, o trabalho
do sonho se serve do deslocamento das intensidades psíquicas a ponto de
chegar a uma transmutação de todos os valores psíquicos. Os pensamentos têm de
ser reproduzidos, exclusiva ou predominantemente, no material dos traços
mnêmicos visuais e acústicos, e essa necessidade impõe ao trabalho do sonho uma
consideração à representabilidade, que ela atende efetuando novos
deslocamentos. É provável que se tenham de produzir intensidades maioresdo que
as disponíveis nos pensamentos oníricos durante a noite, e para essa finalidade
serve a ampla condensação efetuada com os componentes dos pensamentos
oníricos. Pouca atenção é dada às relações lógicas entre os pensamentos; estas
recebem, em última análise, uma representação disfarçada em certas
características formais dos sonhos. Qualquer afeto ligado aos pensamentos
oníricos sofre menos modificação do que seu conteúdo de representações. Tais
afetos, via de regra, são suprimidos; quando retidos, são desligados das
representações a que pertencem propriamente, sendo reunidos os afetos de
caráter semelhante. Apenas uma única parcela do trabalho do sonho, e uma
parcela que atua em grau irregular - a reelaboração do material pelo pensamento
de vigília parcialmente desperto -, ajusta-se em certa medida à visão que
outros autores procuraram aplicar a toda a atividade da formação do sonho. [1]
Capítulo VII - A PSICOLOGIA DOS
PROCESSOS ONÍRICOS
Entre os sonhos
que me foram comunicados por outras pessoas há um que merece especialmente
nossa atenção neste ponto. Foi-me contado por uma paciente que dele tomou
conhecimento numa conferência sobre os sonhos: sua origem real ainda me é
desconhecida. Seu conteúdo impressionou essa dama, contudo, e ela tratou de
“ressonhá-lo”, ou seja, de repetir alguns de seus elementos num sonho dela
própria, de tal modo que, assim se apoderando dele, pudesse expressar sua
concordância com ele num determinado ponto.
As condições
preliminares desse sonho-padrão foram as seguintes: um pai estivera de vigília
à cabeceira do leito de seu filho enfermo por dias e noites a fio. Após a morte
do menino, ele foi para o quarto contíguo para descansar, mas deixou a porta
aberta, de maneira a poder enxergar de seu quarto o aposento em que jazia o
corpo do filho, com velas altas a seu redor. Um velho fora encarregado de
velá-lo e se sentou ao lado do corpo, murmurando preces. Após algumas horas de
sono, o pai sonhou que seu filho estava de pé junto a sua cama, que o tomou
pelo braço e lhe sussurou em tom de censura: “Pai, não vês que estou queimando?”
Ele acordou, notou um clarão intenso no quarto contíguo, correu até lá e
constatou que o velho vigia caíra no sono e que a mortalha e um dos braços do
cadáver de seu amado filho tinham sido queimados por uma vela acesa que tombara
sobre eles.
A explicação
desse sonho comovente é bem simples e, segundo me disse minha paciente, foi
corretamente fornecida pelo conferencista. O clarão de luz chegou pela porta
aberta aos olhos do homem adormecido e o levou à conclusão a que teria chegado
se tivesse acordado, ou seja, que uma vela caída havia ateado fogo em alguma coisa
nas proximidades do corpo. É possível até que, ao dormir, ele sentisse uma
certa preocupação de que o velho não fosse capaz de cumprir sua tarefa.
Não é que eu
tenha qualquer modificação a sugerir nessa interpretação, salvo para
acrescentar que o conteúdo do sonho deve ter sido sobredeterminado e que as
palavras proferidas pelo menino devem ter sido compostas deexpressões que ele
realmente proferira em vida e que estavam ligadas a acontecimentos importantes
no espírito do pai. Por exemplo, “Estou queimando” pode ter sido dito em
meio à febre da doença fatal da criança e “Pai não vês?” talvez tenha
derivado de alguma outra situação altamente carregada de afeto que nos é
desconhecida.
Entretanto,
depois de reconhecermos que o sonho foi um processo dotado de sentido e
passível de ser inserido na cadeia de experiências psíquicas do sonhador,
podemos ainda conjeturar por que teria um sonho ocorrido em tais
circunstâncias, quando se fazia necessário o mais rápido despertar possível. E
aqui observaremos que também esse sonho abrigou a realização de um desejo. O
filho morto comportou-se no sonho como vivo; ele próprio advertiu o pai, veio
até sua cama e o segurou pelo braço, tal como provavelmente fizera na ocasião
de cuja lembrança se originou a primeira parte das palavras da criança no
sonho. Em nome da realização desse desejo, o pai prolongou seu sono por um
momento. O sonho foi preferido a uma reflexão desperta, porque podia mostrar o
menino vivo outra vez. Se o pai tivesse primeiro acordado, e depois feito a inferência
que o levou a ir até o quarto contíguo, teria, por assim dizer, abreviado a
vida de seu filho por esse breve lapso de tempo.
Não há dúvida
sobre qual é a peculiaridade que atrai nosso interesse para esse curto sonho.
Até aqui, estivemos principalmente interessados no sentido secreto dos sonhos e
no método para descobri-lo, bem como nos meios empregados pelo trabalho do
sonho para ocultá-lo. Os problemas da interpretação do sonho ocuparam até aqui
o centro da descrição. E agora esbarramos num sonho que não levanta problemas
de interpretação e cujo sentido é óbvio, mas que, não obstante, como vimos,
preserva as características essenciais que diferenciam tão notavelmente os
sonhos da vida de vigília e, por conseguinte, requerem explicação. Só depois de
havermos resolvido tudo o que diz respeito ao trabalho de interpretação é que
poderemos começar a nos aperceber de quão incompleta é nossa psicologia dos
sonhos.
Entretanto,
antes de partirmos por esse novo caminho, será bom fazermos uma pausa e
olharmos em torno, para ver se, no curso de nossa jornada até este ponto, não
teremos desprezado algo importante. É que deve ficar claramente entendido que a
parte fácil e agradável de nossa viagem ficou para trás. Até aqui, a menos que
eu esteja muito equivocado, todos os caminhos por onde viajamos nos conduziram
à luz - ao esclarecimento e a uma compreensão mais completa. Contudo, mal nos
empenhamos em penetrar mais a fundo nos processos anímicos envolvidos no ato de
sonhar, todos os caminhos terminam na escuridão. Não há possibilidade de explicaros
sonhos como um processo psíquico, uma vez que explicar algo significa fazê-lo
remontar a alguma coisa já conhecida, e não há, no momento, nenhum conhecimento
psicológico estabelecido a que possamos subordinar aquilo que o exame
psicológico dos sonhos nos habilita a inferir como base de sua explicação. Pelo
contrário, seremos obrigados a formular diversas novas hipóteses que toquem
provisoriamente na estrutura do aparelho psíquico e no jogo das forças que nele
atuam. Precisamos, porém, ter o cuidado de não levar essas hipóteses muito além
de suas primeiras articulações lógicas, ou seu valor se perderá em incertezas.
Ainda que não façamos inferências falsas e levemos em conta todas as
possibilidades lógicas, a provável imperfeição de nossas premissas ameaça levar
nossos cálculos a um completo malogro. Nem mesmo partindo da mais minuciosa
investigação dos sonhos ou de qualquer outra função psíquica, tomada isoladamente,
é possível chegar a conclusões sobre a construção e os métodos de funcionamento
do instrumento anímico, ou, pelo menos, prová-las integralmente. Para chegar a
esse resultado, será necessário correlacionar todas as implicações já
estabelecidas, derivadas de um estudo comparativo de toda uma série de funções.
Portanto, as hipóteses psicológicas a que formos levados por uma análise dos
processos oníricos deverão ficar em suspenso, por assim dizer, até que possam
ser relacionadas com os resultados de outras investigações que busquem chegar
ao âmago do mesmo problema a partir de outro ângulo de abordagem.
(A)
O ESQUECIMENTO DOS SONHOS
Sugiro, por
conseguinte, que nos voltemos primeiro para um tema que levanta uma dificuldade
até agora não considerada, mas que, não obstante, é capaz de jogar por terra
todos os nossos esforços de interpretação dos sonhos. Já se objetou, em mais de
uma ocasião, que de fato não temos nenhum conhecimento dos sonhos que nos
dispomos a interpretar ou, falando mais corretamente, que não temos nenhuma
garantia de conhecê-los tal como realmente ocorreram. [Ver em [1]]
Em primeiro
lugar, o que lembramos de um sonho, aquilo em que exercemos nossa arte
interpretativa, já foi mutilado pela infidelidade de nossa memória, que parece
singularmente incapaz de reter um sonho e bem pode ter perdido exatamente as
partes mais importantes de seu conteúdo. É muito freqüente, ao procurarmos
voltar a atenção para um de nossos sonhos, descobrirmos-nos lamentando o fato
de que, embora tenhamos sonhado mais, não conseguimos recordar nada além de um
único fragmento, ele próprio relembrado com peculiar incerteza.
Em segundo
lugar, temos todas as razões para suspeitar de que nossa lembrança dos sonhos é
não apenas fragmentada, mas positivamente inexata e falseada. Por um lado,
podemos duvidar de se o que sonhamos foi realmente tão desconexo e nebuloso
quanto é nossa lembrança dele e, por outro, também se pode pôr em dúvida se um
sonho foi realmente tão coerente quanto o é no relato que dele fornecemos; se,
na tentativa de reproduzi-lo, não preenchemos com material novo e
arbitrariamente escolhido o que nunca esteve lá ou o que foi esquecido; se não
lhe acrescentamos adornos e acabamentos, e o arredondamos de tal maneira que
não há possibilidade de determinar qual pode ter sido seu conteúdo original. Na
verdade, um autor, Spitta (1882, [338]), chega a ponto de sugerir que, se o
sonho mostra qualquer tipo de ordem ou coerência, tais qualidades só são
introduzidas nele ao tentarmos evocá-lo. [Ver em [1].] Assim, parece haver um
risco de que a própria coisa cujo valor nos propusemos determinar escape-nos
completamente por entre os dedos.
Até aqui, ao
interpretarmos os sonhos, temos desconsiderado tais advertências. Ao contrário,
aceitamos como igualmente importante interpretar tanto os componentes mais
ínfimos, menos destacados e mais incertos do conteúdo dos sonhos quanto os que
são preservados com mais nitidez e certeza. O sonho da injeção de Irma continha
a frase “Chamei imediatamente o Dr. M.” [em [1]] e presumimos que nem
mesmo esse detalhe teria penetrado no sonho, a menos que tivesse uma origem
específica. Foi assim que chegamos à história da infortunada paciente a cuja
cabeceira eu havia “imediatamente” chamado meu colega mais experimentado. No
sonho aparentemente absurdo que tratou a diferença entre 51 e 56 como um valor
desprezível, o número 51 foi mencionado diversas vezes. [Ver em [1].] Em vez de
encarar isso como uma coisa banal ou indiferente, inferimos daí que havia uma segunda
linha de pensamentos no conteúdo latente do sonho, levando ao número 51; e por
essa trilha chegamos a meus temores de que 51 anos fossem o limite de minha
vida, em flagrante contraste com a cadeia de pensamentos dominante no sonho,
que era pródiga em seu alarde de uma vida longa. No sonho do “Non vixit”
[em [1]], houve uma interpolação discreta que a princípio me passou
despercebida: “Como P. não conseguisse entendê-lo, Fl. me perguntou”,
etc. Quando a interpretação estancou, retornei a essas palavras e foram elas
que me levaram à fantasia infantil que se revelou um ponto nodal intermediário
nos pensamentos oníricos. [Ver em [1]] Chegou-se a isso através dos versos:
Selten habt ihr
mich verstanden,
Selten auch verstand ich Euch,
Nur wenn wir im Kot uns fander,
So verstanden wir uns gleich.
Em toda análise
se poderiam encontrar exemplos para mostrar que precisamente os elementos mais
triviais de um sonho são indispensáveis a sua interpretação e que o trabalho em
andamento é interrompido quando se tarda a prestar atenção a esses elementos.
Ao interpretar sonhos, atribuímos idêntica importância a cada um dos matizes de
expressão lingüística em que eles nos foram apresentados. E mesmo quando o
texto do sonho, tal como o tínhamos, era sem sentido ou insuficiente - como se
o esforço de fornecer dele um relato correto tivesse fracassado - levamos
também essa falha em consideração. Em suma, tratamos como Sagrada Escritura
aquilo que os autores precedentes haviam encarado como uma improvisação
arbitrária, remendada às pressas no embaraço do momento. Essa contradição
requer uma explicação.
A explicação nos
é favorável, embora sem tirar a razão dos outros autores. À luz de nosso
recém-adquirido entendimento da origem dos sonhos, a contradição desaparece por
completo. É verdade que distorcemos os sonhos ao tentar reproduzi-los; aí
reencontramos em ação o processo que descrevemos como a elaboração secundária
(e muitas vezes mal formulada) do sonho pela instância encarregada do
pensamento normal [em [1]]. Mas essa mesma distorção não passa de uma parte da
elaboração a que os pensamentos oníricos são regularmente submetidos em
decorrência da censura do sonho. Os outros autores notaram ou suspeitaram aqui
do papel de distorção do sonho que atua de maneira ostensiva; quanto a nós,
estamos menos interessados nisso, pois sabemos que um processo de distorção muito
mais extenso, embora menos óbvio, já fez o sonho brotar dos pensamentos
oníricos ocultos. O único erro cometido pelos autores precedentes foi supor
que a modificação do sonho, no processo de ser lembrado e posto em palavras, é arbitrária
e não admite maior análise, sendo, portanto, passível de nos fornecer uma
imagem enganosa do sonho. Eles subestimaram a extensão do determinismo nos
eventos psíquicos. Não há neles nada de arbitrário. De modo bastante geral,
pode-se demonstrar que, se um elemento deixa de ser determinado por certa
cadeia de pensamentos, sua determinação é imediatamente comandada por outra.
Por exemplo, posso tentar pensar arbitrariamente num número, mas isso é
impossível: o número que me ocorre é inequívoca e necessariamente determinado
por pensamentos que haja em mim, ainda que estejam distantes de minha intenção
imediata. Do mesmo modo, as modificações a que os sonhos são submetidos na
redação [Redaktion] da vida de vigília tampouco são arbitrárias. Estão
associativamente ligadas ao material que substituem e servem para indicar-nos o
caminho para esse material, que, por sua vez, pode ser substituto de alguma
outra coisa.
Ao analisar os
sonhos de meus pacientes, às vezes submeto essa asserção ao seguinte teste, que
nunca me falhou: quando o primeiro relato que me é feito de um sonho por um
paciente é muito difícil de compreender, peço-lhe que o repita. Ao fazer isso,
ele raramente emprega as mesmas palavras. Entretanto, as partes do sonho que
ele descreve em termos diferentes são-me reveladas, por esse fato, como o ponto
fraco do disfarce do sonho: servem para mim como serviu para Hagen o sinal
bordado no manto de Siegfried. É esse o ponto
por onde se pode iniciar a interpretação do sonho. Minha solicitação de que o
paciente repetisse seu relato do sonho advertiu-o de que eu tinha o propósito
de me empenhar particularmente em solucioná-lo; assim, sob a pressão da
resistência, ele encobre às pressas os pontos fracos do disfarce do sonho,
substituindo quaisquer expressões que ameacem trair seu sentido por outras
menos reveladoras. Desse modo, atrai minha atenção para a expressão que
abandonou. O empenho do sonhador em impedir a solução do sonho fornece-nos uma
base para inferir o cuidado com que seu manto foi tecido.
Menos
justificativa tiveram os autores precedentes para devotar tanto espaço à dúvida
com que nosso juízo recebe os relatos de sonhos. É que essa dúvida não tem
nenhuma justificativa intelectual. Em geral, não há garantia de exatidão de
nossa memória, mas, mesmo assim, cedemos à compulsão de dar crédito a seus
dados com muito mais freqüência do que seria obviamente justificado. A
dúvida sobre a exatidão do relato de um sonho ou de certos pormenores dele é
também um derivado da censura onírica, da resistência à irrupção dos pensamentos
oníricos na consciência. Essa resistência não se esgotou nem mesmo com os
deslocamentos e substituições que ocasionou; persiste sob a forma de uma dúvida
ligada ao material que foi admitido [na consciência]. Ficamos especialmente
inclinados a interpretar mal essa dúvida na medida em que ela tem o cuidado de
nunca atacar os elementos mais intensos do sonho, mas apenas os fracos e
indistintos. Como já sabemos,porém, uma completa transmutação de todos os
valores psíquicos se dá entre os pensamentos oníricos e o sonho [em [1]]. A
distorção só é possibilitada pela retirada do valor psíquico; habitualmente,
ela se expressa por esse meio e às vezes se contenta em não pedir mais nada.
Assim, quando um elemento indistinto do conteúdo do sonho é, além disso, atacado
pela dúvida, temos aí uma indicação segura de estarmos lidando com um derivado
mais ou menos direto de um dos pensamentos oníricos proscritos. O estado de
coisas é como o que se instaurava após uma grande revolução numa das repúblicas
da Antigüidade ou da Renascença. As famílias nobres e poderosas que antes
haviam dominado o cenário eram mandadas para o exílio e todos os altos postos
eram ocupados por recém-chegados. Apenas os membros mais empobrecidos e
impotentes das famílias derrotadas ou seus dependentes distantes tinham
permissão de permanecer na cidade e, mesmo assim, não desfrutavam de plenos
direitos civis e eram encarados com desconfiança. A desconfiança, nessa
analogia, corresponde à dúvida no caso que estamos considerando. É por isso
que, ao analisar um sonho, insisto em que toda a escala de estimativas de
certeza seja abandonada e que a mais ínfima possibilidade de que possa ter
ocorrido no sonho algo de tal ou qual natureza seja tratada como uma certeza
completa. Ao rastrear a origem de qualquer elemento do sonho, descobrir-se-á
que, a menos que essa atitude seja firmemente adotada, a análise chegará a uma
paralisação. Quando se lança qualquer dúvida sobre o valor do elemento em
questão, o resultado psíquico, no paciente, é que não lhe ocorre nenhuma das
representações involuntárias subjacentes a esse elemento. Esse resultado não é
evidente por si só. Não seria absurdo que alguém dissesse: “Não sei ao certo se
tal ou qual coisa entrou no sonho, mas eis o que me ocorre a respeito”. De
fato, porém, ninguém jamais diz isso, e é precisamente o fato de a dúvida
produzir esse efeito de interrupção na análise que a revela como um derivado e
um instrumento da resistência psíquica. A psicanálise é justificadamente
desconfiada. Uma de suas regras é que tudo o que interrompe o progresso
do trabalho analítico é uma resistência.
Também o esquecimento
dos sonhos permanece inexplicável enquanto não se leva em consideração o poder
da censura psíquica. Em diversos casos, a sensação de se haver sonhado muito
durante a noite e de se haver retido apenas uma pequena parcela disso pode, na
realidade, ter outro sentido: por exemplo, o de que o trabalho do sonho esteve
perceptivelmente ativo a noite inteira, mas só deixou atrás de si um sonho
curto. [Ver em [1], [2] e [3].] Decerto é indubitável que nos esquecemos cada
vez mais dos sonhos à medida que o tempo passa após o despertar; muitas vezes
os esquecemos apesar dos mais esmerados esforços de relembrá-los. Entretanto,
sou de opinião que a extensão desse esquecimento costuma ser superestimada; e
de maneira similar se superestima o grau em que as lacunas do sonho limitam
nosso conhecimento dele. Com freqüência, se pode resgatar, por meio da análise,
tudo o que foi perdido pelo esquecimento do conteúdo do sonho; pelo menos, num
número bastante grande de casos, pode-se reconstruir, a partir de um único
fragmento remanescente, não o sonho, é verdade - o que, de qualquer modo, não
tem nenhuma importância -, mas todos os pensamentos oníricos. Isso exige certa
dose de atenção e autodicisplina na condução da análise; isto é tudo - mas
mostra que não faltou a atuação de um propósito hostil [isto é, resistente] no
esquecimento do sonho. [1]
Uma prova
convincente do fato de que o esquecimento dos sonhos é tendencioso e serve aos
propósitos da resistência é fornecida quando se tem a
possibilidade de observar, nas análises, um estágio preliminar de esquecimento.
Não é infreqüente que, no meio do trabalho de interpretação, uma parte omitida
do sonho venha à luz e seja descrita como tendo sido esquecida até então. Ora,
uma parte do sonho assim resgatada do esquecimento é, invariavelmente, a mais
importante; situa-se sempre no caminho mais curto para a solução do sonho e por
isso foi mais exposta à resistência do que qualquer outra parte. Entre os
exemplos de sonhos dispersos neste volume, há um em que parte do conteúdo foi
assim acrescentada como uma reflexão posterior. Trata-se do sonho em que me
vinguei de dois desagradáveis companheiros de viagem e que tive de deixar quase
sem interpretação por ser grosseiramente indecente. [Ver em [1]] A porção
omitida era a seguinte: “Eu disse [em inglês], referindo-me a uma das
obras de Schiller: ‘It is from…’, mas, notando o engano, corrigi-me: ‘It is
by…’ ‘Sim’, comentou o homem com sua irmã, ‘ele disse isso corretamente.” ‘
As autocorreções
nos sonhos, que parecem tão maravilhosas a certos autores, não precisam ocupar
nossa atenção. Indicarei, em vez disso, a lembrança que serviu de modelo para
meu erro verbal nesse sonho. Quando tinha dezenove anos, visitei a
Inglaterra pela primeira vez e passei um dia inteiro nas praias do Mar da
Irlanda. Naturalmente, regalei-me com a oportunidade de recolher animais
marinhos deixados para trás pela maré e estava ocupado com uma estrela-do-mar -
as palavras “Hollthurn” e “holotúria‘’ [lesma-do-mar] ocorreram
no início do sonho - quando uma encantadora garotinha aproximou-se de mim e
perguntou: “É uma estrela-do-mar? Está viva?” [It is alive] “Sim”,
respondi, “está viva” [he is alive]” e, em seguida, embaraçado com
meu erro, repeti a frase corretamente. O sonho substituiu o erro verbal então
cometido por outro em que um alemão está igualmente sujeito a incorrer: “Das
Buch ist von Schiller” deveria ser traduzido não por “from”, mas por
“by”. Após tudo o que já aprendemos sobre os propósitos do trabalho
do sonho e sua escolha afoita de métodos para atingi-los, não ficaremos
surpresos em saber que ele efetuou essa substituição por causa do magnífico
exemplo de condensação possibilitado pela identidade fonética entre o inglês
“from” e o adjetivo alemão “fromm” [“devoto”, “beatífico”]. Mas como foi que
minha inocente lembrança da beira-mar entrou no sonho? Ela funcionou como o
exemplo mais inocente possível de meu emprego de uma palavra indicativa de
gênero ou sexo no lugar errado - de eu trazer à baila o sexo (a palavra “he”)
onde ele não era cabível. Essa, aliás, foi uma das chaves para a solução do
sonho. Ademais, ninguém que tenha conhecimento da origem atribuída ao título “Matter
and Motion” [“Matéria e Movimento”], de Clerk Maxwell
[mencionado no sonho, em [1]] terá qualquer dificuldade em preencher as
lacunas: “Le Malade Imaginaire”, de “Molière - “La matière
est-elle laudable?” - Movimento dos intestinos.
Além disso,
estou em condições de oferecer uma demonstração ocular do fato de que o
esquecimento dos sonhos, em grande parte, é produto da resistência. Vem um de
meus pacientes e me conta que teve um sonho, masesqueceu todo e qualquer
vestígio dele: portanto, é como se nunca tivesse acontecido. Prosseguimos com
nosso trabalho. Deparo com uma resistência; por isso, explico algo ao paciente
e o auxilio, através do incentivo e da pressão, a chegar a um acordo com algum
pensamento desagradável. Mal consigo fazer isso, ele exclama: “Agora me lembro
do que foi que sonhei!” A mesma resistência que estava interferindo em nosso
trabalho desse dia também o fizera esquecer o sonho. Superando essa
resistência, resgatei o sonho para sua memória.
Exatamente da
mesma maneira, quando um paciente atinge determinado ponto em seu trabalho, é
possível que consiga lembrar-se de um sonho ocorrido há três ou quatro dias, ou
até mais, e que até então permanecera esquecido.
A experiência
psicanalítica forneceu-nos ainda outra
prova de que o esquecimento dos sonhos depende muito mais da resistência que do
fato, acentuado pelas autoridades, de serem os estados de vigília e sono
estranhos um ao outro [em [1]]. Não raro me acontece, tal como a outros
analistas e a pacientes em tratamento, depois de ser despertado por um sonho,
por assim dizer, passar imediatamente, e em plena posse de minhas faculdades
intelectuais, a interpretá-lo. Nessas situações, muitas vezes me recusei a
descansar enquanto não chegasse a uma compreensão completa do sonho; contudo,
foi minha experiência, algumas vezes, depois de finalmente acordar pela manhã,
constatar que havia esquecido inteiramente tanto minha atividade interpretativa
quanto o conteúdo do sonho, embora sabendo que tivera um sonho e que o
interpretara. É muito mais freqüente o sonho arrastar consigo para o
esquecimento os resultados de minha atividade interpretativa do que minha
atividade intelectual conseguir preservá-lo na memória. Não obstante, não
existe entre minha atividade interpretativa e meus pensamentos de vigília o
abismo psíquico que as autoridades supõem para explicar o esquecimento dos
sonhos.
Morton Prince
(1910 [141]) levantou objeções a minha explicação do esquecimento dos sonhos,
mediante a alegação de que o esquecimento é apenas um caso particular da
amnésia ligada aos estadosmentais dissociados, de que é impossível estender
minha explicação dessa amnésia especial a outros tipos e de que, por
conseguinte, minha explicação é destituída de valor até mesmo para seu
propósito imediato. Seus leitores são assim lembrados de que, ao longo de todas
as descrições que faz desses estados dissociados, ele nunca tentou descobrir
uma explicação dinâmica para tais fenômenos. Se o tivesse feito, teria
inevitavelmente descoberto que o recalque (ou, mais precisamente, a resistência
criada por ele) é a causa tanto das dissociações quanto da amnésia ligada ao
conteúdo psíquico destas.
Uma observação
que pude fazer durante a preparação deste manuscrito mostrou-me que os sonhos
não são mais esquecidos do que outros atos mentais e podem ser comparados, sem
nenhuma desvantagem, com outras funções mentais, no que concerne a sua retenção
na memória. Eu havia conservado registros de um grande número dos meus próprios
sonhos que, por uma razão ou outra, não pudera interpretar por completo na
época ou deixara inteiramente sem interpretação. E agora, passados um a dois
anos, tentei interpretar alguns deles com a intenção de obter mais material
para ilustrar meus pontos de vista. Essas tentativas tiveram êxito na
totalidade dos casos; a rigor, pode-se dizer que a interpretação progrediu com
mais facilidade após esse longo intervalo do que na época em que o sonho era
uma experiência recente. Uma possível explicação disso é que, entrementes, superei
algumas das resistências internas que antes me obstruíam. Ao fazer essas
interpretações posteriores, comparei os pensamentos oníricos que evocara na
época do sonho com a produção atual, geralmente muito mais abundante, e
constatei que os antigos estavam sempre incluídos entre os novos. Meu assombro
diante disso foi prontamente sustado pela consideração de que, desde longa
data, desenvolvi o hábito de fazer com que meus pacientes, que às vezes me
contam sonhos de anos anteriores, interpretem-nos - pelo mesmo procedimento e
com o mesmo sucesso - como se os houvessem sonhado na noite anterior. Quando
chegar à discussão dos sonhos de angústia, apresentarei dois exemplos dessas
interpretações adiadas. [Ver em [1]] Fui levado a fazer minha primeira
experiência dessa natureza pela justificável expectativa de que nisso, como em
outros aspectos, os sonhos se comportariam como sintomas neuróticos. Quando
trato um psiconeurótico - um histérico, digamos - pela psicanálise, sou forçado
a chegar a uma explicação tanto dos sintomas mais primitivos e há muito
desaparecidos de sua doença quanto dos sintomas contemporâneos que o trouxeram
a mim para tratamento; e, a rigor, considero o problema primitivo mais fácil de
solucionar do que o imediato. Já em 1895, foi-me possível dar uma
explicação, nos Estudos sobre a Histeria [Breuer e Freud, 1895], do
primeiro ataque histérico que uma mulher com mais de quarenta anos tivera aos
quinze anos de idade. [Essa paciente era a Sra. Cäcilie M., mencionada ao
final do Caso Clínico V.]
E quero aqui
mencionar alguns outros pontos um tanto desconexos sobre a questão da
interpretação dos sonhos, que talvez ajudem a orientar os leitores que se
sintam porventura inclinados a conferir minhas afirmações mediante um trabalho
posterior com seus próprios sonhos.
Ninguém deve
esperar que uma interpretação de seus sonhos lhe caia no colo como um maná dos
céus. A prática é necessária até mesmo para perceber fenômenos endópticos ou
outras sensações de que nossa atenção está normalmente afastada; e isso ocorre
apesar de não haver nenhum motivo psíquico lutando contra tais percepções. É
decididamente mais difícil captar as “representações involuntárias”. Quem quer
que procure fazê-lo deve familiarizar-se com as expectativas levantadas nesta
obra e, de acordo com as regras nela estabelecidas, esforçar-se, durante o
trabalho, por se abster de qualquer crítica, qualquer parti pris e
qualquer inclinação afetiva ou intelectual. Deve ter em mente o conselho de Claude
Bernard aos experimentadores de um laboratório de fisiologia: “travailler
comme une bête” - isto é, trabalhar com a mesma persistência de um animal e
com idêntica despreocupação com o resultado. Se esse conselho for seguido, já
não será difícil a tarefa.
Nem sempre se
pode consumar a interpretação de um sonho de uma só vez. Depois de seguirmos
uma cadeia de associações, não raro sentimos esgotada nossa capacidade; nada
mais se pode saber do sonho nesse dia. O mais aconselhável, nesse caso, é
interromper o trabalho e retomá-lo em outro dia: outra parte do conteúdo do
sonho poderá então atrair nossa atenção e dar-nos acesso a outra camada dos
pensamentos oníricos. Esse procedimento poderia ser descrito como interpretação
“fracionada” do sonho.
Só com extrema
dificuldade é que o principiante na tarefa de interpretar sonhos se deixa
persuadir de que sua tarefa não chega ao fim quando ele tem nas mãos uma
interpretação completa - uma interpretação que faz sentido, é coerente e
esclarece todos os elementos do conteúdo do sonho. É que um mesmo sonho pode ter
também outra interpretação, uma “superinterpretação” que lhe escapou. De fato,
não é fácil ter uma concepção da abundância das cadeias inconscientes de
pensamento ativas em nosso psiquismo, todas lutando por encontrar expressão.
Tampouco é fácil dar crédito à perícia exibida pelo trabalho do sonho na
descoberta permanente de formas de expressão capazes de abrigar diversos
sentidos - como o Alfaiatezinho do conto de fadas que acertou sete moscas com
um só golpe. Meus leitores estarão sempre inclinados a me acusar de introduzir
uma quantidade desnecessária de engenhosidade em minhas interpretações; mas a
experiência real lhes ensinaria que não é bem assim. [Ver em [1].]
Por outro lado, [1]
não posso confirmar a opinião, originalmente formulada por Silberer [p. ex.,
1914, Parte II, Seção 5], de que todos os sonhos (ou muitos sonhos, ou certas
classes de sonhos) requerem duas interpretações diferentes, que se afirma até
mesmo possuírem uma relação fixa entre si. Afirma-se que uma dessas
interpretações, que Silberer chama de “psicanalítica”, dá ao sonho um ou outro
sentido, geralmente de cunho infantil-sexual; quanto à outra interpretação,
mais importante, a que ele dá o nome de “anagógica”, diz-se que revela os
pensamentos mais sérios, muitas vezes de implicações profundas, que o trabalho
do sonho tomou como material. Silberer não forneceu provas confirmadoras dessa
opinião através do relato de uma série de sonhos analisados nessas duas
direções. E tenho de objetar que inexiste o fato alegado. A despeito do que ele
diz, a maioria dos sonhos não requer ‘’superinterpretação” e, mais
particularmente, é insuscetível à interpretação “anagógica”. Tal como ocorre
com muitas outras teorias formuladas em anos recentes, é impossível desprezar o
fato de que as opiniões de Silberer são influenciadas, até certo ponto, por uma
tendência que visa a disfarçar as circunstâncias fundamentais em que se formam
os sonhos e desviar o interesse de suas raízes pulsionais. Em certo número de
casos, pude corroborar as afirmações de Silberer. A análise demonstrou que, em
tais casos, o trabalho do sonho viu-se diante do problema de transformar em
sonho uma série de pensamentos altamente abstratos da vida de vigília,
insuscetíveis a receber qualquer representação direta. Esforçou-se por resolver
esse problema apoderando-se de outro grupo do material intelectual um tanto
frouxamente relacionado com os pensamentos abstratos (muitas vezes, de maneira
que se poderia descrever como “alegórica”) e, ao mesmo tempo, passível de ser
representado com menor dificuldade. A interpretação abstrata de um
sonho assim surgido é dada pelo sonhador sem qualquer dificuldade; a
interpretação “correta” do material interpolado deve ser buscada pelos métodos
que agora nos são familiares.
Caso se pergunte
se é possível interpretar todos os sonhos, a resposta deve ser negativa. Não se deve esquecer que, na interpretação de um sonho, tem-se como
oponentes as forças psíquicas que foram responsáveis por sua distorção. É numa
relação de forças, portanto, que se determina se nosso interesse intelectual,
nossa capacidade de autodisciplina, nossos conhecimentos psicológicos e nossa
prática de interpretar sonhos irão habilitar-nos a dominar nossas resistências
internas. É sempre possível caminhar um pouco: o bastante, pelo menos, para
nos convencermos de que o sonho é uma estrutura provida de sentido, e, em
geral, o bastante para entrever qual é esse sentido. Com muita freqüência, um
sonho que vem logo a seguir permite-nos confirmar e levar adiante a
interpretação que adotamos experimentalmente para seu antecessor. Muitas vezes,
uma série de sonhos que se estende por um período de semanas ou meses está
baseada num fundo comum e, por conseguinte, deve ser interpretada como um
conjunto interligado. [Ver em [1] e [2].] No caso de dois sonhos consecutivos,
observa-se com freqüência que um deles toma como ponto central algo que se acha
apenas na periferia do outro e vice-versa, de maneira que também suas
interpretações são mutuamente complementares. Já forneci exemplos que mostram
que os diferentes sonhos de uma mesma noite, em regra bastante geral, devem ser
tratados como um todo único em sua interpretação. [Ver em [1]]
Mesmo no sonho
mais minuciosamente interpretado, é freqüente haver um trecho que tem de ser
deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação,
apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que
não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento
do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no
desconhecido. [Ver em [1].] Os pensamentos oníricos a que somos levados pela
interpretação não podem,pela natureza das coisas, ter um fim definido; estão
fadados a ramificar-se em todas as direções dentro da intricada rede de nosso
mundo do pensamento. É de algum ponto em que essa trama é particularmente
fechada que brota o desejo do sonho, tal como um cogumelo de seu micélio.
Mas temos de
retornar aos fatos concernentes ao esquecimento dos sonhos, pois deixamos de
tirar deles uma importante conclusão. Vimos que a vida de vigília mostra uma
tendência inequívoca a esquecer qualquer sonho que se tenha formado durante a
noite, seja como um todo, logo após o despertar, seja aos bocadinhos no correr
do dia; e reconhecemos que o principal responsável por esse esquecimento é a
resistência anímica ao sonho, resistência essa que já fez o que pôde contra ele
durante a noite. Mas, se é assim, uma questão se coloca: como é que o sonho
pode chegar a se formar em face dessa resistência? Tomemos o caso mais extremo,
em que a vida de vigília se descarta de um sonho como se ele nunca houvesse
ocorrido. Um exame da interação das forças psíquicas nesse caso deverá
levar-nos a inferir que o sonho de fato não teria ocorrido se a resistência
fosse tão acentuada durante a noite quanto o é durante o dia. Temos de concluir
que, no decorrer da noite, a resistência perde parte de seu poder, embora
saibamos que não o perde inteiramente, uma vez que já mostramos o papel que
desempenha na formação dos sonhos como agente deformador. Mas somos levados a
supor que seu poder fique diminuído à noite e que isso possibilite a formação
dos sonhos. Fica então fácil compreender como, depois de recuperar a plenitude
de sua força no momento do despertar, ela passa imediatamente a se livrar
daquilo que foi obrigada a permitir enquanto enfraquecida. Diz-nos a psicologia
descritiva que o principal sine qua non para a formação de sonhos é que
a mente esteja em estado de sono; e agora podemos explicar esse fato; o
estado de sono possibilita a formação de sonhos porque reduz o poder da censura
endopsíquica.
É sem dúvida
tentador encarar essa inferência como a única possível a partir dos fatos do
esquecimento dos sonhos e fazer dela a base para outras conclusões quanto às
condições de energia que prevalecem durante o sono e a vigília. Por ora,
entretanto, deter-nos-emos aqui. Quando tivermos penetrado um pouco mais a
fundo na psicologia dos sonhos, veremos que os fatores que possibilitam sua
formação também podem ser concebidos de outra maneira. Talvez a resistência à
conscientização dos pensamentos oníricos possa ser evitada sem que tenha havido
qualquer redução em seu poder. E parece plausível que ambos os fatores
que favorecem a formação dos sonhos - a redução e a evitação da resistência -
sejam simultaneamentepossibilitados pelo estado de sono. Farei aqui uma
interrupção, embora vá retomar este tema dentro em breve. [Ver em [1]]
Existe outro
conjunto de objeções a nosso método de interpretação dos sonhos, do qual
devemos agora tratar. Nosso procedimento consiste em abandonar todas as
representações-meta que normalmente dirigem nossas reflexões, focalizar nossa
atenção num único elemento do sonho e, então, tomar nota de todos os
pensamentos involuntários que possam ocorrer-nos a propósito dele. Tomamos
então a parte seguinte do sonho e repetimos o processo com ela.
Deixamo-nos impelir por nossos pensamentos, qualquer que seja a direção em que
nos conduzam, e assim vagamos a esmo de uma coisa para outra. Mas nutrimos a
firme crença de que, no final, sem qualquer intervenção ativa de nossa parte,
chegaremos aos pensamentos oníricos de que se originou o sonho.
Nossos críticos
objetam a isso nos seguintes termos: não há nada de maravilhoso no fato de um
elemento isolado do sonho nos conduzir a algum lugar; toda representação
pode ser associada com algo. O que é excepcional é que uma cadeia
de pensamentos tão arbitrária e sem objetivo nos leve aos pensamentos oníricos.
A probabilidade é que nos estejamos iludindo. Seguimos uma cadeia de
associações que parte de um elemento até que, por uma razão ou outra, ela
parece romper-se. Se tomarmos então um segundo elemento, é de se esperar que o
caráter originalmente irrestrito de nossas associações se estreite, pois ainda
temos a cadeia anterior de associações em nossa memória e, por essa razão, aos
analisarmos a segunda representação onírica, é mais provável que esbarremos em
associações que tenham algo em comum com as da primeira cadeia. Iludimo-nos
então com a idéia de havermos descoberto um pensamento que é um ponto de
ligação entre dois elementos do sonho. Uma vez que nos damos total liberdade
para ligar os pensamentos como bem entendermos, e visto que, na realidade, as
únicas transições que excluímos de uma representação para outra são as que
vigem no pensamento normal, não teremos nenhuma dificuldade, com o correr do
tempo, em compor, a partir de alguns “pensamentos intermediários”, algo que
descrevemos como sendo os pensamentos oníricos e que - embora sem qualquer
garantia, pois não dispomos de outros conhecimentos do que sejam os pensamentos
oníricos - alegamos ser o substituto psíquico do sonho. Mas tudo isso é
completamente arbitrário; estamos meramente explorando ligações fortuitas de
uma maneira que propicia um efeito engenhoso. Assim, quem quer que se dê a todo
esse trabalho inútil poderá excogitar para qualquer sonho a interpretação que
mais lhe aprouver.
Se de fato nos
levantassem tais objeções, poderíamos defender-nos apelando para a impressão
causada por nossas interpretações, para as surpreendentes ligações com outros
elementos do sonho que emergem enquanto seguimos uma de suas representações
isoladas, e para a improbabilidade de que se pudesse chegar a algo capaz de dar
uma explicação tão exaustiva do sonho senão seguindo ligações psíquicas já estabelecidas.
Poderíamos também assinalar, em nossa defesa, que nosso procedimento na
interpretação dos sonhos é idêntico ao procedimento pelo qual resolvemos os
sintomas histéricos; e nisso, a correção de nosso método é atestada pela
emergência e desaparecimento coincidentes dos sintomas, ou, para usar um
símile, as afirmações feitas no texto são corroboradas pelas ilustrações que as
acompanham. Mas não temos nenhuma razão para nos esquivarmos do problema de
como é possível chegar-se a um objetivo preexistente seguindo o curso fortuito
de uma cadeia de pensamentos arbitrária e sem meta alguma; e isso porque,
embora talvez não possamos solucionar o problema, podemos esvaziá-lo por
completo.
Ocorre que é
demonstravelmente inverídico que estejamos sendo arrastados por uma corrente de
representações sem meta alguma quando, no processo de interpretar um sonho,
abandonamos a reflexão e deixamos que emerjam representações involuntárias.
Pode-se demonstrar que a única coisa de que conseguimos libertar-nos são as representações-meta
que nos são conhecidas; mal fazemos isso, as representações-meta desconhecidas
- ou, como dizemos sem precisão, “inconscientes” - assumem o comando e, daí por
diante, determinam o curso das representações involuntárias. Nenhuma influência
que possamos exercer sobre nossos processos anímicos nos facultará pensar sem
representações-meta, nem tenho conhecimento de qualquer estado de confusão
psíquica que seja capaz de fazê-lo. Os
psiquiatrasrenunciaram com excessiva pressa, nesse aspecto, a sua crença na
concatenação dos processos psíquicos. Sei com certeza que não ocorrem cadeias
de pensamento desprovidas de representações-meta nem na histeria e na paranóia,
nem na formação ou resolução dos sonhos. É possível que elas não ocorram em
nenhum dos distúrbios psíquicos endógenos. Até mesmo os delírios dos estados
confusionais podem ter sentido, se aceitarmos a brilhante sugestão de Leuret
[1834, 131] de que eles só nos são inteligíveis por causa das lacunas que
apresentam. Eu próprio formei a mesma opinião a cada vez que tive oportunidade
de observá-los. Os delírios são obra de uma censura que já não se dá ao
trabalho de ocultar seu funcionamento; em vez de colaborar para produzir uma
nova versão que seja inobjetável, ela suprime brutalmente tudo aquilo a que
desaprova, de maneira que o que resta se torna muito desconexo. Essa censura
age exatamente como a censura dos jornais na fronteira russa, que só permite
que os periódicos estrangeiros caiam nas mãos dos leitores por quem tem o dever
de zelar depois de colocar uma tarja negra sobre diversos trechos.
É possível que
um livre jogo das representações com uma cadeia de associações fortuita seja
encontrado nos processos cerebrais orgânicos destrutivos; o que é encarado como
tal nas psiconeuroses é sempre explicável como um efeito da influência da
censura numa cadeia de pensamentos empurrada para o primeiro plano por
representações-meta que permaneceram ocultas. Tem-se
considerado como sinal infalível de que uma associação está isenta da
influência das representações-meta o fato de as associações (ou imagens) em
questão parecerem inter-relacionadas de um modo que se descreve como
“superficial” - por assonância, ambigüidade verbal, coincidência temporal sem
relação interna de sentido, ou por qualquer associação do tipo que permitimos
nos chistes ou nos trocadilhos. Essa característica está presente nas cadeias
de pensamento que vão dos elementos do sonho até os pensamentos intermediários
e, destes, até os pensamentos oníricos propriamente ditos; já vimos exemplos
disso - não sem espanto - em muitas análises de sonhos. Nenhuma ligação era
solta demais, nenhum chiste era precário demais para servir de ponte entre um
pensamento e outro. Mas a verdadeira explicação desse estado de coisas
tolerante não tarda em ser descoberta. Sempre que um elemento psíquico
está vinculado a outro por uma associação objetável ou superficial, há também
entre eles um vínculo legítimo e mais profundo que está submetido à resistência
da censura.
A verdadeira
razão do predomínio de associações superficiais não está no abandono das
representações-meta, mas sim na pressão da censura. As associações superficiais
substituem as profundas quando a censura torna intransitáveis as vias normais
de ligação. Podemos imaginar, a título de analogia, uma região montanhosa onde
uma interrupção geral do tráfego (devida a inundações, por exemplo) bloqueou as
estradas principais, mais importantes, porém onde as comunicações ainda são
mantidas através de trilhas inconvenientes e íngremes, normalmente utilizadas
apenas pelos caçadores.
Aqui se podem
distinguir dois casos, embora, em essência, eles sejam o mesmo. No primeiro, a
censura se volta apenas contra a ligação entre dois pensamentos que,
separadamente, não suscitam objeção. Nesse caso, os dois pensamentos penetram
sucessivamente na consciência; a ligação entre eles permanece oculta e, em seu
lugar, ocorre-nos entre os dois uma ligação superficial em que, de outra
maneira, nunca teríamos pensado. Essa ligação costuma estar vinculada a uma
parte do complexo de representações muito diferente daquela em que se baseia a
ligação suprimida e essencial. O segundocaso é aquele em que os dois
pensamentos, por si só, são submetidos à censura por causa de seu conteúdo.
Sendo assim, nenhum dos dois aparece em sua forma verdadeira, mas apenas numa
forma modificada que a substitui, e os dois pensamentos substitutos são
escolhidos de maneira a possuírem uma associação superficial que reproduza o
vínculo essencial que relaciona os dois pensamentos substituídos. Em ambos
os casos, a pressão da censura resultou num deslocamento de uma associação
normal e séria para uma associação superficial e aparentemente absurda.
Uma vez que
estamos cientes da ocorrência desses deslocamentos, não hesitamos, na
interpretação dos sonhos, em confiar tanto nas associações superficiais quanto
nas outras.
Na psicanálise
das neuroses, faz-se o mais amplo uso desses dois teoremas - que, quando se
abandonam as representações-meta conscientes, as representações-meta ocultas
assumem o controle do fluxo de representações, e que as associações
superficiais são apenas substitutos, por deslocamento, de associações mais
profundas e suprimidas. A rigor, esses teoremas transformaram-se em pilares
básicos da técnica psicanalítica. Quando instruo um paciente a abandonar
qualquer tipo de reflexão e me dizer tudo o que lhe vier à cabeça, estou
confiando firmemente na premissa de que ele não conseguirá abandonar as
representações-meta inerentes ao tratamento, e sinto-me justificado para
inferir que o que se afigura como as coisas mais inocentes e arbitrárias que
ele me conta está de fato relacionado com sua enfermidade. Há uma outra
representação-meta de que o paciente não desconfia - uma que se relaciona
comigo. A plena avaliação da importância desses dois teoremas, bem como as
informações mais pormenorizadas sobre eles, enquadram-se no âmbito de uma
exposição da técnica da psicanálise. Aqui atingimos, portanto, um dos pontos
limítrofes em que, segundo nosso programa, devemos abandonar o tema da
interpretação dos sonhos.
Há uma conclusão
verdadeira que podemos extrair dessas objeções, qual seja, que não precisamos
supor que todas as associações ocorridas durante o trabalho de interpretação
tenham tido lugar no trabalho do sonho durante a noite. [Ver em [1] e [2].] É
verdade que, ao fazermos a interpretação no estado de vigília, seguimos um
caminho que retrocede dos elementos do sonho para os pensamentos oníricos, e
que o trabalho do sonho seguira um rumo inverso. Mas é altamente improvável que
esses caminhos sejam transitáveis em ambos os sentidos. Ao contrário, parece
que, durante o dia, enveredamos por novas cadeias de pensamentos e que essas
veredas estabelecem contato com os pensamentos intermediários e com os
pensamentos oníricos ora num ponto, ora noutro. É fácil perceber como, dessa
maneira, o novo material diurno se imiscui nas cadeias interpretativas. É
provável também que o aumento da resistência instaurado desde a noite torne
necessários novos e mais tortuosos desvios. O número e a natureza dos fios
colaterais [ver em [1]] que assim tecemos durante o dia não têm a menor
importância psicológica, desde que nos conduzam aos pensamentos oníricos de que
estamos à procura.
continua na Parte2