CAPÍTULO VIII - EQUÍVOCOS NA AÇÃO
Da obra citada de Meringer e Mayer (1895, 98) retiro o seguinte trecho [em [1]]:
“Os equívocos da fala não deixam de ter paralelos. Correspondem às falhas que freqüentemente ocorrem em outras atividades humanas e são conhecidas pela denominação bastante tola de ‘descuidos’.”
Portanto, não sou de modo algum o primeiro a supor um sentido e um propósito por trás das pequenas perturbações funcionais da vida cotidiana das pessoas sadias.
Se os lapsos na fala - que é claramente sua função motora - podem ser entendidos dessa maneira, basta um pequeno passo para estender essa mesma expectativa aos erros em nossas outras atividades motoras. Formei aqui dois grupos de casos. Uso o termo “equívocos na ação” [“Vergreifen”] para descrever todos os casos em que o efeito falho - ou seja, um desvio do que fora intencionado - parece ser o elemento essencial; aos outros, em que é antes a ação inteira que parece inoportuna, chamo-os de “atos sintomáticos e acidentais” [“Symptom- und Zufallshandlungen”]. Mas não se pode traçar uma demarcação nítida entre eles e, na verdade, somos forçados a concluir que todas as divisões feitas neste estudo têm apenas uma importância descritiva e contradizem a unidade interna desse campo de fenômenos.
É claro que a compreensão psicológica dos “equívocos na ação” não será particularmente promovida se os classificarmos sob o título de “ataxia” ou, em especial, de “ataxia cortical”. Tentemos, antes, reconduzir cada exemplo a seus respectivos determinantes. Para isso, tornarei a valer-me de algumas auto-observações, ainda que, em meu caso, as oportunidades para fazê-las não sejam particularmente freqüentes.
(a)Em anos anteriores, quando eu visitava os paciente a domicílio com maior freqüência do que hoje, ocorria-me muitas vezes, ante a porta em que eu deveria bater ou tocar a campainha, tirar do bolso as chaves de minha própria casa e, logo em seguida, tornar a guardá-las, quase envergonhado.Quando considero os pacientes em cujas casas isso acontecia, sou forçado a supor que esse ato falho - apanhar minha chave em vez de tocar a campainha - tinha o sentido de uma homenagem à casa onde eu cometia esse erro. Era equivalente ao pensamento: “Aqui me sinto em casa”, pois só ocorria em lugares onde eu me havia afeiçoado ao doente. (É óbvio que nunca toco a campainha de minha própria casa.)
Assim, o ato falho era a representação simbólica de um pensamento que, na verdade, não se destinava a ser admitido de maneira séria e consciente, pois, de fato, um neurologista sabe muito bem que o doente só permanece apegado a ele enquanto espera ser beneficiado, e que, por sua vez, ele só se permite sentir um interesse excessivamente caloroso pelos pacientes com vistas a dar-lhes ajuda psíquica.
Numerosas auto-observações feitas por outras pessoas [1] mostram que esse manejo das chaves, equivocado e pleno de sentido, certamente não é uma peculiaridade minha.
Maeder (1906) descreve uma repetição quase idêntica de minhas experiências: “II est arrivé à chacun de sortir son trousseau, en arrivant à la porte d’un ami particulièrement cher, de se surprendre, pour ainsi dire, en train d’ouvrir avec sa clé comme chez soi. C’est un retard, puisqu’il faut sonner malgré tout, mais c’est une preuve qu’on se sent - ou qu’on voudrait se sentir - comme chez soi, auprès de cet ami.”
Jones (1911b, 509): “O uso das chaves é uma fonte fértil desse tipo de ocorrências, das quais é possível fornecer dois exemplos. Quando em meio a algum trabalho absorvente em casa, sou perturbado por ter de ir ao hospital para executar alguma tarefa de rotina, é muito provável que me descubra tentando abrir a porta de meu laboratório no hospital com a chave da escrivaninha de casa, embora as duas chaves sejam bem diferentes uma da outra. Esse erro demonstra, inconscientemente, onde eu preferiria estar naquele momento.
“Há alguns anos, eu trabalhava num cargo subalterno em certa instituição cuja porta principal se mantinha trancada, de modo que era necessário tocar a campainha para entrar. Em várias ocasiões, vi-me fazendo sériastentativas de abrir essa porta com a chave de minha casa. A cada membro do pessoal médico permanente, do qual eu aspirava a fazer parte, fornecia-se uma chave, para evitar-lhe o incômodo de esperar à porta. Meus erros, portanto, expressavam meu desejo de estar em pé de igualdade com eles e de me sentir inteiramente ‘em casa’ ali.”
O Dr. Hanns Sachs relata uma experiência semelhante: “Sempre carrego comigo duas chaves, uma da porta de meu escritório e outra de minha residência. Não é nada fácil confundi-las, visto que a chave do escritório é pelo menos três vezes maior do que a de casa. Além disso, carrego a primeira no bolso da calça e, a segunda, no bolso do colete. Não obstante, ocorreu-me muitas vezes notar, diante da porta, que havia apanhado a chave errada na escadaria. Resolvi fazer uma experiência estatística; já que me postava cotidianamente diante de ambas as portas mais ou menos no mesmo estado de ânimo, a troca das chaves também deveria exibir uma tendência regular, se é que de fato possuía algum determinante psíquico. Minha observação dos casos posteriores mostrou então que eu tirava regularmente a chave de casa diante da porta do escritório, ao passo que o inverso aconteceu apenas uma vez, quando cheguei em casa cansado, sabendo que um convidado estaria à minha espera. Ao chegar à porta, fiz uma tentativa de abri-la com a chave do escritório, que, naturalmente, era grande demais.”
(b)Em determinada casa, faz seis anos que, duas vezes por dia, em horários fixos, costumo esperar para entrar diante de uma porta no segundo piso. Durante esse longo período, aconteceu-me em duas ocasiões (com um curto intervalo entre elas) subir um andar a mais, ou seja, “exceder-me”. Na primeira ocasião, estava entregue a um ambicioso devaneio em que “subia cada vez mais alto”. Nessa ocasião, deixei até de ouvir que a porta em questão se abrira quando coloquei o pé no primeiro degrau do terceiro lance da escada. na outra ocasião, tornei a subir demais, “imerso em pensamentos”; quando dei por isso, fiz meia-volta e tentei apreender a fantasia em que estivera absorto, descobrindo que estivera irritado com uma crítica (fantasiada) a meus textos, na qual eu era censurado por ir sempre “longe demais”, e na qual havia substituído isso pela expressão não muito respeitosa de “extravagante” [versteigen].
(c)Sobre minha escrivaninha estão colocados, há muitos anos, um martelo para testar reflexos e um diapasão. Um dia, saí às pressas ao terminar meu horário de consultas, pois queria tomar determinado trem urbano, e em plena luz do dia coloquei no bolso do casaco o diapasão, em vez do martelo. O peso do objeto, puxando meu bolso para baixo, atraiu-me a atenção para meu erro. Quem não estiver acostumado a atentar para ocorrências tão insignificantes sem dúvida explicará e justificará esse engano pela pressa do momento. Apesar disso, preferi perguntar-me por que, na verdade, eu pegara o diapasão em vez do martelo. Minha pressa também poderia muito bem ter sido um motivo para pegar o objeto certo, e assim não ter que perder tempo em retificar o erro.
“Quem foi a última pessoa a pegar o diapasão?”, foi a pergunta que se impôs a mim nesse momento. Fora um menino idiota cuja atenção às impressões sensoriais eu testara alguns dias antes, e que ficara tão fascinado com o diapasão que a muito custo consegui tirá-lo dele. Significaria isso, então, que eu era um idiota? Decerto parece que sim, pois minha primeira associação a “martelo” (“Hammer”) foi “Chamer” (“burro”, em hebraico).
Mas por que esses insultos? Aqui, é preciso interrogar a situação. Eu estava saindo às pressas para atender a uma consulta num lugar situado na linha ferroviária oeste, para ver um doente que, segundo a anamnese que eu recebera pelo correio, havia caído de uma sacada alguns meses antes e desde então ficara impossibilitado de andar. O médico que me solicitou a consulta escreveu que, apesar disso, não sabia se se tratava de uma lesão na medula ou de uma neurose traumática - histeria. Isso era o que me cabia decidir. Era aconselhável, portanto, que eu fosse particularmente cauteloso na delicada tarefa de fazer o diagnóstico diferencial. Ocorre que meus colegas acham que com demasiada facilidade se fazem diagnósticos de histeria quanto há coisas mais graves em jogo. Mas isso ainda não justificava os insultos. Mas, é claro! Ocorreu-me então que a pequena estação ferroviária ficava no mesmo lugar em que, anos antes, eu examinara um jovem que, desde certo abalo emocional, não conseguia andar devidamente. Na época, fiz um diagnóstico de histeria e em seguida aceitei o paciente em tratamento psíquico, com o que se constatou que meu diagnóstico não fora incorreto, sem dúvida, mas também não fora correto. Um grande número de sintomas do paciente eram histéricos e logo desapareceram no decorrer do tratamento. Mas ocorre que, por trás deles, tornou-se então visível um resíduo inacessível à minha terapia, e que só poderia ser explicado pela esclerose múltipla. Para os que examinaram o doente depois de mim, foi fácil reconhecer a afecção orgânica; quanto a mim, dificilmente poderia ter procedido de outra maneiraou formado um juízo diferente, mas a impressão que ficou foi a de um grave erro; naturalmente, a promessa de cura que eu lhe fizera não pôde ser mantida. O erro de pegar o diapasão em vez do martelo poderia ter traduzido nas seguintes palavras: “Seu idiota, burro! Dessa vez, trate de não tornar a diagnosticar histeria quando estiver diante de uma doença incurável, como fez há anos com aquele pobre homem, nesse mesmo lugar!” E, felizmente para essa pequena análise, embora infelizmente para meu estado de espírito, esse mesmo homem sofrendo de uma grave paralisia espasmódica, estivera em meu consultório poucos dias antes, e um dia depois do menino idiota.
Observa-se que, dessa vez, foi a voz da autocrítica que se fez ouvir no equívoco na ação. Para esse emprego como autocensura, os equívocos na ação mostram-se particularmente apropriados: o desacerto de agora busca representar o engano cometido em outra ocasião.
(d)Evidentemente, os equívocos na ação também podem servir a toda uma série de outros propósitos obscuros. Eis um primeiro exemplo. É muito raro eu quebrar alguma coisa. Não sou particularmente habilidoso, mas um resultado da integridade anatômica de meu aparelho neuromuscular é que não há em mim nenhuma razão para fazer esses movimentos desajeitados, com suas conseqüências indesejadas. Por isso, não me lembro de nenhum objeto em minha casa que tenha sido quebrado por mim. A falta de espaço em meu gabinete obriga-me freqüentemente a manusear uma série de antigüidades de argila e pedra, da quais tenho uma pequena coleção, nas mais incômodas posições, tanto que as pessoas presentes exprimiram o temor de que eu derrubasse alguma coisa e viesse a quebrá-la. Mas isso nunca aconteceu. Por que, então, um dia derrubei no chão a tampa de mármore de meu modesto tinteiro, de tal modo que se quebrou?
Meu tinteiro consiste numa base de mármore de Untersberg, escavada para conter o vidro de tinta, e este tem uma tampa com um castão dessa mesma pedra. Por trás desse tinteiro há um círculo de estatuetas de bronze e figurinhas de terracota. Sentei-me à escrivaninha para escrever e, com a mão que segurava a caneta, fiz um movimento singularmente desajeitado para a frente, jogando no chão a tampa do tinteiro que estava sobre a escrivaninha.
A explicação não foi difícil de encontrar. Horas antes, minha irmã estivera no aposento para examinar algumas novas aquisições. Achou-as muito bonitas e depois comentou: “Agora sua escrivaninha está realmente linda, só o tinteiro é que não combina. Você precisa ter um mais bonito”. Saícom minha irmã e só voltei algumas horas depois. E então, ao que parece, consumei a execução do tinteiro condenado. Teria eu deduzido do comentário de minha irmã que ela pretendia presentear-me com um tinteiro mais bonito na próxima ocasião festiva, e teria eu quebrado o que era velho e feio para assim forçá-la a realizar a intenção insinuada? Se era assim, meu movimento de arremesso fora apenas aparentemente desajeitado; na realidade, fora extremamente hábil e conseqüente, tendo sabido poupar todos os objetos mais valiosos que estavam ao redor.
Creio realmente que devemos aceitar esse juízo para toda uma série de movimentos desajeitados aparentemente acidentais. É certo que eles exibem algo de violento e impetuoso, como os movimentos espástico-atáxicos, mas mostram-se regidos por uma intenção e alcançam seu objetivo com uma segurança de que em geral não podem vangloriar-se nossos movimentos voluntários conscientes. Além disso, partilham essas duas características - a violência e a infalibilidade - com as manifestações motoras da neurose histérica e, em parte, também com as realizações motoras do sonambulismo, o que aponta, num e noutro casos, para uma mesma modificação desconhecida do processo de inervação.
Outra auto-observação, [1] relatada pela Sra. Lou Andreas-Salomé, pode dar uma demonstração convincente de como a persistência obstinada num ato de “inabilidade” serve a propósitos inconfessados, e de modo muito hábil.
“Exatamente na época em que o leite se tornara uma mercadoria escassa e custosa, constatei, para meu constante horror e aborrecimento, que o deixava entornar todas a vezes que o fervia. Em vão me empenhei em dominar isso, embora de modo algum possa dizer que, em outras ocasiões, eu me mostre distraída ou desatenta. Bons motivos para me comportar assim eu teria tido depois da morte de meu querido terrier branco (que merecia tanto seu nome de ‘Druzhok’ [‘Amigo’, em russo] quanto qualquer ser humano chegou a merecer). Mas - veja só! - desde sua morte, nunca mais se derramou uma só gotinha do leite fervido! Meu primeiro pensamento a esse respeito foi: ‘Que sorte, porque agora o leite derramado na chapa do fogão ou no chão não serviria mesmo para nada!’ E no mesmo instante visualizei meu ‘Amigo’, sentado diante de mim, observando atentamente o processo da fervura, com a cabeça um pouco inclinada para um lado, o rabo abanando,esperançoso, aguardando com plena confiança o esplêndido infortúnio que estava para acontecer. E então tudo se esclareceu para mim, inclusive isto: que eu gostava dele ainda mais do que eu mesma sabia.”
Nos últimos anos, [1] desde que venho colecionando essas observações, tive mais algumas experiências de despedaçar ou quebrar objetos de algum valor, mas a investigação desses casos me convenceu de que eles nunca foram fruto do acaso ou de uma desproposital inabilidade minha. Uma manhã, por exemplo, quando ia passando por um quarto de roupão e chinelos de palha, cedi a um impulso repentino e, com o pé, atirei um dos chinelos na parede, derrubando uma linda pequena Vênus de mármore de seu suporte. Enquanto ela se fazia em pedaços, citei, inteiramente impassível, estes versos de Busch:
“Ach! di Venus ist perdü -Klickeradoms! - von Medici!”
Essa conduta absurda e minha tranqüilidade ante o dano podem ser explicadas pela situação da época. Tínhamos na minha família uma doente grave, de cujo restabelecimento eu já perdera secretamente as esperanças. Naquela manhã eu me inteirara de que tinha havido uma grande melhora, e sei que disse a mim mesmo: “Quer dizer, então, que ela vai viver!” Meu acesso de fúria destrutiva serviu, portanto, para expressar um sentimento de gratidão ao destino, e me permitiu realizar um “ato sacrifical”, como se tivesse feito uma promessa de sacrificar isto ou aquilo como uma oferenda, caso ela recuperasse a saúde! A escolha da Vênus de Medici para esse sacrifício foi, é claro, apenas uma galante homenagem à convalescente; mas ainda hoje me é incompreensível como foi que me decidi tão depressa, mirei com tanta destreza e consegui não atingir nenhum outro dos objetos que estavam tão próximos.
Outra quebra para a qual tornei a me valer de uma caneta que escapou de minha mão teve, igualmente, o sentido de um sacrifício, só que, dessa vez, um sacrifício propiciatório para afastar um mal. Certa vez, achei de repreender um amigo leal e digno, baseando-me apenas na interpretação que dei a alguns sinais vindos de seu inconsciente. Ele se ofendeu e me escreveu uma carta pedindo que eu não tratasse meus amigos psicanaliticamente. Tive quedar-lhe razão e lhe respondi procurando apaziguá-lo. Enquanto escrevia essa carta, eu tinha diante de mim minha última aquisição, uma figurinha egípcia magnificamente vitrificada. Quebrei-a da maneira descrita e, logo em seguida, entendi que havia causado essa calamidade para impedir outra maior. Por sorte, ambas as coisas - a amizade e a figura - puderam ser cimentadas de modo a não se notar a rachadura.
Uma terceira quebra relacionou-se com questões menos graves; foi apenas uma “execução” disfarçada, para usar a expressão de Vischer (em Auch Einer), de um objeto que já não gozava de minha estima. Durante algum tempo eu havia usado uma bengala com cabo de prata; numa ocasião em que, sem culpa minha, a fina chapa de prata foi danificada, o conserto foi malfeito. Pouco depois de receber a bengala de volta, usei o cabo, por travessura, para puxar um de meus filhos pela perna. Naturalmente, o cabo se partiu e assim me vi livre dele.
A impassividade com que aceitamos o dano produzido em todos esses casos pode, sem dúvida, ser tomada como prova de que existe um propósito inconsciente por trás da realização desses atos.
Por vezes, quando se investigam as razões da ocorrência de um desses atos falhos tão ínfimos, como é a quebra de um objeto, [1] depara-se com relações que, além de se vincularem à situação atual da pessoa, penetram profundamente em sua pré-história. A seguinte análise de Jekels (1913) pode servir de exemplo:
“Um médico estava de posse de uma floreira de barro que, apesar de não ser valiosa, era de grande beleza. Fora-lhe presenteada há algum tempo, juntamente com vários outros objetos, alguns inclusive de valor, por uma paciente (casada). Quando nela se manifestou uma psicose, ele devolveu todos os presentes aos familiares da paciente - exceto esse vaso muito menos valioso, do qual não conseguiu separar-se, supostamente por sua beleza. Mas esse desfalque custou certa luta interna a esse homem habitualmente muito escrupuloso, que, tendo plena ciência da impropriedade de sua ação, só conseguiu superar seu remorso dizendo a si mesmo que, na verdade, o vaso não tinha nenhum valor material, era muito difícil de embalar etc. Passados alguns meses, quando ele estava prestes a contratar um advogado para reclamar o pagamento do resto dos honorários devidos pelo tratamento dessa mesma paciente, que estavam sendo contestados, as auto-recriminações voltaram a surgir; por um breve intervalo, ele sofreu a angústia de que os parentes descobrissem seu suposto desfalque e o levantassem contra ele no processo judicial. Particularmente, porém, por algum tempo o primeiro fator (suas auto-recriminações) foi tão intenso que ele pensou em renunciar a sua exigência de uma soma de valor talvez cem vezes maior que o do vaso - como que numa indenização pelo objeto do qual se havia apropriado. Contudo, logo superou esses pensamentos e os afastou como absurdos.
“Enquanto ainda estava nesse estado de espírito, sucedeu-lhe renovar a água da floreira e, apesar da extraordinária infreqüência com que quebrava alguma coisa e do domínio que tinha sobre seu aparelho muscular, ele fez um movimento estranhamente ‘desajeitado’, que não tinha a menor relação orgânica com a ação executada, e derrubou o vaso da mesa, quebrando-o em cinco ou seis pedaços grandes. E isso depois de ter decidido, na noite anterior, não sem grandes hesitações, colocar justamente esse vaso, cheio de flores, na mesa de jantar diante de seus convidados. Lembrara-se do vaso pouco antes de quebrá-lo, tendo notado com angústia que ele não estava na sala de visitas e tendo-o trazido pessoalmente do outro aposento! Depois dos primeiros momentos de consternação, catou os pedaços e, juntando-os, acabara de constatar que ainda seria possível fazer um conserto quase completo, quando os dois ou três fragmentos maiores escaparam-lhe da mão e se quebraram em milhares de estilhaços, eliminando com isso qualquer esperança relacionada ao vaso.
“Não há dúvida de que esse ato falho respondeu à tendência atual de facilitar ao médico o prosseguimento de seu processo legal, livrando-o de algo que ele retivera e que, em certa medida, impedia-o de exigir o que haviam retido dele.
“Mas, além desse determinante direto, qualquer psicanalista verá nesse ato falho um outro muito mais profundo e importante, um determinante simbólico, pois o vaso é um símbolo indubitável da mulher.
“O herói dessa pequena história perdera de maneira trágica sua esposa jovem, linda e ardentemente amada; caiu vítima de uma neurose cuja nota fundamental dizia que ele era o culpado dessa desgraça (‘ele havia quebrado um belo vaso’). Além disso, já não tinha nenhuma relação com as mulheres e tomou aversão ao casamento e às relações amorosas duradouras, que inconscientemente encarava como uma infidelidade à sua esposa morta, mas que, na consciência, racionalizava na idéia de que trazia a desgraça àsmulheres infelizes, de que uma mulher poderia matar-se por sua causa etc. (Daí sua natural relutância em conservar o vaso permanentemente!)
“Tendo em vista a força de sua libido, não surpreende que lhe parecessem mais adequadas as relações - passageiras por natureza - com mulheres casadas (donde ele reter o vaso de outro).
“Uma bela confirmação desse simbolismo encontra-se nos dois fatores seguintes. Em conseqüência da neurose ele entrou em tratamento psicanalítico. Durante a sessão em que descreveu a quebra do vaso ‘de barro’ [‘irdenen‘ Vase], ocorreu-lhe, bem mais tarde, voltar a falar sobre suas relações com as mulheres, e disse então considerar-se absurdamente exigente - por exemplo, exigia que as mulheres tivessem uma ‘beleza extraterrena’ [‘unirdische Schoönheit’]. Isso acentua com muita clareza que ele ainda era dependente de sua mulher (falecida, i.e., não-terrena) e nada queria saber da ‘beleza terrena’; daí a quebra do vaso ‘de barro’ (‘terreno’).
“E exatamente na época em que, na transferência, ele criou a fantasia de se casar com a filha de seu médico, presenteou-o com um vaso, como que para dar um indício do tipo de presente que desejaria receber em troca.
“É previsível que o sentido simbólico do ato falho admita ainda múltiplas variações - por exemplo, ele não querer encher o vaso etc. Mais interessante, porém, parece-me a consideração de que a presença de vários motivos (pelo menos dois), provavelmente agindo em separado desde o pré-consciente e o inconsciente, reflete-se na duplicação do ato falho - derrubar o vaso e depois deixá-lo escapar das mãos.”
(e) Deixar cair, derrubar e quebrar objetos são atos que parecem ser usados com muita freqüência para expressar cadeias inconscientes de pensamentos, como a análise às vezes pode comprovar; mais amiúde, porém, pode-se adivinhá-lo pelas interpretações supersticiosas ou brincalhonas feitas pela voz do povo. São conhecidas as interpretações dadas quando se derrama sal, derruba-se um copo de vinho, quando uma faca caída se crava no chão etc. Só mais adiante [em [1]] examinarei a questão do direito que têm essas interpretações supersticiosas a serem levadas a sério; aqui, cabe apenas observar que, isoladamente, os atos desajeitados de modo algum têm um sentido constante, mas servem como meio de representar esta ou aquela intenção, conforme as circunstâncias.
Recentemente, houve em minha casa um período durante o qual se quebrou uma quantidade incomumente grande de cristais e porcelanas; eu mesmo contribuí para o estrago de várias peças. Mas a pequena epidemia psíquica pôde ser explicada facilmente; estávamos às vésperas do casamento de minha filha mais velha. Nessas cerimônias, aliás, era costume quebrar-se algum utensílio deliberadamente e, ao mesmo tempo, pronunciar uma palavra para trazer boa sorte. Esse costume talvez tenha o significado de um sacrifício e também pode ter outro sentido simbólico.
Quando os empregados destroem objetos frágeis, deixando-os cair, não nos ocorre pensar primeiro numa explicação psicológica, mas também aqui não é improvável que motivos obscuros contribuam para isso. Nada está mais distante das pessoas incultas do que a apreciação da arte e das obras de arte. Nossos criados são dominados por uma hostilidade surda contra as produções artísticas, especialmente quando os objetos (cujo valor eles não entendem) tornam-se para eles uma fonte de trabalho. Por outro lado, pessoas da mesma origem e grau de cultura freqüentemente mostram grande destreza e fidedignidade no manejo de objetos frágeis em instituições científicas, tão logo começam a se identificar com o chefe e a considerar-se parte essencial da equipe.
Aqui insiro [1] uma comunicação de um jovem técnico, que nos confere certo entendimento do mecanismo de um caso de dano material:
“Há algum tempo eu tralhava com diversos colegas, no laboratório da escola técnica, numa série de experiências complexas sobre a elasticidade, trabalho esse que tínhamos empreendido voluntariamente, mas que começava a exigir mais tempo de que havíamos esperado. Um dia, ao voltar ao laboratório com meu amigo F., ele comentou quão desagradável lhe era perder tanto tempo justamente naquele dia, quando tinha tantas outras coisas a fazer em casa. Não pude deixar de concordar com ele, e ainda acrescentei, em tom meio brincalhão, referindo-me a um incidente da semana anterior: ‘Esperemos que a máquina torne a dar defeito, pois assim poderemos suspender o trabalho e ir para casa cedo.’ Ocorre que, na divisão do trabalho, coube a F. a regulagem da válvula da prensa, isto é, ele foi incumbido de abrir cautelosamente a válvula para deixar o fluido sob pressão sair pouco a pouco do acumulador pra o cilindro da prensa hidraúlica. O condutor da experiência ficou junto ao manômetro e, quando se atingiu a pressão correta, gritou bemalto: ‘Pare!’ À palavra de comando, F. segurou a válvula e girou-a com toda a força … para a esquerda! (Todas as válvulas, sem exceção, fecham-se sendo giradas para a direita.) Isso fez com que toda a pressão do acumulador passasse subitamente para a prensa, esforço este para o qual os tubos de ligação não estão preparados, de modo que um deles explodiu imediatamente - um defeito totalmente inofensivo para a máquina, mas que nos forçou a suspender o trabalho por esse dia e ir para casa. Aliás, é característico que, passado algum tempo, quando discutíamos esse acontecimento, meu amigo F. não tivesse a mínima lembrança de meu comentário, que eu recordava com toda a certeza.”
De maneira semelhante, [1] cair, dar um passo em falso e escorregar nem sempre precisam ser interpretados como falhas puramente acidentais das ações motoras. O duplo sentido que a linguagem confere a essas expressões é suficiente para indicar o tipo de fantasias guardadas que se podem representar através desses abandonos do equilíbrio corporal. Lembro-me de certo número de doenças nervosas leves em mulheres e moças que sobrevieram depois de uma queda sem lesões e foram tomadas por histerias traumáticas decorrentes do susto da queda. Já naquela época eu tinha a impressão de que essas coisas poderiam estar relacionadas de outra maneira, como se a queda já fosse um produto da neurose e expressasse as mesmas fantasias inconscientes, de conteúdo sexual, que são as forças motoras por trás dos sintomas, como se pode presumir. Não seria também isso o que pretende dizer o provérbio “Donzela, quando cai, cai de costas”?
Também podemos tomar [1] como equívocos na ação os casos em que se dá a um mendigo uma moeda de ouro em vez de uma moedinha de cobre ou de prata. A explicação desses enganos é fácil; são atos sacrificais destinados a aplacar o destino, afastar a desgraça, e assim por diante. Quando se ouve uma mãe, ou tia afeiçoada, pouco antes de sair para um passeio em que exibiu a contragosto tal generosidade, expressar preocupação com a saúde de uma criança, já não se pode ter nenhuma dúvida quanto ao sentido desse acidente supostamente desagradável. Dessa maneira, nossos atos falhos nos permitem praticar todos aqueles costumes piedosos e supersticiosos que são obrigados a evitar a luz da consciência devido à resistência de nossa razão, agora incrédula.
(f)Em nenhum outro campo [1] a concepção de que na realidade os atos acidentais são deliberados há de encontrara maior crença do que na esfera da atividade sexual, onde a demarcação entre as duas possibilidades parece realmente vaga. Um bom exemplo de minha própria experiência de alguns anos atrás mostra como um movimento aparentemente desajeitado pode ser usado de maneira altamente requintada para fins sexuais. Na casa de alguns amigos, encontrei uma jovem ali hospedada e que despertou em mim um sentimento de prazer que eu julgara extinto há muito tempo. Em conseqüência disso, fiquei com um ânimo alegre, falastrão e solícito. Na ocasião, esforcei-me também por descobrir como isso se dera; um ano antes, essa mesma jovem me deixara indiferente. Quando o tio dela, um senhor muito idoso, entrou na sala, eu a ela nos erguemos de um salto para levar-lhe uma cadeira que estava num canto. Ela foi mais ágil do que eu e estava, creio, mais próxima do objeto; por isso, apoderou-se primeiro da cadeira e pôs-se a carregá-la, apoiando seu espaldar na frente do corpo e segurando com ambas as mãos aos lados do assento. Como cheguei depois, mas ainda aferrado a minha intenção de carregar a cadeira, vi-me de repente postado bem atrás da jovem, enlaçando-a por trás com os dois braços, e minhas mãos se tocaram por um momento em seu regaço. Naturalmente, desfiz a situação com a mesma rapidez com que ela fora criada. Ninguém pareceu reparar na habilidade com que me aproveitei desse movimento desajeitado.
Ocasionalmente, também tive de dizer a mim mesmo que o processo irritante e desajeitado de desviar de alguém na rua, no qual, por alguns segundos, dá-se primeiro um passo para um lado e, depois, para o outro, mas sempre para o mesmo lado que outra pessoa, até que se acaba ficando frente a frente com ela (ou com ele), que esse “barrar o caminho”, eu dizia, é também a repetição de um comportamento travesso e provocador de anos anteriores e, sob a máscara da inabilidade, persegue objetivos sexuais. Por minhas psicanálises de neuróticos, sei que a chamada ingenuidade dos jovens e crianças muitas vezes é apenas uma máscara desse tipo, usada para que possam dizer ou fazer algo indecoroso sem se sentirem embaraçados.
Wilhelm Stekel relatou auto-observações muito semelhantes. Entrei numa casa e estendi a sua dona minha mão direita. Ao fazê-lo, achei um modo estranhíssimo de desatar o laço que prendia seu roupão largo. Eu não estava consciente de nenhuma intenção desonrosa, mas executei esse movimento desajeitado com a destreza de um escamoteador.”
Já pude [1] fornecer provas reiteradas [ver em [1] e [2]] de que os escritores pensam nos atos falhos como tendo um sentido e um motivo, tal como venho argumentando aqui. Por isso, não nos surpreenderemos ao verificar, num novo exemplo, como um escritor dota de sentido um movimento desajeitado e também o faz prenunciar eventos posteriores.
Eis um trecho do romance L’Adultera [A Adúltera, 1882], de Theodor Fontane: ‘… Melanie ergueu-se de um salto e atirou para o marido uma das bolas grandes, como que num cumprimento. Mas não mirou bem, a bola voou para um lado e Rubehn a agarrou.” Ao voltarem da excursão que levou a esse pequeno episódio, ocorre entre Melanie e Rubehn uma conversa que revela os primeiros indícios de uma afeição nascente. Essa afeição cresce e se transforma em paixão, de modo que Melanie termina por abandonar o marido para se entregar inteiramente ao homem amado. (Comunicado por H. Sachs.)
(g) Os efeitos produzidos pelos atos falhos das pessoas normais são, em geral, dos mais inofensivos. Precisamente por isso, há um interesse especial em saber se os erros de importância considerável, que podem ser acompanhados de conseqüências desagradáveis - por exemplo, os erros dos médicos ou farmacêuticos -, enquadram-se de algum modo em nossos pontos de vista. (Cf. também em [1]-[2]).
Como é muito raro eu praticar intervenções médicas, só tenho para comunicar, de minha experiência pessoal, um exemplo de equívoco na ação médica. Com uma senhora muito idosa a que tenho visitado duas vezes por dia há alguns anos, meus serviços médicos se limitam, na visita matinal, a duas ações; coloco-lhe algumas gotas de colírio no olho e lhe aplico uma injeção de morfina. Em geral, já há dois frasquinhos preparados: um azul com o colírio e um branco com a solução de morfina. Durante as duas operações, meus pensamentos, na maioria das vezes, voltam-se para alguma outra coisa; é que já as repeti tantas vezes que minha atenção se libera. Uma manhã, notei que o autômato havia errado no trabalho: mergulhara o conta-gotas no frascobranco, e não no azul, e pingara morfina no olho em vez de colírio. Fiquei muito assustado, mas logo me tranqüilizei, refletindo que algumas gotas de uma solução de morfina a dois por cento não poderiam causar nenhum dano nem mesmo no saco conjuntival. A sensação de susto obviamente derivava de outra fonte.
Ao tentar analisar esse pequeno erro, ocorreu-me inicialmente a frase “sich an der Alten vergreifen”, que forneceu o caminho mais curto para a solução. Eu estava sob a influência de um sonho que me fora contado por um jovem na noite anterior e cujo conteúdo não admita outra interpretação que não fosse a de relações sexuais com sua própria mãe. O estranho fato de a lenda [de Édipo] não fazer nenhuma objeção à idade da rainha Jocasta pareceu-me adequar-se bem à conclusão de que, no enamoramento pela própria mãe, nunca se trata da pessoa atual dela, mas de sua imagem mnêmica juvenil, formada nos anos da infância. Tais incongruências aparecem sempre que uma fantasia que oscila entre dois períodos se torna consciente e, com isso, liga-se em definitivo a determinada época. Absorto em tais pensamentos, fui ver minha paciente, que tem mais de noventa anos, e devo ter estado a caminho de apreender a aplicação humana universal do mito de Édipo como um correlato do destino que se revela nos oráculos, pois então “atentei contra a velha” ou “cometi um erro em relação à velha” [“vergreifen sich bei der Alten”]. Também esse equívoco na ação foi inofensivo; dos dois erros possíveis, aplicar a solução de morfina no olho ou injetar o colírio, escolhi o que era bem mais inofensivo. Resta ainda a questão de saber se, nos erros capazes de provocar danos graves, é lícito admitirmos a possibilidade de uma intenção inconsciente, tal como fizemos nos casos já discutidos.
Nesse ponto, como seria de se esperar, meu material me deixa desamparado, e fico reduzido a depender de conjeturas e inferências. Sabe-se que, nos casos mais graves de psiconeuroses, os ferimentos auto-infligidos ocasionalmente aparecem como sintomas patológicos e que, nesses casos, nunca se pode excluir o suicídio como um possível desfecho do conflito psíquico. Sei agora, e posso provar com exemplos convincentes, que muitos ferimentos aparentemente acidentais sofridos por esses doentes são, na realidade, lesões auto-infligidas. Acontece que uma tendência à autopunição, que está constantemente à espreita e comumente se expressa na autocensura ou contribui para a formação do sintoma, tira hábil partido de uma situação externa oferecida pelo acaso, ou contribui para sua criação até que se dê o efeito lesivo desejado. Tais ocorrências de modo algum são raras, inclusive nos casos de gravidade moderada, e denunciam o papel desempenhado pela intenção inconsciente através de uma série de traços particulares - por exemplo, a notável serenidade com que os pacientes encaram o suposto acidente.
Quero descrever detalhadamente, [1] dentre muitos, um único exemplo de minha experiência médica: uma jovem senhora quebrou os ossos de uma perna num acidente de carruagem, o que a fez ficar acamada por semanas; o notável foi a ausência de quaisquer expressões de dor e a tranqüilidade com que ela suportou seu infortúnio. Esse acidente deu início a uma doença neurótica prolongada e grave, da qual ela foi finalmente curada pela psicanálise. Ao tratá-la, inteirei-me das circunstâncias que cercaram o acidente e de certos acontecimentos que o precederam. Essa jovem senhora estava hospedada com o marido, homem muito ciumento, na fazendo de uma irmã casada, em companhia de suas muitas outras irmãs e irmãos com os respectivos maridos e mulheres. Certa noite, ela exibiu nesse círculo íntimo um de seus talentos: dançou o cancã com perfeição, sob os aplausos calorosos dos parentes, mas com pouquíssima satisfação do marido, que depois lhe sussurrou: “Você tornou a se portar como uma meretriz!” O comentário calou fundo - deixemos em suspenso se foi só por causa da exibição de dança. Ela passou uma noite inquieta; na manhã seguinte, sentiu vontade de dar um passeio de carruagem. Mas escolheu os cavalos pessoalmente, recusando uma parelha e pedindo outra. A irmã mais moça queria que seu bebê e a ama fossem com ela na carruagem; ela se opôs a isso vigorosamente. Durante o trajeto, deu mostras de nervosismo; preveniu o cocheiro de que os cavalos estavam espantadiços e, quando os animais irrequietos realmente criaram uma dificuldade momentânea, ela saltou do veículo, assustada, e quebrou a perna, os outros que permaneceram na carruagem saíram ilesos. Embora, depois de descobrir esses detalhes, já não possamos duvidar de que o acidente, naverdade, foi arranjado, não podemos deixar de admirar a habilidade com que o acaso foi forçado a impor um castigo tão adequado ao crime: por muito tempo ela ficou impossibilitada de dançar o cancã.
Quanto a lesões que eu tenha infligido a mim mesmo em épocas tranqüilas, pouco tenho a relatar, mas percebo que não sou incapaz dessas coisas em circunstâncias extraordinárias. Quando um membro de minha família se queixa de ter mordido a língua, imprensado um dedo etc., não recebe de mim a compaixão esperada, mas sim a pergunta: “Por que você fez isso?” Mas eu mesmo dei certa vez um beliscão extremamente doloroso em meu polegar, depois que um jovem paciente me falou, durante a sessão, de seu propósito (não para ser levado a sério, é claro) de se casar com minha filha mais velha, enquanto eu sabia que, justamente nessa época, estava no sanatório, correndo o mais extremo risco de vida.
Um de meus meninos, cujo temperamento animado costumava criar dificuldades para se cuidar dele quando ficava doente, um dia teve um acesso de raiva porque o mandamos passar a manhã de cama e ameaçou matar-se, possibilidade esta com que se familiarizara através dos jornais. À noite, mostrou-me um machucado que fizera num dos lados do peito ao dar um esbarrão na maçaneta da porta. Diante de minha pergunta irônica sobre por que fizera isso e o que havia pretendido, o menino de onze anos respondeu, como que subitamente inspirado: “Isso foi minha tentativa de suicídio, que ameacei cometer hoje cedo.” A propósito, não creio que nessa época meus filhos tivessem acesso a minhas concepções sobre os ferimentos auto-infligidos.
Quem acreditar [1] na ocorrência de ferimentos semi-intencionais auto-infligidos - se me for permitido usar essa expressão desajeitada - também estará disposto a supor que, além do suicídio intencional consciente, existe uma autodestruição semi-intencional (com uma intenção inconsciente), capaz de explorar habilmente uma ameaça à vida e mascará-la como um acidente casual. Não há por que supor que essa autodestruição seja rara. É que a tendência à autodestruição está presente em certa medida num número muito maior de pessoas do que aquelas em que chega a ser posta em prática; os ferimentos auto-infligidos são, em geral, um compromisso entre essa pulsão e as forças que ainda se opõem a ela. Mesmo nos casos em que realmente se consuma o suicídio, a propensão a ele terá estado presente desdelonga data, com menor intensidade ou sob a forma de uma tendência inconsciente e suprimida.
Mesmo a intenção consciente de cometer suicídio escolhe sua época, seus meios e sua oportunidade; e é perfeitamente consonante com isso que a intenção inconsciente aguarde uma ocasião que possa tomar a seu encargo parte da causação e que, ao requisitar as forças defensivas do sujeito, liberte a intenção da pressão destas. As considerações que aqui proponho estão longe de ser fúteis. Já tive notícia de mais de um acidente aparentemente casual (andando a cavalo ou de carruagem) cujos detalhes justificam a suspeita de que o suicídio foi inconscientemente permitido. Por exemplo, durante uma prova hípica com outros companheiros, um oficial caiu do cavalo e feriu-se tão gravemente que morreu alguns dias depois. Seu comportamento ao voltar a si teve alguns aspectos singulares, e sua conduta anterior fora ainda mais notável. Ele ficara profundamente desgostoso com a morte de sua mãe amada, tivera crises de choro na presença de seus companheiros de farda e dissera a seus amigos íntimos que estava farto da vida; quis abandonar o serviço para participar de uma guerra na África que antes não o interessara; e tendo sido um cavaleiro esplêndido, agora evitava montar sempre que possível. Por fim, antes da corrida, da qual não pôde esquivar-se, ele expressou um mau pressentimento; dada nossa visão nessas questões, não nos surpreende que esse pressentimento tenha-se revelado justificado. Hão de fazer-me a objeção de que é perfeitamente compreensível que uma pessoa em tal depressão nervosa não consiga dominar um cavalotão bem quanto em dias normais. Concordo plenamente; só que eu buscaria o mecanismo da inibição motora produzida por esse estado de “nervosismo” na intenção de autodestruição aqui enfatizada.
S. Ferenczi, de Budapeste, entregou-me para publicação a análise de um ferimento aparentemente acidental com arma de fogo, que ele explica como uma tentativa inconsciente de suicídio. Só posso declarar minha concordância com a visão que ele tem do assunto.
“J. Ad., um carpinteiro de vinte e dois anos, consultou-me em 18 de janeiro de 1908. Queria saber de mim se a bala que penetrara em sua têmpora esquerda em 20 de março de 1907 podia ou devia ser removida por uma operação. Salvo por dores de cabeça ocasionais e não muito fortes, ele se sentia perfeitamente bem, o exame objetivo nada revelou além da cicatriz característica, enegrecida pela pólvora, na têmpora esquerda, de modo que desaconselhei a operação. Indagado sobre as circunstâncias do caso, ele explicou que se ferira acidentalmente. Estava brincando com o revólver do irmão, achou que não estava carregado, pressionou-o com a mão esquerda contra a têmpora esquerda (não é canhoto), pôs o dedo no gatilho e um tiro foi disparado. Havia três balas na arma de seis tiros. Perguntei como lhe ocorrera a idéia de pegar o revólver. Respondeu que tinha sido na época de seu exame médico para o serviço militar; na noite anterior, levara a arma com ele para a hospedaria, pois tinha medo de brigas. No exame médico, foi declarado inepto por causa de suas varizes, o que o fez sentir-se muito envergonhado. Voltou para casa e pôs-se a brincar com o revólver, mas não tinha nenhuma intenção de se ferir - e então ocorreu o acidente. Indagado ainda se, no mais, estava satisfeito com pura sorte, respondeu com um suspiro e contou a história de seu amor por uma jovem que também o amava, mas que mesmo assim o havia abandonado; por pura cobiça ela emigrara para a América. Ele quis segui-la, mas seus pais o impediram. Sua amada partira em 20 de janeiro de 1907, ou seja, dois meses antes do acidente. Apesar de todos esses fatores suspeitos, o paciente continuou insistindo em que o disparo fora um ‘acidente’. Entretanto, estou firmemente convencido de que sua negligência em certificar-se de que a arma estava descarregada antes de brincar com ela, bem como seu ferimento anto-infligido, foram psiquicamente determinados. Ele ainda estava sob os efeitos deprimentes de seu desafortunado caso de amor e obviamente queria ‘esquecer tudo’ no exército. Quando lhe tiraram também essa esperança, pôs-se a brincar com o revólver, ou seja, entregou-se a uma tentativa inconsciente de suicídio. O fato de segurar o revólver na mão esquerda, e não nadireita, é uma prova decisiva de que realmente só estava ‘brincando’ - isto é, não queria conscientemente cometer suicídio.”
Outra análise de um ferimento auto-infligido aparentemente acidental, transmitida a mim por seu observador (Van Emden, 1912), faz lembrar o provérbio: “Quem abre uma cova para os outros acaba caindo nela.”
“A Sra. X., que vem de um meio burguês, é casada e tem três filhos. Sem dúvida é nervosa, mas nunca precisou de um tratamento enérgico, pois tem capacidade suficiente para enfrentar a vida. Certo dia, acarretou para si mesma uma desfiguração facial bem impressionante na época, embora passageira. Ia ela por uma rua que estava em conserto quando tropeçou num monte de pedras e bateu com o rosto no muro de uma casa. O rosto ficou todo arranhado; as pálpebras ficaram azuis e inchadas e, temendo que algo pudesse acontecer com seus olhos, ela mandou chamar o médico. Depois de tranqüilizá-la a esse respeito, perguntei: ‘Mas por que foi mesmo que a senhora caiu assim?’ Ela respondeu que, pouco antes, havia prevenido o marido - que já sofria há alguns meses de uma afecção articular e por isso andava com dificuldade - para que tomasse muito cuidado naquela rua; e ela já tivera muitas vezes a experiência, em casos como esse, de acontecer-lhe, de maneira muito estranha, justamente aquilo de que ela prevenira alguma outra pessoa.
“Não fiquei satisfeito com essa determinação do acidente e lhe perguntei se acaso não teria algo mais a me contar. Sim, bem antes do acidente ela vira um bonito quadro numa loja do outro lado da rua; de repente, desejara tê-lo como adorno para o quarto das crianças, e por isso quis comprá-lo imediatamente: partiu em linha reta em direção à loja, sem olhar para o chão, tropeçou no monte de pedras e, ao cair, bateu com o rosto no muro da casa, sem esboçar a menor tentativa de se proteger com as mãos. Esqueceu de imediato a intenção de comprar o quadro e voltou para casa o mais depressa possível. - ‘Mas por que a senhora não prestou mais atenção?’ perguntei. - ‘Bem’, respondeu ela, ‘talvez tenha sido um castigo… por causa daquela história que lhe contei em confiança.’ - ‘Com que então essa história tem continuado a afligi-la tanto assim?’ - ‘Sim, depois em arrependi muito; achei que fui má, criminosa e imoral, mas naquela época eu estava quase louca com meu nervosismo.’
“Tratava-se de um aborto que ela fizera com o consentimento do marido, já que, dada a sua situação financeira, o casal não queria ter mais filhos. Oaborto fora iniciado por uma curandeira e tivera de ser concluído por um médico especialista.
“’Muitas vezes me repreendo pensando “mas você mandou matar seu filho!”, e me angustiava pensar que uma coisa assim não podia ficar sem castigo. Agora que o senhor me garantiu que não há nada de mal com meus olhos, fico muito descansada: de qualquer modo, já fui suficientemente punida.’
“Esse acidente, portanto, foi uma autopunição, de um lado para expiar o crime dela, mas de outro também para escapar a um castigo desconhecido, talvez muito maior, ante o qual ela se angustiara continuamente por meses a fio. No momento em que se atirou em direção à loja para comprar o quadro, ela foi dominada pela lembrança dessa história inteira, com todos os seus temores - história que já se fizera sentir com bastante força em seu inconsciente quando da advertência ao marido - e é possível que isso se tenha expressado em palavras como: ‘Mas para que você precisa de um enfeite para o quarto das crianças, você que mandou matar seu filho? Você é uma assassina! O grande castigo com certeza chegará!’
“Esse pensamento não se tornou consciente, mas em contrapartida ela usou a situação, nesse momento que eu chamaria de psicológico, para se castigar discretamente, com o auxílio do monte de pedras que parecia adequado para tal fim; foi por isso que nem sequer estendeu as mãos ao cair e também não levou um susto violento. O segundo determinante do acidente, provavelmente menos importante, foi sem dúvida a autopunição por seu desejo inconsciente de se livrar do marido, que aliás fora cúmplice no crime. Esse desejo traiu-se na advertência inteiramente supérflua que ela fez ao marido, para que ficasse atento ao monte de pedras na rua, já que ele andava com muito cuidado justamente por não ir bem das pernas.”
Quando se consideram as circunstâncias do seguinte caso de autoferimento aparentemente acidental por queimadura, tende-se a achar que J. Stärcke (1916) está certo em encará-lo como um “ato sacrifical”:
“Uma senhora cujo genro tinha de partir para a Alemanha a fim de prestar serviço militar escaldou o pé nas seguintes circunstâncias: sua filha esperava dar à luz em breve e, naturalmente, os pensamentos voltados para os perigos da guerra não deixavam a família muito bem-humorada. No dia anterior à partida, ela convidara o genro e a filha para jantarem. Ela mesma preparou a refeição na cozinha, não sem antes, estranhamente, trocar suas botas altas de amarrar, providas de palmilha corretiva, com as quais andava comodamente e que também costumava usar em casa, por um par de chinelos do marido, grandes demais e abertos em cima. Ao tirar do fogo uma panela grande de sopa fervendo, deixou-a cair e assim fez uma queimadura bastante séria num dos pés, sobretudo no peito do pé, que não estava protegido pelo chinelo aberto. - Naturalmente, todos atribuíram esse acidente a seu compreensível ‘nervosismo’. Nos primeiros dias depois desse holocausto, ela teve um cuidado especial ao manipular coisas quentes, mas isso não a impediu, alguns dias depois, de queimar o pulso com um caldo fervente”.
Se uma fúria [1] contra a própria integridade e a própria vida pode assim esconder-se por trás de uma inabilidade aparentemente acidental e de uma insuficiência motora, não é preciso um grande passo para se transferir essa mesma concepção para os erros que colocam em sério perigo a vida e a saúde de outras pessoas. As provas de que disponho para mostrar a validade desse ponto de vista são extraídas de minha experiência com neuróticos e, portanto, não atendem a todos os requisitos da situação. Relatarei um caso em que algo que não foi propriamente um erro, mas que merece o nome de ato sintomático ou casual, forneceu-me a pista que depois possibilitou resolver o conflito do paciente. Aceitei certa vez o encargo de fazer algo pelo casamento de um homem muito inteligente cujas desavenças com sua jovem esposa, que o amava ternamente, sem dúvida podiam reclamar para si alguns fundamentos reais, mas, como ele mesmo admitia, não eram assim inteiramente explicadas. Ele se ocupava incessantemente com a idéia do divórcio, que então voltara a descartar por amar muito ternamente seus dois filhos pequenos. Apesar disso, voltava constantemente a sua intenção e não buscava nenhum meio de fazer com que sua situação se tornasse suportável. Tal incapacidade de pôrtermo a um conflito é vista por mim como prova de que motivos recalcados e inconscientes contribuíram para fortalecer os motivos conscientes que lutam entre si, e em tais casos tomo a meu encargo dar fim ao conflito através da análise psíquica. Um dia, esse homem me narrou um pequeno incidente que o deixara extremamente assustado. Ele estava atiçando (“hetzen”) seu filho mais velho, claramente o predileto, brincando de jogá-lo para cima e deixá-lo cair, e em certo momento jogou-o tão alto num determinado lugar, que a cabeça do menino quase bateu no pesado lustre a gás ali pendurado. Quase, mas não de fato - ou talvez por um triz! O menino não sofreu nada, mas ficou tonto com o susto. O pai, horrorizado, ficou com o filho nos braços, e a mãe teve um ataque histérico. A destreza peculiar desse movimento imprudente e a violência da reação dos pais fizeram-me procurar nesse acidente um ato sintomático destinado a expressar uma intenção malévola dirigida contra o filho amado. Pude eliminar a contradição entre isso e a ternura atual do pai pelo filho, retrocedendo o impulso de feri-lo até a época em que esse filho fora o único e era tão pequeno que o pai ainda não sentia por ele um interesse afetuoso. Foi-me então fácil supor que esse homem, obtendo da mulher pouca satisfação, teria naquela época formulado um pensamento ou tomado uma decisão assim: “Se essa criaturinha que nada significa para mim vier a morrer, ficarei livre e poderei divorciar-me de minha mulher.” Portanto, o desejo da morte da criatura agora tão amada por ele devia ter persistido inconscientemente. A partir daí foi fácil descobrir o caminho da fixação inconsciente desse desejo. Um poderoso determinante proveio realmente da lembrança infantil do paciente sobre a morte de um irmãozinho, cuja responsabilidade a mãe imputara à negligência do pai e que havia conduzido a brigas violentas entre os pais e a ameaças de divórcio. O curso subseqüente do casamento de meu paciente, bem como meu êxito terapêutico, confirmaram minha conjetura.
Stärcke (1916) deu um exemplo de como os escritores não hesitam em substituir uma ação intencional por um equívoco na ação e, desse modo, convertê-lo em fonte das mais graves conseqüências:
“Num dos esboços de Heijermans (1914) aparece um exemplo de equívoco na ação ou, mais exatamente, de um erro que o autor usa como motivo dramático.
“Trata-se do esboço chamado ‘Tom e Teddie’, onde um casal de mergulhadores, num teatro de variedades, apresenta-se num tanque de ferro comparedes de vidro, ali permanecendo por bastante tempo embaixo d’água e fazendo várias truques. A mulher iniciou há pouco tempo um caso com outro homem, um domador. O marido-mergulhador surpreende os dois juntos no camarim, pouco antes de começar o espetáculo. Silêncio mortal, olhares ameaçadores, e o marido diz: ‘Depois!’ - Começa a representação. O mergulhador está para fazer seu truque mais difícil: permanecerá ‘dois minutos e meio embaixo d’água, num baú hermeticamente fechado’. - É um truque que eles já fizeram muitas vezes: o baú era trancado e ‘Teddie costumava mostrar a chave ao público, que controlava o tempo em seus relógios’. Ela também costumava jogar propositalmente a chave no tanque umas duas vezes, e depois mergulhar depressa atrás dela, para não se atrasar na hora em que o baú tinha que ser aberto.
“’Nessa noite de 31 de janeiro, Tom foi trancafiado, como de costume, pelos dedinhos de sua mulher ágil e animada. Sorriu-lhe pelo postigo - ela brincava com a chave e aguardava o sinal de advertência do marido. Nos bastidores estava ‘o outro’, o domador com seu fraque impecável, sua gravata branca e seu chicote. Para chamar a atenção dela, deu um assovio bem curto. Ela o olhou, riu e, com o gesto desajeitado de alguém cuja atenção foi desviada, jogou a chave tão impetuosamente para o alto que, exatamente em dois minutos e vinte segundos, contados com precisão, ela caiu ao lado do tanque, em meio às pregas do tecido que recobria o pedestal. Ninguém a vira. Ninguém poderia vê-la. Vista da platéia, a ilusão de ótica foi tal que todos viram a chave deslizar para dentro d’água - e nenhum dos ajudantes do teatro reparou nela, pois o panejamento abafou o ruído.
“’Rindo, sem nenhuma hesitação, Teddie trepou na borda do tanque. Rindo - ele agüentava bem -, desceu a escada. Rindo, desapareceu sob o pedestal para procurar ali e, não encontrando a chave prontamente, inclinou-se para a parte frontal do panejamento com um gesto impagável, tendo no rosto a expressão de quem dissesse. “Ora! mas que chateação!”.
“’Enquanto isso, Tom fazia sua caretas engraçadas por trás do postigo, como se também ele fosse ficando inquieto. Via-se o branco de sua dentadura postiça, a agitação dos lábios sob o bigode cor de trigo, as cômicas borbulhas que já se tinham visto antes, enquanto ele comia a maçã. Viram-lhe os pálidos nós dos dedos que se agitavam e arranhavam, e riram como tantas vezes tinham rido aquela noite.
“’Dois minutos cinqüenta e oito segundos…
“’Três minutos e sete segundos… doze segundos…
“’Bravo! Bravo! Bravo!
“’Houve então um sobressalto na sala e um arrastar de pés, pois também os empregados e o domador começaram a procurar, e a cortina desceu antes que se levantasse a tampa.
“’Seis dançarinas inglesas entraram em cena… depois o homem dos pôneis, os cachorros e os macacos. E assim por diante.
“’Só na manhã seguinte o público ficou sabendo que houvera uma desgraça, que Teddie, viúva, ficará só no mundo…’
“Por essa citação se evidencia quão primorosamente esse artista devia compreender a essência do ato sintomático para nos mostrar com tanto acerto a causa mais profunda do desajeitamento fatal.”
CAPÍTULO IX - ATOS CASUAIS E SINTOMÁTICOS
Os atos descritos até aqui [Capítulo VIII], nos quais reconhecemos a execução de uma intenção inconsciente, apareciam sob a forma de perturbações de outros atos tencionados e se ocultavam sob o pretexto da falta de habilidade. Os atos “casuais” a serem discutidos agora só diferem das ações “equivocadas” pelo fato de desprezarem o apoio da intenção consciente e, portanto, não terem necessidade de um pretexto. Aparecem por conta própria e são permitidos por não se suspeitar de que haja neles algum objetivo ou intenção. São executados “sem que se pense que há alguma coisa neles”, de maneira “puramente casual”, “só para manter as mãos ocupadas”, e se espera que essas informações ponham fim a qualquer indagação sobre o sentido do ato. Para poderem gozar dessa posição privilegiada, esses atos, que já não recorrem à desculpa da inabilidade, têm de preencher certas condições: têm que ser discretos e é preciso que seus feitos sejam insignificantes.
Compilei um grande número desses atos casuais em mim mesmo e em outras pessoas e, depois de examinar de perto os diferentes exemplos, cheguei à conclusão de que mais merecem o nome de atos sintomáticos. Eles expressam algo de que o próprio agente não suspeita neles e que, em regra geral, não pretende comunicar, e sim guardar para si. Assim, exatamente como todos os outros fenômenos que consideramos até agora, desempenham o papel de sintomas.
O estoque mais rico desses atos sintomáticos ou casuais é obtido, na verdade, no tratamento psicanalítico do neurótico. Não posso abster-me de citar dois exemplos dessa fonte, que mostram com que amplitude e sutileza esses acontecimentos insignificantes são determinados por pensamentos inconscientes. A fronteira entre os atos sintomáticos e os equívocos na ação é tão pouco nítida que eu bem poderia ter incluído esses exemplos no capítulo anterior.
(1)Durante uma sessão, uma jovem casada mencionou em suas associações ter cortado as unhas na véspera e “ter cortado a carne enquanto tentava retirar a fina cutícula da base da unha”. Isso é tão pouco interessanteque nos perguntamos, surpresos, porque teria sido lembrado e mencionado, e começamos a suspeitar de que estamos lidando com um ato sintomático. E de fato, o dedo vitimado por sua pequena inabilidade fora o dedo anular, aquele em se usa a aliança matrimonial. Além disso, era seu aniversário de casamento, o que empresta ao ferimento na fina cutícula um sentido muito definido, fácil de adivinhar. Ao mesmo tempo, ela contou um sonho que aludia à inabilidade do marido e a sua insensibilidade como esposa. Mas por que teria ela ferido o anular da mão esquerda, se a aliança é usada [em seu país] na mão direita? O marido dela é advogado, “doutor em direito” [‘Doktor der Rechte‘], e quando mocinha, sua afeição secreta pertencera a um médico (como se diz por brincadeira “Doktor der Linke” [literalmente, “doutor da esquerda”]). Um “casamento com a mão esquerda” também tem lá seu sentido definido.
(2)Disse-me uma jovem dama solteira: “Ontem, sem que tivesse nenhuma intenção disso, rasguei em dois pedaços uma nota de cem florins e dei metade a uma dama que me estava visitando. Será isso também um ato sintomático?” Uma investigação mais acurada revelou as seguintes particularidades. A nota de cem florins: - ela dedicava parte de seu tempo e de suas posses a obras de caridade. Junto com outra dama, estava cuidando da educação de um órfão. A nota de cem florins era a contribuição que lhe fora enviada por essa outra dama. Ela a pusera num envelope e o colocara provisoriamente sobre a escrivaninha.
A visitante era uma dama ilustre a quem ela estava ajudando em outra obra beneficente. Essa dama queira anotar uma lista de nomes de pessoas a quem se pudesse solicitar apoio. Por faltar papel, minha paciente pegou o envelope em cima da escrivaninha e, sem pensar em seu conteúdo, rasgou-o em dois pedaços; conservou um deles para si, para ter uma cópia da relação de nomes, e entregou o outro à visitante. Note-se o caráter inofensivo desse procedimento inoportuno. Uma nota de cem florins sabidamente não perde nada de seu valor ao ser rasgada, desde que se possa recompô-la por completo a partir dos fragmentos. A importância dos nomes no pedaço de papel era uma garantia de que a dama não o jogaria fora, e tampouco havia dúvida de que ela restituiria seu valioso conteúdo assim que reparasse nele.
Mas qual teria sido o pensamento inconsciente que esse ato casual, possibilitado pelo esquecimento, pretendeu expressar? A visitante tinha uma relação muito bem definida com o tratamento de minha paciente. Fora essa mesma dama que me recomendara como médico à jovem doente e, se não me engano, minha paciente sentia-se em dívida com ela por esse conselho. Pretenderia a metade da nota de cem florins representar um pagamento por seus serviços como intermediária? Isso ainda seria muito estranho.
Mas a isso veio juntar-se outro material. Um dia antes, uma intermediária de natureza muito diferente indagara a um familiar da paciente se a graciosa senhorita gostaria de travar conhecimento com um certo cavalheiro; e nessa manhã, algumas horas antes da visita da dama, chegara a carta com o pedido do pretendente, que dera margem a muitas risadas. Assim, quando a visitante iniciou a conversa perguntando pela saúde de minha paciente, esta bem que pode ter pensado: “É verdade que você me recomendou o médico certo, mas se pudesse ajudar-me a conseguir o marido certo” (e além disso: “a ter um filho”), “eu lhe ficaria ainda mais agradecida.” A partir desse pensamento, que permaneceu recalcado, as duas intermediárias fundiram-se numa só, e ela entregou à visitante o pagamento que sua fantasia se dispunha a entregar à outra. Essa solução torna-se plenamente convincente quando acrescento que, justo na noite anterior, eu havia falado com a paciente sobre esses atos sintomáticos ou casuais. Ela então aproveitou a primeira oportunidade para produzir algo análogo.
Poder-se-ia proceder a um agrupamento desses atos sintomáticos e casuais, de ocorrência tão freqüente, conforme ocorram habitualmente, ou regularmente em certas circunstâncias, ou ainda esporadicamente. Os atos do primeiro grupo (tais como brincar com a corrente do relógio, retorcer a barba etc.), que quase podem ser considerados característicos da pessoa em questão, aproximam-se dos múltiplos movimentos conhecidos como tiques e sem dúvida merecem ser examinados em relação com eles. No segundo grupo incluo brincar com uma bengala ou rabiscar com um lápis que se tenha na mão, fazer tilintar as moedas no bolso, amassar miolo de pão e outras substâncias maleáveis, manusear a própria roupa de todas as maneiras etc. Durante o tratamento psíquico, por trás dessas ocupações com que se brinca escondem-se regularmente um sentido e significado aos quais se nega outra forma de expressão. Geralmente, a pessoa em questão não sabe que faz essas coisas, ou que introduziu modificações em suas brincadeiras habituais, e nãovê nem ouve os efeitos dessas ações. Por exemplo, não ouve o barulho do tilintar das moedas e, quando sua atenção é chamada para isso, mostra-se atônita e incrédula. Tudo o que a pessoa faz com sua roupa, com freqüência sem se aperceber, é igualmente importante e merece a atenção do médico. Cada alteração nos trajes habituais, cada pequeno sinal de desleixo - como um botão desabotoado -, cada indício de desnudamento tem a intenção de expressar algo que o portador da roupa não quer dizer diretamente e do qual, na maioria da vezes, nem está ciente. As interpretações desses pequenos atos casuais, bem como a comprovação delas, emergem a cada vez, com crescente certeza, das circunstâncias concomitantes durante a sessão, do tema nela tratado e das associações que ocorrem quando se chama a atenção para o ato aparentemente casual. Por isso deixo de corroborar minhas afirmações mediante a comunicação de exemplos acompanhados de análises; no entanto, menciono esses atos por acreditar que eles tenham, nas pessoas normais, o mesmo sentido que têm em meus pacientes.
Não posso deixar de mostrar, ao menos com um exemplo, como pode ser estreita a relação entre um ato simbólico realizado pela força do hábito e os aspectos mais íntimos e importantes da vida de uma pessoa sadia: [1]
“Como nos ensinou o professor Freud, o simbolismo desempenha na vida infantil das pessoas normais um papel maior do que faziam prever as experiências psicanalíticas anteriores; nesse sentido, a breve análise que se segue talvez seja de algum interesse, especialmente por suas perspectivas médicas.
“Ao rearrumar sua mobília numa casa nova, um médico deparou com um antigo estetoscópio “simples” de madeira. Depois de refletir por um instante sobre onde deveria colocá-lo, sentiu-se forçado a pô-lo num dos lados de sua escrivaninha, e em tal posição que ficou exatamente entre sua cadeira e a que era reservada aos pacientes. O ato em si foi um pouco estranho, por duas razões, Em primeiro lugar, ele não usava o estetoscópio com freqüência (de fato, é neurologista) e, quando havia necessidade, usava um modelo duplo, para ambos os ouvidos. Em segundo lugar, todos os seus aparelhos e instrumentos médicos eram guardados em gavetas, com a única exceção desse. Entretanto, ele não pensou mais no assunto, até que um diauma paciente, que nunca vira um estetoscópio simples, perguntou-lhe o que era aquilo. Recebida a resposta, ela perguntou porque ele o colocara justamente ali, ao que ele retrucou prontamente que aquele lugar era tão bom quanto qualquer outro. Mas isso o intrigou, e ele começou a se indagar se teria havido alguma motivação inconsciente em seu ato; familiarizado com o método psicanalítico, resolveu investigar a questão.
“Como primeira lembrança, ocorreu-lhe que, quando estudante de medicina, ele se impressionara com o hábito de um médico residente, que sempre levava na mão um estetoscópio simples em suas visitas às enfermarias, embora nunca o usasse. Ele admirara muito esse médico e lhe tinha excepcional afeição. Mais tarde, ao tornar-se residente ele próprio, adquiriu o mesmo hábito, e sentia-se muito pouco à vontade quando, por engano, saía do quarto sem balançar o instrumento na mão. A inutilidade desse hábito evidenciou-se, porém, não só pelo fato de o único estetoscópio realmente usado por ele ser biauricular e ser levado em seu bolso, mas também por isso ter prosseguido quando ele já era residente do serviço de cirurgia e nunca precisar de estetoscópio algum. A importância dessas observações logo se torna clara quando nos referimos à natureza fálica desse ato simbólico.
“Em seguida, recordou o fato de que, quando menino, ficava impressionado com o hábito do médico da família de carregar um estetoscópio simples dentro do chapéu; ele achava interessante que o médico sempre tivesse seu principal instrumento à mão ao visitar seus pacientes, e que só precisasse tirar o chapéu (i.e., uma parte da roupa) e ‘puxá-lo para fora’. Quando menino, ele fora intensamente apegado a esse médico; e uma breve auto-análise permitiu-lhe descobrir que, na idade de três anos e meio, ele tivera uma dupla fantasia a propósito do nascimento de uma irmãzinha menor, a saber, que ela era filha, primeiro, dele e de sua mãe, e segundo, dele e do médico. Nessa fantasia, portanto, ele desempenhava tanto o papel masculino quanto o feminino. Lembrou-se ainda de ter sido examinado por esse mesmo médico quando tinha seis anos, e recordou nitidamente a sensação voluptuosa de ter a cabeça do médico perto dele, pressionando o estetoscópio em seu peito, bem como o movimento rítmico de sua respiração, indo e vindo. Aos três anos de idade, ele tivera uma afecção crônica no peito, que exigira exames repetidos, embora ele realmente já não conseguisse lembrar desse fato em si.
“Aos oito anos, ele se impressionou quando um menino mais velho lhe disse que era costume do médico ir para a cama com suas pacientes. Decerto havia algum fundamento para esses boatos, e em todo caso, as mulheres da vizinhança, inclusive sua própria mãe, eram muito afeiçoadas a esse médicojovem e bonito. Ele próprio, em diversas ocasiões, já experimentara tentações sexuais em relações a suas pacientes; apaixonara-se por duas delas e finalmente se casara com outra. Tampouco há alguma dúvida de que sua identificação inconsciente com esse médico foi a razão principal de ele optar pela profissão médica. Outras análises nos fazem supor que este é, indubitavelmente, o motivo mais comum (embora seja difícil determinar sua freqüência). No presente caso houve uma determinação dupla: primeiro, pela superioridade, em várias ocasiões, do médico sobre o pai, de quem o filho sentia muito ciúme, e segundo, pelo conhecimento que o médico tinha de coisas proibidas e por suas oportunidades de satisfação sexual.
“Veio então um sonho que já publiquei em outro lugar (Jones 1910b); era de natureza nitidamente homossexual-masoquista. Nele, um homem que era uma figura substituta do médico atacava-o com uma ‘espada’. A espada recordou-lhe uma história, na Völsung Nibelungen- Saga, em que Sigurd coloca uma espada nua entre ele mesmo e Brünhilde adormecida. O mesmo episódio ocorre na lenda Arthur, que nosso homem também conhece bem.
“Agora se torna claro o sentido do ato sintomático. Nosso médico colocou seu estetoscópio simples entre ele e suas pacientes tal como Sigurd colocou sua espada entre ele mesmo e a mulher em quem não devia tocar. O ato foi uma formação de compromisso; serviu a duas moções: ceder, na imaginação, ao desejo suprimido de manter relações sexuais com alguma paciente atraente, mas, ao mesmo tempo, lembrar que esse desejo não podia ser realizado. Foi, por assim dizer, um encantamento contra a tentação.
“Eu acrescentaria que o seguinte trecho do Richelieu, de Lord Lytton, causou grande impressão no menino:
Sob o governo de homens de total grandeza
A pena é mais poderosa do que a espada…
e que ele se tornou um escritor fecundo que usa uma caneta excepcionalmente grande. Quando lhe perguntei porque precisava dela, deu a resposta característica: ‘Porque tenho muito a expressar.’
“Essa análise volta a nos lembrar quão extenso é o conhecimento da vida anímica fornecido pelos atos ‘inocentes’ e ‘sem sentido’, e quão cedo se desenvolve na vida a tendência à simbolização.”
Posso ainda citar, de minha experiência psicoterapêutica, um caso em que um testemunho eloqüente foi fornecido por uma mão que brincava com um pedaço de miolo de pão. Meu paciente era um menino que ainda não completara treze anos, padecendo há quase dois anos de uma histeria grave, e a quem finalmente aceitei em tratamento psicanalítico, depois que uma longa estada numa instituição hidropática mostrou-se infrutífera. Parti do pressuposto de que ele deveria ter tido experiências sexuais e estaria atormentado por questões sexuais, o que era bastante provável em sua idade; abstive-me, porém, de correr em seu auxílio com esclarecimentos, pois queria submeter novamente à prova minhas premissas. Permiti-me, portanto, aguardar com curiosidade para ver de que modo se esboçaria nele o que era buscado. Um dia, notei que ele rolava alguma coisa entre os dedos da mão direita; colocava-a no bolso, onde continuava brincando, tornava a retirá-la etc. Não lhe perguntei o que tinha na mão, mas, de repente, ele a abriu e me mostrou: era um pedaço de miolo de pão amassado. Na sessão seguinte, ele tornou a trazer um pedaço semelhante e, dessa vez, enquanto conversávamos, pôs-se a modelar, com incrível rapidez e de olhos fechados, umas figuras que despertaram meu interesse. Eram sem dúvida homenzinhos com cabeça, dois braços e duas pernas, como os mais toscos ídolos pré-históricos, e com um apêndice entre as pernas que ele espichou numa ponta comprida. Mal terminou um desses homenzinhos, tornou a amassá-lo; mais tarde, deixou-o ficar, mas puxou apêndices semelhantes da superfície das costas e de outras partes do corpo, para ocultar o sentido do primeiro. Quis mostrar-lhe que eu o havia entendido, mas, ao mesmo tempo, queria tirar-lhe o pretexto de que não teria havido nada de imaginário nessa atividade de modelar seres humanos. Com esse objetivo, perguntei-lhe se ele se lembrava da história do rei romano que fez uma pantomima no jardim para dar uma resposta a um mensageiro do filho. O menino não conseguiu lembrar-se, embora devesse tê-la aprendido muito mais recentemente do que eu. Perguntou se era a história do escravo e da resposta escrita em sua cabeça raspada. Não, retruquei, essa pertence à história grega, e contei-lhe: O rei Tarquínio, o Soberbo, fizera seu filho Sexto entrar furtivamente numacidade latina inimiga. O filho, que entrementes reunira adeptos nessa cidade, enviou um mensageiro ao rei perguntando que medidas deveria tomar a seguir. O rei não respondeu, mas foi até o jardim, fez com que a pergunta lhe fosse repetida ali e então, em silêncio, cortou as copas das papoulas mais altas e mais belas. O mensageiro não teve outra alternativa senão relatar isso a Sexto, que entendeu o pai e providenciou para que os cidadãos mais ilustres da cidade fossem eliminados por assassinato.
Enquanto eu falava, o menino parou de amassar e, quando passei a descrever o que o rei fez em seu jardim e cheguei às palavras “em silêncio, cortou”, ele fez um movimento rápido como um raio e arrancou a cabeça de seu homenzinho. Também ele me entendera a notara ter sido entendido por mim. Pude então fazer-lhe perguntas diretas, dei-lhe as informações de que precisava, e em pouco tempo pusemos fim à neurose.
Os atos sintomáticos, [1] que podem ser observados em abundância quase inesgotável tanto nas pessoas saudáveis quanto nas doentes, merecem nosso interesse por mais de um motivo. Para o médico, servem freqüentemente de indícios valiosos para se orientar em situações novas ou pouco conhecidas; para o observador da natureza humana, freqüentemente revelam tudo - e às vezes até mais do que ele desejaria saber. Quem está familiarizado com a valorização deles pode às vezes sentir-se como o rei Salomão, que, segundo a lenda oriental, entendia a linguagem dos animais. Certo dia, eu tinha de examinar um rapaz, a quem não conhecia, na casa de sua mãe. Quando ele se encaminhou para mim, reparei numa mancha grande em sua calça - feita por clara de ovo, como pude reconhecer pela rigidez peculiar nas bordas. Depois de um embaraço momentâneo, o rapaz se desculpou e disse ter-se sentido rouco e, por isso, bebido um ovo cru; era provável que um pouco da clara escorregadia tivesse pingado em sua roupa; para confirmar isso, apontou para a casca do ovo, ainda visível no quarto sobre um pratinho. Assim se deu à mancha suspeita uma explicação inocente; quando sua mãe nos deixou a sós, porém, agradeci-lhe por ter-me facilitado tanto o diagnóstico, e sem mais delongas tomei como base de nossa conversa sua confissão de que sofria de problemas provenientes da masturbação. Em outra ocasião, eu fazia uma visita a uma dama que era tão rica quanto avarenta e tola, e que tinha o costume de dar ao médico a tarefa de elaborar um batalhão de queixas antes de chegar à causa simples de seu estado. Quando entrei, ela estava sentada frente a uma mesinha, ocupada em dispor florins de prata em pequenas pilhas.Ao se levantar, derrubou algumas moedas no chão. Ajudei-a a apanhá-las e, pouco depois, interrompi-a na descrição de suas desgraças e perguntei: “Então seu nobre genro tem-lhe custado tanto dinheiro assim?” Ela respondeu com uma negativa exasperada, mas pouco depois já me narrava a triste história da aflição que lhe causava o esbanjamento de seu genro. Entretanto, é certo que nunca mais mandou me chamar. Não posso afirmar que sempre se façam amigos entre aqueles a quem se informa o sentido de seus atos sintomáticos.
O Dr. J.E.G. van Emden (Haia) relata outro caso de “confissão por ato falho”. “Ao apresentar-me a conta, o garçom de um pequeno restaurante em Berlim declarou que, por causa da guerra, o preço de certo prato fora aumentado em dez centavos de marco. Quando lhe perguntei por que isso não constava no cardápio, ele retrucou que obviamente se tratava de um descuido, mas com certeza era como dizia! Ao embolsar o dinheiro, foi desajeitado e deixou cair na mesa uma moeda de dez centavos, bem na minha frente!
“-Agora tenho certeza de que você cobrou a mais. Quer que me informe na caixa?
“-Desculpe… um momento, por favor - e lá se foi ele.
“-Evidentemente, permiti-lhe a retirada e, passados uns dois minutos, depois que ele se desculpou por ter inexplicavelmente confundido meu prato com outro, deixei-o ficar com os dez centavos como recompensa por sua contribuição para a psicopatologia da vida cotidiana.”
Qualquer um [1] que se disponha a observar o próximo durante as refeições poderá identificar nele os mais belos e instrutivos atos sintomáticos.
Assim, relata o Dr. Hanns Sachs: “Ocorreu-me estar presente quando um casal idoso de parentes meus fazia sua ceia. A senhora sofria do estômago e tinha de observar uma dieta muito rigorosa. Um prato de carne assada acabara de ser colocado diante do marido, e ele pediu à mulher, proibida de partilhar dessa iguaria, que lhe passasse a mostarda. A mulher abriu o armário, enfiou a mão lá dentro e colocou na mesa, diante do marido, o frasquinho com suas gotas para o estômago. É claro que não havia entre o vidro de mostarda em forma de barril e o frasquinho de remédio, nenhuma semelhança que pudesse explicar o lapso; mesmo assim, a esposa só percebeu sua troca quando o marido, sorridente, chamou-lhe a atenção para isso. O sentido desse ato sintomático nem precisa de explicação.”
Devo ao Dr. B. Dattner, de Viena, um excelente exemplo desse tipo, habilmente aproveitado pelo observador:
“Eu estava almoçando num restaurante com meu colega H., doutor em filosofia. Ele me falava das dificuldades dos estagiários e mencionou de passagem que, antes de concluir seus estudos, encontrara colocação como secretário do embaixador ou, mais exatamente, do ministro plenipotenciário e extraordinário do Chile. ‘Mas aí o ministro foi transferido e não me apresentei ao seu sucessor.’ Enquanto proferia esta última frase, ele levou à boca um pedaço de torta, mas deixou-o cair da faca de modo aparentemente desajeitado. Apreendi prontamente o sentido culto desse ato sintomático e, como que por acaso, disse a meu colega, não familiarizado com a psicanálise: ‘Você certamente deixou escapar um bom bocado.’ Ele, no entanto, não percebeu que minhas palavras poderiam referir-se igualmente a seu ato sintomático, e me repetiu com uma vivacidade singularmente surpreendente e encantadora como se meu comentário lhe tivesse tirado as palavras da boca, exatamente a mesma frase que eu dissera: ‘É, certamente deixei escapar um bom bocado’, e em seguida desabafou, dando uma descrição detalhada da inabilidade que o fizera perder esse emprego bem remunerado.
“O sentido do ato sintomático simbólico torna-se mais claro quando se tem em vista que meu colega tinha escrúpulos em falar comigo, um conhecido bem distante, sobre sua precária situação material, e que o pensamento irruptivo disfarçou-se num ato sintomático que expressava simbolicamente aquilo que deveria permanecer oculto, assim proporcionando ao falante um alívio advindo do inconsciente.”
Os exemplos seguintes mostrarão quanta riqueza de sentido pode evidenciar-se num ato aparentemente inintencional de tirar alguma coisa ou levar alguma coisa embora.
Do Dr. B. Dattner: “Um colega fez uma visita a uma amiga de quem fora um grande admirador na juventude; era a primeira visita depois do casamento dela. Ele me contou essa visita e mostrou-se surpreso por não ter conseguido manter sua resolução de ficar pouquíssimo tempo com a amiga. Passou então a narrar um curioso ato falho que ali lhe aconteceu. O marido da amiga, que participava da conversa, pôs-se a procurar uma caixa de fósforos que seguramente estava em cima da mesa quando da chegada de meu colega. Este também vasculhou seus bolsos para ver se não ‘a teria guardado’ acidentalmente, mas foi em vão. Passado um bom tempo, ele realmente ‘a’ encontrou no bolso, ficando surpreso com o fato de só haver um fósforo na caixa. - Poucos dias depois, um sonho que mostrava com insistência o simbolismo da caixa de fósforos e versava sobre essa mesma amiga da juventude confirmou minha explicação de que o ato sintomático de meu colega visara a reclamar direito de prioridade, e a representar sua pretensão de posse exclusiva (apenas um fósforo na caixa).”
Do Dr. Hans Sachs: “Nossa empregada gosta particularmente de certo tipo de torta. Não há dúvida possível quanto a isso, pois este é o único prato que ela sempre faz bem-feito. Num domingo ela nos preparou essa torta, colocou-a sobre o guarda-louças, recolheu os pratos e talheres usados na refeição, empilhou-os na bandeja em que trouxera a torta, e então, em vez de pôr a torta na mesa, tornou a colocá-la sobre a pilha de pratos e desapareceu com ela na cozinha. No começo pensamos que ela reparara em algo a ser consertado na torta, mas, como não reaparecia, minha mulher a chamou e perguntou: ‘Betty, o que aconteceu com a torta?’ ‘Por quê?’ retrucou a empregada, sem entender. Primeiro tivemos que explicar-lhe que ela tornara a levar a torta: pusera-a na bandeja, levara-a de volta e a guardara ‘sem reparar’. - No dia seguinte, quando nos preparávamos para comer o restante da torta, minha mulher notou que havia a mesma quantidade que sobrara da véspera, ou seja, a moça havia rejeitado a parte que lhe cabia desse prato predileto. Quando lhe perguntamos por que não comera a torta, respondeu um pouco envergonhada que não sentira vontade. - A atitude infantil é muito clara nas duas situações: primeiro, a insaciabilidade infantil que não quer partilhar com ninguém o objeto de seus desejos, e depois, a reação igualmente infantil de desafio: ‘Se vocês estão me dando de má vontade, podem guardar para vocês, agora não quero mais nada’.”
Os atos casuais e sintomáticos [1] que ocorrem com as coisas ligadas ao casamento costumam ter um sentido extremamente sério e podem induzir os que não querem se preocupar com a psicologia do inconsciente a acreditarem em presságios. [ver em [1].] Não é um bom começo quando uma jovem esposa perde sua aliança de casada na lua-de-mel, embora, na maioria das vezes, ela esteja apenas extraviada e torne a ser encontrada. - Conheço uma senhora, agora divorciada do marido, que na administração de seus bens freqüentemente assinava documentos com o nome de solteira, muitos anos antes de realmente reassumi-lo. - Certa vezfui hóspede de um par de recém-casados e ouvi a jovem esposa descrever entre risos sua última experiência. No dia seguinte à volta da lua-de-mel, ela chamara a irmã solteira para fazer compras, como nos velhos tempos, enquanto o marido cuidava de seus negócios. De repente, reparou num senhor do outro lado da rua e, cutucando a irmã, exclamou: “Olhe, lá vai o Sr. L!” Esquecera-se de que esse senhor já era seu marido há algumas semanas. Senti um calafrio ao ouvir esse relato, mas não me atrevi a tirar conclusão. Essa historinha só tornou a me ocorrer alguns anos mais tarde, depois que o casamento teve um desfecho muito infeliz. [1]
De um dos notáveis trabalhos de Alphonse Maeder, publicados em francês (Maeder, 1906), extraio a observação que se segue, e que também poderia ter sido incluída entre os exemplos de esquecimento:
“Une dame nous racontait récemment qu’elle avait oublié d’essayer sa robe de noce et s’en souvint la veille du mariage à huit heures du soir; la couturière désespérait de voir se cliente. Ce détail suffit à monter que la fiancée ne se sentait pas très heureuse de porter une rode d’épouse, elle cherchait à oublier cette représentation pénible. Elle est aujourd-hui… divorcée.”
Um amigo que aprendeu a reparar nos sinais [1] contou-me que a grande atriz Eleonora Duse introduz num de seus papéis um ato sintomático que mostra claramente as profundezas de onde ela extrai sua arte cênica. Trata-se de um drama de adultério; ela acabou de ter uma altercação com o marido e agora está absorta em seus pensamentos, antes que seu sedutor se aproxime. Durante esse breve intervalo, ela brinca com sua aliança de casamento, tirando-a e repondo-a no dedo, e depois volta a tirá-la. Agora está pronta para o outro.
Acrescento aqui um relato de Theodor Reik (1915) sobre alguns outros atos sintomáticos relacionados com alianças.
“Conhecemos os atos sintomáticos que as pessoas casadas costumam executar, tirando e recolocando suas alianças. Meu colega M. produziu uma série desses atos sintomáticos. Uma jovem que ele amava o presenteara com um anel, recomendando-lhe que não o perdesse, caso contrário ela saberia que ele já não a amava. Depois disso, ele foi ficando cada vez mais preocupado com a possibilidade de perder o anel. Se o tirava temporariamente (por exemplo, enquanto se lavava), esquecia regularmente onde o havia colocado, de modo que com freqüência só conseguia reencontrá-lo depois de uma longa busca. Se ia pôr uma carta na caixa do correio, não conseguia suprimir uma leve angústia de que o anel fosse arrancado do dedo pelas bordas da abertura. Certa vez, realmente portou-se de maneira tão desajeitada que o anel caiu na caixa. A carta que ele estava remetendo nessa ocasião era um texto de despedida de uma ex-amada diante de quem ele se sentia culpado. Ao mesmo tempo, despertou nele uma saudade dessa outra mulher, o que entrou em conflito com seus sentimentos em relação a seu atual objeto de amor.”
O tema do anel [1] mais uma vez deixa-nos a impressão de como é difícil para o psicanalista descobrir algo novo que antes já não fosse conhecido por algum escritor. No romance Vor dem Sturm, de Fontane, diz o conselheiro Turgany durante um jogo de prendas: “Estejam certas, minhas senhoras, de que os mais profundos segredos da natureza revelam-se na entrega das prendas.” Entre os exemplos que usa para corroborar sua afirmação existe um que merece nosso interesse especial: “Lembro-me da esposa de um professor, já situada na idade do embonpoint, que vez após outra tirava sua aliança para oferecê-la como prenda. Dispensem-me de descrever a felicidade conjugal desse lar.” E prossegue: “Nesse mesmo grupo havia um cavalheiro que nunca se cansava de depositar no colo das damas seu canivete inglês, com dez lâminas, saca-rolhas e isqueiro, até que esse monstro afiado, depois de rasgar vários vestidos de seda, finalmente desapareceu ante os clamores de indignação.”
Não nos causará surpresa que um objeto de significação simbólica tão rica quanto um anel também seja empregado em atos falhos dotados de sentido, mesmo que não defina um vínculo erótico sob a forma de uma aliança de casamento ou um anel de noivado. O seguinte exemplo de um episódio desse tipo foi posto à minha disposição pelo Dr. M. Kardos:
“Muitos anos atrás, um homem bem mais moço do que eu apegou-se a mim; ele partilha de meus esforços intelectuais e mantém comigo aproximadamente a relação de um aluno com seu professor. Certa ocasião, presenteei-o com um anel que por várias vezes já deu margem a atos sintomáticos ou atos falhos, sempre que ele desaprovava alguma coisa em nossa relação. Há pouco tempo ele pôde relatar-me o caso que se segue, e que é particularmente belo e transparente. Costumávamos encontrar-nos uma vez por semana, quando ele vinha visitar-me e conversar; um dia, porém, ele deu uma desculpa qualquer para não comparecer, já que lhe pareceu mais desejável ter um encontro com uma jovem dama. Na manhã seguinte, ele notou, mas só muito depois de ter saído de casa, que o anel não estava em seu dedo. Isso não o preocupou muito, pois ele presumiu tê-lo deixado na mesinha de cabeceira, onde o colocava todas as noites, e achou que ali o encontraria ao regressar. Assim que chegou em casa, pôs-se a procurá-lo, mas em vão, e começou uma busca igualmente infrutífera pelo quarto. Por fim, ocorreu-lhe que o anel estivera na mesinha de cabeceira - como, aliás, acontecia há mais de um ano - ao lado de um pequeno canivete que ele normalmente carregava no bolso do colete; veio-lhe assim a suspeita de que ele poderia, ‘por distração’, ter colocado o anel no bolso, junto com o canivete. Enfiou a mão no bolso e de fato encontrou o anel ali buscado. ‘Com a aliança no bolso do colete’ é uma maneira proverbial de se fazer referência ao lugar onde ela é guardada pelo marido que pretende trair a mulher de quem a recebeu. Portanto, o sentimento de culpa de meu amigo moveu-o, primeiramente, à autopunição (‘você já não merece usar esse anel’), e em seguida, à confissão de sua infidelidade, ainda que apenas sob a forma de um ato falho sem testemunhas. Somente pela via indireta de fazer um relato disso - o que, aliás, era muito previsível - foi que ele chegou a confessar sua pequena ‘infidelidade’.”
Sei também de um homem idoso [1] que se casou com uma moça muito jovem e resolveu passar a noite de núpcias num hotel da cidade, em vez de partir logo em viagem de lua-de-mel. Mal chegaram ao hotel, ele notou, alarmado, que estava sem sua carteira, onde se achava todo o dinheiro para a lua-de-mel; portanto, ou ele a havia posto em lugar errado ou a perdera. Com um telefonema, ainda conseguiu alcançar seu criado, que encontrou a carteira perdida no paletó usado no casamento e a levou para o hotel onde o aguardava o noivo, que assim entrara no casamento sem meios [ohne Vermögen]. Portanto, na manhã seguinte, ele pôde partir em viagem com sua jovem esposa. Durante a noite, porém, como previra sua apreensão, ele ficara “impotente [unvermögend]”.
É consolador pensar que o hábito humano de “perder coisas” tem nos atos sintomáticos uma extensão insuspeitada e que, por conseguinte, ele é bem-vindo ao menos para uma intenção secreta do perdedor. Com freqüência, ele é apenas uma expressão de desapreço pelo objeto perdido, ou de uma antipatia secreta por ele ou pela pessoa de quem ele provém, ou então a inclinação a perder o objeto foi para ele transferida de outros objetos mais significativos através de uma ligação simbólica de pensamentos. A perda de coisas valiosas serve para expressar uma multiplicidade de moções; pode dar representação simbólica a um pensamento recalcado, e portanto repetir uma advertência que se gostaria de ignorar - ou, sobretudo, pode ser a oferta de um sacrifício aos obscuros poderes do destino, cujo culto ainda hoje não se extinguiu entre nós.
Aqui estão alguns exemplos para ilustrar essas teses sobre a perda de objetos:
Do Dr. B. Dattner: “Um colega contou-me que perdera inesperadamente a lapiseira ‘Penkala’ que já tinha há mais de dois anos e valorizava muito por sua qualidade superior. A análise revelou os seguintes fatos: no dia anterior, meu colega recebera de seu cunhado uma carta extremamente desagradável que terminava com esta frase: ‘Atualmente, não tenho nem vontade nem tempo para sustentar sua frivolidade e sua preguiça.’ O afeto ligado a essa carta foi tão poderoso que, no dia seguinte, meu colega sacrificou prontamente a lapiseira, que fora um presente desse cunhado, para que os favores dele não lhe pesassem demais.”
Uma dama conhecida minha absteve-se de ir ao teatro, como é compreensível, enquanto estava de luto pela morte da mãe idosa. Faltavam poucos dias para terminar seu ano de luto, e ela se deixou persuadir por seus amigos a comprar um ingresso para um espetáculo particularmente interessante. Chegando ao teatro, descobriu que havia perdido o ingresso. Mais tarde, achou que o teria jogado fora juntamente com a passagem de bonde ao saltar do veículo. Essa mesma dama costuma orgulhar-se de nunca ter perdido coisa alguma por descuido.
Podemos presumir, portanto, que outro caso de perda que ela vivenciou também não se deu sem um bom motivo. Ao chegar a uma estância hidromineral, ela resolveu visitar uma pensão onde se hospedara numa ocasião anterior. Receberam-na como a uma velha amiga, hospedaram-na e, quando ela quis pagar, disseram-lhe que se considerasse convidada da casa, o que não lhe pareceu nada correto. Concordaram em que ela deixasse alguma coisa para a criada por quem fora servida, de modo que ela abriu a bolsa e colocou sobre a mesa uma nota de um marco. À noite, o servente da pensão entregou-lhe uma nota de cinco marcos que fora achada embaixo da mesa e que, no entender da dona da pensão, deveria pertencer à senhorita. Logo, ela devia tê-la deixado cair da bolsa ao retirar a gorjeta para a criada. Provavelmente quisera pagar sua conta, apesar de tudo.
Um artigo um pouco mais extenso de Otto Rank (1911) [450] serve-se da análise dos sonhos para expor a disposição sacrifical que constitui a base desse atos [de perda] e revelar suas motivações mais profundas. É interessante ele acrescentar, em seguida, que muitas vezes, não apenas perder objetos, mas também achá-los, parece ser [psicologicamente] determinado. O sentido em que se deve entender isso pode ser inferido da seguinte observação dele que aqui incluo (Rank, 1915a). É óbvio que, na perda, o objeto já está dado; no achado, é preciso primeiro procurá-lo.
“Uma jovem que dependia materialmente de seus pais queria comprar uma jóia barata. Na loja, perguntou o preço do objeto de seu agrado, mas ficou desapontada do descobrir que custava mais do que a soma de suas economias. E no entanto apenas a falta de duas coroas a separava desse pequeno prazer. Com o ânimo abatido, começou a perambular em direção a casa pelas ruas da cidade, repletas das multidões do entardecer. Num dos lugares mais movimentados, chamou-lhe de repente a atenção - dos lugares mais movimentados, chamou-lhe de repente a atenção - muito embora, por seu depoimento, ela estivesse profundamente imersa em pensamentos - umpedacinho de papel caído no chão, pelo qual ela acabara de passar sem reparar nele. Ela se voltou, apanhou-o e ficou atônita ao constatar que era uma nota de duas coroas, dobrada. Pensou consigo mesma: ‘Isto me foi enviado pelo destino para que eu possa comprar a jóia’, e retomou alegremente o caminho de volta, pensando em aproveitar esse sinal. No mesmo instante, porém, disse a si mesma que não deveria fazê-lo, pois dinheiro achado é dinheiro da sorte e não deve ser gasto.
“O pouquinho de análise que tornaria inteligível esse ‘ato casual’ provavelmente pode ser inferido da situação descrita, mesmo sem informações pessoais da própria moça. Entre os pensamentos que a entretinham enquanto ia para casa, os relativos a sua pobreza e a suas restrições materiais sem dúvida devem ter estado em primeiro plano; além disso, podemos presumir que essa reflexão tenha assumido a forma de uma eliminação desejada de sua situação precária. A idéia da maneira mais fácil de obter a quantia necessária por certo há de ter surgido do interesse dela em realizar seu modesto desejo, e há de ter sugerido a solução mais simples, ou seja, achar o dinheiro. Seu inconsciente (ou seu pré-consciente), portanto, estava predisposto a ‘achar’, muito embora, por causa de outras demandas feitas a sua atenção (‘imersa em pensamentos’), essa idéia não se tornasse inteiramente consciente. Podemos ir mais além e, com base em casos semelhantes já analisados, afirmar inclusive que a ‘disposição de busca’ inconsciente tem muito mais probabilidade de êxito do que a atenção conscientemente dirigida. De outro modo, seria quase impossível explicar como foi que justamente essa pessoa, dentre as muitas centenas de transeuntes, e ainda sob as condições agravantes da iluminação crepuscular deficiente e da densa multidão, pôde fazer o achado surpreendente para ela mesma. A grande amplitude dessa disposição inconsciente ou pré-consciente é realmente indicada pelo fato notável de que, depois desse achado - isto é, num momento em que essa atitude já se tornara supérflua e certamente já escapara da atenção consciente -, a moça encontrou um lenço mais adiante a caminho de casa, num trecho escuro e solitário de uma rua de subúrbio.”
É mister dizer [1] que são exatamente esses atos sintomáticos que costumam oferecer a melhor abordagem para a compreensão da vida anímica íntima das pessoas.
Quanto aos atos casuais esporádicos, quero comunicar um exemplo que admitiu uma interpretação mais profunda, mesmo sem análise. Ele ilustracom clareza as condições em que tais sintomas podem ser produzidos de maneira inteiramente despercebida, e me permite acrescentar uma observação de importância prática. Numa viagem de férias de verão, tive de aguardar alguns dias em determinado local pela chegada de meu companheiro de viagem. Nesse meio tempo, travei conhecimento com um jovem que também parecia solitário e se dispôs a juntar-se a mim. Como estávamos hospedados no mesmo hotel, era natural que compartilhássemos todas as refeições e fizéssemos alguns passeios juntos. Na tarde do terceiro dia, ele me disse de repente estar esperando sua esposa, que chegaria à noite no trem expresso. Isso despertou meu interesse psicológico, pois já de manhã eu havia reparado que meu companheiro rejeitara minha proposta de fazermos uma excursão mais longa e, em nosso breve passeio, não quisera seguir certo caminho por considerá-lo íngreme e perigoso demais. Durante nosso passeio vespertino, ele comentou de repente que eu sem dúvida estaria com fome e que não deveria atrasar meu jantar por sua causa, pois ele iria aguardar a chegada da esposa e cearia com ela. Entendi a mensagem e sentei-me para jantar, enquanto ele seguia para a estação. Na manhã seguinte, encontramo-nos no vestíbulo do hotel. Ele me apresentou a sua mulher e depois disse: “O senhor vai tomar café conosco, não vai?” Eu ainda tinha que fazer uma pequena compra na rua ao lado, mas prometi voltar logo. Ao entrar na sala onde era servido o desjejum, vi o casal sentado do mesmo lado de uma mesinha junto à janela. Do outro lado havia apenas uma cadeira, mas em seu encosto estava pendurada a grande e pesada capa do marido, cobrindo o assento. Entendi perfeitamente o sentido daquele arranjo da capa, que por certo não fora deliberado e, por isso mesmo, era muito mais expressivo. Queria dizer: “Aqui não há lugar para o senhor, sua presença agora é supérflua.” O marido não percebeu que eu estava parado diante da mesa sem me sentar, mas a mulher percebeu e logo cutucou o marido, sussurrando: “Olhe, você ocupou a cadeira do cavalheiro.”
Essa e outras experiências semelhantes levaram-me a concluir que os atos realizados de maneira inadvertida tornam-se inevitavelmente uma fonte de mal-entendidos nas relações humanas. O agente, que nada saber da existência de uma intenção ligada a esses atos, não acha que eles lhe sejam imputáveis e não se sente responsável por eles. A outra pessoa, ao contrário, uma vez que geralmente baseia nesses atos, entre outros, suas conclusões sobre as intenções e modos de pensar do parceiro, sabe mais dos processos psíquicos do outro do que ele próprio se dispõe a admitir ou acredita ter comunicado. Mas o agente fica indignado quando essas conclusões extraídas de seus atos sintomáticos lhe são apresentadas; declara que não têm fundamento, pois não teve consciência da intenção ao realizá-los, e se queixa de ter sido mal interpretado pela outra pessoa. A rigor, esses mal-entendidos baseiam-se numa compreensão excessiva, e também demasiadamente refinada. Quanto mais “nervosas” são duas pessoas, mais elas se dão motivos para desentendimentos cuja responsabilidade é tão terminantemente negada por cada uma em relação a si mesma quanto é considerada certa em relação à outra. E esse é sem dúvida o castigo pela insinceridade interna das pessoas, que só a pretexto do esquecimento, dos equívocos na ação e da não-intencionalidade expressam impulsos que melhor seria admitirem para si mesmas e para os outros quando já não podem controlá-los. De fato, pode-se dizer genericamente que cada pessoa pratica em termos contínuos uma análise psíquica de seus semelhantes, e por isso aprende a conhecê-los melhor do que eles próprios se conhecem. O caminho para se observar o preceito do passa pelo estudo dos próprios atos e omissões aparentemente acidentais.
Dentre todos os escritores [1] que ocasionalmente se pronunciaram sobre os pequenos atos sintomáticos e atos falhos ou que se valeram deles, nenhum entendeu tão claramente sua natureza secreta ou os apresentou de modo tão insolitamente verossímil quanto Strindberg, cuja genialidade para reconhecer tais coisas apoiava-se, de fato, numa grave anormalidade psíquica. [1] O Dr. Karl Weiss, de Viena (1913), chamou atenção para o seguinte trecho de uma das obras de Strindberg:
“Passado algum tempo, o conde realmente chegou e se aproximou de Esther calmamente, como se tivesse marcado um encontro com ela.
“-Você esperou muito? - perguntou ele com sua voz baixa.
“-Seis meses, como você sabe - respondeu Esther -; mas foi hoje que você me viu?
“-Sim, agora mesmo, no bonde: e olhei em seus olhos, acreditando falar com você.
“-Muita coisa ‘aconteceu’ desde a última vez.
“-Sim, e achei que tudo estava acabado entre nós.
“-Como assim?
“-Todos os presentinhos que recebi de você se quebraram, e ainda por cima misteriosamente. E isso é um aviso antigo.
“-Não diga! Agora me lembro de uma porção de acontecimentos que julguei acidentais. Uma vez ganhei uns óculos de presente de minha avó, na época em que éramos boas amigas. As lentes eram de cristal de rocha polido, excelentes para as autópsias - uma verdadeira maravilha que eu tratava com o maior cuidado. Um dia, cortei relações com a velha e ela ficou com raiva de mim. E na autópsia seguinte, as lentes caíram do aro, sem nenhum motivo para isto. Pensei que os óculos simplesmente estavam quebrados e mandei consertá-los. Mas não, eles continuaram a me recusar seus serviços; foram postos numa gaveta e se perderam.
“-Não diga! É curioso como as coisas relativas aos olhos são as mais sensíveis. Eu tinha um par de binóculos que ganhei de um amigo; ajustavam-se tão bem aos meus olhos que era um prazer usá-los. Esse amigo e eu nos desentendemos. Sabe como é, isso acontece sem nenhuma causa visível; é como se não se pudesse ficar de acordo. Na vez seguinte em que eu quis usar o binóculo, não consegui enxergar com clareza. A trave estava curta demais e eu via duas imagens. Nem preciso dizer que a trave não havia encurtado e que a distância entre meus olhos também não aumentara! Foi um desses milagres que acontecem todos os dias - e que os maus observadores não percebem. A explicação? A força psíquica do ódio é muito maior do que supomos. - Aliás, o anel que você me deu perdeu a pedra e não se deixa consertar, não deixa mesmo. Você quer se separar de mim agora?…” (The Gothic Rooms.)
Também no campo dos atos sintomáticos [1] a observação psicanalítica tem de conceder prioridade aos autores literários. Ela só consegue repetir o que eles já disseram há muito tempo. Wilhelm Stross chamou minha atenção para o seguinte trecho do famoso romance humorístico Tristram Shandy, de Laurence Sterne (Volume VI, Capítulo V):
“… e não me surpreende nem um pouco que Gregório de Nazianzo, ao observar os gestos apressados e rebeldes de Juliano, previsse que ele um dia se tornaria um apóstata; - ou que Santo Ambrósio tenha posto seu Amanuense porta afora por causa de um movimento indecente que ele fazia com a cabeça, indo para frente e para trás como um malho; - ou que Demócrito tenha imaginado que Protágoras era um erudito ao vê-lo amarrar um feixede lenha e colocar os gravetos mais finos na parte de dentro. Há milhares de indícios despercebidos, prosseguiu meu pai, que permitem ao olhar perspicaz penetrar de imediato na alma humana; e afirmo, acrescentou ele, que nenhum homem sensato tira seu chapéu ao entrar num aposento, ou torna a pegá-lo ao sair dele, sem que lhe escape algo que o revela.”
Aqui acrescento uma pequena e variada coleção de atos sintomáticos observados em pessoas sadias e em neuróticos: [1]
Um colega idoso, que não era bom perdedor no jogo de cartas, pagou certa noite sem reclamar, mas num estado de ânimo peculiarmente contido, uma grande soma que havia perdido. Depois de sua saída, descobriu-se que ele deixara em seu lugar quase todos os pertences que levava: óculos, cigarreira e lenço. Isso sem dúvida requer a tradução: “Seus ladrões! Vocês realmente me saquearam!”
Um homem que sofria de impotência sexual ocasional, originária da intimidade de suas relações com a mãe na infância, contou que tinha o hábito de enfeitar escritos e apontamentos com a letra S, inicial do nome da mãe. Ele não suporta que as cartas vindas de casa entrem em contato com outra correspondência profana qualquer sobre sua escrivaninha, e por isso é obrigado a guardar as primeiras separadamente.
Uma jovem data abriu bruscamente a porta do consultório, embora a paciente anterior ainda não tivesse saído. Ao se desculpar, ela se referiu a sua “irreflexão”; logo ficou claro que ela havia demonstrado a curiosidade que no passado a fizera entrar no quarto dos pais.
As jovens que se orgulham de ter cabelos bonitos sabem manusear suas travessas e grampos de tal modo que o cabelo se solta enquanto estão conversando.
Muitos homens deixam cair moedas do bolso enquanto deitados durante a sessão, e assim pagam os honorários que julgam apropriados pelo trabalho de tratamento.
As pessoas que esquecem na casa do médico os objetos que trouxeram consigo, tais como óculos, luvas e carteiras, mostram com isso que não conseguem separar-se e que gostariam de voltar logo. Ernest Jones [1911b, 508] diz: “Quase se pode medir o êxito com que um médico pratica apsicoterapia, por exemplo, pelo tamanho da coleção de guarda-chuvas, lenços, carteiras etc. que ele consegue fazer em um mês.” [1]
Os menores atos habituais executados com um mínimo de atenção, tais como dar corda no relógio antes de dormir, apagar a luz antes de sair do quarto etc., vez por outra ficam sujeitos a perturbações que demonstram de maneira inconfundível a influência de complexos inconscientes sobre os hábitos aparentemente mais arraigados. Maeder conta, na revista Coenobium [1909], o caso de um médico-residente que resolveu ir à cidade certa noite para cuidar de um assunto importante, embora estivesse de plantão e não devesse sair do hospital. Ao voltar, ficou surpreso por ver a luz acesa em seu quarto. Esquecera-se de apagá-la ao sair, coisa que nunca deixara de fazer antes. Mas logo entendeu o motivo desse esquecimento. O diretor do hospital, que morava na casa, naturalmente deduziria pela luz no quarto do médico-residente que ele estava no hospital.
Um homem sobrecarregado de preocupações e sujeito a abatimentos ocasionais assegurou-me que em geral encontrava seu relógio sem corda pela manhã quando, na noite anterior, a vida lhe parecera demasiadamente dura e hostil. Com essa omissão, deixando de dar corda no relógio, ele expressava simbolicamente que pouco lhe importava viver o dia seguinte.
Outro homem, [1] que não conheço pessoalmente, escreve: “Depois de atingido por um duro golpe do destino, a vida me pareceu tão dura e hostil que achei que não teria forças suficientes para atravessar o dia seguinte. Notei então que quase todos os dias esquecia-me de dar corda em meu relógio, coisa que nunca omitira antes, pois era algo que eu fazia regularmente antes de ir para a cama, como um ato quase mecânico e inconsciente. Agora, só muito raramente me lembrava de fazê-lo, e só quando tinha algo importante ou especialmente interessante no dia seguinte. Seria também isso um ato sintomático? Não pude dar-me nenhuma explicação.”
Quem se der o trabalho, como fizeram Jung (1907) e Maeder (1909), de observar as melodias que cantarola inintencionalmente e com freqüência sem percebê-lo, poderá descobrir com bastante regularidade a relação entre as palavras da canção e o assunto que está ocupando sua mente.
Também os determinantes mais sutis da expressão dos pensamentos na fala ou na escrita merecem uma consideração cuidadosa. Em geral se acredita que se é livre para escolher as palavras com que se revestem os pensamentos ou as imagens com que eles são disfarçados. Uma observação mais atenta mostra que outras considerações determinam essa escolha e que, por trás da forma de expressão do pensamento, vislumbra-se um sentido mais profundo, muitas vezes não deliberado. As imagens e falares de que uma pessoa se serve preferencialmente poucas vezes deixam de ter importância para o juízo que se faz dela, e outros continuamente se revelam alusões a um tema que se mantém em segundo plano no momento, mas que afetou poderosamente o falante. Ouvi em determinada época, em meio a conversas teóricas, alguém usar repetidamente esta construção: “Quando uma coisa de repente nos atravessa a cabeça, …”2 Só que eu sabia que, recentemente, ele recebera a notícia de que uma bala russa havia atravessado o capacete que seu filho portava.3
CAPÍTULO X - ERROS
Os erros de memória distinguem-se do esquecimento acompanhado por ilusões da memória unicamente por um traço: nos primeiros, o erro (a ilusão de memória) não é reconhecido como tal, mas é-lhe dado crédito. O uso do termo “erro”, contudo, ainda parece depender de outra condição. Falamos em “errar”, e não em “lembrar erroneamente”, quando desejamos enfatizar o caráter de realidade objetiva no material psíquico por reproduzir, isto é, quando pretendemos lembrar algo diferente de um fato de nossa própria vida psíquica, algo que, além disso, possa ser confirmado ou refutado pela memória das outras pessoas. A antítese do erro de memória, nesse sentido, é a ignorância.
Em meu livro A Interpretação dos Sonhos (1900a) fui responsável por uma série de falseamentos do material histórico e factual em geral, nos quais reparei com assombro depois da publicação do livro. Investigando-os mais detidamente descobri que não haviam brotado de minha ignorância, mas remontavam a erros de memória que a análise poderia esclarecer.
(1) Na página 266 (da primeira edição) [Ed. Standard Brasileira, Vol. V, em [1]], aponto como local de nascimento de Schiller a cidade de Marburgo [em Hesse], nome que se repete na Estíria. Esse erro ocorre na análise de um sonho que tive durante uma viagem noturna e do qual fui despertado pelo condutor que anunciava o nome da estação de Marburgo. No conteúdo do sonho, alguém perguntava por um livro de Schiller. Na verdade, Shiller não nasceu na cidade universitária de Marburgo [em Hesse], mas em Marbach, na Suábia. Além do mais, posso afirmar que eu sempre soube disso.
(2) Na página 135 [Ed. Standard Brasileira, Vol. IV, em [1] e [2]], o pai de Aníbal foi chamado de Asdrúbal. Esse erro me foi especialmente aborrecido, mas foi o que mais corroborou minha concepção desses erros. Poucos leitores de meu livro hão de estar mais familiarizados com a história da casa dos Barca do que o autor, que escreveu esse erro e passou por cima dele em três revisões de provas. O pai de Aníbal chamava-se Amílcar Barca - Asdrúbal era o nome do irmão de Aníbal, e também o de seu cunhado e antecessor no comando.
(3) Nas páginas 177 e 370 [Ed. Standard Brasileira, Vol. IV, em [1], e Vol. V, em [2]], afirmo que Zeus castrou e destronou seu pai, Cronos. Mas adiantei erroneamente essa atrocidade em uma geração: segundo a mitologia grega, foi Cronos quem a cometeu contra seu pai, Urano.
Como se explica que minha memória, nesses pontos, me fornecesse o que era incorreto, ao passo que, como pode comprovar o leitor do livro, colocava a meu dispor o material mais remoto e incomum? E mais, como foi que em três correções de provas, que fiz cuidadosamente, passei por esses erros como se estivesse cego?
Goethe disse a respeito de Lichtenberg “Ali onde ele faz uma brincadeira oculta-se um problema”. Pode-se dizer algo semelhante sobre os trechos de meu livro aqui citados: ali onde surge um erro oculta-se um recalcamento - melhor dizendo, uma insinceridade, uma distorção que se baseia fundamentalmente no material recalcado. Na análise dos sonhos ali comunicados, fui compelido, pela própria natureza dos temas com que se relacionavam os pensamentos oníricos, a interromper a análise em algum ponto antes de completá-la a contento, por um lado, e a aparar as arestas de algum detalhe indiscreto mediante uma leve distorção, por outro. Não me era possível agir de outro modo e, de fato, não tinha nenhuma outra opção se queria apresentar exemplos e provas; minha situação de aperto era uma decorrência necessária da propriedade dos sonhos de expressarem o recalcado, ou seja, o que é insuscetível de chegar à consciência. Apesar disso, ao que parece, ainda restou o bastante [no livro] para escandalizar algumas almas sensíveis. Mas a distorção ou a ocultação de pensamentos cuja continuação me era conhecida não foram possíveis sem que alguns rastros ficassem para trás. Muitas vezes, o que eu queria suprimir conseguia, contra minha vontade, ganhar acesso ao que eu aceitaria relatar, surgindo sob a forma de um erro que me passava despercebido. Além disso, o mesmo tema está no fundo de todos os três exemplos aqui destacados: os erros derivam de pensamentos recalcados que se relacionam com meu pai morto.
(1) Quem fizer a leitura do sonho analisado em [1] [Ed. Standard Brasileira, Vol. V. em [1]] descobrirá em parte sem nenhum disfarce, e em parte poderá adivinhar por outros indícios, que interrompi o texto diante de pensamentos que teriam contido uma crítica inamistosa a meu pai. Na continuação dessa cadeia de pensamentos e lembranças há de fato uma história irritante na qual um certo papel é desempenhado por alguns livros e por um amigo de negócios de meu pai, que se chama Marburg - o mesmo nome que me acordou ao ser anunciado na estação homônima na ferrovia do sul. Na análise, tentei ocultar esse Sr. Marburg de mim mesmo e de meus leitores; ele se vingou intrometendo-se onde não devia e mudando o nome do local de nascimento de Schiller de Marbach para Marburgo.
(2) O erro de escrever Asdrúbal em vez de Amílcar, o nome do irmão substituindo o do pai, ocorreu exatamente num contexto que se referia às fantasias sobre Aníbal em meus anos de ginásio e a minha insatisfação com o comportamento de meu pai frente aos “inimigos do nosso povo”. Eu poderia ter prosseguido e contado como minha relação com meu pai foi alterada por uma visita que fiz à Inglaterra, onde vim a conhecer meu meio-irmão, filho do primeiro casamento de meu pai, que lá vivia. O filho mais velho de meu irmão tem a mesma idade que eu; assim, as relações entre nossas idades não constituíam nenhum obstáculo a minhas fantasias de como as coisas teriam sido diferentes se eu tivesse vindo ao mundo não como filho de meu pai, mas de meu irmão. Essas fantasias suprimidas falsearam o texto de meu livro no ponto em que interrompi a análise, forçando-me a colocar o nome do irmão em lugar do nome do pai.
(3)É à influência de minhas lembranças desse mesmo irmão que atribuo meu erro de adiantar em uma geração as atrocidades mitológicas do panteão grego. Dentre as advertências de meu irmão, uma permaneceu por muito tempo em minha memória: “Quando à condução de sua vida”, disse-me ele, “não se esqueça de que você realmente não pertence à segunda mas à terceira geração em relação a seu pai.” Nosso pai tornara a casar-se anos depois, por isso era muito mais velho do que seus filhos do segundo casamento. Cometi o erro já descrito no ponto exato do livro em que estava examinando o respeito entre pais e filhos.
Também aconteceu algumas vezes que amigos e pacientes cujos sonhos relatei, ou aos quais fiz alusão no decorrer de minhas análises de sonhos, chamaram minha atenção para o fato de as circunstâncias dos acontecimentospor nós vivenciados em comum terem sido inexatamente relatadas por mim. Também nesses casos tratava-se de erros históricos. Depois de retificados, reexaminei os diversos casos e de igual maneira me convenci de que minha lembrança dos fatos só fora inexata nos pontos onde eu havia propositalmente distorcido ou ocultado alguma coisa na análise. Também aqui encontramos novamente um erro despercebido como substituto de uma ocultação ou recalcamento intencionais.
Esses erros derivados do recalcamento, devem ser claramente distinguidos de outros que se baseiam numa verdadeira ignorância. Assim, por exemplo, foi por ignorância que, numa excursão a Wachau, acreditei ter chegado à residência do líder revolucionário Fischhof. Os dois lugares só têm em comum o mesmo nome: o Emmersdorf de Fischhof fica situado em Caríntia. Mas eu não sabia disso.
(4) Eis outro erro vergonhoso e instrutivo, um exemplo de ignorância temporária, se é que se pode dizer isso. Certo dia, um paciente me lembrou de lhe dar os dois livros sobre Veneza que eu lhe prometera, pois precisava deles para se preparar para sua viagem de Páscoa. “Já os tenho prontos para você”, retruquei, e fui buscá-los na biblioteca. A verdade, porém, é que eu havia esquecido de apanhá-los porque não estava inteiramente de acordo com a viagem de meu paciente, na qual via uma perturbação desnecessária do tratamento e um prejuízo material para o médico. Dei então uma rápida olhada na biblioteca à procura dos dois livros que tinha em vista. Um era “Veneza, Cidade da Arte”; “mas além desse”, pensei, “devo ter uma obra histórica numa coleção parecida. Certo, aqui está: ‘Os Medici’.” Peguei o livro e levei-o ao paciente que aguardava para logo ter que admitir, envergonhado, meu engano. Na realidade, eu sabia muito bem que os Medici nada têm a ver com Veneza, mas por um breve intervalo isso não me pareceu incorreto. Agora, cabia-me ser justo; já que por tantas vezes eu havia confrontado meu paciente com seus próprios atos sintomáticos, só poderia salvar minha autoridade aos olhos dele sendo sincero e mostrando-lhe os motivos (que eu mantivera em segredo) de minha antipatia por sua viagem.
Talvez seja genericamente espantoso que a ânsia dos seres humanos de dizerem a verdade seja muito mais forte do que se costuma supor. Além disso,talvez seja conseqüência de minha prática de psicanálise que eu quase já não consiga mentir. Mal tento distorcer alguma coisa, sucumbo a um erro ou a algum outro ato falho que trai minha insinceridade, como se pode ver nesse último exemplo e nos anteriores.
Dentre todos os atos falhos, os erros parecem ter o mecanismo menos rígido, ou seja, a ocorrência de um erro é uma indicação geral de que atividade anímica em questão teve de lutar com alguma influência perturbadora, mas a forma específica assumida pelo erro não é determinada pela qualidade da idéia perturbadora que permaneceu na obscuridade. Podemos acrescentar aqui, retrospectivamente, que em muitos casos simples de lapsos da fala e da escrita é possível supor a mesma situação. Toda vez que cometemos um lapso ao falar ou escrever, podemos inferir que houve alguma perturbação devida a processos anímicos situados fora de nossa intenção: mas é preciso admitir que os lapsos da fala e da escrita freqüentemente obedecem às leis da semelhança, do comodismo ou da tendência à pressa, sem que o elemento perturbador consiga impor qualquer parcela de sue próprio caráter ao engano dele resultante na fala ou na escrita. Somente a complacência do material lingüístico é que possibilita a determinação dos erros e, ao mesmo tempo, marca seus limites.
Para não me restringir exclusivamente a meus próprios erros, quero comunicar alguns exemplos que aliás também poderiam ter sido incluídos entre os lapsos da fala e os equívocos na ação, embora isso não tenha maior importância, já que todas essas formas de atos falhos são equivalentes.
(5)Proibi um paciente de telefonar para a amada com quem ele mesmo queria romper, já que cada conversa reatiçava a luta que ele travava para afastar-se dela. Ele deveria comunicar-lhe sua decisão final por escrito, apesar das dificuldades que havia para enviar-lhe cartas. Por volta de 1 hora, ele me visitou para dizer que encontrara um meio de contornar essas dificuldades e, entre outras coisas, perguntou-me se poderia invocar minha autoridade médica. Às 2 horas, estava ocupado em redigir a carta de rompimento quando, de repente, interrompeu-se e disse a sua mãe, que estava presente: “Oh! esqueci de perguntar ao professor se posso mencionar seu nome na carta”; correu para o telefone, pediu a ligação e perguntou: “Posso falar com o professor, por favor, se ele já tiver terminado de almoçar?” Em resposta, ouviu um atônito “Adolf, você enlouqueceu?” Era a mesma voz que, segundo minhas ordens, ele não deveria voltar a ouvir. Ele havia simplesmente “errado” e, em vez do número do telefone do médico, fornecera o da amada.
(6) Uma jovem dama pretendia fazer uma visita a uma amiga recém-casada na Habsburgergasse [“Rua Habsburgo”]. Falou nisso durante a refeição da família, mas por erro disse que tinha de ir à Babenbergergasse [“Rua Babenberg”]. Algumas das pessoas presentes acharam graça e chamaram sua atenção para o erro - ou lapso da fala, como se preferir - que ela não havia notado. É que dois dias antes a república fora proclamada em Viena; o negro e o amarelo haviam desaparecido e dado lugar às cores da velha Ostmark - vermelho, branco e vermelho -, e os Habsburgos tinham sido depostos; a falante introduzira essa mudança de dinastia no endereço da amiga. De fato existe em Viena uma célebre Babenberger-strasse, mas nenhum vienense a chamaria de “Gasse”
(7) O mestre-escola de uma cidade de veraneio, um jovem paupérrimo mas garboso, tanto persistiu em cortejar a filha do proprietário de uma mansão, oriundo da cidade grande, que a jovem acabou por se apaixonar intensamente por ele e convenceu sua família a consentir no casamento, apesar das diferenças de posição social e de raça. Um dia, o professor escreveu ao irmão uma carta em que dizia: “A moça decerto não é nenhuma beleza, mas é muito meiga, e até aí tudo estaria bem. Mas, se poderei decidir-me a me casar com uma judia, ainda não sei lhe dizer.” Essa carta foi cair nas mãos da noiva e pôs fim ao noivado, enquanto, ao mesmo tempo, o irmão ficava atônito com as declarações de amor a ele endereçadas. Meuinformante assegurou-me que isto foi um erro, e não um artifício astuto. Tomei conhecimento de outro caso em que uma dama insatisfeita com seu velho médico, mas sem querer livrar-se dele abertamente, alcançou seu objeto através de uma confusão de cartas, e ao menos aqui posso garantir que foi um erro, e não uma argúcia consciente, que se valeu desse conhecido tema da comédia.
(8) Brill [1912, 191] fala de uma dama que lhe pediu notícias de uma conhecida de ambos e, ao fazê-lo, designou-a erroneamente por seu nome de solteira. Chamada sua atenção para o erro, ela teve de admitir que não gostava do marido dessa dama e que aquele casamento a deixara muito insatisfeita.
(9) Eis um caso de erro que também pode ser descrito como um lapso da fala: um jovem pai foi ao registro civil comunicar o nascimento de sua segunda filha. Indagado sobre como se chamaria a criança, respondeu “Hanna”, ao que o funcionário teve de lhe dizer que ele já tinha uma filha com esse nome. Podemos concluir que essa segunda filha não foi tão bem-vinda quanto fora a primeira.
Quero acrescentar algumas outras observações de confusão entre nomes; naturalmente, com igual direito poderiam ter sido incluídas em outros capítulos deste livro.
(10) Uma senhora é mãe de três filhas, duas das quais estão casadas há muito tempo, enquanto a mais jovem ainda aguarda seu destino. Em ambos os casamentos, uma senhora amiga da família deu o mesmo presente - um dispendioso aparelho de chá de prata. Todas as vezes que a conversa recai sobre esse serviço de chá, a mãe nomeia erroneamente a terceira filha como sua proprietária. É claro que esse erro expressa o desejo da mãe de ver também sua última filha casada - pressupondo-se que ela receberia o mesmo presente de casamento.
Os freqüentes casos em que uma mãe confunde o nome de suas filhas, filhos ou genros são igualmente fáceis de interpretar.
(11) Eis um bom exemplo, facilmente explicável, de uma obstinada troca de nomes; o exemplo foi cedido pelo Sr. J. G., que fez a observação em si mesmo durante uma estada num sanatório:
“Certo dia, durante o jantar (no sanatório), eu participava de uma conversa pouco interessante e de tom completamente convencional com minha vizinha de mesa, quando então empreguei uma frase de extrema afabilidade. Essa senhorita, já um pouco envelhecida, não pôde deixar de comentar que não era do meu feitio habitual ser tão amável e galante com ela - um comentário que continha não só um certo pesar, mas também uma óbvia alfinetada numa jovem que ambos conhecíamos e a quem eu costumava conceder uma atenção maior. Naturalmente, compreendi num instante. Ainda no decorrer dessa mesma conversa, minha vizinha teve que chamar-me repetidamente a atenção - o que me foi muito penoso - para o fato de eu tê-la tratado pelo nome da jovem que, não sem razão, era vista por ela como sua rival mais afortunada.”
(12) Quero também relatar como “erro” um episódio de graves antecedentes que me foi narrado por uma testemunha diretamente implicada. Uma dama passara a tarde ao ar livre com o marido e dois senhores estranhos. Um desses dois “estranhos” era amigo íntimo dela, mas os outros nada sabiam disso e nem deveriam saber. Os amigos acompanharam o casal até a porta de casa e, enquanto esperavam que a porta se abrisse, começaram a se despedir. A dama fez uma mesura diante do estranho, ofereceu-lhe a mão e disse algumas palavras de cortesia. Depois, tomou o braço do amante secreto, voltou-se para o marido e começou a se despedir dele da mesma maneira. O marido entrou na situação, ergueu o chapéu e disse com polidez exagerada: “Beijo-lhe as mãos, prezada senhora!” A esposa, horrorizada, soltou o braço do amante e, antes que o mordomo aparecesse, ainda teve tempo de suspirar: “Ora, imagine passar por uma coisa dessas!…” O homem era um desses maridos que querem situar fora dos limites do possível uma infidelidade de sua mulher. Jurara repetidas vezes que, num caso assim, mais de uma vida estaria em perigo. Portanto, os mais fortes obstáculos internos o impediam de notar o desafio contido nesse erro.
(13) Eis um erro de um de meus pacientes, que se torna particularmente instrutivo por ter-se repetido para expressar um sentido contrário: Após prolongadas lutas internas, esse jovem super-hesitante conseguiu decidir-se a propor casamento à jovem que o amava há muito tempo, tal como ele a ela. Acompanhou a noiva até a casa, despediu-se e, na mais extrema felicidade, entrou num bonde e pediu duas passagens à cobradora. Cerca de seis mesesdepois, já estava casado, mas ainda não conseguira adaptar-se bem a sua felicidade conjugal. Estava em dúvida se teria feito bem em se casar, sentia falta das antigas relações com seus amigos e via toda sorte de defeitos em seus sogros. Uma noite, foi buscar sua jovem esposa na casa dos sogros, entrou no bonde com ela e contentou-se em pedir apenas uma passagem.
(14) Um bom exemplo de Maeder (1908) mostra-nos como um desejo relutantemente sufocado pode ser satisfeito através de um “erro”. Um colega que tinha um dia livre queria desfrutá-lo sem ser molestado, mas tinha que fazer uma visita a Lucerna, coisa que não era de seu agrado; depois de uma longa deliberação, resolveu ir até lá assim mesmo. Para se distrair, passou o trajeto de Zurique a Arth-Goldau lendo os jornais. Nesta estação, trocou de trem e prosseguiu na leitura. E assim foi viajando até que o condutor o informou de que ele tomara o trem errado, ou seja, o que voltava de Goldau para Zurique, embora tivesse uma passagem para Lucerna.
(15) Uma tentativa análogo, se bem que não inteiramente exitosa, de ajudar um desejo suprimido a se expressar pelo mesmo mecanismo do “erro” foi descrita pelo Dr. V. Tausk (1917), sob o título “Viajando na Direção Errada”:
“Eu chegara a Viena em licença da frente de luta. Um antigo paciente soube que eu estava na cidade e pediu que eu fosse visitá-lo, pois estava doente e de cama. Atendi a seu pedido e passei duas horas com ele. Na despedida, o doente perguntou quanto me devia. ‘Estou aqui em licença e não estou dando consultas’, retruquei. ‘Por favor, encare minha visita como a de um amigo.’ O paciente hesitou, pois sem dúvida sentia que não tinha o direito de requisitar meus serviços profissionais sob a forma de um ato de amizade gratuito. Mas finalmente aceitou minha resposta, expressando a respeitosa opinião, ditada por seu prazer em poupar dinheiro, de que eu, como psicanalista, sem dúvida estaria fazendo a coisa certa. Alguns momentos depois, eu mesmo suspeitei da sinceridade de minha nobreza e, repleto de dúvidas - que dificilmente admitiriam mais de uma solução -, tomei um bonde da linha X. Depois de uma curta viagem, eu deveria passar para um bonde da linha Y. Enquanto aguardava no ponto onde tomaria o outro bonde, esqueci-me da questão dos honorários e passei a me ocupar dos sintomas patológicos de meu paciente. Entrementes, chegou o bonde que eu aguardavae subi. Mas na parada seguinte tive que descer novamente. É que, por engano e sem me aperceber, eu havia tomado um bonde da linha X, e não da linha Y, e seguira na mesma direção de onde acabara de partir - na direção do paciente de quem não quisera aceitar nenhum honorário. Mas meu inconsciente queria fazer a cobrança.”
(16) Certa vez, eu mesmo tive êxito num estratagema muito semelhante ao do exemplo 14. Eu havia prometido a meu rigoroso irmão mais velho que nesse verão lhe faria a visita devida há muito tempo numa cidade inglesa à beira-mar e, como o tempo era escasso, prometera ainda seguir pela rota mais curta e sem interromper a viagem em lugar algum. Pedi um adiantamento de um dia para passá-lo na Holanda, mas ele achou que eu poderia adiar isso para a viagem de volta. Assim, viajei de Munique, via Colônia, para Rotterdam - Hook van Holland, de onde o navio partiria à meia-noite para Harwich. Eu tinha que fazer uma baldeação em Colônia; ali deixei meu trem para tomar o expresso de Rotterdam, mas não conseguia encontrá-lo. Perguntei a diversos funcionários da estrada de ferro, mandaram-me de uma plataforma para outra, entrei num clima de desespero exagerado e logo me apercebi de que, durante essa busca infrutífera eu havia perdido o trem. Depois que isso me foi confirmado, considerei se deveria pernoitar em Colônia, depondo em favor disso, entre outras coisas, a devoção filial, pois segundo uma velha tradição de família, meu ancestrais haviam um dia fugido dessa cidade durante uma perseguição aos judeus. Mas decidi-me por outra coisa, viajei num trem posterior para Rotterdam, onde cheguei tarde da noite, e assim me vi obrigado a passar um dia na Holanda. Esse dia trouxe-me a realização de um desejo acalentado há muito tempo; pude ver as magníficas pinturas de Rembrandt em Haia e no Rijksmuseum em Amsterdã. Só na manhã seguinte, quando viajava de trem pela Inglaterra e pude concentrar-me em minhas impressões, foi que me ocorreu a lembrança indubitável de que eu vira na estação de Colônia, a poucos passos do lugar onde eu descera do trem e na mesma plataforma, uma grande placa que dizia “Rotterdam-Hook van Holland”. Ali, esperando por mim, estivera o trem em que eu deveria ter seguido viagem. Minha pressa em me afastardali, apesar dessa indicação clara, e minha busca do trem em outros lugares teriam de ser descritas como uma “cegueira” incompreensível, a menos que se queira presumir que, ao contrário das instruções de meu irmão, era meu propósito admirar os Rembrandts na viagem de ida. Tudo o mais - minha perplexidade bem encenada, a emergência da intenção “piedosa” de pernoitar em Colônia - não passou de um artifício para esconder de mim mesmo essa resolução, até que ela já se tivesse realizado inteiramente.
(17) A partir de sua própria experiência pessoal, J. Stärcke (1916) fala de um artifício semelhante produzido por “esquecimento” para realizar um desejo a que se havia supostamente renunciado.
“Certa vez, eu tinha de fazer uma conferência com diapositivos numa aldeia, mas a conferência foi adiada por uma semana. Eu havia respondido à carta sobre o adiamento e anotara a nova data em minha agenda. Eu teria seguido viagem de bom grado para essa aldeia à tarde, pois assim teria tempo de visitar um escritor conhecido meu que ali residia. Lamentavelmente, porém, não dispunha na época de nenhuma tarde livre. Com certa relutância, desisti dessa visita.
“Chegada a noite da conferência, segui às pressas para a estação, com uma maleta repleta de diapositivos. Tive de tomar um táxi para pegar o trem (freqüentemente me acontece retardar-me tanto que acabo tendo de tomar um táxi para conseguir alcançar o trem!). Ao chegar a meu destino, fiquei um pouco surpreso por não haver ninguém na estação para me receber (como é costume nos pequenos lugarejos ao chegar um conferencista). De repente ocorreu-me que a conferência fora adiada por uma semana e que eu fizera uma viagem inútil na data originalmente marcada. Depois de maldizer meu esquecimento de todo coração, ponderei se deveria voltar para casa no trem seguinte. Pensando melhor, porém, considerei que tinha agora uma boa oportunidade de fazer a visita desejada, o que então pus em prática. Só quando já estava a caminho foi que me ocorreu que meu desejo irrealizado de ter tempo suficiente para essa visita preparara habilmente a trama. Sobrecarregar-me com a pesada maleta repleta de diapositivos e apressar-me para alcançar o trem tinham servido primorosamente para esconder ainda melhor a intenção inconsciente.”
Talvez se possa pensar [1] que a classe de erro que aqui não esclareci não é muito numerosa ou particularmente significava. Mas deixo como umaquestão a ser pensada se não haverá razão para estender esses mesmos pontos de vista a nossa avaliação dos erros de julgamento, incomparavelmente mais importantes, cometidos pelos seres humanos na vida e no trabalho científico. Só aos espíritos mais seletos e equilibrados parece ser possível preservar a imagem da realidade externa, tal como percebida, da distorção a que ela costuma ficar sujeita em sua passagem pela individualidade psíquica daquele que a percebe.
CAPÍTULO XI - ATOS FALHOS COMBINADOS
Dois dos últimos exemplos mencionados - meu erro ao transferir os Medici para Veneza [em [1]] e o do jovem que conseguiu conversar por telefone com sua amada, sabendo que contrariava minha proibição [em [1]] - na verdade não foram descritos de maneira exata. Uma consideração mais cuidadosa revela que eles constituem a combinação de um esquecimento com um erro. Posso ilustrar essa combinação com clareza ainda maior através de alguns outros exemplos.
(1) Um amigo me conta a seguinte experiência: “Há alguns anos aceitei ser eleito para a diretoria de certa sociedade literária por supor que algum dia essa organização pudesse ajudar-me a fazer com que se encenasse minha peça, e embora sem muito interesse, participei regularmente das reuniões que se realizavam todas as sextas-feiras. Há poucos meses obtive a promessa de uma representação no teatro de F. e, desde então, passei a me esquecer regularmente das reuniões da sociedade. Ao ler seu livro sobre essas coisas, senti-me envergonhado de meu esquecimento, repreendi-me por ser uma baixeza eu faltar agora, quando já não estava precisando dessas pessoas, e resolvi não me esquecer por nada no mundo da sexta-feira seguinte. Recordei-me repetidamente esse propósito até colocá-lo em prática e ver-me postado diante da porta da sala onde se realizavam as reuniões. Para minha surpresa, estava fechada; a reunião havia terminado; é que eu havia errado o dia: já era sábado!”
(2) O exemplo seguinte combina um ato sintomático com um extravio; chegou a meu conhecimento por caminhos algo indiretos, mas provém de uma fonte segura.
Uma dama viajou para Roma com seu cunhado, que era um artista famoso. O visitante foi muito festejado pela comunidade alemã de Roma e recebeu, entre outros presentes, uma antiga medalha de ouro. A dama ficou mortificada por seu cunhado não saber apreciar suficientemente o valiosoobjeto. Já de volta a casa, substituída em Roma por sua irmã, ela descobriu, ao desfazer as malas, que trouxera consigo a medalha - não sabia como. Remeteu prontamente ao cunhado uma carta com a notícia e anunciou que no dia seguinte reenviaria para Roma o objeto carregado. No dia seguinte, porém, a medalha se extraviara com tanta habilidade que não pôde ser encontrada nem remetida; foi então que a dama começou a compreender o sentido de sua “distração”, a saber, ela queria ficar com o objeto.
(3) Há casos em que o ato falho se repete obstinadamente, mudando para isso os meios que emprega:
Por motivos que lhe eram desconhecidos, Ernest Jones (1911b, 483) deixou certa vez uma carta em sua escrivaninha por vários dias, sem despachá-la. Por fim, decidiu remetê-la, mas a carta lhe foi devolvida pelo “Dead Letter Office”, pois ele se esquecera de sobrescritá-la. Depois de colocar o endereço, tornou a levá-la ao correio, mas dessa vez ela estava sem selo. A essas altura, ele não pôde mais ignorar sua relutância em despachar a carta.
(4) As vãs tentativas de realizar uma ação que se opõe a uma resistência interna não expressivamente narradas num breve comunicado do Dr. Karl Weiss (1912), de Viena:
“O episódio que se segue mostrará com que persistência o inconsciente sabe impor-se quando tem um motivo para impedir que se execute uma intenção, e como é difícil tomar precauções contra essa persistência. Um conhecido pediu-me que lhe emprestasse um livro e o levasse para ele no dia seguinte. Prometi imediatamente que o faria, mas ciente de um intenso sentimento de desprazer que a princípio não consegui explicar. Mais tarde, tudo me ficou claro: a pessoa em questão me devia há anos uma soma em dinheiro, que não parecia pensar em pagar. Não pensei mais no assunto, mas lembrei-me dele na manhã seguinte com o mesmo sentimento de desprazer e disse prontamente a mim mesmo: ‘Seu inconsciente logo se empenhará em fazer com que você esqueça o livro; mas você não quer ser descortês, e por isso fará todo o possível para não esquecê-lo.’ Chegando em casa, embrulhei o livro e coloquei-o a meu lado da escrivaninha onde redijo minha correspondência. Passado algum tempo, saí; dei alguns passos e me lembrei de que deixara na escrivaninha as cartas que queria remeter. (Uma delas, diga-se de passagem, era uma carta em que fui obrigado a escrever algo desagradávela uma pessoa de quem esperava receber apoio em determinado assunto.) Voltei, peguei as cartas e tornei a sair. Já no bonde, ocorreu-me que eu havia prometido a minha mulher encarregar-me de fazer uma certa compra, e fiquei satisfeito com a idéia de que o embrulho seria pequeno. Nesse ponto ocorreu-me subitamente a associação ‘embrulho-livro’, e só então notei que não estava levando o livro. Portanto eu não só o esquecera ao sair pela primeira vez, como também continuara a não enxergá-lo ao buscar as cartas ao lado das quais ele estava.”
(5)O mesmo se constata numa observação que Otto Rank (1912) analisou exaustivamente:
“Um homem escrupulosamente ordeiro e pedantemente preciso narrou a seguinte experiência, totalmente extraordinária para ele. Uma tarde, ia ele pela rua quando quis saber as horas, reparando então que havia deixado seu relógio em casa, coisa que, segundo sua memória, nunca lhe acontecera antes. Como tinha de comparecer pontualmente a um compromisso à noite e não lhe restava tempo suficiente para buscar seu relógio, ele aproveitou sua visita a uma dama amiga sua para pedir-lhe um relógio emprestado para esse fim. Isso era perfeitamente viável porque ele já tinha o compromisso prévio de visitar essa dama na manhã seguinte, ocasião em que prometeu devolver-lhe o relógio. No dia seguinte, porém, quando quis entregar o relógio emprestado a sua proprietária, descobriu com assombro que o esquecera em casa; dessa vez, portava seu próprio relógio. Tomou assim a firme resolução de devolver o relógio da dama nessa mesma tarde, coisa que realmente levou a cabo. Mas quando quis ver as horas ao deixá-la ficou imensamente aborrecido e atônito ao descobrir que tornara a esquecer seu próprio relógio.
“A repetição desse alto pareceu tão patológica a esse homem comumente tão amante da ordem que ele quis conhecer sua motivação psicológica; e esta se revelou prontamente através da indagação psicanalítica a respeito de ter-lhe acontecido alguma coisa desagradável no dia crucial em que se esqueceu do relógio pela primeira vez, e a respeito do contexto em que isso ocorrera. Ele contou de imediato como, depois do almoço, pouco antes de sair esquecendo o relógio, tivera uma conversa com sua mãe, que lhe contara que um parente irresponsável, que já lhe havia causado muitos aborrecimentos e despesas, penhorara seu próprio relógio, mas, como este era necessário na casa, pedia-lhe [ao narrador] que fornecesse o dinheiro para resgatá-lo Essa maneira quase impositiva de tomar um empréstimo causou em nosso homem um impacto muito penoso e tornou a evocar-lhe todos os desgostos que esse parente lhe vinha causando há muitos anos. Seu ato sintomático, portanto, mostra ter tido muitos determinantes. Em primeiro lugar, expressouum pensamento que dizia aproximadamente o seguinte: ‘Não vou permitir que o dinheiro me seja extorquido dessa maneira, e se precisam de um relógio, deixarei o meu em casa.’ Mas como precisava do relógio para manter um compromisso à noite, essa intenção só pôde efetivar-se por um caminho inconsciente, sob a forma de um ato sintomático. Em segundo lugar, o esquecimento dizia mais ou menos o seguinte: ‘Sacrificar dinheiro eternamente por esse inútil vai acabar me arruinando, a ponto de eu ter que abrir mão de tudo.’ Embora, no dizer dele, sua indignação diante da notícia tivesse sido apenas momentânea, a repetição do mesmo ato sintomático mostra que ela continuou a atuar intensamente no inconsciente, mais ou menos como se sua consciência dissesse: ‘Não consigo tirar essa história da cabeça.’ Tendo em vista essa atitude do inconsciente, não nos surpreende que o relógio pedido emprestado à dama tivesse o mesmo destino. Mas talvez também tenha havido motivos especiais favorecendo essa transferência para o ‘inocente’ relógio da dama. O motivo mais óbvio, provavelmente, é que ele sem dúvida gostaria de guardá-lo para substituir seu próprio relógio sacrificado, e por isso esqueceu de devolvê-lo no dia seguinte; talvez também lhe agradasse conservá-lo como uma lembrança da dama. Além disso, o esquecimento do relógio forneceu-lhe a oportunidade de visitar pela segunda vez essa dama a quem ele admirava; é certo que teria de visitá-la pela manhã por causa de outro assunto, e com o esquecimento do relógio ele parece indicar que seria uma pena usar essa visita, combinada muito tempo antes, para o propósito passageiro de devolver o relógio. Além disso, o esquecimento do próprio relógio por duas vezes e a restituição assim possibilitada do relógio alheio indicam que, inconscientemente, nosso homem estava procurando não andar com os dois relógios ao mesmo tempo. É óbvio que estava tentando evitar essa aparência de abundância excessiva que estaria em flagrante contraste com a penúria de seu parente; por outro lado, ele soube com isso fazer frente a sua aparente intenção de se casar com a dama, fazendo a si mesmo a advertência de que tinha obrigações indissolúveis para com sua família (sua mãe). Por fim, outra razão para o esquecimento de um relógio de mulher poderia ser buscada no fato de que, na noite anterior, sendo solteiro, ele se sentira embaraçado diante dos amigos por ver as horas num relógio de mulher, coisa que só fez subrepticiamente; e para evitar que serepetisse essa situação embaraçosa, não quis mais usar o relógio. Por outro lado, como tinha de devolvê-lo, também aqui o resultado foi um ato sintomático inconscientemente realizado, que se revelou como uma formação de compromisso entre impulsos emocionais conflitantes e como um triunfo duramente conquistado da instância inconsciente.”
Aqui estão três casos observados por J. Stärcke (1916, 108-9):
(6) Extravio, quebra e esquecimento como expressão de uma contavontade repelida. “Dentre uma coleção de ilustrações para um trabalho científico, tive um dia que emprestar algumas a meu irmão, pois ele queria usá-las como diapositivos numa conferência. Apesar de momentaneamente ciente de minha idéia de que eu preferiria não ver essas reproduções, colecionadas a tão duras penas, exibidas ou publicadas de maneira alguma antes que eu mesmo pudesse fazê-lo, prometi-lhe que procuraria os negativos das imagens desejadas e com elas confeccionaria diapositivos. Mas não pude achar esses negativos. Procurei por toda a pilha de caixas repletas dos negativos pertinentes ao assunto, e bem uns duzentos negativos passaram por minhas mãos, um após outro; mas os negativos que eu procurava não estavam ali. Suspeitei de que, na verdade, eu parecia não querer que meu irmão obtivesse essas ilustrações. Depois de me conscientizar desse pensamento invejoso e de combatê-lo, percebi que eu pusera de lado a primeira caixinha da pilha e que não a havia examinado, e essa caixa continha os negativos procurados. Na tampa da caixinha havia uma pequena anotação sobre seu conteúdo e é provável que eu lhe tenha dado uma rápida olhadela antes de pôr a caixa de lado. O pensamento invejoso, entretanto, parecia ainda não estar inteiramente vencido, pois houve ainda toda sorte de incidentes antes que os diapositivos fossem despachados. Parti um deles ao apertá-lo demais enquanto o segurava na mão para limpar o lado de vidro (nunca costumo quebrar um diapositivo dessa maneira). Quando mandei fazer um novo exemplar dessa chapa, ela caiu da minha mão e só não quebrou porque estendi o pé e aparei a queda. Quando montava os diapositivos, a pilha inteira tornou a cair no chão, felizmente sem que nenhum se quebrasse. E por fim, vários dias se passaram antes que eu realmente os embalasse e remetesse, pois embora renovasse todos os dias minha intenção de fazê-lo, a cada dia tornava a esquecê-la.”
(7) Esquecimento repetido - ação equivocada na execução final. “Certo dia eu tinha que enviar um cartão-postal a um conhecido, mas fui adiando isso por vários dias, o que me deu a forte suspeita de que a causa eraa seguinte: Ele me informara por carta que no decorrer daquela semana eu seria visitado por alguém cuja visita eu não estava particularmente ansioso por receber. Terminada a semana e reduzida a perspectiva da visita indesejada, escrevi finalmente o cartão-postal onde lhe comunicava quando eu disporia de tempo livre. Ao escrever o cartão, pensei inicialmente em acrescentar que não pudera escrever antes devido ao druk werk (‘trabalho em excesso, estafante ou intenso’ [em holandês]), mas ao final não o fiz, pois não há ser humano razoável que ainda acredite nessa desculpa corriqueira. Não sei se essa pequena inverdade ainda assim estava fadada a se expressar, mas quando coloquei o cartão-postal na caixa do correio, depositei-o erroneamente na abertura inferior: Drukwerk (‘impressos’ [em holandês]).”
(8) Esquecimento e erro. “Numa manhã de tempo belíssimo, uma jovem foi ao Rijksmuseum para ali desenhar alguns moldes de gesso. Embora preferisse passear, já que o tempo estava tão bom, ela resolveu ser diligente mais uma vez e desenhar um pouco. Primeiro, tinha de comprar papel de desenho. Foi a uma loja (a cerca de dez minutos a pé do museu) e comprou lápis e outros materiais de desenho, mas esqueceu justamente de comprar o papel. Foi para o museu e, quando estava sentada em sua banqueta, pronta para começar, percebeu que não tinha papel e teve de voltar à loja. Feita a compra, ela começou realmente a desenhar, o trabalho progrediu bem e, após algum tempo, ela ouviu o relógio da torre do museu bater muitas vezes. ‘Deve ser meio-dia’, pensou, e continuou trabalhando até o relógio da torre bater um quarto de hora (‘Deve ser meio-dia e quinze’, pensou). Em seguida embalou o material de desenho e resolveu ir passeando pelo Vondelpark até a casa da irmã para ali tomar café (o que, na Holanda, é equivalente ao almoço). Passando pelo Museu Suasso, ela viu com assombro que era apenas meio-dia, e não meio-dia e meia! O tempo tentadoramente bom levara a melhor sobre sua dedicação e, por isso, quando o relógio da torre deu doze badaladas às onze e meia, não lhe ocorreu pensar que os relógios dos campanários também marcam as meias horas.”
(9) Como alguns dos exemplos acima já mostraram, a tendência perturbadora inconsciente também pode alcançar seu objetivo através da repetição obstinada do mesmo tipo de ato falho. Tomo um divertido exemplo disso de um livrinho intitulado Frank Wedekind und das Theater, publicado em Muniquepelo Drei Masken-Verlag, mas tenho que deixar ao autor do livro a responsabilidade por essa historieta, narrada à maneira de Mark Twain.
“Na peça em um ato Die Zensur [A Censura], de Wedekind, declara-se no momento mais solene: ‘O medo da morte é um erro de lógica [“Denkfehler”].’ O autor, que muito valorizava esse trecho, pediu ao ator, durante os ensaios, que fizesse uma pequena pausa antes da palavra ‘Denkfehler‘. E à noite… compenetrou-se o ator integralmente de seu papel e teve o cuidado de observar a pausa, mas, involuntariamente disse no mais solene dos tons: ‘O medo da morte é um Druckfehler [um erro de imprensa].’ Em resposta às perguntas do artista ao final do espetáculo, o autor assegurou-lhe que não tinha a menor crítica a fazer, só que o trecho em questão não dizia que o medo da morte é um erro de imprensa, mas um erro de lógica. - Quando Die Zensur foi novamente à cena na noite seguinte, o ator, chegando ao mesmo trecho, declarou de novo com a mais solene entonação: ‘O medo da morte é um… Denkzettel [um lembrete].’ Wedekind mais uma vez cumulou o ator de elogios ilimitados, apenas comentando de passagem que o texto não dizia que o medo da morte é um lembrete, mas sim que é um erro de lógica. - Na noite seguinte Die Zensur foi novamente encenada, e o ator, com quem entrementes o autor fizera amizade e trocara opiniões sobre questões artísticas, disse, ao chegar o trecho, com a expressão mais solene do mundo: ‘O medo da morte é um… Druckzettel [um rótulo impresso].’ O artista recebeu os louvores irrestritos do autor e a peça se repetiu muitas outras vezes, mas o autor teve que dar por liquidada para sempre a noção de ‘erro de lógica’.”
Rank (1912 e 1915b) também deu atenção às relações muito interessantes entre “Ato falho e sonho”, mas não se pode apreciá-las sem uma análise minuciosa do sonho ligado ao ato falho. Certa vez, dentro de um contexto mais amplo, sonhei que havia perdido minha carteira. Pela manhã, enquanto me vestia, realmente notei a falta dela. Ao despir-me na noite anterior ao sonho, eu me esquecera de tirá-la do bolso da calça e colocá-la no lugar usual. Esse esquecimento, portanto, não me era desconhecido, e provavelmente se destinara a expressar um pensamento inconsciente que estava preparado para aflorar no conteúdo do sonho.
Não pretendo afirmar que esses casos de atos falhos combinados possam ensinar-nos algo novo, algo que já não se tivesse podido deduzir dos casos simples, mas é certo que essa mudança na forma assumida pelo ato falho enquanto o resultado permanece o mesmo dá a vívida impressão de uma vontade que se esforça por atingir um alvo determinado, e contradiz de maneira muito mais enérgica a noção de que o ato falho é uma coisa aleatória e não requer interpretação. Também é possível que nos cause estranheza, nesses exemplos, o fato de uma intenção consciente ser tão radicalmente incapaz de impedir o êxito do ato falho. Meu amigo, apesar de tudo, deixou de comparecer à reunião da sociedade, e a dama não foi capaz de se separar da medalha. O não-sabido [Unbekannte, “desconhecido”, “inconfessado”] que se opunha a essas intenções encontrou outra saída depois que lhe foi barrado o primeiro caminho. É que para superar o motivo desconhecido faz-se necessário algo diverso de uma intenção contrária consciente; seria preciso um trabalho psíquico capaz de tornar o desconhecido conhecido pela consciência.
CAPÍTULO XII - DETERMINISMO, CRENÇA NO ACASO E SUPERSTIÇÃO - ALGUNS PONTOS DE VISTA
A conclusão geral que emerge das diversas considerações anteriores pode ser formulada nos seguintes termos: Certas insuficiências de nosso funcionamento psíquico - cujas características comuns precisaremos logo adiante - e certos desempenhos aparentemente inintencionais, revelam, quando a eles se aplicam os métodos da investigação psicanalítica, ter motivos válidos e ser determinados por motivos desconhecidos pela consciência.
Para ser incluído na classe dos fenômenos assim explicáveis, o ato falho psíquico tem de satisfazer as seguintes condições:
(a) Não pode exceder certas dimensões fixadas por nossa avaliação e caracterizadas pela expressão “dentro dos limites do normal”.
(b) Deve ter o caráter de uma perturbação momentânea e temporária. É preciso que tenhamos excetuado antes a mesma função de maneira mais correta ou que nos acreditemos capazes de realizá-la mais corretamente em qualquer ocasião. Ao sermos corrigidos por outra pessoa, devemos reconhecer de imediato a exatidão da correção e a inexatidão de nosso próprio processo psíquico.
(c) Quando chegamos a perceber o ato falho, não devemos sentir em nós mesmos nenhuma motivação para ele, mas antes ficar tentados a explica-lo pela “desatenção” ou ainda como uma “casualidade”.
Permanecem portanto nesse grupo os casos de esquecimento [“Vergessen”] e os erros cometidos apesar de se ter um conhecimento melhor, os lapsos da fala [“Versprechen”], os lapsos de leitura [“Verlesen”], os lapsos de escrita [“Verschreiben”], os equívocos na ação [“Vergreifen”] e os chamados “atos casuais”. A própria língua [alemã] indica a identidade interna entre a maioria desses fenômenos, igualmente compostos com o prefixo “ver-‘’.
Mas ao esclarecimento dos processos psíquicos assim definidos liga-se uma série de observações que, em parte, podem despertar um interesse fixo “ver-”.
(A) Quando abandonamos parte de nossas funções psíquicas como inexplicável pelas representações-meta, estamos desconhecendo a extensão do determinismo na vida anímica. Tanto aqui quanto em outras esferas, ele tem um alcance maior do que suspeitamos. Num artigo do historiador de literatura R. M. Meyer publicado no Die Zeit [jornal de Viena] em 1900, encontrei, exposta e ilustrada com exemplos, a visão de que é impossível compor um absurdo de maneira intencional e arbitrária. Sei há mais tempo que não se pode fazer com que um número ocorra por livre escolha, do mesmo modo que não se pode fazê-lo com um nome. A investigação de um número composto de maneira aparentemente arbitrária, digamos, um número de vários algarismos enunciado por alguém por brincadeira ou num momento de bom humor, revela que ele é estritamente determinado de um modo que realmente não se consideraria possível. Começarei pela breve discussão de um exemplo de prenome arbitrariamente escolhido, e depois analisarei com algum detalhe um exemplo análogo de um número “dito sem pensar”.
(1) Com vistas a preparar para publicação o caso clínico de uma de minhas pacientes, pus-me a considerar o nome que deveria dar-lhe em meu relato. Parecia haver uma escolha muito ampla; alguns nomes, é claro, estavam excluídos de antemão: o nome verdadeiro, em primeiro lugar, depois os nomes de membros de minha própria família, aos quais eu faria objeções, e talvez alguns outros nomes femininos de som particularmente singular. Afora esses, porém, eu não teria por que ficar em apuros para encontrar um nome. Seria de se esperar - e eu mesmo o esperava - que houvesse uma porção de nomes femininos a meu dispor. Em vez disso, ocorreu-me um só nome e nenhum outro - o nome “Dora”.
Perguntei-me como teria sido determinado. Quem mais se chamava Dora? Eu gostaria de rechaçar com incredulidade o que me ocorreu a seguir - que esse era o nome da babá de minha irmã [da casa]. Contudo, tenho tanta autodisciplina, ou tanta prática em analisar, que me aferrei à idéia ocorrida e deixei que o fio seguisse dali. Logo me ocorreu um pequeno incidente da noite anterior, que forneceu o determinismo buscado. Eu vira na mesa da sala de jantar de minha irmã uma carta endereçada à “Srta. Rosa W.”. Surpreso perguntei quem ali tinha esse nome, e fui informado de que ajovem que eu conhecia por Dora na realidade se chamava Rosa, mas tivera de abandonar seu nome ao aceitar o emprego na casa, pois também minha irmã poderia considerar que “Rosa” se referisse a ela. “Pobre gente”, comentei com pena, “nem mesmo o próprio nome eles podem conservar!” Depois disso, lembro-me agora, permaneci em silêncio por um momento e comecei a pensar em toda sorte de coisas sérias que se perderam na obscuridade, mas que agora eu poderia facilmente tornar conscientes. Quando, no dia seguinte, procurei um nome para alguém que não poderia conservar o seu, “Dora” foi o único a me ocorrer. A exclusividade [do nome] baseou-se aqui numa sólida associação de conteúdo, pois também na história de minha paciente, bem como no curso do tratamento, foi uma pessoa empregada numa casa alheia, uma governanta, quem exerceu uma influência decisiva.
Anos depois, [1] esse pequeno incidente teve uma continuação inesperada. Certo dia, quando expunha numa conferência o caso clínico há muito publicado da jovem que agora se chamava Dora, ocorreu-me que uma das duas mulheres que estavam no auditório tinha esse mesmo nome Dora, que eu teria de pronunciar com tanta freqüência nos mais diferentes contextos. Voltei-me para minha jovem colega, a quem eu também conhecia pessoalmente, com a desculpa de que de fato não me havia lembrado de que esse também era o nome dela, e acrescentei que estava disposto a substituí-lo por outro em minha conferência. Defrontei-me então com a tarefa de escolher outro nome rapidamente, e considerei que teria de evitar a todo custo escolher o nome da outra ouvinte, pois assim daria um péssimo exemplo a meus outros colegas, já bem instruídos em psicanálise. Fiquei muito satisfeito, portanto, quando me ocorreu o nome “Erna” como substituto para Dora, e usei-o na exposição do caso. Depois da conferência, perguntei a mim mesmo de onde poderia ter surgido o nome Erna, e não pude deixar de rir quando notei que a possibilidade temida quando da escolha do nome substituto ainda assim se realizara, ao menos em parte. O sobrenome da outra dama era Lucerna, do qual Erna é um fragmento.
(2) Numa carta a um amigo, anunciei que havia terminado de corrigir as provas de A Interpretação dos Sonhos e que não pretendia fazer nenhuma outra modificação no livro, “mesmo que ele contenha 2 467 erros”. Em seguida tentei explicar esse número a mim mesmo e acrescentei a pequenaanálise como um pós-escrito à carta. O melhor será citá-la tal como a redigi na época, logo depois de me apanhar em flagrante:
“Deixe-me acrescentar depressa uma contribuição à psicopatologia da vida cotidiana. Você verá que escrevi na carta o número 2 467 como uma estimativa arbitrária e atrevida do número de erros que são encontrados no livro dos sonhos. O que eu pretendia dizer era qualquer número muito grande, e então emergiu esse. Mas não há no psíquico nada que seja arbitrário ou indeterminado. Por isso, você há de esperar, com todo o direito, que o inconsciente tenha-se apressado a determinar o número que foi franqueado pela consciência. Ora, eu tinha justamente acabado de ler no jornal que um general E. M. fora reformado como comandante de artilharia. Você deve saber que esse homem me interessa. Quando eu servia como cadete-médico, ele um dia entrou na enfermaria - era coronel, nessa época - e disse ao oficial médico: ‘O senhor tem oito dias para me fazer sarar, porque tenho um trabalho a fazer pelo qual o Imperador está esperando.’ Resolvi então acompanhar a carreira desse homem e, veja só, agora (1899) ele a terminou, é comandante de artilharia e já está na reserva. Eu quis calcular em quanto tempo ele percorrera esse caminho. Supondo que eu o tivesse visto no hospital em 1882, seriam dezessete anos. Contei isso a minha mulher e ela disse: ‘Mas então você também já não deveria estar aposentado?’ ‘Deus me livre!’ protestei. Depois dessa conversa, sentei-me para lhe escrever. Mas a seqüência anterior de pensamentos prosseguiu, e com boa razão. O cálculo estava errado; tenho um firme ponto de apoio em minha memória para saber disso. Comemorei minha maioridade, ou seja, meu 24º aniversário, na prisão militar (por ter-me ausentado sem permissão). Portanto, isso foi em 1880, ou há dezenove anos. Aí tem você o número ‘24’ do 2 467! Agora, tome minha idade atual, 43, acrescente 24, e você terá o 67! Em outras palavras, em resposta à pergunta sobre eu pretender também me aposentar, concedi-me no desejo mais vinte e quatro anos de trabalho. É óbvio que eu estava aborrecido por não ter, eu mesmo, progredido muito durante o intervalo em que acompanhei a carreira do Coronel M.; mesmo assim, estava celebrando uma espécie de triunfo por ele já estar acabado, enquanto eu ainda tenho tudo diante de mim. Por isso, pode-se dizer comrazão que nem mesmo o número 2 467, que proferi sem nenhuma intenção, deixou de ter seus determinantes vindos do inconsciente.”
(3) Desde esse primeiro exemplo onde se explica um número escolhido de maneira aparentemente arbitrária, repeti muitas vezes essa mesma experiência, e com o mesmo resultado, mas o conteúdo da maioria dos casos é tão íntimo que não é possível comunicá-lo.
Justamente por isso, contudo, aproveito para acrescentar aqui uma análise muito interessante de uma “ocorrência de número” que o Dr. Adler (1905), de Viena, obteve de um informante “perfeitamente sadio”. “Ontem à noite”, relata esse informante, “lancei-me à Psicopatologia da Vida Cotidiana, e teria lido o livro inteiro de uma vez, se não tivesse sido impedido por um incidente notável. Acontece que, ao ler que todo número evocado à consciência de modo aparentemente arbitrário tem um sentido definido, resolvi fazer uma experiência. Ocorreu-me o número 1 734, e então se precipitaram as seguintes idéias: 1 734 17 = 102; 102 17 = 6. Depois fracionei o número em 17 e 34. Tenho 34 anos. Considero, como creio ter-lhe dito certa vez, que 34 é o último ano da juventude, e por isso senti-me muito infeliz em meu último aniversário. Ao final de meus 17 anos, iniciou-se para mim um período muito bonito e interessante de meu desenvolvimento. Divido minha vida em fases de 17 anos. Que significam essas divisões? Ao pensar no número 102, ocorreu-me que o nº 102 da Biblioteca Universal Reclam é a peça de Kotzebue, Menschenhass und Reue [Misantropia e Remorso].
“Meu estado psíquico atual é de misantropia e remorso. O nº 6 da B.U. (conheço de cor uma multiplicidade de números da coleção) é Die Schuld [A Culpa], de Müllner. Sou constantemente atormentado pela idéia de que por minha culpa não cheguei a ser o que minhas aptidões teriam permitido. Além disso, ocorreu-me que o nº 34 na B.U. contém um conto do mesmo Müllner, intitulado Der Kaliber [O Calibre]. Dividi a palavra em ‘Ka’ e ‘Liber’; ocorreu-me ainda que ela contém as palavras ‘Ali’ e ‘Kali’ [‘potássio’]. Isso me fez lembrar que certa vez fiz rimas com meu filho Ali (de seis anos). Pedi-lhe que procurasse uma rima para Ali. Não lhe ocorreu nenhuma, e, como queria que eu a fornecesse, respondi-lhe: ‘Ali reinigt den Mund mit hypermangansaurem Kali.’ [‘Ali limpa a boca com permanganato depotássio.’] Rimos muito e Ali estava muito lieb [meigo]. Nos últimos dias, tive de constatar com desgosto que ele ‘ka (kein) lieber Ali sei’ [‘não é o meigo Ali’ (ka lieber’ pronuncia-se como ‘Kaliber’)].
“Perguntei-me então: o que é o nº 17 da B.U.? mas não consegui lembrar. Com toda certeza, porém, eu o soubera antes, donde presumi que eu queria esquecer esse número. Toda a reflexão foi em vão. Quis continuar lendo, mas fazia-o mecanicamente, sem entender uma única palavra, porque o 17 estava me atormentando. Apaguei a luz e prossegui na busca. Por fim, cheguei à conclusão de que o nº 17 devia ser uma peça de Shakespeare. Mas qual? Ocorreu-me Hero and Leander - obviamente, uma tentativa idiota de minha vontade para me desviar. Finalmente levantei e consultei o catálogo da B.U. - o nº 17 é Macbeth. Para minha perplexidade, tive de constatar que não sabia quase nada da peça, embora não me tenha ocupado menos dela do que de outros dramas de Shakespeare. Só me ocorreram: assassino, Lady Macbeth, bruxas, ‘o belo é torpe’, e que certa vez achara muito bonita a versão de Schiller para Macbeth. Sem dúvida, portanto, eu queria esquecer a peça. Ocorreu-me ainda que 17 e 34, divididos por 17, dão 1 e 2. Os números 1 e 2 da B.U. são o Fausto, de Goethe. Antigamente, eu achava que havia muito de Fausto em mim.”
Lamentamos que a discrição do médico não nos tenha possibilitado um discernimento do sentido dessa série de associações. Adler observa que o homem não chegou a uma síntese de suas explicações. Parece-nos que quase não valeria a pena relatá-las, não fosse por ter emergido algo na continuação que nos forneceu a chave para entender o número 1 734 e toda a série de associações.
“Hoje pela manhã sem dúvida tive uma experiência que diz muito em favor de justeza da concepção freudiana. Minha mulher, que eu acordara ao levantar da cama na noite anterior, perguntou por que eu tinha querido o catálogo da B.U. Contei-lhe a história. Ela achou que era tudo um palavrório inútil, só aceitando - o que é muito interessante - o Macbeth, contra o qual eu resistira tanto. Disse que não lhe ocorria absolutamente nada quando pensava num número. Respondi: ‘Vamos fazer um teste.’ Ela deu o número 117. Na mesma hora retruquei: ‘17 é uma referência ao que lhe contei, e além do mais, ontem eu lhe disse que, quando a mulher tem 82 anos, e o marido, 35, há uma terrível desproporção.’ Nos últimos dias, tenho implicado com minha mulher, dizendo que ela é uma velhinha de 82 anos. 82 + 35 = 117.”
O marido, que não soube encontrar os determinantes de seu próprio número, descobriu a solução de imediato quando sua mulher lhe deu um número supostamente escolhido por livre-arbítrio. Na realidade, a mulherhavia compreendido muito bem o complexo do qual provinha o número do marido, tendo escolhido seu próprio número a partir do mesmo complexo, que era certamente comum a ambos, pois dizia respeito à relação entre suas respectivas idades. Parra nós, portanto, é fácil traduzir o número que ocorreu ao marido. Ele expressa, como sugere Adler, um desejo suprimido do homem, que, desdobrado em sua íntegra, diria: “Para um homem como eu, de 34 anos, só convém uma mulher de 17.”
Para que não se faça demasiado pouco caso dessas “brincadeiras”, quero acrescentar que fui recentemente informado pelo Dr. Adler que, um ano depois da publicação dessa análise, o homem se divorciou de sua mulher.
Adler fornece explicações semelhantes sobre a origem de números obsessivos.
(4) Também a escolha dos chamados “números favoritos” não deixa de estar relacionada com a vida da pessoa em questão e não deixa de ter um certo interesse psicológico. Um homem que admitiu ter uma predileção especial pelos números 17 e 19 pôde indicar, depois de refletir um pouco, que aos 17 anos ingressara na universidade, obtendo assim a liberdade acadêmica almejada desde longa data, e que aos 19 fizera sua primeira grande viagem e, pouco depois, sua primeira descoberta científica. Mas a fixação dessa preferência ocorreu uma década depois, quando esses mesmos números adquiriram importância em sua vida amorosa. - De fato, mesmo os números que uma pessoa usa com freqüência especial num dado contexto, de maneira aparentemente arbitrária, deixam-se reconduzir, mediante a análise, a um sentido inesperado. Foi assim que um dia um de meus pacientes notou que, quando ficava aborrecido, tinha o costume de dizer: “Já lhe disse isso umas 17 a 36 vezes”, e se perguntou se haveria uma motivação também para isso. Logo lhe ocorreu que ele havia nascido num dia 27 do mês, ao passo que seu irmão mais moço nascera no dia 26, e que ele tinha razões para se queixar de que o destino lhe roubara tantas coisas boas da vida para concedê-las a esse irmão mais novo. Assim, ele representava essa parcialidade do destino deduzindo 10 da data de seu próprio aniversário e acrescentando-os à data do irmão. “Sou o mais velho, e no entanto fui reduzido dessa maneira.”
(5) Ainda me deterei um pouco mais nas análises da ocorrência de números, pois não conheço quaisquer outras observações que possam provar de maneira tão concludente a existência de processos de pensamentos altamente complexos, dos quais a consciência ainda não tem nenhuma notícia, e, por outro lado, também não conheço melhor exemplo de análise em que fique excluída com tanta certeza a contribuição que com freqüência é imputada ao médico (a sugestão). Por isso comunicarei aqui a análise de um número que ocorreu a um de meus pacientes (com seu consentimento). Só preciso acrescentar que ele é o mais novo de uma série de filhos e que, ainda muito jovem, perdeu o pai, por quem tinha grande admiração. Num estado de espírito particularmente alegre, ocorreu-lhe o número 426 718 e ele se perguntou: “Que é que me ocorre a respeito disso? Antes de mais nada, uma anedota que ouvi: ‘Um resfriado tratado pelo médico dura 42 dias; não sendo tratado, dura 6 semanas’.” Isso corresponde aos primeiros algarismos do número (42 = 6x7). Na pausa que se seguiu a essa primeira solução, fiz-lhe notar que o número de seis dígitos que ele escolhera continha todos os primeiros algarismos, exceto o 3 e o 5. Com isso ele descobriu de imediato o prosseguimento da interpretação. “Somos 7 irmãos e eu sou o mais moço; pela ordem de nascimento dos filhos, o 3 corresponde a minha irmã A. e 5 a meu irmão L., que eram ambos meus inimigos. Quando criança, eu costumava rogar a Deus todas as noites que chamasse esses dois espíritos que me atormentavam a vida. Agora, parece-me que nessa escolha de números eu mesmo realizei esse desejo; 3 e 5, o irmão malvado e a irmã odiada, foram saltados.” - Se o número significa a ordem de seus irmãos, o que quer dizer o 18 no final? Vocês eram apenas 7. - “Muitas vezes pensei que, se meu pai tivesse vivido mais, eu não teria continuado a ser o filho menor. Se chegasse mais 1, teríamos sido 8, e haveria depois de mim uma criança menor com quem eu brincaria de irmão mais velho.”
Com isso explicava-se o número, mas ainda tínhamos de estabelecer a relação entre a primeira parte da interpretação e a segunda. Foi muito fácil deduzi-la da precondição necessária dos últimos algarismos: “se meu pai tivesse vivido mais”. É que “42 = 6 x 7” significava o desprezo pelos médicos que não tinham sido capazes de ajudar seu pai, e sob essa forma, portanto, expressava o desejo de que seu pai continuasse vivendo. O número inteiro [426 718] correspondia, na verdade, à realização de seus dois desejos infantis a respeito de seu círculo familiar - que o irmão e a irmã malvados morressem e que nascesse um irmãozinho depois dele, ou, expresso de maneira mais sucinta, “Antes esses dois tivessem morrido em vez do meu amado pai!”
(6) Aqui está um breve exemplo de um correspondente. O diretor de uma agência de telégrafo em L. escreve que seu filho de dezoito anos e meio, que quer estudar medicina, já está se ocupando da psicopatologia do cotidiano e vem tentando convencer seus pais da justeza de minhas afirmações. Reproduzo a seguir uma das experiências realizadas por ele, sem me manifestar sobre a discussão ligada a ela.
“Meu filho estava conversando com minha mulher sobre o chamado ‘acaso’ e lhe explicava que ela não conseguiria nomear nenhuma canção ou número que lhe ocorresse realmente ‘por acaso’. Deu-se então o seguinte diálogo: Filho: ‘Diga-me um número qualquer’. - Mãe: ‘79.’ - Filho: ‘O que lhe ocorre a respeito disso?’ - Mãe: ‘Estou pensando no lindo chapéu que vi ontem.’ - Filho: ‘Quanto custava?’ - Mãe: ‘158 marcos.’ - Filho: ‘Aí está: 158 2 = 79. O chapéu lhe pareceu caro demais e você sem dúvida pensou. ‘Se ele custasse a metade, eu o compraria’.”
“Contra essas afirmações de meu filho levantei, antes de mais nada, a objeção de que as mulheres em geral não são muito boas em cálculos, e que a mãe dele certamente não teria percebido com clareza que 79 era a metade de 158. Sua teoria, portanto, estava baseada no fato bastante improvável de que o subconsciente saberia fazer contas melhor do que a consciência normal. ‘De modo algum’ foi a resposta que recebi; ‘suponho que mamãe não tenha feito a conta 158 2 = 79, ela pode muito bem ter visto essa equação em algum momento; pode até ter-se ocupado do chapéu num sonho, e então percebido com clareza quanto ele custaria se fosse a metade do preço’.”
(7) Tomo outra análise numérica de Jones (1911b, 478). Um senhor conhecido dele deixou que lhe ocorresse o número 986 e então o desafiou a relacionar esse número com qualquer coisa em que ele pensasse. “Usando o método da associação livre, veio-lhe primeiro a seguinte lembrança, que antes não estivera em sua mente: seis anos antes, no dia mais quente de que conseguia lembrar-se, ele vira num vespertino uma anedota que dizia que o termômetro havia marcado 986ºF., o que era, evidentemente, um exagero de 98.6ºF. Na ocasião, estávamos sentados diante de uma lareira muito quenteda qual ele acabara de se afastar, e ele comentou, provavelmente com toda razão, que o calor havia despertado essa lembrança adormecida. Mas fiquei curioso em saber por que essa lembrança teria persistido com tamanha nitidez, a ponto de ser tão prontamente evocada, já que, na maioria das pessoas, decerto teria sido totalmente esquecida, a menos que se houvesse associado com alguma outra experiência psíquica mais significativa. Ele me contou que, ao ler a anedota, rira às gargalhadas, e em muitas ocasiões posteriores se lembrara dela com grande prazer. Como a piada era obviamente muito fraca, isso intensificou minha expectativa de que houvesse mais alguma coisa por trás dela. Seu pensamento seguinte foi a reflexão genérica de que a idéia do calor sempre o impressionara muito; que o calor era a coisa mais importante do universo, a fonte de toda a vida, e assim por diante. Essa atitude notável num rapaz tão prosaico certamente requeria uma explicação, de modo que lhe pedi que prosseguisse em suas associações. O pensamento seguinte disse respeito a uma chaminé da fábrica que ele via da janela de seu quarto. À noite, era freqüente ele se deixar ficar observando a chama e a fumaça que saíam dela e refletindo sobre aquele deplorável desperdício de energia. O calor, o fogo, a fonte da vida, o desperdício de energia vital saindo de um tubo ereto e oco - não foi difícil adivinhar, por essas associações, que as idéias do calor e do fogo estavam inconscientemente vinculadas em sua mente com a idéia do amor, como é tão freqüente no pensamento simbólico, e que haveria ali um forte complexo de masturbação, conclusão esta que logo foi confirmada por ele.”
Aos que quiserem obter uma boa impressão [1] da maneira como o material dos números é elaborado no pensamento inconsciente, indico os artigos de Jung (1911) e Jones (1912).
Quando conduzo essas análises em mim mesmo, duas coisas me são particularmente notáveis: em primeiro lugar, a certeza francamente sonambúlica com que me lanço em minha meta desconhecida, mergulhando numa seqüência de pensamentos aritméticos que chega de repente ao número desejado, e a rapidez com que se completa todo o trabalho posterior [Nacharbeit]; em segundo lugar, o fato de os números se colocarem tão prontamente à disposição de meu pensamento inconsciente, embora eu seja ruim em cálculos e tenha enorme dificuldade em gravar conscientemente datas, números de residências e coisas similares.Além disso, nessas operações inconscientes de pensamento com números descubro em mim uma tendência à superstição cuja origem me permaneceu desconhecida por muito tempo. [Cf. em [1].]
Não nos surpreenderá [1] verificar que não só os números, mas também as associações verbais de outro tipo, costumam revelar-se, ante a investigação analítica, plenamente determinadas.
(8)Um bom exemplo de derivação de uma palavra obsessiva - ou seja, persecutória - encontra-se em Jung (1906). “Uma dama contou-me que já há alguns dias vinha-lhe constantemente aos lábios a palavra ‘Taganrog’, sem que ela tivesse nenhuma idéia de sua origem. Perguntei-lhe sobre os acontecimentos carregados de afeto e os desejos recalcados de seu passado recente. Após alguma hesitação, ela me contou que gostaria muito de ter um robe [Morgenrock], mas seu marido não tinha nisso o interesse que ela desejava. ‘Morgenrock’, ‘Tag-an-rock’ [literalmente, ‘roupão de dia’] - vê-se a semelhança parcial de som e de sentido. A determinação da forma russa proveio de que, nessa mesma época, a dama travara conhecimento com uma personalidade de Taganrog.”
(9)Devo ao Dr. E. Hitschmann a solução de outro caso em que, num certo local, um verso se impôs a alguém repetidamente como uma livre associação, sem que se evidenciassem sua origem ou suas relações.
“Relato de E., Doutor em Direito: Seis anos atrás viajei de Biarritz para San Sebastian. A estrada de ferro cruza o rio Bidassoa, que nesse ponto marca a fronteira entre a França e a Espanha. Da ponte vê-se um belo panorama - de um lado, um amplo vale e os Pireneus e, de outro, o mar distante. Era um lindo e radiante dia de verão; tudo estava banhado de sol e de luz, eu estava em viagem de férias e me sentia feliz por estar chegando à Espanha… e então me ocorreram os versos:
Aber frei ist schon die Seele,Schwebet in dem Meer von Licht.
“Lembro-me que, na época, pus-me a pensar de onde viriam esses versos e não consegui me recordar. A julgar pelo ritmo, as palavras deviam provir de um poema, só que este fugira inteiramente de minha memória. Creio que depois, quando os versos me voltaram muitas vezes à mente, perguntei a várias pessoas sobre ele, sem que conseguisse descobrir coisa alguma.
“No ano passado, regressando de uma viagem à Espanha, passei pelo mesmo trecho da ferrovia. Era uma noite escura como breu e estava chovendo. Olhei pela janela para ver se já havíamos chegado à estação da fronteira e notei que estávamos na ponte sobre o Bidassoa. Logo me voltaram à memória os versos citados acima, e mais uma vez não consegui recordar sua origem.
“Vários meses depois, já em casa, caiu-me nas mãos um livro de poemas de Uhland. Abri-o e meus olhos depararam com estes versos: ‘Aber frei ist schon die Seele, schwebet in dem Meer von Licht’, que encerram um poema chamado ‘Der Waller’. Li o poema e tive uma lembrança muito vaga de havê-lo conhecido há muitos anos atrás. A ação se passa na Espanha, e esse me pareceu ser o único elo entre os versos citados e o lugar da estrada de ferro descrito por mim. Fiquei apenas parcialmente satisfeito com minha descoberta e continuei a virar mecanicamente as páginas do livro. Os versos ‘Aber frei ist schon…’ etc. ficam no fim de uma página. Ao virá-la, encontrei do outro lado um poema com o título ‘A Ponte sobre o Bidassoa’.
“Acrescento ainda que o conteúdo desse poema pareceu-me quase mais estranho que o do anterior, e que seus primeiros versos dizem:
‘Auf der Bidassoabrücke steht ein Heiliger altersgrau,Segnet rechts die span’schen Berge, segnet links denfränk’schen Gau’.”
(B) Talvez esse discernimento do determinismo dos nomes e números aparentemente escolhidos de modo arbitrário contribua para o esclarecimento de um outro problema. Muitas pessoas, como se sabe, contestam a suposição de um determinismo psíquico completo invocando um sentimento especial de convicção de que existe um livre-arbítrio. Esse sentimento de convicção existe, e não cede diante da crença no determinismo. Como todos os sentimentos normais, deve ter algo que o justifique. Pelo que posso observar, porém, ele não se manifesta nas grandes e importantes decisões da vontade: nessas ocasiões, tem-se antes o sentimento de compulsão psíquica, e de bom grado se recorre a ele. (“Aqui me posiciono, não tenho outra escolha.”) Em contrapartida, é justamente nas decisões indiferentes e insignificantes que se prefere asseverar que teria sido igualmente possível agir de outra maneira, que se agiu por uma vontade livre e não motivada. De acordo com nossas análises, não é necessário contestar a legitimidade do sentimento de convicção de que existe um livre-arbítrio. Quando levamos em conta a distinção entre motivação consciente e motivação inconsciente, nosso sentimento de convicção nos informa que a motivação consciente não se estende a todas as nossas decisões motoras. Mínima non curat praetor. Mas o que é assim liberado por um lado recebe sua motivação do outro, do inconsciente, e desse modo o determinismo no psíquico prossegue ainda sem nenhuma lacuna.
(C)Embora a motivação dos atos falhos descritos nos capítulos anteriores seja algo que, pela própria natureza da situação, está fora do conhecimento do pensamento consciente, seria ainda assim desejável descobrir uma prova psicológica da existência dessa motivação; e de fato, por motivos decorrentes de um conhecimento mais aprofundado do inconsciente, é provável que essas provas possam ser descobertas em algum lugar. Existem realmente duas esferas em que é possível demonstrar fenômenos que parecem corresponder a um conhecimento inconsciente, e portanto deslocado, dessa motivação.
(a) Um traço marcante e universalmente observado do comportamento dos paranóicos é que eles conferem extrema importância aos pequenos detalhes do comportamento de outras pessoas, que comumente negligenciamos, interpretam-nos e fazem deles a base para extensas conclusões. Por exemplo, o último paranóico que examinei concluiu que todos os que o cercavam estavam de comum acordo, pois quando seu trem ia saindo da estação as pessoas haviam feito um certo movimento com uma das mãos. Outro reparava no modo como as pessoas andavam na rua, como manejavam, as bengalas etc.
A categoria do acidental, do que não requer motivação, na qual as pessoas normais incluem parte de suas próprias operações psíquicas e de seus atos falhos, é portanto rejeitada pelo paranóico no tocante às manifestações psíquicas de outras pessoas. Tudo o que ele observa no outro é repleto de significação, tudo é interpretável. O que o faz chegar a isso? Aqui, como em tantos casos semelhantes, é provável que ele projete na vida anímica do outro o que está inconscientemente presente na sua. Na paranóia, impõem-se à consciência muitas coisas cuja presença no inconsciente das pessoas normais e neuróticas só é demonstrável através da psicanálise. Em certo sentido, portanto, o paranóico tem razão nisso, pois reconhece algo que escapa à pessoa normal, vê com mais clareza do que alguém de capacidade intelectual normal, mas o deslocamento para outras pessoas do estado de coisas que ele reconhece invalida seu conhecimento. Espero que não se pretenda de mimque eu justifique as várias interpretações paranóicas. Mas a parcela de justificação que concedemos à paranóia por essa maneira de encarar os atos casuais nos facilitará uma compreensão psicológica do sentimento de convicção que, no paranóico, está ligado a todas essas interpretações. É que há realmente algo de verdadeiro nelas, também aqueles dentre nossos erros de julgamento que não podem ser considerados patológicos adquirem o sentimento de convicção que lhes é próprio exatamente da mesma maneira. Esse sentimento é justificado quanto a uma parte da seqüência errônea de pensamentos, ou quanto a sua fonte de origem, e então é estendido por nós ao restante do contexto.
(b) Outra indicação de que possuímos um conhecimento inconsciente e deslocado de motivação dos atos casuais e dos atos falhos encontra-se no fenômeno da superstição. Esse meu ponto de vista será esclarecido através da discussão da pequena experiência que constituiu meu ponto de partida para estas reflexões.
Ao voltar das férias, meus pensamentos se voltaram de imediato para os pacientes que iriam requerer minha atenção no novo ano de trabalho que estava começando. Minha primeira visita foi a uma senhora muito idosa a quem eu prestava há muitos anos os mesmos serviços profissionais duas vezes por dia (em [1] [e [2]]). Graças a essa uniformidade, foram muito freqüentes as ocasiões em que alguns pensamentos inconscientes conseguiram expressar-se quando eu estava a caminho da casa da enferma ou enquanto a atendia. Ela tem mais 90 anos e, portanto, é natural que se pergunte, no começo de cada ano de tratamento, quanto tempo ainda lhe restará de vida. No dia a que me refiro, eu estava com pressa e tomei um coche de aluguel para me levar à casa dela. Todos os cocheiros do ponto decarruagens em frente a minha casa sabiam a endereço, pois todos me haviam levado até lá freqüentemente. Nesse dia, porém, ocorre que o cocheiro não parou diante da casa dela, mas diante de uma casa com o mesmo número numa rua próxima, paralela à outra, e que de fato tinha uma aparência muito semelhante. Notei o erro, censurei o cocheiro e ele se desculpou. Pois bem, haveria algum significado no fato de eu ter sido conduzido a uma casa onde a velha senhora não seria encontrada? Para mim, certamente que não, mas, se fosse supersticioso, eu veria nesse incidente um presságio, um sinal do destino anunciando que esse seria o último ano da anciã. Inúmeros presságios registrados pela história basearam-se num simbolismo que não era melhor do que esse. Evidentemente explico essa ocorrência como uma casualidade sem nenhum outro sentido.
O caso teria sido completamente diferente se eu tivesse percorrido o caminho a pé e, “imerso em pensamentos” ou “por distração”, tivesse chegado à casa da rua paralela em vez da casa certa. Isso eu não explicaria como um acaso, mas como um ato com uma intenção inconsciente e que requereria interpretação. É provável que eu desse a esse “errar o caminho” a interpretação de que não esperava ver a anciã por muito mais tempo.
Portanto, diferencio-me de uma pessoa supersticiosa pelo seguinte:
Não creio que um acontecimento de cuja ocorrência minha vida anímica não tenha participado possa ensinar-me algo oculto sobre a forma futura da realidade; acredito, porém, que uma manifestação inintencional de minha própria atividade anímica de fato revele alguma coisa oculta, muito embora seja algo que só pertence a minha vida anímica [não à realidade externa]; creio no acaso (real) externo, sem dúvida, mas não em casualidades (psíquicas) internas. Com o supersticioso acontece o contrário: ele nada sabe da motivação de seus atos casuais e seus atos falhos, e acredita que existem casualidades psíquicas; por outro lado, ele tende a atribuir ao acaso externo um sentido que se manifestará em acontecimentos reais, e a ver no acaso um meio de expressão de algo que se oculta dele no mundo externo. São duas as diferenças entre mim e o supersticioso: primeiro, ele projeta para fora uma motivação que eu procuro dentro; segundo, ele interpreta mediante um acontecimento o acaso cuja origem atribuo a um pensamento. Mas o oculto para ele corresponde ao que para mim é inconsciente, e é comum a nós dois a compulsão a não encarar o acaso como acaso, mas a interpretá-lo.
Presumo que esse desconhecimento consciente e esse saber inconsciente da motivação das casualidades psíquicas sejam uma das raízes psíquicas da superstição. Porque o supersticioso nada sabe da motivação de seus próprios atos casuais, e porque o fato dessa motivação pressiona pela obtenção de um lugar no campo de seu reconhecimento, ele se vê forçado a situá-la, por deslocamento, no mundo externo. Se existe tal conexão, ela dificilmente estará limitada a esse caso singular. De fato, creio que grande parte da visão mitológica do mundo, que se estende até as mais modernas religiões, nada mais é do que a psicologia projetada no mundo externo. O obscuro reconhecimento (a percepção endopsíquica por assim dizer) dos fatores psíquicos e das relações do inconsciente espelha-se - é difícil dizê-lo de outra maneira, e aqui a analogia com a paranóia tem que vir em nosso auxílio - na construção de uma realidade sobrenatural, que se destina a ser retransformada pela ciência na psicologia do inconsciente. Poder-se-ia ousar explicar dessa maneira os mitos do paraíso e do pecado original, de Deus, do bem e do mal, da imortalidade etc., e transformar a metafísica em metapsicologia. O abismo entre o deslocamento do paranóico e o do supersticioso é menos amplo do que parece à primeira vista. Quando os seres humanos começaram a pensar, viram-se constrangidos, como se sabe, a explicar o mundo externo antropomorficamente, através de uma profusão de personalidades concebidas a sua semelhança; as casualidades, supersticiosamente interpretadas, eram portanto atos e manifestações de pessoas, e eles se comportavam, por conseguinte, tal como os paranóicos, que tiram conclusões dos sinais insignificantes que lhe são fornecidos por outras pessoas, e tal como todas as pessoas normais, que com todo o direito baseiam sua estimativa do caráter de seus semelhantes nos atos casuais e não deliberados destes. É apenas em nossa cosmovisão [Weltanschauung] moderna e científica, mas de modo algum acabada, que a superstição parece tão fora de lugar; na visão de mundo da época e povos pré-científicos, ela era justificada e conseqüente.
O romano que desistia de um empreendimento importante ao ver uma revoada de pássaros agourentos tinha razão, portanto, em termos relativos; seu comportamento era compatível com suas premissas. Mas quando renunciava ao empreendimento por ter tropeçado na soleira de sua porta (“un Romain retournerait”), era também, num sentido absoluto, superior a nós, descrentes; era um melhor conhecedor de alma do que nos empenhamos em ser. É que esse tropeço deve ter-lhe revelado a existência de uma dúvida, de uma corrente contrária agindo em seu interior, cuja força, no momento da execução, poderia reduzir a força de sua intenção. De fato só se tem certeza do êxito completo quando todas as forças anímicas unem-se na luta pela meta desejada. Qual foi a resposta do Guilherme Tell, de Schiller, que hesitou tanto em atirar na maçã sobre a cabeça do filho, quando o governador lhe perguntou por que se munira de uma segunda flecha?
Mit diesem zweiten Pfeil durchschoss ich - Euch,Wenn ich mein liebes Kind getroffen hätte,Und Euer - wahrlich, hätt’ ich nicht gefehlt.
(D) Quem tiver tido a oportunidade de estudar as moções anímicas ocultas dos seres humanos através da psicanálise também terá algo de novo a dizer sobre a qualidade dos motivos inconscientes que se expressam na superstição. Pode-se reconhecer com extrema clareza, nos neuróticos que sofrem de pensamentos obsessivos e estados obsessivos - pessoas freqüentemente muito inteligentes -, que a superstição deriva de moções cruéis e hostis suprimidas. A superstição é, em grande parte, a expectativa de infortúnios, e uma pessoa que tenha freqüentemente desejado o mal a outrem, mas tenha sido educada para o bem e por isso recalcado tais desejos no inconsciente, será especialmente propensa a esperar o castigo por sua maldade inconsciente como um infortúnio que a ameaça de fora.
Embora admitamos que estas nossas observações de maneira alguma esgotam a psicologia da superstição, somos forçados pelo menos a tocar numa questão: se devemos negar inteiramente as raízes reais da superstição, se de fato não existem pressentimentos, sonhos proféticos, experiências telepáticas, manifestações de forças sobrenaturais e coisas semelhantes. Estou longe de pretender condenar tão cabalmente esses fenômenos, dos quais tantas observações detalhadas têm sido feitas inclusive por homens de intelecto destacado, e que melhor seria transformar em objeto de outras investigações. É até de se esperar que parte dessas observações venha a ser explicada por nosso reconhecimento incipiente dos processos anímicos inconscientes, sem que haja necessidade de modificações radicais nas concepções que hoje sustentamos. Se ficasse provada a existência de ainda outros fenômenos - por exemplo, os afirmados pelos espíritas -, trataríamos apenas de modificar nossas “leis” da maneira exigida pelo novo saber, sem abalarmos nossa crença na coerência das coisas no mundo.
No quadro destas discussões, a única resposta que posso dar às questões aqui levantadas é subjetiva, ou seja, de acordo com minha experiência pessoal. Infelizmente, devo confessar que sou um daqueles indivíduos indignos diante de quem os espíritos suspendem suas atividades e o sobrenatural se evade, de modo que nunca estive na situação de experimentar por mim mesmo algo que pudesse despertar uma crença no milagroso. Como todo ser humano, tenho tido pressentimentos e vivenciado infortúnios, mas os dois não coincidiram entre si, de sorte que nada se seguiu aos pressentimentos e o infortúnio se abateu sobre mim sem aviso prévio. Nos tempos em que, jovem ainda, morei sozinho numa cidade estranha, muitas vezes ouvia meu nome ser chamado de repente por uma voz inconfundível e querida; anotava então o momento exato de alucinação e, apreensivo, perguntava às pessoas que haviam ficado em minha terra o que acontecera naquela hora. Nada havia acontecido. Para contrabalançar, houve uma ocasião posterior em que continuei trabalhando com meus pacientes, imperturbável e sem nenhum pressentimento, enquanto um de meus filhos corria perigo de vida por causa de uma hemorragia. Além disso, nunca pude reconhecer como um fenômeno real nenhum dos pressentimentos que me foram relatados pelos pacientes. - Contudo, devo confessar que nos últimos anos tive algumas experiências notáveis que poderiam ter sido facilmente explicadas mediante a hipótese da transferência telepática de pensamentos.
A crença nos sonhos proféticos tem muitos adeptos porque pode invocar em seu apoio o fato de que muitas coisas realmente se realizam no futuro da maneira como o desejo as construíra no sonho. Mas pouco há de surpreendente nisso, e em geral há também entre o sonho e sua realização uma ampla divergência que a credulidade do sonhador prefere negligenciar. Um bom exemplo de sonho que com justa razão poderia ser chamado de profético foi-me fornecido certa vez, para uma análise detalhada, por uma paciente inteligente e veraz. Ela me contou que uma vez sonhara ter encontrado um antigo amigo e médico da família diante de certa loja numa certa rua, e que na manhã seguinte, ao ir ao centro da cidade, de fato o encontrara exatamenteno lugar indicado no sonho. Posso observar que nenhum acontecimento subseqüente comprovou a importância dessa milagrosa coincidência que, portanto, não pôde ser justificada pelo que estava reservado no futuro.
Um exame cuidadoso constatou que não havia nenhuma prova de que essa dama se houvesse recordado do sonho na manhã seguinte a ele, ou seja, antes do passeio e do encontro. Ela não pôde fazer nenhuma objeção a uma exposição dos fatos que retirava do episódio qualquer característica milagrosa e deixava apenas um interessante problema psicológico. Uma manhã, ela ia andando pela rua em questão, encontrou o velho médico da família diante de certa loja e, ao vê-lo, sentiu-se convencida de ter sonhado na noite anterior com esse encontro naquele exato lugar. A análise pôde então mostrar, com grande probabilidade, de que modo ela chegara a esse sentimento de convicção, ao qual, segundo regras universais, não se pode negar um certo direito à credibilidade. Uma reunião previamente esperada num lugar específico equivale, de fato, a um encontro [amoroso]. O antigo médico da família despertou nela a lembrança de velhos tempos em que os encontros com uma terceira pessoa, também amigo do médico, tinham sido muito significativos para ela. Desde então ela havia mantido suas relações com esse cavalheiro e em vão esperava por ele na véspera do pretenso sonho. Se eu pudesse relatar mais detalhadamente as circunstâncias do caso, ser-me-ia fácil mostrar que a ilusão de ter tido um sonho profético, ao ver o amigo dos velhos tempos, equivalera aproximadamente ao seguinte comentário: “Ah, doutor! agora o senhor me faz lembrar dos tempos antigos em que eu nunca tinha de esperar em vão por N. quando marcávamos um encontro.”
Da conhecida “coincidência notável” de encontrar uma pessoa em quem se estava pensando justamente naquela hora tenho um exemplo observado em mim mesmo, simples e fácil de explicar, que provavelmente constitui um bom modelo para ocorrências semelhantes. Alguns dias depois de me outorgarem o título de professor, que confere considerável autoridade nos Estados de organização monarquista, ia eu passeando pelo centro da cidade quando, de repente, meus pensamentos se voltaram para uma fantasia infantil de vingança dirigida contra determinado casal. Meses antes, eles me haviam chamado para ver sua filhinha, em quem surgira um interessante sintoma obsessivo logo depois de um sonho.
Interessei-me muito pelo caso, cuja gênese eu acreditava discernir; entretanto, minha oferta de tratamento foi recusada pelos pais, e eles me deram a entender que estavam pensando em consultar uma autoridade estrangeira que realizava curas pelo hipnotismo. Eu fantasiava que, após o fracasso total dessa tentativa, os pais me rogavam que instituísse meu tratamento, dizendo que agora tinham plena confiança em mim, etc. Eu, no entanto, respondia: “Ah, sim, agora vocês têm confiança em mim, agora que também me tornei professor. O título nada fez por alterar minhas aptidões; se vocês não puderam usar meus serviços enquanto eu era docente, também podem prescindir como professor.” - Nesse ponto, minha fantasia foi interrompida por um sonoro “Bom dia, senhor professor!” e quando ergui os olhos, vi que passava por mim exatamente o mesmo casal de quem eu acabara de me vingar mediante a recusa de sua proposta. Uma reflexão imediata destruiu a impressão de algo milagroso. Eu estivera andando em direção ao casal por uma rua larga, reta e quase deserta; a cerca de vinte passos deles, erguera o olhar por um momento, vislumbrara de relance suas figuras imponentes e os reconhecera, mas afastara essa percepção - seguindo o modelo de uma alucinação negativa - pelas razões emocionais que então se efetivaram na fantasia surgida de modo aparentemente espontâneo. [1]
Eis outra “resolução de um aparente pressentimento”, desta vez de Otto Rank (1912):
“Faz algum tempo, eu mesmo vivenciei uma curiosa variação da ‘coincidência notável’ de encontrar uma pessoa em quem se estava pensando naquele exato momento. Pouco antes do Natal, eu me dirigia ao Banco Austro-Húngaro para trocar papel-moeda por dez coroas novas de prata que eu pretendia oferecer como presentes. Imerso em fantasias ambiciosas ligadas ao contraste entre meu pequeno pecúlio e as pilhas e dinheiro guardadas no edifício do banco, entrei na estreita ruela onde ficava o banco. Vi um automóvel estacionado diante da porta e muita gente entrando e saindo. Pensei comigo mesmo: os empregados hão de ter tempo mesmo para minhas escassas coroas; em todo caso, serei rápido; vou entregar a nota que quero trocar e dizer ‘Dê-me ouro [Gold], por favor’. Notei meu erro na mesma hora - eu deveria pedir prata, é claro - e despertei de minhas fantasias. Estava já a poucos passos da entrada e vi, caminhando em minha direção, um jovem que pensei reconhecer, mas por causa de minha miopia ainda não conseguiaidentificá-lo com clareza. Quando ele chegou mais perto, reconheci-o como um colega de escola de meu irmão, de nome Gold, de cujo irmão, que era um escritor famoso, eu esperara considerável ajuda no começo de minha carreira literária. Essa ajuda, porém, não se efetivara, e nem tampouco o esperado sucesso material que fora o tema de minha fantasia a caminho do banco. Portanto, mergulhado em minhas fantasias, devo ter-me apercebido inconscientemente da aproximação do Sr. Gold, o que foi representado em minha consciência (que estava sonhando com o sucesso material) sob forma de eu resolver pedir ouro ao caixa, em vez da prata, de menor valor. Por outro lado, entretanto, o fato paradoxal de meu inconsciente ser capaz de perceber um objeto que meus olhos só conseguem reconhecer depois parece explicar-se, em parte pelo que Bleuler (1910) chama de ‘prontidão do complexo [Complexbereitschaft]’. Este, como vimos, estava orientado para as questões materiais e, desde o começo, contrariando melhores informações de que eu dispunha, guiara meus passos para o edifício onde só se trocam ouro e papel-moeda.”
Na [1] categoria do milagroso e do “insólito” devemos também incluir a peculiar sensação que se tem, em certos momentos e situações, de já ter vivenciado exatamente aquilo um dia, de já ter estado antes naquele mesmo lugar, sem que se consiga, apesar de todos os esforços, recordar claramente a ocasião anterior que assim se manifesta. Sei que estou apenas seguindo o uso lingüístico descompromissado ao chamar de “sensação” aquilo que brota na pessoa nesses momentos; trata-se sem dúvida de um juízo e, mais exatamente, de um juízo perceptivo, mas esses casos têm um caráter inteiramente peculiar, e não se deve desconsiderar que aquilo que se procura nunca é lembrado. Não sei se esse fenômeno do “déjà vu” já foi seriamente oferecido como prova de uma existência psíquica anterior do indivíduo, mas os psicólogos decerto têm voltado seu interesse para ele e têm-se empenhado em resolver o problema pelos mais diversos caminhos especulativos. Nenhum das tentativas de explicação por eles apresentadas parece-me correta, pois nenhuma leva em conta outra coisa que não as manifestações concomitantes e as condições favorecedoras do fenômeno. Os processos psíquicos que, de acordo com minhas observações, são os únicos responsáveis pela explicação do “déjà vu” - a saber, as fantasias inconscientes - ainda são geralmente negligenciados pelos psicólogos, mesmo hoje em dia.
No meu entender, é errôneo chamar de ilusão o sentimento de já ser ter vivenciado alguma coisa antes. É que nesses momentos realmente se toca em algo que já se vivenciou antes, só que isso não pode ser lembrado conscientemente porque nunca foi consciente. Dito em termos sucintos, a sensação do “déjà vu” corresponde à recordação de uma fantasia inconsciente. Existem fantasias (ou devaneios) inconscientes, assim como existem criações conscientes do mesmo tipo, que todos conhecem por experiência própria.
Sei que o assunto mereceria o mais exaustivo tratamento, mas aqui apresentarei apenas a análise de um único caso de “déjá vu” em que a sensação se caracterizou por uma intensidade e persistência especiais. Uma dama que conta agora trinta e sete anos afirmou ter a mais nítida lembrança de, aos doze anos e meio, ter visitado pela primeira vez algumas colegas de escola no campo e, ao entrar no jardim, ter experimentado a sensação imediata de já haver estado ali antes. Essa sensação se repetiu quando ela entrou nos aposentos da casa, a tal ponto que acreditou saber de antemão qual seria o cômodo seguinte, que vista se teria dele etc. Mas a possibilidade de que esse sentimento de familiaridade devesse sua origem a uma visita anterior à casa e ao jardim, talvez na primeira infância, foi absolutamente excluída e refutada pelas indagações que ela fez a seus pais. A dama que fez esse relato não estava em busca de nenhuma explicação psicológica, mas via a ocorrência desse sentimento como uma indicação profética da importância que essas mesmas amigas adquiririam mais tarde para sua vida emocional. Entretanto, o exame das circunstâncias em que o fenômeno ocorreu nela mostra-nos o caminho para uma outra concepção. Na época em que fez essa visita, ela sabia que as meninas tinham um único irmão, que estava gravemente enfermo. Durante a visita, de fato chegou a vê-lo, achou-o com uma aparência muito ruim e disse a si mesma que ele logo morreria. Ora, o próprio irmão dela estivera perigosamente enfermo, com difteria, alguns meses antes; durante sua doença, ela fora afastada da casa dos pais por várias semanas, indo morar com um parente. Ela acreditava que o irmão a havia acompanhado nessa visita ao campo; achava inclusive que essa fora a primeira viagem mais longa dele depois da doença; mas sua memória era estranhamente imprecisa nesses pontos, ao passo que de todos os outros detalhes, em especial do vestido que estava usando naquele dia, ela guardava uma imagem ultraclara. [1] [Cf. nota de rodapé, em [1]]. Para o conhecedor, não haverá dificuldade em concluir desses indícios que, naquela época, a expectativa de que o irmão morresse desempenhara um papel importante nos pensamentos da menina e nunca se tornara consciente, ou então, após o desfecho favorável da doença, sucumbira a um enérgico recalcamento. Se as coisas tivessem terminado de outra maneira, ela teria precisado usar um vestido diferente, ou seja, um traje de luto. Ela encontrou uma situação análoga na casa das amigas, cujo único irmão corria perigo de morte iminente, o que na verdade sucedeu pouco depois. Ela deveria ter-se lembrado conscientemente de que ela própria atravessara essa situação poucos meses antes: em vez de se lembrar - o que foi impedido pelo recalque -, transferiu sua sensação de recordar algo para o ambiente que a cercava, o jardim e a casa, e caiu presa da “fausse reconnaissance” de já ter visto tudo aquilo antes, tal como se mostrava. Pelo fato de ter ocorrido o recalmento podemos concluir que sua expectativa anterior da morte do irmão não estivera muito afastada do caráter de uma fantasia desejante. Nesse caso, ela teria ficado como filha única. Em sua neurose posterior, ela sofria com a mais extrema intensidade a angústia de perder os pais, por trás da qual, como de costume, a análise pôde revelar um desejo inconsciente com o mesmo conteúdo.
De maneira semelhante, pude derivar da constelação emocional do momento minhas próprias experiências fugazes de “déjà vu”. “Esta seria de novo uma ocasião propícia para despertar a fantasia (inconsciente e desconhecida) que se formou em mim nesta ou naquela época como um desejo de melhorar a situação.” - Essa explicação do “déjá vu”, [1] até o momento só foi levada em consideração por um único observador. O Dr. Ferenczi, a quem a terceira edição [1910] deste livro deve tantas contribuições valiosas, escreve-me o seguinte a respeito do assunto: “Tanto em mim mesmo como em outras pessoas, convenci-me de que o inexplicável sentimento de familiaridade deve ser rastreado a sua origem em fantasias inconscientes, dentre as quais uma é inconscientemente lembrada numa situação atual. Num de meus pacientes aconteceu algo aparentemente diferente, mas, na realidade, inteiramente análogo. Esse sentimento retornava nele com muita freqüência, mas mostrava regularmente ter-se originado de um fragmento esquecido (recalcado) de um sonho da noite anterior. Portanto, parece que o ‘déjà vu‘ não só pode derivar-se dos sonhos diurnos, como também dos sonhos noturnos.”
Eu soube depois que Grasset (1904) deu a esse fenômeno uma explicação que se aproxima muito da minha.
Em 1913, [1] descrevi num pequeno ensaio outro fenômeno muito semelhante ao “déjà vu” [1914a]. Trata-se do “déjà racontè”, a ilusão de já ter contado algo particularmente interessante quando ele aflora durante o tratamento psicanalítico. Nessas ocasiões, o paciente afirma, com todas as mostras de certeza subjetiva, já ter contado há muito tempo uma determinada lembrança. Mas o médico tem certeza do contrário e, via de regra, consegue convencer o paciente de seu erro. A explicação desse interessante ato falho é, provavelmente, que o paciente teve o impulso e o propósito de fazer essa comunicação, mas deixou de fazê-lo, e agora toma a lembrança do primeiro como substituto do segundo, ou seja, a execução de seu propósito.
Um estado de coisas parecido, e provavelmente também o mesmo mecanismo podem ser vistos no que Ferenczi (1915) chamou de “atos falhos supostos”. Acreditamos haver algo - um objeto - que esquecemos, extraviamos ou perdemos, mas podemos convencer-nos de não ter feito nada disso e de que tudo está em ordem. Por exemplo, uma paciente volta ao consultório do médico com a motivação de buscar o guarda-chuva que deixara ali, mas o médico observa que esse guarda-chuva está… na mão dela. Portanto, houve um impulso para esse ato falho, impulso este que bastou para substituir sua execução. Salvo por essa diferença, o ato falho suposto equivale ao ato falho real. Mas é, por assim dizer, mais barato.
(E) Recentemente, quando tive oportunidade de relatar a um colega de formação filosófica alguns exemplos do esquecimento de nomes, com suas respectivas análises, ele se apressou a responder: “Tudo isso é muito bonito, mas em mim o esquecimento de nomes acontece de outra maneira.” É óbvio que não se pode tratar a questão com tanta facilidade; creio que meu colega nunca havia pensado em analisar o esquecimento de um nome, nem tampouco soube dizer de que outra maneira as coisas se passavam com ele. Mas sua observação toca num problema que muitas pessoas talvez se incluem a situarem primeiro plano. Será que a solução aqui fornecida para os atos falhos e os atos casuais tem aplicação genérica ou apenas em certos casos? E, no caso desta última, quais são as condições em que é lícito invocá-la para explicar fenômenos que também poderiam ter-se produzido de outra maneira? Para responder a essa questão, minhas experiências deixam-me em apuros. Posso apenas advertir contra a suposição de que seja raro encontrar uma relação do tipo aqui assinalado, pois todas as vezes que pus isso à prova, em mim mesmo ou em meus pacientes, a relação se deixou demonstrar tal como nos exemplos relatados, ou pelo menos houve boas razões para se supor que ela existia. Não surpreende que nem sempre se chegue a descobrir o sentido oculto de um ato sintomático, pois a magnitude das resistências internas que se opõem à solução entra em conta como um fator decisivo. Tampouco se pode interpretar cada um dos próprios sonhos ou dos sonhos dos pacientes; para comprovar a validade geral da teoria, basta que se consiga penetrar em parte da extensão da trama oculta. Um sonho que se mostrar refratário à tentativa de resolvê-lo no dia seguinte muitas vezes permite que seu segredo seja arrancado uma semana ou um mês depois, quando uma mudança real ocorrida no entretempo já tiver reduzido as valências psíquicas em contenda. O mesmo se aplica à solução dos atos falhos e dos atos sintomáticos. O exemplo de lapso de leitura da página 116 (“Num barril pela Europa”) deu-me a oportunidade de mostrar como um sintoma a princípio insolúvel torna-se acessível à análise depois que se relaxa o interesse real pelos pensamentos recalcados. Enquanto persistiu a possibilidade de meu irmão obter o cobiçado título antes de mim, esse lapso de leitura resistiu a todos os repetidos esforços de análise; depois que essa precedência se tornou improvável, o caminho para a solução esclareceu-se repentinamente. Portanto, seria incorreto afirmar que todos os casos que resistem à análise tenham-se formado por um mecanismo diferente do mecanismo psíquico aqui revelado; tal suposiçãoexigiria mais do que algumas provas negativas. Além disso, a presteza com que se acredita numa explicação diferente dos atos falhos e dos atos sintomáticos, provavelmente encontrada em todas as pessoas sadias, é inteiramente desprovida de valor comprobatório; ela é, obviamente, uma manifestação das mesmas forças anímicas que produziram o segredo e que por isso também lutam por preservá-lo e resistem a sua elucidação.
Por outro lado, não devemos ignorar o fato de que os pensamentos e moções recalcados certamente não criam por si mesmos sua expressão nos atos sintomáticos e nos atos falhos. A possibilidade técnica dessa derrapagem das inervações tem que estar dada independentemente deles, sendo então prontamente explorada pela intenção do recalcado de se impor à consciência. No caso dos atos falhos lingüísticos, as investigações detalhadas dos filósofos e filólogos têm-se empenhado em determinar quais são as relações estruturais e funcionais que se colocam a serviço de tal intenção. Se fizermos uma distinção, nos determinantes dos atos falhos e dos atos sintomáticos, entre o motivo inconsciente, por um lado, e as relações fisiológicas e psicofísicas favoráveis que vêm a seu encontro, por outro, permanecerá em aberto a questão de saber se, dentro da faixa da normalidade, haverá ainda outros fatores capazes de produzir, tal como faz o motivo inconsciente e em lugar dele, atos falhos e atos sintomáticos por meio dessas relações. Não é minha tarefa responder a essa pergunta.
Tampouco é meu propósito [1] exagerar as diferenças, que já são suficientemente grandes, entra a visão popular e a visão psicanalítica dos atos falhos. Preferiria chamar atenção para os casos em que essas diferenças perdem muito de sua nitidez. No que concerne aos exemplos mais simples e mais inconspícuos de lapsos da fala ou da escrita, nos quais talvez haja apenas uma contração de palavras ou uma omissão de palavras e letras, as interpretações mais complexas de nada servem. Do ponto de vista da psicanálise, cabe afirmar que algum distúrbio da intenção revelou-se nesses casos, mas não se pode dizer de onde proveio a perturbação e qual era seu objetivo. É que ela não conseguiu outra coisa senão manifestar sua existência. Nesses casos também se pode ver como o ato falho é favorecido por circunstâncias de valor fonético e por associações psicológicas próximas, fato esse jamais contestado por nós. Contudo, é uma justa exigência científica que tais casos rudimentares de lapsos da fala ou da escrita sejam julgados com base nos casos mais expressivos, cuja investigação produz conclusões tão inequívocas sobre a causação dos atos falhos.
(F) Desde a discussão dos lapsos da fala [em [1]], vimo-nos contentando em demonstrar que os atos têm uma motivação oculta, e com a ajuda da psicanálise abrimos caminho para o conhecimento dessa motivação. Até aqui, deixamos quase sem consideração a natureza geral e as peculiaridades dos fatores psíquicos que se expressam nos atos falhos, ou pelo menos ainda não tentamos defini-los mais de perto nem comprovar sua normatividade. Tampouco tentaremos agora abordar o assunto exaustivamente, já que nossos primeiros passos logo nos ensinariam que é melhor explorar esse campo por outro ângulo. Podem-se levantar aqui diversas questões que quero pelo menos mencionar e descrever em linhas gerais. (1) Quais são o conteúdo e a origem dos pensamentos e moções que se insinuam por meio do atos falhos e dos atos casuais? (2) Quais são as condições que compelem e habilitam um pensamento ou uma moção a se servirem desses atos como meio de expressão? (3) Haverá possibilidade de estabelecer relações constantes e inequívocas entre o tipo de ato falho e as qualidades daquilo que se expressa através dele?
Começarei por reunir algum material para responder à última pergunta. Na discussão dos exemplos de lapsos da fala [em [1]], consideramos necessário ir além do conteúdo daquilo que se tinha a intenção de dizer, e fomos obrigados a procurar a causa da perturbação do dito em alguma coisa fora da intenção. Essa causa era óbvia numa série de casos e era conhecida pela consciência do falante. Nos exemplos que pareciam mais simples e transparentes, ela era uma outra versão do mesmo pensamento, que soava igualmente autorizada [a externá-lo] e perturbava a expressão dele, sem que fosse possível explicar por que uma versão sucumbira e a outra viera à tona (são as “contaminações” de Meringer e Mayer [em [1]]). Num segundo grupo de casos, o motivo da derrota de uma versão era uma consideração que, não obstante, não se revelava suficientemente forte para conseguir uma continência completa (“para vir [à] Vorschwein” [em [1]]). A versão retida era também claramente consciente. Só a respeito do terceiro grupo pode-se afirmar sem restrições que o pensamento perturbador diferia do pensamento intencionado, e apenas nesses casos parece possível traçar uma distinção essencial. Ou o pensamento perturbador relaciona-se com o pensamentoperturbado por associações de pensamento (perturbação por contradição interna), ou então lhe é essencialmente alheio, e a palavra perturbada só se liga ao pensamento perturbador - que é com freqüência inconsciente - por uma estranha associação externa. Nos exemplos que extraí de minhas psicanálises, o dito inteiro está sob a influência de pensamentos que se tornaram ativos mas que, ao mesmo tempo, permaneceram inteiramente inconscientes; estes se denunciam pela própria perturbação (“Kalapperschlange” - “Kleopatra” [em [1]]) ou exercem uma influência indireta, possibilitando às diferentes partes do dito conscientemente intencionado se perturbarem entre si. (“Ase natmen”, por trás do qual estão a “rua Hasenauer” e as reminiscências de uma francesa [ver em [1]-[2]].) Os pensamentos retidos ou inconscientes dos quais decorre a perturbação da fala são das mais diversas origens. Esta sinopse, portanto, não nos revela nenhuma generalização.
O exame comparativo de meus exemplos de lapsos da leitura e da escrita leva às mesmas conclusões. Como acontece com os lapsos da fala, certos casos parecem originar-se de um trabalho de condensação sem nenhuma outra motivação (p. ex., o “Apfe” [ver em [1]-[2]]). Mas agradaria saber se não é necessário preencher algumas condições especiais para que ocorra essa condensação, que é normal no trabalho do sonho, mas constitui uma falha em nosso pensamento de vigília; e dos próprios exemplos não extraímos nenhum esclarecimento sobre isso. Eu me recusaria a concluir disso, entretanto, que não existe nenhuma outra condição, senão, por exemplo, o relaxamento da atenção consciente, já que sei por outras fontes que são justamente as atividades automáticas as que se caracterizam por serem corretas e dignas de confiança. Preferiria enfatizar que aqui, como é tão freqüente na biologia, as circunstâncias normais ou próximas do normal são objetos de investigação menos propícios do que as patológicas. Espero que o que permanece obscuro na elucidação dessas perturbações mais leves seja esclarecido pela explicação das perturbações graves.
Tampouco nos lapsos da leitura e da escrita faltam exemplos em que possamos discernir uma motivação mais remota e complicada. “Num barril pela Europa” [ver em [1]] é uma perturbação da leitura que se esclarece pela influência de um pensamento remoto e essencialmente alheio, surgido de uma moção recalcada de inveja e ambição, e que utilizou uma “reviravolta” [Wechsel] da palavra “Beförderung” para estabelecer um vínculo com o tema indiferente e inocente que estava sendo lido. No caso de “Burckhard” [ver em [1]], o próprio nome constitui uma dessas “reviravoltas”.
É inegável que as perturbações das funções da fala ocorrem com maior facilidade e exigem menos das forças perturbadoras do que as perturbações em outras funções psíquicas. [em [1]-[2].]
Situamo-nos em outro terreno quando de trata de examinar o esquecimento em seu sentido estrito, ou seja, o esquecimento das experiências passadas. (Para distingui-los desse esquecimento em sentido estrito, poderíamos dizer que o esquecimento de nomes próprios e de palavras estrangeiras, descrito nos Capítulo I e II, é um “lapso de memória”, e que o esquecimento de intenções é uma “omissão”.) As condições básicas do processo normal de esquecimento são desconhecidas. Também convémlembrar que nem tudo o que se supõe esquecido realmente o está. Nossa explicação refere-se aqui apenas aos casos em que o esquecimento provoca estranheza, na medida em que infringe a regra de que as coisas sem importância são esquecidas, mas as importantes são preservadas pela memória. A análise dos exemplos de esquecimento que parecem requerer uma explicação especial revela que o motivo do esquecimento é invariavelmente o desprazer de lembrar algo que pode evocar sentimentos penosos. Chegamos à conjectura de que esse motivo aspira a se manifestar universalmente na vida psíquica, mas outras forças que agem em sentido contrário impedem-no de se efetivar regularmente. O alcance e a significação desse desprazer em recordar impressões penosas parecem merecer o mais cuidadoso exame psicológico; além disso, não se pode separar desse contexto mais amplo a questão de saber quais as condições particulares que possibilitam em cada caso esse esquecimento, que é uma aspiração universal.
No esquecimento das intenções outro fator passa ao primeiro plano. O conflito, apenas conjeturado no recalcamento daquilo que era penoso lembrar, torna-se aqui palpável e, na análise dos exemplos, é possível reconhecer regularmente uma contravontade que se opõe à intenção sem aboli-la. Como nos atos falhos já descritos, também aqui é possível reconhecer dois tipos de processos psíquicos [ver em [1]-[2]]: ou a contravontade se volta diretamente contra a intenção (nos propósitos de alguma importância), ou é essencialmente alheia à própria intenção e estabelece um vínculo com ela por meio de uma associação externa (no caso de intenções quase indiferentes).
O mesmo conflito rege o fenômeno dos equívocos na ação. O impulso que se manifesta na perturbação do ato é freqüentemente um impulso contrário, mas, com freqüência ainda maior, é um impulso inteiramente alheio, que apenas aproveita a oportunidade para se expressar perturbando a ação enquanto ela é realizada. Os casos em que a perturbação resulta de uma contradição interna são os mais significativos e abrangem também os atos mais importantes.
Nos atos casuais ou nos atos sintomáticos o conflito interno passa a ser muito menos importante. Essas manifestações motoras, à quais a consciência dá pouco valor ou que ignora por completo, servem assim para expressar uma ampla variedade de moções inconscientes ou contidas; em sua maioria, são representações simbólicas de fantasias ou desejos.
Quanto à primeira questão, sobre a origem que teriam os pensamentos e moções que se expressam nos atos falhos [em [1]], pode-se dizer que numa série de casos é fácil mostrar que os pensamentos perturbadores provêm de moções suprimidas da vida anímica. Nas pessoas sadias, os sentimentos e impulsos egoístas, invejosos e hostis, sobre os quais recai o peso da educação moral, não raro se valem dos atos falhos como o caminho para expressarem de algum modo seu poder, que inegavelmente existe mas não é reconhecido pelas instâncias anímicas superiores. O consentimento nesses atos falhos e atos casuais equivale em boa medida a uma cômoda tolerância do imoral. Entre essas moções suprimidas não é pequeno o papel desempenhado pelas várias correntes sexuais. É um acidente de meu material que justamente elas apareçam tão raramente entre os pensamentos revelados pela análise em meus exemplos. Como tive de submeter à análise exemplos retirados sobretudo da minha própria vida anímica, a escolha foi parcial desde o início e visou a excluir o sexual. Em outras ocasiões, parece que os pensamentos perturbadores brotam de objeções e considerações perfeitamente inocentes.
Chegamos agora ao momento de responder à segunda pergunta, ou seja, que condições psicológicas vigoram para compelir um pensamento a buscar sua expressão não numa forma completa, mas como que parasitariamente, como um modificação e perturbação de outro pensamento [em [1]]. Os exemplos mais destacados de atos falhos sugerem que essas condições devem ser buscadas numa relação com a admissibilidade à consciência, no caráter mais ou menos decidido com que trazem a marca do “recalcado”. No entanto, se seguirmos esse caráter ao longo da série de exemplos, veremos que ele se dissolve em indícios cada vez mais vagos. A inclinação a descartar algo como perda de tempo - a ponderação de que um certo pensamento realmente não vem ao caso para o assunto em pauta - parece desempenhar, como motivo para repelir um pensamento que então fica destinado a se expressar através da perturbação de outro, o mesmo papel que a condenação moral de um impulso emocional rebelde ou que a proveniência de cadeias de pensamentos totalmente inconscientes. O discernimento da natureza genérica do condicionamento dos atos falhos e dos atos casuais não pode ser obtido dessa maneira. Um único fato significativo emerge dessas investigações: quanto mais inocente é a motivação do ato falho, e quanto menos objetável, e portanto menos inadmissível à consciência, é o pensamento que nele se expressa, maior é a facilidade de explicar o fenômeno quando se volta a atenção para ele. Os casos mais leves de lapsos da fala são notados de imediato e corrigidos espontaneamente. Quando a motivação provém demoções realmente recalcadas, faz-se necessária para a solução uma análise cuidadosa, que às vezes pode até tropeçar em dificuldades ou fracassar.
É inteiramente justificado, portanto, que tomemos o resultado desta última investigação como indício de que a explicação satisfatória das condições psicológicas dos atos falhos e dos atos casuais deve ser buscada por outro caminho e por uma abordagem diferente. Por conseguinte, queira o indulgente leitor ver nestas discussões a indicação das linhas de fratura ao longo das quais este tema foi arrancado, de maneira bastante artificial, de um contexto mais amplo.
(G) Cabe dizer algumas palavras ao menos para indicar a orientação desse contexto mais amplo. O mecanismo dos atos falhos e dos atos casuais, tal como passamos a conhecê-lo mediante o emprego da análise, exibe em seus pontos mais essenciais uma conformidade com o mecanismo da formação do sonho, que discuti no capítulo intitulado “O trabalho do sonho”, em meu livro A Interpretação dos Sonhos. Em ambos os casos se encontram condensações e formações de compromisso (contaminações); a situação é a mesma: por caminhos incomuns e através de associações externas, os pensamentos inconscientes expressam-se como modificação de outros pensamentos. As incongruências, absurdos e erros do conteúdo do sonho, em conseqüência dos quais é difícil reconhecer o sonho como um produto da atividade psíquica, originam-se da mesma maneira - embora, decerto, com uma utilização mais livre dos recursos existentes - que os erros comuns de nossa vida cotidiana; tanto aqui quanto ali, a aparência de uma função incorreta explica-se pela peculiar interferência mútua entre duas ou mais funções corretas.
Dessa conformidade é possível extrair uma importante conclusão: o modo peculiar de trabalho cuja mais notável realização se discerne no conteúdo dos sonhos não pode ser atribuído ao estado de sono da vida anímica, uma vez que temos nos atos falhos provas tão abundantes de que ele também opera durante a vida de vigília. A mesma relação também nos proíbe de presumir que esses processos psíquicos que nos parecem anormais e estranhos sejam condicionados por uma desintegração radical da atividade anímica ou por estados patológicos de funcionamento.
Só poderemos ter uma visão correta do singular trabalho psíquico que produz tanto os atos falhos quanto as imagens oníricas quando tivermos conhecimento de que os sintomas psiconeuróticos, e especialmente as formações psíquicas da histeria e da neurose obsessiva, repetem em seu mecanismo todas as características essenciais desse modo de trabalhar. Portanto, este é o ponto de partida para o prosseguimento de nossas investigações. Para nós, contudo, há ainda outro interesse especial em considerar os atos falhos, os atos casuais e os atos sintomáticos à luz desta última analogia. Se os compararmos aos produtos das psiconeuroses, os sintomas neuróticos, duas afirmações freqüentemente repetidas - a saber, que a fronteira entre a norma e a anormalidade nervosas é fluida e que todos somos um pouco neuróticos - adquirirão sentido e fundamento. Antes mesmo de qualquer experiência médica, podemos construir diversos tipos dessas doenças nervosas meramente insinuadas - de formes frustes das neuroses: casos em que os sintomas são poucos, ou ocorrem raramente ou sem gravidade; em outras palavras, casos cuja moderação está no número, na intensidade e na duração de suas manifestações patológicas. Por conjetura, entretanto, talvez nunca se chegasse justamente ao tipo que mais freqüentemente parece constituir a transição entre a saúde e a doença. De fato, o tipo que estamos considerando, cujas manifestações patológicas são os atos falhos e sintomáticos, caracteriza-se pelo fato de os sintomas se localizarem nas funções psíquicas menos importantes, ao passo que tudo aquilo que ode reivindicar maior valor psíquico permanece livre de perturbações. Uma distribuição dos sintomas contrária a essa - seu aparecimento nas funções individuais e sociais mais importantes, a ponto de serem capazes de perturbar a alimentação, as relações sexuais, o trabalho profissional e a vida social - é própria dos casos graves de neurose e os caracteriza melhor do que, por exemplo, a multiplicidade e o vigor de suas manifestações patológicas.
Mas o caráter comum a todos os casos, tanto os mais leves quanto os mais graves, e que é igualmente encontrado nos atos falhos e nos atos casuais, é que os fenômenos podem ser rastreados a um material psíquico incompletamente suprimido, o qual, apesar de repelido pela consciência, ainda assim não foi despojado de toda a sua capacidade de se expressar.