RESPOSTA ÀS CRÍTICAS
A MEU ARTIGO SOBRE A
NEUROSE DE ANGÚSTIA
(1895)
NOTA
DO EDITOR INGLÊS
ZUR KRITIK DER
“ANGSTNEUROSE”
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1895 Wien.klin.
Rdsch, 9 (27), 417-19, (28), 435-7, (29), 451-2. (7, 14 e 21 de julho.)
1906 S.K.S.N., 1, 94-111. (1911, 2ª ed., 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª
ed.).
1925 G.S., 1,
343-62.
1952 G.W., 1,
357-76.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
“A Reply
to Criticisms on the Anxiety-Neurosis”
1924 C.P.
1, 107-27. (Trad. de J. Rickman.)
Incluído
(Nº XXXIII) na coleção de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud elaborada
por ele mesmo (1897b). Esta tradução, com o título modificado, baseia-se na de
1924.
Após
a publicação do primeiro artigo de Freud sobre a neurose de angústia em janeiro
de 1895, uma crítica de Loewenfeld a ele foi estampada no exemplar de março do Neurologisches
Zentralblatt. O artigo aqui reproduzido é a réplica de Freud. Leopold
Loewenfeld (1847-1923) era um afamado psiquiatra que clinicava em Munique. Era
conhecido de Freud e continuou a manter com ele relações amigáveis. Incluiu
capítulos de Freud em dois de seus livros, compareceu aos dois primeiros
Congressos Psicanalíticos, em 1908 e 1910, e chegou até a apresentar um estudo
(sobre hipnotismo) neste último. Apesar disso, porém, nunca aceitou
inteiramente as idéias de Freud. Uma referência ao fato de que a presente
controvérsia não afetou as boas relações entre ambos ocorre na Conferência XVI
das Conferências Introdutórias (1916-17).
A
principal importância deste artigo está na discussão minuciosa do que Freud chama
aqui de “equação etiológica - as inter-relações entre as diferentes espécies
de causas envolvidas na geração de uma neurose (ou, a rigor, de qualquer outra
doença). A questão já fora esboçada numa comunicação a Fliess em 8 de fevereiro
de 1893 (Freud, 1950a, Rascunho B) e voltou a ser abordada, mais tarde, no
artigo em francês sobre “A Hereditariedade e a Etiologia das Neuroses” (1896a).
Uma nova alusão à “equação etiológica”, cujos termos devem ser todos
satisfeitos para que uma neurose possa manifestar-se, é feita dez anos depois
do artigo sobre a sexualidade nas neuroses (1906a, Edição Standard
Brasileira, Vol. VII, ver em [1], IMAGO Editora, 1972, e ela reaparece na
comunicação dirigida ao Congresso de Nuremberg (1910d), Edição Standard
Brasileira, Vol. XI, ver em [1], IMAGO Editora, 1970. Daí em diante, porém, ela
se reduz gradualmente à interação entre hereditariedade e experiência - os dois
principais conjuntos de determinantes da neurose - e termina pela introdução do
conceito de “séries complementares” nas Conferências XXII e XXIII das Conferências
Introdutórias (1916-17). Há uma passagem nos Três Ensaios onde a
transição é mostrada claramente. Em algumas frases acrescentadas àquele
trabalho em 1915, Freud referiu-se duas vezes a uma “série etiológica”, “em que
a intensidade decrescente de um fator é contrabalançada pela intensidade
crescente de outro”. Então, em 1920, depois de escrever as Conferências
Introdutórias, ele alterou a expressão nos Três Ensaios para “série
complementar”; ao menos mudou uma de suas ocorrências, embora a segunda
lhe passasse despercebida, de modo que as duas versões do termo são conservadas
a poucas linhas uma da outra (Edição Standard Brasileira, Vol. VII, ver
em [1] e [2], IMAGO Editora, 1972), revelando a linha de tendência da equação
etiológica até a série complementar.
Um
breve extrato da tradução anterior (1924) deste artigo foi incluído em A
General Selection from the Works of Sigmund Freud (1937, 68-9), de Rickman.
RESPOSTA
ÀS CRÍTICAS A MEU ARTIGO SOBRE A NEUROSE DA ANGÚSTIA
No
segundo número do Neurologisches Zentralblatt de Mendel para 1895,
publiquei um breve artigo em que me arrisquei a fazer uma tentativa de isolar
da neurastenia vários estados nervosos e estabelecê-los como uma entidade
independente, sob o nome de “neurose de angústia”. Fui levado a fazê-lo pela
presença de uma conjunção constante de certos traços clínicos com outros
etiológicos - coisa que em geral nos permite fazer uma separação desse tipo.
Descobri - e nisso Hecker (1893) se
antecipara a mim - que todos os sintomas neuróticos em questão podiam ser
classificados em conjunto como constituindo expressões de angústia; e meu
estudo da etiologia das neuroses permitiu-me acrescentar que essas porções do
complexo da “neurose de angústia” exibem precondições etiológicas especiais que
são quase o inverso da etiologia da neurastenia. Minhas observações me haviam
mostrado que, na etiologia das neuroses (pelo menos na dos casos adquiridos
e das formas adquiríveis), os fatores sexuais desempenham um papel
predominante, ao qual se tem atribuído pouquíssimo peso; assim, uma asserção
como “a etiologia das neuroses reside na sexualidade”, com toda sua inevitável
incorreção per excessum et defectum |por excesso ou falta|, mesmo assim
está mais próxima da verdade do que as outras doutrinas dominantes no momento.
Outra afirmação que minhas observações me forçaram a fazer foi no sentido de
que os vários fatores sexuais nocivos não são indiferentemente encontrados na
etiologia de todas as neuroses, mas que existem relações especiais
inconfundíveis entre determinados fatores nocivos e determinadas neuroses.
Desse modo, pude presumir que havia descoberto as causas específicas das
várias neuroses. Procurei então formular sucintamente o caráter especial das
perturbações sexuais que constituem a etiologia da neurose de angústia, e, com
base em minha concepção do processo sexual (ver em [1]), cheguei a esta
proposição: a neurose da angústia é criada por tudo aquilo que mantém a tensão
sexual somática afastada da esfera psíquica, por tudo o que interfere em sua
elaboração psíquica. Ao retrocedermos às circunstâncias concretas em que esse
fator se torna atuante, somos levados a afirmar que a abstinência |sexual|,
quer voluntária quer involuntária, a relação sexual com satisfação incompleta,
o coito interrompido, o desvio do interesse psíquico da esfera da sexualidade e
coisas similares são os fatores etiológicos específicos dos estados que
denominei de “neurose de angústia”.
Quando
publiquei o artigo aqui mencionado, não tinha nenhuma ilusão quanto a seu poder
de persuasão. Em primeiro lugar, estava ciente de que a explicação que eu
fornecera era apenas uma explicação sumária e incompleta e, em alguns pontos,
até mesmo difícil de compreender - talvez apenas o bastante para despertar as
expectativas do leitor. Além disso, oferecera também muitos poucos exemplos e
nenhuma cifra. Tampouco abordara a técnica de coleta de anamneses ou tomara
providências para evitar mal-entendidos. Não levara em conta nada além das
objeções mais óbvias e, no tocante à própria teoria, enfatizara apenas sua
proposição principal, e não suas restrições. Sendo assim, cada leitor estava de
fato livre para formar sua própria opinião quanto à força de sustentação de
toda a hipótese. Eu também podia contar com outra dificuldade em sua aceitação.
Sei muito bem que, ao expor minha “etiologia sexual” das neuroses, não
apresentei nada de novo, e que nunca faltaram correntes não oficiais da
literatura médica que levam esses fatos em conta. Sei ainda que, de fato, a
medicina acadêmica oficial também tem estado ciente deles. Mas tem agido como
se nada soubesse sobre o assunto. Não tem utilizado seus conhecimentos nem
extraído deles nenhuma inferência. Tal comportamento deve ter alguma causa
profundamente enraizada, talvez oriunda de uma espécie de relutância em enfocar
diretamente os assuntos sexuais, ou de uma reação contra as tentativas mais
antigas de explicação, consideradas obsoletas. Em todo caso, tem-se que estar
preparado para enfrentar resistências quando se arrisca empreender uma
tentativa de tornar fidedigno para outras pessoas algo que elas poderiam
descobrir por si mesmas, sem nenhuma dificuldade.
Nessas
circunstâncias, talvez fosse mais conveniente não responder às objeções
críticas até que eu mesmo tivesse expressado meus pontos de vista sobre esse
tema complexo com maiores detalhes, tornando-os assim mais inteligíveis.
Entretanto, não posso resistir aos motivos que me impelem a dar uma resposta
imediata a uma crítica de minha teoria da neurose de angústia recentemente
publicada. Faço-o porque o seu autor, L. Loewenfeld, de Munique, autor de Pathologie
und Therapie der Neurasthenie, é um homem cujo julgamento decerto tem muito
peso junto ao público médico; por causa de uma concepção equivocada que o texto
de Loewenfeld me atribui; e finalmente, porque desejo combater de saída a
impressão de que minha teoria pode ser tão facilmente refutada pelas primeiras
objeções que aparecem.
Com
olho infalível, Loewenfeld (1895) detecta a característica essencial de meu artigo
- a saber, minha asserção de que os sintomas da angústia têm uma etiologia
específica e uniforme, de natureza sexual. Não sendo possível estabelecer isso
como um fato, desaparece também a principal razão para se destacar da
neurastenia uma neurose de angústia independente dela. Resta, é verdade, uma
dificuldade para a qual chamei atenção |ver em [1] e seg.|: o fato de que os
sintomas de angústia têm também ligações rigorosamente inequívocas com a
histeria, de modo que uma decisão nos termos de Loewenfeld prejudicaria a
separação entre neurastenia e histeria. Tal dificuldade, no entanto, é
equacionada por um recurso à hereditariedade como causa comum de todas essas
neuroses (concepção que examinarei depois).
Que
argumentos, pois, Loewenfeld utiliza para fundamentar sua objeção a minha
teoria?
(1)
Enfatizarei, como ponto essencial para a compreensão da neurose de angústia,
que a angústia nela ocorrente não permite uma derivação psicológica - isso
significa que a pronta disposição para a angústia, que constitui o núcleo da
neurose, não pode ser adquirida por um fato isolado ou repetido de pânico
psiquicamente justificado. O pânico, sustentei, poderia resultar em histeria ou
neurose traumática, mas não numa neurose de angústia. Essa negação, como se
percebe facilmente, nada mais é do que a contrapartida de minha afirmação, de
cunho positivo, de que a angústia que aparece em minha neurose corresponde a
uma tensão sexual somática que foi desviada do campo psíquico - uma tensão que,
de outra forma, far-se-ia sentir como libido.
Em
oposição a isso, Loewenfeld insiste no fato de que, em muitos casos, “os
estados de angústia aparecem imediatamente ou logo após um choque psíquico
(apenas pavor ou acidentes acompanhados de pavor), e nessas situações às vezes
há circunstâncias que tornam extremamente improvável a atuação simultânea de
perturbações sexuais da espécie mencionada”. Ele apresenta em poucas palavras,
como exemplo particularmente fecundo, uma observação clínica (servindo por
muitas). Esse exemplo concerne a uma mulher de trinta anos, com uma tara
hereditária, que estivera casada por quatro anos e que, um ano antes, tivera um
primeiro parto muito difícil. Poucas semanas após esse acontecimento, seu
marido fora acometido de um ataque de doença que a assustara e, em sua
agitação, ela ficara correndo de camisola pelo cômodo frio. Desde essa época,
havia adoecido. Primeiro sofrera de estados de angústia e palpitações à noite,
depois vieram os acessos de tremores convulsivos, depois fobias, e assim por
diante. Era o quadro de uma neurose de angústia plenamente desenvolvida.
“Aqui”, conclui Loewenfeld, “os estados de angústia são obviamente de origem
psíquica, desencadeados pelo susto isolado.”
Não
duvido que meu respeitável crítico possa apresentar muitos casos similares. Eu
mesmo posso fornecer uma longa lista de exemplos análogos. Quem não tiver visto
tais casos - e eles são extremamente comuns - de eclosão da neurose de angústia
após um choque psíquico não pode considerar-se qualificado para tomar parte em
discussões sobre a neurose de angústia. A esse respeito, observarei apenas que
nem o susto nem a expectativa angustiada precisam ser sempre encontrados na
etiologia desses casos; qualquer outra emoção serviria igualmente bem.
Rememorando rapidamente alguns casos, lembro-me de um homem de quarenta e cinco
anos que teve seu primeiro ataque de angústia (com colapso cardíaco) ao receber
a notícia da morte do pai, que era um senhor idoso; daí por diante, desenvolveu
uma neurose de angústia típica e completa, acompanhada de agorafobia. Lembro-me
também de um rapaz acometido da mesma neurose em virtude de sua agitação diante
dos desentendimentos entre sua jovem esposa e sua mãe, e que tinha um novo
surto de agorafobia depois de cada discussão doméstica. Havia ainda um estudante,
um tanto preguiçoso, que teve seus primeiros ataques de angústia durante um
período em que, instigado pelo desagrado paterno, estava arduamente empenhado
em se preparar para um exame. Lembro-me também de uma mulher sem filhos que
adoeceu em função da angústia ligada à saúde de uma sobrinha pequena. E outros
casos similares. Quanto aos fatos em si usados por Loewenfeld contra mim não
paira a menor dúvida.
Contudo,
há uma dúvida quanto a sua interpretação. Será que devemos aceitar
incontinenti a conclusão post hoc ergo propter hoc e abster-nos de
qualquer exame crítico do material bruto? Há exemplos suficientes em que a
causa desencadeante final não preserva, ante uma análise crítica, sua posição
de causa efficiens. Basta pensar, por exemplo, na relação entre o trauma
e a gota. O papel de um trauma na estimulação de um ataque de gota no membro
afetado provavelmente não difere do papel que ele desempenha na etiologia da
tabes e da paralisia geral dos insanos; só que, no caso da gota, fica claro,
até para a mais medíocre das capacidades, que é absurdo supor que o trauma
tenha “causado” a gota, em vez de tê-la meramente provocado. Há que refletir
com cuidado ao nos depararmos com fatores etiológicos dessa natureza - fatores
“banais”, como gostaria de chamá-los - na etiologia das mais variadas formas de
doença. A emoção, o susto, é também um fator banal desse tipo. O pânico pode
provocar coréia, apoplexia, paralisia agitante e muitas outras coisas, assim
como pode provocar a neurose de angústia. Não devo, é claro, prosseguir na
argumentação de que, graças a sua ubiqüidade, as causas banais não satisfazem a
nossos requisitos, e de que deve haver também causas específicas; fazê-lo seria
incorrer numa petição de princípio em favor da proposição que quero provar. Mas
é justificável que eu extraia a seguinte conclusão: se for possível mostrar que
existe uma mesma causa específica na etiologia de todos ou da grande maioria
dos casos de neurose de angústia, nossa visão do assunto não precisará ficar
abalada pelo fato de a doença só eclodir depois que um ou outro fator banal,
tal como a emoção, torna-se atuante.
Foi o
que se deu com meus casos de neurose de angústia. Tomemos o homem que |ver em
[1]|, após receber a notícia da morte do pai, adoeceu tão inexplicavelmente.
(Acrescento “inexplicavelmente” porque a morte não fora imprevista, nem
ocorrera em circunstâncias incomuns ou chocantes.) Esse homem praticara por
onze anos o coito interrompido com sua mulher, a quem quase sempre tentara
satisfazer. Da mesma forma, o rapaz que não suportava as brigas entre a mulher
e a mãe havia praticado a retirada do pênis com sua jovem esposa desde o início
do casamento, para se livrar do encargo de filhos. Temos então o estudante que
contraíra uma neurose de angústia, em vez da esperável neurastenia cerebral, em
conseqüência da sobrecarga de trabalho: ele vinha mantendo há três anos uma
relação com uma jovem que não lhe era permitido engravidar. Havia ainda a
mulher sem filhos que fora acometida de neurose de angústia por causa da doença
de uma sobrinha: era casada com um homem impotente e nunca fora sexualmente
satisfeita. E assim por diante. Nem todos esses casos são igualmente claros ou
igualmente bons como comprovação de minha tese; contudo, quando os junto ao
imenso número de casos em que a etiologia só mostra o fator específico, eles se
enquadram sem contradição na teoria que formulei e permitem estender nossa
compreensão etiológica para além das fronteiras vigentes até aqui.
Se
alguém quiser provar-me que, nesses comentários, negligenciei indevidamente a
importância dos fatores etiológicos banais, deverá confrontar-me com
observações em que meu fator específico esteja ausente - isto é, com casos em
que a neurose de angústia tenha emergido após um choque psíquico, embora (de
modo geral) o sujeito tenha levado uma vita sexualis normal. Vejamos
agora se o caso de Loewenfeld satisfaz a essa condição. É óbvio que meu
respeitável oponente não percebeu com clareza a necessidade disso, do contrário
não nos teria deixado tão completamente no escuro quanto à vita sexualis
de sua paciente. Deixarei de lado o fato de que esse caso da mulher de trinta
anos é obviamente complicado por uma histeria sobre cuja origem psíquica não
tenho a mínima dúvida; e naturalmente admito, sem levantar qualquer objeção, a
presença de uma neurose de angústia ao lado dessa histeria. Mas antes de usar
um caso para comprovar ou refutar a teoria da etiologia sexual das neuroses, é
preciso, primeiramente, que eu tenha estudado o comportamento sexual do
paciente mais de perto do que fez Loewenfeld. Não me contentaria em concluir
que, por ter a mulher sofrido seu choque psíquico numa fase imediatamente
posterior a um parto, o coito interrompido não poderia ter desempenhado um
papel nisso no ano anterior, e que, portanto, as perturbações sexuais estariam
excluídas. Sei de casos de mulheres que engravidavam todos os anos e que,
apesar disso, sofriam de neurose de angústia, pois - por incrível que pareça -
todas as relações sexuais eram suspensas depois do primeiro coito fertilizante,
de modo que, a despeito de terem muitos filhos, elas haviam sofrido de privação
sexual durante todos esses anos. Nenhum médico ignora o fato de que as mulheres
concebem filhos de homens cuja potência é muito reduzida e que não podem
proporcionar-lhes satisfação. Por fim (e essa é uma consideração que deve ser
levada em conta precisamente pelos defensores de uma etiologia hereditária), há
muitas mulheres afligidas por neurose de angústia congênita - isto é, que
herdam ou desenvolvem, sem nenhum distúrbio externamente demonstrável, uma vita
sexualis idêntica à usualmente adquirida por meio do coito interrompido e
de perturbações similares. Em muitas dessas mulheres podemos descobrir uma
doença histérica na juventude, desde a qual sua vita sexualis ficou
perturbada e se estabeleceu um desvio da tensão sexual para longe da esfera
psíquica. As mulheres com esse tipo de sexualidade são incapazes de obter
satisfação real, mesmo no coito normal, e desenvolvem uma neurose de angústia,
seja espontaneamente, seja depois de sobrevirem outros fatores atuantes. Quais
desses elementos estavam presentes no caso de Loewenfeld? Não sei. Mas repito:
esse caso só constituirá uma prova contra mim se a mulher que reagiu a um único
susto com uma neurose de angústia tiver antes desfrutado de uma vita
sexualis normal.
É
impossível empreender uma investigação etiológica baseada em anamneses se
aceitarmos essas anamneses tais como os pacientes as apresentam, ou se nos
contentarmos com o que eles estão dispostos a informar voluntariamente. Se os
especialistas em sífilis ainda confiassem no depoimento de seus pacientes para
ligar uma infecção inicial da genitália às relações sexuais, poderiam atribuir
um respeitável número de cancros em pessoas declaradamente virgens a simples resfriados;
e os ginecologistas teriam pouca dificuldade em confirmar o milagre da
partenogênese entre suas clientes solteiras. Espero que um dia prevaleça a
idéia de que também os neuropatologistas, ao colherem as anamneses das grandes
neuroses, podem estar procedendo com base em preconceitos etiológicos de
natureza semelhante.
(2)
Loewenfeld diz ainda que tem visto repetidamente o aparecimento e
desaparecimento de estados de angústia em casos em que decerto não ocorreu
qualquer mudança na vida sexual do sujeito, mas onde havia outros fatores em
jogo.
Eu
próprio fiz exatamente a mesma observação, sem contudo deixar-me levar por ela.
Também eu fiz desaparecerem ataques de angústia por meio de tratamento
psíquico, melhoria da saúde geral do paciente, e assim por diante; mas,
naturalmente, não concluí daí que o que causara o ataque de angústia fora uma
falta de tratamento. Não que me agrade imputar a Loewenfeld uma conclusão dessa
espécie. Meu comentário jogoso tenciona apenas mostrar que o estado de coisas
pode facilmente complicar-se o bastante para invalidar por completo a objeção
de Loewenfeld. Não acho difícil conciliar o fato aqui apresentado com minha
afirmativa de que a neurose de angústia tem uma etiologia específica. Há que
admitir prontamente que existem fatores etiológicos que, para surtirem efeito,
precisam atuar com certa intensidade (ou quantidade) e durante um certo período
de tempo - fatores que, em outras palavras, são somados. Os efeitos do
álcool são um exemplo-padrão desse tipo de causação por soma. Deduz-se daí que
deve haver um período em que a etiologia específica está em ação, mas no qual
seu efeito ainda não é manifesto. Durante essa fase, o sujeito ainda não está
doente, mas está predisposto a uma enfermidade particular - em nosso caso, à neurose
de angústia-, e então o acréscimo de uma perturbação banal poderá deflagrar a
neurose, tal como o faria uma nova intensificação da ação do fator perturbador
específico. A situação também pode expressar-se da seguinte maneira: não basta
a perturbação específica estar presente; ela também precisa atingir um patamar
definido; e, no processo de atingir esse limite, uma quantidade da perturbação
específica pode ser substituída por uma dose de perturbações banais. Se estas
últimas voltarem a ser eliminadas, ficaremos abaixo de um certo limiar e os
sintomas clínicos tornarão a desaparecer. Toda a terapia das neuroses se apóia
no fato de que a carga total sobre o sistema nervoso, à qual este sucumbiu,
pode ser levada a um nível inferior a esse limiar, influenciando-se de inúmeras
maneiras a mistura etiológica. Com base nessas circunstâncias, não podemos
tirar nenhuma conclusão quanto à existência ou inexistência de uma etiologia
específica. Essas considerações são certamente seguras e incontestáveis. Mas
quem quer que não as julgue suficientes poderá ser influenciado pelo seguinte
argumento. De acordo com as concepções de Loewenfeld e de inúmeros outros, a
etiologia dos estados de angústia deve ser buscada na hereditariedade. Ora, a
hereditariedade é certamente imune a alterações; logo, se a neurose de angústia
é curável sob tratamento, temos que concluir, segundo a argumentação de
Loewenfeld, que sua etiologia não pode residir na hereditariedade.
Quanto
ao mais, talvez me fosse poupado ter que me defender dessas duas objeções de
Loewenfeld, se meu respeitável oponente tivesse prestado maior atenção a meu
artigo. Nele, ambas as objeções foram previstas e respondidas (ver em [1] e
segs.). Aqui pude apenas repetir o que disse lá, e cheguei até a reanalisar
deliberadamente os mesmos casos outra vez. Além disso, as fórmulas etiológicas
que acabo de enfatizar estão contidas no texto de meu artigo |ver em [1]|. Vou
repeti-las uma vez mais. Sustento que existe um fator etiológico específico
da neurose de angústia que pode ser substituído em sua atuação por uma
perturbação banal, em sentido QUANTITATIVO, mas não em sentido QUALITATIVO;
sustento ainda que esse fator específico determina primordialmente a FORMA
da neurose; a ocorrência ou não da doença neurótica depende da carga total
sobre o sistema nervoso (proporcionalmente a sua capacidade de suportar tal
carga). Em geral, as neuroses são sobredeterminadas, isto é, vários fatores
operaram conjuntamente em sua etiologia.
(3)
Não há por que me preocupar muito com a refutação dos comentários subseqüentes
de Loewenfeld, já que, por um lado, eles afetam muito pouco a minha teoria e,
por outro, levantam dificuldades cuja existência reconheço. Loewenfeld escreve:
“A teoria freudiana é totalmente insuficiente para explicar o aparecimento ou
não-aparecimento dos ataques de angústia em casos isolados. Se os estados de
angústia - isto é, os sintomas clínicos da neurose de angústia - ocorressem
somente por um armazenamento subcortical da excitação sexual somática e por um
emprego anormal desta, todas as pessoas afetadas por estados de angústia
deveriam, desde que não ocorresse nenhuma mudança em sua vida sexual, ter de
tempos em tempos um ataque de angústia, assim como o epiléptico tem seu ataque
de grand e petit mal. Mas isso, como mostras a experiência cotidiana, de
modo algum acontece. Os ataques de angústia ocorrem, na grande maioria dos
casos, apenas em ocasiões definidas; quando o paciente evita essas ocasiões ou
consegue paralisar sua influência por meio de alguma precaução, fica isento dos
ataques de angústia, quer se entregue regularmente ao coito interrompido ou à
abstinência, quer goze de uma vida sexual normal.”
Há
muito a dizer sobre isso. Em primeiro lugar, Loewenfeld impõe à minha teoria
uma inferência que ela não é obrigada a aceitar. Supor que na armazenagem de
excitação sexual somática ocorre a mesma coisa que na acumulação de estímulo
que leva a uma convulsão epiléptica é formular uma hipótese excessivamente
minuciosa, e não dei nenhum motivo para isso; nem essa hipótese é a única que
se apresenta. Para descartar a alegação de Loewenfeld, basta-me apenas presumir
que o sistema nervoso tem o poder de manejar um certo quantum de
excitação sexual somática mesmo quando esta última é desviada de seu objetivo,
e que os distúrbios só ocorrem quando esse quantum de excitação recebe
um súbito acréscimo. Não me arrisquei a estender minha teoria nessa direção,
principalmente por não esperar encontrar pontos de apoio sólidos ao longo desse
caminho. Gostaria apenas de indicar que não devemos pensar na produção
da tensão sexual como algo independente de sua distribuição: que, na
vida sexual normal, essa produção, quando estimulada por um objeto sexual,
assume uma forma substancialmente diversa da que toma no estado de inércia
psíquica (ver ver em [1]) e assim por diante.
Convém
admitir que, com toda a probabilidade, a situação aqui difere da que prevalece
na tendência às convulsões epilépticas, e que ainda não pode ser
sistematicamente deduzida da teoria do acúmulo da excitação sexual somática.
Contrariando
a outra afirmação de Loewenfeld - a de que os estados de angústia só aparecem
em certas ocasiões e deixam de aparecer quando essas condições são evitadas,
independentemente de qual seja a vita sexualis do sujeito - convém
assinalar que, nesse ponto, é claro que ele só tem em mente a angústia das fobias,
como de fato fica demonstrado pelos exemplos ligados à passagem que citei. Ele
não diz absolutamente nada sobre os ataques espontâneos de angústia que tomam a
forma de vertigens, palpitações, dispnéia, tremores, transpiração etc. Minha
teoria, ao contrário, de modo algum parece incapaz de explicar a emergência ou
não-emergência desses ataques de angústia, pois, num grande número desses casos
de neurose de angústia, parece efetivamente haver uma periodicidade na
emergência dos estados de angústia, semelhante à que se observa na epilepsia,
exceto que, nesta última, a periodicidade é mais transparente. Mediante um
exame detalhado, descobrimos com grande regularidade a presença de um processo sexual
excitatório (isto é, um processo capaz de gerar tensão sexual somática), que,
após o decorrer de um intervalo de tempo definido e quase sempre constante, é
seguido pelo ataque de angústia. Esse papel |excitatório| é desempenhado, nas
mulheres abstinentes, pela excitação menstrual; é ainda desempenhado pelas
poluções noturnas, que também se repetem periodicamente. Acima de tudo, esse
papel é desempenhado pela própria relação sexual (prejudicial, quando
incompleta), que transfere sua própria periodicidade aos efeitos que acarreta,
ou seja, aos ataques de angústia. Quando ocorrem ataques de angústia que rompem
a periodicidade usual, costuma ser possível atribuí-los a uma causa incidental
de ocorrência rara e irregular - a uma experiência sexual isolada, a alguma
coisa lida ou vista, e outras situações semelhantes. O intervalo que mencionei
oscila de poucas horas a dois dias; é idêntico ao que transcorre em outras
pessoas, entre a ocorrência das mesmas causas e o surgimento da conhecida
enxaqueca sexual, que tem ligações bem estabelecidas com a síndrome da neurose
de angústia.
Há,
além disso, inúmeros casos em que um estado isolado de angústia é provocado
pela adição extra de um fator banal, por uma excitação de um ou outro tipo. O
mesmo se aplica, portanto, à etiologia do ataque de angústia isolado e à
causação de toda a neurose. Não é muito estranho que a angústia das fobias
obedeça a condições diferentes; elas têm uma estrutura mais complicada que os
ataques de angústia puramente somáticos. Nas fobias, a angústia está ligada a
um conteúdo representativo ou perceptivo definido, e a estimulação desse
conteúdo psíquico é a principal condição para a emergência da angústia. Quando
isso ocorre, a angústia é “gerada”, assim como, por exemplo, a tensão sexual é gerada
pela excitação de idéias libidinais. Todavia, a conexão desse processo com a
teoria da neurose de angústia ainda não foi elucidada.
Não
vejo razão por que eu deva tentar esconder as lacunas e pontos fracos de minha
teoria. O aspecto principal do problema das fobias parece-me ser que, quando
a vita sexualis é normal - quando a condição específica, o distúrbio da
vida sexual no sentido de uma deflexão do somático em relação ao psíquico, não
é preenchida -, as fobias não aparecem em absoluto. Quaisquer que sejam
os demais pontos obscuros quanto ao mecanismo das fobias, minha teoria só
poderá ser refutada quando me tiverem mostrado fobias em que a vida sexual seja
normal, ou mesmo em que nela haja um distúrbio de tipo inespecífico.
(4)
Passo agora a um comentário de meu estimado crítico que não posso deixar sem
resposta. Em meu artigo sobre a neurose de angústia eu havia escrito (ver em
[1]) o seguinte:
“Em
alguns casos de angústia não se descobre absolutamente nenhuma etiologia. Vale
notar que, em tais casos, raramente há dificuldade em se estabelecerem provas
de uma grave tara hereditária.
“Mas
quando há fundamento para se considerar a neurose como adquirida, uma
cuidadosa investigação orientada nesse sentido revela que um conjunto de
perturbações e influências da vida sexual … |são os fatores etiológicos
atuantes|.” Loewenfeld cita essa passagem e acrescenta o seguinte comentário:
“Parece depreender-se disso que Freud sempre encara uma neurose como
“adquirida” quando se encontram causas incidentais para ela.”
Se
tal sentido é naturalmente depreendido de meu texto, então este confere uma
expressão muito distorcida a minhas idéias. Permitam-me assinalar que, nas
páginas precedentes, mostrei-me muito mais rigoroso do que Loewenfeld em minha
avaliação das causas incidentais. Se eu próprio tivesse que elucidar o sentido
da passagem que escrevi, acrescentaria, depois da oração subordinada “Mas
quando há fundamento para se considerar a neurose como adquirida…,” as
palavras “por não se evidenciarem as provas (mencionadas na frase anterior)
de uma disposição hereditária,…” O que isso significa é que sustento que um
caso é adquirido quando não se descobre nele nenhuma hereditariedade. Ao agir
assim, comporto-me como todas as outras pessoas, talvez com a pequena diferença
de que os outros podem declarar que o caso é determinado pela hereditariedade
mesmo quando não há hereditariedade, desconsiderando toda a categoria das
neuroses adquiridas. Mas essa diferença depõe a meu favor. Admito, contudo, que
eu próprio sou responsável por esse mal-entendido, em virtude da maneira como
me expressei na primeira frase: “não se descobre absolutamente nenhuma
etiologia.” Decerto serei criticado também por outras fontes e dirão que me
criei dificuldades desnecessárias ao procurar as causas específicas das
neuroses. Alguns dirão que a verdadeira etiologia da neurose de angústia, assim
como das neuroses em geral, já é conhecida: é a hereditariedade. E duas causas
reais não podem coexistir. Não neguei, dirão eles, o papel etiológico da hereditariedade;
mas, nesse caso, todas as outras etiologias são causas meramente incidentais e
equivalentes em valor ou falta de valor.
Não
partilho dessa visão do papel da hereditariedade; e, considerando que em meu
breve artigo sobre a neurose de angústia foi justamente a esse tema que
dediquei menos atenção, tentarei agora compensar parte do que nele omiti e
eliminar a impressão de que, ao escrever meu artigo, não atentei para todos os
problemas relevantes.
Creio
que poderemos chegar a um quadro da situação etiológica, provavelmente muito
complicada, que prevalece na patologia das neuroses, se postularmos os
seguintes conceitos:
(a)
Precondição, (b) Causa Específica, (c) Causas
Concorrentes, e, como um termo não equivalente aos anteriores, (d) Causa
Precipitante ou Desencadeante.
Para
fazer frente a qualquer possibilidade, vamos presumir que os fatores
etiológicos que nos interessam são passíveis de mudança quantitativa - isto é,
de aumento ou redução.
Aceitando
a idéia de uma equação etiológica de vários termos que precisem ser satisfeitos
para que o efeito ocorra, podemos caracterizar como causa precipitante
ou desencadeante aquela que aparece por último na equação, de modo que precede
imediatamente a emergência do efeito. É apenas esse fator cronológico que
constitui a natureza essencial da causa precipitante. Qualquer das demais
causas também pode, em determinado caso, desempenhar o papel de causa
precipitante; e |o fator que desempenha| esse papel pode mudar dentro da mesma
combinação etiológica.
Os
fatores que se podem descrever como precondições são aqueles em cuja
ausência o efeito nunca se manifestaria, mas que são incapazes de produzi-lo
por si mesmos, não importando em que quantidade estejam presentes, pois falta
ainda a causa específica.
A causa
específica é aquela que nunca está ausente em todos os casos em que o
efeito se dá e que, além disso, quando presente na quantidade ou intensidade
requerida, é suficiente para produzir o efeito, desde que as precondições
também sejam cumpridas.
Como causas
concorrentes podem considerar os fatores que não estão necessariamente
presentes todas as vezes, nem podem, qualquer que seja sua quantidade, produzir
o efeito por si mesmos, mas que operam em conjunto com as precondições e a
causa específica para satisfazer a equação etiológica.
O
caráter distintivo das causas concorrentes ou auxiliares parece claro; no
entanto, como distinguir entre precondição e causa específica, já que ambas são
indispensáveis mas nenhuma delas, isoladamente, basta para atuar como causa?
As
seguintes considerações parecem permitir-nos chegar a uma decisão. Entre as “causas
necessárias” encontramos diversas que reaparecem nas equações etiológicas
referentes a muitos outros efeitos, e que portanto não apresentam nenhuma
relação especial com algum efeito particular. Uma dessas causas, entretanto,
destaca-se do resto pelo fato de não ser encontrada em qualquer outra equação
etiológica, ou de sê-lo em muito poucas; tem-se assim o direito de chamá-la de
causa específica do efeito em questão. Além disso, as preconizações e
causas específicas distinguem-se particularmente entre si nos casos em que as
precondições têm a característica de serem estados duradouros e pouco
suscetíveis à alteração, ao passo que a causa específica é um fator de recente
entrada em ação.
Tentarei
exemplificar esse quadro esquemático etiológico completo:
Efeito: Tuberculose pulmonar.
Precondição: Predisposição da constituição orgânica,
baseada, em sua maior parte, na hereditariedade.
Causa
específica: Bacilo de Koch.
Causas
auxiliares: Qualquer coisa que
diminua a resistência - tanto as emoções como as supurações ou resfriados.
O
quadro esquemático da etiologia da neurose de angústia me parece seguir o mesmo
padrão:
Precondição: Hereditariedade.
Causa
específica: Um fator sexual,
no sentido de uma deflexão da tensão sexual para fora do campo psíquico.
Causas
auxiliares: Quaisquer
perturbações banais - a emoção, o susto, e também o esgotamento físico devido a
doenças ou à estafa.
Examinando
detalhadamente essa fórmula da neurose de angústia, posso acrescentar os
comentários que se seguem. Se uma constituição pessoal especial (não
necessariamente produzida pela hereditariedade) é absolutamente necessária para
a produção da neurose de angústia, ou se qualquer pessoa normal pode ter uma
neurose de angústia devido a algum aumento quantitativo do fator específico, é
algo que não posso decidir com certeza; mas inclino-me fortemente para a
segunda possibilidade. A predisposição hereditária é a mais importante
precondição da neurose de angústia; não é, porém, uma precondição indispensável,
já que está ausente num grupo de casos fronteiriços. Pode-se demonstrar com
certeza a presença do fator sexual na maioria dos casos. Numa série de casos
(congênitos), esse fator não se separa da precondição da hereditariedade, mas é
cumprido com a ajuda desta. Isto é, em alguns pacientes, essa peculiaridade da vita
sexualis - insuficiência psíquica para manejar a excitação sexual somática
- é inata sob a forma de um estigma, ao passo que, comumente, é através dessa
peculiaridade que as pessoas adquirem a neurose. Em outra classe de casos
fronteiriços, a causa específica está contida numa causa concorrente. Trata-se
do caso em que a insuficiência psíquica que acabo de mencionar é acarretada
pelo esgotamento ou causas semelhantes. Todos esses casos agrupam-se em classes
que se fundem umas nas outras e não formam categorias isoladas. Em todos eles,
além disso, verificamos que a tensão sexual sofre as mesmas vicissitudes; e, na
maioria, mantém-se a distinção entre precondição, causa específica e causa
auxiliar, em conformidade com a solução da equação etiológica dada acima.
Quando
consulto minha experiência sobre esse ponto, não consigo ver nenhuma relação
antitética, no que concerne à neurose de angústia, entre a predisposição
hereditária e o fator sexual específico. Pelo contrário, os dois fatores
etiológicos se apóiam e se complementam. O fator sexual só costuma ser atuante
nas pessoas que têm também uma tara hereditária inata; a hereditariedade, por
si só, usualmente não é capaz de produzir uma neurose de angústia, tendo que
aguardar a ocorrência de uma quantidade suficiente da perturbação sexual
específica. A descoberta do fator hereditário, por conseguinte, não nos isenta
da busca de um fator específico. De sua descoberta, aliás, depende também todo
o nosso interesse terapêutico, pois o que podemos fazer terapeuticamente a
respeito da hereditariedade enquanto elemento etiológico? Ela sempre esteve no
paciente e lá permanecerá até o fim de sua vida. Tomada isoladamente, não pode
ajudar-nos a compreender nem o desencadeamento episódico de uma neurose nem a
cessação dessa neurose em conseqüência de tratamento. Ela nada mais é do que
uma precondição da neurose - uma precondição de indizível importância, é
verdade, mas que tem sido superestimada em detrimento da terapia e da
compreensão teórica. Para nos convencermos de que a situação é diferente, basta
pensarmos nos casos de enfermidades nervosas familiares (tais como a coréia
crônica, a doença de Thomsen e outras), nos quais a hereditariedade reúne em si
todas as precondições etiológicas.
Concluindo,
gostaria de repetir os enunciados com que estou acostumado a expressar as
relações recíprocas entre os vários fatores etiológicos, como primeira
aproximação da verdade:
(1)
Se ocorrerá ou não uma doença neurótica, depende de um fator
quantitativo - da carga total sobre o sistema nervoso, comparada à capacidade
da resistência deste. Tudo o que consegue manter esse fator quantitativo abaixo
de certo valor limítrofe ou restituí-lo a esse nível tem um efeito terapêutico,
já que, assim fazendo, mantém a equação etiológica insatisfeita.
O que
se deve entender por “carga total” e por “capacidade de resistência” do sistema
nervoso poderia sem dúvida ser mais claramente explicado com base em certas
hipóteses referentes à função dos nervos.
(2) As
dimensões que a neurose atingirá dependem, em primeira instância, da
extensão da tara hereditária. A hereditariedade age como um multiplicador
introduzido num círculo elétrico, que aumenta muitas vezes o desvio da agulha.
(3)
Mas a forma que a neurose assumirá- a direção a ser tomada pelo desvio -
é determinada exclusivamente pelo fator etiológico específico procedente da
vida sexual.
Embora
esteja cônscio das muitas dificuldades ainda não resolvidas nessa questão,
espero que, no conjunto, minha hipótese sobre a neurose de angústia venha a se
mostrar mais fecunda para a compreensão das neuroses do que a tentativa de
Loewenfeld de dar conta dos mesmos fatos postulando “uma combinação de sintomas
neurastênicos e histéricos sob a forma de um ataque”.
VIENA,
começo de maio de 1895.
A HEREDITARIEDADE E
A ETIOLOGIA DAS NEUROSES (1896)
NOTA
DO EDITOR INGLÊS
L’HÉRÉDITÉ ET
L’ÉTIOLOGIE DES NÉVROSES
(a) EDIÇÕES EM
FRANCÊS:
1896 Rev. neurol.,
4 (6), 161-9. (30 de março).
1906 S.K.S.N.,
1, 135-48. (1911, 2ª
ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
1925 G.S.,
1, 388-403.
1952 G.W., 1,
407-422.
(b)TRADUÇÃO INGLESA:
“Heredity
and the Aetiology of the Neuroses”
1924 C.P.,,
1, 138-154. (Trad. de M. Meyer.)
Incluído
(Nº XXXVII) na coleção de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud elaborada
por ele mesmo (1897b). O original está em francês. Esta é uma nova tradução de
James Strachey.
Este
artigo e o seguinte, o segundo sobre as neuropsicoses de defesa (1896b), foram
remetidos a seus respectivos editores no mesmo dia - 5 de fevereiro de 1896 -,
como relatou Freud em carta a Fliess um dia depois (Freud, 1950a, Carta 40). O
artigo em francês foi publicado, no fim de março, cerca de seis semanas antes
do outro e, conseqüentemente, tem prioridade sobre ele no que tange à primeira
ocorrência publicada da palavra “psicanálise” (ver em [1]). O artigo é um
resumo das concepções contemporâneas de Freud sobre a etiologia dos quatro
tipos de neuroses que ele então considerava os principais: as duas
“psiconeuroses”, histeria e neurose obsessiva, e as duas “neuroses atuais”
(como seriam posteriormente denominadas, ver nota de rodapé 2, ver em [1],
adiante), neurastenia e neurose de angústia. A primeira parte do artigo é, em grande
parte, uma repetição da discussão sobre a etiologia apresentada no segundo
artigo sobre neurose de angústia (1895f), enquanto a última parte cobre, muito
sucintamente, o mesmo terreno que seu contemporâneo, o segundo artigo sobre as
neuropsicoses de defesa (1896b). O leitor, portanto, poderá reportar-se a estes
e aos comentários editoriais sobre eles para maiores informações.
A
HEREDITARIEDADE E A ETIOLOGIA DAS NEUROSES
Dirijo-me
em particular aos discípulos de J.-M. Charcot, para formular algumas objeções à
teoria etiológica das neuroses que nos foi legada por nosso mestre.
O
papel atribuído naquela teoria à hereditariedade nervosa é bem conhecido: é a
única causa verdadeira e indispensável das afecções neuróticas, podendo as
outras influências etiológicas aspirar apenas ao nome de agents provocateurs.
Essa era a opinião sustentada pelo próprio grande homem e por seus discípulos,
MM. Guinon, Gilles de la Tourette, Janet e outros, a respeito da neurose maior,
a histeria; e creio que a mesma visão seja sustenta da na França e na maioria
dos outros lugares a propósito das demais neuroses, embora, no que concerne a
esses estados análogos à histeria, ainda não tenha sido promulgada de maneira
tão solene e decidida.
Por
muito tempo tive dúvidas sobre esse assunto, mas tive que esperar pela
descoberta de fatos corroborativos em minha experiência cotidiana como médico.
Minhas objeções são agora de ordem dúplice: argumentos fatuais e argumentos
derivados da especulação. Começarei pelos primeiros, dispondo-os de acordo com
a importância que lhes atribuo.
I
(a)
Certas afecções que, muitas vezes, estão bem distantes do domínio da
neuropatologia, e que não dependem necessariamente de uma doença do sistema
nervoso, têm sido ocasionalmente consideradas como nervosas e como
demonstrativas da presença de uma tendência neuropática hereditária. É o que
tem ocorrido com as nevralgias faciais autênticas e com muitas dores de cabeça
que se acreditava serem nervosas, embora na verdade proviessem de alterações
patológicas pós-infecciosas e de supuração nas cavidades faringonasais. Estou
convencido de que os pacientes seriam beneficiados se encaminhássemos com mais
freqüência o tratamento dessas afecções aos cirurgiões rinológicos.
(b)
Todas as afecções nervosas encontradas na família do paciente, sem consideração
para com sua freqüência ou gravidade, têm sido aceitas como fundamento para
atribuir-lhe uma tara nervosa hereditária. Não implicará esse modo de encarar
as coisas o estabelecimento de uma nítida linha divisória entre famílias livres
de qualquer predisposição nervosa e famílias sujeitas a ela em grau ilimitado?
E será que os fatos não depõem a favor da concepção contrária de que há
transições e graus na predisposição nervosa, e de que nenhuma família escapa a
ela por completo?
(c)
Nossa opinião sobre o papel etiológico da hereditariedade nas doenças nervosas
deve decididamente basear-se num exame estatístico imparcial, e não numa petitio
principii. Até que se faça tal exame, devemos acreditar que a existência de
distúrbios nervosos adquiridos é tão viável quanto a de distúrbios
hereditários. Contudo, se houver distúrbios nervosos adquiridos por pessoas sem
nenhuma predisposição, não mais se poderá negar que as afecções nervosas
encontradas em parentes de nosso paciente talvez tenham surgido, em parte,
dessa maneira. Não será mais possível, então, citá-los como prova conclusiva da
predisposição hereditária imputada a nosso paciente em razão de sua história
familiar, pois é raro conseguir-se fazer com êxito um diagnóstico retrospectivo
das doenças dos ancestrais ou dos familiares ausentes.
(d)
Os adeptos de M. Fournier e M. Erb quanto ao papel desempenhado pela sífilis na
etiologia da tabes dorsal e da paralisia progressiva aprenderam que é preciso
reconhecer poderosas influências etiológicas cuja colaboração é indispensável
para a patogênese de certas doenças, que não se produziriam apenas pela
hereditariedade. Contudo, M. Charcot se manteve, até o fim (sei disso por uma
carta particular que recebi dele), estritamente contrário à teoria de Fournier,
que no entanto vem ganhando terreno dia a dia.
(e)
Não há dúvida de que certos distúrbios nervosos podem desenvolver-se em pessoas
perfeitamente sadias cujas famílias estão acima de qualquer recriminação. Esse
é um fato cotidianamente constatado nos casos da neurastenia de Beard; se a
neurastenia estivesse restrita às pessoas predispostas, nunca teria atingido a
importância e a extensão com que estamos familiarizados.
(f)
Na patologia nervosa existe a hereditariedade similar e o que se conhece
como hereditariedade dissimilar. Não é possível fazer nenhuma objeção à
primeira; é realmente notável que, nos distúrbios que dependem da
hereditariedade similar (doença de Thomsen, doença de Friedrich, as miopatias,
a coréia de Huntington etc.), nunca deparemos com vestígios de qualquer outra
influência etiológica acessória. Já a hereditariedade dissimilar, que é muito
mais importante do que a outra, deixa lacunas que teriam de ser preenchidas
antes que se pudesse chegar a uma solução satisfatória dos problemas
etiológicos. A hereditariedade dissimilar consiste no fato de membros de uma
mesma família serem afetados pelos mais diversos distúrbios nervosos,
funcionais e orgânicos, sem que se possa descobrir qualquer lei determinante da
substituição de uma doença por outra ou da ordem de sua sucessão entre as
gerações. Ao lado dos membros doentes dessas famílias há outros que permanecem
saudáveis; e a teoria da hereditariedade dissimilar não nos diz por que uma
pessoa tolera a mesma carga hereditária sem sucumbir a ela, ou por que outra
pessoa, doente, opta por uma afecção nervosa específica dentre todas as doenças
que compõem a grande família das doenças nervosas, em vez de escolher uma outra
- a histeria em lugar da epilepsia ou da insanidade, e assim por diante. Desde
que, tanto na patogênese neurótica quanto em qualquer outra área, não se pode
falar em acaso, deve-se admitir que não é a hereditariedade que rege a escolha
do distúrbio nervoso específico a ser desenvolvido no membro predisposto de uma
família, mas que há motivos para se suspeitar da existência de outras
influências etiológicas de natureza menos incompreensível, que mereceriam então
ser chamadas de etiologia específica dessa ou daquela afecção nervosa.
Sem a existência desse fator etiológico especial, a hereditariedade nada
poderia ter feito; ter-se-ia prestado à produção de algum outro distúrbio
nervoso, caso a etiologia específica em questão tivesse sido substituída por
alguma outra influência.
II
Tem
havido pouquíssimas pesquisas sobre essas causas específicas e determinantes
dos distúrbios nervosos, pois a atenção dos médicos permaneceu deslumbrada pela
grandiosa perspectiva da precondição etiológica da hereditariedade. Tais causas
merecem, no entanto, ser objeto de estudo assíduo. Embora seu poder patogênico,
em geral, seja apenas secundário ao da hereditariedade, há um grande interesse
prático ligado ao conhecimento dessa etiologia específica; ela permitirá que
nossos esforços terapêuticos encontrem uma via de acesso, enquanto a
predisposição hereditária, previamente fixada para o paciente desde seu
nascimento, leva nossos esforços a um impasse com seu poder inacessível.
Há
anos me venho empenhando em pesquisas sobre a etiologia das quatro grandes
neuroses (estados nervosos funcionais análogos à histeria), e é o resultado
desses estudos que me proponho descrever-lhes nas páginas seguintes. Para
evitar possíveis mal-entendidos, começarei por fazer dois comentários sobre a
nosografia das neuroses e sobre a etiologia das neuroses em geral.
Fui
obrigado a começar meu trabalho por uma inovação nosográfica. Julguei razoável
dispor ao lado da histeria a neurose obsessiva (Zwangsneurose), como
distúrbio auto-suficiente e independente, embora a maioria das autoridades
situe as obsessões entre as síndromes constitutivas da degeneração mental ou as
confunda com a neurastenia. Por meu lado, examinando o mecanismo psíquico das
obsessões, eu havia aprendido que elas estão mais estreitamente ligadas à
histeria do que se poderia supor.
A
histeria e a neurose obsessiva compõem o primeiro grupo das grandes neuroses
por mim estudadas. O segundo contém a neurastenia de Beard, que dividi em dois
estados funcionais separados tanto por sua etiologia como por seu aspecto
sintomático - a neurastenia propriamente dita e a neurose de angústia
(Angstneurose), nome com o qual, diga-se de passagem, eu mesmo não estou
satisfeito. Apresentei minhas razões detalhadas para fazer essa separação, que
considero necessária, num artigo publicado em 1895 |Freud, 1895b|.
No
que se refere à etiologia das neuroses, penso que a teoria deve reconhecer que
as influências etiológicas, diferentes entre si tanto em importância quanto na
maneira como se relacionam com o efeito que produzem, podem ser agrupadas em
três classes: (1) Precondições, que são indispensáveis para produzir o
distúrbio em causa, mas que são de caráter geral e igualmente encontráveis na
etiologia de muitos outros distúrbios; (2) Causas Concorrentes, que
compartilham com as precondições a característica de funcionarem tanto na
causação de outros distúrbios quanto na do distúrbio em questão, mas que não
são indispensáveis para a produção deste último; e (3) Causas Específicas,
que são indispensáveis como as precondições, mas têm natureza limitada e só
aparecem na etiologia do distúrbio de que são específicas.
Na
patogênese das grandes neuroses, portanto, a hereditariedade preenche o papel
de precondição, poderosa em todos os casos e até indispensável na
maioria deles. Ela não poderia prescindir da colaboração das causas
específicas, mas a importância da predisposição hereditária é comprovada pelo
fato de que as mesmas causas específicas, agindo num indivíduo saudável, não
produzem nenhum efeito patológico manifesto, ao passo que, numa pessoa
predisposta, sua ação provoca a emergência da neurose, cujo desenvolvimento
será proporcional em intensidade e extensão ao grau da precondição hereditária.
Assim,
a ação da hereditariedade é comparável à de um multiplicador num circuito
elétrico, multiplicador este que exagera o desvio visível da agulha, mas não
pode determinar sua direção.
Há
ainda outra coisa a ser notada nas relações entre a precondição hereditária e
as causas específicas das neuroses. A experiência mostra - como se poderia
imaginar de antemão - que, nessas questões de etiologia, não se devem desprezar
as quantidades relativas, por assim dizer, das influências etiológicas. Mas não
se poderia adivinhar o seguinte fato, que parece proceder de minhas
observações: a saber, que a hereditariedade e as causas específicas podem
substituir uma à outra no que tange à quantidade - que o mesmo efeito
patológico é produzido pela coincidência de uma etiologia específica muito
grave com uma predisposição moderada, ou de uma hereditariedade nervosa
intensamente carregada com uma leve influência específica. E estaremos
simplesmente nos deparando com exemplos extremos e esperáveis nessa série, se
encontrarmos casos de neurose nos quais procuremos inutilmente qualquer grau
apreciável de predisposição hereditária, desde que o que falta seja compensado
por uma poderosa influência específica.
Como causas
concorrentes (ou auxiliares) das neuroses podemos enumerar todos os agentes
banais encontrados em outras situações: perturbação emocional, esgotamento
físico, doenças graves, intoxicações, acidentes traumáticos, sobrecarga
intelectual etc. Sustento que nenhum desses, nem mesmo o último, integra
regular ou necessariamente a etiologia das neuroses, e estou ciente de que
expressar essa opinião equivale a ficar em oposição direta a uma teoria
considerada universalmente aceita e irrepreensível. Desde que Beard declarou a
neurastenia como fruto de nossa civilização moderna, só tem encontrado
seguidores; entretanto, acho impossível aceitar essa visão. Um laborioso estudo
das neuroses ensinou-me que a etiologia específica das neuroses escapou à
observação de Beard.
Não
tenho qualquer desejo de depreciar a importância etiológica desses agentes
banais. Por serem muito diversificados, ocorrerem com grande freqüência e serem
na maioria das vezes nomeados pelos próprios pacientes, eles se tornam mais
preeminentes do que as causas específicas das neuroses - uma etiologia que está
oculta ou é desconhecida. Com freqüência considerável, cumprem a função de agents
provocateurs que tornam manifesta uma neurose antes latente; e há um
interesse prático ligado a eles, pois o exame dessas causas banais pode
oferecer linhas de abordagem para uma terapia que não tenha como objetivo uma
cura radical e se satisfaça em reprimir a doença a seu estado de latência anterior.
Todavia,
é impossível estabelecer qualquer relação constante e estreita entre uma dessas
causas banais e essa ou aquela forma de afecção nervosa. O distúrbio emocional,
por exemplo, encontra-se igualmente na etiologia da histeria, das obsessões e
da neurastenia, assim como na da epilepsia, da doença de Parkinson, do diabetes
e de muitas outras.
As
causas concorrentes banais podem também substituir a etiologia específica com
respeito à quantidade, mas nunca tomar seu lugar inteiramente. Há numerosos casos
em que todas as influências etiológicas são representadas pela precondição
hereditária e pela causa específica, estando ausentes as causas banais. Em
outros casos, os fatores etiológicos indispensáveis não são quantitativamente
suficientes em si mesmos para acarretar a eclosão da neurose; um estado de
aparente saúde pode ser mantido por muito tempo, embora seja, na realidade, um
estado de predisposição à neurose. Basta então que uma causa banal entre também
em ação para que a neurose se torne manifesta. Mas é preciso assinalar
claramente que, nessas condições, a natureza da causa banal que sobrevém é
absolutamente indiferente - seja ela uma emoção, um trauma, uma doença
infecciosa ou qualquer outra coisa. O efeito patológico não será modificado de
acordo com essa variação; a natureza da neurose será sempre dominada pela causa
específica preexistente.
Quais
são, então, as causas específicas das neuroses? Haverá uma só causa ou várias?
E será que é possível estabelecer uma relação etiológica constante entre uma
dada causa e um dado efeito neurótico, de tal modo que cada uma das grandes
neuroses possa ser atribuída a uma etiologia especial?
Com
base num árduo exame dos fatos, afirmo que esta última suposição concorda
perfeitamente com a realidade, que cada uma das grandes neuroses que enumerei
tem como causa imediata uma perturbação específica da economia do sistema
nervoso, e que essas modificações patológicas funcionais têm como fonte
comum a vida sexual do sujeito, quer residam num distúrbio de sua vida sexual
contemporânea, quer em fatos importantes de sua vida passada.
Esta
não é, para dizer a verdade, uma proposição nova e jamais ouvida. Os distúrbios
sexuais sempre foram admitidos entre as causas da doença nervosa, mas têm sido
subordinados à hereditariedade e coordenados com os demais agents
provocateurs; sua influência etiológica tem-se restringido a um número
limitado de casos observados. Os médicos haviam até mesmo caído no hábito de
não investigá-los, a menos que o próprio paciente os mencionasse. O que confere
um caráter distintivo a minha linha de abordagem é que elevo essas influências
sexuais à categoria de causas específicas, reconheço sua atuação em todos os
casos de neurose e, finalmente, traço um paralelismo regular, prova de uma
relação etiológica especial, entre a natureza da influência sexual e a espécie
patológica da neurose.
Estou
certo de que essa teoria invocará uma tempestade de contestações por parte dos
médicos contemporâneos. Mas não é este o lugar para apresentar a documentação e
as experiências que me forçaram a minha convicção, nem para explicar o
verdadeiro sentido da expressão bastante vaga “distúrbios da economia do
sistema nervoso”. Isso será feito mais completamente, espero, num trabalho que
estou preparando sobre o assunto. No presente artigo limito-me a relatar minhas
descobertas.
A
neurastenia propriamente dita, ao destacarmos dela a neurose de angústia, tem
um aspecto clínico muito monótono: fadiga, pressão intracraniana, dispepsia
flatulenta, constipação, parestesias raquidianas, fraqueza sexual etc. Sua
única etiologia específica é fornecida pela masturbação (imoderada) ou pelas
emissões espontâneas.
É a
ação prolongada e intensa dessa perniciosa satisfação sexual que se revela
suficiente, por si mesma, para provocar uma neurose neurastênica, ou que
imprime no sujeito a marca neurastênica especial que depois se manifesta sob a
influência de uma causa acessória incidental. Deparei também com pessoas,
apresentando indicações de uma constituição neurastênica, nas quais não consegui
trazer à luz a etiologia que mencionei, mas ao menos mostrei que a função
sexual nunca se desenvolvera até seu nível normal nesses pacientes; a
hereditariedade parecia tê-los dotado de uma constituição sexual análoga à que
se produz no neurastênico em conseqüência da masturbação.
A
neurose de angústia exibe um quadro clínico muito mais rico: irritabilidade,
estados de expectativa angustiada, fobias, ataques de angústia completos ou
rudimentares, ataques de medo e de vertigem, tremores, suores, congestão,
dispnéia, taquicardia etc., diarréia crônica, vertigem locomotora crônica,
hiperestesia, insônia etc. Ela se revela facilmente como sendo o efeito
específico de várias perturbações da vida sexual, todas as quais possuem uma
característica comum. A abstinência forçada, a excitação genital não consumada
(excitação não aliviada pelo ato sexual), o coito imperfeito ou interrompido
(que não termina em gratificação), os esforços sexuais que excedem a capacidade
física do sujeito etc. - todos esses agentes, que ocorrem tão freqüentemente na
vida moderna, parecem concordar quanto ao fato de que perturbam o equilíbrio
das funções psíquicas e somáticas nos atos sexuais, e de que impedem a
participação psíquica necessária para libertar a economia nervosa da tensão sexual.
Estes
comentários, que talvez contenham o germe de uma explicação teórica do
mecanismo funcional da neurose em questão, já levantam a suspeita de que uma
exposição completa e verdadeiramente científica do assunto não é possível no
momento, e de que seria necessário começar por uma abordagem do problema
fisiológico da vida sexual a partir de um novo ângulo.
Direi,
finalmente, que a patogênese da neurastenia e da neurose de angústia pode
facilmente prescindir da cooperação de uma predisposição hereditária. Este é o
resultado da observação cotidiana. Contudo, quando a hereditariedade está
presente, o desenvolvimento da neurose é afetado por sua poderosa influência.
No
que concerne à segunda classe das grandes neuroses, a histeria e a neurose
obsessiva, a solução do problema etiológico é de surpreendente simplicidade e
uniformidade. Devo meus resultados a um novo método de psicanálise, o
procedimento exploratório de Josef Breuer; é um pouco intrincado, mas
insubstituível, tal a fertilidade que tem demonstrado para lançar luz sobre os
obscuros caminhos da ideação inconsciente. Por meio desse procedimento - este
não é o lugar para descrevê-lo -, os sintomas histéricos são investigados até
sua origem, sempre encontrada em algum evento da vida sexual do sujeito,
apropriado para a produção de uma emoção aflitiva. Percorrendo
retrospectivamente o passado do paciente, passo a passo, e sempre guiado pelo
encadeamento orgânico dos sintomas e das lembranças e representações
despertadas, atingi finalmente o ponto de partida do processo patológico; e fui
obrigado a verificar que, no fundo, a mesma coisa estava presente em todos os
casos submetidos à análise - a ação de um agente que deve ser aceito como causa
específica da histeria.
Esse
agente é, de fato, uma lembrança relacionada à vida sexual, mas que apresenta
duas características de máxima importância. O evento do qual o sujeito reteve
uma lembrança inconsciente é uma experiência precoce de relações sexuais com
excitação real dos órgãos genitais, resultante de abuso sexual cometido por
outra pessoa; e o período da vida em que ocorre esse evento fatal é
a infância - até a idade de 8 ou 10 anos, antes que a criança tenha
atingido a maturidade sexual.
Uma
experiência sexual passiva antes da puberdade: eis, portanto, a etiologia específica da histeria.
Acrescentarei
sem demora alguns detalhes fatuais e alguns comentários sobre o resultado que
anunciei, a fim de combater o ceticismo com que espero deparar-me. Pude efetuar
uma psicanálise completa em treze casos de histeria, três dos quais eram
combinações efetivas de histeria e neurose obsessiva. (Não me refiro à histeria
com obsessões.) Em nenhum desses casos faltou um evento do tipo definido
acima. Este era representado quer por um ataque brutal praticado por um adulto,
quer por uma sedução menos rápida e menos repulsiva, mas chegando à mesma
conclusão. Em sete dos treze casos a relação se dera entre duas crianças -
relações sexuais entre uma garotinha e um menino um pouco mais velho (na
maioria das vezes, um irmão), que fora por sua vez vítima de sedução anterior.
Essas relações por vezes perduraram durante anos, até os pequenos culpados
atingirem a puberdade; o menino repetia reiteradamente com a garotinha as
mesmas práticas, sem alteração - práticas às quais ele próprio fora submetido
por alguma criada ou governanta e que, em virtude de sua origem, eram
freqüentemente de natureza repugnante. Em alguns casos, havia a combinação de
um ataque com relações entre crianças, ou a repetição de um abuso brutal.
A
data dessa experiência precoce era variável. Em dois casos, a série foi
iniciada no segundo ano de vida da criaturinha(?);a idade mais comum em minhas
observações é o quarto ou quinto ano. Talvez ela seja um tanto acidental, mas
formei a opinião, a partir disso, de que uma experiência sexual passiva que só
ocorra após a idade de oito a dez anos não pode mais servir como fundação da
neurose.
Como
é possível ficar convencido da realidade dessas confissões analíticas, que
alegam ser lembranças guardadas da mais tenra infância? E como precaver-se
contra a tendência a mentir e a facilidade de invenção atribuídas aos sujeitos
histéricos? Eu me acusaria de censurável credulidade se não dispusesse de
provas mais conclusivas. Mas o fato é que esses pacientes nunca repetem tais
histórias espontaneamente, nem jamais apresentam ao médico, repetidamente, no
curso do tratamento, a recordação completa de uma cena desse gênero. Só se
consegue despertar o vestígio psíquico de um evento sexual precoce sob a mais
vigorosa pressão da técnica analítica e vencendo uma enorme resistência. Além
disso, a lembrança tem que ser extraída dos pacientes pouco a pouco e, enquanto
vai sendo despertada em sua consciência, eles se tornam presa de uma emoção
difícil de ser forjada.
No
fim, virá a convicção, mesmo que não se seja influenciado pelo comportamento do
paciente, desde que se possa acompanhar com detalhes o relato da psicanálise de
um caso de histeria.
O
evento precoce deixa uma marca indelével na história clínica, sendo nela
representado por uma profusão de sintomas e traços especiais que não poderiam
ser explicados de nenhum outro modo; é peremptoriamente exigido pelas
interconexões sutis, mas sólidas, da estrutura intrínseca da neurose; o efeito
terapêutico da análise se retarda quando não se penetra tão fundo, e então não
resta outra escolha senão rejeitar ou aceitar o conjunto.
Será
compreensível que esse tipo de experiência sexual precoce, sofrida por um
indivíduo cujo sexo mal se diferenciou, pode tornar-se fonte de uma
anormalidade psíquica persistente como a histeria? E como se enquadraria essa
suposição em nossas idéias atuais sobre o mecanismo psíquico daquela neurose? É
possível dar uma resposta satisfatória à primeira dessas questões. É
precisamente por estar o sujeito em sua primeira infância que a excitação
sexual precoce surte pouco ou nenhum efeito na época; mas seu traço psíquico é
preservado. Mais tarde, na puberdade, quando as reações dos órgãos sexuais se
desenvolvem num nível desproporcional a seu estado infantil, esse traço
psíquico inconsciente é de algum modo despertado. Graças à transformação devida
à puberdade, a lembrança exibe um poder que esteve totalmente ausente do
próprio evento. A lembrança atua como se ele fosse um evento contemporâneo.
O que acontece é, por assim dizer, a ação póstuma de um trauma sexual.
Ao
que eu sabia, esse despertar de uma lembrança sexual após a puberdade, quando o
próprio evento ocorreu muito antes desse período, constitui a única situação
psicológica em que o efeito imediato de uma lembrança suplanta o efeito
de um evento atual. Mas trata-se de uma constelação anormal, que afeta o lado
fraco do mecanismo psíquico e está fadada a produzir um efeito psíquico
patológico.
Creio
poder constatar que essa relação inversa entre o efeito psíquico da
lembrança e o do evento contém a razão pela qual a lembrança permanece
inconsciente.
Nesse
aspecto chegamos a um problema psíquico muito complexo, mas que, uma vez
adequadamente apreciado, promete lançar luz sobre as mais delicadas questões da
vida psíquica.
As
idéias aqui apresentadas, que têm como ponto de partida a descoberta, pela
psicanálise, de que a lembrança de uma experiência sexual precoce é sempre
encontrada como causa específica da histeria, não se harmonizam com a teoria
psicológica das neuroses sustentada por M. Janet, nem com qualquer outra;
concordam perfeitamente, porém, com minhas próprias especulações sobre as “Abwehrneurosen”
|neuroses de defesa|, tais como as desenvolvi em outro texto.
Todos
os eventos subseqüentes à puberdade a que se deva atribuir influência no
desenvolvimento da neurose histérica e na formação de seus sintomas são, de
fato, apenas causas concorrentes - “agents provocateurs”, como Charcot
costumava dizer, embora, para ele, a hereditariedade nervosa ocupasse o lugar
que reivindico para a experiência sexual precoce. Esses agentes acessórios não
estão sujeitos às condições estritas impostas às causas específicas; a análise
demonstra de modo irrefutável que eles só desfrutam de uma influência
patogênica na histeria graças a sua faculdade de despertarem o traço psíquico
inconsciente do evento infantil. É também graças à ligação deles com a
impressão patogênica primária, e inspirada nela, que a lembrança desses agentes
torna-se por sua vez inconsciente e passa a contribuir para o desenvolvimento
de uma atividade psíquica retirada do poder das funções conscientes.
A
neurose obsessiva (Zwangsneurose) emerge de uma causa específica muito
semelhante à da histeria. Também aqui encontramos um evento sexual precoce,
ocorrendo antes da puberdade, cuja lembrança torna-se ativa durante ou depois
desse período; e os mesmos comentários e argumentos que apresentei em conexão
com a histeria se aplicarão as minhas observações sobre a outra neurose (seis
casos, três dos quais puros). Há apenas uma diferença que parece capital. Na
base da etiologia da histeria encontramos um evento de sexualidade passiva, uma
experiência à qual alguém se submeteu com indiferença ou com um pequeno grau de
aborrecimento ou medo. Na neurose obsessiva, trata-se, por outro lado, de um
evento que proporcionou prazer, de um ato de agressão inspirado no
desejo (no caso do menino) ou de um ato de participação nas relações sexuais
acompanhado de gozo (no caso da menina). As representações obsessivas, quando
seu significado íntimo é reconhecido pela análise, quando se reduzem, por assim
dizer, a sua expressão mais simples, nada passam de recriminações dirigidas
pelo sujeito a si mesmo por causa desse gozo sexual antecipado, mas
recriminações distorcidas por um trabalho psíquico inconsciente de
transformação e substituição.
O
próprio fato de agressões sexuais desse tipo ocorrerem em tão tenra idade
parece revelar a influência de uma sedução prévia, da qual a precocidade do
desejo sexual seria uma conseqüência. Nos casos por mim analisados, a análise
confirma essa suspeita. Assim se explica um interessante fato que é sempre
encontrado nesses casos de obsessão: a complicação regular do quadro de
sintomas por certo número de sintomas simplesmente histéricos.
A
importância do elemento ativo na vida sexual como causa das obsessões, e da
passividade sexual na patogênese das histerias, parece até mesmo desvendar a
razão da conexão mais íntima da histeria com o sexo feminino e da preferência
dos homens pela neurose obsessiva. Às vezes deparamos com um par de pacientes
neuróticos que formaram um casal de pequenos amantes em sua mais remota
infância - o homem sofrendo de obsessões e a mulher, de histeria. Quando se
trata de irmão e irmã, pode-se cometer o equívoco de tomar como resultado da
hereditariedade nervosa o que é, de fato, conseqüência de experiências sexuais
precoces.
Há,
sem dúvida, casos puros e isolados de histeria ou de obsessões, independentes
da neurastenia ou da neurose de angústia; mas essa não é a regra. A
psiconeurose aparece mais freqüentemente como um acessório da neurose
neurastênica, provocada por esta e acompanhando seu declínio. Isso ocorre
porque as causas específicas da neurastenia, as perturbações contemporâneas da
vida sexual, atuam ao mesmo tempo como causas auxiliares da psiconeurose, cuja
causa específica, a lembrança da experiência sexual precoce, elas despertam e
revivem.
No
que concerne à hereditariedade nervosa, estou longe de poder estimar
corretamente sua influência na etiologia das psiconeuroses. Admito que sua presença
é indispensável para os casos graves; duvido que seja necessária para os leves,
mas estou convencido de que a hereditariedade nervosa, por si só, é incapaz de
produzir as psiconeuroses se faltar sua etiologia específica, isto é, a
excitação sexual precoce. Creio mesmo que a decisão quanto ao desenvolvimento
de uma das duas neuroses, histeria ou obsessões, em determinado caso, não
provém da hereditariedade, mas de uma característica especial do evento sexual
na tenra infância.
OBSERVAÇÕES
ADICIONAIS SOBRE AS NEUROPSICOSES DE DEFESA (1896)
NOTA
DO EDITOR INGLÊS
WEITERE BEMERKUNGEN
ÜBER DIE
ABWERHNEUROPSYCHOSEN
(a)EDIÇÕES ALEMÃS:
1896 Neurol. Zbl.,
15 (10), 434-48. (15 de maio.)
1906 S.K.S.N.,
1, 112-34. (1911, 2ª
ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª. ed.)
1925 G.S.,
1, 363-87.
1952 G.W., 1,
379-403.
(b)TRADUÇÕES
INGLESAS:
“Further
Observations on the Defense Neuropsychoses”
1909 S.P.H., 155-74. (Trad. de A. A. Brill.) (1912, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.)
“Further
Remarks on the Defence Neuro-Psychoses”
1924 C.P.,
1, 155-82. (Trad. de J. Rickman.)
Incluído (Nº XXXV) na
coleção de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud elaborada por ele mesmo
(1897b). A presente tradução, com o título modificado, baseia-se na de 1924.
Este
artigo, como já se explicou na ver em [1], foi enviado por Freud no mesmo dia
(5 de fevereiro de 1896) que o artigo em francês sobre “A Hereditariedade e a
Etiologia das Neuroses”, mas foi publicado seis semanas depois dele. Quando
este artigo chegou a ser incluído nos Gesammelte Schriften, em 1925,
Freud acrescentou-lhe duas ou três notas de rodapé. Anteriormente, ele fizera
um acréscimo substancial a uma nota de rodapé na tradução inglesa de 1924 (ver
em [1], adiante), mas este não foi incluído em nenhuma edição alemã.
Este
segundo artigo sobre as “neuropsicoses de defesa” retoma a discussão no ponto
em que ela fora deixada no primeiro artigo (1894a), produzido dois anos antes.
Muitas das conclusões aqui alcançadas tinham sido brevemente antecipadas pelo
artigo contemporâneo em francês sobre a hereditariedade (1896a); a parte
essencial do trabalho fora comunicada algumas semanas antes a Fliess, num longo
documento intitulado por Freud “Um Conto de Fadas Natalino”, datado de 1º de
janeiro de 1896 (Freud, 1950a, Rascunho K). Como seu predecessor de 1894, o
presente trabalho é dividido em três seções, que tratam respectivamente da
histeria, das obsessões e dos estados psicóticos, sendo-nos apresentados, em
cada caso, os resultados de dois anos de investigações adicionais. No artigo
anterior, a ênfase já era posta no conceito de “defesa” ou “recalcamento”; aqui
há um exame muito mais detalhado daquilo contra o qual a defesa é posta em
ação, e conclui-se, em todos os casos, que o fator responsável é uma
experiência sexual de caráter traumático - no caso da histeria, uma
experiência passiva; no das obsessões, ativa, muito embora, mesmo
nesse caso, uma experiência passiva anterior remonte a um plano ainda mais
remoto. Em outras palavras, a causa última seria sempre a sedução de uma
criança por um adulto. (Cf. “A Etiologia da Histeria”, 1896c, ver em [1],
adiante.) Além disso, o evento traumático efetivo sempre ocorreria antes da
puberdade, embora a irrupção da neurose ocorresse após a puberdade.
Como
se perceberá pela longa nota de rodapé acrescentada por Freud à ver em [1],
toda essa posição foi depois abandonada por ele, e tal abandono assinalou uma
reviravolta da maior importância em seus pontos de vista. Numa carta a Fliess
em 21 de setembro de 1897 (Freud, 1950a Carta 69), Freud revelou que há alguns meses
vinha despontando nele a idéia de que era muito difícil acreditar que os atos
pervertidos contra as crianças fossem tão generalizados - em especial porque,
na totalidade dos casos, o pai era responsabilizado por eles. Só após vários
anos, porém, foi que ele deu expressão pública a suas opiniões modificadas.
Entretanto, a importante conseqüência dessa percepção foi que Freud se
conscientizou do papel desempenhado pela fantasia nos eventos mentais, o que
abriu as portas para a descoberta da sexualidade infantil e do complexo de
Édipo. Um relato mais minucioso das mudanças em suas concepções sobre o assunto
é fornecido na Nota do Editor inglês aos Três Ensaios sobre a Teoria da
Sexualidade (1950d), Edição Standard Brasileira, Vol. VII, ver em
[1] e segs., IMAGO Editora, 1972, enquanto um outro desenvolvimento está
registrado no artigo posterior de Freud sobre “Sexualidade Feminina” (1913b)
ibid., Vol. XXI, ver em [1], IMAGO Editora, 1974, onde as fantasias primitivas
da menina sobre a sedução pelo pai são atribuídas às relações tidas ainda mais
cedo com a mãe.
Aliás,
o problema de como a lembrança de um trauma infantil podia ter um efeito
tão maior do que a experiência real dele na época - problema repetidamente
discutido por Freud nesse período e cuidadosamente tratado em sua longa nota de
rodapé em [1] - perdeu sentido graças à descoberta da sexualidade infantil e ao
reconhecimento da persistência dos movimentos inconscientes.
Talvez
seja ainda mais interessante observar a emergência, neste artigo, de vários
novos mecanismos psicológicos que viriam a desempenhar um enorme papel
nas explicações posteriores de Freud sobre os processos mentais. Especialmente
notável é a minuciosa análise dos mecanismos obsessivos, que antecipa muito do
que iria aparecer quinze anos depois na seção teórica da análise do “Homem dos
Ratos” (1909d). Assim, encontramos as primeiras alusões à concepção das
obsessões como auto-acusações (ver em [1]), à noção de sintoma implicando uma
falha da defesa e um “retorno do recalcado” (ibid.), e à abrangente teoria de
que os sintomas são formações de compromisso entre as forças recalcadas e as
recalcadoras (ver em [1] e [2]). Finalmente, na seção sobre a paranóia, o
conceito de “projeção” entra em cena pela primeira vez (ver em [1]) e, no conceito
de “alteração do ego”, quase ao fim do artigo (conceito já presente no Rascunho
K da correspondência com Fliess), podemos ver uma prefiguração de idéias que
reaparecem em alguns dos últimos escritos de Freud, como, por exemplo, em
“Análise Terminável e Interminável” (1937com).
OBSERVAÇÕES
ADICIONAIS SOBRE AS NEUROPSICOSES DE DEFESA
[INTRODUÇÃO]
Num
breve artigo publicado em 1894, agrupei a histeria, as obsessões e certos casos
de confusão alucinatória aguda sob o nome de “neuropsicoses de defesa” [Freud,
1894a], porque tais afecções revelaram um aspecto comum. Este consistia em que
seus sintomas emergiam por meio do mecanismo psíquico de defesa
(inconsciente) - isto é, emergiam como uma tentativa de recalcar uma
representação incompatível que se opunha aflitivamente ao ego do paciente. Em
algumas passagens de um livro posteriormente publicado pelo Dr. J. Breuer e por
mim (Estudos sobre a Histeria [1895d), pude elucidar e ilustrar,
partindo das observações clínicas, o sentido em que se deve entender esse
processo psíquico de “defesa” ou “recalcamento”. Há também ali algumas
informações sobre o trabalhoso mas totalmente confiável método da psicanálise,
usado por mim no curso daquelas investigações - investigações que também
constituem uma técnica terapêutica.
Minhas
observações durante os dois últimos anos de trabalho fortaleceram-me a
tendência a considerar a defesa como o ponto nuclear no mecanismo psíquico das
neuroses em questão, e também me capacitaram a fornecer uma fundamentação clínica a essa teoria
psicológica. Para minha surpresa, cheguei a algumas soluções simples, embora
estritamente circunscritas, para os problemas da neurose, e nas páginas
seguintes fornecerei um relato breve e preliminar delas. Neste tipo de
comunicação é impossível apresentar as provas necessárias para sustentar minhas
asserções, mas espero poder mais tarde cumprir com essa obrigação por
intermédio de uma apresentação detalhada.
I - A ETIOLOGIA ESPECÍFICA DA HISTERIA
Em
publicações anteriores, Breuer e eu já expressávamos a opinião de que os
sintomas da histeria só poderiam ser compreendidos se remetidos a experiências
de efeito traumático referindo-se esses traumas psíquicos à vida sexual do
paciente. O que tenho a acrescentar aqui, como resultado uniforme das análises
efetuadas por mim em treze casos de histeria, diz respeito, por um lado, à natureza
desses traumas sexuais e, por outro, ao período da vida em que eles ocorrem.
Para causar a histeria, não basta ocorrer em algum período da vida do sujeito
um evento relacionado com sua vida sexual e que se torne patogênico pela
liberação e supressão de um afeto aflitivo. Pelo contrário, tais traumas
sexuais devem ter ocorrido na tenra infância, antes da puberdade, e seu
conteúdo deve consistir numa irritação real dos órgãos genitais (por processos
semelhantes à copulação).
Descobri
um determinante específico da histeria - a passividade sexual durante o
período pré-sexual - em todos os casos de histeria (inclusive dois casos
masculinos) que analisei. Não é necessário fazer mais do que uma menção ao
enorme grau em que ficam diminuídas as alegações em prol de uma predisposição
hereditária em face desse estabelecimento de fatores etiológicos acidentais
como sendo determinantes. Além disso, fica aberto um caminho para se
compreender por que a histeria é tão mais freqüente nos membros do sexo
feminino, pois, já na infância, estes são mais suscetíveis de provocar ataques
sexuais.
As
objeções mais imediatas a essa conclusão serão, provavelmente, que as
investidas sexuais contra crianças pequenas ocorrem com demasiada freqüência
para terem qualquer importância etiológica, ou que esse tipo de experiências
está destinado a não ter efeito, precisamente por acontecer com pessoas não
desenvolvidas sexualmente; e ainda, que se deve ter cuidado para não impor aos
pacientes supostas reminiscências dessa espécie ao interrogá-los, e para não
acreditar nos romances que eles mesmos inventam. Em resposta às últimas
objeções, podemos pedir que ninguém forme juízos seguros demais nesse campo
obscuro enquanto não tiver utilizado o único método que pode lançar luz sobre
ele - o método da psicanálise, com o propósito de tornar consciente o que era
até então inconsciente. O essencial nas primeiras objeções pode ser refutado ao
se assinalar que não são as experiências em si que agem de modo traumático, mas
antes sua revivescência como lembrança depois que o sujeito ingressa na
maturidade sexual.
Meus
treze casos eram graves, sem exceção; em todos eles a doença vinda de muitos
anos, e alguns chegaram a mim após longo e fracassado tratamento institucional.
Todos os traumas de infância que a análise descobriu nesses casos agudos
tiveram que ser classificados como graves ofensas sexuais; alguns eram
positivamente revoltantes. Em primeiro lugar entre os culpados de abusos como
esses, com suas significativas conseqüências, estão as babás, governantas e
empregadas domésticas, a cujos cuidados as crianças são muito impensadamente
confiadas; os professores, ademais, figuram com lamentável freqüência. Em sete
dos treze casos, entretanto, revelou-se que os autores das investidas tinham
sido inocentes crianças; em sua maioria, eram irmãos que, por anos a fio,
tinham mantido relações sexuais com irmãs um pouco mais novas. Sem dúvida, o
curso dos acontecimentos, na totalidade dos casos, era semelhante ao que foi
possível reconstituir com certeza em alguns casos individuais: em outras
palavras, o menino sofrera um abuso por parte de alguém do sexo feminino, de
modo que sua libido fora prematuramente despertada, e então, passados alguns
anos, cometera um ato de agressão sexual contra sua irmã, com quem repetiu
precisamente os mesmos procedimentos a que ele próprio fora submetido.
A
masturbação ativa deve ser excluída da minha lista das perturbações sexuais na
tenra infância que são patogênicas para a histeria. Embora seja encontrada
muito freqüentemente ao lado da histeria, isso se deve à circunstância de que a
própria masturbação é uma conseqüência muito mais freqüente do abuso ou da
sedução do que se supõe.
Não é
nada raro ambas as crianças adoecerem, mais tarde, vítimas de uma neurose de
defesa - o irmão com obsessões e a irmã com histeria. Isso naturalmente produz
a aparência de uma predisposição neurótica familiar. Ocasionalmente, contudo,
essa pseudo-hereditariedade é resolvida de modo surpreendente. Em um de meus
casos, um irmão, uma irmã e um primo um pouco mais velho estavam todos doentes.
A partir da análise que realizei com o irmão, fiquei sabendo que ele sofria de
auto-acusações por ser a causa da doença da irmã. Ele próprio fora seduzido
pelo primo, e este último, como era sabido na família, fora vítima de sua babá.
Não
sei dizer ao certo qual a idade máxima abaixo da qual a ofensa sexual
desempenha um papel na etiologia da histeria; duvido, porém, que a passividade
sexual possa resultar em recalcamento depois de uma idade entre oito e dez
anos, a não ser que isso seja possibilitado por experiências anteriores. O
limite mínimo retrocede tanto quanto a própria memória - isto é, portanto, até
a tenra idade de um ano e meio ou dois anos! (Tive dois casos desse tipo.) Em
muitos de meus casos, o trauma sexual (ou série de traumas) ocorreu no terceiro
ou quarto anos de vida. Eu mesmo não daria crédito a essas extraordinárias
descobertas se sua completa confiabilidade não fosse comprovada pelo
desenvolvimento da neurose subseqüente. Em todos os casos, diversos sintomas,
hábitos e fobias patológicos só podem ser explicados retrocedendo-se a essas
experiências na infância, e a estrutura lógica das manifestações neuróticas
torna impossível rejeitar essas lembranças fielmente preservadas que emergem da
vida infantil. É verdade que seria inútil tentar extrair de um histérico esses
traumas de infância interrogando-o fora da psicanálise; os vestígios deles
nunca estão presentes na memória consciente, mas apenas nos sintomas da doença.
Todas
as experiências e excitações que, no período posterior à puberdade,
preparam o caminho ou precipitam a eclosão da histeria, só surtem esse efeito, como
se pode demonstrar, por despertarem o traço mnêmico desses traumas de
infância, que não se tornam conscientes de imediato, mas levam a uma descarga
de afeto e ao recalcamento. Esse papel dos traumas posteriores se adequa bem ao
fato de que eles não estão sujeitos às condições estritas que regem os traumas
da infância, mas podem variar em intensidade e natureza, desde a efetiva
violação sexual até meras investidas sexuais, ou ao testemunho dos atos sexuais
de outras pessoas, ou ao recebimento de informações sobre os processos sexuais.
Em
meu primeiro artigo sobre as neuroses de defesa |1894a|, não havia nenhuma
explicação sobre o modo como os esforços do sujeito até então saudável para
esquecer uma experiência traumática como essa podiam ter como resultado a
realização efetiva do recalque pretendido, e assim abrir as portas para a
neurose de defesa. Isso não poderia estar na natureza das experiências, já que
outras pessoas permaneciam saudáveis, apesar de terem sido expostas às mesmas
causas precipitantes. Portanto, a histeria não poderia ser inteiramente explicada
a partir do efeito do trauma: era preciso reconhecer que a suscetibilidade a
uma reação histérica já preexistiria ao trauma.
O
lugar dessa predisposição histérica indefinida pode agora ser tomado,
inteiramente ou em parte, pela ação póstuma de um trauma sexual na infância. O
“recalcamento” da lembrança de uma experiência sexual aflitiva, que ocorre em
idade mais madura, só é possível para aqueles em quem essa experiência consegue
ativar o traço mnêmico de um trauma da infância.
As
obsessões pressupõem, do mesmo modo, uma experiência sexual na infância (embora
de natureza diferente da encontrada na histeria). A etiologia das duas
neuropsicoses de defesa relaciona-se da seguinte maneira com a etiologia das
duas neuroses simples, a neurastenia e a neurose de angústia: os dois últimos
distúrbios são efeitos diretos das próprias perturbações sexuais, como
demonstrei em meu artigo sobre a neurose de angústia (1895b); ambas as neuroses
de defesa são conseqüências indiretas das perturbações sexuais ocorridas antes
do advento da maturidade sexual - ou seja, são conseqüência dos traços mnêmicos
psíquicos dessas perturbações. As causas atuais que produzem a neurastenia e a
neurose de angústia freqüentemente desempenham, ao mesmo tempo, o papel de
causas excitantes das neuroses de defesa; por outro lado, as causas específicas
de uma neurose de defesa - os traumas da infância - podem ao mesmo tempo
constituir a base para um desenvolvimento posterior da neurastenia. Finalmente,
também não é raro a neurastenia ou a neurose de angústia serem mantidas, não
pelas perturbações sexuais contemporâneas, mas, ao contrário, apenas pelo
efeito persistente de uma lembrança de traumas infantis.
II - A NATUREZA E O MECANISMO DA NEUROSE OBSESSIVA
As
experiências sexuais da primeira infância têm na etiologia da neurose obsessiva
a mesma importância que na histeria. Aqui, entretanto, não se trata mais de passividade
sexual, mas de atos de agressão praticados com prazer e de participação
prazerosa em atos sexuais - ou seja, trata-se de atividade sexual. Essa
diferença nas circunstâncias etiológicas está relacionada com o fato de a
neurose obsessiva mostrar visível preferência pelo sexo masculino.
Além
disso, em todos os meus casos de neurose obsessiva, descobri um substrato de
sintomas histéricos que puderam ser atribuídos a uma cena de passividade
sexual que precedeu a ação prazerosa. Suspeito de que essa coincidência não
seja fortuita, e de que a agressividade sexual precoce implique sempre uma
experiência prévia de ser seduzido. Entretanto, não posso ainda fornecer uma
explicação definitiva sobre a etiologia da neurose obsessiva; tenho apenas a
impressão de que o fator decisivo quanto à emergência de histeria ou neurose
obsessiva a partir de traumas na infância depende de circunstâncias cronológicas
no desenvolvimento da libido.
A
natureza da neurose obsessiva pode ser expressa numa fórmula simples. As idéias
obsessivas são, invariavelmente, auto-acusações transformadas que
reemergiram do recalcamento e que sempre se relacionam com algum ato sexual
praticado com prazer na infância. Para elucidar essa afirmação é
necessário descrever o curso típico tomado por uma neurose obsessiva.
Num
primeiro período - o período da imoralidade infantil - ocorrem os eventos que
contêm o germe da neurose posterior. Antes de tudo, na mais tenra infância,
temos as experiências de sedução sexual que mais tarde tornarão possível o
recalcamento, e então sobrevêm os atos de agressão sexual contra o outro sexo,
que aparecerão depois sob a forma de atos que envolvem auto-acusação.
Este
período é encerrado pelo advento da “maturação” sexual, freqüentemente precoce
demais. Uma auto-acusação fica então ligada à lembrança dessas ações
prazerosas; e a conexão com a experiência inicial passiva torna possível |ver
em [1]| - muitas vezes, só depois de esforços conscientes e lembrados -
recalcá-las e substituí-las por um sintoma primário de defesa. A
conscienciosidade, a vergonha e a autodesconfiança são sintomas dessa espécie,
que dão início ao terceiro período - período de aparente saúde, mas, na
realidade, de defesa bem-sucedida.
O
período seguinte, o da doença, é caracterizado pelo retorno das lembranças
recalcadas - isto é, pelo fracasso da defesa. Não se sabe ao certo se o
despertar de tais lembranças ocorre com maior freqüência de modo espontâneo e
acidental, ou em conseqüência de distúrbios sexuais contemporâneos, como uma
espécie de subproduto deles. Entretanto, as lembranças reativadas e as
auto-acusações delas decorrentes nunca reemergem inalteradas na consciência: o
que se torna consciente como representações e afetos obsessivos, substituindo
as lembranças patogênicas no que concerne à vida consciente, são estruturas da
ordem de uma formação de compromisso entre as representações recalcadas
e as recalcadoras.
Para
descrever com clareza e provável precisão os processos de recalcamento, o
retorno do recalcado e o surgimento de representações patológicas como
formações de compromisso, seria necessário optar por pressupostos bem definidos
a respeito do substrato dos eventos psíquicos e da consciência. Na medida em
que se procure evitar isso, é preciso contentar-se com os comentários que se
seguem e que devem ser entendidos de maneira mais ou menos figurada. Há duas
formas de neurose obsessiva, conforme a passagem para a consciência seja
forçada somente pelo conteúdo mnêmico do ato que envolve auto-acusação,
ou também pelo afeto auto-acusador ligado àquele ato.
A
primeira forma inclui as representações obsessivas típicas, nas quais o
conteúdo retém a atenção do paciente e, à guisa de afeto, ele sente apenas um
desprazer indefinido, ao passo que o único afeto adequado à representação
obsessiva seria o de uma auto-acusação. O conteúdo da representação obsessiva é
distorcido de dois modos em relação ao ato obsessivo da infância. Em primeiro
lugar, alguma coisa contemporânea toma o lugar de algo do passado e, em
segundo, alguma coisa sexual é substituída por algo não sexual que lhe é
análogo. Essas duas alterações são efeito da tendência ainda vigente a
recalcar, que atribuiremos ao “ego”. A influência da lembrança patogênica
reativada é mostrada pelo fato de que o conteúdo da representação obsessiva é
ainda parcialmente idêntico ao que fora recalcado, ou decorre dele por um
encadeamento lógico do pensamento. Ao reconstruirmos, com a ajuda do método
psicanalítico, a origem de uma representação obsessiva isolada, constatamos
que, a partir de uma única impressão atual, dois cursos de pensamento
diferentes foram ativados. Aquele que passou pela lembrança recalcada revela-se
tão corretamente lógico em sua estrutura quanto o outro, embora seja incapaz de
se tornar consciente e não seja passível de retificação. Quando os produtos
dessas duas operações psíquicas não se coadunam, o que ocorre não é uma espécie
de ajustamento lógico da contradição entre elas; em vez disso, paralelamente ao
resultado intelectual normal, introduz-se na consciência, como uma
solução de compromisso entre a resistência e o produto intelectual patológico,
uma representação obsessiva que parece absurda. Quando os dois cursos de
pensamento levam à mesma conclusão, eles se reforçam mutuamente, de modo
que o produto intelectual a que se chegou normalmente comporta-se agora, em
termos psicológicos, como uma representação obsessiva. Sempre que uma
obsessão neurótica emerge na esfera psíquica, ela provém do recalcamento.
As representações obsessivas têm, por assim dizer, uma circulação psíquica
compulsiva |obsessiva|, não em virtude de seu valor intrínseco, mas em virtude
da fonte de que derivam ou que acrescentou uma contribuição a seu valor.
Uma
segunda forma da neurose obsessiva manifesta-se quando o que forçou sua
representação na vida psíquica consciente não é o conteúdo mnêmico recalcado,
mas a também recalcada auto-acusação. O afeto da auto-acusação pode, por meio
de algum acréscimo mental, transformar-se em qualquer outro afeto desagradável.
Quando isso acontece, não há mais nada que impeça o afeto posto no lugar do
primeiro de se tornar consciente. Assim, a auto-acusação (por ter
praticado o ato sexual na infância) pode facilmente transformar-se em vergonha
(de que alguém o descubra), em angústia hipocondríaca (medo dos danos
físicos resultantes do ato que envolve a auto-acusação), em angústia social
(medo de ser socialmente punido pelo delito), em angústia religiosa, em delírios
de ser observado (medo de delatar-se pelo ato diante de outras pessoas), ou
em medo da tentação (justificada desconfiança em relação a seus próprios
poderes de resistência), e assim por diante. Além disso, o conteúdo mnêmico do
ato envolvido na auto-acusação pode ser representado também na consciência, ou
permanecer completamente obscurecido - o que torna o diagnóstico muito mais
difícil. Muitos casos que, superficialmente examinados, parecem ser de
hipocondria (neurastênica) comum, pertencem a esse grupo de afetos
obsessivos; o que se conhece como “neurastenia periódica” ou “melancolia
periódica” parece, em particular, decompor-se com inesperada freqüência em
afetos obsessivos e idéias obsessivas - uma descoberta que não é insignificante
do ponto de vista terapêutico.
Além
desses sintomas de compromisso, que significam o retorno do recalcado e,
conseqüentemente, um colapso da defesa originalmente alcançada, a neurose
obsessiva constrói um conjunto de outros sintomas cuja origem é muito
diferente, pois o ego procura rechaçar os derivados da lembrança inicialmente
recalcada e, nessa luta defensiva, cria sintomas que poderiam ser conjuntamente
classificados como “defesa secundária”. Tudo isso constitui “medidas
protetoras” que já prestaram bons serviços na luta contra as representações
e afetos obsessivos. Quando esses auxiliares na luta defensiva conseguem genuinamente
recalcar mais uma vez os sintomas do retorno |do recalcado| que se impuseram ao
ego, a obsessão é transferida para as próprias medidas protetoras e cria uma
terceira forma de “neurose obsessiva” - as ações obsessivas. Essas ações
nunca são primárias; contêm exclusivamente uma defesa - nunca uma agressão. Sua
análise psíquica mostra que, a despeito de sua peculiaridade, elas sempre podem
ser inteiramente explicadas ao serem atribuídas às lembranças obsessivas contra
as quais estão lutando.
A
defesa secundária contra as representações obsessivas pode ser efetuada por um
violento desvio para outros pensamentos de conteúdo tão contrário quanto
possível. Eis por que a ruminação obsessiva, quando bem-sucedida, versa
regularmente sobre coisas abstratas e supra-sensuais, pois as
representações recalcadas sempre se referem à sensualidade. Ou então o
paciente tenta controlar, ele próprio, cada uma de suas representações
obsessivas, exclusivamente pelo trabalho lógico e pelo recurso a suas
lembranças conscientes. Isso leva a um pensamento obsessivo, a uma compulsão
a testar coisas e à mania de duvidar. A vantagem que a percepção
leva sobre a lembrança em tais testes inicialmente impele e depois compele o
paciente a colecionar e armazenar todos os objetos com que entra em contato. A
defesa secundária contra os afetos obsessivos leva a um conjunto ainda
mais vasto de medidas protetoras passíveis de se transformarem em atos
obsessivos. Estes podem ser agrupados de acordo com seu objetivo; medidas penitenciais
(cerimoniais opressivos, observação de números); medidas de precaução
(toda sorte de fobias, superstição, minuciosidade, aumento do sintoma primário
de conscienciosidade); medidas relacionadas com o medo de delatar-se
(colecionar pedaços de papel, isolar-se), ou medidas para assegurar o entorpecimento
|da mente| (dipsomania). Entre esses atos e impulsos obsessivos, as fobias, por
restringirem a existência do paciente, desempenham o papel mais importante.
Há
casos em que se pode observar como a obsessão é transferida da representação ou
do afeto para a medida protetora; outros em que a obsessão oscila
periodicamente entre o sintoma do retorno do recalcado e o sintoma da defesa
secundária; e ainda outros casos em que nenhuma representação obsessiva é
construída, mas, em vez disso, a lembrança recalcada é imediatamente
representada pelo que é, aparentemente, uma medida primária de defesa. Aqui
atingimos de um salto o estágio que, em outros casos, só encerra o curso
percorrido pela neurose obsessiva após a ocorrência da luta defensiva. Os casos
graves desse distúrbio terminam na fixação das ações cerimoniais, ou num estado
generalizado de mania de duvidar, ou numa vida de excentricidades condicionada
pelas fobias.
O
fato de as representações obsessivas e o que delas deriva não receberem nenhum
crédito |por parte do sujeito| explica-se, sem dúvida, pelo fato de, na época
de seu primeiro recalcamento, ter-se formado o sintoma defensivo da conscienciosidade,
e por tal sintoma adquirir também uma força obsessiva. A certeza do sujeito de
ter vivido uma vida moralmente correta durante todo o período da defesa
bem-sucedida torna-lhe impossível acreditar na auto-acusação que sua
representação obsessiva implica. Apenas transitoriamente, ao aparecer uma nova
representação obsessiva ou, ocasionalmente, em estados melancólicos de
esgotamento do ego, é que os sintomas patológicos do retorno do recalcado
compelem à crença. O caráter “obsessivo” das formações psíquicas que aqui
descrevi geralmente nada tem a ver com a crença que se lhes atribua. Tampouco
se deve confundi-lo com o fator que é descrito como “força” ou “intensidade” de
uma representação. Sua essência é, antes, a indissolubilidade pela atividade
psíquica passível de ser consciente; e esse atributo não sofre nenhuma mudança,
quer a representação à qual se liga a obsessão seja mais forte ou mais fraca,
mais ou menos intensamente “esclarecida”, ou “investida de energia”, e assim
por diante.
A
causa dessa invulnerabilidade da representação obsessiva e de seus derivados
nada mais é, no entanto, do que sua ligação com a lembrança recalcada da tenra
infância. E isso porque, ao conseguirmos tornar tal ligação consciente - e os
métodos psicoterápicos já parecem poder fazer isso -, também a obsessão é
resolvida.
III - ANÁLISE DE UM CASO DE PARANÓIA CRÔNICA
Por
tempo considerável tenho alimentado a suspeita de que também a paranóia - ou
algumas classes de casos que se incluem na categoria de paranóia - é uma
psicose de defesa; isto é, que, tal como a histeria e as obsessões, ela provém
do recalcamento de lembranças aflitivas, sendo seus sintomas formalmente
determinados pelo conteúdo do que foi recalcado. Entretanto, a paranóia deve
ter um método ou mecanismo especial de recalcamento que lhe é peculiar, assim
como a histeria efetua o recalque pelo método da conversão em inervação
somática, e neurose obsessiva, pelo método da substituição (ou seja,
pelo deslocamento através de certas categorias de associações). Eu havia
observado diversos casos que favoreciam essa interpretação, mas nenhum que a
comprovasse; até que, alguns meses atrás, tive a oportunidade, graças à
gentileza do Dr. Josef Breuer, de empreender a psicanálise, com propósitos
terapêuticos, de uma mulher inteligente de 32 anos em cujo caso não se podia
questionar o diagnóstico de paranóia crônica. Relato nestas páginas, sem mais
delongas, parte das informações que pude obter a partir desse trabalho, pois
não tenho perspectivas de estudar a paranóia exceto em ocasiões muito isoladas,
e porque acho possível que meus comentários possam encorajar algum psiquiatra
mais bem situado que eu nesse assunto a conferir ao fator da “defesa” seu lugar
de direito na discussão sobre a natureza e o mecanismo psíquico. Naturalmente,
com base na observação isolada que se segue, não tenho intenção de dizer mais
do que: “Este é um caso de psicose de defesa e, muito provavelmente, há outros
classificados como ‘paranóia’ que também o são.”
A Sra.
P., de 32 anos de idade, é casada há três anos e mãe de uma criança de dois.
Seus pais não eram neuróticos, mas seu irmão e sua irmã são, a meu ver,
neuróticos como a Sra. P. É duvidoso se ela teria ou não, em alguma época entre
seus vinte e trinta anos, ficado temporariamente deprimida e confusa em seus
julgamentos. Nos últimos anos, era saudável e capaz, até que, seis meses após o
nascimento de seu filho, mostrou os primeiros sinais de sua atual enfermidade.
Tornou-se pouco comunicativa e desconfiada, manifestando aversão ao
encontrar-se com os irmãos e irmãs do marido, e passou a se queixar de que seus
vizinhos, na pequena cidade onde vivia, se estavam comportando para com ela de
modo diferente do que faziam antes, sendo grosseiros e sem consideração. Gradualmente,
essas queixas foram aumentando de intensidade, embora não em sua clareza. A
Sra. P. achava que as pessoas tinham alguma coisa contra ela, embora não
tivesse idéia do que fosse; mas não havia dúvida de que todos - parentes e
amigos - tinham deixado de respeitá-la e estavam fazendo tudo o que podiam para
menosprezá-la. Ela quebrava a cabeça, segundo dizia, para descobrir a razão
disso, mas não fazia a menor idéia. Pouco tempo depois, queixou-se de que
estava sendo observada, e de que as pessoas liam seus pensamentos e sabiam tudo
o que ocorria em sua casa. Uma tarde, repentinamente, ocorreu-lhe que estava
sendo observada enquanto se despia, à noite. Desde então, passou a tomar
medidas da maior precaução ao despir-se; ia para o cama na escuro e só começava
a tirar a roupa quando já estava embaixo das cobertas. Como evitasse todo o
contato com outras pessoas, comesse frugalmente e estivesse muito deprimida,
mandaram-na, no verão de 1895, a um estabelecimento hidropático. Lá, surgiram
novos sintomas e os que ela já tinha aumentaram de intensidade. Já na primavera
daquele ano, num dia em que estava sozinha com sua criada, tivera subitamente
um sensação em seu baixo abdome e pensara consigo mesmo que a moça, naquele
momento, tinha tido uma idéia imprópria. Essa sensação tornou-se mais freqüente
durante o verão, até torna-se quase contínua. Ela sentia seus órgãos genitais
“como se sente uma mão pesada”. Começou então a ver coisas que a horrorizavam -
alucinações de mulheres nuas, especialmente da parte inferior do abdome
feminino com os pêlos pubianos e, ocasionalmente, também da genitália
masculina. A imagem do abdome com os pêlos e a sensação física em seu próprio
abdome costumavam ocorrer juntas. As imagens tornaram-se muito torturantes,
pois ocorriam regularmente quando ela estava em companhia feminina e a faziam
pensar que estava vendo a mulher num estado indecente de nudez, mas que,
simultaneamente, a mulher estava tendo dela o mesmo quadro (!). Ao mesmo tempo
que tinha essa alucinações visuais - que se desvaneceram novamente por vários
meses, depois de surgirem pela primeira vez no estabelecimento hidropático -,
ela começou a ser importunada por vozes que não reconhecia nem conseguia
explicar. Quando estava na rua, elas diziam: “Aquela é a Sra. P. - Lá vai ela!
Aonde estará indo?” Cada um de seus movimentos e atos era comentado; e ouvia às
vezes ameaças e censuras. Todos esse sintomas pioravam quando ela estava
acompanhada ou na rua. Por essa razão, recusava-se a sair; dizia que comer a
nauseava; e seu estado de saúde deteriorou-se rapidamente.
Obtive
todas essas informações por ela mesma, quando veio a Viena tratar-se comigo, no
inverno de 1895. Fiz dela uma exposição extensa porque quero transmitir a
impressão de que o que temos aqui é, de fato, uma forma bem freqüente de
paranóia crônica - conclusão a que veremos que se ajustam os detalhes de seus
sintomas e comportamentos que ainda tenho a descrever. Nessa ocasião, ela
escondeu de mim os delírios que serviriam para interpretar suas alucinações, ou
talvez os delírios de fato ainda não tivessem ocorrido. Sua inteligência não
diminuíra; a única coisa estranha de que tomei conhecimento foi que ela havia
marcado encontros repetidos com seu irmão, que morava na imediações, para
confiar-lhe alguma coisa importante, mas nunca lhe dissera nada. Ela nunca
falou sobre suas alucinações e, ao se aproximar o fim, também não dizia mais
muita coisa sobre as desfeitas e perseguições a que era submetida.
O que
tenho a relatar sobre essa paciente refere-se à etiologia do caso e ao
mecanismo das alucinações. Descobri a etiologia quando apliquei o método de
Breuer, exatamente como num caso de histeria - em primeiro lugar, para a
investigação e eliminação das alucinações. Ao fazê-lo, parti do pressuposto de
que nesse caso de paranóia, exatamente como nas outras duas neuroses de defesa
com que eu estava familiarizado, devia haver pensamentos inconscientes e
lembranças recalcadas que poderiam ser trazidos à consciência do mesmo modo que
naquelas neuroses, superando-se uma certa resistência. A paciente imediatamente
confirmou minha expectativa, pois comportou-se na análise exatamente como, por
exemplo, um paciente histérico; concentrando sua atenção sob a pressão de minha
mão, ela produziu pensamentos que não se lembrava de ter tido, que a princípio
não entendia e que eram contrários as suas expectativas. A presença de
representações inconscientes importantes foi assim demonstrada também num caso
de paranóia, e pude ter esperanças de investigar também a compulsão da paranóia
até o recalcamento. A única peculiaridade consistia em que os pensamentos que
emergiam do inconsciente eram, em sua maior parte, ouvidos interiormente pela
paciente ou alucinados por ela, do mesmo modo que suas vozes.
Quanto
à origem das alucinações visuais, ou ao menos das imagens nítidas, fiquei
sabendo o seguinte: a imagem da parte inferior de um abdome de mulher quase
sempre coincidia com a sensação física em seus próprio abdome; esta última,
porém, era muito mais constante, e freqüentemente ocorria sem a imagem. As
primeiras imagens de um abdome de mulher haviam surgido no estabelecimento
hidropático, poucas horas depois de ela ter visto, de fato, diversas mulheres
nuas nos banhos; assim, tais imagens revelaram ser simples reproduções de uma
impressão real. Era de se presumir, portanto, que essas impressões se haviam
repetido apenas por causa de um grande interesse ligado a elas. A Sra. P. me
disse que se sentira envergonhada por essas mulheres; ela própria tinha
vergonha de ser vista nua desde quando podia lembrar-se. Como estivesse
obrigado a encarar a vergonha como alguma coisa obsessiva, concluí, de acordo
com o mecanismo de defesa, que deveria ter sido recalcada uma experiência
relacionada com algo de que ela não se envergonhara. Assim, pedi-lhe que deixasse
emergirem as lembranças pertinentes ao tema de sentir-se envergonhada. Ela
prontamente reproduziu uma série de cenas que retrocediam dos dezessete aos
oito anos de idade, nas quais se envergonhava de estar nua no banho diante de
sua mãe, sua irmã e do médico; mas a série terminou numa cena aos seis anos de
idade, na qual ela se despia no quarto das crianças antes de ir para a cama,
sem sentir qualquer vergonha diante do irmão que lá estava. Quando a
interroguei, tornou-se clara que cenas como essa tinham ocorrido freqüentemente
e que, durante anos, irmão e irmã tiveram o hábito de se exibirem nus um para o
outro antes de irem para a cama. Compreendi então o sentido de sua idéia
repetida de que estava sendo observada ao ir para a cama. Era um fragmento inalterado
da antiga lembrança que envolvia uma autocensura, e ela agora estava suprimindo
a vergonha que deixara de sentir quando criança.
Minha
conjetura de que estaríamos diante de um caso amoroso entre crianças, como se
encontra tão freqüentemente na etiologia da histeria, foi reforçada pelo
progresso posterior da análise, que, ao mesmo tempo, forneceu soluções para
detalhes individuais freqüentemente recorrentes no quadro clínico da paranóia.
A depressão da paciente começou na época de uma discussão entre seu marido e
seu irmão, em conseqüência da qual este passou a não mais freqüentar sua casa.
Ela sempre apreciara muito esse irmão e, nessa ocasião, sentira imensamente sua
falta. Além disso, ela falou num certo momento de sua doença em que, pela
primeira vez, “tudo ficara claro para ela” - ou seja, em que ela se convencera
da verdade de sua suspeita de que todos a desprezavam e a desfeiteavam
deliberadamente. Essa certeza lhe viera durante uma visita de sua cunhada, que,
no decorrer da conversa, deixara escapar estas palavras: “Quando me acontece
alguma coisa desse tipo, eu a trato com descaso.” A princípio, a Sra. P. tomou
esse comentário sem desconfianças; depois, porém, quando a visitante já se
retirara, pareceu-lhe que essas palavras continham uma censura, como se ela
tivesse o hábito de tratar as coisas sérias com descaso; e a partir desse
momento, teve certeza de que era vítima da maledicência geral. Quando lhe
perguntei sobre o que a fizera sentir-se justificada para aplicar tais palavras
a si mesma, respondeu que fora o tom em que a cunhada tinha falado que a
convencera disso (embora, é verdade, apenas posteriormente). Esse é um detalhe
característico da paranóia. Obriguei-a então a lembrar-se do que a cunhada
estivera dizendo antes do comentário de que ela se queixava, e emergiu a
resposta de que a cunhada estivera contando como, na casa dos pais dela, tinha
havido toda sorte de dificuldades com seus irmãos, e acrescentara o
comentário sensato: “Em toda família acontecem coisas sobre as quais se gostaria
de pôr uma pedra. Mas quando uma coisa desse tipo acontece comigo, eu a
trato com descaso.” A Sra. P. teve então que admitir que sua depressão estava
ligada às declarações feitas pela cunhada antes do último comentário.
Uma vez que recalcara ambas as afirmações que poderiam ter despertado a
lembrança de suas relações com seu irmão, e retivera apenas a última e
insignificante afirmação, foi a esta que se viu obrigada a ligar seu sentimento
de que a cunhada a estivera censurando; e, já que o conteúdo não
oferecia nenhuma base para isso, ela se voltara do conteúdo para o tom
em que as palavras tinham sido proferidas. Essa é, provavelmente, uma evidência
típica de que as interpretações errôneas da paranóia se baseiam num
recalcamento.
A
conduta singular de minha paciente, marcando encontros com o irmão nos quais
nada lhe dizia, foi também resolvida de maneira surpreendente. Sua explicação
foi que ela pensara que, se pudesse apenas olhá-lo, ele estaria fadado a
entender seus sofrimentos, uma vez que lhes conhecia a causa. Ora, como esse
irmão era, de fato, a única pessoa que poderia saber da etiologia de sua
doença, estava claro que ela agira de acordo com um motivo que, embora ela
própria não compreendesse conscientemente, seria considerado perfeitamente justificado
tão logo lhe fosse dado um sentido derivado do inconsciente.
Consegui
então fazê-la reproduzir as várias cenas de seu relacionamento sexual com o
irmão (que certamente durara pelo menos dos seis aos dez anos.) Durante esse
trabalho de reprodução, a sensação física em seu abdome “participou da
conversa”, por assim dizer, tal como se observa regularmente na análise de
resíduos mnêmicos histéricos. A imagem da parte inferior do abdome de uma
mulher nua (agora reduzido às suas proporções infantis, e sem pêlos) aparecia
junto com a sensação, ou permanecia afastada, dependendo de a cena em questão
ter ocorrido em plena luz ou no escuro. Sua repugnância em comer também
encontrou explicação num detalhe repulsivo desses procedimentos. Depois de
percorrermos essa série de cenas, as sensações e imagens alucinatórias
desapareceram e (ao menos até o presente) não retornaram.
Assim,
eu havia descoberto que essas alucinações nada mais eram que partes do conteúdo
de suas experiências infantis recalcadas, ou seja, sintomas do retorno do
recalcado.
Voltei-me
então para a análise das vozes. Antes de mais nada, era preciso explicar por
que um conteúdo tão neutro como “Ali vem a Sra. P.”, ou “Ela agora está
procurando uma casa” etc., podia afligi-la tanto; em seguida, por que é que
precisamente essas frases inocentes tinham chegado a ser marcadas por um
reforço alucinatório. Logo de saída, ficou claro que “as vozes” não poderiam
ser lembranças produzidas de modo alucinatório, como as imagens e as
sensações, mas eram pensamentos “ditos em voz alta”.
A
primeira vez que ela ouviu as vozes foi nas seguintes circunstâncias. Estava
lendo com ávido interesse a bela história de Otto Ludwig, Die Heiterethei,
e notou que, enquanto lia, iam emergindo pensamentos que reclamavam sua atenção.
Logo em seguida, saiu para um passeio por uma estrada campestre e, quando
passava por uma pequena casa camponesa, as vozes subitamente lhe disseram: “É
assim que era a cabana de Heiterethei! Lá está a fonte e lá estão as moitas!
Como ela era feliz, apesar de toda a sua pobreza!” As vozes então lhe repetiram
parágrafos inteiros que ela acabara de ler. No entanto, permanecia
ininteligível a razão de a cabana de Heiterethei, com as moitas e a fonte, e
precisamente as passagens mais banais e irrelevantes da história, serem
impostas a sua atenção com uma intensidade patológica. Entretanto, a solução do
enigma não foi difícil. Sua análise mostrou que, enquanto estava lendo, ela
tivera também outros pensamentos e fora excitada por passagens muito diferentes
do livro. Contra esse material - analogias entre o casal da história e ela
própria e seu marido, lembranças da intimidade na vida conjugal e de segredos
de família -, contra tudo isso levantara-se uma resistência recalcadora, porque
o material estava ligado, por associações de pensamentos facilmente
demonstráveis, a sua aversão pela sexualidade e assim, em última instância,
remontava a sua antiga experiência infantil. Em conseqüência dessa censura
exercida pelo recalque, as passagens inócuas e idílicas, que estavam ligadas
por contraste e por contigüidade às que tinham sido proscritas, adquiriram a
força adicional, em sua relação com a consciência, que tornou possível dizê-las
em voz alta. A primeira das representações recalcadas, por exemplo,
relacionava-se com a maledicência a que a heroína, que morava sozinha, ficava
exposta por parte de seus vizinhos. Minha paciente descobriu facilmente a
analogia com ela própria. Também morava num lugarejo, não se encontrava com
ninguém e se considerava desprezada pelos vizinhos. Essa desconfiança em
relação aos vizinhos tinha um fundamento real. A princípio, ela fora obrigada a
se contentar com um pequeno apartamento em que a parede do quarto na qual se
encostava a cama de casal era adjacente a um quarto pertencente a seus
vizinhos. Com o início do casamento - obviamente pelo despertar inconsciente de
seu caso amoroso infantil, onde ela e o irmão brincavam de marido e mulher -
ela desenvolveu uma grande aversão à sexualidade. Estava constantemente
preocupada com a idéia de que os vizinhos ouvissem palavras e ruídos através da
parede comum, e essa vergonha transformou-se em suspeita em relação aos
vizinhos.
Assim,
as vozes deviam sua origem ao recalcamento de representações que, em última
análise, eram de fato auto-acusações por experiências que eram análogas a seu
trauma infantil. Por conseguinte, as vozes eram sintomas do retorno do
recalcado. Ao mesmo tempo, porém, eram conseqüência de uma formação de
compromisso entre a resistência do ego e o poder do retorno do recalcado - uma
solução que, nesse exemplo, acarretara uma distorção que eliminava a
possibilidade de reconhecimento. Em outras situações em que tive oportunidade
de analisar as vozes da Sra. P., a distorção foi menor. Não obstante, as
palavras que ela ouvia tinham um braço de diplomática indefinição: a alusão
insultuosa era, em geral, profundamente escondida; a conexão entre as frases
soltas era disfarçada por uma estranha forma de expressão, por maneirismos
incomuns da fala, e assim por diante - características que são comuns às
alucinações auditivas dos paranóicos em geral e nas quais percebo os vestígios
de distorção pela formação de compromisso. Por exemplo, o comentário “lá vai a
Sra. P.; está procurando uma casa na rua” significava uma ameaça de que ela
nunca se recuperaria, pois eu lhe prometera que, após o tratamento, ela poderia
voltar à cidadezinha onde seu marido trabalhava. (Provisoriamente, alojava-se
em Viena por alguns meses.)
Em
ocasiões isoladas a Sra. P. recebia também ameaças mais claras - por exemplo,
com respeito aos parentes de seu marido; mas havia ainda um contraste entre a
maneira reservada como eram expressas e os tormentos que as vozes lhe causavam.
Em vista do que se sabe da paranóia além disso, inclino-me a supor que há um
gradual comprometimento das resistências que enfraquecem as auto-acusações, de
modo que, por fim, a defesa fracassa por completo e a auto-acusação original, o
termo real do insulto de que o sujeito vinha tentando poupar-se, retorna em sua
forma inalterada. Não sei, entretanto, se esse curso dos acontecimentos é
constante, nem se a censura das palavras que envolvem a auto-acusação pode
estar ausente desde o início ou persistir até o fim.
Agora,
resta-me apenas empregar o que aprendi a partir desse caso de paranóia para
fazer uma comparação dela com a neurose obsessiva. Em ambas, mostrou-se que o
recalcamento é o núcleo do mecanismo psíquico, e em ambas, o que foi recalcado
é uma experiência sexual na infância. Nesse caso de paranóia, além disso, todas
as obsessões provinham do recalque; os sintomas da paranóia permitem uma
classificação similar à que se mostrou justificada na neurose obsessiva. Parte
dos sintomas, ademais, provém da defesa primária - a saber, todas as
representações delirantes caracterizadas pela desconfiança e pela suspeita e
relacionadas à representação de perseguição por outrem. Na neurose obsessiva, a
auto-acusação inicial é recalcada pela formação do sintoma primário da defesa:
a autodesconfiança. Com isso, a auto-acusação é reconhecida como
justificável; e, para contrabalançá-la, a conscienciosidade que o sujeito
adquiriu durante seus intervalos sadios protege-o então de dar crédito às
auto-acusações que retornam sob a forma de representações obsessivas. Na
paranóia, a auto-acusação é recalcada por um processo que se pode descrever
como projeção. É recalcada pela formação do sintoma defensivo de desconfiança
nas outras pessoas. Dessa maneira, o sujeito deixa de reconhecer a
auto-acusação; e, como que para compensar isso, fica privado de proteção contra
as auto-acusações que retornam em suas representações delirantes.
Outros
sintomas de meu caso de paranóia devem ser descritos como sintomas de retorno
do recalcado, e também eles, como os sintomas da neurose obsessiva, ostentam
traços da única formação de compromisso que lhes permite a entrada na
consciência. É o caso, por exemplo, da representação delirante de minha
paciente de estar sendo observada ao despir-se, de suas alucinações visuais, de
suas alucinações de sensação e de sua audição de vozes. Na representação
delirante que acabo de mencionar há um conteúdo mnêmico quase inalterado, que
só se tornou vago por omissão. O retorno do recalcado em imagens visuais
aproxima-se mais na natureza da histeria do que do caráter da neurose
obsessiva; a histeria, porém, tem por hábito repetir os símbolos mnêmicos sem
alteração, enquanto as alucinações mnêmicas da paranóia sofrem uma distorção
similar à da neurose obsessiva: uma imagem moderna análoga toma o lugar da que
foi recalcada. (Por exemplo,o abdome de uma mulher adulta aparece no lugar de
um abdome infantil, e um abdome onde os pêlos são especialmente distintos, por
terem estado ausentes da impressão original.) Uma característica bastante
peculiar à paranóia, e sobre a qual esta comparação não pode lançar mais luz, é
que as auto-acusações recalcadas retornam sob a forma de pensamentos ditos em
voz alta. No decorrer desse processo, eles são obrigados a submeter-se a uma
dupla distorção: ficam sujeitos a uma censura, que os leva a serem substituídos
por outras representações associadas, ou a serem ocultados por um modo de
expressão indefinido, sendo relacionados com experiências recentes que nada
mais são do que experiências análogas às antigas.
O
terceiro grupo de sintomas encontrados na neurose obsessiva, os sintomas da
defesa secundária, não pode estar presente como tal na paranóia, porque nenhuma
defesa pode valer contra os sintomas de retorno aos quais, como sabemos,
liga-se uma crença. Em lugar disso, encontramos na paranóia uma outra fonte
para a formação de sintomas. As representações delirantes que chegam à
consciência através de uma formação de compromisso (os sintomas do retorno |do
recalcado|) fazem exigências à atividade de pensamento do ego, até que possam
ser aceitas sem contradição. Visto que elas próprias não são influenciáveis, o
ego precisa adaptar-se a elas; e assim, o que aqui corresponde aos sintomas da
defesa secundária na neurose obsessiva é uma formação delirante combinatória- delírios
interpretativos que terminam por uma alteração do ego. Nesse
aspecto, o caso em discussão não foi completo; na época, minha paciente ainda
não apresentava nenhum sinal das tentativas de interpretação que apareceram
mais tarde. Mas não tenho dúvidas de que, se aplicarmos a psicanálise também a
esse estágio da paranóia, poderemos chegar a outro resultado importante.
Dever-se-á então constatar que a chamada fraqueza de memória dos
paranóicos é também tendenciosa - isto é, baseia-se no recalque e serve aos
fins do recalque. Ocorre um recalcamento e substituição subseqüentes de
lembranças que não são nada patogênicas, mas que contradizem a alteração do ego
tão insistentemente exigida pelos sintomas do retorno do recalcado.
A ETIOLOGIA DA
HISTERIA (1896)
NOTA
DO EDITOR INGLÊS
ZUR AETIOLOGIE DER
HISTERIE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1896 Wien.
klin. Rdsch., 10 (22), 379-81, (23), 395-7, (24), 413-15, (25), 423-3, e
(26), 450-2. (31 de maio, 7, 14, 21 e 28 de junho.)
1906 S.K.S.N., 1, 149-180. (1911, 2ª ed., 1920, 3ª ed., 1922, 4ª
ed.)
1925 G.S., 1,
404-38.
1952 G.W., 1,
425-59.
(b)TRADUÇÃO INGLESA:
“The
Aetiology of Hysteria”
1924 C.P.,
1, 183-219. (Trad. de C. M. Baines.)
Incluído
(Nº XXXVI) na coleção de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud elaborada
por ele mesmo (1897b). A presente tradução é uma versão modificada da de 1924.
Segundo
uma nota de rodapé na Wiener klinische Rundschau de 31 de maio de 1896,
este artigo se baseia numa conferência proferida por Freud ante a “Verein für
Psychiatrie und Neurologie” no dia 2 de maio. A exatidão dessa data, contudo, é
questionável. Numa carta não publicada a Fliess, de quinta-feira, 16 de abril,
Freud escreveu que, na terça-feira seguinte |21 de abril|, deveria fazer uma
conferência diante da “Psychiatrischer Verein” Não especifica o tema, mas, numa
outra carta inédita, datada de 26 e 28 de abril de 1896, relatou ter feito
perante aquela sociedade uma conferência sobre a etiologia da histeria.
Prosseguiu comentando que “os imbecis deram-lhe uma recepção gélida” e que
Kraff-Ebing, que estava na presidência, dissera que aquilo soava como um conto
de fadas científico. Ainda em outra carta, datada de 30 de maio, dessa vez
incluída na correspondência com Fliess (Freud, 1950a, Carta 46), escreveu:
“Desafiando meus colegas, redigi toda a minha conferência sobre a etiologia da
histeria para Paschkis |o editor da Rundschau|” E sua publicação de fato
começou naquele periódico, no dia seguinte. De tudo isso parece depreender-se
que a conferência foi realmente proferida a 21 de abril de 1896.
O
presente trabalho pode ser considerado uma repetição ampliada da primeira seção
de seu predecessor, o segundo artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1896b).
As descobertas de Freud sobre as causas da histeria são dadas em maior detalhe,
com um relato das dificuldades que ele teve de vencer para atingi-las. Muito
mais espaço é devotado, especialmente na última parte do artigo, às
experiências sexuais na infância, que Freud acreditava estarem por trás dos
sintomas posteriores. Como nos artigos anteriores, essa experiências são
encaradas como sendo invariavelmente uma iniciativa dos adultos: a percepção da
existência da sexualidade infantil repousava ainda no futuro. Há, entretanto,
um indício (ver em [1] e [2]) do que seria descrito nos Três Ensaios
(1905d), Edição Standard Brasileira, Vol. VII, ver em [1], IMAGO
Editora, 1989, como o caráter “perverso polimorfo” da sexualidade infantil.
Entre outros pontos de interesse, podemos notar uma crescente tendência a
proferir as explicações psicológicas às neurológicas (ver em [1]), bem como uma
primeira tentativa de resolver o problema a “escolha da neurose” (ver em [1] e
[2]), que viria a ser um tema de discussão constantemente retomado. As variadas
concepções de Freud a esse respeito são examinadas na Nota do Editor inglês a
“A Predisposição à Neurose Obsessiva” (1913i), Edição Standard
Brasileira, Vol. XII, ver em [1] e segs., IMAGO Editora, 1976; de fato, o
assunto já fora abordado nos dois artigos a este (ver em [1], [2] e [2]).
A
ETIOLOGIA DA HISTERIA
I
SENHORES:
Quando
nos dispomos a formar uma opinião sobre a causação de um estado patológico como
a histeria, começamos por adotar o método de investigação anamnésica;
interrogamos o paciente ou aqueles que o cercam, a fim de descobrir a que
influências danosas eles próprios atribuem seu adoecimento e o desenvolvimento
desses sintomas neuróticos. O que descobrimos dessa maneira, naturalmente, é
falseado por todos os fatores que comumente ocultam de um paciente o
conhecimento de seu próprio estado - por sua falta de compreensão científica
das influências etiológicas, pela falácia do post hoc, propter hoc, e
por sua relutância em pensar, ou mencionar certas perturbações e traumas.
Assim, ao fazermos uma investigação anamnésica desse tipo, atemo-nos ao
princípio de não adotar a crença dos pacientes sem um minucioso exame crítico,
de não lhes permitir que postulem por nós nossa opinião científica sobre a
etiologia da neurose. Embora, por um lado, realmente reconheçamos a veracidade
de certas asserções constantemente repetidas, tais como a de que o estado
histérico é um efeito tardio e duradouro de uma emoção vivida no passado,
introduzimos na etiologia da histeria, por outro lado, um fator que o próprio
paciente nunca menciona e cuja validade só admite com relutância - a saber, a
predisposição hereditária derivada de seus antepassados. Como sabem os
senhores, do ponto de vista da influente escola de Charcot, somente a
hereditariedade merece ser reconhecida como a verdadeira causa da histeria,
enquanto todas as outras perturbações, da mais variada natureza e intensidade,
desempenham apenas o papel de causas incidentais, de “agents provocateurs”.
Os
senhores hão de admitir prontamente que seria bom dispormos de um segundo
método de chegar à etiologia da histeria, um método em que nos sentíssemos
menos dependentes das asserções dos próprios pacientes. Um dermatologista, por
exemplo, pode reconhecer uma chaga como sendo luética pelo caráter de suas
bordas, de sua crosta e de sua forma, sem se deixar enganar pelos protestos do
paciente, que nega qualquer fonte dessa infecção; e um médico-legista pode
chegar à causa de um ferimento mesmo tendo que prescindir de qualquer
informação da pessoa ferida. Também na histeria existe uma possibilidade
similar de penetrarmos, a partir dos sintomas, no conhecimento de suas causas.
Contudo, para explicar a relação entre o método que temos de empregar para esse
fim e o antigo método da investigação anamnésica, eu gostaria de expor aos
senhores uma analogia baseada num avanço real efetuado em outro campo de
trabalho.
Imaginemos
que um explorador chega a uma região pouco conhecida onde seu interesse é
despertado por uma extensa área de ruínas, com restos de paredes, fragmentos de
colunas e lápides com inscrições meio apagadas e ilegíveis. Pode contentar-se
em inspecionar o que está visível, em interrogar os habitantes que moram nas
imediações - talvez uma população semibárbara - sobre o que a tradição lhes diz
a respeito da história e do significado desses resíduos arqueológicos, e em
anotar o que eles lhe comunicarem - e então seguir viagem. Mas pode agir de
modo diferente. Pode ter levado consigo picaretas, pás e enxadas, e colocar os
habitantes para trabalhar com esses instrumentos. Junto com eles, pode partir
para as ruínas, remover o lixo e, começando dos resíduos visíveis, descobrir o
que está enterrado. Se seu trabalho for coroado de êxito, as descobertas se
explicarão por si mesmas: as paredes tombadas são parte das muralhas de um
palácio ou de um depósito de tesouro; os fragmentos de colunas podem
reconstituir um templo; as numerosas inscrições, que, por um lance de sorte,
talvez sejam bilíngües, revelam um alfabeto e uma linguagem que, uma vez
decifrados e traduzidos, fornecem informações nem mesmo sonhadas sobre os
eventos do mais remoto passado em cuja homenagem os monumentos foram erigidos. Saxa
loquuntur!
Ao
tentarmos, de maneira aproximadamente semelhante, induzir os sintomas da
histeria a se fazerem ouvir como testemunhas da história da origem da doença,
devemos partir da portentosa descoberta de Josef Breuer: os sintomas das
histeria (à parte os estigmas) são determinados por certas experiências
do paciente que atuaram de modo traumático e que são reproduzidas em sua vida
psíquica sob a forma de símbolos mnêmicos. O que temos a fazer é aplicar o
método de Breuer - ou algum que lhe seja essencialmente idêntico - de modo a
fazer a atenção do paciente retroagir desde seu sintoma até a cena na qual e
pela qual o sintoma surgiu; e, tendo assim localizado a cena, eliminamos o
sintoma ao promover, durante a reprodução da cena traumática, uma correção
subseqüente do curso psíquico dos acontecimentos que então ocorreram.
Não é
minha intenção hoje discutir a difícil técnica desse procedimento terapêutico
ou as descobertas psicológicas que têm sido obtidas por seu intermédio. Sou
obrigado a partir desse ponto apenas porque as análises conduzidas nos termos
de Breuer parecem, ao mesmo tempo, abrir caminho para as causas da histeria. Se
submetermos a essa análise um número bastante grande de sintomas em inúmeros
sujeitos, chegaremos naturalmente ao conhecimento de um número
correspondentemente grande de cenas de ação traumatizante. São nessas
experiências que as causas eficientes da histeria entram em ação. Assim,
esperamos descobrir, partindo do estudo dessas cenas traumáticas, quais são as
influências que produzem sintomas histéricos e de que modo o fazem.
Essa
expectativa se mostra verdadeira; e nem poderia deixar de fazê-lo, uma vez que
as teses de Breuer, quando submetidas à verificação num número considerável de
casos, revelaram-se corretas. Mas o caminho que vai dos sintomas da histeria
até sua etiologia é mais trabalhoso, e passa por conexões bem diferentes do que
se poderia imaginar.
Portanto,
vamos esclarecer esse ponto. A atribuição de um sintoma histérico à cena
traumática só auxilia nossa compreensão quando a cena atende a duas condições:
quando possui a pertinente adequação para funcionar como determinante e
quando tem, reconhecidamente, a necessária força traumática. Em vez de
uma explicação verbal, aqui vai um exemplo. Suponhamos que o sintoma em exame
seja o vômito histérico; nesse caso, consideraremos que nos foi possível
compreender sua causação (exceto por um certo resíduo) se a análise atribuir o
sintoma a uma experiência que tenha justificavelmente produzido uma alta
dose de repugnância - por exemplo, a visão de um cadáver em decomposição.
Mas se, em vez disso, a análise nos mostrar que o vômito proveio de um grande
susto, como, por exemplo, num acidente ferroviário, ficaremos insatisfeitos e
teremos que nos perguntar por que o susto levou ao sintoma específico do
vômito. A essa derivação falta a adequação como determinante. Teremos
outro caso de explicação insuficiente se o vômito for supostamente proveniente,
digamos, de se ter comido uma fruta parcialmente estragada. Aqui, é verdade, o
vômito é determinado pela repugnância, mas não podemos compreender como, nesse
caso, a náusea ter-se-ia tornado tão poderosa a ponto de se perpetuar num
sintoma histérico; falta à experiência força traumática.
Consideremos
agora até que ponto as cenas traumáticas da histeria descobertas pela análise
preenchem, num grande número de sintomas e casos, os dois requisitos que
nomeei. Aqui deparamos com nossa primeira grande decepção. Realmente é verdade
que a cena traumática de que se origina o sintoma possui, ocasionalmente, as
duas qualidades - adequação como determinante e força traumática - de que
precisamos para a compreensão do sintoma. Com muito mais freqüência, porém, com
freqüência incomparavelmente maior, encontramos realizada uma de três outras possibilidades
muito desfavoráveis à compreensão: ou a cena a que somos conduzidos pela
análise e na qual o sintoma apareceu pela primeira vez parece-nos inadequada
para determiná-lo, no sentido de que seu conteúdo não tem nenhuma relação com a
natureza do sintoma; ou a experiência supostamente traumática, embora tenha de
fato uma relação com o sintoma, revela ser uma impressão normalmente inócua
e, via de regra, incapaz de produzir qualquer efeito; ou, finalmente, a “cena
traumática” nos deixa às escuras em ambos os aspectos, afigurando-se ao mesmo
tempo inócua e sem relação com o caráter do sintoma histérico.
(Posso
observar aqui, de passagem, que a concepção de Breuer sobre a origem dos
sintomas histéricos não é abalada pela descoberta de cenas traumáticas que
correspondem a experiências insignificantes em si mesmas. Isso porque Breuer
presumiu - seguindo Charcot - que mesmo uma experiência inócua pode ser elevada
à categoria de um trauma e desenvolver força determinante, se acontecer com o
sujeito num momento em que ele se achar num estado psíquico especial - no que
se descreve como estado hipnóide. Considero, porém, que muitas vezes não
há nenhum fundamento para se pressupor a presença de tais estados hipnóides. O
que permanece decisivo é que a teoria dos estados hipnóides em nada contribui
para a solução das outras dificuldades, a saber, que falta freqüentemente às
cenas traumáticas adequação como determinantes.)
Além
disso, senhores, essa primeira decepção que enfrentamos ao seguir o método de
Breuer é imediatamente seguida de outra, que é especialmente dolorosa para nós
como médicos. Quando nosso procedimento leva, como nos casos descritos acima, a
descobertas que são insuficientes enquanto explicação, tanto no aspecto de sua
adequação como determinante quanto no de sua eficiência traumática, também não
conseguimos assegurar nenhum proveito terapêutico; o paciente mantém seus
sintomas inalterados, a despeito do resultado inicial produzido pela análise.
Os senhores podem compreender como é grande a tentação, nesse ponto, de não
mais prosseguir no que, de qualquer modo, é um trabalho cansativo.
Mas
talvez tudo de que precisamos seja uma idéia nova para nos ajudar a sair de
nosso dilema e nos levar a resultados valiosos. A idéia é a seguinte. Como
sabemos através de Breuer, os sintomas histéricos podem ser resolvidos quando,
partindo deles, conseguimos encontrar o caminho de volta à lembrança de uma
experiência traumática. Se a lembrança que descobrimos não atende a nossa
expectativa, talvez devamos prosseguir um pouco mais no mesmo caminho; é
possível que, por trás da primeira cena traumática, oculte-se a lembrança de
uma segunda cena que satisfaça melhor a nossos requisitos e cuja reprodução
tenha maior efeito terapêutico; de modo que a cena descoberta em primeiro lugar
tem apenas a importância de um elo de ligação na cadeia de associações. E
talvez essa situação se repita; cenas inoperantes poderão ser interpoladas mais
de uma vez, como transições necessárias no processo de reprodução, até que
encontremos finalmente nosso caminho desde o sintoma histérico até a cena que é
efetivamente traumatizante e satisfatória em ambos os aspectos, tanto
terapêutica como analiticamente. Bem, senhores, essa suposição é correta.
Quando a cena inicialmente descoberta é insatisfatória, dizemos a nosso
paciente que essa experiência nada explica, mas que por trás dela deve
ocultar-se uma experiência anterior significativa; e dirigimos sua atenção,
pela mesma técnica, para o fio associativo que liga as duas lembranças - a que
foi descoberta e a que ainda está por se revelar. O prosseguimento da análise
leva então, na totalidade dos casos, à reprodução de novas cenas do tipo que
esperamos. Por exemplo, consideremos mais uma vez o caso de vômitos histéricos
que selecionei antes e no qual a análise remontou, primeiro, ao susto
decorrente de um acidente ferroviário - uma cena à qual faltava adequação como
determinante. A análise posterior mostrou que esse acidente despertara no
paciente a lembrança de outro acidente anterior, que, na verdade, ele próprio
não vivenciara, mas que lhe dera a oportunidade de ter uma visão medonha e
repulsiva de um cadáver. É como se a ação combinada das duas cenas tornasse
possível o cumprimento de nossos postulados, com uma experiência suprindo, pelo
susto, a força traumática, e a outra, por seu conteúdo, o efeito determinante.
O outro caso, em que o vômito foi atribuído ao ato de comer uma maçã
parcialmente estragada, foi ampliado pela análise mais ou menos da seguinte
maneira. A maçã estragada recordara ao paciente uma experiência anterior:
enquanto apanhava frutas derrubadas pelo vento num pomar, ele deparara
acidentalmente com um animal morto em estado repugnante.
Não
voltarei mais a esses exemplos, pois devo confessar que eles não derivam de
nenhum caso da minha experiência, sendo por mim inventados. E além disso, muito
provavelmente, mal inventados. Chego até a considerar impossíveis tais soluções
dos sintomas histéricos. Mas fui obrigado a criar exemplos fictícios por várias
razões, uma das quais posso declarar de imediato. Todos os exemplos reais são
incomparavelmente mais complicados: o relato detalhado de um só deles ocuparia
todo o tempo desta conferência. A cadeia de associações tem sempre mais do que
dois elos; e as cenas traumáticas não formam uma corrente simples, como um fio
de pérolas, mas antes se ramificam e se interligam como árvores genealógicas,
de modo que, a cada nova experiência, duas ou mais experiências anteriores
entram em operação como lembranças. Em suma, fazer um relato da resolução de um
único sintoma equivaleria, de fato, à tarefa de relatar um caso clínico
inteiro.
Mas
não devemos deixar de conferir ênfase especial a uma conclusão a que
inesperadamente levou o trabalho analítico ao longo dessas cadeias de
lembranças. Aprendemos que nenhum sintoma histérico pode emergir de uma
única experiência real, mas que, em todos os casos, a lembrança de experiências
mais antigas despertadas em associação com ela atua na causação do sintoma.
Se - como acredito - essa proposição se confirmar sem exceções, ela nos
mostrará, além disso, a base sobre a qual se deve construir uma teoria
psicológica da histeria.
Talvez
os senhores suponham que os raros casos em que a análise consegue refazer o
trajeto do sintoma, ligando-o diretamente a uma cena traumática inteiramente
adequada como determinante e que possui força traumática, e nos quais, ao
refazer esse trajeto, ela consegue ao mesmo tempo eliminar o sintoma (da
maneira descrita no caso clínico de Anna O., de Breuer) - talvez os senhores
suponham que, afinal, esses casos devem constituir objeções poderosas à
validade geral da proposição que acabo de formular. Certamente é o que parece.
Contudo, devo assegurar-lhes que tenho os melhores fundamentos para presumir
que, mesmo nesses casos, há uma cadeia de lembranças atuantes que se estende
muito além da primeira cena traumática, ainda que somente a reprodução
desta última possa resultar na eliminação do sintoma.
Parece-me
realmente assombroso que os sintomas histéricos só possam emergir com a
cooperação das lembranças, sobretudo ao refletirmos que, de acordo com os
relatos unânimes dos próprios pacientes, essas lembranças não tiveram acesso a
suas consciências no momento da primeira aparição do sintoma. Há aqui muita
matéria para reflexão, mas esses problemas não devem desviar-nos, neste ponto,
de nossa discussão sobre a etiologia da histeria. Devemos, antes,
perguntar-nos: a que ponto chegaremos se seguirmos as cadeias de lembranças
associadas que a análise desvendou? Até onde elas se estendem? Será que em algum
ponto encontram um fim natural? Levarão elas, talvez, experiências de algum
modo parecidas, seja em seu conteúdo, seja no período de vida em que ocorrem,
de sorte que possamos discernir nesses fatores universalmente similares a
etiologia da histeria que estamos procurando?
Os
conhecimentos que adquiri até aqui já me habilitam a responder a essas
perguntas. Ao considerarmos um caso que apresenta vários sintomas, chegamos,
através da análise, partindo de cada sintoma, a uma série de experiências cujas
lembranças se ligam em associação. A princípio, as cadeias de lembranças
percorrem cursos regressivos independentes, mas, como já disse, ramificam-se. A
partir de uma mesma cena, duas ou mais lembranças são atingidas ao mesmo tempo
e destas, por sua vez, procedem cadeias laterais cujos elos individuais podem
mais uma vez estar associativamente ligados a elos pertencentes à cadeia
principal. Na verdade, a comparação com a árvore genealógica de uma família
cujos membros também se casassem entre si não é nada má. Outras complicações na
vinculação das cadeias emergem da circunstância de que uma única cena pode ser
evocada várias vezes na mesma cadeia, apresentando assim múltiplas relações com
uma cena posterior e exibindo com ela tanto uma conexão direta quanto uma
conexão estabelecida através de laços intermediários. Em suma, a concatenação
está longe de ser simples; e o fato de as cenas serem descobertas numa ordem
cronológica invertida (fato esse que justifica nossa comparação desse trabalho
com a escavação de uma área) certamente em nada contribui para uma compreensão
mais rápida do que ocorreu.
Quando
a análise vai mais além, surgem novas complicações. As cadeias associativas
pertencentes aos diferentes sintomas começam a se relacionar entre si; as
árvores genealógicas se interpenetram. Assim, por exemplo, um sintoma
específico na cadeia de lembranças relacionada com o sintoma do vômito invoca
não apenas os elos anteriores de sua própria cadeia, mas também uma lembrança
de outra cadeia, relacionada com outro sintoma, tal como dor de cabeça. Essa
experiência, conseqüentemente, pertence a ambas as séries, e portanto constitui
um ponto nodal. Vários desses pontos nodais podem ser encontrados em
toda análise. Seu correlato no quadro clínico pode ser o fato de, a partir de
certo momento, ambos os sintomas aparecerem juntos, simbioticamente, sem terem
de fato qualquer dependência interna entre si. Retrocedendo ainda mais,
deparamos com pontos nodais de outra espécie. Aqui, as cadeias associativas
separadas convergem. Encontramos experiências de que dois ou mais sintomas se
originaram; uma cadeia ligou-se a um detalhe da cena, e segunda, a outro.
Mas a
descoberta mais importante a que chegamos, quando uma análise é
sistematicamente conduzida, é a seguinte: qualquer que seja o caso e qualquer
que seja o sintoma que tomemos como ponto de partida, no fim chegamos
infalivelmente ao campo da experiência sexual. Aqui, portanto, pela
primeira vez, parece que descobrimos uma precondição etiológica dos sintomas
histéricos.
Ajulgar
pela experiência prévia, antevejo que é precisamente contra essa asserção ou
contra sua validade universal que sua objeção, senhores, será dirigida. Talvez
fosse melhor dizer, sua inclinação a contestar, pois nenhum dos
senhores, sem dúvida, dispõe até o momento de investigações que, baseadas no
mesmo procedimento, possam ter produzido um resultado diferente. No que tange
ao próprio tema controvertido, farei apenas a observação de que a escolha do
fator sexual na etiologia da histeria não procede, pelo menos, de nenhuma
opinião preconcebida de minha parte. Os dois investigadores como discípulo dos
quais iniciei meus estudos da histeria, Charcot e Breuer, estavam longe de tal
pressuposição; de fato, tinham uma prevenção pessoal contra ela, da qual eu
originalmente partilhava. Apenas as mais laboriosas e detalhadas investigações
converteram-me, e bastante lentamente, à concepção que hoje sustento. Se
submeterem ao mais rigoroso exame minha afirmação de que a etiologia da
histeria repousa na vida sexual, os senhores verificarão que ela é confirmada
pelo fato de que, em dezoito casos de histeria, pude descobrir essa conexão em
cada sintoma isolado e, onde o permitiram as circunstâncias, pude confirmá-lo
pelo sucesso terapêutico. Sem dúvida, os senhores poderão levantar a objeção de
que a décima nona ou a vigésima análise talvez mostre que os sintomas
histéricos derivam também de outras fontes, assim reduzindo a validade
universal da etiologia sexual a uns oitenta por cento. Mas claro, vamos esperar
para ver! No entanto, já que esses dezoito casos são, ao mesmo tempo, todos os
casos em que pude realizar o trabalho da análise, e já que não foram
selecionados por ninguém visando a minha conveniência, os senhores hão de
considerar compreensível que eu não partilhe essa expectativa, mas esteja
disposto a deixar minha crença adiantar-se à força comprobatória das
observações que fiz até agora. Além disso, sou também influenciado por outro
motivo, que no momento é de valor meramente subjetivo. Na única tentativa que
pude fazer de explicar o mecanismo filosófico e psíquico da histeria, para
correlacionar minhas observações, passei a encarar a participação das forças
motivadoras sexuais como uma premissa indispensável.
Eventualmente,
portanto, após terem convergido as cadeias de lembranças, chegamos ao campo da
sexualidade e a um pequeno número de experiências que ocorrem, em sua maior
parte, no mesmo período da vida - ou seja, na puberdade. Ao que parece, é
nessas experiências que devemos procurar a etiologia da histeria, e é através
delas que aprenderemos a compreender a origem dos sintomas histéricos. Mas aqui
encontramos uma nova e seriíssima decepção. É verdade que essas experiências,
descobertas com tanta dificuldade e extraídas de todo o material mnêmico, e que
pareceriam ser as experiências traumáticas máximas, têm em comum as duas
características de serem sexuais e ocorrerem na puberdade; mas em todos os
outros aspectos, elas diferem muito entre si, tanto em espécie como em importância.
Em alguns casos, sem dúvida, nosso interesse é voltado para experiências que
devem ser encaradas como traumas graves - uma tentativa de estupro, talvez, que
de um só golpe revela a uma menina imatura toda a brutalidade do desejo sexual,
ou o testemunho involuntário de atos sexuais entre os pais, que a um só tempo
mostra uma insuspeitada fealdade e fere do mesmo modo a sensibilidade moral e
infantil, e assim por diante. Em outros casos, porém, as experiências são
surpreendentemente triviais. No caso de uma de minhas pacientes, sua neurose revelou
basear-se na seguinte experiência: um menino de seu círculo de relações lhe
acariciara ternamente a mão e, em outra oportunidade, pressionara o joelho
contra o vestido dela quando ambos se sentavam à mesa lado a lado, com uma
expressão no rosto que a fez perceber que ele estava fazendo alguma coisa
proibida. No caso de outra moça, o simples fato de ouvir uma charada que
sugeria uma resposta obscena foi suficiente para provocar o primeiro ataque de
angústia, e, com ele, o início da doença. Tais descobertas obviamente não
favorecem a compreensão da causação dos sintomas histéricos. Se tanto os
acontecimentos graves quanto os banais, e não apenas as experiências que afetam
o próprio corpo do sujeito, mas também as impressões visuais e as informações
recebidas pela audição devem ser reconhecidas como traumas últimos da histeria,
podemos ser tentados a arriscar a explicação de que os histéricos são criaturas
peculiarmente constituídas - provavelmente em virtude de alguma predisposição
hereditária ou atrofia degenerativa -, nas quais um retraimento da sexualidade,
que normalmente ocorre na puberdade, é elevado a um grau patológico e é
permanentemente mantido; são, portanto, por assim dizer, pessoas psiquicamente
inaptas para atender às exigências da sexualidade. Essa concepção, é claro,
deixa sem explicação a histeria masculina. No entanto, mesmo sem essas objeções
flagrantes, dificilmente ficaríamos tentados a nos contentar com essa solução.
Estamos cônscios demais de um sentimento intelectual de algo apenas parcialmente
entendido, obscuro e insuficiente.
Para
a felicidade de nossa explicação, algumas dessas experiências sexuais da
puberdade mostram mais uma insuficiência que é a conta certa para nos estimular
a prosseguir em nosso trabalho analítico. Pois ocorre que, algumas vezes,
também a elas falta adequação como determinante - embora isso ocorra muito mais
raramente do que com as cenas traumáticas pertencentes a uma etapa posterior da
vida. Assim, por exemplo, tomemos as duas pacientes a quem acabo de me referir
como casos em que as experiências da puberdade foram realmente inocentes. Em
conseqüência dessas experiências, as pacientes ficaram sujeitas a peculiares
sensações dolorosas nos órgãos genitais, que se haviam estabelecido como os
principais sintomas da neurose. Não pude encontrar nenhum indício de que
tivessem sido determinadas pelas cenas da puberdade ou por cenas posteriores;
todavia, certamente não eram sensações orgânicas normais, nem sinais de
excitação sexual. Parecia óbvio, portanto, dizer a nós mesmos que deveríamos
procurar os determinantes desses sintomas em outras experiências - em
experiências que retrocedessem ainda mais - e que deveríamos, pela segunda vez,
seguir a salvadora noção que já nos levara das primeiras cenas traumáticas às
cadeias de lembranças por trás delas. Ao fazer isso, é claro, chegamos ao
período da primeira infância, a um período anterior ao desenvolvimento da vida
sexual;e isso pareceria envolver o abandono de uma etiologia sexual. Mas será
que não temos o direito de presumir que nem mesmo a infância é desprovida de
leves excitações sexuais, e que o futuro desenvolvimento sexual talvez seja
decisivamente influenciado pelas experiências infantis? As lesões sofridas por
um órgão ainda imaturo, ou por uma função em processo de desenvolvimento,
freqüentemente causam efeitos mais graves e duradouros do que causariam em
época mais madura. Talvez a reação anormal às impressões sexuais, que nos
surpreende nos sujeitos histéricos na fase da puberdade, baseie-se, muito
genericamente, nesse tipo de experiências sexuais na infância, caso em que tais
experiências deverão ser de natureza uniforme e importante. Se assim for,
estará aberta a perspectiva de que o que até agora se atribuiu a uma
predisposição hereditária ainda inexplicada possa ser compreendido como algo
adquirido em tenra idade. E já que, afinal, as experiências infantis de
conteúdo sexual só poderiam exercer efeito psíquico através de seus traços
mnêmicos, não seria essa concepção uma ampliação bem-vinda da descoberta da
psicanálise que nos diz que os sintomas histéricos só podem emergir com a
cooperação de lembranças? |ver em [1] e [2].|
II
Os
senhores, sem dúvida, hão de ter imaginado que eu não teria levado tão longe
esta última linha de raciocínio se não quisesse prepará-los para a idéia de que
é só essa linha que, após tantas delongas, nós levará a nosso objetivo. Pois
agora estamos realmente no fim de nosso cansativo e penoso trabalho analítico,
e aqui vemos a realização de todas as pretensões e expectativas em que vínhamos
insistindo. Se tivermos a perseverança de avançar na análise até atingir a
primeira, retrocedendo até onde a memória humana é capaz de alcançar,
invariavelmente levaremos o paciente a reproduzir experiências que, graças a
seus traços peculiares e suas relações com os sintomas da doença posterior,
devem ser consideradas como a procurada etiologia de sua neurose. Essas
experiências infantis são, mais uma vez, de conteúdo sexual, mas
de um tipo muito mais uniforme do que as cenas da puberdade anteriormente
descobertas. Não se trata mais de temas sexuais que tenham sido despertados por
uma ou outra impressão sensorial, mas de experiências sexuais que afetaram o
próprio corpo do sujeito - de contato sexual (no sentido mais amplo). Os
senhores hão de admitir que a importância dessas cenas dispensa provas
adicionais; a isso podemos agora acrescentar que, na totalidade dos casos, os
senhores poderão descobrir, nos detalhes das cenas, os fatores determinantes
que talvez faltassem às outras cenas - às cenas que ocorreram mais tarde e
foram primeiro reproduzidas. |Cf. em [1].|
Exponho,
portanto, a tese de que, na base de todos os casos de histeria, há uma ou
mais ocorrências de experiência sexual prematura, ocorrências estas que
pertencem aos primeiros anos da infância, mas que podem ser reproduzidas
através do trabalho da psicanálise a despeito das décadas decorridas no
intervalo. Creio que essa é uma descoberta importante, a descoberta de uma caput
Nili na neuropatologia; mas é-me difícil saber que ponto de partida devo
tomar para o prosseguimento de minha discussão deste assunto. Deverei
apresentar-lhes o material real que obtive em minhas análises? Ou deverei
primeiro tentar fazer face à multidão de objeções e dúvidas que, como é
seguramente acertado supor, deve agora ter-se apossado de sua atenção?
Escolherei esse último caminho; talvez possamos então examinar os fatos com
mais calma.
(a)
Ninguém que se oponha completamente a uma visão psicológica da histeria, que
não se disponha a desistir da esperança de que algum dia seja possível reportar
seus sintomas a “alterações anatômicas mais sutis” e que tenha rejeitado a
concepção de que as bases materiais das mudanças histéricas estão fadadas a ser
do mesmo tipo que as de nossos processos mentais normais - ninguém que adote
essa atitude, é claro, terá qualquer confiança nos resultados de nossas
análises; entretanto, a diferença de princípio entre suas premissas e as nossas
dispensa-nos da obrigação de convencê-lo de quaisquer aspectos individuais.
Mas
também outras pessoas, ainda que menos avessas às teorias psicológicas da
histeria, ficarão tentadas, ao considerarem nossas descobertas analíticas, a
indagar sobre o grau de certeza que a aplicação da psicanálise oferece. E não
será também possível que o médico imponha tais cenas a seus dóceis pacientes,
alegando que elas são lembranças, ou ainda, que os pacientes digam ao médico
coisas que imaginaram ou inventaram deliberadamente, e que ele as aceite como
verdadeiras? Bem, minha resposta a isso é que a dúvida geral quanto à
fidedignidade do método psicanalítico só poderá ser apreciada e eliminada
quando se dispuser de uma apresentação completa de sua técnica e seus
resultados. As dúvidas quanto à autenticidade das cenas sexuais infantis,
entretanto, podem ser rebatidas aqui e agora por mais de um argumento. Em
primeiro lugar, o comportamento dos pacientes enquanto reproduzem essas
experiências infantis é, sob todos os aspectos, incompatível com a
pressuposição de que as cenas não sejam uma realidade sentida com sofrimento e
reproduzida com a mais extrema relutância. Antes de entrarem em análise, os
pacientes nada sabem sobre essas cenas. Em geral, ficam indignados quando os
advertimos de que tais cenas irão emergir. Apenas a intensa compulsão do
tratamento consegue induzi-los a embarcar na reprodução delas. Enquanto trazem
essas experiências infantis à consciência, eles sofrem as mais violentas
sensações, das quais se envergonham e que tentam ocultar; e, mesmo depois de as
terem revivido mais uma vez de maneira tão convincente, ainda tentam negar-lhes
crédito, enfatizando o fato de que, contrariamente ao que acontece no caso de
outros dados esquecidos, eles não têm nenhuma sensação de se lembrarem das
cenas.
Esse
último detalhe do comportamento parece fornecer provas conclusivas. Por que os
pacientes me garantiriam tão enfaticamente sua descrença, se o que querem
desacreditar é alguma coisa que - por qualquer motivo - eles próprios
inventaram?
É
menos fácil refutar a idéia de que o médico impõe esse tipo de reminiscências
ao paciente, influenciando-o por sugestão a imaginá-las e reproduzi-las.
Contudo, isso me parece igualmente insustentável. Até hoje, jamais consegui
impor a um paciente uma cena que eu esperasse descobrir, de tal modo que ele
parecesse vivê-la com todos os sentimentos apropriados. Talvez outros tenham
mais êxito nisso que eu.
Há,
todavia, inúmeras outras coisas que atestam a realidade das cenas sexuais
infantis. Em primeiro lugar, há a uniformidade que elas exibem em certos
detalhes, o que constitui uma conseqüência necessária, caso as precondições
dessas experiências sejam sempre do mesmo tipo, e que, se assim não fosse,
levar-nos-ia a crer na existência de um entendimento secreto entre os vários
pacientes. Em segundo lugar, os pacientes às vezes descrevem como sendo
inofensivos certos eventos cuja importância obviamente não percebem, já que, de
outro modo, ficariam horrorizados com eles. Ou então mencionam, sem
conferir-lhes qualquer ênfase, detalhes que somente alguém com experiência na
vida é capaz de compreender e apreciar como indícios sutis de realidade.
Esse
tipo de acontecimento fortalece nossa impressão de que os pacientes devem
realmente ter vivenciado aquilo que, sob a compulsão da análise, reproduzem
como cenas de sua infância. Mas outra prova ainda mais forte disso é fornecida
pela relação das cenas infantis com o conteúdo de todo o restante do caso
clínico. É exatamente como montar as peças de um quebra-cabeça infantil: depois
de muitas tentativas, ficamos absolutamente certos, no final, de qual das peças
se encaixa numa dada lacuna, pois apenas aquela peça completa o quadro e, ao
mesmo tempo, permite que suas bordas irregulares se ajustem às bordas das
outras peças de modo a não deixar nenhum espaço vazio nem acarretar nenhuma
superposição. Do mesmo modo, os conteúdos das cenas infantis revelam-se como
complementos indispensáveis à estrutura associativa e lógica da neurose, e sua
inserção evidencia pela primeira vez o curso de desenvolvimento da neurose, ou
mesmo, como muitas vezes poderíamos dizer, torna-o auto-evidente.
Sem
pretender enfatizar especialmente esse ponto, acrescentarei que, em diversos
casos, também é possível fornecer provas terapêuticas da autenticidade das
cenas infantis. Há casos em que se pode obter uma cura parcial ou completa sem que
tenhamos de nos aprofundar nas experiências infantis. E há outros em que não se
obtém absolutamente nenhum sucesso até que a análise chegue a seu fim natural,
com a descoberta dos traumas mais primitivos. A meu ver, nos primeiros casos,
não temos garantia contra as recaídas; e é minha expectativa que uma
psicanálise completa implique uma cura radical da histeria. Não devemos,
entretanto, ser levados a antecipar as lições da observação.
Haveria
outra prova realmente inatacável da autenticidade das experiências sexuais
infantis - a saber, se as declarações de alguém que estivesse sendo analisado
fossem confirmadas por outra pessoa, em tratamento ou não. Essas duas pessoas
deveriam ter tomado parte numa mesma experiência em sua infância - talvez
mantido algum relacionamento sexual entre si. Tais relações entre crianças,
como os senhores verão num momento |ver em [1]|, não são nada raras. Além
disso, é muito freqüente ambas as pessoas envolvidas sofrerem posteriormente de
neurose; mas considero um acidente fortuito que, em dezoito casos, eu tenha
podido obter em dois uma confirmação objetiva desse tipo. Num dos casos, foi o
irmão (que permanecera sadio) que confirmou, voluntariamente não, é verdade,
suas experiências sexuais precoces com a irmã (que era a paciente), mas, pelo
menos, a existência de cenas desse tipo em época posterior de sua infância, e o
fato de ter havido relações sexuais ainda mais cedo. No outro caso, deu-se que
duas mulheres que eu estava tratando haviam mantido, na infância, relações sexuais
com o mesmo homem, havendo certas cenas ocorrido à trois. Um sintoma
específico, derivado desses eventos infantis, havia surgido em ambas as
mulheres, como prova de sua experiência em comum.
(b)
As experiências sexuais infantis que consistem na estimulação dos órgãos
genitais, em atos semelhantes ao coito, e assim por diante, devem portanto ser
consideradas, em última análise, como os traumas que levam a uma reação
histérica nos eventos da puberdade e ao desenvolvimento de sintomas histéricos.
Essa afirmação certamente encontrará duas objeções mutuamente contraditórias,
procedentes de diferentes direções. Algumas pessoas dirão que esse tipo de
abusos sexuais, sejam eles praticados contra as crianças ou entre elas, são
raros demais para que se possa considerá-los como o determinante de uma neurose
tão comum quanto a histeria. Outros talvez argumentem que, pelo contrário, tais
experiências são muito freqüentes - freqüentes demais para que possamos
atribuir a sua ocorrência uma significação etiológica. Sustentarão ainda que é
fácil, em se fazendo algumas inquirições, encontrar pessoas que se recordam de
cenas de sedução sexual e de abuso sexual nos anos da infância e que, mesmo
assim, nunca foram histéricas. Finalmente nos dirão, como um argumento de peso,
que, nas camadas mais baixas da população, a histeria certamente não é mais
comum do que nas mais altas, ao passo que tudo indica que a injunção da
salvaguarda sexual da infância é muito mais freqüentemente transgredida no caso
das crianças do proletariado.
Comecemos
nossa defesa pela parte mais fácil. Parece-me certo que nossos filhos são muito
mais freqüentemente expostos a ataques sexuais do que nos levariam a esperar as
escassas precauções tomadas pelos pais a esse respeito. Quando fiz minhas
primeiras indagações sobre o que se conhecia do assunto, fiquei sabendo,
através de colegas, que existem várias publicações pediátricas estigmatizando a
freqüência de práticas sexuais por amas de leite e por babás, realizadas até
mesmo com crianças de colo; e há poucas semanas deparei com uma discussão do
“Coito na Infância”, do Dr. Stekel (1895), de Viena. Não tive tempo de coligir
outras provas publicadas, mas ainda que elas sejam escassas, é de se esperar
que uma atenção maior para o assunto venha a confirmar muito em breve a grande
freqüência das experiências sexuais e da atividade sexual na infância.
Por
último, as descobertas de minha análise estão em condições de falar por si. Em
todos os dezoito casos (de histeria pura e histeria combinada com obsessões,
abrangendo seis homens e doze mulheres), vim a saber, como já disse, de
experiências sexuais desse tipo na infância. Posso dividir meus casos em três
grupos, de acordo com a origem da estimulação sexual. No primeiro grupo,
trata-se de ataques - de situações únicas ou, pelo menos, isoladas, de abuso
praticado, em sua maior parte, em crianças do sexo feminino, por adultos que
eram estranhos e que, aliás, sabiam como evitar infligir grandes danos
mnêmicos. Nesses ataques, está fora de dúvida que não houve consentimento da
criança, e o primeiro efeito da experiência foi preponderantemente de susto. O
segundo grupo consiste nos casos muito mais numerosos em que algum adulto que
cuidava da criança - uma babá, uma governanta, um tutor ou, infelizmente, com
freqüência grande demais, um parente próximo - iniciou a criança no contato
sexual e manteve com ela uma relação amorosa regular - uma relação amorosa que
teve, além disso, seu lado mental desenvolvido - que, muitas vezes, durou anos.
O terceiro grupo, finalmente, contém relações infantis propriamente ditas -
relações sexuais entre duas crianças de sexo diferente, em geral um irmão e uma
irmã, que se prolongam com freqüência além da puberdade e têm as mais extensas
conseqüências para o par. Na maioria de meus casos, verifiquei que havia duas
ou mais dessas etiologias em ação ao mesmo tempo; em alguns casos, o acúmulo de
experiências sexuais oriundas de fontes diferentes era verdadeiramente
impressionante. Contudo, os senhores facilmente entenderão esse traço peculiar
de minhas observações ao considerarem que todos os pacientes que eu estava
tratando eram casos de neurose grave, que ameaçava tornar a vida impossível.
Nos
casos em que tinha havido uma relação entre duas crianças, pude algumas vezes
provar que o menino - desempenhando, aqui também, o papel do agressor - fora
previamente seduzido por um adulto do sexo feminino, e que depois, sob a
pressão de sua libido prematuramente despertada e compelido por sua lembranças,
tentara repetir com a garotinha exatamente as mesmas práticas que aprendera com
a mulher adulta, sem fazer qualquer modificação por sua conta no caráter da
atividade sexual.
Em
vista disso, inclino-me a supor que as crianças não sabem chegar aos atos de
agressão sexual, a menos que tenham sido previamente seduzidas.Por conseguinte,
as bases da neurose seriam sempre lançadas na infância por adultos, e as
próprias crianças transferiram umas às outras a predisposição para serem
acometidas de histeria posteriormente. Peço-lhes que considerem por mais um
momento a especial freqüência com que as relações sexuais na infância ocorrem
precisamente entre irmãos, irmãs e primos, em decorrência das oportunidades tão
freqüentes de estarem juntos; supondo-se então que, dez ou quinze anos depois,
vários membros da geração mais nova da família se revelem doentes, não poderia
essa aparência de neurose familiar levar naturalmente à falsa suposição da
existência de uma predisposição hereditária quando há apenas uma pseudo-hereditariedade
e quando, de fato, o que houve foi uma contaminação, uma infecção na infância?
Voltemo-nos
agora para a outra objeção |ver em [1]|, baseada precisamente num
reconhecimento da freqüência das experiências sexuais infantis e no fato
observado de que muitas pessoas que se recordam de tais cenas não se tornaram
histéricas. Nossa primeira resposta é que a freqüência excessiva de um fator
etiológico não tem possibilidade de ser usada como objeção a sua importância
etiológica. Então não é ubíquo o bacilo da tuberculose, e não é ele inalado por
muito mais pessoas do que as que efetivamente adoecem de tuberculose? E será
sua importância etiológica diminuída pelo fato de que, obviamente, deve haver
também outros fatores em ação para que a tuberculose, que é seu efeito
específico, seja evocada? Para se estabelecer o bacilo com etiologia
específica, basta mostrar que a tuberculose não tem como ocorrer sem sua
atuação. O mesmo se aplica, sem dúvida, a nosso problema. Não importa que
muitas pessoas vivenciem cenas sexuais infantis sem se tornarem histéricas,
desde que todas as que se tornam histéricas tenham vivenciado cenas dessa
ordem. Pode-se admitir livremente que a área de ocorrência de um fator
etiológico seja mais ampla que a de seu efeito, mas ela não deve ser mais
estreita. Nem todas as pessoas que se aproximam ou que tocam num paciente com
varíola contraem a doença; não obstante, a infecção é quase a única etiologia
conhecida da varíola.
É
verdade que, se a atividade sexual infantil fosse uma ocorrência quase
universal, a demonstração de sua presença em todos os casos não teria nenhum
peso. Mas, para começar, asseverar tal coisa seria certamente um grande
exagero; e, em segundo lugar, as pretensões etiológicas das cenas infantis
repousam não apenas na regularidade de seu aparecimento nas anamneses dos histéricos,
mas também, acima de tudo, na evidência de haver laços lógicos e associativos
entre essas cenas e os sintomas histéricos - evidência que, se lhes fosse
apresentado todo o relato de um caso clínico, seria para os senhores tão clara
como a luz do dia.
Quais
podem ser os outros fatores de que a “etiologia específica” da histeria ainda
necessita para produzir realmente a neurose? Esse, senhores, é um tema por si
só, que não proponho examinar agora. Hoje preciso apenas indicar o ponto de
contato em que as duas partes do tema - a etiologia específica e a auxiliar -
se encaixam. Sem dúvida, inúmeros fatores terão que ser levados em conta.
Haverá a constituição hereditária e pessoal do sujeito, a importância
intrínseca das experiências sexuais infantis e, acima de tudo, seu número - um
relacionamento breve com um garoto estranho, que depois se torna indiferente,
deixará um efeito menos poderoso numa menina do que relações sexuais íntimas
mantidas por vários anos com seu próprio irmão. Na etiologia das neuroses, as
precondições quantitativas são tão importantes quanto as qualitativas: há
valores liminares que têm que ser transpostos para que a doença possa tornar-se
manifesta. Além disso, eu mesmo não considero completa essa série etiológica,
nem ela resolve o enigma de por que a histeria não é mais comum entre as
classes inferiores. (A propósito, os senhores devem estar lembrados da
incidência surpreendentemente grande de histeria relatada por Charcot entre homens
da classe trabalhadora.) Posso também recordar-lhes que, há alguns anos, eu
próprio apontei um fator, até então pouco considerado, ao qual atribuo o papel
principal na provocação da histeria depois da puberdade. Propus então a idéia
de que a eclosão da histeria pode ser quase invariavelmente atribuída a um conflito
psíquico que emerge quando uma representação incompatível detona uma defesa
por parte do ego e solicita um recalcamento. Na época, eu não soube dizer quais
seriam as circunstâncias em que um esforço defensivo desse tipo teria o efeito
patológico de realmente jogar no inconsciente uma lembrança que fosse aflitiva
para o ego e de criar um sintoma histérico em seu lugar. Hoje, porém, posso
reparar essa omissão. A defesa cumpre seu propósito de arremessar a
representação incompatível para fora da consciência quando há cenas sexuais
infantis presentes no sujeito (até então normal) sob a forma de lembranças
inconscientes, e quando a representação a ser recalcada pode vincular-se em
termos lógicos e associativos com uma experiência infantil desse tipo.
Visto
que os esforços defensivos do ego dependem do desenvolvimento moral e
intelectual completo do sujeito, o fato de a histeria ser muito mais rara nas
classes inferiores do que o justificaria sua etiologia específica deixa de ser
inteiramente incompreensível.
Voltemos
uma vez mais, senhores, ao último grupo de objeções, cuja resposta já nos levou
por um caminho tão longo. Já ouvimos e reconhecemos que há numerosas pessoas
com uma recordação muito nítida de experiências sexuais infantis e que, não
obstante, não sofrem de histeria. Essa objeção não tem valor; propicia, porém,
uma oportunidade para se tecer um valioso comentário. De acordo com nossa
compreensão da neurose, as pessoas desse tipo não devem em absoluto ser
histéricas, ou pelo menos, não devem ser histéricas em conseqüência das cenas
de que se lembram conscientemente. Em nossos pacientes, essas lembranças nunca
são conscientes; ao contrário, nós os curamos da histeria, transformando suas
lembranças inconscientes das cenas infantis em lembranças conscientes. Nada há
que possamos ou precisemos fazer quanto ao fato de eles terem tido tais
experiências. Disso os senhores poderão perceber que o problema não é apenas a
existência de experiências sexuais, mas que uma precondição psicológica também
entra em jogo. As cenas devem estar presentes como lembranças inconscientes;
apenas desde que e na medida em que sejam inconscientes é que elas podem criar
e manter os sintomas histéricos. Mas o que decide se essas experiências
produzirão lembranças conscientes ou inconscientes - se isso é condicionado
pelo conteúdo das experiências, pela época em que ocorrem ou por influências
posteriores - constitui um novo problema, que prudentemente evitaremos.
Deixem-me apenas lembrar-lhes, como primeira conclusão, que a análise chegou à
proposição de que os sintomas histéricos são derivados de lembranças que
agem inconscientemente.
(c)
Sustentamos, portanto, que as experiências sexuais infantis constituem a
precondição fundamental da histeria, que são, por assim dizer, a predisposição
para esta, e que são elas que criam os sintomas histéricos - mas não o fazem de
imediato, permanecendo inicialmente sem efeito e só exercendo uma ação
patogênica depois, ao serem despertadas, após a puberdade, sob a forma de
lembranças inconscientes. Se mantivermos essa posição, teremos que enfrentar as
numerosas observações que mostram que uma doença histérica já pode
manifestar-se na infância e antes da puberdade. Essa dificuldade, entretanto, é
esclarecida tão logo examinamos mais detidamente os dados procedentes de
análises referentes à cronologia das experiências infantis. Verificamos então
que, em nossos casos graves, a formação dos sintomas começa - não em casos
excepcionais, mas antes, regularmente - na idade de oito anos, e que as experiências
sexuais que não apresentam nenhum efeito imediato remontam, invariavelmente, a
uma época mais precoce, ao terceiro ou quarto, ou mesmo ao segundo ano de vida.
Uma vez que em nenhum dos casos a cadeia de experiências afetivas se interrompe
aos oito anos, devo presumir que esse período da vida, a fase do crescimento em
que ocorre a segunda dentição, constitui uma linha limítrofe para a histeria,
depois da qual a doença não pode ser causada. A partir daí, uma pessoa que não
tenha tido experiências sexuais anteriormente não mais pode tornar-se
predisposta à histeria; e uma pessoa que tenha tido experiências
anteriores já é capaz de desenvolver sintomas histéricos. Os casos isolados de
ocorrência da histeria do outro lado da linha limítrofe (isto é, antes
da idade de oito anos) podem ser interpretados como um fenômeno de maturidade
precoce. A existência dessa linha limítrofe está muito provavelmente ligada aos
processos de desenvolvimento do sistema sexual. A precocidade do
desenvolvimento sexual somático pode ser freqüentemente observada e é até
possível que seja promovida por uma estimulação sexual prematura.
Desse
modo obtemos uma indicação de que é necessário um certo estado infantil
das funções psíquicas, assim como do sistema sexual, para que uma experiência
sexual ocorrida durante esse período produza, mais tarde, sob a forma de
lembrança, um efeito patogênico. Não me aventuro ainda, entretanto, a fazer
qualquer afirmação mais precisa sobre a natureza desse infantilismo psíquico ou
sobre seus limites cronológicos.
(d)
Outra objeção poderia ser suscitada pela crítica à suposição de que a lembrança
das experiências sexuais infantis produza um efeito patogênico tão imenso,
enquanto a própria experiência real não tem qualquer efeito. E é verdade que
não estamos acostumados à noção de poderes emanados de uma imagem mnêmica e que
tenham estado ausentes da impressão real. Ademais, os senhores poderão notar a
consistência com que se mantém na histeria a proposição de que os sintomas só
podem proceder de lembranças. Nenhuma das cenas posteriores, nas quais emergem
os sintomas, é efetiva; e as experiências que são efetivas não têm, de
início, nenhuma conseqüência. Todavia, defrontamo-nos aqui com um problema que
podemos, muito justificadamente, manter separado de nosso tema. É verdade que
nos sentimos impelidos a fazer uma síntese ao examinarmos o número de condições
excepcionais que passamos a conhecer: o fato de que, para a formação de uma
sintoma histérico, deve haver um esforço defensivo contra uma representação aflitiva;
de que essa representação deve apresentar uma conexão lógica ou associativa com
uma lembrança inconsciente através de alguns ou muitos elos intermediários, que
também permanecem inconscientes no momento; de que essa lembrança inconsciente
deve ter um conteúdo sexual; e de que esse conteúdo deve ser uma experiência
ocorrida durante certo período infantil da vida. É verdade que não podemos
deixar de nos perguntar como é que essa lembrança de uma experiência que foi
inócua na ocasião em que ocorreu poderia produzir, postumamente, o efeito
anormal de levar um processo psíquico como a defesa a um resultado patológico,
enquanto ela própria permanece inconsciente.
Contudo,
teremos que nos dizer que esse é um problema puramente psicológico, cuja
solução talvez exija certas hipóteses sobre os processos psíquicos normais e
sobre o papel neles desempenhado pela consciência, mas que é um problema que
pode permanecer sem solução por ora, sem diminuir o valor do discernimento que
obtivemos até aqui acerca da etiologia dos fenômenos histéricos.
III
Senhores,
o problema cuja abordagem acabei de formular refere-se ao mecanismo da
formação dos sintomas histéricos. Vemo-nos obrigados, porém, a descrever a causação
desses sintomas sem levar em conta esse mecanismo, o que envolve uma perda
inevitável de integralidade e clareza em nossa discussão. Voltemos ao papel
desempenhado pelas cenas sexuais infantis. Temo que possa tê-los levado a
superestimarem erroneamente seu poder formador de sintomas. Permitam-me, pois,
frisar mais uma vez o fato de que todos os casos de histeria apresentam
sintomas determinados não por experiências infantis, mas por experiências
posteriores, muitas vezes recentes. Outros sintomas, é verdade, remontam às
primeiríssimas experiências e pertencem, por assim dizer, à mais antiga
nobreza. Entre essas últimas se encontram, principalmente, as numerosas e
diversas sensações e parestesias dos órgãos genitais e de outras partes do
corpo, sendo tais sensações e parestesias fenômenos que simplesmente correspondem
ao conteúdo sensorial das cenas infantis, reproduzidas de maneira alucinatória
e, muitas vezes,das mesmas experiências infantis e era explicado, sem
dificuldade, por certas peculiaridades invariáveis de tais experiências. E isso
porque a idéia dessas cenas sexuais infantis é muito repelente para os
sentimentos de um indivíduo sexualmente normal; elas incluem todos os abusos
conhecidos pelas pessoas depravadas e impotentes, entre as quais a cavidade
bucal e o reto são indevidamente usados para fins sexuais. Nos médicos, o
espanto diante disso logo cede lugar a um entendimento completo. Das pessoas
que não hesitam em satisfazer seus desejos sexuais com crianças não se pode
esperar que relutem ante nuanças mais sutis dos métodos para obter essa satisfação;
e a impotência sexual inerente às crianças força-as inevitavelmente às mesmas
ações substitutivas a que se rebaixam os adultos quando se tornam impotentes.
Todas as singulares condições em que esse par inadequado conduz suas relações
amorosas - de um lado, o adulto que não consegue escapar de sua parcela na
dependência mútua necessariamente implicada por uma relação sexual, mas que,
apesar disso, está munido de completa autoridade e do direito de punir, e que
pode inverter esses papéis para a satisfação irrestrita de seus caprichos; e de
outro lado, a criança, que em seu desamparo fica à mercê dessa vontade
arbitrária, que é prematuramente despertada para todo tipo de sensibilidade e
exposta a toda sorte de desapontamentos, e cujo desempenho das atividades
sexuais que lhe são atribuídas é freqüentemente interrompido pelo controle
imperfeito de suas necessidades naturais -, todas essa incongruências
grotescas, mas trágicas, mostram-se impressas no desenvolvimento posterior do
indivíduo e de sua neurose, em incontáveis efeitos permanentes que merecem ser
delineados nos mínimos detalhes. Quando a relação se dá entre duas crianças, o
caráter das cenas sexuais não é de espécie menos repulsiva, já que todo
relacionamento dessa natureza entre crianças pressupõe a sedução prévia de uma
delas por um adulto. As conseqüências psíquicas dessas relações entre crianças
são extraordinariamente abrangentes; os dois indivíduos permanecem ligados por
um elo invisível durante toda a vida.
Algumas
vezes, são as circunstâncias acidentais dessas cenas sexuais infantis que, em
anos posteriores, adquirem um poder determinante sobre os sintomas da neurose.
Assim, num de meus casos, a circunstância de a criança ter sido solicitada a
estimular os órgãos genitais de uma mulher adulta com seu pé foi o bastante
para fixar por anos sua atenção neurótica em suas pernas e na função delas,
produzindo finalmente uma paraplegia histérica. Em outro caso, uma paciente que
sofria de ataques de angústia que tendiam a ocorrer em certas horas do dia só
se acalmava quando uma determinada irmã, dentre as muitas que tinha, ficava a
seu lado todo o tempo. A razão disso teria permanecido um enigma, se a análise
não tivesse mostrado que o homem que atentara sexualmente contra ela costumava
indagar, a cada visita, se a tal irmã, que ele temia viesse a interrompê-lo,
estava em casa.
Por
vezes ocorre que o poder determinante das cenas infantis está tão oculto que,
ante uma análise superficial, está fadado a passar despercebido. Nesses casos,
imaginamos ter descoberto a explicação de algum sintoma particular no conteúdo
de uma das cenas posteriores - até que, no curso de nosso trabalho, deparamos
com o mesmo conteúdo numa das cenas infantis, de modo que acabamos sendo
obrigados a reconhecer que, afinal, a cena posterior só deve seu poder de
determinar sintomas a sua concordância com a cena anterior. Não quero por isso
retratar a cena posterior como algo sem importância; se fosse minha tarefa
apresentar-lhes as normas que regem a formação de sintomas histéricos, eu teria
que incluir como uma delas a de que a representação escolhida para a produção
de um sintoma é uma representação evocada pela combinação de vários fatores, e
despertada por várias fontes simultaneamente. Num outro trabalho, tentei
expressar isso com a seguinte fórmula: os sintomas histéricos são
sobredeterminados.
Mais
uma coisa, senhores. É verdade que, anteriormente |ver em [1] e seg.|, isolei a
relação entre a etiologia recente e a etiologia infantil como um tema separado.
Entretanto, não posso abandonar o assunto sem infringir essa resolução ao menos
com um comentário. Os senhores concordarão comigo em que há um fato,
acima de todos, que nos induz a cometer erros na compreensão psicológica dos
fenômenos histéricos, e que nos parece advertir para não aplicarmos a mesma
medida aos atos psíquicos dos histéricos e das pessoas normais. Esse fato é a
discrepância entre os estímulos psiquicamente excitantes e as reações psíquicas
com que deparamos nos sujeitos histéricos. Tentamos dar conta dela admitindo, nos
histéricos, a presença de uma sensibilidade anormal generalizada aos estímulos,
e muitas vezes nos esforçamos por explicá-la em termos fisiológicos, como se,
nesses pacientes, certos órgãos do cérebro que servem para transmitir estímulos
se encontrassem num estado químico peculiar (como os centros espinhais de uma
rã, por exemplo, ao lhe ser injetada estricnina), ou como se esses órgãos
cerebrais tivessem escapado da influência dos centros inibidores superiores
(como nos animais submetidos a experiências ou durante a vivissecção).
Ocasionalmente, um ou outro desses conceitos pode ser perfeitamente válido como
explicação dos fenômenos histéricos; não questiono isso. Mas a parte principal
dos fenômenos - da reação histérica anormal e exagerada aos estímulos psíquicos
- admite uma outra explicação, confirmada por inúmeros exemplos extraídos das
análises dos pacientes. Essa explicação é a seguinte: A reação dos
histéricos só é aparentemente exagerada; está fadada a nos parecer exagerada
porque só conhecemos uma pequena parte dos motivos dos quais decorre.
Na
realidade, essa reação é proporcional ao estímulo excitante e, portanto, é
normal e psicologicamente compreensível. Nós o percebemos imediatamente quando
a análise acrescenta aos motivos manifestos, dos quais o paciente tem
consciência, os outros motivos que estavam em ação sem o seu conhecimento, de
modo que ele nada nos podia dizer sobre eles.
Eu
poderia gastar horas demonstrando a validade dessa importante asserção para
toda a gama de atividade psíquica na histeria, mas devo restringir-me aqui a
alguns exemplos. Os senhores decerto se lembrarão da “suscetibilidade” mental
que é tão freqüente entre os pacientes histéricos, e que os leva a reagirem ao
menor sinal de depreciação como se estivessem recebendo um insulto mortal. O
que pensariam então se observassem esse alto grau de inclinação a magoar-se
ante a menor ofensa, se o encontrassem entre duas pessoas normais, digamos,
entre marido e mulher? Os senhores certamente infeririam que a cena conjugal
testemunhada não era exclusivamente resultante dessa ocasião banal recente, mas
que o material inflamável vinha-se acumulando há muito tempo e que a pilha
inteira fora incendiada pela última provocação.
Eu
lhes pediria que transpusessem essa linha de raciocínio para os pacientes
histéricos. Não é a última desfeita - em si mesma, mínima - que produz o acesso
de choro, a explosão de desespero ou a tentativa de suicídio, desrespeitando o
axioma de que um efeito deve ser proporcional a sua causa: a pequena ofensa do momento
atual despertou e pôs em ação as lembranças de muitas e mais intensas ofensas
anteriores, por trás das quais jaz, além disso, a lembrança de uma grave ofensa
na infância que nunca foi superada. Ou ainda, tomemos o exemplo de uma moça que
se recrimina terrivelmente por ter permitido que um rapaz acariciasse sua mão
em segredo, sendo desde então dominada por uma neurose. Naturalmente, os
senhores poderão responder ao quebra-cabeça considerando-a uma pessoa anormal,
de inclinações excêntricas e hipersensível; contudo, terão uma idéia diferente
quando a análise lhes mostrar que aquele toque na mão a fez lembrar-se de outro
toque semelhante, que ocorrera precocemente em sua infância e que integrava um
conjunto menos inocente, de modo que suas auto-acusações eram, na verdade,
censuras a essa antiga ocasião. Finalmente, o problema dos pontos
histerogênicos é da mesma espécie. Ao se tocar determinado ponto, faz-se uma
coisa que não se pretendia: desperta-se uma lembrança que pode desencadear um
ataque consulsivo e, como não se sabe coisa alguma sobre esse vínculo psíquico
intermediário, o ataque é diretamente ligado à ação do contato. Os pacientes
acham-se no mesmo estado de ignorância e incidem, portanto, em erros similares.
Estabelecem constantemente “falsas ligações” entre a causa mais recente, da
qual estão conscientes, e o efeito, que depende de inúmeros elos
intermediários. Ao conseguir, entretanto, reunir os motivos conscientes e
inconscientes a fim de explicar uma reação histérica, o médico é quase sempre
obrigado a reconhecer que a reação aparentemente exagerada é adequada, sendo
anormal apenas em sua forma.
Os
senhores, entretanto, poderão acertadamente objetar a essa justificação da
reação histérica aos estímulos psíquicos e dizer que, ainda assim, a reação não
é normal, pois por que razão as pessoas normais se comportam de modo diferente?
Por que é que todas as excitações do passado remoto delas não entram em
ação tão logo sucede uma nova excitação atual? Na verdade, tem-se a impressão
de que, nos pacientes histéricos, todas as suas experiências antigas - às quais
eles já reagiram com tanta freqüência e, além disso, com tanta violência -
retiveram seu poder efetivo; é como se essas pessoas fossem incapazes de se
desfazerem de seus estímulos psíquicos. Com efeito, senhores, deve-se realmente
presumir algo dessa natureza. Os senhores não devem esquecer que, nas pessoas
histéricas, quando há uma causa precipitante atual, entram em ação as antigas
experiências sob a forma de lembranças inconscientes. É como se a
dificuldade de se desfazerem de uma impressão atual, a impossibilidade de
transformá-la numa lembrança inofensiva, estivesse ligada precisamente ao
caráter do inconsciente psíquico. Como os senhores podem ver, o restante do
problema repousa uma vez mais no campo da psicologia - e, o que é mais
importante, de uma psicologia de um tipo para o qual os filósofos pouco fizeram
para nos preparar.
A
essa psicologia, que ainda está por ser criada para atender a nossas
necessidades - a essa futura psicologia nas neuroses devo também
encaminhar os senhores, ao dizer-lhes, em conclusão, algo que a princípio os
levará a temer nossa compreensão nascente da etiologia da histeria. E isso
porque afirmar que o papel etiológico da experiência sexual infantil não se
restringe à histeria, mas se aplica igualmente à notável neurose das obsessões
e, a rigor, talvez também às várias formas de paranóia crônica e outras
psicoses funcionais. Expresso-me a esse respeito de maneira menos explícita
porque, até o momento, analisei menos casos de neurose obsessiva do que de
histeria; e, no que tange à paranóia, tenho a meu dispor apenas uma única
análise completa e umas poucas fragmentadas. Mas o que descobri nesses casos
pareceu fidedigno e me encheu de expectativas confiantes quanto a outros casos.
Talvez os senhores se recordem que, já em data anterior, recomendei que a
histeria e as obsessões fossem agrupadas em conjunto sob a denominação de “neuroses
de defesa, mesmo antes de vir a conhecer a etiologia infantil comum. Devo
agora acrescentar que - embora não seja necessário esperar que isso aconteça em
geral - todos os meus casos de obsessões revelaram um substrato de sintomas
histéricos, principalmente sensações e dores,que remontavam precisamente às
primeiras experiências infantis. Portanto, o que é que determina se as cenas
sexuais infantis que permanecem inconscientes, irão, mais tarde, quando os
outros fatores patogênicos lhes forem acrescentados, suscitar a neurose
histérica, a neurose obsessiva, ou mesmo a paranóia? Esse aumento de nosso
conhecimento como vêem os senhores, parece prejudicar o valor etiológico das
cenas, porquanto elimina a especificidade da relação etiológica.
Ainda
não estou em condições de dar aos senhores uma resposta segura a essa pergunta.
O número de casos que analisei não é suficientemente grande, nem os fatores
determinantes neles têm sido suficientemente variados. Até aqui, observei que
se pode mostrar pela análise que as obsessões são, sistematicamente, auto-acusações
disfarçadas e transformadas, relativas a atos de agressão sexual na infância,
sendo portanto mais freqüentemente encontradas nos homens do que nas mulheres,
e desenvolvendo-se neles com mais freqüência do que a histeria. A partir disso
eu poderia concluir que o caráter das cenas infantis - se foram experimentadas
com prazer ou apenas passivamente - tem uma influência determinante na escolha
da neurose posterior; mas não quero subestimar a importância da idade em que
essas ações infantis ocorrem, nem a de outros fatores. Apenas uma discussão de
outras análises poderá lançar a luz sobre esses pontos. No entanto, quando se
tornar claro quais são os fatores decisivos na escolha entre as possíveis
formas de neuropsicoses de defesa, a questão de qual é o mecanismo em virtude
do qual uma determinada forma se constitui será, mais uma vez, um problema
puramente psicológico.
Chego
agora ao fim do que tinha a lhes dizer hoje. Embora esteja preparado para fazer
face a objeções e descrença, gostaria de dizer mais uma coisa em defesa de
minha posição. O que quer que os senhores pensem sobre as conclusões a que
cheguei, devo pedir-lhes que não as encarem como o fruto de especulações
inúteis. Elas se baseiam num minucioso exame individual dos pacientes, que, na
maioria dos casos, consumiu cem ou mais horas de trabalho.O que me é ainda mais
importante do que o valor que os senhores possam atribuir a meus resultados é a
atenção que dedicarem ao procedimento que empreguei. Esse procedimento é novo e
de difícil manejo, mas, apesar disso, é insubstituível para fins científicos e
terapêuticos. Os senhores hão de reconhecer, estou certo, que não se poderão
propriamente negar as descobertas decorrentes dessa modificação do procedimento
de Breuer enquanto ela for posta de lado e se usar apenas o método costumeiro
de interrogar os pacientes. Agir desse modo seria o mesmo que tentar refutar as
descobertas da técnica histológica com base no exame macroscópico. O novo
método de pesquisa dá amplo acesso a um novo elemento no campo psíquico dos
eventos, a saber, os processos de pensamento que permanecem inconscientes - os
quais, para usar a expressão de Breuer, são “inadmissíveis à consciência”.
Assim, tal método nos inspira a esperança de uma nova e melhor compreensão de
todos os distúrbios psíquicos funcionais. Não posso acreditar que a psiquiatria
se negue por muito tempo a utilizar esse novo caminho de acesso ao
conhecimento.