Sobre a psicopatologia da vida cotidiana
VOLUME VI
(1901)
Dr. Sigmund Freud
SOBRE A PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA (1901)
ESQUECIMENTOS,
LAPSOS DA FALA,EQUÍVOCOS NA AÇÃO, SUPERSTIÇÕES E ERROS
Nun ist die Luft von solchem Spuk so voll,
Dass niemand weiss, wie er ihn meiden soll.
Fausto, Parte II, Ato V, Cena
5
Desses fantasmas tanto
se enche o ar,
Que ninguém sabe como
os evitar.
INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS
ZUR PSYCHOPATHOLOGIE
DES ALLTAGSLEBEN (Über Vergessen, Versprechen, Vergreifen,
Aberglaube und Irrtum)
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1901
Monatsschr. Psychiat. Neurolog. 10 (1) [Julho], 1-32, e (2) [Agosto],
95-143.
1904
Em forma de livro, Berlim: Karger. 92 págs. (Reimpressão revista.)
1907
2ª ed. (Ampliada.) Mesmos editores. 132 págs.
1910 3ª ed. (Ampliada.)
Mesmos editores. 149 págs.
1912 4ª ed. (Ampliada.)
Mesmos editores. 198 págs.
1917
5ª ed. (Ampliada.) Mesmos editores, iv + 232 págs.
1919
6ª ed. (Ampliada.) Leipzig e Viena: Internationaler Psychoanalytischer Verlag.
iv + 312 págs.
1920
7ª ed. (Ampliada.) Leipzig, Viena e Zurique: Mesmos editores. iv + 334 págs.
1922
8ª ed. Mesmos editores. (Reimpressão da anterior.)
1923
9ª ed. Mesmos editores. (Reimpressão da anterior.)
1924
10ª. ed. (Ampliada.) Mesmos editores. 310 págs.
1924 G.S., 4, 11-310.
1929
11ª ed. Mesmos editores. (Reimpressão da 10ª ed.)
1941 G.W., 4. iv + 322
págs.
(a) TRADUÇÃO INGLESA:
Psychopathology of Everyday Life
1914
Londres: Fisher Unwin; Nova Iorque: Macmillan. vii + 342 págs. (Tradução e
Introdução de A. A. Brill.)
1938
Londres: Penguin Books. (Nova Iorque, 1939.) 218
págs. (Mesmo trad.)
1938 Em The Basic Writings of
Sigmund Freud, Nova Iorque: Modern Library. Págs. 35-178. (Mesmo trad.)
1949
Londres: Ernest Benn. vii + 239 págs. (Mesmo trad.)
1958
Londres: Collins. viii + 180 págs. (Mesmo trad.)
A presente tradução inglesa, inteiramente nova,
é da autoria de Alan Tyson.
Das outras obras de Freud, apenas uma, as Conferências
Introdutórias (1916-17), rivaliza com esta em termos da grande quantidade
de edições que teve em alemão e do número de línguas estrangeiras para as quais
foi traduzida. Em quase cada uma das numerosas edições incluiu-se novo material
no livro e, nesse aspecto, poder-se-ia pensar em semelhança com A
Interpretação dos Sonhos e os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade,
aos quais Freud fez constantes acréscimos durante toda sua vida. Na verdade,
contudo, os casos não se assemelham. Nesses dois outros livros, o material
novo, em sua maior parte, consistiu em ampliações importantes ou em correções
dos dados clínicos e das conclusões teóricas. Em Sobre a Psicopatologia da
Vida Cotidiana, a quase totalidade das explicações e teorias básicas já
estava presente nas primeiras edições; a grande massa dos acréscimos
posteriores consistiu meramente em exemplos e ilustrações adicionais
(parcialmente fornecidos pelo próprio Freud, mas sobretudo por seus amigos e
discípulos), destinados a esclarecer melhor o que ele já havia examinado. Sem
dúvida, a Freud compraziam particularmente tanto as próprias anedotas quanto a
fato de ele receber uma confirmação tão ampla de seus pontos de vista. Mas o
leitor não consegue deixar de sentir, vez por outra, que a profusão de novos
exemplos interrompe e até confunde o fio central da argumentação subjacente.
(Ver, por exemplo, em [1]-[2] e [3])
Aqui, como no caso dos livros de Freud sobre os
sonhos e os chistes, porém talvez em maior escala, o tradutor tem de enfrentar
o fato de que uma grande parcela do material com que irá lidar depende de jogos
de palavras totalmente intraduzíveis. Na versão anterior, Brill deu ao problema
uma solução drástica; omitiu todos os exemplos que continham termos impossíveis
de traduzir para o inglês e inseriu diversos exemplos próprios que ilustravam pontos
semelhantes aos omitidos. Esse foi, sem dúvida, um procedimento inteiramente
justificável naquelas circunstâncias. Na época da versão de Brill, a obra de
Freud era quase desconhecida nos países de língua inglesa e era importante não
criar obstáculos desnecessários à divulgação deste livro, expressamente
projetado pelo próprio Freud para o leitor comum (em [1], nota de rodapé). O
êxito com que Bill logrou esse objetivoevidencia-se pelo fato de que, em 1935,
sua tradução já tivera dezesseis edições e muitas outras iriam seguir-se a
elas. Ademais, os exemplos de Brill eram excelentes em sua maioria e, com
efeito, dois ou três foram incluídos por Freud em edições posteriores do
original alemão. Ainda assim, existem objeções óbvias a que se perpetue essa situação,
especialmente numa edição que vise aos estudiosos mais aplicados dos textos de
Freud. Em alguns casos, por exemplo, a omissão de parte do material ilustrativo
de Freud inevitavelmente acarretava a omissão de algum comentário teórico
importante ou interessante. Além disso, embora Brill anunciasse em seu prefácio
a intenção de “modificar ou substituir alguns dos casos do autor”, essas
substituições, no texto, em geral não são explicitamente indicadas, e o leitor
fica às vezes sem saber ao certo se está lendo Freud ou Brill. A tradução de
Brill, convém acrescentar, foi feita a partir da edição alemã de 1912 e
permaneceu inalterada em todas as reimpressões posteriores. Desse modo, ela
passa ao largo do imenso número de acréscimos feitos ao texto por Freud nos dez
ou mais anos subseqüentes. O efeito total das omissões devidas a essas
diferentes causas é estarrecedor. Das 305 páginas de texto da última edição,
tal como impressas nas Gesammelte Werke, cerca de 90 a 100 páginas (isto
é, quase um terço do livro) até hoje nunca foram publicadas em inglês. O
caráter integral da presente tradução, por conseguinte, é contrabalançado pela
perda indubitável de facilidade de leitura, em virtude da política da Edição Standard
de lidar com os jogos de palavras pelo método prosaico de fornecer as
expressões originais em alemão e explicá-las com o auxílio de colchetes e notas
de rodapé.
Encontramos a primeira menção feita por Freud a
um ato falho na carta enviada a Fliess em 26 de agosto de 1809 (Freud, 1950a,
Carta 94). Ali ele diz: “finalmente compreendi uma coisinha de que suspeitava
há muito tempo” - o modo como um nome às vezes nos escapa e em seu lugar nos
ocorre um substituto completamente errado. Um mês depois, a 22 desetembro
(ibid., Carta 96), ele dá outro exemplo a Fliess, dessa vez o conhecido exemplo
de “Signorelli”, publicado naquele mesmo ano em forma preliminar na Monatsschrift
für Psychiatrie und Neurologie (1898b) e depois usado no primeiro capítulo
da presente obra. No ano seguinte, a mesma revista publicou um artigo de Freud
sobre as lembranças encobridoras (1899a), tema que ele tornou a examinar de
modo bem diferente no Capítulo IV, adiante. No entanto, seu tempo estava
inteiramente tomado pelo trabalho de terminar A Interpretação dos Sonhos
e preparar seu estudo mais breve, Sobre os Sonhos (1901a), e ele só se
dedicou seriamente a Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana no fim do
ano de 1900. Em outubro daquele ano (Freud, 1950a, Carta 139), ele pede a
anuência de Fliess para a utilização, como epígrafe da obra, da citação do Fausto,
que de fato veio a ser impressa na página de rosto. A 30 de janeiro de 1901
(Carta 141) ele informa que a obra está “em ponto morto, semi-acabada, mas logo
terá prosseguimento”, e a 15 de fevereiro (Carta 142), anuncia que terminará a
obra dentro de mais alguns dias. Na verdade, ela surgiu em julho e agosto, em
duas edições do mesmo periódico de Berlim que havia publicado os estudos
preliminares.
Três anos depois, em 1904, a obra foi publicada
pela primeira vez em volume separado, praticamente sem nenhuma alteração, mas,
daí por diante, fizeram-se acréscimos quase contínuos no decorrer dos vinte
anos seguintes. Em 1901 e 1904 o livro tinha dez capítulos. Dois outros (que
agora constituem os Capítulos III e XI) foram acrescentados pela primeira vez
em 1907. Na biblioteca de Freud foi encontrado um exemplar da edição de 1904
com folhas de anotações inseridas, nas quais ele anotara sucintamente outros
exemplos. A maioria destes foi incorporada às edições posteriores: outros, desde
que parecessem interessantes, foram aqui incluídos em notas de rodapé nos
lugares apropriados.
A especial simpatia com que Freud encarava os
atos falhos se devia, sem dúvida, ao fato de eles serem, juntamente com os
sonhos, o que lhe permitiu estender à vida psíquica normal as descobertas que
antes fizera em relação às neuroses. Pela mesma razão ele os empregava
regularmente como o melhor material preliminar para introduzir nas descobertas
da psicanálise os estudiosos que não eram médicos. Esse material era simples e,
pelo menos à primeira vista, imune a objeções, além de se referir a fenômenos
experimentados por qualquer pessoa normal. Em seus textos expositivos, Freud às
vezes preferia os atos falhos aos sonhos, que envolviam mecanismos mais
complicados e tendiam a conduzir rapidamente para águas mais profundas. Eis por
que inaugurou sua grande série de Conferências Introdutórias de 1916-17
dedicando aos atos falhos as três primeiras - nas quais, por sinal, reaparecem
muitos dos exemplos das páginas seguintes; e deu aos atos falhos prioridade
semelhante em suas contribuições à revista Scientia (1913j) e à
enciclopédia de Marcuse (1923a). Apesar de esses fenômenos serem simples e
facilmente explicáveis, Freud pôde com eles demonstrar aquilo que, afinal, foi a
tese fundamental estabelecida em A Interpretação dos Sonhos; a
existência de dois modos distintos de funcionamento psíquico, por ele descritos
como os processos primário e secundário. Ademais, outra crença básica de Freud
encontrava apoio convincente no exame dos atos falhos - sua crença na aplicação
universal do determinismo aos eventos psíquicos. É nessa verdade que ele
insiste no último capítulo do livro: teoricamente, seria possível descobrir os
determinantes psíquicos de cada um dos menores detalhes dos processos anímicos.
E talvez o fato de esse objetivo parecer mais fácil de atingir no caso dos atos
falhos tenha sido outra razão para que exercessem sobre Freud uma atração
especial. De fato, ele tornou a referir-se exatamente a esse ponto em seu breve
artigo “As Sutilezas de um Ato Falho” (1935b), um de seus últimos escritos.
CAPÍTULO I - O ESQUECIMENTO DE NOMES
PRÓPRIOS
Na edição da Monatsschrift für Psychiatrie
und Neurologie de 1898 publiquei um pequeno artigo, sob o título “O
Mecanismo Psíquico do Esquecimento” [Freud, 1898b], cujo conteúdo recapitularei
aqui e tomarei como ponto de partida para discussão mais ampla. Nele apliquei a
análise psicológica ao freqüente caso do esquecimento temporário de nomes
próprios, explorando um exemplo altamente sugestivo extraído de minha
auto-observação; e cheguei à conclusão de que essa situação específica
(reconhecidamente comum e sem muita importância prática) em que uma função
psíquica - a memória - se recusa a funcionar admite uma explicação de muito
maior alcance do que a valorização usual que se dá ao fenômeno.
A menos que eu esteja muito enganado, um
psicólogo a quem se pedisse para explicar a razão por que, em tantas ocasiões,
deixa de nos ocorrer um nome próprio que pensamos conhecer perfeitamente se
contentaria em responder que os nomes próprios sucumbem mais facilmente ao
processo do esquecimento do que outros conteúdos da memória. Ele a
presentaria razões plausíveis para essa
preferência dada aos nomes próprios, mas não suspeitaria que quaisquer outras
condições desempenhassem um papel em tais ocorrências.
Minha preocupação com o fenômeno do
esquecimento temporário de nomes nasceu da observação de certas características
que podem ser reconhecidas com bastante clareza em alguns casos individuais,
embora, na verdade, não em todos. Trata-se dos casos em que o nome não só é esquecido,
como também erroneamente lembrado. Em nosso afã de recuperar o nome
perdido, outros - nomes substitutos - nos vêm à consciência; reconhecemos
de imediato que são incorretos, mas eles insistem em retornar e se impõem com
grande persistência. O processo que deveria levar à reprodução do nome perdido
foi, por assim dizer, deslocado, e por isso conduziu a um substituto
incorreto. Minha hipótese é que esse deslocamento não está entregue a uma
escolha psíquica arbitrária, mas segue vias previsíveis que obedecem a leis. Em
outras palavras, suspeito que o nome ou os nomes substitutos ligam-se demaneira
averiguável com o nome perdido: e espero, se tiver êxito em demonstrar essa
ligação, poder esclarecer as circunstâncias em que ocorre o esquecimento de
nomes.
O nome que tentei lembrar em vão, no exemplo
escolhido para análise em 1898, foi o do artista que pintou os afrescos
magníficos das “Quatro Últimas Coisas” na catedral de Orvieto. Em vez do nome
que eu procurava - Signorelli -, impunham-se a mim os nomes de dois
outros pintores - Botticelli e Boltraffio - embora fossem imediata e
decisivamente rejeitados por meu juízo como incorretos. Ao ser informado por
outra pessoa do nome correto, reconheci-o prontamente sem hesitação. A
investigação das influências e das vias associativas pelas quais a reprodução
do nome assim se havia deslocado de Signorelli para Botticelli e
Boltraffio levou aos seguintes resultados:
(a) A razão por que o nome Signorelli
foi esquecido não deve ser procurada numa peculiaridade do próprio nome, nem em
qualquer característica psicológica do contexto em que ele se inseriu. O nome
esquecido era-me tão familiar quanto um dos nomes substitutos - Botticelli - e
muito mais familiar do que o outro nome substituto - Boltraffio -, sobre
cujo portador eu mal sabia dar outra informação senão a de que pertencia à
escola de Milão. Além disso, o contexto em que o nome fora esquecido me parecia
inofensivo e não me trouxe maiores esclarecimentos. Eu viajava em companhia de
um estranho, indo de Ragusa, na Dalmácia, para um lugar na Herzegovina: nossa
conversa voltou-se para o assunto das viagens pela Itália, e perguntei a meu
companheiro de viagem se ele já estivera em Orvieto e se vira ali os famosos
afrescos pintados por…
(b) O esquecimento do nome só foi
esclarecido quando me lembrei do assunto que estávamos discutindo pouco antes,
e revelou ser um caso de perturbação do novo tema emergente pelo tema que o
antecedeu. Pouco antes de perguntar a meu companheiro de viagem se ele já
estivera em Orvieto, conversávamos sobre os costumes dos turcos que vivem na Bósnia
e na Herzegovina. Eu lhe havia contado o que ouvira de um colega que
trabalhou em meio a essas pessoas - que elas costumam ter grande confiança no
médico e total resignação ao destino. Quando se é obrigado a lhes dizer que
nada pode ser feito por um doente, respondem: “Herr [Senhor], o que se
há de dizer? Se fosse possível salvá-lo, sei que o senhor o teria salvo.”
Nessas frases encontramos pela primeira vez as palavras e nomes Bósnia,
Herzegovinae Herr, que podem ser inseridas numa seqüência
associativa entre Signorelli e Botticelli - Boltraffio.
(c) Suponho que essa seqüência de
pensamentos sobre os costumes dos turcos na Bósnia etc. adquiriu a capacidade
de perturbar o pensamento subseqüente por eu ter afastado a atenção dela antes
que fosse concluída. De fato, lembro-me de ter querido contar uma segunda
anedota, que em minha memória estava próxima da primeira. Esses turcos conferem
ao gozo sexual um valor maior que o de qualquer outra coisa, e, na
eventualidade de distúrbios sexuais, caem num desespero que contrasta
estranhamente com sua resignação ante a ameaça de morte. Certa vez, um dos
pacientes de meu colega lhe disse: “Sabe Herr, quando isso acaba,
a vida não tem nenhum valor.” Suprimi a comunicação desse traço característico
por não querer tocar nesse tema numa conversa com um estranho. Mas fiz algo
mais: também desviei minha atenção da continuação dos pensamentos que poderiam
ter-me surgido a partir do tema “morte e sexualidade”. Naquela ocasião, eu
ainda estava sob a influência de uma notícia que me chegara algumas semanas
antes, durante uma breve estada em Trafoi. Um paciente a quem eu me
havia dedicado muito pusera fim a sua vida por causa de um distúrbio sexual
incurável. Tenho certeza de que esse triste acontecimento e tudo o que se
relacionava com ele não me vieram à lembrança consciente durante essa viagem a
Herzegovina. Mas a semelhança entre “Trafoi” e “Boltraffio” força-me a supor
que essa reminiscência, apesar de minha atenção ter sido de liberadamente
desviada disso, passou a atuar em mim na época [da conversa].
(d) Já não me é possível considerar o
esquecimento do nome Signorelli como um evento casual. Sou forçado a
reconhecer a influência de um motivo nesse processo. Foi um motivo que
fez com que eu me interrompesse na comunicação de meus pensamentos (a respeito
dos costumes dos turcos etc.), e foi um motivo que, além disso, influenciou-me
a impedir que se conscientizassem em mim os pensamentos ligados a eles, que
tinham levado à notícia recebida em Trafoi. Eu queria, portanto, esquecer algo;
havia recalcado algo. É verdade que não queria esquecer o nome do
artista de Orvieto, mas sim outra coisa - essa outra coisa, contudo, conseguiu
situar-se numa conexão associativa com seu nome, tanto que meu ato de vontade
errou o alvo e esqueci uma coisa contra minha vontade, quando queria esquecer
intencionalmente a outra. A aversão ao recordar dirigia-se contra um dos
conteúdos;esqueci uma coisa contra minha vontade, quando queria esquecer
intencionalmente a outra. A aversão ao recordar dirigia-se contra um dos
conteúdos; a incapacidade de lembrar surgiu no outro. Obviamente, o caso seria
mais simples se a aversão e a incapacidade de lembrar estivessem com o mesmo
conteúdo. Além disso, os nomes substitutos já não me parecem tão inteiramente
injustificados como antes da elucidação do assunto: por uma espécie de compromisso,
eles me lembram tanto aquilo que eu queria esquecer quanto o que queria
recordar e me indicam que minha intenção de esquecer algo não foi nem um êxito
completo nem um fracasso total.
(e) Muito notável é a natureza do enlace
que se estabeleceu entre o nome perdido e o tema recalcado (o tema da morte e
sexualidade etc., em que apareceram os nomes Bósnia, Herzegovina e Trafoi). O
diagrama esquemático que agora intercalo, e que foi extraído do artigo de 1898
[Fig. 1], visa a dar uma imagem clara desse enlace:
O nome Signorelli foi dividido em duas
partes. Um dos pares de sílabas (elli) ressurge inalterado num dos nomes
substitutos, enquanto o outro, através da tradução de Signor para Herr,
adquiriu numerosas
Fig. 1
e variadas relações com os nomes contidos no
tema recalcado, mas, por esse motivo,não ficou disponível para a reprodução
[consciente]. Seu substituto [para Signor] foi criado como se tivesse
havido um deslocamento ao longo da conexão de nomes “Herzegovina e Bósnia’’,
sem qualquer consideração ao sentido ou aos limites acústicos das sílabas.
Assim, os nomes foram tratados nesse processo como os pictogramas de uma frase
destinada a se transformar num enigma figurado (ou rébus). De todo o curso de
acontecimentos que por tais caminhos produziu, em vez do nome Signorelli,
os nomes substitutos, nenhuma informação foi dada à consciência. À primeira
vista parece impossível descobrir qualquer relação entre o tema em que ocorreu
o nome Signorelli e o tema recalcado que o precedeu no tempo, salvo por
esse retorno das mesmas sílabas (ou melhor, seqüências de letras).
Talvez não seja demais assinalar que as
condições que os psicólogos presumem ser necessárias para reproduzir e para
esquecer, por eles buscadas em certas relações e predisposições, não são incompatíveis
com a explicação precedente. Tudo o que fizemos, em certos casos, foi
acrescentar um motivo aos fatores reconhecidos desde longa data como
capazes de promover o esquecimento de um nome; ademais, elucidamos o mecanismo
da ilusão de memória. Também em nosso caso essas predisposições são
indispensáveis para possibilitar ao elemento recalcado apoderar-se, por
associação, do nome esquecido, arrastando-o consigo para o recalcamento. No
caso de outro nome com condições mais favoráveis de reprodução, isso talvez não
acontecesse. Com efeito, é provável que o elemento suprimido sempre lute por
prevalecer em algum outro lugar, mas só tenha êxito quando depara com condições
favoráveis. Em outras ocasiões, a supressão sobrevém sem qualquer perturbação
funcional, ou, como podemos dizer com razão, sem qualquer sintoma.
As condições necessárias para se esquecer um
nome, quando o esquecimento é acompanhado de ilusão de memória, podem ser
resumidas da seguinte maneira: (1) certa predisposição para esquecer o nome,
(2) um processo de supressão realizado pouco antes, (3) a possibilidade de se
estabelecer uma associação externa entre o nome em questão e o elemento
previamente suprimido. É provável que não devamos superestimar a dificuldade de
satisfazer esta última condição, de vez que, levando em conta os requisitos
mínimos esperados desse tipo de associação, é possível estabelecê-la na grande
maioria dos casos. Entretanto, existe a questão maisprofunda da saber se tal
associação externa pode realmente ser condição suficiente para que o elemento
recalcado perturbe a reprodução do nome perdido - se não haveria necessidade de
alguma ligação mais íntima entre os dois temas. Numa consideração superficial,
tenderíamos a rejeitar esta última exigência e a aceitar como suficiente a
contigüidade temporal entre ambos, mesmo com conteúdos completamente
diferentes. Numa investigação aprofundada, porém, descobre-se com freqüência
cada vez maior que os dois elementos enlaçados por uma associação externa (o
elemento recalcado e o novo) possuem também alguma ligação de conteúdo; com
efeito, tal ligação é demonstrável no exemplo de Signorelli.
O valor do conhecimento que adquirimos ao
analisar o exemplo de Signorelli depende, é claro, de querermos
declará-lo um caso típico ou uma ocorrência isolada. Devo pois afirmar que o
esquecimento de nomes, acompanhado por uma ilusão de memória
[Epinnerungstänschung], ocorre com freqüência incomum tal como o esclarecemos
no caso de Signorelli. Quase todas as vezes em que pude observar esse
fenômeno em mim mesmo, pude também explicá-lo da maneira descrita acima, ou
seja, como motivado pelo recalcamento. Devo ainda chamar a atenção para outra
consideração que confirma a natureza típica de nossa análise. Penso não haver
justificativa para se fazer uma separação teórica entre os casos em que o
esquecimento de nomes é acompanhado por ilusão de memória e os outros em que
não ocorrem nomes substitutos incorretos. Esses nomes substitutos surgem
espontaneamente em alguns casos; noutros, nos quais não afloraram espontaneamente,
pode-se obrigá-los a emergir mediante um esforço da atenção, e eles exibem
então com o elemento recalcado e com o nome ausente a mesma relação que teriam
caso tivessem aparecido espontaneamente. Dois fatores parecem decisivos para
trazer à consciência os nomes substitutos: primeiro, o esforço da atenção e,
segundo, uma condição interna ligada ao material psíquico. Poderíamos buscar
esta última na maior ou menor facilidade com que se estabelece a necessária
associação externa entre os dois elementos. Assim, boa parte dos casos de
esquecimento de nomes sem ilusão de memória pode ser acrescentada aos
casos em que se formam nomes substitutos, aosquais se aplica o mecanismo do
exemplo de Signorelli. No entanto, certamente não ousarei afirmar que
todos os casos de esquecimento de nomes devem ser classificados no mesmo grupo.
Não há dúvida de que existem exemplos muito mais simples. Penso que teremos
enunciado os fatos com suficiente cautela se afirmarmos: junto aos casos
simples de esquecimento de nomes próprios, existe também um tipo de
esquecimento motivado pelo recalque.
CAPÍTULO II - O ESQUECIMENTO DE
PALAVRAS ESTRANGEIRAS
O vocabulário corrente de nossa própria língua,
quando confinado às dimensões do uso normal, parece protegido contra o
esquecimento, Notoriamente, o mesmo não acontece com o vocabulário de uma
língua estrangeira. A predisposição para esquecê-la estende-se a todas as
partes da fala, e um primeiro estágio de perturbação funcional revela-se na
medida desigual com que dispomos do vocabulário estrangeiro, conforme nosso
estado geral de saúde e o grau de nosso cansaço. Numa série de casos, esse tipo
de esquecimento exibe o mesmo mecanismo que nos foi revelado pelo exemplo de Signorelli.
Para provar isso, apresentarei uma única análise, mas que se distingue por
algumas características úteis: trata-se do esquecimento de uma palavra que não
era um substantivo numa citação latina. Peço permissão para fazer um relato
amplo e explícito desse pequeno incidente.
No verão passado - também durante uma viagem de
férias -. renovei meu contato com um jovem de formação acadêmica, que logo
constatei estar familiarizado com algumas de minhas publicações psicológicas.
Nossa conversa recaiu - já não me lembro como - sobre a situação social da raça
a que ambos pertencemos, e ele, impelido pela ambição, passou a lamentar-se por
sua geração estar condenada à atrofia (segundo sua expressão), não podendo
desenvolver seus talentos ou satisfazer suas necessidades. Concluiu seu
discurso, de tom apaixonado, com o célebre verso de Virgílio em que ainfeliz
Dido confia à posteridade sua vingança de Enéias: “Exoriare…” Melhor
dizendo, ele quis concluí-lo desse modo, pois não conseguiu fazer a
citação e tentou esconder uma evidente lacuna em sua lembrança trocando a ordem
das palavras: “Exoriar(e) ex nostris ossibus ultor.’’ Por fim, disse,
irritado: “Por favor, não me faça essa cara tão zombeteira, como se se
estivesse comprazendo com meu embaraço, mas antes me ajude! Falta alguma coisa
no verso. Como é mesmo que diz, completo?”
“Ajudarei com prazer”, respondi, e dei-lhe a
citação correta: “Exoriar(e) ALIQUIS nostris ex ossibus ultor.”
“Que tolice, esquecer essa palavra! Por falar
nisso, o senhor diz que nunca se esquece nada sem uma razão. Gostaria muito de
saber como foi que esqueci esse pronome indefinido, ‘aliquis‘.”
Aceitei o desafio prontamente, na esperança de
conseguir uma contribuição para minha coleção. Disse-lhe, pois:
-Isso não nos deve tomar muito tempo. Só tenho
que lhe pedir que me diga, sinceramente e sem nenhuma crítica, tudo o
que lhe ocorre enquanto estiver dirigindo, sem nenhuma intenção definida, sua
atenção para a palavra esquecida.
-“Certo; então me ocorre a idéia ridícula de
dividir a palavra assim: a e liquis.”
-O que quer dizer isso?
-“Não sei.” - E o que mais lhe ocorre? - “Isso
continua assim: Reliquien [relíquias], liquefazer, fluidez, fluido.
O senhor já descobriu alguma coisa?”
-Não, ainda não. Mas continue.
-“Estou pensando” - prosseguiu ele com um
sorriso irônico - “em Simão de Trento, cujas relíquias vi há dois anos
numa igreja de Trento. Estou pensando na acusação de sacrifícios de sangue que
agora está sendo lançada de novo contra os judeus, e no livro de Kleinpaul
[1892], que vê em todas essas supostas vítimas reencarnações, reedições, por
assim dizer, do Salvador.”
-Essa idéia não está inteiramente desligada do
tema de nossa conversa antes que lhe escapasse da memória a palavra latina.
-“Exato. Estou pensando ainda num artigo que li
recentemente num jornal italiano. Acho que o título era ‘O que diz Santo
Agostinho sobre as mulheres’. Que entende o senhor com isso?”
-Estou esperando.
-“Pois agora vem algo que por certo não tem
nenhuma ligação com o nosso tema.”
-Por favor, peço-lhe que se abstenha de
qualquer crítica e…
-“Sim, já sei. Lembro-me de um magnífico senhor
idoso que encontrei numa de minhas viagens na semana passada. Ele era realmente
original. Parecia uma enorme ave de rapina. Chamava-se Benedito,
se isso lhe interessa.”
-Bem, pelo menos temos uma seqüência de santos
e padres da Igreja: São Simão, Santo Agostinho, São Benedito.
Acho que havia um padre da Igreja chamado Orígenes. Além disso, três
desses nomes são também prenomes, como Paul [Paulo] em Kleinpaul.
-“Agora o que me ocorre é São Januário e
o milagre de seu sangue - parece que meus pensamentos avançam mecanicamente.”
-Deixe estar; São Januário e Santo Agostinho
têm a ver, ambos, com o calendário. Mas que tal me ajudar a lembrar do milagre
do sangue?
-“O senhor com certeza já ouviu falar nisso! O
sangue de São Januário fica guardado num pequeno frasco, numa igreja de
Nápoles, e num determinado dia santo ele se liquefaz milagrosamente. O
povo dá muita importância a esse milagre e fica muito agitado quando há algum
atraso, como aconteceu, certa vez, na época em que os franceses ocupavam a
cidade. Então, o general comandante - ou será que estou enganado? será que foi
Garibaldi? - chamou o padre de lado e, com um gesto inequívoco na direção dos
soldados a postos do lado de fora, deu-lhe a entender que esperava que o
milagre acontecesse bem depressa. E, de fato, o milagre ocorreu…”
-Bem, continue. Por que está hesitando?
-“É que agora realmente me ocorreu uma
coisa… mas é íntima demais para ser comunicada… Além disso, não vejo nenhuma
ligação nem qualquer necessidade de contá-lo”.
-Pode deixar a ligação por minha conta. É claro
que não posso forçá-lo a falar sobre uma coisa que lhe seja desagradável; mas
então não queira saber de mim como foi que se esqueceu da palavra aliquis.
-“Realmente? O senhor acha? Pois bem, é que de
repente pensei numa dama de quem eu poderia receber uma notícia que seria
bastante desagradável para nós dois.”
-Que as regras dela não vieram?
-“Como conseguiu adivinhar isso?”
-Já não é difícil. Você preparou bem o terreno.
Pense nos santos do calendário, no sangue que começa a fluir num dia
determinado, na perturbação quando esse acontecimento não se dá, na clara
ameaça de que o milagre tem que se realizar, se não… Na verdade, você usou
o milagre de São Januário para criar uma esplêndida alusão às regras das
mulheres.
-“Sem me dar conta disso. E o senhor realmente
acha que foi essa expectativa angustiada que me deixou impossibilitado de
reproduzir uma palavra tão insignificante como aliquis?”
-Parece-me inegável. Basta lembrar sua divisão
em a-liquis, e suas associações: relíquias, liquefazer, fluido.
São Simão foi sacrificado quando criança; devo continuar, e mostrar como
ele entra nesse contexto? O senhor pensou nele partindo do tema das relíquias.
-‘’Não, prefiro que não faça isso. Espero que o
senhor não leve muito a sério esses meus pensamentos, se é que realmente os
tive. Em troca, quero confessar que a dama é italiana e que estive em Nápoles
com ela. Mas será que tudo isso não é apenas obra do acaso?”
-Tenho que deixar a seu critério decidir se
todas essas relações podem ser explicadas pela suposição de que são obra do
acaso. Posso dizer-lhe, no entanto, que qualquer caso semelhante que você
queira analisar irá levá-lo a “acasos” igualmente notáveis.
Tenho diversas razões para dar valor a essa
pequena análise e sou grato a meu ex-companheiro de viagem por ter-me
presenteado. Em primeiro lugar, porque, nesse caso, pude recorrer a uma fonte
que habitualmente me é negada. Para os exemplos aqui reunidos de perturbações
de uma função psíquica na vida cotidiana, tenho de recorrer principalmente à
auto-observação. Empenho-me em evitar o material muito mais rico fornecido por
meus pacientes neuróticos, já que, de outro modo, poder-se-ia objetar que os
fenômenos em questão são meras conseqüências e manifestações da neurose. Por
isso, é particularmente valiosopara meus objetivos que uma outra pessoa que não
sofra de doença nervosa se ofereça como objeto de tal investigação. Essa
análise é significativa em outro aspecto: ela esclarece o caso do esquecimento
de uma palavra sem que apareça um substituto na memória. Confirma,
portanto, minha afirmação anterior [em [1]] de que o surgimento ou
não-surgimento de substitutos incorretos na memória não pode ser usado como
base para qualquer distinção radical.
Entretanto, a grande importância do exemplo do aliquis
reside em outro dos aspectos em que ele difere do caso de Signorelli.
Neste último, a reprodução do nome foi perturbada pelo efeito prolongado de uma
seqüência de pensamentos iniciada e interrompida pouco antes, mas cujo conteúdo
não tinha nenhuma relação clara com o novo tema em que se incluía o nome de
Signorelli. A contigüidade temporal forneceu a única relação entre o tema
recalcado e o temado nome esquecido, mas isso bastou para que eles fossem
concatenados numa associação externa. Por outro lado, no exemplo do aliquis,
nada indica a existência de um tema assim, recalcado e independente, que
tivesse ocupado pouco antes o pensamento consciente e deixado seus ecos numa
perturbação. Nesse exemplo, a reprodução foi perturbada em virtude da própria
natureza do tema abordado pela citação, por erguer-se inconscientemente um
protesto contra a idéia desejante nela expressa. A situação dever ser
interpretada da seguinte maneira: o falante vinha deplorando o fato de a
geração atual de seu povo estar privada de seus plenos direitos; uma nova
geração - profetizou ele, como Dido - haveria de vingar-se dos opressores.
Nisso ele expressara seu desejo de ter descendentes. Nesse momento
intrometeu-se um pensamento contraditório: “Você realmente deseja descendentes
com tanta intensidade? Isso não é verdade. Quanto não lhe seria embaraçoso
receber agora a notícia de que espera descen-dentes do lugar que você sabe?
Não: nada de descendentes… por mais que precisemos deles para a vingança.” Essa
contradição então se afirma exatamente pelos mesmos meios que no exemplo de Signorelli
- estabelecendo uma associação externa entre um de seus elementos de
representação e um dos elementos do desejo repudiado; e dessa vez, de fato, ela
o faz de maneira extremamente arbitrária, valendo-se de uma via associativa
indireta que tem toda a aparência de artificialidade. Uma segunda coincidência
essencial entre esse caso e o exemplo de Signorelli está em que a
contradição se enraíza em fontes recalcadas e decorre de pensamentos que
acarretariam um desvio da atenção.
Isto é o que tenho a dizer sobre as diferenças
e a afinidade interna entre esses dois modelos típicos do esquecimento de
palavras. Ficamos conhecendo um segundo mecanismo do esquecimento - a
perturbação de um pensamento por uma contradição interna proveniente do
recalcado. Dentre os dois processos, penso ser este o mais fácil de se
entender; e tornaremos a encontrá-lo várias vezes no decorrer desta discussão.
CAPÍTULO III - O ESQUECIMENTO DE NOMES E SEQÜÊNCIAS DE PALAVRAS
Observações como as anteriores [Capítulo II]
sobre o processo de esquecimento de parte de uma seqüência de palavras numa língua
estrangeira despertam nossa curiosidade de saber se o esquecimento de
seqüências de palavras em nossa própria língua exige uma explicação
essencialmente diversa. Com efeito, não costumamos surpreender-nos quando uma
fórmula ou um poema sabidos de cor só conseguem ser reproduzidos sem fidelidade
depois de algum tempo, com alterações e lacunas. Entretanto, de vez que esse
esquecimento não atua uniformemente sobre a totalidade do que foi aprendido,
parecendo, ao contrário desarticular partes isoladas, talvez valha a pena
submeter à investigação analítica alguns exemplos de tal reprodução falha.
Conversando comigo, um colega mais jovem disse
achar provável que o esquecimento de poemas em nossa própria língua bem poderia
ter motivos semelhantes aos do esquecimento de elementos singulares de uma
seqüência de palavras em língua estrangeira. Ao mesmo tempo, ele se ofereceu
para ser objeto de uma experiência. Perguntei-lhe com que poema gostaria de
fazer o teste, e ele escolheu “Die Braut von Korinth”, poema de que gostava
muito e do qual acreditava saber pelo menos algumas estrofes de cor. No começo
da reprodução ele foi tomado de uma incerteza realmente notável. “O texto é
‘Viajando de Corinto para Atenas’”, perguntou, “ou ‘Viajando para Corinto desde
Atenas’?” Também eu hesitei por um momento, até observar, rindo, que o título
do poema, “A Noiva de Corinto”, não deixava nenhuma dúvida sobre a direção em
que viajava o rapaz. A reprodução da primeira estrofe sobreveio então sem
dificuldade ou, pelo menos, sem qualquer falsificação marcante. Por algum tempo
meu colega pareceu buscar o primeiro verso da segunda estrofe; logo continuou,
recitando:
Aber
wird er auch willkommen scheinen,
Jetzt,
wo jeder Tag was Neues bringt?
Denn
er ist noch Heide mit den Seinen
Und
sie sind Christen und - getauft.
Antes que ele chegasse a esse ponto, eu já
estranhara, aguçando os ouvidos, e uma vez terminado o último verso, ambos
concordamos em que alguma distorção havia ocorrido. Mas, como não conseguimos
corrigi-la, corremos à biblioteca para consultar os poemas de Goethe e
descobrimos, surpresos, que o segundo verso da estrofe tinha um teor
completamente diferente, que fora, por assim dizer, expulso da memória do meu
colega e substituído por algo aparentemente estranho. A versão correta dizia:
Aber wird er auch willkommen scheinen,
Wenn er teuer nicht die Gunst erkauft?
“Erkauft” rima com “getauft”
[“batizado” no quarto verso], e pareceu-me curioso que a constelação “pagão”,
“cristão”, e “batizado” o tivesse ajudado tão pouco a recompor o texto.
“Você pode me explicar”, perguntei a meu
colega, “como foi que eliminou tão completamente um verso de um poema que diz
conhecer tão bem, e será que tem alguma idéia do contexto de onde retirou o
substituto?”
Ele pôde dar uma explicação, embora,
obviamente, com alguma relutância. “O verso ‘Jetzt, wo jeder Tag was Neues
bringt’ me parece familiar; devo ter usado essas palavras há pouco tempo ao me
referir a minha prática profissional, com cuja prosperidade, como o senhor
sabe, estou agora muito satisfeito. Mas como se encaixou aí essa frase? Poderia
indicar uma relação.
Evidentemente, o verso ‘Wenn er teuer nicht die
Gunst erkauft’ me desagradou. Ele se relaciona com uma proposta de casamento
que foi rejeitada da primeira vez e que, tendo em vista a grande melhoria em
minha situação material, penso agora em repetir. Não lhe posso dizer mais nada,
mas, se for aceito agora, por certo não me será agradável pensar que, tanto antes
quanto hoje, uma espécie de cálculo pesou na balança."
Isso me pareceu esclarecedor, mesmo sem que eu
pudesse conhecer maiores detalhes. Continuei, porém, com minhas perguntas: “De
qualquer modo, como foi que você e seus assuntos particulares se mesclaram com
o texto da ‘Noiva de Corinto’? Será que existem em seu caso diferenças de credo
religioso como as que desempenham um papel importante no poema?”
(Keimt
ein Glaube neu,
Wird
oft Lieb’ und Treu
Wie
ein böses Unkraut ausgerauft.)
Errei na suposição, mas foi curioso observar
como uma única pergunta bem-dirigida deu-lhe uma súbita perspicácia, de modo
que ele pôde dar como resposta algo de que certamente não tinha conhecimento
até então. Lançou-me um olhar aflito e contrariado, murmurando para si uma passagem
posterior do poema.
Sieh
sie an genau!
Morgen
ist sie grau.
e acrescentou resumidamente: “Ela é um pouco
mais velha do que eu.” Para evitar magoá-lo mais, interrompi a indagação. A
explicação pareceu-me suficiente. Mas foi sem dúvida surpreendente que a
tentativa de localizar a causa de uma falha inofensiva na memória esbarrasse em
assuntos tão remotos e íntimos da vida particular do sujeito, investidos de um
afeto tão penoso.
Eis aqui outro exemplo, fornecido por Jung
(1907, 64), em que há esquecimento de uma seqüência de palavra num poema
famoso. Citarei as palavras do próprio autor.
“Um homem tentava recitar o famoso poema que
começa com ‘Ein Fichtenbaum steht einsam.’ No verso que começa por ‘Ihn
schläfert‘,ele estancou irremediavelmente, pois se esquecera por completo
das palavras ‘mit weisser Decke [com um lençol branco]’. O esquecimento
de algo num verso tão conhecido pareceu-me surpreendente, e por isso o fiz
reproduzir o que lhe ocorria em relação a ‘mit weisser Decke‘.
Surgiu-lhe a seguinte série de associações: ‘Um lençol branco faz pensar numa
mortalha - um lençol de linho para se cobrir um morto’ - (pausa) - ‘agora me
ocorre um amigo íntimo - seu irmão teve há pouco morte repentina - dizem que
morreu de um ataque cardíaco - ele também era muito corpulento - meu
amigo também é corpulento, e já me ocorreu que isso também
poderia acontecer com ele - provavelmente, ele faz muito pouco exercício -
quando soube da morte de seu irmão, fiquei de repente angustiado com a idéia de
que isso também poderia acontecer comigo; é que temos em nossa família
uma tendência a engordar, e meu avô também morreu de ataque cardíaco; reparei
que também estou gordo demais, e por isso comecei recentemente um regime para
emagrecer.’
“Assim,” comenta Jung, “o homem se havia
identificado de imediato, inconscientemente, com o pinheiro envolto na mortalha
branca.”
O próximo exemplo [1] de esquecimento de uma
seqüência de palavras, que devo a meu amigo Sándor Ferenczi, de Budapeste,
difere dos precedentes por se referir a uma expressão cunhada pelo próprio
sujeito, e não a uma frase tomada de um autor. O exemplo também nos apresenta o
caso não muito comum em que o esquecimento se põe a serviço de nosso bom senso,
quando este ameaça sucumbir a um desejo momentâneo. Por conseguinte, o ato
falho adquire uma função útil. Uma vez recobrada nossa sobriedade, damos valor
à correção dessa corrente interna, que antes só se pudera exprimir através de
uma falha - um esquecimento, uma impotência psíquica.
“Numa reunião social alguém citou ‘Tout
comprende c’est tout pardonner‘. Comentei que a primeira parte da sentença
bastava; o ‘perdoar’ era uma arrogância que deveria ser deixada a Deus e aos
sacerdotes. Uma das pessoas presentes achou muito boa essa observação, o que me
animou a dizer - provavelmente com a intenção de garantir a opinião favorável
do crítico benevolente - que eu pensara recentemente em algo ainda melhor. Mas
quando tentei repeti-lo, constatei que me havia escapado. Afastei-me
imediatamente do grupo e anotei as associações encobridoras [ou seja, as
representações substitutivas]. Primeiro me ocorreram o nome do amigo e o da rua
de Budapest que haviam testemunhado o nascimento da idéia que eu estava
procurando; a seguir veio o nome do outro amigo, Max, a quem costumamos chamar
de Maxi. Isso me levou à palavra ‘máxima’ e à lembrança de que dessa vez (como
em meu comentário original) tratava-se de uma variação de uma máxima famosa.
Curiosamente, meu pensamento seguinte não foi uma máxima, mas esta frase: ‘Deus
criou o homem à sua imagem’, e depois a mesma idéia, ao contrário: ‘O homem
criou Deus à sua imagem.’ Ato contínuo, surgiu a lembrança daquilo que eu
procurava. Naquela época, na rua Andrássy, meu amigo me dissera: ‘Nada humano
me é estranho’, ao que eu retrucara, aludindo às descobertas da psicanálise:
‘Você deveria ir mais longe e admitir que nada animal lhe é estranho.’
“Entretanto, depois de finalmente recordar o
que procurava, foi-me ainda menos possível repeti-lo na roda social em que me
encontrava. Entre as pessoas presentes estava a jovem esposa do amigo a quem eu
relembrara a animalidade do inconsciente, e tive de reconhecer que ela de modo
algum estava preparada para acolher essas verdades tão desagradáveis. Meu
esquecimento poupou-me uma série de perguntas incômodas por parte dela e uma
discussão improfícua. Esse deve ter sido precisamente o motivo de minha
‘amnésia temporária’.
“É interessante que me ocorresse como
associação encobridora uma frase em que a divindade é rebaixada à condição de
uma invenção humana, ao passo que, na frase esquecida, havia uma alusão ao
animal no homem. Capitis deminutio [isto é, a privação da condição que
se possuía] é, portanto, o elemento comum a ambas. Evidentemente, todo o
assunto não passa de uma continuação da cadeia de idéias sobre compreender e
perdoar, instigada pela conversa.
“Nesse caso, a ocorrência tão rápida daquilo
que eu buscava talvez também se tenha devido a minha retirada imediata para um
aposento vazio, saindo da roda social em que isso era censurado.”
Empreendi desde então várias outras análises de
casos de esquecimento ou reprodução errônea de uma seqüência de palavras, e o
coincidente resultado dessas investigações inclinou-me a supor que o mecanismo
de esquecimento acima demonstrado, nos exemplos do “aliquis” [em [1]] e
de “A Noiva de Corinto”, [em [1]] tem validade quase universal. Geralmente é um
pouco embaraçoso comunicar essas análises, de vez que, tal como as que acabo de
citar, elas levam constantemente a assuntos íntimos e desagradáveis para a
pessoa analisada. Por isso não pretendo aumentar o número desse exemplos. O
comum a todos esses casos, independentemente do material, é o fato de o
esquecido ou distorcido estabelecer uma ligação, por alguma via associativa,
com um conteúdo de pensamento inconsciente - um conteúdo de pensamento que é
fonte do efeito manifestado no esquecimento.
Volto agora ao esquecimento de nomes. Até aqui,
não esgotamos o exame nem da casuística nem dos motivos subjacentes. Como esse
é exatamente o tipo de ato falho que às vezes observo abundantemente em mim
mesmo, não me é difícil apresentar exemplos. Os leves ataques de enxaqueca de
que ainda padeço costumam anunciar-se horas antes por um esquecimento de nomes,
e, no auge desses ataques, durante os quais não sou forçado a abandonar meu
trabalho, é freqüente desaparecerem de minha memória todos os nomes próprios.
Ora, são exatamente os casos como o meuque poderiam dar motivos para uma
objeção de princípio aos nossos esforços analíticos. Acaso não se deveria
concluir dessas observações, necessariamente, que a causa do esquecimento, em
particular do esquecimento de nomes, está em distúrbios da circulação e da
função cerebrais em geral, e não deveríamos, portanto, poupar-nos a busca de
explicações psicológicas para esses fenômenos? De maneira alguma, no meu
entender; isso seria confundir o mecanismo de um processo, que é idêntico em
todos os casos, com os fatores favorecedores do processo, que são variáveis e
não necessários. Em vez de uma discussão detalhada, porém, apresentarei uma
analogia para lidar com essa objeção.
Suponhamos que eu tenha sido imprudente o
bastante para passear de noite num bairro deserto da cidade, onde me hajam
assaltado e roubado meu relógio e minha carteira. No posto policial mais
próximo, comunico a ocorrência com as seguintes palavras: “Eu estava na rua tal
e tal, e lá o isolamento e a escuridão tiraram meu relógio e
minha carteira.” Embora, com essa afirmação, eu não dissesse nada de
inverídico, o texto de minha comunicação me exporia ao risco de pensarem que
não estou muito certo da cabeça. Esse estado de coisas só poderia ser
corretamente descrito dizendo que, favorecidos pelo isolamento do lugar
e protegidos pela escuridão, malfeitores desconhecidos
roubaram meus objetos de valor. Ora, a situação no esquecimento de nomes não
tem por que ser diferente; favorecida pelo cansaço, por distúrbios
circulatórios e por uma intoxicação, uma força psíquica desconhecida rouba-me o
acesso aos nomes próprios pertencentes à minha memória - uma força que, em outros
casos, pode ocasionar a mesma falha da memória quando se está com saúde e
eficiência plenas.
Quando analiso os casos de esquecimento de
nomes que observo em mim mesmo, quase sempre descubro que o nome retido se
relaciona com um tema que me é de grande importância pessoal e que é capaz de
evocar em mim afetos intensos e quase sempre penosos. Segundo a praxe
conveniente e louvável da escola de Zurique (Bleuler, Jung, Riklin), também
posso formular esse fato da seguinte maneira: o nome perdido tocou num “complexo
pessoal” em mim. A relação do nome comigo me é inesperada e em geral se
estabelece através de associações superficiais (tais como a ambigüidade verbal
ou a homofonia); em termos genéricos, ela pode ser caracterizada como uma
relação colateral. Alguns exemplos simples esclarecerão melhor sua natureza:
(1)Um paciente pediu que eu lhe recomendasse
uma estação de águas na Riviera. Eu conhecia um lugar assim bem perto de Gênova
e também me lembrava do nome de um colega alemão que ali trabalhava, mas o nome
do lugar em si me escapou, por mais que eu achasse conhecê-lo também. Não me
restou outro recurso senão pedir ao paciente que esperasse, enquanto eu
consultava apressadamente as mulheres de minha família. “Como é mesmo o nome do
lugar perto de Gênova onde o Dr. N. tem seu pequeno sanatório, aquele em que
fulana esteve em tratamento por tanto tempo?” “Claro, justamente você é que
havia de esquecer esse nome. O lugar se chama Nervi.” Devo admitir que
já tenho um bocado de trabalho com os nervos.
(2)Outro paciente falava sobre uma estação de
veraneio próxima e declarou que, além das duas hospedarias famosas de lá, havia
uma terceira relacionada com certa lembrança dele; não tardaria em me dizer o
nome. Contestei a existência dessa terceira hospedaria e apelei para o fato de
ter passado sete verões ali, donde deveria conhecer o lugar melhor do que ele.
Mas, estimulado por minha contradição, ele já se havia lembrado do nome. A
hospedaria chamava-se “Hochwartner”. Tive então que ceder e até confessar-lhe
que, por sete verões, eu morara bem perto dessa hospedaria cuja existência
havia negado. Nesse caso, por que teria eu esquecido tanto o nome quanto a
coisa? Creio que foi porque o som desse nome era parecido demais com o de um
colega meu, especialista em Viena, e como no caso anterior, tocou em mim no
“complexo profissional”.
(3)Noutra ocasião, quando estava prestes a
comprar uma passagem na estação ferroviária de Reichenhall, não houve meio de
me ocorrer o nome da estação principal seguinte, que era perfeitamente familiar
e por onde eu já havia passado com muita freqüência. Fui até forçado a procurar
o nome no guia dos horários. Era “Rosenheim”. Soube então de imediato em
virtude de que associação o nome me havia escapado. Uma hora antes eu visitara
minha irmã em sua casa, perto de Reichenhall; como o nome da minha irmã é Rosa,
sua casa era também um “Rosenheim” [“lar de Rosa”]. O “complexo
familiar” me havia roubado esse nome.
(4)Tenho uma multiplicidade de exemplos para
ilustrar as atividades francamente bandidescas do “complexo familiar”.
Um dia veio a meu consultório um rapaz que era
irmão mais moço de uma paciente. Eu o vira inúmeras vezes e costumava
referir-me a ele pelo nome de batismo. Depois, quando quis falar sobre sua
visita, percebi que havia esquecido seu nome (que eu sabia não ser nada
incomum), e não houve meio que me ajudasse a recuperá-lo. Saí então para a rua
e, pela leitura dos letreiros sobre as lojas, reconheci seu nome tão logo
deparei com ele. A análise do episódio mostrou-me que eu traçara um paralelo
entre o visitante e meu próprio irmão, paralelo este que tentava culminar na
pergunta recalcada: “Ter-se-ia meu irmão comportado de maneira semelhante
nessas mesmas circunstâncias, ou teria ele feito o contrário?” O vínculo
externo entre os pensamentos concernentes a minha própria família e à outra foi
possibilitado pela situação fortuita de que, em ambos os casos, as mães tinham
o mesmo nome: Amalia. Entendi também, posteriormente [nachträglich], os
nomes substitutos, Daniel e Franz, que se haviam impostos a mim sem me fornecer
nenhum esclarecimento. Estes, bem como Amalia, são nomes da [peça] Die
Räuber [Os Ladrões], de Schiller, e foram alvo de uma piada feita
por Daniel Spitzer, o “caminhante vienense”.
(5)Numa outra ocasião, eu não conseguia achar o
nome de um paciente que pertencia a relações da minha juventude. Minha análise
seguiu um caminho muito tortuoso antes de fornecer o nome que eu procurava. O
paciente expressara um medo de perder a visão, o que despertou a lembrança de
um rapaz que ficara cego com um tiro; e, por sua vez, isso se relacionava com a
figura de mais outro jovem que se ferira com um tiro. Este último tinha o mesmo
sobrenome do primeiro paciente, apesar de não ter com ele nenhum parentesco.
Entretanto, só encontrei o nome depois de me conscientizar de minha
transferência de uma expectativa angustiada desses dois casos juvenis para uma
pessoa da minha própria família.
Portanto, meus pensamentos são perpassados por
uma corrente contínua de “auto-referência” da qual, em geral, não tenho nenhum
indício, mas que se denuncia através desses exemplos de esquecimentos de nomes.
É como se eu estivesse obrigado a comparar comigo tudo o que ouço a respeito de
outra pessoas; como se meus complexos pessoais fossem postos em alerta todas as
vezes que tenho notícia de outra pessoa. É impossível que isso seja uma
peculiaridade individual minha; deve conter, antes, uma indicação da maneira
como entendemos o “outro” em geral. Tenho razões para supor que, nesse aspecto,
as outras pessoas sejam bem parecidas comigo.
O mais belo desses exemplos foi-me contado por
um Sr. Lederer, que passara por essa experiência pessoalmente. Durante sua
lua-de-mel em Veneza, ele encontrou um senhor a quem conhecia superficialmente
e teve de apresentá-lo à jovem esposa. No entanto, como havia esquecido o nome
desse estranho, socorreu-se na primeira vez com um murmúrio ininteligível. Ao
esbarrar no cavalheiro pela segunda vez, como era inevitável em Veneza, ele o
afastou para um lado e lhe pediu que o tirasse de seu embaraço dizendo-lhe seu
nome, que ele lamentava ter esquecido. A resposta do estranho atestou um
conhecimento incomum da natureza humana. “Bem posso acreditar que tenha
esquecido meu nome. É o mesmo que o seu; Lederer!” Não se pode evitar
uma ligeira sensação de desagrado quando se esbarra no próprio nome numa pessoa
desconhecida. Há pouco tempo senti isso claramente quando se apresentou em meu
consultório um Sr. S. Freud. (Contudo, devo registrar a garantia de um
de meus críticos de que, nesse aspecto, seus sentimentos são o oposto dos
meus.)
(6)Os efeitos produzidos pela “auto-referência”
também podem ser vistos no seguinte exemplo relatado por Jung (1907, 52):
“Um certo Sr. Y. apaixonou-se infrutiferamente
por uma dama que pouco depois se casou com um Sr. X. A partir daí, apesar de
conhecer o Sr. X há muito tempo e até manter relações comerciais com ele, o Sr.
Y. passou a esquecer seu nome repetidamente, tanto que em várias ocasiões teve
de indagar a outras pessoas qual era, quando queria corresponder-se com o Sr.
X.”
Mas a motivação do esquecimento nesse caso é
mais transparente do que nos anteriores, enquadrados na constelação da
auto-referência. Aqui, o esquecimento parece ser conseqüência direta da
antipatia do Sr. Y. por seu rival mais afortunado; não quer saber nada do
rival: “nunca saber de sua existência”.
(7)O motivo do esquecimento de um nome também
pode ser mais sutil, consistir no que se poderia chamar de um ressentimento
“sublimado” contra seu portador. Assim, de Budapest, escreve a Srta. I. von K.:
“Formulei para mim uma pequena teoria. Tenho
observado que as pessoas com talento para a pintura não têm sensibilidade
musical e vice-versa. Faz algum tempo, conversando com alguém a esse respeito,
comentei: ‘Até agora minhas observações sempre foram confirmadas, com a exceção
de uma única pessoa.’ Quando quis lembrar o nome dessa pessoa, constatei que o
havia esquecido irremediavelmente, apesar de saber que seu portador era um de
meus amigos mais chegados. Passados alguns dias, ao ouvir por acaso mencionarem
o nome, logo entendi que estavam falando do destruidor de minha teoria. O
ressentimento que eu nutria inconscientemente contra ele se expressara pelo
esquecimento de seu nome, costumeiramente tão familiar para mim.”
(8) O caso que se segue, relatado por Ferenczi,
mostra uma maneira um pouco diferente de a auto-referência levar ao
esquecimento de um nome. Sua análise é particularmente instrutiva pela
explicação dada às associações substitutas (como Botticelli e Boltraffio,
substitutos de Signorelli [em [1]]).
“Uma dama que ouvira falar de psicanálise não
conseguia lembrar-se do nome do psiquiatra Jung.
“Em vez deste, ocorreram-lhe os seguintes
nomes: K1 - (um sobrenome), Wilde, Nietzsche, Hauptmann.
“Não lhe forneci o nome e convidei-a a associar
livremente o que lhe ocorre em relação a cada um desses nomes.
“A partir de K1, ela pensou imediatamente na
Sra. K1 - e em como era uma pessoa cerimoniosa e afetada, mas com muito boa
aparência para sua idade. ‘Ela não envelhece.’ Como caracterização
comum para Wilde e Nietzsche, falou em ‘doença mental’. Depois, disse em
tom zombeteiro: ‘Vocês, freudianos, vão continuar procurando as causas da
doença mental até vocês mesmos ficarem loucos.’ Depois: ‘Não suporto Wilde e
Nietzsche. Não os entendo. Ouvi dizer que ambos eram homossexuais; Wilde se
relacionava com gente jovem.’ (Apesar de já ter enunciado nessa frase o
nome correto - em húngaro, é verdade -, ela ainda assim não conseguiu
lembrá-lo.)
“Sobre Hauptmann ocorreu-lhe primeiro ‘Halbe‘
e, depois, ‘Jugend‘; e só então, depois que lhe chamei a atenção para a
palavra ‘Jugend‘, foi que ela entendeu que estivera em busca do nome Jung.
“Essa dama, que perdera o marido aos trinta e
nove anos e não tinha perspectiva de voltar a casar-se, decerto tinha razões
suficientes para evitar tudo o que a fizesse lembrar da juventude ou da idade.
É digno de nota que as ocorrências encobridoras do nome buscado estivessem
exclusivamente associadas com o conteúdo, não havendo associações sonoras.”
(9) Eis um exemplo de esquecimento de nome com
outra motivação muito sutil, explicado pelo próprio sujeito afetado:
“Quando eu fazia uma prova de filosofia como
matéria complementar, o examinador interrogou-me sobre a doutrina de Epicuro e,
depois disso, perguntou se eu sabia quem a havia retomado em séculos
posteriores. Respondi com o nome de Pierre Gassendi, que eu ouvira descreverem
como discípulo de Epicuro dois dias antes, num café. Ante a pergunta surpresa
sobre como eu sabia disso, respondi atrevidamente que há muito me interessava
por Gassendi. A conseqüência foi um magna cum laude [com louvor] no
diploma, porém, infelizmente, também uma obstinada tendência posterior a
esquecer o nome de Gassendi. Creio que minha consciência pesada é culpada de
minha impossibilidade de lembrar esse nome, apesar de todos os meus esforços. É
que, na verdade, também naquela ocasião eu não deveria tê-lo sabido.”
Para que se avalie a intensidade da aversão de
nosso informante à recordação desse episódio do exame, é preciso que se saiba
do grande valor que ele confere a seu doutorado e das inúmeras outras coisas às
quais este tem que servir de substituto.
(10) Intercalo aqui outro exemplo de
esquecimento do nome de uma cidade. Talvez não seja tão simples quanto os já
citados [em [1] e [2]] mas,para qualquer um que esteja algo familiarizado com
essas investigações, parecerá digno de crédito e valioso. O nome de uma cidade
da Itália escapou à memória do sujeito em conseqüência de sua grande semelhança
fonética com um prenome de mulher a que se ligavam muitas lembranças carregadas
de afeto, que sem dúvida não são integralmente relatadas aqui. Sándor Ferenczi,
de Budapeste, que observou em si mesmo esse caso de esquecimento, tratou-o da
maneira como se analisa um sonho ou uma idéia neurótica - por certo, com toda a
razão.
“Estive hoje visitando uma família amiga e a
conversa se voltou para as cidades do norte da Itália. Alguém observou que elas
ainda exibem traços da influência austríaca. Algumas dessas cidades foram
mencionadas e também eu quis citar uma delas, mas seu nome não me ocorreu,
embora eu soubesse que ali havia passado dois dias muito agradáveis - um fato
que não combinava muito com a teoria de Freud sobre o esquecimento. Em vez do
nome buscado, as seguintes associações impuseram-se a mim: Capua - Brescia -
O Leão de Brescia.
“Visualizei esse ‘Leão’ sob a forma de uma estátua
de mármore postada diante de mim como um objeto concreto, mas logo reparei
que ele se parecia menos com o leão do Monumento à Liberdade em Brescia (que só
vi numa ilustração) do que com o outro famoso leão de mármore que vi no monumento
aos mortos em Lucerna - o monumento aos guardas suíços tombados nas Tulherias,
do qual tenho um réplica em miniatura na minha estante. E então me ocorre
finalmente o nome buscado: era Verona.
“Ao mesmo tempo, entendi prontamente quem era a
culpada dessa minha amnésia. Ninguém senão uma antiga empregada da família de
quem eu era convidado nessa ocasião. Seu nome era Veronika (Verona,
em húngaro) e eu tinha por ela uma intensa antipatia, por causa de sua
fisionomia repulsiva, de sua voz esganiçada e rouca e sua confiança
insuportável, a que ela achava ter direito por longo tempo de serviço. Também a
maneira tirânica com que, em sua época, ela costumava tratar as crianças
da casa me era intolerável. E então compreendi também o sentido das associações
substitutas.
“Minha associação imediata com Capua foi
caput mortuum [cabeça de morto]. Muitas vezes comparei a cabeça de
Veronika a uma cabeça de defunto. A palavra húngara ”kapzsi“ (avaro) sem
dúvida forneceu mais um determinante para o deslocamento. Descobri também, é
claro, as vias associativas muito mais diretas que ligam Capua e Verona
como idéias geográficas e como palavras italianas que têm o mesmo ritmo.
“O mesmo vale para Brescia, mas também
aqui encontram-se vias colaterais entrelaçadas na associação de idéias.
“Naquela época minha antipatia era tão violenta
que eu achava Veronika decididamente asquerosa, e mais de uma vez manifestei
meu assombro de que, apesar disso, ela pudesse ter uma vida amorosa e ser amada
por alguém. ‘Beijá-la’, dizia eu, ‘deve provocar náuseas!’ E por certo fazia
muito tempo que se poderia vinculá-la à idéia dos guardas suíços tombados.
“É muito freqüente se mencionar Brescia, pelo
menos aqui na Hungria, não em conexão com o leão, mas com outro animal
selvagem. O nome mais odiado neste país, como também no norte da Itália, é
o do general Haynau, comumente conhecido como a ‘Hiena de Brescia‘.
Assim, um fio de meu pensamento levava do odiado tirano Haynau, via
Brescia, para a cidade de Verona, enquanto o outro levava, através da idéia do animal
de voz rouca que freqüenta os túmulos dos mortos (o que contribui para
determinar a emergência de um monumento aos mortos), para a cabeça de
defunto e a voz desagradável de Veronika, tão grosseiramente insultada por meu
inconsciente, pessoa que em sua época agira naquela casa de maneira quase tão
tirânica quanto o general austríaco depois das lutas dos húngaros e italianos
pela liberdade.
“A Lucerna liga-se a idéia do verão que
Veronika passou com os patrões nas cercanias da cidade de Lucerna, junto
ao lago do mesmo nome. A Guarda Suíça, por sua vez, lembra que ela sabia
tiranizar não só as crianças, mas também os adultos da família, e se comprazia
[sich gefallen] no papel de ‘Garde-Dame’ [governanta, dama de companhia,
literalmente ‘guarda de senhoras’].
“Devo assinalar expressamente que essa minha
antipatia por Veronika é - conscientemente - um coisa há muito superada. Desde
aquela época, tanto sua aparência quanto suas maneiras mudaram muito, para
melhor, e posso tratá-la (embora para isso tenha raras oportunidades) com
sentimentos sinceramente amistosos. Como de hábito, meu inconsciente se aferra
com mais tenacidade a minhas impressões [anteriores]: ele é ”de efeito
posterior" e rancoroso.
“As Tulherias são uma alusão a outra
pessoa, uma dama francesa idosa que, em muitas ocasiões, realmente ‘guardava‘
as mulheres da casa; era respeitada por todos, jovens e velhos - e sem dúvida
um pouco temida também. Por algum tempo fui seu élève [aluno] de
conversação em francês. A palavra élève recorda-me ainda que, estando em
visita ao cunhado de meu atual anfitrião, no norte da Boêmia, achei muita graça
ao saber que os camponeses do lugar chamavam os élèves da escola
florestal de ‘Löwen’ [leões]. Também essa lembrança divertida pode ter
desempenhado um papel no deslocamento da hiena para o leão.”
(11) Também o exemplo seguinte mostra como um
complexo pessoal que domine a pessoa num dado momento provoca o esquecimento de
um nome com base numa ligação muito remota.
“Dois homens, um mais velho e um mais moço, que
seis meses antes haviam feito juntos uma viagem à Sicília, trocavam lembranças
daqueles dias bonitos e memoráveis. ‘Vejamos’, disse o mais jovem, ‘como se chamava
o lugar onde pernoitamos antes de nossa excursão a Selinunte? Calatafimi, não
é?’ O mais velho discordou: ‘Não, tenho certeza de que não era isso, mas também
esqueci o nome, embora me lembre muito bem de todos os detalhes de nossa estada
lá. Basta eu saber que alguém esqueceu um nome para que isso logo me faça
esquecê-lo também. [Cf. adiante, em [1]] Quer que procuremos o nome? O único
que me ocorre é Caltanisetta, que com certeza não é o correto.’ - ‘Não’, disse
o mais jovem, ‘o nome começa com w ou então contém w.’ - ‘Mas não
existe w em italiano’, objetou o mais velho. ‘Eu quis dizer v, e
só falei w por estar muito acostumado com ele em minha língua.’ O homem
mais velho manteve sua objeção ao v. ‘Aliás’, declarou, ‘acho que já
esqueci uma porção de nomes sicilianos, e essa é uma boa hora para fazermos
algumas experiências. Por exemplo, qual era o nome daquele lugar elevado que na
Antigüidade se chamava Enna? Ah, já sei - Castrogiovanni.’ No instante seguinte
o homem mais moço recuperou o nome perdido. ‘Castelvetrano’, exclamou,
satisfeito por poder apontar o v em que havia insistido. Durante algum
tempo, o mais velho não teve nenhuma sensação de reconhecimento, mas depois de
ter aceito o nome, coube-lheexplicar por que o havia esquecido ‘Evidentemente’,
disse, ‘porque a segunda metade, ”-vetrano“, soa como ”veterano".
‘Sei que não gosto muito de pensar em envelhecer e tenho reações
estranhas quando me lembram disso. Por exemplo, recentemente usei os mais
curiosos disfarces para acusar um amigo muito estimado de ter perdido a
juventude há muito tempo, e isso porque, numa ocasião anterior, em meio às
observações mais lisonjeiras a meu respeito, esse amigo havia acrescentado que
eu “já não era um homem jovem”. Outro indício de que minha resistência estava
voltada contra a segunda metade do nome Castelvetrano é que seu som inicial
ressurgiu no nome substituto Caltanisetta.’ ‘E quanto ao próprio nome
Caltanisetta?’, perguntou o mais jovem. ‘Esse’, confessou o mais velho, ‘sempre
me pareceu ser um apelido carinhoso para uma mulher jovem.’
“Algum tempo depois, acrescentou:
‘Evidentemente, o nome para Enna também era um nome substituto. E agora me
ocorre que Castrogiovanni - o nome que se impôs ao primeiro plano com a ajuda
de uma racionalização - soa como ”giovane“, jovem, assim como o nome
perdido, Castelvetrano, soa como ”veterano“, velho.’
“O homem mais velho acreditou ter assim
esclarecido seu esquecimento do nome. Não foram investigados os motivos da
mesma falha de memória no mais moço.”
Não só os motivos, mas também o mecanismo que
rege o esquecimento de nomes merecem nosso interesse. Num grande número de
casos um nome é esquecido, não porque ele próprio desperte esses motivos, mas
porque - graças à semelhança fonética e à homofonia - ele toca em outro
nome contra o qual se voltam esses motivos. Como é compreensível, esse
relaxamento das condições facilita extraordinariamente a ocorrência do
fenômeno. É o que mostram os seguintes exemplos:
(12)Relatado pelo Dr. Eduardo Hitschmann
(1913a): “O senhor N. queria dar a alguém o nome da livraria Gilhofer e
Ranschburg [de Viena]. Por mais que pensasse, entretanto, só lhe ocorria o nome
Ranschburg, embora ele conhecesse muito bem a firma. Voltou para casa meio
insatisfeito e achou o assunto suficientemente importante para perguntar a seu
irmão (que aparentemente já estava dormindo) qual era a primeira metade do
nome. O irmão o forneceu sem hesitação. Nisto ocorreu ao Sr. N. a palavra
‘Gallhof’, como associação a ‘Gillhofer’. Gallhof era o lugar onde, alguns
meses antes, ele dera um memorável passeio com uma jovem atraente. Como
lembrança, a moça o presenteara com um objeto que trazia a inscrição
‘Recordação da horas felizes em Gallhof [”Gallhoerf Stunden“,
literalmente ”horas de Galhof"]’. Dias antes do esquecimento do nome, esse
presente fora seriamente danificado, aparentemente de modo acidental, quando N.
fechou uma gaveta depressa demais. N. reparou nisso com um certo sentimento de
culpa, familiarizado que estava com o sentido dos atos sintomáticos. [Ver
Capítulo IX.] Na época, seus sentimentos em relação à jovem eram algo
ambivalentes: por certo a amava, mas estava hesitante frente ao desejo dela de
se casarem."
(13)Relatado pelo Dr. Hanns Sachs: “Ao
conversar sobre Gênova e seus arredores, um rapaz quis mencionar o lugar
chamado Pegli, mas só com esforço conseguiu lembrar o nome, depois de
muito refletir. A caminho de casa, ia meditando sobre o modo desagradável como
lhe escapara um nome tão familiar e, ao fazê-lo, foi conduzido a uma palavra de
som muito semelhante: Peli. Ele sabia haver uma ilha com esse nome nos
Mares do Sul, cujos habitantes ainda conservaram alguns hábitos notáveis. Lera
sobre eles recentemente, numa obra de etnologia, e decidira nesse momento usar
as informações para apoiar uma hipótese própria. Ocorreu-lhe então que Peli era
também o cenário de um romance que ele havia lido com interesse e prazer - o Van
Zantens glücklichste Zeit [A Época mais Feliz de Van Zanten], de Laurids
Bruun. Os pensamentos que o haviam ocupado quase incessantemente durante o dia
centralizavam-se numa carta, recebida naquela mesma manhã, de uma dama que lhe
era muito querida. Essa carta o fizera temer que tivesse de renunciar a um
encontro marcado. Depois de passar o dia inteiro com um péssimo humor, ele saíra
à noite, decidido a não se atormentar mais com esses pensamentos irritantes, e
sim a desfrutar, com a maior serenidade possível, da reunião social que tinha à
frente e que lhe era de extremo valor. É claro que essa sua resolução poderia
ser gravemente posta em risco pela palavra Pegli, por ser tão estreita a
sua semelhança sonora com Peli; Peli, por sua vez, por ter adquirido um
vínculo pessoal com ele através do interesse etnológico, corporificava não só a
‘época mais feliz’ de Van Zanten, mas também a sua, e portanto também os medos
e angústias que ele alimentara o dia inteiro. É característico que essa simples
interpretação só lhe chegasse assim que uma segunda carta transformou suas
dúvidas na certeza feliz de revê-la em breve.”
Se esse exemplo faz lembrar um outro que lhe é,
por assim dizer, vizinho, no qual não se conseguia recordar o topônimo Nervi
(Exemplo 1 [em [1]]), verifica-se como o duplo sentido de uma palavra pode ser
substituído por duas palavras de som semelhante.
(14)Ao deflagrar-se a guerra contra a Itália,
em 1915, pude fazer em mim mesmo a observação de que toda uma série de nomes de
lugares italianos, que de hábito me eram prontamente acessíveis, subtraiu-se de
repente de minha memória. Como muitos outros alemães, eu havia criado o hábito
de passar parte das minhas férias em solo italiano, e não pude duvidar de que
esse maciço esquecimento de nomes era a expressão de uma compreensível
animosidade pela Itália, substituindo agora minha predileção anterior. Mas,
além desse esquecimento de nomes diretamente motivado, também se identificou
uma amnésia indireta com origem na mesma influência. Mostrei também uma
tendência a esquecer topônimos não-italianos e, investigando esses incidentes,
descobri que tai nomes tinham alguma ligação, por meio de vagas semelhanças de
som, com os nomes inimigos proscritos. Assim, um dia me atormentei tentando
lembrar o nome da cidade de Bisenz, na Morávia. Quando ele finalmente me
ocorreu, reconheci de imediato que esse esquecimento devia ser posto na conta
do Palazzo Bisenzi, em Orvieto. O Hotel Belle Arti, onde eu me hospedara
em todas as minhas visitas a Orvieto, situa-se nesse “palazzo”. As lembranças
mais preciosas, é claro, tinham sido as mais prejudicadas pela mudança em minha
atitude emocional.
Alguns exemplos ajudarão também a nos lembrar
da diversidade de propósito a cujo serviço pode colocar-se o ato falho do
esquecimento de nomes.
(15)Relatado por A. J. Storfer (1914): ‘’Certa
manhã, uma dama residente em Basiléia recebeu a notícia de que sua amiga de infância,
Selma X., de Berlim, então em viagem de lua-de-mel, estava de passagem por
Basiléia, mas ali permaneceria apenas um dia; por isso a dama de Basiléia
apressou-se a chegar logo ao hotel. Quando as amigas se separaram, combinaram
reencontrar-se à tarde e permanecer juntas até a hora da partida da dama
berlinense.
“À tarde, a dama de Basiléia esqueceu o
encontro marcado. Desconheço os determinantes desse esquecimento, mas, nessa
situação (encontro com uma amiga de infância recém-casada), são
possíveis diversas constelações típicas capazes de determinar uma inibição
contra a repetição do encontro. O ponto de interesse nesse caso está em outro
ato falho, que representa uma proteção inconsciente para o primeiro. Na hora em
que deveria estar-se reencontrando com a amiga de Berlim, a dama de Basiléia se
achava numa roda social em outro lugar. Ali, a conversa recaiu sobre o
casamento recente da cantora vienense de ópera de sobrenome Kurz. A dama de
Basiléia teceu alguns comentários críticos (!) sobre esse casamento, mas, ao
querer referir-se à cantora pelo nome, descobriu com enorme embaraço que não
conseguia lembrar-se de seu nome de batismo. (Como se sabe, há uma tendência
especial a se mencionar também o prenome, nos casos em que o sobrenome é
monossilábico.) A dama de Basiléia irritou-se ainda mais com seu lapso de
memória porque já ouvira a Kurz cantar muitas vezes e, comumente, sabia muito
bem seu nome (completo). Antes que alguém mencionasse o prenome desaparecido, a
conversa tomou outro rumo.
“Na noite desse mesmo dia, nossa dama de
Basiléia estava entre algumas pessoas que, em parte, eram as mesmas daquela
tarde. Por coincidência, a conversa tornou a recair no casamento da cantora
vienense e, sem qualquer dificuldade, a dama citou o nome ‘Selma Kurz’.
E nesse instante exclamou: ‘Oh! Acabo de me lembrar: esqueci por completo que
hoje à tarde tinha um encontro com minha amiga Selma!‘ Uma olhadela no
relógio mostrou que a amiga já devia ter partido.”
Talvez ainda não estejamos preparados para
apreciar esse belo exemplo em todos os seus aspectos. É mais simples o caso
seguinte, embora não se tratasse do esquecimento de um nome e sim de uma
palavra estrangeira, por um motivo criado pela situação. (Já podemos notar que
estamos lidando com os mesmos processos, quer eles se apliquem a nomes
próprios, prenomes, palavras estrangeiras ou seqüências de palavras.) Foi o
caso de um jovem que esqueceu a palavra inglesa correspondente a “ouro” - que é
idêntica à palavra alemã (“Gold”) - para, desse modo, ter oportunidade de
praticar uma ação que desejava.
(16)Relatado pelo Dr. Hanns Sachs: “Um rapaz
travou conhecimento numa pensão com uma moça inglesa que lhe agradou. Na
primeira noite após se conhecerem, ele conversava com a moça na língua materna
desta, que conhecia razoavelmente bem, e quis empregar a palavra inglês para
‘ouro’. Apesar de seus imensos esforços, o vocábulo não lhe ocorreu. Em vez
dele, a palavra francesa or, a latina aurum e a grega chrysos
impuseram-se obstinadamente como substitutas, tanto que ele só conseguiu
rejeitá-las a muito custo, embora soubesse com certeza que não tinham
parentesco algum com a palavra procurada. Por fim, o único caminho que
encontrou para se fazer entender foi tocar num anel de ouro na mão da moça,
ficando muito envergonhado ao saber por ela que a palavra tão procurada para
denotar ouro era exatamente idêntica à alemã, ou seja, ‘gold’. O grande valor
desse contato, propiciado pelo esquecimento, não estava meramente na satisfação
inobjetável da pulsão de pegar ou tocar - pois para isso existem outras
oportunidades avidamente exploradas pelos enamorados -, porém, muito mais, no
modo como contribuiu para esclarecer as perspectivas do flerte. O inconsciente
da dama, sobretudo se sentisse simpatia pelo homem com quem ela conversava,
adivinharia o objetivo erótico do esquecimento, oculto por sua máscara de
inocência. A maneira de ela corresponder ao contato e aceitar sua motivação
poderia, assim, tornar-se um meio - inconsciente para ambos, mas muito significativo
- de chegarem a um entendimento sobre as possibilidades do flerte iniciado
pouco antes.”
(17)Narro ainda, segundo J. Stärcke (1916),
outra observação interessante que concerne ao esquecimento e à recuperação de
um nome próprio. Esse caso se distingue pela ligação entre o esquecimento do
nome e um equívoco na citação de algumas palavras de um poema, como no exemplo
da “Noiva de Corinto” [em [1]].
“Z., um velho jurista e filólogo, contava numa
roda como, em seus tempos de estudantes na Alemanha, conhecera um aluno
excepcionalmente estúpido, e teve muitas anedotas a contar sobre essa
estupidez. Mas não conseguiu lembrar o nome do estudante; achou que começava
com W, mas depois reconsiderou essa idéia. Lembrou-se de que esse aluno
estúpido mais tarde se tornara comerciante de vinhos. Depois, ao contar
outra anedota sobre a estupidez do rapaz, tornou a exprimir seu espanto pelo
fato de seu nome não lhe ocorrer, e disse: ‘Ele era tão burro que até hoje não
entendo como consegui martelar-lhe o latim na cabeça.’ No momento seguinte,
lembrou-se de que o nome procurado terminava em ‘. man‘. Nesse ponto,
perguntamos se lhe ocorria algum outro nome terminado em ‘man’ e ele disse: ‘Erdmann‘
[homem da terra].’- ‘Quem é esse?’ - ‘Um outro estudante daquela época.’
- Sua filha, porém, observou que havia também um professor Erdmann. Uma
averiguação mais rigorosa revelou que esse professor Erdmann era editor de uma
revista e, recentemente, só aceitara publicar em forma abreviada um trabalho
apresentado por Z., do qual discordava em parte etc., e Z. ficara bastante
aborrecido com isso. (Ademais, descobri posteriormente que, anos antes, Z.
provavelmente tivera expectativas de se tornar professor da mesma disciplina
agora lecionada pelo professor Erdmann, e também nesse aspecto o nome talvez
tivesse tocado num ponto sensível.)
“E então, de repente, ocorreu-lhe o nome do
estudante estúpido: ‘Lindeman!’ Como já se lembrara de que o nome terminava em
‘man’, ‘Linde [tília]’, era o que permanecera recalcado por mais tempo.
Ao se perguntar o que lhe ocorria ao pensar em ‘Linde‘, ele disse a
princípio: ‘Absolutamente nada.’ Quando insisti em que sem dúvida lhe ocorreria
alguma coisa relacionada com essa palavra, ele respondeu, erguendo os olhos e
fazendo um gesto com a mão no ar: ‘Ora, uma tília [‘Linde’] é uma árvore
bonita.’ Nada mais lhe ocorreu. Todos ficaram calados e cada um prosseguiu em
suas leituras ou outros afazeres, até que, passados alguns momentos, Z. fez a
seguinte citação em tom sonhador:
Steht er mit festen
Gefügigen Knochen
Auf
der Erde,
So
reicht er nicht auf
Nur
mit der Linde
Oder
der Rebe
Sich
zu vergleichen.
“Dei um grito de triunfo: ‘Aí está o nosso
Erdmann [homem da terra]!’ E disse: ‘O homem que ”se ergue sobre a terra",
ou seja, o homem da terra ou Erdmann, não é suficientemente grande para
se comparar nem com a tília (Lindeman) nem com a videira (o comerciante
de vinhos). Em outras palavras, nosso Lindeman, o estudante estúpido
que mais tarde se tornou comerciante de vinhos, certamente era um asno, mas
nosso Erdmann, é ainda muito mais burro e nem sequer se pode comparar ao
Lindeman.’ No inconsciente, essa linguagem irônica ou insultuosa é bastante
comum; por isso, pareceu-me que agora se havia encontrado a causa principal do
esquecimento do nome.
“Perguntei, então, de que poema provinham os
versos citados. Z. disse que era um poema de Goethe, que ele achava começar
assim:
Edel sei der Mensch
Hilfreich und gut!
e que continha também os versos:
Und hebt er sich aufwärts,
So spielen mit ihm die Winde.
“No dia seguinte, verifiquei esse poema de
Goethe e viu-se que o caso era ainda mais belo (apesar de ser também mais
complexo) do que parecera a princípio.
“(a)Os primeiros versos citados dizem
(cf. a citação acima):
Steht er mit festen
Markigen Knochen.
“’Gefügige Knochen [ossos flexíveis]’
seria uma combinação muito estranha, mas não quero ir mais a fundo nesse ponto.
“(b)Os versos seguintes dessa estrofe
dizem (cf. a citação acima):
...Auf der wohlgegründeten
Dauernden Erde,
Reicht er nicht auf,
Nur mit der Eiche
Oder
der Rebe
Sich
zu vergleichen.
Portanto, em todo o poema não há menção a tília
alguma! A troca de ‘carvalho’ por ‘tília’ (em seu inconsciente) ocorreu apenas
para possibilitar o jogo de palavras ‘terra - tília - videira’.
“(c)Esse poema se chama ‘Grenzen der
Menschheit [Os Limites da Humanidade]’ e compara a onipotência dos deuses com o
poder insignificante do homem. Mas o poema que começa por
Edel
sei der Mensch
Hilfreich
und gut!
é outro e se encontra algumas páginas adiante
[no livro]. Seu título é ‘Das Gottliche. [A Natureza Divina]’, e também ele
contém pensamentos sobre os deuses e os homens. Como não se examinou a questão
mais a fundo, posso no máximo supor que certos pensamentos sobre a vida e a
morte, o temporal e o eterno, e a vida frágil e a morte futura do próprio
sujeito também tenham desempenhado um papel na gênese desse caso."
Em alguns desses exemplos é preciso recorrer a
todas as sutilezas da técnica psicanalítica para explicar o esquecimento de um
nome. Quem quiser conhecer melhor essa tarefa poderá consultar um artigo de
Ernest Jones, de Londres (1911a), já traduzido para o alemão.
(18)Ferenczi observou que o esquecimento de
nomes também pode aparecer como um sintoma histérico. Nessa situação, ele
mostra um mecanismo muito diferente do que é próprio dos atos falhos. A
natureza dessa diferença é esclarecida por suas próprias palavras:
“Tenho agora em tratamento uma paciente, uma
solteirona já envelhecida, a quem deixam de ocorrer os nomes próprios mais
usuais e mais conhecidos dela, se bem que, afora isso, sua memória seja boa. No
decorrer da análise, ficou claro que mediante esse sintoma ela visa a
documentar sua ignorância. Essa exibição ostensiva de sua ignorância, contudo,
é, na verdade, uma censura a seus pais, que não lhe permitiram receber
instrução superior. Também sua torturante compulsão a fazer limpeza (‘psicose
da dona de casa’) provém, em parte, da mesma fonte. Com isso ela quer dizer
algo como: ‘Vocês me transformaram numa empregada.’”
Eu poderia citar outros exemplos do
esquecimento de nomes e levar seu exame muito mais longe, não fosse por querer
evitar, neste primeiro estágio, a antecipação de quase todos os pontos de vista
destinados à discussão de temas posteriores. Entretanto, talvez possa
permitir-me resumir em algumas frases as conclusões extraídas das análises aqui
relatadas:
O mecanismo do esquecimento de nomes (mais
corretamente, de os nomes escaparem da memória, serem temporariamente
esquecidos) consisteem que a pretendida reprodução do nome sofre a
interferência de uma cadeia de pensamentos estranha, não consciente no momento.
Entre o nome assim perturbado e o complexo perturbador existe uma conexão
preexistente; ou essa conexão se estabelece, quase sempre de maneiras
aparentemente artificiais, através de associações superficiais (externas).
Entre os complexos perturbadores, os mais
eficazes mostram ser os auto-referentes (ou seja, os complexos pessoal,
familiar e profissional).
Um nome com mais de um sentido e, portanto,
pertencente a mais de um grupo de pensamentos (complexos) é muitas vezes
perturbado em sua relação com uma seqüência de pensamentos, em virtude de sua
participação em outro complexo mais forte.
Entre os motivos para essas interferências
destaca-se o propósito de evitar que as lembranças despertem desprazer.
Em geral, podem-se distinguir dois tipos
principais de esquecimento de nomes: os casos em que o próprio nome toca em
algo desagradável e aqueles em que ele se liga a outro nome que tem esse
efeito. Assim, os nomes podem ter sua reprodução perturbada por sua própria
causa, ou por causa de seus vínculos ou associativos mais próximos ou mais
distantes.
Um exame dessas proposições gerais nos mostra
por que o esquecimento temporário de nomes é, dentre todos os nossos atos
falhos, o que se observa com maior freqüência.
(19)Estamos, porém, muito longe de haver
delineado todas as peculiaridades desse fenômeno. Outro ponto que quero
assinalar é que o esquecimento de nomes é altamente contagioso. Numa conversa
entre duas pessoas, muitas vezes basta que uma delas mencione ter esquecido tal
ou qual nome para que este escape também à memória da outra. Nesses casos de
esquecimento induzido, porém, o nome esquecido retorna mais facilmente. Esse
esquecimento “coletivo” - a rigor, um fenômeno da psicologia das massas - ainda
não se tornou objeto da investigação psicanalítica. Apenas em um caso, mas que
é especialmente belo, Reik (1920) pôde dar uma boa explicação para esse curioso
fenômeno.
“Num pequeno grupo de universitários em que
também havia duas estudantes de filosofia, discutiam-se as numerosas questões
suscitadas no campo dos estudos religiosos e no da história da civilização pela
origemdo cristianismo. Uma das moças que participava da conversa lembrou-se de
que, num romance inglês que lera recentemente, encontrara um quadro
interessante das múltiplas correntes religiosas que haviam agitado aquela
época. Acrescentou que o romance retratava toda a vida de Cristo, desde seu
nascimento até sua morte; mas o nome da obra se recusava a ocorrer-lhe. (Sua
lembrança visual da capa de livro e da apresentação gráfica do título era
ultraclara [ver em [1]].) Três dos homens presentes também afirmaram conhecer o
romance e notaram que, curiosamente, tampouco eles eram capazes de reproduzir o
nome.”
A moça foi a única a se submeter à análise para
esclarecer o esquecimento desse nome. O título do livro era Ben-Hur, de
Lewis Wallace. As idéias que lhe ocorreram como substitutas foram: “Ecce
homo - Homo sum - Quo vadis?”. A própria jovem se apercebeu de haver
esquecido o nome “porque ele contém uma expressão que nem eu nem nenhuma outra
moça - especialmente na companhia de rapazes - gostamos de usar. À luz da
interessantíssima análise, essa explicação assumiu um significado ainda mais
profundo. Uma vez feita uma alusão a esse contexto, a tradução de “homo”
(homem) adquire também um sentido pouco recomendável. A conclusão de Reik é a
seguinte. “A moça tratou a palavra como se, ao pronunciar o título dúbio na
presença de rapazes, estivesse reconhecendo desejos que havia rechaçado por lhe
serem penosos e incompatíveis com sua personalidade. Em suma: dizer as palavras
‘Ben-Hur’ foi inconscientemente identificado por ela com uma proposta sexual e,
por conseguinte, o esquecimento correspondeu ao rechaço dessa tentação
inconsciente. Temos razões para supor que processos inconscientes semelhantes
tenham determinado o esquecimento dos rapazes. O inconsciente deles apreendeu o
sentido real do esquecimento da jovem e, por assim dizer, interpretou-o. O
esquecimento dos homens mostra respeito por esse comportamento recatado. (.) É
como se sua interlocutora, por seu repentino lapso de memória, tivesse dado um
sinal claro que os homens, inconscientemente, entenderam muito bem."
Há também [1] um esquecimento sucessivo de nomes
em que toda uma cadeia deles é retirada da memória. Quando, na tentativa de
reencontrar umnome perdido, buscam-se outros estreitamente ligados a ele, não é
raro desaparecerem também esses novos nomes, que deveriam servir de pontos de
apoio. Assim, o esquecimento salta de um nome para outro, como que para provar
a existência de um obstáculo que não é facilmente superável.
CAPÍTULO IV - LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA E LEMBRANÇAS ENCOBRIDORAS
Num segundo artigo, publicado na Monatsschrift
für Psychiatrie und Neurologie (1899a), pude demonstrar, num ponto
inesperado, a natureza tendenciosa do funcionamento de nossa memória. Parti do
fato notável de que, nas mais remotas lembranças da infância de uma pessoa,
freqüentemente parece preservar-se aquilo que é indiferente e sem importância,
ao passo que (amiúde, mas não universalmente), na memória dos adultos, não se
encontra nenhum vestígio de impressões importantes, muito intensas e plenas de
afeto daquela época. Disso se poderia presumir, já que é sabido que a memória
faz uma seleção entre as impressões que lhe são oferecidas, que tal seleção se
dá, na infância, com base em princípios inteiramente diferentes dos que vigoram
na época da maturidade intelectual. Uma investigação atenta, contudo, mostra
que tal suposição é desnecessária. As lembranças indiferentes da infância devem
sua existência a um processo de deslocamento: são substitutas, na reprodução
[mnêmica], de outras impressões realmente significativas cuja recordação pode
desenvolver-se a partir delas através da análise psíquica, mas cuja reprodução
direta é impedida por uma resistência. De vez que as lembranças indiferentes
devem sua preservação, não a seu próprio conteúdo, mas a um vínculo associativo
entre seu conteúdo e outro que está recalcado, elas podem fazer jus ao nome de
“lembranças encobridoras” com que foram por mim designadas.
No artigo mencionado, apenas tangenciei, sem
esgotá-la de modo algum, a multiplicidade dos vínculos e sentidos das
lembranças encobridoras. No exemplo que ali analisei detalhadamente, enfatizei
sobretudo a peculiaridade da relação temporal entre a lembrança
encobridora e o conteúdo encoberto por ela. Naquele exemplo, o conteúdo da
lembrança encobridora pertencia a um dos primeiros anos da infância, ao passo
que as vivências depensamento por ela substituídas na memória, que haviam
permanecido quase inconscientes, correspondiam a épocas posteriores na vida do
sujeito. Designei esse tipo de deslocamento de retroativo ou retrocedente.
Talvez seja mais freqüente encontrar a relação oposta: uma impressão
indiferente de época recente se consolida na memória como lembrança
encobridora, apesar de dever esse privilégio apenas a sua ligação com um evento
anterior que as resistências impedem de ser diretamente reproduzido. Estas seriam
lembranças encobridoras adiantadas ou avançadas. Aqui o essencial
de que se ocupa a memória situa-se, na ordem temporal, atrás da
lembrança encobridora. Por fim, temos ainda a terceira possibilidade, em que a
lembrança encobridora vincula-se à impressão encoberta não só por seu conteúdo,
mas também pela contigüidade temporal: estas são as lembranças encobridoras simultâneas
ou contíguas.
Quanto de nossa reserva mnêmica pertence à
categoria das lembranças encobridoras e qual o papel desempenhado por elas nos
diferentes processos de pensamento neuróticos são problemas importantes que não
abordei em meu artigo anterior, e nem os abordarei aqui. Importa-me apenas
enfatizar a identidade entre o esquecimento de nomes próprios seguido de ilusão
de memória e a formação das lembranças encobridoras.
À primeira vista, as diferenças entre os dois
fenômenos são muito mais flagrantes do que as eventuais analogias. O primeiro
fenômeno refere-se a nomes próprios; aqui, trata-se de impressões completas, de
algo que se vivenciou quer na realidade, quer no pensamento. Ali temos uma
falha manifesta da função mnêmica; aqui, é um ato da memória que nos parece
estranho. Num, trata-se de uma perturbação momentânea - pois o nome agora
esquecido pode ter sido corretamente reproduzido cem vezes antes, e voltará a
poder sê-lo de amanhã em diante; noutro, trata-se de uma posse permanente e
constante, pois as lembranças indiferentes da infância parecem ter o poder de
nos acompanhar durante grande parte de nossa vida. Ou seja, o problema, nesses
dois casos, parece ter um enfoque completamente diferente. Num, tem-se o
esquecimento, no outro, a retenção, que desperta nossa curiosidade científica.
Um estudo mais detalhado revela que, a despeito das diferenças entre os dois
fenômenos quanto ao material psíquico e à duração, as coincidências entre ambos
predominam em muito. Ambos se referem a falhas no recordar: o que a memória
reproduz não é o que deveria ser corretamente reproduzido, mas algo diverso que
serve de substituto. No casodo esquecimento de nomes, a lembrança se dá sob a
forma de nomes substitutos; o caso da formação de lembranças encobridoras tem
por base o esquecimento de outras impressões mais importantes. Em ambos, uma
sensação intelectual nos dá notícia da interferência de algum fator
perturbador, mas o faz de formas diferentes: no esquecimento de nomes, sabemos
que os nomes substitutos são falsos; nas lembranças encobridoras,
ficamos surpresos por possuí-las. Se a análise psicológica nos revela
agora que a formação substitutiva se produziu da mesma maneira em ambos os
casos, por deslocamento ao longo de uma associação superficial, são
precisamente as dessemelhanças entre os dois fenômenos, quanto a seu material,
duração e ponto focal, que contribuem para aguçar nossa expectativa de havermos
descoberto algo importante e de validade universal. E esse universal afirmaria
que, quando a função reprodutora falha ou se extravia, isso indica, com muito
mais freqüência do que suspeitamos, a interferência de um fator partidarista,
de uma tendência que favorece uma lembrança, enquanto se empenha em
trabalhar contra outra. [1]
O tema das lembranças da infância me parece tão
significativo e interessante que eu gostaria de dedicar-lhe mais algumas
observações, que vão além dos pontos de vista apresentados até agora.
Até que ponto da infância recuam nossas
lembranças? Conheço algumas investigações a esse respeito, como as de V. e C.
Henri (1897) e de Potwin (1901). Eles mostram que existem grandes diferenças
individuais entre as pessoas examinadas: algumas situam suas primeiras
lembranças no sexto mês de vida, ao passo que outras nada lembram de sua vida
até completarem seis ou mesmo oito anos de idade. Mas a que se prendem essas
diferenças na retenção de lembranças da infância, e que significado deve
ser-lhes atribuído? Evidentemente, não basta compilar material para responder a
essas perguntas por meio de um questionário; falta, além disso, elaborar esse
material, e desse processo a pessoa que fornece a informação precisa
participar.
Em minha opinião, aceitamos com demasiada
indiferença o fato da amnésia infantil - isto é, a perda das lembranças dos
primeiros anos de vida - e deixamos de encará-lo como um estranho enigma.
Esquecemos quão grande são as realizações intelectuais e quão complexos são os
impulsos afetivos de que é capaz uma criança de uns quatro anos, e deveríamos
ficar atônitos ante o fato de a memória dos adultos, em geral, preservar tão
pouco desses processos anímicos, sobretudo já que temos todas as razões para
suporque essas mesmas realizações infantis esquecidas não terão resvalado pelo
desenvolvimento da pessoa sem deixar marcas, mas terão, antes, exercido uma
influência determinante sobre todas as fases posteriores de sua vida. E,
malgrado essa eficácia incomparável, foram esquecidas! Isto sugere que existem,
para o ato de lembrar (no sentido da reprodução consciente), condições
especialíssimas de que não tomamos conhecimento até agora. É perfeitamente
possível que o esquecimento da infância nos possa fornecer a chave para o entendimento
das amnésias que, segundo nossas descobertas mais recentes, estão na base da
formação de todos os sintomas neuróticos.
Dentre lembranças infantis conservadas, algumas
nos parecem perfeitamente inteligíveis, ao passo que outras parecem estranhas
ou incompreensíveis. Não é difícil corrigir alguns erros quanto a ambas as
espécies. Quando as lembranças conservadas pela pessoa são submetidas à
investigação analítica, é fácil determinar que nada garante sua exatidão.
Algumas das imagens mnêmicas certamente são falsificadas, incompletas ou
deslocadas no tempo e no espaço. É evidente que não são dignas de crédito
declarações das pessoas indagadas, no sentido, por exemplo, de que sua primeira
lembrança provém do segundo ano de vida. Além disso, logo se descobrem motivos
que tornam compreensíveis a distorção e o deslocamento da experiência
vivenciada, mas que, ao mesmo tempo, mostram que esses erros na recordação não
podem ser causados simplesmente por uma memória traiçoeira. Forças poderosas de
épocas posteriores da vida modelaram a capacidade de lembrar as vivências
infantis - provavelmente, as mesmas forças responsáveis por nos termos alienado
tanto da compreensão dos anos de nossa infância.
O recordar, nos adultos, sabidamente utiliza
diversos materiais psíquicos. Alguns recordam em imagens visuais; suas
lembranças têm um caráter visual. Outros mal conseguem reproduzir na lembrança
os mais vagos contornos [visuais] do que foi vivenciado; de acordo com a
sugestão de Charcot, tais pessoas são chamadas auditifs e moteurs,
contrastando com os visuels. Nos sonhos, essas diferenças desaparecem:
todos sonhamos predominantemente em imagens visuais. Mas esse desenvolvimento
se inverte igualmente no caso das lembranças infantis; estas são plasticamente
visuais,mesmo nas pessoas cujo recordar posterior carece de elementos visuais.
O recordar visual, conseqüentemente, preserva o tipo de recordar infantil. No
meu caso, as primeiras lembranças da infância são as únicas que têm caráter
visual: são cenas elaboradas de modo francamente plástico, comparáveis apenas
às representações no palco. Nessas cenas infantis, sejam elas de fato
verdadeiras ou falsas, a pessoa costuma ver a si mesma como criança, com seus
contornos e suas roupas infantis. Essa circunstância deve causar estranheza: em
suas lembranças de vivências posteriores, os adultos visuels já não
visualizam a si mesmos. Ademais, supor que, em suas vivências, a atenção da
criança estaria voltada para ela própria, e não exclusivamente para as
impressões do exterior, contradiz tudo o que sabemos. Assim, somos forçados por
diversas considerações a suspeitar de que, das chamadas primeiras lembranças da
infância, não possuímos o traço mnêmico verdadeiro, mas sim uma elaboração
posterior dele, uma elaboração que talvez tenha sofrido a influência de uma
diversidade de forças psíquicas posteriores. Portanto, as “lembranças da
infância” dos indivíduos adquirem universalmente o significado de “lembranças
encobridoras”, e nisto oferecem uma notável analogia com as lembranças da
infância dos povos, preservadas nas lendas e mitos.
Quem já empreendeu uma investigação anímica de
várias pessoas pelo método da psicanálise terá compilado, no decorrer de seu
trabalho, inúmeros exemplos de todo tipo de lembranças encobridoras. Contudo, o
relato desses exemplos é extraordinariamente dificultado pela natureza já
apresentada das relações entre as lembranças da infância e a vida posterior.
Para que se possa mostrar que uma lembrança da infância deve ser encarada como
lembrança encobridora, quase sempre é necessário expor a biografia completa da
pessoa em questão. Raramente é possível retirar uma lembrança encobridora de
seu contexto para descrevê-la em separado, como no belo exemplo que se segue.
Um homem de vinte e quatro anos conservou a
seguinte imagem de seu quinto ano de idade: está sentado no jardim de uma casa
de veraneio, numa cadeirinha ao lado da tia, que tenta ensinar-lhe as letras do
alfabeto. A distinção entre o m e o n lhe traz dificuldades, e
ele pede à tia que lhe diga como discernir uma da outra. A tia lhe indica que o
m tem um pedaço inteiro a mais do que o n - o terceiro traço. Não
parecia haver nenhuma razão paraduvidar da veracidade dessa lembrança da
infância; contudo, ela só adquirira sentido mais tarde, quando se mostrou apta
a representar simbolicamente outra das curiosidades do menino. É que, assim
como nessa época ele queria saber a diferença entre o m e o n,
mais tarde se empenhou em descobrir a diferença entre os meninos e as meninas,
e sem dúvida teria gostado de que justamente essa tia fosse sua mestra. Nessa
ocasião, ele descobriu ainda que a diferença era semelhante - que o menino
também tem um pedaço inteiro a mais do que a menina - e, adquirido esse
discernimento, ele evocou a lembrança de sua correspondente curiosidade
infantil.
Aqui está outro exemplo, de anos posteriores da
infância. [1] Um homem com graves inibições em sua vida amorosa, agora com mais
de quarenta anos, é o mais velho de nove filhos. Tinha quinze anos quando
nasceu o mais novo dentre seus irmãos, mas afirma com absoluta certeza que
nunca havia notado nenhuma das gestações de sua mãe. Sob a pressão de minha
incredulidade, ocorreu-lhe a lembrança de, certa vez, aos onze ou doze anos,
ter visto a mãe desatar a saia apressadamente diante do espelho.
Acrescentou então, sem ser pressionado, que ela chegara da rua e
inesperadamente sentira as contrações do parto. O desatar [“Aufbinden”]
da saia era uma lembrança encobridora do parto [“Entbindung”].
Voltaremos a deparar com a utilização dessas “pontes verbais” em outros casos.
Gostaria ainda de mostrar, com um único
exemplo, como uma lembrança da infância pode ganhar sentido através da
elaboração analítica, quando antes não parecia ter nenhum. Quando, aos quarenta
e três anos, comecei a dirigir meu interesse para os restos de lembranças da
minha própria infância, ocorreu-me uma cena que por muito tempo (desde o
passado mais remoto, ao que me parecia) vez por outra me chegava à consciência,
e que eu tinha bons indícios para situar numa época anterior a meus três anos
completos. Eu me via exigindo alguma coisa e chorando, parado diante de uma
arca [“Kasten”, também “caixa”] cuja porta meu meio-irmão, vinte anos
mais velho do que eu, mantinha aberta. E então, de repente, linda e esguia,
minha mãe entrou no quarto, como se estivesse voltando da rua. Foi com essas
palavras que descrevi a cena, da qual tinha uma imagem plástica, mas com a qual
não sabia mais o que fazer. Se meu irmão queria abrir ou fechar a arca - em
minha primeira tradução da imagem eu a chamara de “armário” [“Schrank”]
-, porque eu estava chorando, e o que tinha a chegada de minha mãe a ver com
tudo isso, me era obscuro. A explicação que me sentia tentado a dar a mim mesmo
era que se tratava da lembrança de alguma brincadeira implicante de meu irmão
mais velho, que minha mãe teria interrompido. Não são raros esse mal-entendidos
de uma cena infantil preservada na memória: a situação é lembrada, mas não se
sabe ao certo em que está centrada, e não se sabe em qual de seus elementos
deve recair o acento psíquico. O esforço analítico levou-me a uma concepção
totalmente inesperada da cena. Eu sentira falta de minha mãe e passara a
suspeitar de que ela estivesse trancada nesse armário ou arca, e por isso
pedira que meu irmão abrisse sua porta. Quando ele me atendeu e me certifiquei
de que minha mãe não estava no armário, comecei a chorar. Esse era o momento
preservado por minha memória, seguindo-se de imediato o aparecimento de minha
mãe, que aliviou minha inquietação ou minha saudade. Mas como foi que o menino
teve a idéia de procurar a mãe ausente no armário? Os sonhos da mesma época [da
análise dessa lembrança] continham alusões vagas a uma babá de quem eu também
guardava outras reminiscências, como, por exemplo, a de que ela costumava
insistir em que eu lhe entregasse, conscienciosamente, as moedinhas que recebia
de presente - detalhe que pode reclamar para si o valor de uma lembrança
encobridora de vivências posteriores. Assim, resolvi que dessa vez facilitaria
para mim o trabalho de interpretação e perguntaria a minha mãe, já agora idosa,
sobre essa babá. Fiquei sabendo de muitos detalhes; entre eles, que essa pessoa
esperta, mas desonesta, praticara grandes furtos na casa enquanto minha mãe
convalescia do parto, e que por iniciativade meu meio-irmão fora levada ao
tribunal. Essa notícia me permitiu compreender a cena da infância como que por
uma espécie de inspiração. O desaparecimento repentino da babá não me fora
indiferente; perguntei justamente a esse irmão onde ela estava porque,
provavelmente, eu havia notado que ele desempenhara um papel em seu
desaparecimento; e ele respondeu da maneira esquiva e cheia de trocadilhos que
lhe era característica, dizendo que ela estava “encaixotada” [“eingekastelt”].
Na época, entendi essa resposta à maneira infantil [ou seja, literalmente], mas
parei de fazer perguntas, pois não havia mais nada a investigar. Quando minha
mãe se ausentou pouco tempo depois, suspeitei que meu irmão malvado tivesse
feito com ela o mesmo que fizera com a babá, e por isso o forcei a abrir a arca
[“Kasten”] para mim. Agora compreendo também por que, na tradução da
cena visual infantil, enfatizei a silhueta esguia de minha mãe: deve ter-me
chamado a atenção como algo que ela acabara de recuperar. Sou dois anos e meio
mais velho do que minha irmã nascida nessa época, e quando fiz três anos já não
convivia com meu meio-irmão.
CAPÍTULO V - LAPSOS DA FALA
O material [lingüístico] comum que usamos ao
falar em nossa língua materna parece estar protegido contra o esquecimento, mas
sucumbe com freqüência bem maior a uma outra perturbação, conhecida como “lapso
da fala”. Os lapsos de linguagem que observamos nas pessoas normais dão a
impressão de serem um estágio preliminar das chamadas “parafasias” que surgem
em condições em condições patológicas.
Esse é um assunto em que me encontro na
situação excepcional de poder reconhecer o valor de uma obra anterior. Em 1895,
Meringer e C. Mayer publicaram um estudo sobre “Lapsos na fala de na escrita”,
mas com pontos de vista muito distantes dos meus. Um dos autores, porta-voz do
texto, é filólogo, e foram seus interesses lingüísticos que o levaram a tentar
descobrir as normas que regem os lapsos da fala. Ele esperava poder inferir
dessas regras a existência de “certo mecanismo mental em que os sons de uma
palavra, de uma frase e também das palavras [inteiras] entre si acham-se
ligados e entrelaçados de maneira muito peculiar” (ver em. [1]).
Os exemplos de lapsos da fala compilados pelos
autores são inicialmente agrupados em categorias puramente descritas. São
classificados como transposições (por exemplo, “a Milo de Vênus” em vez
de “a Vênus de Milo”); pré-sonâncias ou antecipações (por
exemplo, “es war mir auf der Schwest… auf der Brust so schwer”; pós-sonâncias
ou perseverações (por exemplo, “ich fordere Sie auf, auf da Wohl
unseres Chefs aufzustossen” em vez de “anzustossen”); contaminações
(por exemplo, “er setzt sich auf den Hinterkopf”, resultante de “er
setzt sich einen Kopf auf” e de “er stellt sich auf die Hinterbeine”); e substituições
(por exemplo, “ich gebe die Präparate in den Briefkasten”, em vez de Bütkasten”).
Além dessas categorias principais há ainda algumas outras menos imporantes (ou
menos significativas, segundo nosso ponto de vista). Nesse agrupamento em
categorias não faz diferença que a transposição, distorção, amalgamação etc.,
se refiram a sons isolados numa palavra, a sílabas ou a palavra inteiras da
frase intencionada.
Para explicar os vários tipos de lapsos de fala
por ele observados, Meringer postula que os sons da língua [fonemas] têm
diferentes valências psíquicas. Quando inervamos o primeiro som de uma palavra
ou a primeira palavra de uma frase, o processo excitatório já se estende aos
sons posteriores e às palavras subseqüentes e, posto que essas inervações são
simultâneas, elas podem excercer reciprocamente uma influência modificadora. A
excitação do som psiquicamente mais intenso o faz ressoar antes ou perseverar e
desse modo perturba o processo de inervação de menor valência. Por isso é
preciso determinar quais são os sons de maior valência numa palavra. Meringer
sustenta: “Se quisermos saber qual o som de maior intensidade numa palavra,
deveremos observar a nós mesmos quando procuramos uma palavra esquecida, por
exemplo, um nome. O primeiro [som] a voltar à consciência é sempre aquele que
teve a maior intensidade antes do esquecimento” (ver em. [1]). “Os sons de
maior valência são o som inicial da sílaba radical e o som inicial da palavra,
bem como a vogal ou vogais acentuadas” (ver em [1]).
Não posso deixar de contradizê-lo aqui. Quer o
som inicial do nome seja ou não um dos elementos de maior valência da palavra,
é certamente incorreto que, no caso de esquecimento de uma palavra, ele seja o
primeiro a regressar à consciência. Portanto, a regra formulada acima não se
aplica. Quando nos observamos ao procurarmos um nome esquecido, somos forçados,
com relativa freqüência, a expressar a convicção de que ele começa por
determinada letra. E com igual freqüência essa convicção se revela fundada ou
infundada. A rigor, eu afirmaria que, na maioria dos casos, o som inicial que
anunciamos é falso. Em nosso exemplo de “Signorelli” [ver em [1]], os nomes
substitutos tinham perdido o som inicial e as sílabas essenciais; foi
precisamenteo par de sílabas de menor valência - elli - que voltou à
memória no nome substituto Botticelli.
O caso seguinte, [1] por exemplo, pode
ensinar-nos quão pouco os nomes substitutos respeitam o som inicial do nome
esquecido:
Um dia, foi-me impossível lembrar o nome do
pequeno país cuja capital é Monte-Carlo. Seus nomes substitutos foram: Piedmont,
Albania, Montevideo e Colico. Albania logo foi substituída por Montenegro,
e então me ocorreu que a sílaba então me ocorreu que a sílaba “Mont”
(pronunciada “Mon”) aparecia em todos os nomes substitutos, exceto o
último. Isso me facilitou descobrir, partindo do nome do príncipe Alberto [o
príncipe regente], o nome esquecido, Mônaco. Colico imita
aproximadamente o ritmo e a seqüência de sílabas do nome esquecido.
Admitindo a suposição de que um mecanismo
semelhante ao demostrado no esquecimento de nomes também poderia desempenhar um
papel nos fenômenos dos lapsos da fala, somos levados a formar um juízo mais
aprofundado dos casos de lapsos da fala. A perturbação da fala que se manifesta
no lapso pode ser causada, em primeiro lugar, pela influência de outro
componente do mesmo dito - isto é, por uma antecipação ou uma perseveração do
som -, ou por outra formulação das idéias contidas na frase ou no contexto que
se tenciona enunciar. A esse tipo pertencem todos os exemplos acima, tomados de
Meringer e Mayer. A perturbação poderia, contudo, ser de um segundo tipo,
análogo ao processo do caso de “Signorelli”; poderia resultar de influências externas
à palavra, frase ou contexto, e provir de elementos que não se pretende
enunciar e de cuja excitação só tomamos conhecimento justamente através da
própria perturbação. O que esse dois modos de formação dos lapsos da fala têm
em comum é a simultaneidade da excitação, e o que os diferencia é situar-se a
origem da perturbação dentro ou fora da frase ou contexto. A diferença,
inicialmente, não parece tão grande no que concerne a certas deduções que podem
ser feitas a partir da sintomatologia dos lapsos da fala. É evidente, contudo,
que apenas no primeiro caso existe qualquer perspectiva de se extraírem dos
fenômenosdos lapsos da fala conclusões sobre um mecanismo que vincule os sons e
palavras entre si, de modo a que eles influam mutuamente em sua articulação -
isto é, conclusões como as que o filósofo esperava obter do estudo dos lapsos
da fala. No caso de inteferência de influências externas à frase ou ao
contexto do que é dito, tratar-se-ia, antes de mais nada, de saber quais são os
elementos interferentes, surgindo depois a questão de saber se também o
mecanismo dessa perturbação pode revelar as presumíveis leis da formação da
fala.
Não se pode afirmar que Meringer e Mayer tenham
descuidado da possibilidade de as perturbações da fala resultarem de “influências
psíquicas complicadas”, de elementos externos à palavra, frase ou seqüência de
palavras como tais. Eles tiveram de observar que, a rigor, a teoria da
desigualdade da valência psíquica dos sons só é suficiente para esclarecer as
perturbações do som, bem como as antecipações e perseverações de sons. Nos
casos em que as perturbações da palavra não podem ser reduzidas a perturbações
dos sons (como, por exemplo, nas substituições e contaminações de palavras),
eles não hesitaram em procurar uma causa para o lapso fora do contexto
intencionado, procedimento este que eles justificam através de alguns bons
exemplos. Cito os seguintes trechos:
“Ru. estava falando de ocorrências que, em seu
íntimo, considerava como ‘Schweinereien‘ [repugnantes; literalmente,
porcarias]’. Tentou, porém exprimir-se de modo mais suave, e começou: ‘Mas
então certos fatos vieram à “Vorschwein” …’ Mayer e eu estávamos
presentes e Ru. confirmou ter pensado em ‘Schweinereien‘. O fato de essa
palavra pensada logo ter-se tornado atuante, traindo-se em ‘Vorschwein’, é
suficientemente explicado pela semelhança das palavras.” (Em [1])
“Assim como nas contaminações, também nas
substituições - e provavelmente em grau muito maior - as imagens lingüísticas
‘flutuantes’ ou ‘errantes’ desempenham um grande papel. Mesmo quando ficam
abaixo do limiar da consciência, elas ainda estão suficientemente próximas para
serem eficazes, e é fácil serem acionadas por alguma semelhança com o complexo
a ser falado, provocando então um desvio na seqüência de palavras, ou cruzando
essa seqüência. Muitas vezes, as imagens lingüísticas ‘flutuantes’ ou
‘errantes’ são, como dissemos, os retardatários que se seguem a processos de
linguagem recém-terminados (perseverações). (Em [1])
“A semelhança também pode causar um desvio quando
outra palavra semelhante está pouco abaixo do limiar da consciência, sem que
se destinasse a ser pronunciada. Isso é o que acontece nas substituições.
Assim, espero que minhas regras venham a confirmar-se quando forem testadas.
Para isso, entretanto, é necessário (se o falante for outra pessoa) que se
saiba com clareza tudo o que se passou nos pensamentos do falante. Eis um
caso instrutivo. Li., diretor de uma escola, disse em nossa presença: ‘Die Frau
würde mir Furcht einlagen.’ Fiquei perplexo porque o l me pareceu inexplicável.
Permitiu-me chamar a atenção do falante para seu lapso, ao dizer ‘einlagen’ em
vez de ‘einjagen’, ao que ele logo retrucou: ‘Sim, a razão disso é que pensei:
eu não estaria “in der Lage [na posição, em condições]’’ etc.’
“Aqui está outro caso. Perguntei a R. von
Schid, como estava indo seu cavalo doente. Ele respondeu: ‘Ja, das draut…
dauert vielleicht noch einen Monat.’ Não consegui entender o ‘draut com r,
pois o r de ‘dauert‘ não poderia ter tido esse resultado. Assim,
chamei-lhe a atenção para isso, ao que ele explicou ter pensado: ‘das ist eine traurige
Geschichte [isso é uma história triste].’ Logo, o falante tinha em mente
duas respostas, e estas se misturaram.” (Em [1]).
É bastante óbvio que o exame das imagens
lingüísticas “errantes” que estão abaixo do limiar da consciência sem que se
tencione dizê-las, bem como o pedido de informação sobre tudo o que estaria na
mente do falante, são procedimentos que se aproximam muito das condições de
nossas “análises”. Também nós estamos à procura de material inconsciente, e até
o investigamos pelo mesmo caminho; só que, para ir das idéias que ocorrem à
pessoa interrogada até a descoberta do elemento perturbador, temos de seguir um
caminho mais longo, através de uma série complicada de associações.
Quero ainda deter-me um pouco em outro processo
interessante atestado pelos exemplos de Meringer. O próprio autor afirma que é
uma espécie de semelhança entre uma palavra da frase que se tenciona dizer e
outra palavra não destinada a ser dita que permite a esta última impor-se à
consciência, acarretando uma distorção, uma formação mista ou uma formação de
compromisso (contaminação):
jagen, dauert, Vorschein
lagen, traurig, …schwein.
Ora, em A Interpretação dos Sonhos
(1900a) demonstrei o papel desempenhado pelo trabalho de condensação na
formação do chamado conteúdo manifesto do sonho a partir dos pensamentos
oníricos latentes. Qualquer tipo de semelhança entre dois elementos do material
inconsciente - uma semelhança entre as próprias coisas ou entre as
representações de palavra - serve de oportunidade para a criação de um terceiro
elemento, que é uma representação mista ou de compromisso. No conteúdo do
sonho, esse terceiro elemento representa ambos os seus componentes, e é por se
originar terceiro elemento representa ambos os seus componentes, e é por se
originar dessa maneira que ele tantas vezes apresenta diversas características
contraditórias. A formação de substituições e contaminações ocorrente nos
lapsos da fala é, por conseguinte, um começo do trabalho de condensação que
encontramos em diligente atividade na construção do sonho.
Num breve ensaio destinado a um círculo mais
amplo de leitores, Meringer (1900) afirmou existir uma importância prática
especial em determinados casos de troca de uma palavra por outra - a saber os
casos em que a palavra é substituída por outra de sentido oposto. “É provável”,
escreve ele, “que ainda se recorde a maneira como, não faz muito tempo, o
Presidente da Câmara de Deputados do Parlamento austríaco abriu a
sessão: ‘Senhores Deputados; Constato a presença dos membros dessa casa em quorum
suficiente e, portanto, declaro encerrada a sessão!’ Somente a
hilaridade geral despertou-lhe a atenção e o fez corrigir seu engano. Nesse
caso específico, a explicação foi, sem dúvida, que o presidente desejava
secretamente já poder encerrar a sessão, da qual pouco havia de bom a esperar.
Mas esse pensamento colateral, como freqüentemente ocorre, irrompeu ao menos
parcialmente, e o resultado foi ‘encerrada’ em vez de ‘aberta’ - ou seja, o
contrário do que se pretendia dizer. Ora, numerosas observações me ensinaram
que em geral é muito freqüente permutar entre si palavras de sentido oposto;
elas já estão associadas em nossa consciência lingüística, acham-se muito
próximas umas das outras e é fácil evocar-se a errada por engano.”
Não são todos os casos de permutação pelo
oposto em que é tão fácil como nesse exemplo do presidente mostrar a
probabilidade de que o lapso seja conseqüência de uma contradição que, no
interior do falante, ergue-se com a frase proferida. Encontramos um mecanismo
análogo em nossa análise do exemplo de aliquis [Em [1]]. Ali a
contradição interna expressou-se no esquecimento de uma palavra, e não numa substituição
por seu oposto. Minorando essa diferença, porém, podemos notar que, na verdade,
a palavra aliquis é incapaz de ter um oposto como “abrir” e “encerrar”,
e que “abrir” é uma palavra que não se pode esquecer, pois é parte integrante
de nosso vocabulário usual.
Se os últimos exemplos de Meringer e Mayer
mostram que a perturbação da fala pode surgir, de um lado, por influência da
antecipação ou da perseveração de sons e palavras da mesma frase, os quais se
tenciona falar, e de outro, pelo efeito de palavra externas à frase
intencionada, cuja excitação não se evidenciaria de outro modo, a
primeira coisa que deveremos averiguar é se essas duas classes de lapsos da
fala podem ser nitidamente separadas, e de que modo um exemplo de uma classe
pode ser distinguido de um caso da outra. Neste ponto de argumentação, contudo,
devemos ter em mente as concepções expressas por Wundt, que aborda os fenômenos
dos lapsos da fala em sua ampla discussão das leis do desenvolvimento da fala.
Segundo ele, um traço que nunca falta a esses e
outros fenômenos correlatos é a atividade de certas influências psíquicas.
“Antes de mais nada, elas têm um determinante positivo sob a forma do fluxo
desinibido de associações sonoras e associações de palavras evocadas
pelos sons falados. A isso vem somar-se um fator negativo sob a forma de
supressão ou relaxamento dos efeitos inibidores da vontade sobre esse fluxo,
assim como da atenção, que se reafirma nesse ponto como função da vontade. Quer
esse jogo das associações se manifeste pela antecipação de um som vindouro, ou
pela reprodução de sons precedentes, ou pela intercalação de um som
habitualmente pronunciado ou, por último, pela repercussão de palavras
completamente diferentes sobre os sons pronunciados, por terem com eles algum
vínculo associativo - tudo isso indica apenas diferenças na direção e,
nomáximo, no âmbito das associações ocorrentes, e não diferentes em sua
natureza geral. Em alguns casos, também pode haver dúvidas quanto à forma a que
se deve atribuir determinada perturbação, ou quanto a estabelecer se não seria
mais justificável, de acordo com o princípio da complicação das causas,
atribuí-la a uma conjugação de vários motivos.” (Wundt, 1900, 380-1.). [Ver em
[1].]
Considero plenamente justificadas e muito
instrutivas essas observações de Wundt. Talvez pudéssemos enfatizar, mais
decididamente do que Wundt, que o fator positivo que favorece o lapso da fala
(o fluxo desinibido de associações), bem como o fator negativo (o relaxamento
da atenção inibidora), têm invariavelmente um efeito conjunto, de modo que os
dois fatores tornam-se apenas maneiras diferentes de encarar um mesmo processo.
Acontece que, com o relaxamento da atenção inibidora - ou, em termos ainda mais
claros, em conseqüência desse relaxamento - o fluxo desinibido de
associações entra em atividade.
Entre os lapsos da fala que eu mesmo compilei,
dificilmente haverá algum em que eu seja forçado a atribuir a perturbação da fala
única e exclusivamente ao que Wundt [1900, 392] chama de “efeito de contato dos
sons”. Quase invariavelmente descubro, ademais, uma influência pertubadora que
provém de algo externo ao enunciado pretendido; e o elemento perturbador
é um pensamento singular que permaneceu inconsciente, que se manifesta no lapso
da fala e com freqüência só pode ser trazido à consciência através de uma
análise detalhada, ou então é um motivo psíquico mais geral que se volta contra
o enunciado inteiro.
(1)Minha filha fez uma careta ao morder uma
maçã, e eu quis fazer-lhe a seguinte citação:
Der
Affe gar possierlich ist,
Zumal
wenn er von Apfel frisst.
Mas comecei: “Der Apfe…” [palavra
inexistente]. Isso parece uma contaminação de “Affe [macaco]” e “Apfel
[maçã]” (uma formação de compromisso), ou poderia ser encarado como uma
antecipação de “Apfel”, que estava para ser pronunciada. Entretanto, as
coisas se passaram mais exatamente da seguinte maneira: eu já havia iniciado
essa citação antes, enão cometera um lapso na primeira vez. Só o cometi ao
repeti-la. A repetição foi necessária porque a pessoa interpelada, estando
absorta em outra coisa, não me escutou. Tenho de incluir essa repetição, junto
com minha impaciência de terminar a frase, entre os motivos do lapso que se apresentou
como produto da condensação.
(2) Minha filha disse: “Estou escrevendo para a
Sra. Schresinger…” O nome dessa senhora é Schlesinger. Esse lapso da língua
provavelmente está ligado a uma tendência a facilitar a articulação, pois é
difícil pronunciar o l depois de um r repetido. Devo acrescentar,
contudo, que minha filha fez esse lapso poucos minutos depois de eu dizer “Apfe”
em vez de “Affe”. Ora, acontece que os lapsos da fala são altamente
contagiosos, assim como o esquecimento de nomes [em [1]] - peculiaridade
assinalada pro Meringer e Mayer no caso do esquecimento. Não sei sugerir alguma
razão para esse contágio psíquico.
(3)“Eu me fecho como um Tassenmescher
[palavra inexistente] - quero dizer, Taschnmesser [canivete]”, disse uma
paciente no início da sessão. Também aqui, a dificuldade de articulação (como,
por exemplo, em “Wiener Weiber Wäscherinnen waschen weisse Wäshe”,
“Fischflosse” [barbatana] e outros trava-línguas similares) poderia servir de
desculpa para a troca dos sons. Quando chamei sua atenção para o lapso, ela
retrucou imediatamente: “É, isso foi só porque hoje o senhor disse ‘Ernscht‘.”
De fato, eu a recebera como o comentário: “Hoje a coisa vai ser realmente séria
[“Ernst”]” (porque seria a última sessão antes das férias) e, gracejando,
esticara o “Ernst”, dizendo “Ernscht”. No decorrer da sessão, ela
cometeu repetidamente outros lapsos da fala, e por fim notei que não estava
meramente me imitando, mas tinha uma razão especial para deter-se, no
inconsciente, na palavra “Ernst” como nome próprio [“Ernesto”].
(4)“Estou tão resfriada que não consigo durch
die Ase natmen - quero dizer, Nase atmen”, disse a mesma paciente
numa outra ocasião. E entendeu imediatamente como viera a cometer o lapso.
“Todos os dias pego o bonde na Rua Hasenauer, e hoje de manhã, enquanto
esperava por ele, ocorreu-me que, se eu fosse francesa, diria ‘Asenauer‘,
porque os franceses sempre deixa de pronunciar o h no começo das
palavras.” Trouxe então uma série de reminiscências de franceses a quem havia
conhecido, e depois de muitos rodeios chegou à lembrança de ter desempenhado,
aos quatorze anos, o papel de Picarde na pequena peça Kurmärker und Picarde,
e de ter-se expressado nessa ocasião num alemão defeituoso. A chegada fortuita
de um hóspede de Paris a sua pensão despertara toda essa série de lembranças. A
troca dos sons, portanto, foi resultante da perturbação causada por um
pensamento inconsciente que provinha de um contexto completamente diverso.
(5)Mecanismo similar teve o lapso de outra
paciente, que teve uma falha de memória em meio à reprodução de uma lembrança
infantil há muito esquecida. Sua memória se recusava a dizer-lhe em que parte
do corpo a mão lasciva e indiscreta de outra pessoa a havia segurado. Logo
depois da sessão, foi visitar uma amiga com quem conversou sobre residências de
veraneio. Indagada sobre a localização de sua casa de veraneio em M., ela
respondeu: “na Berglende [coxa da montanha]”, em vez de Berglehne
[encosta da montanha].
(6)Quando perguntei a outra paciente, ao final
da sessão, como estava passando seu tio, ela respondeu: “Não sei, atualmente só
o vejo in flagranti.” No dia seguinte, começou dizendo: “Estou muito
envergonhada por ter-lhe dado uma resposta tão tola. É claro que o senhor deve
ter-me tomado por uma pessoa muito inculta, que está sempre confundindo as
palavras estrangeiras. Eu queria dizer en passant.” Ainda não sabíamos
qual a origem das palavras estrangeiras que ela usara erroneamente. Na qual a
origem da palavras estrangeiras que ela usara erroneamente. Na mesma sessão,
porém, dando prosseguimento ao tema da véspera, ela apresentou uma
reminiscência em que o papel principal consistia em ser surpreendida in
flagranti. Portanto, o lapso da fala do dia anterior antecipara a lembrança
que, naquele momento, ainda não se havia tornado consciente.
(7)A certa altura da análise de outra paciente,
tive que dizer-lhe de minha suspeita de que ela sentira vergonha de sua família
na época que estávamos considerando, e que havia censurado seu pai por algo que
ainda nos era desconhecido. Ela não se lembrou de nada parecido e, ainda por
cima, declarou que isso era improvável. Contudo, prosseguiu com a conversa
tecendo alguns comentários sobre sua família: “Uma coisa eu tenho que admitir:
eles são pessoas fora do comum, todos têm Geiz [avareza]… quero dizer, Geist
[inteligência].” E, essa era, na verdade, a censura que ela recalcara,
desalojando-a da memória. É freqüente a situação em que a idéia que se quer
reter é precisamente a que se impõe sob a forma de um lapso da fala (recorde-se
o lapso de Meringer) de “zum Vorschwein gekommen” [“vieram à luz”], [em
[1]]. A única diferença é que, no caso de Meringer, a pessoa queria guardar
para si algo que estava em sua consciência, ao passo que minha paciente não
sabia o que estava sendo retido, ou, dito de outra maneira, não sabia que
estava retendo alguma coisa, nem que coisa era essa.
(8) O exemplo seguinte de lapso da fala também
remonta a uma retenção propositada. Certa vez, encontrei nas Dolomitas, duas
damas que estavam vestidas como excursionistas. Acompanhei-as em parte do
caminho e conversamos sobre os prazeres, mas também as dificuldades da vida de
turista. Uma das damas admitiu que essa maneira de passar o dia acarretava
muitos incômodos. “É verdade”, disse ela, “que não é nada agradável andar o dia
inteiro sob o sol e ficar com a blusa e a combinação completamente suadas.” Num
ponto dessa frase, ela teve de superar uma pequena hesitação. Depois,
continuou: “Mas aí, quando se chega ‘nach Hose‘ e se pode trocar de
roupa…” No meu entender, não era necessário nenhum exame para esclarecer esse
lapso da fala. É evidente que a intenção dela fora fazer uma enumeração mais
completa de suas roupas: blusa, combinação e Hose [calcinhas]. Razões
ligadas ao decoro, porém, levaram-na a suprimir qualquer menção a essa terceira
peça da roupa íntima. Mas na fase seguinte, de conteúdo independente, a palavra
suprimida veio à tona, contra sua vontade, como uma distorção de “nach Hause
[casa]”, palavra semelhante.
(9)“Quando o senhor quiser comprar tapetes”, disse-me
uma senhora, “vá até o Kaufman [nome próprio que também significa
“comerciante”], na Matthäusgasse [Rua Mateus]. Acho que posso dar-lhe uma
recomendação.” “Na loja de Mattäus…”, repeti, “quero dizer, de Kaufmann.” Essa
minha repetição de um nome no lugar do outro parece resultar de uma distração.
E de fato, a fala da senhora me distraíra, pois ela desviara minha atenção para
uma coisa que me era muito mais importante do que os tapetes. É que fica na
Mathäusgasse a casa emque minha mulher morou quando era minha noiva. A entrada
da casa dava para uma outra rua, e reparei então que esquecera seu nome, só
conseguindo torná-lo consciente através de um rodeio. O nome Matthäus, no qual
me detive, era, portanto, um substituto do nome de rua esquecido. Era mais
adequado para esse fim do que o nome Kaufmann, pois Matthäus é exclusivamente
um nome próprio, enquanto Kaufmann não o é, e a rua esquecida também tem um
nome de pessoa: Radetzky.
(10)O caso seguinte também poderia ser
adequadamente incluído no capítulo sobre “Erros” [Capítulo X], mas cito-o aqui
porque as relações fonéticas que fundamentaram a troca de uma palavra pela
outra são de uma clareza incomum. Uma paciente me contou um sonho: uma criança
resolvera matar-se com uma mordida de cobra e levara a cabo sua resolução. Ela
via a criança retorcer-se em convulsões etc. Agora, empenhava-se em descobrir
as impressões da véspera que o sonho tomara como de ponto de partida.
Lembrou-se imediatamente de que, na noite anterior, assistira a uma conferência
popular sobre os primeiros socorros em caso de mordida de cobras. Se um adulto
e uma criança forem picados simultaneamente, deve-se cuidar primeiro do
ferimento da criança. Ela se lembrou também da forma de tratamento recomendada
pelo conferencista. Isso dependeria muito, dissera ele, da espécie de cobra
pela qual se fosse picado. Nesse ponto, interrompi-a e perguntei: mas ele não
disse que temos muito poucas espécies venenosas em nossa região, e quais são as
mais temíveis? “Sim, ele salientou a ‘Klapperschlange [cascavel]’. Meu
riso chamou-lhe a atenção para o fato de que teria dito alguma coisa errada.
Ela não corrigiu o nome mas voltou atrás na afirmação: “Sim, é claro,
essa não existe entre nós; ele falou da víbora. Como é que eu fui pensar na
cascavel?” Desconfiei que isso se devesse à interferência dos pensamentos que
se ocultavam por trás do sonho. Um suicídio por picada de cobra dificilmente
poderia ser outra coisa senão uma alusão à bela Cleópatra [em alemão “Kleopatra”].
A grande semelhança fonética entre as duas palavras, a ocorrência em ambas das
mesmas letras, “Kl… p…r”, na mesma ordem, e do mesmo “a” tônico, eram
inconfundíveis. Essa boa correspondência entre os nomes “Klapperschlange”
e ‘‘Kleopatra” resultou numa restrição momentânea do juízo da paciente,
tanto que ela não se chocou com a afirmação de que o conferencista instruíra
seu público em Viena sobre como tratar mordidas de cascavel. Aliás, ela sabe
tão bem quanto eu que essa espécie de cobra não faz parte da fauna da nossa
pátria. E não devemos levá-la a mal por tampouco ter hesitado em transferir a
cascavel para o Egito, pois estamos acostumados a atirar no mesmo saco tudo o
que é não-europeu e exótico, e eu mesmo tive de refletir por um momento antes
de declarar que a cascavel se restringe apenas ao Novo Mundo.
O prosseguimento da análise trouxe outras
confirmações. Na véspera, a sonhadora visitara pela primeira vez o monumento a
Marco Antônio, de Strasser, que ficava nas imediações de sua casa. Essa,
portanto, era a segunda causa instigadora do sonho (a primeira fora a
conferência sobre mordida de cobra). Na contaminação do sonho, ela embalava uma
criança nos braços, cena que a fez lembrar de Gretchen. Outros pensamentos que
lhe ocorreram trouxeram reminiscências de Arria und Messalina. O
aparecimento do nome de tantas peças teatrais nos pensamentos oníricos já
permite suspeitar de que, quando mais jovem, a sonhadora alimentara uma paixão
secreta pela profissão de atriz. O começo do sonho - “Uma criança resolvera pôr
fim a sua vida através de uma mordida de cobra” - não tinha, na verdade, outro
sentido senão o de que, quando criança, ela resolvera tornar-se uma atriz
famosa algum dia. Por fim, ramificou-se do nome “Messalina” o curso de
pensamentos que levara ao conteúdo essencial do sonho. Certos acontecimentos
recentes haviam-lhe despertado a apreensão de que seu único irmão viesse a
fazer um casamento socialmente inadequado, uma mésalliance com uma não-Ariana.
(11) Reproduzo agora um exemplo completamente
inocente (ou cujos motivos talvez não tenham sido bem esclarecidos), já que nos
revela um mecanismo transparente.
Um alemão que viajava pela Itália precisou de
uma correia para amarrar sua mala danificada. Para “correia” [“Riemen”]
o dicionário lhe indicou a palavra italiana “coreggia”. “Será fácil
guardar essa palavra”, considerou ele, “pensando no pintor Correggio”.
Depois disso, entrou numa loja e pediu “una ribera”.
Aparentemente, ele não conseguira substituir a
palavra alemã pela italiana em sua memória, mas seus esforços não foram
completamente infrutíferos. Ele sabia que precisava ater-se ao nome de um
pintor, e assim esbarrou, não no nome do pintor que soava como a palavra
italiana, mas no de outro que se parecia com a palavra alemã “Riemen”. É
evidente que, tal como incluí esse caso como exemplo de um lapso da fala,
poderia também tê-lo citado como exemplo do esquecimento de nomes.
Quando colecionava lapsos da fala para a
primeira edição deste livro, meu procedimento consistia em submeter à análise
todos os casos que conseguia observar, mesmo os menos notáveis. Desde então,
muitas outras pessoas se dedicaram à divertida tarefa de colecionar e analisar
lapsos da fala, e assim me permitiram fazer uma seleção entre um material mais
rico.
(12)Disse um jovem a sua irmã: “Rompi completamente
as relações com os D., já nem os cumprimento mais.” “Pois é”, respondeu ela,
“eles são uma bela Lippschaft.” Pretendia dizer “Sippschaft
[corja, ralé]”, mas, no lapso, comprimiu duas idéias: a de que o próprio irmão
certa vez começara um flerte com uma jovem dessa família, e a de que se
comentava que esta se envolvera recentemente numa Liebschaft [relação
amorosa] séria e irregular.
(13) Um jovem dirigiu-se a uma dama na rua com
as seguintes palavras: “Senhorita, permita-me que a ‘acom-sulte’ [‘begleit-digen’]”.
É óbvio que ele pensara em dizer que gostaria de acompanhá-la [‘’begleiten‘’],
mas temia que sua proposta pudesse insultá-la [“beleidigen”]. O fato de
esses dois impulsos afetivos conflitantes encontrarem expressão numa única
palavra - justamente no lapso da fala - indica que as verdadeiras intenções do
rapaz, afinal não eram das mais puras, de modo que mesmo a ele pareciam
insultuosas para com a dama. Mas enquanto tentava esconder isso de si mesmo,
seu inconsciente lhe pregou uma peça e traiu suas verdadeiras intenções. Desse
modo, por outro lado, ele como que antecipou a resposta convencional da dama:
“Mas o que é que o senhor está pensando de mim, como ousa me insultar
dessa maneira?” (Relatado por O. Rank.)
Menciono a seguir alguns exemplos de um artigo
de Stekel intitulado “Confissões Inconscientes”, publicado no Berliner
Tageblatt de 4 de janeiro de 1904.
(14)“Uma parte desagradável de meus pensamentos
inconscientes é revelada pelo exemplo seguinte. Convém dizer de antemão que, em
minha condição de médico, nunca levo em conta minha remuneração e sempre tenho
em vista apenas o interesse do paciente, como é natural. Encontrava-me com uma
paciente a quem estava prestando assistência médica durante sua convalescença
após uma doença grave. Passáramos juntos por dias e noites penosos. Feliz por
vê-la em melhor estado, pintei-lhe as delícias de uma temporada em Abbazia e
concluí dizendo: ‘Se, como espero, a senhora não sair da cama logo…’
Isso obviamente brotou de um motivo egoísta do inconsciente, a saber, que eu
pudesse continuar tratando dessa paciente abastada por mais algum tempo - um
desejo que é totalmente alheio a minha consciência de vigília e que eu
repudiaria indignado.”
(15)Aqui está outro exemplo de Stekel. “Minha
mulher estava contratando uma governanta francesa para trabalhar durante as
tardes e, depois de trem chegado a um acordo sobre as condições, quis ficar com
as recomendações dela. A francesa lhe pediu permissão para conservá-las,
indicando o seguinte motivo: Je cherche encore pour les après-midis, pardon,
pour les avant-midis [Ainda estou procurando colocação para as tardes -
quero dizer, para a manhã]. Obviamente, ela estava com a intenção de tentar a
sorte em outros lugares e talvez conseguir melhores condições - intenção que
realmente levou a cabo.”
(16)De Stekel: “Tive de fazer um sermão a uma
esposa, e seu marido, a pedido de quem eu o fazia, ficou escutando do lado de
fora da porta. Ao final de meu sermão, que a deixara visivelmente
impressionada, eu disse: ‘Beijo-lhe as mãos, meu senhor.’ Para qualquer pessoa
bem informada, eu estava assim traindo o fato de que minhas palavras
destinavam-se ao marido e que eu as dissera por ele.”
(17)O Dr. Stekel nos informa, a seu próprio
respeito, que em certa época estava tratando de dois pacientes de Trieste e, ao
cumprimentá-los, costumava sempre trocar-lhes os nomes. “Bom dia, senhor
Peloni”, dizia a Askoli, e “Bom dia, senhor Askoli”, dizia a Peloni. A
princípio, ele não se inclinava a atribuir essa confusão a qualquer motivo mais
profundo, mas sim a explicá-la pelo muito que havia em comum entre os dois
senhores. Contudo, convenceu-se facilmente de que a troca dos nomes
correspondia a uma espécie de vanglória, pois, desse modo, ele dava a entender
a cada um de seus pacientes italianos que ele não era o único triestino a ir a
Viena em busca de sua orientação médica.
(18)O próprio Dr. Stekel, durante uma
tumultuada assembléia geral, disse: “Vamos agora brigar [streiten]”
(em vez de “passar [schreiten]”) “ao item quatro da agenda.”
(19)Disse um professor em sua aula inaugural:
“Não estou geneigt [inclinado]” (em vez de “geeignet [apto]”) “a
descrever os méritos do meu estimado predecessor.”
(20)Disse o Dr. Stekel a uma dama que ele
suspeitava estar com a doença de Graves: “A senhora é aproximadamente um Kropf
[bócio]” (em vez de “Kopf [cabeça]”) “mais alta do que sua irmã.”
(21) Informa o Dr. Stekel: “Alguém queria
descrever o relacionamento entre dois amigos, salientando o fato de que um
deles era judeu. Disse: ‘Eles viviam juntos como Castor e Pollak.’ Isto
certamente não foi um gracejo; o próprio falante só notou o lapso depois que
lhe chamei a atenção para ele.
(22)Ocasionalmente, um lapso da fala faz as
vezes de uma caracterização detalhada. Uma jovem senhora que costumava dar as
ordens em casa contou-me que o marido, adoentado, fora ao médico para saber que
tipo de dieta deveria seguir. O médico, entretanto, disse-lhe que não se
importasse com isso. “Ele pode comer e beber o que eu quiser”, concluiu ela.
Os dois próximos [1] exemplos, fornecidos por
T. Reik (1915), provêm de situações em que os lapsos da fala ocorrem com
facilidade especial - situações em que se tem de guardar muito mais do que se
pode dizer.
(23)Um senhor apresentava suas condolências a
uma jovem dama cujo marido morrera recentemente e quis acrescentar: “A senhora
encontrará consolo ao dedicar-se [widmen] integralmente a seus
filhos”, mas, em vez disso, falou “widwen”. O pensamento suprimido
referia-se a outro tipo de consolo: uma viúva [Witwe] jovem e bonita
logo encontrará novos prazeres sexuais.
(24)Numa reunião social à noite, o mesmo senhor
conversava com essa dama sobre os grandes preparativos para a Páscoa que se
haviam feito em Berlim e perguntou: “A senhora viu a exposição [Auslage]
de hoje na Wertheim? Está totalmente decotada” [dekolletiert, em
vez de dekoriert, decorada]. Ele não ousara exprimir sua admiração pelo decote
da linda senhora e nisso veio à tona o pensamento proibido, transformando a
decoração de uma vitrine ou exposição de mercadorias [Warenauslage] num
decote, com a palavra “exposição” [Auslage] inconscientemente usada num
duplo sentido.
Essa mesma condição aplica-se a outra
observação da qual o Dr. Hanns Sachs tentou fornecer um relato minucioso:
(25)“Contava-me uma dama, a propósito de um
conhecido comum, que, da última vez que o vira, ele estava tão elegantemente
vestido como sempre e usava, em especial, belíssimos Hallbschuhe
[sapatos baixos] de cor marrom. Quando lhe perguntei onde o havia encontrado,
ela respondeu: ‘Ele bateu à porta de minha casa e eu o vi pelas venezianas, que
estavam abaixadas. Mas não abri a porta nem dei qualquer outro sinal de vida,
pois não queria que ele soubesse que eu já estava de volta na cidade.’ Enquanto
a escutava, ocorreu-me que ela me estava escondendo alguma coisa, e o mais
provável era que não tivesse aberto a porta por não estar sozinha, nem
adequadamente vestida para receber visitas; assim, perguntei, ironizando um
pouco: ‘Quer dizer que a senhora conseguiu admirar-lhe os Hausschuhe
[chinelos], digo, Halbschuhe [sapatos baixos] através das venezianas
abaixadas?’ Em Hausschuhe consegue expressar-se o pensamento sobre seu
Hauskleid [lit. vestido caseiro, ou seja, camisola], que eu me abstivera
de enunciar. Por outro lado, tentou-se afastar a palavra ‘Halb
[metade]’, pois justamente ela continha o núcleo da resposta proibida: ‘A
senhora só está me dizendo meia verdade, e está escondendo o fato de que
estava apenas meio vestida.’ O lapso da fala foi ainda favorecido pelo
fato de, imediatamente antes, termos estado falando sobre a vida conjugal e a
felicidade häuslich [doméstica] desse senhor; isso sem dúvida contribuiu
para determinar o deslocamento [de ‘Haus‘] para a pessoa dele. Por fim,
devo confessar que minha inveja talvez tenha contribuído para eu situar esse
senhor elegante andando de chinelos pela rua; pouco tempo antes, eu mesmo
comprara um par de sapatos baixos marrons que certamente já não são
‘belíssimos’.”
As épocas de guerra como a atual produzem
numerosos lapsos da fala cujo entendimento não traz muita dificuldade.
(26)“Em que regimento está seu filho?”,
perguntaram a uma senhora. Ela respondeu: “Está no 42º de assassinos [Mörder]”,
em vez de “morteiros” [Mörser].
(27) O tenente Henrik Haiman escreve do front
(1917): “Fui bruscamente arrancado da leitura de um livro cativante para
assumir por um momento a função de telefonista de reconhecimento. Quando o
posto da artilharia deu o sinal para testar a linha, reagi dizendo: ‘Controles
testados e em ordem; Ruhe.’ Pelo regulamento, a mensagem deveria ter
sido: ‘Controles testados e em ordem; Schluss [fim (da mensagem)].’
Minha aberração se explica pelo aborrecimento que me causou ser interrompido na
leitura.”
(28) Um sargento instruiu seus homens para que
dessem seu endereço correto nas cartas para casa, a fim de que os “Gespeckstücke”
não se extraviassem.
(29)O excelente exemplo que se segue, e que é
também significativo em vista da situação profundamente aflitiva que supõe,
devo-o ao Dr. L. Czeszer, que fez essa observação e a analisou exaustivamente
enquanto morava na Suíça neutra durante a guerra e que o analisou
exaustivamente. Reproduzo sua carta ao pé da letra, com algumas omissões
secundárias:
“Tomo a liberdade de descrever-lhe um lapso da
fala cometido pelo professor M. N., da Universidade de O., numa de suas
conferências sobre a psicologia dos sentimentos durante o semestre de verão que
acaba de se encerrar. Devo começar dizendo que essas conferências se realizavam
no salão nobre da universidade, diante de um grande número de prisioneiros de
guerra franceses internados e, por outro lado, de estudantes cuja maioria se
compunha de suíço-franceses firmemente partidários da Entente. Na cidade
de O., como na própria França, ‘boche‘ é uma palavra universal e
exclusivamente usada para designar os alemães. Entretanto, nas manifestações
públicas, nas conferências e similares, os altos funcionários, professores e
outras pessoas em cargos de responsabilidade esforçam-se, em nome de
neutralidade, por evitar essa palavra nefasta.
“O Professor N. estava em meio a uma
dissertação sobre a importância prática dos afetos e se propôs citar um exemplo
ilustrativo de como um afeto pode ser deliberadamente explorado, de maneira a
que uma atividade muscular desinteressante em si mesma seja carregada de
sentimentos agradáveis e assim se intensifique. Narrou, portanto - falando em
francês, naturalmente -, uma história que acabara de ser publicada nos jornais
locais, extraída de um jornal alemão. Versava sobre um mestre-escola alemão que
fizera seus alunos trabalharem no jardim e, para incentivá-los a trabalhar com
maior intensidade, exortara-os a imaginarem que, a cada torrão de terra
arrancado, estavam rachando o crânio de um francês. Todas as vezes que a
palavra ‘alemão’ surgiu no relato de sua história, é claro que N. disse, com
toda correção, ‘allemand’, e não ‘boche‘. Mas, ao chegar ao clímax da
história, assim reproduziu as palavras do mestre-escola alemão: Imaginez-vous
qu’en chaque moche vous écrasez le crâne d’un Français. Ou seja, em vez de motte
[palavra francesa para ‘torrão’] - moche!
“Vê-se claramente como esse professor
escrupuloso se conteve com firmeza, desde o começo de sua narrativa, para não
ceder ao hábito - e talvez mesmo à tentação - de permitir que uma palavra
expressamente proibida por decreto federal fosse proferida na cátedra do salão
nobre da universidade! E, no exato momento em que tivera a felicidade de dizer
com toda correção, pela última vez, ‘instituteur allemand [mestre-escola
alemão]’, e em que, com um suspiro interno de alívio, apressava-se rumo à
conclusão, que parecia isenta de armadilhas, a palavra que fora suprimida com
tanto esforço agarrou-se à semelhança fonética de ‘motte‘ e …estava
feita a desgraça. A angústia ante uma falta de tato política, talvez um prazer
refreado por usar, apesar de tudo, a palavra corrente e que todos esperavam, e
ainda a indignação desse republicano e democrata nato diante de qualquer
restrição à liberdade de expressão, tudo isso interferiu em seu propósito
principal de dar uma versão precisa de seu exemplo. Essa tendência interferente
era conhecida pelo orador e, como não podemos deixar de supor, ele pensara nela
imediatamente antes de cometer seu lapso de fala.
“O Professor N. não percebeu seu deslize, ou,
pelo menos, não o corrigiu, como se costuma fazer de maneira quase automática.
Por outro lado, o lapso foi recebido pela platéia predominantemente francesa
com genuína satisfação e seu efeito foi idêntico ao de um jogo de palavras intencional.
Eu mesmo acompanhei esse episódio aparentemente inocente com verdadeira
excitação interior. É que, embora não pudesse, por motivos óbvios, formular ao
professor as perguntas exigidas pelo método psicanalítico, ainda assim encarei
esse lapso da fala como uma prova conclusiva da exatidão de sua teoria sobre a
determinação dos atos falhos e sobre as analogias e conexões profundas entre os
lapsos da fala e os chistes.”
(30)O lapso da fala que se segue, relatado por
um oficial austríaco de volta a sua terra, o tenente T., originou-se também das
impressões desoladoras da época da guerra:
“Por vários meses do período em que fui
prisioneiro de guerra na Itália, fui um dos duzentos oficiais alojados numa
pequena villa. Nessa fase, um de nossos companheiros morreu de gripe.
Naturalmente, foi profunda a impressão causada por esse acontecimento, pois a
situação em que nos encontrávamos, a falta de assistência médica e o desamparo
de nossa existência tornavam mais do que provável a irrupção de uma epidemia.
Havíamos colocado o morto num porão. À noite, depois de dar um passeio ao redor
da casa com um amigo, ambos manifestamos o desejo de ver o cadáver. Sendo eu
primeiro a entrar no porão, o espetáculo com que deparei chocou-me
violentamente, pois eu não esperava encontrar o esquife tão perto da entrada e
ter de contemplar tão de perto o rosto agitado pelo jogo de luzes projetado
pelas velas. Ainda sob os efeitos dessa cena, continuamos nossa caminhada ao
redor da casa. Quando chegamos ao lugar de onde se avistavam um parque banhado
pela luz da lua cheia, um prado claramente iluminado e, mais adiante, um tênue
véu de névoa, descrevi a imagem que isso me sugeria: era como se eu visse uma
roda de elfos dançando na orla do bosque de pinheiros vizinhos.
“Na tarde seguinte enterramos nosso companheiro
morto. O percurso desde nossa prisão até o cemitério da aldeola vizinha foi-nos
igualmente penoso e humilhante, pois uma garotada imberbe e zombeteira e uma
turba de aldeões rudes e vociferantes aproveitaram a oportunidade para dar
livre expressão, aos gritos, a seus sentimentos para conosco, mescla de
curiosidade e ódio. A sensação de não podermos escapar aos insultos nem mesmo
nessa condição indefesa e minha repulsa pela rudeza demonstrada por eles
encheram-me de amargura até a noite. No mesmo horário da véspera e com o mesmo
companheiro, comecei a andar pela trilha de cascalho ao redor da casa, tal como
fizera antes; e ao passarmos pela grade do porão atrás da qual jazera o corpo,
fui assaltado pela lembrança da impressão que me causara a visão dele. No lugar
onde o parque claramente iluminado de novo se estendia diante de mim, sob a luz
da mesma lua cheia, parei e disse a meu companheiro: ‘Poderíamos sentar aqui na
sepultura [“Grab”] - quero dizer, na grama [“Gras”] e afundar
[“sinken”] uma serenata.’ Minha atenção só foi despertada quando cometi
o segundo lapso; eu havia corrigido o primeiro sem me conscientizar do sentido
que ele continha. Agora, refleti e reuni os dois lapsos: ‘na sepultura -
afundar!’ As seguintes imagens sucederam-se em minha mente com a rapidez de um
raio: elfos dançando e pairando à luz do luar; nosso camarada deitado no
esquife, a impressão por ele despertada; algumas cenas do enterro, a sensação
da repulsa vivenciada e da perturbação de nosso luto; a lembrança de algumas
conversas sobre a epidemia surgida e as manifestações de temor de vários
oficiais. Mais tarde, lembrei-me de que essa era a data da morte do meu pai, o
que me pareceu notável, dado que usualmente tenho péssima memória para datas.
“A reflexão seguinte logo me esclareceu: a
semelhança das circunstâncias externas das duas noites, o mesmo horário e
iluminação, o lugar e o companheiro idênticos. Lembrei-me da inquietação que
sentira ao aventarem os temores de uma propagação da gripe; e lembrei, ao mesmo
tempo, minha proibição interna de me deixar dominar pelo medo. Conscientizei-me
também do sentido da ordem de colocação das palavras ‘poderíamos - na sepultura
- afundar’, e entendi que somente a correção inicial de ‘Grab’ [sepultura]
pro ‘Gras’ [grama], que se dera de modo quase imperceptível, levara ao
segundo lapso (‘sinken‘ [afundar] em vez de ‘singen‘ [cantar]),
para garantir plena expressão ao complexo suprimido.
“Acrescento ainda que, nessa época, eu sofria
de sonhos angustiantes em que por várias vezes via adoentada uma parenta muito
próxima, e em que certa vez cheguei a vê-la morta. Pouco antes de ser
aprisionado, eu recebera a notícia de que a gripe estava assolando com especial
virulência a pátria dessa parenta e também lhe expressara minhas sérias
preocupações a esse respeito. Desde então, ficara sem nenhum contato com ela.
Meses depois, recebi a notícia de que ela fora vitimada pela epidemia duas
semanas antes do episódio aqui descrito!”
(31)O exemplo seguinte de lapso da fala elucida
brilhantemente um dos dolorosos conflitos que fazem parte da sina de um médico.
Um homem com uma doença provavelmente fatal, embora o diagnóstico ainda não se
tivesse confirmado, chegara a Viena para aguardar a solução do seu problema e pedira
a um amigo dos tempos de juventude, agora transformado num médico famoso, que
se encarregasse de seu tratamento. Com alguma relutância, o amigo finalmente
concordou em fazê-lo. O doente deveria internar-se numa casa de saúde, e o
médico propôs o sanatório “Hera”. “Mas essa é uma instituição que só trata de
determinado tipo de caso (uma maternidade)”, objetou o doente. “Oh, não!”,
apressou-se o médico a retrucar, “no ‘Hera’ eles podem umbringen
[matar], quero dizer, unterbringen [acolher] qualquer tipo de paciente.”
Contestou então violentamente a interpretação de seu deslize. “Você não há de
acreditar que tenho impulsos hostis contra você, não é?” Quinze minutos depois,
ao ser acompanhado até a porta pela dama que se encarregara dos cuidados com o
enfermo, disse-lhe o médico: “Não consigo achar nada e continuo a não acreditar
nisso. Mas, se for o caso, sou a favor de uma dose forte de morfina, e que
descanse em paz.” Ocorre que seu amigo lhe impusera a condição de que ele
abreviasse seu sofrimento por meio de alguma droga tão logo se confirmasse que
o caso não tinha mais cura. Portanto, o médico realmente aceitara a tarefa de
matar seu amigo.
(32) Eis um exemplo extremamente instrutivo de
lapso da fala que eu não gostaria de omitir, apesar de ter ocorrido há uns
vinte anos, segundo meu informante. “Certa vez uma dama expressou a seguinte
opinião numa reunião social - e as palavras mostram ter sido pronunciadas com
fervor e sob a pressão de inúmeros impulsos secretos: ‘Sim, a mulher precisa
ser bonita para agradar aos homens. Já o homem tem muito mais facilidade; desde
que tenha seus cinco [fünf] membros direitos [gerade], não
precisa de mais nada!” Esse exemplo permite-nos uma boa visão do mecanismo
íntimo de um lapso da fala resultante da condensação ou contaminação
(em [1]). É plausível supor que tenhamos aqui uma fusão de dois modos de falar
de sentido semelhante:
desde
que ele tenha seus quatro membros direitos desde que ele tenha seus cinco
sentidos.
Ou talvez o elemento direito [“gerade”]
fosse comum a duas intenções de discurso com o seguinte teor:
desde
que ele tenha seus membros direitos
encarar
todos os cinco como pares.
“De fato, nada nos impede de presumir que ambas
as expressões, a que se refere aos cinco sentidos e a referente ao “número par
cinco”, tenham contribuído separadamente para introduzir, na frase sobre os
membros direitos, primeiro um número e, depois, o misterioso cinco, em vez do
simples quatro. Mas essa fusão certamente não se teria produzido se, na forma
resultante do lapso da fala, não tivesse um bom sentido próprio - um sentido
que expressava uma verdade cínica obviamente inadmissível sem disfarces,
sobretudo ao ser dita por uma mulher. Por fim, não devemos deixar de salientar
o fato de que a observação dessa senhora, tal como enunciada, tanto poderia ser
vista como um chiste excepcional quanto como um divertido lapso da fala.
Trata-se apenas de saber se ela teria proferido as palavras com uma intenção
consciente ou inconsciente. Em nosso caso, o comportamento da interlocutora por
certo refutou qualquer intenção consciente e excluiu a idéia de um chiste.”
A estreita aproximação que o lapso da fala [1]
pode ter com o chiste é demonstrada no seguinte caso narrado por Rank (1913),
no qual a própria autora do deslize acabou por tratá-lo como um chiste e rir-se
dele.
(33)“Um homem recém-casado com quem a mulher,
preocupada em preservar sua aparência juvenil, só relutantemente admitia ter
relações sexuais freqüentes, contou-me a seguinte história, que, em
retrospectiva [nachträglich], tanto ele quanto ela achavam extremamente
engraçada. Depois de uma noite em que novamente desobedecera à norma de
abstinência de sua mulher, ele se barbeava pela manhã no dormitório do casal,
enquanto ela permanecia deitada, e, como já fizera muitas vezes por comodismo,
servia-se da borla de pó-de-arroz da esposa, que estava na mesinha de
cabeceira. Sua mulher, extremamente preocupada com sua pele, já lhe dissera
muitas vezes para não fazer isso, e assim, exclamou irritada: ‘Mas lá está você
de novo a me [mich] empoar com sua [deiner] borla!’ A risada do
marido fez com que ela notasse o lapso (ela pretendera dizer ‘a se [dich]
empoar com minha [meiner] borla’) e acabasse por cair também na risada.
‘Empoar’ [“pudern”] é uma expressão comumente usada em Viena no sentido
de ‘copular’, e a borla é um símbolo fálico bastante óbvio.”
(34) Também no exemplo seguinte, fornecido por
Storfer, poder-se-ia pensar que houve intenção de fazer um chiste:
A senhora B., que sofria de um mal de origem obviamente
psicogênica, fora repetidamente aconselhada a consultar o psicanalista X.
Recusava-se persistentemente a fazê-lo, dizendo que tal tratamento nunca
poderia ter nenhuma serventia, pois o metódico erroneamente faria tudo remontar
a coisas sexuais. Entretanto, chegou finalmente o dia em que ela se dispôs a
seguir o conselho e perguntou: “Num gut, wann ordinärt also dieser Dr.
X.?”
(35) -A ligação entre os chistes e os lapsos da
fala também se evidencia no fato de que, em muitos casos, o deslize não passa
de uma abreviação:
Ao terminar o curso secundário, uma jovem
seguiu a moda dominante da época e matriculou-se no curso de medicina. Passados
alguns semestres, trocou o curso de medicina pelo de química. Alguns anos
depois, descreveu essa mudança com as seguintes palavras: “Em geral, eu não me
apavorava nas dissecações, mas um dia, quando tive de arrancar as unhas dos
dedos de um cadáver, perdi o prazer em toda essa… química”.
(36) Introduzo aqui outro lapso da fala cuja
interpretação não exige muita habilidade. “Numa aula de anatomia, o professor
se empenhava em explicar as cavidades nasais, que são sabidamente um capítulo
muito difícil da enterologia. Ao perguntar aos ouvintes se haviam entendido sua
exposição do assunto, a resposta de todos foi afirmativa. Diante disso,
comentou o professor, conhecido por sua presunção: ‘Mal posso acreditar nisso,
pois mesmo em Viena, com seus milhões de habitantes, os que entendem das
cavidades nasais podem ser contados num dedo, quero dizer, nos dedos da
mão.”
(37)Em outra ocasião, disse o mesmo professor:
“No caso dos órgãos genitais femininos, apesar das muitas Versuchungen
[tentações] - perdão, Versuche [tentativas]…”
(38) Sou grato ao Dr. Alfred Robitsek, de
Viena, por ter-me apontado dois lapsos da fala registrados por um antigo autor
francês, que aqui transcrevo sem fazer a tradução:
Brantôme (1527-1614), Vies des Dames
galantes, “Discours second:” “Si ay-je cogneu une très-belle et honneste
dame de par le monde, qui, devisant avec un honneste gentilhomme de la cour des
affaires de la guerre durant ces civiles, elle luy dit: ‘J’ay ouy dire que le
roy a faict rompre tous les c… de ce pays là.’ Elle
vouloit dire les ponts. Pensez que, venant de coucher d’avec son mary,
ou songeant à son amant, elle avoit encor, ce nom frais en la bouche; et le
gentilhomme s’en eschauffa en amours d’elle pour ce mot.
“Une
autre dame que j’ai cogneue, entretenant une autre grand’ dame plus qu’elle, et
luy louant et exaltant ses beautez, elle luy dit apres: ‘Non, madame, ce que je
vous en dis, ce n’est point pour vous adultérer‘, voulant dire adulater,
comme elle le rhabilla ainsi: pensez qu’elle songeoit à adultérer.”
(39) Evidentemente, também existem exemplos
mais modernos de doubles entendres sexuais nascidos de lapsos da fala. A
senhora F. estava descrevendo sua primeira aula num curso de línguas: “É muito
interessante; o professor é um jovem inglês muito simpático. Logo na primeira
aula, ele me deu a entender ‘durch die Bluse‘ [através da blusa] - quero
dizer, ‘durch die Blume‘ [literalmente, “através das flores”, i.e.
“indiretamente”] que preferiria dar-me aulas particulares.” (De Storfer.)
No procedimento psicoterapêutico que emprego
para resolver e eliminar os sintomas neuróticos, é muito freqüente eu deparar
com a tarefa de descobrir, pelos ditos e associações aparentemente casuais dos
pacientes, um contéudo de pensamento que se esforça por permanecer oculto, mas
que, não obstante, não consegue deixar de denunciar inadvertidamente sua
existência, das mais variadas maneiras. Nisso os lapsos da fala prestam com
freqüência os mais valiosos serviços, como eu poderia mostrar com alguns
exemplos muito convincentes e, ao mesmo tempo, curiosíssimos. Por exemplo, um
paciente fala sobre sua tia e, sem reparar no lapso, chama-a sistematicamente
de “minha mãe”, ou então uma paciente se refere ao marido como seu “irmão”.
Assim, eles me chamam a atenção para o fato de terem “identificado” essas
pessoas entre si - de as terem incluído numa série, o que implica uma
recorrência de um mesmo tipo em sua vida afetiva. Outro exemplo: um rapaz de
vinte anos apresentou-se em meu consultório com as seguintes palavras: “Sou o
pai de fulano de tal, que se tratou com o senhor. Perdão, eu quis dizer que sou
irmão dele: ele é quatro anos mais velho do que eu.” Compreendi assim que, por
meio desse lapso, ele quis expressar que, tal como irmão, também adoecera por
culpa do pai; que, como o irmão, desejava tratar-se, mais que era o pai quem
mais necessitava de tratamento. Noutros casos, uma combinação de palavras que
soa estranha ou uma expressão que parece forçada basta para revelar que um
pensamento recalcado participa dos ditos do paciente, que encobrem uma outra
motivação.
Por conseguinte, tanto nas perturbações mais
grosseiras da fala quanto nas mais sutis, que ainda podem ser classificadas sob
o título de “lapsos da fala”, penso que não é a influência do “efeito de
contato dos sons” [em [1]], mas sim a influência de pensamentos situados fora
do dito intencionado, quedetermina a ocorrência do lapso e fornece uma
explicação adequada para o equívoco ocorrido. Não pretendo pôr em dúvida as
leis que regem a maneira como os sons se modificam mutuamente, mas, por si só,
essas leis não me parecem ter eficácia suficiente para perturbar a enunciação
correta da fala. Nos casos que estudei e investiguei com rigor, essas leis não
representam mais do que o mecanismo preformado de que se serve, por
conveniência, uma motivação psíquica mais remota, mas sem sujeitar-se à esfera
da influência dessas relações [fonéticas]. Num grande número de
substituições [em [1]], os lapsos da fala desconsideram por completo
essas leis fonéticas. Nesse aspecto, estou de pleno acordo com Wundt, que
como eu presume que as condições que regem os lapsos da fala são complexas e
vão muito além dos efeitos de contato dos sons.
Se considero aceitas essas “influências
psíquicas mais remotas”, como são chamadas por Wundt [cf. acima, ver em
[1]-[2]], nada me impede por outro lado, de admitir também que, nas situações
em que se fala apressadamente e a atenção está algo distraída, as condições que
regem os lapsos da fala podem restringir-se facilmente aos limites definidos
por Meringer e Mayer. Ainda assim, para alguns dos exemplos compilados por
esses autores, parece mais plausível dar uma explicação mais complexa. Tomo,
por exemplo, um dos casos citados acima [em [1]]:
‘Es
war mir auf der Schwest…
Brust so schwer.’
Será que aqui o som “schwe” simplesmente
suplantou [verdrängt] o “bru”, de igual valência, como uma
“antecipação” dele? Dificilmente se pode descartar a idéia de que os fonemas
componentes de “schwe” foram ainda habilitados para essa supremacia
graças a uma relação especial. Esta só poderia ser a associação Schwester
[irmã] - Bruder [irmão], ou talvez também Brust der Schwester [seio
da irmã], que leva a outros grupos de pensamentos. E é este auxiliar invisível
por trás dos bastidores que dá ao inocente “schwe” o poder cujo êxito se
manifesta como um equívoco da fala.
Existem outros lapsos da fala em que podemos
supor que o verdadeiro fator perturbador é alguma semelhança fonética com
palavras e sentidos obscenos. A distorção e deformação deliberadas de palavras
e expressões, tão caras às pessoas vulgares, têm a finalidade exclusiva de
explorar ocasiõesinocentes para aludir a temas proibidos; e esse jogo com as
palavras é tão freqüente que nada haveria de assombroso em sua ocorrência
inadvertida e contrária à vontade da pessoa. A essa categoria sem dúvida pertencem
exemplos como Eischeissweibchen (em vez de Eiweissecheibchen), Apopos
Fritz (em vez de à propos), Lokuskapitäl (em vez de Lotuskapitäl)
etc., e talvez também a Alabüsterbachse (Alabasterbüchse) de Sta.
Maria Madalena. [1] - “Ich fordere Sie auf, auf das Wohl unsers Chefs aufzustossen”
[“Convido-os a arrotarem à saúde de nosso chefe”, ver em [1]] certamente
nada mais é do que uma paródia inintencional que ecoa uma paródia deliberada.
Se eu fosse o chefe homenageado na cerimônia em que o orador cometeu esse
lapso, provavelmente refletiria sobre a esperteza dos romanos em permitirem aos
soldados dos imperadores triunfantes exprimirem em canções satíricas suas
críticas íntimas ao homem festejado. Meringer nos conta que ele próprio, ao
saudar certa vez alguém que, por ser o membro mais velho de uma sociedade, era
familiarmente tratado pelo título honorífico de “Senexl” ou …altes
[velho] Senexl”, disse-lhe: “Prost [À sua saúde!], Senex
altesl!” O próprio Meringer ficou chocado com esse engano (Meringer e Mayer,
1895, 50). Talvez, possamos interpretar seu afeto se considerarmos o quanto a
forma “Altes” se aproxima da expressão insultuosa “alter Esel” [“burro velho”].
Existem poderosas punições internas para qualquer falta de respeito para com os
mais velhos (ou seja, reduzindo isso aos termos da infância, do respeito para
com o pai).
Espero que não escape ao leitor a diferença de
valor entre essas interpretações cuja comprovação é impossível, e os exemplos
que eu mesmo compilei e expliquei através de análises. Mas, se ainda me apego
secretamente a minha expectativa de que até os lapsos da fala aparentemente
simples podem ser explicados pela interferência de uma idéia meio suprimida que
está fora do contexto intencionado, o que me atrai para isso é uma
observação de Meringer extremamente digna de nota. Diz esse autor que é curioso
que ninguém se dispõe a admitir que cometeu um lapso da fala. Há pessoas muito
sensatas e honestas que se ofendem quando lhes dizemos que cometeram um lapso.
Eu não ousaria fazer uma generalização tão ampla quanto a de Meringer ao dizer
“ninguém”. Mas o sinal de afeto que se segue à revelação do lapso, e que é
claramente da natureza da vergonha, tem seu significado. Pode ser comparado ao
aborrecimento que sentimos quando não conseguimos lembrar um nome esquecido [em
[1]-[2]], e a nossa surpresa diante da tenacidade de uma lembrança
aparentemente indiferente [em [1]]; e indica invariavelmente que algum motivo
contribuiu para o advento da interferência.
A distorção de um nome, quando intencional,
equivale a um insulto; e é bem possível que tenha a mesma significação em toda
uma série de casos em que aparece sob a forma de um lapso inadvertido. A pessoa
que uma vez, como relata Mayer, disse “Freuder” em vez de “Freud”, por ter
pouco antes proferido o nome de Breuer (Meringer e Mayer, 1895, 38), e que, em
outra ocasião, falou do método de tratamento “Freuer-Breudiano” (ibid, 28),
provavelmente era um colega não muito entusiasmado com esse método. Mais
adiante, no capítulo relativo aos lapsos da escrita, apresentarei um exemplo de
distorção de um nome que certamente não pode ser explicado de nenhuma outra
maneira [em [1]].
Nesses casos, o fator perturbador interferente
é uma crítica que precisa ser posta de lado, por não corresponder no momento à
intenção do falante.
Inversamente, [1] a substituição de um nome por
outro, a apropriação do nome de outra pessoa e a identificação por meio do
lapso no nome devem significar um reconhecimento que, por alguma razão, tem de
permanecer em segundo plano por ora. Uma experiência dessa natureza, extraída
de seus tempos de estudante, é-nos descrita por Sándor Ferenczi:
“Em meu primeiro ano ginasial, pela primeira
vez na vida, tive de recitar um poema em público (i.e. diante da classe
inteira). Estava bem preparado e fiquei atônito ao ser interrompido, logo no
começo, por uma gargalhada geral. O professor logo me explicou o motivo dessa
estranha reação: eu dissera corretamente o título do poema, ‘Aus der Ferne’ [Da
Distância], mas, em vez de atribuí-lo a seu verdadeiro autor, indiquei meu
próprio nome. O nome do poeta é Alexandre (Sándor [em húngaro]) Petöfi. A troca
foi favorecida pelo fato de termos o mesmo prenome, porém, indubitavelmente, a
causa real foi que, naquela época, eu me identificava em meus desejos secretos
com esse famoso poeta-herói. Mesmo conscientemente, meu amor e admiração por
ele beiravam a idolatria. Por trás desse ato falho, é claro que se encontra
também todo o lastimável complexo da ambição.”
Uma identificação semelhante através da troca de
nomes foi-me narrada por um jovem médico. Tímida e reverentemente, ele se
apresentara ao famoso Virchow como “Dr. Virchow”. O professor voltou-se para
ele, surpreso, e perguntou: “Ah, o senhor também se chama Virchow?” Não sei
como o jovem ambicioso justificou o lapso cometido - se recorreu à desculpa
lisonjeira de que se sentira tão insignificante diante daquele grande nome que
o seu próprio não pôde deixar de escapar-lhe, ou se teve a coragem de admitir
que esperava um dia tornar-se um homem tão importante como Virchow, e de pedir
ao professor que não o tratasse com tanto menosprezo por causa disso. Um desses
dois pensamentos - ou talvez ambos simultaneamente - podem ter confundido o
jovem ao se apresentar.
Por motivos de natureza extremamente pessoal devo
deixar indeterminado se uma interpretação semelhante é também aplicável ao caso
que se segue. No Congresso Internacional de Amsterdã, em 1907, minha teoria da
histeria foi alvo de vivos debates. Num inflamado discurso contra mim, um dos
meus mais vigorosos adversários cometeu repetidamente lapsos que assumiram a
forma de ele se colocar em meu lugar e falar em meu nome. Por exemplo, dizia:
“Sabe-se que Breuer e eu provamos…”, quando só poderia ter pretendido
dizer “… Breuer e Freud…” O nome desse meu oponente não tem a menor
semelhança com o meu. Esse exemplo, assim como muitos outros casos em que o
lapso da fala é a troca de um nome por outro, mostra-nos que tais lapsos
dispensam inteiramente o auxílio prestado pela semelhança de som [ver em [1]] e
podem ocorrer unicamente com o apoio de relações ocultas no conteúdo.
Em outros casos bem mais significativos, é a
autocrítica, a oposição interna ao próprio enunciado, que obriga o sujeito a
cometer um lapso da fala e mesmo a substituir pelo oposto aquilo que tenciona
dizer. Com assombro, observa-se então como o texto de uma afirmação anula a
intenção dela e como o lapso da fala expõe uma insinceridade interna. O lapso
transforma-se aqui num meio de expressão mímica - freqüentemente, decerto, a expressão
de algo que não se queria dizer: torna-se um meio de trair a si mesmo. Foi o
que aconteceu, por exemplo, quando um homem não muito afeito às chamadas
relações sexuais normais em seu contato com as mulheres interveio numa conversa
sobre uma moça que diziam ser coquete [kokett], afirmando: “Se tivesse
que se haver comigo ela logo perderia esse hábito de koëttiern [palavra
inexistente].” Sem dúvida, só uma outra palavra, “koitieren” [praticar o
coito], poderia ter sido responsável por essa alteração na palavra pretendida “kokettieren”
[coquetear]. - Ou este outro caso: “Temos um tio que há meses se mostra muito
ofendido por nunca o visitarmos. Aproveitamos a oportunidade de sua mudança
para uma casa nova para fazer-lhe a tão adiada visita. Ele pareceu muito alegre
por ver-nos e, quando nos despedíamos, disse com muita emoção: ‘De agora em
diante, espero vê-los ainda mais raramente do que antes’.”
As contingências favoráveis [1] do material
lingüístico muitas vezes determinam a ocorrência de lapsos da fala que têm o
efeito francamente estarrecedor de uma revelação, ou produzem todo o efeito
cômico de um chiste. - É o caso do exemplo seguinte, observado e relatado pelo
Dr. Reitler:
“-Esse encantador chapéu novo, suponho que você
mesma o tenha ‘aufgepatzt‘ [em vez de “aufgeputzt” (enfeitado)],
não é? - disse uma dama a outra em tom de admiração. Mas teve de interromper o
elogio pretendido, pois sua crítica silenciosa de que os enfeites do chapéu [“Hutaufputz”]
eram uma ‘Patzerei [uma barafunda]’ fora indicada com demasiada clareza
por esse lapso indelicado para que qualquer outra expressão de admiração
convencional soasse convincente.”
Mais branda, porém também inequívoca, é a
crítica contida no seguinte exemplo:
“Uma dama em visita a uma conhecida foi ficando
muito impaciente e cansada com a conversa enfadonha e prolixa desta última.
Quando enfim conseguiu libertar-se e se despedir, foi outra vez detida por uma
nova enxurrada de palavras da companheira, que a acompanhara até o vestíbulo e,
quando ela já ia saindo, obrigava-a a ficar de pé junto à porta e a continuar
ouvindo. Por fim, ela interrompeu a anfitriã com a pergunta: ‘A senhora está em
casa no vestíbulo [Vorzimmer]?’ Somente ao ver a expressão atônita da
outra foi que ela reparou em seu lapso. Cansada de ficar tanto tempo em pé no
vestíbulo, ela tencionara interromper a conversa com a pergunta ‘A senhora está
em casa de manhã [Vormittag]?’, e o lapso traiu sua impaciência ante a
nova retenção.”
O exemplo seguinte, testemunhado pelo Dr. Max
Graf, é uma advertência que chama à auto-observação:
“Na assembléia geral da Associação de
Jornalista ‘Concordia’, um jovem membro, que estava sempre sem dinheiro, fazia
um discurso violentamente oposicionista e, em sua excitação, disse ‘Vorschussmitglieder
[membros do empréstimo]’ (em vez de ‘Vorstandsmitglieder [membros da
diretoria]’ ou ‘Ausschussmitglieder [membros da comissão]’) . É que
estes últimos estão autorizados a aprovar empréstimos, e o jovem orador
realmente acabara de fazer uma solicitação de empréstimo.”
Vimos [1] pelo exemplo do “Vorschwein”
[ver em [1]] que um lapso da fala pode ocorrer facilmente quando se faz um
esforço para suprimir palavras insultuosas. Dessa maneira, dá-se vazão aos
próprios sentimentos:
Um fotógrafo que decidira abster-se de usar
palavras da zoologia ao lidar com seus empregados desajeitados, dirigiu-se nos
seguintes termos a um aprendiz que tentava despejar uma grande bandeja cheia
até a borda e, ao fazê-lo, naturalmente derramou metade do conteúdo no chão:
“Mas homem, primeiro schöpsen Sie um pouco!” Logo depois, em meio a uma
longa reprimenda a uma assistente que quase estragara uma dúzia de chapas
valiosas por desleixo, ele disse: “Será que você é tão hornverbrannt…?”
O exemplo seguinte mostra com um lapso da fala
resultou em grave autodelação. Alguns de seus detalhes justificam a reprodução
integral do relato feito por Brill na Zentralblatt für Psychoanalyse,
Volume II.
“Certa noite, o Dr. Frink e eu fazíamos um
passeio e discutíamos alguns dos assuntos da Sociedade Psicanalítica de Nova
Iorque. Encontramos um colega, o Dr. R., que eu não via há anos e de cuja vida
particular nada sabia. Ficamos muito contentes com nosso reencontro e, a
convite meu, ele nos acompanhou a um café, onde passamos duas horas conversando
animadamente. Ele aparecia conhecer alguns detalhes a meu respeito, pois, logo
após as saudações usuais, perguntou como ia passando meu filho pequeno e me
disse ter notícias minhas de tempos em tempos, através de um amigo comum, e
estar interessado em meu trabalho desde que lera sobre ele nas publicações
médicas. Quando perguntei se era casado, deu uma resposta negativa e
acrescentou: ‘Por que se casaria um homem como eu?’
“Ao sairmos do café, ele se voltou abruptamente
para mim e disse: ‘Gostaria de saber o que o senhor faria num caso como este:
conheço uma enfermeira que foi citada como cúmplice num processo de divórcio. A
mulher processou o marido e a citou como cúmplice, e ele obteve o
divórcio. Interrompi-o, dizendo: ‘O senhor quer dizer que ela obteve o divórcio.’
Ele se corrigiu imediatamente, dizendo: ‘Sim, é claro, ela obteve o
divórcio’, e prosseguiu, contando que a enfermeira fora tão afetada pelo
processo e pelo escândalo que passara a beber, ficara muito nervosa etc.; e ele
queria que eu o aconselhasse sobre o modo de tratá-la.
“Assim que corrigi seu engano, pedi-lhe que o
explicasse, mas recebi as respostas surpresas de praxe: afinal, todos tinham o
direito de cometer lapsos, fora apenas um acidente, não havia nada por trás
disso etc. Respondi que deve haver uma razão para todos os deslizes da fala e
que, se ele não me houvesse dito antes que não era casado, eu ficaria tentado a
supor que ele próprio era o herói dessa história, porque, nesse caso, o lapso
poderia ser explicado por seu desejo de que ele tivesse obtido o divórcio, e
não sua mulher, para não ter (segundo nossas leis matrimoniais) que pagar
pensão alimentícia e poder voltar a se casar do Estado de Nova York. Ele negou
firmemente minha conjectura mas sua reação emocional exagerada ao fazê-lo, com
sinas evidentes de agitação seguidos de risadas, só fez reforçar minhas
suspeitas. Ante meu apelo de que dissesse a verdade a bem da ciência,
respondeu: ‘A menos que o senhor queira ouvir uma mentira, deve acreditar que
nunca fui casado, e, portanto, sua interpretação psicanalítica está
completamente errada.’ Acrescentou que uma pessoa que prestava atenção a todos
essas trivialidades era decididamente perigosa. E então, lembrou-se
repentinamente de que tinha outro compromisso e se despediu.
“O Dr. Frink e eu continuávamos convencidos de
que minha interpretação do lapso estava correta, e decidi corroborá-la ou
refutá-la mediante novas investigações. Dias depois, visitei um vizinho, velho
amigo do Dr. R. que pôde confirmar minha explicação em todos os seus detalhes:
o processo de divórcio ocorrera algumas semanas antes e a enfermeira fora
citada como cúmplice. Hoje o Dr. R. está plenamente convencido da exatidão dos
mecanismos freudianos.”
A autodelação é igualmente inconfundível no
caso que se segue, narrado por Otto Rank:
“Um pai desprovido de qualquer sentimento
patriótico, e que queria educar seus filhos de modo a que também eles ficassem
livres do que ele considerava um sentimento supérfluo, estava criticando os
filhos por participarem de uma demonstração patriótica; quando eles
protestaram, dizendo que o tio também havia participado, o pai retrucou: ‘Ele
é justamente pessoa que vocês não devem imitar: é um idiota.’ Ao notar a
expressão de assombro dos filhos ante esse tom incomum no pai, ele percebeu que
havia cometido um lapso e acrescentou, desculpando-se: ‘Naturalmente, eu quis
dizer patriota‘.”
Eis um lapso da fala que foi interpretado como
uma autodelação pela própria interlocutora. Ele nos é relatado por Stärcke, que
acrescenta um comentário pertinente, se bem que ultrapasse os limites da tarefa
interpretativa.
“Uma dentista prometera à irmã que qualquer dia
lhe faria exame para verificar se havia Kontakt [contato] entre dois de
seus molares (isto é, se as superfícies laterais dos molares se tocavam de modo
a evitar o depósito de fragmentos de comida entre eles). Por fim, a irmã se
queixou de ter que esperar tanto por esse exame e, gracejando, disse: ‘Agora
ela talvez esteja tratando de uma colega, mas sua irmã tem que continuar
esperando.’ A dentista enfim a examinou e constatou que, de fato, havia um
pequeno orifício num dos molares, dizendo então: ‘Não pensei que fosse tão
sério; achei que você só não tinha Kontant [moeda soante] … quero dizer Kontakt.‘
‘Está vendo?’, riu a irmã; ‘foi só por avareza que você me fez esperar mais
tempo do que seus pacientes que pagam!’
“(Obviamente, não me cabe acrescentar minhas
próprias associações às delas, ou basear nisso quaisquer conclusões, mas, ao
saber desse lapso da fala, ocorreu-me de imediato que essas duas jovens,
amáveis e brilhantes, são solteiras e se relacionam muito pouco com os rapazes,
e perguntei a mim mesmo se não teriam mais contato com gente jovem se
dispusessem de mais moeda sonante.)” [Cf. Stärcke, 1916.]
Também no exemplo seguinte, narrado por Reik
(1915), o lapso da fala equivale a uma autodelação:
“Uma moça estava para ficar noiva de um jovem
que lhe era antipático. Para que os dois jovens se conhecessem melhor, os pais
prepararam uma reunião à qual compareceriam também os futuros noivos. A moça
soube controlar-se o bastante para que seu pretendente, muito obsequioso com
ela, não percebesse sua antipatia. Mas, quando a mãe lhe perguntou se gostara
do rapas, ela respondeu polidamente: ‘Sim, ele é muito detestável
[liebenswidrig]!’”
Não menos auto-revelador é este exemplo,
descrito por Rank (1913) como um “lapso da fala jocoso”:
“Uma mulher casada que gostava de ouvir
anedotas e que, segundo se dizia, não era completamente avessa às relações
extraconjugais, se reforçadas por presentes adequados, ouviu de um jovem que
também ansiava por seus favores a seguinte velha história, narrada não sem
segundas intenções por parte dele. Um dos dois parceiros comerciais tentava
obter os favores da mulher um tanto arisca de seu sócio. Por fim, ela consentiu
em concedê-los, em troca de um presente de mil florins. Assim, quando o marido
se preparava para sair em viagem, o sócio lhe pediu mil florins emprestados e
prometeu devolvê-los a sua mulher no dia seguinte. Depois, é claro, pagou essa
soma à esposa do sócio como uma suposta recompensa pelos favores concedidos; e
ela se acreditou finalmente apanhada quando o marido, ao regressar, pediu-lhe
os mil florins, o que acrescentou a seu prejuízo a afronta. Quando o rapaz
chegou ao ponto da história em que o sedutor diz ‘Devolverei o dinheiro
a sua mulher amanhã’, sua interlocutora o interrompeu com estas palavras muito
reveladoras: ‘Diga-me, o senhor já não me devolveu… perdão, já não me contou
isso?’ Dificilmente ela poderia ter dado uma indicação mais clara, sem
formulá-la expressamente, de sua disposição a se entregar nas mesmas
condições.”
Um bom exemplo desse tipo de autodelação sem
conseqüências graves é narrado por Tausk (1917) sob o título de “A Fé dos
Antepassados”. “Como minha noiva era cristã, contou o senhor A., “e não queria
abraçar a fé judaica, fui eu mesmo obrigado a me converter ao cristianismo para
que pudéssemos casar-nos. Não foi sem alguma resistência interna que mudei de
religião, mas isso me pareceu justificado pelo objetivo visado tanto mais que
envolvia apenas o abandono de uma filiação aparente ao judaísmo, e não de uma
convicção religiosa (que nunca tive). Apesar disso, continuei sempre a me
apresentar como judeu, e poucos de meus conhecimentos sabem que sou batizado.
Tenho desse casamento dois filhos que foram batizados como cristãos. Quando os
meninos chegaram a certa idade, foram informados sobre sua ascendência judaica,
para que não fossem influenciados pelas visões anti-semitas na escola e não se
voltassem contra o pai por um motivo tão supérfluo. Há alguns anos, eu e meus
filhos, que na época freqüentavam a escola primária, estávamos passando as
férias de verão em D., hospedados pela família de um professor. Um dia, ao
tomarmos chá com nossos anfitriões habitualmente amáveis, a dona da casa, que
nem suspeitava da ascendência judaica de seus veranistas, desfechou alguns
ataques muito mordazes contra os judeus. Eu deveria ter esclarecido bravamente
a situação, para dar a meus filhos o exemplo de ‘sustentar com coragem as
próprias convicções’, mas eu temi as explicações desagradáveis que costumam
seguir-se a esse tipo de confissão. Além disso, receava a possibilidade de ter
de abandonar as boas acomodações encontradas e, desse modo, estragar o já
limitado período de férias minhas e de meus filhos, caso o comportamento de
nossos anfitriões se tornasse inamistoso pelo fato de sermos judeus.
Enfrentanto, como tinha razões para esperar que meus filhos, com sua franqueza
e ingenuidade, acabariam por revelar a momentosa verdade se continuassem ouvindo
a conversa, tentei afastá-los do grupo, mandando-os para o jardim. ‘Vão para o
jardim, judeus [Juden]’, disse-lhes, e me corrigi rapidamente: ‘meninos
[Jungen]’. Permiti assim que a ‘corajosa sustentação das próprias
convicções‘ se expressasse através de um ato falho. De fato, os outros não
tiraram nenhuma conclusão de meu lapso da fala, já que não lhe atribuíram
qualquer importância; mas tive de aprender a lição de que a ‘fé dos
antepassados’ não pode ser renegada impunemente quando se é filho e se tem
filhos.”
Nada inocente foi o efeito produzido pelo
seguinte deslize da fala, que eu não relataria se o próprio juiz não tivesse
anotado para esta coleção durante um julgamento:
Um soldado acusado de invasão e furto numa casa
declarou em juízo: “Até agora não me deram baixa desse Diebsstellung
militar, de modo que, por enquanto, ainda pertenço ao exército.”
Hilariante é o lapso da fala [1] quando,
durante o trabalho psicanalítico, serve de meio para fornecer ao médico uma
confirmação muito bem-vinda, caso haja uma contradição com o paciente. Certa
vez tive de interpretar o sonho de um paciente em que ocorria o nome “Jauner”.
O sonhador conhecia uma pessoa com esse nome, mas era impossível descobrir
porque ela havia aparecido no contexto do sonho; assim, arrisquei a conjectura
de que talvez fosse apenas por causa do nome, que soa parecido com o insulto “Gauner”
[gatuno, trapaceiro]. Meu paciente contestou isso com rapidez e energia, mas,
ao fazê-lo, cometeu um lapso da fala que confirmou minha suposição, pois tornou
a confundir as mesmas letras. Sua resposta foi: “isso me aprece jewagt
demais [em vez de “gewagt (ousado)”]. Quando chamei sua atenção para
esse lapso, ele aceitou minha interpretação.
Quando um dos participantes de uma discussão
séria comete um lapso da fala que inverte o sentido do que ele pretendia dizer,
isso o coloca imediatamente em desvantagem diante de seu adversário, que
raramente deixa de tirar grande proveito da melhora em sua posição.
Isso deixa claro [1] que as pessoas dão aos lapsos
da fala e aos outros atos falhos a mesma interpretação que advogo neste livro,
ainda que não endossem teoricamente essa concepção e mesmo que, no que se
refere a elas próprias, sintam-se pouco inclinadas a renunciar ao comodismo
implícito na tolerância para com os atos falhos. A hilaridade e a ironia que
são o efeito certeiro desse deslizes da fala no momento crucial servem de prova
contra a convenção, supostamente aceita por todos, de que o equívoco na fala é
um lapsus linguae sem nenhum significado psicológico. Ninguém menos do
que o próprio chanceler do império alemão, o príncipe Bülow, faz um protesto
nesses moldes na tentativa de salvar a situação criada quando o texto de seu
discurso em defesa do imperador (em novembro de 1907) adquiriu o sentido oposto
por causa de um lapso na fala:
“Quanto ao presente, a esta nova era do
Imperador Guilherme II, só posso repetir o que disse há um ano: que seria
iníquo e injusto dizer que um círculo de conselheiros responsáveis rodeia nosso
imperador…” (“irresponsáveis”, gritam muitas vozes) “…conselheiros
irresponsáveis. Perdoem o lapsus linguae.” (Risos.)
Nesse caso, pelo acúmulo de negativas, a frase
do príncipe Bülow foi um tanto obscurecida; a simpatia pelo orador e a
consideração por sua posição difícil impediram que esse lapso fosse depois
usado contra ele. Pior sorte, um ano depois, teve outro orador nesse mesmo
lugar; ele queria exortar a uma manifestação irrestrita [rückhaltlos] em
apoio ao imperador, e, nisso, um lamentável lapso da fala o advertiu de que outros
sentimentos se abrigavam em seu peito leal:
“Lattmann (Partido Nacional Alemão):
Colocamo-nos a questão do manifesto com base no regularmento do Reichstag.
Segundo este, o Reichstag tem o direito de fazer tal manifesto ao imperador.
Cremos que o pensamento e o desejo coletivos do povo alemão sejam o de poder
fazer uma manifestação una também nesse caso, e, se pudermos fazê-lo de
uma forma que resulte em lucro absoluto para os sentimentos monárquicos, então
devemos também fazê-lo de modo irresoluto [“rückgratlos”,
literalmente: “sem espinha dorsal”].” (Estrondosa gargalhada durante alguns
minutos.) “Senhores, não é ‘rückgratlos‘ [irresolutamente] mas sim ‘rückhaltlos‘
[irrestritamente]’” (risadas), “e tal manifestação irrestrita do povo,
esperamos, há de ser aceita também por nosso imperador nesta época difícil.”
O [jornal social-democrata] Vorwärts de
12 de novembro de 1908 não perdeu a oportunidade de apontar o sentido
psicológico desse lapso da fala: “É provável que nunca, em nenhum parlamento,
um membro tenha caracterizado com tanta exatidão, através de uma auto-acusação
involuntária, sua própria atitude e a da maioria parlamentar perante o
imperador, tal como o fez o anti-semita Lattmann quando, ao falar com solene
emoção no segundo dia do debate, escorregou na confissão de que ele e seus
amigos queriam expressar sua opinião ao imperador irresolutamente. Uma
estrepitosa gargalhada vinda de todos os lados abafou o restante das palavras
do infeliz, que ainda achou necessário balbuciar à guisa de desculpa, que na
verdade pretendera dizer ‘irrestritamente’.”
Acrescento mais um exemplo em que o lapso da
fala assumiu as características decididamente insólitas de uma profecia. No
começo de 1923, houve uma grande comoção no mundo das finanças quando o jovem
banqueiro X., provavelmente um dos mais novos dentre os “nouveaux riches”
de W. e sem dúvida o mais rico e o mais moço, obteve, depois de uma breve luta,
a posse majoritária das ações do Banco ; como conseqüência disso, realizou-se
também uma notável assembléia geral em que os antigos diretores do banco,
financistas da velha escola, não foram reeleitos, e o jovem X. tornou-se
presidente do banco. No discurso de despedida então proferido pelo diretor
administrativo, Dr. Y., em homenagem ao velho presidente que não fora reeleito,
vários ouvintes repararam num lamentável lapso da fala que se repetiu diversas
vezes. Ele se referiu seguidamente ao presidente falecido [dahinschidend],
em vez de exonerado. Ocorre que o ex-presidente morreu alguns dias
depois dessa reunião. Mas, é claro, já tinha mais de oitenta anos! (De
Storfer.)
Um bom exemplo de lapso da fala em que a
finalidade não é tanto trair o falante, mas dar algo a entender ao espectador
na platéia, encontra-se no Wallenstein [de Schiller] (Piccolomini,
Ato I, Cena 5), e nos mostra que o dramaturgo que aqui se serviu desse recurso
estava familiarizado com o mecanismo e o sentido dos lapsos da fala. Na cena
anterior, Max Piccolomini tomara ardorosamente o partido do Duque [de
Wallenstein] e descrevera em tom apaixonado as bênçãos da paz, das quais se
conscientizara durante uma viagem em que havia acompanhado a filha de
Wallenstein ao campo. Quando ele sai de cena, seu pai [Octavio] e Questenberg,
o emissário da corte, estão profundamente consternados. E prossegue a Cena 5:
QUESTENBERG Aí
de nós e há de ficar assim?
E então, amigo! havemos de deixá-lo partir
Nesse delírio - deixá-lo partir
Sem chamá-lo de volta imediatamente,
Sem abrir-lhe os olhos agora mesmo?
OCTAVIO (recobrando-se
após uma meditação profunda)
É que ele acaba de abrir os meus.
E vejo mais do que gostaria.
QUEST. O
que há amigo?
OCT. Maldita
seja essa viagem!
QUEST. Mas,
por quê? O que há?
OCT. Vamos,
venha comigo! Preciso seguir
De imediato a malfadada pista, ver
Com meus próprios olhos. Venha!
(Procura arrastá-lo consigo.)
QUEST. Mas,
como? Para onde?
OCT. Até
ela…
QUEST. -Até…
OCT. (corrigindo-se).
Até o Duque, vamos.
[Conforme a tradução inglesa de Coleridge.]
O pequeno deslize ao dizer “até ela”, em vez de
“até ele”, serve para nos revelar que o pai entendeu o motivo por que seu filho
tomou o partido do Duque, enquanto o cortesão se queixa de que ele lhe está
“falando por verdadeiros enigmas”.
Outro exemplo em que um dramaturgo se vale de
um lapso da fala foi descoberto por Otto Rank (1910) em Shakespeare. Cito o
relato de Rank:
“Encontra-se em O Mercador de Veneza, de
Shakespeare (Ato III, Cena 2), um lapso da fala que, do ponto de vista
dramático, tem uma motivação extremamente sutil e é empregado como um brilhante
recurso técnico. Tal como o lapso do Wallenstein para o qual Freud
chamou a atenção, ele mostra que os poetas têm uma clara compreensão do
mecanismo e do sentido desse tipo de ato falho e supõem que o mesmo se aplique
a sua platéia. Pórcia, compelida pela vontade de seu pai à escolha de um marido
por sorteio, escapou até o momento de todos os seus pretendentes indesejados
por obra do acaso. Tendo enfim encontrado em Bassinio o pretendente de seu
agrado, ela tem motivos para temer que também a ele a sorte seja esquiva. Ela
gostaria muito de dizer-lhe que, mesmo assim, ele pode ter certeza de seu amor,
mas isso lhe é vedado por seu juramento. Nesse conflito íntimo, o poeta a faz
dizer ao pretendente favorito:
Não vos apresseis, eu vos suplico; esperai um
ou dois dias antes de consultar a sorte, pois, se escolherdes mal, perco vossa
companhia; assim, aguardai um pouco. Algo me diz (mas não é o amor) que
não quereria perder-vos… Eu vos poderia ensinar a escolher bem, mas então seria
perjura, e não o serei jamais. Podeis perder-me, portanto; mas, se o fizerdes,
levar-me-eis a desejar ter cometido o pecado do perjúrio. Malditos sejam vossos
olhos! Eles me enfeitiçaram e dividiram: metade de mim é vossa, e a outra
metade é vossa… minha, quero dizer; mas, sendo minha, é vossa, e assim, sou
toda vossa.
“Aquilo de que ela queria dar-lhe apenas um
indício muito sutil, pois na verdade deveria ocultar-lhe por completo, ou seja,
que mesmo antes de ele fazer a escolha ela lhe pertencia inteiramente e
o amava, é justamente isso que o poeta, com admirável e requintada
sensibilidade psicológica, deixa transparecer claramente em seu lapso da fala;
e, como esse artifício artístico, ele consegue minorar tanto a intolerável
incerteza do amante quanto a tensão consonante da platéia frente ao resultado
de sua escolha.”
Pelo interesse que essa espécie de apoio dos
grandes escritores confere a nossa teoria dos lapsos da fala, sinto-me
justificado a citar um terceiro desses exemplos, relatado por Ernest Jones
(1911b, 496):
“Num artigo publicado recentemente, Otto Rank
chamou-nos a atenção para um belo exemplo de como Shakespeare fez um de seus
personagens, Pórcia, cometer um lapso que revelou seus pensamentos secretos a
qualquer espectador atento. Proponho relatar um exemplo semelhante, extraído de
The Egoist, obra-prima do maior dos romancistas ingleses, George
Meredith. Resumidamente, a trama do romance é a seguinte: Sir Willoughby
Patterne, um aristocrata muito admirado em seu círculo, fica noivo de uma certa
Srta. Constantia Durham. Ela descobre nele um egoísmo intenso, que ele esconde
habilmente do mundo, e, para escapar do casamento, foge com um certo Capitão
Oxford. Passados alguns anos, Patterne fica noivo da Srta. Clara Middleton, e a
maior parte do livro é consagrada a descrever detalhadamente o conflito que
brota em sua alma quando também ela descobre o egoísmo dele. As circunstâncias
externas e seu conceito de honradez fazem-na manter o compromisso assumido,
enquanto seu noivo torna-se cada vez mais repugnante a seus olhos. Ela toma parcialmente
como confidente o primo e secretário dele, Vernon Whitford, homem com quem
termina por se casar; ele, porém, por lealdade a Patterne e outros motivos,
mantém-se afastado.
“Num monólogo sobre sua infelicidade, Clara
assim se expressa: ‘- Ah, se algum nobre cavalheiro pudesse ver-me como sou e
não desdenhasse ajudar-me! Quisera ser arrancada dessa prisão de espinhos e
sarças. Não consigo desvencilhar meu próprio caminho. Sou uma covarde. Um aceno
com um dedo, creio, me faria mudar. Para um companheiro eu conseguiria fugir,
mesmo sangrando e em meio a gritos e apuros… Constantia encontrou um soldado.
Talvez ela tenha rezado, e suas preces foram atendidas. Ela agiu mal. Mas, ah,
como a amo por isso! Seu nome era Harry Oxford… Ela não hesitou, rompeu as
amarras, entregou-se de papel passado. Ah, moça intrépida, que pensará você de
mim? Mas não tenho nenhum Harry Whitford; estou sozinha… -’ O súbito
reconhecimento de que trocara o nome de Oxford por outro atingiu-a como uma
bofetada e a fez corar intensamente.
“O fato de os dois nomes masculinos terminarem
em ‘ford’ evidentemente torna mais fácil confundi-los, e muitos veriam nisso
uma causa suficiente, mas o verdadeiro motivo subjacente é claramente indicado
pelo autor. Num outro trecho ocorre o mesmo lapso, seguindo-se a ele a
hesitação espontânea e a repentina mudança de assunto que nos são familiares na
psicanálise e nas experiências de Jung sobre a associação, quando se toca num
complexo semiconsciente. Diz Sir Willoughby sobre Whitford, em tom
paternalista: ‘- Alarme falso. A decisão de fazer qualquer coisa fora do comum
escapa inteiramente ao pobrezinho do Vernon.’ Clara retruca: ‘- Mas, se o Sr.
Oxford - Whitford… seus cisnes vem singrando o lago, veja como são lindos
quando estão enfurecidos! Estava para lhe perguntar, quando um homem testemunha
uma admiração acentuada por outro, ele naturalmente se sente desencorajado, não
é mesmo? -’ Sir Willoughby retesou-se, compreendendo repentinamente.
“Noutra passagem ainda, Clara trai por outro
lapso seu desejo secreto de ter um relacionamento mais íntimo com Vernon
Whitford. Falando com um amigo, diz ela: ‘- Diga ao Sr. Vernon - diga ao Sr.
Whitford’.”
A concepção [1] de lapsos da fala aqui
defendida resiste à prova até mesmo nos exemplos mais triviais. Tenho podido
mostrar repetidamente que os erros mais insignificantes e óbvios da fala têm
sentido e podem ser explicados do mesmo modo que os exemplos mais notáveis. Uma
paciente que estava agindo em total desacordo com minha vontade ao programar
uma rápida viagem a Budapeste, mas que estava decidida a fazer as coisas a seu
modo, justificou-se dizendo que ficaria lá apenas três dias; entretanto,
cometeu um lapso e disse “apenas três semanas”. Estava traindo o fato de
que, a despeito de mim, preferiria passar três semanas, e não três dias, na
companhia que eu considerava inadequada para ela. - Certa noite, quis
desculpar-me por não ter buscado minha mulher no teatro e disse: “Cheguei ao
teatro às dez e dez”. Fui corrigido: “Você quer dizer dez para as dez”.
É claro que eu queria dizer dez para as dez. Depois das dez
horas, não haveria desculpa. Haviam-me dito que nos ingressos constava: o
espetáculo termina antes das dez horas. Ao chegar, encontrei o saguão de
entrada às escuras e o teatro, vazio. O espetáculo de fato terminara mais cedo
e minha mulher não havia esperado por mim. Quando consultei o relógio, eram
apenas cinco para as dez. Mas decidi apresentar minha situação de modo mais
favorável ao chegar em casa e dizer que ainda faltavam dez para as dez.
Infelizmente, meu lapso estragou meu plano e expôs minha insinceridade,
fazendo-me confessar mais do que havia para ser confessado.
Isso nos leva às perturbações da fala que já
não podem ser descritas como lapsos, pois o que afetam não é a palavra isolada,
mas sim o ritmo e a enunciação do dito inteiro: perturbações como, por exemplo,
os balbucios e gaguejos causados pelo embacaço. Mas também nesse caso, como nos
anteriores, a questão é um conflito interno que nos é denunciado pela
perturbação da fala. Realmente não creio que alguém cometesse um lapso da fala
numa audiência com Sua Majestade, numa declaração de amor feita com seriedade
ou ao defender sua honra e seu nome diante de um júri - em suma, em todas as
ocasiões em que a pessoa se entrega de corpo e alma, como diz a significativa
expressão. Mesmo ao avaliar o estilo de um autor, temos o direito e o hábito de
aplicar o mesmo princípio elucidativo que nos é indispensável ao rastrearmos as
origens dos equívocos isolados da fala. A maneira clara e inambígua de escrever
mostra-nos que o autor está de acordo consigo mesmo; quando encontramos uma
expressão forçada e retorcida, que, segundo o apropriado dito, aponta para mais
de um alvo, ali podemos reconhecer a intervenção de um pensamento
insuficientemente elaborado, complicado, ou escutar os ecos velados da
autocrítica do autor. [1]
Desde a primeira publicação deste livro, [1]
amigos e colegas de língua estrangeira começaram a voltar sua atenção para os
lapsos da fala que puderam observar nos países em que essas línguas são
faladas. Como era de se esperar, descobriram que as leis que regem os atos
falhos independem do material lingüístico, e fizeram as mesmas interpretações
aqui ilustradas através de exemplos de falantes da língua alemã. Dentre os
inúmeros exemplos, incluo apenas um:
Conta o Dr. A.A. Brill (1909), de Nova Iorque,
a seu próprio respeito: “Um amigo me descreveu um doente dos nervos e quis
saber se eu poderia ajudá-lo. Observei: ‘Creio que, com o tempo, eu poderia
eliminar todos os sintomas dele pela psicanálise, porque é um caso durável
[durable]’ - querendo dizer ‘curável [curable]’!”
Para concluir, [1] em prol dos leitores que
estão dispostos a fazer um certo esforço e não desconhecem a psicanálise,
acrescentarei um exemplo capaz de mostrar a que profundezas da alma pode
conduzir a investigação de um lapso da fala. O exemplo foi relatado pelo Dr. Z.
Jekels (1913).
“Em 11 de dezembro, uma dama de minhas relações
interpelou-me (em polonês) de maneira um tanto desafiadora e arrogante,
dizendo: ‘Por que foi que eu disse hoje que tenho doze dedos?’ A meu pedido,
ela reproduziu a cena em que essa observação fora feita. Ela se aprontara para
sair com a filha para fazerem uma visita, e pedira à filha - um caso de demência
precoce em fase de remissão - que trocasse de blusa, o que ela fez no quarto ao
lado. Ao voltar, a filha encontrou a mãe ocupada em limpar as unhas,
seguindo-se a seguinte conversa:
“Filha: ‘Está vendo? Agora já estou pronta, e
você, não!’
“Mãe: ‘É, mas você só tem uma blusa, e eu, doze
unhas.’
“Filha: ‘O quê?’
“Mãe (impaciente): ‘Ora, naturalmente, pois eu
tenho doze dedos.‘
“Um colega que ouvira essa história junto
comigo perguntou a ela o que ocorria em relação a doze. Ela respondeu de
modo igualmente rápido e decidido: ‘Para mim, doze não é nenhuma data
(importante).’
“Para dedo, ela forneceu a seguinte
associação, depois de hesitar um pouco: ‘Na família do meu marido, houve quem
nascesse com seis dedos nos pés (o polonês não tem um termo específico para Zehe
[dedos dos pés]). Quando nossos filhos nasceram, foram imediatamente examinados
para ver se tinham seis dedos.’ Por motivos externos, não se prosseguiu na
análise nessa noite.
“Na manhã seguinte, 12 de dezembro, a dama me
visitou e disse, visivelmente agitada: ‘Sabe o que me aconteceu? Há cerca de
vinte anos tenho enviado congratulações ao velho tio de meu marido por seu
aniversário, que é hoje, e sempre lhe escrevo uma carta no dia 11. Desta vez,
esqueci e acabo de ter que enviar-lhe um telegrama.’
“Lembrei-me, e recordei a essa dama, quão
decididamente ela havia descartado, na noite anterior, a pergunta de meu colega
a respeito do número doze, que decerto era muito apropriada para lembrá-la
desse aniversário, com a observação de que o doze não era para ela nenhuma data
importante.
“Ela então admitiu que esse tio de seu marido
era um homem rico, de quem, na verdade, ela sempre esperava herdar alguma
coisa, muito especialmente na situação de aperto financeiro por que estava
passando agora. Fora ele, por exemplo, ou melhor, a morte dele, que lhe
ocorrera de imediato alguns dias antes, quando uma conhecida lhe profetizara
pelas cartas que ela receberia uma grande soma em dinheiro. Passou-lhe de
imediato pela cabeça que o tio era o único de quem ela ou seus filhos poderiam
receber dinheiro; e essa mesma cena também a fez recordar, instantaneamente,
que a mulher desse tio certa vez prometera lembrar-se dos filhos dela em seu
testamento. Nesse ínterim, porém, a tia morrera sem deixar testamento; teria
ela deixado essa incumbência ao marido?
“É evidente que o desejo de morte contra o tio
deve ter surgido com enorme intensidade, pois ela dissera à amiga que fez a
profecia: ‘Você induz as pessoas a matarem outras.’ Nos quatro ou cinco dias
decorridos entre a profecia e o aniversário do tio, ela consultou seguidamente
o obituário dos jornais da cidade em que ele morava, à procura da notícia de
sua morte. Não surpreende, portanto, tendo em vista a intensidade do desejo de
que ele morresse, que o fato e a data do aniversário que ele estava prestes a
celebrar fossem tão intensamente suprimidos a ponto não só de fazê-la esquecer
um propósito levado a cabo durante anos, mas também de fazer com que nem sequer
a pergunta de meu colega conseguisse trazê-lo a sua consciência.
“No lapso ‘doze dedos’, o ‘doze’ suprimido veio
à tona e ajudou a determinar o ato falho. Digo ‘ajudou a determinar’
porque a notável associação com ‘dedos’ permite-nos suspeitar da existência de
outras motivações; ela também explica porque o ‘doze’ falseou exatamente essa
expressão inocentíssima, ‘dez dedos’. A associação fora: ‘Na família do meu
marido, houve quem nascesse com seis dedos nos pés.’ Seis dedos são o sinal de
determinada anormalidade. Portanto, seis dedos significam um filho
anormal, e doze dedos, dois filhos anormais. E de fato era esse o caso.
Essa dama se casara muito jovem, e a única herança que lhe foi deixada pelo
marido - sempre considerado um homem excêntrico e anormal, que tirou a própria
vida pouco depois de se casar com ela - foram duas filhas que os médicos
repetidamente definiam como anormais e como vítimas de grave doença hereditária
vinda do pai. Recentemente, a filha mais velha voltara para casa depois de um
grave ataque de catatonia; pouco depois, a mais nova, agora na puberdade,
também caiu doente, vítima de uma neurose grave.
“O fato de a anormalidade das filhas
vincular-se aqui ao desejo da morte do tio, e de se condensar com esse elemento
muito mais intensamente suprimido e de valência psíquica maior, permite-nos supor
a existência de um segundo determinante para o lapso da fala, qual seja, o desejo
de morte contra as filhas anormais.
“Mas o sentido predominante do doze com desejo
de morte já é indicado pelo fato de que o aniversário do tio estava muito
intimamente associado, nas representações da narradora, com a idéia da morte
dele. Ocorre que seu marido se suicidara num dia 13, isto é, um dia depois do
aniversário do tio; e a mulher do tio dissera à jovem viúva: ‘Ontem ele o
estava felicitando, tão efusivo e amável, e hoje…!’
“Cabe-me acrescentar que, além disso, essa dama
tinha motivos bastante reais para desejar a morte de suas filhas, pois estas
não lhe davam nenhuma alegria, apenas tristeza e graves restrições a sua
independência, e por causa delas ela havia renunciado a toda e qualquer
felicidade amorosa. Também nessa ocasião, ela fizera um esforço extraordinário
para evitar à filha com quem ia fazer a visita qualquer motivo de
aborrecimento; e bem podemos imaginar quanta paciência e abnegação são exigidas
por um caso de demência precoce, e quantos impulsos de raiva têm de ser
suprimidos nesse processo.
“Conseqüentemente, o sentido do ato falho
seria:
‘Que morra o tio, que morram essas filhas
anormais (toda essa família anormal, por assim dizer), e que eu fique com o
dinheiro deles.’
“Esse ato falho, a meu ver, tem vários traços
de uma estrutura incomum:
“(a) A presença de dois determinantes,
condensados num único elemento.
“(b) A presença dos dois determinantes,
refletiu-se na duplicação do lapso da fala (doze unhas, doze dedos).
“(c) É notável que um dos sentidos do
‘doze’, ou seja, os doze dedos que expressavam a anormalidade das filhas,
represente uma forma de figuração indireta; a anormalidade psíquica foi aqui
representada pela anormalidade física, e a parte superior do corpo, pela
inferior.”
CAPÍTULO VI - LAPSOS DE LEITURA E
LAPSOS DE ESCRITA
Quanto aos erros na leitura e na escrita,
constatamos que os mesmos pontos de vista e observações aplicados aos equívocos
na fala também são válidos, o que não é de surpreender, considerando-se o
íntimo parentesco entre essas funções. Limitar-me ei a relatar aqui alguns
exemplos cuidadosamente analisados, e não farei nenhuma tentativa de abarcar
todos os aspectos dos fenômenos.
(A) LAPSOS DE LEITURA
(1)Eu estava sentado num café, folheando um
número do Leipziger Illustrierete [um semanário ilustrado], que eu
segurava inclinado diante de mim, quando li a seguinte legenda sob uma
fotografia que se estendia por toda a página: “Cerimônia de Casamento na Odyssee
[Odisséia].” Com a atenção despertada e surpreso, endireitei a revi
sta e corrigi meu erro: “Cerimônia de Casamento
no Ostsee [Báltico].” Como fui cometer esse erro absurdo de leitura?
Meus pensamentos voltaram-se prontamente para um livro de Ruths (1898), Experimentaluntersuchungen
über Musikphantome…, que me ocupara muito nestes últimos tempos, pois toca
de leve nos problemas psicológicos de que venho tratando. O autor prometeu que
em breve publicaria um livro a ser chamado “Análise e Princípios dos Fenômenos
Oníricos”. Não surpreende que, tendo acabado de publicar uma Interpretação
dos Sonhos, eu aguarde esse livro com o máximo interesse. Na obra de Ruths
sobre os fantasmas da música encontrei, no começo do índice, o anúncio de uma demonstração
indutiva detalhada de que os mitos e lendas dos antigos gregos tiveram sua
principal raiz nos fantasmas do sono e da música, nos fenômenos dos sonhos e
também nos delírios. Mergulhei imediatamente no texto para verificar se ele
também percebera que a cena em que Odisseu surge diante de Nausícaa deriva do
sonho comum de estar nu.Um amigo me chamara a atenção para o belo trecho do Der
Grüne Heinrich, de Gottfried Keller, que explica esse episódio da Odisséia
como uma representação objetiva dos sonhos de um navegante que vagava longe de
sua terra natal; e eu havia assinalado a relação com os sonhos exibicionistas
de estar nu. Não encontrei nada sobre o assunto no livro de Ruths. Nesse
exemplo, é óbvio que meus pensamentos estavam voltados para questões de
prioridade.
(2)Como posso um dia ter lido num jornal: “Im
Fass [num barril] pela Europa”, em vez de “Zu Fuss [a pé]”? A
solução desse problema custou-me prolongadas dificuldades. É verdade que as
primeiras associações indicaram que o que eu tinha em mente devia ser o barril
de Diógenes, e eu estivera lendo recentemente sobre a arte da época de
Alexandre numa história da arte. Daí foi fácil lembrar o célebre dito de
Alexandre: “Se eu não fosse Alexandre, gostaria de ser Diógenes.” Veio-me
também uma vaga lembrança de um certo Hermann Zeitung, que dera para viajar
embalado num caixote. Mas a seqüência de associações recusou-se a prosseguir, e
não consegui reencontrar a página da história da arte em que aquela observação
me saltara aos olhos. Só depois de muitos meses foi que voltou de repente a me
ocorrer esse problema, que eu deixara de lado, dessa vez acompanhado de sua
solução. Lembrei-me do comentário de um artigo de jornal sobre os estranhos
meios de transporte [Beförderung] que as pessoas estavam escolhendo para
irem à Exposição Internacional de Paris [de 1900]; e o trecho prosseguia, creio
eu, com o relato divertido de como um cavalheiro pretendia fazer-se levar a
Paris rolando dentro de um barril, empurrado por outro cavalheiro.
Naturalmente, essas pessoas não tinham outro motivo senão o de chamar a atenção
sobre si mesmas com essas loucuras. Hermann Zeitung era, de fato, o nome do
homem que dera o primeiro exemplo de tais métodos extraordinários de
transporte. Ocorreu-me então que, certa vez, tratei de um paciente cuja
angústia patológica ante a leitura de jornais veio a se esclarecer como uma
reação contra sua ambição patológica de se ver em letras de imprensa e
ler sobre sua fama nos jornais. Alexandre da Macedônia foi, sem dúvida, um dos
homens mais ambiciosos que já existiram. Chegou a se queixar de que não
houvesse um Homero para cantar suas façanhas. Mas como poderia eu ter deixado
de lembrar que há outro Alexandre mais chegado a mim, que Alexandre é o
nome de meu irmão mais moço? Descobri então, de imediato, o pensamento
escandaloso que tivera de ser recalcado a respeito desse outro Alexandre, e o
que ocasionara isso na situação atual. Meu irmão é especialista em questões
relacionadas com tarifas e transportes e, em certa época, esteve para receber
o título de professor por suas atividades docentes numa escola comercial.
Vários anos antes, meu próprio nome fora sugerido na universidade para essa
mesma promoção [Beförderung], sem que eu a obtivesse. Na época, nossa
mãe expressou sua estranheza de que seu filho mais novo chegasse a professor
antes do mais velho. Era essa a situação na época em que não pude resolver meu
lapso de leitura. Posteriormente, meu irmão também deparou com dificuldades;
suas perspectivas de chegar a professor tornaram-se ainda menores do que as
minhas. Mas, nesse ponto, o sentido do lapso de leitura ficou repentinamente
claro para mim, era como se a redução das perspectivas de meu irmão tivesse
afastado um obstáculo. Eu me havia comportado como se estivesse lendo a nomeação
de meu irmão no jornal e dizendo a mim mesmo: “Como é estranho que se possa ser
citado no jornal (i.e., ser nomeado professor) por essas bobagens (como as que
ele faz por profissão)!” Depois disso, não tive dificuldade em encontrar o
trecho sobre a arte helênica na época de Alexandre e, para minha surpresa,
convenci-me de que, durante minha busca anterior, eu lera repetidamente partes
da mesma página e, em todas as vezes, saltara a frase pertinente, como se
estivesse dominado por uma alucinação negativa. Essa frase, porém, não continha
nada que pudesse esclarecer-me ou que merecesse ser esquecido. Creio que o
sintoma de não conseguir encontrar o trecho no livro formou-se apenas para me
despistar. Cabia-me procurar uma continuação da seqüência de pensamentos ali
onde minhas investigações esbarravam num obstáculo, isto é, em alguma idéia
ligada a Alexandre da Macedônia, e desse modo eu seria mais eficazmente
desviado de meu irmão do mesmo nome. O recurso foi perfeito: todos os meus
esforços foram orientados para redescobrir o trecho perdido na história da
arte.
Nesse caso, o duplo sentido da palavra “Beförderung”
[“transporte” e “promoção”] forma a ponte associativa entre os dois complexos;
o complexosem importância, despertado pela notícia do jornal, e o mais interessante,
mas objetável, que aqui se impôs sob a forma de uma perturbação da leitura. Por
esse exemplo se percebe que nem sempre é fácil explicar ocorrência como esse
equívoco na leitura. Ás vezes somos até forçados a adiar a solução do problema
para uma época mais favorável. No entanto, quanto mais difícil se revela o
trabalho de solucioná-lo, maior é a certeza com que se pode prever que o
pensamento perturbador finalmente descoberto será julgado por nosso pensamento
consciente como algo que lhe é estranho e contrário.
(3)Um dia, recebi uma carta das imediações de
Viena com uma notícia que me abalou. Chamei prontamente minha mulher e lhe
comuniquei que “die arme [a pobre] Wilhelm M.” estava muito doente, a
ponto de os médicos terem perdido as esperanças. Mas algo deve ter soado falso
nas palavras que escolhi para exprimir meu pesar, pois minha mulher ficou
desconfiada, pediu para ver a carta e manifestou sua convicção de que não podia
ser isso, pois ninguém se referia a uma mulher pelo prenome do marido e, de
mais a mais, a remetente da carta conhecia perfeitamente o nome da mulher.
Defendi obstinadamente minha afirmação e fiz referência ao costume corriqueiro,
nos cartões de visita, de as mulheres se designarem pelo prenome do marido. Por
fim, vi-me forçado a pegar a carta, e o que lemos nela, de fato, foi “der
arme W.M.”, ou melhor, algo ainda mais claro, que eu omitira por completo: “der
arme Dr. W.M.” Meu erro de
leitura, portanto, importou numa espécie de tentativa forçada de transferir a
triste notícia do marido para a mulher. O título entre o artigo e o nome
adjetivado não se adequava bem a minha pretensão de que a notícia se referisse
à mulher. Por isso, foi simplesmente eliminado na leitura. Meu motivo para
falsear a notícia, entretanto, não foi que eu simpatizasse menos com a mulher
do que com o marido, mas sim que o destino desse pobre homem havia despertado
minha inquietação acerca de outra pessoa, muito chegada a mim, que com ele
compartilhava o que eu sabia ser um dos determinantes da doença.
(4) Irritante e ridículo é um lapso de leitura
que tendo a cometer sempre que, em minhas férias, ando pelas ruas de alguma
cidade desconhecida. Nessas ocasiões, leio como “Antigüidades” todos os
letreiros de loja que dealgum modo se assemelham a essa palavra. Nisso se
manifesta o gosto do colecionador pela aventura.
(5) Bleuler relata, em seu importante livro Affektivität,
Suggestibilität, Paranoia (1906, 121): “Certa vez, enquanto lia, tive a
sensação intelectual de estar vendo meu nome duas linhas mais abaixo. Para
minha surpresa, só encontrei ali a palavra ‘Blutkörperchen [corpúsculos
sangüíneos]’. Entre os muitos milhares de lapsos de leitura que já analisei,
tanto no campo visual periférico quanto no central, este é o exemplo mais
crasso. Todas as vezes que acreditei ver meu nome, a palavra que ocasionou isso
costumava ser muito mais semelhante a ele, e, na maioria dos casos, cada uma
das letras de meu nome tinha de estar presente ali por perto para que eu
pudesse cometer esse erro. Neste caso, entretanto, o delírio de auto-referência
e a ilusão puderam ser explicados com muita facilidade: o que eu acabara de ler
era o final de um comentário sobre certo tipo de estilo precário nos trabalhos
científicos, do qual eu não me sentia livre.”
(6) Hanns Sachs diz ter lido: “Ele passa, com
seu ‘Steifleinenheit [pedantismo]’, pelas coisas que chocam as pessoas.”
“Essa palavra”, prossegue Sachs, “chamou minha atenção e, ao olhar mais
atentamente, descobri que era ‘Stilfeinheit [fineza de estilo]’. O
trecho ocorria em meio a algumas observações feitas por um autor a quem eu
admirava e que enalteciam efusivamente um historiador que não me é simpático,
pois exibe em demasia o ‘estilo professoral alemão’.”
(7) O Dr. Marcell Eibenschütz (1911) descreve
um caso de lapso de leitura no estudo da ciência filológica. “Eu estavam
empenhado no estudo da tradição literária do Livro dos Mártires,
compilação de lendas do período médio do alto alemão que eu resolvera editar na
coleção de ‘Textos Medievais Alemães’ publicada pela Academia Prussiana de
Ciências. Sabia-se muito pouco sobre essa obra, que nunca fora impressa; havia
sobre ela um único ensaio, da autoria de Joseph Haupt (1872, 101 e segs.).
Haupt não baseou seu trabalho no manuscrito antigo, mas numa cópia da fonte
principal, o Manuscrito C (Klosterneuburg), cópia esta feita em época
relativamente recente (no século XIX) e preservada na Hofbibliothek [Biblioteca
Imperial]. No fim da cópia encontra-se a seguinte subscrição:
“’Anno Domini MDCCCL in vigilia exaltacionis
sancte crucis ceptus est iste liber et in vigilia pasce anni subsequentis
finitus cum adiutorio omnipotentis per me Hartmanum de Krasna tunc temporis
ecclesie niwenburgensis custoden.
“Ora, em seu ensaio, Haupt cita essa subscrição
como sendo proveniente do próprio autor de C e supõe que C. foi escrito em
1350, com um conseqüente erro de leitura da data de 1850, escrita em algarismos
romanos, apesar de ter copiado a subscrição corretamente e de a data ter sido
corretamente impressa no ensaio (i.e. MDCCCL) no trecho citado.
“A informação de Haupt foi para mim fonte de
muitos apuros. Em primeiro lugar, como completo principiante no mundo da
ciência, eu estava totalmente dominado pela autoridade de Haupt, e por muito
tempo li na subscrição diante de mim, impressa com perfeita clareza e correção
1350 em vez de 1850, tal como fizera Haupt, muito embora não houvesse nenhum
vestígio da subscrição no Manuscrito C utilizado por mim, e embora também se
verificasse que nenhum monge de nome Hartman vivera em Klosterneuburg em todo o
século XIV. Quando enfim caiu a venda de meus olhos, adivinhei o que havia
acontecido, e as investigações posteriores confirmaram minha suspeita. A tão
mencionada subscrição, na verdade, encontra-se apenas na cópia utilizada
por Haupt e é obra de um copista, P. Hartman Zeibig, que nasceu em Krasna, na
Morávia, foi Mestre do coro agostiniano em Klosterneuburg e, como sacristão do
mosteiro, fez uma cópia do Manuscrito C, registrando seu nome no final, à
maneira antiga. A fraseologia medieval e a ortografia antiquada da subscrição
sem dúvida contribuíram para induzir Haupt a ler sempre 1350, em vez de 1850,
juntando-se o seu desejo de poder dizer aos leitores o máximo possível
sobre a obra que estava examinando e, portanto, também de datar o Manuscrito
C. (Foi esse o motivo do ato falho.)
(8) Em Witzige und Satirische Einfälle,
de Lichtenberg [1853], há um comentário que sem dúvida provém da observação e
contém quase que a teoria completa dos lapsos de leitura: “Ele tanto lera
Homero que sempre lia ‘Agamemnon‘ onde constava ‘angenommen
[suposto]’.”
Ocorre que, num imenso número de casos [1] é a
predisposição do leitor que altera a leitura e introduz no texto algo que
corresponde a suas expectativas ou que o está ocupando. A única contribuição
que o próprio texto precisa fazer ao lapso de leitura é fornecer alguma
semelhança na imagem da palavra, que o leitor possa modificar no sentido que
quiser. Sem dúvida, a leitura apressada, especialmente quando há uma deficiência
visual não corrigida, aumenta a possibilidade de tal ilusão, mas certamente não
é uma precondição necessária.
(9)Creio que a época de guerra, que a todos nos
trouxe preocupações tão constantes e prolongadas, favoreceu mais os lapsos de
leitura do que qualquer outro ato falho. Pude observar um grande número desses
exemplos, mas, infelizmente, foram poucos os que conservei. Certo dia, peguei
um jornal do meio-dia ou vespertino e vi, impresso em grandes caracteres: “Der
Friede von Görz [A Paz de Gorízia]”. Mas não, dizia apenas: “Die Feinde
vor Görz [Os Inimigos diante de Gorízia]”. Para quem tem dois filhos
lutando justamente nesse palco de guerra, é fácil cometer tal lapso de leitura.
- Outro viu mencionado em certo contexto “eine alte Brotkarte [um velho
cartão de racionamento de pão]”; lendo mais atentamente, teve de substituir
isso por “alte Brokate [brocados antigos]”. Talvez valha a pena
mencionar que, numa casa onde costuma ser um hóspede sempre bem recebido, esse
homem tem o hábito de agradar a dona da casa cedendo-lhe seus cartões de
racionamento de pão. - Um engenheiro cujo equipamento nunca resistia por muito
tempo à umidade de um túnel em construção leu, para sua surpresa, um anúncio em
que se elogiavam certos artigos de “Schundleder [couro estragado]”. Mas
os comerciantes raramente são tão francos; os artigos cuja compra se
recomendava eram de “Seehundleder [couro de foca]”
Também a profissão ou a situação atual do
leitor determinam o resultado de seu lapso de leitura. Um filólogo que, por
causa de seus últimos excelentes trabalhos, entrou em conflito com seus colegas
de profissão, leu “Sprachstrategie [estratégia lingüística]” em lugar de
“Schachstrategie [estratégia enxadrística]”. - Um homem que passeava por
uma cidade estrangeira justamente no horário em que sua atividade intestinal
estava programada para ocorrer, em virtude de um tratamento médico, leu a
palavra “Klosetthaus [casa de banheiros]” num grande letreiro no
primeiro andar de um prédio comercial alto; sua satisfação mesclou-se, sem dúvida,
com uma certa surpresa ante a localização insólita do benéfico estabelecimento.
No momento seguinte, porém, a sua satisfação desapareceu, pois o letreiro,
corretamente lido, dizia “Korsetthaus [casa de espartilhos]”.
(10)Num segundo grupo de casos, é muito maior a
participação do texto no lapso de leitura. Ele contém algo que mexe com as
defesas do leitor - alguma comunicação ou exigência que lhe é penosa - e que,
por isso mesmo, é corrigida pelo lapso de leitura, no sentido de um repúdio ou
uma realização de desejo. Nesse casos, evidentemente, somos forçados a presumir
que, de início, o texto foi corretamente entendido e julgado pelo leitor, antes
de passar pela retificação, embora sua consciência nada tenha sabido dessa
primeira leitura. O exemplo (3), algumas páginas atrás [em [1]], é desse tipo;
e aqui incluo um outro, muito atual, narrado por Eitingon (1915), que na época
estava no hospital militar de Igló.
“O tenente X., que está em nosso hospital
sofrendo de uma neurose traumática de guerra, lia para mim certo dia um poema
de Walter Heymann, tão prematuramente morto em combate, e, com visível emoção,
assim leu os versos finais da última estrofe:
Wo
aber steht’s geschrieben, frag’ ich, dass von allenIch übrig bleiben soll, ein
anderer für mich fallen?Wer immer von euch fällt, der stirbt gewiss für
mich;Und ich soll übrig bleiben? Warum denn nicht? [Mas onde está
escrito, pergunto, que de todosDevo eu sobreviver, que outro há de cair por
mim?O que tomba dentre vós, decerto é por mim que morre;E devo eu permanecer? Por
que não?]
“Com a atenção despertada por minha surpresa e
parecendo um pouco confuso, ele leu então corretamente o último verso:
Und
ich soll übrig bleiben? Warum denn ich?
[E devo eu permanecer? Por que eu?]
“Devo ao caso X certo discernimento analítico
sobre o material psíquico dessas ‘neuroses traumáticas de guerra’ e, apesar das
condições vigentes numhospital militar, com sua intensa sobrecarga e sua
escassez de médicos - circunstâncias tão desfavoráveis para nossa maneira de
trabalhar -, foi-me possível enxergar um pouco além das explosões de granadas,
levadas em tão alta conta como ‘causa’ da doença.
“Também nesse caso havia os tremores intensos
que dão aos casos pronunciados dessas neuroses uma semelhança que é tão notável
à primeira vista, bem como inquietação, tendência ao choro e propensão a
acessos de raiva, acompanhados de manifestações motoras infantis convulsivas, e
a vômitos (‘ante a menor excitação’).
“A natureza psicogênica deste último sintoma,
sobretudo por sua contribuição para o lucro secundário da doença, não podia
deixar de se evidenciar a todos: o aparecimento, na enfermaria, do comandante
do hospital, que de tempos em tempos inspecionava os convalescentes, ou a
observação de algum conhecido na rua - ‘Você está mesmo com ótimo aspecto,
certamente já deve estar bom’ - eram o bastante para desencadear um acesso
imediato de vômito.
“’Curado… voltar à ativa … por que eu?’”
(11) O Dr. Hanns Sachs (1917) relatou outros
casos de lapsos “de guerra” na leitura:
“Um conhecido muito próximo me declarara
repetidamente que, quando chegasse sua vez de ser convocado, não se valeria de
sua formação profissional, atestada por um diploma, e renunciaria a qualquer
direito que isso lhe assegurasse de obter emprego na retaguarda, alistando-se
para lutar na frente de batalha. Pouco antes da chegada efetiva da data da
convocação, ele me disse um dia, da maneira mais lacônica possível e sem
fornecer maiores razões, que submetera as provas de sua formação superior às
autoridades competentes e, por conseguinte, logo seria designado para um cargo
na indústria. No dia seguinte, encontramo-nos casualmente numa repartição
pública. Eu estava diante de uma escrivaninha e escrevia; ele entrou, olhou por
um momento por cima de meu ombro e disse: ‘Ah! a palavra ali em cima é “Druckbogen
[prova tipográfica]” - eu a tinha lido como se fosse ‘Drückeberger
[covarde]’.”
(12)“Sentado no bonde, eu ia refletindo sobre o
fato de que muitos de meus amigos da juventude, sempre considerados frágeis e
sem energia, eram agora capazes de suportar os trabalhos mais estafantes, aos
quais,com toda certeza, eu sucumbiria. Em meio a essa desagradável seqüência de
pensamentos, li de passagem, sem prestar muita atenção, as grandes letras
pretas do letreiro de uma firma: ‘Constituição de ferro‘
[Eisenkonstitution]. Passado um momento, ocorreu-me que essa palavra não
era muito própria do letreiro de uma empresa comercial; virei-me rapidamente e
ainda consegui dar uma olhadela na inscrição, vendo que de fato dizia ‘Construção
de ferro [Eisenkonstruktion]’.” (Sachs, ibid.)
(13)“Nos jornais vespertinos saiu um despacho
da agência Reuter, que logo se revelou incorreto, comunicando que Hughes fora
eleito presidente dos Estados Unidos. Seguia-se a isso um breve relato de
carreira do suposto presidente, onde deparei com a informação de que Hughes se
havia formado na Universidade de Bonn. Pareceu-me estranho que esse fato
não tivesse sido mencionado nos debates jornalísticos de todas as semanas que
antecederam o dia da eleição. Olhando melhor, vi que de fato o texto só fazia
referência à Universidade Brown [em Providence, Rhode Island, Estados
Unidos]. Esse caso crasso, em que a produção do lapso de leitura tornara
necessária uma distorção bastante violenta, esclareceu-se, afora minha pressa
em ler o jornal, principalmente por eu considerar desejável que a simpatia do
novo presidente pelas potências centrais européias, como base de boas relações
futuras, se fundamentasse também em motivos pessoais, além dos motivos políticos.”
(Sachs, ibid.)
(B) LAPSOS DE ESCRITA
(1) Numa folha de papel contendo breves
anotações diárias, a maioria de interesse profissional, fiquei surpreso ao
encontrar entre as datas corretas do mês de setembro a data erroneamente
anotada de “quinta-feira, 20 de outubro”. Não é difícil esclarecer essa
antecipação - e esclarecê-la como a expressão de um desejo. Poucos dias antes,
eu voltara refeito de minha viagem de férias e me sentia disposto para
abundantes afazeres médicos, mas o número de pacientes ainda era reduzido. Na
chegada eu encontrara uma carta de uma paciente dizendo que viria no dia 20 de
outubro. Ao fazer uma anotação nesse mesmo dia, porém em setembro, é bem
possível que tenha pensado: “X. já deveria estar aqui; que pena desperdiçar um
mês inteiro!”, e com isso em mente antecipei a data em um mês. Nesse caso,
dificilmente sepode chamar o pensamento perturbador de escandalizante; por esse
motivo pude saber da solução do lapso de escrita assim que o notei. - No outono
do ano seguinte, cometi outro lapso de escrita inteiramente análogo, que teve
motivos semelhantes. - Ernest Jones [1911b] fez um estudo desses lapsos na
redação de datas e, na maioria dos casos, foi-lhe fácil reconhecer que tinham
motivações [psicológicas].
(2)Eu havia recebido as provas de minha
contribuição ao Jahresbericht für Neurologie und Psychiatrie e,
naturalmente, precisava fazer a revisão dos nomes dos autores com um cuidado
especial, já que eles eram de diversas nacionalidades e por isso costumavam
causar enormes dificuldades ao tipógrafo. De fato encontrei muitos nomes de som
estrangeiro que ainda precisavam ser corrigidos, mas, curiosamente, havia um
nome que o tipógrafo corrigira aperfeiçoando meu manuscrito, e com total
acerto. Eu havia escrito “Buckrhard”, enquanto o tipógrafo adivinhou que seria
“Burckhard”. De fato, eu elogiara como muito meritório o ensaio de um obstetra
com esse nome sobre a influência do parto na gênese das paralisias infantis, e
não tinha consciência de nenhuma objeção contra esse autor; mas ele tinha o
mesmo nome de um escritor de Viena que me aborrecera com sua resenha
poucointeligente de meu livro A Interpretação dos Sonhos. É exatamente
como-se, ao escrever o nome Burckhard para designar o obstetra, eu tivesse tido
um pensamento hostil sobre o outro Burckhard, o escritor, pois a distorção dos
nomes, com muita freqüência, é um meio de insultar seus portadores, como já
assinalei [em. [1]] a propósito dos lapsos da fala.
(3) Essa afirmação é muito claramente
confirmada por uma auto-observação de Storfer (1914) em que o autor expõe com
franqueza louvável os motivos que o fizeram lembrar-se erroneamente do nome de
um pretenso concorrente e, em seguida, escrevê-lo de maneira deturpada.
“Em dezembro de 1910, vi na vitrine de uma
livraria em Zurique um livro recém-surgido do Dr. Eduard Hitschmann
sobre a teoria das neuroses, de Freud. Justamente nessa época, eu estava
trabalhando no manuscrito de uma conferência que estava prestes a proferir numa
associação acadêmica sobre os princípios básicos da psicologia de Freud. Na
introdução já redigida da conferência, eu me referira ao desenvolvimento
histórico da psicologia freudiana a partir de suas pesquisas no campo da
psicologia aplicada, a certas dificuldades daí decorrentes para se fornecer uma
exposição resumida de seus princípios básicos, e também ao fato de que até
então ainda não havia surgido nenhuma exposição geral. Quando vi o livro (cujo
autor me era ainda desconhecido) na vitrine, inicialmente não pensei em
comprá-lo. Entretanto, alguns dias depois resolvi fazê-lo. Mas o livro já não
estava na vitrine. Mencionei ao livreiro a obra recém-publicada e indiquei como
autor o ‘Dr. Eduard Hartmann‘. O livreiro me corrigiu: ‘O senhor quer
dizer Hitschmann‘, e trouxe o livro.
“O motivo inconsciente do ato falho era óbvio.
De certa maneira, eu me atribuíra o mérito de ter compilado os princípios
básicos da teoria psicanalítica, e é evidente que encarava o livro de
Hitschmann com inveja e aborrecimento, já que ele tirava parte de meu mérito.
Disse a mim mesmo, segundo a Psicopatologia da Vida Cotidiana, que a
alteração do nome fora um ato de hostilidade inconsciente. Na ocasião, dei-me
por satisfeito com essa explicação.
“Algumas semanas depois, anotei esse ato falho.
Nessa oportunidade, perguntei-me ainda por que o nome Eduard Hitschmann se
alterara justamente para Eduard Hartmann. Teria eu sido levado ao nome
do célebre filósofo apenas por sua semelhança com o outro? Minha primeira
associação foi a lembrança de uma declaração que ouvi certa vez do professor
Hugo von Meltzl, admirador entusiástico de Schopenhauer, quedizia
aproximadamente o seguinte: ‘Eduard con Hartmann é um Schopenhauer
mal-interpretado, um Schopenhauer virado pelo avesso.’ A tendência afetiva que
havia determinado a formação substitutiva para o nome esquecido fora, portanto:
‘Ora, provavelmente não haverá grande coisa nesse Hitschmann e em sua exposição
resumida; ele deve estar para Freud assim como Hartmann para Schopenhauer.’
“Como disse, eu havia anotado esse caso de
esquecimento [psicologicamente] determinado com troca da palavra esquecida por
um substituto.
“Seis meses depois, deparei com a folha de
papel em que fizera a anotação. Observei então que, em vez de Hitschmann, eu escrevera
Hintschmann o tempo todo.”
(4) Eis o que parece ser um lapso de escrita
mais grave, que eu talvez pudesse ter classificado com igual direito entre os
“equívocos na ação” [Capítulo VIII]:
Eu pretendia retirar da Caixa Econômica Postal
a quantia de 300 coroas, que queria remeter a um parente ausente para
tratamento médico. Notei então que o saldo de minha conta era de 4.380 coroas e
decidi reduzi-lo, nessa oportunidade, para a soma redonda de 4.000 coroas, que
não deveria ser tocada no futuro próximo. Depois de preencher devidamente o
cheque e cortar os números correspondentes à quantia, percebi de repente que
não havia solicitado as 380 coroas, como pretendia, mas exatamente 438 coroas,
e fiquei abismado com a infidedignidade de minha conduta. Logo percebi que meu
espanto era injustificado: eu não ficara mais pobre do que já era antes. Mas
foi preciso um bocado de reflexão para descobrir que influência havia
perturbado minha intenção inicial, sem se revelar a minha consciência. A
princípio, rumei por caminhos falsos; tenti subtrair 380 de 438, mas depois não
soube o que fazer com a diferença. Por fim, ocorreu-me uma idéia repentina que
me mostrou a verdadeira relação. Ora, 438 correspondiam a dez por cento
do saldo total de 4.380 coroas! E um desconto de dez por cento é o que se obtém
dos livreiros. Lembrei-me que, alguns dias antes, eu separara alguns
livros de medicina em que já não estava interessado para oferecê-los a um
livreiro por exatamente 300 coroas. Ele achou alto demais o preço queeu pedira
e prometeu dar-me uma resposta definitiva dentro de alguns dias. Se ele
aceitasse minha oferta, reporia a quantia exata que eu estava para gastar com o
enfermo. Não há dúvida de que eu lamentava fazer essa despesa. O afeto que me
deixou a percepção de meu erro se compreende melhor como um medo de ficar pobre
por causa dessas despesas. Mas ambos os sentimentos, o pesar pelo gasto e a
angústia de empobrecer ligada a ele, eram inteiramente estranhos a minha
consciência; eu não tivera nenhum sentimento de pesar ao prometer essa soma, e
teria considerado risível sua motivação. É provável que jamais me acreditasse
capaz de tal emoção, não fosse por estar bastante familiarizado, através de
minha prática psicanalítica com os pacientes, com o papel desempenhado pelo recalcado
na vida anímica, e não fosse por ter tido, dias antes, um sonho que exigia a
mesma solução.
(5) Segundo Wilhelm Stekel, cito o seguinte
caso, cuja autenticidade também posso garantir.
“Um exemplo simplesmente incrível de lapso de
escrita e lapso de leitura ocorreu na redação de um semanário muito difundido.
Seus proprietários tinham sido publicamente chamados de ‘venais’;
evidentemente, fazia-se necessário escrever um artigo de repúdio e defesa. E
foi o que se fez - com grande ardor e grande ênfase. O redator-chefe leu o
artigo, enquanto o autor obviamente o leu várias vezes no manuscrito e, depois,
novamente na prova tipográfica; todos estavam plenamente satisfeitos. De
repente, vem o revisor e aponta um pequeno erro que havia escapado à atenção de
todos. Ali estava, escrito com toda clareza: ‘Nossos leitores são testemunhas
de que sempre agimos da maneira mais interessada pelo bem da
comunidade.’ É óbvio que a redação deveria ser ‘da maneira mais desinteressada‘.
Mas os verdadeiros pensamentos irromperam com força elementar no comovido
discurso.
(6) Uma leitora do Pester Lloyd, a
senhora Kata Levy, de Budapeste, deparou recentemente com uma demonstração
involuntária de franquezasemelhante a essa num telegrama de Viena, publicado no
jornal de 11 de outubro de 1918:
“Com base na completa confiança mútua que tem
prevalecido entre nós e nossos aliados alemães durante toda a guerra, pode-se
ter certeza de que as duas potências hão de chegar a decisões unânimes na
totalidade dos casos. É desnecessário mencionar expressamente que também na
presente fase tem havido uma cooperação ativa e descontínua entre os
diplomatas aliados.”
Passadas apenas algumas semanas, foi possível
pronunciar-se com maior franqueza sobre essa “confiança mútua”, não mais
havendo necessidade de refugiar-se num lapso de escrita (ou num erro de
imprensa).
(7) Um americano residente na Europa, que
deixara sua mulher em meio a um desentendimento, achou que agora poderia
reconciliar-se com ela e lhe pediu que atravessasse o oceano e fosse ter com
ele em determinada data. “Seria esplêndido”, escreveu ele, “que, como eu, você
pudesse vir no Mauretania.” Mas não ousou enviar a folha onde constava
essa frase. Preferiu escrevê-la de novo. É que ele não queria que ela reparasse
na correção que fora preciso fazer no nome do navio. Inicialmente, ele
escrevera mesmo “Lusitania”.
Esse lapso de escrita não requer explicação,
interpreta-se com perfeita clareza. Mas um feliz acaso nos permite acrescentar
mais um detalhe: antes da guerra, sua mulher visitara a Europa pela primeira
vez por ocasião da morte de sua única irmã. Se não me engano, o Mauretania
é a nave-irmã sobrevivente do Lusitania, afundado durante a guerra.
(8) Um médico havia examinado uma criança e
estava escrevendo a receita, que incluía a palavra “alcohol”. Enquanto o
fazia, a mãe da criança o importunava com perguntas disparatadas e
desnecessárias. Ele decidiu intimamente não se irritar com isso e conseguiu
realizar esse propósito, mas cometeu um lapso de escrita enquanto era
perturbado. Em vez de alcohol, lia-se na receita achol.
(9) O exemplo seguinte, relatado por Ernest
Jones [1911b, 501] sobre A.A., Brill, tem uma afinidade de conteúdo e por isso
é aqui inserido. Embora seja, de hábito, totalmente abstêmio, ele se deixou
persuadir por um amigo a beber um pouco de vinho. Na manhã seguinte, uma
violenta dor de cabeçadeu-lhe motivo para lamentar sua transigência. Coube-lhe
escrever o nome de uma paciente, que era Ethel, e, em vez disso,
escreveu Ethyl. É claro que também se deve levar em conta que a dama
costumava beber mais do que lhe convinha.
(10) Já que um lapso de escrita por parte de um
médico, ao escrever uma receita, tem uma importância que vai muito além do
costumeiro valor prático dos atos falhos [em [1]], aproveito esta oportunidade
para relatar na íntegra a única análise já publicada desse lapsos cometidos por
médicos:
Do Dr. Eduard Hitschmann (1913b): “Contou-me um
colega que, no decorrer dos anos, cometeu várias vezes um erro ao receitar
certo medicamento a suas pacientes de idade avançada. Em duas ocasiões,
receitou uma dose dez vezes maior do que a correta e em seguida viu-se
obrigado, ao se aperceber disso repentinamente, com extrema angústia ante a
idéia de ter prejudicado sua paciente e ter-se exposto a um enorme transtorno,
a tomar medidas apressadas para recuperar a receita. Esse curioso ato
sintomático merece ser esclarecido por uma descrição mais exata de cada caso e
por uma análise.
“Primeiro caso: Ao tratar de uma pobre mulher
já no limiar da senectude, o médico receitou, contra uma constipação
espasmódica, uma dose dez vezes mais forte de supositórios de beladona. Ele
deixou o ambulatório e, já em casa, cerca de uma hora depois, enquanto lia o
jornal e tomava o café da manhã, seu erro de repente lhe ocorreu; dominado pela
angústia, ele correu primeiro ao ambulatório para conseguir o endereço da
paciente, e de lá foi às pressas para a casa dela, que ficava muito afastada.
Ficou radiante ao constatar que a velhinha ainda não mandara aviar a receita e
voltou aliviado para casa. A desculpa que deu a si mesmo nessa ocasião, não sem
justificativa, foi que o chefe do ambulatório, muito conversador, ficara
olhando por sobre seu ombro enquanto ele escrevia a receita e o havia
distraído.
“Segundo caso: O médico teve de se afastar a
contragosto da consulta a uma bela paciente, coquete e provocadora, para fazer
uma visita médica a uma velha solteirona. Tomou um táxi, pois não dispunha de
muito tempo para essa visita; é que, em certo horário, tinha combinado
encontrar-se em segredo com uma jovem a quem amava, perto da casa dela. Também
aqui havia uma indicação de beladona por causa de queixas análogas às do
primeiro caso.Mais uma vez, ele cometeu o erro de receitar uma dose dez vezes
mais forte do medicamento. A paciente trouxe à baila um assunto de certo
interesse, mas que não vinha ao caso, e o médico mostrou impaciência, embora a
negasse com suas palavras, e deixou a paciente, conseguindo comparecer a tempo
ao encontro marcado. Uma doze horas depois, por volta das sete da manhã, o
médico acordou; quase simultaneamente, vieram-lhe à consciência seu lapso de
escrita e um sentimento de angústia, e ele enviou às pressas um recado à
paciente, na esperança que o remédio ainda não tivesse sido retirado da
farmácia, pedindo que a receita lhe fosse devolvida para que pudesse revê-la.
Ao recebê-la, porém, constatou que o medicamento já fora aviado; com resignação
estóica e com o otimismo nascido da experiência, dirigiu-se à farmácia, onde o
farmacêutico o tranqüilizou, explicando que, naturalmente (ou, quem sabe,
também por engano?), preparara o medicamento numa dose menor.
“Terceiro caso: O médico queria receitar uma
mistura de Tinct. belladonnae e Tinct. opii, em dose inofensiva, para
sua tia idosa, irmã de sua mãe. A receita foi imediatamente levada à farmácia
pela empregada. Pouquíssimo tempo depois, ocorreu ao médico que ele escrevera
‘extrato’ em vez de ‘tintura’, e logo em seguida o farmacêutico telefonou para
interpelá-lo sobre esse erro. O médico desculpou-se com o falso pretexto de que
não havia terminado a receita, que fora retirada às pressas de sua mesa,
inesperadamente, e portanto a culpa não era dele.
“Esses três erros de escrita têm em comum os
seguintes pontos destacados: até agora, isso só aconteceu ao médico com esse
exato medicamento; em todas as vezes, tratou-se de uma paciente feminina muito
idosa, e todas as vezes a dose foi forte demais. Uma curta análise
evidenciou que a relação do médico com sua mãe deve ter tido importância
decisiva. De fato, ocorreu-lhe que, em certa ocasião - e é extremamente
provável que tenha sido antes desses atos sintomáticos -, ele prescrevera essa
mesma receita para sua mãe, que era também uma mulher idosa, receitando uma
dose de 0,03, embora estivesse mais familiarizado com a dose usual de 0,02; e
isso, segundo disse a si mesmo, para ajudá-la de maneira radical. A reação da
frágil mãe ao medicamento foi uma congestão cefálica e uma secura desagradável
na garganta. Ela se queixou disso, aludindo num meio-gracejo aos riscos que
podem advir da consulta com um filho. De fato, houve outras ocasiões em que sua
mãe, que aliás era filha de médico, fez objeções parecidas, em tom meio jocoso,
aos medicamentos ocasionalmente recomendados pelo filho médico, e falou em
envenenamento.
“Tanto quanto este autor pôde entender as
relações desse filho com sua mãe, não há dúvida de que ele é um filho
instintivamente amoroso, mas sua avaliação intelectual da mãe e seu respeito
pessoal por ela não são nada exagerados. Ele mora na mesma casa com um irmão um
ano mais moço e com a mãe, e há anos sente essa convivência como um entrave a
sua liberdade erótica, mas sabemos pela experiência psicanalítica que se
costuma abusar de tais argumentos como desculpa para um comprometimento
[incestuoso] interno. O médico aceitou essa análise, ficando razoavelmente
satisfeito com a explicação, e sugeriu, sorrindo, que a palavra ‘belladonna‘
(i.e. mulher bonita) também poderia conter uma referência erótica.
Ocasionalmente, ele próprio já havia utilizado esse remédio.”
A meu ver, os atos falhos graves como esse se
dão exatamente da mesma maneira que os de cunho inofensivo que costumamos
investigar.
(11) O próximo lapso de escrita, relatado por
Sándor Ferenczi, há de ser considerado particularmente inocente. Pode-se
interpretá-lo como um ato de condensação proveniente da impaciência (veja-se o
lapso da fala “Der Apfe”, em [1]); e tal concepção poderia ser mantida se uma
análise aprofundada da ocorrência não revelasse um fator perturbador mais
poderoso:
“’Isso condiz com a Anektode‘,escrevi
certa vez em meu caderno de anotações. Naturalmente, queria dizer ‘Anekdote
[anedota]’, e era a do cigano condenado à morte [Tode], que pediu a
graça de poder escolher pessoalmente a árvore em que seria enforcado. (Embora
procurasse com afinco, não conseguiu encontrar nenhuma árvore adequada.)”
(12)Por outro lado, existem ocasiões em que o
mais insignificante lapso de escrita pode expressar um perigoso sentido
secreto. Conta um correspondente anônimo:
“Terminei uma carta com estas palavras:
‘Herzlichste Grüsse an Ihre Frau Gemahlin und ihren Sohn.’ Quando ia
colocando a folha no envelope, reparei no erro cometido na primeira letra de
‘ihren’ e o corrigi. Ao voltar para casa depois de minha última visita a esse
casal, a dama que me acompanhava observou que o filho tinha uma semelhança
notável com um amigo da família, e seguramente seria filho dele.”
(13) Uma dama enviou à irmã algumas linhas com
votos de felicidades por sua mudança para uma casa nova e espaçosa. Uma amiga
que estava presente reparou que a autora da carta pusera nesta o endereço
errado, que nem sequer correspondia ao da casa que a irmã tinha acabado de
deixar, mas à primeira casa que ela tivera logo depois de casar e de onde se
mudara há muito tempo. A amiga chamou-lhe a atenção para o lapso. “Você tem
razão”, teve ela de confessar: “mas como foi que cheguei a isso? Por que agi
assim?” “É provável”, disse a amiga, “que você esteja com inveja da casa grande
e bonita que ela terá agora, enquanto você mesma se sente num espaço apertado,
e por isso a recolocou na primeira casa, onde ela não estava melhor do que
você.” “Certamente sinto inveja da nova casa dela”, confessou a outra com
franqueza, e acrescentou: “Que pena a gente ser sempre tão mesquinha nessas
coisas!”
(14) Ernest Jones [1911b, 499] relata o
seguinte lapso de escrita que lhe foi fornecido por A.A. Brill:
“Um paciente enviou ao Dr. Brill um texto em
que se empenhava em atribuir seu nervosismo a suas preocupações e inquietações
com seus negócios durante uma crise do algodão: ‘Todos os meus problemas se
devem a essa maldita onda de frio [frigid wave]; não existem nem mesmo
sementes.’ (Por ‘wave‘, naturalmente, ele pretendia referir-se a uma
onda, uma tendência do mercado financeiro.) Na realidade, porém, o que escreveu
não foi ‘onda’, mas sim ‘mulher’ [frigid wife]. No fundo de seu coração
ele abrigava ressentimentos contra a mulher por sua frieza conjugal e por não
lhe ter dado filhos, e não estava longe de reconhecer que sua vida de
abstinência forçada desempenhava um grande papel na causação de seus
sofrimentos.”
(15) Conta o Dr. R. Wagner (1911) a seu próprio
respeito:
“Ao reler um velho caderno de apontamentos,
percebi que, na pressa de fazer as anotações, eu cometera um pequeno lapso. Em
vez de ‘Epithel [epitélio]’, havia escrito ‘Edithel‘. Acentuando
a primeira sílaba, tem-se o diminutivo de um nome de mulher. A análise
retrospectiva é bastante simples. Na época em que cometi o lapso, meu
conhecimento da portadora desse nome era muito superficial, e só bem mais tarde
é que se transformou num relacionamento íntimo. O lapso de escrita é, portanto,
um belo exemplo de irrupção da atração inconsciente que senti por ela numa
época em que eu mesmo não tinha a menor idéia disso, e a forma escolhida do
diminutivo caracterizou,ao mesmo tempo, a natureza dos sentimentos
concomitantes.”
(16)Da Dra. von Hug-Hellmuth (1912):
“Um médico receitou a uma paciente ‘Leviticowasser
[água levítica]’, em vez de “Levicowasser’. Esse erro, que deu a um
farmacêutico uma bela oportunidade para tecer comentários desfavoráveis, pode
facilmente ser encarado de maneira mais benévola quando se buscam suas
possíveis motivações do inconsciente, e quando se está disposto a conceder-lhes
certa plausibilidade - ainda que sejam apenas conjecturas subjetivas de alguém
que não conhece o médico de perto. A despeito de recriminar seus pacientes numa
linguagem um tanto dura por seus hábitos alimentares pouco racionais - de
fazer-lhes sermões [‘die Leviten Lesen‘], por assim dizer -, esse médico
gozava de grande popularidade, de modo que sua sala de espera ficava lotada
antes e durante os horários de consulta; e isso justificava seu desejo de que
os pacientes já atendidos se vestissem o mais depressa possível - ‘vite,
vite‘ [‘rápido, rápido’, em francês]. Se bem me lembro, sua mulher era
francesa de nascimento, o que confere certo apoio a minha hipótese
aparentemente muito ousada de que ele usasse justamente o francês em seu
desejo de que os pacientes tivessem maior agilidade. Aliás, é hábito de muitas
pessoas recorrerem a palavras estrangeiras para expressar esses desejos: meu
próprio pai nos apressava em nossos passeios, quando crianças, exclamando ‘avanti
gioventú‘ [‘avante, juventude’, em italiano] ou ‘marchez au pas‘
[‘em frente, marche’, em francês]; já um médico muito idoso com quem estive em
tratamento por uma afecção da garganta quando menina, costumava tentar inibir
meus movimentos, que lhe pareciam rápidos demais, murmurando um tranqüilizante
‘piano, piano‘ [‘devagar, devagar’, em italiano]. Assim, parece-me muito
plausível que também o outro médico tivesse o mesmo hábito e assim cometesse o
lapso de escrita, usando ‘Leviticowasser‘ em vez de ‘Levicowasser‘.”
O mesmo texto contém outros exemplos extraídos
de lembranças da juventude da autora (“frazösisch” em vez de “französisch”
e um lapso na redação do nome “Karl”).
(17) Sou grato ao Sr. J.G., que também
contribuiu com um exemplo já mencionado, pelo seguinte relato de um lapso de
escrita cujo conteúdo éidêntico ao de um famoso chiste de mau gosto, mas do
qual estava definitivamente excluída qualquer intenção de fazer piada:
“Quando era paciente de um sanatório (de
doenças pulmonares), fiquei sabendo, para meu pesar, que a mesma doença que me
forçara a buscar tratamento numa casa de saúde fora constatada num parente
próximo. Numa carta a esse parente, recomendei-lhe que consultasse um especialista,
um professor famoso com quem eu mesmo estava em tratamento e de cuja autoridade
médica estava plenamente convencido, ao mesmo tempo que tinha todas as razões
para me queixar de sua falta de cortesia: pouco tempo antes, o referido
professor se recusara a lavrar-me um atestado que tinha grande importância para
mim. Em sua resposta a minha carta, meu parente chamou-me a atenção para um
lapso da pena que me divertiu muitíssimo, posto que reconheci sua causa de
imediato. Em minha carta eu usara a seguinte frase: ‘… assim, eu o aconselho insultar
sem demora o Professor X.’ É claro que pretendera escrever ‘consultar‘.
Talvez eu deva assinalar que meus conhecimentos de latim e francês excluem a
possibilidade de explicar isso como um erro devido à ignorância.”
(18) As omissões na redação, naturalmente,
podem ser avaliadas da mesma maneira que os lapsos de escrita. Dattner (1911)
relatou um curioso exemplo de “ato falho histórico”. Num dos artigos do acordo
ajustado entre a Áustria e a Hungria no ano de 1867 sobre as obrigações
financeiras de ambos os Estados, a palavra “efetivo” foi omitida da tradução
húngara, e Dattner considera provável que a tendência inconsciente dos
redatores do legislativo húngaro a concederem o mínimo possível de vantagens à
Áustria tenha contribuído para essa omissão.
Temos também todos os motivos para supor [1]
que as repetições muito freqüentes de uma mesma palavra ao escrever ou copiar -
as “perseverações” - não deixam de ter sentido. Se a pessoa que escreve repete
uma palavra que já escreveu, talvez queira assinalar com isso que não lhe foi
fácil livrar-se dela, que poderia ter dito algo mais nesse ponto, mas que o
omitiu, ou coisa semelhante. A perseveração ao copiar parece substituir a
exteriorização de um “eu também”. Tive em mãos extensos pareceres médico-legais
que exibiam perseverações do copista em trechos particularmente importantes,as
quais se poderiam interpretar como se ele, entediado com seu papel impessoal,
introduzisse seu próprio comentário: “É exatamente o meu caso”, ou “o mesmo
acontece conosco”.
(19)Além disso, nada nos impede de tratar os
erros de impressão como “lapsos de escrita” do tipógrafo e de considerá-los
[psicologicamente] motivados em sua grande maioria. Não me empenhei em fazer
uma coleção sistemática desses atos falhos, que poderia ser muito divertida e
instrutiva. Na obra a que já me referi diversas vezes, Jones [1911b, 503-4]
dedicou uma seção especial aos erros de impressão.
Às vezes, também as distorções [1] no texto de
telegramas podem ser entendidas como erros de redação do telegrafista. Nas
férias de verão recebi de meus editores um telegrama cujo texto era
ininteligível. Dizia: “Vorräte erhalten, Einladung X. dringend.”
[“Mantimentos recebidos, convite X urgente.”] A solução do enigma partiu do nome
X. mencionado no telegrama. X. era o nome do autor de um livro para o qual eu
devia escrever uma “Einleitung [introdução]”. Essa “Einleitung” é
que se transformara em “Einladung [convite]”. Pude então lembrar-me de
que, dias antes, eu enviara a meus editores um prefácio [Vorrede] para
outro livro, cujo recebimento era assim confirmado. O texto correto
provavelmente seria: “Vorrede erhalten, Einleitung X. dringend.” [Prefácio
recebido, introdução X. urgente.’] Podemos supor que tenha sido vítima de uma
elaboração pelo complexo de fome do telegrafista, na qual, aliás, as duas
metades da frase ficaram numa concatenação mais estreita do que tencionara o
remetente. A propósito, esse é um belo exemplo da “elaboração secundária” cuja
ação podemos reconhecer na maioria dos sonhos.
A possibilidade de “erros de impressão
tendenciosos” foi discutida por Herbert Silberer (1922).
(20) Ocasionalmente, outros autores apontaram
erros de impressão cuja tendenciosidade não é fácil de contestar, como, por
exemplo, o artigo de Storfer “O Demônio Político dos Erros de Impressão” (1914)
e sua pequena nota (1915) que aqui reproduzo:
“Um erro de impressão político se encontra no
número de März de 25 de abril deste ano. Uma carta vinda de Argirocastro
reproduzia alguns comentáriosfeitos por Zographos, o líder dos epirotas
insurretos na Albânia (ou, caso se prefira, o presidente do Governo
Independente do Epiro). Ela incluía a seguinte frase: ‘Creiam-me: um Epiro
autônomo seria do mais profundo interesse para o Príncipe Wied. Nele, ele
poderia apear-se [“sich stürzen”, erro de impressão em lugar de “sich
stützen”, “apoiar-se”]’. Mesmo sem esse erro de impressão fatal, o príncipe
da Albânia sem dúvida está bem ciente de que a aceitação do apoio [“Stütze”]
oferecido pelos epirotas significaria sua queda [“Sturz”].”
(21)Eu mesmo li recentemente, num de nossos
jornais de Viena, um artigo cujo título - “A Bukovina sob Domínio Romeno”
- deveria no mínimo ser chamado de prematuro, já que, na época, a Romênia ainda
não se declarara inimiga. Pelo conteúdo do artigo, ficou bem claro que a
palavra deveria ter sido “russo”, e não “romeno”, mas o próprio censor parece
ter achado a frase tão pouco surpreendente que até a ele passou despercebido o
erro de impressão.
É difícil evitar a suspeita de um erro de
imprensa “político” ao se deparar com o seguinte erro “ortográfico” numa
circular da célebre companhia editora (antes editora imperial e real) de Karl
Prochaska, em Teschen:
“Por decisão das potências da Entente,
que fixa a fronteira no Rio Olsa, não só a Silésia, mas também Teschen, foram
divididas em duas partes, das quais uma zuviel à Polônia e outra à
Tchecoslováquia.”
Certa vez, Theodor Fontane foi obrigado a se
defender, de maneira divertida, de um erro de impressão demasiadamente
carregado de sentido. Em 29 de março de 1860, escreveu a seu editor, Julius
Springer:
“Prezado Senhor.
“Parece que estou destinado a não ver a
realização de meus modestos desejos. Uma olhadela nas provas que estou anexando
lhe esclarecerá o que quero dizer. Além disso, enviaram-me um único jogo
de provas, apesar de eu precisar de dois, pelas razões já fornecidas antes. E
meu pedido de que a primeira via me fosse devolvida para nova revisão - com
especial cuidado pelas palavras e frases em inglês - não foi atendido. Isso
me é muitoimportante. Por exemplo, na página 27 das provas atuais, uma cena
entre John Knox e a Rainha contém as palavras: ‘worauf Maria aasrief.’ Diante
de um erro tão fulminante, seria um alívio saber que ele realmente foi
eliminado. O lamentável ‘aas‘ em vez de ‘aus‘ torna-se ainda pior
por não haver dúvida de que ela (a rainha) há de tê-lo chamado assim em seu
íntimo.
“Atenciosamente,Theodor Fontane.”
Wundt (1900, 374) dá uma explicação [1] digna
de nota para o fato, facilmente confirmável de que é mais fácil cometermos
lapsos de escrita do que lapsos da fala. “No curso da fala normal, a função
inibidora da vontade está continuamente voltada para harmonizar o curso das
representações com os movimentos articulatórios. Se o movimento expressivo que
acompanha as representações é retardado por causas mecânicas, como acontece ao
escrever (…), torna-se particularmente fácil o surgimento de tais
antecipações”.
A observação das condições em que ocorrem os
lapsos de leitura dá margem a uma dúvida que não quero deixar de mencionar,
porque, no meu entender, ela pode tornar-se o ponto de partida de uma
investigação frutífera. É do conhecimento de todos que, freqüentemente, ao ler
em voz alta, a atenção do leitor se afasta do texto e se volta para seus
próprios pensamentos. Em decorrência desse desvio de sua atenção, ele é quase
sempre incapaz, se interrompido e interrogado, de dizer o que leu. Portanto,
estava lendo como que automaticamente, embora quase sempre de maneira correta.
Não creio que, nessas condições, os lapsos de leitura se multipliquem
acentuadamente. De fato, há toda uma série de funções que, segundo estamos
acostumados a supor, são desempenhadas com maior exatidão quando executadas
automaticamente - isto é, quase sem nenhuma atenção consciente. Daí parece
decorrer que o fator da atenção dos lapsos da fala, da leitura e da escrita
deveser determinado de maneira diferente daquela descrita por Wundt (ausência
ou redução da atenção). Os exemplos que submetemos à análise realmente não nos
autorizam a supor que tenha havido uma redução quantitativa da atenção;
encontramos algo que talvez não seja exatamente a mesma coisa: uma perturbação
da atenção por um pensamento que se impõe e demanda consideração.
Entre os “lapsos da escrita” e o “esquecimento”
[1] podemos inserir o caso da pessoa que esquece de apor sua assinatura. Um
cheque não assinado é o mesmo que um cheque esquecido. No tocante ao sentido de
tal esquecimento, citarei um techo de romance que chamou a atenção do Dr. Hanns
Sachs:
“Um exemplo muito instrutivo e transparente da
segurança com que os escritores sabem empregar o mecanismo dos atos falhos e
dos atos sintomáticos no sentido psicanalítico está contido no romance The
Island Pharisees, de John Galsworthy. A trama gira em torno das oscilações
de um rapaz da classe média abastada entre sua profunda sensibilidade social e
as atitudes convencionais de sua classe. O capítulo XXVI retrata a maneira com
que ele reage à carta de um jovem vagabundo a quem, movido por sua concepção
original da vida, ele havia socorrido em algumas ocasiões. A carta não contém
nenhum pedido direto de dinheiro, mas sim a descrição de um estado de grande
necessidade que não pode ter outro sentido. O destinatário inicialmente rejeita
a idéia de jogar seu dinheiro fora num caso incorrigível, em vez de utilizá-lo
para apoiar obras de caridade. ‘Estender a mão, dar um pouco de si mesmo, fazer
um gesto de camaradagem ao próximo, independentemente de qualquer
reivindicação, apenas por ele estar mal de vida, ora, que absurdo sentimental!
Há que traçar um limite em algum lugar! Mas, enquanto murmurava para si mesmo
essas conclusões, ouviu o protesto de sua sinceridade: ‘Tratante! Você só quer
é conservar seu dinheiro, isso é tudo!’
“Escreveu então uma carta amistosa que
terminava com estas palavras: ‘Estou anexando um cheque. Cordialmente, Richard
Shelton.’
“’Antes que preenchesse o cheque, uma mariposa
voando ao redor da vela distraiu sua atenção; ele a capturou, libertou-a do
lado de fora e, nesse meio tempo, esqueceu que o cheque não fora incluído na
carta.’ E ela foi despachada exatamente como estava.
“Entretanto, esse esquecimento tem uma
motivação ainda mais sutil do que a irrupção da tendência egoísta aparentemente
superada de poupar-se aquela despesa.
“Na quinta de seus futuros sogros, rodeado por
sua noiva e mais os familiares e convidados dela, Shelton sente-se isolado; seu
ato falho indica que ele anseia por seu protegido, que, por seu passado e sua
concepção de vida, contrasta diametralmente com o grupo irrepreensível que o
cerca, uniformemente estampado com o selo de uma única e mesma convenção. E, de
fato, dias depois, já não podendo manter-se onde estava sem receber ajuda,
chega o vagabundo para pedir esclarecimentos sobre as razões da ausência do
cheque prometido.”
CAPÍTULO VII - O ESQUECIMENTO DE
IMPRESSÕES E INTENÇÕES
Se alguém se sentir propenso a superestimar o
estado de nosso atual conhecimento da vida anímica, recordar-lhe a função da
memória será o bastante para forçá-lo a ser mais modesto. Até agora, nenhuma
teoria psicológica conseguiu dar uma explicação coerente do fenômeno
fundamental da lembrança e do esquecimento; de fato, uma dissecação completa do
que realmente se pode observar mal chegou a ser iniciada. Hoje em dia, talvez o
esquecimento se tenha tornado mais enigmático do que a lembrança, uma vez que o
estudo dos sonhos e dos fenômenos patológicos nos ensinou que até mesmo algo
que supúnhamos esquecido há muito tempo pode reassomar repentinamente na
consciência. [1]
Já dispomos, é verdade, de alguns pontos de
vista para os quais esperamos obter aceitação geral. Supomos que o esquecimento
é um processo espontâneo ao qual se pode atribuir o requisito de um certo
decurso de tempo. Enfatizamos que no esquecimento se produz uma certa seleção
entre as impressões que nos são oferecidas, o mesmo acontecendo entre os
detalhes da cada impressão ou experiência. Conhecemos algumas das condições
para a preservação na memória e para a renovação daquilo que, de outro modo, seria
esquecido. Não obstante, em inúmeras ocasiões da vida cotidiana podemos
observar quão incompleto e insatisfatório é nosso conhecimento dessas
condições. Basta ouvir duas pessoas que tenham recebido as mesmas impressões
externas - que tenham feito uma viagem juntas, por exemplo [em [1]] - trocando
lembranças algum tempo depois. O que permanece firme na memória de uma delas
freqüentemente foi esquecido pela outra, como se nunca tivesse acontecido; e
isso acontece mesmo quando não há razão para supor que a impressão tenha sido
psiquicamente mais significativa para uma do que para a outra. É óbvio que um
grande número dos fatores que determinam a escolha daquilo que será lembrado
ainda escapa a nosso entendimento.
Com o propósito de fazer uma pequena contribuição
a nosso conhecimento dos determinantes do esquecimento, costumo submeter à
análise psicológica os casos em que eu mesmo esqueço alguma coisa. Em regra
geral, ocupo-me apenas de certo grupo desses casos, ou seja, aqueles em que o
esquecimento me surpreende, já que, segundo minha expectativa, eu deveria saber
a coisa em questão. Acrescento ainda que, em geral, não tenho tendência ao
esquecimento (das coisas vivenciadas não das aprendidas!) e que, por um breve
período de minha juventude, não me era impossível realizar algumas proezas
mnêmicas extraordinárias. Em meus tempos de estudante, era natural para mim
poder recitar de cor a página do livro que estivera lendo, e, pouco antes de
entrar na universidade, eu conseguia anotar quase ao pé da letra, logo depois
de ouvi-las, as conferências populares de conteúdo científico. No período de
tensão que precedeu meu exame final de medicina, ainda devo ter utilizado o que
me restava dessa capacidade, pois em alguns assuntos dei aos examinadores
respostas quase automáticas que correspondiam fielmente às palavras do texto
didático que eu folheara apenas uma vez, e com muita pressa.
Desde então, meu poder de dispor de meu
patrimônio mnêmico foi-se deteriorando cada vez mais; contudo, até épocas muito
recentes, tenho-me convencido de que, com a ajuda de um artifício, sou capaz de
recordar muito mais do que eu mesmo consideraria possível. Quando, por exemplo,
um paciente em meu horário de consultas declara que já o vi antes, ao passo que
não consigo me lembrar nem do fato nem da época, recorro à adivinhação: deixo
que me ocorra um número de anos e conto do presente para trás. Nos casos em que
os registros ou alguma informação exata do paciente permitem um controle do que
me ocorreu, fica demonstrado que raramente erro em mais de seis meses a cada
dez anos. Uma experiência semelhante sucede quando encontro um conhecido
distante e, por uma questão de cortesia, pergunto como vão indo seus filhinhos.
Se ele descreve os progressos dos filhos, procuro deixar que me ocorra a idade
atual da criança, verifico-a através das informações do pai e, no máximo, erro
por um mês, ou, no caso de crianças mais velhas, por três meses, embora não
saiba dizer em que foi que baseei essa estimativa. Ultimamente, tornei-me
tãoousado que sempre forneço minha estimativa espontaneamente, sem risco de
melindrar o pai ao expor minha ignorância sobre sua prole. Dessa maneira,
amplio minha memória consciente invocando minha memória inconsciente, que é
sempre muito mais rica.
Assim, citarei alguns exemplos destacados
de esquecimento, a maioria observada em mim mesmo. Faço uma distinção entre o
esquecimento de impressões e experiências, ou seja, de um saber, e o
esquecimento de intenções, ou seja, da omissão de um fazer. Posso antecipar o
resultado uniforme de toda a série de observações: na totalidade dos casos,
o esquecimento mostrou basear-se num motivo de desprazer.
(A) O ESQUECIMENTO DE IMPRESSÕES
E CONHECIMENTOS
(1)Certo verão, minha mulher me deu um motivo,
em si mesmo inocente, para ficar muito aborrecido. Estávamos sentados à table
d’hôte, em frente a um senhor de Viena que eu conhecia e que, sem dúvida,
também se lembrava de mim. Entretanto, eu tinha minhas razões para não renovar
esse conhecimento. Minha mulher, que só ouvira o ilustre nome desse senhor,
deixou transparecer com demasiada clareza que estava escutando a conversa dele
com seu vizinho, pois, de tempos em tempos, voltava-se para mim com perguntas
que retomavam o fio da conversa deles. Fui ficando impaciente e, por fim,
irritado. Algumas semanas depois, eu me queixava com uma parenta sobre esse
comportamento de minha mulher, mas não consegui recordar uma única palavra da
conversa daquele senhor. Como sou normalmente bastante rancoroso e não consigo
esquecer um só detalhe dos incidentes que me aborrecem, minha amnésia nesse
caso foi provavelmente motivada pela consideração por minha esposa. Faz pouco
tempo tornou a me ocorrer algo semelhante. Eu queria me divertir com um amigo
íntimo a propósito de um comentário feito por minha mulher poucas horas antes,
mas fui impedido de fazê-lo pela notável circunstância de ter esquecido por
completo o comentário em questão. Tive de pedir a minha mulher que o
relembrasse. É fácil entender esse meu esquecimento como análogo àtípica
perturbação do julgamento a que estamos sujeitos quando se trata de nossos
parentes mais próximos.
(2)Eu me havia comprometido a adquirir, para
uma dama estrangeira em visita a Viena, um pequeno cofre portátil para guardar
seus documentos e dinheiro. Quando me dispus a isso, tinha presente uma imagem
visual incomumente vívida da vitrine de uma loja no centro da cidade onde tinha
certeza de ter visto esses cofres. É verdade que não conseguia lembrar-me do
nome da rua, mas estava certo de que encontraria a loja se andasse pelo centro
da cidade, pois minha memória me dizia que eu passara pode ela inúmeras vezes.
Para minha irritação, porém, não consegui encontrar a vitrine com os cofrinhos,
embora percorresse o centro da cidade em todas as direções. Não me restava
outro recurso, pensei eu, senão consultar num catálogo os endereços de
fabricantes de cofres, para então identificar, numa segunda caminhada pela
cidade, a vitrine buscada. Mas não foi preciso tanto; entre os endereços
indicados no catálogo havia um que reconheci imediatamente como o esquecido.
Era verdade que eu havia passado inúmeras vezes por essa vitrine - a saber,
todas as vezes em que visitara a família M., que há muitos anos reside no mesmo
prédio. Desde que nossa estreita amizade cedeu lugar a um distanciamento total,
habituei-me, sem me dar conta das razões disso, a evitar também aquela área e o
prédio. Em meu passeio pela cidade à procura da vitrine com os cofres, eu havia
passado por todas as ruas das cercanias, menos aquela, evitada como se sobre
ela pesasse uma proibição. É patente o motivo de desprazer responsável por
minha desorientação nesse caso. O mecanismo do esquecimento, porém, não é tão
simples aqui como no exemplo anterior. Minha aversão naturalmente não se
voltava contra o fabricante de cofres, mas contra outra pessoa em quem eu não
queria pensar, e desta última se transferiu para a ocasião em que produziu o
esquecimento. O caso de “Burckhard” [em [1]] foi muito semelhante; meu rancor
contra uma pessoa com esse nome provocou um lapso na escrita dele quando se
referia a outra pessoa. O papel ali desempenhado pela identidade de sobrenomes,
estabelecendo uma ligação entre dois círculos de pensamentos essencialmente
diferentes, pôde ser substituído, no exemplo da vitrine, pela contigüidade
espacial, pela proximidade inseparável. Aliás, este último caso estava mais
firmemente encadeado; nele havia ainda uma segunda associação de conteúdo, pois
o dinheiro tinha desempenhado um papel entre as razões de meu distanciamento da
família residente no prédio.
(3)Fui solicitado pela firma B. & R. a
fazer uma visita médica a um de seus empregados. A caminho dessa residência,
fui tomado pela idéia de que já devia ter estado diversas vezes no prédio em
que se localizava essa firma. Era como se eu houvesse notado o letreiro da
empresa num andar inferior enquanto fazia uma visita profissional num andar
acima. Entretanto, não consegui lembrar-me nem do edifício, nem de quem teria
visitado. Embora o assunto todo não tivesse importância nem sentido, continuei
a me ocupar dele e finalmente descobri, pelo rodeio habitual, ou seja, reunindo
os pensamentos que me ocorreram a esse respeito, que os escritórios da firma B.
& R. ficavam um andar abaixo da Pensão Fischer, onde eu muitas vezes
visitara pacientes. Ao mesmo tempo, lembrei-me também do prédio que abrigava o
escritório e a pensão. Ainda me era enigmático o motivo que estivera em jogo
nesse esquecimento. Não descobri nada ofensivo à memória na própria firma, ou
na Pensão Fischer, ou nos pacientes que ali moravam. Conjeturei então que não
poderia tratar-se de nada muito penoso, caso contrário eu dificilmente teria
conseguido recuperar por via indireta o que havia esquecido, sem recorrer à
ajuda externa, como fizera no exemplo anterior. Por fim, ocorreu-me que pouco
antes, quando estava a caminho da casa desse novo paciente, um senhor que tive
dificuldade em reconhecer me havia cumprimentado na rua. Meses antes, eu
examinara esse homem num estado aparentemente grave e o sentenciara com um
diagnóstico de paralisia progressiva; mais tarde, porém, ouvi dizer que ele se
havia restabelecido, de modo que meu julgamento devia estar errado. A menos que
tivesse havido uma das remissões também encontradas na dementia paralytica,
de modo que meu diagnóstico continuaria a ser justificado! A influência que me
fez esquecer a localização do escritório da B. & R. proveio de meu encontro
com esse homem, e meu interesse em encontrar a solução para o que fora
esquecido transferiu-se para isso partindo desse caso de diagnóstico duvidoso.
Mas o elo associativo, não obstante a ínfima ligação interna - o homem que se
restabeleceu contrariando as expectativas também era funcionário de uma grande
empresa que costumava encaminhar-me pacientes -, foi fornecido pela identidade
entre os sobrenomes. O médico junto com quem eu examinara o suposto caso de
paralisia também se chamava Fischer, tal como a pensão afetada pelo
esquecimento, que ficava naquele prédio.
(4)Extraviar uma coisa realmente não
passa de esquecer onde ela foi colocada. Como a maioria das pessoas que
escrevem e lidam com livros, conheço bem minha escrivaninha e sei apanhar de
uma só vez aquilo que busco. O que a outros parece desordem é, para mim, uma
ordem historicamente criada. Por que, então, extraviei recentemente um catálogo
de livros que me fora remetido, a ponto de ser-me impossível reencontrá-lo? De
fato, eu tinha intenção de encomendar um livro nele anunciado, Über die
Sprache [Sobre a Linguagem], pois era de um autor cujo estilo espirituoso e
movimentado me agrada, e cujos conhecimentos de psicologia e de história da
cultura aprendi a valorizar. Acho que foi exatamente por isso que extraviei o
catálogo. É que costumo emprestar livros desse autor a meus conhecidos para que
se instruam, e dias antes um deles me devolvera um exemplar, dizendo: “O estilo
me lembra muito o seu, e também a maneira de pensar é a mesma.” Essa pessoa não
sabia no que tocava em mim ao fazer essa observação. Anos trás, quando eu ainda
era jovem e mais necessitado de me associar a outrem, um colega mais velho,
diante de quem eu elogiara os escritores de um famoso autor médico, dissera
quase a mesma coisa: “É exatamente como seu estilo e seu gênero.” Influenciado
por essa observação, escrevi uma carta a esse autor tentando estreitar as
relações com ele, mas uma resposta fria me colocou no meu lugar. É possível que
outras experiências desanimadoras anteriores também se ocultem por trás dessa,
pois jamais encontrei o catálogo extraviado, e esse presságio realmente fez com
que eu me abstivesse de encomendar o livro anunciado, embora o desaparecimento
do catálogo não constituísse um verdadeiro empecilho, já que eu guardara na
memória tanto o nome do livro quanto o do autor.
(5) Outro caso de extravio merece nosso
interesse por causa das condições em que se reencontrou o objeto extraviado. Um
homem mais jovem contou-me o seguinte: “Há alguns anos, havia desentendimentos
em meu casamento; eu considerava minha mulher fria demais e, apesar de
reconhecer de bom grado suas excelentes qualidades, vivíamos juntos sem nenhuma
ternura. Um dia, voltando de um passeio, ela me deu um livro que havia comprado
por achar que me interessaria. Agradeci-lhe esse sinal de “atenção”, prometi
ler o livro, coloquei-o de lado e nunca mais voltei a encontrá-lo. Passaram-se
meses em que, de vez em quando, eu me lembrava do livro desaparecido e em vão
tentava reencontrá-lo. Cerca de seis meses depois, adoeceu minha querida mãe,
que não morava conosco. Minha mulher saiu de casa para cuidar da sogra. O
estado da paciente se agravou e deu a minha mulher uma oportunidade de mostrar
seu lado mais positivo. Umanoite, voltei para casa cheio de entusiasmo e
gratidão pelo trabalho realizado por minha mulher. Fui até minha escrivaninha
e, sem qualquer intenção definida, mas com uma espécie de certeza sonambúlica,
abri uma das gavetas, onde, bem em cima de tudo, encontrei o livro há tanto
tempo desaparecido, o livro extraviado.” [1]
(6) Um caso de extravio que compartilhava da
última característica do exemplo acima - ou seja, a espantosa segurança do
reencontro do objeto tão logo se extingue o motivo do extravio - é narrado por
Stärcke (1916):
“Uma moça havia estragado um pedaço de tecido
ao cortá-lo para fazer um colarinho; por isso, a costureira teve que ser
chamada para tentar recompô-lo. Quando ela chegou, a moça quis pegar o
colarinho mal cortado e foi até a gaveta onde pensava tê-lo posto, mas não
conseguiu encontrá-lo. Virou o conteúdo de cabeça para baixo, mas não o achou.
Já exasperada, sentou-se e perguntou a si mesma por que ele desaparecera de
repente, e se não haveria algum motivo pelo qual ela não queria
encontrá-lo. Chegou à conclusão de que, naturalmente, sentia-se envergonhada
diante da costureira por ter estragado uma coisa tão simples como um colarinho.
Depois dessa reflexão, ela se levantou, foi até outro armário e dali retirou,
na mesma hora, o colarinho mal cortado.”
(7) O próximo exemplo de “extravio” é de um
tipo que se tornou familiar a qualquer psicanalista. Posso acrescentar que o
próprio paciente responsável pelo lapso descobriu a solução:
“Ao se despir à noite, um paciente cujo
tratamento psicanalítico foi interrompido pelas férias de verão, num período em
que ele se achava num estado de resistência e mal-estar, colocou seu molho de
chaves, ao que lhe pareceu, no lugar habitual. Lembrou-se então de que havia
mais algumas coisas de que precisava para sua viagem no dia seguinte - último
dia do tratamento e data de pagamento dos honorários -, e foi buscá-las na
escrivaninha, onde também pusera o dinheiro. Mas as chaves haviam desaparecido.
Ele começou a empreender em sua pequenina casa uma busca sistemática, porém com
agitação cada vez maior… e nada de êxito. Por reconhecer no ‘extravio’ das
chaves um ato sintomático, isto é, algo feitointencionalmente, acordou seu
criado para poder prosseguir na busca com o auxílio de uma pessoa ‘imparcial’.
Depois de mais uma hora, desistiu, temendo haver perdido as chaves. Na manhã
seguinte, encomendou chaves novas do fabricante da escrivaninha, sendo estas
feitas para ele a toda pressa. Dois amigos que o haviam acompanhado à casa no
mesmo táxi acreditaram lembrar-se de ter ouvido alguma coisa tilintar no chão
quando ele desceu do carro. Ele estava convencido de que as chaves haviam caído
de seu bolso. Naquela noite, o empregado, triunfante, apresentou-lhe as chaves.
Tinham sido encontradas entre um livro grosso e um folheto fino (trabalho de um
de meus alunos) que ele queria levar para ler nas férias, e estavam colocadas
com tanta habilidade que ninguém suspeitaria que estivessem ali. Depois,
foi-lhe impossível recolocá-las de maneira a ficarem igualmente invisíveis. A
destreza inconsciente com que se extravia um objeto por motivos ocultos, mas
poderosos, faz lembrar muito a ‘certeza sonambúlica’. O motivo, como se poderia
esperar, era o mal-estar pela interrupção do tratamento e raiva secreta por ter
de pagar honorários elevados quando se sentia tão mal.”
(8) “Um homem”, relata Brill [1912], “foi
pressionado por sua mulher a participar de um acontecimento social a que, no
fundo, era indiferente. Cedendo aos apelos da esposa, começou a tirar do baú
seu traje de gala, mas, de repente, resolveu barbear-se primeiro. Depois de
fazê-lo, voltou ao baú, encontrou-o trancado e, apesar de uma longa e intensa
busca, não conseguiu encontrar a chave. Sendo domingo à noite, era impossível
chamar um chaveiro, de modo que o casal teve que desculpar-se pelo não
comparecimento. Quando o baú foi aberto na manhã seguinte, lá dentro se
encontrou a chave perdida. Distraído, o marido a deixara cair dentro do baú e
depois fechara o cadeado. Ele me garantiu que o fizera sem nenhuma intenção e
inconscientemente, mas sabemos que não queria comparecer ao acontecimento
social. Portanto, não faltava motivo para o extravio da chave.”
Ernest Jones [1911b, 506] observou em si mesmo
que costumava extraviar seu cachimbo sempre que, tendo fumado demais, sentia-se
indisposto por causa disso. Depois, o cachimbo aparecia em todos os lugares
imagináveis, onde não deveria estar e onde comumente não era guardado.
(9) Um caso ingênuo em que a motivação foi
admitida é relatado por Dora Müller (1915):
“Contou-me a Srta. Erna A., dois dias antes do
Natal: ‘Imagine só! Ontem à noite, tirei um pedaço de meu bolo de Natal do
pacote e comi; ao fazê-lo, pensei em oferecer um pedaço à Srta. S.’ (a dama de
companhia de sua mãe) ‘quando viesse dar-me boa noite; não estava com nenhuma
disposição para isso, mas resolvi fazê-lo assim mesmo. Quando ela chegou e estendi
a mão para pegar o pacote na minha mesinha, ele não estava lá. Então,
procurei-o e fui encontrá-lo trancado em meu armário. Eu o enfiara lá dentro
sem perceber.’ Foi desnecessário fazer uma análise, pois a própria narradora
entendeu a cadeia de acontecimentos. O impulso recém-recalcado de querer
guardar o bolo só para si conseguiu impor-se, mesmo assim, numa ação
automática, embora, nesse caso, esta fosse novamente anulada pelo ato
consciente que se seguiu.”
(10)H. Sachs descreve como certa vez, por um extravio
semelhante, furtou-se à obrigação de trabalhar: “No último domingo, à tarde,
hesitei por algum tempo entre trabalhar ou fazer um passeio seguido de uma
visita, e depois de alguma luta decidi-me pelo primeiro. Cerca de uma hora
depois, notei que acabara meu estoque de papel. Sabia que em algum lugar, numa
gaveta, havia uma pilha de papel que eu guardava há anos, mas em vão procurei-a
em minha escrivaninha e em outros lugares onde achei que poderia encontrá-la,
apesar do enorme trabalho que tive esquadrinhado todos os lugares possíveis:
livros velhos, folhetos, maços de correspondência e assim por diante. Por fim,
vi-me obrigado a interromper meu trabalho e sair. Quando voltei para casa à
noite, sentei-me no sofá e, pensativo e meio distraído, corri os olhos pela
estante diante de mim. Uma caixa chamou minha atenção e lembrei que não
examinava seu conteúdo há muito tempo. Assim, fui até ela e a abri. Bem em cima
havia uma pasta de couro contendo papel em branco. Mas só quando o retirei e
estava prestes a colocá-lo na gaveta de escrivaninha foi que me ocorreu que
aquele era exatamente o mesmo papel que eu em vão procurara durante a tarde.
Aqui devo acrescentar que, embora não costume ser parcimonioso, sou muito
cuidadoso com o papel e guardo qualquer pedaço utilizável. Obviamente, foi esse
meu hábito, alimentado por uma pulsão, que possibilitou a retificação de meu
esquecimento assim que desapareceu seu motivo imediato.
Quando se observam em conjunto os casos de
extravio, [1] torna-se realmente difícil acreditar que alguma coisa possa ser
extraviada sem que isso seja produto de uma intenção inconsciente.
(11) Um dia, no verão de 1901, observei a um
amigo com quem, na época, eu tinha um animado intercâmbio de idéias
científicas: “Esses problemas neuróticos só poderão ser resolvidos quando nos
basearmos integralmente na hipótese da bissexualidade originária do indivíduo.”
Ao que ele respondeu: “Isso foi o que eu lhe disse há dois anos e meio em Br.
[Breslau], quando dávamos aquele passeio à tardinha. Só que, na época, você não
queria ouvir falar nisso.” É penoso ser assim convidado a renunciar à própria
originalidade. Eu não conseguia lembrar-me nem dessa conversa, nem do
comunicado de meu amigo. Um de nós dois devia estar enganado e, pelo princípio
do “cui prodest?”, devia ser eu mesmo. De fato, no decorrer da semana
seguinte, lembrei-me de todo o incidente, que fora exatamente como meu amigo
tentara fazer-me evocar, e até da resposta que lhe dei na época: “Ainda não
aceitei isso; não estou inclinado a entrar nessa questão.” Desde então, porém,
tornei-me um pouco mais tolerante quando, na literatura médica, deparo com uma
das poucas idéias que se podem associar com meu nome e vejo que ele não foi
citado.
Críticas à própria esposa, uma amizade que se
transforma no inverso, um erro no diagnóstico médico, a rejeição de alguém que
tem interesses semelhantes, a apropriação de idéias alheias - não há de ser por
acaso que uma coleção de exemplos de esquecimento reunida sem seleção prévia
exige que se entre em temas tão penosos para ser explicada. Ao contrário,
suspeito que qualquer outro que se disponha a investigar os motivos de seus
próprios esquecimentos poderá arrolar um mostruário semelhante de
contrariedades. A tendência a esquecer o que é desagradável me parece inteiramente
universal; a aptidão para isso tem graus diferenciados de desenvolvimento nas
diferentes pessoas. É provável que muitos dos desmentidos com que
deparamos na atividade médica sejam provenientes de esquecimentos. É
verdade que nossa concepção desse esquecimento reduz a distinção entre as duas
formas de comportamento [o desmentido e o esquecimento] a fatores puramente
psicológicos e nos permite ver nos dois modos de reação a expressão do mesmo
motivo. Dentre todos os numerosos exemplos de renegação [Verleugnung] de
lembranças desagradáveis que observei em parentes de enfermos, há um que
preservo na memória como sendo especialmente singular. Uma mãe, ao dar-me
informações sobre a infância do filho neurótico, agora na puberdade, disse que,
como todos os irmãos, ele urinara na cama até idade bem tardia, o que não deixa
de ter importância na história clínica de um paciente neurótico. Algumas
semanas depois, quando ela quis obter informações sobre o estado do tratamento,
tive oportunidade de chamar-lhe a atenção para os sinais de uma predisposição
constitucional à doença no rapazinho e, ao fazê-lo, referi-me ao traço de
urinar na cama, levantado na anamnese. Para meu assombro ela contestou esse
fato, tanto no tocante a ele quanto aos outros filhos, e perguntou como eu
poderia saber disso, até que, por fim, eu lhe disse que ela mesma me havia
informado a esse respeito pouco tempo antes, e portanto, devia tê-lo esquecido.
Assim, também nas pessoas saudáveis, não
neuróticas, encontramos sinais abundantes de que uma resistência se opõe à
lembrança de impressões aflitivas, à representação de pensamentos aflitivos.
Mas o sentido pleno desse fato só pode ser avaliado quanto se investiga a
psicologia das pessoas neuróticas. É-se forçado a encarar como um dos
pilares centrais do mecanismo portador dos sintomas histéricos esse empenho
defensivo elementar contra as representações capazes de despertar
sentimentos de desprazer - um empenho somente comparável ao reflexo de fuga na
presença de estímulos dolorosos.Contra a suposição da existência dessa
tendência defensiva não se pode objetar que, pelo contrário, é-nos
freqüentemente impossível livrar-nos das lembranças aflitivas que nos perseguem
e afugentar moções afetivas penosas como o remorso e as dores de consciência. Isso
porque não estamos afirmando que essa tendência defensiva seja capaz de se
impor em todos os casos, que, no jogo das forças psíquicas, não possa esbarrar
em fatores que, por outros desígnios, aspirem ao efeito oposto e o produzam
apesar da tendência defensiva. Podemos supor que o princípio arquitetônico
do aparelho anímico consista numa estratificação, numa edificação de instâncias
superpostas, e é bem possível que esse empenho defensivo pertença à
instância psíquica inferior e seja inibido pelas instâncias superiores. De
qualquer modo, depõe em favor da existência e do poder dessa tendência
defensiva o fato de podermos atribuir a ela a origem de processos como os de
nossos exemplos de esquecimento. Como vimos, muitas coisas são esquecidas por
si mesmas; quando isso não é possível, a tendência defensiva desloca seu alvo e
produz ao menos o esquecimento de alguma outra coisa, algo menos importante que
tenha estabelecido um vínculo associativo com aquilo que é realmente chocante.
O ponto de vista aqui desenvolvido - de que as
lembrança aflitivas sucumbem com especial facilidade ao esquecimento motivado -
merece ser aplicado em muitos campos que até hoje lhe concederam muito pouca ou
nenhuma atenção. Assim, parece-me que ele ainda não foi enfatizado com força
suficiente na avaliação dos testemunhos prestados nos tribunais, onde é patente
que se considera o juramento da testemunha capaz de exercer uma influência
exageradamente purificadora sobre o jogo de suas forças psíquicas. É
universalmente reconhecido que, no tocante à origem das tradições e da história
legendária de um povo, é preciso levar em conta esse tipo de motivo, cuja meta
é apagar da memória tudo o que seja penoso para o sentimento nacional. Uma
investigação mais detalhada talvez revelasse uma completa analogia entre os
modos de formação das tradições de um povo e das lembranças da infância do
indivíduo. - O grande Darwin [1] estabeleceu uma “regra de ouro” para o
trabalhador científico, baseada em seudiscernimento do papel desempenhado pelo
desprazer como motivo para o esquecimento. [1]
De maneira muito semelhante ao esquecimento de
nomes [em [1]], o esquecimento de impressões pode ser acompanhado por falsas
recordações, que, quando merecem crédito, são designadas de ilusões de memória
[Erinnerungstäuschung]. A ilusão de memória observada nos casos
patológicos (na paranóia ela desempenha justamente o papel de um fator
constitutivo na formação do delírio) deu origem a uma vasta literatura em que
me foi inteiramente impossível encontrar qualquer indício de sua motivação.
Como este é também um tema pertencente à psicologia das neuroses, é impróprio
considerá-lo neste contexto. Em vez disso, descreverei um curioso exemplo de
ilusão de memória ocorrida comigo, na qual a motivação fornecida pelo material inconsciente
recalcado e o modo e natureza da combinação com esse material são reconhecíveis
com bastante clareza.
Quando escrevia os últimos capítulos de meu
livro sobre a interpretação dos sonhos, encontrava-me num local de veraneio sem
acesso a biblioteca e obras de consulta, e fui forçado a incorporar ao
manuscrito, de memória, toda sorte de referências e citações, sujeitas a
correção posterior. Ao escrever o trecho sobre os devaneios
, ocorreu-me a primorosa figura do pobre
guarda-livros do Le Nabab, de Alphonse Daudet, em quem o escritor
provavelmente retratou seus próprios devaneios. Acreditei lembrar-me de uma das
fantasias tramadas por esse homem - chamei-o de Monsieur Jocelyn - em
suas andanças pelas ruas de Paris; lembrava-a com clareza e comecei a reproduzi-la
de memória: o Sr. Jocelyn se atirava ousadamente contra um cavalo em disparada
na rua e o detinha; a porta da carruagem se abria e dela saía uma alta
personalidade, que apertava a mão do Sr. Jocelyn e dizia “O senhor é meu
salvador, devo-lhe minha vida. Que posso fazer pelo senhor?”
As eventuais imprecisões na reprodução dessa
fantasia, consolei-me, poderiam ser facilmente corrigidas em casa, quando eu
tivesse o livro em mãos. Mas quando finalmente folheei Le Nabab para
conferir esse trecho de meu manuscrito, que já estava pronto para ser impresso,
descobri, para minha grande vergonha e consternação, que nada havia de tal
devaneio do Sr. Jocelyn; na verdade, o pobre guarda-livros nem sequer tinha
esse nome, mas se chamava Monsieur Joyeuse. Esse segundo erro logo me
forneceu a chave para esclarecer o primeiro, a ilusão de memória, “Joyeux”,
nome do qual “Joyeuse” é a forma feminina, é a única maneira pela qual eu
poderia traduzir meu próprio nome, Freud, para o francês. De onde proviria,
portanto, essa fantasia falsamente lembrada que atribuíra a Daudet? Só poderia
ser produto de mim mesmo, um devaneio que eu próprio criara e que não se havia
tornado consciente, ou que um dia me fora consciente e depois eu esquecera por
completo. Talvez eu mesmo o tenha inventado em Paris, quando freqüentemente
passeava pelas ruas, solitário e repleto de anseios, necessitado de um
colaborador e protetor, até que mestre Charcot me aceitou em seu círculo. Mais
tarde, foram muitas as vezes em que encontrei o autor de Le Nabab na
casa de Charcot. [1]
Outro caso de ilusão da memória [1] que se pode
explicar satisfatoriamente faz lembrar a fausse reconnaissance, tema a
ser discutido mais adiante [em [1]]. Eu havia contado a um de meus pacientes,
um homem ambicioso e capaz, que um jovem estudante fora recentemente
incorporado ao círculo de meus discípulos por meio de um interessante trabalho,
“Der Künstler, Versuch einer Sexualpsychologie” [O Artista, Ensaio de
uma Psicologia Sexual]. Ao ser esse livro publicado depois de um ano e três
meses, meu paciente afirmou poder lembrar-se com certeza de ter lido em algum
lugar, antes mesmo de minha comunicação (um ou seis meses antes), um anúncio
desse livro, talvez no prospecto de algum livreiro. Esse anúncio, disse ele,
viera-lhe à mente naquela ocasião, e comentou ainda ter constatado que o autor
havia modificado o título: já não se chamava “Versuch” [“Esboço”], mas “Anzätze
zu einer Sexualpsychologie” [Rudimentos de uma Psicologia Sexual].
Entretanto, uma sondagem cuidadosa feita com o autor e a comparação de todas as
datas mostraram que meu paciente alegava lembrar-se de algo impossível. Nenhum
anúncio do livro aparecera em parte alguma antes da publicação, e menos ainda
um ano e três meses antes de ele ser impresso. Quando deixei de interpretar
essa ilusão da memória, esse mesmo homem produziu uma reedição dela, de
natureza equivalente. Acreditou ter visto recentemente uma obra sobre a
agorafobia na vitrine de uma livraria e estava agora pesquisando os catálogos
de todas as editoras para obter um exemplar. Pude então explicar-lhe por que
seus esforços seriam necessariamente infrutíferos. A obra sobre a agorafobia só
existia em sua fantasia, como uma intenção inconsciente, devendo ser escrita
por ele mesmo. Sua ambição de se igualar ao outro jovem e tornar-se um de meus
discípulos mediante um trabalho científico similar fora responsável pela
primeira ilusão da memória e, depois, por sua repetição. Diante disso, ele se
lembrou de que o anúncio de livraria que lhe servira para esse falso
reconhecimento referia-se a um livro intitulado “Genesis, das Gesetz der
Zeugung” [Gênese, a Lei da Geração]. Mas a alteração do título por
ele mencionada correu por minha conta, pois pude lembrar-me de ter cometido eu
mesmo essa inexatidão - “Versuch” em vez de “Ansätze” - ao
reproduzir o título.
(B) O ESQUECIMENTO DE INTENÇÕES
Nenhum grupo de fenômenos se presta melhor do
que o esquecimento de intenções para comprovar a tese de que, por si só, a
falta de atenção não basta para explicar os atos falhos. A intenção é um
impulso para a ação, um impulso que já foi aprovado, mas cuja execução é adiada
para uma ocasião propícia. Ora, no intervalo assim criado, é possível que
sobrevenha uma tal modificação nos motivos que a intenção não seja efetivada;
nesse caso, porém, ela não é esquecida, e sim revista e anulada. O esquecimento
das intenções, ao qual estamos sujeitos cotidianamente em todas as situações
possíveis, não é algo que estejamos habituados a explicar em termos de tal
modificação no equilíbrio dos motivos; em geral o deixamos inexplicado ou
buscamos uma explicação psicológica supondo que, no momento em que a intenção
deveria efetivar-se, já não se dispunha da atenção necessária à ação, embora a
atenção tivesse sido uma precondição indispensável para o advento da intenção
e, portanto, tivesse estado disponível para a ação naquele momento. A
observação de nosso comportamento normal diante das intenções leva-nos a
rejeitar como arbitrária essa tentativa de explicação. Quando concebo pela
manhã uma intenção a ser efetivada à noite, é possível que me lembre dela duas
ou três vezes ao longo do dia. Mas de modo algum é necessário que ela se
torne consciente durante o dia. Quando se aproxima o momento de sua execução,
ela de repente me ocorre e me leva a fazer os preparativos necessários para a
ação proposta. Quando saio para um passeio levando uma carta a ser despachada,
não preciso, como indivíduo normal e livre de neuroses, carregá-la na mão por
todo o caminho e ficar à cata de uma caixa de correio onde possa jogá-la; pelo
contrário, costumo colocá-la no bolso, seguir meu caminho deixando os
pensamentos vagarem livremente, e confiar em que uma das primeiras caixas do
correio há de chamar minha atenção e fazer com que eu ponha a mão no bolso e
retire a carta. A conduta normal frente a uma intenção concebida coincide por
completo com o comportamento experimentalmente produzido das pessoas a quem se
deu, em hipnose, uma “sugestão pós-hipnótica a longo prazo”, como se costuma chamá-la.
Esse fenômeno é usualmente descrito da seguinte maneira: a intenção sugerida
dormita na pessoa em questão até se aproximar o momento de efetivá-la. É aí que
desperta e impele a pessoa para a ação.
Em duas situações na vida, até o leigo se
apercebe de que o esquecimento no tocante às intenções não pode ter a pretensão
de ser considerado um fenômeno elementar irredutível, mas autoriza a conclusão
de que existem motivos inconfessados. Refiro-me às relações amorosas e à
disciplina militar. Um amante que falta a um encontro sabe que é inútil
desculpar-se dizendo a sua dama que, infelizmente, esqueceu-o por completo. Ela
não deixará de responder: “Há um ano você não teria esquecido. É que já não se
importa comigo.” Mesmo que ele se agarrasse à explicação psicológica mencionada
acima [em [1]] e quisesse desculpar seu esquecimento alegando um acúmulo de
trabalho, só conseguiria fazer com que a dama - já agora tão perspicaz quanto o
médico na psicanálise - lhe respondesse: “Curioso, essas perturbações do trabalho
nunca apareceram antes!” É claro que a dama não pretende negar a possibilidade
do esquecimento; ela apenas acredita, e não sem justificativa, que se pode
tirar praticamente a mesma conclusão - a existência de uma certa relutância -
do esquecimento involuntário e do pretexto consciente.
Similarmente, na situação do serviço militar,
despreza-se, por uma questão de princípio e com pleno direito, a diferença
entre o descumprimento de ordens por esquecimento e aquele que é deliberado. Um
soldado não deve esquecer aquilo que lhe ordena o serviço militar.
Quando de fato esquece, apesar de conhecer a ordem, é porque outros
motivos, contrários aos que o levam a cumprir a ordem militar, opõem-se a
estes. Um voluntário por um ano que, diante de uma inspeção, tente dar a
desculpa de que esqueceu de polir seus botões, com certeza será punido.
Mas essa punição é insignificante em comparação àquela a que ele se exporia se
admitisse para si mesmo e para seus superiores o motivo de sua omissão: “Estou
enojado desse trabalho deplorável de limpeza.” Para se poupar esse castigo -
por questões de economia, por assim dizer - ele se serve do esquecimento como
desculpa, ou este se produz como um compromisso.
Os préstimos à mulher e o serviço militar
exigem que tudo o que se relaciona com eles seja imune ao esquecimento. Assim,
sugerem a noção de que, embora o esquecimento seja admissível nos assuntos sem
importância, nos importantes ele é um sinal de que se quer tratá-los como aos
assuntos sem importância, isto é, negar-lhes a importância. De fato, não se
pode rejeitar aqui o ponto de vista que leva em conta o valor psíquico. Ninguém
se esquece de executar as ações que lhe parecem importantes sem se expor à
suspeita de estar mentalmente perturbado. Nossa investigação, portanto, só pode
estender-se ao esquecimento das intenções mais ou menos insignificantes;
nenhuma intenção pode ser considerada completamente indiferente, pois,
nesse caso, nunca se teria formado.
Como nas perturbações funcionais descritas nas
páginas anteriores, compilei os casos de omissões por esquecimento que observei
em mim mesmo e me empenhei em esclarecê-los, descobrindo invariavelmente que se
podia atribuir sua origem à interferência de motivos inconfessados e
desconhecidos - ou, como se poderia dizer, a uma contravontade. Numa
série desses casos eu me encontrava numa situação semelhante à do serviço, sob
uma pressão à qual não tinha desistido inteiramente de me opor, de modo que me
manifestava contra ela através do esquecimento. A isso se deve o fato de eu me
esquecer com particular facilidade de enviar congratulações em ocasiões como
aniversários, festas comemorativas, casamentos e promoções. Estou sempre a
tomar novas decisões a esse respeito e cada vez me convenço mais de que não vou
conseguir. Agora, estou a ponto de desistir e ceder conscientemente aos motivos
que se opõem a isso. Enquanto me achava numa fase de transição, um amigo
pediu-me para enviar em certa data um telegrama de congratulações em nome dele,
juntamente com o meu, mas preveni-o de que esqueceria ambos; e não foi surpresa
que minha profecia se realizasse. Prende-se a experiências dolorosas no
decorrer de minha vida o fato de eu ser incapaz de manifestar simpatia nas
ocasiões em que tal manifestação énecessariamente exagerada, pois não seria
admissível uma expressão correspondente à escassa monta de minha emoção. Desde
que compreendi com que freqüência tomei como genuína a pretensa simpatia de
outras pessoas, tenho-me rebelado contra essas expressões convencionais de
simpatia, embora, por outro lado, reconheça sua utilidade social. As
condolências nos casos de falecimento constituem uma exceção a esse tratamento
dividido: quando me decido a enviá-las, não deixo de fazê-lo. Quando minha
participação nos sentimentos já não tem nada a ver com uma obrigação social,
sua expressão nunca é inibida pelo esquecimento.
Escrevendo de um campo de prisioneiros de
guerra, o tenente T. relata um desses exemplos de esquecimento, no qual uma
intenção inicialmente suprimida irrompeu sob a forma de uma “contravontade” e
acarretou uma situação desagradável:
“O oficial mais graduado de um campo de
oficiais prisioneiros de guerra foi insultado por um de seus companheiros. Para
evitar complicações, quis usar o único recurso de autoridade a seu dispor,
fazendo com que o oficial fosse afastado e transferido para outro campo.
Somente a conselho de vários amigos foi que decidiu, contrariando seu desejo
secreto, abandonar seu plano e procurar imediatamente reparar sua honra, embora
isso estivesse fadado a trazer múltiplas conseqüências desagradáveis. Na mesma
manhã, esse comandante tinha de fazer a chamada dos oficiais sob controle do
órgão de vigilância. Fazia muito tempo que ele conhecia seus companheiros de
farda e nunca lhe acontecera cometer erros nisso. Dessa vez, deixou de ler o
nome de seu agressor, de modo que este, depois de dispensados todos os seus
companheiros, teve que permanecer no campo até que o erro fosse esclarecido. O
nome saltado aparecia com perfeita clareza no meio de uma folha. O incidente
foi encarado por uma das partes como um insulto deliberado e, pela outra, como
um acaso lamentável e sujeito a ser mal interpretado. Mais tarde, porém, depois
de tomar conhecimento da Psicopatologia de Freud, o autor do lapso pôde
formar um juízo correto sobre o que havia ocorrido.”
Da mesma forma, o conflito entre um dever
convencional e a opinião interna e inconfessada que se tem dele explica os
casos em que esquecemos de fazer um favor prometido a alguém. Aqui, o habitual
é apenas o obsequiador acreditar que o esquecimento serve de desculpa, enquanto
o solicitante dá a si mesmo, sem nenhuma dúvida, a resposta correta: “Ele não
está interessado no assunto, caso contrário não teria esquecido.” Há pessoas
que todos sabem ser geralmente esquecidas e que por isso são desculpadas, tal
como acontece com o míope que não nos cumprimenta na rua. Essas pessoas
esquecem todas as suas pequenas promessas e não executam nenhuma das
incumbências recebidas. Assim, mostram-se indignas de confiança nas pequenas
coisas e exigem que não levemos a mal essas falhas insignificantes - ou seja,
que não as expliquemos por seu caráter, mas que as atribuamos a alguma
particularidade orgânica. Eu mesmo não sou uma dessas pessoas, e não tive
oportunidade de analisar as ações de uma delas, de tal modo que, examinando a
escolha dos esquecimentos, pudesse descobrir sua motivação. Entretanto, não
posso deixar de presumir, por analogia, que o motivo aqui é um grau incomumente
grande de menosprezo inconfessado pelas outras pessoas, que explora o fator constitucional
para seus próprios fins.
Em outros casos é menos fácil descobrir os
motivos do esquecimento, que, quando encontrados, despertam maior surpresa. Foi
assim que notei, anos atrás, que dentre um grande número de visitas a enfermos,
eu só me esquecia das que devia fazer a pacientes gratuitos ou a algum colega.
Envergonhado diante disso, adotei o hábito de anotar, já de manhã, as visitas
que pretendia fazer durante o dia. Não sei se outros médicos chegaram à mesma
prática pelo mesmo caminho. Mas assim podemos ter uma idéia doque leva o
chamado paciente neurastênico a anotar, em seus famigerados “papeizinhos”, as
várias comunicações que quer fazer ao médico. A razão aparente é que ele não
confia na capacidade reprodutora de sua memória. Isso é certo, sem dúvida, mas
a cena geralmente se desenrola assim: o paciente formula suas diversas queixas
e indagações de maneira extremamente detalhista. Ao terminar, faz uma pequena
pausa, depois saca o papelzinho e diz em tom de desculpa: “Fiz algumas
anotações, porque não consigo me lembrar de nada.” Em geral, não encontra nada
de novo no papelzinho. Repete cada ponto e responde ele mesmo: “Sim, já
perguntei sobre isso.” É provável que, com o papelzinho, ele esteja apenas
demonstrando um de seus sintomas: a freqüência com que suas intenções são
perturbadas pela interferência de motivos obscuros.
Estarei tocando num dos males que afligem a
maior parte de meus conhecidos sadios aos confessar que, sobretudo no passado,
eu esquecia com muita facilidade e por longos períodos de devolver livros
emprestados, ou que, com facilidade ainda maior, adiava o pagamento de contas
através do esquecimento. Uma manhã, pouco tempo atrás, saí sem pagar da
tabacaria onde fizera minha compra diária de charutos. Foi uma omissão das mais
inofensivas, pois sou conhecido ali e, portanto, podia esperar que no dia
seguinte me lembrassem a dívida. Mas esse pequeno descuido, essa tentativa de
contrair uma dívida, por certo não deixava de se relacionar com as ponderações
orçamentárias que me haviam ocupado na véspera. Mesmo entre a maioria das
chamadas pessoas “decentes” é fácil observar sinais de um comportamento
dividido no que concerne ao dinheiro e à propriedade. Talvez seja universal que
a avidez primitiva do lactente, que quer apossar-se de todos os objetos (para
levá-los à boca), só tenha sido superada de maneira incompleta pela cultura e
pela educação.
Temo que todos os exemplos que apresentei até
aqui pareçam simplesmente banais. Mas, afinal, só pode convir a meu objetivo
esbarrar em coisas familiares a todos e por todos entendidas de igual maneira,
já que só me proponho compilar material do cotidiano e aproveitá-lo
cientificamente. Não vejo por que a sabedoria, que é o precipitado das
experiências comuns da vida, deva ser excluída das aquisições da ciência. O
caráter essencial do trabalho científico não decorre da natureza especial de
seus objetos de estudo, mas de seu método mais rigoroso de verificação e de sua
busca de correlações extensas.
No que concerne às intenções de certa
importância, descobrimos, em geral, que elas são esquecidas quando contra elas
se erguem motivos obscuros. No caso das das que têm importância bem menor,
podemos reconhecer um segundo mecanismo do esquecimento: uma contravontade se
transfere de algum outro ponto para a intenção, depois de formada uma
associação externa entre esse outro ponto e o conteúdo da intenção. Aqui está
um exemplo: valorizo o papel mata-borrão [“Löschpapier”] de boa
qualidade, e um dia resolvi comprar um novo suprimento em minha passagem
vespertina pelo centro da cidade. mas esqueci de fazê-lo por quatro dias
seguidos, até que me perguntei pelo motivo dessa omissão. Ele foi fácil de
descobrir quando me lembrei de que, embora costume escrever “Löschpapier”,
geralmente digo “Fliesspapier” [outra palavra para designar
“mata-borrão”]. “Fliess” é o nome de um amigo de Berlim que, nesses dias,
dera-me motivo para um pensamento aflitivo e inquietante. Não pude livrar-me
desse pensamento, mas a tendência defensiva (ver em [1]) se
manifestoutransferindo-se, através da similaridade verbal, para a intenção
indiferente e, por isso mesmo, pouco resistente.
Uma contravontade direta e uma motivação mais
distante conjugam-se no seguinte exemplo de adiamento. Eu havia escrito um
breve ensaio Sobre os Sonhos (1901a), resumindo o conteúdo de A
Interpretação dos Sonhos [1900a], para a coleção Grenzfragen des Nerven-
und Seelenlebens [Problemas Fronteiriços da Vida Nervosa e Anímica].
Bergmann, [o editor] de Wiesbaden, enviara-me as provas com o pedido de que eu
as devolvesse pela volta do correio, já que o livro deveria ser lançado antes
do Natal. Corrigi as provas na mesma noite e coloquei-as na escrivaninha para
levá-las comigo na manhã seguinte. Nessa manhã, esqueci de fazê-lo, e só me
lembrei à tarde, ao ver o pacote na escrivaninha. Da mesma forma, esqueci as
provas naquela tarde, à noite e na manhã seguinte, até que me recompus e
levei-as para uma caixa de correio na tarde do segundo dia, imaginando qual
seria a razão desse adiamento. Era óbvio que eu não queria enviá-las, mas não
conseguia descobrir por quê. Entretanto, nessa mesma caminhada, fiz uma visita
a meu editor em Viena, que publicara A Interpretação dos Sonhos, fiz-lhe
uma encomenda e depois, como que impelido por um pensamento repentino,
disse-lhe: “Sabe que escrevi o livro sobre o sonho pela segunda vez?” - “Ah!
não me diga uma coisa dessas!”, retrucou ele. “Acalme-se”, disse eu, “é só um
breve ensaio para a coleção de Löwenfeld Kurella.” Mas ele não ficou
satisfeito; preocupava-se com a idéia de que o ensaio prejudicasse as vendas do
livro. Discordei dele e por fim perguntei: “Se eu tivesse vindo ao senhor
primeiro, o senhor me teria proibido a publicação?” - “Não, de maneira alguma.”
Penso comigo mesmo que agi com pleno direito e nada fiz que contrariasse a
prática usual; ainda assim, parece certo que um receio semelhante ao que foi
expresso pelo editor constituiu o motivo de minha demora em devolver as provas.
Esse receio remonta a uma ocasião anterior, em que outro editor criou
dificuldades quando me pareceu inevitável transcrever, inalteradas, algumas
páginas de um texto anterior meu sobre a paralisia cerebral infantil, publicado
por outra editora em minha revisão desse mesmo tema para o Handbuch de
Nothnagel. Mas também nesse caso a censura não se justificava; também naquela
ocasião eu comunicara lealmente minha intenção a meu primeiro editor (o mesmo
que publicou A Interpretação dos Sonhos). Entretanto retrocedendo ainda
mais nessa série de lembranças, ela me desloca para uma ocasião ainda mais
remota, a uma tradução do francês em que realmente infringi os direitos de
propriedade que regem as publicações. Acrescentei notas ao texto traduzido sem
pedir a permissão do autor, e anos depois tive razões para supor que o autor
ficara insatisfeito com essa minha arbitrariedade.
Existe um provérbio que revela o conhecimento
popular de que o esquecimento das intenções não é casual: “Quando se esquece de
fazer uma coisa uma vez, ainda se há de esquecê-la muitas mais.”
De fato, [1] às vezes não podemos furtar-nos à
impressão de que tudo o que se pode dizer sobre o esquecimento e os atos falhos
já é conhecido de todos como algo evidente. É mesmo de admirar que, ainda
assim, seja necessário apresentar a sua consciência coisas tão conhecidas.
Quantas vezes ouvi dizerem: “Não me peça para fazer isto, tenho certeza de que
vou esquecer!” A realização dessa profecia, portanto, decerto nada tem de
místico: quem assim fala sente em si a intenção de não executar o pedido e
apenas se recusa a confessá-lo a si mesmo.
Além disso, o esquecimento das intenções é
muito bem ilustrado pelo que se pode chamar de “formação de falsas intenções”.
Certa vez prometi a um jovem autor que escreveria uma resenha sobre sua pequena
obra; entretanto, por causa de resistências internas que não me eram
desconhecidas, fui adiando isso, até que um dia cedi à insistência dele e
prometi fazê-lo naquela mesma noite. Eu tinha realmente a firme intenção de
fazê-lo, mas esqueci que tinha reservado a noite para preparar um parecer
inadiável. Depois de haver assim percebido que minha intenção era falsa,
desisti da luta contra minhas resistências e recusei o pedido do autor.