Conferências introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II)
VOLUME XV
(1915-1916)
Dr. Sigmund Freud
CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS SOBRE PSICANÁLISE (1916-17 [1915-17])
INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS
VORLESUNGEN
ZUR EINFÜHRUNG IN DIEPSYCHOANALYSE
(a)
EDIÇÕES ALEMÃS:
1916 Parte I (em separado), Die Fehlleistungen.
Leipzig e Viena: Heller.
1916 Parte II (em separado), Der Traum. Mesmos
editores.
1917 Parte III (em separado), Allgemeine
Neurosenlehre. Mesmos editores.
1917 Os títulos acima, as três partes em um só
volume. Mesmos editores. viii + 545 págs.
1918 2ª ed. (Com índice e inserção de lista de
40 corrigendas.) Mesmos editores. viii + 553 págs.
1920 3ª ed. (Reimpressão corrigida da edição
anterior.) Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag.
viii + 553 págs.
1922 4ª ed. (Reimpressão corrigida da edição
anterior.) Mesmos editores. viii + 554 págs. (Também as Partes II e III em
separado, sob os títulos de Vorlesungen über den Traum e Allgemeine
Neurosenlehre.)
1922 Ed. de bolso. (Sem índice). Mesmos
editores. iv + 495 págs.
1922 Ed. de bolso. (2ª ed., corrigida e com
índice.) Mesmos editores. iv + 502 págs.
1924 G.S., 7. 483 págs.
1926 5ª ed. (Reimpressão das G.S.) I.P.V. 483
págs.
1926 Ed. de bolso. (3ª ed.) Mesmos editores.
1930 Ed. em 8 pequenos vols. I P.V. 501 págs.
1933 (Com autorização) Berlim: Kiepenheuer. 524
págs.
1940 G.W., 11, 495 págs.
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
A
General Introduction to Psychoanalysis
1920
Nova Iorque: Boni & Liveright. x + 406 págs. (Tradutor não especificado; Prefácio de
G. Stanley Hall.)
Introductory
Lectures on Psycho-Analysis
1922
Londres: Allen & Unwin. 395 págs. (Trad. de Joan Riviere; sem prefácio de Freud;
com prefácio de Ernest Jones.)
1929
2a. ed. (revista). Mesmos editores. 395 págs.
A
General Introduction to Psychoanalysis
1935Nova Iorque: Liveright. 412 págs. (A ed. de
Londres com o título da anterior de Nova Iorque. Trad. de Joan Riviere; com
prefácios de Ernest Jones e G. Stanley Hall; incluído o prefácio de Freud).
A presente tradução inglesa é nova e da autoria
de James Strachey.
Esta obra teve uma circulação maior do que
qualquer outra obra de Freud, com exceção, talvez, de The Psychopathology of
Everyday Life. Também se distingue pela quantidade de erros de impressão nela
existentes. Como ficou assinalado acima, quarenta foram corrigidos na segunda
edição; porém havia ainda muitos mais, e pode ser observado um número
considerável de pequenas variações no texto das diversas edições. A presente
tradução inglesa segue o texto dos Gesammelte Werke, que é, de fato, idêntico
ao texto dos Gesammelte Schriften; e somente foram registradas as discordâncias
mais importantes das primeiras versões.
A data real de publicação das três partes não
está definida. A Parte I certamente surgiu antes do fim de julho de 1916, como
se verifica por uma referência que a ela se faz em uma carta de Freud a Lou
Andreas-Salomé, de 27 de julho de 1916 (cf. Freud, 1960a). Na mesma carta, ele
também fala na Parte II como estando prestes a aparecer. Uma carta de 18 de
dezembro de 1916, que Freud escreveu a Abraham, sugere que, com efeito, ela
apenas apareceu no fim do ano (cf. Freud, 1965a). A Parte III parece ter sido
publicada em maio de 1917.
O ano acadêmico da Universidade de Viena se
dividia em dois períodos: um período (ou semestre) de inverno, que ia de
outubro a março, e um período de verão, de abril a julho. As conferências
publicadas neste livro foram proferidas por Freud em dois períodos de inverno
sucessivos, durante a Primeira Guerra Mundial: 1915-16 e 1916-17. Os relatos
mais completos das circunstâncias que conduziram à sua publicação serão
encontrados no segundo volume da biografia escrita por Ernest Jones (1955, pág.
255 e seguintes).
Embora, como o próprio Freud observara em seu
prefácio às New Introductory Lectures, sua qualidade de membro da Universidade
de Viena tivesse sido apenas ‘periférica’, desde os tempos de sua indicação
como Privatdozent (Livre Docente da Universidade), em 1885, e como Professor
Extraordinarius (Professor Assistente), em 1902, havia realizado muitos ciclos
de conferências na Universidade. Estes ficaram sem registro, embora alguns
relatos dos mesmos possam ser encontrados - por exemplo, os de Hanns Sachs (1945,
pág. 39 e segs.) e Theodor Reik (1942, pág. 19 e segs.), bem como os de Ernest
Jones (1953, pág. 375 e segs.). Freud decidiu que a série que começava no
outono de 1915 deveria ser a última, e foi por sugestão de Otto Rank que Freud
concordou com sua publicação. Em seu prefácio às New Introductory Lectures, há
pouco citado, Freud nos refere que a primeira metade da série atual, a série
inicial, ‘foi improvisada e escrita logo depois’, e que ‘esboços da segunda
metade foram feitos durante as férias do verão intermediário, em Salzburg, e
passados para o papel, palavra por palavra, no inverno seguinte’. Acrescenta
que, naquela época, ‘ainda possuía o dom de uma memória fotográfica’, pois, por
mais cuidadosamente que suas conferências pudessem ter sido preparadas, na
realidade, invariavelmente, as proferia de improviso, e geralmente sem
anotações. Existe concordância geral no tocante à sua técnica de dar
conferências: que ele nunca era retórico e que seu tom era sempre o de uma
conversação tranqüila e mesmo íntima. Contudo, não se deve supor, por isso, que
houvesse algo de desleixo ou desordem nessas conferências. Elas quase sempre
tinham uma forma definida - início, meio e fim - e podiam, freqüentemente, dar
ao ouvinte a impressão de possuírem uma unidade estética.
Foi mencionado (Reik, 1942, 19) que ele não
gostava de dar conferências, no entanto é difícil conciliar essa afirmação não
apenas com a quantidade de conferências que proferiu no decurso de sua vida,
mas também com a quantidade notavelmente elevada de seus trabalhos efetivamente
publicados que estão sob a forma de conferências. Existe, entretanto, uma
possível explicação para essa discordância. Um exame mostra que, entre suas
publicações, são predominantemente os trabalhos expositivos que aparecem como conferências:
por exemplo, a conferência inicial sobre ‘The Aetiology of Hysteria’ (1896c), a
que surgiu um pouco depois ‘Sobre a Psicoterapia’ (1905a), assim como,
naturalmente, as Cinco Lições, proferidas na América (1910a), e a presente
série. Contudo, além disso, quando empreendeu anos depois uma exposição das
mais recentes evoluções de seus pontos de vista, ele, sem qualquer motivo
evidente, mais uma vez as colocou na forma de conferências e publicou suas New
Introductory Lectures (1933a), embora jamais houvesse qualquer possibilidade de
serem dadas à luz como tais. Assim, Freud se socorreu evidentemente das
conferências como método de expor suas opiniões, mas apenas sob uma condição
particular: ele devia estar em vívido contato com seu auditório real ou
suposto. Os leitores do presente volume descobrirão como é constante Freud
manter esse contato - quão regularmente ele coloca objeções na boca de seus
ouvintes, e quão freqüentemente existem debates imaginários entre ele e seus
ouvintes. Na verdade, ele estendia esse método de formular suas exposições a
alguns de seus trabalhos que absolutamente não são conferências: a totalidade
de The Question of Lay Analysis (1926e) e a maior parte de O Futuro de uma
Ilusão (1927c) tomaram a forma de diálogos entre o autor e um ouvinte que faz
críticas. Contrariamente, talvez, a certas noções errôneas, Freud era
inteiramente avesso à exposição de suas opiniões em forma autoritária e
dogmática: ‘Não o direi aos senhores’, ele diz à sua audiência, em uma passagem
adiante (pág. 433), ‘mas insistirei em que o descubram por si mesmos’. As
objeções não eram para ser abafadas, mas esclarecidas e examinadas. E isso,
afinal, não era mais que um prolongamento de um aspecto essencial da técnica da
própria psicanálise.
As Conferências Introdutórias podem ser
verdadeiramente consideradas como um inventário das conceituações de Freud e da
posição da psicanálise na época da Primeira Guerra Mundial. As dissidências de
Adler e Jung já eram história passada, o conceito de narcisismo já tinha alguns
anos de vida, o caso clínico do ‘Wolf Man’, que marcou época, tinha sido
escrito (com exceção de duas passagens) um ano antes do começo das
conferências, embora não fosse publicado senão mais tarde. E, também, a grande
série de artigos ‘metapsicológicos’ sobre a teoria fundamental tinha sido
ultimada alguns meses antes, ainda que apenas três deles tivessem sido
publicados. (Mais dois deles surgiram logo após as conferências, porém os sete
restantes desapareceram sem deixar vestígio.) Essas últimas atividades e, sem
dúvida, também a realização das conferências tinham sido facilitadas pela
diminuição do trabalho clínico de Freud, imposta pelas condições da guerra.
Parecia haver-se chegado a um divisor de águas, e era como se houvesse chegado
a época para uma pausa. De fato, porém, estavam em preparação idéias novas que
deviam vir à luz em Além do Princípio de Prazer (1920g), Psicologia de Grupo
(1921c) e O Ego e o Id (1923b). Em verdade, a linha não deve ser traçada com
tanta exatidão. Por exemplo, já podem ser detectados indícios da noção da
‘compulsão à repetição’ (págs. 292-3), e os começos da análise do ego estão
bastante evidentes (págs. 423 e 428-9), ao passo que as dificuldades referentes
aos múltiplos sentidos da palavra ‘inconsciente’ (ver em [1]) preparam o
caminho para uma nova descrição estrutural da mente.
Em seu prefácio a estas conferências, Freud
fala um pouco depreciativamente da falta de novidade em seu conteúdo. No
entanto, ninguém, embora muito tenha lido de literatura psicanalítica, precisa
sentir receio de se entediar com estas conferências, e ainda poderá achar nelas
muitas coisas que não se encontrarão em outro lugar. As discussões sobre
ansiedade (Conferência XV) e sobre fantasias primitivas (Conferência XXIV), que
Freud mesmo, no prefácio, aponta como material recente, não são as únicas que
ele podia ter mencionado. A revisão do simbolismo na Conferência X, é,
provavelmente, a mais completa que fez. Em nenhuma outra parte fornece tão
claro resumo da formação dos sonhos como nas últimas páginas da Conferência
XIV. Sobre as perversões, não há comentários mais inteligíveis do que aqueles
encontrados nas Conferências XX e XXI. Finalmente, não existe absolutamente
qualquer tópico que se iguale à análise dos processos de terapia psicanalítica,
feita na última conferência. E mesmo onde os assuntos pareceriam estar
surrados, como o mecanismo das parapraxias e dos sonhos, a abordagem é feita a
partir de direções inesperadas, lançando nova luz sobre o que poderia ter
parecido terreno por demais conhecido. As Conferências Introdutórias
seguramente merecem sua popularidade.
PREFÁCIO [1917]
O que ao público agora ofereço como uma
‘Introdução à Psicanálise’ não se destina a competir, de forma alguma, com
determinadas descrições gerais desse campo de conhecimento, como aquelas já
existentes, e dentre as quais citam-se, por exemplo: as de Hitschmann (1913),
Pfister (1913), Kaplan (1914), Régis e Hesnard (1914) e Meijer (1915). Este
volume é uma reprodução fiel das conferências que proferi [na Universidade],
durante as duas temporadas de inverno de 1915/16 e 1916/17, perante um
auditório de médicos e leigos de ambos os sexos.
Quaisquer peculiaridades deste livro que possam
surpreender os leitores são devidas às condições em que ele se originou. Em
minha apresentação não foi possível preservar a tranqüila serenidade de um
tratado científico. Pelo contrário, o conferencista tinha de se empenhar em
evitar que a atenção de seu auditório declinasse durante uma sessão de quase
duas horas de duração. As necessidades do momento muitas vezes tornaram
impossível evitar repetições ao tratar de um determinado assunto - poderiam
emergir uma vez, por exemplo, em relação à interpretação de sonhos e, mais
tarde, de novo, em relação aos problemas das neuroses. Também em conseqüência
da maneira como o material foi ordenado, alguns tópicos importantes (o
inconsciente, por exemplo) não puderam ser exaustivamente debatidos em um só
ponto, mas tiveram de ser retomados repetidamente e outra vez abandonados, até
que surgisse nova oportunidade para acrescentar alguma informação adicional a
respeito.
Aqueles que estão familiarizados com a
literatura psicanalítica encontrarão nesta ‘Introdução’ pouca coisa que não
lhes seja conhecida já a partir de outras publicações muito mais detalhadas.
Não obstante, a necessidade de completar e resumir algum tema compeliu o autor,
em certos pontos (a etiologia da ansiedade e as fantasias histéricas), a apresentar
material que até então havia retido.
FREUD.
VIENA, primavera de 1917.
PREFÁCIO DA TRADUÇÃO HEBRAICA [1930]
Estas conferências foram proferidas em 1916 e
1917; proporcionaram uma descrição muito pormenorizada da posição da jovem ciência
naquela época, e continham mais do que seu título indicava. Proporcionaram não
apenas uma introdução à psicanálise, mas abrangeram a maior parte de seu
conteúdo temático. Isso, naturalmente, já não é mais verdade. Nesse meio tempo
houve progressos em sua teoria e importantes acréscimos à mesma, como a divisão
da personalidade em ego, superego e id, uma modificação radical na teoria dos
instintos, bem como descobertas referentes à origem da consciência e do
sentimento de culpa. Assim sendo, estas conferências se tornaram em grande
parte incompletas; na verdade, somente agora é que se tornaram realmente
‘introdutórias’. Porém, em outro sentido, mesmo hoje elas não foram
suplantadas, nem se tornaram obsoletas. O que contêm ainda é acreditado e
pensado, afora algumas poucas modificações, nos institutos de formação
psicanalítica.
Os leitores de hebraico e especialmente os
jovens, ávidos de conhecimento, se defrontarão neste volume com a psicanálise
vestida com o antigo idioma que tem sido despertado para uma vida nova pela
vontade do povo judeu. O autor bem pode imaginar o problema que se propôs seu
tradutor. E nem pode suprimir a dúvida quanto a saber se Moisés e os Profetas
teriam julgado inteligíveis estas conferências em hebraico. Pede, entretanto,
aos descendentes deles (entre os quais ele próprio se inclui), a quem este
livro se destina, para que não reajam demasiado prontamente a seus primeiros
impulsos de crítica e enfado, rejeitando-o. A psicanálise revela tantas coisas
novas, e, em meio a tudo isso, tantas coisas que contraditam opiniões
tradicionais, e tanto fere sentimentos profundamente arraigados, que não pode
deixar de provocar contestação. O leitor, se deixar em suspenso seu julgamento
e permitir que a psicanálise, como um todo, provoque nele sua impressão, talvez
se torne receptivo à convicção de que mesmo essa indesejada novidade é digna de
se conhecer e indispensável para todo aquele que deseja compreender a mente e a
vida humana.
VIENA, dezembro de 1930
PARTE I - PARAPRAXIAS (1916 [1915])
CONFERÊNCIA I - INTRODUÇÃO
SENHORAS E SENHORES:
Não posso dizer quanto conhecimento sobre
psicanálise cada um dos senhores já adquiriu pelas leituras que fez, ou por
ouvir dizer. Mas o título de meu programa - ‘Introdução Elementar à Psicanálise’
- obriga-me a tratá-los como se nada soubessem e estivessem necessitados de
algumas informações preliminares.
Posso, no entanto, seguramente supor que sabem
ser a psicanálise uma forma de executar o tratamento médico de pacientes
neuróticos. E aqui já lhes posso dar um exemplo de como, nessa atividade,
numerosas coisas se passam de forma diferente - e muitas vezes, realmente, de
forma oposta - de como ocorrem em outros campos da prática médica. Quando, em
outra situação, apresentamos ao paciente uma técnica que lhe é nova, de hábito
minimizamos os inconvenientes desta e lhe damos confiantes promessas de êxito
do tratamento. Penso estarmos justificados de assim proceder, de vez que desse
modo estamos aumentando a probabilidade de êxito. Quando, porém, tomamos em
tratamento analítico um paciente neurótico, agimos diferentemente.
Mostramos-lhe as dificuldades do método, sua longa duração, os esforços e os
sacrifícios que exige; e, quanto a seu êxito, lhe dizemos não nos ser possível
prometê-lo com certeza, que depende de sua própria conduta, de sua compreensão,
de sua adaptabilidade e de sua perseverança. Temos boas razões, naturalmente,
para manter essa conduta aparentemente obstinada no erro, como talvez os
senhores virão a verificar mais adiante.
Não se aborreçam, então, se começo por
tratá-los da mesma forma como a esses pacientes neuróticos. Seriamente eu os
advirto de que não venham ouvir-me uma segunda vez. Para corroborar esta
advertência, explicarei quão incompleto deve necessariamente ser qualquer conhecimento
da psicanálise, e que dificuldades surgem no caminho dos senhores ao formarem
um julgamento próprio a respeito dela. Mostrar-lhes-ei como toda a tendência de
sua educação prévia e todos os seus hábitos de pensamento estão inevitavelmente
propensos a fazer com que se oponham à psicanálise, e quanto teriam de superar,
dentro de si mesmos, para obter o máximo de vantagem dessa natural oposição.
Não posso, certamente, predizer quanto entendimento de psicanálise obterão das
informações que lhes dou, contudo posso prometer-lhes isto: que, ouvindo-as
atentamente, não terão aprendido como efetuar uma investigação psicanalítica ou
como realizar um tratamento. No entanto, na hipótese de que um dos senhores não
se sentisse satisfeito com um ligeiro conhecimento da psicanálise, mas
estivesse inclinado a entrar em relação permanente com ela, não apenas eu o
dissuadiria de agir assim, como ativamente também o admoestaria para não
fazê-lo. Da maneira como estão as coisas, no momento, tal escolha de profissão arruinaria
qualquer possibilidade de obter sucesso em uma universidade, e, se começou na
vida como médico clínico, iria encontrar-se numa sociedade que não
compreenderia seus esforços, que o veria com desconfiança e hostilidade e que
despejaria sobre ele todos os maus espíritos que estão à espreita dentro dessa
mesma sociedade. E os acontecimentos que acompanham a guerra, que agora assola
a Europa, lhes darão talvez alguma noção de que legiões desses maus espíritos
podem existir.
Não obstante, há bom número de pessoas para as
quais, a despeito desses inconvenientes, algo que promete trazer-lhes uma nova
parcela de conhecimento tem ainda seu atrativo. Se alguns dos senhores
pertencerem a essa espécie de pessoas, e, malgrado minhas advertências,
novamente aqui comparecerem para minha próxima conferência, serão bem-vindos.
Todos, porém, têm o direito de saber da natureza das dificuldades da
psicanálise, às quais aludi.
Iniciarei por aquelas dificuldades vinculadas
ao ensino, à formação em psicanálise. Na formação médica os senhores estão
acostumados a ver coisas. Vêem uma preparação anatômica, o precipitado de uma
reação química, a contração de um músculo em conseqüência da estimulação de
seus nervos. Depois, pacientes são demonstrados perante os sentidos dos senhores:
os sintomas de suas doenças, as conseqüências dos processos patológicos e,
mesmo, em muitos casos, o agente da doença isolado. Nos departamentos
cirúrgicos, são testemunhas das medidas ativas tomadas para proporcionar
socorro aos pacientes, e os senhores mesmos podem tentar pô-las em execução. Na
própria psiquiatria, a demonstração de pacientes, com suas expressões faciais
alteradas, com seu modo de falar e seu comportamento, propicia aos senhores
numerosas observações que lhes deixam profunda impressão. Assim, um professor
de curso médico desempenha em elevado grau o papel de guia e intérprete que os
acompanha através de um museu, enquanto os senhores conseguem um contato direto
com os objetos exibidos e se sentem convencidos da existência dos novos fatos
mediante a própria percepção de cada um.
Na psicanálise, ai de nós, tudo é diferente.
Nada acontece em um tratamento psicanalítico além de um intercâmbio de palavras
entre o paciente e o analista. O paciente conversa, fala de suas experiências
passadas e de suas impressões atuais, queixa-se, reconhece seus desejos e seus
impulsos emocionais. O médico escuta, procura orientar os processos de
pensamento do paciente, exorta, dirige sua atenção em certas direções, dá-lhe
explicações e observa as reações de compreensão ou rejeição que ele, analista,
suscita no paciente. Os desinformados parentes de nossos pacientes, que se
impressionam apenas com coisas visíveis e tangíveis - preferivelmente por ações
tais como aquelas vistas no cinema -, jamais deixam de expressar suas dúvidas
quanto a saber se ‘algo não pode ser feito pela doença, que não seja
simplesmente falar’. Essa, naturalmente, é uma linha de pensamento ao mesmo
tempo insensata e incoerente. Essas são as mesmas pessoas que se mostram assim
tão seguras de que os pacientes estão ‘simplesmente imaginando’ seus sintomas.
As palavras, originalmente, eram mágicas e até os dias atuais conservaram muito
do seu antigo poder mágico. Por meio de palavras uma pessoa pode tornar outra
jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero, por palavras o professor veicula
seu conhecimento aos alunos, por palavras o orador conquista seus ouvintes para
si e influencia o julgamento e as decisões deles. Palavras suscitam afetos e
são, de modo geral, o meio de mútua influência entre os homens. Assim, não
depreciaremos o uso das palavras na psicoterapia, e nos agradará ouvir as
palavras trocadas entre o analista e seu paciente.
Contudo, nem isso podemos fazer. A conversação
em que consiste o tratamento psicanalítico não admite ouvinte algum; não pode
ser demonstrada. Um paciente neurastênico ou histérico pode, naturalmente, como
qualquer outro, ser apresentado a estudantes em uma conferência psiquiátrica.
Ele fará uma descrição de suas queixas e de seus sintomas, porém apenas isso. As
informações que uma análise requer serão dadas pelo paciente somente com a
condição de que ele tenha uma ligação emocional especial com seu médico; ele
silenciaria tão logo observasse uma só testemunha que ele percebesse estar
alheia a essa relação. Isso porque essas informações dizem respeito àquilo que
é mais íntimo em sua vida mental, a tudo aquilo que, como pessoa socialmente
independente, deve ocultar de outras pessoas, e, ademais, a tudo o que, como
personalidade homogênea, não admite para si próprio.
Portanto, os senhores não podem estar
presentes, como ouvintes, a um tratamento psicanalítico. Este pode, apenas,
ser-lhes relatado; e, no mais estrito sentido da palavra, é somente de ouvir
dizer que chegarão a conhecer a psicanálise. Como conseqüência do fato de
receberem seus conhecimentos em segunda mão, por assim dizer, os senhores
estarão em condições bem incomuns para formar um julgamento. Isto obviamente
dependerá, em grande parte, do quanto de crédito podem dar a seu informante.
Suponhamos, por um momento, que os senhores
estivessem ouvindo uma conferência não sobre psiquiatria, mas sobre história, e
que o conferencista lhes estivesse expondo a vida e os feitos militares de
Alexandre Magno. Que fundamentos teriam para acreditar na verdade do que ele
referisse? Num primeiro relance, a situação pareceria ser ainda mais
desfavorável do que no caso da psicanálise, pois o professor de história teve
tanta participação nas campanhas de Alexandre quanto os senhores. O
psicanalista pelo menos reporta coisas nas quais ele próprio tomou parte.
Porém, na devida oportunidade, chegamos aos elementos que confirmam aquilo que
o historiador lhes disse. Ele poderia remetê-los aos relatos dos escritores da
Antigüidade que, ou foram eles próprios contemporâneos dos eventos em questão,
ou, de qualquer forma, estavam mais próximos dos mesmos - ele poderia
remetê-los, digamos, às obras de Diodoro, Plutarco, Arriano e outros. Poderia
colocar à frente dos senhores reproduções de moedas e estátuas do rei, que
sobreviveram, e poderia passar às suas mãos uma fotografia do mosaico de
Pompéia representando a batalha de Isso. Estritamente falando, contudo, todos
esses documentos apenas provam que as gerações anteriores já acreditavam na
existência de Alexandre e na realidade de seus feitos, e as críticas dos
senhores poderiam começar novamente nesse ponto. Os senhores descobririam então
que nem tudo aquilo que foi relatado sobre Alexandre merece crédito ou pode ser
confirmado em seus detalhes; não obstante, não posso supor que os senhores
viessem a deixar a sala de conferência com dúvidas sobre a realidade de
Alexandre Magno. A decisão dos senhores seria determinada, essencialmente, por
duas considerações: primeiro, que o conferencista não tem qualquer motivo
imaginável para garantir-lhes a realidade de algo que ele próprio não julga ser
real, e, em segundo lugar, que todos os livros de história disponíveis
descrevem os acontecimentos em termos aproximadamente semelhantes. Se
continuassem a examinar as fontes antigas, teriam em conta os mesmos fatores -
os possíveis motivos dos informantes e a conformidade das testemunhas entre si.
O resultado da pesquisa sem dúvida lhes traria uma confirmação, no caso de
Alexandre; no entanto, provavelmente seria diferente quando se tratasse de
personagens como Moisés ou Nemrod. Outras oportunidades revelarão muito
claramente que dúvidas os senhores podem ter a respeito da credibilidade do seu
informante psicanalítico.
Mas os senhores têm o direito de fazer outra
pergunta. Se não há verificação objetiva da psicanálise nem possibilidade de
demonstrá-la, como pode absolutamente alguém aprender psicanálise e
convencer-se da veracidade de suas afirmações? É verdade que a psicanálise não
pode ser aprendida facilmente, e que não são muitas as pessoas que a tenham
aprendido corretamente. Naturalmente, porém, existe um método que se pode
seguir, apesar de tudo. Aprende-se psicanálise em si mesmo, estudando-se a
própria personalidade. Isso não é exatamente a mesma coisa que a chamada
auto-observação, porém pode, se necessário, estar nela subentendido. Existe
grande quantidade de fenômenos mentais, muito comuns e amplamente conhecidos,
que, após conseguido um pouco de conhecimento da técnica, podem se tornar
objeto de análise na própria pessoa. Dessa forma, adquire-se o desejado
sentimento de convicção da realidade dos processos descritos pela análise e da
correção dos pontos de vista da mesma. Não obstante, há limites definidos ao
progresso por meio desse método. A pessoa progride muito mais se ela própria é
analisada por um analista experiente e vivencia os efeitos da análise em seu
próprio eu (self), fazendo uso da oportunidade de assimilar de seu
analista a técnica mais sutil do processo. Esse excelente método é,
naturalmente, aplicável apenas a uma única pessoa e jamais a todo um auditório
de estudantes reunidos.
A psicanálise não deve ser acusada de uma
segunda dificuldade na relação dos senhores com ela; devo fazê-los, aos
senhores mesmos, responsáveis por isso, senhoras e senhores, pelo menos na
medida em que foram estudantes de medicina. A educação que receberam
previamente deu uma direção particular ao pensar dos senhores que conduz para
longe da psicanálise. Foram formados para encontrar uma base anatômica para as
funções do organismo e suas doenças, a fim de explicá-las química e fisicamente
e encará-las do ponto de vista biológico. Nenhuma parte do interesse dos
senhores, contudo, tem sido dirigida para a vida psíquica, onde, afinal, a
realização desse organismo maravilhosamente complexo atinge seu ápice. Por essa
razão, as formas psicológicas de pensamento têm permanecido estranhas aos
senhores. Cresceram acostumados a encará-las com suspeita, a negar-lhes a
qualidade científica, a abandoná-las em poder de leigos, poetas, filósofos
naturalistas e místicos. Essa limitação é, sem dúvida, prejudicial à sua
atividade médica, pois, como é a regra em todos os relacionamentos humanos, os
pacientes dos senhores começam mostrando-lhes sua façade mental, e temo
que sejam obrigados, como punição, a deixar parte da influência terapêutica que
os senhores estão procurando aos praticantes leigos, aos curandeiros e aos
místicos, que os senhores tanto desprezam.
Não ignoro a excusa de que devemos tolerar esse
defeito em sua educação. Não existe nenhuma ciência filosófica auxiliar que
possa servir às finalidades médicas dos senhores. Nem a filosofia especulativa,
nem a psicologia descritiva, nem o que é chamado de psicologia experimental
(que está estritamente aliada à fisiologia dos órgãos dos sentidos), tal como
são ensinadas nas universidades, estão em condições de dizer-lhes algo de
utilizável pertinente à relação entre corpo e mente, ou de lhes proporcionar
uma chave para a compreensão dos possíveis distúrbios das funções mentais. É
verdade que a psiquiatria, como parte da medicina, se empenha em descrever os
distúrbios mentais que observa, e em agrupá-los em entidades clínicas; porém,
em momentos favoráveis os próprios psiquiatras duvidam de que suas hipóteses
puramente descritivas mereçam o nome de ciência. Nada se conhece da origem, do
mecanismo ou das mútuas relações dos sintomas dos quais se compõem essas
entidades clínicas; ou não há alterações observáveis, no órgão anatômico
da mente, que correspondam a esses sintomas, ou há alterações nada
esclarecedoras a respeito deles. Esses distúrbios mentais apenas são acessíveis
à influência terapêutica quando podem ser reconhecidos como efeitos secundários
daquilo que, de outro modo, constitui uma doença orgânica.
Essa é a lacuna que a psicanálise procura
preencher. Procura dar à psiquiatria a base psicológica de que esta carece.
Espera descobrir o terreno comum em cuja base se torne compreensível a
conseqüência do distúrbio físico e mental. Com esse objetivo em vista, a
psicanálise deve manter-se livre de toda hipótese que lhe é estranha, seja de
tipo anatômico, químico ou fisiológico, e deve operar inteiramente com idéias
auxiliares puramente psicológicas; e precisamente por essa razão temo que lhes
parecerá estranha de início.
Não considerarei os senhores, ou sua educação,
ou sua atitude mental, responsáveis pela próxima dificuldade. Duas das
hipóteses da psicanálise são um insulto ao mundo inteiro e têm ganho sua
antipatia. Uma delas encerra uma ofensa a um preconceito intelectual; a outra,
a um preconceito estético e moral. Não devemos desprezar em demasia esses
preconceitos; são coisas poderosas, são precipitados da evolução do homem que
foram úteis e, na verdade, essenciais. Sua existência é mantida por forças
emocionais, e a luta contra eles é árdua.
A primeira dessas assertivas impopulares feitas
pela psicanálise declara que os processos mentais são, em si mesmos,
inconscientes e que de toda a vida mental apenas determinados atos e partes
isoladas são conscientes. Os senhores sabem que, pelo contrário, temos o hábito
de identificar o que é psíquico com o que é consciente. Consideramos a
consciência, sem mais nem menos, como a característica que define o
psíquico, e a psicologia como o estudo dos conteúdos da consciência. Na
verdade, parece-nos tão natural os igualar dessa forma, que qualquer
contestação à idéia nos atinge como evidente absurdo. A psicanálise, porém, não
pode evitar o surgimento dessa contradição; não pode aceitar a identidade do
consciente com o mental. Ela define o que é mental, enquanto processos como o
sentir, o pensar e o querer, e é obrigada a sustentar que existe o pensar
inconsciente e o desejar não apreendido. Dizendo isso, de saída e inutilmente
ela perde a simpatia de todos os amigos do pensamento científico solene, e
incorre abertamente na suspeita de tratar-se de uma doutrina esotérica,
fantástica, ávida de engendrar mistérios e de pescar em águas turvas. Contudo,
as senhoras e os senhores naturalmente não podem compreender, por agora, que
direito tenho eu de descrever como preconceito uma afirmação de natureza tão
abstrata como ‘o que é mental é consciente’. E nem podem os senhores
conjecturar que evolução seja essa, que chegou a levar a uma negação do
inconsciente - se é que isso existe - e que vantagem pode ter havido em tal
negação. A questão de saber se devemos fazer coincidir o psíquico com o
consciente, ou aumentar a abrangência daquele, soa como uma discussão vazia em
torno de palavras; mas posso assegurar-lhes que a hipótese de existirem
processos mentais inconscientes abre o caminho para uma nova e decisiva
orientação no mundo e na ciência.
Os senhores não podem sequer ter qualquer noção
de quão íntima é a conexão entre essa primeira mostra de coragem por parte da
psicanálise e a segunda, da qual devo agora falar-lhes. Essa segunda tese, que
a psicanálise apresenta como uma de suas descobertas, é uma afirmação no
sentido de que os impulsos instintuais que apenas podem ser descritos como
sexuais, tanto no sentido estrito como no sentido mais amplo do termo,
desempenham na causação das doenças nervosas e mentais um papel extremamente
importante e nunca, até o momento, reconhecido. Ademais, afirma que esses
mesmos impulsos sexuais também fornecem contribuições, que não podem ser
subestimadas, às mais elevadas criações culturais, artísticas e sociais do
espírito humano.
Em minha experiência, a antipatia que se volta
contra esse resultado da pesquisa psicanalítica é a mais importante fonte de
resistência que ela encontrou. Gostariam de ouvir como explicamos esse fato?
Acreditamos que a civilização foi criada sob a pressão das exigências da vida,
à custa da satisfação dos instintos; e acreditamos que a civilização, em grande
parte, está sendo constantemente criada de novo, de vez que cada pessoa, assim
que ingressa na sociedade humana, repete esse sacrifício da satisfação
instintual em benefício de toda a comunidade. Entre as forças instintuais que
têm esse destino, os impulsos sexuais desempenham uma parte importante, nesse
processo eles são sublimados - isto é, são desviados de suas finalidades sexuais
e dirigidos a outras, socialmente mais elevadas e não mais sexuais. Esse
arranjo, contudo, é instável; os instintos sexuais são imperfeitamente
subjugados e, no caso de cada indivíduo que se supõe juntar-se ao trabalho da
civilização, há um risco de seus instintos sexuais se rebelarem contra essa
destinação. A sociedade acredita não existir maior ameaça que se possa levantar
contra sua civilização do que a possibilidade de os instintos sexuais serem
liberados e retornarem às suas finalidades originais. Por esse motivo, a
sociedade não quer ser lembrada dessa parte precária de seus alicerces. Não tem
interesse em reconhecer a força dos instintos sexuais, nem interesse pela
demonstração da importância da vida sexual para o indivíduo. Ao contrário,
tendo em vista um fim educativo, tem-se empenhado em desviar a atenção de todo
esse campo de idéias. É por isso que não tolerará esse resultado da pesquisa
psicanalítica, e nitidamente prefere qualificá-lo como algo esteticamente
repulsivo e moralmente repreensível, ou como algo perigoso. Entretanto, as
objeções dessa espécie são ineficazes contra aquilo que se ergueu como produto
objetivo de um exemplo de trabalho científico; se a contestação se fizer em
público, então deve ser expressa novamente, em termos intelectuais. Ora, é
inerente à natureza humana ter uma tendência a considerar como falsa uma coisa
de que não gosta e, ademais, é fácil encontrar argumentos contra ela. Assim, a
sociedade transforma o desagradável em falso. Rebate as verdades da psicanálise
com argumentos lógicos e concretos; estes, porém, surgem de fontes emocionais,
e ela mantém essas objeções na forma de preconceitos, opondo-se a toda
tentativa de as contestar.
Nós, porém, senhoras e senhores, podemos
afirmar que, ao expor esta controvertida tese, não temos em vista qualquer
objetivo tendencioso. Desejamos simplesmente dar expressão a um assunto que
acreditamos ter demonstrado mediante nossos conscienciosos trabalhos. Afirmamos
também o direito de rejeitar sem restrição qualquer interferência motivada em
considerações práticas, no trabalho científico, mesmo antes de nos termos
perguntado se o medo, que procura impor-nos essas considerações, é justificado
ou não.
Essas, pois, são algumas das dificuldades que
se erguem contra o interesse dos senhores pela psicanálise. São, talvez, mais
que suficientes para um começo. Porém, se puderem vencer a impressão que lhes
causam, prosseguiremos.
CONFERÊNCIA II - PARAPRAXIAS
SENHORAS E SENHORES:
Não começaremos com postulados, e sim com uma
investigação. Escolhamos como tema determinados fenômenos muito comuns e muito
conhecidos, os quais, porém, têm sido muito pouco examinados e, de vez que
podem ser observados em qualquer pessoa sadia, nada têm a ver com doenças. São
o que se conhece como ‘parapraxias’, às quais todos estão sujeitos. Pode
acontecer, por exemplo, que uma pessoa que tenciona dizer algo venha a usar, em
vez de uma palavra, outra palavra (um lapso de língua [Versprechen]), ou
possa fazer a mesma coisa escrevendo, podendo, ou não, perceber o que fez. Ou
uma pessoa pode ler algo, seja impresso ou manuscrito, diferentemente do que na
realidade está diante de seus olhos (um lapso de leitura [Verlesen]), ou
ouvir errado algo que lhe foi dito (um lapso de audição [Verhören] ) -
na hipótese, naturalmente, de não haver qualquer perturbação orgânica de sua
capacidade auditiva. Outro grupo desses fenômenos tem como sua base o esquecimento
[Vergessen] - não, no entanto, um esquecimento permanente, mas apenas um
esquecimento temporário. Assim, uma pessoa pode ser incapaz de se lembrar de
uma palavra que conhece, apesar de tudo, e que reconhece de imediato, ou pode
esquecer de executar uma intenção, embora dela se lembre mais tarde,
tendo-a esquecido apenas naquele determinado momento. Em um terceiro grupo o
caráter temporário está ausente - por exemplo, no caso de extravio
[Verlegen], quando a pessoa colocou uma coisa em algum lugar e não consegue
encontrá-la novamente, ou no caso precisamente igual de perda [Verlieren].
Aqui temos um esquecimento que tratamos diferentemente de outras formas de
esquecimento, um caso em que ficamos surpresos ou aborrecidos em vez de
considerá-lo compreensível. Além de tudo isso, há determinadas espécies de erros
[Irrtümer], nos quais o caráter temporário está presente mais uma vez:
pois, no caso destes, por um certo espaço de tempo acreditamos saber algo que,
antes ou depois desse período, na realidade não sabemos. E existem numerosos
outros fenômenos semelhantes, conhecidos por diversos nomes.
Todas essas são ocorrências cuja afinidade
interna recíproca é expressa pelo fato de [em alemão] sua designação começar
com a sílaba ‘ver‘. Quase todas carecem de importância, na maioria são
muito transitórias e são destituídas de muita importância na vida humana.
Apenas raramente, como no caso da perda de um objeto, um fenômeno desses assume
certo grau de importância prática. Também por esse motivo chamam pouco a
atenção, fazem surgir nada mais que tênues emoções, e assim por diante.
É para esses fenômenos, também, que agora
proponho chamar a atenção dos senhores. Porém, irão protestar com certo enfado:
‘Há tantos problemas ingentes no amplo universo, assim como dentro dos
estreitos limites de nossas mentes, tantas maravilhas no campo dos distúrbios
mentais, que exigem e merecem elucidação, que parece realmente injustificado
investir trabalho e interesse em tais trivialidades. Se o senhor puder
fazer-nos compreender por que uma pessoa com olhos e ouvidos sãos pode ver e
ouvir, em plena luz do dia, coisas que não se encontram ali; por que outra
pessoa subitamente pensa estar sendo perseguida pelas pessoas das quais foi,
até então, muito amiga, ou apresenta os mais engenhosos argumentos em apoio de
suas crenças delirantes, que qualquer criança poderia ver que são disparatadas,
então deveríamos ter algum apreço pela psicanálise. Entretanto, se ela não pode
fazer mais que nos pedir para considerarmos por que um orador, num banquete,
emprega uma palavra em vez de outra, ou por que uma dona de casa extraviou suas
chaves, e futilidades semelhantes, então saberemos como empregar melhor nosso
tempo e interesse.’
Eu responderia: Paciência, senhoras e senhores!
Penso que suas críticas perderam o rumo. É verdade que a psicanálise não pode
vangloriar-se de jamais haver-se ocupado de trivialidades. Pelo contrário, o
material para sua observação é geralmente proporcionado pelos acontecimentos
banais, postos de lado pelas demais ciências como sendo bastante
insignificantes - o refugo, poderíamos dizer, do mundo dos fenômenos. Porém, não
estão os senhores fazendo confusão, em suas críticas, entre a vastidão dos
problemas e a evidência que aponta para eles? Não existem coisas muito
importantes que, sob determinadas condições e em determinadas épocas, só se
podem revelar por indicações bastante débeis? Eu não encontraria dificuldade
para fornecer-lhes diversos exemplos de tais situações. Se o senhor, por
exemplo, é um homem jovem, não será a partir de pequenos indícios que concluirá
haver conquistado os favores de uma jovem? Esperaria uma expressa declaração de
amor, ou um abraço apaixonado? Ou não seria suficiente um olhar, que outras
pessoas mal perceberiam, um ligeiro movimento, o prolongamento, por um segundo,
da pressão de sua mão? E se fosse um detetive empenhado em localizar um assassino,
esperaria achar que o assassino deixou para trás sua fotografia, no local do
crime, com seu endereço assinalado? Ou não teria necessariamente de ficar
satisfeito com vestígios fracos e obscuros da pessoa que estivesse procurando?
Assim sendo, não subestimemos os pequenos indícios; com sua ajuda podemos obter
êxito ao seguirmos a pista de algo maior. Ademais, penso, como os senhores, que
os grandes problemas do universo e da ciência são aqueles que mais exigem nosso
interesse. É, porém, muito raro alguém manter a expressa intenção de se devotar
à pesquisa deste ou daquele grande problema. Fica-se então sem poder saber qual
o primeiro passo a dar. É mais promissor, no trabalho científico, atacar o que
quer que esteja imediatamente à nossa frente e ofereça uma oportunidade à
pesquisa. Agindo dessa forma, realmente com afinco e sem preconceito ou sem
prevenções, e tendo-se sorte, então, desde que tudo se relaciona com tudo,
inclusive as pequenas coisas com as grandes, pode-se, mesmo partindo de um
trabalho despretensioso, ter acesso ao estudo dos grandes problemas. É isso que
eu devia dizer, a fim de manter o interesse dos senhores quando tratamos dessas
trivialidades tão evidentes como o são as parapraxias de pessoas sãs.
Peçamos, agora, auxílio a alguém que nada saiba
de psicanálise, e perguntemos-lhe como explica essas ocorrências. Sua primeira
resposta certamente será: ‘Ora, não há o que explicar: não passam de pequenos
acontecimentos ao acaso.’ O que o amigo quer dizer com isso? Estará afirmando
existirem ocorrências, embora pequenas, que escapam à concatenação universal
dos fatos - ocorrências que tanto poderia haver como não haver? Se alguém
comete uma infração desse tipo no determinismo dos eventos naturais em um só
ponto, significa que atirou fora toda a Weltanschauung da ciência. A própria
Weltanschauung da religião, podemos lembrar-lhe, se comporta de maneira
mais coerente, porque dá explícita garantia de que nenhum pardal cai do telhado
sem a vontade de Deus. Penso que nosso amigo hesitará em tirar a conclusão
lógica dessa primeira resposta; mudará de opinião e dirá que, afinal, quando
vir a estudar essas coisas, poderá encontrar explicações para elas. O que está
em questão são pequenas falhas no funcionamento, imperfeições na atividade
mental, cujos determinantes podem ser especificados. Um homem que em geral
consegue falar corretamente, pode cometer um lapso de língua (1) se está
ligeiramente indisposto e cansado, (2) se está excitado e ( 3 ) se está
excessivamente ocupado com outras coisas. É fácil comprovar essas afirmações.
Os lapsos de língua realmente acontecem com especial freqüência quando se está
cansado, quando se tem dor de cabeça ou quando se está ameaçado de enxaqueca.
Nas mesmas circunstâncias, os nomes próprios são esquecidos com facilidade.
Algumas pessoas estão acostumadas a reconhecer a aproximação de um ataque de
enxaqueca quando nomes próprios lhes escapam dessa forma . Quando estamos excitados, também, amiúde cometemos erros com
palavras - assim como com coisas, e segue-se um ‘ato descuidado’. Intenções são
esquecidas e numerosos outros atos não premeditados se tornam perceptíveis se
estamos distraídos - isto é, propriamente falando, se estamos concentrados em
alguma coisa. Um conhecido exemplo de tal distração é o professor em Fliegende
Blätter, que perde seu guarda-chuva e pega o chapéu errado porque está
pensando nos problemas que terá de abordar no livro seguinte. Todos nós podemos
recordar, de nossa própria experiência, exemplos de como nos é possível
esquecer intenções que tivemos e promessas que fizemos, por termos nesse
entremeio passado por alguma experiência absorvente.
Tal coisa soa bastante razoável e parece não
ser passível de contradição, embora possa afigurar-se não muito interessante,
talvez, e não ser o que esperávamos. Vejamos mais de perto essas explicações
sobre parapraxias. As supostas precondições para a ocorrência desses fenômenos
não são todas da mesma espécie. Estar doente e ter distúrbios de circulação
fornecem um motivo fisiológico de deterioração do funcionamento normal; a
excitação, a fadiga e a distração são fatores de outra espécie que poderiam ser
descritos como psicofisiológicos. Esses últimos comportam fácil tradução para a
teoria. Tanto a fadiga como a distração e, talvez, também a excitação geral realizam
uma divisão da atenção, que pode resultar em que seja dirigida atenção
insuficiente para a função em apreço. Nesse caso, a função pode ser perturbada
com especial facilidade ou executada com descuido. Uma ligeira doença ou
mudanças no suprimento sangüíneo ao órgão nervoso central podem ter o mesmo
efeito, influenciando de modo similar o fator determinante, a divisão da
atenção. Em todos esses casos, portanto, seria uma questão de efeito de um
distúrbio da atenção, de causas orgânicas ou físicas.
Isso parece não prometer muito ao nosso
interesse psicanalítico. Poderíamos sentir-nos tentados a abandonar o tema. Se,
no entanto, examinarmos as observações mais atentamente, o que vemos não se
harmoniza inteiramente com essa teoria da atenção das parapraxias, ou, pelo
menos, naturalmente não se regula por ela. Descobrimos que as parapraxias desse
tipo e o esquecimento dessa espécie ocorrem em pessoas que não estão
fatigadas ou distraídas ou excitadas, mas que estão, sob todos os aspectos, em
seu estado normal - a menos que decidamos atribuir ex post facto às
pessoas em questão, puramente por conta de suas parapraxias, uma excitação que,
entretanto, elas mesmas não comportam. Nem pode, simplesmente, tratar-se do
caso de uma função ser garantida através de um incremento da atenção dirigida a
ela, e ser comprometida se essa atenção é reduzida. Há grande número de ações
efetuadas de forma puramente automática, com muito pouca atenção, não obstante
com total segurança. Um caminhante, que mal sabe aonde está indo, mantém-se no
caminho certo, malgrado isso, e pára em seu destino sem se haver perdido
[vergangen]. Ora, em todos os casos, isso é como uma regra. Um exímio
pianista toca as teclas certas, sem pensar. Pode naturalmente cometer um erro
ocasional; porém, se o tocar automático aumentasse o risco de errar, esse risco
seria máximo para um virtuose, cuja forma de tocar, em conseqüência de
prolongada prática, se tornou inteiramente automática. Sabemos, pelo
contrário, que muitas ações são efetuadas com um grau de precisão muito
especial se não são objeto de um nível especialmente elevado de atenção, e que
o infortúnio de uma parapraxia está fadado a ocorrer precisamente quando se
atribui importância especial ao funcionamento correto, portanto deveras sem que
houvesse distração da atenção necessária. Poder-se-ia argüir que isso é o
resultado da ‘excitação’, porém é difícil enxergar por que a excitação não
deveria, inversamente, aumentar a atenção dirigida para aquilo que tão
intensamente é desejado. Se, por um lapso de língua, alguém diz o oposto do que
pretende, em um importante discurso ou comunicação oral, dificilmente isso pode
ser explicado pela teoria psicofisiológica ou da atenção.
Existem, ademais, numerosos pequenos fenômenos
secundários no caso das parapraxias, os quais não compreendemos e a cujo
respeito as explicações dadas até agora não trouxeram nenhuma luz. Por exemplo,
se temporariamente esquecemos um nome, aborrecemo-nos com isso, fazemos tudo
para recordá-lo e não podemos nos resignar. Por que, nesses casos, é tão
extremamente raro lograrmos orientar nossa atenção, pois enfim estamos ansiosos
por fazê-lo, à palavra que (como dizemos) está ‘na ponta da língua’ e que
reconhecemos de pronto quando é dita para nós? Ou ainda: há casos em que as
parapraxias se multiplicam, formam cadeias e se substituem umas às outras. Numa
primeira ocasião alguém perdeu um compromisso. Na ocasião seguinte, quando se
decidiu firmemente não esquecer desta vez, verifica-se que se faz
anotação da hora errada. Ou tenta-se chegar, por vias indiretas, a uma palavra
esquecida, e nisso escapa uma segunda palavra que poderia ter ajudado a
encontrar a primeira. Procurando-se por essa segunda palavra, uma terceira
desaparece, e assim por diante. Como bem se sabe, o mesmo acontece com os erros
de impressão, que devem ser considerados as parapraxias do compositor. Um
teimoso erro de impressão dessa espécie, segundo se conta, certa vez
esgueirou-se para dentro de um jornal social-democrata. A notícia que dava de
uma cerimônia incluía as palavras: ‘Entre os que estavam presentes, podia-se
notar Sua Alteza o Kornprinz.‘ No dia seguinte, fez-se uma tentativa de
correção. O jornal pedia desculpas e dizia: ‘Devíamos, naturalmente, ter dito “o
Knorprinz”.’ Em tais casos, as pessoas falam de um ‘demônio dos erros de
impressão’ ou um ‘demônio da composição tipográfica’ - expressões que, pelo
menos, vão além de qualquer teoria psicofisiológica dos erros de impressão.
Talvez lhes seja também conhecido o fato de ser
possível provocar lapsos de língua, produzi-los, digamos assim, por sugestão.
Uma anedota ilustra esse fato. Tinha sido confiado a um estreante dos palcos o
importante papel, em Die Jungfrau von Orleans [de Schiller], do
mensageiro que anuncia ao rei de ‘der Connétable schickt sein Schwert zurück [o
Condestável devolve sua espada]’. Um primeiro ator divertia-se, durante os
ensaios, com induzir repetidamente o nervoso jovem a dizer, em vez das palavras
do texto: ‘der Komfortabel schickt sein Pferd zurück [o cocheiro devolve seu
cavalo]’. Conseguiu seu intento: o desventurado principiante realmente fez sua
estréia na representação com a versão corrompida, apesar de haver sido
admoestado de não fazê-lo, ou, talvez, porque tenha sido admoestado.
Nenhuma luz é lançada sobre esses pequenos
aspectos das parapraxias com a teoria da falta de atenção. Porém, não significa
necessariamente que a teoria seja errônea, em face dessa explicação; ela
simplesmente pode estar carecendo de algo, de algum acréscimo, para que venha a
ser completamente satisfatória. Contudo, algumas das parapraxias também podem
ser consideradas por outro prisma.
Tomemos os lapsos de língua como o tipo
de parapraxia mais adequado a nossos propósitos - embora pudéssemos igualmente
ter escolhido lapsos de escrita ou lapsos de leitura. Devemos ter em mente que,
até aqui, apenas perguntamos quando - sob que condições - as pessoas cometem
lapsos de língua, e apenas para essa pergunta tivemos uma resposta. Poderíamos,
porém, dirigir nosso interesse para outro aspecto e indagar por que razão o erro
ocorreu dessa determinada forma e não de outra; e poderíamos considerar o que é
que emerge no lapso propriamente dito. Os senhores observarão que, enquanto
essa pergunta não for respondida e nada for respondido e nada for elucidado
sobre o lapso, o fenômeno permanece como evento casual, do ponto de vista
psicológico, embora dele se tenha dado uma explicação fisiológica. Se eu
cometesse um lapso de língua, poderia obviamente fazê-lo em número infinito de
formas, a palavra certa poderia ser substituída por alguma palavra entre
milhares de outras, ser distorcida em incontáveis direções diferentes. Existe,
pois, algo que, no caso particular, me compele a cometer o lapso de uma
determinada forma; ou isso continua sendo uma questão de acaso, de escolha
arbitrária, e se trata, talvez, de uma pergunta a que não se pode dar qualquer
resposta sensata?
Dois escritores, Meringer e Mayer (um,
filólogo, o outro, psiquiatra), de fato tentaram, em 1895, atacar o problema
das parapraxias por esse ângulo. Coligiram exemplos e começaram por abordá-los
de maneira puramente descritiva. Isso, naturalmente, até aqui não oferece
nenhuma explicação, embora possa preparar o caminho para alguma. Distinguem os
diversos tipos de distorções que o lapso impõe ao discurso pretendido, como ‘transposições’,
‘pré-sonâncias [antecipações]’, ‘pós-sonâncias [perseverações]’, ‘fusões
(contaminações)’ e ‘substituições’. Eu lhes darei alguns exemplos desses
principais grupos propostos pelos autores. Um exemplo de transposição seria
dizer ‘a Milo de Vênus‘ em vez de ‘a Vênus de Milo’ (transposição da
ordem das palavras); um exemplo de pré-sonância [antecipação] seria: ‘es war
mir auf der Schwest… auf der Brust so schwer’; e uma pós-sonância
[perseveração] seria exemplificada pelo conhecido brinde que saiu errado: ‘Ich
fordere Sie auf, auf das Wohl unseres Chefs aufzustossen’ [em vez
de ‘anzustossen’]. Essas três formas de lapso de língua não são propriamente
comuns. Os senhores encontrarão exemplos muito mais numerosos, nos quais o
lapso resulta de contração ou fusão. Assim, por exemplo, um cavalheiro
dirige-se a uma senhora na rua com as seguintes palavras: ‘Se me permite,
senhora, gostaria de a begleit-digen.‘ A palavra composta que se juntou
a ‘begleiten [acompanhar]’ evidentemente escondeu em si ‘beleidigen
[insultar]’. (Diga-se de passagem, o jovem provavelmente não teve muito êxito
com a senhora.) Como exemplo de substituição, Meringer e Mayer citam o caso de
alguém que diz: ‘Ich gebe die Präparate in den Briefkasten’ em vez de ‘Brütkasten’.
A explicação em que esses autores tentaram
basear sua coleção de exemplos, é especialmente inadequada. Acreditam que os
sons e as sílabas de uma palavra têm uma ‘valência’ determinada, e que a
inervação de um elemento de alta valência pode exercer uma influência perturbadora
em outro de menor valência. Com isso, estão evidentemente se baseando nos raros
casos de pré-sonância e pós-sonância; essas preferências de uns sons a outros
(se é que de fato existem) podem não ter absolutamente qualquer relação com
outros casos de lapsos de língua. Afinal, os lapsos de língua mais comuns
ocorrem quando, em vez de dizermos uma palavra, dizemos uma outra muito
semelhante; e essa semelhança é, para muitos, explicação suficiente de tais
lapsos. Por exemplo, um professor declarou em sua aula inaugural: ‘Não estou ‘geneigt
[inclinado]’ (em vez de ‘geeignet [qualificado]’) a valorizar os
serviços de meu mui estimado predecessor.’ Ou então, outro professor observava:
‘No caso dos órgãos genitais femininos, apesar de muitas Versuchungen
[tentações] - me desculpem, Versuche [tentativas] ….’
O tipo mais comum e, ao mesmo tempo, mais
notável de lapsos de língua, no entanto, são aqueles em que se diz justamente o
oposto do que se pretendia dizer. Aqui, naturalmente, estamos muito longe de relações
entre sons e os efeitos de semelhança; e, em vez disso, podemos apelar para o
fato de que os contrários têm um forte parentesco conceitual uns com os outros
e mantêm entre si uma associação psicológica especialmente próxima. Há exemplos
históricos de tais ocorrências. Um presidente da câmara dos deputados de nosso
parlamento certa vez abriu a sessão com as palavras: ‘Senhores, observo que
está presente a totalidade dos membros, e por isso declaro a sessão encerrada.’
Qualquer outra associação conhecida pode atuar
da mesma forma insidiosa, como um contrário, e emergir em circunstâncias
bastante inadequadas. Assim, conta-se que, por ocasião de uma celebração em
honra do casamento de um filho de Hermann von Helmholtz com uma filha de Werner
von Siemens, o conhecido inventor e industrial, a incumbência de saudar à
felicidade do jovem par coube ao famoso fisiologista Du Bois-Reymond. Sem
dúvida, este fez um discurso brilhante, porém encerrou com as palavras:
‘Portanto, longa vida à nova firma Siemens e Haeske!’ Essa era, naturalmente, a
denominação da antiga firma. A justaposição dos dois nomes deve ter sido tão
familiar a um berlinense como Fortnum e Mason o seria a um londrino.
Devemos, portanto, incluir entre as causas das
parapraxias não apenas relações entre sons e semelhança verbal, como também a
influência das associações de palavras. Isso, porém, não é tudo. Em numerosos
casos, parece impossível explicar um lapso de língua, a não ser que levemos em
conta algo que tinha sido dito, ou mesmo simplesmente pensado, em uma frase
anterior. De novo temos aqui um caso de perseveração, como aqueles em que
insistia Meringer, porém de origem mais remota. Devo confessar que sinto, na
totalidade, como se estivéssemos mais longe do que nunca de compreender os
lapsos de língua.
Não obstante, espero não estar equivocado ao
dizer que, durante essa última pesquisa, todos nós tivemos uma nova impressão
desses exemplos de lapsos de língua, e que pode valer a pena considerar um
pouco mais detidamente essa impressão. Examinamos as condições sob as quais em
geral os lapsos de língua ocorrem, e, depois, as influências que determinam o
tipo de distorção produzida pelo lapso. Até agora, no entanto, não dedicamos
nada de nossa atenção ao produto do lapso considerado em si mesmo, sem
referência à sua origem. Se decidimos fazê-lo, não podemos deixar de encontrar,
no final, coragem para dizer que, em alguns exemplos, aquilo que resulta do
lapso de língua tem um sentido próprio. O que queremos dizer com ‘tem um
sentido’? Que o produto do lapso de língua pode, talvez, ele próprio ter o
direito de ser considerado como ato psíquico inteiramente válido, que persegue
um objetivo próprio, como uma afirmação que tem seu conteúdo e seu significado.
Até aqui temos sempre falado em ‘parapraxias [atos falhos]’, porém agora é como
se às vezes o ato falho fosse, ele mesmo, um ato bastante normal, que
simplesmente tomou o lugar de outro, que era o ato que se esperava ou desejava.
O fato de a parapraxia ter um sentido próprio
parece, em determinados casos, evidente e inequívoco. Quando o presidente da
câmara dos deputados, com suas primeiras palavras, encerrou a sessão em
vez de abri-la, sentimo-nos inclinados, em vista de nosso conhecimento das
circunstâncias em que o lapso de língua ocorreu, a reconhecer que a parapraxia
tem um sentido. O presidente não esperava nada de bom da sessão e ficaria
satisfeito se pudesse dar-lhe um fim imediato. Não temos qualquer dificuldade
em chamar a atenção para o sentido desse lapso de língua, ou, por outras palavras,
de interpretá-lo. Ou, então suponhamos que uma mulher diga a outra, em tom de
aparente admiração: ‘Esse lindo chapéu novo, suponho que você mesma o aufgepatzt
[palavra não existente, em lugar de aufgeputzt (enfeitou)], não?’ Ora,
não existe decoro científico que possa impedir-nos de ver por trás desse lapso
de língua as palavras: ‘Esse chapéu é uma Patzerei [droga].’ Ou, noutro
caso, contam-nos que uma senhora, conhecida por seus modos enérgicos, certa
ocasião observava: ‘Meu marido perguntou a seu médico qual dieta devia seguir;
mas o médico lhe disse que não precisava de dieta: ele podia comer e beber o
que eu quero.’ Também nesse caso o lapso de língua tem seu inconfundível outro
lado: estava expressando um programa coerentemente planejado.
Se viesse a acontecer, senhoras e senhores, que
tivessem um sentido não apenas alguns exemplos de lapsos de língua e de
parapraxias em geral, mas considerável número deles, o sentido das
parapraxias, do qual até agora nada ouvimos, se tornaria seu aspecto mais importante
e deslocaria qualquer outra consideração para um plano secundário. Poderíamos,
então, pôr de lado todos os fatores fisiológicos e psicofisiológicos e
dedicar-nos à investigação exclusivamente psicológica do sentido - isto é, da
significação ou do propósito - das parapraxias. Por conseguinte, nos ocuparemos
em testar essa hipótese em grande número de observações.
Antes, porém, de levar a cabo essa intenção,
gostaria de convidá-los a seguir-me ao longo de outra pista. Repetidamente tem
acontecido haver um escritor criativo feito uso de um lapso de língua ou de
alguma outra parapraxia como meio de produzir um efeito pleno de imaginação.
Esse fato isoladamente deve demonstrar-nos que ele considera a parapraxia - o
lapso de língua, por exemplo - como possuidora de um sentido, de vez que a
produziu deliberadamente. Pois o que sucedeu não foi o autor ter cometido um
lapso de escrita acidental e, assim, permitido o uso do mesmo por um de seus
personagens, na qualidade de lapso de língua; ele tenciona trazer algo à nossa
atenção mediante o lapso de língua, e podemos indagar sobre que algo é esse, se
talvez queira sugerir que o personagem em questão esteja distraído e fatigado,
ou esteja prestes a ter um ataque de enxaqueca. Se o autor emprega o lapso como
se este tivesse um sentido, nós, naturalmente, não temos vontade de exagerar a
importância disso. Afinal, um lapso poderia realmente não ter sentido, ser um
evento psíquico casual ou poderia ter um sentido apenas em casos bastante
raros; contudo, ainda assim o autor teria o direito de intelectualizá-lo fornecendo
a ele um sentido, a fim de empregá-lo segundo suas finalidades próprias. E não
seria de surpreender se tivéssemos mais a aprender sobre lapsos de língua com
escritores criativos, do que com filólogos e psiquiatras.
Um exemplo desse tipo pode ser encontrado em Wallenstein
(Piccolomini Ato I, Cena 5), [de Schiller]. Na cena anterior, Max
Piccolomini esposou ardentemente a causa do Duque [de Wallenstein] e esteve
descrevendo apaixonadamente os benefícios da paz, dos quais se tornou cônscio
no decurso de uma viagem enquanto acompanhava a filha de Wallenstein ao campo.
Quando ele deixa o palco, seu pai [Octavio] e Questenbergs, o emissário da
Corte, estão mergulhados em consternação. A Cena 5 continua:
QUESTENBERG Ai de mim! e continua assim?Como,
amigo! deixamo-lo partirNeste delírio - deixá-lo partir?Não chamá-lo de volta
imediatamente,[não abrirSeus olhos, sem perda de tempo?
OCTAVIO (saindo de uma meditação profunda)
Ele vem de abrir meus olhos,E enxergo mais do
que me apraz.
QUEST. Que é isso?
OCT. Amaldiçoem essa viagem!
QUEST. Mas, por quê? Que se passa?
OCT. Vem, vamos juntos, amigos! Preciso seguirA
execrável rota, imediatamente. Meus olhosAgora estão abertos, e devo usá-los.
Vem!(Atrai Q. e o leva consigo.)
QUEST. Que está havendo? Aonde vais, então!?
OCT. Até ela…
QUEST. Até -
OCT. (corrigindo-se.) Até o Duque. Vem,
partamos.[Conforme a tradução inglesa de Coleridge.]
Otávio quis dizer ‘até ele’, ao Duque. Comete,
porém, um lapso de língua e, dizendo ‘até lá’ ao menos revela a nós que
reconheceu claramente a influência que o jovem guerreiro causou em um
entusiasta da paz.
Um exemplo ainda mais impressionante foi
descoberto por Otto Rank [1910a] em Shakespeare. Está em O Mercador de Veneza,
na famosa cena em que o venturoso amante escolhe entre os três cofres… e talvez
o melhor é ler para os senhores a breve descrição de Rank:
‘Um lapso de língua ocorre em O Mercador de
Veneza, de Shakespeare (Ato III, Cena 2) e é, do ponto de vista dramático,
causado de maneira extremamente sutil e empregado com técnica brilhante.
Semelhante ao lapso existente em Wallenstein, para o qual Freud chamou a
atenção, mostra que os dramaturgos possuem uma clara compreensão do mecanismo e
do significado desse tipo de parapraxia, e supõem que o mesmo seja verdadeiro
para sua platéia. Pórcia, que, por vontade de seu pai, teve de escolher um
marido por sorteio, escapou, até então, de todos os seus indesejados
pretendentes por um feliz acaso. Tendo enfim encontrado em Bassanio o
pretendente de sua preferência, tem motivos para temer que também ele venha a
escolher o cofre errado. Ela desejaria muito dizer-lhe que, mesmo assim, ele
poderia ter certeza de seu amor; porém isso lhe é vedado em virtude do
juramento. Nesse conflito íntimo, o poeta faz com que ela diga ao pretendente
preferido:
Por favor, não vos apresseis; esperai um ou
dois dias antes de consultar a sorte, pois, se escolherdes mal, perco vossa
companhia; assim, pois, aguardai um pouco. Alguma coisa me diz (mas não é o
amor) que não quereria perder-vos… Eu poderia ensinar-vos como escolher
bem; mas, então, seria perjura e não o serei jamais. Podeis, pois, fracassar;
porém, se fracassardes, far-me-eis deplorar não haver cometido o pecado de
perjúrio. Malditos sejam vossos olhos!Encantaram-me e partiram-me em duas
partes: uma é vossa e outra é meia vossa; quero dizer, minha; mas, sendo
minha, é vossa e, desse modo, sou toda vossa.
A coisa da qual ela desejava dar a ele apenas
um indício muito sutil, porque devia escondê-la dele de qualquer maneira, ou
seja, que ela, mesmo antes de ele fazer a escolha, era inteiramente dele
e o amava - é precisamente isso que o poeta, com uma maravilhosa sensibilidade
psicológica, faz irromper abertamente em seu lapso de língua; e, com essa
solução artística, logra aliviar tanto a incerteza intolerável do amante como o
suspense do compreensivo auditório diante do resultado de sua escolha.’
Observem também com que habilidade Pórcia, no
fim, reconcilia as duas afirmações contidas em seu lapso de língua, como
resolve a contradição entre elas e como, finalmente, mostra ser o lapso o que
estava correto:
‘Mas, sendo minha, é vossae desse modo, sou
toda vossa.’
Ocasionalmente tem acontecido que um pensador,
cuja atividade se situa fora da medicina, haja revelado, por algo que falou, o
sentido de uma parapraxia, e se tenha antecipado a nossos esforços de
explicá-la. Os senhores, todos, ouviram falar no espirituoso satirista
Lichtenberg (1742-99), de quem Goethe disse: ‘Onde ele faz uma pilhéria, se
esconde um problema.’ Às vezes, a pilhéria também traz à luz a solução
do problema. Nos Witzige und Satirische Einfälle [Witty and Satirical
Thoughts, 1853], de Lichtenberg, encontramos o seguinte: ‘Ele tanto leu Homero,
que sempre lia “Agamemnon” em vez de “angenommen [suposto]”.’
Aqui temos toda a teoria dos lapsos de leitura.
Na próxima vez precisamos ver se podemos
concordar com esses escritores em suas opiniões.
CONFERÊNCIA III - PARAPRAXIAS (continuação)
SENHORAS E SENHORES:
Chegamos, na última vez, à idéia de considerar
as parapraxias não em relação à desejada função que elas perturbavam, mas à sua
própria descrição; e tivemos a impressão de que, em casos especiais, pareciam
revelar um sentido próprio. Refletimos então que, se pudesse ser obtida a
confirmação, em uma escala mais ampla, de que as parapraxias têm um sentido,
seu sentido logo ficaria mais interessante que a investigação das
circunstâncias em que ocorrem. Vamos, mais uma vez, chegar a um acordo sobre o
que se deve entender por ‘sentido’ de processo psíquico. Queremos dizer com
isso tão-somente a intenção à qual serve e sua posição em uma continuidade
psíquica. Na maioria de nossas investigações podemos substituir ‘sentido’ por
‘intenção’ ou ‘propósito’. Tratava-se, então, simplesmente de uma ilusão
enganadora ou de uma exaltação poética das parapraxias quando pensamos
reconhecer nelas uma intenção?
Continuaremos a tomar lapsos de língua como
nossos exemplos. Se agora examinarmos atentamente numerosas observações desse
tipo, encontraremos categorias completas de casos em que a intenção, o sentido,
do lapso é inteiramente visível. Antes de tudo existem aqueles nos quais o que
se pretendia é substituído por seu contrário. O presidente da câmara dos
deputados [ver em [1]] disse, em seu discurso de abertura: ‘Declaro a sessão
encerrada.’ Isso não é nada ambíguo. O sentido e intenção de seu lapso era
encerrar a sessão. ‘Er sagt es ja selbst” é o que estamos tentados a citar: é
apenas uma questão de aceitar suas palavras. Não me interrompam neste ponto,
objetando que isso é impossível, que sabemos que ele não queria encerrar a
sessão e sim abri-la, e que ele mesmo, a quem nós reconhecemos como a única
suprema corte de apelação, poderia confirmar o fato de que queria abri-la. Os
senhores estão se esquecendo de que fizemos o acordo de começarmos considerando
as parapraxias no que concerne à sua própria descrição; sua relação com a
intenção, que elas perturbaram, não será discutida senão mais adiante. De outro
modo, os senhores serão culpados de um erro de lógica, simplesmente por fugirem
do problema ora em exame - por algo que é chamado em inglês ‘begging the
question’.
Em outros casos, nos quais o lapso não expressa
o exato contrário, não obstante um sentido oposto pode ser expresso por ele.
‘Não estou geneigt [inclinado] a valorizar os serviços de meu predecessor [ver
em [1]]. Geneigt não é o contrário de geeignet [qualificado], mas
exprime claramente algo que contrasta nitidamente com a situação na qual o
discurso devia ser feito.
Já em outros casos o lapso de língua apenas
acrescenta um segundo sentido àquele que se pretendia. A frase então soa como
uma contração, uma abreviação ou condensação de diversas frases. Assim, quando
a enérgica senhora dizia: ‘Ele pode comer e beber o que eu quero’ [ver em [1]],
é bem como se ela tivesse dito: ‘Ele pode comer e beber o que ele quer; mas o
que ele tem a ver com querer? Eu é que quero em vez dele.’ Um
lapso de língua muitas vezes dá a impressão de ser uma abreviação desse tipo.
Por exemplo, um professor de anatomia, ao fim de uma conferência sobre as
cavidades nasais, perguntou se seu auditório havia compreendido o que ele
disse, e após geral assentimento prosseguiu: ‘Dificilmente posso acreditar
nisso, pois, mesmo em uma cidade com milhões de habitantes, aqueles que
entendem das cavidades nasais podem ser contados em um dedo…
desculpem-me, nos dedos de uma mão.’ A frase abreviada também possui um sentido
- a saber, que existe apenas uma pessoa que delas entende.
Contrastando com esses grupos de casos, nos
quais a parapraxia por si mesma revela seu sentido, existem outros em que a
parapraxia não produz nada que tenha algum sentido próprio, e que, por
conseguinte, contrariam nitidamente nossas expectativas. Se alguém deturpa um
nome próprio através de um lapso de língua ou agrupa uma série anormal de sons,
esses eventos muito comuns, isoladamente considerados, parecem dar uma resposta
negativa à nossa pergunta sobre se todas as parapraxias têm alguma espécie de
sentido. Um exame mais detido desses exemplos, porém, mostra que essas
distorções são facilmente compreendidas e que absolutamente não existe
diferença tão grande entre esses casos mais obscuros e os anteriores, mais claros.
Um homem, a quem se perguntou a respeito da
saúde de seu cavalo, respondeu: ‘Bem, ele draut [uma palavra sem
sentido] … ele dauert [vai durar] mais um mês, talvez.’ Quando lhe foi
perguntando o que realmente quis dizer, explicou haver pensado que isso era uma
‘traurige [triste] história’. A combinação de ‘dauert‘ e ‘traurig‘
produziu ‘draut‘.
Outro homem, falando de uns acontecimentos que
condenava, prosseguiu: ‘Mas então, os fatos vieram a Vorschwein [palavra
não existente, em vez de Vorschein (luz)]….’ Respondendo a indagações,
confirmou o fato de que havia considerado essas ocorrências ‘Schweinereien‘
[‘repugnantes’, literalmente ‘porcarias’]. ‘Vorschein‘ e ‘Schweinereien‘
combinaram-se para produzir a estranha palavra ‘Vorschwein‘.
Por certo recordam-se do caso do jovem senhor
que perguntou à senhora desconhecida se ele a podia ‘begleitdigen‘ [ver
em [1]]. Aventuramo-nos a dividir esta forma verbal em ‘begleiten
[acompanhar]’ e ‘beleidigen [insultar]’ e nos sentimos muito certos
dessa interpretação, sem precisarmos de qualquer confirmação. Os senhores
verão, a partir desses exemplos, que mesmo esses casos mais obscuros de lapsos
de língua podem ser explicados por uma convergência, uma ‘interferência‘
recíproca entre duas elocuções desejadas; as diferenças entre esses casos de
lapsos surgem meramente do fato de, em algumas ocasiões, uma intenção tomar
completamente o lugar da outra (uma substitui a outra), como nos lapsos de
língua que exprimem o contrário; ao passo que, em outras ocasiões, uma intenção
se satisfaz distorcendo ou modificando a outra, de modo que se produzem
estruturas compostas, que fazem sentido, em maior ou menor grau, por sua
própria conta.
Parecemos agora haver desvendado o segredo de
grande número de lapsos de língua. Se retivermos na memória essa descoberta,
seremos capazes de compreender também outros grupos que até agora se
constituíram em enigma para nós. Nos casos de distorção de nomes, por exemplo,
não podemos supor que se trate sempre de uma questão de competição entre dois
nomes semelhantes, mas diferentes. Não é difícil, no entanto, entrever a
segunda intenção. A distorção de um nome ocorre, muito freqüentemente, sem
haver lapsos de língua; procura dar ao nome um tom ofensivo ou fazê-lo soar
como algo inferior, e é um costume conhecido (ou mau costume) destinado a
insultar, que as pessoas civilizadas cedo aprendem a abandonar, porém relutam
em abandonar. Muitas vezes ainda é permitida como brincadeira, embora
brincadeira pouco digna. Como exemplo notório e deselegante dessa forma de
distorcer nomes, posso mencionar que, nos dias atuais [da Primeira Guerra
Mundial], o nome do presidente da República Francesa, Poincaré, foi
transformado em ‘Schweinskarré‘. Portanto, é plausível supor que a mesma
intenção insultuosa esteja presente nesses lapsos de língua e procure encontrar
expressão na distorção de um nome. Explicações semelhantes acodem ao espírito,
na mesma ordem de coisas, quando se trata de certos exemplos de lapsos de
língua com efeitos cômicos ou absurdos. ‘Eu os convido a arrotar [aufzustossen]
à saúde de nosso Chefe [ver em [1]].’ Aqui, uma atmosfera de cerimônia é
inesperadamente perturbada pela intromissão de uma palavra que evoca uma idéia
condenável, e, à maneira de certas frases insultuosas e ofensivas, mal podemos
evitar a suspeita de que uma intenção procurava encontrar expressão e estava em
violenta contradição com as palavras ostensivamente respeitosas. O que o lapso
de língua parece ter estado dizendo era mais ou menos isto: ‘Não acreditem! Isso
não é a sério. Pouco me importa esse sujeito!’ Quase a mesma coisa se aplica a
lapsos de língua que transformam palavras inocentes em outras, indecentes ou
obscenas. Assim, ‘Apopos‘ em vez de ‘à propos‘, ou ‘Eischeissweibchen‘
por ‘Eiweissscheibchen‘.Muitas pessoas, como sabemos, tiram alguma
satisfação de um costume como esse de distorcer deliberadamente palavras
inocentes em obscenas; tais distorções são vistas como engraçadas, e ao
ouvirmos uma delas devemos, de fato, primeiro indagar do interlocutor se a
disse intencionalmente, como brincadeira, ou se ela ocorreu como lapso de
língua.
Bem, está parecendo como se tivéssemos
resolvido o problema das parapraxias, e com bem pouca dificuldade! Não são
eventos casuais, porém atos mentais sérios; têm um sentido; surgem da ação
concorrente - ou, talvez, da ação de mútua oposição - de duas intenções
diferentes. Agora, contudo, vejo também que os senhores estão se preparando
para apresentar-me uma avalanche de perguntas e de dúvidas, que terão de ser
respondidas e abordadas antes de podermos apreciar esse primeiro resultado de
nosso trabalho. Certamente não tenho qualquer desejo de forçar os senhores a
decisões apressadas. Vamos tomá-las na devida ordem, uma após outra e
dedicar-lhes uma tranqüila atenção.
O que é que os senhores desejam perguntar-me?
Penso eu que essa explicação se aplica a todas as parapraxias ou apenas
a determinado número delas? Pode este mesmo ponto de vista ser estendido aos
muitos outros tipos de parapraxias, aos lapsos de leitura, aos lapsos de
escrita, ao esquecimento, aos atos descuidados, aos extravios, e assim por
diante? Em vista da natureza psíquica das parapraxias, que significação resta
aos fatores de fadiga, excitação, distração e interferência na atenção? E mais,
é claro que das duas intenções rivalizantes de uma parapraxia uma delas sempre
está manifesta, porém a outra, nem sempre. Que fazemos, então, para descobrir
essa outra? E, se pensamos tê-la descoberto, como provamos que se trata não
apenas de uma intenção provável, mas da única que é a correta para o caso?
Existe algo mais que desejam perguntar-me? Se não, vou prosseguir. Os senhores
se lembrarão de que não damos muito valor às parapraxias em si mesmas e tudo o
que queremos é aprender, partindo de seu estudo, algo que possa resultar em
benefício da psicanálise. Por conseguinte, eu lhes apresento esta questão. Que
intenções ou que propósitos são esses, capazes de perturbar outros dessa
maneira? E quais são as relações entre as intenções que perturbam e as
intenções que são perturbadas? Logo, o problema não é resolvido, a menos que
recomecemos nosso trabalho.
Assim, pois, em primeiro lugar, é essa a
explicação para todos os casos de lapsos de língua? Estou muito
inclinado a pensar que sim e meu motivo é que, sempre ao se investigar um
exemplo de lapso de língua, surge uma explicação desse tipo. No entanto,
realmente também não há maneira de provar que um lapso de língua não possa
ocorrer sem esse mecanismo. Pode ser assim; mas, teoricamente, é uma questão
sem interesse para nós, de vez que permanecem as conclusões que desejamos tirar
para nossa introdução à psicanálise, embora - este não é certamente o caso -
nossa opinião seja válida apenas para uma minoria dos casos de lapsos de
língua. À questão seguinte - saber se podemos estender a outros tipos de
parapraxias nosso ponto de vista - responderei de antemão com um ‘sim’. Os
senhores serão capazes de se convencer disso ao virmos examinar exemplos de
lapsos de escrita, de atos descuidados, e outros mais. Por motivos técnicos,
porém, sugiro que adiemos essa tarefa até havermos abordado os lapsos de língua
de forma ainda mais completa.
Exige-se uma resposta mais detalhada à pergunta
sobre que significação resta aos fatores postos em evidência pelos autores
mencionados - distúrbios da circulação, fadiga, excitação, distração e a teoria
da perturbação da atenção - se aceitamos o mecanismo psíquico dos lapsos de
língua que descrevemos. Observem que não estamos negando esses fatores. Em
geral não é muito comum a psicanálise negar algo que outras pessoas
afirmam; via de regra, ela apenas acrescenta algo novo - embora, sem dúvida,
vez e outra sucede esse algo, que até então foi negligenciado e é agora
apresentado como um acréscimo novo, ser de fato a essência do assunto. A
influência das condições fisiológicas sobre a produção dos lapsos de língua
mediante uma ligeira doença, distúrbios da circulação ou estados de exaustão
deve ser reconhecida de imediato; a experiência cotidiana e pessoal os
convencerá disso. Mas, que pouca coisa elas explicam! Antes de tudo, elas não
são precondições necessárias das parapraxias. Lapsos de língua ocorrem, com a
mesma possibilidade, em perfeita saúde e em estado normal. Esses fatores
somáticos, portanto, apenas servem para facilitar e favorecer o especial mecanismo
mental dos lapsos de língua. Certa vez usei de uma analogia para descrever essa
relação, e vou repeti-la aqui, porquanto posso supor não haver outra melhor que
a substitua. Suponhamos que, numa noite escura, eu fosse a um local ermo e ali
fosse atacado por um meliante, que carregasse com meu relógio e minha carteira.
Como não visse claramente o rosto do ladrão, faria minha queixa no posto
policial mais próximo, com as palavras: ‘Isolamento e escuridão roubaram meus
pertences.’ O funcionário da polícia poderia então dizer-me: ‘Pelo que o senhor
diz, parece estar adotando injustificadamente uma opinião extremamente
esquemática. Seria melhor apresentar os fatos assim: “Valendo-se da escuridão e
favorecido pelo isolamento do lugar, um ladrão desconhecido roubou os pertences
do senhor.” Em seu caso, me parece que a tarefa principal é que devemos
encontrar o ladrão. Talvez, então, sejamos capazes de recuperar o produto do
roubo.’
Esses fatores psicofisiológicos como a
excitação, a distração e os distúrbios da atenção muito pouco nos vão ajudar
com vistas a uma explicação. Eles são apenas frases vazias, são biombos atrás
dos quais não devemos nos sentir impedidos de lançar um olhar. A pergunta
deveria ser: o que foi causado pela excitação, pela distração especial da
atenção? Ademais, devemos reconhecer a importância da influência dos sons, da
semelhança das palavras e das associações habituais suscitadas pelas palavras.
Estas facilitam os lapsos de língua por apontarem os caminhos que esses lapsos
podem tomar. Contudo, se tenho um caminho aberto diante de mim, esse fato
automaticamente decide que eu o tomaria? Preciso de um motivo a mais, antes de
me resolver por ele e, além disso, de uma força que me impulsione pelo caminho.
Assim, essas relações de sons e palavras constituem também, do mesmo modo como
as condições somáticas, exclusivamente coisas que favorecem os lapsos de
língua e não podem proporcionar a verdadeira explicação para eles. Considerem
apenas isso: em uma imensa quantidade de casos meu falar não é perturbado pela
circunstância de as palavras, que estou usando, lembrarem outras com som
semelhante, de serem intimamente vinculadas a seus contrários, ou de
associações correntes delas derivarem. E talvez pudéssemos encontrar uma saída
acompanhando o filósofo Wundt, quando diz que os lapsos de língua surgem se, em
conseqüência de exaustão física, a tendência a associar prevalece sobre aquilo
que a pessoa tenciona dizer. Seria muito convincente se não fosse contrariado
pela experiência, que mostra que numa série de casos os fatores somáticos
facilitadores dos lapsos de língua estão ausentes, e que em outra série de
casos os fatores associativos, que os facilitam, estão igualmente
ausentes.
Entretanto, estou particularmente interessado
em sua pergunta seguinte: Como se descobrem as duas intenções que se interferem
mutuamente? Os senhores provavelmente não percebem como é importante a
pergunta. Uma das duas intenções, aquela que é perturbada, naturalmente é
inequívoca: a pessoa que comete o lapso de língua conhece-a e a admite. É
somente a outra, a intenção que perturba, que pode dar origem à dúvida e à
hesitação. Ora, já temos visto, e sem dúvida os senhores não o esqueceram, que
em numerosos casos essa outra intenção é igualmente evidente. É indicada pelo efeito
do lapso, bastando que tenhamos a coragem de reconhecer nesse efeito uma
validade própria. Seja o caso do presidente da câmara dos deputados, cujo lapso
de língua disse o contrário do tencionado. E claro que desejava abrir a sessão,
porém é igualmente claro que também desejava encerrá-la. Isso é tão óbvio que
não nos deixa nada por interpretar. Nos outros casos, contudo, nos quais a
intenção perturbadora apenas distorce a intenção original sem que ela
mesma consiga completa expressão, como é que, partindo da distorção, chegamos à
intenção perturbadora?
Em um primeiro grupo de casos, isso se faz de
maneira bastante simples e segura - com efeito, da mesma maneira como se tem a
intenção perturbada. Fazemos o interlocutor dar-nos a informação
diretamente. Depois do lapso de língua, ele prontamente diz as palavras que
originalmente pretendia: ‘Draut… não, dauert [vai durar] mais um
mês, talvez.’ [ver em [1]]. Pois bem, exatamente da mesma forma o fazemos dizer
qual a intenção que perturba. ‘Por que’, lhe perguntamos, ‘o senhor
disse “draut”?’ Ele responde: ‘Eu queria dizer “É uma traurige [triste]
história”.’ De maneira semelhante, em outro caso, em que o lapso de língua era
‘Vorschwein‘ [ver em [1]], a pessoa confirma o fato de que desejava
inicialmente dizer ‘É uma Schweinerei [porcaria]’, porém se controlou e
saiu-se com outro comentário. Aqui, pois, a intenção que distorce fica
estabelecida tão seguramente como aquela que foi distorcida. Minha escolha
desses exemplos não foi sem propósito, de vez que sua origem e sua solução não
procedem nem de mim nem de meus seguidores. E em ambos esses casos medidas
ativas de alguma espécie foram necessárias para se chegar à solução. Foi
preciso perguntar ao orador por que cometera o lapso e o que poderia dizer
sobre o mesmo. De outro modo, seu lapso poderia ter-lhe passado despercebido,
sem desejar explicá-lo. Quando, porém, foi indagado a respeito, deu a
explicação com a primeira coisa que lhe ocorreu. E agora, por favor, observem
que esse pequeno passo positivo e seu resultado bem-sucedido já são uma
psicanálise, e constituem um modelo para todas as investigações psicanalíticas
que empreenderemos daqui por diante.
Serei demais desconfiado, porém, se suspeito
que, exatamente no momento em que a psicanálise faz seu aparecimento perante os
senhores, a resistência a ela desperta, simultaneamente? Não se sentem os
senhores inclinados a objetar que a informação dada pela pessoa a quem foi
feita a pergunta - a pessoa que cometeu o lapso de língua - não é totalmente
conclusiva? Ela estava naturalmente desejosa, pensam os senhores, de atender à
solicitação de explicar o lapso, e assim disse a primeira coisa que lhe veio à
cabeça e que parecia capaz de fornecer tal explicação. Isso, porém, não é
nenhuma prova de que o lapso realmente ocorreu dessa maneira. Pode ter
sido assim; contudo, também pode ter sucedido de outra forma. E poderia ter-lhe
ocorrido mais alguma coisa, que seria também apropriada, ou talvez até mesmo
mais bem ajustada.
É estranho quão pouco respeito os senhores, no
fundo, têm por um ato psíquico. Imaginem que alguém tivesse empreendido a
análise química de determinada substância e encontrado determinado peso para um
de seus componentes: tantos e tantos miligramas. Determinadas inferências
seriam deduzidas desse peso. Ora, supõem os senhores que alguma vez ocorreria a
um químico criticar essas inferências com base no fato de que a substância
isolada poderia igualmente ter tido algum outro peso? Todos se curvarão ante o
fato de que o peso era esse e nenhum outro, e confiantemente tirarão daí suas
ulteriores conclusões. No entanto, quando os senhores se defrontam com o fato
psíquico de que determinada coisa ocorreu à mente da pessoa interrogada, não
querem admitir a validade do fato: alguma outra coisa poderia ter-lhe ocorrido!
Os senhores acalentam a ilusão de haver uma coisa como liberdade psíquica e não
querem desistir dela. Lamento dizer que discordo categoricamente dos senhores a
este respeito.
Perante isso irão interromper-se, porém apenas
para retomar sua resistência em outro ponto. E prosseguirão: ‘Constitui técnica
especial da psicanálise, segundo entendemos, tomarem análise as próprias
pessoas a fim de obter a solução de seus problemas. [ver em [1], adiante.]
Agora tomemos um novo exemplo: aquele em que um orador, convocando a um brinde
de homenagem numa ocasião de cerimônia, convidou seus ouvintes a arrotar [aufzustossen]
à saúde do chefe [ver em [1]].O senhor diz [ver em [1] e [2]] que a intenção
perturbadora, nesse caso, era uma intenção de insultar: era essa que estava
opondo-se à expressão de respeito do orador. É, contudo, mera interpretação da
parte do senhor, baseada em observações não relacionadas com o lapso de língua.
Se, nesse exemplo, o senhor interrogasse a pessoa responsável pelo lapso, ela
não confirmaria a idéia do senhor, de que ela tencionava um insulto; ao
contrário, ela repudiaria isso energicamente. Por que, em face desse claro
desmentido, não abandona sua improvável interpretação?’
Sim. Os senhores encontraram um argumento
poderoso desta vez. Posso imaginar o desconhecido proponente do brinde.
Provavelmente é subordinado do chefe do departamento, a quem está sendo feita a
homenagem - talvez ele mesmo já seja professor-assistente, um homem jovem, com
excelentes projetos de vida. Procuro forçá-lo a admitir que ele pode, não
obstante, ter tido uma sensação de que nele havia algo se opondo ao brinde em
honra do chefe. Entretanto, isso me põe em maus lençóis. Ele fica impaciente e,
de repente, irrompe: ‘Pare de querer me interrogar, se não, vou ficar grosseiro.
O senhor vai arruinar toda a minha carreira com suas suspeitas. Apenas falei “aufstossen
[arrotar]” em vez de “anstossen [brindar]”, porque antes disse “auf”
duas vezes na mesma frase. É o que Meringer chama de perseveração e não há nada
mais para ser interpretado nisso. Está entendendo? Basta!‘ - Hum! Que
reação surpreendente - uma negação realmente enérgica. Vejo que não há nada
mais a tratar com o homem. Porém, também constato que ele mostra intenso
interesse pessoal em insistir em que sua parapraxia não tem um sentido. Os
senhores também podem sentir que existe algo de errado em ele ser assim tão
rude com uma indagação puramente teórica. Entretanto pensarão, depois de tudo
dito e feito: ele deve saber o que quis e o que não quis dizer.
Mas, será que sabe mesmo? Talvez seja essa
ainda a questão.
Agora, porém, julgam que me têm à mercê dos
senhores. ‘Então essa é sua técnica’, ouço-os dizer. ‘Quando alguém que cometeu
um lapso de língua diz alguma coisa a respeito, que satisfaz ao senhor, o
senhor o declara autoridade decisiva e final no assunto. “É ele mesmo quem diz!
[ver em [1]]”. Quando o que ele diz não se ajusta ao livro do senhor, então
tudo quanto o senhor diz é que ele não tem importância - não há necessidade de
acreditar nele.
Isso é bastante verdadeiro. Mas posso
trazer-lhes um exemplo semelhante, no qual ocorre o mesmo espantoso evento.
Quando alguém, acusado de um delito, confessa ao juiz sua ação, o juiz acredita
em sua confissão; porém, se nega, o juiz não acredita nele. Se fosse de outra
forma, não haveria aplicação de justiça, e apesar de erros ocasionais devemos
convir em que o sistema funciona.
‘O senhor é um juiz, então? E uma pessoa que
cometeu um lapso de língua é trazida à sua presença sob acusação? Quer dizer
que cometer um lapso de língua é um delito, não é?’
Talvez
não precisemos rejeitar a comparação. Eu, contudo, pedir-lhes-ia observarem que
profundas diferenças de opinião atingimos após uma pequena investigação do que
pareciam ser esses inocentes problemas concernentes às parapraxias - diferenças
que, no momento, não vemos como atenuar. Proponho uma conciliação provisória,
com base na analogia entre juiz e réu. Penso que os senhores convirão comigo em
que não pode haver dúvida de que a parapraxia tenha um sentido, se a própria
pessoa o admite. Em troca, eu vou convir em que não podemos chegar a uma
prova direta do suspeito sentido, se a pessoa nos recusa informações, e também,
naturalmente, se não está em condições de nos fornecer as informações.
Portanto, como no caso da aplicação da justiça, somos obrigados a voltar-nos
para a prova circunstancial, que pode tornar uma decisão mais fundamentada em
alguns casos, e menos, em outros. Nos tribunais de justiça pode ser necessário,
por motivos práticos, considerar um réu culpado com base em provas
circunstanciais. Não temos necessidade disso; nem estamos, contudo, também
obrigados a prescindir de provas circunstanciais. Seria um erro supor que uma
ciência consista inteiramente de teses estritamente comprovadas, e seria
injusto exigir isso. Somente uma pessoa inclinada a uma paixão por autoridade
fará essa exigência, alguém com um desejo insaciável de substituir seu
catecismo religioso por outro, embora científico. A ciência tem apenas algumas
poucas proposições apodícticas em seu catecismo: o resto são asserções
promovidas por ela a um certo grau de probabilidade. Atualmente, constitui
sinal de modo científico de pensamento contentar-se com essas aproximações da
certeza e ser capaz de dedicar-se a um trabalho construtivo mais além, apesar
da ausência de confirmação final.
No entanto, se a pessoa mesma não nos dá a
explicação do sentido de uma parapraxia, onde iremos encontrar os pontos de
partida para nossa interpretação - a prova circunstancial? Em diversas
direções. Em primeiro lugar, a partir de analogias com fenômenos outros que não
as parapraxias: quando, por exemplo, afirmamos que distorcer um nome, isso
ocorrendo como lapso de língua, tem o mesmo sentido insultuoso que a deturpação
deliberada de um nome. Ademais, também a partir da situação psíquica na qual
ocorreu a parapraxia, do caráter da pessoa que comete a parapraxia e das
impressões que a pessoa recebeu antes da parapraxia e às quais a parapraxia
talvez seja uma reação. O que sucede, via de regra, é a interpretação ser
efetuada segundo princípios gerais: começar por onde existe apenas uma
suspeita, uma hipótese de interpretação; e então encontramos uma confirmação ao
examinarmos a situação psíquica. Às vezes, temos de esperar também por eventos
subseqüentes (que, de certa maneira, se anunciaram pela parapraxia) antes de
nossa suspeita ser confirmada.
Não posso facilmente dar-lhes ilustrações desse
aspecto se me limito ao campo dos lapsos de língua, embora nele mesmo se possa
encontrar alguns bons exemplos. O jovem senhor que queria ‘begleitdigen‘
uma senhora [ver em [1]] certamente era uma personalidade tímida. A mulher,
cujo marido podia comer e beber o que ela quisesse [ver em [1]], é o que
eu conheço como uma dessas enérgicas senhoras que mandam em casa. Ou, então,
tomemos o seguinte exemplo: Na assembléia geral do “Concordia” um jovem membro
fez um discurso de violenta oposição, no decorrer do qual se referiu à
diretoria como ‘Vorschussmitglieder [membros do empréstimo]’, uma
palavra que parece ter sido formada de ‘Vorstand [diretoria]’ e ‘Ausschuss
[comissão]’. Suspeitaremos de que alguma intenção perturbadora estivesse
operando nele, trabalhando contra sua violenta oposição, baseada em algo
referente a um empréstimo. E com efeito, soubemos de nosso informante que o
orador estava constantemente em dificuldades financeiras, e justamente nessa
época se havia inscrito para um empréstimo. A intenção perturbadora podia, por
conseguinte, ser substituída pelo pensamento: ‘Modere sua posição, estas são as
mesmas pessoas que irão aprovar seu empréstimo.’
Contudo, tenho condições de dar-lhes um extenso
conjunto de provas circunstanciais desse tipo se me desloco para o vasto campo
das outras parapraxias.
Se alguém esquece um nome próprio que lhe é
normalmente familiar, ou se, malgrado todos os seus esforços, acha difícil
lembrá-lo, é plausível supor que tenha algo contra a pessoa que usa o nome, de
modo que prefere não pensar nela. Considerem, por exemplo, o que aprendemos
sobre a situação psíquica em que ocorreu a parapraxia, nos casos que agora
examinaremos:
‘Herr Y. apaixonou-se por uma senhora, porém
não teve sucesso, e logo depois ela se casou com Herr X. Depois disso, Herr Y.,
apesar de ter conhecido Herr X. por muito tempo e mesmo ter assuntos de
negócios com ele, esquecia seu nome repetidamente, de forma que por diversas
vezes tinha de perguntar a outras pessoas qual era o nome, quando precisava
corresponder-se com Herr X.’ Herr Y. evidentemente nada queria saber de seu
rival mais afortunado: ‘jamais pensar sobre sua existência.’
Ou esse outro: Uma senhora indagou a seu médico
sobre notícias de uma conhecida de ambos, porém mencionou-a por seu nome de
solteira. Ela havia esquecido o nome de casada de sua amiga. Admitiu, depois,
que ficara muito desgostosa com o casamento e se antipatizava com o marido de
sua amiga.
Teremos muito a dizer sobre esquecimento de
nomes em outros contextos [ver em [1] e
seg., adiante]; no momento interessa-nos principalmente a situação psíquica na
qual ocorre o esquecimento.
O esquecimento de intenções pode geralmente ser
atribuído a uma corrente oposta de pensamento, que reluta em executar a
intenção. Essa opinião, porém, não é sustentada apenas por nós, psicanalistas;
é opinião geral, aceita por todos em sua vida diária e negada somente quando se
torna teoria. Um protetor que dá a seu protégé a desculpa de haver
esquecido seu pedido, não precisa justificar-se. O protégé logo pensa:
Não significa nada para ele; é verdade que prometeu, mas na realidade não quer
fazê-lo. Por essa razão o esquecimento é interdito em certas circunstâncias da
vida comum; a diferença entre a opinião popular e a opinião psicanalítica
acerca dessas parapraxias parece haver desaparecido. Imaginem a dona da casa recebendo
seu convidado com as palavras: ‘O quê? O senhor veio hoje? Esqueci-me
totalmente de havê-lo convidado para hoje.’ Ou imaginem um jovem senhor
confessando a sua noiva que ele se esqueceu de comparecer ao último encontro.
Ele certamente não o confessará; preferirá inventar de improviso os mais
improváveis obstáculos que o impediram de comparecer a tempo e que, depois, o
impossibilitaram de avisá-la. Todos sabemos, também, que na vida militar a
desculpa de se haver esquecido algo, em nada ajuda, e não constitui proteção
contra punição; e certamente todos sentimos que essa conduta se justifica. Aqui
de repente todos se unem no pensar que uma determinada parapraxia tem um
sentido e no saber que sentido é esse. Por que não são suficientemente
coerentes para estender seu conhecimento às outras parapraxias e admiti-las
plenamente? Para essa pergunta existe, naturalmente, também uma resposta.
Visto como os leigos têm tão poucas dúvidas
sobre o sentido do esquecimento de intenções, os senhores não ficarão nada surpresos
ao encontrarem escritores empregando essa espécie de parapraxia no mesmo
sentido. Qualquer um dos senhores que tenha visto ou lido Caesar and
Cleopatra, de Bernard Shaw, se lembrará de que, na última cena, César, ao
deixar o Egito, é perseguido pela idéia de que há alguma coisa mais que
tencionara fazer, porém esqueceu. No fim, vem-se a saber o que era:
esquecera-se de dizer adeus a Cleópatra. O dramaturgo, mediante esse pequeno
expediente engenhoso, procura atribuir ao grande César a superioridade que, na
realidade, ele não possui e que jamais desejou. Fontes históricas lhes contarão
que César fez Cleópatra acompanhá-lo a Roma, que ela vivia lá com seu pequeno
Caesarion quando César foi assassinado, e que ela logo depois fugiu da cidade.
Casos de esquecimento de uma intenção em geral
são tão claros que não servem muito a nosso objetivo obter a partir da situação
psíquica uma prova circunstancial do sentido de uma parapraxia. Voltemo-nos,
portanto, para um tipo de parapraxia especialmente ambíguo e obscuro: a perda e
o extravio. Os senhores não terão dúvida em achar inacreditável que nós
próprios podemos desempenhar um papel intencional em coisa tão freqüente como o
é o doloroso acidente de perder algo. Existem, contudo, numerosas observações
semelhantes à que se segue. Um jovem senhor perdeu um lápis de grande valor
estimativo para ele. No dia anterior recebera uma carta de seu cunhado, a qual
terminava com estas palavras: ‘Não tenho atualmente nem disposição nem tempo
para encorajá-lo em sua futilidade e preguiça.’ O lápis, de fato, lhe fora dado
pelo mesmo cunhado. Sem essa coincidência não poderíamos, naturalmente, ter
afirmado que, nessa perda, um papel foi desempenhado pela intenção de se
desfazer do objeto. Casos semelhantes são muito comuns. Perdemos um objeto se
nos desentendemos com a pessoa de quem o ganhamos e não queremos nos lembrar
dela; ou, então, se não gostamos mais do objeto em si mesmo e queremos uma
desculpa para conseguir um outro melhor em seu lugar. A mesma intenção dirigida
contra um objeto também, naturalmente, pode ter um desempenho nos casos de
deixar cair, de quebrar e de destruir coisas. Podemos considerar obra do acaso
quando uma criança em idade escolar, imediatamente antes do aniversário,
estraga ou despedaça algum de seus pertences pessoais como sua mochila ou seu
relógio?
Sequer qualquer um que já tenha sofrido
suficientes vezes o tormento de não poder encontrar algo guardado por ele
mesmo, se sentirá inclinado a acreditar que existe um objetivo em extraviar
coisas. Não são nada raros os casos em que as circunstâncias concomitantes do
extravio indicam uma intenção de se desfazer, temporária ou permanentemente, do
objeto.
O que se segue talvez seja o melhor exemplo de
tal situação. Um homem ainda bem jovem contou-me o seguinte caso: ‘Há alguns
anos havia desentendimentos entre mim e minha esposa. Achava-a muito fria, e
embora de bom grado reconhecesse suas excelentes qualidades, convivíamos sem
quaisquer sentimentos ternos. Um dia. voltando de uma caminhada, deu-me um
livro que havia comprado porque pensou que me interessaria. Agradeci-lhe esse
gesto de “atenção”, prometi ler o livro e o pus de parte. Depois disso jamais
consegui encontrá-lo. Passaram-se meses, durante os quais casualmente eu me
lembrava do livro perdido e fazia vãs tentativas de encontrá-lo. Uns seis meses
mais tarde minha querida mãe, que não morava conosco, caiu doente. Minha esposa
deixou a casa para ir cuidar de sua sogra. A condição da paciente agravou-se e
deu à minha mulher uma oportunidade de revelar o melhor lado de si mesma. Uma
noite, eu regressava a casa cheio de entusiasmo e gratidão pelo que minha
esposa tinha realizado. Aproximei-me de minha escrivaninha, e, sem qualquer
intenção definida, embora com uma espécie de certeza de sonâmbulo, abri uma das
gavetas. Ali, bem à vista, encontrei o livro que há muito eu extraviara. Com a
extinção do motivo o extravio do objeto também cessou.
Senhoras e senhores, poderia multiplicar
indefinidamente essa coleção de exemplos; mas não o farei, aqui. De qualquer forma
os senhores encontrarão uma profusão de material para estudo das parapraxias em
Psychopathology of Everyday Life (publicado pela primeira vez em 1901).
Todos esses exemplos conduzem ao mesmo resultado: indicam a probabilidade de as
parapraxias terem um sentido, e mostram aos senhores como esse sentido é
descoberto ou confirmado pelas circunstâncias concomitantes. Hoje serei mais
breve, pois adotamos o objetivo limitado de usar o estudo desses fenômenos como
auxílio para uma preparação à psicanálise. Há apenas dois grupos de observações
nos quais preciso adentrar-me mais completamente neste ponto: as parapraxias
acumuladas e combinadas e a confirmação de nossas interpretações por
acontecimentos subseqüentes.
As parapraxias acumuladas e combinadas são, sem
dúvida, a fina flor de sua espécie. Se estivéssemos apenas interessados em
provar que as parapraxias têm um sentido, nos teríamos limitado a elas logo de
saída, de vez que em seu caso o sentido é inconfundível até mesmo para um pobre
de espírito e se impõe ao julgamento mais crítico. Um acúmulo desses fenômenos
revela uma persistência que quase nunca constitui característica de eventos
casuais, a qual, porém, se ajusta muito bem a algo intencional. Finalmente, a
permutabilidade recíproca entre diferentes espécies de parapraxias demonstra
que coisa na parapraxia é importante e característica: não é sua forma nem o
método que empregam, mas sim o propósito a que servem, possível de se atingir
das mais variadas formas. Por essa razão, fornecer-lhes-ei um exemplo de
esquecimento repetido. Ernest Jones [1911, 483] conta-nos que, por motivo que
ele desconhece, certa vez deixou por vários dias uma carta sobre sua
escrivaninha. Por fim decidiu expedi-la; a carta, porém, retornou a ele pelo
Dead Letter Office pois havia se esquecido de sobrescritá-la. Depois de
colocado o endereço levou-a ao correio, mas desta vez ela não tinha selo.
Então, por fim, foi obrigado a admitir sua completa relutância em enviar a
carta.
Em outro caso um ato descuidado aparece
combinado com um exemplo de extravio. Uma senhora viajou para Roma com seu
cunhado, que era um artista famoso. O visitante foi recebido com grandes honras
pela comunidade alemã de Roma e, entre outros presentes, deram-lhe uma antiga
medalha de ouro. A senhora ficou agastada porque seu cunhado não apreciou
suficientemente o valioso objeto. Quando regressava a sua casa (o lugar onde
estava, em Roma, ficou ocupado por sua irmã), ao desfazer as malas ela
descobriu que havia trazido a medalha consigo; como, ela não sabia. Imediatamente
enviou a seu cunhado uma carta com a notícia informando que no dia seguinte
devolveria para Roma o objeto que levara consigo. Porém no dia imediato a
medalha foi extraviada de forma tão astuta que não pôde ser encontrada e
remetida; e foi nesse ponto que a senhora começou a compreender o significado
de sua distração: ela queria guardar o objeto para si mesma.
Já lhes dei um exemplo de combinação de um
esquecimento com um erro, o caso de alguém que se esquece de um compromisso e,
numa segunda ocasião, aparece na hora errada, tendo antes decidido firmemente
não esquecê-lo desta vez [ver em [1]]. Um caso exatamente semelhante
foi-me referido, de sua própria experiência, por um amigo que possui interesses
literários e científicos. ‘Há alguns anos’, contou-me, ‘permiti que me
elegessem para a diretoria de certa sociedade literária, pois pensava que a
organização algum dia pudesse ser capaz de me ajudar a ter minha peça
produzida; e embora sem muito interesse, participei regularmente das reuniões
que se realizavam todas as sextas-feiras. Há poucos meses deram-me a promessa
de uma produção no teatro de F.; e, desde então, tenho me esquecido
regularmente das reuniões da sociedade. Ao ler seu livro sobre o assunto
senti-me envergonhado de minha negligência. Reprovei-me com a idéia de que
distanciar-me era uma conduta indigna de minha parte, de vez que agora eu não
estava precisando mais dessas pessoas, e resolvi a qualquer custo não me
esquecer da próxima sexta-feira. Persisti em lembrar-me dessa resolução até
quando a pus em execução e parei diante da porta da sala onde as reuniões se
realizavam. Para minha surpresa, estava fechada; a reunião havia terminado. Eu
havia realmente cometido um engano quanto ao dia; era sábado!’
Seria adequado acrescentar outros exemplos
semelhantes. Devo prosseguir, contudo, e mostrar-lhes num relance os casos em
que nossa interpretação tem de esperar pelo futuro para ser confirmada. A
condição dominante nesses casos, como se verificará, é que a situação psíquica
presente nos é desconhecida ou inacessível a nossas pesquisas. Nossa
interpretação, por conseguinte, não é mais que uma suspeita à qual nós próprios
não atribuímos muita importância. Mais tarde, no entanto, sucede algo que nos
revela quão acertada fora nossa interpretação. Certa vez fui hóspede de um
jovem casal recém-casado e ouvi a jovem senhora descrever, com risos, sua
última experiência. No dia após o regresso da lua-de-mel, convidara sua irmã
solteira para acompanhá-la às compras, como costumava fazer, enquanto seu marido
ia para o trabalho. De repente, reparou em um cavalheiro no outro lado da rua,
e, cutucando sua irmã, exclamou: ‘Olha, aí vai Herr L.’ Ela se havia esquecido
de que esse cavalheiro era seu marido há algumas semanas. Estremeci quando ouvi
a história, contudo não ousei tirar uma conclusão. O pequeno incidente só
acudiu à minha memória alguns anos depois, quando o casamento havia chegado a
um triste fim.
Maeder conta-nos de uma senhora que, na véspera
de suas núpcias, se esquecera de provar o vestido de casamento e, para
desespero de seu costureiro, apenas se lembrou quando já era tarde, à noite.
Correlaciona essa negligência com o fato de que ela em breve se divorciava de
seu marido. Conheço uma senhora, atualmente divorciada de seu marido, a qual,
ao tratar de assuntos de dinheiro, freqüentemente assinava documentos com seu
nome de solteira, muitos anos antes de o reassumir de fato. - Sei de outras
mulheres que perderam suas alianças de casamento durante a lua-de-mel, e também
que a história de seus casamentos conferiu um sentido ao acidente. - E agora,
eis mais um exemplo evidente, porém com um final mais feliz. Conta-se essa
história de um famoso químico alemão, cujo casamento não se realizou porque ele
se esqueceu da hora da cerimônia nupcial, tendo ido ao laboratório em vez de ir
à igreja. Foi muito prudente por se haver contentado com uma só tentativa;
morreu em avançada idade, solteiro.
Talvez possa ter ocorrido aos senhores a idéia
de que, nesses exemplos, as parapraxias assumiram o lugar dos presságios ou dos
augúrios dos antigos. E, com efeito, alguns presságios nada mais eram que
parapraxias, como, por exemplo, quando alguém tropeçava ou caía. Outros, é
verdade, tinham o caráter de acontecimentos objetivos e não de atos subjetivos.
Os senhores, contudo, dificilmente acreditariam quão difícil, às vezes, é
decidir se determinado evento pertence a um ou a outro grupo. Um ato muito
amiúde sabe como se disfarçar como uma experiência passiva.
Aqueles dentre nós que podem recordar uma
experiência de vida comparativamente longa, provavelmente admitirão que nos
teríamos poupado muitos desapontamentos e surpresas dolorosas se tivéssemos
encontrado coragem e determinação para interpretar como augúrios pequenas
parapraxias experimentadas em nossos contatos humanos, e para fazer uso delas
como indícios de intenções que ainda estavam ocultas. Via de regra, não ousamos
fazê-lo; isso nos levaria a sentir-nos como se, após uma jornada através da
ciência, estivéssemos ficando supersticiosos novamente. Nem todos os augúrios
se realizam e os senhores compreenderão, a partir de nossas teorias, que nem
todos precisam realizar-se.
CONFERÊNCIA IV - PARAPRAXIAS (conclusão)
SENHORAS E SENHORES:
Podemos considerar como resultado de nossos
esforços até agora desenvolvidos e como base de nossas ulteriores investigações
o fato de as parapraxias terem um sentido. Permitam-me mais uma vez insistir em
que não estou afirmando - para nossos objetivos não há necessidade de fazê-lo -
que toda parapraxia que ocorre individualmente tem um sentido, embora eu pense
que provavelmente seja esse o caso. Já nos satisfaz mostrarmos esse sentido em
um número relativamente freqüente de diferentes formas de parapraxias. Ademais,
a esse respeito as diferentes formas aqui mencionadas se comportam de modo
diverso. Casos de lapsos de língua e de lapsos de escrita, e outros, podem
ocorrer mediante uma causa puramente fisiológica. Não posso acreditar que isso
ocorra nos tipos que dependem de esquecimento (esquecimento de nomes ou
de intenções, extravios, etc.). É muito provável haver casos de perda que podem
ser considerados como não-intencionados. De um modo geral, é verdade que apenas
uma parcela dos erros que ocorrem na vida comum, pode ser julgada segundo nosso
ponto de vista. Os senhores devem ter em mente essas limitações quando, de ora
em diante, dermos por estabelecido o fato de que as parapraxias são atos
psíquicos e surgem de mútua interferência entre duas intenções.
Esse é o primeiro produto da psicanálise. A
psicologia, até o momento atual, nada sabia da existência dessas interferências
recíprocas ou da possibilidade de que pudessem resultar em tais fenômenos.
Ampliamos consideravelmente o mundo dos fenômenos psíquicos e conquistamos para
a psicologia fenômenos que anteriormente não eram nele incluídos.
Façamos uma pausa mais detida sobre a afirmação
de que as parapraxias são ‘atos psíquicos’. Será que isso envolve uma coisa
além daquilo que já dissemos: que elas possuem um sentido? Penso que não.
Penso, antes, que a afirmação anterior [de que são atos psíquicos] é mais
indefinida e mais facilmente passível de compreensão errônea. Tudo o que é
observável na vida mental pode ocasionalmente ser descrito como fenômeno
mental. A questão, nesse caso, é saber se o fenômeno mental específico teve
origem imediata em influências somáticas, orgânicas e materiais - e, assim, sua
investigação não fará parte da psicologia - ou se ele, em primeira instância,
deriva de outros processos mentais, em alguma parte além daquela onde começa a
série das influências orgânicas. É essa última situação que temos em vista
quando descrevemos um fenômeno como processo mental, sendo por isso mais
adequado encerrar nossa afirmação desta forma: ‘o fenômeno tem um sentido’. Por
‘sentido’ entendemos ‘significação’, ‘intenção’, ‘propósito’ e ‘posição em um
contexto psíquico contínuo’. [ver em [1]]
Existem inúmeros outros fenômenos muito
semelhantes às parapraxias; para eles, porém, esse nome não mais se ajusta. Nós
os denominamos ações casuais e ações sintomáticas. Estas possuem igualmente a
peculiaridade de não ter motivo, serem insignificantes e não importantes;
contudo, têm um acréscimo, explicitamente o de serem desnecessárias.
Distinguem-se das parapraxias porque lhes falta uma segunda intenção capaz de
lhes fazer oposição e de ser perturbada por elas. Por outro lado, elas se
confundem insensivelmente com os gestos e movimentos que consideramos
expressões das emoções. Essas ações casuais incluem toda classe de manipulações
com nossas roupas ou com partes de nosso corpo ou com objetos ao nosso alcance,
executadas como que por brincadeira e aparentemente sem finalidade, e incluem,
ademais, a omissão dessas manipulações; ou, além disso, melodias que murmuramos
para nós mesmos. Penso que todos esses fenômenos têm um sentido e podem ser
interpretados da mesma forma como as parapraxias, que eles são pequenas
indicações de processos mentais mais importantes e atos psíquicos inteiramente
válidos. Não me proponho, contudo, demorar-me sobre essa recente expansão do
campo dos fenômenos mentais; voltarei às parapraxias, em relação às quais
importantes problemas para a psicanálise podem ser equacionados com muito maior
clareza.
Talvez sejam essas as questões mais
interessantes que levantamos a respeito das parapraxias e que ainda não foram
respondidas. Dissemos serem as parapraxias o produto de mútua interferência
entre duas intenções diferentes, das quais uma pode ser chamada de intenção
perturbada e a outra, intenção perturbadora. As intenções perturbadas não
ensejam outras questões, porém no que se refere às intenções perturbadoras
gostaríamos de saber: em primeiro lugar, que espécie de intenções são essas
capazes de perturbar outras, e, em segundo lugar, qual é a relação das
intenções perturbadoras com as perturbadas?
Se me permitem, mais uma vez tomarei lapsos de
língua como representantes da classe inteira, e responderei à segunda questão
antes de responder à primeira.
Em um lapso de língua a intenção perturbadora
pode, em seu conteúdo, custar relacionada à intenção perturbada, caso em que
ela a contradiz, corrige ou suplementa. Ou então - caso esse mais obscuro e
mais interessante - o conteúdo da intenção perturbadora pode não ter nada a ver
com o conteúdo da intenção perturbada.
Não teremos qualquer dificuldade em encontrar
provas da relação citada em primeiro lugar, em exemplos que já conhecemos e em
outros parecidos. Em quase todos os casos nos quais um lapso de língua inverte
o sentido, a intenção perturbadora expressa o contrário da intenção perturbada,
e a parapraxia representa um conflito entre duas tendências incompatíveis.
‘Declaro aberta a sessão, porém preferiria que já estivesse encerrada’ é o
sentido do lapso de língua do presidente [ver em [1]]. Uma revista política,
acusada de corrupção, se defende em um artigo cujo clímax deveria ter sido:
‘Nossos leitores serão testemunhas do fato de que sempre agimos da maneira mais
desinteressada, pelo bem da comunidade.’ O editor a quem fora confiada a
preparação do artigo, porém, escreveu ‘da maneira mais interesseira‘. Quer
dizer, ele estava pensando: ‘Isso é o que estou obrigado a escrever; porém,
tenho idéias diferentes.’ Um membro do parlamento [alemão], que insistia em que
se devia dizer a verdade ao imperador ‘rückhaltlos [sem reservas]’,
evidentemente ouviu uma voz interior, sobressaltada com sua ousadia e, por um
lapso de língua, mudou a palavra para ‘rückgratlos [sem espinha dorsal,
sem coragem]’.
Nos exemplos já conhecidos dos senhores, os
quais dão uma impressão de serem contrações ou abreviações, o que temos diante
de nós são correções, acréscimos ou continuações, por meio dos quais uma
segunda intenção se faz sentir ao lado da primeira. ‘Os fatos vieram a Vorschein
[a luz] - melhor dizer de uma vez: eram Schweinereien [porcarias]; pois
bem, então os fatos vieram a Vorschwein [ver em [1]].’ ‘Os que entendem disso
podem ser contados nos dedos de uma mão - não, existe realmente apenas uma
pessoa que entende disso: portanto, pode ser contada em um só dedo [ver
em [1]].’ Ou: ‘Meu marido pode comer e beber o que quer. Mas, como sabem, eu
não me submeto à sua vontade em nada, absolutamente; então: ele pode comer e
beber o que eu quero [ver em [1]].’ Em todos esses casos o lapso de língua
surge, pois, do conteúdo da própria intenção perturbada ou está em conexão com
ela.
A outra espécie de relação entre as duas
intenções mutuamente interferentes parece enigmática. Se a intenção
perturbadora não tem nada a ver com a intenção perturbada, de onde pode ter-se
originado e por que se faz notar como uma perturbação nesse determinado ponto?
A observação, que por si só é capaz de dar-nos a resposta para isso, mostra que
a perturbação surge de uma seqüência de idéias que pouco antes se apossou da
pessoa referida, e produz esse efeito subseqüente havendo ou não já sido
expressa no discurso. Portanto, na realidade deve ser descrita como uma
perseveração, embora não necessariamente como a perseveração das palavras
faladas. Também nesse caso está presente um elo associativo entre as intenções
perturbadora e perturbada, porém não é situado em seu conteúdo, e sim
construído artificialmente, muitas vezes através de vias associativas
extremamente tortuosas.Aqui está um exemplo simples desse aspecto, derivado de
minha própria experiência. Certa vez encontrei nas aprazíveis Dolomitas duas
senhoras vienenses vestidas em trajes de passeio. Acompanhei-as parte do
caminho e conversamos sobre as delícias e, também, as atribulações de passar um
feriado daquela maneira. Uma das senhoras admitiu que passar assim o dia tinha
como conseqüência uma boa dose de desconforto. ‘Certamente, não é de todo
agradável’, dizia, ‘quando se esteve o dia inteiro perambulando ao sol e
transpirando até pela blusa e a camisa.’ Nesta frase, ela teve de vencer uma
leve hesitação em determinado ponto. E prosseguiu: ‘Mas então, quando se vai
“nach Hose” e se pode mudar….’ Esse lapso de língua não foi analisado,
contudo espero que possam compreendê-lo facilmente. A intenção da senhora fora
obviamente a de dar uma lista mais completa de suas roupas: blusa, camisa e Hose
[calças]. Razões de decoro levaram-na a omitir qualquer menção às ‘Hose‘.
Porém na frase seguinte, com seu conteúdo bastante independente, a palavra não
dita emergiu como uma distorção da outra de som semelhante, ‘nach Hause [para
casa]’.
Agora, porém, podemos voltar à questão
principal, que por muito tempo adiamos: que espécie de intenções são essas, que
encontram expressão nessa forma incomum como perturbadoras de outras intenções?
Bem, evidentemente elas são de espécies muito diferentes, entre as quais
devemos procurar o fator comum. Com isso em mente, se examinarmos determinado
número de exemplos, esses logo se enquadrarão em três grupos. O primeiro grupo
contém aqueles casos nos quais a intenção perturbadora é do conhecimento de
quem fala e, além disso, foi por este percebida antes de cometer o lapso de
língua. Assim, no lapso do ‘Vorschwein‘ [ver em [1]] a pessoa que falava
admitiu não somente haver feito o julgamento ‘Schweinereien’/’ sobre os
fatos em questão, mas também admitiu que tivera a intenção, da qual depois
recuou, de expressar seu julgamento em palavras. Um segundo grupo é formado por
outros casos nos quais a intenção perturbadora é igualmente reconhecida como
tal pela pessoa que fala; porém, nestes casos, a pessoa não se apercebia de que
a intenção estava atuando dentro dela tão logo acabou de cometer o lapso. Desse
modo, ela aceita nossa interpretação de seu lapso; ainda assim, permanece
surpresa com o mesmo. Exemplos desse tipo de atitude talvez possam ser
encontrados em outras espécies de parapraxias, mais facilmente do que nos
lapsos de língua. Em um terceiro grupo, a interpretação da intenção
perturbadora é vigorosamente rejeitada por aquele que incorreu no lapso; não
apenas nega que essa intenção estava atuante nele antes de cometer o lapso, mas
procura sustentar a afirmação de que tal intenção lhe é inteiramente estranha.
Recordam-se do exemplo do ‘arroto’ [ver em [1] e [2]] e da vigorosa contestação
que me foi apresentada pelo orador, pelo fato de eu revelar sua intenção
perturbadora. Como os senhores sabem, até agora, em nossas opiniões, ainda não
chegamos a um acordo a respeito desses casos. Eu não daria maior importância à
contestação formulada pelo proponente do brinde e persistiria serenamente em
minha interpretação, ao passo que os senhores; suponho, ainda afetados
pelo protesto daqueles, levantam a questão de saber se não deveríamos desistir
de interpretar parapraxias dessa espécie e considerá-las como atos puramente
fisiológicos, no sentido pré-analítico. Bem posso imaginar que coisa os intimida.
Minha interpretação abriga a hipótese de que, quando uma pessoa fala, podem ser
expressas intenções das quais ela própria nada sabe e que eu, contudo, posso
inferir a partir de provas circunstanciais. Os senhores se detêm ao arrostar
essa hipótese nova e momentosa. Posso entender isso e lhes dou razão nesse
ponto. No entanto, uma coisa é certa. Se os senhores querem aplicar
coerentemente a compreensão das parapraxias, confirmada por tantos exemplos,
terão de se decidir a aceitar a estranha hipótese que mencionei. Caso não
possam fazê-lo, mais uma vez precisarão abandonar o entendimento das
parapraxias, que os senhores vêm de adquirir.
Consideremos, por um momento, que coisa é essa
que une os três grupos, o que é aquilo que os três mecanismos dos lapsos de
língua têm em comum. Isso, felizmente, é um fato inequívoco. Nos dois primeiros
grupos, a intenção perturbadora é reconhecida pela pessoa que comete o lapso;
ademais, no primeiro grupo essa intenção se revela imediatamente antes do
lapso. Porém, em ambos os casos, ela é repelida. O orador decide não
expressá-la verbalmente e, após isso, ocorre o lapso de língua: após isso, quer
dizer, que a intenção, que foi repelida, é expressa em palavras, contra a
vontade de quem fala, seja alterando a expressão da intenção permitida,
seja confundindo-se com essa expressão, ou realmente tomando seu lugar.
Este é, pois, o mecanismo do lapso de língua.
Em minha opinião, posso fazer com que aquilo
que acontece no terceiro grupo se harmonize completamente com o mecanismo que
descrevi. Apenas tenho de supor ser o diferente grau em que a intenção é
repelida, aquilo que distingue esses três grupos um dos outros. No primeiro
grupo a intenção existe e se faz notar antes de o orador expressá-la; só então
é rejeitada; e faz sua desforra no lapso de língua. No segundo grupo a rejeição
vai além: a intenção já deixou de ser perceptível antes de a pessoa expressá-la
no lapso. De modo muito estranho, isso absolutamente não impede que ela tenha
sua parte na causa do lapso. Essa conduta, porém, nos facilita a explicação do
que acontece no terceiro grupo. Eu me aventuraria a supor que uma intenção
também possa conseguir expressar-se em uma parapraxia quando foi repelida e não
foi percebida durante um tempo considerável, talvez por um tempo muito longo: e
pode, por essa razão, ser negada francamente pelo orador. Conquanto os senhores
ponham de lado o problema do terceiro grupo, não podem deixar de concluir, a
partir das observações que fizemos nos outros casos, que a supressão da
intenção de alguém que fala, de dizer algo, é a condição indispensável para que
ocorra um lapso de língua.
Agora podemos pretender havermos feito maiores
progressos em nossa compreensão das parapraxias. Sabemos não apenas que elas são
atos mentais nos quais podemos detectar sentido e intenção, sabemos não apenas
que acontecem por mútua interferência entre duas intenções diferentes; porém,
além disso, sabemos que uma dessas intenções deve ter sido, de alguma forma,
coagida a não ser posta em execução antes de poder manifestar-se como uma
perturbação da outra intenção. Deve ter sido perturbada, antes de poder ser um
elemento perturbador. Isso não significa, naturalmente, que já tenhamos
conseguido uma completa explicação dos fenômenos que denominamos parapraxias.
Vemos aflorarem imediatamente novas interrogações, e geralmente suspeitamos
que, quanto mais se estende nossa compreensão, mais ocasiões haverá para
surgirem novas questões. Podemos perguntar, por exemplo, da razão por que as coisas
não poderiam ser mais simples. Se o propósito é repelir determinada intenção,
em vez de colocá-la em execução, o ato de repelir deveria ser bem-sucedido, de
modo que a intenção absolutamente não se manifestasse; ou, por outro lado, a
repulsa poderia falhar, de forma que a intenção que devia ter sido repelida se
manifestaria completamente. As parapraxias, porém, são o resultado de um
acordo: constituem um meio-êxito e um meio-fracasso para cada uma das duas
intenções; a intenção que está sendo desafiada não é completamente suprimida,
salvo em casos especiais, nem é levada a cabo em sua íntegra. Podemos concluir
que determinadas condições especiais devem prevalecer para que uma
interferência ou ajuste desse tipo aconteçam; no entanto, não podemos formar nenhuma
idéia sobre que condições são essas. E não penso que poderíamos descobrir esses
fatores desconhecidos penetrando mais a fundo no estudo das parapraxias. Será
necessário, isto sim, examinar primeiramente outras regiões obscuras da vida
mental: somente a partir das analogias que aí obtivermos, encontraremos a
coragem de estabelecer as hipóteses necessárias para lançar uma luz mais
penetrante sobre as parapraxias. E acrescento mais uma coisa. Trabalhar com
base em pequenos indícios, como constantemente temos o hábito de fazer nessa
área, tem seus próprios perigos. Existe uma doença mental, a ‘paranóia
combinatória’, na qual a exploração de pequenos indícios como esses é levada a
graus ilimitados; e, naturalmente, não pretendo afirmar que as conclusões construídas
sobre tais fundamentos sejam invariavelmente corretas. Podemos tão-somente nos
precaver desses riscos pela ampla base de nossas observações, pela repetição de
impressões semelhantes originárias das mais variadas esferas da vida mental.
Nesse ponto, portanto, vamos abandonar a
análise das parapraxias. Existe, contudo, mais um ponto para o qual chamaria a
atenção dos senhores. Eu lhes pediria que fixassem na memória, como um modelo,
a maneira como temos tratado esses fenômenos. Os senhores podem aprender desse
exemplo quais os objetivos de nossa psicologia. Buscamos não apenas descrever e
classificar fenômenos, mas entendê-los como sinais de uma ação recíproca de
forças na mente, como manifestação de intenções com finalidade, trabalhando
concorrentemente ou em oposição recíproca. Interessa-nos uma visão dinâmica
dos fenômenos mentais. Em nossa opinião, os fenômenos que são percebidos devem
ceder lugar, em importância, a tendências que são apenas hipotéticas.
Por conseguinte, não nos aprofundaremos mais
nas parapraxias; contudo, ainda podemos realizar um rápido reconhecimento da
extensão dessa área, no decorrer do qual mais uma vez encontramos coisas que já
conhecemos, mas que também revelarão algumas novidades. Nesse reconhecimento,
manterei a divisão em três grupos que propus inicialmente: lapsos de língua
reunidos, com suas formas cognatas (lapsos de escrita, lapsos de leitura e
lapsos de audição); esquecimento, subdividido segundo os objetos de
esquecimento (nomes próprios, palavras estrangeiras, intenções e impressões); e
atos descuidados, extravio e perda. Os erros, no aspecto que nos interessa,
situam-se, em parte, entre os esquecimentos e, em parte, nos atos descuidados.
Já abordamos bastante detalhadamente os lapsos
de língua, contudo existem mais alguns pontos a acrescentar. Os lapsos de
língua são acompanhados por determinados fenômenos emocionais menores, não
de todo destituídos de interesse. Ninguém aprecia cometer lapsos de língua e
assiduamente deixamos de ouvir nossos próprios lapsos, embora jamais deixemos
de ouvir os de outras pessoas. Os lapsos de língua também são, em certo
sentido, contagiosos; absolutamente não é fácil falar sobre lapsos de língua
sem cometer alguns lapsos de língua próprios. As formas mais triviais desses
lapsos, precisamente aquelas não consignadas a projetar uma luz especial sobre
os processos mentais ocultos, possuem razões que, não obstante, não são
difíceis de discernir. Por exemplo, se alguém pronunciou com emissão breve uma
vogal longa, em virtude de um distúrbio que afeta a palavra por uma ou outra
razão, logo após pronunciará como longa uma vogal subseqüente breve, cometendo
assim um novo lapso de língua para compensar o anterior. Da mesma forma, se a
pessoa pronuncia um ditongo incorreta e descuidadamente (por exemplo,
pronunciar um ‘eu‘ ou ‘i como ‘ei‘), procurará compensar isso
trocando um ‘ei‘ subseqüente por um ‘eu‘ ou ‘oi‘. Aqui, o
fator decisivo parece ser uma consideração para com a impressão causada nos
ouvintes; estes não deveriam supor que, para o orador, é indiferente a maneira
como trata sua língua-mãe. A segunda distorção, a que compensa a primeira,
realmente tem o propósito de dirigir a atenção do ouvinte para a primeira e de
lhe assegurar que o orador também a percebeu. Os lapsos de língua mais comuns,
simples e triviais são contrações e antecipações [ver em [1] e [2]] ocorrentes
em partes insignificantes do falar. Por exemplo, em uma frase um tanto longa
pode-se cometer um lapso de língua que antecipa a última palavra do que se
pretende dizer. Isso causa uma impressão de impaciência por ver terminada a
frase, e em geral constitui evidência de uma certa antipatia contra o ato de
comunicar a frase, ou contra o todo do comentário que se está fazendo.
Chegamos, assim, a casos marginais em que as diferenças entre a opinião
psicanalítica a respeito de lapsos de língua e a opinião fisiológica comum se
fundem uma na outra. É de supor que, nestes casos, esteja presente um propósito
de perturbar a intenção do discurso, porém tal propósito apenas consegue fazer
notar sua presença e não aquilo a que ele próprio visa. A perturbação que ele
produz se faz então segundo certas influências fonéticas ou atrações
associativas; pode ser considerada resultado de a atenção ter sido desviada da
intenção do discurso. Contudo, nem essa perturbação da atenção nem as
tendências à associação que se tornaram atuantes, atingem a essência do
processo. Este, apesar de tudo, se mantém como a indicação da existência de uma
intenção que é perturbadora da intenção do discurso, embora a natureza
dessa intenção perturbadora não possa ser avaliada a partir de suas
conseqüências, conforme é possível fazê-lo em todos os casos de lapsos de
língua mais bem definidos.
Os lapsos de escrita, aos quais
passaremos agora, são tão afins dos lapsos de língua, que nada de novo podemos
esperar deles. Talvez possamos acrescentar algum pequeno ponto adicional. Os
pequenos lapsos de escrita, extremamente comuns, contrações e antecipações de
palavras que deveriam vir depois (especialmente de palavras do fim de frases)
indicam, mais uma vez, um desprazer geral de escrever e impaciência por ver o
trabalho terminado. Determinados produtos mais marcantes de lapsos de escrita
possibilitam reconhecer a natureza e o objetivo da intenção perturbadora. Ao
encontrar um lapso de escrita em uma carta, sabe-se geralmente que havia algo
de diferente com seu autor, porém não se pode sempre descobrir o que se passava
com ele. Um lapso de escrita passa despercebido da pessoa responsável, com a
mesma freqüência com que sucede com os lapsos de língua. A seguinte observação
é digna de nota. Como sabemos, há pessoas que tem o hábito de reler todas as
cartas que escrevem, antes de enviá-las. Outras, não, via de regra; porém,
quando excepcionalmente o fazem, sempre encontram alguns lapsos de escrita que
chamam a atenção e que elas podem corrigir, então. Como se explica isso? É como
se essas pessoas soubessem que haviam cometido um erro ao escrever a carta.
Podemos realmente acreditar nesse fato?
Um problema interessante diz respeito à importância
prática dos lapsos de escrita. Os senhores certamente podem recordar o
caso de um assassino, H., que encontrou os meios de obter de instituições
científicas culturas de bactérias patogênicas altamente perigosas,
apresentando-se como bacteriologista. Usou, então, essas culturas com a
finalidade de se desfazer de suas ligações próximas através desse método
moderníssimo. Ora, certa ocasião esse homem se queixou aos diretores de um
desses institutos que as culturas a ele enviadas eram ineficazes; porém cometeu
um lapso de escrita e, em vez de escrever ‘em meus experimentos com camundongos
ou porquinhos-da-índia’, escreveu muito claramente‘em meus experimentos com
homens’. Os cientistas do instituto ficaram chocados com o lapso, contudo, pelo
que sei, daí não tiraram qualquer conclusão. Pois bem, o que pensam os
senhores? Não deveriam os cientistas, pelo contrário, ter tomado o lapso de
escrita como uma confissão e iniciado uma investigação que teria posto um fim
imediato às atividades do assassino? Por ignorarem nossas opiniões sobre
parapraxias, não foram responsáveis, nesse caso, por uma omissão de importância
prática? Ora, penso que um lapso de escrita como esse deveras me pareceria
muito suspeito; porém algo de grande importância se opõe a que seja qualificado
como confissão. O assunto não é tão simples assim. O lapso certamente era uma
prova circunstancial; mas não era suficiente, por si mesmo, para dar início a
uma investigação. É verdade que o lapso de escrita disse que ele estava ocupado
com idéias de infectar pessoas, entretanto não tornou possível decidir se essas
idéias deveriam ser tomadas como clara intenção de causar dano ou como uma
fantasia sem importância prática. É mesmo possível que um homem que tivesse
cometido um lapso como esse, teria todas as justificativas objetivas para negar
a fantasia, e a repudiaria como algo inteiramente estranho para ele. Os
senhores compreenderão ainda melhor essas possibilidades quando, mais adiante,
viermos a considerar a diferença entre realidade psíquica e material. Assim,
esse é mais um exemplo de parapraxia que adquire importância a partir de
eventos subseqüentes [ver em [1] e seg., acima.]
Com os lapsos de leitura chegamos a uma
situação psíquica que difere sensivelmente daquela encontrada em lapsos de língua
ou em lapsos de escrita. Aqui, uma das duas intenções em mútua competição é
substituída por uma estimulação sensorial e, talvez por isso, resiste menos. O
que a pessoa vai ler não é um derivado de sua própria vida mental, como algo
que se propõe escrever. Em grande número de casos, portanto, um lapso de
leitura consiste em uma substituição completa. Substitui-se por outra a palavra
que deve ser lida, sem haver necessariamente qualquer conexão de conteúdo entre
o texto e o produto do lapso de leitura, o qual depende, via de regra, de
semelhança verbal. O melhor exemplo desse grupo é o de Lichtenberg, ‘Agamemnon‘
por ‘angenommen‘ [ver em [1], acima]. Se quisermos descobrir a intenção
perturbadora que produziu o lapso de leitura, devemos deixar inteiramente de
lado o texto que foi lido erroneamente, e podemos começar a investigação
analítica com duas perguntas: qual é a primeira associação ao produto do lapso
de leitura? e em que situação ocorreu o lapso de leitura? Às vezes o
conhecimento dessa situação é, por si só, suficiente para explicar o lapso de
leitura. Por exemplo, um homem, sob a pressão de uma necessidade urgente,
vagava por uma cidade estranha quando viu a palavra ‘Closet-House‘ numa
grande tabuleta, no primeiro andar de um prédio. Mal teve tempo suficiente para
se surpreender com o fato de a tabuleta estar colocada tão alta, quando
descobriu que, estritamente falando, o que devia ter lido era ‘Corset-House‘.
Em outros casos, um lapso de leitura, precisamente do tipo que é muito
independente do conteúdo do texto, requer uma análise detalhada, impossível de
se efetuar sem a prática da técnica de psicanálise e sem seu apoio. Como regra,
entretanto, não é tão árduo encontrar a explicação para um lapso de leitura: a
palavra substituída imediatamente revela, como no exemplo Agamemnon, o círculo
de idéias do qual surgiu a perturbação. Na atual época de guerra, por exemplo,
é coisa muito comum os nomes de cidades e de generais, e de termos militares,
que estão constantemente zumbindo à nossa volta, serem lidos onde quer que
nossos olhos encontrem palavras semelhantes. Tudo aquilo que nos interessa e
nos preocupa se põe no lugar do que é estranho e ainda destituído de interesse.
Imagens residuais de pensamentos [anteriores] perturbam novas percepções.
Com os lapsos de leitura, também, não faltam os
casos de outra espécie, nos quais o texto daquilo que se lê desperta por si
mesmo a intenção perturbadora, a qual de imediato o transforma em seu
contrário. O que devíamos ler era alguma coisa de indesejado, e a análise nos
convencerá de que um intenso desejo de rejeitar o que estávamos lendo deve ter
sido responsável por sua alteração.
Nos casos mais freqüentes de lapsos de leitura,
que mencionamos no início, inexistiam os dois fatores aos quais consignamos um
importante papel no mecanismo das parapraxias: o conflito entre dois
propósitos, e a repulsa a um deles, que faz sua represália produzindo a
parapraxia. Não que algo em contrário ocorra no lapso de leitura. A
proeminência da idéia que leva ao lapso de leitura é, contudo, muito mais
perceptível do que a repulsa que essa idéia pode ter percebido previamente.
São esses dois fatores os que encontramos com
mais evidência nas diferentes situações em que ocorrem parapraxias de
esquecimento. O esquecimento de intenções é bem livre de ambigüidades,
como já vimos [ver em [1]], sua interpretação não é objeto de controvérsias,
nem mesmo por parte de leigos. O propósito que perturba a intenção é, em todos
os casos, uma contra-intenção, uma relutância; e tudo o que nos resta saber a
seu respeito é por que ele não se expressou em alguma forma diversa e menos
disfarçada. No entanto, a presença dessa contravontade é inquestionável. Vez e
outra também conseguimos entrever algo dos motivos que compelem essa
contravontade a ocultar-se; agindo subrepticiamente por intermédio da
parapraxia, ela sempre atinge seu objetivo, ao passo que seria seguramente
repudiada se emergisse como franca oposição. Se alguma importante modificação
na situação psíquica se realiza entre a formação da intenção e sua execução, em
conseqüência do que não mais existe a cogitação de executar a intenção, então o
esquecimento da intenção se exclui da categoria das parapraxias. Já não parece
mais estranho havê-la esquecido e nos apercebemos de que teria sido desnecessário
lembrarmo-nos dessa intenção; depois disso ela se extingue em forma permanente
ou temporária. O esquecimento de uma intenção somente pode ser denominado
parapraxia quando não pudermos acreditar que a intenção tenha sido interrompida
desse último modo.
Os casos de esquecimento de uma intenção
geralmente são tão uniformes e tão evidentes que, por essa mesma razão não
interessam à nossa investigação. Assim mesmo, existem dois pontos em que algo
de novo podemos aprender a partir de um estudo dessas parapraxias O
esquecimento de uma intenção - isto é a omissão de executá-la - revela, como
dissemos, uma contravontade que lhe é hostil. Sem dúvida, esse fato procede;
nossas investigações, porém, mostram que a contravontade pode ser de dois
tipos: direto e indireto. O que dou a entender com este último é ilustrado mais
adequadamente com um ou dois exemplos. Se um benfeitor se esquece de interceder
junto a uma terceira pessoa em benefício de seu protégé, isso pode
acontecer porque não está realmente muito interessado no protégé e,
portanto, não tem grande desejo de falar em benefício deste. De qualquer forma,
é esse o modo como o protégé entenderá o esquecimento de seu protetor
[ver em [1]]. Contudo, as coisas podem ser mais complexas. No protetor a
contravontade, opondo-se à execução da intenção, pode ter outra origem e pode
ser voltada em direção a um ponto bem diferente. Pode não ter nada a ver com o protégé,
mas, talvez, pode ser dirigida contra a terceira pessoa junto a quem a
recomendação devia ter sido feita. Assim, a partir disso os senhores mais uma
vez verificam [ver em [1]] as dúvidas que se erguem como obstáculo a uma
aplicação prática de nossas interpretações. Apesar da interpretação correta do
esquecimento, o protégé corre o risco de ser demasiado desconfiado e de
fazer grave injustiça ao seu protetor. Ou, suponhamos que alguém se esqueça de
um compromisso que prometeu manter com alguma outra pessoa; a razão mais
freqüente para isso será, sem dúvida, uma franca rejeição ao encontro com essa
pessoa. Contudo, em um caso assim a análise poderia demonstrar que a intenção
perturbadora não se referiu a essa pessoa, mas estava dirigida contra o lugar
planejado para o encontro, e foi evitado por conta de uma lembrança
desagradável referente ao lugar. Ou, ainda, se alguém se esquece de pôr uma
carta no correio, o contrapropósito pode basear-se no conteúdo da carta; de
modo algum, porém, se exclui a hipótese de a carta poder ser inocente em si
mesma e poder apenas estar sujeita ao contrapropósito, de vez que algo
referente a ela faz lembrar uma outra carta, escrita em alguma ocasião
anterior, que ofereceu à contravontade um ponto direto de ataque. Pode-se
dizer, portanto, que aqui a contravontade foi transferida da carta anterior que
a justificou, à carta atual, em relação à qual não havia motivos de
preocupação. Os senhores verificam, então, que devemos ser moderados e
previdentes ao aplicar nossas interpretações, e isso se justifica: as coisas
que são psicologicamente equivalentes podem, na prática, ter grande variedade
de significados.
Fenômenos como esses últimos podem parecer
muito inusitados para os senhores, e, talvez, se inclinarão a supor que uma
contravontade indireta já indica tratar-se de um processo patológico. Posso
assegurar-lhes, contudo, que ela ocorre também dentro dos limites do que é
normal e sadio. Ademais, não devem me interpretar mal. Estou longe de admitir
que nossas interpretações analíticas sejam indignas de confiança. As
ambigüidades no esquecimento de intenções, que venho mencionando, existem
apenas enquanto não tenhamos feito uma análise do caso e apenas quando fazemos
nossas interpretações com base em nossas hipóteses gerais. Se efetuarmos uma
análise na pessoa em questão, invariavelmente descobrimos com suficiente
certeza se a contravontade é direta ou que outra origem possa ter.
O segundo ponto que tenho em mente [ver em [1]]
é o seguinte: Se em uma grande maioria de casos encontramos confirmação do fato
de que o esquecimento de uma intenção remonta a uma contravontade, podemos
ousar estender a solução a um outro grupo de casos nos quais a pessoa em
análise não confirma, e sim nega, a contravontade que inferimos. Tomem como
exemplo disso eventos tão extremamente comuns como esquecer de devolver livros
que se tomaram emprestados, ou de pagar contas ou dívidas. Com a pessoa em
questão nos aventuraremos a insistir em que nela existe uma intenção de
conservar consigo os livros e de não pagar as dívidas; a pessoa negará essa
situação, porém não será capaz de fornecer qualquer outra explicação para sua
conduta. Com isso, prosseguiremos dizendo-lhe que tem essa intenção, mas sem
nada saber da mesma, embora para nós isso seja suficiente, porquanto nos revela
a presença da intenção que origina nela o esquecimento. A pessoa pode
repetir-nos que deveras se esqueceu. Agora reconhecerão a situação como uma tal
em que nós mesmos anteriormente nos encontramos [ver em [1] e [2]]. Se
quisermos prosseguir com nossas interpretações das parapraxias - tão
freqüentemente comprovadas como acertadas - até uma conclusão coerente, somos
compelidos à inevitável hipótese de que nas pessoas existem propósitos capazes
de se tornar atuantes sem que elas saibam da existência deles. Isto, contudo,
nos leva a contrariarmos todas as opiniões dominantes tanto na vida comum como
na psicologia.
O esquecimento de nomes próprios e de nomes
estrangeiros, tanto como o de palavras estrangeiras, pode semelhantemente
ser rastreado até uma contra-intenção, que se volta, direta ou indiretamente,
contra o nome em questão. Já lhes apresentei diversos exemplos de aversão
direta [ver em [1] e [2]]. A causação indireta é, contudo, particularmente
freqüente nesses casos e em geral apenas pode ser estabelecida por meio de
análises cuidadosas. Por exemplo, durante a guerra atual, que nos obrigou a
abandonar tantos dos nossos divertimentos anteriores, nossa capacidade de
recordar nomes sofreu muito em conseqüência das mais estranhas associações. Há
pouco tempo atrás verifiquei que eu era incapaz de reproduzir o nome de Bisenz,
pacata cidade da Morávia; e a análise demonstrou que aquilo que era responsável
pelo fato não era nenhuma hostilidade direta contra ela, senão sua similitude,
no som, com o nome do Palazzo Bisenzi, em Orvieto, que tive o prazer de
visitar repetidas vezes no passado. Aqui, pela primeira vez, descobrimos nessa
razão de se opor à recordação de um nome, um princípio que depois irá revelar
sua enorme importância na causação dos sintomas neuróticos: a memória tem
aversão por recordar tudo que está em conexão com sentimentos de desprazer e
com a reprodução daquilo que renova o desprazer. Essa intenção de evitar o
desprazer, emergente da lembrança ou de outros atos psíquicos, essa fuga
psíquica do desprazer, pode ser reconhecida como a causa atuante fundamental
não apenas do esquecimento de nomes, mas também de muitas outras parapraxias,
como as omissões, os erros, e assim por diante.O esquecimento de nomes,
entretanto, parece ser sobremodo facilitado psicofisiologicamente e, por esse
motivo, há casos em que não se pode confirmar a interferência de um motivo de
desprazer. Se alguém tem determinada tendência para esquecer nomes, a
investigação analítica mostrará que os nomes lhe fogem não apenas porque em si
não os aprecia ou porque lhe lembram algo desagradável; porém, também porque nesse
caso o nome pertence a outro círculo de associações com as quais a pessoa está
mais intimamente relacionada. O nome está, digamos, ali ancorado e se mantém
fora de contato com outras associações que foram momentaneamente ativadas. Se
os senhores se recordarem dos truques mnemotécnicos verificarão, com certa
surpresa, que as mesmas cadeias associativas, deliberadamente estabelecidas
para evitar que nomes sejam esquecidos, também podem nos levar a
esquecê-los. O mais notável exemplo desse fato é o que se refere aos nomes
próprios de pessoas, os quais naturalmente possuem importância psíquica
bastante diferente para diferentes pessoas. Para ilustrá-lo, tomemos um
primeiro nome, como Teodoro. Para alguns dos senhores ele não terá qualquer
significação especial; para outro, será o nome de seu pai, do irmão ou de um
amigo, ou seu próprio nome. Assim, a experiência analítica lhes mostrará que a
primeira dessas pessoas não corre nenhum risco de se esquecer de que algum
estranho usa esse nome, ao passo que as outras terão constantemente a tendência
de negar a estranhos um nome que lhes parece reservado a ligações íntimas. Ora,
se os senhores considerarem que essa inibição associativa pode coincidir com a
atuação do princípio de desprazer e, ademais, com um mecanismo indireto,
estarão em condições de formar uma idéia adequada das complexidades existentes
na causação do esquecimento temporário de um nome. Uma análise apropriada irá,
porém, desemaranhar-lhes uma dessas meadas.
O esquecimento de impressões e de experiências
demonstra, de forma muito mais clara e exclusiva do que o esquecimento de
nomes, a atuação da intenção de manter coisas desagradáveis fora da memória.
Naturalmente nem toda a área desse tipo de esquecimento se situa dentro da
categoria das parapraxias, mas apenas casos tais como aqueles que, medidos pelo
padrão de nossa experiência habitual, nos parecem admiráveis e inexplicáveis:
por exemplo, quando o esquecimento atinge impressões que são muito recentes ou
importantes, ou quando a lembrança perdida abre uma brecha naquilo que é, por
seu lado, uma bem-memorizada cadeia de acontecimentos. Por que e de que modo
somos capazes de esquecer em geral, e entre outras coisas esquecer experiências
que certamente deixaram em nós uma impressão mais profunda, tal como os
acontecimentos dos anos mais remotos de nossa infância - isso constitui outro
problema no qual querer evitar impulsos desagradáveis desempenha determinado
papel, e, contudo, está longe de constituir a explicação completa. É fato
inequívoco que as impressões desagradáveis são facilmente esquecidas. Diversos
psicólogos o observaram, e o grande Darwin se impressionava tanto com isso, que
tornou ‘regra de ouro’ anotar com cuidado especial quaisquer observações que
parecessem desfavoráveis à sua teoria, de vez que se havia convencido de que
precisamente elas não permaneceriam em sua memória.
Uma pessoa que pela primeira vez ouve falar
nesse princípio do afastamento de lembranças desagradáveis por meio do
esquecimento, raramente deixa de objetar que, pelo contrário, em sua
experiência as coisas aflitivas são especialmente difíceis de esquecer e
insistem em retornar, contra sua vontade, a fim de atormentá-la: lembranças,
por exemplo, de insultos e humilhações. Isso também é um fato verídico, contudo
a objeção não procede. É importante e oportuno começar a levar em conta o fato
de que a vida mental é a arena e o campo de batalha de intenções que se opõem
reciprocamente ou, para dizê-lo de modo não-dinâmico, que se constitui de
contradições e de pares de contrários. A prova da existência de determinado
propósito não é argumento contra a existência de um propósito oposto; há lugar
para ambos. É apenas uma questão de saber como se colocam esses contrários, um
em relação ao outro, e que efeitos são produzidos por um e por outro.
Perda e extravio são de particular
interesse para nós devido aos vários significados que podem ter - isto é,
devido à multiplicidade das intenções que podem se servir dessas parapraxias.
Todos os casos têm em comum o fato de ter existido um desejo de perder algo;
diferem quanto à origem e quanto ao objetivo desse desejo. Perdemos uma coisa
quando está gasta, quando pretendemos substituí-la por outra melhor, quando não
gostamos mais dela, quando ela procedeu de alguém com quem não estamos nos
relacionando bem, ou quando a adquirimos em circunstâncias que não desejamos
mais rememorar. [ver em [1] e [2].] Deixar cair, danificar ou quebrar um objeto
podem servir à mesma finalidade. Na esfera da vida social, segundo se diz, a
experiência demonstrou que as crianças indesejadas e ilegítimas são muito mais
frágeis do que aquelas concebidas legitimamente. Não é necessário atingir a
crua técnica das criadeiras profissionais de crianças; para chegar a tal
resultado, determinada dose de negligência no trato com as crianças deve ser
suficiente. A preservação de coisas pode estar sujeita às mesmas influências
que o cuidado com as crianças.
No entanto, as coisas podem ser condenadas a
serem perdidas sem que seu valor tenha sofrido qualquer diminuição - isto é,
quando há uma intenção de sacrificar algo ao Destino, a fim de se proteger de
uma outra perda que se teme. A análise nos revela que entre nós ainda é muito
comum exorcizar o Destino dessa maneira; e, assim, nossa perda muitas vezes é
um sacrifício voluntário. Da mesma forma, a perda também pode servir à intenção
de desafio ou autopunição. Para resumir, são incontáveis as mais remotas razões
para a intenção de se desfazer de uma coisa por meio de sua perda.
Os atos descuidados, assim como outros
erros, muitas vezes são usados para satisfazer desejos que uma pessoa deveria
negar existirem em si própria. Neles a intenção se dissimula em um auspicioso
acidente. Por exemplo, como aconteceu a um de meus amigos, um homem pode ser
obrigado, obviamente contra sua vontade, a viajar de trem para visitar alguém
perto da cidade em que vive, e em uma estação onde deve fazer baldeação então
pode, por engano, embarcar num trem que o leva de volta ao local de onde veio.
Ou alguém, numa viagem, pode estar desejoso de fazer uma parada em uma estação
intermediária, porém estar impedido de fazê-lo devido a outras obrigações,
podendo, assim, negligenciar ou perder uma conexão de modo que, em última
análise, é obrigado a interromper sua viagem da maneira como queria. Ou o que
sucedeu a um de meus pacientes: eu lhe havia proibido telefonar à moça de quem
estava apaixonado, e quando quis telefonar para mim, pediu o número errado ‘por
engano’ ou ‘enquanto estava pensando em alguma outra coisa’, e de repente se
viu com o número do telefone da moça. Um bom exemplo de descuido cabal com
repercussão prática é proporcionado pela observação feita por um engenheiro em
seu relato dos fatos que antecederam um caso de danos materiais:
‘Há algum tempo atrás eu trabalhava com
diversos estudantes no laboratório da escola técnica, numa série de complexas
experiências sobre elasticidade, um trabalho que tínhamos assumido
voluntariamente e, contudo, começava a exigir mais tempo de que prevíramos. Um
dia, quando retornava ao laboratório com meu amigo F., este comentou como o
aborrecia perder tanto tempo justamente naquele dia, quando tinha tantas outras
coisas para fazer em casa. Não pude deixar de concordar com ele e, com algum
gracejo, referindo-me a um acidente na semana anterior, acrescentei: “Esperemos
que a máquina falhe novamente, pois assim poderemos parar com o trabalho e ir
para casa cedo.”
‘Ao distribuir o trabalho, sucedeu que a F.
coube a regulagem da válvula da prensa; isto é, estava incumbido de abrir cuidadosamente
a válvula para deixar o fluido sob pressão sair lentamente do acumulador para o
cilindro da prensa hidráulica. O homem que conduzia a experiência colocou-se
junto ao manômetro e, quando se atingiu a pressão correta, ordenou em voz alta:
“Pare!” À palavra de comando, F. agarrou a válvula e torceu-a com toda a força
- para a esquerda! (Todas as válvulas, sem exceção, fecham-se girando para a
direita.) Isso fez com que a pressão total do acumulador passasse subitamente
para a prensa, um esforço para o qual não estavam destinados os canos de
ligação, de forma que um desses canos imediatamente explodiu - um acidente
bastante inócuo para a máquina, porém suficiente para nos obrigar a suspender o
trabalho por esse dia e irmos para casa.
‘O surpreendente, aliás, é que, quando
estávamos discutindo o caso algum tempo depois, meu amigo F. não tinha a mínima
recordação de meu comentário, que eu recordava fielmente.’
Isso pode levar os senhores a suspeitar de que
não é apenas um inocente acaso que transforma as mãos de nossas empregadas
domésticas em perigosos inimigos de nossos objetos de casa. E os senhores
também podem se perguntar se é obra do acaso quando as pessoas se machucam e
arriscam sua própria segurança. Essas são noções cuja validade os senhores, surgindo
a ocasião, podem se dedicar a comprovar analisando suas próprias observações.
Senhoras e senhores, isso está longe de ser
tudo quanto se poderia dizer a respeito de parapraxias. Muita coisa resta a
examinar e discutir. Fico, contudo, satisfeito se nossa discussão do assunto,
até aqui, de certa forma agitou suas opiniões anteriores e os deixou um tanto
mais preparados para aceitar outras, novas. Contento-me, de resto, com
deixá-los defrontando-se com uma situação não esclarecida. Não podemos estabelecer
nossas doutrinas a partir de um estudo das parapraxias, e não estamos obrigados
a extrair nossas provas a partir apenas desse material. O grande valor das
parapraxias para os objetivos que almejamos, consiste no fato de serem
fenômenos muito comuns que, além de tudo, podem ser observados com facilidade
em cada um, e ocorrer sem absolutamente implicar em doença. Existe apenas uma
das questões dos senhores, não respondida, a qual eu, antes de terminar,
gostaria de verbalizar. Conforme verificamos em muitos exemplos, se as pessoas
chegam tão próximo de uma compreensão das parapraxias e tão amiúde se comportam
como se apreendessem seu sentido, de que modo lhes é possível, não obstante,
classificar esses fenômenos como sendo em geral eventos casuais, sem sentido
nem significado, e poder opor-se tão vigorosamente à elucidação psicanalítica
dessas mesmas parapraxias?
Os senhores têm razão. Esse é um fato notável e
exige uma explicação. No entanto, não lhes darei tal explicação. Em vez disso,
eu os levarei gradualmente a áreas de conhecimento a partir das quais a
explicação irá se impor aos senhores, sem qualquer contribuição de minha parte.