Freud - Obras Completas XVII

História de uma neurose infantil e outros trabalhos
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VOLUME XVII
(1917-1919)




Dr. Sigmund Freud




HISTÓRIA DE UMA NEUROSE INFANTIL (1918 [1914])


NOTA DO EDITOR INGLÊS - AUS DER GESCHICHTE EINER INFANTILEN NEUROSE

(a) EDIÇÕES ALEMÃES:

1918 S.K.S.N., 4, 578-717.
1922 S.K.S.N., 5, 1-140.
1924 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 132 págs.
1924 G.S., 8, 439-567.
1931 Neurosenlehre und Technik, 37-171
1947 G.W., 12, 29-157.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

‘From the History of an Infantile Neurosis’
1925 C.P., 3, 473-605. (Trad. de A. e J. Strachey).
Foram introduzidas algumas modificações na edição alemã de 1924, principalmente no tocante a datas; e acrescentou-se uma longa nota de rodapé no final. A presente tradução inglesa é revisão da publicada em 1925.
Este é o mais elaborado e sem dúvida o mais importante de todos os casos clínicos de Freud. Foi em fevereiro de 1910 que o jovem e rico russo, de quem o relato trata, dirigiu-se a Freud para ser analisado. Sua primeira etapa de tratamento, que é abordada neste artigo, durou daquela data até julho de 1914, quando Freud considerou o caso encerrado. Começou a escrever o caso clínico em outubro do mesmo ano e concluiu-o em princípios de novembro. No entanto, retardou sua publicação por quatro anos. Na ocasião, nenhuma modificação foi feita, conta-nos ele (ver em [1]), mas dois longos trechos foram inseridos. O desenvolvimento posterior do caso, após concluída a primeira etapa de tratamento, está descrito por Freud na nota de rodapé que acrescentou à edição de 1924, no final do artigo (ver em [1] e [2]).

Informações ainda mais recentes também serão encontradas, em parte, fornecidas por material publicado posteriormente pelo próprio Freud, em parte, por dados que surgiram depois de sua morte.
Freud fez uma série de referências ao caso do ‘Homem dos Lobos’ em trabalhos publicados antes e depois do próprio caso clínico, e talvez valha a pena enumerá-las. A primeira evidência do interesse de Freud pelo caso foi um parágrafo que apareceu, com a sua assinatura, no início do outono de 1912 (Zbl. Psychoanal., 2, 680), obviamente estimulado pelo sonho do lobo, que é motivo central do caso clínico. Apareceu sob a rubrica ‘Offener Sprechsaal’ (‘Fórum Aberto’) e consta do seguinte:
‘Ficaria satisfeito se todos os meus colegas que se preparam para ser analistas coligissem e analisassem cuidadosamente quaisquer sonhos de seus pacientes cuja interpretação justifique a conclusão de que aqueles que os tiveram tenham sido testemunhas de um ato sexual nos primeiros anos de vida. Uma sugestão é sem dúvida suficiente para tornar evidente que tais sonhos são de um valor muito especial, em mais de um aspecto. Apenas esses sonhos podem, é claro, ser considerados como indicativos de que ocorreram na infância, e são lembrados a partir desse período.
Freud.’
Um outro parágrafo sobre o assunto apareceu no começo de 1913 (Int Z. Psychoanal., 1, 79):
Sonhos de Crianças com um Significado Especial
‘No Fórum Aberto do Zbl. Psychoanal., 2, 680, pedi a meus colegas que publicassem quaisquer sonhos ocorridos na infância “cuja interpretação justifique a conclusão de que aqueles que os tiveram tenham sido testemunhas de um ato sexual nos primeiros anos de vida”. Devo agradecer agora à Dra. Mira Gineburg (de Breitenau-Schaffhausen) por uma primeira contribuição que parece adequar-se às condições estabelecidas. Prefiro adiar uma consideração crítica desse sonho até que se tenha coligido mais material comparativo.
Freud.’
Essa nota era seguida pelo relato do sonho em questão, pela Dra. Gincburg. Um sonho semelhante foi depois relatado por Hitschmann, no mesmo ano (Int. X. Psychoanal., 1, 476), mas não houve mais comunicações sobre o assunto por parte de Freud. Durante esse verão, contudo, ele publicou o seu artigo sobre ‘A Ocorrência, em Sonhos, de Material Oriundo de Contos de Fadas’ (1913d), que na verdade relatava o sonho do lobo e que foi em parte reproduzido no caso clínico (ver em [1] e segs.); e no início do ano seguinte surgiu o artigo sobre ‘Fausse Reconnaissance no Tratamento Psicanalítico’ (1914a), descrevendo outro episódio no caso. Também este foi parcialmente reproduzido aqui (ver em [1]). Há, também, uma referência indireta ao ‘Homem dos Lobos’ em um debate sobre primeiras lembranças da infância, em ‘Recordar, Repetir e Elaborar’ (1914g), Edição Standard Brasileira, Vol. XII, pág. 195, IMAGO Editora, 1976. O artigo metapsicológico sobre ‘Repressão’ (1915d), que foi publicado antes do presente trabalho, embora escrito depois deste, contém um parágrafo referente à fobia de lobos do paciente. Muitos anos depois da publicação do caso clínico, Freud voltou ao caso no decorrer de uma argumentação sobre as fobias de animais das crianças em Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926d). Nos capítulos IV e VII desse trabalho, a fobia de lobos do paciente é comparada com a fobia de cavalos analisada no caso do ‘Little Hans’ (1909b). Finalmente, em um de seus últimos artigos, ‘Análise Terminável e Interminável’ (1937c), Freud fez alguns comentários críticos sobre a inovação técnica de estabelecer um tempo-limite para o tratamento, o qual ele introduziu neste caso, descrevendo-o ver em [1].
Aos olhos de Freud, o significado primário deste caso clínico na época da sua publicação era claramente o apoio que proporcionava para as suas críticas a Adler e, mais especificamente, a Jung. Havia ali evidência conclusiva para refutar qualquer negação da sexualidade infantil. Todavia, muitos mais proveitos de alto valor surgiram do tratamento, embora uma parte deles já tivesse sido dada a público no intervalo de quatro anos entre a elaboração do caso clínico e sua publicação. Havia, por exemplo, a relação entre as ‘cenas primárias’ e as ‘fantasias primitivas’, que conduziu diretamente ao obscuro problema da possibilidade de que o conteúdo mental da fantasias primitivas pudesse ser herdado. Isso foi examinado na Conferência XXIII das Conferências Introdutórias (1916-17), mas depois foi elaborado nos trechos adicionais das págs. 67 e 103 e segs. Outra vez, o notável material da Seção VII, que trata do erotismo anal do paciente, foi utilizado por Freud em seu artigo ‘As Transformações do Instinto’ (1917c), pág. 131, adiante.
Ainda mais importante foi o esclarecimento dado pela presente análise sobre a primitiva organização oral da libido, que em certa medida é discutida adiante, em [1] e [4]. A primeira referência publicada de Freud a essa organização era a de um parágrafo acrescentado em 1915 à terceira edição dos seus Três Ensaios (1905d), Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág. 204, IMAGO Editora, 1972. O prefácio a essa terceira edição traz a data ‘Outubro de 1914’ - exatamente o mês durante o qual escrevia o artigo sobre o ‘Homem dos Lobos’. Parece provável que o material ‘canibalístico’ revelado nessa análise tenha desempenhado um papel importante na preparação do caminho para algumas das mais significativas das teorias de que Freud se ocupava nesse período: as interconexões entre incorporação, identificação, a formação de um ideal do ego, o sentimento de culpa e os estados patológicos de depressão. Algumas dessas teorias já haviam sido expressas no último ensaio de Totem e Tabu (a redação deste caso clínico (Jones, 1955, 367).
Talvez a principal descoberta clínica seja a de revelar a evidência do papel determinante desempenhado na neurose do paciente pelos seus impulsos femininos primários. Seu marcado grau de bissexualidade era apenas a confirmação de pontos de vista há muito defendidos por Freud, que datavam da época de sua amizade com Fliess. Nos seus escritos subseqüentes, porém, Freud deu ainda mais ênfase ao fato da ocorrência universal da bissexualidade e da existência de um complexo de Édipo ‘invertido’ ou ‘negativo’. Essa tese recebeu sua expressão mais clara no trecho sobre o complexo de Édipo ‘completo’, no capítulo III de O Ego e o Id (1923b). Por outro lado, resiste com veemência a uma tentativa de inferência teórica no sentido de que os escrito em meados de 1913) e no artigo sobre narcisismo (concluído em princípios de 1914). Outras iriam aparecer em ‘Luto e Melancolia’. Este último só foi publicado em 1917. Mas foi-lhe dada forma final no começo de maio de 1915; e muitas das idéias que contém haviam sido colocadas diante da Sociedade Psicanalítica de Viena, a 30 de dezembro de 1914, apenas algumas semanas após motivos relacionados com a bissexualidade são os determinantes invariáveis da repressão (ver em [1] e seg.) - problema a que Freud se referiu extensamente pouco depois, em ‘Uma Criança é Espancada’ (1919e), ver em [1] e segs., adiante.
Finalmente, talvez seja legítimo chamar a atenção para a extraordinária habilidade literária com que Freud expôs o caso. Estava diante da tarefa pioneira de fornecer um relato científico de eventos psicológicos de novidade e complexidade jamais sonhadas. O resultado é um trabalho que não apenas evita os perigos de confusão e obscuridade, mas também prende a fascinada atenção do leitor do princípio ao fim.






HISTÓRIA DE UMA NEUROSE INFANTIL

I - OBSERVAÇÕES INTRODUTÓRIAS

O caso que me proponho relatar nas páginas que se seguem (uma vez mais apenas de maneira fragmentária) caracteriza-se por uma série de peculiaridades que  outras pessoas quando iniciou o seu tratamento psicanalítico, vários anos depois. Tivera uma vida mais ou menos normal durante os dez anos que precederam a data de sua doença e cumpriu os estudos da escola secundária sem muitos problemas. Seus primeiros anos de vida haviam, contudo, sido dominados por um grave distúrbio neurótico, que começou imediatamente antes do seu quarto aniversário, uma histeria de angústia (na forma de uma fobia animal), que se transformou então numa neurose exigem ser enfatizadas antes que proceda a uma descrição dos próprios fatos. Diz respeito a um jovem cuja saúde se abalara aos dezoito anos, depois de uma gonorréia infecciosa, e que se encontrava inteiramente incapacitado e dependente deobsessiva de conteúdo religioso e perdurou, com as suas manifestações, até os dez anos.
Apenas essa neurose infantil seria o objeto da minha comunicação. Apesar do pedido direto do paciente, abstive-me de escrever um histórico completo da sua enfermidade, do tratamento e da recuperação, porque reconheci que tal tarefa era tecnicamente impraticável e socialmente impermissível. Ao mesmo tempo, isso afasta a possibilidade de demonstrar a relação entre a sua doença na infância e a sua doença posterior e permanente. No que diz respeito a esta, só posso dizer que, por causa dela, o paciente passou um longo período em sanatórios alemães, e foi, na época, classificada pelos mais autorizados especialistas, como um caso de ‘insanidade maníaco-depressiva’. Esse diagnóstico era certamente aplicável ao pai do paciente, cuja vida, de muitas atividades e interesses, foi perturbada por repetidos ataques de grave depressão. No filho, porém, jamais consegui, durante uma observação que durou vários anos, detectar quaisquer mudanças de ânimo que fossem desproporcionais à situação psicológica manifesta, tanto na intensidade quanto nas circunstâncias do seu aparecimento. Formei a opinião de que este caso, como muitos outros que a psiquiatria clínica rotulou com os mais multifários e variáveis diagnósticos, deve ser considerado como uma condição que se segue a uma neurose obsessiva que acabou espontaneamente, mas deixou por trás um defeito, após a recuperação.
Minha descrição tratará, portanto, de uma neurose infantil que foi analisada não enquanto realmente existia, mas somente quinze anos depois de haver terminado. Esse estado de coisas tem suas vantagens, bem como desvantagens, em comparação com a alternativa. Uma análise conduzida sobre a própria criança neurótica deve normalmente parecer mais digna de confiança, mas não pode ser muito rica em material; demasiadas palavras e pensamentos têm que ser ‘emprestados’ à criança, e ainda assim os estratos mais profundos podem tornar-se impenetráveis para a consciência. Uma análise de um distúrbio da infância por meio da recordação de um adulto intelectualmente maduro está livre dessas limitações; mas é preciso que levemos em conta a distorção e a reelaboração às quais o passado de uma pessoa está sujeito, quando visto na perspectiva de um período posterior. A primeira alternativa dá, talvez, resultados mais convincentes; a segunda é, com sobras, a mais instrutiva.
Em qualquer caso, pode-se dizer que a análise de neuroses infantis possui um interesse teórico particularmente alto. Proporciona-nos, por assim dizer, tanta ajuda no sentido de uma compreensão adequada das neuroses dos adultos, quanto os sonhos infantis em relação aos sonhos dos adultos. Não é que sejam, na verdade, mais perspícuos ou mais pobres de elementos; de fato, a dificuldade de perceber o acesso à vida mental de uma criança, torna-a uma tarefa particularmente difícil para o médico. Não obstante, por não haver ainda tantos dos depósitos posteriores, a essência da neurose salta aos olhos com uma nitidez inequívoca. Na fase atual da batalha que se desenrola à volta da psicanálise, a resistência às suas descobertas tomou, como sabemos, uma nova forma. Antigamente as pessoas contentavam-se em discutir a realidade dos fatos estabelecidos pela análise; e, para esse propósito, a melhor técnica parecia ser a de evitar examiná-los. Esse procedimento parece estar-se exaurindo lentamente; e as pessoas adotam agora outro plano - reconhecer os fatos, mas eliminar, por meio de interpretações torcidas, as conseqüências que a eles se seguem, de modo que os críticos podem ainda resguardar-se das novidades objetáveis tão eficientemente como antes. O estudo das neuroses infantis expõe a completa inadequação dessas tentativas superficiais e arbitrárias de reinterpretação. Mostra o papel predominante que é desempenhado na formação das neuroses por aquelas forças libidinais tão impulsivamente rejeitadas, e revela a ausência de quaisquer aspirações no sentido de objetivos culturais remotos, dos quais a criança nada sabe ainda e que não podem, portanto, ter qualquer significado para ela.
Outra característica que torna a presente análise digna de nota está ligada à gravidade da doença e à duração do tratamento. As análises que conduzem a uma conclusão favorável em pouco tempo, são de valor para a auto-estima do terapeuta e para substanciar a importância médica da psicanálise; mas permanecem em grande parte insignificantes no que diz respeito ao progresso do conhecimento científico. Nada de novo se aprende com elas. Na verdade, apenas são bem-sucedidas tão rapidamente, porque tudo o que era necessário para a sua realização já era conhecido. A novidade só pode ser obtida de análises que apresentam especiais dificuldades, e para que isso aconteça é necessário que a elas se dedique bastante tempo. Apenas em tais casos conseguimos descer aos estratos mais profundos e mais primitivos do desenvolvimento mental, e destes obter soluções para os problemas das formações posteriores. E depois disso, sentimos que, estritamente falando, só uma análise que penetrou tão fundo merece esse nome. Naturalmente, um único caso não nos dá toda a informação que gostaríamos de ter. Ou, melhor dizendo, poderia ensinar-nos tudo, se estivéssemos numa posição de tudo compreender e se não fôssemos compelidos pela inexperiência da nossa própria percepção a contentarmo-nos com pouco.
No que diz respeito a essas férteis dificuldades, o caso que vou expor nada deixa a desejar. Os primeiros anos do tratamento produziram escassas mudanças. Devido a uma concatenação afortunada, todas as circunstâncias externas conjugaram-se, todavia, para tornar possível proceder à experiência terapêutica. Acredito que em circunstâncias menos favoráveis o tratamento teria sido abandonado depois de pouco tempo. Do ponto de vista médico, posso apenas declarar que, num caso dessa natureza, devemos comportar-nos tão ‘atemporalmente’ quanto o próprio inconsciente, se desejamos aprender ou conseguir alguma coisa. E, ao final, o médico será bem-sucedido, se tiver força para renunciar a qualquer ambição terapêutica de pouca visão. Não se deve esperar que a soma de paciência, adaptabilidade, compreensão interna (insight) e confiança exigida do paciente e de seus parentes se apresente em muitos outros casos. O analista, contudo, tem o direito de achar que os resultados que obteve de tão extenso trabalho, num caso, ajudem substancialmente a reduzir a duração do tratamento em um caso subseqüente, de igual gravidade, e que, ao submeter-se numa ocasião única à atemporalidade do inconsciente, ele estará perto de dominá-lo no final.
O paciente a que me refiro aqui permaneceu muito tempo inexpugnavelmente entrincheirado por trás de uma atitude de amável apatia. Escutava, compreendia e permanecia inabordável. Sua indiscutível inteligência estava, assim, separada das forças instintuais que governam seu comportamento nas poucas relações vitais que lhe restavam. Exigiu uma longa educação induzi-lo a assumir uma parcela independente no trabalho; e quando, como resultado desse esforço, começou pela primeira vez a sentir alívio, desistiu imediatamente de trabalhar, com o objetivo de evitar quaisquer outras mudanças e de permanecer confortavelmente na situação que fora assim estabelecida. Sua retração diante de uma existência auto-suficiente era tão grande que excedia todas as aflições da sua doença. Só haveria um meio de superar isso. Fui obrigado a esperar até que o seu afeiçoamento a mim se tornasse forte, o suficiente para contrabalançar essa retração, e então jogar um fator contra o outro. Determinei - mas não antes que houvesse indícios dignos de confiança que me levassem a julgar que chegara o momento certo - que o tratamento seria concluído numa determinada data fixa, não importando o quanto houvesse progredido. Eu estava resolvido a manter a data; e finalmente o paciente chegou à conclusão de que eu estava falando sério. Sob a pressão inexorável desse limite fixado, sua resistência e sua fixação na doença cederam e então, num período desproporcionalmente curto, a análise produziu todo o material que tornou possível esclarecer as suas inibições e eliminar os seus sintomas. E também toda a informação que me possibilitou compreender a sua neurose infantil nasceu dessa última etapa do trabalho, durante a qual a resistência desapareceu temporariamente e o paciente dava a impressão de uma lucidez que habitualmente só é obtida através da hipnose.
Desse modo, o curso deste tratamento ilustra uma máxima cuja verdade era há muito apreciada na técnica da análise. A extensão da estrada pela qual a análise deve viajar com o paciente e a quantidade de material que deve ser dominado pelo caminho não têm importância em comparação com a resistência encontrada no decorrer do trabalho. Só têm importância na medida em que são necessariamente proporcionais à resistência. A situação é a mesma de um exército inimigo que precisa, hoje, de semanas e meses para abrir caminho através de uma região que, em tempos de paz, seria atravessada em poucas horas por um expresso e que, pouco tempo antes, fora transposta pelo exército defensor em alguns dias.
Uma terceira peculiaridade da análise, que será descrita nestas páginas, apenas aumentou a minha dificuldade em decidir fazer dela um relato. No todo, os seus resultados coincidiram, da maneira mais satisfatória, com o nosso conhecimento prévio, ou foram facilmente incorporados por ele. Muitos detalhes, no entanto, pareceram-me tão extraordinários e incríveis, que senti alguma hesitação em pedir a outras pessoas que acreditassem neles. Solicitei ao paciente que fizesse a mais rigorosa crítica das suas recordações, mas ele nada achou de improvável em suas afirmações e confirmou-as inteiramente. Em todo caso, os leitores podem ficar certos de que só estou relatando o que surgiu como experiência independente, não influenciada pela minha expectativa. De forma que nada mais me restou senão recordar a sábia sentença de que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Qualquer um que pudesse conseguir eliminar ainda mais completamente as suas convicções preexistentes, descobriria, sem dúvida, ainda mais coisas como estas.


II - AVALIAÇÃO GERAL DO AMBIENTE DO PACIENTE E DO HISTÓRICO DO CASO

Sou incapaz de fornecer um relato puramente histórico ou puramente temático da história do meu paciente; não posso escrever um histórico nem do tratamento nem da doença, mas sinto-me obrigado a combinar os dois métodos de apresentação. É sabido que não se encontraram meios de introduzir, de qualquer modo, na reprodução de uma análise o sentimento de convicção que resulta da própria análise. Exaustivos relatórios textuais dos procedimentos adotados durante as sessões não teriam certamente qualquer valia; e, de qualquer maneira, a técnica do tratamento torna impossível elaborá-los. Assim, análises como esta não são publicadas com a finalidade de produzir convicção nas mentes daqueles cuja atitude tenha sido, até então, de recusa e ceticismo. A intenção é apenas a de apresentar alguns novos fatos a pesquisadores que já estejam convencidos por suas próprias experiências clínicas.
Começarei, então, por fornecer um quadro do mundo da criança e por dizer tanto da história da sua infância quanto poderia ser sabido sem qualquer esforço; na verdade, não foi senão depois de vários anos que a história se tornou menos incompleta e obscura.
Os pais haviam casado jovens e mantinham ainda uma feliz vida em comum, sobre a qual a doença em breve lançaria as primeiras sombras. A mãe começou a sofrer de distúrbios abdominais e o pai teve seus primeiros ataques de depressão, que o levaram a ausentar-se de casa. Naturalmente, o paciente só chegou a perceber a enfermidade do pai muito mais tarde, mas tinha consciência da fraca saúde da mãe desde a mais tenra infância. Por conseguinte, ela tinha relativamente pouco a ver com as crianças. Um dia, certamente antes de completar quatro anos, enquanto a mãe saía para ver o médico e ele caminhava ao seu lado, segurando sua mão, ouviu-a lamentar a sua condição. As palavras da mãe causaram nele profunda impressão, e ele mais tarde aplicou-as a si mesmo (cf. pág. 85). Não era filho único; tinha uma irmã, aproximadamente dois anos mais velha, vivaz, dotada, precocemente maliciosa, que iria desempenhar um importante papel em sua vida.
Pelo que se podia lembrar, cuidava dele uma babá, uma velha sem instrução, de origem camponesa, com uma incansável afeição por ele. O menino era uma espécie de substituto de seu próprio filho, que morrera jovem. A família vivia numa granja e costumava passar o verão em outra. Ambas as propriedades eram mais ou menos próximas de uma cidade grande. Houve uma ruptura na sua infância quando os pais venderam as granjas e mudaram-se para a cidade. Os parentes próximos costumavam visitá-los com freqüência, numa ou na outra granja - os irmãos do pai, as irmãs da mãe com seus filhos, os avós maternos. Durante o verão os pais costumavam estar fora por algumas semanas. Numa lembrança encobridora ele viu-se a si próprio com a babá olhando a carruagem que se afastava com o pai, a mãe e a irmã, e depois voltando serenamente para dentro de casa. Devia ser muito pequeno na ocasião. No verão seguinte, sua irmã também ficou em casa e foi contratada uma governanta inglesa, que ficou responsável pelas crianças.
Anos mais tarde ele ouviu muitas histórias sobre a sua infância. Ele próprio sabia uma porção, mas eram naturalmente desconexas no que respeita a data e assunto. Uma delas, que foi repetida muitas e muitas vezes em sua presença, por ocasião da sua posterior enfermidade, apresenta-nos o problema de cuja solução nos ocuparemos. Nos primeiros anos, parece ter sido uma criança de muito boa índole, tratável, até mesmo tranqüila, de tal modo que costumavam dizer que ele é que devia ter sido a menina, e sua irmã mais velha, o rapaz. Certa vez, porém, ao regressarem das férias de verão, os pais encontraram-no transformado. Tornara-se inquieto, irritável e violento. Ofendia-se por qualquer coisa e depois tomava-se de raiva e berrava como um selvagem; de modo que, ao persistir esse estado de coisas, os pais expressaram as suas apreensões quanto à possibilidade de enviá-lo mais tarde para uma escola. Isso aconteceu durante o verão em que a governanta inglesa ficou com eles. Ocorria que esta era uma pessoa excêntrica e irascível e, além do mais, viciada em bebida. A mãe do menino inclinou-se, portanto, a atribuir a alteração no seu caráter à influência dessa inglesa, presumindo que ela o havia irritado profundamente com o tratamento que lhe dispensava. A perspicaz avó, que passara o verão com as crianças, era de opinião que a irritabilidade do menino fora provocada pelas discussões entre a inglesa e a babá. A inglesa havia chamado a babá de bruxa, repetidas vezes, obrigando-a a sair da sala; o menino tomara abertamente o partido da sua amada ‘Nanya’ e demonstrara à governanta o seu rancor. O que quer que tenha acontecido, a inglesa foi mandada embora pouco depois do regresso dos pais, sem que tenha havido qualquer modificação conseqüente no insuportável comportamento do menino.
O paciente preservara a sua lembrança desse período de desobediência. Conforme recordava, fez a primeira das suas cenas num Natal, quando não lhe deram uma quantidade dupla de presentes - o que lhe era devido, porque seu aniversário era no dia de Natal. Não poupou nem mesmo a sua querida Nanya das suas malcriações e irritabilidade; atormentou-a, talvez, ainda mais sem remorsos do que a qualquer outro. Mas a fase que trouxe consigo a sua mudança de caráter estava inextrincavelmente ligada, na sua lembrança, com muitos outros fenômenos estranhos e patológicos que ele não conseguia dispor em seqüência cronológica. Ele misturava todos os incidentes que vou agora relatar (que não poderiam ter sido contemporâneos e que estão cheios de contradições internas), num único e mesmo período de tempo, ao qual deu o nome de ‘ainda na primeira granja’. Achava que deviam ter saído dessa granja na época em que tinha cinco anos de idade. Assim, recordava ele que havia sofrido um medo, que sua irmã explorava com o propósito de atormentá-lo. Havia um determinado livro de figuras no qual estava representado um lobo, de pé, dando largas passadas. Sempre que punha os olhos nessa figura começava a gritar, como um louco, que tinha medo de que o lobo viesse e o comesse. A irmã, no entanto, sempre dava um jeito de obrigá-lo a ver a imagem, e deleitava-se com o seu terror. Entretanto, ele se amedrontava também com outros animais, grandes e pequenos. Certa vez estava correndo atrás de uma grande e bonita borboleta, com asas listradas de amarelo e acabando em ponta, na esperança de apanhá-la. (Era sem dúvida uma ‘rabo-de-andorinha’.) De repente, foi tomado de um terrível medo da criatura e, aos gritos, desistiu da caçada. Também sentia medo e repugnância dos besouros e das lagartas. Ainda assim, conseguia lembrar-se de que, nessa mesma época, costumava atormentar os besouros e cortar as lagartas em pedaços. Também os cavalos despertavam nele um estranho sentimento. Se alguém batia num cavalo, ele começava a gritar, e certa vez foi obrigado a sair de um circo por causa disso. Em outras ocasiões, ele próprio gostava de bater em cavalos. Se esses tipos contraditórios de atitude em relação aos animais operaram, na verdade, simultaneamente ou não, se uma atitude substituiu a outra, mas se assim foi, quando e em que ordem - a todas essas perguntas sua memória não oferecia uma resposta decisiva. Também não sabia dizer se o seu período de rebeldia foi substituído por uma fase de doença ou se persistiu através desta. Mas, em todo caso, sua afirmações que se seguem justificam a suposição de que, durante esses anos da sua infância, passou por um ataque de neurose obsessiva, facilmente reconhecível. Relatou como, durante um longo período, ele foi muito devoto. Antes de dormir era obrigado a rezar muito tempo e a fazer, em uma série interminável, o sinal-da-cruz. Também à tarde costumava fazer uma ronda por todas as imagens sagradas penduradas na sala, levando consigo uma cadeira sobre a qual subia para beijar piamente cada uma delas. O que era totalmente destoante desse cerimonial devoto - ou, por outro lado, talvez fosse bastante coerente - é que se recordasse de certos pensamentos, determinadas blasfêmias que lhe vinha à cabeça como uma inspiração do diabo. Era obrigado a pensar ‘Deus-suíno’ ou ‘Deus-merda’. Certa vez, em viagem para uma estância de repouso na Alemanha, foi atormentado pela obsessão de ter que pensar na Santíssima Trindade sempre que via três montes de esterco de cavalo ou qualquer outro excremento na estrada. Nessa época costumava executar outra cerimônia peculiar quando via pessoas das quais sentia pena, como mendigos, aleijados ou gente muito velha. Respirava soltando o ar ruidosamente, para que não ficasse como eles; e, em determinadas circunstâncias, tinha que inspirar vigorosamente. Presumi naturalmente que esses sintomas óbvios de uma neurose obsessiva pertenciam a um período e estádio de desenvolvimento algo posterior aos sinais de ansiedade e à fase de maltratar os animais.
Os anos mais maduros do paciente foram marcados por uma relação bastante insatisfatória com o pai, que, depois de repetidos ataques de depressão, não conseguia mais ocultar os aspectos patológicos do seu caráter. Nos primeiros anos da infância do paciente essa relação havia sido muito afetiva, e a recordação dela conservou-se em sua memória. O pai gostava muito do menino, gostava de brincar com ele. Este se sentia orgulhoso do pai, dizia sempre que gostaria de ser um cavalheiro como ele. A babá disse-lhe que a irmã era a criança da sua mãe, mas ele era a do pai - e isso agradou-lhe bastante. Nos últimos anos da infância, no entanto, houve um estranhamento entre ele e o pai. Este mostrava uma inequívoca preferência pela irmã, e por isso sentiu-se muito desprezado. Mais tarde, o medo ao pai tornou-se o fator dominante.
Todos os fenômenos que o paciente associava com a fase da vida que começou com a sua desobediência, desapareceram por volta dos oito anos. Não desapareceram de uma vez, e ocasionalmente reapareciam; mas finalmente cederam, na opinião do paciente, diante da influência dos mestres e tutores que tomaram o lugar das mulheres, que até então haviam cuidado dele. Aqui, pois, em seu mais breve esboço, estão os enigmas para os quais a psicanálise teria de achar uma solução. Qual foi a origem da súbita mudança no caráter do menino? Qual era o significado da sua fobia e das suas perversidades? Como chegou a uma devoção obsessiva? E como se inter-relacionavam todos esse fenômenos? Lembrarei uma vez mais o fato de que o nosso trabalho terapêutico dizia respeito a uma doença neurótica subseqüente e recente, e só se poderiam esclarecer esses problemas anteriores quando o curso da análise deixasse o presente por algum tempo e nos forçasse a fazer um détour pelo período pré-histórico da infância.

III - A SEDUÇÃO E SUAS CONSEQÜÊNCIAS IMEDIATAS

É fácil compreender que a primeira suspeita recaiu sobre a governanta inglesa, pois a mudança no menino surgiu quando ela lá estava. Duas lembranças encobridoras persistiram, ambas incompreensíveis em si e relacionadas com a governanta. Em certa ocasião em que caminhava adiante das crianças, disse: ‘Olhem o meu rabinho!’ Outra vez, em que haviam saído para dar uma volta de carro, o chapéu dela voou, para grande satisfação das duas crianças. Isso apontou para o complexo de castração e permitiria uma construção segundo a qual uma ameaça proferida por ela contra o menino fora amplamente responsável por originar a sua conduta anormal. Não há qualquer perigo em comunicar construções dessa natureza à pessoa que está sendo analisada; elas não prejudicam a análise, mesmo se são equivocadas; mas ao mesmo tempo, não são colocadas a não ser que haja alguma perspectiva de alcançar uma aproximação da verdade por meio delas. O primeiro efeito dessa suposição foi o aparecimento de alguns sonhos, os quais não foi possível interpretar completamente, mas que pareciam todos concentrar-se ao redor do mesmo material. Pelo que se podia compreender deles, diziam respeito a ações agressivas por parte do menino contra a sua irmã ou contra a governanta, com enérgicas reprovações e castigos por causa dessas ações. Era como se … após o banho dela … ele tivesse tentado … despir a sua irmã … arrancar-lhe as roupas … ou véus - e assim por diante. Mas não foi possível obter um conteúdo firme da interpretação; e de vez que esses sonhos davam a impressão de operar sempre sobre o mesmo material em diferentes formas, a leitura correta dessas reminiscências ostensivas tornou-se segura: só podia ser uma questão de fantasias que o paciente havia elaborado sobre a sua infância numa ou noutra época, provavelmente na puberdade, e que agora vinham outra vez à superfície sobre forma irreconhecível.
A explicação veio de uma só vez, quando o paciente se lembrou, de repente, de que, quando era ainda muito pequeno, a irmã o induzira a práticas sexuais. Primeiro veio a lembrança de que, no banheiro, que as crianças freqüentavam muitas vezes juntas, ela fez a seguinte proposta: ‘Vamos mostrar os nossos traseiros’, e passou das palavras à ação. Subseqüentemente veio à luz a parte mais essencial da sedução, com todos os detalhes de tempo e lugar. Foi na primavera, numa época em que o pai estava fora de casa; as crianças estavam brincando num quarto do andar térreo, enquanto a mãe trabalhava numa sala ao lado. A irmã havia-lhe pegado no pênis e brincava com ele, ao mesmo tempo em que lhe contava histórias incompreensíveis sobre a babá, à guisa de explicação. A babá, dizia ela, costumava fazer o mesmo com toda a espécie de gente - por exemplo, com o jardineiro: ela mantinha-lhe a cabeça em pé e então pegava-lhe nos genitais.
Aí, então, estava a explicação das fantasias cuja existência já havíamos adivinhado. Destinavam-se a apagar a lembrança de um evento que mais tarde pareceu ofensivo à auto-estima masculina do paciente, e atingiram o objetivo colocando uma inversão imaginária e desejável em lugar da verdade histórica. De acordo com essas fantasias, não era ele que havia desempenhado um papel passivo em relação à irmã, mas, pelo contrário, fora agressivo, tentara vê-la despida, fora rejeitado e punido, e iniciara, por essa razão, o comportamento colérico do qual a tradição familiar tanto falava. Era também apropriado incluir a governanta nessa composição imaginativa, já que a principal responsabilidade pelos seus acessos de ira foi a ela atribuída pela mãe e pela avó. Essas fantasias, portanto, correspondiam exatamente às lendas por meio das quais uma nação que se tornou grande e orgulhosa tenta esconder a insignificância e o fracasso dos seus primórdios.
A governanta pode, com efeito, ter sido apenas uma participação muito remota na sedução e em suas conseqüências. As cenas com a irmã tiveram lugar no início do mesmo ano em que, no auge do verão, a inglesa chegou para tomar o lugar dos pais ausentes. A hostilidade do menino para com a governanta veio à tona, entretanto, por outra via. Ao abusar da babá e maldizê-la como bruxa, ela estava seguindo, aos seus olhos, os passos da irmã, que lhe contara primeiro histórias tão monstruosas sobre a babá; e, desse modo, ela deu-lhe oportunidade de expressar abertamente contra ela própria a aversão que, como ouviremos, ele havia desenvolvido contra a irmã, como resultado da sua sedução.
Mas essa sedução pela irmã não foi certamente uma fantasia. Sua credibilidade aumentou com certa informação que jamais foi esquecida e que datava de um período posterior da sua vida, quando já estava crescido. Um primo, que tinha pelo menos dez anos mais do que ele, contou-lhe, numa conversa sobre a irmã, que se lembrava muito bem o quão precoce e sensual a menininha fora: uma vez, quando ela tinha apenas quatro ou cinco anos, sentara-se no colo do primo e abrira-lhe as calças para pegar-lhe no pênis.
Neste ponto eu gostaria de interromper a história da infância do meu paciente e dizer algo sobre essa irmã, sobre o seu crescimento e os fatos posteriores de sua vida, e sobre a influência que tinha sobre ele. Ela era dois anos mais velha e esteve sempre à sua frente em tudo. Quando criança era intratável e comportava-se como um menino, mas depois ingressou numa brilhante fase intelectual e distinguiu-se por suas agudas e realistas faculdades mentais; nos estudos inclinou-se para as ciências naturais, mas produziu também textos criativos tidos em alta conta pelo pai. Era mentalmente muito superior aos seus numerosos admiradores prematuros e costumava fazer piada às suas custas. Pouco depois dos vinte anos, no entanto, começou a ficar deprimida, queixando-se de que não era bonita o bastante, e afastou-se do convívio social. Realizou uma viagem na companhia de uma conhecida, uma senhora mais velha, e, ao regressar, contou uma série de histórias bastante improváveis de como fora maltratada pela companheira, permanecendo, porém, com uma afeição obviamente fixada em sua suposta atormentadora. Pouco depois, ao fazer uma segunda viagem, envenenou-se e morreu bem longe de casa. Seu distúrbio deve provavelmente ser considerado como o início de uma demência precoce. Ela foi uma das provas da hereditariedade visivelmente neuropática na família, mas de forma alguma a única. Um tio, irmão de seu pai, morreu depois de longos anos de vida excêntrica, com indícios que apontavam a presença de uma grave neurose obsessiva; além disso, um bom número de parentes colaterais eram, e são, afligidos por distúrbios nervosos menos sérios.
Independente do problema da sedução, o nosso paciente, quando criança, encontrou na irmã um competidor inconveniente no bom conceito dos pais e sentiu-se bastante oprimido pela sua impiedosa ostentação de superioridade. Mais tarde, invejava especialmente o respeito que o pai demonstrava pela capacidade mental e realizações intelectuais da irmã, ao passo que ele, intelectualmente inibido como estava desde a sua neurose obsessiva, tinha que contentar-se com uma estima em menor grau. A partir dos seus quatorze anos, as relações entre irmão e irmã começaram a melhorar; uma disposição mental semelhante e uma oposição comum aos pais aproximaram-nos tanto, que se tornaram os melhores amigos. Durante a tempestuosa excitação sexual da sua puberdade, ele se arriscou a uma tentativa de aproximação física mais íntima. Ela repudiou-o com tanta decisão quanto sagacidade, e ele se voltou imediatamente para uma camponesinha que servia na casa e tinha o mesmo nome da irmã. Ao fazê-lo, estava dando um passo que teve uma influência determinante na sua escolha de objeto heterossexual, pois todas as garotas pelas quais se apaixonou em seguida - muitas vezes com os mais claros indícios de compulsão - eram também criadas, cuja educação e inteligência estavam necessariamente muito abaixo da sua. Se todos esses objetos de amor eram substitutos para a figura da irmã a quem tinha que renunciar, então não pode ser negado que uma intenção de rebaixar a irmã e de pôr fim à sua superioridade intelectual, que se mostrara para ele tão opressiva, havia obtido o controle decisivo sobre a sua escolha de objeto.
A conduta sexual humana, assim como tudo o mais, foi subordinada por Alfred Adler a forças de motivo dessa natureza, que se originam da vontade de poder, do instinto auto-afirmativo do indivíduo. Sem negar a importância desses motivos de poder e prerrogativa, jamais me convenci de que desempenham o papel dominante e exclusivo que lhes foi atribuído. Se eu não tivesse seguido a análise do meu paciente até o fim, teria sido obrigado, por conta da minha observação desse caso, a corrigir a minha opinião preconcebida numa direção favorável a Adler . A conclusão da análise trouxe inesperadamente novo material que, pelo contrário, demonstrou que esses motivos de poder (nesse caso, a intenção de rebaixar) haviam determinado a escolha de objeto apenas no sentido de servir como uma causa contribuinte e como uma racionalização, ao passo que a verdadeira determinação subjacente possibilitou-me manter as minhas antigas convicções.
Quando chegou a notícia da morte da irmã, conforme relatou o paciente, ele mal sentiu qualquer sinal de dor. Teve que se esforçar para mostrar sinais de tristeza, e pôde rejubilar-se um tanto friamente por haver-se tornado então o único herdeiro da propriedade. Quando isso ocorreu, já sofria há vários anos da sua doença mais recente. Mas devo confessar que esse dado da informação introduziu, durante algum tempo, alguma incerteza ao meu diagnóstico do caso. Presumir-se-ia, sem dúvida, que a sua dor quanto à perda do mais amado membro da sua família encontraria uma inibição em sua expressão, como resultado da operação contínua do seu ciúme em relação a ela, somada à presença do seu amor incestuoso, que então se tornara inconsciente. Eu não podia, contudo, compreender que não tivesse havido algum substituto para as manifestações de pesar que faltaram. O que foi, afinal, encontrado numa outra expressão de sentimento que permanecera inexplicável para o paciente. Alguns meses após a morte da irmã, ele próprio fez uma viagem às imediações do lugar em que ela havia morrido. Ali procurou o túmulo de um grande poeta, que na época era o seu ideal, e derramou lágrimas amargas sobre a sua tumba. Essa reação pareceu estranha a si mesmo, pois sabia que mais de duas gerações se haviam passado desde a morte do poeta que admirava. Só entendeu quando se lembrou que o pai tinha o hábito de comparar os trabalhos da irmã morta com os do grande poeta. Deu-me outra indicação da forma correta de interpretar a homenagem que prestara ostensivamente ao poeta, por um erro na sua história, que consegui detectar nesse ponto. Antes, ele especificara repetidamente que a irmã havia-se matado com um tiro; mas foi então obrigado a fazer uma correção e dizer que ela tomara veneno. O poeta, no entanto, fora morto a tiros num duelo.
Volto agora à história do irmão, mas deste ponto em diante devo prosseguir um pouco sobre as linhas temáticas. A idade do menino na época em que a sua irmã iniciou a sedução era de três anos e três meses. Aconteceu, como já foi mencionado, na primavera do mesmo ano em cujo verão chegou a governanta inglesa, e em cujo outono os pais, ao regressarem, encontraram-no tão fundamentalmente alterado. É muito natural, então, relacionar essa transformação com o despertar da sua atividade sexual que havia entrementes ocorrido.
Como reagiu o menino às tentações de sua irmã mais velha? Por uma recusa, é a resposta, mas por uma recusa que se aplicava à pessoa, e não à coisa em si. A irmã não lhe agradava como objeto sexual, provavelmente porque seu relacionamento com ela já fora determinado numa direção hostil, devido à rivalidade no amor dos pais. Ele manteve-se distante da irmã e, além disso, as solicitações desta logo cessaram. Contudo, ele tentou ganhar, em vez dela, outra pessoa de quem gostava; e a informação que sua própria irmã lhe dera, na qual proclamara a sua Nanya como modelo, dirigiu sua escolha nessa direção. Começou, portanto, a brincar com o pênis na presença da babá, e isso, como muitos outros exemplos nos quais as crianças não escondem a sua masturbação, deve ser considerado como uma tentativa de sedução. A babá desiludiu-o; fez uma cara séria e explicou que aquilo não era bom; as crianças que o faziam, acrescentou, ficavam com uma ‘ferida’ no lugar.
O efeito dessa informação, que equivalia a uma ameaça, pode ser reconhecido em várias direções. Em conseqüência dela, diminuiu a sua dependência da babá. Pode muito bem ter-se zangado com ela; e mais tarde, quando se manifestaram os seus acessos de ira, tornou-se claro que realmente estava amargurado com ela. Mas era característico dele que cada posição da libido, que era obrigado a abandonar, era, a princípio, obstinadamente defendida por ele contra o novo desenvolvimento. Quando a governanta entrou em cena e abusou da sua Nanya, expulsando-a da sala e tentando destruir uma autoridade, ele, pelo contrário, exagerou o seu amor pela vítima desses ataques e assumiu uma atitude brusca e desafiadora em relação à agressiva governanta. Não obstante, começou em segredo a procurar outro objeto sexual. Sua sedução dera-lhe o desígnio sexual passivo de ser tocado nos genitais; saberemos agora em relação a quem foi que ele tentou satisfazer esse desígnio e que caminhos o levaram a essa escolha.
Concorda inteiramente com as nossas previsões o fato de sabermos que, após as suas primeiras excitações genitais, iniciou-se a sua busca sexual, e que logo chegou ao problema da castração. Nessa época conseguiu observar duas meninas - a irmã e uma amiga dela - enquanto urinavam. Sua sagacidade pode muito bem ter-lhe permitido deduzir os verdadeiros fatos desse espetáculo, mas comportou-se como sabemos que se comportam outras crianças do sexo masculino nessas circunstâncias. Rejeitou a idéia de que via diante dele uma confirmação da ferida com a qual a babá o ameaçara e explicou a si mesmo que aquilo era o ‘traseiro frontal’ das meninas. O tema da castração não se estabeleceu por essa decisão; encontrou novas alusões a ele em tudo o que ouvia. Certa vez em que as crianças ganharam uns confeitos coloridos em forma de bastão, a governanta, que era propensa a fantasias desordenadas, disse que eram pedaços de cobra cortada. Ele lembrou-se, depois, de que o pai encontrara uma vez uma cobra, ao caminhar por uma picada, e a fizera em pedaços com uma vara. Ouviu a história (tirada de Reynard the Fox), lida em voz alta, de como o lobo queria pescar no inverno e usou a cauda como isca, e como, dessa maneira, o rabo do lobo se congelou e partiu. Aprendeu os diferentes nomes pelos quais se distinguem os cavalos, conforme estejam ou não intactos os seus órgãos sexuais. Assim, ocupava-se com pensamentos sobre a castração, mas ainda não acreditava nela, nem a temia. Outros problemas sexuais surgiram para ele nos contos de fadas com que se havia familiarizado nessa época. No ‘Chapeuzinho Vermelho’ e em ‘Os Sete Cabritinhos’, as crianças eram tiradas do corpo do lobo. Seria o lobo uma criatura feminina, então, ou poderiam os homens ter também crianças dentro do corpo? Nessa época, a questão não se colocara ainda. Mais que isso, na época dessas perguntas ele não tinha ainda medo de lobos.
Uma das informações do paciente tornará mais fácil para nós compreender a alteração do seu caráter, a qual apareceu durante a ausência dos pais como uma conseqüência um tanto indireta da sua sedução. Ele disse que abandonou a masturbação pouco depois da recusa e ameaça da sua Nanya. Sua vida sexual, portanto, que estava começando a surgir sob a influência da zona genital, cedeu ante um obstáculo externo e foi, por influência deste, lançada de volta a uma fase anterior de organização pré-genital. Como resultado da supressão da masturbação, a vida sexual do menino assumiu um caráter anal-sádico. Tornou-se um menino irritável, um atormentador, e gratificava-se dessa forma às custas de animais e seres humanos. O principal objeto era a sua amada Nanya, e ele sabia como atormentá-la até que ela rompesse em lágrimas. Desse modo vingava-se nela pela recusa que encontrara e, ao mesmo tempo, gratificava a sua lascívia sexual na forma que correspondia à sua presente fase regressiva. Começou a mostrar-se cruel com os pequenos animais, apanhando moscas e arrancando-lhes as asas, esmagando besouros com os pés; em sua imaginação, gostava também de bater em animais maiores (cavalos). Todos esses, então, eram procedimentos ativos e sádicos; discutiremos os seus impulsos anais desse período numa ligação posterior.
É fato da maior importância que algumas fantasias contemporâneas de natureza bem diferente tenham brotado também da memória do paciente. O conteúdo dessas fantasias era o de meninos sendo castigados e surrados e, especialmente, levando pancadas no pênis. E, de outras fantasias, que representavam o herdeiro do trono sendo encerrado num quarto estreito e surrado, era fácil adivinhar para quem era que as figuras anônimas serviam de bode expiatório. O herdeiro do trono era evidentemente ele próprio; seu sadismo havia-se convertido, portanto, em fantasia contra si mesmo e transformara-se em masoquismo. O detalhe do próprio órgão sexual recebendo as pancadas justificava a conclusão de que um sentimento de culpa, que se relacionava com a sua masturbação, estava já envolvido nessa transformação.
A análise não deixou dúvidas de que essas tendências passivas haviam aparecido ao mesmo tempo em que surgiam as sádico-ativas, ou muito pouco tempo após estas. Isso estava de acordo com a extremamente clara, intensa e constante ambivalência do paciente, que era mostrada aqui, pela primeira vez, no desenvolvimento uniforme de ambos os membros dos pares de instintos componentes contrários. Tal comportamento era também característico da sua vida posterior, como também o era este outro traço: nenhuma posição da libido que fora antes estabelecida, era, jamais, completamente substituída por uma posterior. Era antes deixada em coexistência com todas as outras e isso permitia-lhe manter uma vacilação incessante, que se mostrou incompatível com a aquisição de um caráter estável.
As tendências masoquistas do menino conduzem a outro problema, que até agora evitei mencionar, porque só pode ser confirmado mediante a análise da fase subseqüente do seu desenvolvimento. Já mencionei que, após haver sido rejeitado pela babá, a sua expectativa libidinal afastou-se dela e começou a contemplar outra pessoa como objeto sexual. Essa pessoa era o pai, nessa época longe de casa. Foi sem dúvida levado a essa escolha por uma série de fatores convergentes, inclusive alguns tão fortuitos como a recordação da cobra sendo cortada em pedaços; ademais de tudo, porém, permitia-se, desse modo, renovar a sua primeira e mais primitiva escolha objetal, que, em conformidade com o narcisismo de uma criança, havia ocorrido ao longo do caminho da identificação. Já sabemos que o pai fora o seu modelo admirado, e que, quando lhe perguntavam o que queria ser, costumava responder: um cavalheiro como o papai. Esse objeto de identificação da sua corrente ativa tornou-se o objeto sexual de uma corrente passiva na sua fase sádico-anal. Era como se a sua sedução pela irmã o houvesse forçado a um papel passivo, dando-lhe um objetivo sexual passivo. Sob a persistente influência dessa experiência, seguiu um caminho da irmã, via babá, para o pai - de uma atitude passiva em relação às mulheres para a mesma atitude em relação aos homens -, e encontrou, todavia, por esse meio, uma ligação com uma fase mais prematura e espontânea do seu desenvolvimento. O pai era agora uma vez mais o seu objeto; em conformidade com o seu estádio mais alto de desenvolvimento, a identificação foi substituída pela escolha objetal; ao passo que a transformação da atitude ativa em passiva era a conseqüência e o registro da sedução que entretanto ocorrera. Naturalmente não teria sido tão fácil alcançar, na fase sádica, uma atitude ativa em relação ao seu todo-poderoso pai. Quando este voltou para casa no fim do verão ou no outono, os acessos de raiva e as cenas de fúria do paciente encontraram um novo uso. Haviam servido para fins sádico-ativos em relação à babá; em relação ao pai, o propósito era masoquista. Levando avante a sua rebeldia, estava tentando forçar castigos e espancamentos por parte do pai, e dessa forma obter dele a satisfação sexual masoquista que desejava. Os seus ataques e gritos eram, portanto, simples tentativas de sedução. Ademais, de acordo com os motivos subjacentes ao masoquismo, esse espancamento satisfaria também o seu sentimento de culpa. Havia preservado a lembrança de como, durante uma dessas cenas de raiva, redobrara os gritos no momento em que o pai foi em sua direção. O pai não lhe bateu, no entanto, mas tentou pacificá-lo brincando na frente dele com os travesseiros da sua cama.
Não sei com que freqüência os pais e educadores, defrontando-se com mau comportamento inexplicável por parte de uma criança, possam não ter ocasião de conservar na lembrança esse típico estado de coisas. Uma criança que se comporta de forma indócil está fazendo uma confissão e tentando provocar um castigo. Espera por uma surra como um meio de simultaneamente pacificar seu sentimento de culpa e de satisfazer sua tendência sexual masoquista.
Devemos a explicação adicional do caso a uma recordação que emergiu distintamente. Os sinais de uma alteração no caráter do paciente não foram acompanhados por quaisquer sintomas de ansiedade até depois da ocorrência de um determinado evento. Anteriormente, parece, não havia ansiedade, ao passo que, imediatamente após o evento, a ansiedade expressou-se da forma mais atormentadora. A data dessa transformação pode ser fixada com precisão; foi imediatamente antes do seu quarto aniversário. Tomando o fato como um ponto fixo, podemos dividir o período da sua infância, com o qual estamos lidando, em duas fases: uma primeira fase de mau comportamento e perversidade, desde a sua sedução, aos três anos e três meses, até o seu quarto aniversário; e uma fase subseqüente, mais longa, na qual predominaram os sinais de neurose. O evento que torna possível essa divisão não foi, contudo, um trauma externo, e sim um sonho, do qual acordou em estado de ansiedade.

IV - O SONHO E A CENA PRIMÁRIA

Já publiquei alhures este sonho, por causa da quantidade de material que nele ocorre derivado de contos de fadas; e começarei repetindo o que escrevi naquela ocasião:
‘“Sonhei que era noite e que eu estava deitado na cama. (Meu leito tem o pé da cama voltado para a janela: em frente da janela havia uma fileira de velhas nogueiras. Sei que era inverno quando tive o sonho, e de noite.) De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da janela. Havia seis ou sete deles. Os lobos eram muito brancos e pareciam-se mais com raposas ou cães pastores, pois tinham caudas grandes, como as raposas, e orelhas empinadas, como cães quando prestam atenção a algo. Com grande terror, evidentemente de ser comido pelos lobos, gritei e acordei. Minha babá correu até minha cama, para ver o que me havia acontecido. Levou muito tempo até que me convencesse de que fora apenas um sonho; tivera uma imagem tão clara e vívida da janela a abrir-se e dos lobos sentados na árvore. Por fim acalmei-me, senti-me como se houvesse escapado de algum perigo e voltei a dormir.
‘“A única ação no sonho foi a abertura da janela, pois os lobos estavam sentados muito quietos e sem fazer nenhum movimento sobre os ramos da árvore, à direta e à esquerda do tronco, e olhavam para mim. Era como se tivessem fixado toda a atenção sobre mim. - Acho que foi meu primeiro sonho de ansiedade. Tinha três, quatro, ou, no máximo, cinco anos de idade na ocasião. Desde então, até contar onze ou doze anos, sempre tive medo de ver algo terrível em meus sonhos.”’
‘Ele acrescentou um desenho da árvore com os lobos, que confirmava sua descrição (Fig. 1). A análise do sonho trouxe à luz o seguinte material.
‘Sempre vinculara este sonho à recordação de que, durante esses anos de infância, tinha um medo tremendo da figura de um lobo num livro de contos de fadas. Sua irmã mais velha, que lhe era superior, costumava apoquentá-lo segurando esta figura específica na sua frente, sob qualquer pretexto, para que ele ficasse aterrorizado e começasse a gritar. Na figura, o
lobo achava-se ereto, dando um passo com uma das patas, com as garras estendidas e as orelhas empinadas. Achava que a figura deveria ter sido uma ilustração da história do “Chapeuzinho Vermelho”.
‘Por que os lobos eram brancos? Isto fê-lo pensar nas ovelhas, grandes rebanhos das quais eram mantidos nas vizinhanças da propriedade. O pai ocasionalmente o levava a visitar esses rebanhos e, todas as vezes que isso acontecia, ele se sentia muito orgulhoso e feliz. Posteriormente - segundo indagações feitas, pode facilmente ter sido pouco antes da época do sonho - irrompeu uma epidemia entre as ovelhas. O pai mandou buscar um seguidor de Pasteur, que vacinou os animais, mas após a inoculação morreram ainda mais delas que antes.
‘Como os lobos apareceram na árvore? Isto fê-lo lembrar-se de uma história que ouvira o avô contar. Não podia recordar-se se fora antes ou depois do sonho, mas seu assunto constitui argumento decisivo em favor da primeira opinião. A história dizia assim: um alfaiate estava sentado trabalhando em seu quarto, quando a janela se abriu e um lobo pulou para dentro. O alfaiate perseguiu-o com seu bastão - não (corrigiu-se), apanhou-o pela cauda e arrancou-a fora, de modo que o lobo fugiu correndo, aterrorizado. Algum tempo mais tarde, o alfaiate foi até a floresta e subitamente viu uma alcatéia de lobos vindo em sua direção; então trepou numa árvore para fugir-lhes. A princípio, os lobos ficaram perplexos; mas o aleijado, que se achava entre eles e queria vingar-se do alfaiate, propôs que trepassem uns sobre os outros, até que o último pudesse apanhá-lo. Ele próprio - tratava-se de um animal velho e vigoroso - ficaria na base da pirâmide. Os lobos fizeram como ele sugerira, mas o alfaiate reconhecera o visitante a que havia castigado e de repente gritou, como fizera antes: “Apanhem o cinzento pela cauda!” O lobo sem rabo, aterrorizado pela recordação, correu, e todos os outros desmoronaram.
‘Nesta história aparece a árvore sobre a qual os lobos se achavam sentados no sonho; mas ela contém também uma alusão inequívoca ao complexo de castração. O lobo velho tivera a cauda arrancada pelo alfaiate. As caudas de raposa dos lobos do sonho eram provavelmente compensações por esta falta de cauda.
‘Por que havia seis ou sete lobos? Não parecia haver resposta para esta pergunta, até eu levantar uma dúvida sobre saber se a figura que o assustava estava vinculada à história de “Chapeuzinho Vermelho”. Este conto de fadas só oferece oportunidade para duas ilustrações - Chapeuzinho Vermelho encontrando-se com o lobo na floresta e a cena em que o lobo se deita na cama, com o barrete de dormir da avó. Teria de haver, portanto, algum outro conto de fadas por trás de sua recordação da figura. Ele logo descobriu que só podia ser a história de “O Lobo e os Sete Cabritinhos”. Nesta, ocorre o número sete, e também o número seis, pois o lobo só comeu seis dos cabritinhos, enquanto que o sétimo se escondeu na caixa do relógio. O branco também nela aparece, pois o lobo fizera branquear sua pata no padeiro, após os cabritinhos haverem-no reconhecido, em sua primeira visita, pela pata cinzenta. Além disso, os dois contos de fadas possuem muito em comum. Em ambos existe o comer, a abertura da barriga, a retirada das pessoas que haviam sido comidas e sua substituição por pesadas pedras, e, finalmente, em ambas o lobo mau perece. Além disso tudo, na história dos cabritinhos aparece a árvore. O lobo deitou-se sob uma árvore, após a refeição, e roncou.
‘Por uma razão especial, terei de tratar deste sonho novamente alhures, interpretá-lo e julgar sua significação com maiores pormenores; pois ele é o mais antigo sonho de ansiedade que o jovem que sonhou recordou de sua infância, e seu conteúdo, tomado juntamente com outros sonhos que o seguiram pouco após e com certos acontecimentos de seus primeiros anos de vida, é de interesse muito especial. Temos de limitar-nos aqui à relação do sonho com os dois contos de fadas que têm tanto em comum um com o outro. “Chapeuzinho Vermelho” e “O Lobo e os Sete Cabritinhos”. O efeito produzido por estas histórias foi demonstrado no pequeno que as sonhou mediante uma fobia animal comum. Esta fobia só se distinguia de outros casos semelhantes pelo fato de o animal causador da ansiedade não ser um objeto facilmente acessível à observação (tal como um cavalo ou um cão), mas conhecido dele somente de histórias e livros de figuras.
‘Examinarei em outra ocasião a explicação destas fobias animais e a significação que se lhes atribui. Observarei apenas, por antecipação, que essa explicação acha-se em completa harmonia com a característica principal apresentada pela neurose de que o atual sonhador padeceu mais tarde na vida. Seu medo do pai era o motivo mais forte para ele cair doente e sua atitude ambivalente em relação a todo representante paterno foi o aspecto dominante de sua vida, assim como de seu comportamento durante o tratamento.
‘Se, no caso de meu paciente, o lobo foi simplesmente um primeiro representante paterno, surge a questão de saber se o conteúdo oculto nos contos de fadas do lobo que comeu os cabritinhos e de “Chapeuzinho Vermelho” não pode ser simplesmente um medo infantil do pai. Além disso, o pai de meu paciente tinha a característica, apresentada por tantas pessoas em relação aos filhos, de permitir-se “ameaças afetuosas”; e é possível que, durante os primeiros anos do paciente, o pai (embora se tornasse severo mais tarde) pudesse, mais de uma vez enquanto acariciava o menininho ou com ele brincava, tê-lo ameaçando por brincadeira “de engoli-lo”. Uma de minhas pacientes contou-me que seus dois filhos nunca puderam chegar a gostar do avô, porque, no decurso de seus ruidosos e afetuosos brinquedos, com eles, costumava assustá-los dizendo que lhes cortaria as barrigas.’
Deixando de lado, nessa citação, tudo o que antecipa as implicações mais remotas do sonho, voltemos à sua interpretação imediata. Poderia dizer que essa interpretação foi uma tarefa que se arrastou por vários anos. O paciente relatou o sonho numa etapa muito prematura da análise e em breve compartilhava a minha convicção de que as causas da sua neurose infantil ocultavam-se por trás dele. No decorrer do tratamento voltamos com freqüência ao sonho, mas foi somente durante os últimos meses da análise que se tornou possível compreendê-lo completamente, e mesmo assim graças a um trabalho espontâneo por parte do paciente. Ele enfatizara sempre o fato de que dois fatores no sonho haviam-lhe causado a maior impressão: primeiro, a perfeita quietude e imobilidade dos lobos e, segundo, a atenção com que todos olhavam para ele. A sensação duradoura de realidade que o sonho deixou após o despertar, parecia-lhe também um fator digno de nota.
Tomemos essa última observação como ponto de partida. Sabemos por nossa experiência na interpretação de sonhos que essa sensação de realidade traz consigo um significado particular. Isso certifica-nos que determinada parte do material latente do sonho reivindica, na memória do sonhador, possuir a qualidade de realidade, isto é, que o sonho relaciona-se com uma ocorrência que realmente teve lugar e não foi simplesmente imaginada. Pode naturalmente ser apenas uma questão da realidade de algo desconhecido; por exemplo, a convicção de que o avô realmente lhe contou a história do alfaiate e do lobo, ou de que as histórias do ‘Chapeuzinho Vermelho’ e dos ‘Sete Cabritinhos’ foram realmente lidas em voz alta para ele, não seria de uma natureza a ser substituída por essa sensação de realidade que sobreviveu ao sonho. O sonho parece apontar para uma ocorrência cuja realidade foi intensamente enfatizada como estando em marcado contraste com a irrealidade dos contos de fadas.
Se se devia presumir que por trás do conteúdo do sonho havia alguma cena desconhecida - ou seja, uma cena que já fora esquecida na época do sonho -, esta então deveria ter ocorrido muito prematuramente. Lembremo-nos de que o paciente disse: ‘Tinha três, quatro, ou, no máximo, cinco anos de idade na ocasião em que tive o sonho.’ E podemos acrescentar: ‘E o sonho fez-me lembrar de algo que deve ter pertencido a um período ainda mais remoto.’
As partes do conteúdo manifesto do sonho que foram destacadas pelo paciente, os fatores do olhar atento dos lobos e da sua imobilidade, devem conduzir ao conteúdo dessa cena. Devemos naturalmente esperar descobrir que esse material reproduz o material desconhecido da cena de algum modo deformado, talvez mesmo deformado para o seu oposto.
Havia também diversas conclusões a serem extraídas da matéria-prima que fora produzida pela primeira análise do sonho, feita pelo paciente, e estas teriam que se ajustar à colocação que estávamos buscando. Por trás da menção à criação de ovelhas, seria de esperar uma evidência da sua busca sexual, o interesse que ele estava apto a gratificar durante as visitas ao rebanho com o pai; mas deve ter havido também alusões a um medo da morte, de vez que a maioria das ovelhas morrera da epidemia. O fator mais importuno no sonho, os lobos em cima da árvore, levou diretamente à história do avô; e o que era mais fascinante nessa história e capaz de provocar o sonho não podia ter sido outra coisa senão sua relação com o tema da castração.
Concluímos também, da primeira análise incompleta do sonho, que o lobo pode ter sido um substituto do pai; de tal modo que, nesse caso, esse primeiro sonho de ansiedade teria trazido à tona o temor ao pai, que a partir dessa época iria dominar a sua vida. Essa conclusão, na verdade, não era, em si, ainda consistente. Mas se lhe juntamos, como resultado da análise provisória, o que pode ser deduzido do material produzido pelo sonhador, encontramos então diante de nós, para reconstrução, fragmentos como estes:
Uma ocorrência real - datando de um período muito prematuro - olhar - imobilidade - problemas sexuais - castração - o pai - algo terrível.
Certo dia o paciente prosseguiu na interpretação do sonho. Achava que a parte do sonho onde ‘de repente, a janela abriu-se sozinha’ não estava completamente explicada pela sua relação com a janela em frente à qual o alfaiate estava sentado e através da qual o lobo penetrou na sala. ‘Deve significar: “Meus olhos abriram-se de repente.” Eu estava dormindo, portanto, e subitamente acordei, e no momento em que o fiz, vi algo: a árvore com os lobos.’ Nenhuma objeção poderia ser feita a isso; mas o problema poderia ser ainda mais desenvolvido. Ele acordara e vira alguma coisa. O olhar atento, que no sonho fora atribuído aos lobos, deveria, antes, ser atribuído a ele. Num ponto decisivo, portanto, havia ocorrido uma transposição; e, ademais, isso é indicado por uma outra transposição no conteúdo manifesto do sonho. Pois o fato de que os lobos estavam sentados na árvore era também uma transposição, por quanto na história contada pelo avô eles estavam embaixo e não conseguiram subir na árvore.
O que seria, então, se o outro fator enfatizado pelo paciente era também distorcido por meio de uma transposição ou inversão? Nesse caso, em vez de imobilidade (os lobos não tinham movimento; olhavam para ele, mas não se mexiam) o significado teria de ser: o mais violento movimento. Ou seja, ele acordou de repente e viu à sua frente uma cena de movimento violento, para a qual olhou tensa e atentamente. No primeiro caso a distorção consistiria num intercâmbio de sujeito e objeto, de atividade e passividade: ser olhado em vez de olhar. No outro caso consistiria em transformação no oposto; imobilidade em lugar de movimento.
Numa outra ocasião, uma associação que lhe ocorreu subitamente levou-nos um passo adiante em nossa compreensão do sonho: ‘A árvore era uma árvore de Natal.’ Sabia agora que tivera o sonho pouco antes do Natal e na expectativa desse acontecimento. Uma vez que o dia de Natal era também o do seu aniversário, tornou-se então possível estabelecer com certeza a data do sonho e da mudança nele, que procedia do sonho. Foi imediatamente antes do seu quarto aniversário. Fora para a cama, então, numa expectativa tensa do dia que lhe deveria trazer uma dupla quantidade de presentes. Sabemos que, em tais circunstâncias, uma criança pode facilmente antecipar a realização dos seus desejos. Assim, já era Natal em seu sonho; o conteúdo do sonho mostrava-lhe o seu presente de Natal, os presentes que seriam seus pendurados na árvore. Mas em vez de presentes, estes haviam-se transformado em lobos, e o sonho finalizava com ele sendo dominado pelo medo de ser comido pelo lobo (provavelmente seu pai) e fugindo para refugiar-se nos braços da babá. O que sabemos do seu desenvolvimento sexual antes do sonho torna possível preencher as lacunas no mesmo e explicar a transformação da sua satisfação em ansiedade. Dos desejos envolvidos na formação do sonho, o mais poderoso deve ter sido o desejo de satisfação sexual, que ele, naquela época, aspirava obter do pai. A força desse desejo tornou possível reviver um vestígio, há muito esquecido na sua memória, de uma cena capaz de mostrar-lhe como era a satisfação sexual obtida do pai; e o resultado foi o terror, o horror da realização do desejo, a repressão do impulso que se havia manifestado mediante o desejo e, conseqüentemente, uma fuga do pai para a babá, menos perigosa.
A importância dessa data, do dia do Natal, havia sido preservada em sua suposta recordação de haver tido seu primeiro acesso de raiva por estar descontente com os presentes de Natal [ver em [1]]. A lembrança combinava elementos de verdade e de falsidade. Não podia ser inteiramente correta, já que, de acordo com repetidas declarações dos seus pais, o mau comportamento do menino havia começado quando eles voltaram, no outono, e não era verdade que só tivessem chegado no Natal. Ele, no entanto, preservara a ligação essencial entre o seu amor insatisfeito, a sua raiva e o Natal.
Mas, que quadro as ações noturnas do seu desejo sexual podem ter conjurado para amedrontá-lo tão violentamente quanto à realização a que aspirava? O material da análise mostra haver uma condição que esse quadro deve satisfazer. Deve ter sido calculado para criar uma convicção da realidade da existência da castração. O medo da castração podia então tornar-se a força motivadora para a transformação do afeto.
Atingi agora o ponto em que devo abandonar o apoio que tive até aqui a partir do curso da análise. Receio que seja também o ponto no qual a credulidade do leitor irá me abandonar.
O que entrou em atividade naquela noite, vindo do caos dos traços de memória inconscientes do sonhador, foi o quadro de uma cópula entre os pais, cópula em circunstâncias que não eram inteiramente habituais e que favoreciam particularmente a observação. Aos poucos, tornou-se possível encontrar respostas satisfatórias para todas as questões levantadas em relação a essa cena; pois no decorrer do tratamento o primeiro sonho retornou em inúmeras variações e novas edições, em relação com as quais a análise produziu a informação que era exigida. Assim, em primeiro lugar, a idade da criança à data da observação foi estabelecida aproximadamente em um ano e meio. Na época estava sofrendo de malária e tinha um ataque todos os dias a uma determinada hora. A partir dos dez anos de idade esteve sujeito, de vez em quando, a crises de depressão, que costumavam sobrevir à tarde e atingiram o seu ponto culminante por volta das cinco horas. Esse sintoma ainda existia na época do tratamento psicanalítico. As freqüentes crises de depressão tomaram o lugar dos anteriores ataques de febre ou abatimento; cinco horas ou era a hora da febre mais alta, ou da observação do coito, a não ser que as duas horas tivessem coincidido. É provável que justamente por causa dessa doença ele estivesse no quarto dos pais. A doença, cuja ocorrência é também corroborada pela tradição direta, torna razoável referir o evento ao verão e, de vez que o menino nascera no dia de Natal, presumir que sua idade fosse n + 1 ½ anos. Ele estava então dormindo no seu berço, no quarto dos pais, e acordou, talvez por causa da febre que subia, à tarde, possivelmente às cinco horas, a hora que depois seria marcada pela depressão. Isso está de acordo com nossa suposição de que era um dia quente de verão, se presumimos que os pais se haviam recolhido, meio despidos, para uma sesta. Quando o menino acordou, presenciou um coito a tergo [por trás], repetido três vezes, podia ver os genitais da mãe, bem como o órgão do pai; e compreendeu o processo, assim como o seu significado. Por fim interrompeu a relação sexual dos pais de uma maneira que será exposta adiante [ver em [1]].
No fundo, não há nada extraordinário, nada que dê a impressão de ser o produto de uma imaginação extravagante, no fato de um jovem casal, casado há poucos anos, terminar uma sesta de uma tarde quente de verão com uma cena de amor, sem considerar a presença do filhinho de um ano e meio, dormindo no seu berço. Pelo contrário, acho que tal fato seria uma coisa inteiramente comum e banal; e mesmo a posição na qual deduzimos que o coito ocorreu, em nada altera este julgamento - particularmente porque não há evidência de que a relação tenha sido efetuada por trás todas as vezes. Uma única vez seria suficiente para dar ao espectador oportunidade para fazer observações que teriam sido difíceis ou impossíveis por meio de qualquer outra atitude dos parceiros. Portanto, o conteúdo da cena não pode ser, por si, um argumento contra a sua credibilidade. As dúvidas quanto à sua probabilidade poderão girar em torno de três pontos: se uma criança na tenra idade de um ano e meio poderia estar numa posição de absorver a percepção de um processo tão complicado e preservá-la tão acuradamente em seu inconsciente; em segundo lugar, se é possível, aos quatro anos de idade, que uma revisão transferida das impressões assim recebidas penetre no entendimento; e, finalmente, se qualquer procedimento poderia trazer para a consciência, coerente e convincentemente, os detalhes de uma cena dessa natureza, experimentada e compreendida em tais circunstâncias.
Examinarei, depois, cuidadosamente, essas e outras dúvidas; mas posso assegurar ao leitor que, criticamente, não estou menos inclinado do que ele no sentido de aceitar essa observação do menino, e pedirei apenas ao leitor que, junto comigo, adote uma convicção provisória da realidade da cena. Procederemos, em primeiro lugar, a um estudo das relações entre essa ‘cena primária’ e o sonho do paciente, seus sintomas e a história da sua vida; e investigaremos separadamente os efeitos que se seguiram, do conteúdo essencial da cena e de uma das suas impressões visuais.
Por estas últimas quero dizer as posturas que ele viu os pais adotarem - o homem ereto e a mulher curvada, como um animal. Já sabemos que durante seu período de ansiedade, a irmã costumava aterrorizá-lo com uma figura de um livro de contos infantis, na qual o lobo era mostrado em posição vertical, com os pés em posição de movimento, as garras a descoberto e as orelhas em pé. Durante o tratamento, ele se dedicou com perseverança incansável à tarefa de vasculhar os sebos até encontrar o livro ilustrado da sua infância, reconhecendo o seu mau espírito numa ilustração da história de ‘O Lobo e os Sete Cabritinhos’. Achou que a postura do lobo nessa gravura poderia ter-lhe recordado a do pai durante a cena primária. Em todo caso, a ilustração tornou-se o ponto de partida para manifestações posteriores da ansiedade. Certa vez, quando tinha sete ou oito anos, foi informado de que no dia seguinte chegaria um novo tutor para ele. Nessa noite, sonhou com o tutor na forma de um leão que vinha em direção à sua cama, rugindo ruidosamente e com a postura do lobo na gravura; e o outra vez acordou em estado de ansiedade. A fobia ao lobo fora superada nessa época, de modo que estava livre para escolher um novo animal que causasse ansiedade e, nesse último sonho, estava reconhecendo o tutor como um substituto do pai. Nos últimos anos de sua infância, todos os seus tutores e mestres desempenharam o papel do pai, dotados com a influência do pai tanto para o bem como para o mal.
Quando estava na escola secundária, o destino proporcionou-lhe uma oportunidade notável de reviver a sua fobia ao lobo e de usar a relação que estava por trás dessa fobia como ocasião para graves inibições. O professor que ensinava latim chama-se Wolf. Desde o começo sentiu-se intimidado pelo professor, e este certa vez repreendeu-o severamente por haver cometido um erro estúpido num texto traduzido do latim. A partir de então não conseguiu livrar-se de um medo paralisante em relação a esse professor, o que em breve se estendeu a outros mestres. Contudo, a asneira que fez na tradução era também significativa. Tinha que traduzir o vocábulo latino ‘filius‘ e fê-lo com a palavra ‘fils‘, em vez de usar o termo correspondente na sua própria língua. O lobo, na verdade, ainda era seu pai.
O primeiro ‘sintoma transitório’ que o paciente produziu durante o tratamento retornou uma vez mais à fobia ao lobo e ao conto de fadas dos ‘Sete Cabritinhos’. Na sala em que as primeiras sessões foram realizadas havia um grande relógio de pé, defronte ao paciente, que ficava no sofá sem voltar o rosto para mim. Impressionava-me o fato de que, de vez em quando, ele se virava na minha direção, olhava-me de uma maneira bastante amistosa, como que para me aplacar, e então afastava de mim o olhar e fixava-o no relógio. Na ocasião eu achava que, dessa forma, ele procurava mostrar-me que estava ansioso pelo fim da sessão. Muito tempo depois o paciente recordou-me essa cena de espetáculo mudo e deu-me uma explicação a respeito dela. Lembrava-se de que o mais novo dos sete cabritinhos escondeu-se na caixa do relógio de parede, enquanto os seis irmãos eram comidos pelo lobo. Assim, o que ele queria dizer era: ‘Seja bom para mim! Devo ficar com medo do senhor? O senhor vai devorar-me? Terei que me esconder do senhor na caixa do relógio, como o cabritinho mais novo?’
O lobo do qual tinha medo era, sem dúvida, seu pai; mas o medo do lobo era condicionado pelo fato de a criatura estar numa posição ereta. Sua lembrança afirmou da forma mais definitiva que não fora aterrorizado por figuras de lobos caminhando sobre as quatro patas ou, como na história do ‘Chapeuzinho Vermelho’, deitados na cama. A postura que, de acordo com a nossa construção da cena primária, ele vira a mulher assumir, era de não menos significação; embora, nesse caso, o significado estivesse limitado à esfera sexual. o fenômeno mais espantoso da sua vida erótica após a maturidade era a sua tendência a ataques compulsivos de paixão física, que surgiam e de novo desapareciam, na mais desconcertante sucessão. Esses ataques liberavam nele uma tremenda energia, mesmo nas vezes em que se encontrava por outros modos inibido, estando muito além do seu controle. Devo, por um motivo particularmente importante, protelar uma consideração mais completa desse amor compulsivo [ver em [1] e segs.]; posso, contudo, mencionar, agora, que esse amor era sujeito a uma condição definida, que se ocultava do seu consciente e só foi descoberta durante o tratamento. Era necessário que a mulher assumisse a postura que atribuímos à sua mãe na cena primária. Desde a puberdade, considerava as nádegas grandes e proeminentes como a mais poderosa atração numa mulher; exceto na postura traseira, copular dificilmente lhe dava algum prazer. Neste ponto, pode-se justificadamente levantar uma crítica: a objeção seria de que uma preferência sexual dessa natureza pelas partes posteriores do corpo é uma característica geral de pessoas que se inclinam para uma neurose obsessiva, e que a sua presença não justifica referi-la a uma impressão particular da infância. Faz parte da estrutura da disposição anal-erótica e é uma das características arcaicas que distinguem essa constituição. Na verdade, o coito efetuado por trás - more ferarum [à maneira dos animais] - pode, afinal de contas, ser considerado como a forma mais antiga, filogeneticamente. Voltaremos também a essa questão posteriormente, quando tivermos apresentado o material suplementar que mostrou a base da condição inconsciente da qual dependia o seu apaixonar-se. [Cf. ver em [1] e [2].]
Prossigamos agora a nossa exposição das relações entre o sonho e a cena primária. Até que seria de esperar que o sonho apresentasse o menino (que se rejubilava, no Natal, na perspectiva da realização de seus desejos) com esse quadro de satisfação sexual propiciado através da ação de seu pai, tal como o vira na cena primária, como um modelo da satisfação que ele próprio aspirava obter do pai. Em vez desse quadro, no entanto, surgiu o material da história que lhe fora contada pelo avô pouco antes: a árvore, os lobos e a mutilação do rabo (na forma supercompensada das caudas espessas dos supostos lobos). Neste ponto falta alguma conexão, alguma ponte associativa que conduza do conteúdo da cena primária ao da história do lobo. Essa conexão é proporcionada uma vez mais pelas posturas, e só por elas. Na história do avô, o lobo sem rabo pediu aos outros que subissem em cima dele. Foi esse detalhe que evocou a lembrança do quadro da cena primária, e foi dessa forma que se tornou possível que o material da cena primária fosse representado pelo da história do lobo e, ao mesmo tempo, que os dois pais fossem substituídos, como era desejável, por diversos lobos. O conteúdo do sonho sofreu uma outra transformação e o material da história do lobo foi ajustado ao conteúdo do conto de fadas de ‘Os Sete Cabritinhos’, tomando emprestado a este o número sete.
As etapas na transformação do material; cena primária - história do lobo - conto dos ‘Sete Cabritinhos’, refletem o progresso dos pensamentos do sonhador durante a construção do sonho: ‘desejo de obter do pai satisfação sexual - a compreeensão de que a castração era uma condição necessária para isso - medo do pai’. Somente neste ponto, acho eu, podemos considerar o sonho de ansiedade desse menino de quatro anos como estando exaustivamente explicado.
Depois do que já foi dito, preciso apenas tratar, em poucas palavras, do efeito patogênico da cena primária e da alteração que a sua revivescência produziu no desenvolvimento sexual do paciente. Investigaremos apenas um dos seus efeitos, ao qual o sonho deu expressão. Teremos que esclarecer, depois, que não foi apenas uma única corrente sexual que se iniciou a partir da cena primária, mas toda uma série delas, e que sua vida sexual foi positivamente fragmentada por ela. Devemos também ter em mente que a ativação dessa cena (evitei intencionalmente a palavra ‘recordação’) teve o mesmo efeito que teria uma experiência recente. Os efeitos da cena foram protelados, mas esta não perdera, entrementes, nada da sua novidade, no intervalo entre a idade de um ano e meio e a de quatro anos. Descobriremos talvez em que se apóia a razão para supor que produziu determinados efeitos mesmo na época da sua percepção, isto é, a partir de um ano e meio de idade.
Quando o paciente penetrou mais fundo na situação da cena primária, trouxe à tona os seguintes fragmentos de auto-observação. Para começar, presumiu, conforme disse, que o evento do qual fora testemunha era um ato de violência. [Neste consenso, ver o artigo de Freud sobre ‘The Sexual Theories of Children’ (1908c), Standard Ed., 9, 220-21.], mas a expressão de prazer que viu no rosto da mãe não se ajustava a esse dado; foi obrigado a reconhecer que era uma experiência satisfatória. O que era essencialmente novo para ele, em sua observação da relação sexual entre os pais, era a convicção da realidade da castração - uma possibilidade com a qual seus pensamentos já se haviam ocupado anteriormente. (A visão das duas meninas urinando, a ameaça da sua Nanya, a interpretação que a governanta deu aos confeitos em forma de bastão, a lembrança do pai despedaçando a cobra com uma vara.) Porque agora via com os próprios olhos a ferida da qual a babá havia falado e compreendia que a existência dessa ferida era uma condição necessária para a relação com o pai. Não podia mais confundi-la com o traseiro, como fizera quando observara as duas meninas.
O sonho acabou em um estado de ansiedade, do qual não se recuperou até que teve a babá junto a si. Fugiu, portanto, do pai para ela. Sua ansiedade era um repúdio do desejo de obter do pai satisfação sexual - tendência à qual se deve a formação do sonho na sua cabeça. A forma assumida pela ansiedade, o medo de ‘ser devorado pelo lobo’, era apenas a transposição (como saberemos, regressiva) do desejo de copular com o pai, isto é, de obter satisfação sexual do mesmo modo que sua mãe. Seu último objetivo sexual, a atitude passiva em relação ao pai, sucumbiu à repressão, e em seu lugar apareceu o medo ao pai, sob a forma de uma fobia ao lobo.
E a força impulsionadora dessa repressão? As circunstâncias do caso demonstram que só pode ter sido a sua libido genital narcísica, a qual, sob a forma de interesse pelo seu órgão masculino, estava lutando contra uma satisfação que, para ser conseguida, parecia exigir uma renúncia àquele órgão. E era desse narcisismo ameaçado que derivava a masculinidade com a qual se defendia contra a atitude passiva em relação ao pai.
Observamos agora que, neste ponto da narrativa, temos que fazer uma alteração na nossa terminologia. Durante o sonho ele atingira uma nova fase da sua organização sexual. Até então os opostos sexuais, para ele, haviam sido o ativo e o passivo. Desde a sedução, seu objeto sexual havia sido passivo, de ser tocado nos genitais; mas transformou-se, então, por regressão ao estádio mais primitivo da organização anal-sádica, no propósito masoquista de ser espancado ou castigado. Para ele era indiferente a questão de atingir esse objetivo com um homem ou com uma mulher. Sem considerar a diferença de sexos, passara da babá para o pai; desejara que seu pênis fosse tocado pela babá, e tentara provocar o pai até que este batesse nele. Aí, seu órgão genital era deixado de lado, embora a conexão com esse órgão, que fora oculta com a regressão, ainda se expressasse na fantasia de levar pancada no pênis. A ativação da cena primária no sonho levou-o, então, de volta à organização genital. Descobriu a vagina e o significado biológico de masculino e feminino. Compreendia agora que ativo era o mesmo que masculino, ao passo que passivo era o mesmo que feminino. Seu objetivo sexual passivo deve ter sido, então, transformado em feminino, expressando-se como ‘ser copulado pelo pai’, em vez de ‘ser por ele espancado nos genitais ou no traseiro’. Esse objetivo feminino, no entanto, sujeitou-se à repressão e foi obrigado a deixar-se substituir pelo medo do lobo.
Devemos interromper aqui a exposição do seu desenvolvimento sexual até que nova luz seja lançada, dos estádios posteriores da sua história, sobre estes mais primitivos. Para apreciação adequada da fobia aos lobos, acrescentaremos apenas que tanto o pai como a mãe transformaram-se em lobos. Sua mãe assumiu o papel do lobo castrado, que deixava os outros subirem sobre ele; o pai assumiu o papel do lobo que subia. Entretanto, seu medo, conforme o ouvimos assegurar-nos, relacionava-se apenas com o lobo ereto, isto é, com seu pai. Ademais, deve-nos surpreender o fato de que o medo com o qual o sonho terminava tivesse um modelo na história do avô. Porque nesta, o lobo castrado, que deixara os outros treparem em cima, dele, tomava-se de medo tão logo era lembrado do fato da sua falta de cauda. Portanto, parece que ele se identificou com a mãe castrada durante o sonho, e agora lutava contra esse fato. ‘Se você quer ser sexualmente satisfeito pelo Pai’, podemos talvez imaginá-lo dizendo para si mesmo, ‘você deve deixar-se castrar como a Mãe; mas eu não quero isso.’ Resumindo, um claro protesto da parte da sua masculinidade! No entanto, entenda-se naturalmente que o desenvolvimento sexual do caso que estamos agora examinando, tem uma grande desvantagem do ponto de vista da busca, porque não deixou de modo algum, de ser perturbado. Em primeiro lugar, foi decisivamente influenciado pela sedução e, depois, foi desviado pela cena da observação do coito, a qual, na sua ação preterida, operou como uma segunda sedução.

V - ALGUMAS QUESTÕES

A baleia e o urso polar, já foi dito, não podem travar luta um com o outro porque, confinados ao seu próprio elemento, não podem encontrar-se. Para mim é impossível argumentar com quem trabalha no campo da psicologia ou das neuroses e não reconhece os postulados da psicanálise, considerando os resultados desta como artefatos. Nos últimos anos, porém, cresceu também uma outra espécie de oposição entre aqueles que, pelo menos em sua própria opinião, tomam posição no terreno da psicanálise, não discutem a sua técnica ou resultados, mas simplesmente acham-se justificados ao tirar outras conclusões do mesmo material e ao submetê-lo a outras interpretações.
Via de regra, contudo, a controvérsia teórica é infrutífera. Tão logo o analista começa a desviar-se do material com o qual deveria contar, corre o risco de intoxicar-se com as próprias afirmações e, no final, de apoiar opiniões que qualquer observação poderia contradizer. Por esse motivo, parece-me ser incomparavelmente mais útil, para combater interpretações dissidentes, testá-las em casos e problemas particulares.
Já antes observei que será certamente considerado improvável, em primeiro lugar, que ‘uma criança na tenra idade de um ano e meio pudesse estar numa posição de absorver a percepção de um processo tão complicado e preservá-la tão acuradamente em seu inconsciente; em segundo lugar, se é possível, aos quatro anos de idade, que uma revisão preterida das impressões assim recebidas penetre no entendimento; e, finalmente, se qualquer procedimento poderia trazer para a consciência, de modo coerente e convincente, os detalhes de uma cena dessa natureza, experimentada e compreendida em tais circunstâncias’.
Esta última é simplesmente uma questão de fato. Qualquer um que se dê ao trabalho de acompanhar uma análise em tal profundidade, por meio da técnica prescrita, convencer-se-á de que é decididamente possível. Quem quer que omita isso e interrompa a análise em algum estrato mais elevado, terá renunciado ao seu direito de formar um juízo sobre o assunto. Mas a interpretação daquilo a que se chegou numa análise profunda não se decide por esse dado.
As outras dúvidas baseiam-se numa baixa estimativa da importância das primitivas impressões infantis e na recusa a atribuir-lhes efeitos tão duradouros. Os que apóiam esse ponto de vista procuram as causas das neuroses quase exclusivamente nos graves conflitos da vida posterior; presumem que a importância da infância só se mostra diante dos nossos olhos, durante a análise, por causa da tendência dos neuróticos para expressarem os seus interesses presentes em reminiscências e símbolos do passado remoto. Tal estimativa da importância do fator infantil implicaria no desaparecimento de muito daquilo que fez parte das características mais íntimas da análise, embora também, sem dúvida, de muito daquilo que lhe oferece resistência e aliena a confiança do intruso.
A concepção, portanto, que estamos colocando em discussão é a que se segue. Sustenta que cenas da primitiva infância, tais como as que são construídas por uma análise exaustiva das neuroses (como, por exemplo, no presente caso), não são reproduções de ocorrências reais, às quais seja possível atribuir uma influência sobre o curso da vida posterior do paciente e sobre a formação dos seus sintomas. Considera-as, antes, como produtos da imaginação, que encontram estímulo na vida dura, que pretendem servir como uma espécie de representação simbólica dos verdadeiros desejos e interesses e que devem sua origem a uma tendência regressiva, a uma fuga das incumbências do presente. Se assim é, podemos certamente poupar-nos a necessidade de atribuir uma substância tão surpreendente à vida mental e capacidade intelectual de crianças da mais tenra idade.
Além do desejo, que todos compartilhamos, de racionalizar e simplificar o nosso difícil problema, há toda uma gama de fatos que falam em favor dessa concepção. Também é possível eliminar, de antemão, uma objeção que se lhe pode levantar, principalmente na mente de um analista em atividade. Deve-se admitir que, sendo correta essa concepção das cenas da infância, o processo da análise não seria, em primeiro lugar, alterado em nenhum aspecto. Se os neuróticos são dotados da característica prejudicial de desviar o seu interesse do presente e de vinculá-lo a esses substitutos regressivos, os produtos da sua imaginação, então o que há a fazer é seguir a sua trilha e trazer para a consciência esses produtos inconscientes; pois, deixando de lado a sua ausência de valor, do ponto de vista da realidade, são da máxima significação, do nosso ponto de vista, de vez que, no momento, são os portadores e possuidores do interesse que queremos libertar, de modo a conseguir dirigi-lo para as tarefas do presente. A análise teria que seguir precisamente o mesmo curso, como se se tivesse uma fé ingênua na verdade das fantasias. A diferença só apareceria no final da análise, depois que as fantasias tivessem sido esvaziadas. Deveríamos, então, dizer ao paciente: ‘Muito bem, a sua neurose ocorreu

 você tivesse recebido essas impressões e as tivesse prolongado detalhadamente na sua infância. Você vê, é claro, que isso está fora de questão. Elas eram produtos da sua imaginação, destinadas a desviá-lo das verdadeiras tarefas que se apresentam diante de você. Procuremos saber agora que tarefas eram essas e que linhas de comunicação existem entre elas e as suas fantasias.’ Depois de utilizar as fantasias infantis dessa maneira, seria possível iniciar uma segunda etapa do tratamento, que seria voltada para a vida real do paciente.
Qualquer abreviamento desse processo, isto é, qualquer alteração no tratamento psicanalítico, como tem sido praticado até agora, seria tecnicamente inadmissível. A não ser que essas fantasias se tornem conscientes para o paciente, em seu significado mais pleno, ele não pode conseguir o comando do interesse que está ligado a elas. Se a sua atenção é desviada das fantasias, tão logo a existência e os contornos gerais destas são pressentidos, está-se dando simplesmente apoio ao trabalho de repressão, graças ao qual essas fantasias foram postas além do alcance do paciente, apesar de todo o seu sofrimento. Se este recebe uma noção prematura da não importância das fantasias, ao ser informado, por exemplo, que tudo será uma questão de fantasias, as quais certamente não têm significado real, jamais se conseguirá a sua cooperação no processo de trazê-las para a consciência. Um procedimento correto, portanto, não fará alteração na técnica de análise, qualquer que seja a estimativa que se possa formar a partir dessas cenas da infância.
Já mencionei que existe uma série de fatos que podem ser evocados em apoio à opinião de que essas cenas são fantasias regressivas. E, acima de todos, está este: até onde vai a minha experiência até este momento, essas cenas da infância não são reproduzidas durante o tratamento como lembranças, são produtos de construção. Muitos acharão, certamente, que só o fato de admitir isso decide toda a disputa.
Espero não ser mal compreendido. Todo analista sabe - e deparou com a experiência em inúmeras ocasiões - que no decorrer de um tratamento bem-sucedido o paciente traz à tona um grande número de recordações espontâneas da sua infância, por cujo aparecimento (um primeiro aparecimento, talvez) o terapeuta se sente inteiramente não responsável, já que não fez qualquer tentativa no sentido de uma construção que poderia haver colocado qualquer material desse tipo na cabeça do paciente. O que não quer dizer, necessariamente, que essas lembranças anteriormente inconscientes são sempre verdadeiras. Elas podem ser verdadeiras; muitas vezes, porém, são distorções da verdade, intercaladas de elementos imaginários, tal como as assim chamadas lembranças encobridoras, que são preservadas espontaneamente. Tudo o que quero dizer é o seguinte: cenas, como as do meu paciente no presente caso, que datam de um período tão prematuro e exibem um conteúdo semelhante, e que apresentam depois um significado tão extraordinário para o histórico do caso, não são, via de regra, reproduzidas como lembranças, mas têm que ser pressentidas - construídas - gradativa e laboriosamente a partir de um conjunto de indicações. Ademais, seria suficiente para os propósitos da argumentação se o fato de eu admitir que cenas dessa natureza não se tornam conscientes sob a forma de lembranças, se aplicasse apenas aos casos de neurose obsessiva, ou até mesmo se limitasse minha afirmação ao caso que estamos estudando aqui.
No entanto, não sou de opinião que essas cenas devam necessariamente ser fantasias, porque não reaparecem na forma de recordações. Parece-me absolutamente equivalente a uma recordação, se as lembranças são substituídas (como no presente caso) por sonhos, cuja análise conduz invariavelmente de volta à mesma cena, e que reproduzem cada parte do seu conteúdo numa inesgotável variedade de novas formas, Na verdade, sonhar é outra maneira de lembrar, embora sujeita às condições que governam à noite e às leis da formação de sonhos. É essa recorrência nos sonhos que considero como a explicação do fato de que os próprios pacientes adquirem gradativamente uma convicção profunda da realidade dessas cenas primárias, uma convicção que não é, em nenhum aspecto, inferior à que se fundamenta na recordação.
Para aqueles que assumem o ponto de vista oposto, não há naturalmente necessidade de abandonar sem esperança a sua luta contra tais argumentos. É por demais conhecido o fato de que os sonhos podem ser orientados. E o sentimento de convicção experimentado pela pessoa analisada pode ser o resultado de sugestão, à qual se atribuem sempre novos papéis no jogo de forças envolvidas no tratamento analítico. O psicoterapeuta antiquado, poder-se-ia dizer, costumava sugerir ao seu paciente que ele estava curado, que havia superado as suas inibições, e assim por diante; ao passo que o psicanalista, sob esse ponto de vista, sugere-lhe que, quando era criança, tivera essa ou aquela experiência, que deve agora ser lembrada com o objetivo de curar-se. Seria essa a diferença entre os dois.
Entenda-se claramente que essa última tentativa de explicação, por parte daqueles que assumem uma concepção oposta à minha, resulta em serem as cenas da infância utilizadas muito mais fundamentalmente do que o que se anunciou. Aquilo que se argumentou inicialmente foi não serem elas realidades, mas sim fantasias. Contudo, o que se argumenta agora é, evidentemente, serem fantasias, não do paciente, mas sim do próprio analista, que a força sobre a pessoa que analisa em virtude de determinados complexos seus. Na verdade, um analista que escuta essa reprimenda confortar-se-á a si mesmo recordando o quão gradativamente veio à tona a construção dessa fantasia, que se supõe ter ele próprio originado, e, quando tudo estava dito e feito, o modo como ocorreram independentemente do incentivo do terapeuta muitos pontos do seu desenvolvimento; como, após determinada fase do tratamento, tudo parecia convergir para essa fantasia, e como mais tarde, na síntese, os mais variados e notáveis resultados irradiaram-se dela; o modo como não apenas os grandes problemas, mas também as menores peculiaridades no histórico do caso, foram esclarecidos mediante essa única hipótese. E ele negará a posse da quantidade de ingenuidade necessária para tramar uma ocorrência que possa preencher todos esses requisitos. Mas mesmo esse argumento não terá efeito sobre um adversário que não experimentou por si próprio a análise. Por um lado, haverá uma carga de autodesilusão sutil e, por outro, de obtusidade de julgamento; será impossível chegar a uma decisão.
Voltemo-nos para outro fator que apóia essa concepção oposta das cenas construídas da infância. É o seguinte: não pode haver dúvidas quanto à existência real de todos os processos que foram expostos com a finalidade de explicar essas estruturas duvidosas como fantasias, e sua importância deve ser reconhecida. O desvio de interesse, das incumbências da vida real, a existência de fantasias na qualidade de substitutos de ações não realizadas, a tendência regressiva que se expressa nesses produtos - regressiva em mais de um sentido, na medida em que estão envolvidos simultaneamente um recuo diante da vida e um retorno ao passado -, todas essas coisas se confirmam, são regularmente confirmadas pela análise. Poder-se-ia pensar que seriam também suficientes para explicar as supostas reminiscências da primitiva infância que estão em discussão; e, de acordo com o princípio de economia na ciência, tal explicação levaria vantagem sobre outra que é inadequada sem o apoio de novas e surpreendentes hipóteses.
Arriscar-me-ia aqui a assinalar que as concepções antagônicas que se encontram na literatura psicanalítica atual são geralmente elaboradas segundo o princípio do pars pro toto. De uma combinação altamente composta, uma parte dos fatores operativos é destacada e proclamada como a verdade; e, em seu fator, contradiz-se então a outra parte, junto com toda a combinação. Se observamos um pouco mais de perto, para verificar a que grupo de fatores foi dada preferência, descobriremos ser aquele que contém material já conhecido de outras fontes ou aquele que pode mais facilmente ser relacionado com esse material. Desse modo, Jung seleciona atualidade e regressão, e Adler, motivos egoístas. O que é deixado de lado, no entanto, e rejeitado como falso, é precisamente o que é novo em psicanálise e peculiar a esta. Este é o método mais fácil de repelir os progressos revolucionários e inconvenientes da psicanálise.
Vale a pena observar que nenhum dos fatores citados pela opinião contrária com a finalidade de explicar essas cenas da infância, teve que aguardar reconhecimento até que Jung os expôs como novidade. A noção de um conflito corrente, de uma fuga da realidade, de uma satisfação substitutiva obtida na fantasia, de uma regressão ao material do passado - tudo isso (empregado, ademais, no mesmo contexto, embora talvez com uma terminologia ligeiramente diferente) há anos fazia parte integral da minha própria teoria. Contudo, não a formava inteiramente. Era apenas uma parte das causas que levam à formação de neuroses - aquela parte que, partindo da realidade, opera numa direção regressiva. Paralelamente a isso, deixei espaço para outra influência que, a partir das impressões da infância, opera numa direção futura, que aponta um caminho para a libido que se retrai diante da vida e que torna possível compreender a de outro modo inexplicável regressão à infância. Assim, na minha concepção, os dois fatores cooperam na formação de sintomas. Há, porém, uma cooperação anterior que me parece ser de igual importância. Sou de opinião que a influência da infância já se faz sentir na situação com que se inicia a formação de uma neurose, de vez que desempenha um papel decisivo na ação de determinar se, e em que ponto, o indivíduo deixa de dominar os verdadeiros problemas da vida.
O que está em discussão, portanto, é a significação do fator infantil. O problema é encontrar um caso que possa estabelecer essa significação para além de qualquer dúvida. No entanto, é esse o caso que está sendo exposto de modo tão exaustivo nestas páginas e que se distingue pela característica de que a neurose da vida adulta foi precedida por uma neurose nos primeiros anos da infância. Foi exatamente por essa razão, na verdade, que o escolhi para ser relatado. Se alguém se sentir inclinado a recusá-lo porque a fobia animal não lhe parece suficientemente séria para ser reconhecida como uma neurose independente, devo dizer que a fobia foi sucedida, sem qualquer intervalo, por um cerimonial obsessivo, por atos e idéias obsessivos, que serão discutidos nas partes seguintes deste artigo.
A ocorrência de um distúrbio neurótico no quarto e no quinto ano da infância prova, antes de mais nada, que as experiências infantis são por si próprias capazes de produzir uma neurose, sem que haja necessidade de acrescentar-se a fuga de alguma tarefa a ser enfrentada na vida real. Pode-se objetar que mesmo uma criança confronta-se constantemente com obrigações às quais gostaria, talvez, de evadir-se. E assim é; mas a vida de uma criança em idade pré-escolar é facilmente observável e podemos examiná-la para verificar se nela existem quaisquer ‘obrigações’ capazes de determinar a causação de uma neurose. Só descobrimos, porém, impulsos instintuais que a criança não consegue satisfazer, não tendo idade suficiente para dominá-los, e as fontes das quais se originam esses impulsos.
Como seria de esperar, a enorme redução do intervalo entre o afloramento da neurose e a data das experiências infantis que estamos expondo restringe aos limites mais estreitos a parte regressiva da causação, ao passo que faz surgir plenamente a parte que opera em direção avançada, a influência das impressões anteriores. O presente caso clínico dará, espero, um quadro claro dessa situação. Existem, todavia, outros motivos pelos quais as neuroses da infância dão uma resposta decisiva à questão da natureza das cenas primárias - as primeiras experiências da infância que são trazidas à luz pela análise.
Suponhamos, como premissa incontestada, que uma cena primária dessa natureza tenha sido corretamente eduzida do ponto vista técnico, que seja indispensável para uma solução inclusiva de todos os enigmas colocados pelos sintomas do distúrbio infantil, que todas as conseqüências irradiem dela, assim como todas as linhas da análise conduziram a ela. Então, em face de seu conteúdo, é impossível que possa ser outra coisa além da reprodução de uma realidade experimentada pela criança. Pois a criança, como o adulto, só pode produzir fantasias a partir do material que foi adquirido, de uma fonte ou de outra; e para as crianças, alguns dos meios de adquiri-lo (lendo, por exemplo) são excluídos, ao passo que o espaço de tempo disponível para a aquisição é curto e pode facilmente ser explorado com vistas à descoberta de quaisquer dessas fontes.
No caso presente, o conteúdo da cena primária é um quadro de relações sexuais entre os pais do menino, numa postura particularmente favorável a determinadas observações. Agora, não seria evidência do que quer que fosse da realidade de tal cena, se a encontrássemos em um paciente cujos sintomas (isto é, os efeitos da cena) tivessem aparecido num ou noutro período da sua vida posterior. Uma pessoa como esta poderia ter adquirido as impressões, as idéias e o conhecimento em muitas ocasiões diferentes no decorrer do longo intervalo; poderia, depois, havê-los transformado num quadro imaginário, projetado na infância, relacionando-os com seus pais. Se, no entanto, os efeitos de uma cena desse tipo aparecem numa criança de quatro ou cinco anos, então esta deve ter testemunhado a cena ainda mais precocemente. Mas, nesse caso, ainda nos defrontamos com todas as conseqüências desconcertantes que surgiram da análise dessa neurose infantil. A única saída seria presumir que o paciente não apenas imaginou inconscientemente a cena primária, mas também forjou a alteração no seu caráter, o medo ao lobo e a obsessão religiosa; tal expediente, porém, seria desmentido pela sua natureza em outros aspectos sóbria e pela tradição direta em sua família. Só pode haver, portanto, uma conclusão (não vejo outra possibilidade): ou a análise baseada na neurose de sua infância é toda ela uma seqüência de absurdo, do princípio ao fim, ou tudo aconteceu exatamente como descrevi acima.
Numa etapa anterior da exposição que fazemos [ver em [1]], deparamo-nos com uma ambigüidade em relação à predileção do paciente por nádegas femininas e pelo ato sexual na postura em que estas ficam particularmente proeminentes. Parecia necessário atribuir essa predileção à relação sexual que observara entre os pais, ao passo que, ao mesmo tempo, uma preferência desse tipo é uma característica geral de constituições arcaicas predispostas a uma neurose obsessiva. Mas a contradição é facilmente resolvida se a consideramos um caso de superdeterminação. A pessoa a quem observou nessa postura durante o ato sexual era, afinal de contas, o seu pai, e pode também ter sido dele que herdou essa predileção constitucional. Nem a posterior enfermidade do pai nem a história da família contradizem isso; como já foi mencionado, um irmão do seu pai morreu numa condição que deve ser considerada como resultado de um grave distúrbio obsessivo.
Em relação a isso podemos lembrar que, na época da sua sedução, quando tinha três anos e um quarto, a irmã proferira uma grande calúnia contra a sua boa e velha babá, dizendo que tivera contato com toda espécie de homens, mantendo-lhes a cabeça em posição vertical e pegando-lhes nos órgãos genitais (ver em [1]). Não podia deixar de nos ocorrer a idéia de que talvez a irmã, em idade mais ou menos como a sua, também tenha testemunhado a mesma cena observada depois pelo irmão e isso lhe tenha sugerido a noção de ‘manter em pé a cabeça das pessoas’ durante o ato sexual. Essa hipótese forneceria também uma sugestão do motivo da sua própria precocidade sexual.
[Originalmente eu não tinha intenção de desenvolver ainda mais, nesta passagem, a exposição da realidade das ‘cenas primárias’. Contudo, de vez que, entrementes, tive ocasião, em minhas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise [1916-17, Conferência XXIII], de tratar do assunto em linhas mais gerais e sem objeto de controvérsia, seria enganoso se me omitisse de aplicar as considerações que determinaram essa outra exposição da matéria ao caso que ora se apresenta diante de nós. Continuo, portanto, como se segue, à guisa de complemento e retificação: resta ainda a possibilidade de tomar outra perspectiva da cena primária subjacente ao sonho - uma perspectiva que torna evidente em grande medida a conclusão a que chegamos antes e alivia-nos de muitas das nossas dificuldades. Mas a teoria que procura reduzir as cenas da infância ao nível de símbolos regressivos, em nada ganhará, mesmo com essa modificação; e, com efeito, tal teoria parece-me ser, afinal, livremente utilizada por esta (como seria por qualquer outra) análise de uma neurose infantil.
Essa outra perspectiva que tenho em mente é a de que a situação pode ser explicada da seguinte maneira. Certamente não podemos dispensar a hipótese de que o menino observou uma cópula, cuja visão lhe deu a convicção de que a castração podia ser algo mais do que uma ameaça vazia. Ademais disso, o significado que ele posteriormente veio a relacionar com as posturas de homem e mulher, em conexão com o desenvolvimento da ansiedade, por um lado, e como condição da qual dependia o seu apaixonar-se, por outro, não nos dá outra alternativa senão concluir que deve ter sido um coitus a tergo, more ferarum. Há, porém, outro fator que não é insubstituível e pode ser relegado. Talvez o que o menino observou não tenha sido uma cópula entre os pais, mas entre animais, que depois transferiu para os primeiros, como se tivesse deduzido que seus pais faziam as coisas do mesmo modo.
Acima de tudo, o que dá cor a essa visão é o fato de que os lobos do sonho eram, na realidade, cães pastores e, além disso, aparecem como tais no desenho. Pouco antes do sonho, o menino foi levado repetidas vezes a visitar os rebanhos de ovelhas [ver em [1]] e lá pode ter visto justamente esses grandes cachorros brancos, e provavelmente também os viu copular. Gostaria de introduzir também nesta conexão o número três, a que o paciente se referiu sem qualquer outro motivo [ver em [1]], e eu sugeriria que ele guardou na memória o fato de haver feito três observações dessa espécie, com os cães. O que sobreveio durante a excitação da expectativa, na noite do sonho, foi a transferência para os pais, da sua imagem de memória recentemente adquirida, com todos os detalhes, e só assim se tornaram possíveis os poderosos efeitos emocionais que se seguiram. Chegou então a uma compreensão preterida das impressões que pode ter recebido algumas semanas ou meses antes - um processo pelo qual todos nós talvez tenhamos passado, em nossas próprias experiências. A transferência para os pais dos cães copulando não foi cumprida por meio de uma inferência acompanhada de palavras, mas por ter procurado em sua memória uma cena real, na qual os pais estivessem juntos e que pudesse coadunar-se com a situação da cópula. Todos os detalhes da cena que foram estabelecidos na análise do sonho puderam ser exatamente reproduzidos. Foi realmente numa tarde de verão, quando o menino estava sofrendo de malária, os pais estavam ambos presentes, vestidos de branco, que a criança despertou do seu sono, mas - a cena era inocente. O resto fora acrescentado pelo subseqüente desejo do menino curioso, baseado na sua experiência com os cães, para testemunhar também os pais fazendo amor; e a cena assim imaginada produziu então todos os efeitos que arrolamos, tal como se tivesse sido inteiramente real e não o resultado da fusão de dois componentes, um anterior e indiferente, o outro posterior e profundamente impressivo.
De imediato, torna-se óbvio a quanto se reduzem as exigências à nossa credulidade. Não precisamos mais supor que os pais mantiveram relações na presença do filho (ainda muito pequeno, é verdade) - o que era uma idéia desagradável para muitos de nós. O período de tempo durante o qual os efeitos foram preteridos fica bastante diminuído; agora cobre apenas alguns meses do quarto ano da criança e não recua para dentro dos obscuros primeiros anos da infância. Pouco resta de estranho na conduta do menino ao fazer a transferência dos cães para os pais, e ao sentir medo do lobo, em vez de sentir medo do pai. Estava naquela fase do desenvolvimento de sua atitude em relação ao mundo, que descrevi em Totem e Tabu [1912-13, Ensaio IV] como o retorno do totemísmo. A teoria que procura explicar as cenas primárias encontradas nas neuroses como fantasias retrospectivas de data posterior parece obter um poderoso apoio da presente observação, apesar de o nosso paciente ter apenas quatro anos. Novo como era, ainda assim conseguiu substituir uma impressão, recebida aos quatro anos, por um trauma imaginário, com a idade de um ano e meio. Essa regressão, no entanto, não parece misteriosa nem tendenciosa. A cena que seria inventada tinha que preencher determinadas condições que, em conseqüência das circunstâncias de vida do sonhador, só poderiam ser encontradas precisamente nesse período primitivo; tal era, por exemplo, a condição de que deveria estar na cama, no quarto dos pais.
Algo que posso aduzir das descobertas analíticas em outros casos parecerá, contudo, à maioria dos leitores, ser o fator decisivo a favor da correção do ponto de vista aqui proposto. Os incidentes de observação de relações sexuais entre os pais em idade muito precoce (quer sejam verdadeiras lembranças, ou fantasias) não são, de fato, nenhuma raridade em análises de neuróticos. Possivelmente não são menos freqüentes entre aqueles que não são neuróticos. Possivelmente fazem parte do depósito regular - consciente ou inconsciente - de suas lembranças. Mas sempre que consegui desentranhar, por meio da análise, uma cena dessa natureza, ela mostrou a mesma peculiaridade, que nos surpreendeu, também, com o paciente em questão: relacionava-se com um coitus a tergo, o qual, por si, oferece ao espectador a possibilidade de examinar os genitais. Certamente não há mais necessidade de duvidar que estamos lidando apenas com uma fantasia, que nasceu talvez da observação de relações sexuais de animais. E mais ainda: sugeri que minha descrição da ‘cena primária’ ficou incompleta, porque reservei para um momento posterior o relato do modo pelo qual o menino interrompeu a relação entre os pais. Devo acrescentar agora que essa forma de interrupção é sempre a mesma, em todos os casos.
Inclino-me a acreditar que me expus a graves acusações, da parte dos leitores deste caso clínico. Se esses argumentos em favor de tal visão da cena primária estavam à minha disposição, como pude assumir, no começo, uma perspectiva que parecia tão absurda? Ou fiz essas novas observações, que me obrigaram a alterar a minha opinião original, no intervalo entre o primeiro esboço do caso clínico e este acréscimo, e hesito, por essa ou aquela razão, em admitir o fato? Em vez disso, admitirei algo mais: pretendo, nesta oportunidade, encerrar a discussão da realidade da cena primária com um non liquet. Este caso clínico ainda não chegou ao fim; no curso do seu desenvolvimento surgirá um fator que irá abalar a certeza de que parecemos desfrutar no momento. Nada restará então, julgo eu, a não ser referir aos meus leitores os trechos das Conferências Introdutórias nos quais tratei do problema das fantasias primitivas ou das cenas primárias.]

VI - A NEUROSE OBSESSIVA

Agora, pela terceira vez, o paciente sofreu uma nova influência, que deu um rumo decisivo ao seu desenvolvimento. Quando estava com quatro anos e meio de idade, e seu estado de irritabilidade e preocupação não havia ainda melhorado, a mãe determinou-se a familiarizá-lo com a história da Bíblia, na esperança de distraí-lo e animá-lo. Nesse sentido, foi bem-sucedida; a iniciação religiosa do menino deu fim à fase anterior, mas, ao mesmo tempo, fez com que os sintomas da ansiedade fossem substituídos por sintomas obsessivos. Até então não conseguia conciliar o sono facilmente porque tinha medo de ter maus sonhos, como o que tivera naquela noite antes do Natal; agora era obrigado, antes de ir para a cama, a beijar todas as imagens sagradas que havia no quarto, a dizer orações e a fazer incontáveis vezes o sinal-da-cruz, em si mesmo e sobre a sua cama.
A sua infância ajusta-se agora, claramente, nos seguintes períodos: primeiro, o período que se estende até a sedução, aos três anos e um quarto, durante o qual teve lugar a cena primária; segundo, o período da alteração em seu caráter, até o sonho de ansiedade (quatro anos de idade); terceiro, o período da fobia animal, até a iniciação religiosa (quatro anos e meio); e daí em diante, o período da neurose obsessiva, até uma época posterior aos seus dez anos. Que tenha havido um deslocamento instantâneo e definido de uma fase para a seguinte, é algo que não se ajusta à natureza das coisas ou ao nosso paciente; pelo contrário, a preservação de tudo o que se fora antes e a coexistência dos mais diferentes tipos de correntes eram características dele. Sua impertinência não desapareceu quando a ansiedade se instalou, e persistiu, com força lentamente decrescente, durante o período de piedade religiosa. Contudo, já não havia qualquer traço da fobia de lobos durante essa última fase. A neurose seguiu seu curso descontinuadamente; o primeiro ataque foi o mais longo e o mais intenso, e outros sobrevieram quando estava com oito e com dez anos, seguindo-se, cada vez, a causas de excitação em relacionamento claro com o conteúdo da neurose.
A própria mãe contou-lhe a história sagrada e também fez com que sua Nanya lesse em voz alta para o menino trechos de um livro adornado com ilustrações. Naturalmente, a ênfase narrativa era posta sobre a história da Paixão. A babá, que era muito pia e supersticiosa, acrescentava à história os seus próprios comentários, mas era também obrigada a ouvir todas as objeções e dúvidas do pequeno crítico. Se as batalhas que então começaram a convulsionar-lhe a mente acabaram afinal numa vitória da fé, a influência da Nanya não deixou de ter sua participação nesse resultado.
O que ele me relatou como recordação das suas reações a essa iniciação foi recebido por mim, de início, com completa descrença. Era impossível, achei eu, que fossem estes os pensamentos de uma criança de quatro anos e meio ou cinco; provavelmente, remetera a esse passado remoto as idéias nascidas da reflexão de um adulto de trinta anos. O paciente, contudo, não ouviria essa correção; não consegui convencê-lo, como aconteceu em tantas outras diferenças de opinião entre nós; e, afinal, a correspondência entre os pensamentos que recordara e os sintomas dos quais me deu detalhes, bem como o modo pelo qual as idéias se ajustavam ao seu desenvolvimento sexual, compeliram-me, pelo contrário, a acreditar nele. E, refleti, então, achando que essa mesma crítica às doutrinas religiosas, que eu relutava em atribuir a uma criança, só era atingida por uma minoria infinitesimal de adultos.
Vou expor agora o material das suas recordações, e só depois tentarei encontrar um caminho que possa levar à explicação das mesmas.
Para começar, a impressão que ele recebeu da história sagrada não era, de modo algum, agradável, conforme relatou. Em primeiro lugar, opôs-se tenazmente ao aspecto de sofrer na figura de Cristo e, depois, contra a Sua história como um todo. Voltou seu descontentamento crítico contra Deus Pai. Se era todo-poderoso, então era culpa Dele se os homens eram maus e atormentavam os outros e eram mandados para o Inferno por causa disso. Ele devia tê-los feito bons; Ele próprio era responsável por toda a maldade e todos os tormentos. Também fez objeções ao fato de que devemos voltar a outra face, se nos batem no lado direito, e ao fato de que Cristo desejara, na Cruz, que o cálice Lhe pudesse ser tirado, bem como ao fato de que não ocorrera nenhum milagre para provar que era Filho de Deus. Assim, sua perspicácia estava alerta, e era capaz de descobrir, com severidade e sem remorso, os pontos fracos da narrativa sagrada.
A essa crítica racionalista, porém, em breve juntaram-se ruminações e dúvidas, o que nos revela que nele também operavam impulsos ocultos. Uma das primeiras perguntas que fez à sua Nanya foi se Cristo também havia tido um traseiro. A babá respondeu-lhe que ele fora um deus e também um homem. Como homem, tivera e fizera as mesmas coisas que os outros homens. Isso não satisfez de modo algum o menino, mas ele conseguiu encontrar o seu próprio consolo, dizendo a si mesmo que o traseiro, na verdade, é apenas uma continuação das pernas. Mal conseguira pacificar seu medo de ter humilhado a figura sagrada, quando o temor novamente se acendeu ao surgir a questão de saber se Cristo também costumava defecar. Não se arriscou a fazer essa pergunta à piedosa babá, mas encontrou por si uma saída, e ela não poderia tê-la achado melhor. De vez que Cristo fizera vinho de nada, também podia transformar a comida em nada e, dessa forma, não precisava defecar.
Ficaremos em melhor posição para compreender essas ruminações se voltarmos a uma fase do seu desenvolvimento sexual que já mencionamos. Sabemos que, depois da recusa da sua Nanya [ver em [1] e seg.] e a conseqüente supressão do início da atividade genital, a vida sexual do menino desenvolveu-se na direção do sadismo e do masoquismo. Maltratava e atormentava pequenos animais, imaginava-se batendo em cavalos e, por outro lado, imaginava o herdeiro ao trono sendo espancado. No seu sadismo, mantinha a antiga identificação com o pai; mas, no masoquismo, escolhia-o como objeto sexual. Aprofundava-se numa fase da organização pré-genital que considero como predisposição à neurose obsessiva. A operação do sonho, que o colocou sob a influência da cena primária, podia tê-lo levado a fazer o avanço no sentido da organização genital e a transformar o masoquismo em relação ao pai numa atitude feminina, ou seja, em homossexualismo. O sonho, contudo, não provocou esse avanço; terminou em estado de ansiedade. Poder-se-ia esperar que sua relação com o pai prosseguisse, do objetivo sexual de ser espancado para o objetivo seguinte, ou seja, o de ser possuído por ele, como uma mulher; mas, na verdade, devido à oposição da sua masculinidade narcísica, essa relação foi lançada de volta para uma etapa ainda mais primitiva. Foi deslocada para um substituto paterno e, ao mesmo tempo, dissociada na forma de um medo de ser comido pelo lobo. No entanto, isso de forma alguma a resolveu. Pelo contrário, só podemos fazer justiça à aparente complexidade da situação tendo em mente a coexistência de três tendências sexuais do menino em relação ao pai. A partir da época do sonho, em seu inconsciente ele era homossexual e, em sua neurose, estava no nível do canibalismo; ao passo que a atitude anterior, masoquista, continuou a ser a dominante. Todas as três correntes tinham propósitos sexuais passivos; era o mesmo objeto e o mesmo impulso sexual, mas esse impulso tornara-se dividido ao longo dos três diferentes níveis.
O conhecimento que tinha então da história sagrada não lhe dava oportunidade de sublimar a sua atitude masoquista predominante em relação ao pai. O menino transformou-se em Cristo - o que se tornou particularmente fácil para ele em virtude da coincidência dos aniversários. Assim, transformou-se em algo grande e também (fato ao qual não foi dado o devido destaque) num homem. Surpreendemos um lampejo da sua atitude homossexual reprimida na dúvida em relação ao fato de Cristo ter um traseiro, pois essas ruminações não podem ter outro significado senão a questão de poder ele próprio ser usado pelo pai como uma mulher - como a mãe na cena primária. Quando chegamos à solução das outras idéias obsessivas, encontramos essa intervenção confirmada. Sua idéia de que era insultuoso relacionar a figura sagrada com tais insinuações, correspondia à repressão do seu homossexualismo passivo. Perceba-se que ele estava empenhando-se em conservar sua nova sublimação livre da mistura que esta derivava de fontes na matéria reprimida. Mas não teve êxito.
Não compreendemos até agora por que se rebelou também contra o caráter passivo de Cristo e contra o tratamento recebido de seu Pai e, desse modo, começou também a renunciar ao seu ideal masoquista anterior, mesmo em sua sublimação. Podemos supor que esse segundo conflito era particularmente favorável ao afloramento de pensamentos obsessivos humilhantes do primeiro conflito (entre a corrente masoquista, dominante, e a homossexual, reprimida), pois é natural que, num conflito mental, todas as correntes, de um lado ou de outro, se combinem uma com a outra, mesmo que tenham as mais diferentes origens. Algumas informações recentes dão-nos o motivo dessa revolta e, ao mesmo tempo, das críticas que dirigia à religião.
Também as suas pesquisas sexuais ganharam algo com o que ele aprendeu sobre a história sagrada. Até então não havia tido motivos para supor que as crianças só provinham de mulheres. Pelo contrário, a Nanya fizera-lhe crer que ele era filho do pai, enquanto a irmã era de mãe [ver em [1]]; essa ligação mais estreita com o pai fora muito preciosa para ele. Agora sabia que Maria era chamada a Mãe de Deus. Assim, todas as crianças vinham de mulheres e o que a babá lhe dissera tornou-se insustentável. De mais a mais, como resultado do que lhe contaram, ficou confuso acerca de quem verdadeiramente era o pai de Cristo. Inclinava-se a pensar que era José, pois soube que ele e Maria sempre viveram juntos, mas a babá disse que José era apenas ‘como’ um pai, e que o verdadeiro pai era Deus. Nada conseguia concluir daí. Compreendia apenas isto: se era uma questão absolutamente discutível, então a relação entre pai e filho não poderia ser tão íntima como sempre imaginara que fosse.
O menino tinha uma certa suspeita dos sentimentos ambivalentes em relação ao pai, que são um fator subjacente a todas as religiões, e atacava a religião por causa do afrouxamento implícito nessa relação entre pai e filho. Naturalmente, em breve a sua oposição deixou de assumir a forma de dúvidas quanto à verdade da doutrina e, em vez disso, voltou-se diretamente contra a figura de Deus. Deus tratara o Filho áspera e cruelmente, mas não era melhor em relação aos homens; sacrificara o próprio Filho e ordenara a Abraão que fizesse o mesmo. Começou a temer Deus.
Se ele era Cristo, então o seu pai era Deus. Mas o Deus que a religião lhe impunha não era um verdadeiro substituto para o pai que amara e que não desejava lhe fosse roubado. O amor por esse pai deu-lhe agudeza crítica. Resistia a Deus com a finalidade de conseguir agarrar-se ao pai; e, ao agir assim, estava na verdade defendendo o velho pai contra o novo. Estava diante da parte penosa do processo de desligar-se do pai.
O antigo amor pelo pai, que se tornara manifesto no primeiro período, era, portanto, a fonte da sua energia na luta contra Deus e da sua agudeza ao criticar a religião. Por outro lado, porém, essa hostilidade para com o novo Deus não era tampouco uma reação original; tivera o protótipo num impulso hostil contra o pai, que passara a existir sob a influência do sonho de ansiedade, e era, no fundo, apenas uma revivescência desse impulso. As duas correntes opostas de sentimento, que iriam governar a totalidade da sua vida posterior, encontraram-se aqui na luta ambivalente quanto à questão religiosa. Seguiu-se, além do mais, que o que essa luta produziu em forma de sintomas (as idéias blasfemadoras, a compulsão que o dominava de pensar ‘Deus - merda’, ‘Deus - porco’) foram genuínos produtos de conciliação, como veremos na análise dessas idéias em conexão com seu erotismo anal.
Alguns outros sintomas obsessivos, de natureza menos típica, apontavam com igual certeza para o pai, mostrando ao mesmo tempo a ligação entre a neurose obsessiva e as ocorrências anteriores.
Uma parte do ritual piedoso, por meio do qual expiava eventualmente as suas blasfêmias, era respirar de maneira cerimoniosa em determinadas condições. Cada vez que fazia o sinal-da-cruz, obrigava-se a inspirar profundamente ou a expirar energicamente. Na língua do seu país, ‘respiração’ e ‘espírito’ são a mesma palavra, de modo que foi aí que entrou o Espírito Santo. Era obrigado a inspirar o Espírito Santo, ou a expirar os maus espíritos sobre os quais ouvira ou lera. Atribuía também a esses espíritos os pensamentos blasfemos pelos quais tinha que infligir a si mesmo tão pesadas penitências. Era também, contudo, obrigado a expirar quando via mendigos, ou aleijados, ou pessoas feias, velhas ou de aparência miserável; mas não conseguia pensar numa forma de ligar essa obsessão com os espíritos. O único motivo que podia dar a si mesmo era o de que agia assim para não ficar como essas pessoas.
Finalmente, em conexão com um sonho, a análise trouxe à tona a informação de que o ato de expirar diante da visão de pessoas aparentemente dignas de dó só começara após os seis anos e relacionava-se com o pai. Não via seu pai há muitos meses quando, um dia, sua mãe disse que ia levar as crianças à cidade e mostrar-lhes algo que muito lhes agradaria. Levou-os então a um sanatório e eles viram o pai outra vez; parecia doente e o menino sentiu muita pena dele. O pai era, assim, o protótipo de todos os aleijados, mendigos e gente miserável em cuja presença era obrigado a expirar; tal como o pai é o protótipo dos demônios que as pessoas vêem quando em estado de ansiedade, e das caricaturas desenhadas para escarnecer de alguém. Saberemos adiante (ver em [1] e [2]) que essa atitude de compaixão era derivada de um determinado detalhe da cena primária, detalhe que só se tornou operativo na neurose obsessiva nesse momento tardio.
Desse modo, sua determinação de não ficar como os aleijados (motivo pelo qual expirava na presença destes) era a antiga identificação com o pai transformada em negativo. Mas, ao fazê-lo, estava também imitando o pai no sentido positivo, pois a respiração pesada era uma imitação do ruído que ouvira, vindo do pai, durante a relação sexual. Derivava o Espírito Santo dessa manifestação da excitação sensual masculina. A repressão havia convertido essa respiração num mau espírito, o qual tinha também uma outra genealogia: ou seja, a malária [ver em [1]] de que estava sofrendo por ocasião da cena primária.
A rejeição desses maus espíritos correspondia a um inequívoco esforço de ascetismo, que também encontrou expressão em outras reações. Quando soube que Cristo, certa vez, havia lançado alguns espíritos maus numa manada de porcos, que depois se arremessaram de um precipício, pensou como sua irmã, numa época recuada da infância, rolara para a praia de um penhasco acima do ancoradouro. Ela também era um espírito mau, uma porca. Daí para ‘Deus - porco’ o caminho foi curto. O próprio pai demonstrara que não era mais que um escravo da sensualidade. Quando lhe contaram a história do primeiro homem, impressionou-se com a semelhança do seu destino com o de Adão. Em conversa com sua Nanya, manifestou uma hipócrita surpresa diante do fato de Adão ter permitido ser arrastado à desgraça por uma mulher, e prometeu-lhe jamais casar-se. A hostilidade em relação às mulheres, devida à sedução pela irmã, encontrou intensa expressão nesse período. E estava destinada a perturbá-lo muitas vezes na sua vida erótica posterior. A irmã veio a ser, para ele, a encarnação permanente da tentação e do pecado. Depois que se confessava, sentia-se puro e livre do pecado. Mas, depois, parecia-lhe que era como se a irmã estivesse esperando para arrastá-lo novamente ao pecado e, em questão de momentos, provocava uma briga com ela, o que o tornava outra vez pecaminoso. Assim, era obrigado a continuar reproduzindo, muitas e muitas vezes, o evento da sua sedução. Ademais, nunca declarou em suas confissões os pensamentos blasfemos, embora pesassem tanto em sua mente.
Fomos levados, sem querer, à consideração dos sintomas dos anos posteriores da neurose obsessiva; portanto, passaremos por cima do período intermediário e procederemos à descrição do seu término. Já sabemos que, além da sua força permanente, essa neurose passava por intensificações ocasionais: uma vez - embora o episódio, no momento, permaneça obscuro para nós -, por ocasião da morte de um menino que morava na mesma rua, com o qual conseguia identificar-se. Quando estava com dez anos, teve um tutor alemão, que em tempo obteve grande influência sobre ele. É muito instrutivo observar que toda a sua piedade estrita desapareceu, para não mais renascer, depois que percebeu e soube, através de conversas esclarecedoras com seu tutor, que este substituto paterno não dava qualquer importância às atividades pias, nem atribuía qualquer valor à verdade religiosa. Sua piedade sumiu junto com a dependência do pai, que foi então substituído por outro, mais sociável. Isso não aconteceu, no entanto, sem uma última centelha da neurose obsessiva; lembrava-se particularmente da obsessão de ter que pensar na Santíssima Trindade sempre que via três montinhos de excrementos juntos, na estrada. Na verdade, jamais cedia a idéias novas sem fazer uma última tentativa de se apegar àquilo que perdera valor para ele. Quando o tutor o desencorajou de fazer crueldades com os animaizinhos, ele, de fato, pôs um fim às suas malvadezas, mas não antes de ter mais uma vez cortado lagartas, para grande satisfação sua. Ainda se comportava da mesma maneira durante o tratamento psicanalítico, pois mostrava o hábito de produzir ‘reações negativas’ transitórias; toda vez que algo havia sido esclarecido de forma conclusiva, tentava contradizer o efeito por algum tempo, agravando o sintoma que havia sido elucidado. Via de regra, como sabemos, as crianças lidam com as proibições do mesmo modo. Quando são repreendidas por algo (por exemplo, por estarem fazendo um barulho insuportável), repetem-no uma vez mais depois da proibição, antes de parar. Dessa maneira, conseguem, ao mesmo tempo, parar aparentemente por vontade própria e desobedecer a proibição.
Sob a influência do tutor alemão, surgiu uma nova e melhor sublimação do sadismo do paciente, o qual, com a aproximação da puberdade, dominara o seu masoquismo. Entusiasmou-se por assuntos militares, por uniformes, armas e cavalos, usando-os para alimentar contínuos devaneios. Assim, sob a influência de um homem, libertara-se das suas atitudes passivas, encontrando-se, na época, em vias razoavelmente normais. Foi por efeito tardio da sua afeição pelo tutor, que o deixou pouco depois, que passou a preferir, em períodos posteriores de sua vida, as coisas alemãs (como, por exemplo, os médicos, os sanatórios, as mulheres) em vez daquelas que existiam na sua terra (representando o pai) - um fato que foi, incidentalmente, de grande vantagem para a transferência durante o tratamento.
Houve um outro sonho, que pertence ao período anterior à sua emancipação do tutor, e que menciono porque foi esquecido até surgir durante o tratamento. Viu-se a si próprio montando um cavalo e perseguido por uma gigantesca lagarta. Reconheceu nesse sonho uma alusão a outro, anterior, do período que precedeu o tutor, o qual havíamos interpretado muito tempo antes. Nesse sonho anterior ele viu o Diabo, vestido de preto e na postura vertical com a qual o lobo e o leão, por sua vez, o haviam aterrorizado tanto. Ele estava apontando, com o dedo estendido, para uma lesma colossal. O paciente adivinhara prontamente que esse Diabo era o Demônio de um conhecido poema, e que o próprio sonho era uma versão de uma gravura muito popular, que representava o Demônio numa cena de amor com uma jovem. A lesma estava no lugar da mulher, sendo um perfeito símbolo sexual feminino. Guiados pelo gesto de apontar do Diabo, em breve conseguimos dar ao sonho o significado que o paciente esperava que alguém lhe desse, os últimos detalhes de informação que ainda estavam faltando ao enigma da relação sexual, tal como o pai lhe dera os primeiros na cena primária, muito tempo atrás.
Em relação ao sonho posterior, no qual o símbolo feminino foi substituído pelo masculino, ele se lembrou de um evento particular, ocorrido pouco tempo antes do sonho. Certo dia, cavalgando pela granja, passou por um camponês que estava deitado, dormindo, com o filhinho ao lado. Este último acordou o pai e disse-lhe qualquer coisa, ao que o pai começou a injuriar o paciente e a persegui-lo, até que este se afastou às pressas. Houve ainda uma segunda lembrança, de acordo com a qual, na mesma granja, havia três árvores que eram muito brancas, todas cobertas de lagartas. Podemos ver que ele fugiu da compreensão da fantasia do filho deitado com o pai, e que fez aflorar as árvores brancas com a finalidade de fazer uma alusão ao sonho de ansiedade, dos lobos brancos sobre a nogueira. Era, assim, uma eclosão direta do pavor da atitude feminina em relação aos homens, contra a qual se protegera, de início, pela sublimação religiosa e iria em breve proteger-se, ainda mais eficazmente, pela sublimação militar [ver em [1]].
Seria, contudo, um grande equívoco supor que após a remoção dos sintomas obsessivos não ficaria qualquer efeito permanente da neurose obsessiva. O processo conduzira a uma vitória da fé piedosa sobre a rebeldia da pesquisa crítica, e tivera, como condição necessária, a repressão da atitude homossexual. Desvantagens duradouras resultaram de ambos os fatores. A sua atividade intelectual ficou seriamente prejudicada depois dessa primeira grande derrota. Não desenvolveu um amor pelo estudo, não mais mostrou a agudeza com a qual, com apenas cinco anos de idade, criticara e dissecara as doutrinas religiosas. A repressão do seu superpoderoso homossexualismo, consumada durante o sonho de ansiedade, reservou esse importante impulso para o inconsciente, manteve-o dirigido para o objetivo original e retirou-o de todas as sublimações às quais é suscetível, em outras circunstâncias. Por esse motivo o paciente era destituído de todos os interesses sociais que dão à vida um conteúdo. Somente quando, durante o tratamento analítico, se tornou possível liberar seu homossexualismo agrilhoado, é que esse estado de coisas mostrou alguma melhora; e foi uma experiência das mais notáveis verificar como (sem qualquer conselho direto do médico) cada fragmento da libido homossexual que era libertado procurava alguma aplicação na vida, alguma ligação com os grandes interesses da humanidade.

VII - EROTISMO ANAL E O COMPLEXO DE CASTRAÇÃO

Devo pedir ao leitor que tenha em mente o fato de que obtive este histórico de uma neurose infantil como um subproduto, por assim dizer, durante a análise de uma doença na idade madura. Fui, portanto, obrigado a reunir dados ainda mais fragmentários do que aqueles que habitualmente se encontram à nossa disposição para fins de síntese. Essa tarefa, que não é difícil em outros aspectos, depara com uma limitação natural quando se trata de uma questão de forçar uma estrutura que tem, por si, várias dimensões, sobre o plano descritivo bidimensional. Devo, portanto, contentar-me em expor partes fragmentárias, que o leitor pode reunir numa totalidade viva. A neurose obsessiva que foi descrita desenvolve-se, como se enfatizou repetidas vezes, com base numa constituição anal-sádica. Até agora, porém, discutimos apenas um dos dois principais fatores - o sadismo do paciente e as suas transformações. Tudo o que diz respeito ao seu erotismo anal foi intencionalmente deixado de lado, de modo que pudesse ser exposto e discutido nessa etapa posterior.
Há muito que os analistas concordam que os impulsos instintuais multifários compreendidos sob a denominação de erotismo anal desempenham um papel de extraordinária importância, que seria um tanto impossível superestimar, na elaboração da vida sexual e da atividade mental em geral. É ponto pacífico também o fato de que uma das mais importantes manifestações do erotismo transformado que deriva dessa fonte, pode ser encontrado no tratamento que se dá ao dinheiro, pois, no decorrer da vida, esse material precioso atrai para si o interesse psíquico que era originalmente próprio das fezes, o produto da zona anal. Estamos acostumados a relacionar o interesse pelo dinheiro, na medida em que é de caráter libidinal, e não racional, com o prazer excretório, e esperamos que as pessoas normais mantenham as suas relações com o dinheiro inteiramente livres de influências libidinais e as regulem de acordo com as exigências da realidade.
Em nosso paciente, na época da sua enfermidade de adulto, essas relações estavam perturbadas em grau particularmente grave e o fato não era um elemento a ser desconsiderado, em relação à sua falta de independência e à sua incapacidade de lidar com a vida. Ficara muito rico, graças a heranças do pai e do tio; era óbvio que dava grande importância a que o tomassem por rico e era suscetível nesse ponto, sentindo-se magoado se o subestimavam nesse aspecto. Mas não tinha idéia de quanto possuía, de qual era a sua despesa, e assim por diante. Era difícil dizer se devia ser chamado sovina ou perdulário. Comportava-se ora de uma forma, ora de outra, porém jamais de uma maneira que mostrasse qualquer intenção coerente. Determinadas características surpreendentes, que passarei a expor mais adiante, podiam levar a pessoa a considerá-lo um plutocrata insensível, que considerava a riqueza como a sua maior vantagem pessoal e que não permitia por um só momento que os interesses emocionais valessem mais que os pecuniários. Ainda assim, não avaliava as outras pessoas pelo dinheiro e, pelo contrário, mostrava-se em diversas ocasiões modesto, prestimoso e generoso. O dinheiro, na verdade, saíra do seu controle consciente e tinha, para ele, um significado bastante diferente.
Já mencionei antes (ver em [1]) que eu via com suspeitas o modo pelo qual ele se consolou pela perda da irmã, a qual se tornara a sua companheira mais chegada nos últimos anos de vida, com o pensamento de que não teria, então, que repartir com ela a herança dos pais. Contudo, o que era talvez ainda mais impressionante foi a calma com que conseguiu relatar isso, como se não compreendesse a aspereza de sentimentos que estava, dessa forma, confessando. É verdade que a análise reabilitou-o ao mostrar que a dor que sentira pela irmã submetera-se simplesmente a um deslocamento; mas, depois, tornou-se bastante inexplicável a razão pela qual tentara encontrar um substituto para sua irmã num aumento da fortuna.
Ele próprio mostrou-se desconcertado pelo seu comportamento em outro aspecto. Após a morte do pai, as posses deixadas foram divididas entre ele e sua mãe. A mãe administrava a propriedade e, como ele próprio admitiu, atendia as reivindicações pecuniárias do filho de modo irrepreensível e liberal. Mesmo assim, toda e qualquer conversa sobre assuntos de dinheiro entre os dois costumava acabar com as mais violentas reprimendas de sua parte, alegando que ela não o amava, que estava querendo economizar às suas custas e que provavelmente preferiria vê-lo morto a ter que deixá-lo assumir todo o controle sobre o dinheiro. A mãe costumava protestar, manifestando com lágrimas o seu desinteresse, e ele então ficava envergonhado de si mesmo e declarava que não pensava de fato nada disso a respeito dela. Entretanto, era certo que repetiria a mesma cena na primeira oportunidade.
Diversos incidentes, dos quais vou relatar dois, mostram que, durante muito tempo, antes da análise, as fezes haviam tido para ele o significado de dinheiro. Numa época em que os intestinos não se incluíam ainda na sua enfermidade, foi certa vez visitar um primo pobre numa cidade grande. Ao deixá-lo censurou-se a si mesmo por não dar apoio financeiro a esse parente e, imediatamente depois, sentiu o que foi ‘talvez a mais urgente necessidade de aliviar os intestinos que já experimentara na sua vida’. Dois anos mais tarde, fixou de fato uma anuidade a ser paga ao primo. Eis o outro caso: aos dezoito anos, quando se preparava para os exames finais no colégio, visitou um amigo e combinou com ele um plano, que parecia aconselhável por causa do pavor que ambos sentiam de fracassar nos exames. Decidira-se dar determinada quantia a um empregado do colégio e, dessa soma, a parte maior seria naturalmente a do paciente. No caminho para casa, pensava consigo que daria de bom grado ainda mais, só para ter certeza de que passaria, para estar seguro de que nada lhe aconteceria no exame - mas, antes que tivesse atingido a porta da sua própria casa, aconteceu-lhe realmente um acidente de outra natureza.
Durante a sua enfermidade de adulto, sofria de obstinadas perturbações da sua função intestinal, embora as diversas circunstâncias determinassem certa flutuação de intensidade. Quando iniciou o tratamento comigo, acostumara-se aos enemas, que lhe eram administrados por um enfermeiro; numa determinada época as evacuações espontâneas não ocorriam durante meses, a não ser que interviesse uma excitação súbita por algum motivo particular, em razão da qual a atividade normal dos intestinos era restabelecida por alguns dias. O tema principal das suas queixas era que, para ele, o mundo estava oculto por um véu, ou que ele estava separado do mundo por um véu. Esse véu só era rompido numa única ocasião - quando, depois de um enema, o conteúdo dos intestinos deixava o canal intestinal; então, sentia-se bem e normal outra vez.
O colega que recomendei ao paciente para um diagnóstico sobre a sua condição intestinal foi perspicaz o bastante para explicá-la como funcional, ou mesmo psiquicamente determinada, e abster-se de qualquer tratamento médico ativo. Ademais, nem um tratamento desses, nem uma dieta, teria qualquer utilidade. Durante os anos de tratamento analítico não houve evacuação intestinal espontânea - além das influências repentinas que mencionei. O paciente deixou-se convencer de que, se o órgão intratável recebesse tratamento mais intensivo, as coisas só ficariam piores, e contentava-se em provocar uma evacuação, uma ou duas vezes por semana, por meio de um enema ou de um purgativo.
Ao expor essas perturbações intestinais, dei mais espaço à enfermidade posterior do paciente do que havia planejado para este trabalho, o qual diz respeito à sua neurose infantil. Fi-lo assim por dois motivos; primeiro, porque os sintomas intestinais foram, com efeito, trazidos da neurose infantil com poucas alterações e, segundo, porque desempenharam um papel decisivo na conclusão do tratamento.
Sabemos como é importante a dúvida para o terapeuta que está analisando uma neurose obsessiva. É a arma mais poderosa do paciente, o expediente favorito da sua resistência. Essa mesma dúvida permitiu ao nosso paciente entrincheirar-se por trás de uma indiferença respeitosa, deixando que os esforços do tratamento passassem fora do seu alcance durante anos. Nada mudava e não havia maneira de convencê-lo. Por fim, reconheci a importância, para o que eu pretendia, da perturbação intestinal; representava o pequeno traço característico da histeria que se encontra regularmente na raiz de uma neurose obsessiva. Prometi ao paciente uma recuperação completa da sua atividade intestinal e, por meio dessa promessa, tornei manifesta a sua incredulidade. Tive então a satisfação de ver a sua dúvida murchar à medida em que, no decorrer do trabalho, seus intestinos começaram, como órgãos histericamente afetados, a ‘entrar na conversa’, e, em poucas semanas, recuperaram o seu funcionamento normal, após tão longo período de perturbações.
Volto agora à infância do paciente - a uma época na qual era impossível que as fezes pudessem ter tido para ele o significado do dinheiro.
Os distúrbios intestinais do paciente começaram muito cedo, na forma que é a mais freqüente e, para as crianças, a mais normal - ou seja, a incontinência. Estaremos certamente com a razão, no entanto, ao rejeitar uma explicação patológica dessas ocorrências prematuras e ao considerá-las apenas como uma evidência da intenção do paciente de não se deixar perturbar ou reprimir no prazer ligado à função da evacuação. Encontrava uma grande satisfação (o que estaria de acordo com a grosseria natural de muitas classes sociais, embora não se coadunasse com a sua) em gracejos e exibições anais, e esse prazer foi preservado por ele até depois do início da sua enfermidade posterior.
Durante o período da governanta inglesa, aconteceu muitas vezes que ele e sua Nanya tiveram que compartilhar o quarto com essa detestável senhora. A babá percebeu o fato de que, precisamente nessas noites, ele sujava a cama, embora em circunstâncias normais isso já tivesse deixado de acontecer há muito tempo. Ele não se mostrava de forma alguma envergonhado; era uma expressão de desafio contra a governanta.
Um ano depois (quando estava com quatro anos e meio), durante o período de ansiedade, aconteceu ter sujado as calças durante o dia. Ficou terrivelmente envergonhado e, enquanto o limpavam, queixou-se de que não poderia continuar a viver daquele jeito. De modo que, nesse intervalo de tempo, algo havia mudado; e, seguindo o seu lamento, chegamos aos vestígios desse algo. Ao dizer ‘não posso continuar a viver desse jeito’, estava repetindo as palavras de outra pessoa. Certa vez a mãe levara-o consigo enquanto se dirigia para a estação, com o médico que viera visitá-la. Durante a caminhada, ela lamentara as dores e as hemorragias, e proferira as mesmas palavras, ‘não posso continuar a viver deste jeito’, sem imaginar que a criança cuja mão estava segurando as guardaria na sua memória. Assim, o lamento (o qual, além do mais, ele iria repetir em inúmeras ocasiões durante a doença posterior) tinha o significado de uma identificação com a mãe.
Em breve apareceu em sua recordação o que, evidentemente, tanto no aspecto de data, quanto no de conteúdo, era o elemento intermediário de ligação que estava faltando entre os dois eventos. Certa vez, no início do período de ansiedade, aconteceu que a mãe, apreensiva, deu ordens para que se tomassem precauções para proteger as crianças de uma disenteria que aparecera nas imediações da granja. Ele fez perguntas sobre o que isso poderia ser; e, depois de saber que quando se tem disenteria aparece sangue nas fezes, ficou muito nervoso e declarou que havia sangue nas suas próprias fezes; estava com medo de morrer de disenteria, mas deixou-se convencer, por um exame, que se tinha enganado e que não havia necessidade de assustar-se. Podemos ver que, nesse pavor, ele estava tentando colocar em efeito uma identificação com a mãe, de cujas hemorragias ouvira falar durante a conversa com o médico. Na sua última tentativa de identificação (quando estava com quatro anos e meio), desistira de qualquer menção ao sangue; não mais compreendia a si mesmo, pois imaginava que estava com vergonha e não tinha consciência de que estava sendo sacudido por um pavor da morte, embora fosse inequivocamente revelado pelo seu lamento.
Por essa época sua mãe, sofrendo como estava de uma moléstia abdominal, mostrava-se em geral nervosa, consigo mesma e com as crianças; é muito provável que seu próprio nervosismo, além dos outros motivos, se fundamentasse numa identificação com a mãe.
Qual pode ter sido o significado dessa identificação com sua mãe?
Entre o uso impudente que fez da sua incontinência, quanto tinha três anos e meio, e o horror com que a considerou, aos quatro anos e meio, está o sonho com o qual se iniciou o seu período de ansiedade - o sonho que lhe deu uma compreensão preterida da cena que testemunhara, com um ano e meio (ver em [1]), e uma explicação do papel desempenhado pela mulher no ato sexual. É apenas outro passo para ligar a mudança da sua atitude em relação à defecação com essa mesma grande revulsão. Disenteria era, evidentemente, o nome que ele dava à doença da qual ouvira a mãe lamentar-se, e com a qual era impossível continuar a viver; não considerava a enfermidade da mãe como sendo abdominal, mas sim intestinal. Sob a influência da cena primária, chegou à conclusão de que a mãe ficara doente por causa daquilo que o pai lhe fizera; e seu medo de ter sangue nas fezes, de estar doente como a mãe, era a sua recusa a identificar-se com ela nesta cena sexual - a mesma recusa com a qual despertou do sonho. Mas o medo era também uma prova de que, na sua elaboração posterior da cena primária, colocara-se no lugar da mãe e invejara-lhe essa relação com o pai. O órgão pelo qual sua identificação com as mulheres, sua atitude homossexual passiva para com os homens, estava apta a expressar-se, era a zona anal. Os distúrbios na função dessa zona haviam adquirido o significado de impulsos femininos de ternura, preservados também no curso da sua enfermidade posterior.
Neste ponto devemos considerar uma objeção, cuja discussão pode contribuir em muito para o esclarecimento da aparente confusão de circunstâncias. Fomos levados a presumir que, durante o processo do sonho, o menino compreendeu que as mulheres são castradas, que em vez do órgão masculino elas têm uma ferida que serve para as relações sexuais e que essa castração é a condição necessária da feminilidade; fomos levados a supor que a ameaça dessa perda induziu-o a reprimir a sua atitude feminina em relação aos homens e que ele despertou do seu entusiasmo homossexual em estado de ansiedade. Agora: como pode essa compreensão das relações sexuais, esse reconhecimento da vagina, harmonizar-se com a escolha do intestino com o objetivo de identificação com as mulheres? Não são os sintomas intestinais baseados no que é provavelmente uma noção mais antiga e que, de qualquer forma, contradiz inteiramente o medo da castração - ou seja, a noção de que a relação sexual é feita pelo ânus?
Na verdade, essa contradição está presente; e os dois pontos de vista são completamente incoerentes entre si. A única questão é saber se precisam ser coerentes. Nosso espanto surge apenas porque somos sempre inclinados a tratar os processos mentais inconscientes como os conscientes e a esquecer as profundas diferenças existentes entre os dois sistemas psíquicos.
Quando o sonho do Natal, com a sua excitação e expectativa, evocou diante dele o quadro da relação sexual dos pais, como fora antes observado (ou construído) por ele, não pode haver dúvida de que a primeira visão da cena a aflorar foi a antiga, de acordo com a qual a parte do corpo feminino que recebeu o órgão masculino era o ânus. E, com efeito, que mais poderia ele ter suposto quando, com um ano e meio, foi espectador da cena? Mas, deu-se então o novo evento, que ocorreu quando tinha quatro anos de idade. O que havia aprendido, entretanto, as alusões, que ouvira, à castração, despertaram e lançaram uma dúvida sobre a ‘teoria cloacal’; fizeram-no perceber a diferença entre os sexos e o papel sexual desempenhado pela mulher. Nessa contingência, ele comportou-se como em geral as crianças se comportam quando lhes é fornecido um detalhe de informação não desejado - quer seja sexual ou de qualquer outra espécie. Rejeitou o que era novo (no nosso caso, de motivos ligados com o seu medo da castração) e agarrou-se rapidamente ao que era velho. Decidiu-se a favor do intestino e contra a vagina, tal como, por motivos semelhantes, tomou depois o partido do pai contra Deus. Repudiou a nova informação e apegou-se à velha teoria. Esta última deve ter-lhe proporcionado o material para a sua identificação com as mulheres, que surgiu depois, como um pavor da morte em relação com os intestinos, bem como para os seus primeiros escrúpulos religiosos, quanto à questão de saber se Cristo havia tido um traseiro, e assim por diante. Não é que sua nova compreensão ficasse sem efeito; muito pelo contrário. Desenvolveu um efeito extraordinariamente poderoso, pois tornou-se um motivo para manter todo o processo do sonho sob repressão e para excluí-lo de uma elaboração posterior na consciência. Mas, com isso, seu efeito exauriu-se; não teve influência sobre a decisão do problema sexual. Pode ter havido a possibilidade de que, a partir dessa época, o medo da castração tenha existido lado a lado com uma identificação com as mulheres, por meio do intestino, embora se deva admitir que isso envolve uma contradição. Era, contudo, apenas uma contradição lógica - o que não quer dizer muito. Pelo contrário, todo esse processo é característico do modo pelo qual o inconsciente opera. Uma repressão é algo muito diferente de uma rejeição.
Quando estudávamos a gênese da fobia aos lobos, seguimos o efeito dessa nova compreensão interna (insight) do ato sexual; mas, agora que estamos investigando as perturbações da função intestinal, encontramo-nos trabalhando com base na velha teoria cloacal. Os dois pontos de vista permanecem separados um do outro por um estádio de repressão. Sua atitude feminina em relação aos homens, que fora repudiada pelo ato de repressão, retraiu-se para os sintomas intestinais e expressou-se nos episódios de diarréia, prisão de ventre e dores intestinais, que eram tão freqüentes durante a infância do paciente. Suas fantasias sexuais posteriores, que se baseavam num conhecimento sexual correto, conseguiram, assim, expressar-se regressivamente como distúrbios intestinais. Mas não podemos compreendê-las até termos explicado as modificações que ocorreram no significado das fezes a partir dos primeiros anos da infância.
Já sugeri, num ponto anterior da minha história [ver em [1]], que uma parte do conteúdo da cena primária foi oculta. Estou agora em posição de fornecer essa parte que falta. A criança interrompeu finalmente a relação sexual dos pais fazendo cocô, o que lhe deu uma desculpa para gritar. Todas as considerações que antes levantei, ao expor o resto do conteúdo da mesma cena, aplicam-se igualmente às críticas a esse detalhe adicional. O paciente aceitou esse ato conclusivo quando acabei de construí-lo e pareceu confirmá-lo ao exibir ‘sintomas transitórios’. Um outro detalhe adicional que eu propusera, no sentido de que o pai se aborrecera com a interrupção e desabafara o seu mau humor zangando-se com ele, teve que ser abandonado. O material da análise não reagiu a esse complemento.
O detalhe adicional que expus agora não pode certamente ser colocado no mesmo nível do restante do conteúdo da cena. Não se trata de um problema de uma impressão exterior, que se deve esperar que reemerja numa série de indicações posteriores, mas de uma reação por parte da própria criança. Não faria diferença para a história, como um todo, se essa demonstração não houvesse ocorrido, ou se houvesse sido tomada a um período posterior e inserida no decurso da cena. Mas não pode haver dúvidas quanto à maneira pela qual a consideramos. É indício de um estado de excitação da zona anal (no sentido mais amplo). Em outros casos semelhantes, uma observação como esta de relações sexuais acabou com uma descarga de urina; um homem adulto, nas mesmas circunstâncias, teria uma ereção. O fato de que o nosso menino evacuou, como sinal da sua excitação sexual, deve ser considerado como uma característica da sua constituição sexual congênita. Assumiu imediatamente uma atitude passiva e demonstrou mais inclinação no sentido de uma subseqüente identificação com as mulheres do que com os homens.
Ao mesmo tempo, como qualquer outra criança, fez uso do conteúdo dos intestinos, em um dos seus significados mais antigos e mais primitivos. As fezes são a primeira dádiva da criança, o primeiro sacrifício em nome da sua afeição, uma parte do seu próprio corpo que está pronta a partilhar, mas apenas com alguém a quem ama. Usar as fezes como uma expressão de desafio, como o nosso paciente fez contra a governanta, aos três anos e meio, é simplesmente inverter esse significado anterior, de dádiva, ao seu negativo. O ‘grumus merdae‘ [monte de fezes] deixado pelos criminosos na cena do delito parece possuir ambos os significados: o de ofensa, e uma expressão regressiva de correção. Sempre é possível, quando foi atingido um estádio mais alto, fazer uso ainda do mais baixo, no seu sentido aviltado e negativo. A contrariedade é uma manifestação de repressão.
Num estádio posterior do desenvolvimento sexual, as fezes adquirem o significado de um bebê. Pois os bebês, como as fezes, nascem através do ânus. O significado de ‘dádiva’ das fezes admite prontamente essa transformação. É comum falar-se de um bebê como de uma ‘dádiva’. A expressão mais freqüente é a de que a mulher ‘deu’ ao homem um bebê; mas, no uso do inconsciente, é dada igual atenção justamente ao outro aspecto da relação, qual seja, ao fato de a mulher ter ‘recebido’ o bebê como uma dádiva do homem.
O significado de fezes como dinheiro sai, em outra direção, do significado de ‘dádiva’.
A significação mais profunda da primeira lembrança encobridora do nosso paciente, no sentido de que tivera o primeiro acesso de raiva por não lhe terem sido dados suficientes presentes de Natal, revela-se-nos agora. Aquilo de que estava sentindo falta era satisfação sexual, que ele tomara como sendo anal. Suas pesquisas sexuais chegaram à compreensão, durante o curso do sonho, daquilo para que haviam sido preparadas para descobrir antes do sonho, ou seja, que o ato sexual resolvia o problema da origem dos bebês. Mesmo antes do sonho, ele já não gostava de bebês. Uma vez, ao encontrar um passarinho ainda sem penas que havia caído do ninho, confundiu-o com um bebê humano e ficou horrorizado. A análise demonstrou que todos os pequenos animais, tais como as lagartas e os insetos, aos quais tanto maltratara, haviam tido, para ele, o significado de bebês. Sua posição em relação à irmã mais velha dera-lhe todas as oportunidades para refletir sobre a relação entre crianças mais novas e crianças mais velhas. A Nanya disse-lhe uma vez que a mãe gostava muito dele porque era o mais novo, e isso deu-lhe uma base para desejar que nenhuma outra criança, mais nova, viesse depois dele. Seu pavor a essa criança mais nova foi revivido sob a influência do sonho, que colocou diante dele a relação sexual dos pais.
Às correntes sexuais que já são por nós conhecidas, devemos, portanto, acrescentar uma outra, a qual, como as demais, partiu da cena primária reproduzida no sonho. Na sua identificação com as mulheres (isto é, com sua mãe) estava pronto a dar ao pai um bebê, e sentia ciúmes da mãe, que já o havia feito e talvez o fizesse outra vez.
Por via indireta, uma vez que tanto ‘dinheiro’ como ‘bebê’ têm o sentido de ‘dádiva’, o dinheiro pode assumir o significado de bebê e pode tornar-se, dessa maneira, o meio de expressar satisfação feminina (homossexual). Foi isso que ocorreu com o nosso paciente, quando - ele e a irmã estavam, na época, num sanatório alemão - viu o pai dar à irmã duas notas grandes. Em sua imaginação, sempre houvera suspeitas quanto às relações do pai com a irmã, e, ao ver a cena, seu ciúme despertou. Correu para a irmã tão logo ficaram a sós e exigiu uma parte do dinheiro com tanta veemência e com tais acusações, que a irmã, aos prantos, atirou-lhe na cara todo o dinheiro. O que o havia excitado não era simplesmente o dinheiro em si, mas, antes, o ‘bebê’ - satisfação sexual anal obtida do pai. E ele conseguiu consolar-se com isso quando, com o pai ainda vivo, a irmã morreu. A idéia revoltante que lhe ocorreu quando soube a notícia da sua morte [ver em [1]] na verdade não significava mais do que isto: ‘Agora sou o único filho. Agora o Pai terá que amar a mais, somente.’ Embora essa reflexão fosse, em si, perfeitamente capaz de tornar-se consciente, seu fundo homossexual ainda assim era tão intolerável, que foi possível fazê-lo aflorar, dissimulado na forma da mais sórdida avareza, como um grande alívio.
Também, de maneira semelhante, quando após a morte do pai ele censurava a mãe, injustificadamente, por querer enganá-lo com o dinheiro e por gostar mais do dinheiro do que dele [ver em [1] e seg.]. Os antigos ciúmes que sentia de sua mãe, por ter amado outra criança além dele, pela possibilidade de ter desejado outro filho depois dele, levaram-no a fazer acusações que ele próprio sabia serem injustificadas.
Essa análise do significado das fezes torna claro que os pensamentos obsessivos que o obrigaram a relacionar Deus com o excremento tinham um outro significado, para além da comparação injuriosa que ele próprio via nessas idéias. Eram, na verdade, autênticos produtos conciliativos, nos quais não deixava de desempenhar seu papel uma corrente afetiva de devoção, bem como uma corrente hostil de abuso. ‘Deus - merda’ era provavelmente a abreviação de uma oferenda que se ouve eventualmente mencionada de forma não abreviada. ‘Cagar em Deus’ (‘auf Gott scheissen’) ou ‘cagar algo para Deus’ (‘Gott etwas scheissen‘) também significa dar-lhe um bebê ou conseguir que ele dê um bebê a alguém. O velho significado de ‘dádiva’, na sua forma negativa e aviltada, e o significado de ‘bebê’, que se desenvolveu depois, a partir daquele, combinam-se um com o outro na frase obsessiva.
No segundo desses significados, uma certa ternura feminina encontra expressão: uma disponibilidade para renunciar à própria masculinidade, se, em troca disso, se possa ser amado como uma mulher. Temos aqui, então, precisamente o mesmo impulso para Deus, expressado, em palavras não ambíguas, no sistema delirante do paranóico Senatspräsident Schreber (Freud, 1911c, final da Seção I].
Quando, mais tarde, chego a descrever o esclarecimento final dos sintomas do meu paciente, o modo pelo qual a perturbação intestinal se colocara a serviço da corrente homossexual e dera expressão à sua atitude feminina em relação a seu pai, torna-se uma vez mais evidente. Entretanto, mencionaremos um outro significado de fezes, que nos levará a uma exposição do complexo de castração.
Uma vez que a coluna de fezes estimula a membrana mucosa erógena do intestino, desempenha o papel de um órgão ativo em relação a essa membrana; comporta-se exatamente como o pênis o faz na membrana mucosa vaginal e atua como se fosse o seu precursor durante a época cloacal. O ato de ceder as fezes em favor (pelo amor) de alguém, torna-se um protótipo de castração, é a primeira ocasião na qual um indivíduo partilha um pedaço do seu próprio corpo com a finalidade de ganhar os favores de qualquer outra pessoa a quem ame. De modo que o amor de uma pessoa pelo próprio pênis, que é em outros aspectos narcísico, não deixa de ter um elemento de erotismo anal. ‘Fezes’, ‘bebê’ e ‘pênis’ formam, assim, uma unidade, um conceito inconsciente (sit venia verbo) - a saber, o conceito de um ‘pequeno’ que se separa do corpo de alguém. Ao longo dessas trilhas de associação, a catexia libidinal pode tornar-se deslocada ou intensificada, por vias que são patologicamente importantes e que são reveladas pela análise.
Já tomamos conhecimento da atitude que o nosso paciente adotou, de início, em relação ao problema da castração. Rejeitava a castração e apegava-se à sua teoria de relação sexual pelo ânus. Quando digo que ele a havia rejeitado, o primeiro significado da frase é o de que ele não teria nada a ver com a castração, no sentido de havê-la reprimido. Isso não implicava, na verdade, em julgamento sobre a questão da sua existência, pois era com se não existisse. Tal atitude, no entanto, pode não ter sido a sua atitude final, mesmo na época da sua neurose infantil. Encontramos uma subseqüente evidência nítida de que tenha reconhecido a castração como um fato. Em relação a isso, uma vez mais, ele comportou-se da maneira que era tão característica dele, mas que torna difícil dar uma imagem clara dos seus processos mentais ou perceber o acesso a eles. Primeiro, resistiu e, depois, capitulou; mas a segunda reação não anulou a primeira. Afinal, seriam encontradas nele, lado a lado, duas correntes contrárias, das quais uma abominava a idéia de castração, ao passo que a outra estava preparada para aceitá-la e consolar-se com a feminilidade, como uma compensação. Para além de qualquer dúvida, porém, uma terceira corrente, a mais antiga e profunda, que nem sequer levantara ainda a questão da realidade da castração, era ainda capaz de entrar em atividade. Em outro trabalho relatei uma alucinação que este mesmo paciente teve aos cinco anos de idade e à qual preciso apenas acrescentar aqui um breve comentário.
‘“Quando eu tinha cinco anos, estava brincando no jardim perto da babá, fazendo cortes com meu canivete na casca de uma das nogueiras que aparecem em meu sonho também. De repente, para meu inexprimível terror, notei ter cortado fora o dedo mínimo da mão (direita ou esquerda?), de modo que ele se achava dependurado, preso apenas pela pele. Não senti dor, mas um grande medo. Não me atrevi a dizer nada à babá, que se encontrava a apenas alguns passos de distância, mas deixei-me cair sobre o assento mais próximo e lá fiquei sentado, incapaz de dirigir outro olhar ao meu dedo. Por fim, me acalmei, olhei para ele e vi que estava inteiramente ileso.”’
Depois de ter sido instruído com a história bíblica aos quatro anos, ele começou, como sabemos, a fazer o intenso esforço de pensamento que culminou com a sua piedade obsessiva. Podemos presumir, portanto, que essa alucinação pertence ao período no qual foi levado a reconhecer a realidade da castração e deve, talvez, ser considerada como o acontecimento que marca verdadeiramente esse passo. Mesmo a pequena correção [ver em [1]] feita pelo paciente não deixa de ter interesse. Se ele teve uma alucinação com a mesma experiência de horror que Tasso na Gerusalemme Liberata, conta do seu herói Tancredo, estaremos talvez justificados ao chegar à interpretação de que a árvore também significa uma mulher para o meu pequeno paciente. Estaria, então, desempenhando o papel do pai e relacionava as hemorragias da mãe, que lhe eram familiares, com a castração das mulheres, que ele agora reconhecia, - com a ‘ferida’.
Essa alucinação do dedo ferido foi instigada, conforme relatou mais tarde, pela história de uma conhecida sua, que havia nascido com seis dedos nos pés e tivera esse sexto dedo decepado, em cada pé, por um machado, imediatamente após o nascimento. As mulheres, então, não tinham pênis porque este lhes era cortado ao nascer. Dessa maneira, chegou, no período da neurose obsessiva, a aceitar o que já havia aprendido durante o sonho, mas ao mesmo tempo havia rejeitado, por meio de repressão. Deve também ter tomado conhecimento, durante as leituras e conversas sobre a história sagrada, da circuncisão ritual de Cristo e dos judeus em geral.
Não existe qualquer dúvida de que, por essa época, seu pai estava se convertendo na figura aterrorizadora que o ameaçava com a castração. O Deus cruel com o qual estava então lutando - que criava homens pecadores, apenas para puni-los depois, que sacrificava o próprio filho e os filhos dos homens -, esse Deus remeteu seu caráter de volta ao pai do paciente, embora, por outro lado, o menino estivesse ao mesmo tempo tentando defender seu pai contra o Deus. Nesse ponto o menino havia que ajustar-se a um padrão filogenético, e assim o fez, embora suas experiências pessoais possam não concordar com isso. Conquanto as ameaças ou sugestões de castração com que deparou tenham emanado de mulheres, esse fato não poderia retardar em muito o resultado final. Apesar de tudo, foi de seu pai que ele veio a temer, afinal, a castração. Nesse aspecto, a herança triunfou sobre a experiência acidental; na pré-história do homem, era indubitavelmente o pai que praticava a castração como um castigo, e que o suavizou, depois, na circuncisão. Quanto mais o paciente avançava na repressão à sensualidade durante o desenvolvimento da neurose obsessiva, tanto mais natural se deve ter tornado para ele atribuir essas más intenções a seu pai, que era o verdadeiro representante da atividade sensual.
A identificação que fez, de seu pai com o castrador, tornou-se importante como sendo a fonte de uma intensa hostilidade inconsciente contra ele (atingindo o nível de um desejo de morte) e de um sentimento de culpa que reagia contra essa hostilidade. Até este ponto, no entanto, ele estava se comportando normalmente - isto é, como todo neurótico que está possuído de um complexo de Édipo positivo. O mais surpreendente, contudo, é que mesmo contra isso havia uma contracorrente operando nele, a qual, pelo contrário, considerava o pai como aquele que havia sido castrado e que apelava, portanto, para a sua simpatia.
Quando analisei o seu cerimonial de respirar para fora sempre que via aleijados, mendigos e gente miserável, consegui mostrar que esse sintoma podia também remeter-se ao pai, a quem achou triste quando o visitou no sanatório [ver em [1]]. A análise tornou possível seguir essa trilha ainda mais remotamente. Num período muito precoce, provavelmente antes da sua sedução (com a idade de três anos e um quarto), estivera na granja um velho trabalhador diarista, cuja função era agora a de carregar água para a casa. Não podia falar, porque sua língua fora, ao que parece, cortada fora. (Era provavelmente um surdo-mudo.) O menino gostava muito desse velho e sentia uma profunda pena dele. Quando o velho morreu o menino procurou por ele no céu. Eis aí, então, o primeiro aleijado do qual se apiedou e, como foi mostrado pelo contexto e pelo ponto em que o episódio aflorou na análise, um indubitável substituto paterno.
Na análise esse homem foi associado com a recordação de outros servos de quem o paciente gostara e sobre os quais destacava o fato de que eram ou doentes ou judeus (o que implicava em circuncisão). Também o criado que o havia ajudado a limpar-se depois do seu acidente, aos quatro anos e meio [ver em [1]], era judeu e tuberculoso, e fora igualmente objeto de sua compaixão. Todas essas figuras pertencem ao período anterior à visita que fez ao pai no sanatório, isto é, antes da formação do sintoma; este deve, portanto, ter tido antes o sentido de repelir (por meio da expiração) qualquer identificação com o objeto da piedade do paciente. Então, de repente, em conexão com um sonho, a análise imergiu outra vez no período pré-histórico e induziu-o a afirmar que durante a cópula, na cena primária, ele observara o pênis desaparecer, que sentira pena do pai por causa disso e que se alegrara com o reaparecimento daquilo que achara que estava perdido. Ali estava, portanto, um impulso emocional recente, partindo uma vez mais da cena primária. Ademais, a origem narcísica da compaixão (que é confirmada pela própria palavra) revela-se aqui de forma inequívoca.

VIII - MATERIAL NOVO ORIUNDO DO PERÍODO PRIMITIVO - SOLUÇÃO

Acontece muitas vezes, na análise, que, à medida em que nos aproximamos do final, emergem novas recordações que até então se mantinham cuidadosamente ocultas. Às vezes, em determinada ocasião, é feita uma observação despretensiosa num tom de voz indiferente, como se se tratasse de algo supérfluo; então, em outra oportunidade, algo mais é acrescentado, o que começa a fazer com que o terapeuta fique de orelha em pé; e, por fim, este chega a reconhecer esse fragmento desprezado de uma lembrança como a chave para os mais importantes segredos que a neurose do paciente escondia.
No começo da análise, meu paciente havia-me contado uma lembrança do período no qual sua impertinência costumava transformar-se subitamente em ansiedade. Ele estava tentando apanhar uma grande e bonita borboleta, com listras amarelas e enormes asas que acabavam em ponta - na verdade, uma ‘rabo de andorinha’ [ver em [1]]. De repente, quando a borboleta havia pousado sobre uma flor, ele foi presa de um pavoroso medo da criatura e fugiu aos gritos.
Essa lembrança ocorria periodicamente durante a análise e pedia uma explicação, que, por muito tempo, não foi, porém, encontrada. Não obstante, era de supor, como fato lógico e natural, que um detalhe como este não se tivesse conservado em sua memória só por si, sendo, contudo, uma lembrança encobridora, representando algo de mais importância, a que estava, de alguma forma, ligada. Um dia, disse-me que, na sua língua, uma borboleta era chamada ‘babushka‘, ‘vovó’. Acrescentou que, de um modo geral, as borboletas pareciam-lhe ser como mulheres e meninas, e os besouros e lagartas como meninos. Desse modo, poucas dúvidas poderia haver quanto ao fato de que, nessa cena de ansiedade, tivesse despertado uma recordação de alguém do sexo feminino. Não vou esconder o fato de que, por essa época, apresentei a possibilidade de que as listras amarelas da borboleta o tivessem feito lembrar de listras semelhantes numa peça de roupa usada por alguma mulher. Só menciono isto como uma ilustração, para mostrar como habitualmente são inadequados os esforços construtivos do terapeuta para elucidar as questões que surgem, e quão injusto é atribuir os resultados da análise à imaginação e sugestões do médico.
Muitos meses depois, em relação a algo inteiramente diverso, o paciente observou que o abrir e fechar das asas da borboleta, enquanto estava pousada na flor, dera-lhe uma estranha sensação. Parecera-lhe, conforme contou, como uma mulher abrindo as pernas, e as pernas tomavam então a forma de um V romano, que, como sabemos, era a hora à qual, na infância e mesmo até a época do tratamento, costumava cair num estado mental depressivo [ver em [1]].
Era uma associação à qual eu jamais chegaria por mim mesmo, e que ganhavam importância a partir da consideração da natureza completamente infantil da seqüência de associações que revelava. A atenção das crianças, como notei com freqüência, é atraída muito mais prontamente por movimentos do que por formas em repouso; e as crianças fundamentam muitas vezes as associações numa similaridade de movimento que é desprezada ou negligenciada pelos adultos.
Depois disso, o pequeno problema foi uma vez mais deixado intacto por muito tempo; mas posso citar a simples suspeita de que as pontas ou projeções semelhantes a um bastão nas asas da borboleta podem ter tido o significado de símbolos genitais.
Certo dia emergiu, tímida e indistintamente, uma espécie de recordação de que, numa idade muito precoce, mesmo antes da época da babá, ele devia ter tido uma ama que gostava muito dele. O nome dela era o mesmo da sua mãe. Ele retribuía, sem dúvida, a sua afeição. Era, na verdade, um primeiro amor que se apagara no esquecimento. Concordamos, porém, que deve ter ocorrido algo que mais tarde se tornou importante.
Então, numa outra oportunidade, ele corrigiu essa recordação. Ela não poderia ter tido o mesmo nome de sua mãe; isso fora um equívoco de sua parte e mostrava, certamente, que em sua memória ela se fundira com a mãe. Seu verdadeiro nome, prosseguiu ele, ocorrera-lhe de maneira indireta. Pensara subitamente numa despensa, na primeira granja, na qual eram guardadas as frutas depois de colhidas, e em determinada espécie de pêra particularmente deliciosa - uma grande pêra com listras amarelas na casca. A palavra que designa ‘pêra’, na sua língua, é ‘grusha‘ e era este também o nome da ama.
Torna-se assim claro que, por trás da lembrança encobridora da caça à borboleta, estava oculta a lembrança da ama. As listras amarelas não eram, contudo, da sua roupa e sim da pera, cujo nome era igual ao dela. No entanto, qual era a origem da ansiedade que despertara quando a lembrança dela fora ativada? A resposta óbvia a essa pergunta pode ser a hipótese crua de que fora essa mulher que, quando era bebê, ele havia visto fazer os movimentos com as pernas, fixados em sua mente com o V romano - movimentos que permitiam acesso aos genitais. Poupamo-nos a uma teorização como essa e aguardamos mais material.
Pouco depois sobreveio a recordação de uma cena, incompleta, mas, na medida em que foi preservada, definida. Grusha estava ajoelhada no chão e, ao lado dela, estava uma vassoura curta, feita com um feixe de galhos finos; ele também lá estava e ela fazia-lhe uma reprimenda ou zangava-se com ele.
Os elementos que faltavam podia ser facilmente supridos por outras fontes. Durante os primeiros meses do tratamento, contara-me como se apaixonara de repente, de maneira compulsiva, por uma camponesa, da qual, aos dezoito anos, contraíra a causa que precipitou a sua enfermidade de adulto. Ao contar-me isso, demonstrara uma má vontade fora do comum de dizer-me o nome da jovem. Foi um exemplo inteiramente isolado de resistência, já que, excluindo esse episódio, obedecia sem reservas à regra fundamental da análise. Declarou, no entanto, que a razão de se mostrar tão envergonhado de mencioná-lo era por se tratar de um nome caracteristicamente camponês e que nenhuma jovem bem nascida poderia jamais chamar-se assim. Quando finalmente o nome surgiu, aconteceu ser Matrona, nome que tem sobre si uma auréola maternal. A vergonha era, evidentemente, deslocada. Não se envergonhava do fato de esses casos de amor serem invariavelmente com mulheres da mais humilde origem; envergonhava-se apenas do nome. Se acontecesse ter o caso com Matrona algo em comum com a cena de Grusha, então a vergonha teria que ser transferida de volta para esse episódio prematuro.
Ele dissera-me, de outra vez, que, quando tinha ouvido a história de John Huss, impressionara-se bastante e que a sua atenção fixara-se nos feixes de lenha que foram amontoados quando ele foi queimado na fogueira. Agora, sua simpatia por Huss criava uma suspeita perfeitamente definida em minha mente, pois surpreendi muitas vezes essas simpatia em pacientes jovens e sempre consegui explicá-la da mesma forma. Um desses pacientes chegou até a fazer uma versão dramatizada da carreira de Huss; começou a escrever a sua peça no dia em que perdeu o objeto pelo qual se apaixonara secretamente. Huss pereceu pelo fogo e (como outros que possuem a mesma qualificação) torna-se o herói de pessoas que já sofreram alguma vez de enurese. Meu paciente relacionava os feixes de lenha usados na execução de Huss com a vassoura ou feixe de galhos da ama.
Esse material ajustava-se espontaneamente e servia para preencher as lacunas na lembrança que o paciente tinha da cena com Grusha. Quando viu a moça varrendo o chão, urinou na sala e ela replicou, sem dúvida por brincadeira, com uma ameaça de castração.
Não sei se os meus leitores já adivinharam a razão por que dei um relato tão detalhado desse episódio da primitiva infância do paciente. O episódio fornece uma importante ligação entre a cena primária e o posterior amor compulsivo [ver em [1]] que veio a ser de significado tão decisivo na sua trajetória subseqüente, e ainda nos mostra uma condição da qual o seu apaixonar-se dependia e que elucida essa compulsão.
Quando viu a moça empenhada em esfregar o chão, ajoelhada, com as nádegas projetando-se e as costas em posição horizontal, deparava outra vez com a postura que a mãe havia assumido na cena da cópula. Para ele, a moça transformou-se em sua mãe, foi presa de excitação sexual devido à ativação dessa imagem; e, como o pai (cuja ação ele só pode ter considerado, na ocasião, como a de urinar), comportou-se de modo masculino em relação a ela. Seu ato de urinar no chão foi, na realidade, uma tentativa de sedução, e a moça respondeu a esse ato com uma ameaça de castração, exatamente como se tivesse compreendido o que ele queria dizer.
A compulsão que procedia da cena primária foi transferida para essa cena com Grusha e levada adiante por ela. A condição da qual dependia o seu apaixonar-se, contudo, passou por uma mudança que demonstrava a influência da segunda cena: foi transferida, da postura da mulher, para a ocupação na qual ela estava empenhada quando naquela postura. Isto era claro, por exemplo, no episódio de Matrona. Ele estava passando pela aldeia que fazia parte do que viria a ser a granja da família (a segunda) [ver em [1]], quando viu uma camponesa ajoelhada à beira do açude, lavando roupa. Apaixonou-se pela moça instantaneamente e com irresistível violência, embora não tivesse podido ainda nem sequer dar um olhar rápido ao seu rosto. Pela sua postura e ocupação, ela havia tomado, para ele, o lugar de Grusha. Podemos ver agora como foi que a vergonha, que se relacionava adequadamente ao conteúdo da cena com Grusha, pôde ligar-se ao nome de Matrona.
Um outro acesso de paixão, que data de poucos anos antes, mostra ainda mais claramente a influência compulsiva da cena de Grusha. Havia muito tempo sentia-se atraído por uma jovem camponesa, que era criada da casa, mas conseguia manter-se afastado dela. Um dia, quando a encontrou sozinha numa das dependências da casa, deixou-se subjugar pelo amor. Achou-a ajoelhada no chão, a esfregá-lo, com um balde e uma escova a seu lado - na verdade, exatamente como tinha visto a moça na sua infância.
Mesmo a sua escolha final de objeto, que desempenhou um papel tão importante em sua vida, mostra, pelos seus detalhes (embora não possam ser apresentados aqui), ter sido dependente da mesma condição, bem como ter sido uma ramificação da compulsão que, partindo da cena primária e prosseguindo na cena com Grusha, dominara sua escolha de amor. Já observei, em uma página anterior, que reconheço no paciente um empenho em aviltar o objeto do seu amor. Isso seria explicado como uma reação contra a pressão da irmã, que lhe era tão superior. Mas prometi ao mesmo tempo (ver em [1]) mostrar que esse motivo auto-afirmativo não era o único determinante, mas que ocultava um outro, mais profundo, baseado em motivos puramente eróticos. Foram estes trazidos à tona pela lembrança do paciente, da moça esfregando o assoalho - também fisicamente rebaixada, diga-se de passagem. Todos os seus objetos de amor posteriores foram substitutos dessa pessoa, a qual, acidentalmente, pela sua atitude, tornara-se o seu primeiro substituto materno. A primeira associação do paciente em relação ao problema do seu medo da borboleta pode ser, agora, com facilidade explicado retrospectivamente como uma alusão distante à cena primária (cinco horas). Ele confirmava a conexão entre a cena de Grusha e a ameaça de castração por um sonho particularmente engenhoso, que ele próprio conseguiu decifrar.
‘Tive um sonho’, disse ele, ‘em que um homem arrancava as asas de uma Espe.’ ‘Espe?’, perguntei, ‘o que quer você dizer com isto?’ ‘O senhor sabe; aquele inseto com listras amarelas no corpo, que dá uma picada. Isto deve ser uma alusão a Grusha, a pera de listras amarelas.’ Agora eu podia corrigi-lo: ‘Você quer dizer uma Wespe [vespa].’ ‘Chama-se Wespe? Na verdade eu achava que o nome era Espe.’ (Como tantas outras pessoas, ele usava as suas dificuldades com a língua estrangeira como uma forma de encobrir os atos sintomáticos.) ‘Mas Espe, então, sou eu mesmo: S.P.’ (eram as suas iniciais). A Espe era, é claro, uma Wespe mutilada. O sonho dizia claramente que ele estava se vingando de Grusha, por causa da sua ameaça de castração.
A ação do menino de dois anos e meio na cena com Grusha era o primeiro efeito da cena primária que chegava ao nosso conhecimento. Representa-o imitando o pai e mostra-nos uma tendência a um desenvolvimento numa direção que mereceria depois a denominação de masculina. A sedução levou-o à passividade - para a qual, em todo caso, o caminho estava preparado pelo seu comportamento ao testemunhar a relação sexual dos pais.
Neste ponto devo voltar momentaneamente ao histórico do tratamento. De vez que a cena de Grusha fora assimilada - a primeira experiência da qual podia realmente lembrar-se, e da qual se lembrara sem quaisquer conjecturas ou intervenção de minha parte -, o problema do tratamento tinha toda a aparência de estar resolvido. A partir daquele momento não houve mais resistência; tudo o que restava fazer era coletar e coordenar. A velha teoria do trauma das neuroses, que foi, afinal de contas, construída sobre impressões obtidas da prática psicanalítica, de repente viera outra vez para o primeiro plano. Por interesse crítico, fiz mais uma tentativa para impor ao paciente uma outra visão da sua história, que poderia adequar-se mais a um sóbrio senso comum. Era verdade que não podia haver dúvidas quanto à cena com Grusha, mas, sugeri, em si aquela cena nada significava; ela havia sido enfatizada ex post facto por uma regressão das circunstâncias da sua escolha objetal, que, como resultado da sua intenção de rebaixar, fora desviada da irmã para as criadas. Por outro lado, a observação que fizera do coito, argumentei, era uma fantasia dos anos posteriores; seu núcleo histórico pode ter sido talvez a observação, pelo paciente, da administração de um inocente enema. Alguns dos meus leitores inclinar-se-ão, possivelmente, a pensar que, com hipóteses como estas, eu estava começando, pela primeira vez, a aproximar-me da compreensão do caso; mas o paciente olhou para mim sem nada entender e com um certo desdém quando coloquei diante dele essa opinião, e jamais reagiu novamente a ela. Já afirmei meus próprios argumentos contra qualquer racionalização assim, no ponto apropriado da exposição. [Seção V, acima.]
[ Assim, a cena de Grusha, ao explicar as condições que governavam a escolha objetal do paciente - condições que tiveram importância decisiva em sua vida -, impede que superestimemos o significado da sua intenção de rebaixar as mulheres. Contudo, faz mais do que isso. Propicia-me uma justificativa por haver recusado, numa passagem anterior (ver em [1] e [1]), adotar sem hesitação, como única explicação sustentável, a opinião de que a cena primária derivada de uma observação de animais, feita pouco antes do sonho. A cena de Grusha emergiu espontaneamente na memória do paciente, e não por meio de um esforço meu. Seu medo da borboleta listrada de amarelo, que se remetia de volta àquela cena, provava que a cena tivera um conteúdo significativo, ou que ele havia conseguido, posteriormente, ligar essa significação ao seu conteúdo. Por meio das associações que a acompanharam e das inferências que se lhe seguiram, tornou-se possível suprir com segurança esse elemento significativo que estava faltando na lembrança do paciente. Pareceu, então, que seu medo da borboleta era, em todos os aspectos, análogo ao medo do lobo; em ambos os casos era um medo da castração, que se referia, para começar, à pessoa que primeiro proferira a ameaça de castração, mas foi depois transposta para outra pessoa, a quem se destinava a ligar-se, de acordo com o precedente filogenético. A cena com Grusha ocorre quando o paciente tinha dois anos e meio, mas o episódio de ansiedade com a borboleta amarela foi certamente posterior ao sonho de ansiedade. Era fácil entender como a tardia compreensão, por parte do paciente, da possibilidade de castração fizera aflorar retrospectivamente a ansiedade na cena com Grusha. Mas aquela cena, em si, nada continha de objetável ou improvável; pelo contrário, consistia inteiramente de detalhes corriqueiros, que não davam margem a ceticismo. Nela não havia nada que pudesse levar a atribuir-lhe a origem à imaginação da criança; tal suposição, na verdade, dificilmente parecia possível.
A questão que se coloca agora é saber se temos justificativa para considerar o fato de que o menino urinou enquanto olhava para a moça, de joelhos. esfregando o chão, como prova de excitação sexual de sua parte. Se assim foi, a excitação seria uma evidência da influência de uma impressão anterior, que poderia igualmente ter sido a ocorrência real da cena primária ou uma observação de animais, feita antes dos dois anos e meio. Ou iremos nós concluir que a situação, no que diz respeito a Grusha, era inteiramente inocente, que o fato de o menino esvaziar a bexiga foi puramente acidental e que não foi senão depois que toda a cena se tornou sexualizada em sua lembrança, após haver ele reconhecido a importância de situações semelhantes?
Acerca desses problemas não posso arriscar uma decisão. Devo confessar, contudo, que considero o caso de tal forma importante para o crédito da psicanálise, que bastaria o fato de haver levantado questões como esta. Não obstante, não posso negar que a cena com Grusha, o papel que representou na análise e os efeitos que se lhe seguiram na vida do paciente podem ser mais completa e naturalmente explicados se consideramos que a cena primária, que pode em outros casos ser uma fantasia, era uma realidade no caso presente. Afinal de contas, nada há de impossível nela; e a hipótese da sua realidade é inteiramente compatível com a ação incitante das observações de animais, que são indicadas pelos cães pastores na imagem do sonho.
Dessa conclusão insatisfatória, voltar-me-ei agora para uma consideração do problema, ensaiada em minhas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise [Conferência XXIII]. Devia ficar satisfeito em saber se a cena primária, no presente caso, foi uma fantasia ou uma experiência real; mas, levando em conta outros casos semelhantes, devo admitir que a resposta a essa pergunta não é, na verdade, uma questão de muita importância. Essas cenas de observação das relações sexuais entre os pais, de ser seduzido na infância e de ser ameaçado com a castração são inquestionavelmente, um dote herdado, uma herança filogenética, mas podem também facilmente ser adquiridas pela experiência pessoal. Com meu paciente, a sedução pela irmã mais velha foi uma realidade indiscutível; por que não deveria também ser verdadeira a sua observação da cópula dos pais?
Tudo o que encontramos na pré-história das neuroses é que a criança lança mão dessa experiência filogenética quando sua própria experiência lhe falha. Ela preenche as lacunas da verdade individual com a verdade pré-histórica; substitui as ocorrências da sua própria vida por ocorrências na vida dos seus ancestrais. Concordo plenamente com Jung ao reconhecer a existência dessa herança filogenética; mas considero um erro metodológico agarrar-se a uma explicação filogenética antes de esgotar as possibilidades ontogenéticas. Não vejo razão para discutir obstinadamente a importância da pré-história infantil, ao mesmo tempo reconhecendo livremente a importância da pré-história ancestral. Nem posso omitir o fato de que os motivos filogenéticos e os próprios produtos permanecem necessitando de elucidação, e que, em um bom número de exemplos, esse esclarecimento é proporcionado por fatores da infância do indivíduo. E, finalmente, não me surpreendo se aquilo que foi originalmente produzido por determinadas circunstâncias, em tempos pré-históricos, e foi depois transmitido na forma de uma predisposição à sua reaquisição, reemergisse uma vez mais, desde que persistissem as mesmas circunstâncias, como um evento concreto na experiência do indivíduo.]
Também se deve encontrar espaço, no intervalo entre a cena primária e a sedução (da idade de um ano e meio à de três e um quarto), para o mudo, o carregador de água [[1]]. Ele serviu ao paciente como substituto do pai, tal como Grusha lhe serviu de substituto da mãe. Não acho que haja justificativa para considerar isso como exemplo da intenção de rebaixar, muito embora seja verdade que os pais chegaram ambos a ser representados por criados. Uma criança não leva em consideração as distinções sociais, que para ela têm ainda pouco significado; e nivela as pessoas de classe inferior com os pais, se essas pessoas a amam como aqueles o fazem. Como também a intenção de rebaixar não é responsável pela substituição de animais pelos pais do menino, pois as crianças estão longe de assumir uma visão depreciativa dos animais. Tios e tias são usados como substitutos dos pais sem qualquer consideração da questão de rebaixamento, e isto foi, na verdade, realizado pelo nosso paciente, como o demonstraram muitas das suas recordações.
Também pertence a esse período uma fase, obscuramente recordada, na qual nada conseguia comer, a não ser coisas doces, até que as conseqüências se fizeram sentir em seu estado de saúde. Contaram-lhe sobre um dos seus tios, que do mesmo modo se havia recusado a comer e definhara até a morte, quando era ainda jovem. Foi também informado de que ele próprio, aos três meses de idade, estivera seriamente doente (com pneumonia?), que a mortalha já estava pronta para ele. Dessa maneira conseguiram alarmá-lo, de modo que começou outra vez a comer; e nos anos posteriores da sua infância chegou mesmo a exagerar no cumprimento desse dever, como que para resguardar-se contra a ameaça da morte. O medo da morte, que nessa ocasião foi evocado para sua própria proteção, reapareceu mais tarde, quando a mãe o advertiu do perigo da disenteria [[1]]. Mais tarde ainda, esse medo provocou um ataque da sua neurose obsessiva ([1]). Tentaremos, adiante [[1]], penetrar em suas origens e significados.
Estou inclinado à opinião de que essa perturbação do apetite deva ser considerada como a primeira das doenças neuróticas do paciente. Se assim foi, o distúrbio no apetite, a fobia aos lobos e a devoção obsessiva constituiriam a série completa de perturbações infantis que estabeleceu a predisposição para o seu colapso neurótico, após haver passado a puberdade. Objetar-se-á que poucas crianças escapam a tais perturbações como uma perda temporária de apetite ou uma fobia animal. Contudo, é exatamente esse argumento que eu desejaria. Estou pronto a afirmar que toda neurose em um adulto é construída sobre uma neurose que ocorreu em sua infância, mas que não foi grave o bastante para chamar a atenção e ser reconhecida como tal. Essa objeção serve apenas para enfatizar a importância teórica do papel que as neuroses infantis desempenhariam, no nosso ponto de vista, nos distúrbios posteriores que tratamos como neuroses e procuramos atribuir inteiramente aos efeitos da vida adulta. Se o nosso paciente não houvesse sofrido de uma obsessiva devoção piedosa, que se juntou à perturbação no apetite e à fobia animal, sua história não teria sido perceptivelmente diferente da de outras crianças, e estaríamos empobrecidos pela perda de precioso material, que pode nos prevenir contra certos erros plausíveis.
A análise seria insatisfatória se deixasse de explicar a frase usada pelo paciente para resumir os problemas dos quais se queixava. O mundo, disse ele, estava oculto dele por um véu [[1]] ; e nossa preparação psicanalítica proíbe-nos presumir que essas palavras possam não ter significado ou terem sido escolhidas ao acaso. É estranho dizer que o véu só foi rasgado numa situação: no momento em que, como resultado de um enema, uma evacuação intestinal passou pelo seu ânus. Sentiu-se, então, bem outra vez e, por um período muito curto, viu o mundo claramente. A interpretação desse ‘véu’ progrediu com tanta dificuldade quanto a que encontramos no esclarecimento do medo que teve da borboleta. Nem ele se manteve apegado ao véu. Este tornou-se ainda mais alusivo, como um sentimento de crespúsculo, de ‘ténèbres‘ e de outras coisas impalpáveis.
Não foi senão pouco antes de concluir o tratamento que se lembrou de que lhe haviam dito que nascera com um âmnio. Por esse motivo, sempre se considerara uma criança especial, com sorte, a quem nenhuma desgraça podia sobrevir. Não perdeu essa convicção até que foi forçado a compreender que a sua infecção gonorréica constituía um sério dano para o seu corpo. O golpe foi demais para o seu narcisismo e ele desmoronou. Pode-se dizer que, ao fazê-lo, estava repetindo um mecanismo que já antes colocara em ação. Porque sua fobia de lobos irrompera quando se achou diante do fato de que a castração era algo possível; e ele classificou claramente a gonorréia como castração.
Assim, o âmnio era o véu que o escondia do mundo e que escondia o mundo dele. A queixa que fez era, na realidade, uma fantasia plena de desejos, realizada: mostrava-o outra vez de volta no útero e era, na verdade, uma fantasia plena de desejos de fugir do mundo. Pode traduzir-se assim: ‘A vida torna-me tão infeliz! Tenho que voltar para dentro do útero!’
Qual, porém, pode ter sido o significado do fato de que esse véu, que agora era simbólico mas que já fora real, foi rasgado no momento em que aliviou os intestinos após um enema, e que, nessas condições, a enfermidade abandonou-o? O contexto possibilita-nos responder. Se esse véu de nascença foi rompido, ele então viu o mundo e renasceu. O excremento era a criança, como que nascida uma segunda vez, para uma vida mais feliz. Temos aqui, portanto, a fantasia do renascimento, para a qual Jung chamou recentemente a atenção e à qual atribuiu uma posição dominante na vida imaginativa dos neuróticos.
Tudo isso estaria muito bem, se fosse a história completa. Mas determinados detalhes da situação, bem como a consideração devida pela relação entre ela e a história da vida deste paciente em particular, compelem-nos a levar adiante a interpretação. A condição necessária do seu renascimento era a de que um homem lhe administrasse um enema. (Só mais tarde foi levado pela necessidade a substituir ele próprio esse homem.) Isso só pode ter significado que ele se havia identificado com a mãe, que o homem estava agindo como o pai e que o enema estava repetindo o ato da cópula, como fruto da qual o bebê-excremento (que era uma vez mais ele próprio) nasceria. A fantasia do renascimento era, portanto, estreitamente ligada à condição necessária de obter de um homem satisfação sexual. De tal modo que a tradução agora é a que se segue: apenas na condição de tomar o lugar da mulher, substituindo ele próprio sua mãe e, assim, deixar-se satisfazer sexualmente pelo pai e dar-lhe um filho - só nessas condições a doença o deixaria. Aqui, portanto, a fantasia do renascimento era simplesmente uma versão mutilada e censurada da fantasia homossexual plena de desejos.
Se observarmos a questão mais de perto, não podemos deixar de assinalar que, nas condições que estabelecera para a sua recuperação, o paciente estava simplesmente repetindo a situação à época da cena primária. Naquele momento, quisera substituir a mãe; e, como há muito presumimos, foi ele próprio que, na cena em questão, produziu o bebê-excremento. Permanecia ainda fixado, como por um feitiço, à cena que teve um efeito tão decisivo na sua vida sexual, e cujo retorno, na noite do sonho, trouxe o início da sua doença. O rompimento do véu era análogo à abertura dos seus olhos e à abertura da janela. A cena primária transformara-se na condição necessária para a sua recuperação.
É fácil fazer uma afirmação unificada daquilo que era expressado, por um lado, pela queixa que fez e, por outro lado, pela condição única e excepcional sob a qual a queixa não mais se confirmava e, assim, tornar claro todo o significado que subjazia aos dois fatores: desejava poder estar de volta ao útero, não simplesmente para que então pudesse renascer, mas também com a finalidade de, ali, poder copular com o pai, obter dele satisfação sexual e dar-lhe uma criança.
O desejo de nascer do pai (como ele acreditara, no início, que fosse o caso), o desejo de ser sexualmente satisfeito pelo pai, o desejo de presenteá-lo com uma criança - e tudo isso ao preço da sua própria masculinidade, expresso na linguagem do erotismo anal -, esses desejos completam o círculo da sua fixação no pai. Neles o homossexualismo encontrou a sua mais nova e íntima expressão.
Este exemplo, creio, é esclarecedor do significado e da origem da fantasia de estar no útero, bem como da do renascimento. A primeira, a fantasia do útero, origina-se com freqüência (como no presente caso) de uma ligação com o pai. Há um desejo de estar dentro do útero da mãe para substituí-la durante as relações sexuais - para tomar o lugar dela em relação ao pai. A fantasia do renascimento, por outro lado, e quase sempre, com toda a probabilidade, um substituto abrandado (um eufemismo, poder-se-ia dizer) para a fantasia da relação incestuosa com a mãe; para utilizar uma expressão de Silberer, é uma expressão anagógica dessa fantasia. Há um desejo de voltar a uma situação na qual a pessoa estava nos genitais de sua mãe; e, em relação a isso, o homem identifica-se com seu próprio pênis e usa-o para representar-se. Dessa forma, as duas fantasias revelam-se como contrapartida uma da outra: dão expressão, conforme a atitude do sujeito seja feminina ou masculina, ao desejo de relacionamento sexual com o pai ou com a mãe. Não podemos afastar a possibilidade de que, na queixa feita pelo nosso paciente e na condição necessária estabelecida para a sua recuperação, as duas fantasias, ou seja, os dois desejos incestuosos, estejam unidas.
Farei uma tentativa final de reinterpretar as últimas descobertas desta análise de acordo com o esquema dos meus oponentes. O paciente lamentava sua fuga do mundo numa típica fantasia de estar no útero e via sua recuperação como um renascimento tipicamente concebido. De acordo com o lado predominante da sua disposição, expressava este último em sintomas anais. Em seguida forjava, sobre o modelo da sua fantasia anal de renascimento, uma cena da infância que repetia os seus desejos numa forma simbólico-arcaica de expressão. Seus sintomas eram, então, amarrados, como se houvessem sido originados por uma cena primária dessa natureza. Era forçado a embarcar nesse longo percurso regressivo, ou porque se tivesse levantado contra alguma incumbência na vida, a qual era preguiçoso demais para cumprir, ou porque tivesse todos os motivos para estar cônscio da sua própria inferioridade e pensasse que podia melhor proteger-se contra o fato de ser desprezado elaborando dispositivos como estes.
Tudo isso seria ótimo, se ao menos o coitado não tivesse tido um sonho quando não tinha mais de quatro anos de idade, sonho que assinalou o princípio da sua neurose, que foi instigado pela história, que o avô lhe contou, do alfaiate e do lobo, cuja interpretação necessita da hipótese dessa cena primária. Todo o alívio que as teorias de Jung e Adler procuram proporcionar, fracassam diante de fatos desprezíveis mas indiscutíveis como estes. Como as coisas se apresentam, parece-me mais provável que a fantasia do renascimento seja um derivativo da cena primária, do que, ao contrário, a cena primária seja um reflexo da fantasia do renascimento. E podem talvez supor, também, que o paciente, apenas quatro anos após o seu nascimento, seria possivelmente jovem demais para já estar desejando nascer outra vez. Mas não, devo retirar esse último argumento, pois minhas próprias observações demonstram que temos subestimado os poderes das crianças e que não existe conhecimento que não se lhes possa creditar.

IX - RECAPITULAÇÃO E PROBLEMAS

Não sei se o leitor deste relato de uma análise terá conseguido formar um quadro claro da origem e do desenvolvimento da doença do paciente. Ao contrário, receio que isto não tenha acontecido. Mas, embora em outras ocasiões tenha dito muito pouco em favor da minha capacidade na arte de expor, na presente oportunidade gostaria de alegar circunstâncias atenuantes. A descrição de fases tão primitivas e de estratos tão profundos da vida mental era uma tarefa nunca antes empreendida; e é melhor desempenhar mal essa incumbência do que fugir diante dela - procedimento este que, além do mais (ou assim nos dizem), envolveria o covarde em riscos de certa natureza. Prefiro, portanto, arriscar-me com audácia e mostrar que não me permiti ser detido por um sentimento da minha própria inferioridade.
O próprio caso não era particularmente favorável. A vantagem de haver uma quantidade de informações acerca da infância do paciente (vantagem que se tornou possível pelo fato de que a criança podia ser estudada por intermédio do adulto) teve que ser conquistada às custas de uma terrível desarticulação da análise e de a exposição desta mostrar as correspondentes lacunas. As peculiaridades pessoais do paciente e um caráter nacional que nos era estranho, tornaram laboriosa a tarefa de perceber o acesso à sua mente. O contraste entre a personalidade agradável e afável do paciente, sua aguda inteligência e suas boas intenções, por um lado, e sua vida instintual completamente desenfreada, por outro, necessitava de um processo excessivamente longo de educação preparatória, e isso tornou a perspectiva geral mais difícil. Mas o próprio paciente não tem culpa desse aspecto do caso, que colocava os mais graves obstáculos no caminho de qualquer descrição. Na psicologia de adultos, atingimos felizmente o ponto de conseguir dividir os processos mentais em conscientes e inconscientes e de estarmos aptos a dar uma descrição clara de ambos. Com as crianças, essa distinção deixa-nos quase totalmente desamparados. Muitas vezes é embaraçoso decidir o que se escolheria denominar consciente e o que chamar de inconsciente. Os processos que se tornaram dominantes e que devem, a partir do comportamento subseqüente, equivaler aos processos conscientes, não foram, no entanto, conscientes na criança. É fácil compreender por quê. Nas crianças, o consciente não adquiriu ainda todas as suas características; está ainda em processo de desenvolvimento e ainda não possui plenamente a capacidade de transpor-se para imagens verbais. Somos constantemente culpados de fazer confusão entre o fenômeno de emergência como uma percepção na consciência e o fato de pertencer a um hipotético sistema psíquico ao qual devemos atribuir algum nome convencional, mas que, de fato, chamamos também ‘consciência’ (o sistema Cs.) Essa confusão não prejudica quando lidamos com a descrição psicológica de um adulto, mas torna-se enganosa quando se trata da descrição de uma criança. Nem seria de muita ajuda introduzir aqui o ‘pré-consciente’, pois o pré-consciente de uma criança pode, exatamente da mesma maneira, deixar de coincidir com o de um adulto. Devemo-nos dar por satisfeitos, portanto, em haver reconhecido claramente a obscuridade.
É óbvio que um caso como o que está descrito nestas páginas pode transformar-se num pretexto para pôr em discussão todas as descobertas e problemas da psicanálise. Isso, contudo, seria um trabalho infindável. Deve-se reconhecer que nem tudo se pode aprender a partir de um único caso e que nem tudo pode ser resolvido através dele; devemo-nos contentar em explorar tudo aquilo que porventura se mostre de forma mais clara. Existem, em qualquer caso, limites estreitos para aquilo que a psicanálise foi chamada a explicar. Pois, ao passo que é da sua alçada explicar os sintomas revelando a sua origem, não o é explicar, mas simplesmente descrever, os mecanismos psíquicos e os processos instintuais aos quais a pessoa é desse modo conduzida. Para derivar novas generalizações do que foi, assim, estabelecido em relação aos mecanismos e aos instintos, seria essencial ter à disposição numerosos casos tão profunda e inteiramente analisados como este. Mas isso é algo que não se pode conseguir com facilidade, e cada um deles requer anos de trabalho. Assim, qualquer progresso nessas esferas do conhecimento deve necessariamente ser lento. Não há dúvida de que constitui uma grande tentação contentar-se em ‘arranhar’ a superfície mental de uma série de pessoas e substituir o que não foi feito pela especulação, feita sob o patrocínio de uma ou outra escola filosófica. Pode-se aduzir também requisitos práticos em favor desse procedimento; mas nenhum substituto pode satisfazer os requisitos da ciência.
Tentarei agora esboçar uma visão sintética do desenvolvimento sexual do meu paciente, a começar das primeiras indicações. A primeira que sabemos é a do distúrbio no apetite [ver em [1]], pois, levando em conta outras observações, estou inclinado, embora com as devidas reservas, a considerá-lo como resultado de algum processo na esfera da sexualidade. Tenho sido levado a considerar como a primeira organização sexual reconhecível a assim chamada fase ‘oral’ ou ‘canibalesca’, durante a qual predomina ainda a ligação original entre a excitação sexual e o instinto nutritivo. Não é de se esperar que devam ser descobertas manifestações diretas dessa fase, mas apenas indícios dela, onde quer que se tenha estabelecido perturbações. A diminuição do instinto nutritivo (embora possa certamente ter outras causas) chama atenção para uma deficiência, por parte do organismo, no domínio da excitação sexual. Nessa fase o objetivo sexual só pode ser o canibalismo, o propósito de devorar; no caso do nosso paciente, surge através da regressão de um estádio mais elevado, na forma de um medo de ‘ser comido pelo lobo’. Na verdade, fomos obrigados a traduzi-lo para um medo de ser copulado pelo pai. É sabido que existe uma neurose nas meninas que ocorre numa idade muito posterior, na época da puberdade ou pouco depois, e que exprime a aversão à sexualidade por meio da anorexia. Essa neurose terá que ser examinada em conexão com a fase oral da vida sexual. O propósito erótico da organização oral aparece também no auge do paroxismo de um amante (em tais frases como ‘eu poderia devorá-la com amor’) e em relações afetivas com crianças, quando a pessoa adulta finge ser ela própria uma criança. Em outra passagem exprimi minha suspeita de que o pai do nosso paciente costumava ceder ao ‘abuso afetivo’, e pode ter brincado de lobo ou de cão com o menino, ameaçando, por brincadeira, engoli-lo (ver em [1]). O paciente confirmava essa suspeita pelo curioso comportamento que mostrava na transferência. Sempre que, assustado pelas dificuldades do tratamento, recuava para a transferência, costumava ameaçar-me dizendo que ia devorar-me e, depois com toda espécie de maus tratos - os quais eram todos uma expressão de afeição.
Essa fase oral da sexualidade deixa marcas permanentes nos usos da linguagem. É comum as pessoas falarem, por exemplo, num objeto de amor ‘apetitoso’, bem como descrever outras pessoas de que gostam como ‘doces’. Lembrar-nos-emos, também, de que o nosso pacientezinho só comia coisas doces. Nos sonhos, os doces e guloseimas significam geralmente carícias ou gratificaçõas sexuais.
Parece, ademais, haver uma ansiedade que pertence a essa fase (somente, é claro, quando surge algum distúrbio), manifestando-se como um medo da morte, e que pode ser relacionada com qualquer coisa que se aponte à criança como sendo adequada a esse propósito. Com nosso paciente, foi empregada para induzi-lo a superar a sua perda de apetite e, na verdade, para supercompensá-la. Encontrar-se-á uma possível origem dessa perturbação do apetite se tivermos em mente (baseando-nos na hipótese que tantas vezes expusemos) que a observação que fez da cópula, com um ano e meio, a qual produziu tantos efeitos preteridos, ocorreu certamente antes do período de dificuldades na função alimentar. Assim, podemos talvez supor que acelerou os processos de amadurecimento sexual e, por conseguinte, produziu também, de fato, efeitos imediatos, ainda que fossem aparentemente insignificantes.
Certamente estou cônscio de que é possível explicar os sintomas desse período (a ansiedade relacionada com o lobo e o distúrbio no apetite) de outra maneira mais simples, sem qualquer referência à sexualidade ou a um estádio pré-genital da sua organização. Aqueles que gostam de negligenciar as indicações de neurose e as interconexões entre os eventos preferirão essa outra explicação e eu não conseguirei impedir que o façam. É difícil descobrir qualquer evidência concludente em relação a esses primórdios da vida sexual, exceto por caminhos indiretos, conforme indiquei.
Na cena com Grusha (aos dois anos e meio de idade), vemos o menino no início de um desenvolvimento que, exceto talvez pela sua precocidade, merece ser considerado normal; nele encontramos, desse modo, identificação com seu pai e erotismo uretral representando masculinidade. Estava também totalmente sob a influência da cena primária. Consideramos, até agora, a sua identificação com o pai como sendo narcísica; mas, se levarmos em conta o conteúdo da cena primária, não podemos negar que já atingira o estádio da organização genital. Seu órgão genital masculino começara a representar o seu papel e continuava a fazê-lo sob a influência da sedução pela irmã.
A sua sedução, entretanto, dá a impressão de não haver simplesmente encorajado o desenvolvimento sexual, mas sim, em medida ainda maior, de havê-lo perturbado e desviado. Ofereceu-lhe um objetivo sexual passivo, que era, em última análise, incompatível com a ação do órgão genital masculino. Ao primeiro obstáculo externo, a ameaça de castração da sua Nanya, sua organização genital, indiferente como ainda o era, sucumbiu (com a idade de três anos e meio) e regrediu ao estádio que a precedera, qual seja, o da organização sádico-anal, que de outro modo poderia talvez ter transposto com sintomas tão superficiais como os de qualquer outra criança.
A organização sádico-anal pode ser facilmente considerada como uma continuação e um desenvolvimento da oral. A atividade muscular violenta dirigida sobre o objeto, pela qual se caracteriza, pode ser explicada como uma ação preparatória para comer. O comer deixa, então, de ser um objetivo sexual e a ação preparatória torna-se, em si, um objetivo suficiente. A novidade essencial, em comparação com o estádio anterior, é que a função passiva receptiva desprende-se da zona oral e liga-se à zona anal. Em relação a isso, dificilmente podemos deixar de pensar em paralelos biológicos ou na teoria segundo a qual as organizações pré-genitais no homem devem ser consideradas como vestígios de condições que têm sido permanentemente conservadas em diversas espécies animais. A construção do instinto de procura, a partir dos seus vários componentes, é outro aspecto característico desse estádio de desenvolvimento.
O erotismo anal do menino não era particularmente perceptível. Sob a influência do seu sadismo, a significação afetiva das fezes deu lugar a uma significação agressiva. Na transformação do sadismo em masoquismo, teve seu papel um sentimento de culpa, cuja presença assinala processos de desenvolvimento em outras esferas que não a sexual.
A sedução continuou a fazer sentir sua influência, ao manter a passividade do seu objetivo sexual. Transformava, em grande medida, seu sadismo em masoquismo, que era a sua contrapartida passiva. Contudo, é duvidoso que a sedução possa ter sido inteiramente responsável por essa característica de passividade, pois a reação do menino à sua observação da cópula, com um ano e meio, já era preponderantemente passiva. Sua excitação sexual simpática expressou-se pela ação de defecar, embora seja verdade que, nesse comportamento, deve-se distinguir também um elemento ativo. Lado a lado com o masoquismo que dominava os seus impulsos sexuais e que se expressava também em fantasias, persistia igualmente o sadismo, que era dirigido contra os pequenos animais. Suas pesquisas sexuais haviam começado a partir da sedução e diziam respeito, essencialmente, a dois problemas: a origem das crianças e a possibilidade de perder os genitais. Essas buscas entrelaçaram-se com as manifestações dos seus impulsos instintuais e dirigiram a sua propensão sádica para os animaizinhos, que como que representavam os bebês.
Fixamos, então, o nosso relato mais ou menos na época do quarto aniversário do menino, e foi nesse ponto que o sonho fez operar, preteridamente, a sua observação da relação sexual, com a idade de um ano e meio. Não nos é possível entender completamente ou descrever adequadamente o que então sucedeu. A ativação do quadro, que, graças ao progresso no seu desenvolvimento intelectual, já conseguia então compreender, operou não apenas como um evento recente, mas como um novo trauma, como uma interferência do exterior, análoga à sedução. A organização genital que fora interrompida restabeleceu-se de uma só vez; mas o progresso que fora alcançado no sonho não podia ser mantido. Pelo contrário, por meio de um processo que só pode equivaler a uma repressão, veio à tona uma rejeição do novo elemento e a sua substituição por uma fobia.
Dessa forma, a organização sádico-anal continuava a existir durante a fase da fobia animal que então se estabelecia, apenas sofrendo uma mistura de fenômenos de ansiedade. O menino persistia nas atividades sádicas, bem como nas masoquistas, mas reagia com ansiedade a uma parte delas; provavelmente a conversão do sadismo em seu oposto fez mais progressos.
A análise do sonho de ansiedade mostra-nos que a repressão estava ligada ao reconhecimento da existência da castração. O novo elemento foi rejeitado porque sua aceitação ter-lhe-ia custado o pênis. Uma consideração mais atenta leva-nos a uma conclusão como a que se segue. O que foi reprimido foi a atitude homossexual compreendida no sentido genital, atitude que se havia formado sob a influência desse reconhecimento da castração. Mas tal atitude foi mantida no que diz respeito ao inconsciente e instituída como um estrato dissociado e mais profundo. A força motivadora da repressão parece ter sido a masculinidade narcísica ligada aos genitais do menino, que entrara num conflito há muito preparado com a passividade do seu propósito homossexual. A repressão era, desse modo, um resultado da sua masculinidade.
Pode-se ser tentado, neste ponto, a introduzir uma ligeira alteração na teoria psicanalítica. Pareceria palpavelmente óbvio que a repressão e a formação da neurose haviam-se originado do conflito entre as tendências masculina e feminina, ou seja, da bissexualidade. Essa visão da situação, no entanto, é incompleta. Dos dois impulsos sexuais conflitantes, um era egossintônico, ao passo que o outro feria o interesse narcísico do menino; foi por causa disso que o último sofreu repressão. De modo que, também nesse caso, foi o ego que pôs em ação a repressão, em benefício de uma das tendências sexuais. Em outros casos não existe tal conflito entre masculinidade e feminilidade; há apenas, uma única tendência sexual presente, que procura aceitação, mas que atua contra determinadas forças do ego e, por conseguinte, é repelida. Na verdade, os conflitos entre a sexualidade e as tendências morais do ego são muito mais comuns do que aqueles que se situam dentro da esfera da sexualidade; mas, no presente caso, falta um conflito moral dessa natureza. Insistir que a bissexualidade é a força motivadora que leva à repressão é assumir uma visão por demais estreita; ao passo que se afirmamos o mesmo do conflito entre o ego e as tendências sexuais (isto é, a libido) estaremos cobrindo todos os casos possíveis.
A teoria do ‘protesto masculino’, conforme tem sido desenvolvida por Adler, defronta-se com a dificuldade de que de modo algum a repressão toma sempre o partido da masculinidade contra a feminilidade; há categorias bastante vastas de casos nos quais é a masculinidade que tem de se submeter à repressão feita pelo ego. [Cf. Adler (1910).]
Ademais, uma apreciação mais justa do processo de repressão no nosso presente caso leva-nos a negar que a masculinidade narcísica seja a única força motivadora. A atitude homossexual que passou a existir durante o sonho era de uma intensidade tão opressora, que o ego do menino viu-se incapaz de lutar e, dessa maneira, defendeu-se contra ela pelo processo de repressão. A masculinidade narcísica que se ligava aos seus genitais, sendo contrária à atitude homossexual, foi convocada para ajudar o ego a desempenhar a sua tarefa. Simplesmente para evitar mal-entendidos, acrescentarei que todos os impulsos narcísicos operam a partir do ego e têm sede permanente no ego, e que as repressões são dirigidas contra as catexias de objeto libidinais.
Deixemos agora o processo de repressão, ainda que talvez não tenhamos conseguido tratá-lo exaustivamente, e voltemos ao estado do menino ao acordar do sonho. Se tivesse sido realmente a sua masculinidade que triunfara sobre o homossexualismo (ou feminilidade) durante o processo onírico, chegaríamos então, necessariamente, à conclusão de que a tendência dominante era uma tendência sexual ativa de um caráter já explicitamente masculino. Não há dúvida, porém, de que não foi isto que aconteceu. O essencial da organização sexual não se modificara; a fase anal-sádica persistia e continuava a ser dominante. O triunfo da masculinidade era demonstrado apenas nisto: que desde então reagia com ansiedade aos objetivos sexuais passivos da organização dominante - objetivos que eram masoquistas mas não femininos. Não nos defrontamos com uma triunfante tendência sexual masculina, mas apenas com uma tendência feminina e um esforço contra esta.
Posso bem imaginar as dificuldades que o leitor deve encontrar na distinção nítida (pouco conhecida, mas essencial) que esbocei entre ‘ativo’ e ‘masculino’ e entre ‘passivo’ e ‘feminino’. Não hesitarei, portanto, em repetir-me. A situação após o sonho, então, pode ser descrita como se segue. As tendências sexuais haviam sido divididas: no inconsciente, atingira-se o estádio de organização genital e estabelecera-se um homossexualismo muito intenso; em cima disso (virtualmente no consciente), persistia a antes sádica, e agora predominantemente masoquista, corrente sexual; o ego modificara totalmente a atitude em relação à sexualidade, de vez que agora a repudiava e rejeitava os objetivos masoquistas dominantes com ansiedade, tal como reagira aos objetivos homossexuais mais profundos com a formação de uma fobia. Assim, o resultado do sonho não era tanto o triunfo de uma corrente masculina como uma reação contra uma corrente feminina e passiva. Seria muito forçado atribuir a qualidade de masculinidade a essa reação. A verdade é que o ego não tem correntes sexuais, mas apenas um interesse em sua própria autoproteção e na preservação do seu narcisismo.
Consideremos agora a fobia. A sua existência começou no nível da organização genital e mostra-nos o mecanismo relativamente simples de uma histeria de angústia. O ego, ao desenvolver a ansiedade, estava se protegendo contra aquilo que considerava como um perigo esmagador, ou seja, a satisfação homossexual. O processo de repressão, contudo, deixou para trás um vestígio que não pode ser desprezado. O objeto ao qual o perigoso objetivo sexual havia sido ligado, teve que ser substituído, na consciência, por um outro. O que se tornou consciente foi o medo, não do pai, mas do lobo. Nem o processo se deteve na formação de uma fobia com um único conteúdo. Após um tempo considerável, o lobo foi substituído pelo leão [ver em [1] e [2]]. Simultaneamente aos impulsos sádicos contra os pequenos animais, existia uma fobia dirigida para estes, na qualidade de representantes dos rivais do menino, os possíveis bebês. A origem da fobia da borboleta é de particular interesse. Era como uma repetição do mecanismo que produziu a fobia do lobo no sonho. Devido a um estímulo casual, uma antiga experiência, a cena com Grusha, foi ativada; sua ameaça de castração produziu, assim, efeitos preteridos, embora na ocasião em que foi proferida não tenha causado impressão.
De fato, pode-se dizer que a ansiedade que estava envolvida na formação dessas fobias era um medo da castração. Essa afirmação não implica em contradição do ponto de vista de que a ansiedade se originou da repressão da libido homossexual. Ambos os modos de expressão referem-se ao mesmo processo, ou seja: a retirada da libido, pelo ego, do impulso ansioso homossexual, tendo a libido, então, se convertido em ansiedade livre e, subseqüentemente, ligada a fobias. O primeiro método de afirmação simplesmente acrescenta o motivo pelo qual o ego foi ativado.
Se examinarmos a questão mais de perto, veremos que a primeira doença do nosso paciente (deixando de lado o distúrbio no apetite) não se esgotou quando dela extraímos a fobia. Deve ser considerada como uma verdadeira fobia, que não mostra simplesmente sintomas de ansiedade, mas também fenômenos de conversão. Uma parte do impulso homossexual foi mantida pelo órgão a que esse impulso dizia respeito; a partir dessa época e igualmente durante a vida adulta, seu intestino comportou-se como um órgão histericamente afetado. O homossexualismo reprimido e inconsciente refugiou-se nos intestinos. Foi precisamente essa característica de histeria que foi de tão grande valia como auxílio ao esclarecimento da sua doença posterior. Devemos agora criar coragem para abordar a estrutura ainda mais complicada da neurose obsessiva. Mentalizemos uma vez mais a situação: uma corrente sexual masoquista dominante e outra, homossexual, reprimida, e um ego profundamente empenhado numa rejeição histérica de ambas. Que processos transformaram essa condição numa neurose obsessiva?
A transformação não ocorreu espontaneamente, por meio de um desenvolvimento interno, mas sim através de uma influência exterior. Seu efeito visível foi que o relacionamento do paciente com seu pai, que estava em primeiro plano e, até então, se expressara na fobia de lobos, manifestava-se agora numa piedade obsessiva. Não posso deixar de assinalar que o curso dos acontecimentos nessa parte da história do paciente proporciona uma confirmação inequívoca de uma afirmação que fiz em Totem e Tabu sobre a relação do animal-totem com a divindade. Decidi-me, ali, a favor do ponto de vista de que a idéia de Deus não era um desenvolvimento do totem, mas o substituía depois de brotar independentemente de uma raiz comum às duas idéias. O totem, conforme afirmei, era o primeiro substituto do pai e o deus era um substituto posterior, no qual o pai recuperara a sua forma humana. E, em nosso paciente, encontramos a mesma coisa. Em sua fobia do lobo, passara pelo estádio do substituto totêmico do pai; mas, depois, esse estádio se interrompera e, como resultado das novas relações entre ele e o pai, fora substituído por uma fase de devoção religiosa.
A influência que provocou essa transformação foi o conhecimento que obteve, por instância de sua mãe, das doutrinas da religião e da história bíblica. Essa medida educativa teve o efeito desejado. A organização sexual sadomasoquista aos poucos chegou ao fim, a fobia do lobo desapareceu rapidamente e, em lugar de a sexualidade ser repudiada com ansiedade, surgiu um método mais elevado de suprimi-la. A devoção tornou-se a força dominante na vida do menino. Essas vitórias, no entanto, não foram conquistadas sem esforços, dos quais seus pensamentos blasfemos eram um indício, e dos quais o estabelecimento de um exagero obsessivo no cerimonial religioso foi o resultado.
À parte esses fenômenos patológicos, pode-se dizer que, no presente caso, a religião atingiu todos os objetivos pelos quais é incluída na educação do indivíduo. Restringiu as impulsões sexuais do menino, propiciando-lhes uma sublimação e um ancoradouro seguro; diminuiu a importância das suas elações familiares e, desse modo, protegeu-o da ameaça do isolamento, dando-lhe acesso à grande comunidade humana. A criança indomada e cheia de medos tornou-se sociável, bem comportada e sensível à educação.
A principal força motivadora da influência que a religião exerceu sobre ele era a sua identificação com a figura de Cristo, que se estabeleceu com facilidade devido à coincidência da data de seu nascimento. Ao longo desse caminho, o extravagante amor que tinha pelo pai, que tornara necessária a repressão, encontrou, finalmente, sua forma de sublimação ideal. Como Cristo, podia amar seu pai, que agora se chamava Deus, com um fervor do qual procurara em vão libertar-se enquanto seu pai fora um mortal. O meio pelo qual podia testemunhar esse amor era estabelecido pela religião, sem ser perseguido por aquela sensação de culpa da qual seus sentimentos individuais de amor não conseguiam libertar-se. Assim, era-lhe ainda possível esgotar a sua corrente sexual mais profunda, que já se precipitara na forma de homossexualismo inconsciente; e, ao mesmo tempo, sua impulsão masoquista, mais superficial, encontrou uma sublimação incomparável, sem muita renúncia, na história da Paixão de Cristo, que, por ordem do seu divino Pai e em sua honra, deixara-se maltratar e sacrificar. Foi assim que a religião funcionou nessa criança atormentada - pela combinação, que proporcionava ao crente, de satisfação, de sublimação, de desvio dos processos sensuais para os puramente espirituais e de acesso ao relacionamento social.
A oposição que manifestou, de início, contra a religião teve três diferentes pontos de origem. Para começar, havia, de um modo geral, sua característica (que já vimos exemplificada) de rechaçar todas as novidades. Qualquer posição da libido que já tivesse sido assumida era obstinadamente defendida por ele, por medo do que perderia, abandonando-a, e por desconfiança da probabilidade de ser propiciado um substituto completo mediante a nova posição que estava à vista. Esta é uma peculiaridade psicológica importante e fundamental, que descrevi em meus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1950d) como uma suscetibilidade à ‘fixação’. Sob o nome de ‘inércia’ psíquica, Jung tentou instituí-la como a principal causa de todos os fracassos dos neuróticos. Penso que ele está errado nesse aspecto, de vez que esse fator tem uma aplicação muito mais geral e desempenha importante papel também na vida dos não-neuróticos. A grande mobilidade ou morosidade das catexias libidinais (bem como de outros tipos de catexias enérgicas) são características particulares que se vinculam a muitas pessoas normais e de modo algum a todos os neuróticos, e que, até agora, não foram relacionadas com outras qualidades. São, por assim dizer, como números primos, não divisíveis. Sabemos apenas uma coisa: que a mobilidade das catexias mentais mostra uma diminuição surpreendente à medida em que a idade avança. Isso nos propiciou uma das indicações dos limites dentro dos quais o tratamento psicanalítico é efetivo. Há pessoas, no entanto, que conservam essa plasticidade mental muito além do limite de idade habitual, e outras que a perdem prematuramente. Se estas últimas são os neuróticos, estamos diante da desagradável descoberta de que é impossível anular nelas as manifestações que, em circunstâncias aparentemente semelhantes, são facilmente tratáveis em outras pessoas. De modo que, ao considerar a conversação da energia psíquica, não menos do que a de energia física, devemos fazer uso do conceito de entropia, que se opõe à anulação do que já ocorrera.
Um segundo ponto de ataque foi proporcionado pela circunstância de que a própria doutrina religiosa se fundamenta numa relação ambígua com Deus Pai e, de fato, traz a marca da atitude ambivalente que presidiu sua origem. A própria ambivalência do paciente, de vez que este a possuía em alto grau de desenvolvimento, ajudou-o a detectar o mesmo aspecto na religião, e ele foi levado a dirigir contra esse aspecto aquelas críticas agudas, cuja presença não deixa de assombrar-nos numa criança de apenas quatro anos e meio.
Havia, contudo, um terceiro fator em ação, que era certamente o mais importante de todos e ao qual devemos atribuir os produtos patológicos da sua luta contra a religião. A verdade é que a corrente mental que o impeliu a transformar os homens em objeto sexual e que devia ter sido sublimada pela religião, não era mais livre; uma parte dela foi excluída pela repressão e, dessa forma, afastada da possibilidade de sublimação e vinculada ao seu objetivo sexual de origem. Em decorrência desse estado de coisas, a parte reprimida continuou a esforçar-se para avançar gradualmente até a parte sublimada ou para arrastar esta última para si. As primeiras ruminações que teceu em torno da figura de Cristo já envolviam a questão de saber se esse filho sublime também podia cumprir o relacionamento sexual com o Pai, relação que o paciente conservara no inconsciente. O único resultado de seu repúdio desses esforços foi o de haver gerado pensamentos obsessivos, aparentemente blasfemos, nos quais sua afeição física por Deus afirmava-se na forma de um aviltamento. Um violento esforço defensivo levou-o então, inevitavelmente, a uma exacerbação obsessiva de todas as atividades preceituadas para dar expressão à piedade e ao puro amor por Deus. Afinal, a religião venceu, mas seus fundamentos instintuais mostraram ser incomparavelmente mais fortes do que a durabilidade dos produtos da sua sublimação. Tão logo o curso dos eventos lhe ofereceu um novo substituto paterno, que pesou na balança contra a religião, esta foi posta de lado e substituída. Ademais disso, devemos ter em mente, como uma interessante complicação, que sua devoção se deveu à influência de mulheres (sua mãe e a babá), ao passo que foi uma influência masculina que o libertou dela.
A origem dessa neurose obsessiva, com base na organização sádico-anal, confirma totalmente aquilo que afirmei em outro lugar, sobre a predisposição à neurose obsessiva (1913i). A existência prévia de uma grave histeria no presente caso, contudo, torna-a mais obscura nesse aspecto.
Concluirei meu sumário do desenvolvimento sexual do paciente, fornecendo algumas informações breves sobre as suas vicissitudes posteriores. Durante o período de puberdade, surgiu no paciente uma corrente masculina, marcadamente sensual, com um propósito sexual próprio da organização genital; deve ser considerada normal e sua história ocupou todo o período que se estende até a doença posterior. Relacionava-se diretamente com a cena de Grusha, da qual tomou seu aspecto característico - uma paixão compulsiva que surgia e desaparecia, em acessos repentinos. Essa corrente teve de lutar contra as inibições que se originaram da sua neurose infantil. Houvera uma violenta mudança na direção das mulheres, e ele conquistara, dessa forma, uma masculinidade completa. A partir desse período, conservou as mulheres como seu objeto sexual; mas não desfrutava dessa posse, porquanto uma poderosa, e agora totalmente inconsciente, inclinação para os homens, na qual se uniam todas as forças das fases anteriores do seu desenvolvimento, afastava-o constantemente dos seus objetos femininos e compelia-o, nos intervalos, a exagerar sua dependência das mulheres. Durante o tratamento, continuou a queixar-se de que não suportava ter que ocupar-se das mulheres, e todos os nossos esforços foram dirigidos no sentido de revelar-lhe a sua relação inconsciente com os homens. Toda a situação poderia resumir-se à maneira de uma fórmula. Sua infância fora marcada por uma oscilação entre atividade e passividade, a puberdade por um esforço de masculinidade, e o período que se seguiu à sua doença, por uma luta pelo objeto dos seus desejos masculinos. A causa que precipitou a neurose não se enquadrava em nenhum dos tipos que consegui descrever como casos especiais de ‘frustração’, e, desse modo, chama atenção para uma lacuna naquela classificação. Ele sucumbiu depois que uma afecção orgânica dos genitais havia reavivado o medo da castração, destruído seu narcisismo, e o compelira a abandonar a esperança de ser pessoalmente favorecido pelo destino. Adoeceu, portanto, em conseqüência de uma ‘frustração’ narcísica. Essa força excessiva do seu narcisismo harmonizava-se inteiramente com as outras indicações de um desenvolvimento sexual inibido: com o fato de que tão poucas das suas tendências psíquicas se concentravam em sua escolha de objeto heterossexual, apesar de toda a energia, e que sua atitude homossexual, estando tão próxima do narcisismo, persistia nele como uma força inconsciente de enorme tenacidade. Naturalmente, quando se apresentam perturbações como estas, o tratamento psicanalítico não pode trazer uma revolução instantânea ou colocar as coisas num nível de desenvolvimento normal: pode tão-somente livrar-se dos obstáculos e clarear o caminho, de modo que as influências da vida possam conseguir desenvolver-se em linhas melhores.
Irei, agora, expor algumas das peculiaridades da mentalidade do paciente, reveladas pelo tratamento psicanalítico, não tendo, contudo, sido depois elucidadas e, por conseguinte, não eram suscetíveis de influência direta. Tais eram sua tenacidade de fixação, que já foi discutida, sua extraordinária propensão à ambivalência, e (como terceiro traço numa constituição que merece a denominação de arcaica) seu poder de manter simultaneamente as mais variadas e contraditórias catexias libidinais, todas elas capazes de funcionar lado a lado. Sua oscilação constante entre essas catexias (característica que por muito tempo parecia bloquear o caminho para a recuperação e o progresso no tratamento) dominou o quadro clínico durante a sua enfermidade de adulto, que mal consegui tangenciar nestas páginas. Era essa uma característica que pertencia indubitavelmente ao caráter geral do inconsciente, que, no seu caso, persistira nos processos que se haviam tornado conscientes. Mostrava-se, porém, apenas nos produtos de impulsos afetivos; na área da lógica pura, ele traía, ao contrário, uma habilidade peculiar para revelar contradições e incoerências. De tal modo que a sua vida mental impressionava do mesmo modo que a religião do Antigo Egito, que é ininteligível para nós porque preserva os estádios anteriores do seu desenvolvimento lado a lado com os produtos acabados, mantém os mais modernos e, assim, expande sobre uma superfície bidimensional aquilo que outros exemplos de evolução nos mostram em três dimensões.
Acabo de chegar ao final daquilo que tinha para dizer acerca deste caso. Restam dois problemas, dentre os muitos que o caso levanta, os quais me parecem merecer um destaque especial. O primeiro relaciona-se com os esquemas filogeneticamente herdados, que, como as categorias da filosofia, dizem respeito ao trabalho de ‘situar’ as impressões originadas da experiência real. Inclino-me a assumir o ponto de vista de que são resíduos da história da civilização humana. O complexo de Édipo, que compreende a relação da criança com os pais é um deles - é, na verdade, o mais conhecido membro da classe. Sempre que as experiências deixam de ajustar-se ao esquema hereditário, elas se remodelam na imaginação - um processo que poderia, com muito proveito, ser seguido detalhadamente. São precisamente tais casos que se destinam a convencer-nos da existência independente do esquema. Muitas vezes conseguimos ver o esquema triunfar sobre a experiência do indivíduo; como quando, no presente caso, o pai do menino tornou-se o castrador e a ameaça à sua sexualidade infantil, apesar daquilo que era, em outros aspectos, um complexo de Édipo invertido. Processo semelhante entra em ação quando uma babá desempenha o papel da mãe ou quando as duas se fundem. As contradições entre a experiência e o esquema parecem suprir os conflitos da infância com material abundante.
O segundo problema não está muito afastado do primeiro, porém é incomparavelmente mais importante. Se se considera o comportamento do menino de quatro anos em relação à cena primária reativada, ou mesmo se se pensa nas reações muito mais simples da criança de um ano e meio, quando a cena foi realmente vivida, é difícil descartar a opinião de que algum tipo de conhecimento, dificilmente definível, algo, fosse o que fosse, preparatório para uma compreensão, estivesse agindo na criança, na época. Não podemos formar um conceito sobre aquilo em que poderia ter consistido esse conhecimento; nada temos à nossa disposição, a não ser uma única analogia - e ela é excelente -, a do extenso conhecimento instintivo dos animais.
Se os seres humanos possuíssem também um dom instintivo como este, não seria surpresa se fosse muito particularmente ligado aos processos da vida sexual, mesmo que não pudesse ser de forma alguma confinado a eles. Esse fator instintivo seria então o núcleo do inconsciente, um tipo primitivo de atividade mental, que seria depois destronado e encoberto pela razão humana, quando essa faculdade viesse a ser adquirida; mas que, em algumas pessoas, talvez em todas, mantivesse o poder de atrair para si os processos mentais mais elevados. A repressão seria o retorno a esse estádio instintivo, e o homem estaria, assim, pagando pela nova aquisição com a sua sujeição à neurose, e estaria testemunhando, pela possibilidade das neuroses, a existência desses estádios preliminares, de tipo instintivo. A significação dos traumas da primitiva infância estaria no material que transmitiriam ao inconsciente, que não permitiria que fosse exaurido pelo curso subseqüente do desenvolvimento.
Estou ciente de que, em muitos lugares, deu-se expressão a pensamentos como estes, que enfatizam o hereditário, o fator filogeneticamente adquirido na vida mental. Na verdade, minha opinião é que as pessoas têm-se prontificado excessivamente a abrir espaço para esses fatores e a atribuir-lhes importância, dentro da psicanálise. No entanto, considero que são apenas admissíveis na medida em que a psicanálise observa estritamente a ordem correta de precedência, e, depois de abrir caminho através dos estratos daquilo que foi adquirido pelo indivíduo, chega afinal aos vestígios do que foi herdado.

APÊNDICE - LISTA DOS CASOS CLÍNICOS MAIS LONGOS DE FREUD

A data diante de cada entrada é aproximadamente a do ano durante o qual o trabalho em questão foi escrito. A data no final é a da publicação; e, sob essa data, detalhes mais completos do trabalho encontram-se na bibliografia, no fim deste volume.

1894   Frau Emmy von N.
            Miss Lucy R.
            Katharina
            Fräulein Elisabeth von R.em Estudos sobre a Histeria (1895d)

1901 ‘Fragmento da Análise de um Caso de Histeria’ (‘Dora’) (1905e)

1909 ‘Análise de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos’ (‘Pequeno Hans’) (1909b e 1922c)
            ‘Notas sobre um Caso de Neurose Obsessiva’ (O ‘Homem dos      Ratos’) (1909d e 1955a)

1910 ‘Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso             de Paranóia’ (Schreber) (1911c e 1912a)

1914 ‘História de uma Neurose Infantil’. (O ‘Homem dos Lobos’)   (1918b)

1915 ‘Um Caso de Paranóia que Contraria a Teoria Psicanalítica da        Doença’ (1915f)

1919 ‘A Psicogênese de um Caso de Homossexualismo numa Mulher’ (1920a)













AS TRANSFORMAÇÕES DO INSTINTO EXEMPLIFICADAS
NO EROTISMO ANAL (1917)


NOTA DO EDITOR INGLÊS

BER TRIEBUMSETZUNGEN, INSBESONDEREDER ANALEROTIK

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1917 Int. Z. Psychoanal., 4 (3), 125-30.
1918 S.K.S.N., 4, 139-48 (1922, 2ª ed.).
1924 G.S., 5, 268-76.
1926 Psychoanalyse der Neurosen, 40-9.
1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 116-24.
1946 G.W., 10, 402-10.
(b)TRADUÇÃO INGLESA:
‘On the Transformation of Instincts withSpecial Reference to Anal Erotism’
1924 C.P., 2, 164-71. (Trad. de E. Glover)
A presente tradução inglesa, com título modificado, baseia-se na publicada em 1924.
Embora este artigo só fosse publicado em 1917, provavelmente foi escrito antes - talvez mesmo em 1915. Grandes atrasos na publicação eram inevitáveis nesse período, devido às dificuldades das condições de guerra. A parte essencial do artigo já aparecera num parágrafo acrescentado à edição de 1915 dos Três Ensaios (1905d), de Freud, Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág. 191, IMAGO Editora, 1972. Além disso, várias das conclusões a que Freud chega neste escrito parecem originar-se da análise do ‘Homem dos Lobos’ (1918b), cujo caso clínico foi escrito, em sua maior parte, durante o outono de 1914. A última parte da Seção VII (pág. 102 e segs.) daquele caso clínico exemplifica, com alguns detalhes, a tese do presente artigo.

AS TRANSFORMAÇÕES DO INSTINTO EXEMPLIFICADAS NO EROTISMO ANAL

Há alguns anos atrás, observações feitas durante a psicanálise levaram-me a suspeitar de que a constante coexistência de qualquer um dos três traços de caráter, ordem, parcimônia e obstinação, indicava uma intensificação dos componentes anal-eróticos na constituição sexual, e que esses modos de reação, que eram favorecidos pelo ego, haviam sido estabelecidos durante o curso do seu desenvolvimento, através da assimilação do seu erotismo anal.
Naquele trabalho, meu principal objetivo era tornar conhecido o fato dessa relação estabelecida; pouco me preocupava o seu significado teórico. Desde então tem havido um consenso geral de opinião de que cada uma das três qualidades, avareza, formalismo e obstinação, provém de fontes anal-eróticas ou - para expressá-lo mais cautelosa e completamente - retira poderosas contribuições dessas fontes. Os casos em que esses defeitos de caráter se combinavam e que, por conseguinte, mereceram um rótulo especial (o ‘caráter anal’), eram simplesmente exemplos extremos, que se juntavam para trair a particular conexão que nos interessa aqui, mesmo a olhos poucos observadores.
Como resultado de inúmeras impressões e, em particular, de uma observação analítica especialmente convincente, cheguei à conclusão, alguns anos depois, de que o desenvolvimento da libido no homem - a fase da primazia genital - deve ser precedida por uma ‘organização pré-genital’, na qual o sadismo e o erotismo anal desempenhem os principais papéis.
A partir daquele momento tivemos que enfrentar o problema da história posterior dos impulsos instintuais anal-eróticos. O que acontece com eles quando, devido ao estabelecimento de uma organização genital definitiva, perdem a sua importância na vida sexual? Preservam a sua natureza original, porém em estado de repressão? São sublimados, ou assimilados, pela transformação em traços de caráter? Ou encontram um lugar dentro da nova organização da sexualidade, caracterizada pela primazia genital? Ou, já que nenhuma dessas vicissitudes do erotismo anal é provavelmente a única, em que medida e de que modo cada uma delas participa da decisão do seu destino? Pois as fontes orgânicas do erotismo anal não podem, certamente, ser enterradas como resultado da emergência da organização genital.
Poder-se-ia pensar que não haveria falta de material do qual retirar uma resposta, de vez que os processos de desenvolvimento e transformação em questão devem ter ocorrido em todos aqueles que se submetem à análise. Ainda assim o material é tão obscuro, a abundância das impressões que ocorrem sempre é tão confusa, que mesmo hoje sou incapaz de resolver plenamente o problema, e não posso fazer mais do que apresentar algumas contribuições para a sua solução. Ao fazê-lo, não necessito abster-me de mencionar, quando o contexto o permite, outras transformações instintuais além das anal-eróticas. Finalmente, nem é preciso enfatizar que os eventos do desenvolvimento descritos aqui - tal como os outros encontrados na psicanálise - foram inferidos das regressões às quais foram forçados por processos neuróticos.
Como ponto de partida para esta exposição, podemos tomar o fato de que parece que nos produtos do inconsciente - idéias espontâneas, fantasias e sintomas - os conceitos de fezes (dinheiro, dádiva), bebê e pênis mal se distinguem um do outro e são facilmente intercambiáveis. Compreendemos, certamente, que expressar-se desse modo é aplicar incorretamente à esfera do inconsciente termos que pertencem propriamente a outras regiões da vida mental, e que fomos levados a nos desviar pelas vantagens oferecidas por uma analogia. Para colocar o assunto de uma forma menos sujeita a objeções, esses elementos do inconsciente são tratados muitas vezes como se fossem equivalentes e pudessem livremente substituir um ao outro.
Isto se verifica com mais facilidade na relação entre ‘bebê’ e ‘pênis’. Não pode deixar de ter significado o fato de que na linguagem simbólica dos sonhos, bem com na da vida cotidiana, ambos podem ser representados pelo mesmo símbolo; tanto bebê como pênis são chamados ‘o pequeno’, [‘das Kleine‘]. É fato sabido que o discurso simbólico ignora com freqüência a diferença de sexo. O ‘pequeno’, que originalmente significava o órgão sexual masculino, pode, assim, ter adquirido uma aplicação secundária aos genitais femininos.
Se penetramos profundamente na neurose de uma mulher, não poucas vezes deparamos com o desejo reprimido de possuir um pênis, como um homem. Chamamos a esse desejo ‘inveja do pênis’ e incluímo-lo no complexo de castração. Infortúnios casuais na vida de tal mulher, infortúnios que são freqüentemente o resultado de uma disposição bastante masculina, reativaram esse desejo infantil e, através do fluxo retrospectivo da libido, tornaram-no o principal veículo dos seus sintomas neuróticos. Em outras mulheres não encontramos esse desejo de um pênis; é substituído pelo desejo de um bebê, cuja frustração, na vida real, pode levar à eclosão de uma neurose. É como se tais mulheres houvessem compreendido (embora isso não possa ter atuado como motivo) que a natureza dá bebês às mulheres como substitutos para o pênis que lhes negou. Com outras, ainda, aprendemos que ambos os desejos estavam presentes na sua infância e que um substituiu o outro. De início, haviam desejado um pênis, como os homens; depois, num estádio posterior, embora ainda infantil, surgiu em lugar deste, o desejo de um bebê. A impressão que se nos impõe é a de que essa variedade em nossas descobertas é causada por fatores acidentais durante a infância (por exemplo, a presença ou ausência de irmãos, ou o nascimento de um novo bebê numa época favorável da vida), de tal modo que o desejo de um pênis e o desejo de um bebê seriam fundamentalmente idênticos.
Podemos dizer qual é a conseqüência básica do desejo infantil de um pênis em mulheres nas quais as determinantes de uma neurose na vida posterior estão ausentes: transforma-se em desejo por um homem, o que torna, assim, o homem um suplemento do pênis. Essa transformação, portanto, converte um impulso que é hostil à função sexual feminina, em outro que é favorável a ela. Tais mulheres tornam-se, dessa forma, capazes de uma vida erótica baseada no tipo masculino de amor objetal, que pode existir paralelamente ao tipo feminino, derivado do narcisismo. Já sabemos que em outros casos apenas um bebê torna possível a transição do auto-amor narcísico para o amor objetal. De modo que, também nesse aspecto, um bebê pode ser representado por um pênis.
Tenho tido oportunidades ocasionais de ouvir sonhos de mulheres ocorridos após a primeira experiência de relacionamento sexual. Revelam, na mulher, um inequívoco desejo de guardar para si o pênis que fora sentido. Então, à parte essa ordem libidinal, esses sonhos indicam uma regressão temporária do homem para o pênis, como objeto do desejo da mulher. Podemos certamente nos sentir inclinados a atribuir o desejo por um homem, de modo puramente racional, ao desejo por um bebê, já que a mulher com certeza compreenderá, mais cedo ou mais tarde, que não pode haver bebê sem a cooperação do homem. Contudo, é mais provável que o desejo por um homem nasça independente do desejo por um bebê, e que quando esse desejo desperta - por motivos compreensíveis, que pertencem inteiramente à psicologia do ego - o desejo original de um pênis liga-se a ele, como um reforço libidinal inconsciente. A importância do processo descrito jaz no fato de que uma parte da masculinidade narcísica da jovem mulher transmuta-se, assim, em feminilidade, e desse modo não pode mais operar de maneira prejudicial à função sexual feminina.
Ao longo de outra via, uma parte do erotismo da fase pré-genital torna-se também disponível para uso na fase da primazia genital. O bebê é considerado com ‘lumf‘ (cf. a análise do ‘Little Hans’), como algo que se separa do corpo passando através dos intestinos. Uma certa quantidade de catexia libidinal, que originalmente se ligava ao conteúdo dos intestinos, pode assim estender-se ao bebê nascido através deles. A evidência lingüística dessa identidade de bebê e fezes está contida na expressão ‘dar um bebê a alguém’. Pois as fezes são a primeira dádiva da criança, uma parte do seu corpo que ela somente dará a alguém que ama, a quem, na verdade, fará uma oferta espontânea como sinal de afeição, de vez que, via de regra, as crianças não sujam os estranhos. (Há reações similares, embora menos intensas, com a urina.) A defecação proporciona a primeira oportunidade em que a criança deve decidir entre uma atitude narcísica e uma atitude de amor objetal. Ou reparte obedientemente as suas fezes, ‘sacrifica-as’ ao seu amor, ou as retém com a finalidade de satisfação auto-erótica e, depois, como meio de afirmar sua própria vontade. Se faz essa última escolha, estamos na presença de um desafio (obstinação) que, por conseguinte, nasce de um apego narcísico ao erotismo anal.
É provável que o primeiro significado que o interesse de uma criança pelas fezes desenvolve, seja o de ‘dádiva’, e não de ‘ouro’ ou ‘dinheiro’. A criança não conhece dinheiro, a não ser o que lhe é dado - não há dinheiro adquirido por si, nem herdado. Uma vez que as fezes são a sua primeira dádiva, a criança transfere facilmente seu interesse dessa substância para uma nova, com que se depara, como a mais valiosa dádiva da vida. Aqueles que questionam essa derivação das dádivas deveriam considerar sua experiência de tratamento psicanalítico, estudar as dádivas que, como médicos, recebem dos pacientes e observar os tumultos de transferência que uma dádiva deles pode provocar nos pacientes.
Assim, o interesse pelas fezes continua, em parte como interesse pelo dinheiro, em parte como desejo por um bebê, sendo que neste último convergem um impulso anal-erótico e um impulso genital (‘inveja do pênis’). O pênis tem, contudo, um outro significado anal-erótico, além da sua relação com o interesse por um bebê. O relacionamento entre o pênis e a passagem revestida de membrana mucosa que preenche e excita, já tem o seu protótipo na fase pré-genital, anal-sádica. A massa fecal ou, como um paciente a chamou, o ‘bastão’ fecal, representa como que o primeiro pênis, e a membrana mucosa do reto, estimulada, representa a da vagina. Há pessoas cujo erotismo anal permanece vigoroso e inalterado até a idade que precede a puberdade (dez a doze anos); por essas pessoas ficamos sabendo que durante a fase pré-genital já haviam desenvolvido, numa fantasia e num jogo perverso, uma organização análoga à genital, em que o pênis e a vagina eram representados pelo ‘bastão’ fecal e pelo reto. Em outras pessoas - os neuróticos obsessivos - podemos observar o resultado de um aviltamento regressivo da organização genital. Isso se expressa pelo fato de que toda fantasia originalmente concebida em nível genital é transposta para o nível anal - sendo o pênis substituído pela massa fecal, e a vagina, pelo reto.
Se retrocede o interesse pelas fezes, de forma normal, a analogia orgânica que descrevemos tem o efeito de transferir o interesse para o pênis. Se, mais tarde, no decorrer de suas pesquisas sobre o sexo, a criança aprendesse que os bebês nascem do intestino, estes se tornam herdeiros da maior parte do seu erotismo anal; foram, no entanto, procedidos pelo pênis, neste como em outro sentido.
Estou certo de que, a essa altura, as múltiplas inter-relações da série - fezes, pênis, bebê - tornaram-se totalmente ininteligíveis; desse modo, tentarei corrigir o defeito apresentando-as de forma diagramática, e, ao considerar o diagrama [Fig. 2], podemos rever o mesmo material numa ordem diferente. Infelizmente, esse artifício técnico não é suficientemente flexível para o nosso propósito, ou, possivelmente, não aprendemos ainda a usá-lo com eficácia. Em todo caso, espero que o leitor não exija demasiado desse recurso.
O erotismo anal encontra uma aplicação narcísica na realização do desafio, que constitui uma importante reação por parte do ego contra as exigências feitas por outras pessoas. O interesse pelas fezes é transportado, de início para um interesse pela dádiva e, depois, para o interesse pelo dinheiro. Nas meninas, a descoberta do pênis dá origem a uma inveja desse órgão, que depois se transforma em desejo por um homem, como possuidor do pênis. Ainda antes disso, o desejo de um pênis foi convertido num desejo de um bebê, ou este último tomou o lugar do primeiro. Uma analogia orgânica entre pênis e bebê (linha tracejada) é expressa pela existência de um símbolo (‘o pequeno’) comum a ambos. Um desejo racional (linha dupla) conduz, então, do desejo por um bebê ao desejo por um homem: já avaliamos a importância dessa transformação instintual.
Uma outra parte do vínculo de relações pode ser observada muito mais claramente no macho. Origina-se quando as pesquisas sexuais do menino o levam à descoberta da ausência de pênis nas mulheres. Ele conclui que o pênis deve ser uma parte destacável do corpo, algo análogo às fezes, a primeira parte de substância corporal que a criança tem que partilhar. Assim, o velho desafio anal entra na composição do complexo de castração. A analogia orgânica, que torna possível ao conteúdo intestinal ser o precursor do pênis durante a fase pré-genital, não pode ser levada em conta como motivo; mas as buscas sexuais do menino levam-no a um substituto psíquico para ele. Quando surge em cena um bebê, ele o considera ‘lumf’, de acordo com aquelas pesquisas, e o catexiza com um poderoso interesse anal-erótico. Quando as experiências sociais ensinam que um bebê deve ser considerado como uma prova de amor, uma dádiva, o desejo por um bebê recebe uma segunda contribuição da mesma fonte. Fezes, pênis e bebê são três corpos sólidos; todos três, forçando penetração ou expulsão, estimulam uma passagem membranosa, isto é, o reto e a vagina, sendo que a última é como se fosse ‘arrendada’ ao reto, como sagazmente observa Lou Andreas-Salomé. As pesquisas sexuais infantis só podem levar à conclusão de que o bebê segue a mesma trilha da massa fecal. A função do pênis, habitualmente, não é descoberta por essas pesquisas. Mas é interessante notar que após tantos rodeios, uma correspondência orgânica reaparece na esfera psíquica como uma identidade inconsciente.









UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE (1917)


NOTA DO EDITOR INGLÊS

EINE SCHWIERIGKEIT DER PSYCHOANALYSE

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:

1917 Nyugat (Budapest), 10 (1), 47-52. Em tradução para o húngaro.)
1917 Imago, 5 (1), 1-7.1918 S.K.S.N., 4, 553-63 (1922, 2ª ed.).
1924 G.S., 10, 347-56.1947 G.W., 12, 3-12.

(b)TRADUÇÃO INGLESA:
            ‘One of the Difficulties of Psycho-Analysis’

1920 Int. J. Psycho-Anal., 1, 17-23. (Trad. de Joan Riviere.)
1925 C.P., 4, 347-56. (O mesmo tradutor.)

A presente tradução inglesa, com um novo título, ‘A Difficulty in the Path of Psycho-Analysis’, baseia-se na publicada em 1925.

Um destacado homem de letras húngaro da época, H. Ignotus, convidou Freud para colaborar com um artigo para o periódico Nyugat, do qual era editor, e este artigo, evidentemente destinado a um público culto mas leigo, foi o resultado. O artigo foi escrito no final de 1916 e publicado pela primeira vez em tradução húngara (sob o título ‘A pszihoanalyzis egy nehézségéröl’) nos primeiros dias de 1917. O original alemão surgiu em Imago, dois ou três meses depois. Uma exposição mais geral das resistências às teorias da psicanálise encontra-se num artigo de Freud escrito alguns anos mais tarde (1925e). A primeira parte do presente trabalho é, certamente, um breve sumário do artigo sobre narcisismo (1914c). Os três ‘golpes ao narcisismo humano’ são também descritos no fim da Conferência XVIII das Conferências Introdutórias (1916-17), de Freud, obra completada mais ou menos na época em que o presente artigo foi escrito.




UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE

Para começar, direi que não se trata de uma dificuldade intelectual, de algo que torne a psicanálise difícil de ser entendida pelo ouvinte ou pelo leitor, mas de uma dificuldade afetiva - alguma coisa que aliena os sentimentos daqueles que entram em contato com a psicanálise, de tal forma que os deixa menos inclinados a acreditar nela ou a interessar-se por ela. Conforme se poderá observar, os dois tipos de dificuldade, afinal, equivalem-se. Onde falta simpatia, a compreensão não virá facilmente.
Os que agora me lêem, presumo, nada têm a ver com o assunto até o momento, e serei obrigado, portanto, a retroceder um pouco. A partir de um grande número de observações e impressões individuais, algo com a natureza de uma teoria tomou forma, afinal, na psicanálise, algo que é conhecido pelo nome de ‘teoria da libido’. Como é sabido, a psicanálise preocupa-se com o esclarecimento e a eliminação dos denominados distúrbios nervosos. Como houvesse que encontrar um ponto de partida, do qual se pudesse abordar esse problema, decidiu-se procurá-lo na vida instintual da mente. As hipóteses acerca dos instintos do homem vieram, portanto, a formar a base da nossa concepção de doença nervosa.
A psicologia, conforme é ensinada academicamente, dá-nos apenas respostas muito inadequadas a questões que dizem respeito à nossa vida mental, mas em nenhum outro sentido a sua informação é tão escassa quanto no que concerne aos instintos.
Abriu-se-nos a possibilidade de fazer nossas sondagens como nos agrada. O consenso popular distingue entre a fome e o amor como sendo os representantes de instintos que visam, respectivamente, à preservação do indivíduo e à reprodução da espécie. Aceitamos essa distinção bastante evidente, de tal modo que também na psicanálise fazemos uma distinção entre os instintos autopreservativos ou instintos do ego, por um lado, e os instintos sexuais, por outro lado. À força pela qual o instinto sexual está representado na mente chamamos ‘libido’ - desejo sexual - e consideramo-la como algo análogo à fome, à vontade de poder e assim por diante, na medida em que diz respeito aos instintos do ego.
Com esse dado como ponto de partida, prosseguimos para efetuar a nossa primeira descoberta importante. Aprendemos que, quando tentamos compreender os distúrbios neuróticos, sem dúvida o maior significado liga-se aos instintos sexuais; que, na verdade, as neuroses são os distúrbios específicos, por assim dizer, na função sexual; que, de um modo geral, o fato de a pessoa desenvolver ou não uma neurose, depende da quantidade de sua libido e da
possibilidade de saciá-la e de descarregá-la através da satisfação; que a forma assumida pela doença é determinada pela forma com que o indivíduo atravessa o curso de desenvolvimento da sua função sexual, ou, conforme o formulamos, pelas fixações a que sua libido se submeteu no decorrer do seu desenvolvimento; e, ademais, que, por sua técnica especial e não muito simples de influenciar a mente, conseguimos esclarecer a natureza de determinados tipos de neuroses e, ao mesmo tempo, eliminá-las. Nossos esforços terapêuticos obtêm seu maior êxito com uma determinada classe de neuroses que provêm de um conflito entre os instintos do ego e os instintos sexuais. Porque, nos seres humanos, pode acontecer que as exigências dos instintos sexuais, cujo alcance se estende muito além do indivíduo, pareçam, ao ego, constituir um perigo que ameaça a sua autopreservação ou a sua auto-estima. O ego assume então a defensiva, nega aos instintos sexuais a satisfação que almejam e força-os pelos caminhos estreitos da satisfação substitutiva, que se tornam manifestos como sintomas nervosos.
O método psicanalítico de tratamento é, então, capaz de submeter à revisão esse processo de repressão e conseguir uma solução melhor para o conflito - uma solução que seja compatível com a saúde. Opositores pouco inteligentes acusam-nos de parcialidade na avaliação dos instintos sexuais. ‘Os seres humanos têm outros interesses, além dos sexuais’, dizem eles. Nem por um momento esquecemos ou negamos esse dado. Nossa parcialidade é como a do químico, que atribui a todos os componentes a força da atração química. Nem por isso está negando a força da gravidade; deixa que o físico lide com ela.
Durante o processo de tratamento temos que considerar a distribuição da libido do paciente; procuramos representações objetais às quais esteja ligada e libertamo-la delas, de modo a colocá-la à disposição do ego. No decorrer desse processo, chegamos a formar uma imagem muito curiosa do original, a distribuição primeva da libido dos seres humanos. Fomos levados a presumir que, no início do desenvolvimento do indivíduo, toda a sua libido (todas as tendências eróticas, toda a sua capacidade de amar) está vinculada a si mesma - ou, como dizemos, catexiza o seu próprio ego. É somente mais tarde que, ligando-se à satisfação das principais necessidades vitais, a libido flui do ego para os objetos externos. Até então, não conseguimos reconhecer os instintos libidinais como tais e distingui-los dos instintos do ego. Para a libido, é possível desvincular-se desses objetos e regressar outra vez ao ego.
A condição em que o ego retém a libido é por nós denominada ‘narcisismo’, em referência à lenda grega do jovem Narciso, que se apaixonou pelo seu próprio reflexo.
Assim, na nossa concepção, o indivíduo progride do narcisismo para o amor objetal. Não cremos, porém, que toda a sua libido passe do ego para os objetos. Determinada quantidade de libido é sempre retida pelo ego; mesmo quando o amor objetal é altamente desenvolvido, persiste determinada quantidade de narcisismo. O ego é um grande reservatório, do qual flui a libido destinada aos objetos e para o qual regressa, vinda dos objetos. A libido objetal era inicialmente libido do ego e pode ser outra vez convertida em tal. Para a completa sanidade, é essencial que a libido não perca essa mobilidade plena. Como ilustração dessa situação, podemos pensar em uma ameba, cuja substância viscosa desprende pseudópodes, prolongamentos pelos quais se estende a substância do corpo, os quais, contudo, podem retrair-se a qualquer momento, de modo que a forma da massa protoplásmica seja restaurada.
O que estou tentando descrever neste esboço é a teoria da libido das neuroses, sobre a qual se fundamentam todas as nossas concepções acerca da natureza desses estados mórbidos, paralelamente às medidas terapêuticas para aliviá-los. Naturalmente, consideramos as premissas da teoria da libido válidas também para o comportamento normal. Falamos do narcisismo das crianças, e é ao excessivo narcisismo do homem primitivo que atribuímos sua crença na onipotência das suas idéias e as conseqüentes tentativas de influenciar o curso dos acontecimentos do mundo exterior pela técnica da magia.
Após essa introdução, proponho-me a descrever como o narcisismo universal dos homens, o seu amor-próprio, sofreu até o presente três severos golpes por parte das pesquisas científicas.
(a) Nas primeiras de suas pesquisas, o homem acreditou, de início, que o seu domicílio, a Terra, era o centro estacionário do universo, com o sol, a lua e os planetas girando ao seu redor. Seguia, assim, ingenuamente, os ditames das percepções dos seus sentidos, pois não sentia movimento na Terra, e, todas as vezes que conseguia uma visão sem obstáculos, encontrava-se no centro de um círculo que abarcava o mundo exterior. A posição central da Terra, de mais a mais, era para ele um sinal do papel dominante desempenhado por ela no universo e parecia-lhe ajustar-se muito bem à sua propensão a considerar-se o senhor do mundo.
A destruição dessa ilusão narcisista associa-se, em nossas mentes, com o nome e a obra de Copérnico, no século XVI. Muito antes dessa época, porém, já os pitagóricos haviam lançado dúvidas sobre a posição privilegiada da Terra, e, no século III a.C., Aristarco de Samos havia declarado que a Terra era muito menor que o sol e movia-se ao redor deste corpo celeste. Mesmo a grande descoberta de Copérnico, portanto, já fora feita antes dele. Quando essa descoberta atingiu um reconhecimento geral, o amor-próprio da humanidade sofreu o seu primeiro golpe, o golpe cosmológico.
(b) No curso do desenvolvimento da civilização, o homem adquiriu uma posição dominante sobre as outras criaturas do reino animal. Não satisfeito com essa supremacia, contudo, começou a colocar um abismo entre a sua natureza e a dos animais. Negava-lhes a posse de uma razão e atribuiu a si próprio uma alma imortal, alegando uma ascendência divina que lhe permitia romper o laço de comunidade entre ele e o reino animal. Curiosamente, esse aspecto de arrogância é ainda estranho às crianças, tal como o é para o homem primitivo. É conseqüência de uma etapa posterior, mas pretensiosa, de desenvolvimento. No nível do totemismo primitivo, o homem não tinha repugnância de atribuir sua ascendência a um ancestral animal. Nos mitos, que contêm resíduos dessa antiga atitude mental, os deuses assumem formas de animais, e na arte de épocas primevas são representados com cabeças de animais. Uma criança não vê diferença entre a sua própria natureza e a dos animais. Não se espanta com animais que pensam e que falam nos contos de fadas; transfere uma emoção de medo, que sente do seu pai humano, para um cão ou um cavalo, sem pretender com isso qualquer depreciação do pai. Só quando se torna adulta é que os animais se tornam tão estranhos a ela, que usa os seus nomes para aviltar seres humanos.
Todos sabemos que, há pouco mais de meio século, as pesquisas de Charles Darwin e seus colaboradores e precursores puseram fim a essa presunção por parte do homem. O homem não é um ser diferente dos animais, ou superior a eles; ele próprio tem ascendência animal, relacionando-se mais estreitamente com algumas espécies, e mais distanciadamente com outras. As conquistas que realizou posteriormente não conseguiram apagar as evidências, tanto na sua estrutura física quanto nas suas aptidões mentais, da analogia do homem com os animais. Foi este o segundo, o golpe biológico no narcisismo do homem.
(c) O terceiro golpe, que é de natureza psicológica, talvez seja o que mais fere.
Embora assim humilhado nas suas relações externas, o homem sente-se superior dentro da própria mente. Em algum lugar do núcleo do seu ego, desenvolveu um órgão de observação a fim de manter-se atento aos seus impulsos e ações e verificar se se harmonizam com as exigências do ego. Se não se harmonizam, esses impulsos e ações são impiedosamente inibidos e afastados. Sua percepção interna, a consciência, dá ao ego notícias de todas as ocorrências importantes na operações mentais, e a vontade, dirigida por essas informações, executa o que o ego ordena e modifica tudo aquilo que procura realizar-se espontaneamente. Isso porque a mente não é uma coisa simples; ao contrário, é uma hierarquia de instâncias superiores e subordinadas, um labirinto de impulsos que se esforçam, independentemente um do outro, no sentido da ação, correspondentes à multiplicidade de instintos e de relações com o mundo externo, muitos dos quais antagônicos e incompatíveis. Para um funcionamento adequado, é necessário que a mais elevada dessas instâncias tenha conhecimento de tudo o que está acontecendo, e que sua vontade penetre em tudo, de modo que possa exercer sua influência. E, com efeito, o ego sente-se seguro quanto à integridade e fidedignidade das informações que recebe, bem como quanto à abertura dos canais através dos quais impõe suas ordens.
Em determinadas doenças - incluindo as próprias neuroses que estudam em particular -, as coisas são diferentes. O ego sente-se apreensivo; rebela-se contra os limites de poder em sua própria casa, a mente. Os pensamentos emergem de súbito, sem que se saiba de onde vêm, nem se possa fazer algo para afastá-los. Esses estranhos hóspedes parecem até ser mais poderosos do que os pensamentos que estão sob o comando do ego. Resistem a todas as medidas de coação utilizadas pela vontade, não se deixam mover pela refutação lógica e não são afetados pelas afirmações contraditórias da realidade. Ou então os impulsos surgem, parecendo como que os de um estranho, de modo que o ego os rejeita; mas, ainda assim, os teme e toma precauções contra eles. O ego diz para consigo: ‘Isto é uma doença, uma invasão estrangeira.’ Aumenta sua vigilância, mas não pode compreender por que se sente tão estranhamente paralisado.
É bem verdade que a psiquiatria nega que tais coisas signifiquem a intrusão, na mente, de maus espíritos vindos de fora; para além disso, no entanto, só consegue dizer com indiferença: ‘Degenerescência, inclinação hereditária, inferioridade constitucional!’ A psicanálise procura explicar esses distúrbios misteriosos; empenha-se em cuidadosas e laboriosas investigações, delineia hipóteses e construções científicas, até que, finalmente, possa falar assim ao ego:
‘Nada vindo de fora penetrou em você; uma parte da atividade da sua própria mente foi tirada do seu conhecimento e do comando da sua vontade. Isso, também, é porque você está tão enfraquecido em sua defesa; você está utilizando uma parte da sua força para combater a outra parte e é impossível concentrar a totalidade da sua força como você o faria contra um inimigo externo. E nem mesmo é a parte pior ou menos importante das suas forças mentais que se tornou, desse modo, antagônica e independente de você. A culpa, sou forçado a dizer, está em você mesmo. Você superestimou sua força quando achou que podia tratar seus instintos sexuais da maneira que quisesse e ignorar absolutamente as intenções desses instintos. O resultado é que se rebelaram e assumiram suas próprias vias obscuras para escapar a essa supressão; estabeleceram seus direitos de uma forma que você não pode aprovar. O modo pelo qual conseguiram isso e os caminhos que tomaram não chegaram ao seu conhecimento. Tudo o que você sabe é a conseqüência do trabalho deles - o sintoma que você experimenta como sofrimento. Assim, você não o reconhece como um derivativo dos seus próprios instintos rejeitados e não sabe que é uma satisfação substitutiva para eles.
‘Todo o processo, no entanto, só se torna possível pela circunstância única de que você está equivocado também em um outro ponto importante. Sente-se seguro de que está informado de tudo o que se passa em sua mente, se tem qualquer importância, porque nesse caso, crê você, sua consciência dá-lhe notícia disso. E se você não tem informação de algo que ocorre em sua mente, presume, confiante, que tal coisa não existe. Na verdade, você chega a considerar o que é “mental” como idêntico ao que é “consciente” - isto é, aquilo que é conhecido por você -, apesar da mais óbvia evidência de que muito mais coisas devem acontecer em sua mente, do que aquelas que chegam à sua consciência. Vamos, deixe que lhe ensinem algo sobre esse problema! O que está em sua mente não coincide com aquilo de que você está consciente; o que acontece realmente e aquilo que você sabe, são duas coisas distintas. Normalmente, admito, a inteligência que alcança a sua consciência é suficiente para as suas necessidades; e você pode nutrir a ilusão de que fica sabendo de todas as coisas importantes. Em alguns casos, porém, como no de um conflito instintual como o que descrevi, a função da sua inteligência falha e sua vontade, então, não se estende para mais além do seu conhecimento. Em todo caso, contudo, a informação que alcança sua consciência é incompleta e muitas vezes não é de minha confiança. Com freqüência, também, acontece que você só obtém informação dos eventos quando eles acabaram e quando você nada mais pode fazer para modificá-los. Mesmo se você não está doente, quem poderá dizer tudo o que está agitando sua mente, coisas que você não sabe ou das quais tem falsas informações? Você se comporta como um governante absoluto, que se contenta com as informações fornecidas pelos seus altos funcionários e jamais se mistura com o povo para ouvir a sua voz. Volte seus olhos para dentro, contemple suas próprias profundezas, aprenda primeiro a conhecer-se! Então, compreenderá por que está destinado a ficar doente e, talvez, evite adoecer no futuro.’
É assim que a psicanálise tem procurado educar o ego. Essas duas descobertas - a de que a vida dos nossos instintos sexuais não pode ser inteiramente domada, e a de que os processos mentais são, em si, inconscientes, e só atingem o ego e se submetem ao seu controle por meio de percepções incompletas e de pouca confiança -, essas duas descobertas equivalem, contudo, à afirmação de que o ego não é o senhor da sua própria casa. Juntas, representam o terceiro golpe no amor próprio do homem, o que posso chamar de golpe psicológico. Não é de espantar, então, que o ego não veja com bons olhos a psicanálise e se recuse obstinadamente a acreditar nela.
Provavelmente muito poucas pessoas podem ter compreendido o significado, para a ciência e para a vida, do reconhecimento dos processos mentais inconscientes. Não foi, no entanto, a psicanálise, apressemo-nos a acrescentar, que deu esse primeiro passo. Há filósofos famosos que podem ser citado como precursores - acima de todos, o grande pensador Schopenhauer, cuja ‘Vontade’ inconsciente equivale aos instintos mentais da psicanálise. Foi esse mesmo pensador, ademais, que em palavras de inesquecível impacto, advertiu a humanidade quanto à importância, ainda tão subestimada pela espécie humana, da sua ânsia sexual. A psicanálise tem apenas a vantagem de não haver afirmado essas duas propostas tão penosas para o narcisismo - a importância psíquica da sexualidade e a inconsciência da vida mental - sobre uma base abstrato, mas demonstrou-as em questões que tocam pessoalmente cada indivíduo e o forçam a assumir alguma atitude em relação a esses problemas. É somente por esse motivo, no entanto, que atrai sobre si a aversão e as resistências que ainda se detêm, com pavor, diante do nome do grande filósofo.












UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE DICHTUNGUND WAHRHEIT (1917)


NOTA DO EDITOR INGLÊS

EINE KINDHEITSERINNERUNG AUS DICHTUNGUND WAHRHEIT

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:
1917 Imago, 5 (2), 49-57.
1918 S.K.S.N., 4, 564-77 (1922, 2ª ed.).
1924 G.S., 10, 357-68.
1924 Dichtung und Kunst, 87-98.
1947 G.W., 12, 15-26.

(b)TRADUÇÃO INGLESA:
            A Childhood Recollection from Dichtung und Wahrheit’
1925 C.P., 4, 357-67. (Trad. de C. J. M. Hubback.)

A presente tradução inglesa é versão consideravelmente modificada daquela publicada em 1925.

Freud apresentou a primeira parte deste artigo diante da Sociedade Psicanalítica de Viena, a 13 de dezembro de 1916, e a segunda parte, diante da mesma sociedade, a 18 de abril de 1917. O artigo não foi realmente escrito por ele senão em setembro de 1917, no trem em que viajava de volta para casa, após as férias de verão das montanhas Tatra, na Hungria. A data da publicação é incerta, uma vez que a Imago saía com muita irregularidade nessa época, devido às circunstâncias da guerra. Um sumário das suas conclusões encontra-se em uma longa nota de rodapé, acrescentada por ele em 1919 ao Capítulo II do seu estudo sobre uma lembrança da infância de Leonardo da Vinci (1910c).

UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE DICHTUNGUND WAHRHEIT

‘Se tentamos recordar-nos do que nos aconteceu nos primeiros anos da infância, muitas vezes confundimos aquilo que ouvimos de outros, com o que realmente nos pertence e que provém daquilo que nós próprios testemunhamos.’ Essa observação encontra-se numa das primeiras páginas do relato feito por Goethe da sua vida [Dichtung und Wahrheit], que começou a escrever aos sessenta anos de idade. Precede-a apenas uma informação acerca do seu nascimento, que ‘teve lugar a 28 de agosto de 1749, ao meio-dia, ao bater as doze horas’. Os astros estavam numa conjunção favorável, o que pode bem ter sido a causa da sua sobrevivência, pois ao ingressar no mundo estava ‘como morto’, e somente com grandes esforços é que foi trazido à vida. Segue-se uma breve descrição da casa e do lugar onde as crianças - ele e a irmã mais nova - mais gostavam de brincar. Depois disso, no entanto, Goethe, na verdade, relata apenas um único evento que pode ser atribuído aos ‘primeiros anos da infância’ (antes dos quatro anos?) e do qual parece haver preservado a sua própria recordação.
O relato transcorre como se segue: ‘E três irmãos (de nome von Ochsenstein) que moravam por perto tornaram-se muito meus amigos; eram os órfãos de um magistrado e interessaram-se por mim, e costumavam brincar comigo de todos os modos.
‘A minha gente gostava sempre de contar toda a espécie de brincadeiras a que esses rapazes, geralmente de temperamento sério e retraído, costumavam encorajar-me. Citarei apenas uma dessas proezas. A feira de louças acabara de realizar-se e não apenas a cozinha fora aparelhada com peças que seriam de utilidade por algum tempo, como também haviam sido compradas miniaturas de utensílios da mesma espécie, para que nós, as crianças, brincássemos. Uma bela tarde, quando tudo estava tranqüilo na casa, eu brincava com meus pratos e panelinhas no vestíbulo’ (local que já havia sido descrito e que se abria para a rua) ‘e, já que isso não parecia levar a nada, arremessei um prato à rua e rejubilei-me por vê-lo despedaçar-se tão alegremente. Os von Ochsenstein, vendo o quanto me deleitava e quão jocosamente batia palmas, gritaram: “Faz outra vez!” Não hesitei em lançar um pote para a calçamento de pedra e, depois, como continuassem a gritar “Outro!” , um após o outro todos os meus pratinhos, caçarolas e panelas. Os meus vizinhos continuaram a manifestar sua aprovação e eu estava encantado por poder diverti-los. Mas todo o meu estoque fora utilizado e eles ainda gritavam “Outro!” De modo que corri direto para a cozinha e apanhei os pratos de barro, que fizeram um espetáculo ainda melhor aos partirem-se em pedaços. E assim fiquei indo e vindo, trazendo um prato após o outro, na medida em que conseguia alcançá-los no guarda-louça; e, como ainda não se contentassem com isso, arremessei à mesma destruição toda peça de louça em que consegui pôr a mão. Só mais tarde chegou alguém que interferiu e pôs fim à brincadeira. O mal estava feito, e juntar tanta louça quebrada foi pelo menos uma história divertida, com que os marotos que haviam instigado o jogo se deleitaram até o fim da vida.’
Antes de haver psicanálise, era possível ler isso sem encontrar oportunidade para uma pausa ou sem se surpreender; mas, depois, a consciência analítica tornou-se ativa. Formamos opiniões e expectativas definidas acerca das lembranças da mais remota infância, e gostaríamos de reivindicar validade universal para elas. Não deveria ser uma questão indiferente ou totalmente sem sentido todo detalhe da vida de uma criança que houvesse escapado ao esquecimento geral. Poder-se-ia, ao contrário, conjecturar que aquilo que fora preservado pela memória, era o elemento mais significativo em todo esse período da vida, quer houvesse tido tal importância na época, quer tivesse adquirido importância subseqüente por influência de eventos posteriores.
O elevado valor de tais recordações infantis, na verdade, era óbvio apenas em alguns casos. De modo geral, pareciam indiferentes, até mesmo sem valor, e, de início, era incompreensível o motivo pelo qual tais lembranças haviam resistido à amnésia; nem mesmo a pessoa que as havia conservado por tantos anos em seu próprio arsenal de memórias poderia ser nelas mais do que qualquer estranho a quem por ventura as relatasse. Antes que o seu significado pudesse ser apreciado, era necessário um certo trabalho de interpretação. Essa interpretação mostrava que seu conteúdo exigia ser substituído por qualquer outro conteúdo, ou revelava que essas lembranças relacionavam-se com outras experiências inequivocamente importantes e que haviam surgido em seu lugar como aquilo que conhecemos por ‘lembranças encobridoras’.
Em toda investigação psicanalítica da história de uma vida, é sempre possível explicar o significado das lembranças da primeira infância ao longo dessas linhas. De fato acontece habitualmente que a própria recordação à qual o paciente dá precedência, aquela que relata em primeiro lugar, com a qual introduz a história da sua vida, vem a ser a mais importante, a única que contém a chave das páginas secretas da sua mente. O pequeno episódio pueril relatado em Dichtung und Wahrheit, contudo, não chega à altura das nossas expectativas. Os modos e os meios que, com os nossos pacientes, conduzem à interpretação, certamente não se mostram aqui disponíveis; o episódio em si não parece admitir relações prováveis com impressões importantes de data posterior. Uma travessura com efeitos prejudiciais à economia doméstica, levada a efeito por instigação externa, não se enquadra certamente com tudo o que Goethe tem para nos contar acerca da sua vida tão rica de eventos. Uma impressão de inocência e irrelevância total liga-se a essa lembrança infantil, e pode ser interpretada como uma advertência para não esticar o domínio da psicanálise em demasia, nem aplicá-la a situações inadequadas.
O pequeno problema, portanto, saíra havia muito tempo da minha mente quando, certo dia, o acaso trouxe-me um paciente no qual surgiu uma lembrança da infância semelhante, numa conexão mais clara. Era um homem de vinte e sete anos, bem dotado e de elevada educação, cuja vida, na ocasião, estava inteiramente tomada por um conflito com sua mãe que afetava todos os seus interesses, e de cujos efeitos a sua capacidade de amar e de levar uma existência independente sofria bastante. Esse conflito remontava à sua infância, mais precisamente aos seus quatro anos de idade. Antes disso havia sido uma criança extremamente débil, sempre adoentada, e, ainda assim, em sua memória, esse período de doença era glorificado como um paraíso, de vez que havia tido, então, posse exclusiva e ininterrupta da afeição de sua mãe. Quando ainda não tinha quatro anos, nasceu um irmão, hoje ainda vivo, e, em sua reação a esse evento perturbador, transformara-se num menino obstinado, intratável, que provocara continuamente a severidade da mãe. Além disso, jamais recuperara o caminho certo.
Quando me procurou para o tratamento - de modo algum o motivo menos provável da sua atitude era o fato de que a mãe, uma fanática religiosa, tinha horror de psicanálise - , os ciúmes do irmão (que, de fato, se haviam manifestado, certa vez, num ataque homicida à criança no berço) estavam há muito esquecidos. Agora tratava o irmão com grande consideração; contudo, determinadas ações, curiosas e fortuitas, da sua parte (tais como súbitas e graves agressões contra os animais favoritos, como o cachorro ou os pássaros que criava cuidadosamente) provavelmente deveriam ser compreendidas como ecos desses impulsos hostis contra o irmão menor.
O paciente relatou então que, mais ou menos na época do ataque contra o bebê que tanto odiava, arremessara para a rua, pela janela da casa de campo, toda a louça que estava ao alcance da sua mão - exatamente a mesma coisa que Goethe narra da sua infância em Dichtung und Wahrheit! Posso adiantar que o paciente era estrangeiro e não estava familiarizado com a literatura alemã; jamais lera a autobiografia de Goethe.
Naturalmente, essa comunicação sugeriu-me que se poderia fazer uma tentativa para explicar a lembrança da infância, de Goethe, sobre as linhas que nos foram colocadas pela história de meu paciente. Mas poderiam mostrar-se, na infância do poeta, as condições necessárias para uma explicação? O próprio Goethe, com efeito, tornou a instigação dos irmãos von Ochsenstein responsável pela sua travessura pueril. Contudo, da sua própria narrativa pode-se deduzir que esses vizinhos mais crescidos simplesmente o encorajaram a continuar o que já estava fazendo. O começo da ação foi de sua própria iniciativa, e o motivo que ele fornece para esse começo - ‘já que isso (o jogo) não parecia levar a nada’ - é certamente, sem forçar o seu significado, uma confissão de que, à época que escreveu a obra e provavelmente por muitos anos antes disso, não tinha conhecimento de qualquer motivo adequado para o seu comportamento.
É sabido que Johann Wolfgang e sua irmã Cornelia eram os sobreviventes mais velhos de uma família de crianças muito frágeis. O Dr. Hanns Sachs teve a gentileza de fornecer-me os seguintes detalhes concernentes a esses irmãos e irmãs de Goethe que morreram na infância:
(a)Hermann Jakob, batizado numa segunda-feira, 26 de novembro de 1752; atingiu a idade de seis anos e seis semanas; foi enterrado a 13 de janeiro de 1759.
(b)Katharina Elisabetha, batizada numa segunda-feira, 9 de setembro de 1754; enterrada numa quinta-feira, 22 de dezembro de 1755. (Um ano e quatro meses de idade.)
(c)Johanna Maria, batizada na terça-feira, 29 de março de 1757 e enterrada no sábado, 11 de agosto de 1759. (Dois anos e quatro meses de idade.) (Essa foi, sem dúvida, a bonita e atraente menina celebrada pelo irmão.)
(d)Georg Adolph, batizado no domingo, 15 de junho de 1760, enterrado, aos oito meses de idade, numa quarta-feira, 18 de fevereiro de 1761.
A irmã de Goethe imediatamente posterior a ele, Cornelia Friederica Christiana, nasceu a 7 de dezembro de 1750, quando ele tinha quinze meses. Essa pequena diferença de idade exclui praticamente a possibilidade de que ela tenha sido objeto de ciúmes. É sabido que, quando as paixões despertam, as crianças jamais desenvolvem reações violentas contra os irmãos ou irmãs que já existem, mas dirigem a hostilidade contra os que nascem depois. A cena que estamos procurando interpretar também não se concilia com a pouca idade de Goethe à época em que Cornelia nasceu.
Por ocasião do nascimento do seu primeiro irmão, Hermann Jakob, Johann Wolfgang tinha três anos e três meses. Aproximadamente dois anos depois, quando tinha cerca de cinco anos, nasceu a segunda irmã. Ambas as idades entram em consideração para datar o episódio do arremesso de louças à rua. A primeira é talvez preferível; e concordaria melhor com o caso de meu paciente, que tinha mais ou menos três anos e três meses quando do nascimento de seu irmão.
Ademais, o irmão de Goethe, Hermann Jakob, a quem nos leva, assim, a nossa tentativa de interpretação, não viveu tão pouco quanto as demais crianças da família, nascidas depois. Pode constituir uma surpresa o fato de que a autobiografia não contenha uma só palavra de lembrança dele. Ao morrer, tinha mais de seis anos, e Johann Wolfgang, quase dez. O Dr. Hitschmann, que teve a gentileza de colocar à minha disposição as suas notas sobre esse assunto, diz:
Também Goethe, quando menino, viu um irmão mais jovem morrer, sem lastimar-se. Pelo menos, de acordo com Bettina Brentano, a mãe dele relatou o seguinte: “Espantou-a, como fato muito extraordinário, que ele não tenha derramado lágrimas quando da morte do irmão mais novo, Jakob, que era seu companheiro de folguedos; pelo contrário, pareceu sentir-se aborrecido com a dor dos pais e das irmãs. Quando, mais tarde, sua mãe perguntou ao jovem rebelde se ele não havia gostado do irmão, correu para o quarto e retirou debaixo da cama uma pilha de papéis, sobre os quais estavam escritas lições e pequenas histórias, dizendo que fizera tudo aquilo para ensinar o irmão.” Assim, parece que o irmão mais velho gostava de fingir-se de pai para o irmão mais novo e mostrar-lhe sua superioridade.’
Dessa maneira, pode-se formar a opinião de que o lançamento de louças pela janela foi um ato simbólico, ou, para dizê-lo mais corretamente, uma ação mágica, pela qual a criança (Goethe, bem como o meu paciente) deu expressão violenta ao seu desejo de livrar-se de um intruso que o perturbava. Não há necessidade de discutir o prazer de uma criança ao quebrar coisas; se uma ação é agradável em si, isso não é um estorvo, mas, antes, uma instigação para repeti-la em obediência também a outros propósitos. É improvável, contudo, que possa ter sido o prazer da destruição que garantiu à travessura infantil um lugar perdurável na memória do adulto. Nem há qualquer objeção a complicar o motivo da ação acrescentando-lhe um fator adicional. Uma criança que quebra louça sabe muito bem que está fazendo algo errado, pelo qual os adultos se zangarão com ele; e se não se sente restringido por saber disso, provavelmente tem um rancor contra os pais, que deseja satisfazer; quer demonstrar impertinência.
O prazer em quebrar e nas coisas quebradas seria igualmente satisfeito se o menino simplesmente arremessasse o objeto quebrável ao chão. Lançá-los à rua, pela janela, é algo que ainda assim permaneceria inexplicável. Esse ‘para fora!’ parece ser parte essencial da ação mágica, como parece advir diretamente do seu significado oculto. O novo bebê deve ser jogado fora - através da janela, talvez porque tenha vindo através da janela. Toda a ação seria, assim, equivalente à resposta verbal, que já nos é familiar, dada por uma criança a quem se diz que a cegonha lhe trouxe um irmãozinho. ‘Então a cegonha pode levá-lo embora outra vez!’, era seu veredicto.
Não obstante, não estamos cegos a objeções - à parte quaisquer incertezas internas - contra fundamentar a interpretação de um ato da infância num único paralelo. Por esse motivo, durante anos guardei só para mim a teoria acerca da pequena cena em Dichtung und Wahrheit. Até que um dia, tive um paciente que iniciou sua análise com as seguintes observações, que anotei, palavra por palavra: ‘Sou o mais velho de uma família de oito ou nove filhos. Uma das mais remotas recordações que tenho é de meu pai sentado na cama, de camisola, dizendo-me, a rir, que eu tinha um novo irmão. Eu estava então com três anos e nove meses; é esta a diferença de idade que tenho para o meu irmão seguinte. Sei, também, que pouco tempo depois (ou foi um ano antes?) joguei uma porção de coisas à rua, escovas - ou foi apenas uma escova? - , sapatos e outros objetos, pela janela. Tenho uma recordação ainda anterior. Quando tinha dois anos, passei uma noite com meus pais num quarto de hotel em Linz, a caminho de Salzkammergut. Fiquei tão inquieto durante a noite e fiz tanto barulho, que meu pai foi obrigado a bater-me.’
Depois de ouvir essa afirmação, joguei para o alto todas as dúvidas. Quando, na análise, duas coisas são trazidas uma imediatamente após a outra, como de um só fôlego, temos que interpretar essa proximidade como uma conexão de pensamento. Era, portanto, como se o paciente houvesse dito: ‘Porque descobri que ganhara um novo irmão, pouco depois arremessei aquelas coisas à rua.’ O ato de lançar as escovas, sapatos etc., pela janela, deve ser reconhecido como uma reação ao nascimento do irmão. Também não é motivo para desapontamento o fato de que, nesse exemplo, os objetos jogados fora não fossem louças, mas outras coisas, provavelmente o que quer que a criança pudesse alcançar no momento. - O jogar fora (através da janela para a rua) mostra-se, assim, como a coisa essencial no ato, ao passo que o prazer de quebrar e o barulho, bem como o tipo de objeto que ‘é executado’, são pontos variáveis e não essenciais.
Naturalmente, o princípio de haver aí uma conexão de pensamento deve também ser aplicado à terceira recordação infantil do paciente, que é a mais remota, embora fosse colocada por último na série. Isso pode ser facilmente feito. Evidentemente o menino de dois anos estava inquieto por não poder suportar os pais juntos na cama. Na viagem, foi sem dúvida impossível evitar que a criança testemunhasse esse fato. Os sentimentos que despertaram, naquela ocasião, no menino ciumento, deixaram-lhe uma amargura contra as mulheres, que persistiu e interferiu permanentemente no desenvolvimento da sua capacidade de amar.
Após fazer essas duas observações, expressei a opinião, durante uma reunião da Sociedade Psicanalítica de Viena, de que ocorrências da mesma natureza podem não ser raras entre as crianças; em resposta, a Dra. von Hug-Hellmuth colocou à minha disposição duas outras observações, que acrescento aqui como apêndice.

                                                           I

‘Com mais ou menos três anos e meio de idade, o pequeno Erich adquiriu repentinamente o hábito de lançar tudo aquilo de que não gostava, pela janela. Também o fazia, contudo, com coisas que não estavam no seu caminho e não lhe diziam respeito. No dia do aniversário do pai - tinha ele três anos e quatro meses e meio - , apanhou na cozinha um pesado rolo para massas, arrastou-o para a sala e lançou-o à rua, pela janela do apartamento do terceiro andar. Alguns dias mais tarde, jogou o pilão do almofariz e, depois, um par de pesadas botas para montanhismo que pertenciam ao pai, as quais teve primeiro de tirar do armário.‘Por essa época, a mãe do menino teve um aborto, no sétimo ou oitavo mês de gravidez, e depois disso o pequeno Erich ficou “dócil e tranqüilo, tão bom, que parecia bastante mudado” . No quinto ou sexto mês, costumava dizer repetidas vezes à mãe: “Mamãe, vou pular em cima da sua barriga” - ou “Vou dar um empurrão na sua barriga.” E pouco antes do aborto, em outubro, dizia: “Se tenho que ter um irmão, pelo menos não o quero senão depois do Natal.” ‘

                                                           II

‘Uma jovem de dezenove anos contou-me espontaneamente que sua mais remota recordação era a seguinte: “Vejo a mim mesma, terrivelmente travessa, sentada debaixo da mesa da sala de jantar, pronta para rastejar. Minha xícara de café com leite está em cima da mesa - ainda posso ver muito bem o desenho da louça - e a vovó entra na sala justamente no momento em que me preparo para arremessar a xícara pela janela.‘“ O fato é que ninguém estava se preocupando comigo e, entretanto, formara-se uma película de nata sobre o café com leite, o que sempre me causava repulsa, e ainda causa.‘“ Naquele dia nasceu o meu irmão, que é dois anos e meio mais novo que eu, de modo que ninguém havia tido tempo para mim.‘“ Sempre me dizem que eu estava insuportável naquele dia: durante o jantar joguei ao chão o copo favorito do meu pai, sujei minha roupa diversas vezes e manifestei o pior dos humores, de manhã até à noite. Na minha fúria, fiz em pedaços a boneca com que brincava no banho.” ‘Esses dois casos mal necessitam de comentário. Estabelecem, sem qualquer outro esforço analítico, que a amargura que as crianças sentem quanto à expectativa ou aparecimento real de um rival, encontra expressão no ato de arremessar objetos pela janela e em outras ações de impertinência e destrutividade. No primeiro caso, os ‘objetos pesados’ provavelmente simbolizavam a própria mãe, contra quem a raiva da criança era dirigida, uma vez que o novo bebê ainda não havia surgido. O menino de três anos e meio sabia da gravidez da mãe, e não tinha dúvidas de que ela tinha o bebê no corpo. O ‘Little Hans’ e seu particular temor de carros com muita carga podem aqui ser lembrados. No segundo caso, é digna de nota a muito pouca idade da criança, dois anos e meio.
Se voltarmos agora à lembrança da infância de Goethe e colocarmos, no lugar que ela ocupa em Dichtung und Wahrheit, o que cremos haver obtido por meio da observação de outras crianças, emerge uma seqüência de pensamento perfeitamente válida, que, de outra forma, não teríamos descoberto. Seria assim: ‘Eu era uma criança de sorte: o destino preservou a minha vida, embora tenha vindo ao mundo como morto. Além disso, o destino eliminou meu irmão, de modo que não tive que compartilhar com ele o amor de minha mãe.’ A seqüência de pensamento [em Dichtung und Wahrheit] prossegue então para alguém que morreu naqueles dias remotos - a avó, que vivia, como um espírito tranqüilo e amigável, em outra parte da casa.Já observei, no entanto, em outro trabalho, que, se um homem foi o indiscutível predileto de sua mãe, ele conserva durante toda a vida o sentimento triunfante, a confiança no êxito, que não raro traz consigo o verdadeiro êxito. E Goethe poderia muito bem ter colocado, em sua autobiografia, um cabeçalho mais ou menos como este: ‘A minha força tem suas raízes na relação que tive com minha mãe.’





















LINHAS DE PROGRESSO NA TERAPIA PSICANALÍTICA (1919 [1918])


NOTA DO EDITOR INGLÊS

WEGE DER PSYCHOANALYTISCHEN THERAPIE

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:

1919 Int. Z. Psychoanal., 5 (2), 61-8.1922 S.K.S.N., 5, 146-58.
1924 Technik und Metapsychol., 136-47.1925 G.S., 6, 136-47.
1931 Neurosenlehre und Technik, 411-22.1947 G.W., 12, 183-94.

(b)TRADUÇÃO INGLESA:
            ‘Turnings in the Ways of Psycho-Analytic Therapy’
1924 C.P., 2, 392-402. (Trad. de Joan Riviere.)

A presente tradução inglesa, com título modificado, baseia-se na publicada em 1924.Este pronunciamento foi lido por Freud perante o Quinto Congresso Psicanalítico Internacional, realizado em Budapest em 28 e 29 de setembro de 1918, pouco antes do fim da Primeira Guerra Mundial. Foi escrito durante o verão que precedeu o Congresso, que Freud passou com Anton von Freund (ver em [1]), na sua casa em Steinbruch, subúrbio de Budapest. O artigo, no qual a maior ênfase é dada aos métodos ‘ativos’, depois principalmente associados ao nome de Ferenczi, foi o último dos trabalhos puramente técnicos de Freud antes dos dois que publicou quase vinte anos mais tarde (1937c e 1937d), já no fim da vida. Ele já prenunciara esses métodos ‘ativos’ em seu pronunciamento no Congresso de Nuremberg (1910d).

LINHAS DE PROGRESSO NA TERAPIA PSICANALÍTICA

SENHORES:

Como sabem, nunca nos vangloriamos da inteireza e do acabamento definitivo de nosso conhecimento e de nossa capacidade. Estamos tão prontos agora, como o estávamos antes, a admitir as imperfeições da nossa compreensão, a aprender novas coisas e a alterar os nossos métodos de qualquer forma que os possa melhorar.
Agora que nos reunimos uma vez mais, após os longos e difíceis anos que atravessamos, sinto-me impelido a rever a posição do nosso procedimento terapêutico - ao qual na verdade, devemos o nosso lugar na sociedade humana - e a assumir uma visão geral das novas direções em que se pode desenvolver.
Assim formulamos a nossa incumbência como médicos: dar ao paciente conhecimento do inconsciente, dos impulsos reprimidos que nele existem, e, para essa finalidade, revelar as resistências que se opõem a essa extensão do seu conhecimento sobre si mesmo A revelação dessas resistências garante que serão também superadas? Certamente nem sempre; mas a nossa esperança é atingir isso explorando a transferência do paciente para a pessoa do médico, de modo a induzi-lo a adotar a nossa convicção quanto à inconveniência do processo repressivo estabelecido na infância e quanto à impossibilidade de conduzir a vida sobre o princípio de prazer. Estabeleci, em outro trabalho, as condições dinâmicas prevalecentes no novo conflito através do qual conduzimos o paciente e que substitui, nele, o seu conflito anterior - o da sua doença. Nesse aspecto, nada tenho a modificar no momento.
Chamamos de psicanálise o processo pelo qual trazemos o material mental reprimido para a consciência do paciente. Por que ‘análise’ - que significa dividir ou separar, e sugere uma analogia com o trabalho, levado a efeito pelos químicos, com substâncias que encontram na natureza e trazem para os seus laboratórios? Porque, em um importante aspecto, existe realmente uma analogia entre os dois trabalhos. Os sintomas e as manifestações patológicas do paciente, como todas as suas atividades mentais, são de natureza altamente complexa; os elementos desse composto são, no fundo,motivos, impulsos instintuais. O paciente, contudo, nada sabe a respeito desses motivos elementares, ou não os conhece com intimidade suficiente. Ensinamo-lo a compreender a maneira pela qual essas formações mentais altamente complicadas são compostas; remetemos os sintomas aos impulsos instintuais que os motivaram; assinalamos ao paciente esses motivos instintuais, que estão presentes em seus sintomas, e dos quais até então não tinha consciência - como o químico que isola a substância fundamental, o ‘elemento’ químico, do sal em que ele se combinara com outros elementos e no qual era irreconhecível. Da mesma forma, no que diz respeito àquelas manifestações mentais do paciente que não são consideradas patológicas, mostramos-lhe que apenas em certa medida ele estava consciente da sua motivação - que outros impulsos instintuais, dos quais permanecera em ignorância, haviam cooperado na causação dessas manifestações.
Mais uma vez, esclarecemos os impulsos sexuais no homem ao dividi-los em seus elementos componentes; e, quando interpretamos um sonho, ignoramos o sonho como um todo e derivamos associações dos seus elementos em separado.
Essa bem fundamentada comparação da atividade médica psicanalítica com um procedimento químico poderia sugerir à nossa terapia uma nova direção. Analisamos o paciente - isto é, dividimos os processos mentais em seus componentes elementares e demonstramos esses elementos instintuais nele, isoladamente; o que seria mais natural do que esperar que também o ajudemos a fazer uma nova e melhor combinação deles? Os senhores sabem que essa exigência tem sido realmente proposta. Disseram-nos que, após a análise de uma mente enferma, deve-se seguir uma síntese. E, relacionada com isso, tem-se expressado a preocupação de que o paciente recebe análise demais e muito pouca síntese; e segue-se então um movimento para colocar todo o peso nessa síntese, como o principal fator no efeito psicoterapêutico, para, nela, ver-se uma espécie de restauração de algo que foi destruído - destruído, por assim dizer, pela vivissecção.
Senhores, contudo não posso achar que essa psicossíntese nos estabelece qualquer nova tarefa. Se me permitisse ser franco e rude, diria que se trata apenas de uma frase vazia. Limitar-me-ei a observar que se trata simplesmente de forçar tanto uma comparação, que ela deixa de ter qualquer sentido; ou, se preferirem, que é uma exploração injustificável de um nome. Um nome, no entanto, é apenas um rótulo aplicado para distinguir uma coisa de outras coisas semelhantes, não um sílabo, uma descrição de seu conteúdo ou uma definição. E os dois objetos comparados precisam apenas coincidir num único ponto, podendo ser inteiramente diferentes um do outro em tudo o mais.
Aquilo que é psíquico, é tão único e singular, que nenhuma comparação pode refletir a sua natureza. O trabalho da psicanálise sugere analogia com a análise química, mas o sugere também, na mesma medida, com a intervenção de um cirurgião, ou com as manipulações de um ortopedista, ou com a influência de um educador. A comparação com a análise química tem a sua limitação: porque, na vida mental, temos de lidar com tendências que estão sob uma compulsão para a unificação e a combinação. Sempre que conseguimos analisar um sintoma em seus elementos, liberar um impulso instintual de um vínculo, esse impulso não permanece em isolamento, mas entra imediatamente numa nova ligação.
Para dizer a verdade, o paciente neurótico, com efeito, apresenta-se-nos com a mente dilacerada, dividida por resistências. À medida que a analisamos e eliminamos as resistências, ela se unifica; a grande unidade a que chamamos ego, ajusta-se a todos os impulsos instintuais que haviam sido expelidos (split off) e separados dele. A psicossíntese é, desse modo, atingida durante o tratamento analítico sem a nossa intervenção, automática e inevitavelmente. Criamos as condições para que isso aconteça, fragmentando os sintomas em seus elementos e removendo as resistências. Não é verdade que algo no paciente tenha sido dividido em seus componentes e aguarde, então, tranqüilamente, que de alguma forma o unifiquemos outra vez.
Os progressos na nossa terapia, portanto, sem dúvida prosseguirão ao longo de outras linhas; antes de mais nada, ao longo daquela que Ferenczi, em seu artigo ‘Technical Difficulties in an Analysis of Hysteria’ (1919), denominou recentemente ‘atividade’ por parte do analista.
Que se chegue imediatamente a um acordo sobre aquilo que queremos dizer com essa atividade. Já definimos a nossa tarefa terapêutica como algo que consiste em duas coisas: tornar consciente o material reprimido e descobrir as resistências. Nisso, somos ativos o bastante, não há dúvida. Mas devemos deixar que o paciente lide sozinho com as resistências que lhe assinalamos? Não podemos dar-lhe outro auxílio, além do estímulo que ele obtém da transferência? Não parece natural que o devamos ajudar também de outra maneira, colocando-o na situação mental mais favorável à solução do conflito que temos em vista? Afinal de contas, o que ele pode conseguir, depende, também, de uma combinação de circunstâncias externas. Devemos hesitar em alterar essa combinação, intervindo de maneira adequada? Acho que uma atividade dessa natureza, por parte do médico que analisa, é irrepreensível e inteiramente justificada.
Observem que isso abre um novo campo de técnica analítica, cujo desenvolvimento exigirá cuidadosa aplicação, e que levará a regras de procedimento bem definidas. Não tentarei apresentar-lhes hoje essa nova técnica, que ainda está em curso de evolução, mas contentar-me-ei em enunciar um princípio fundamental que provavelmente irá dominar o nosso trabalho nesse campo. É o que se segue: o tratamento analítico deve ser efetuado, na medida do possível, sob privação - num estado de abstinência.
Na medida do possível, a demonstração de que estou certo nesse ponto deve ser deixada para uma exposição mais detalhada. Por abstinência, no entanto, não se deve entender que seja agir sem qualquer satisfação - o que seria certamente impraticável; nem queremos dizer o que o termo popularmente conota, isto é, abster-se da relação sexual; significa algo diferente, que tem muito mais conexão com a dinâmica da doença e da recuperação.
Lembrar-se-ão os senhores de que foi uma frustração que tornou o paciente doente, e que seus sintomas servem-lhe de satisfações substitutivas. É possível observar, durante o tratamento, que cada melhora em sua condição reduz o grau em que se recupera e diminui a força instintual que o impele para a recuperação. Mas essa força instintual é indispensável; a redução dela coloca em perigo a nossa finalidade - a restauração da saúde do paciente. Qual, então, é a conclusão que se nos impõe inevitavelmente? Cruel como possa parecer, devemos cuidar para que o sofrimento do paciente, em um grau de um modo ou de outro efetivo, não acabe prematuramente. Se, devido ao fato de que os sintomas foram afastados e perderam o seu valor, seu sofrimento se atenua, devemos restabelecê-lo alhures, sob a forma de alguma privação apreciável; de outro modo, corremos o perigo de jamais conseguir senão melhoras insignificantes e transitórias.
Até onde eu possa verificar, o perigo ameaça a partir de duas direções, principalmente. Por um lado, quando a doença foi dominada pela análise, o paciente faz os mais assíduos esforços para criar para si, em lugar dos seus sintomas, novas satisfações substitutivas, que então carecem do aspecto de sofrimento. Faz uso da enorme capacidade de deslocamento possuída pela libido, então parcialmente liberada, com a finalidade de catexizar com a libido e promover à posição de satisfações substitutivas as mais diversas espécies de atividades, preferências e hábitos, sem excluir aqueles que já haviam sido seus. Encontra continuamente novas distrações dessa natureza, para as quais escapa a energia necessária para prosseguir o tratamento, e ele sabe como mantê-las secretas por algum tempo. É tarefa do analista detectar esses caminhos divergentes e exigir-lhe, toda vez, que os abandone, por mais inofensiva que possa ser, em si, a atividade que conduz à satisfação. O paciente meio recuperado pode também ingressar em caminhos menos inofensivos - tal como, por exemplo, se é um homem, quando procura ligar-se prematuramente a uma mulher. Pode-se observar, aliás, que o casamento infeliz e a doença física são as duas coisas que com mais freqüência tomam o lugar de uma neurose. Satisfazem particularmente o sentimento de culpa (necessidade de punição), que faz com que muitos pacientes se apeguem tão rapidamente às suas neuroses. Por uma escolha imprudente no casamento, castigam-se a si próprios; consideram uma longa doença orgânica como uma punição do destino e, conseqüentemente, muitas vezes deixam de manter as suas neuroses.
Em todas as situações como estas, a atividade por parte do médico deve assumir a forma de enérgica oposição a satisfações substitutivas prematuras. É-lhe mais fácil, contudo, evitar o segundo perigo a que se expõe a força propulsora da análise, muito embora este não deva ser subestimado. O paciente procura as suas satisfações substitutivas sobretudo no próprio tratamento, em seu relacionamento transferencial com o médico; e pode até mesmo tentar compensar-se, por esse meio, de todas as outras privações que lhe foram impostas. Algumas concessões devem, certamente, ser-lhe feitas, em maior ou menor medida, de acordo com a natureza do caso e com a individualidade do paciente. Contudo, não é bom deixar que se tornem excessivas. Qualquer analista que, talvez pela grandeza do seu coração e por sua vontade de ajudar, estende ao paciente tudo o que um ser humano pode esperar receber de outro, comete o mesmo erro econômico de que são culpadas as nossas instituições não-analíticas para pacientes nervosos. O único propósito destas é tornar tudo tão agradável quanto possível para o paciente, de modo a este poder sentir-se bem ali e alegrar-se de novamente ali refugiar-se das provações da vida. Ao fazê-lo, não tentam dar-lhe mais força para enfrentar a vida e mais capacidade para levar a cabo as suas verdadeiras incumbências nela. No tratamento analítico, tudo isso deve ser evitado. No que diz respeito às suas relações com o médico, o paciente deve ser deixado com desejos insatisfeitos em abundância. É conveniente negar-lhe precisamente aquelas satisfações que mais intensamente deseja e que mais importunamente expressa.
Não penso haver esgotado o repertório de atividade desejável por parte do médico, ao dizer que uma condição de privação deve ser mantida durante o tratamento. A atividade em outra direção durante o tratamento analítico já foi, como hão de lembrar-se, um ponto de debate entre nós e a escola suíça. Recusamo-nos, da maneira mais enfática, a transformar um paciente, que se coloca em nossas mãos em busca de auxílio, em nossa propriedade privada, a decidir por ele o seu destino, a impor-lhe os nossos próprios ideais, e, com o orgulho de um Criador, a formá-lo à nossa própria imagem e verificar que isso é bom. Ainda endosso essa recusa, e acho que é este o lugar adequado para a discrição médica, que, em outros aspectos, somos obrigados a ignorar. Aprendi também, por experiência própria, que uma tal atividade, de tão longo alcance em relação aos pacientes, não é de forma alguma necessária para os objetivos terapêuticos. Isso porque consegui ajudar pessoas com as quais nada tinha em comum - nem raça, nem educação, nem posição social, nem perspectiva de vida em geral - sem afetar sua individualidade. Na época da controvérsia, falei justamente disso, tinha a impressão de que as objeções dos nossos porta-vozes - penso que foi Ernest Jones quem assumiu o papel principal - eram por demais ásperas e inflexíveis. Não podemos evitar de aceitar para tratamento determinados pacientes que são tão desamparados e incapazes de uma vida comum, que, para eles, há que se combinar a influência analítica com a educativa; e mesmo no caso da maioria, vez por outra surgem ocasiões nas quais o médico é obrigado a assumir a posição de mestre e mentor. Mas isso deve sempre ser feito com muito cuidado, e o paciente deve ser educado para liberar e satisfazer a sua própria natureza, e não para assemelhar-se conosco.
Nosso estimado amigo J. J. Putnam, em terra americana, a qual agora se mostra tão hostil a nós, deve perdoar-nos se também não podemos aceitar a sua proposta - ou seja, a de que a psicanálise deve colocar-se a serviço de uma determinada perspectiva filosófica sobre o mundo e deve impô-la ao paciente com o propósito de enobrecer-lhe a mente. Na minha opinião, em última análise isto é apenas usar de violência, ainda que se revista dos motivos mais honrosos.
Por fim, um tipo bastante diferente de atividade torna-se necessário pela apreciação gradativamente crescente de que as várias formas de doenças tratadas por nós não podem ser manipuladas mediante a mesma técnica. Seria prematuro expô-lo detalhadamente, mas posso dar dois exemplos do modo pelo qual entra em questão um novo tipo de atividade. A nossa técnica desenvolveu-se no tratamento da histeria e ainda é dirigida, principalmente, à cura daquela afecção. As fobias, porém, já tornaram necessário que ultrapassemos os nossos antigos limites. Dificilmente se pode dominar uma fobia, se se espera até que o paciente permita à análise influenciá-lo no sentido de renunciar a ela. Nesse caso, ele jamais trará para a análise o material indispensável a uma solução convincente da fobia. Deve-se proceder de forma diferente. Tome-se o exemplo da agorafobia; existem dois tipos de agorafobia, um brando, o outro grave. Os pacientes que pertencem ao primeiro tipo sofrem de ansiedade quando vão sozinhos à rua, mas não desistiram ainda de sair desacompanhados por causa disso; os outros protegem-se da ansiedade deixando completamente de sair sozinhos. Com estes últimos, só se obtém êxito quando se consegue induzi-los, por influência da análise, a comportarem-se como os pacientes fóbicos do primeiro tipo - isto é, a ir para a rua e lutar com a ansiedade enquanto realizam a tentativa. Começa-se, portanto, por moderar a fobia; e apenas quando isso foi conseguido por exigência do médico é que afloram à mente do paciente as associações e lembranças que permitem resolver a fobia.
Nos casos graves de atos obsessivos, uma atitude de espera passiva parece ainda menos indicada. Na verdade, de um modo geral esses casos tendem a um processo ‘assintótico’ de recuperação, a um protraimento interminável do tratamento. A sua análise corre sempre o perigo de trazer muita coisa à tona e não modificar nada. Julgo existirem poucas dúvidas de que a técnica correta, aqui, só pode consistir em esperar até que o tratamento em si se torne uma compulsão, e então, com essa contracompulsão, suprimir forçosamente a compulsão da doença. Os senhores perceberão, no entanto, que esses dois exemplos que lhes dei são apenas amostras dos novos avanços para os quais a nossa terapia tende.
Agora, concluindo, tocarei de relance numa situação que pertence ao futuro - situação que parecerá fantástica a muitos dos senhores, e que, não obstante, julgo merece que estejamos com as mentes preparadas para abordá-la. Os senhores sabem que as nossas atividades terapêuticas não têm um alcance muito vasto. Somos apenas um pequeno grupo e, mesmo trabalhando muito, cada um pode dedicar-se, num ano, somente a um pequeno número de pacientes. Comparada à enorme quantidade de miséria neurótica que existe no mundo, e que talvez não precisasse existir, a quantidade que podemos resolver é quase desprezível. Ademais, as nossas necessidades de sobrevivência limitam o nosso trabalho às classes abastadas, que estão acostumadas a escolher seus próprios médicos e cuja escolha se desvia da psicanálise por toda espécie de preconceitos. Presentemente nada podemos fazer pelas camadas sociais mais amplas, que sofrem de neuroses de maneira extremamente grave.
Vamos presumir que, por meio de algum tipo de organização, consigamos aumentar os nossos números em medida suficiente para tratar uma considerável massa da população. Por outro lado, é possível prever que, mais cedo ou mais tarde, a consciência da sociedade despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente tanto direito a uma assistência à sua mente, quando o tem, agora, à ajuda oferecida pela cirurgia, e de que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos do que a tuberculose, de que, como esta, também não podem ser deixadas aos cuidados impotentes de membros individuais da comunidade. Quando isto acontecer, haverá instituições ou clínicas de pacientes externos, para as quais serão designados médicos analiticamente preparados, de modo que homens que de outra forma cederiam à bebida, mulheres que praticamente sucumbiriam ao seu fardo de privações, crianças para as quais não existe escolha a não ser o embrutecimento ou a neurose, possam tornar-se capazes, pela análise, de resistência e de trabalho eficiente. Tais tratamentos serão gratuitos. Pode ser que passe um longo tempo antes que o Estado chegue a compreender como são urgentes esses deveres. As condições atuais podem retardar ainda mais esse evento. Provavelmente essas instituições iniciar-se-ão graças à caridade privada. Mais cedo ou mais tarde, contudo, chegaremos a isso.Defrontar-nos-emos, então, com a tarefa de adaptar a nossa técnica às novas condições. Não tenho dúvidas de que a validade das nossas hipóteses psicológicas causará boa impressão também sobre as pessoas pouco instruídas, mas precisaremos buscar as formas mais simples e mais facilmente inteligíveis de expressar as nossa doutrinas teóricas. Provavelmente descobriremos que os pobres estão ainda menos prontos para partilhar as suas neuroses, do que os ricos, porque a vida dura que os espera após a recuperação não lhes oferece atrativos, e a doença dá-lhes um direito a mais à ajuda social. Muitas vezes, talvez, só poderemos conseguir alguma coisa combinando a assistência mental com certo apoio material, à maneira do Imperador José. É muito provável, também, que a aplicação em larga escala da nossa terapia nos force a fundir o ouro puro da análise livre com o cobre da sugestão direta; e também a influência hipnótica poderá ter novamente seu lugar na análise, como o tem no tratamento das neuroses de guerra. No entanto, qualquer que seja a forma que essa psicoterapia para o povo possa assumir, quaisquer que sejam os elementos dos quais se componha, os seus ingredientes mais efetivos e mais importantes continuarão a ser, certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa.



























SOBRE O ENSINO DA PSICANÁLISE NAS UNIVERSIDADES (1919[1918])


NOTA DO EDITOR INGLÊS

KELL-E AZ EGYETEMEN A PSYCHOANALYSIST TANITANI?

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:

(1918Provável data de elaboração.)
(1919Gyógyászat, 59 (13), 192. Em tradução húngara.)

(b)TRADUÇÃO INGLESA:
            ‘On the Teaching of Psycho-Analysis in Universities’

Não se encontrou vestígio do texto original em alemão.

Este artigo foi publicado pela primeira vez em tradução para o húngaro (provavelmente feita por Ferenczi) no periódico médico de Budapest Gyógyászat, a 30 de março de 1919. O título húngaro significa literalmente: ‘Deve a psicanálise ser ensinada na universidade?’. Parece ter sido um artigo de uma série, escrita por diferentes pessoas, tratando das reformas na educação médica. É provável que Freud o tenha escrito no outono de 1918, aproximadamente na época do Quinto Congresso Psicanalítico Internacional, em Budapest. Houve então uma considerável agitação entre os estudantes de medicina de Budapest quando à inclusão da psicanálise no currículo. Em março de 1919, quando um governo bolchevique assumiu temporariamente o poder na Hungria, Ferenczi foi de fato empossado como Professor de Psicanálise na universidade. - A redescoberta do artigo deveu-se ao esforço do Dr. Ludovico Rosenthal, de Buenos Aires, e a ele devemos a gentileza de haver colocado uma cópia fotostática da publicação original à nossa disposição. A presente tradução do húngaro para o inglês é baseada numa tradução feita por J. F. O’Donovan e Ludovico Rosenthal. Foi revista com a ajuda do Dr. Michael Balint. Os leitores compreenderão que se trata, na melhor hipótese, de uma versão em terceira mão das verdadeiras palavras de Freud.

SOBRE O ENSINO DA PSICANÁLISE NAS UNIVERSIDADES

A questão da conveniência do ensino da psicanálise nas universidades pode ser considerada sob dois pontos de vista: o da psicanálise e o da universidade.
(1)A inclusão da psicanálise no currículo universitário seria sem dúvida olhada com satisfação por todo psicanalista. Ao mesmo tempo, é claro que o psicanalista pode prescindir completamente da universidade sem qualquer prejuízo para si mesmo. Porque o que ele necessita, em matéria de teoria, pode ser obtido na literatura especializada e, avançando ainda mais, nos encontros científicos das sociedades psicanalíticas, bem como no contato pessoal com os membros mais experimentados dessas sociedades. No que diz respeito à experiência prática, além do que adquire com a sua própria análise pessoal, pode consegui-la ao levar a cabo os tratamentos, uma vez que consiga supervisão e orientação de psicanalistas reconhecidos.
O fato de que uma organização dessa natureza existe, deve-se, na verdade, à exclusão da psicanálise das universidades. E, é, portanto, evidente que esses sistemas de organização continuarão a desempenhar uma função efetiva enquanto persistir tal exclusão.
(2)No que concerne às universidades, a questão depende de decidirem se desejam atribuir qualquer valor à psicanálise, na formação de médicos e de cientistas. Em caso afirmativo, o problema seria então saber como incorporá-la à estrutura educacional regular.
A importância da psicanálise para a totalidade da formação médica e acadêmica fundamenta-se nos seguintes fatos:
(a)Essa formação tem sido muito justamente criticada nas últimas décadas pela maneira parcial pela qual dirige o estudante para os campos da anatomia, da física e da química, enquanto falha, por outro lado, no esclarecimento do significado dos fatores mentais nas diferentes funções vitais, bem como nas doenças e no seu tratamento. Essa deficiência na educação médica faz-se sentir mais tarde numa flagrante falha no conhecimento do médico. Essa falha não se manifestará apenas na sua falta de interesse pelos problemas mais absorventes da vida humana, na saúde ou na doença, mas também o tornará inábil no tratamento dos pacientes, de modo que até mesmo charlatões e ‘curandeiros’ terão mais efeito sobre esses pacientes do que ele.
Essa deficiência óbvia levou, algum tempo atrás, à inclusão, no currículo universitário, de cursos sobre psicologia médica. Mas, na medida em que essas aulas se baseiam na psicologia acadêmica ou na psicologia experimental (que lida apenas com questões de detalhes), não conseguem satisfazer os requisitos da formação do estudante; nem poderiam aproximá-lo mais dos problemas da vida em geral ou dos da sua profissão. Por essas razões, o lugar ocupado por esse tipo de psicologia médica no currículo mostrou-se inseguro.
Um curso sobre psicanálise, por outro lado, certamente responderia a essas exigências. Antes de chegar à psicanálise propriamente dita, seria necessário um curso introdutório, que trataria detalhadamente das relações entre a vida mental e a vida física - a base de todos os tipos de psicoterapia -, descreveria as várias espécies de procedimentos sugestivos, e, finalmente, mostraria como a psicanálise constitui o resultado e a culminância de todos os métodos anteriores de tratamento mental. A psicanálise, na verdade, mais do que qualquer outro sistema, é adequada para o ensino da psicologia ao estudante de medicina.
(b) Outra das funções da psicanálise seria proporcionar uma preparação para o estudo da psiquiatria. Esta, na sua forma atual, é exclusivamente de caráter descritivo; simplesmente ensina o estudante a reconhecer uma série de entidades patológicas, capacitando-o a distinguir quais são incuráveis e quais são perigosas para a comunidade. Sua única ligação com os outros ramos da ciência médica está na etiologia orgânica - isto é, nas suas descobertas anatômicas; mas não oferece a menor compreensão dos fatos observados. Tal compreensão só poderia ser fornecida por uma psicologia profunda.Nos Estados Unidos, de acordo com as minhas melhores informações, já se reconheceu que a psicanálise (a primeira tentativa de uma psicologia profunda) tem feito incursões bem-sucedidas por essa região inexplorada da psiquiatria. Por conseguinte, muitas escolas médicas daquele país já organizaram cursos de psicanálise como uma introdução à psiquiatria.O ensino da psicanálise teria que processar-se em duas etapas: um curso elementar, destinado a todos os estudantes de medicina, e um curso de aulas especializadas para psiquiatras.(c) Na investigação dos processos mentais e das funções do intelecto, a psicanálise segue o seu próprio método específico. A aplicação desse método não está de modo algum confinada ao campo dos distúrbios psicológicos, mas estende-se também à solução de problemas da arte, da filosofia e da religião. Nessa direção já produziu diversos novos pontos de vista e deu valiosos esclarecimentos a temas como a história da literatura, a mitologia, a história das civilizações e a filosofia da religião. Assim, o curso psicanalítico geral seria também aberto aos estudantes desses ramos do conhecimento. Os efeitos fecundadores do pensamento psicanalítico sobre essas outras disciplinas certamente contribuiriam muito para moldar uma ligação mais estreita, no sentido de uma universitas literarum, entre a ciência médica e os ramos do saber que se encontram dentro da esfera da filosofia e das artes.Para resumir, pode-se afirmar que a universidade só teria a ganhar com a inclusão, em seu currículo, do ensino da psicanálise. Esse menino, na verdade, só pode ser ministrado de maneira dogmática e crítica, por meio de aulas teóricas; isso porque essas aulas permitirão, apenas, uma oportunidade muito restrita de levar a cabo experiências ou demonstrações práticas. Para finalidades de pesquisa, seria suficiente que os professores de psicanálise tivessem acesso a um departamento hospitalar de clientes externos, que suprisse o material necessário, no que diz respeito a pacientes ‘neuróticos’. Para a psiquiatria psicanalítica, seria preciso haver também disponibilidade de um departamento de pacientes mentais internos.Devemos considerar, por último, a objeção de que, seguindo essa orientação, o estudante de medicina jamais aprenderia a psicanálise propriamente dita. Isso, de fato, é procedente, se temos em mente a verdadeira prática da psicanálise. Mas, para os objetivos que temos em vista, será suficiente que ele aprenda algo sobre psicanálise e que aprenda algo a partir da psicanálise. Afinal de contas, a formação universitária não equipa o estudante de medicina para ser um hábil cirurgião; e ninguém que escolha a cirurgia como profissão pode evitar uma formação adicional, sob a forma de vários anos de trabalho no departamento cirúrgico de um hospital.













UMA CRIANÇA É ESPANCADA - UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DA ORIGEM DAS PERVERSÕES SEXUAIS (1919)


NOTA DO EDITOR INGLÊS

‘EIN KIND WIRD GESCHLAGEN’BEITRAG ZUR KENNTNIS DER ENTSTEHUNGSEXUELLER PER VERSIONEN

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:

1919 Int. Z. Psychoanal., 5, 151-72.1922 S.K.S.N., 5, 195-228.
1924 G.S., 5, 344-75.1926 Psychoanalyse der Neurosen, 50-84.1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 124-55.
1947 G.W., 12, 197-226.

(b)TRADUÇÃO INGLESA:
            ‘“ A Child is being Beaten” A Contribution to the Study of the Originof Sexual Perversions’

1920 Int. J. Psycho-Anal., 1, 371-95. (Trad. de A. e J. Strachey.)
1924 C.P., 2, 172-201. (Os mesmos tradutores.)

A presente tradução inglesa é versão corrigida da publicada em 1924.Numa carta a Ferenczi, datada de 24 de janeiro de 1919, Freud anunciava que estava escrevendo um artigo sobre o masoquismo. O artigo foi concluído e recebeu o presente título em meados de março de 1919, e foi publicado no verão do mesmo ano.A maior parte do artigo consiste em um inquérito clínico muito detalhado sobre um tipo particular de perversão. As descobertas de Freud elucidaram particularmente o problema do masoquismo, e, como está implícito no subtítulo, o artigo era também destinado a ampliar o nosso conhecimento sobre as perversões de um modo geral. Desse ponto de vista, pode ser considerado como um complemento ao primeiro dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905d).Além do mais, no entanto, o artigo inclui uma exposição, à qual Freud atribuiu considerável importância, dos motivos que colocam em ação a repressão, com especial referência às duas teorias sobre o tema, propostas respectivamente por Fliess e por Adler (ver em [1] e [2]). O mecanismo da repressão é exaustivamente discutido em dois artigos metapsicológicos de Freud - em ‘Repressão’ (1915d) e na Seção IV de ‘O Inconsciente’ (1915e); mas a questão dos motivos que conduzem à repressão, embora seja tocada na última parte da análise do ‘Homem dos Lobos’ (1918b), pág. 116 e seg., deste volume, em nenhum outro trabalho é mais plenamente examinada do que no presente artigo. Certamente era um problema que havia interessado a Freud e o havia deixado perplexo desde os primeiros tempos, e existem muitas referências a ele na correspondência com Fliess (1950a). Já bem no fim da vida Freud voltou uma vez mais a esse problema, na última parte da sua ‘Análise Terminável e Interminável’ (1937c), onde novamente discutia as teorias de Fliess e de Adler.

UMA CRIANÇA É ESPANCADA - UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DA ORIGEM DAS PERVERSÕES SEXUAIS

                                  I

É surpreendente a freqüência com que as pessoas que procuram um tratamento analítico para a histeria ou uma neurose obsessiva, confessam haver-se abandonado à fantasia: ‘Uma criança é espancada.’ É muito provável que haja exemplos ainda mais freqüentes em um número muito maior de pessoas que não foram obrigadas a procurar análise por causa de uma doença manifesta.
A fantasia tem sentimentos de prazer relacionados com ela e, por causa deles, o paciente reproduziu-a em inumeráveis ocasiões, no passado, ou pode até mesmo ainda continuar a fazê-lo. No clímax da situação imaginária, há quase invariavelmente uma satisfação masturbatória - realizada, em outras palavras, nos órgãos genitais. De início, isso acontece voluntariamente, mas depois ocorre contra a vontade do paciente e com as características de uma obsessão.
É somente com hesitação que essa fantasia é confessada. O seu primeiro aparecimento é recordado com incerteza. O tratamento analítico do problema encontra inequívoca resistência. A vergonha e o sentimento de culpa são talvez mais intensamente provocados em relação a essa fantasia, do que quando são feitos relatos semelhantes de lembranças do início da vida sexual.
Eventualmente torna-se possível estabelecer que as primeiras fantasias dessa natureza foram nutridas muito cedo: certamente antes da idade escolar e jamais depois do quinto ou do sexto ano de vida. Quando a criança estava na escola e via outras crianças sendo espancadas pelo professor, essa experiência, se as fantasias estavam então dormentes, despertava-se de novo, ou, se ainda estavam presentes, reforçava-as e modificava-lhes perceptivelmente o conteúdo. A partir dessa ocasião, era ‘um número indefinido’ de crianças que estavam sendo espancadas. A influência da escola era tão clara que os pacientes em questão ficaram inicialmente tentados a atribuir as suas fantasias de espancamento exclusivamente a essas impressões da vida escolar, que tinham data posterior à do sexto ano de idade. Mas nunca lhes foi possível manter essa posição; as fantasias já existiam antes disso.
Embora nas séries mais adiantadas da escola não mais se batesse nas crianças, a influência dessas ocasiões era substituída, e mais do que substituída, pelos efeitos da leitura, e a importância destes em breve seria sentida. No milieu dos meus pacientes, eram quase sempre os mesmos livros cujo conteúdo dava um novo estímulo às fantasias de espancamento: aqueles acessíveis aos jovens, tais como os que eram conhecidos como ‘Bibliothèque rose‘, A Cabana do Pai Tomás etc. A criança começava a competir com essas obras de ficção, produzindo as suas próprias fantasias e construindo uma riqueza de situações e instituições, nas quais as crianças eram espancadas, ou eram punidas e disciplinadas de qualquer outra forma, por suas traquinagens e seu mau comportamento.
Essa fantasia - ‘uma criança é espancada’ - era invariavelmente catexizada com um alto grau de prazer e tinha a sua descarga num ato de agradável satisfação auto-erótica. Poder-se-ia esperar, portanto, que a visão de outra criança sendo espancada na escola fosse também uma fonte de prazer semelhante. Na realidade, porém, isto jamais acontecia. A experiência das cenas reais de espancamento na escola produzia na criança que as testemunhava um sentimento peculiarmente excitado, que era provavelmente de caráter misto e no qual a repugnância tinha larga parcela. Em alguns poucos casos, a experiência real das cenas de espancamento era sentida como algo intolerável. Ademais, era sempre uma condição das fantasias mais sofisticadas, dos anos posteriores, que o castigo não causasse à criança qualquer dano mais sério.
A questão estava em conexão com saber que relação poderia haver entre a importância das fantasias de espancamento e o papel que esse castigo corporal de verdade poderia fazer desempenhado na educação das crianças em casa. Foi impossível, por causa da parcialidade do material, confirmar a primeira suspeita de que a relação era inversa. Os indivíduos dos quais foram obtidos os dados para as análises haviam sido muito raramente espancados na infância, ou não haviam sido, em todo caso, educados com ajuda da vara. Naturalmente, contudo, cada uma daquelas crianças estava destinada a tomar conhecimento, mais cedo ou mais tarde, da força física superior dos pais ou educadores; o fato de que, em todo quarto de brinquedos ou jardim de infância, as próprias crianças chegam por vezes às vias de fato, não exige destaque especial.
No que diz respeito às fantasias simples e primitivas que não podiam, obviamente, ser atribuídas à influência das impressões escolares ou de cenas tiradas de livros, seria necessário maior informação. Quem era a criança que estava sendo espancada? A que estava criando a fantasia, ou uma outra? Era sempre a mesma criança, ou às vezes era uma diferente? Quem estava batendo na criança? Uma pessoa adulta? Se era, quem? Ou a criança imaginava-se a si mesma batendo em outra? Nada do que foi apurado pôde esclarecer todas essas perguntas; apenas a resposta hesitante: ‘Nada mais sei sobre isto: estão espancando uma criança.’
As perguntas quanto ao sexo da criança que estava sendo espancada tiveram mais êxito, mas, ainda assim, nenhuma trouxe o esclarecimento. Às vezes a resposta era: ‘Sempre rapazes’, ou ‘Apenas meninas’; com mais freqüência era: ‘Não sei’, ou ‘Não importa’. No entanto, jamais foi constatado o ponto a que as perguntas se dirigiam, a descoberta de alguma relação constante entre o sexo da criança que cria a fantasia e o da criança que está sendo espancada. De vez em quando, surgia outro detalhe característico do conteúdo da fantasia: ‘Uma criança está sendo espancada, estão-lhe batendo no traseiro nu.’
Nessas circunstâncias era impossível, de início, até mesmo decidir se o prazer relacionado à fantasia de espancamento deveria ser descrito como sádico ou como masoquista.

                                  II

Uma fantasia dessa natureza, nascida, talvez, de causas acidentais na primitiva infância, e retida com o propósito de satisfação auto-erótica, só pode, à luz do nosso conhecimento atual, ser considerada como um traço primário de perversão. Um dos componentes da função sexual desenvolveu-se, ao que parece, à frente do resto, tornou-se prematuramente independente, sofreu uma fixação, sendo por isso afastadas dos processos posteriores de desenvolvimento, e, dessa forma, dá evidência de uma constituição peculiar e anormal no indivíduo. Sabemos que uma perversão infantil desse tipo não persiste necessariamente por toda a vida; mais tarde pode ser submetida à repressão, substituída por uma formação reativa ou transformada por meio da sublimação. (É possível que a sublimação nasça de algum processo especial que seria detido pela repressão.) Se esses processos, contudo, não ocorrem, a perversão persiste até a maturidade; e sempre que encontramos uma aberração sexual em adultos - perversão, fetichismo, inversão - temos motivos para esperar que a investigação anamnésica revele um evento como o que sugeri, que conduza a uma fixação na infância. De fato, muito antes da era da psicanálise, observadores como Binet conseguiam atribuir as estranhas aberrações sexuais da maturidade a impressões similares, e precisamente ao mesmo período da infância, ou seja, o quinto ou o sexto ano de vida. Nesse ponto, porém a investigação defrontava-se com as limitações do nosso conhecimento; pois as impressões que provocavam a fixação não tinham qualquer força traumática. Eram, na sua maioria, corriqueiras e não excitantes para outras pessoas. Era impossível dizer por que o impulso sexual se submetera particularmente a uma fixação nessas impressões. Era possível, no entanto, procurar o seu significado no fato de que ofereciam uma ocasião para fixação (embora acidental) exatamente ao componente que se desenvolvera prematuramente e estava pronto para se colocar em primeiro plano. Em todo caso, tínhamos de estar preparados para chegar a um fim provisório, num ponto ou noutro, ao traçar a seqüência da conexão causal; e a constituição congenital parecia corresponder exatamente ao que se exigia para uma parada dessa natureza.
Se o componente sexual que se soltou prematuramente é o sádico, podemos esperar, com base no conhecimento derivado de outras fontes, que a sua subseqüente repressão resultará numa inclinação para a neurose obsessiva. Não se pode dizer que essa expectativa fosse contrariada pelos resultados da pesquisa. O presente artigo baseia-se no estudo exaustivo de seis casos (quatro femininos e dois masculinos). Destes, dois eram casos de neurose obsessiva; um extremamente grave e inqualificável; o outro, de severidade moderada e bastante acessível à influência. Havia um terceiro caso que, de qualquer maneira, exibia claramente traços individuais marcados de neurose obsessiva. O quarto caso, temos que admitir, era de franca histeria, com dores e inibições; e o quinto paciente, que chegou à análise simplesmente por causa de indecisão na vida, não teria absolutamente sido classificado pelo diagnóstico clínico comum, ou teria sido rejeitado como ‘psicastênico’. Não há necessidade de sentir desapontamento quanto às estatísticas. Em primeiro lugar, sabemos que nem toda tendência se desenvolve necessariamente para um distúrbio; em segundo lugar, devemo-nos contentar em explicar os fatos que estão diante de nós, e devíamos, via de regra, evitar a tarefa de esclarecer algo que não ocorreu.
A presente etapa do nosso conhecimento permitir-nos-ia abrir caminho, por enquanto, e não mais além, no sentido da compreensão das fantasias de espancamento. Na mente do médico analítico, é verdade, resta uma apreensiva suspeita de que isso não é uma solução final do problema. Ele é obrigado a admitir para si próprio que, em grande medida, essas fantasias subsistem à parte do resto do conteúdo de uma neurose e não encontram lugar adequado na sua estrutura. Mas impressões dessa espécie, conforme sei por experiência própria, são apenas postas de lado muito prontamente.

                                  III

Rigorosamente considerado - e por que não deveria essa questão ser considerada com todo o rigor? -, o trabalho analítico só merece ser reconhecido como psicanálise quando consegue remover a amnésia que oculta do adulto o seu conhecimento da infância desde o início (isto é, desde um período aproximadamente entre o segundo e o quinto ano de vida). Entre os analistas, isto não pode ser dito com muita ênfase ou repetido com muita freqüência. Os motivos para desconsiderar este lembrete são, na verdade, compreensíveis. Seria desejável obter resultados práticos num período mais curto e com menos problemas. Na época atual, porém, o conhecimento teórico é ainda muito mais importante para todos nós do que o êxito terapêutico, e quem quer que negligencie a análise infantil está fadado a cair nos mais desastrosos erros. A ênfase que é dada aqui à importância das primeiras experiências não implica em subestimar a influência das experiências posteriores. As impressões posteriores da vida, contudo, falam alto o bastante através da boca do paciente, ao passo que é o médico que tem que elevar a voz em favor das reivindicações da infância.
É na infância, entre os dois e os quatro ou cinco anos de idade, que os fatores libidinais congênitos são despertados pela primeira vez pelas experiências reais e se ligam a determinados complexos. As fantasias de espancamentos que agora estamos considerando, só se mostram mais para o final desse período, ou após o seu término. Assim, pode muito bem ser que tenham um histórico anterior, que atravessem um processo de desenvolvimento, que representam um resíduo e não uma manifestação inicial.
Essa suspeita é confirmada pela análise. A aplicação sistemática da análise demonstra que as fantasias de espancamento têm um desenvolvimento histórico que não é, de modo algum, simples, e no decorrer do qual são mais de uma vez modificadas em muitos aspectos - no que diz respeito à relação com o autor da fantasia, e quanto ao seu objeto, conteúdo e significado.
Com a finalidade de tornar mais fácil seguir essas transformações nas fantasias de espancamento, devo arriscar-me agora a restringir as minhas descrições a casos femininos, os quais, sendo quatro contra dois, constituem de qualquer modo a maior parte do meu material. Ademais, as fantasias de espancamento nos homens estão ligadas a outra questão, que deixarei de lado neste artigo. Na minha descrição, terei o cuidado de evitar ser mais esquemático do que o inevitável na apresentação de um caso comum. Se então, numa observação posterior, vier à tona uma maior complexidade de circunstâncias, estarei certo, não obstante, de termos diante de nós uma ocorrência típica e que, de mais a mais, não é de natureza incomum.
A primeira fase das fantasias de espancamento nas meninas deve pertencer, portanto, a um período muito primitivo da infância. Alguns aspectos permanecem curiosamente indefinidos, como se fossem uma questão de indiferença. A escassa informação fornecida pelas pacientes na sua primeira afirmação, ‘uma criança é espancada’, parece justificar-se em relação a essa fase. Um outro dos seus aspectos, porém, pode ser estabelecido com segurança, e no mesmo sentido, em todos os casos. A criança em que estão batendo não é jamais a que cria a fantasia, mas, invariavelmente, outra criança, com mais freqüência um irmão ou uma irmã, se existem. De vez que essa outra criança pode ser um menino ou uma menina, não há relação constante entre o sexo da criança que cria a fantasia e o daquela que está sendo espancada. A fantasia, então, não é certamente masoquista. Seria tentador chamá-la sádica, mas não se pode esquecer o fato de que a criança que cria a fantasia não é a que bate. A identidade real da pessoa que bate permanece obscura, inicialmente. Só se pode estabelecer o seguinte: não é uma criança, mas um adulto. Mais tarde, esse adulto indeterminado torna-se clara e inequivocamente reconhecível como o pai (da menina).
Essa primeira fase da fantasia de espancamento é, portanto, inteiramente representada pela frase ‘O meu pai está batendo na criança‘. Estarei denunciando uma grande parte do que será exposto depois, quando, em lugar disso, disser: ‘O meu pai está batendo na criança que eu odeio‘. Pode-se, ademais, hesitar em dizer se as características de ‘fantasia’ podem ainda assim ser atribuídas a esse primeiro passo no sentido de uma posterior fantasia de espancamento. É, talvez, antes uma questão de recordações de eventos que foram testemunhados, ou de desejos que despertam em várias ocasiões. Essas dúvidas, porém, não são importantes.
Entre essa fase e a seguinte, ocorrem profundas transformações. É certo que a pessoa que bate continua a ser a mesma (isto é, o pai); mas a criança em que está batendo transformou-se em outra e torna-se, invariavelmente, aquela que produz a fantasia. A fantasia é acompanhada por um alto grau de prazer e adquire, então, um conteúdo significativo, a cuja origem nos dedicaremos depois. Agora, portanto, as palavras seriam: ‘Estou sendo espancada pelo meu pai.’ O que é de um caráter inequivocamente masoquista.
Essa segunda fase é a mais importante e a mais significativa de todas. Pode-se dizer, porém, que, num certo sentido, jamais teve existência real. Nunca é lembrada, jamais conseguiu tornar-se consciente. É uma construção da análise, mas nem por isso é menos uma necessidade.
A terceira fase assemelha-se uma vez mais à primeira. Tem as palavras que se nos tornaram familiares por meio da afirmação do paciente. A pessoa que bate nunca é o pai, mas sim, ou é deixada indeterminada tal como na primeira fase, ou se transforma, de maneira característica, num substituto do pai, tal como um professor. A figura da criança que cria a fantasia não mais aparece nesta. Em resposta às prementes perguntas, as pacientes declaram apenas: ‘Provavelmente estou olhando.’ Em vez de uma criança sendo espancada, há agora, via de regra, várias crianças presentes. Com maior freqüência são meninos que estão sendo espancados (nas fantasias de meninas), mas nenhum deles é pessoalmente conhecido pela pessoa. A situação do espancamento, que originalmente era simples e monótona, pode passar por alterações e elaborações as mais complicadas; castigos e humilhações de outra natureza podem substituir o próprio espancamento. A característica essencial que distigue mesmo as mais simples fantasias dessa fase daquelas da primeira, e que estabelece a ligação com a fase intermediária, é, contudo, a seguinte: a fantasia liga-se agora a uma forte e inequívoca excitação sexual, proporcionando, assim, um meio para a satisfação masturbadora. É precisamente isto, porém, que é desconcertante. Por que caminho a fantasia de meninos estranhos e desconhecidos sendo espancados (uma fantasia que, nessa altura, tornou-se sádica) impôs-se à posse permanente das tendências libidinais da menina?
Não podemos ocultar de nós mesmos o fato de que as inter-relações e a seqüência das três fases da fantasia de espancamento, bem como todas as suas outras peculiaridades, permaneceram até aqui bastante ininteligíveis.

                                  IV

Se a análise é levada até o período primitivo ao qual se referem as fantasias de espancamento e do qual são recordadas, ela nos mostra a criança envolvida nas agitações do seu complexo parental.
As afeições de menina estão fixadas no pai, que provavelmente fez tudo o que podia para conquistar o seu amor e, dessa maneira, propagou as sementes de uma atitude de rancor e rivalidade da menina em relação à sua mãe. Essa atitude existe lado a lado com uma corrente de dependência afetiva da mãe e, à medida em que os anos passam, pode atingir a consciência cada vez mais clara e forçosamente, ou dar ímpeto a uma reação excessiva de dedicação à mãe. Não é, porém, com a relação entre a menina e mãe que a fantasia de espancamento está ligada. Há outras crianças à volta, apenas alguns anos mais velhas ou mais novas, de quem não gosta por toda espécie de motivos, mas principalmente porque o amor dos pais tem de ser compartilhado com elas, que, ademais, por essa razão, são repelidas com toda a energia selvagem característica da vida emocional nessa idade. Se a criança em questão é uma irmã ou irmão mais novo (como em três dos meus quatro casos), é desprezada e odiada; ainda assim atrai para si a parcela de afeição que os cegos pais estão sempre prontos a dar ao caçula, e isto é um espetáculo cuja visão não pode ser evitada. Depressa se aprende que ser espancado, mesmo que não doa muito, significa uma privação de amor e uma humilhação. E muitas crianças, que se acreditavam seguramente entronadas na inabalável afeição dos pais, foram de um só golpe derrubadas de todos os céus da sua onipotência imaginária. A idéia de o pai batendo nessa odiosa criança é, portanto, agradável, independente de ter sido realmente visto agindo assim. Significa: ‘O meu pai não ama essa criança, ama apenas a mim.’
É este, então, o conteúdo e o significado da fantasia de espancamento na sua primeira fase. A fantasia obviamente gratifica o ciúme da criança e depende do lado erótico da sua vida: mas é, também, poderosamente reforçada pelos interesses egoístas da criança. Resta, portanto, a dúvida quanto a saber se a fantasia pode ser descrita como puramente ‘sexual’, ou se podemos arriscar-nos a chamá-la de ‘sádica’.
Como é sabido, todos os sinais sobre os quais nos acostumamos a basear as nossas distinções, tendem a perder a clareza à medida em que nos aproximamos da fonte. Assim, talvez possamos dizer, em termos que recordam a profecia feita pelas Três Feiticeiras a Banquo: ‘Não claramente sexual, nem sádica, em si, mas ainda assim a natureza da qual ambos os impulsos surgirão depois.’ Em todo caso, contudo, não há motivos para suspeitar de que nessa primeira fase a fantasia já esteja a serviço de uma excitação que envolve os genitais e encontra saída por meio de um ato masturbatório.
É claro que a vida sexual da criança atingiu o estádio de organização genital, agora que o seu amor incestuoso conseguiu essa prematura escolha de objeto. Isto pode ser demonstrado mais facilmente no caso de meninos; é, contudo, também indiscutível no caso de meninas. Algo como uma premonição do que são, depois, os objetivos sexuais normais e finais, governa as tendências libidinais da criança. Podemo-nos perguntar, com razão, por que tem de ser assim; porém, podemos considerá-lo prova do fato de que os genitais já começaram a desempenhar o seu papel no processo de excitação. Nos meninos, o desejo de procriar um filho, com a mãe, jamais está ausente; nas meninas, o desejo de obter uma criança do pai é igualmente constante; e isto, apesar de serem inteiramente incapazes de formar qualquer idéia clara da maneira de realizarem esses desejos. A criança parece estar convencida de que os genitais têm algo a ver com o assunto, muito embora, em suas constantes cogitações, possa procurar pela essência da presumida intimidade entre os pais em relações de outra espécie, tais como no fato de dormirem juntos, de urinarem na presença um do outro etc.; e o material desse último tipo pode ser mais facilmente apreendido em imagens verbais, do que o mistério que está relacionado com os genitais.
Mas chega a época em que esse florescimento prematuro é estragado pela geada. Nenhum desses amores incestuosos pode evitar o destino da repressão. Podem sucumbir à ela por ocasião da descoberta de algum evento externo que leva à desilusão - tal como o desprezo inesperado, o indesejado nascimento de um novo irmão ou irmã (que é sentido como uma infidelidade) etc.; ou pode acontecer a mesma coisa devido a condições internas alheias a tais eventos, talvez simplesmente porque o anseio permaneceu por muito tempo insatisfeito. É inquestionavelmente certo que tais eventos não são as causas efetivas, mas sim, que esses casos de amor estão destinados a fracassar, mais cedo ou mais tarde, embora não possamos dizer qual o obstáculo específico. O mais provável é que eles passem, porque o seu período acabou, porque as crianças ingressaram numa nova fase de desenvolvimento, na qual são compelidas a recapitular, a partir da história da humanidade, a repressão de uma escolha objetal incestuosa, tal como, numa etapa anterior, foram obrigadas a efetuar uma escolha objetal dessa mesma natureza. Na nova fase, nenhum produto mental dos impulsos de amor incestuosos que esteja inconscientemente presente é assumido pela consciência; e nada que já tenha alcançado a consciência é dela expulso. Ao mesmo tempo em que ocorre esse processo de repressão, surge um sentimento de culpa. Este é também de origem desconhecida, mas não há dúvida de que, por qualquer que seja, está ligada aos desejos incestuosos e justificada pela persistência desses desejos no inconsciente.
A fantasia do período de amor incestuoso havia dito: ‘Ele (o meu pai) só ama a mim, e não à outra criança, pois está batendo nela.’ O sentimento de culpa não pode descobrir um castigo mais severo do que a inversão desse triunfo: ‘Não, ele não ama você, pois está batendo em você.’ Desse modo, a fantasia da segunda fase, a de ser espancada pelo pai, é uma expressão direta do sentimento de culpa da menina, ao qual o seu amor pelo pai sucumbiu agora. A fantasia, portanto, tornou-se masoquista. Até onde sei, é sempre assim; um sentimento de culpa é invariavelmente o fator que converte o sadismo em masoquismo. Certamente, porém, não é este o conteúdo total do masoquismo. O sentimento de culpa não pode ter conquistado o campo sozinho; uma parcela deve ser atribuída ao impulso de amor. Devemo-nos lembrar de que estamos lidando com crianças cujo componente sádico conseguiu, por motivos constitucionais, desenvolver-se prematura e isoladamente. É preciso não abandonar esse ponto de vista. São exatamente essas crianças que acham particularmente fácil voltar à organização pré-genital, anal-sádica, da vida sexual. Se a organização genital, que mal conseguiu firmar-se, defronta-se com repressão, a conseqüência não é apenas a de que toda representação psíquica do amor incestuoso se torna inconsciente, ou permanece inconsciente, mas existem também outro resultado: um rebaixamento regressivo da própria organização genital para um nível mais baixo. ‘O meu pai me ama’ queria expressar um sentido genital; devido à regressão, converte-se em ‘O meu pai está me batendo (estou sendo espancado pelo meu pai)’. Esse ser espancado é agora uma convergência do sentimento de culpa e do amor sexual. Não é apenas o castigo pela relação genital proibida, mas também o substituto regressivo daquela relação, e dessa última fonte deriva a excitação libidinal que se liga à fantasia a partir de então, e que encontra escoamento em atos masturbatórios. Aqui temos, pela primeira vez, a essência do masoquismo.
Essa segunda fase - a fantasia da criança de ser espancada pelo pai - permanece, via de regra, inconsciente, provavelmente em conseqüência da intensidade da repressão. Não posso explicar, não obstante, por que em um dos meus seis casos, o de um paciente masculino, era lembrada conscientemente. Esse homem preservara claramente na memória o fato de que costumava empregar a idéia de ser espancado pela mãe com a finalidade de masturbação, embora logo tenha substituído a própria mãe pelas mães dos colegas ou outras mulheres que, de alguma forma, se assemelhavam a ela. Não nos devemos esquecer de que, quando a fantasia incestuosa de um menino se converte na fantasia masoquista correspondente, ocorreu uma inversão a mais do que no caso de uma menina, ou seja, a substituição da atividade pela passividade; e esse grau adicional de distorção pode salvar a fantasia de ter que permanecer inconsciente, em conseqüência da repressão. Dessa maneira, o sentimento de culpa seria satisfeito pela regressão, em vez de o ser pela repressão. Nos casos femininos, o sentimento de culpa, em si talvez mais preciso, só podia ser apaziguado por uma combinação das duas.
Em dois dos meus quatro casos femininos, uma elaborada superestrutura de devaneios, que era de grande significado para a vida da pessoa em questão, desenvolvera-se sobre a fantasia masoquista de espancamento. A função dessa superestrutura era tornar possível um sentimento de excitação satisfeita, mesmo que houvesse abstenção do ato masturbatório. Em um desses casos, permitia-se que o conteúdo - ser espancado pelo pai - se arriscasse outra vez pela consciência, na medida em que o próprio ego do sujeito se tornasse irreconhecível por meio de um pobre disfarce. O herói dessas histórias era invariavelmente espancado (ou, depois, apenas punido, humilhado etc.) pelo seu pai.
Repito, no entanto, que a fantasia, via de regra, permanece inconsciente e só pode ser reconstruída no decorrer da análise. Esse fato talvez justifique os pacientes que dizem lembrar-se de que, para eles, a masturbação surgiu antes da terceira fase da fantasia de espancamento (o que será discutido adiante), e que essa fase era apenas uma adição posterior, feita talvez sob a impressão das cenas na escola. Toda vez que dei crédito a essas afirmações, senti-me inclinado a presumir que a masturbação estava, inicialmente, sob o domínio das fantasias inconscientes e que as conscientes só as substituíram depois.
Considero a fantasia de espancamento, na sua terceira fase, que é a mais familiar e é a sua forma final, um substituto desse tipo. Aqui a criança que cria a fantasia aparece quase como um espectador, ao passo que o pai persiste, sob a forma de um professor ou qualquer outra autoridade. A fantasia, que então se assemelha à da primeira fase, parece haver-se tornado, uma vez mais, sádica. É como que se na frase ‘O meu pai está batendo na criança, ele só ama a mim’, a ênfase tenha-se deslocado para a primeira parte, depois que a segunda sofreu repressão. Contudo, apenas a forma dessa fantasia é sádica; a satisfação que deriva assumiu a catexia libidinal da porção reprimida e, ao mesmo tempo, o sentimento de culpa que está ligado ao conteúdo daquela porção. Todas as crianças não especificadas, que estão sendo espancadas pelo professor, afinal de contas, nada mais são do que substitutos da própria criança.
Também pela primeira vez encontramos aqui algo como uma constância do sexo nas pessoas que desempenham um papel na fantasia. As crianças que estão sendo espancadas são quase invariavelmente meninos, tanto nas fantasias destes, quanto nas das meninas. Essa característica não deve ser naturalmente explicada por qualquer rivalidade entre os sexos, como se nas fantasias dos meninos devessem as meninas ser espancadas; e nada tem a ver com o sexo da criança que era odiada na primeira fase. No entanto, tal característica assinala uma complicação no caso de meninas. Quando elas se afastam do amor incestuoso pelo pai, com o seu significado genital, abandonam com facilidade o papel feminino. Põem em atividade o seu ‘complexo de masculinidade’ (Van Ophuijsen [1917]) e, a partir de então, querem apenas ser meninos. Por esse motivo, os bodes expiatórios que as representam são também meninos. Em ambos os casos de devaneio - um dos quais quase se elevou ao nível de uma obra de arte - os heróis eram sempre rapazes; na verdade as mulheres não costumavam, absolutamente, surgir nessas criações e só fizeram a primeira aparição depois de muitos anos, e, ainda assim, em papéis de menor importância.

                                  V

Espero haver exposto as minhas observações analíticas com detalhes suficientes, e gostaria apenas de acrescentar que os seis casos que mencionei com tanta freqüência não esgotam o meu material. Como outros analistas, tenho à minha disposição um número muito maior de casos que foram menos completamente pesquisados. Essas observações podem ser utilizadas em vários sentidos: para esclarecimento da gênese das perversões em geral e do masoquismo em particular, e para avaliar o papel desempenhado pela diferença de sexo na dinâmica da neurose.
O resultado mais óbvio de tal discussão é a sua aplicação à origem das perversões. O ponto de vista que trouxe para primeiro plano, a esse respeito, o reforço constitucional ou o crescimento prematuro de um único componente sexual, na verdade não está abalado: mas verifica-se que não abrange toda a verdade. A perversão não mais é um fato isolado na vida sexual da criança, mas encontra o seu lugar entre os processos típicos, para não dizer normais, de desenvolvimento que nos são familiares. É levada a uma relação com o objeto de amor incestuoso da criança, com o seu complexo de Édipo. Destaca-se, de início, na esfera desse complexo; e depois que o complexo sucumbiu, permanece, quase sempre por si, como herdeiro da carga de libido daquele complexo, oprimido pelo sentimento de culpa ligado a ele. A constituição sexual anormal, finalmente, mostrou a sua força impondo ao complexo de Édipo uma determinada direção e compelindo-o a deixar para trás um resíduo incomum.
Uma perversão na infância, como é sabido, pode tornar-se a base para a construção de uma perversão que tenha um sentido similar e que persista por toda a vida, uma perversão que consuma toda a vida sexual do sujeito. Por outro lado, a perversão pode ser interrompida e permanecer ao fundo de um desenvolvimento sexual normal, do qual, no entanto, continua a retirar uma determinada quantidade de energia. A primeira dessas alternativas já era conhecida antes da era da análise. Contudo, a investigação analítica de casos tão plenamente desenvolvidos praticamente cobre a lacuna entre as duas. Pois descobrimos muitas vezes que esses pervertidos também fazem uma tentativa para desenvolver uma atividade sexual normal, geralmente durante a puberdade; mas a tentativa não tinha força suficiente e foi abandonada diante dos obstáculos que inevitavelmente se levantam, após o que voltam à fixação infantil de uma vez por todas.
Naturalmente seria importante saber se a origem das perversões infantis a partir do complexo de Édipo pode ser afirmada como um princípio geral. Embora isto não possa ser resolvido sem mais investigações, não parece impossível. Quando nos lembramos das anamneses que foram obtidas em casos de perversão em adultos, não podemos deixar de notar que a impressão decisiva, a ‘primeira experiência’, de todos os pervertidos, fetichistas etc. dificilmente se refere a um período anterior ao sexto ano de vida. Nessa época, no entanto, o domínio do complexo de Édipo já cessou; a experiência que é recordada, e que foi efetiva de modo tão desconcertante, pode muito bem representar o legado daquele complexo. As ligações entre a experiência e o complexo, que por essa época está reprimido, estão destinadas a permanecer obscuras na medida em que a análise não esclarece o período anterior à primeira impressão ‘patogênica’. De modo que se pode imaginar como é pequeno o valor que se deve atribuir, por exemplo, a uma afirmação de que um caso de homossexualismo é congênito, quando o motivo dado para se acreditar que o seja é que, desde os seis ou os oito anos, a pessoa em questão só sentiu inclinações para o seu próprio sexo.
Se, no entanto, a derivação das perversões a partir do complexo de Édipo pode ser estabelecida de modo geral, a nossa estimativa quanto à sua importância terá adquirido força adicional. Porque, na nossa opinião, o complexo de Édipo é o verdadeiro núcleo das neuroses e a sexualidade infantil que culmina nesse complexo é que determina realmente as neuroses. O que resta do complexo no inconsciente representa a inclinação para o posterior desenvolvimento de neuroses no adulto. Dessa forma, a fantasia de espancamento e outras fixações perversas análogas também seriam apenas resíduos do complexo de Édipo, cicatrizes, por assim dizer, deixadas pelo processo que terminou, tal como o notório ‘sentimento de inferioridade’ corresponde a uma cicatriz narcísica do mesmo tipo. Ao assumir esse ponto de vista do assunto, devo dizer que concordo sem reservas com Marcinowski (1918), que recentemente o expôs de modo mais feliz. Como é sabido, esse delírio neurótico de inferioridade é apenas parcial e inteiramente compatível com a existência de uma superautovalorização derivada de outras fontes. A origem do próprio complexo de Édipo e do destino que compele o homem, provavelmente sozinho entre todos os animais, a iniciar duas vezes a sua vida sexual, primeiro, como todas as criaturas, na primitiva infância, e depois, após uma longa interrupção, uma vez mais na puberdade - todos os problemas ligados à ‘herança arcaica’ do homem -, já foram por mim debatidos em outra parte, e não tenho intenção de adentrar-me neles, neste artigo.
A nossa exposição da fantasia de espancamento pouco esclareceu a gênese do masoquismo. Para começar, parece haver confirmação do ponto de vista de que o masoquismo não é a manifestação de um instinto primário, mas se origina do sadismo que foi voltado contra o eu (self) - ou seja, por meio de regressão de um objeto para o ego.Pode-se ter como certo que os instintos com propósito passivo existem, particularmente entre as mulheres. A passividade, contudo, não é a totalidade do masoquismo. A característica do desprazer também pertence a ele - um desconcertante acompanhamento para a satisfação de um instinto. A transformação do sadismo em masoquismo parece dever-ser à influência do sentimento de culpa que participa do ato de repressão. Assim, a repressão opera, aqui, de três modos: torna inconscientes as conseqüências da organização genital, obriga essa organização a regredir ao anterior estádio sádico-anal e transforma o sadismo desse estádio em masoquismo, que é passivo e novamente, num certo sentido, narcísico. O segundo desses três efeitos torna-se possível pela fraqueza da organização genital, que deve ser pressuposta em tais casos. O terceiro torna-se necessário porque o sentimento de culpa faz tantas objeções ao sadismo, como à escolha objetal incestuosa, genitalmente concebida. Mais uma vez, a análise não nos fornece a origem no próprio sentimento de culpa. Parece ser trazido pela nova fase em que a criança ingressa e, se persiste depois, parece corresponder a uma formação semelhante a uma cicatriz, como a do sentimento de inferioridade. De acordo com a nossa orientação atual na estrutura do ego, que ainda é incerta, devíamos atribuí-lo à instância mental que se instala como uma consciência crítica sobre o resto do ego, que produz o fenômeno funcional de Silberer [1910] nos sonhos e que se desprende do ego nos delírios de observação.
Também podemos notar, de passagem, que a análise da perversão infantil tratada aqui é igualmente de grande ajuda na solução de um velho enigma - enigma que, na verdade, sempre perturbou aqueles que não aceitaram a psicanálise mais do que aceitaram os próprios analistas. Isto, ainda que, recentemente, até mesmo Bleuler [1913. Cf. Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág. 185 n., IMAGO Editora, 1972] tenha considerado importante e inexplicável o fato de que os neuróticos fazem da masturbação o ponto central do seu sentimento de culpa. Há muito presumimos que esse sentimento de culpa se relaciona com a masturbação da primitiva infância, e não com a da puberdade; e que, no essencial, deve-se ligá-lo não com o ato da masturbação, mas sim com a fantasia que, embora inconsciente, está na sua raiz - ou seja, com o complexo de Édipo.
No que diz respeito à terceira fase da fantasia de espancamento, aparentemente sádica, já expus [ver em [1]] o significado que ela adquire como veículo da excitação que impele à masturbação; e demonstrei como desperta atividades da imaginação que, por um lado, prosseguem a fantasia ao longo da mesma linha, e, por outro, a neutralizam através da compensação. Não obstante, a segunda fase, a fase inconsciente e masoquista, é incomparavelmente a mais importante. Não apenas porque continua a operar através da instância da fase que toma o seu lugar; podemos também detectar efeitos sobre o caráter, derivados diretamente da sua forma inconsciente. Pessoas que abrigam fantasias dessa espécie, desenvolvem uma sensibilidade e uma irritabilidade especial contra quem quer que possam incluir na categoria de ‘pai’. São facilmente ofendidas por uma pessoa assim e, desse modo (para sua própria tristeza), efetuam a realização da situação imaginada de serem espancadas pelo pai. Não me surpreenderia se algum dia fosse possível provar que a mesma fantasia é a base do delirante espírito litigioso da paranóia.

                                  VI

Teria sido impossível dar uma visão clara das fantasias infantis de espancamento, se não me houvesse limitado, exceto em uma ou duas relações, à situação feminina. Recapitularei rapidamente as minhas conclusões. A fantasia de espancamento da menina passa por três fases, das quais a primeira e a terceira são lembradas conscientemente, ao passo que a do meio permanece inconsciente. As duas fases conscientes parecem ser sádicas, enquanto a segunda, a inconsciente, é indubitavelmente de natureza masoquista; seu conteúdo consiste em ser a criança espancada pelo pai, e faz-se acompanhar de uma carga libidinal e de um sentimento de culpa. Na primeira e na terceira fantasia, a criança em que estão batendo é sempre alguém que não seja aquela que a imagina; na fase intermediária, é sempre a própria criança; na terceira fase, são quase sempre meninos que estão sendo espancados. A pessoa que bate é, a partir da primeira, o pai, substituído depois por alguém escolhido na categoria paternal. A fantasia inconsciente da fase média tinha primariamente um significado genital e evoluiu, por meio da repressão e da regressão, de um desejo incestuoso de ser amada pelo pai. Um outro fato, ainda que pareça não ter ligação mais estreita com o resto, é que entre a segunda e a terceira fase as meninas mudam de sexo, pois nas fantasias da última fase transformam-se em meninos.
Não consegui progredir tanto no meu conhecimento das fantasias de espancamento nos meninos, talvez porque o meu material não era favorável. Esperava, naturalmente, encontrar uma analogia completa entre a situação no caso dos meninos e no das meninas, em que a mãe toma o lugar do pai na fantasia. Essa expectativa parecia confirmar-se, pois o conteúdo da fantasia masculina que seria tomado como correspondente era, na verdade, o de ser espancado pela mãe (ou, mais tarde, por uma substituta dela). Entretanto, essa fantasia, na qual o próprio eu (self) do menino era mantido como a pessoa que estava sendo espancada, diferia da segunda fase das meninas porque conseguia tornar-se consciente. Se, por causa disso, tentarmos, no entanto, traçar um paralelo entre ela e a terceira fase da fantasia feminina, encontraremos uma nova diferença, pois a figura do próprio menino não é substituída por um número de crianças desconhecidas e indeterminadas, menos ainda por uma série de meninas. Portanto, era enganosa a expectativa de haver um paralelo completo.
Os meus casos masculinos com uma fantasia infantil de espancamento eram apenas uns poucos pacientes que não exibiam qualquer outro dano grave nas atividades sexuais; incluíam também um grande número de pessoas que teriam que ser descritas como autênticos masoquistas, no sentido de serem pervertidos sexuais. Ou eram pessoas que obtinham satisfação sexual exclusivamente pela masturbação acompanhada de fantasias masoquistas; ou eram pessoas que haviam conseguido combinar o masoquismo com a sua atividade genital, de tal modo que, paralelamente às experiências masoquistas e sob condições semelhantes, conseguiram chegar à ereção e ejaculação, ou levar a cabo uma relação normal. Além desses, havia o caso mais raro em que um masoquista é perturbado nas suas atividades pervertidas pelo aparecimento de idéias obsessivas de intensidade insuportável. Entretanto, os pervertidos que conseguem obter satisfação raramente têm ocasião de procurar analista. No que diz respeito, porém, às três categorias de masoquistas que foram mencionadas, pode haver fortes motivos para induzi-los a ir a um analista. O masturbador masoquista descobre que é absolutamente impotente se, afinal, tenta manter relações com uma mulher; e o homem que sempre efetuou a relação com o auxílio de uma idéia ou uma proeza masoquista, faz, de repente, a descoberta de que a aliança que era tão conveniente para ele não mais funciona, de que seus órgãos genitais deixaram de reagir ao estímulo masoquista. Estamos acostumados a prometer confiantemente a recuperação aos pacientes psiquicamente impotentes que nos procuram para tratamento; mas deveríamos ser mais precavidos ao fazer esse prognóstico, na medida em que a dinâmica do distúrbio nos é desconhecida. É uma surpresa desagradável se a análise revela que a causa da impotência ‘meramente psíquica’ é uma atitude tipicamente masoquista, talvez profundamente arraigada desde a infância.
No que concerne aos masoquistas do sexo masculino, no entanto, uma descoberta nos adverte para não mais seguirmos a analogia entre o caso destes e o das mulheres, mas para julgá-los independentemente. A razão é que emerge o fato de que, nas suas fantasias masoquistas, bem como nos artifícios que utilizam para a realização destas, eles invariavelmente se transferem para o papel de uma mulher; ou seja, a sua atitude masoquista coincide com uma atitude feminina. Isto pode ser facilmente demonstrado a partir de detalhes das fantasias; muitos pacientes, porém, estão, eles próprios, cônscios desse fato e dão-lhe expressão como convicção subjetiva. Não faz diferença se, num embelezamento fantasioso da cena masoquista, eles sustentam a ficção de que um menino malvado, ou um pajem, ou um aprendiz, vai ser castigado. Por outro lado, as pessoas que aplicam o castigo são sempre mulheres, nas fantasias como nos desempenhos. Isto é bastante confuso; e outra questão que deve ser colocada é saber se essa atitude feminina já forma a base do elemento masoquista na fantasia de espancamento infantil.
Deixemos, portanto, de lado as considerações sobre a situação em casos de masoquismo adulto, que é tão difícil de esclarecer, e voltemos à fantasia de espancamento infantil no sexo masculino. A análise dos primeiros anos da infância uma vez mais permite-nos fazer uma descoberta surpreendente nesse campo. A fantasia que tem por conteúdo o ser espancado pela mãe, que é consciente ou pode vir a ser consciente, não é uma fantasia primitiva. Possui um estádio precedente que é sempre inconsciente e tem por conteúdo o seguinte: ‘Estou sendo espancado pelo meu pai.‘ Esse estádio preliminar corresponde então, na verdade, à segunda fase da fantasia na menina. A fantasia familiar e consciente, ‘Estou sendo espancado pela minha mãe’, toma o lugar da terceira fase da menina, em que, como já foi mencionado, rapazes desconhecidos estão sendo surrados. Não consegui demonstrar, entre os meninos, um estádio preliminar de natureza sádica que pudesse ser colocado ao lado da primeira fase da fantasia das meninas, mas não vou expressar uma descrença final na sua existência, pois vejo prontamente a possibilidade de deparar-me com tipos mais complicados.
Na fantasia masculina - como a chamarei sumariamente e, espero, sem qualquer risco de ser mal interpretado - o ser espancado também significa ser amado (num sentido genital), embora rebaixado a um nível inferior, por causa da regressão. De maneira que a forma original da fantasia masculina inconsciente não era a que demos provisoriamente até aqui, ‘Estou sendo espancado pelo meu pai’, mas, antes, ‘Sou amado pelo meu pai.‘ A fantasia foi transformada, por processos que nos são familiares, em fantasia consciente: ‘Estou sendo espancado pela minha mãe‘. A fantasia de espancamento do menino é, portanto, passiva desde o começo e deriva de uma atitude feminina em relação ao pai. Corresponde ao complexo de Édipo tal como a fantasia feminina (a da menina); apenas a relação paralela que esperávamos encontrar entre as duas, deve ser abandonada em favor de um caráter comum de outra natureza. Em ambos os casos, a fantasia de espancamento tem sua origem numa ligação incestuosa com o pai.
Ajudará a tornar as coisas mais claras se, nesse ponto, enumero as demais similaridades e diferenças entre as fantasias de espancamento em ambos os sexos. No caso da menina, a fantasia masoquista inconsciente parte da atitude edipiana normal; no caso do menino, parte da atitude invertida, na qual o pai é tomado como objeto de amor. No caso da menina, a fantasia tem um estádio preliminar (a primeira fase), no qual o espancamento não tem um significado especial e é feito sobre uma pessoa vista com rancor ciumento. Ambos esses aspectos estão ausentes no caso do menino, mas essa diferença particular é uma das que poderiam ser removidas por uma observação mais afortunada. Na sua transição para a fantasia consciente [a terceira fase], que toma o lugar da inconsciente, a menina mantém a figura do pai e, dessa forma, conserva inalterado o sexo da pessoa que está batendo; ela, porém, muda a figura e o sexo da pessoa que está sendo espancada, de modo que, por conseqüência, um homem está batendo em crianças do sexo masculino. O menino, pelo contrário, modifica a figura e o sexo da pessoa que bate, colocando a mãe no lugar do pai; mantém, contudo, a sua própria figura, disso resultando que a pessoa que está batendo e a que está apanhando são de sexos opostos. No caso da menina, o que era originalmente uma situação masoquista (passiva) transforma-se em situação sádica, por meio de repressão, e a sua qualidade sexual é quase apagada. No caso do menino, a situação permanece masoquista e mostra uma semelhança maior com a fantasia original, com seu significado genital, de vez que existe uma diferença de sexo entre a pessoa que bate e a pessoa espancada. O menino burla o seu homossexualismo ao reprimir e remodelar a fantasia inconsciente - e o que é notável acerca da sua posterior fantasia consciente é que esta tem como conteúdo uma atitude feminina sem uma escolha homossexual de objeto. Pelo mesmo processo, por outro lado, a menina escapa inteiramente às exigências do lado erótico da sua vida. Em fantasia ela transforma-se em homem, sem se tornar ativa à maneira masculina, e nada mais é do que o espectador de um acontecimento que toma o lugar de um ato sexual.
Estamos justificados ao presumir que nenhuma grande mudança é efetuada pela regressão da fantasia inconsciente original. O que quer que seja reprimido a partir da consciência, ou nela substituído por alguma outra coisa, permanece intacto e potencialmente operativo no inconsciente. O efeito da regressão a um estádio anterior da organização sexual é outra questão. No que diz respeito a esta, somos levados a acreditar que a situação se modifica também no inconsciente. Assim, em ambos os sexos, a fantasia masoquista de ser espancado pelo pai, ainda que não a fantasia passiva de ser amado por ele, continua a viver no inconsciente depois que ocorreu a repressão. Existem, ademais, muitas indicações de que a repressão só atinge o seu objetivo de maneira muito incompleta. O menino, que tentou escapar de uma escolha homossexual de objeto, e que não mudou o seu sexo, sente-se, não obstante, como uma mulher nas suas fantasias conscientes e dota as mulheres, que o espancam, de atributos e características masculinas. A menina, que até mesmo renunciou ao seu sexo e que, de um modo geral, cumpriu um trabalho de repressão mais completo, ainda assim não se liberta do pai; não se arrisca a executar, ela própria, o espancamento; e, uma vez que se transformou em menino, são principalmente meninos que ela determina que sejam espancados.
Estou consciente de que as diferenças que descrevi entre os sexos, no que diz respeito à natureza da fantasia de espancamento, não foram suficientemente esclarecidas. Contudo, não tentarei deslindar essas complicações atribuindo a sua dependência a outros fatores, já que não considero exaustivo o material para observação. Pelo que abrange, no entanto, gostaria de utilizá-lo para testar duas teorias. Essas teorias opõem-se uma à outra, ainda que ambas tratem da relação entre a repressão e o caráter sexual, e ambas, cada uma de acordo com o seu ponto de vista, a representem como uma relação muito íntima. Posso dizer, de imediato, que sempre considerei essas teorias incorretas e ilusórias.
A primeira dessas teorias é anônima. Foi trazida ao meu conhecimento, há alguns anos atrás, por um colega com quem, na época, eu mantinha boas relações. A teoria é, pela sua ousada simplicidade, tão atraente, que a única surpresa é que não se tenha imposto na literatura do assunto, exceto por umas poucas alusões esparsas. Baseia-se no fato da constituição bissexual dos seres humanos, e afirma que a força motivadora da repressão, em cada indivíduo, é uma luta entre os dois caracteres sexuais. O sexo dominante da pessoa, aquele que é mais intensamente desenvolvido, reprimiu no inconsciente a representação mental do sexo subordinado. Portanto, o núcleo do inconsciente (quer dizer, o reprimido) é, em cada ser humano, aquele lado dele que pertence ao sexo oposto. Uma teoria como esta só pode ter um significado inteligível se presumimos que o sexo de uma pessoa seria determinado pela formação dos genitais; pois, de outro modo, não haveria certeza de qual é o sexo mais forte da pessoa, e correríamos o risco de chegar, com os resultados da pesquisa ao próprio fato que tem que servir como ponto de partida. Para, resumir a teoria: nos homens, o que é inconsciente e reprimido pode ser reduzido a impulsos instintuais femininos; o que ocorre, de forma inversa, nas mulheres.
A segunda teoria é de origem mais recente. Está de acordo com a primeira, na medida em que também representa a luta entre os dois sexos como sendo a causa decisiva da repressão. Em outros aspectos, entra em conflito com a outra teoria; ademais, busca apoio mais em fontes sociológicas do que biológicas. De acordo com essa teoria do ‘protesto masculino’, formulada por Alfred Adler, todo indivíduo faz esforços para não permanecer na inferior ‘linha feminina [de desenvolvimento]’, e empenha-se no sentido da ‘linha masculina’, da qual a satisfação pode ser derivada. Adler torna o protesto masculino responsável por toda a formação tanto do caráter quanto das neuroses. Infelizmente, faz tão pouca distinção entre os dois processos, que certamente têm que ser mantidos separados, e dá tão pouco valor, de um modo geral, ao fato da repressão, que tentar aplicar à repressão a doutrina do protesto masculino é correr o risco de ser mal compreendido. Na minha opinião, tal tentativa só nos levaria a inferir que o protesto masculino, o desejo de romper com a linha feminina, seria em todos os casos a força motivadora da repressão. A função repressora, portanto, seria sempre um impulso instintual masculino, e o reprimido seria um impulso feminino. Os sintomas, porém, seriam também conseqüência de um impulso feminino, pois não podemos suprimir o aspecto característico dos sintomas - isto é, que são substitutos daquilo que foi reprimido, substitutos que se impuseram apesar da repressão.
Tomemos então essas duas teorias, as quais se pode dizer que têm em comum uma sexualização do processo de repressão, e testemo-las, aplicando-as ao exemplo das fantasias de espancamento que estivemos estudando. A fantasia original, ‘Estou sendo espancada pelo meu pai’, corresponde, no caso de menino, a uma atitude feminina, e é, portanto, expressão daquela parte da sua propensão que pertence ao sexo oposto. Se essa parte dele se submete à repressão, a primeira teoria parece mostrar-se correta, pois essa teoria estabelece como regra que aquilo que pertence ao sexo oposto é idêntico ao reprimido. Dificilmente corresponde às nossas expectativas, é verdade, quando descobrimos que a fantasia consciente, que nasce depois que a repressão foi cumprida, exibe, ainda assim, a atitude feminina mais uma vez, embora desta feita dirigida para a mãe. Mas não entraremos em problemas tão duvidosos, quando toda a questão pode ser resolvida tão rapidamente. Não pode haver dúvidas de que a fantasia original no caso da menina, ‘Estou sendo espancada (isto é, sou amada) pelo meu pai’, representa uma atitude feminina e corresponde ao seu sexo manifesto e dominante; de acordo com a teoria, portanto, deveria escapar à repressão e não haveria necessidade de tornar-se inconsciente. Na verdade, porém, torna-se inconsciente, e é substituída por uma fantasia consciente que nega o caráter sexual manifesto da menina. A teoria é, portanto, inútil como explicação das fantasias de espancamento, e os fatos a contradizem. Poder-se-ia objetar que é precisamente em meninos pouco viris e em meninas pouco femininas que surgiram essas fantasias de espancamento e passaram por essas vicissitudes; ou que seria uma característica de feminilidade no menino, e de masculinidade, na menina, responsável pela criação de uma fantasia passiva, no menino, e pela sua repressão, na menina. Deveríamos estar propensos a concordar com esse ponto de vista, mas não seria menos impossível defender a suposta relação entre o caráter sexual manifesto e a escolha do que está destinado à repressão. Em último recurso, só podemos verificar que, tanto no homem como na mulher, encontram-se impulsos instintuais masculinos e femininos, e que cada um igualmente pode muito bem ser submetido à repressão e, assim, tornar-se inconsciente.
A teoria do protesto masculino parece manter muito melhor o seu fundamento ao ser testada em relação às fantasias de espancamento. Tanto no caso de meninos como de meninas, a fantasia de espancamento corresponde a uma atitude feminina - isto é, uma atitude na qual o indivíduo se demora na ‘linha feminina’ - e ambos os sexos apressam-se em libertar-se dessa atitude, reprimindo a fantasia. Não obstante, parece que apenas na menina o protesto masculino está ligado a um êxito completo, e nesse caso, de fato, poder-se-ia encontrar um exemplo ideal da operação do protesto masculino. Com o menino, o resultado não é inteiramente satisfatório; a linha feminina não é abandonada, e o menino não é certamente ‘bem-sucedido’ na sua fantasia masoquista consciente. Concordaria, portanto, com as expectativas que nascem da teoria, se reconhecêssemos que essa fantasia era um sintoma que passara a existir pelo fracasso do protesto masculino. É naturalmente perturbador o fato de que a fantasia da menina, que deve a sua origem às forças da repressão, tenha também o valor e o significado de um sintoma. Nesse exemplo, onde o protesto masculino atingiu plenamente o seu objetivo, deve estar certamente ausente a condição que determina a formação de um sintoma.
Antes que sejamos levados, por essa dificuldade, a suspeitar de que toda a concepção do protesto masculino é inadequada ao problema das neuroses e das perversões, e de que sua aplicação a esses problemas é infrutífera, deixemos por um momento as fantasias de espancamento passivas e voltemos nossa atenção para outras manifestações instintuais da vida sexual infantil - manifestações que foram igualmente submetidas à repressão. Ninguém pode duvidar que existem também desejos e fantasias que mantêm a linha masculina a partir da sua própria natureza, e que são expressão de impulsos instintuais masculinos - tendências sádicas, por exemplo, ou os sentimentos lúbricos de um menino em relação à mãe, que se originam do complexo de Édipo normal. Não é menos certo que esses impulsos, também, são colhidos pela repressão. Se o protesto masculino deve ser tomado como algo que explica satisfatoriamente a repressão das fantasias passivas (que depois se tornam masoquistas), por essa mesma razão torna-se, então, totalmente inaplicável ao caso oposto, de fantasias ativas. Isto é, a doutrina do protesto masculino é completamente incompatível com o fato da repressão. A não ser que estejamos preparados para jogar fora tudo o que foi adquirido em psicologia desde o primeiro tratamento catártico de Breuer, não podemos esperar que o princípio do protesto masculino ganhe algum significado na elucidação das neuroses e das perversões.
A teoria da psicanálise (uma teoria fundamentada na observação) sustenta com firmeza o ponto de vista de que as forças motivadoras da repressão não devem ser sexualizadas. A herança arcaica do homem forma o núcleo da mente inconsciente; e qualquer que seja a parte daquela herança que tenha de ser deixada para trás no avanço para as fases posteriores de desenvolvimento, porque não serve ou é incompatível com o que é novo, e lhe é prejudicial, surge uma vítima do processo de repressão. Essa seleção é feita com mais êxito com um grupo de instintos do que com o outro. Em virtude de circunstâncias particulares que já foram freqüentemente assinaladas, o segundo grupo, o dos instintos sexuais, é capaz de derrotar as intenções de repressão e de forçar sua representação por formações substitutivas de natureza perturbadora. Por esse motivo, a sexualidade infantil, que é mantida sob repressão, atua como a principal força motivadora na formação de sintomas; e a parte essencial do seu conteúdo, o complexo de Édipo, é o complexo nuclear das neuroses. Espero haver levantado, neste artigo, a expectativa de que as aberrações sexuais da infância, bem como as da maturidade, são ramificações do mesmo complexo. [Algumas outras anotações acerca da primeira fase da fantasia de espancamento em meninas podem ser encontradas em um artigo posterior de Freud sobre a distinção anatômica entre os sexos (1925j), Edição Standard Brasileira, Vol. XIX, págs. 315-16, IMAGO Editora, 1976.]








INTRODUÇÃO A A PSICANÁLISE E AS NEUROSES DE GUERRA (1919)


NOTA DO EDITOR INGLÊS


INTRODUÇÃO A ZUR PSYCHOANALYSE DERKRIEGSNEUROSEN

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:

1919 Leipzig e Viena: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. 3-7.
1928 G.S., 11, 252-5.
1931 Neurosenlehre und Technik, 310-15.
1947 G.W., 12, 321-4.

(b)TRADUÇÕES INGLESAS:
Introduction to Psycho-Analysis and the War Neuroses1921 Londres, Viena e Nova Iorque: International Psycho-Analytical Press.1-4.

1950 C.P., 5, 83-7. (Trad. de J. Strachey.) (Sob o título ‘Psycho-Analysis and War Neuroses’.)

Parece provável que a tradução inglesa publicada em 1921 tenha sido feita por Ernest Jones. A presente tradução inglesa é versão ligeiramente corrigida da publicada em 1950.
As atas do Quinto Congresso Psicanalítico Internacional, realizado em Budapest a 28 e 29 de setembro de 1918, no qual Freud leu a comunicação transcrita em [1] e segs., acima, incluíam também um simpósio sobre ‘A Psicanálise das Neuroses de Guerra’, que foi aberto com três artigos, lidos respectivamente por Sándor Ferenczi, Karl Abraham e Ernst Simmel. Esses três artigos, junto com outro de Ernst Jones sobre o mesmo tema, que havia sido lido em Londres diante da Royal Society of Medicine, a 9 de abril de 1918, foram publicados um ano mais tarde num pequeno volume, o primeiro a ser editado pela recém-fundada Internationaler Pscychoanalytischer Verlag (ver adiante, em [1]). Nesse volume os artigos eram precedidos por esta breve introdução de Freud. Na tradução inglesa original, contudo em nenhuma das edições alemãs, esta introdução está datada da ‘Primavera de 1919’.
Freud voltou ao tema do tratamento das neuroses de guerra num Memorandum apresentado por ele a uma comissão estabelecida pelo Ministério da Guerra austríaco no ano seguinte (Freud 1955c [1920]). Esse texto foi impresso como apêndice a este artigo.


INTRODUÇÃO A A PSICANÁLISE E AS NEUROSES DE GUERRA

Este pequeno livro sobre as neuroses de guerra - volume que inaugura a nossa Internationale psychoanalytische Bibliothek - trata de um tema que até recentemente desfrutou a vantagem de ser dos mais atuais. Quando foi exposto no Quinto Congresso Psicanalítico Internacional, que foi realizado em Budapest em setembro de 1918, representantes oficiais dos mais altos escalões das potências centro-européias estavam presentes às comunicações e demais atividades, como observadores. O esperançoso resultado desse primeiro contato foi a promessa de se estabelecerem centros psicanalíticos, nos quais médicos com formação analítica teriam tempo e oportunidade para estudar a natureza desses intrincados distúrbios e o efeito terapêutico exercido sobre eles pela psicanálise. Antes que essas propostas pudessem ser postas em ação, a guerra chegou ao fim, as organizações estatais ruíram e o interesse pelas neuroses de guerra deu lugar a outras preocupações. No entanto, é significativo o fato de que, quando as condições de guerra cessaram de operar, a maior parte das perturbações neuróticas provocadas pela guerra desapareceu simultaneamente. A oportunidade para uma investigação completa dessas afecções foi, assim, lamentavelmente perdida - embora, devemos acrescentar, a primitiva ocorrência de tal oportunidade não seja uma coisa desejável.
Esse episódio, porém, ainda que esteja agora encerrado, não deixou de ter uma importante influência sobre a difusão da psicanálise. Os médicos que até então haviam evitado qualquer aproximação das teorias psicanalíticas, foram levados a um contato mais estreito com elas quando, no decorrer de suas obrigações como médicos do exército, foram obrigados a lidar com as neuroses de guerra. O leitor poderá deduzir, do artigo de Ferenczi, com que hesitações e sob que disfarces esses contatos mais íntimos foram feitos. Alguns dos fatores que a psicanálise havia reconhecido e descrito há muito, ao trabalhar com neuroses em tempos de paz - a origem psicogênica dos sintomas, a importância dos impulsos instintuais inconscientes, o papel desempenhado, ao lidar com os conflitos mentais, pelo ganho primário de estar doente (‘a fuga para a doença’) - observou-se estarem igualmente presentes nas neuroses de guerra e foram aceitos quase universalmente. Também os estudos de Simmel demonstram que êxitos se poderia alcançar tratando os neuróticos de guerra pelo método da catarse, que, como sabemos, foi o primeiro passo no sentido de uma técnica psicanalítica.
Não há, no entanto, necessidade de considerar que essas abordagens à psicanálise impliquem em qualquer reconciliação ou qualquer apaziguamento da oposição. Suponha-se que alguém rejeitou até hoje a totalidade de um complexo de proposições interdependentes, mas agora encontra-se, subitamente, em posição de convencer-se da verdade de uma parte do todo. Poder-se-ia pensar que começará a hesitar quanto à sua oposição em geral e a permitir-se determinado grau de expectativa deferente de que a outra parte, sobre a qual não teve experiência pessoal e não pode, por isso mesmo, formar juízo próprio, também possa confirmar-se como verdadeira. Essa outra parte da teoria psicanalítica, com a qual o estudo das neuroses de guerra não entrou em contato, é no sentido de que as forças motivadoras que se expressam na formação dos sintomas são sexuais e que as neuroses nascem de um conflito entre o ego e os instintos sexuais que este repudia. (‘Sexualidade’, neste contexto, deve ser entendida no sentido amplo em que é usada na psicanálise e não se deve confundir com o conceito mais limitado de ‘genitalidade’.) Não deixa de ser verdade, como observa Ernest Jones na sua contribuição a este volume, que essa parte da teoria não se mostrou ainda aplicável às neuroses de guerra. O trabalho que poderia provar o contrário não foi realizado ainda. Pode ser que as neuroses de guerra não sejam absolutamente material adequado para este propósito. Mas os oponentes da psicanálise, cuja aversão à sexualidade é evidentemente mais forte do que a sua lógica, apressaram-se a proclamar que a investigação das neuroses de guerra desmentiu finalmente essa parte da teoria psicanalítica. Aqui, incorreram eles em uma ligeira confusão. Se a investigação das neuroses de guerra (e uma investigação muito superficial) não demonstrou que a teoria sexual das neuroses é correta, isto é algo muito diferente de mostrar que aquela teoria é incorreta. Com o auxílio de uma atitude imparcial e um pouco de boa vontade, não seria difícil encontrar o caminho para um futuro esclarecimento do assunto.
As neuroses de guerra, na medida em que se distinguem das neuroses comuns por características particulares, devem ser consideradas como neuroses traumáticas cuja ocorrência se tornou possível ou foi provocada por um conflito no ego. O artigo de Abraham propicia uma boa prova desse conflito, que foi também reconhecido pelos autores ingleses e norte-americanos citados por Jones. O conflito é entre o velho ego pacífico do soldado e o seu novo ego bélico, e torna-se agudo tão logo o ego pacífico compreende que perigo corre ele de perder a vida devido à temeridade do seu recém-formado e parasítico duplo. Seria igualmente verdadeiro dizer que o antigo ego está-se protegendo de um perigo mortal ao fugir para uma neurose traumática, ou dizer que está defendendo-se do novo ego, o qual vê como uma ameaça à sua vida. Dessa forma, a precondição das neuroses de guerra, o solo que as nutre, pareceria ser um exército nacional [recrutado]; não haveria possibilidade de surgirem neuroses num exército de soldados profissionais ou de mercenários.
À parte isso, as neuroses de guerra são apenas neuroses traumáticas, que, como sabemos, ocorrem em tempos de paz também, após experiências assustadoras ou graves acidentes, sem qualquer referência a um conflito no ego.
A teoria da etiologia sexual das neuroses ou, como preferimos dizer, a teoria da libido das neuroses, foi originalmente exposta apenas em relação às neuroses de transferência da época de paz e é fácil de demonstrar, no caso destas, pelo uso da técnica de análise. A sua aplicação, porém, a outros distúrbios que agrupamos depois como as neuroses narcísicas, já encontrou dificuldades. Uma demência precoce, uma paranóia ou uma melancolia comuns são, essencialmente, material bastante inadequado para demonstrar a validade da teoria da libido ou para servir como uma primeira introdução à compreensão dessa teoria; e é por esse motivo que os psiquiatras, que omitem as neuroses de transferência, são incapazes de aceitá-la. As neuroses traumáticas de tempos de paz, porém, foram sempre consideradas, nesse aspecto, como o material mais refratário de todos; de modo que a emergência das neuroses de guerra não podia introduzir qualquer fator novo na situação que já existia.
Só se tornou possível estender a teoria da libido às neuroses narcísicas depois que o conceito de uma ‘libido narcísica’ foi exposto e aplicado - isto é, um conceito de uma quantidade de energia sexual ligada ao próprio ego e que encontra satisfação no ego, tal como habitualmente se encontra satisfação apenas em objetos. Esse desenvolvimento inteiramente legítimo do conceito de sexualidade promete fazer pelas neuroses mais graves e pelas psicoses tanto quanto se possa esperar de uma teoria que está avançando com uma base empírica. As neuroses traumáticas de paz ajustar-se-ão também ao esquema, assim que se alcance um resultado positivo nas investigações que fazemos as relações que sem dúvida existem entre o medo, a ansiedade e a libido narcísica.
As neuroses traumáticas e as neuroses de guerra podem proclamar em voz muito alta os efeitos do perigo mortal e podem ficar em silêncio ou falar apenas em tom surdo dos efeitos da frustração no amor. Mas, por outro lado, as neuroses de transferência no amor. Mas, por outro lado, as neuroses de transferência comuns, de tempos de paz, não dão valor etiológico ao fator de perigo mortal que, na antiga categoria das neuroses, desempenham um papel tão poderoso. Até mesmo se sustenta que as neuroses de tempos de paz são provocadas pela indulgência, pela boa vida e pela inatividade - que proporcionariam um contraste interessante em relação às condições de vida sob as quais se desenvolvem as neuroses de guerra. Se seguissem o exemplo dos seus oponentes, os psicanalistas, ao descobrirem que seus pacientes adoeceram devido à frustração no amor (devido aos clamores da libido insatisfeita), teriam que sustentar que não podem existir coisas tais como neuroses de perigo ou que os distúrbios que surgem após experiências assustadoras não são neuroses. Não têm, é claro, intenção de afirmar qualquer coisa desse gênero. Ao contrário, ocorre-lhes uma possibilidade conveniente de juntar, numa única hipótese, os dois conjuntos de fatos aparentemente divergentes. Nas neuroses traumáticas e de guerra, o ego humano defende-se de um perigo que o ameaça de fora ou que está incorporado a uma forma assumida pelo próprio ego. Nas neuroses de transferência, em época de paz, o inimigo do qual o ego se defende é, na verdade, a libido, cujas exigências lhe parecem ameaçadoras. Em ambos os casos, o ego tem medo de ser prejudicado - no segundo caso, pela libido, e no primeiro, pela violência externa. De fato, poder-se-ia dizer que, no caso das neuroses de guerra, em contraste com as neuroses traumáticas puras e de modo semelhante as neuroses de transferência, o que é temido é, não obstante, um inimigo interno. As dificuldades teóricas que se erguem no caminho de uma hipótese unificadora desse tipo não parecem insuperáveis: afinal de contas, temos todo o direito de descrever a repressão, que está na base de cada neurose, como uma reação ao trauma - como uma neurose traumática elementar.

APÊNDICE - MEMORANDUM SOBRE O TRATAMENTO ELÉTRICO DOS NEURÓTICOS DE GUERRA (1955 [1920])

Havia muitos pacientes, mesmo em tempos de paz, que, depois de traumas (isto é, após experiências assustadoras e perigosas, tais como acidentes ferroviários etc.), exibiam graves distúrbios na vida mental e na atividade nervosa, sem que os médicos tivessem chegado a um acordo sobre tais estados. Alguns supunham que, em tais pacientes, tratava-se de uma questão de graves danos no sistema nervoso, semelhantes às hemorragias e inflamações que ocorrem em doenças não traumáticas. E quando o exame anatômico deixava de estabelecer tais processos, eles ainda assim sustentaram a crença de que mudanças mais delicadas nos tecidos eram a causa dos sintomas observados. Classificavam, portanto, esses casos traumáticos entre as doenças orgânicas. Outros médicos afirmavam, desde o início, que esses estados só podiam ser considerados perturbações funcionais e que o sistema nervoso permaneceria anatomicamente intacto. Mas a opinião médica há muito encontrara dificuldades para explicar como tão graves perturbações de função podiam ocorrer sem prejuízo maior para o órgão.
A guerra que acabou recentemente originou e trouxe à observação médica um número imenso desses casos traumáticos. No fim, a controvérsia foi decidida em favor do ponto de vista funcional. A grande maioria dos médicos não mais acredita que os assim chamados ‘neuróticos de guerra’ estejam doentes em conseqüência de danos orgânicos tangíveis ao sistema nervoso, e os de mais visão entre eles já decidiram, em vez de usar a descrição indefinida de ‘mudança funcional’, introduzir o termo não ambíguo ‘mudança mental’.
Apesar de que as neuroses de guerra se manifestaram, em sua maior parte, como perturbações motoras - tremores e paralisias -, e embora fosse plausível supor que um impacto tão grande como aquele produzido pela concussão devida à explosão de uma granada nas proximidades, ou o de ser soterrado por um deslizamento do terreno, levaria a enormes efeitos mecânicos, foram feitas, contudo, observações que não deixaram dúvidas quanto à natureza psíquica das causas das denominadas neuroses de guerra. Como se podia discutir esse fato quando os mesmos sintomas apareciam também por trás da frente da batalha, longe dos horrores da guerra, ou imediatamente após o regresso de uma licença? Os médicos foram levados, portanto, a considerar os neuróticos de guerra numa perspectiva semelhante àquela em que se consideram os pacientes nervosos dos tempos de paz.
Aquilo que é conhecido como escola psicanalítica de psiquiatria, que foi iniciada por mim, havia ensinado, durante os últimos vinte e cinco anos, que as neuroses da paz podiam ser atribuídas a perturbações da vida emocional. Essa explicação era aplicada agora, de modo bastante geral, aos neuróticos de guerra. Afirmamos também que os pacientes neuróticos sofriam de conflitos mentais e que os desejos e inclinações que se expressavam nos sintomas eram desconhecidos dos próprios pacientes - isto é, eram inconscientes. Foi fácil, portanto, inferir que a causa imediata de todas as neuroses de guerra era uma inclinação inconsciente, no soldado, para afastar-se das exigências perigosas ou ultrajantes para os seus sentimentos, feitas sobre ele pelo serviço ativo. Medo de perder a própria vida, oposição à ordem de matar outras pessoas, rebeldia contra a supressão implacável da própria personalidade pelos seus superiores - eram estas as mais importantes fontes afetivas das quais se nutria a tendência para escapar da guerra.
Um soldado no qual esse motivos afetivos fossem muito poderosos ou claramente conscientes teria sido obrigado, se fosse um homem saudável, a desertar ou a fingir-se doente. Apenas a menor parcela de neuróticos da guerra, no entanto, fingiu-se doente para escapar aos deveres; os impulsos emocionais que se rebelavam contra o serviço ativo e levaram os soldados à doença, operavam neles sem se tornarem conscientes. Permaneciam inconscientes porque outros motivos, tais como ambição, auto-estima, patriotismo, o hábito de obediência e o exemplo dos demais, começavam com mais força, até que, em alguma ocasião apropriada, eram subjugados pelos outros motivos, que operam inconscientemente.
Essa compreensão interna (insight) das causas das neuroses de guerra conduziu a um método de tratamento que parecia estar bem fundamentado e que se mostrou também altamente efetivo no primeiro momento. Parecia conveniente tratar o neurótico como se fosse alguém que se fingisse de doente para fugir ao dever, sem considerar a distinção psicológica entre intenções conscientes e inconscientes, embora se soubesse que a pessoa em questão não era de ter tal procedimento falso. De vez que sua doença servia o propósito de afastá-lo de uma situação intolerável, as raízes da doença seriam claramente debilitadas se ela se tornasse ainda mais intolerável para o soldado do que o serviço ativo. Tal como fugia da guerra para a doença, adotavam-se agora meios de compeli-lo a fugir outra vez, da doença para a saúde, isto é, aptidão para o serviço ativo. Para essa finalidade empregou-se, com êxito, o doloroso tratamento elétrico. Os médicos estão encobrindo os fatos retrospectivamente, quando afirmam que a força dessa corrente elétrica era a mesma que sempre fora empregada nos distúrbios funcionais. Essa força de corrente só teria sido efetiva nos casos mais brandos; nem isto se ajusta ao argumento subjacente de que a doença de um neurótico de guerra tinha de tornar-se dolorosa, de modo que a balança dos seus motivos se inclinasse a favor da recuperação.
Essa dolorosa forma de tratamento, introduzida no exército alemão com propósitos terapêuticos, podia, sem dúvida, ter sido empregada também de maneira mais moderada. Se foi utilizada nas Clínicas de Viena, estou pessoalmente convencido de que jamais foi intensificada a um nível de crueldade por iniciativa do Professor Wagner-Jauregg. Não posso responder por outros médicos que não conheço. A educação psicológica dos médicos é, em geral, decididamente deficiente, e mais de um deles pode ter esquecido que o paciente que procurava tratar como um fingidor, afinal de contras não o era.
Esse procedimento terapêutico, contudo, ostenta desde o início um estigma. Não se destinava à recuperação do paciente, ou, pelo menos, não em primeira instância; destinava-se, acima de tudo, a restaurar a sua aptidão para o serviço. Nisso a medicina servia a propósitos estranhos à sua essência. O próprio médico estava sob comando militar e tinha seus próprios perigos a temer - perda de posição ou uma acusação de negligenciar o dever -, se se permitiu ser levado por considerações outras além daquelas que lhe foram prescritas. O insolúvel conflito entre os direitos de humanidade, que normalmente pesam para um médico de maneira decisiva, e as exigências de uma guerra nacional estavam fadados a confundir a sua atividade.
Ademais, os resultados do tratamento por forte corrente elétrica, que foram brilhantes no começo, acabaram por mostrar-se, mais tarde, pouco duradouros. Um paciente que, tendo tido a saúde restaurada por meio desse tratamento, fosse mandado de volta à frente de combate, podia repetir tudo outra vez e ter uma recaída, por meio da qual pelo menos ganhava tempo e escapava do perigo que, no momento, era o imediato. Se se encontrava uma vez mais sob fogo, seu medo da corrente elétrica regredia, tal como, durante o tratamento, o medo do serviço ativo desaparecera. Também, no decorrer dos anos de guerra, fez-se sentir cada vez mais no espírito popular uma crescente fadiga e uma crescente aversão à luta, de modo que o tratamento que descrevi começou a fracassar em seus efeitos. Nessas circunstâncias, alguns dos médicos do exército cederam à inclinação, característica dos alemães, de levar a cabo as suas intenções sem considerar o resto - o que jamais devia ter acontecido. A intensidade da corrente elétrica, bem como a severidade do resto do tratamento, foi aumentada a um ponto insuportável, com o objetivo de privar os neuróticos de guerra da vantagem que obtinham com a sua doença. Jamais foi desmentido o fato de que nos hospitais alemães houve mortes nessa época, durante o tratamento, e suicídios em conseqüência dele. Sou incapaz de dizer, no entanto, se também as Clínicas de Viena atravessaram essa fase de terapia.
Estou em condições de apresentar prova conclusiva do colapso final do tratamento elétrico para as neuroses de guerra. Em 1918, o Dr. Ernst Simmel, diretor de um hospital de neuróticos de guerra em Posen, publicou um opúsculo em que relatava os resultados extraordinariamente favoráveis conseguidos em casos graves de neurose de guerra pelo método psicoterapêutico que introduzi. Em conseqüência dessa publicação, ao congresso psicanalítico seguinte, realizado em Budapest em setembro de 1918, compareceram delegados oficiais do comando militar alemão, austríaco e húngaro, os quais prometeram que seriam estabelecidos centros para tratamento inteiramente psicológico das neuroses de guerra. A promessa foi feita, embora não pudesse haver ainda qualquer dúvida, entre os delegados, de que, com esse tipo de tratamento ponderado, laborioso e tedioso, era impossível contar com a pronta restauração dos pacientes para o serviço ativo. Os preparativos para o estabelecimento de centros desse gênero estavam, de fato, sendo providenciados, quando irrompeu a revolução e pôs fim à guerra e à influência dos órgãos administrativos que haviam sido até então todo-poderosos. Mas, com o fim da guerra, também os neuróticos de guerra desapareceram - prova final mais impressiva das causas psíquicas das enfermidades.
Viena, 23.2.20.






























O ‘ESTRANHO’ (1919)

NOTA DO EDITOR INGLÊS

DAS UNHEIMLICHE

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:
1919 Imago, 5 (5-6), 297-324.
1922 S.K.S.N., 5, 229-73.
1924 G.S., 10, 369-408.
1924 Dichtung und Kunst, 99-138.
1947 G.W., 12, 229-68.

(b)TRADUÇÃO INGLESA:

            ‘The “Uncanny”’

1925 C.P., 4, 368-407. (Trad. de Alix Strachey.)

A presente tradução inglesa é versão consideravelmente modificada da publicada em 1925.

Este artigo, publicado no outono de 1919, é mencionado por Freud numa carta a Ferenczi de 12 de maio do mesmo ano, na qual diz que desenterrou um velho texto de uma gaveta e o está reescrevendo. Não se sabe quando foi originalmente escrito e o quanto mudou, embora a nota citada de Totem e Tabu, na pág. 300, adiante, mostre que o tema já estava presente em sua mente em 1913. As passagens ligadas a ‘compulsão à repetição’ (ver em [1] e segs.) devem, de qualquer maneira, fazer parte da revisão. Esses trechos incluem um resumo de boa parte do conteúdo de Além do Princípio de Prazer (1920g) e falam deste como ‘já concluído’. A mesma carta a Ferenczi, de 12 de maio de 1919, anunciava que um rascunho desse último trabalho estava terminado, ainda que, de fato, o livro só tivesse sido publicado um ano mais tarde. Mais detalhes serão encontrados na Nota do Editor Inglês a Além do Princípio de Prazer, Edição Standard  Brasileira, Vol. XVIII, pág. 13, IMAGO Editora, 1976.
A primeira seção do presente artigo, com a sua extensa citação de um dicionário alemão, apresenta especiais dificuldades para o tradutor. Espera-se que os leitores não se deixem desencorajar por esse obstáculo preliminar, pois o artigo está cheio de material importante e interessante e vai muito além dos tópicos simplesmente lingüísticos.
O ESTRANHO

                                                           I

Só raramente um psicanalista se sente impelido a pesquisar o tema da estética, mesmo quando por estética se entende não simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades do sentir. O analista opera em outras camadas da vida mental e pouco tem a ver com os impulsos emocionais dominados, os quais, inibidos em seus objetivos e dependentes de uma hoste de fatores simultâneos, fornecem habitualmente o material para o estudo da estética. Mas acontece ocasionalmente que ele tem de interessar-se por algum ramo particular daquele assunto; e esse ramo geralmente revela-se um campo bastante remoto, negligenciado na literatura especializada da estética.
O tema do ‘estranho’ é um ramo desse tipo. Relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador - com o que provoca medo e horror; certamente, também, a palavra nem sempre é usada num sentido claramente definível, de modo que tende a coincidir com aquilo que desperta o medo em geral. Ainda assim, podemos esperar que esteja presente um núcleo especial de sensibilidade que justificou o uso de um termo conceitual peculiar. Fica-se curioso para saber que núcleo comum é esse que nos permite distinguir como ‘estranhas’ determinadas coisas que estão dentro do campo do que é amedrontador.
Nada em absoluto encontra-se a respeito deste assunto em extensos tratados de estética, que em geral preferem preocupar-se com o que é belo, atraente e sublime - isto é, com sentimentos de natureza positiva - e com as circunstâncias e os objetivos que os trazem à tona, mais do que com os sentimentos opostos, de repulsa e aflição. Conheço apenas uma tentativa na literatura médico-psicológica, um artigo fértil, mas não exaustivo, de Jentsch (1906). Mas devo confessar que não fiz um exame muito completo da literatura relacionada com esta minha modesta contribuição, particularmente da literatura estrangeira, por razões que, como pode ser facilmente adivinhado, estão nos tempos em que vivemos; de forma que meu artigo é apresentado ao leitor sem qualquer pretensão de prioridade.
Em seu estudo do ‘estranho’, Jentsch destaca com muita razão o obstáculo apresentado pelo fato de que as pessoas variam muito na sua sensibilidade a essa categoria de sentimento. De fato, o próprio autor da presente contribuição deve declarar-se culpado de particular obtusidade na matéria, onde a extrema delicadeza de percepção seria mais adequada. Há muito tempo que não experimenta ou sabe de algo que lhe tenha dado uma impressão estranha, e deve começar por transpor-se para esse estado de sensibilidade, despertando em si a possibilidade de experimentá-lo. Todavia, tais dificuldades fazem-se sentir poderosamente em muitos outros ramos da estética; não precisamos, por causa disso, desanimar de encontrar exemplos nos quais a qualidade em questão será reconhecida sem hesitações pela maioria das pessoas.
De início, abrem-se-nos dois rumos. Podemos descobrir que significado veio a ligar-se à palavra ‘estranho’ no decorrer da sua história; ou podemos reunir todas aquelas propriedades de pessoas, coisas, impressões sensórias, experiências e situações que despertam em nós o sentimento de estranheza, e inferir, então, a natureza desconhecida do estranho a partir de tudo o que esses exemplos têm em comum. Direi, de imediato, que ambos os rumos conduzem ao mesmo resultado: o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar. Como isso é possível, em que circunstâncias o familiar pode tornar-se estranho e assustador, é o que mostrarei no que se segue. Acrescente-se também que minha investigação começou realmente ao coligir uma série de casos individuais, e só foi confirmada mais tarde por um exame do uso lingüístico. Na exposição que farei, contudo, seguirei o curso inverso.
A palavra alemã ‘unheimlich’ é obviamente o oposto de ‘heimlich’ [‘doméstica’], ‘heimisch‘ [‘nativo’] - o oposto do que é familiar; e somos tentados a concluir que aquilo que é ‘estranho’ é assustador precisamente porque não é conhecido e familiar. Naturalmente, contudo, nem tudo o que é novo e não familiar é assustador; a relação não pode ser invertida. Só podemos dizer que aquilo que é novo pode tornar-se facilmente assustador e estranho; algumas novidades são assustadoras, mas de modo algum todas elas. Algo tem de ser acrescentado ao que é novo e não familiar, para torná-lo estranho.
De um modo geral, Jentsch não foi além dessa relação do estranho com o novo e não familiar. Ele atribui o fator essencial na origem do sentimento de estranheza à incerteza intelectual; de maneira que o estranho seria sempre algo que não se sabe como abordar. Quanto mais orientada a pessoa está, no seu ambiente, menos prontamente terá a impressão de algo estranho em relação aos objetos e eventos nesse ambiente.
Não é difícil verificar que essa definição está incompleta e, portanto, tentaremos operar para além da equação ‘estranho’ = ‘não familiar’. Em primeiro lugar, voltar-nos-emos para outras línguas. Mas os dicionários que consultamos nada de novo nos dizem, talvez apenas porque nós próprios falamos uma língua que é estrangeira. De fato, temos a impressão de que muitas línguas não têm palavra para essa particular nuança do que é assustador.
Gostaria de expressar a minha gratidão ao Dr. Theodor Reik pelos seguintes excertos:
LATIM: (K.E. Georges, Deutschlateinisches Worterbuch, 1898). Um lugar estranho: locus suspectus; numa estranha hora da noite: intempesta nocte.
GREGO: (Léxicos de Rost e de Schenkl).  (isto é, estranho, estrangeiro).
INGLÊS: (dos dicionários de Lucas, Bellows, Flügel e Muret-Sanders). Uncomfortable, uneasy, gloomy, dismal, uncanny, ghastly; (of a house) haunted; (of a man) a repulsive fellow.
FRANCÊS: (Sachs-Villatte). Inquiétant, sinistre, lugubre, mal à son aise.
ESPANHOL: (Tollhausen, 1889). Sospechoso, de mal agüero, lúgubre, siniestro.
As línguas italiana e portuguesa parecem contentar-se com palavras que descreveríamos como circunlocuções. Em árabe e hebreu ‘estranho’ significa o mesmo que ‘demoníaco’, ‘horrível’.
Voltemos, portanto, ao alemão. No Wortebuch der Deutschen Sprache (1860, 1, 729), de Daniel Sanders, a seguinte entrada, que reproduzimos integralmente aqui, encontra-se sob a palavra ‘heimlich’. Destaquei com itálicos uma ou duas passagens.
Heimlich, adj., subst. Heimlichkeit (pl. Heimlichkeiten): I. Também heimelich, heimelig, pertencente à casa, não estranho, familiar, doméstico, íntimo, amistoso etc.
(a) (Obsoleto) pertencente à casa ou à família, ou considerado como pertencente (cf. latim familiaris, familiar): Die Heimlichen, os membros do lar; Der heimliche Rat (Gen. xli, 45; 2 Sam. xxiii. 23; 1 Chron. xii. 25; Wisd. viii. 4), hoje mais habitualmente Geheimer Rat [Conselheiro Privado].
(b) De animais: domesticado, capaz de fazer companhia ao homem. Em oposição a selvagem, e.g. ‘Animais que não são selvagens nem heimlich‘ etc. ‘Animais selvagens… que são educados para serem heimlich e acostumados ao homem.’ ‘Se essas jovens criaturas são criadas desde os primeiros dias entre os homens, tornam-se bastante heimlich, amistosas’ etc. - Assim também: ‘(O cordeiro) é tão heimlich e come da minha mão.’ ‘Não obstante, a cegonha é um belo heimelich pássaro.’
(c) Íntimo, amigavelmente confortável; o desfrutar de um contentamento tranqüilo etc., despertando uma sensação de repouso agradável e de segurança, como a de alguém entre as quatro paredes da sua casa. ‘Ainda é heimlich para você o seu país, onde estranhos estão abatendo os seus bosques?’ ‘Ela não se sentia muito heimlich com ele.’ ‘Ao longo de uma alta, heimlich, sombreada vereda…, junto a um sussurrante, sentimental e balbuciante riacho silvestre.’ ‘Destruir a Heimlichkeit do lar.’ ‘Não conseguia encontrar prontamente outro lugar tão íntimo e heimlich como este.’ ‘Nós o visualizamos tão confortável, tão encantador, tão aconchegante e heimlich.’ ‘Em tranqüila Heimlichkeit, cercada por estreitas paredes.’ ‘Uma dona de casa cuidadosa, que sabe como fazer uma agradável Heimlichkeit (Häuslichkeit [domesticidade]) com os mais escassos meios.’ ‘O homem que até recentemente fora tão estranho a ele, parecia-lhe agora muito mais heimlich.’ ‘Os proprietários de terra protestantes não se sentem … heimlich entre os seus subordinados católicos.’ ‘Quando tudo fica calmo e heimlich, e só a quietude vespertina espreita a tua cela.’ ‘Tranqüilo, encantador e heimlich, nenhum outro lugar mais adequado para o repouso deles.’ ‘Não se sentia absolutamente heimlich quanto a isso.’ - Também [em compostos] ‘O lugar era tão sereno, tão isolado, tão sombreadamente-heimlich.’ ‘Os fluxos e influxos da corrente, sonhadores e embaladores-heimlich‘ Cf. em particular Unheimlich [ver adiante]. Entre os autores suíços da Suábia, particularmente, com freqüência como trissílabo: ‘Como uma tarde parecia outra vez heimelich a Ivo, quando estava em casa.’ ‘Estava tão heimelig na casa.’ ‘A sala cálida e a tarde heimelig.’ ‘Quando um homem sente, de coração, que é tão pequeno, e tão grande o Senhor - isto é que é verdadeiramente heimelig.’ ‘Pouco a pouco sentiram-se à vontade e heimelig entre si.’ ‘Amável Heimeligkeit.‘. ‘Em nenhum outro lugar estaria tão heimelig como estou aqui.’ ‘Aquele que vem de longe… certamente não vive muito heimelig (heimatlich [em casa], freundnachbarlich [de modo amistoso, em boa vizinhança]) entre as pessoas.’ ‘A cabana onde antes repousara tantas vezes entre os seus, tão heimelig, tão feliz.’ ‘A corneta do sentinela soa tão heimelig da torre, e a sua voz convida com tanta hospitalidade.’ ‘Você vai dormir ali, tão macio e cálido, tão maravilhosamente heim’lig.’ - Esta forma de palavra merece tornar-se geral, de modo a evitar que este sentido perfeitamente bom do vocábulo se torne obsoleto, através de uma fácil confusão com II [ver adiante]. Cf:‘“Os Zecks [nome de família] são todos ‘heimlich’.” (no sentido II) “’Heimlich’? O que você entende por ‘heimlich’?” “Bem,… são como uma fonte enterrada ou um açude seco. Não se pode passar por ali sem ter sempre a sensação de que a água vai brotar de novo.” “Oh, nós chamamos a isso ‘unheimlich’; vocês chamam ‘heimlich’. Bem, o que faz você pensar que há algo secreto e suspeitoso acerca dessa família?”’ (Gutzkow).
(d) Particularmente na Silésia: alegre, disposto; também em relação ao tempo (clima).
II. Escondido, oculto da vista, de modo que os outros não consigam saber, sonegado aos outros. Fazer alguma coisa heimlich, isto é, por trás das costas de alguém; roubar heimlich; reuniões e encontros heimlich; olhar com prazer heimlich a derrota de alguém; suspirar ou lastimar-se heimlich; comportar-se heimlich, como se houvesse algo a esconder; caso de amor, amor, pecado heimlich; lugares heimlich (que as boas maneiras nos obrigam a esconder) (1 Sam. v. 6). ‘A câmara heimlich‘ (privada) (2 Reis x. 27). Também, ‘a cadeira heimlich‘. ‘Lançar ao poço ou Heimlichkeiten‘. - ‘Conduzidos os cavalos heimlich adiante de Laomedon.’ - ‘Tão reticente, heimlich enganoso e malicioso para com os cruéis senhores… como franco, aberto, simpático e solícito para com um amigo na desgraça.’ ‘Você ainda tem que aprender o que é mais heimlich segredado para mim.’ ‘A arte heimlich‘(mágica). ‘Onde a divulgação pública tem que parar, começam as maquinações heimlich.’ ‘A liberdade é o lema sussurrado de conspiradores heimlich e o grito de batalha de revolucionários declarados.’ ‘Um efeito santo, heimlich.’ ‘Minhas brincadeiras heimlich.‘ ‘Se não lho dão aberta e escrupulosamente, ele pode apanhá-lo heimlich e inescrupulosamente.’ ‘Ele tinha telescópios acromáticos construídos heimlich e secretamente.’ ‘Daqui por diante, desejo que não mais haja nada heimlich entre nós.’ - Descobrir, revelar, trair as Heimlichkeiten de alguém; ‘tramar Hiemlichkeiten por trás de minhas costas’. ‘Na minha época estudamos Heimlichkeiten.‘ ‘A mão da compreensão pode anular sozinha o feitiço impotente de Heimlichkeiten (de ouro escondido).’ ‘Diga, onde é o lugar de encobrimento… em que lugar de oculta Heimlichkeit?’ ‘Abelhas, que fazem o fecho de Heimlichkeiten‘ (isto é, o lacre). ‘Aprendido em estranhas Heimlichkeiten‘ (isto é, o lacre). ‘Aprendido em estranhas Heimlichkeiten’ (artes mágicas).
Para compostos, ver acima, Ic. Note-se particularmente o negativo ‘un‘: misterioso, sobrenatural, que desperta horrível temor: ‘Parecendo-lhe bastante unheimlich e fantástico.’ ‘As horas unheimlich e temíveis da noite.’ ‘Já sentira desde há muito uma sensação hunheimlic e até mesmo horrível.’ ‘Agora estou começando a ter um sentimento unheimlich.‘ …’Sente um horror unheimlich‘. ‘Unheimlich e imóvel como uma imagem de pedra.’ ‘Uma névoa unheimlich chamada nevoeiro da colina.’ ‘Esses jovens pálidos são unheimlich e estão tramando Deus sabe que desordem.’ ‘“Unheimlich” é o nome de tudo que deveria ter permanecido… secreto e oculto mas veio à luz‘ (Schelling). - ‘Encobrir o divino, cercá-lo de uma certa Unheimlichkeit.’ - Unheimlich poucas vezes é usado como oposto ao significado II (acima).
O que mais nos interessa nesse longo excerto é descobrir que entre os seus diferentes matizes de significado a palavra ‘heimlich‘ exibe um que é idêntico ao seu oposto, ‘unheimlich‘. Assim, o que é heimlich vem a ser unheimlich. (Cf. a citação de Gutzkow: ‘Nós os chamamos ‘unheimlich”; vocês o chamam “heimlich”.’) Em geral, somos lembrados de que a palavra ‘heimlich‘ não deixa de ser ambígua, mas pertence a dois conjuntos de idéias que, sem serem contraditórias, ainda assim são muito diferentes: por um lado significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora da vista. ‘Unheimlich’ é habitualmente usado, conforme aprendemos, apenas como o contrário do primeiro significado de ‘heimlich‘, e não do segundo. Sanders nada nos diz acerca de uma possível conexão genética entre esses dois significados de‘heimlich’. Por outro lado, percebemos que Schelling diz algo que dá um novo esclarecimento ao conceito do Unheimlich, para o qual certamente não estávamos preparados. Segundo Schelling, unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz.
Algumas dúvidas que, desse modo, surgiram, são afastadas se consul-tamos o dicionário de Grimm. (1877, 4, Parte 2, 873 e segs.)
Lemos:
Heimlich; adj. e adv. vernaculus, occultus; MAA. heimelîh, heimlîch.
(P. 874.) Em sentido ligeiramente diferente: ‘Sinto-me heimlich bem, liberto do medo.’…
[3] (b) Heimlich também se diz de um lugar livre da influência de fantasmas… familiar, amistoso, íntimo.
(P. 875: •) Familiar, amigável, franco.
4.Da idéia de ‘familiar’, pertencente à casa’, desenvolve-se outra idéia de algo afastado dos olhos de estranhos, algo escondido, secreto; e essa idéia expande-se de muitos modos
(P. 876.) ‘Na margem esquerda do lago jaz uma campina heimlich na floresta.’ (Schiller, Wilhelm Tell, I.4.)… Licença poética, assim raramente usada no discurso moderno… Heimlich é usado em conjunção com um verbo que expressa o ato de ocultar: ‘No segredo do seu tabernáculo ele esconder-me-á heimlich.‘ (Ps. xxvii. 5.) … As partes heimlich do corpo humano, pudenda… ‘os homens que não morreram foram feridos nas suas partes heimlich.‘ (1 Samuel v. 12.)…
(c) Funcionários que dão importantes conselhos, que têm que ser mantidos em segredo, em questões de Estado, são chamados conselheiros heimlich; o adjetivo, de acordo com o uso moderno, foi substituído por geheim [secreto]… ‘Faraó chamou o nome de José “ele, a quem os segredos são revelados”’ (conselheiro heimlich). (Gen. xli. 45.)
(P. 878.) 6. Heimlich, como se diz do conhecimento - místico, alegórico: um significado heimlich, mysticus, divinus, occultus, figuratus.
(P. 878.) Heimlich num sentido diferente, como afastado do conhecimento, inconsciente… Heimlich tem também o significado daquilo que é obscuro, inacessível ao conhecimento… ‘Você não vê? Eles não confiam em nós; eles temem a face heimlich do Duque de Friedland.’ (Schiller, Wallensteins Lager, Cena 2.)
9.A noção de algo oculto e perigoso, que se expressa no último parágrafo, desenvolve-se mais ainda, de modo que ‘heimlich’. Assim: ‘Às vezes sinto-me como um homem que caminha pela noite e acredita em fantasmas; cada esquina para ele é heimlich e cheia de terrores.’ (Klinger, Theater, 3. 298.)
Dessa forma, heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que finalmente coincide com o seu oposto, unheimlich. Unheimlich é, de um modo ou de outro, uma subespécie de heimlich. Tenhamos em mente essa descoberta, embora não possamos ainda compreendê-la corretamente, lado a lado com a definição de Schelling do Unheimlich. Se continuarmos a examinar exemplos individuais de estranheza, essas sugestões tornar-se-ão inteligíveis a nós.

                                                           II

Quando passamos a rever as coisas, pessoas, impressões, eventos e situações que conseguem despertar em nós um sentimento de estranheza, de forma particularmente poderosa e definida, a primeira condição essencial à obviamente selecionar um exemplo adequado para começar. Jentsch tomou como ótimo exemplo ‘dúvidas quanto a saber se um ser aparentemente animado está realmente vivo; ou, do modo inverso, se um objeto sem vida não pode ser na verdade animado’; e ele refere-se, a esse respeito, à impressão causada por figuras de cera, bonecos e autômatos engenhosamente construídos. A estes acrescenta o estranho efeito dos acessos epiléticos e das manifestações de insanidade, porque excitam no espectador a impressão de processos automáticos e mecânicos, operando por trás da aparência comum de atividade mental. Sem aceitar inteiramente esse ponto de vista do autor, tomá-lo-emos como ponto de partida para as nossas próprias investigações, porque no que se segue ele nos lembra um escritor que, mais do que qualquer outro, teve êxito na criação de efeitos estranhos.
Escreve Jentsch: ‘Ao contar uma história, um dos recursos mais bem-sucedidos para criar facilmente efeitos de estranheza é deixar o leitor na incerteza de que uma determinada figura na história é um ser humano ou um autômato, e fazê-lo de tal modo que a sua atenção não se concentre diretamente nessa incerteza, de maneira que não possa ser levado a penetrar no assunto e esclarecê-lo imediatamente. Isto, como afirmamos, dissiparia rapidamente o peculiar efeito emocional da coisa. E.T.A. Hoffmann empregou repetidas vezes, com êxito, esse artifício psicológico nas suas narrativas fantásticas.’
Essa observação, indubitavelmente correta, refere-se principalmente à história de ‘O Homem da Areia’, em Nachtstücke, de Hoffmann, que contém o original de Olímpia, a boneca que aparece no primeiro ato da ópera de Offenbach, Contos de Hoffmann. Mas não posso achar - e espero que a maioria dos leitores da história concorde comigo - que o tema da boneca Olímpia, que é em todos os aspectos um ser humano, seja de alguma forma o único elemento, ou de fato o mais importante, a que se deva atribuir a inigualável atmosfera de estranheza evocada pela história. Nem essa atmosfera é elevada pelo fato de que o próprio autor trata o episódio de Olímpia com um leve toque de sátira e o usa para ridicularizar a idealização que a jovem faz da sua amante. O tema principal da história é, pelo contrário, algo diferente, algo que lhe dá o nome e que é sempre reintroduzido nos momentos críticos: é o tema do ‘Homem da Areia’, que arranca os olhos das crianças.
Esse conto fantástico principia com as recordações de infância do estudante Nataniel. A despeito da sua felicidade presente, não pode banir as lembranças ligadas à morte misteriosa e apavorante do seu amado pai. Em certas noites, sua mãe costumava mandar as crianças cedo para a cama, prevenindo-as de que ‘o Homem da Areia estava chegando’; e, por certo, Nataniel não deixaria de ouvir os pesados passos de um visitante, com o qual o pai estaria ocupado toda a noite. Quando indagada acerca do Homem da Areia, a sua mãe na verdade negava que tal pessoa existisse, exceto como figura de linguagem; a babá, porém, podia dar-lhe uma informação mais precisa: ‘É um homem perverso que chega quando as crianças não vão para a cama, e joga punhados de areia nos olhos delas, de modo que estes saltam sangrando da cabeça. Ele coloca então os olhos num saco e os leva para a meia-lua, para alimentar os seus filhos. Eles estão acomodados lá em cima, no ninho, e seus bicos são curvos como bicos de coruja, e eles os usam para mordiscar os olhos dos meninos e das meninas desobedientes.’
Embora o pequeno Nataniel fosse sensível e tivesse idade bastante para não dar crédito à figura do Homem da Areia com tais horríveis atributos, ainda assim o medo fixou-se no seu coração. Determinou-se a descobrir que aparência tinha o Homem da Areia; e uma noite, quando o Homem da Areia era outra vez esperado, ele escondeu-se no escritório do pai. Reconheceu o visitante como sendo o advogado Copélio, uma pessoa repulsiva que amedrontava as crianças quando, ocasionalmente, aparecia para jantar; e ele agora identificava esse Copélio com o temido Homem da Areia. No que diz respeito ao resto da cena, Hoffmann já nos deixa em dúvida se o que estamos testemunhando é o primeiro delírio do apavorado menino, ou uma sucessão de acontecimentos que devem ser considerados, na história, como sendo reais. O pai e o convidado estão trabalhando num braseiro incandescente. O pequeno intrometido ouve Copélio invocar: ‘Aqui os olhos! Aqui os olhos!’, e trai-se ao soltar um alto grito. Copélio apanha-o e está prestes a lançar brasas tiradas do fogo em seus olhos, jogando estes depois no braseiro, mas o pai lhe implora que solte o menino e salva-lhe os olhos. Depois disso, o rapaz cai em profundo desfalecimento; e uma longa enfermidade põe fim à sua experiência. Aqueles que optam pela interpretação racionalista do Homem da Areia não deixam de reconhecer, na fantasia do menino, a persistente influência da história contada pela babá. Os punhados de areia que deveriam ser jogados aos olhos da criança, transformam-se em pedaços de carvão em brasa, tirados das chamas; e em ambos os casos destinam-se a fazer com que os seus olhos pulem para fora. No decorrer de uma outra visita do Homem da Areia, um ano depois, o pai é morto no escritório por uma explosão. O advogado Copélio desaparece do lugar sem deixar qualquer vestígio atrás de si.
Nataniel, agora um estudante, crê ter reconhecido esse fantasma de horror da sua infância num oculista itinerante, um italiano chamado Giuseppe Coppola, que na cidade universitária, se oferece para vender-lhe barômetros. Quando Nataniel recusa, o homem prossegue: ‘Não quer barômetros? Não quer barômetros? Tenho também ótimos olhos, ótimos olhos!’ O terror do estudante atenua-se quando descobre que os olhos oferecidos são apenas inofensivos óculos, e compra um pequeno telescópio de Coppola. Com a ajuda do instrumento ele observa a casa em frente, do professor Spalanzani, e ali espia a bela mas estranhamente silenciosa e imóvel filha de Spalanzani, Olímpia. Logo se apaixona por ela tão violentamente que, por sua causa, esquece a moça talentosa e sensível de quem está noivo. Mas Olímpia é um autômato, cujo mecanismo foi feito por Spalanzani e cujos olhos foram colocados por Coppola, o Homem da Areia. O estudante surpreende os dois Mestres discutindo quanto ao seu trabalho manual. O oculista leva embora a boneca de madeira, sem os olhos; e o mecânico, Spalanzani, apanha no chão os olhos sangrentos de Olímpia e os arremessa ao peito de Nataniel, dizendo que Coppola os havia roubado do estudante. Nataniel sucumbe a um novo ataque de loucura e, no seu delírio, a recordação da morte do pai mistura-se a essa nova experiência. ‘Apressa-te! Apressa-te! anel de fogo!’ grita ele. ‘Gira, anel de fogo - Hurrah! Apressa-te, boneca de pau! Linda boneca de pau, gira -.’ Cai então sobre o professor, o ‘pai’ de Olímpia, e tenta estrangulá-lo.
Reanimando-se de uma longa e grave enfermidade, Nataniel parece, por fim, estar recuperado. Pretende casar-se com a sua noiva, com a qual se reconciliou. Um dia estavam ele e ela passeando pelo mercado da cidade, sobre o qual a alta torre da prefeitura lança a sua enorme sombra. Por sugestão da moça, sobem à torre, deixando em baixo o irmão dela, que caminhava com eles. Do alto, a atenção de Clara é atraída para um curioso objeto que se move ao longo da rua. Nataniel observa essa coisa através do telescópio de Coppola e cai num novo ataque de loucura. Gritando ‘Gira, boneca de pau!’, tenta jogar a garota da torre. O irmão da moça, levado pelos gritos desta, salva-a e apressa-se em descer com ela em segurança. Lá em cima, na torre, o louco corre em círculos berrando ‘Gira, anel de fogo!’ - e nós sabemos a origem das palavras. Entre as pessoas que começaram a se juntar em baixo, destaca-se a figura do advogado Copélio, que voltou de repente. Podemos supor que foi a sua aproximação, vista através do telescópio, que lançou Nataniel ao seu acesso de loucura. Enquanto as pessoas que observam a cena se preparam para subir e dominar o louco, Copélio ri e diz: ‘Esperem um pouco; ele vai descer por si próprio.’ Subitamente Nataniel fica imóvel, avista Copélio e, com um grito selvagem de ‘Sim! Ótimos olhos - ótimos olhos!’, lança-se por sobre o parapeito. Seu corpo jaz nas pedras da rua com o crânio despedaçado, enquanto o Homem da Areia desaparece na multidão.
Esse breve sumário não deixa dúvidas, acho eu, de que o sentimento de algo estranho está ligado diretamente à figura do Homem da Areia, isto é, à idéia de ter os olhos roubados, e que o ponto de vista de Jentsch, de uma incerteza intelectual, nada tem a ver com o efeito. A incerteza quanto a um objeto ser vivo ou inanimado, que reconhecidamente se aplica à boneca Olímpia, é algo irrelevante em relação a esse outro exemplo, mais chocante, de estranheza. É verdade que o escritor cria uma espécie de incerteza em nós, a princípio, não nos deixando saber, sem dúvida propositalmente, se nos está conduzindo pelo mundo real ou por um mundo puramente fantástico, de sua própria criação. Ele tem, de certo, o direito de fazer ambas as coisas; e se escolhe como palco da sua ação um mundo povoado de espíritos, demônios e fantasmas, como Shakespeare em Hamlet, em Macbeth e, em sentido diferente, em A Tempestade e Sonho de uma Noite de Verão, devemo-nos curvar à sua decisão e considerar o cenário como sendo real, pelo tempo em que nos colocamos nas suas mãos. Essa incerteza, porém, desaparece no decorrer da história de Hoffmann, e percebemos que pretende, também, fazer-nos olhar através dos óculos ou do telescópio do demoníaco oculista - talvez, na verdade, o próprio autor em pessoa tenha feito observações atentas através de tal instrumento. A conclusão da história deixa bastante claro que Coppola, o oculista, é realmente o advogado Copélio e também, portanto, o Homem da Areia.
Não se trata aqui, portanto, de uma questão de incerteza intelectual: sabemos agora que não devemos estar observando o produto da imaginação de um louco, por trás da qual nós, com a superioridade das mentes racionais, estamos aptos a detectar a sensata verdade; e, ainda assim, esse conhecimento não diminui em nada a impressão de estranheza. A teoria da incerteza intelectual é, assim, incapaz de explicar aquela impressão.
Sabemos, no entanto, pela experiência psicanalítica, que o medo de ferir ou perder os olhos é um dos mais terríveis temores das crianças. Muitos adultos conservam uma apreensão nesse aspecto, e nenhum outro dano físico é mais temido por esses adultos do que um ferimento nos olhos. Estamos acostumados, também, a dizer que estimamos uma coisa como a menina dos olhos. O estudo dos sonhos, das fantasias e dos mitos ensinou-nos que a ansiedade em relação aos próprios olhos, o medo de ficar cego, é muitas vezes um substituto do temor de ser castrado. O autocegamento do criminoso mítico, Édipo, era simplesmente uma forma atenuada do castigo da castração - o único castigo que era adequado a ele pela lex tallionis. Podemos tentar, com fundamento racionalista, negar que os temores em relação aos olhos derivem do medo da castração, e argumentar que é muito natural que um órgão tão preciso como o olho deva ser guardado por um medo proporcional. Na verdade, podemos ir mais além e dizer que o próprio medo da castração não contém outro significado, nem outro segredo mais profundo, do que um justificável medo de natureza racional. Esse ponto de vista, porém, não considera adequadamente a relação substitutiva entre o olho e o órgão masculino, que se verifica existir nos sonhos, mitos e fantasias; nem dissipa a impressão de que a ameaça de ser castrado excita de modo especial uma emoção particularmente violenta e obscura, e que é essa emoção que dá, antes de mais nada, intenso colorido à idéia de perder outros órgãos. Todas as demais dúvidas são afastadas quando sabemos, pela análise de pacientes neuróticos, dos detalhes do seu ‘complexo de castração’ e compreendemos a enorme importância desse complexo na vida mental de tais pacientes.
Ademais, eu não recomendaria a qualquer oponente da concepção psicanalítica que escolhesse particularmente essa história do Homem da Areia, para apoiar o argumento de que a ansiedade em relação aos olhos nada tem a ver com o complexo de castração. Por que razão, então, colocou Hoffmann essa ansiedade em relação tão íntima com a morte do pai? E por que o Homem da Areia aparece sempre como um perturbador do amor? Ele separa o infeliz Nataniel da sua noiva e do irmão desta, seu melhor amigo; ele destrói o segundo objeto do seu amor, Olímpia, a linda boneca; e leva-o ao suicídio no momento em que recuperou a sua Clara e está prestes a unir-se venturosamente a ela. Na história, elementos como estes e muitos outros parecem arbitrários e sem sentido, na medida em que negamos toda ligação entre os medos relacionados com os olhos e com a castração; mas tornam-se inteligíveis tão logo substituímos o Homem da Areia pelo pai temido, de cujas mãos é esperada a castração.Arriscar-nos-emos, portanto, a referir o estranho efeito do Homem da Areia à ansiedade pertencente ao complexo de castração da infância. Contudo, uma vez atingida a idéia de que podemos tornar um fator infantil como este responsável por sentimentos de estranheza, somo encorajados a verificar se podemos aplicá-la a outros exemplos do estranho. Na história do Homem da Areia, encontramos o outro tema destacado por Jentsch, de uma boneca que parece ter vida. Jentsch acredita que se cria uma condição particularmente favorável para despertar sentimentos de estranheza, quando existe uma incerteza intelectual quanto a um objeto ter ou não vida, e quando um objeto inanimado se torna excessivamente parecido com um objeto animado. Ora, certamente as bonecas são intimamente ligadas com a vida infantil. Lembremo-nos de que, nos primeiros folguedos, de modo algum as crianças distinguem nitidamente objetos vivos de objetos inanimados, e gostam particularmente de tratar as suas bonecas como pessoas vivas. De fato, tenho ouvido ocasionalmente uma paciente declarar que, mesmo aos oito anos de idade, ainda estava convencida de que as suas bonecas certamente ganhariam vida se ela as olhasse de uma determinada forma, extremamente concentrada. De modo que, também aqui, não é difícil descobrir um fator da infância. Curiosamente, porém, ainda que a história do Homem da Areia aborde o despertar de um medo da primitiva infância, a idéia de uma ‘boneca viva’ não provoca absolutamente o medo; as crianças não temem que as suas bonecas adquiram vida, podem até desejá-lo. A fonte de sentimentos de estranheza não seria, nesse caso, portanto, um medo infantil; mas, antes, seria um desejo ou até mesmo simplesmente uma crença infantil. Parece haver aqui uma contradição; porém, talvez seja apenas uma complicação, que nos pode ser útil mais tarde.
Hoffmann é o mestre incomparável do estranho na literatura. Sua novela Die Elixire des Teufels [O Elixir do Diabo] contém toda uma série de temas a que se é tentado a atribuir o efeito estranho da narrativa; mas é uma história por demais obscura e intrincada para que nos aventuremos a um sumário da mesma. Já mais para o final do livro é que o leitor fica a saber dos fatos, que até então lhe haviam sido ocultados, dos quais se origina a ação; com o resultado de que não fica, por fim, esclarecido, mas de que cai num estado de completa estupefação. O autor acumulou excessivo material da mesma espécie. Em conseqüência disso, a compreensão da história como um todo sofre, ainda que não a impressão que provoca. Devemo-nos contentar em escolher aqueles temas de estranheza que se destacam mais, ao mesmo tempo em que verificamos se também podem ser facilmente atribuídos a causas infantis. Todos esses temas dizem respeito ao fenômeno do ‘duplo’, que aparece em todas as formas e em todos os graus de desenvolvimento. Assim, temos personagens que devem ser considerados idênticos porque parecem semelhantes, iguais. Essa relação é acentuada por processos mentais que saltam de um para outro desses personagens - pelo que chamaríamos telepatia -, de modo que um possui conhecimento, sentimento e experiência em comum com o outro. Ou é marcada pelo fato de que o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu (self) por um estranho. Em outras palavras, há uma duplicação, divisão e intercâmbio do eu (self). E, finalmente, há o retorno constante da mesma coisa - a repetição dos mesmos aspectos, ou características, ou vicissitudes, dos mesmos crimes, ou até dos mesmos nomes, através das diversas gerações que se sucedem.
O tema do ‘duplo’ foi abordado de forma muito completa por Otto Rank (1914). Ele penetrou nas ligações que o ‘duplo’ tem com reflexos em espelhos, com sombras, com os espíritos guardiões, com a crença na alma e com o medo da morte; mas lança também um raio de luz sobre a surpreendente evolução da idéia. Originalmente, o ‘duplo’ era uma segurança contra a destruição do ego, uma ‘enérgica negação do poder da morte’, como afirma Rank; e, provavelmente, a alma ‘imortal’ foi o primeiro ‘duplo’ do corpo. Essa invenção do duplicar como defesa contra a extinção tem sua contraparte na linguagem dos sonhos, que gosta de representar a castração pela duplicação ou multiplicação de um símbolo genital. O mesmo desejo levou os antigos egípcios a desenvolverem a arte de fazer imagens do morto em materiais duradouros. Tais idéias, no entanto, brotaram do solo do amor-próprio ilimitado, do narcisismo primário que domina a mente da criança e do homem primitivo. Entretanto, quando essa etapa está superada, o ‘duplo’ inverte seu aspecto. Depois de haver sido uma garantia da imortalidade, transforma-se em estranho anunciador da morte.
A idéia do ‘duplo’ não desaparece necessariamente ao passar o narcisismo primário, pois pode receber novo significado dos estádios posteriores do desenvolvimento do ego. Forma-se ali, lentamente, uma atividade especial, que consegue resistir ao resto do ego, que tem a função de observar e de criticar o eu (self) e de exercer uma censura dentro da mente, e da qual tomamos conhecimento como nossa ‘consciência’. No caso patológico de delírios de observação, essa atividade mental torna-se isolada, dissociada do ego e discernível ao olho do terapeuta. O fato de que existe uma atividade dessa natureza, que pode tratar o resto do ego como um objeto - isto é, o fato de que o homem é capaz de auto-observação - torna possível investir a velha idéia de ‘duplo’ de um novo significado e atribuir-lhe uma série de coisas - sobretudo aquelas coisas que, para a autocrítica, parecem pertencer ao antigo narcisismo superado dos primeiros anos.
Não é, contudo, apenas esse último material, ofensivo como é para a crítica do ego, que pode ser incorporado à idéia de um duplo. Há também todos os futuros, não cumpridos mas possíveis, a que gostamos ainda de nos apegar, por fantasia; há todos os esforços do ego que circunstâncias externas adversas aniquilaram e todos os nossos atos de vontade suprimidos, atos que nutrem em nós a ilusão da Vontade Livre. [Cf. Freud, 1901b, Capítulo XII (B).]
Após haver assim considerado a motivação manifesta da figura de um ‘duplo’, porém, temos que admitir que nada disso nos ajuda a compreender a sensação extraordinariamente intensa de algo estranho que permeia a concepção; e o nosso conhecimento dos processos mentais patológicos permite-nos acrescentar que nada, nesse material mais superficial, podia ser levado em conta na ânsia de defesa que levou o ego a projetar para fora aquele material, como algo estranho a si mesmo. Quando tudo está dito e feito, a qualidade de estranheza só pode advir do fato de o ‘duplo’ ser uma criação que data de um estádio mental muito primitivo, há muito superado - incidentalmente, um estádio em que o ‘duplo’ tinha um aspecto mais amistoso. O ‘duplo’ converteu-se num objeto de terror, tal como após o colapso da religião, os deuses se transformam em demônios.
As outras formas de perturbação do ego, exploradas por Hoffmann, podem ser facilmente avaliadas pelos mesmos parâmetros do tema do ‘duplo’. São elas um retorno a determinadas fases na elevação do sentimento de autoconsideração, uma regressão a um período em que o ego não se distinguira ainda nitidamente do mundo externo e de outras pessoas. Acredito que esses fatores são em parte responsáveis pela impressão de estranheza, embora não seja fácil isolar e determinar exatamente a sua participação nisso.
O fator da repetição da mesma coisa não apelará, talvez, para todos como fonte de uma sensação estranha. Daquilo que tenho observado, esse fenômeno, sujeito a determinadas condições e combinado a determinadas circunstâncias, provoca indubitavelmente uma sensação estranha, que, além do mais, evoca a sensação de desamparo experimentada em alguns estados oníricos. Em certa tarde quente de verão, caminhava eu pelas ruas desertas de uma cidade provinciana na Itália, quando me encontrei num quarteirão sobre cujo caráter não poderia ficar em dúvida por muito tempo. Só se viam mulheres pintadas nas janelas das pequenas casas, e apressei-me a deixar a estreita rua na esquina seguinte. Mas, depois de haver vagado algum tempo sem perguntar o meu caminho, encontrei-me subitamente de volta à mesma rua, onde a minha presença começava agora a despertar atenção. Afastei-me apressadamente uma vez mais, apenas para chegar, por meio de outro détour, à mesma rua pela terceira vez. Agora, no entanto, sobreveio-me uma sensação que só posso descrever como estranha, e alegrei-me bastante por encontrar-me de volta à piazza que deixara pouco antes, sem quaisquer outras viagens de descoberta. Outras situações, que têm em comum com a minha aventura um retorno involuntário da mesma situação, as quais, porém, dela diferem radicalmente em outros aspectos, resultam também na mesma sensação de desamparo e de estranheza. Assim, por exemplo, quando, surpreendido talvez por um nevoeiro, alguém perde o caminho numa floresta da montanha, cada tentativa para encontrar o caminho marcado ou familiar pode levar a pessoa de volta, por muitas e muitas vezes, a um único e mesmo ponto, que pode ser identificado por algum marco particular. Ou a pessoa pode vagar numa sala escura e desconhecida, procurando a porta ou o interruptor de luz, e esbarrar, vez após vez, com a mesma peça de mobiliário - conquanto seja verdade que Mark Twain conseguiu, com extravagante exagero, transformar essa última situação em algo irresistivelmente cômico.
Se tomamos outro tipo de coisas, é fácil verificar que também é apenas esse fator de repetição involuntária que cerca o que, de outra forma, seria bastante inocente, de uma atmosfera estranha, e que nos impõe a idéia de algo fatídico e inescapável, quando, em caso contrário, teríamos apenas falado de ‘sorte’. Naturalmente, por exemplo, não damos importância ao fato quando entregamos um sobretudo e recebemos do guarda-roupa um tíquete com o número, digamos, 62; ou quando descobrimos que a nossa cabine num navio tem esse número. Mas a impressão é alterada se dois eventos, cada qual independente em si, ocorrem próximos: se nos deparamos com o número 62 diversas vezes no mesmo dia, ou se começamos a perceber que tudo o que tem número - endereços, quartos de hotel, compartimentos em trens - tem invariavelmente o mesmo, ou, em todo caso, um que contém os mesmos algarismos. Sentimos que isso é estranho. E, a não ser que o indivíduo seja totalmente impermeável ao engodo da superstição, ficará tentado a atribuir um significado secreto a essa ocorrência obstinada de um número; entende-lo-á talvez como uma indicação do período de vida a ele designado. Ou suponha-se alguém empenhado em ler as obras do famoso fisiólogo Hering, e num espaço de poucos dias recebe duas cartas, de dois diferentes países, cada qual de uma pessoa chamada Hering, embora esse leitor de fisiologia jamais tenha tido contato com qualquer pessoa chamada Hering. Não há muito tempo um inventivo cientista (Kammerer, 1919) tentou reduzir as coincidências dessa espécie a determinadas leis, privando-as assim do seu estranho efeito. Não vou arriscar-me a decidir se ele foi ou não bem-sucedido.
O modo com que exatamente podemos atribuir à psicologia infantil o estranho efeito de semelhantes ocorrências, é uma questão que posso tocar apenas tangencialmente nestas páginas; e devo referir ao leitor um outro trabalho, já concluído no qual o problema foi colocado em detalhes, mas numa relação diferente. Pois é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma ‘compulsão à repetição’, procedente dos impulsos instintuais e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos - uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco, e ainda muito claramente expressa nos impulsos das crianças pequenas; uma compulsão que é responsável, também, por uma parte do rumo tomado pelas análises de pacientes neuróticos. Todas essas considerações preparam-nos para a descoberta de que o que quer que nos lembre esta íntima ‘compulsão à repetição’ é percebido como estranho.
Agora, no entanto, é tempo de deixarmos esses aspectos do problema, que, em todo caso, são difíceis de julgar, e procurarmos alguns exemplos inegáveis do estranho, na esperança de que uma análise destes decida se nossa hipótese é válida.
Na história de ‘O Anel de Polícrates’, o rei do Egito afasta-se horrorizado do seu anfitrião, Polícrates, porque vê que cada desejo do seu amigo é imediatamente satisfeito, cada cuidado seu prontamente anulado por um amável destino. O anfitrião tornou-se ‘estranho’ para ele. A sua própria explicação, de que também o homem feliz tem que temer a inveja dos deuses, parece-nos obscura; o seu significado está dissimulado em linguagem mitológica. Voltar-nos-emos, portanto, para um outro exemplo, em cenário menos grandioso. No caso clínico de um neurótico obsessivo, descrevi como o paciente ficou certa vez num estabelecimento para tratamento hidropático e muito se beneficiou disso. Teve o bom senso, no entanto, de atribuir a sua melhora não às propriedades terapêuticas da água, mas à situação do seu quarto, que ficava exatamente ao lado do de uma enfermeira muito obsequiosa. Assim, na sua segunda visita ao estabelecimento, pediu o mesmo quarto, mas disseram-lhe que já estava ocupado por um senhor de idade, ao que ele deu vazão ao seu aborrecimento com as palavras: ‘Quero que ele caia morto por causa disso.’ Duas semanas depois o velho realmente teve um derrame. O meu paciente considerou o fato uma experiência ‘estranha’. A impressão de estranheza teria sido ainda mais forte se menos tempo houvesse passado entre as duas palavras e o infeliz evento, ou se tivesse sido capaz de apresentar inumeráveis coincidências semelhantes. O fato é que não teve dificuldades para exibir coincidências dessa espécie; mas, então, não apenas ele, mas também todos os neuróticos obsessivos que observei, conseguiram relatar experiências análogas. Jamais se surpreendem quando invariavelmente se chocam com alguém em quem justamente acabam de pensar, talvez pela primeira vez em muito tempo. Se dizem certo dia ‘Há muito tempo que não tenho notícias de fulano’, estarão certos de receber uma carta desse fulano na manhã seguinte, e raramente ocorrerá um acidente ou uma morte sem que isto lhes tenha passado pela cabeça pouco antes. Têm o hábito de referir-se a esse estado de coisas da maneira mais modesta, dizendo que têm ‘pressentimentos’ que ‘geralmente’ se tornam realidade.
Uma das mais estranhas e difundidas formas de superstição é o medo do mau-olhado, que foi exaustivamente estudado por um oculista de Hamburgo, Seligmann (1910-11). Parece jamais ter havido qualquer dúvida quanto à origem desse medo. Quem quer que possua algo que seja a um só tempo valioso e frágil, tem medo da inveja de outras pessoas, na medida em que projeta nelas a inveja que teria sentido em seu lugar. Um sentimento como este trai-se por um olhar, muito embora não seja posto em palavras; e quando um homem se destaca devido a atributos visíveis, e particularmente atributos não atraentes, as outras pessoas estão prontas a acreditar que a sua inveja se eleva a um grau de intensidade maior do que o habitual, e que essa intensidade a converterá em ação efetiva. Assim, o que é temido é uma intenção secreta de fazer mal, e determinados sinais são interpretados como se aquela intenção tivesse o poder necessário às suas ordens.
Esse últimos exemplos do ‘estranho’ devem ser referidos ao princípio que denominei ‘onipotência de pensamento’, tomando o nome de uma expressão usada por um dos meus pacientes. E agora encontramo-nos em terreno familiar. A nossa análise de exemplos do estranho reconduziu-nos à antiga concepção animista do universo. Caracterizava-se esta pela idéia de que o mundo era povoado por espíritos dos seres humanos; pela supervalorização narcísica, do sujeito, de seus próprios processos mentais, pela crença na onipotência dos pensamentos e a técnica de magia baseada nessa crença; pela atribuição, a várias pessoas e coisas externas, de poderes mágicos cuidadosamente graduados, ou ‘mana‘; bem como por todas as outras criações, com a ajuda das quais o homem, no irrestrito narcisismo desse estádio de desenvolvimento, empenhou-se em desviar as proibições manifestas da realidade. É como se cada um de nós houvesse atravessado uma fase de desenvolvimento individual correspondente a esse estádio animista dos homens primitivos, como se ninguém houvesse passado por essa fase sem preservar certos resíduos e traços dela, que são ainda capazes de se manifestar, e que tudo aquilo que agora nos surpreende como ‘estranho’ satisfaz a condição de tocar aqueles resíduos de atividade mental animista dentro de nós e dar-lhes expressão.Neste ponto vou expor duas considerações que, penso eu, contêm a essência deste breve estudo. Em primeiro lugar, se a teoria psicanalítica está certa ao sustentar que todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se, se reprimido, em ansiedade, então, entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras construiria então o estranho; e deve ser indiferente a questão de saber se o que é estranho era, em si, originalmente assustador ou se trazia algum outro afeto. Em segundo lugar, se é essa, na verdade, a natureza secreta do estranho, pode-se compreender por que o uso lingüístico estendeu das Heimliche [‘homely’ (‘doméstico, familiar’)] para o seu oposto, das Unheimliche (ver em [1]); pois esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo da repressão. Essa referência ao fator da repressão permite-nos, ademais, compreender a definição de Schelling [ver em [1]] do estranho como algo que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz.
Resta-nos apenas comprovar a nossa nova hipótese em mais um ou dois exemplos do estranho.
Muitas pessoas experimentam a sensação, em seu mais alto grau, em relação à morte e aos cadáveres, ao retorno dos mortos e a espíritos e fantasmas. Como vimos [ver em [1]], algumas línguas em uso atualmente só podem traduzir a expressão alemã ‘uma casa unheimlich‘ por ‘uma casa assombrada‘. De fato, podíamos ter começado nossa investigação com esse exemplo, talvez o mais impressionante de todos, de algo estranho, mas abstivemo-nos de o fazer, porque o estranho nesse exemplo está por demais miscigenado ao que é puramente horrível, e é em parte encoberto por ele. Dificilmente existe outra questão, no entanto, em que as nossas idéias e sentimentos tenham mudado tão pouco desde os primórdios dos tempos, e na qual formas rejeitadas tenham sido tão completamente preservadas sob escasso disfarce, como a nossa relação com a morte. Duas coisas contam para o nosso conservadorismo: a força da nossa reação emocional original à morte e a insuficiência do nosso conhecimento científico a respeito dela. A biologia não conseguiu ainda responder se a morte é o destino inevitável de todo ser vivo ou se é apenas um evento regular, mas ainda assim talvez evitável, da vida. É verdade que a afirmação ‘Todos os homens são mortais’ é mostrada nos manuais de lógica como exemplo de uma proposição geral; mas nenhum ser humano realmente a compreende, e o nosso inconsciente tem tão pouco uso hoje, como sempre teve, para a idéia da sua própria mortalidade. As religiões continuam a discutir a importância do fato inegável da morte individual e a postular uma vida após a morte; os governos civis ainda acreditam que não podem manter a ordem moral entre os vivos, se não sustentam a perspectiva de uma vida melhor no futuro como recompensa pela existência mundana. Nas nossas grandes cidades, anunciam-se conferências que tentam dizer-nos como entrar em contato com as almas mais capazes e penetrantes mentes entre os nossos homens de ciência chegaram à conclusão, especialmente perto do final da vida, de que um contato dessa espécie não é impossível. Uma vez que quase todos nós ainda pensamos como selvagens acerca desse tópico, não é motivo para surpresa o fato de que o primitivo medo da morte é ainda tão intenso dentro de nós e está sempre pronto a vir à superfície por qualquer provocação. É muito provável que o nosso medo ainda implique na velha crença de que o morto torna-se inimigo do seu sobrevivente e procura levá-lo para partilhar com ele a sua nova existência. Considerando a nossa inalterada atitude em relação à morte, poderíamos, antes, perguntar o que aconteceu à repressão, que é a condição necessária de um sentimento primitivo que retorna em forma de algo estranho. A repressão, porém, também está presente. Todas as pessoas supostamente educadas, cessaram oficialmente de acreditar que os mortos podem tornar-se visíveis como espíritos, e tornaram tais aparições dependentes de condições improváveis e remotas; ademais, a atitude emocional dessas pessoas para com os seus mortos, que já foi uma atitude altamente ambígua e ambivalente, foi, nos estratos mais elevados da mente, reduzida a um sentimento unilateral de piedade.
Agora temos apenas algumas observações a acrescentar - pois o animismo, a magia e a bruxaria, a onipotência dos pensamentos, a atitude de homem para com a morte, a repetição involuntária e o complexo de castração compreendem praticamente todos os fatores que transformam algo assustador em algo estranho.
Também podemos falar de uma pessoa viva como estranha, e o fazemos quando lhe atribuímos intenções maldosas. Mas não é tudo; além disso, devemos sentir que suas intenções de nos prejudicar serão levadas a cabo com o auxílio de poderes especiais. Um bom exemplo disso é o ‘Gettatore’, aquela estranha figura de superstição romântica que Schaeffer, com sentimento poético intuitivo e profunda compreensão psicanalítica, transformou em personagem simpática no seu Josef Montfort. Mas a questão desses poderes secretos leva-nos outra vez de volta ao reino do animismo. A piedosa Grethen tinha a intuição de que Mefistófeles possuía poderes secretos dessa natureza que o tornaram tão estranho para ela.
Sie fühlt dass ich ganz sicher ein Genie,Vielleicht sogar der Teufel bin.
O efeito estranho da epilepsia e da loucura tem a mesma origem. O leigo vê nelas a ação de forças previamente insuspeitadas em seus semelhantes, mas ao mesmo tempo está vagamente consciente dessas forças em remotas regiões do seu próprio ser. A Idade Média atribuía, com absoluta coerência, todas essas doenças à influência de demônios e, nisso, a sua psicologia era quase correta. Na verdade, não ficaria surpreso em ouvir que a psicanálise, que se preocupa em revelar essas forças ocultas, tornou-se assim estranha para muitas pessoas, por essa mesma razão. Houve um caso, após haver tido êxito - embora não muito rapidamente - na cura de uma moça que fora inválida por muitos anos, em que ouvi essa opinião expressa pela mãe da paciente, muito depois da sua recuperação.
Membros arrancados, uma cabeça decepada, mão cortada pelo pulso, como num conto fantástico de Hauff, pés que dançam por si próprios, como no livro de Schaeffer que mencionei acima - todas essas coisas têm algo peculiarmente estranho a respeito delas, particularmente quando, como no último exemplo, mostram-se, além do mais, capazes de atividade independente. Como já sabemos, essa espécie de estranheza origina-se da sua proximidade ao complexo de castração. Para algumas pessoas, a idéia de ser enterrado vivo por engano é a coisa mais estranha de todas. Ainda assim, a psicanálise nos ensinou que essa fantasia assustadora é apenas uma transformação de outra fantasia que originalmente nada tinha em absoluto de aterrorizador, mas caracterizava-se por uma certa lascívia - quero dizer, a fantasia da existência intra-uterina.
Há mais um ponto de aplicação geral que gostaria de acrescentar, embora, estritamente falando, tenha sido incluído no que já foi dito acerca do animismo e dos modos de ação do aparato mental que foram superados; mas penso que merece destaque especial. Refiro-me a que um estranho efeito se apresenta quando se extingue a distinção entre imaginação e realidade, como quando algo que até então considerávamos imaginário surge diante de nós na realidade, ou quando um símbolo assume as plenas funções da coisa que simboliza, e assim por diante. É esse fator que contribui não pouco para o estranho efeito ligado às práticas mágicas. Nele, o elemento infantil, que também domina a mente dos neuróticos, é a superenfatização da realidade psíquica em comparação com a realidade material - um aspecto estreitamente ligado à crença na onipotência dos pensamentos. No meio do isolamento do período de guerra, caiu em minhas mãos um número da revista inglesa Strand Magazine; e, entre outras matérias algo redundantes, li uma história sobre um jovem casal que se muda para uma casa mobiliada onde há uma mesa de forma curiosa, com entalhes de crocodilos na sua superfície. No fim da tarde um odor intolerável e bastante específico começa a impregnar a casa; eles tropeçam em algo no escuro; parece-lhes verem uma forma vaga deslizando sobre as escadas - para resumir, dá-se a entender que a presença da mesa faz com que crocodilos fantasmas assombrem a casa, ou que os monstros de madeira adquirem vida no escuro, ou alguma coisa no gênero. Era uma história bastante ingênua, mas o estranho efeito que produzia era notável.
Para encerrar esta coletânea de exemplos, que certamente não está completa, vou relatar um outro, tirado da experiência psicanalítica; se não se baseia em mera coincidência, fornece uma bela confirmação da nossa teoria do estranho. Acontece com freqüência que os neuróticos do sexo masculino declaram que sentem haver algo estranho no órgão genital feminino. Esse lugar unheimlich, no entanto, é a entrada para o antigo Heim [lar] de todos os seres humanos, para o lugar onde cada um de nós viveu certa vez, no princípio. Há um gracejo que diz ‘O amor é a saudade de casa’; e sempre que um homem sonha com um lugar ou um país e diz para si mesmo, enquanto ainda está sonhando: ‘este lugar é-me familiar, estive aqui antes’, podemos interpretar o lugar como sendo os genitais da sua mãe ou o seu corpo.” Nesse caso, também, o unheimlich é o que uma vez foi heimisch, familiar; o prefixo ‘un‘ [‘in-’] é o sinal da repressão.

                                                           III

No decorrer desta exposição, o leitor terá sentido algumas dúvidas surgirem em sua mente; e teremos agora oportunidade de reuni-las e de expô-las.
Pode ser verdade que o estranho [unheimlich] seja algo que é secretamente familiar [heimlich-heimisch], que foi submetido à repressão e depois voltou, e que tudo aquilo que é estranho satisfaz essa condição. A escolha do material, com essa base, porém, não nos permite resolver o problema do estranho. Porque a nossa proposta é claramente não conversível. Nem tudo o que preenche essa condição - nem tudo o que evoca desejos reprimidos e modos superados de pensamento, que pertencem à pré-história do indivíduo e da raça - é por causa disso estranho.
Nem esconderemos o fato de que, para quase cada exemplo aduzido em apoio da nossa hipótese, pode-se encontrar outro que a contradiz. A história da mão decepada no conto de Hauff [ver em [1]] certamente tem um estranho efeito, e podemos atribuir esse efeito ao complexo de castração; contudo, a maioria dos leitores provavelmente concordará comigo em julgar que nenhum traço de estranheza é provocado pela história de Heródoto do tesouro de Rhampsinitus, na qual o chefe dos ladrões, a quem a princesa tenta segurar pela mão, deixa-lhe em lugar da sua própria, a mão decepada do irmão dele. Uma vez mais, a pronta realização dos desejos do Polícrates [ver em [1]] afeta-nos indubitavelmente da mesma maneira que afetou o rei do Egito; ainda assim, as nossas próprias histórias de fadas estão abarrotadas de exemplos de realizações instantâneas de desejos, que não produzem qualquer efeito estranho ou assustador. Na história de ‘Os Três Desejos’, a mulher é tentada pelo apetitoso aroma de uma salsicha a desejar possuir também uma, e num instante a salsicha surge num prato diante dela. Contrariado pela sofreguidão da mulher, o marido deseja que a salsicha se lhe pendure no nariz. E lá ela fica, pendendo do nariz da mulher. Tudo isso é surpreendente, mas de modo algum estranho, amedrontador. Os contos de fadas adotam muito francamente o ponto de vista animista da onipotência dos pensamentos de desejos, e mesmo assim não consigo imaginar qualquer história de fadas genuína que tenha em si algo de estranho. Ficamos sabendo que há estranheza no mais alto grau quando um objeto inanimado - um quadro ou uma boneca - adquire vida; não obstante, nas histórias de Hans Christian Andersen, os utensílios domésticos, a mobília e os soldados de chumbo são vivos e, ainda assim, nada poderia estar mais longe do estranho. E dificilmente consideraríamos estranho o fato de que a bela estátua de Pigmalião adquire vida.
A morte aparente e a reanimação dos mortos têm sido representadas como temas dos mais estranhos. Também as coisas desse gênero são, contudo, muito comuns em histórias de fadas. Quem teria a ousadia de dizer que é estranho, por exemplo, quando Branca de Neve abre os olhos uma vez mais? E a ressurreição dos mortos em relatos de milagres, como no Novo Testamento, traz à tona sentimentos de forma alguma relacionadas com o estranho. Então, também o tema que alcança um efeito indubitavelmente estranho, a repetição involuntária da mesma coisa, serve outros propósitos, bastante diferentes, numa outra categoria de casos. Já deparamos com um exemplo [ver em [1]] no qual é empregado para evocar o sentimento do cômico; e poderíamos multiplicar os exemplos desse tipo. Ou, por outro lado, funciona como um meio de ênfase, e assim por diante. E, uma vez mais: qual é a origem do efeito estranho do silêncio, da escuridão e da solidão? Esses fatores não assinalam o papel desempenhado pelo perigo na gênese daquilo que é estranho, apesar de que, no caso das crianças, esses mesmos fatores são os que determinam mais freqüentemente a expressão de medo [em vez de estranheza]? E, afinal de contas, estaremos justificados ao ignorar inteiramente a incerteza intelectual como um fator, tendo admitido a sua importância em relação à morte? [ver em [1] e [2].]
É evidente, portanto, que devemos estar preparados para admitir existirem outros elementos, além daqueles que estabelecemos até aqui, que determinam a criação de sensações estranhas. Poderíamos dizer que esses resultados preliminares satisfizeram o interesse psicanalítico pelo problema do estranho, e que aquilo que resta pede provavelmente uma investigação estética. Isto, porém, seria abrir a porta a dúvidas acerca de qual seja exatamente o valor da nossa argumentação geral, de que o estranho provém de algo familiar que foi reprimido.
Descobrimos um ponto que nos pode ajudar a resolver essas incertezas: quase todos os exemplos que contradizem a nossa hipótese são tomados ao domínio da ficção, da literatura imaginativa. Isto sugere que devemos distinguir entre o estranho que realmente experimentamos e o que simplesmente visualizamos ou sobre o qual lemos.
Aquilo que é experimentado como estranho está muito mais simplesmente condicionado, mas compreende muito menos exemplos. Descobriremos, acho eu, que se ajusta perfeitamente à nossa tentativa de solução, e pode-se atribuir, sem exceção, a algo familiar que foi reprimido. Mas, também aqui, devemos fazer uma certa diferenciação, importante e psicologicamente significativa, no nosso material, a qual melhor se elucida se nos voltamos a exemplos adequados.
Tomemos o estranho ligado à onipotência de pensamentos, à pronta realização de desejos, a maléficos poderes secretos e ao retorno dos mortos. A condição sob a qual se origina, aqui, a sensação de estranheza, é inequívoca. Nós - ou os nossos primitivos antepassados - acreditamos um dia que essas possibilidades eram realidades, e estávamos convictos de que realmente aconteciam. Hoje em dia não mais acreditamos nelas, superamos esses modos de pensamento; mas não nos sentimos muito seguros de nossas novas crenças, e as antigas existem ainda dentro de nós, prontas para se apoderarem de qualquer confirmação. Tão logo acontece realmente em nossas vidas algo que parece confirmar as velhas e rejeitadas crenças, sentimos a sensação do estranho; é como se estivéssemos raciocinando mais ou menos assim: ‘Então, afinal de contas, é verdade que se pode matar uma pessoa com o mero desejo da sua morte!’ ou ‘Então os mortos continuavam mesmo a viver e aparecem no palco de suas antigas atividades!’, e assim por diante. De forma inversa, qualquer um que se tenha livrado, finalmente, de modo completo, de crenças animistas será insensível a esse tipo de sentimento estranho. As mais notáveis coincidências de desejo e realização, a mais misteriosa repetição de experiências similares em determinado lugar ou em determinada data, as mais ilusórias visões e os mais suspeitos ruídos - nada disso o desconcertará ou despertará a espécie de medo que pode ser descrita como ‘um medo de algo estranho’. A coisa toda é simplesmente uma questão de ‘teste de realidade’, uma questão da realidade material dos fenômenos.
A situação é diferente quando o estranho provém de complexos infantis reprimidos, do complexo de castração, das fantasias de estar no útero etc.; mas as experiências que provocam esse tipo de sentimento estranho não ocorrem com muita freqüência na vida real. O estranho que provém da experiência real pertence quase sempre ao primeiro grupo [o grupo descrito no parágrafo anterior]. No entanto, a distinção entre os dois é teoricamente muito importante. Quando o estranho se origina de complexos infantis, a questão da realidade material não surge; o seu lugar é tomado pela realidade psíquica. Implica numa repressão real de algum conteúdo de pensamento e num retorno desse conteúdo reprimido, não num cessar da crença na realidade de tal conteúdo. Poderíamos dizer que, num caso, o que fora reprimido é um determinado conteúdo ideativo, e, no outro, a sua realidade (material). Esta última frase, porém, estende o termo ‘repressão’ para além do seu legítimo significado. Seria mais correto levar em conta uma distinção psicológica que pode ser detectada aqui, e dizer que as crenças animistas das pessoas civilizadas estão num estado de haver sido (em maior ou menor medida) superadas [preferentemente a reprimidas]. A nossa conclusão podia, então, afirmar-se assim: uma experiência estranha ocorre quando os complexos infantis que haviam sido reprimidos revivem uma vez mais por meio de alguma impressão, ou quando as crenças primitivas que foram superadas parecem outra vez confirmar-se. Finalmente, não devemos deixar que nossa predileção por soluções planas e exposição lúcida nos cegue diante do fato de que essas duas categorias de experiência estranha nem sempre são nitidamente distinguíveis. Quando consideramos que as crenças primitivas relacionam-se da forma mais íntima com os complexos infantis e, na verdade, baseiam-se neles, não nos surpreenderemos muito ao descobrir que a distinção é muitas vezes nebulosa.
O estranho, tal como é descrito na literatura, em histórias e criações fictícias, merece na verdade uma exposição em separado. Acima de tudo, é um ramo muito mais fértil do que o estranho na vida real, pois contém a totalidade deste último e algo mais além disso, algo que não pode ser encontrado na vida real. O contraste entre o que foi reprimido e o que foi superado não pode ser transposto para o estranho em ficção sem modificações profundas; pois o reino da fantasia depende, para seu efeito, do fato de que o seu conteúdo não se submete ao teste de realidade. O resultado algo paradoxal é que em primeiro lugar, muito daquilo que não é estranho em ficção sê-lo-ia se acontecesse na vida real; e, em segundo lugar, que existem muito mais meios de criar efeitos estranhos na ficção, do que na vida real.
O escritor imaginativo tem, entre muitas outras, a liberdade de poder escolher o seu mundo de representação, de modo que este possa ou coincidir com as realidades que nos são familiares, ou afastar-se delas o quanto quiser. Nós aceitamos as suas regras em qualquer dos casos. Nos contos de fadas, por exemplo, o mundo da realidade é deixado de lado desde o princípio, e o sistema animista de crenças é francamente adotado. A realização de desejos, os poderes secretos, a onipotência de pensamentos, a animação de objetos inanimados, todos os elementos tão comuns em histórias de fadas, não podem aqui exercer uma influência estranha; pois, como aprendemos, esse sentimento não pode despertar, a não ser que haja um conflito de julgamento quanto a saber que coisas que foram ‘superadas’ e são consideradas incríveis não possam, afinal de contas, ser possíveis; e esse problema é eliminado desde o início pelos postulados do mundo dos contos de fadas. Assim, verificamos que as histórias de fadas, que nos proporcionaram a maioria das contradições em relação à nossa hipótese do estranho, confirmam a primeira parte da nossa proposta - de que, no domínio da ficção, muitas dentre as coisas que não são estranhas o seriam se acontecessem na vida real. No caso dessas histórias, há outros fatores contribuintes, sobre os quais falaremos depois, resumidamente.
O escritor criativo pode também escolher um cenário que, embora menos imaginário do que os dos contos de fada, ainda assim difere do mundo real por admitir seres espirituais superiores, tais como espíritos demoníacos ou fantasmas dos mortos. Na medida em que permanecem dentro do seu cenário de realidade poética, essas figuras perdem qualquer estranheza que possam possuir. As almas no Inferno de Dante, ou as aparições sobrenaturais no Hamlet, Macbeth ou no Júlio César, de Shakespeare, podem ser bastante obscuras e terríveis, mas não são mais estranhas realmente do que o mundo jovial dos deuses de Homero. Adaptamos nosso julgamento à realidade imaginária que nos é imposta pelo escritor, e consideramos as almas, os espíritos e os fantasmas como se a existência deles tivesse a mesma validade que a nossa própria existência tem na realidade material. Também nesse caso evitamos qualquer vestígio do estranho.
A situação altera-se tão logo o escritor pretenda mover-se no mundo da realidade comum. Nesse caso, ele aceita também todas as condições que operam para produzir sentimentos estranhos na vida real; e tudo o que teria um efeito estranho, na realidade, o tem na sua história. Nesse caso, porém, ele pode até aumentar o seu efeito e multiplicá-lo, muito além do que poderia acontecer na realidade, fazendo emergir eventos que nunca, ou muito raramente, acontecem de fato. Ao fazê-lo, trai, num certo sentido, a superstição que ostensivamente superamos; ele nos ilude quando promete dar-nos a pura verdade e, no final, excede essa verdade. Reagimos às suas invenções como teríamos reagido diante de experiências reais; quando percebemos o truque, é tarde demais, e o autor já alcançou o seu objetivo. Deve-se acrescentar, porém, que o seu êxito não é genuíno. Conservamos um sentimento de insatisfação, uma espécie de rancor contra o engodo assim obtido. Notei isto particularmente após a leitura de Die Weissagung [A Profecia], de Schnitzler, e outras histórias semelhantes, que flertam com o sobrenatural. No entanto, o escritor tem mais um meio que pode utilizar para evitar a nossa recalcitrância e, ao mesmo tempo, melhorar as suas chances de êxito. Pode manter-nos às escuras, por muito tempo, quanto à natureza exata das pressuposições em que se baseia o mundo sobre o qual escreve; ou pode evitar, astuta e engenhosamente, qualquer informação definida sobre o problema, até o fim. Falando de um modo geral, contudo, encontramos confirmação da segunda parte da nossa proposta - de que a ficção oferece mais oportunidades para criar sensações estranhas do que aquelas que são possíveis na vida real.
Estritamente falando, todas essas complicações relacionam-se apenas com aquela categoria do estranho que provém de formas de pensamento que foram superadas, a categoria que provém de complexos reprimidos é mais resistente e permanece tão poderosa na ficção como na experiência real, submetendo-se a uma exceção [ver em [1]]. O estranho que pertence à primeira categoria - a que procede de formas de pensamento que foram superadas - conserva o seu caráter não apenas na experiência, mas também na ficção, na medida em que o cenário seja de realidade material; quando se lhe dá, porém, um cenário artificial e arbitrário na ficção, pode perder aquele caráter.
Deixamos claramente de esgotar as possibilidades de licença poética e os privilégios desfrutados pelos ficcionistas para evocar ou para excluir um sentimento estranho. De um modo geral, adotamos uma invariável atitude passiva em relação à experiência real e submetendo-nos à influência do nosso ambiente psíquico. Mas o ficcionista tem um poder peculiarmente diretivo sobre nós; por meio do estado de espírito em que nos pode colocar, ele consegue guiar a corrente das nossas emoções, represá-la numa direção e fazê-la fluir em outra, e obtém com freqüência uma grande variedade de efeitos a partir do mesmo material. Nada disso é verdade e, sem dúvida, há muito que vem sendo levado em consideração pelos que estudam estética. Derivamos para entrar nesse campo de pesquisa, meio involuntariamente, pela tentação de explicar determinados exemplos que contradizem a nossa teoria das causas do estranho. Por conseguinte, voltaremos agora a examinar alguns desses exemplos.
Já perguntamos [ver em [1]] por que é que a mão decepada na história do tesouro de Rhampsinitus não tem o estranho efeito que a mão cortada tem na história de Hauff. A questão parece ter crescido em importância, agora que reconhecemos que a categoria de estranho oriunda de complexos reprimidos é a mais resistente das duas. A resposta é fácil. Na história de Heródoto, os nossos pensamentos estão muito mais concentrados na astúcia superior do chefe dos ladrões, do que nos sentimentos da princesa. A princesa pode muito bem ter tido uma sensação estranha, na verdade provavelmente caiu desmaiada; mas nós não temos tal sensação, pois nos colocamos no lugar do ladrão, e não no lugar dela. Na farsa de Nestroy intitulada Der Zerrissene [O Homem Dilacerado], é utilizado outro meio para evitar qualquer impressão estranha na cena em que o fugitivo, convencido de que é um assassino, levanta um alçapão atrás do outro, e de cada vez vê o que julga ser o fantasma da sua vítima erguendo-se do alçapão. Ele grita com desespero ‘Mas eu matei apenas um homem. Por que esta assombrosa multiplicação?’ Sabemos o que aconteceu antes dessa cena e não partilhamos do seu erro, de modo que aquilo que deve ser estranho para ele tem sobre nós um efeito irresistivelmente cômico. Até mesmo um fantasma ‘real’, como O Fantasma de Canterville de Oscar Wilde, perde todo o poder de pelo menos despertar em nós sentimentos repulsivos tão logo o autor começa a divertir-se, fazendo ironias a respeito do fantasma e permitindo que se tomem liberdades com ele. Assim, vemos o quanto os efeitos emocionais podem ser independentes do verdadeiro assunto no mundo da ficção. Nas histórias de fadas, os sentimentos de medo - incluindo, portanto, as sensações estranhas - são inteiramente eliminados. Nós compreendemos isso, e é por essa razão que ignoramos quaisquer oportunidades que encontremos nelas para desenvolver tais sentimentos.
No que diz respeito aos fatores do silêncio, da solidão e da escuridão [ver em [1] e [2]], podemos tão-somente dizer que são realmente elementos que participam da formação da ansiedade infantil, elementos dos quais a maioria dos seres humanos jamais se libertou inteiramente. Em outro trabalho, esse problema foi discutido do ponto de vista psicanalítico.

APÊNDICE - EXCERTO DO Worterbuch der Deutschen Sprache, DE DANIEL SANDERS

Heimlich, a. (-keit, f.-en): 1. auch Heimelich, heimelig, zum Hause gehorig, nicht fremd, vertraut, zahm, traut und traulich, anheimelnd etc. (a) (veralt.) zum Haus, zur Familie gehorig oder: wie dazu gehorig betrachtet, vgl. lat. familiaris, vertraut: Die Heimlichen, die Hausgenossen; Der heimiliche Rath. 1. Mos. 41, 45; 2. Sam. 23, 23. 1 Chr. 12, 25. Weish. 8, 4., wofür jetzt: Geheimer (s. d 1.) Rath üblich ist, s. Heimlicher - (b) von Thieren zahm, sich den Menschen traulich anschliessend. Ggstz. wild, z. B.: Thier, die weder wild noch heimlich sind, etc. Eppendorf. 88; Wilde Thier …so man sie h. und gewohnsam um die Leute aufzeucht. 92. So diese Thierle von Jugend bei den Menschen erzogen, werden sie ganz h., freundlich etc., Stumpf 608a etc. - So noch: So h. its’s (das Lamm) und frisst aus meiner Hand. Holty; Ein schoner, heimelicher (s. c) Vogel bleibt der Storch immerhin. Linck, Schl. 146. s. Hauslich 1 etc. - (c) traut, traulich anheimelnd; das Wohlgefühl stiller Befriedigung etc., behaglicher Ruhe u. sichern Schutzes, wis das umschlossne, wohnliche Haus erregend (vgl. Geheuer): Ist dir’s h. noch im Lande, wo die Fremden deine Walder roden? Alexis H. 1, 1, 289; Es war ihr nicht allu h. bei ihm. Brentano Wehm. 92; Auf einem hohen h-en Schattenpfade…, langs dem rieselnden rauschenden und platschernden Waldbach. Forster B. 1, 417. Die H-keit der Heimath zerstoren. Gervinus Lit, 5, 375. So vertraulich und h. habe ich nicht leicht ein Platzchen gefunden. G[oethe], 14, 14; Wir dachten es uns so bequem, so artig, so gemüthlich und h. 15, 9; In stiller H-keit, umzielt von engen Schranken. Haller; Einer sorglichen Hausfrau, die mit dem Wenigsten ein vergnügliche H-keit (Häuslichkeit) zu schaffen versteht. Hartmann Unst. 1, 188; Desto h-er kam ihm jetzt der ihm erst kurz noch so fremde Mann vor. Kerner 540; Die protestantischen Besitzer fühlen sich… nicht h. unter ihren katholischen Unterthanen. Kohl. Ir. 1, 172; Wenns h. wird und leise/die Abendstille nur an deiner Zelle lauscht. Tiedge 2, 39; Still und lieb und h., als sie sich/zum Ruhen einen Platz nur wünschen möchten. W[ieland], 11, 144; Es war ihm garnicht h. dabei 27. 170, etc. - Auch: Der Platz war so still, so einsam, so schatten-h. Scherr Pilg. 1, 170; Die ab- und zuströmenden Fluthwellen, träumend und wiegenlied-h. Körner, Sch. 3, 320 etc. - Vgl. namentl. Un-h. -Namentl. bei schwäb., schwzr. Schriftst. oft dreisilbig: Wie ‘heimelich’ war es dann Ivo Abends wieder, als er zu Hause lag. Auerbach, D. 1, 249; In dem Haus ist mirs’ so heimelige gewesen. 4. 307; Die warme Stube, der heimelige Nachmittag. Gotthelf, Sch. 127, 148; Das ist das wahre Heimelig, wenn der Mensch so von Herzen fühlt, wie wenig er ist, wie gross der Herr ist. 147; Wurde man nach und nach recht gemüthlich und heimelig mit einander. U. 1, 297; Die trauliche Heimeligkeit. 380, 2, 86; Heimelicher wird es mir wohl nirgends werden als hier. 327; Pestalozzi 4, 240; Was von ferne herkommt… lebt gw. nicht ganz heimelig (heimatlich, freundnachbarlich) mit den Leuten. 325; Die Hütte, wo/er sonst so heimelig, so froh/ …im Kreis der Seinen oft gesessen. Reithard 20; Da klingt das Horn des Wächters so heimelig vom Thurm/ da ladet seine Stimme so gastlich. 49; Es schaläft sich da so lind und warm/so wundrheim’lig ein. 23 etc. - Diese Weise verdiente allgemein zu werden, um das gute Wort vor dem Veralten wegen nahe liegender Verwechslung mit 2 zu bewahren. vgl.: ‘Die Zecks sind alle h. (2)’ ‘H.?… Was verstehen sie unter h.?… - ‘Nun…es kommt mir mit ihnen vor, wie mit einem zugegrabenen Brunnen oder einem ausgetrockneten Teich. Man kann nicht darüber gehen, ohne dass es Einem immer ist, als könnte da wieder einmal W asser zum Vorscheinkommen.’ Wir nennen das un-h.; Sie nennen’s. Worin finden Sie denn, dass diese Familie etwas Verstecktes und Unzuverlässiges hat? etc. Gutzkow R. 2, 61. - (d) (s. c) namentl. schles.: fröhlich, heiter, auch vom Wetter, s. Adelung und Weinhold.
2. versteckt, verborgen gehalten, so dass man Andre nicht davon oder darum wissen lassen, es ihnen verbergen will, vgl. Geheim (2), von weichem erst nhd. Ew. es doch zumal in der älteren Sprache, z. B. in der Bibel, wie Hiob 11, 6; 15, 8; Weish. 2, 22; 1. Kor. 2, 7 etc., und so auch H-keit statt Geheimnis. Math. 13, 35 etc., nicht immer genau geschieden wird: H. (hinter Jemandes Rücken) Etwas thun, treiben; Sich h. davon schleichen; H-e Zusammenkünfte, Verabredungen; Mit h-er Schadenfreude zusehen; H. seufzen, weinen; H. thun, als ob man etwas zu verbergen hätte; H-e Liebschaft, Liebe, Sünde: H-e Orte (die der Wohlstand zu verhüllen gebietet). 1. Sam. 5, 6; Das h-e Gemach (Abtritt). 2. Kön. 10, 27; W[ieland], 5, 256 etc., auch: Der h-e Stuhl. Zinkgräf 1, 249; In Graben, in H-keiten werfen. 3, 75; Rollenhagen Fr. 83 etc. - Führte h. vor Laomedon/die Stuten vor B[ürger], 161 b etc. - Ebenso versteckt, h., hinterlistig und boshaft gegen grausame Herren… wie offen, frei, theilnehmend und dienstwillig gegen den leidenden Freund. Burmeister gB 2. 157; Du sollst mein h. Heiligstes noch wissen. Chamisso 4, 56; Die h-e Kunst (der Zauberei). 3, 224; Wo die öffentliche Ventilation aufhören muss, fängt die h-e Machination an. Forster, Br. 2, 135; Freiheit ist die leise Parole h. Verschworener, das laute Feldgeschrei der öffentlich Umwälzenden. G[oethe], 4, 222; Ein heilig, h. Wirken. 15; Ich habe Wurzeln/die sind gar h.,/im tiefen Boden/bin ich gegründet. 2, 109; Meine h-e Tücke (vgl. Heimtücke). 30, 344; Empfängt er es nicht offenbar und gewissenhaft, so mag er es h. und gewissenlos ergreifen. 39, 33; Liess h. und geheimnisvoll achromatische Fernröhre zusammensetzen. 375; Von nun an, will nich, sei nichts H-es/mehr unter uns. Sch[iller], 369 b. - Jemandes H-keiten entdecken, offenbaren, verrathen; H-keiten hinter meinem Rücken zu brauen. Alexis. H. 2, 3, 168; Zu meiner Zeit/befliss man sich der H-keit. Hagedorn 3, 92; Die H-keit, und das Gepuschele unter der Hand. Immermann, M. 3, 289: Der H-keit (des verborgnen Golds) unmächtigen Bann/kann nur die Hand der Einsicht lösen. Novalis. 1, 69; /Sag’an, wo du sie…verbirgst, in welches Ortes verschwiegener H. Sch[iller], 495 b; Ihr Bienen, die ihr knetet/der H-keitn Schloss (Wachs zum Siegeln). Tieck, Cymb. 3, 2; Erfahren in seltnen H-keiten (Zauberkünsten). Schlegel Sh. 6, 102 etc., vgl. Geheimnis L[essing], 10: 291 ff.
Zsstzg. s. 1c, so auch nam. der Ggstz.: Un-: unbehagliches, banges Grauen erregend: Der schier ihm un-h., gespenstisch erschien. Chamisso 3, 238; Der Nacht un-h., bange Stunden. 4, 148; Mir war schon lang’ un-h., ja graulich zu Muthe. 242; Nun fängts mir an, un-h. zu werden. G[oethe], 6, 330;… Empfindet ein u-es Grauen. Heine, Verm. 1, 51; Un-h. und starr wie ein Steingild. Reis, 1, 10; Den u-en Nebel, Haarauch geheissen. Immermann M., 3, 299; Diese blassen Jungen sind un-h. und brauen Gott weiss was Schlimmes. Laube, Band. 1, 119; Un-h. nenntman Alles, was im Geheimnis, im Verborgnen…bleiben sollte und hervorgetretenist. Schelling, 2, 2, 649 etc. - Das Göttliche zu verhüllen, mit einer gewissen U-keit zu umgeben 658, etc. - Unüblich als Ggstz. von (2), wie es Campe ohne Beleg anführt.`
























PREFÁCIO A RITUAL: ESTUDOS PSICANALÍTICOS, DE REIK (1919)


NOTA DO EDITOR INGLÊS

PREFACE TO REICK’S PROBLEME DERRELIGIONSPSYCHOLOGIE

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:

1919 Em T. Reik, Probleme der Religionspsychologie, I Teil: ‘Das Ritual’, vii-xii, Leipzig e Viena: Internationaler Psychoanalytischer Verlag.
1928 2ª ed., publicada sob o título Das Ritual: Psychoanalytische Studien. Mesmos editores.
1928 G.S., 11, 256-60.1947 G.W., 12, 325-9.

(b)TRADUÇÕES INGLESAS:
Preface to Reik’s Ritual: Psycho-Analytic Studies

1931 Em Reik, Ritual.Psycho-Analytic Studies, 5-10, Londres: Hogarth Press and Institute of Psycho-Analysis; Nova Iorque: Norton. (Trad. de D. Bryan.)
1946 Em Reik, The Psychological Problems of Religion, Nova Iorque. (Redição da trad. acima, com o título modificado.)
1950 C.P., 5, 92-7. (Sob o título ‘Psycho-Analysis and Religious Origins’.) (Trad. de J. Strachey.)

A presente tradução inglesa é a mesma publicada em 1950, ligeiramente revista. O segundo volume do livro original de Reik nunca foi publicado.

PREFÁCIO A RITUAL: ESTUDOS PSICANALÍTICOS, DE REIK

A psicanálise nasceu por necessidade médica. Originou-se da necessidade de ajudar os pacientes neuróticos, que não haviam encontrado alívio por meio das curas de repouso, das artes da hidropatia ou da eletricidade. Uma observação notável feita por Josef Breuer havia despertado a esperança de que quando mais se compreendesse a até então inexplorada origem dos sintomas dos neuróticos, tanto mais extensivo seria o auxílio que se poderia proporcionar-lhes. Aconteceu, assim, que a psicanálise, sendo originalmente uma técnica puramente médica, foi desde o início dirigida para a pesquisa, para a descoberta dos elos causais, a um só tempo recônditos e de amplo alcance.
O curso posterior da psicanálise afastou-a do estudo das determinantes somáticas da doença nervosa, a tal ponto que se tornou desconcertante para os médicos. Em vez desse estudo, a psicanálise entrou em contato com a substância mental da vida humana - não apenas a vida dos doentes, mas dos saudáveis, dos normais e dos supernormais. Defrontou-se com emoções e com paixões, sobretudo aquelas que os poetas nunca se cansam de louvar e celebrar - as emoções do amor. Aprendeu a reconhecer o poder das lembranças, a insuspeita importância dos anos da infância na formação do adulto, e a força dos desejos, que falseiam o raciocínio humano e estabelecem linhas fixas para o esforço do homem.
Durante algum tempo a psicanálise parecia destinada a imergir na psicologia sem conseguir mostrar por que a psicologia dos doentes diferia da dos normais. À medida em que progredia, no entanto, defrontou-se com o problema dos sonhos, que são produtos anormais da mente criados por homens normais sob condições fisiológicas que ocorrem regularmente. Quando a psicanálise resolveu o problema dos sonhos, havia descoberto nos processos psíquicos inconscientes o solo comum no qual os mais altos e os mais baixos impulsos mentais têm suas raízes e do qual se originam as mais normais como as mais mórbidas e estrambóticas criações mentais. O novo quadro das operações da mente começou a tornar-se cada vez mais claro e completo. Era um quadro de obscuras forças instintuais, orgânicas em sua origem, empenhando-se em objetivos congênitos e, acima dessas forças, uma instância que compreende as estruturas mentais de organização mais elevada - aquisições da evolução humana feitas sob o impacto da história da humanidade -, uma instância que se apossou de partes dos impulsos instintuais, que os desenvolveu ou até mesmo os dirigiu a propósitos mais altos, mas que, em todo caso, os amarra firmemente e manipula a sua energia para seguir seus próprios propósitos. Essa organização mais elevada, contudo, que para nós é conhecida como o ego, rejeitou outra parte desses mesmos impulsos instintuais elementares como sendo inúteis, por não poderem ajustar-se à unidade orgânica do indivíduo ou por se rebelarem contra os objetivos culturais do indivíduo. O ego não está em posição de exterminar essas forças mentais insubmissas, mas volta-lhes as costas, deixa-os permanecerem no nível psicológico mais baixo, defendendo-se das suas exigências ao erigir energicamente barreiras protetoras e antitéticas ou procurando entrar em acordo com elas por meio de satisfações substitutivas. Esses instintos que caíram vítimas da repressão - indomados e indestrutíveis, ainda que impedidos de qualquer espécie de atividade -, junto com os meus primitivos representantes mentais, constituem o submundo mental, o núcleo do verdadeiro inconsciente, e estão prontos a afirmar suas exigências a qualquer momento e a forçar de qualquer maneira o caminho para a satisfação. A isto deve-se a instabilidade da orgulhosa superestrutura da mente, a emergência, à noite, de material proscrito e reprimido em forma de sonhos, e a tendência a adquirir neuroses e psicoses tão logo a balança de poder entre o ego e o material reprimido mostre desvantagem para o primeiro.
Essa pequena reflexão destinava-se a mostrar que seria impossível restringir à região dos sonhos e das doenças nervosas uma visão como esta da vida da mente humana. Se essa visão encontrou uma verdade, deve aplicar-se igualmente aos eventos mentais normais, e mesmo os mais elevados feitos do espírito humano portam uma relação demonstrável com os fatores encontrados na patologia - com a repressão, com os esforços para dominar o inconsciente e com as possibilidades de satisfazer os instintos primitivos. Havia, assim, uma tentação irresistível e, de fato, um dever científico de aplicar às várias ciências mentais os métodos de pesquisa da psicanálise, em regiões muito remotas do seu solo nativo. E, na verdade, o próprio trabalho psicanalítico com os pacientes apontava persistentemente na direção dessa nova tarefa, pois era óbvio que as formas assumidas pelas diferentes neuroses ecoavam as criações mais admiradas da nossa cultura. Desse modo, os histéricos são indubitavelmente artistas imaginativos, mesmo se, de um modo geral, expressam as suas fantasias mimeticamente e sem considerar a sua inteligibilidade para outras pessoas; os cerimoniais e proibições dos neuróticos obsessivos levam-nos a supor que eles criaram uma religião própria; particular; e os delírios dos paranóicos têm uma desagradável similaridade externa e um parentesco interno com os sistemas dos nossos filósofos. É impossível escapar à conclusão de que esses pacientes estão fazendo, de forma associal, tentativas para resolver seus conflitos e apaziguar suas necessidades prementes, tentativas que, quando levadas a cabo de uma maneira que é aceitável pela maioria, são conhecidas como poesia, religião e filosofia.
Em 1913, Otto Rank e Hanns Sachs, num trabalho extremamente interessante, juntaram os resultados conseguidos até então na aplicação da psicanálise às ciências mentais. Os ramos mais facilmente acessíveis dessas ciências parecem ser a mitologia e a história da literatura e da religião. Não se encontrou ainda a fórmula final que nos permita dar um lugar apropriado aos mitos nessa relação. Otto Rank, num grande volume sobre o complexo do incesto (1912), apresentou evidência do surpreendente fato de que a escolha do tema, particularmente nas obras dramáticas, é determinada principalmente pelo âmbito do que a psicanálise denominou de ‘complexo de Édipo’. Elaborando esse tema, com a maior variedade de modificações, distorções e disfarces, o dramaturgo procura ocupar-se das suas próprias e mais pessoais relações com esse tema emocional. É ao tentar dominar o complexo de Édipo - ou seja, a atitude emocional da pessoa em relação à sua família ou, em sentido mais restrito, em relação ao pai e à mãe - que o indivíduo neurótico chega ao pesar, sendo por esse motivo que aquele complexo forma habitualmente o núcleo da neurose. Não se deve a sua importância a qualquer conjunção ininteligível; a ênfase colocada na relação dos filhos com os pais é expressão de fatos biológicos, de que os jovens da raça humana atravessam um longo período de dependência e só lentamente alcançam a maturidade, bem como de que a sua capacidade de amar submete-se a um intrincado curso de desenvolvimento. Por conseguinte, a superação do complexo de Édipo coincide com o modo mais eficiente de dominar a herança arcaica e animal da humanidade. É verdade que essa herança compreende todas as forças que são exigidas no subseqüente desenvolvimento cultural do indivíduo, mas primeiro devem elas ser selecionadas e moldadas. Esse legado arcaico não se ajusta à utilização em propósitos da vida social civilizada na forma em que é herdado pelo indivíduo.
Para encontrar o ponto de partida para a concepção psicanalítica da vida religiosa, devemos ir um pouco além. O que é hoje a herança do indivíduo, foi no passado uma nova aquisição, e passou, de uma para a outra, por uma longa série de gerações. Assim, também o complexo de Édipo pode haver tido estádios de desenvolvimento, e o estudo da pré-história pode habilitar-nos a rastreá-los. A investigação sugere que a vida da família humana assumia, naqueles tempos remotos, uma forma muito diferente da que conhecemos hoje. E essa idéia é apoiada por descobertas fundamentadas em observações de raças primitivas contemporâneas. Se o material pré-histórico e etnológico sobre esse assunto é trabalhado psicanaliticamente, chegamos a um resultado inesperadamente preciso, a saber, o de que Deus Pai já uma vez caminhou sobre a terra em forma corporal e exerceu a sua soberania como chefe tribal da horda humana primeva, até que os seus filhos se uniram para matá-lo. Ademais, surge daí que esse crime de liberação e as reações a ele tiveram como resultado o aparecimento dos primeiros laços sociais, das restrições morais básicas e da mais antiga forma de religião, o totemismo. As religiões posteriores, porém, têm também o mesmo conteúdo, e, por um lado, preocupam-se em suprimir os vestígios daquele crime ou em expiá-lo, apresentando outras soluções para a luta entre pai e filhos, ao passo que, por outro lado, não podem evitar repetir uma vez mais a eliminação do pai. Conseqüentemente, um eco desse evento monstruoso, que obscureceu todo o curso do desenvolvimento humano, encontra-se também nos mitos.
Essa hipótese, que se fundamenta nas observações de Robertson Smith [1889] e foi desenvolvida por mim em Totem e Tabu [1912-13], foi tomada por Theodor Reik como base dos seus estudos sobre os problemas da psicologia da religião, dos quais é este o primeiro volume. Em conformidade com a técnica psicanalítica, esses estudos partem de detalhes até agora inexplicados da vida religiosa e, mediante a elucidação destes, obtêm acesso aos postulados fundamentais e aos objetivos últimos das religiões; além disso, mantêm firmemente em vista a relação entre o homem pré-histórico e as sociedades primitivos contemporâneas, bem como a conexão entre os produtos da civilização e as estruturas substitutivas dos neuróticos. Para concluir, chamaria a atenção para a própria introdução do autor, expressando a minha crença de que o seu trabalho se recomendará por si aos especialistas no ramo de conhecimento de que trata.























BREVES ESCRITOS (1919)


UMA NOTA SOBRE PUBLICAÇÕES E PRÊMIOS PSICANALÍTICOS

No outono de 1918, um membro da Sociedade Psicanalítica de Budapest informou-me que, dos lucros provindos de empreendimentos industriais durante a guerra, fora destacado um fundo para finalidades culturais. Decidira-se que esse fundo seria gerido, em conjunto, por ele próprio e pelo burgomestre-mor da cidade de Budapest, Dr. Stephan Bárczy. Ambos haviam concordado em destinar a considerável soma de dinheiro em questão à causa do movimento psicanalítico, transferindo-me a administração do fundo. Aceitei essa incumbência e cumpro agora o dever de manifestar agradecimentos públicos ao burgomestre-mor (que, pouco depois, com tanta honra recebeu o Congresso Psicanalítico em Budapest), bem como ao anônimo membro que tão alto serviço prestou à causa da psicanálise.
O fundo assim colocado à minha disposição, ao qual foi dado o meu nome, foi por mim destinado à fundação de uma editora psicanalítica internacional [a ‘Internationaler Psychoanalytischer Verlag’]. Nas circunstâncias atuais, considerei ser esta a nossa mais importante necessidade.
Ao contrário de muitos outros empreendimentos científicos, as nossas duas publicações periódicas, a Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse e Imago, não se extinguiram durante a guerra. Conseguimos manter a sua existência, mas, em conseqüência de crescentes dificuldades, do fechamento de fronteiras e da elevação de preços, que acompanharam a guerra, tornou-se necessário reduzi-las consideravelmente em tamanho e permitir que intervalos indesejavelmente longos se interpusessem entre a publicação dos sucessivos números. Dos quatro organizadores dos dois periódicos (Ferenczi, Jones, Rank e Sachs), um, por ser súdito de um Estado inimigo, foi-nos tirado; dois outros haviam-se alistado e engajaram-se plenamente em suas obrigações militares; no trabalho ficou apenas o Dr. Sachs, que assumiu com auto-sacrifício toda a carga de responsabilidade. Algumas das sociedades psicanalíticas locais acharam necessário suspender inteiramente as reuniões; o número de colaboradores minguou, bem como o de assinantes. Era fácil prever que o descontentamento natural do editor em breve colocaria em questão a continuação dos periódicos, aos quais atribuíamos tanta importância. Ainda assim, numerosas indicações, que nos chegavam até mesmo das trincheiras, da linha de frente, assinalavam o fato de que o interesse contemporâneo pela psicanálise não havia diminuído. Penso que estava justificado na minha intenção de pôr fim a essas dificuldades e perigos com a fundação de uma editora psicanalítica internacional. Essa editora já existe hoje, como companhia de responsabilidade limitada; está sob a direção do Dr. Otto Rank, que foi por tantos anos secretário da Sociedade de Viena e co-organizador dos dois periódicos psicanalíticos, e que, depois de uma ausência de vários anos, em serviço ativo, voltou a seu trabalho anterior em prol da psicanálise.
A nova editora, financiada pelos fundos da doação de Budapest, assumiu a incumbência de assegurar o aparecimento regular e a distribuição certa dos dois periódicos. Tão logo as dificuldades de circunstâncias externas o permitam, pretende-se restituir-lhes as suas antigas dimensões, e, se necessário, aumentar essas dimensões, sem qualquer ônus extra para os assinantes. Ademais disso, porém, e sem esperar por melhor situação, a editora continuará a imprimir livros e opúsculos dentro do campo da psicanálise médica e aplicada; e, uma vez que não tem preocupação de lucro, estará apta a dar mais atenção aos interesses dos autores, do que habitualmente acontece nas editoras comerciais.
Simultaneamente ao estabelecimento da editora psicanalítica, decidiu-se conceder prêmios anuais, com proveitos da doação de Budapest, a dois trabalhos que se destaquem, um no campo da psicanálise médica, outro no da psicanálise aplicada. Esses prêmios - num total de 1.000 Kronen austríacos - destinam-se a serem concedidos não a autores, mas a trabalhos individuais, de modo que haverá a possibilidade de um mesmo autor ganhar o prêmio mais de uma vez. A decisão quanto à questão de saber quais, entre os trabalhos publicados durante um determinado período, irão receber os prêmios, não foi transferida para uma comissão, mas será mantida nas mãos de uma só pessoa, que será o administrador do fundo; de outra maneira, se uma comissão julgadora tivesse que ser formada com os melhores e mais experientes analistas, os seus próprios escritos teriam que deixar de ser considerados e o esquema poderia facilmente fracassar na sua intenção de distinguir realizações exemplares na literatura psicanalítica. Se aquele que julga se achar hesitando entre duas obras de valor praticamente igual, terá o direito de dividir o prêmio entre ambos, sem que a atribuição de um meio-prêmio implique em qualquer desapreço do trabalho em questão.
Pretende-se que esses prêmios seja, em geral, concedidos todos os anos e que a escolha abranja toda a literatura psicanaliticamente importante publicada durante aquele período, independente do fato de o autor da obra em questão ser ou não membro da Associação Psicanalítica Internacional.
Os primeiros prêmios já foram concedidos e dizem respeito a artigos publicados durante o período de guerra, de 1914 a 1918. O prêmio de psicanálise médica foi dividido entre o artigo de Karl Abraham, ‘O Primeiro Estádio Pré-genital da Libido’ (1916), e o opúsculo de Ernst Simmel, Kriegsneurosen und psychisches Trauma [Neuroses de Guerra e Trauma Psíquico] (1918). O prêmio de psicanálise aplicada foi concedido ao ensaio de Theodor Reik ‘Die Pubertätsriten der Wilden’ [‘Ritos da Puberdade entre os Selvagens’] (1915).
FREUD.

NOTA DO EDITOR INGLÊS

Dois outros anúncios sobre o mesmo assunto, ambos impressos com a assinatura de Freud, apareceram subseqüentemente: ‘Preiszuteilungen’ (Int. Z. Psychoanal., 7, 381) e ‘Preisausschreibung’ (ibid., 8, 527). O primeiro foi publicado em fins de 1921:
‘CONCESSÃO DE PRÊMIOS
‘Uma recente doação feita pelo Dr. Max Eitingon, diretor da Clínica de Berlim, tornou-me possível restabelecer a concessão de prêmios (realizada pela primeira vez em 1919) a escritos psicanalíticos de destacado mérito. O prêmio de psicanálise médica foi concedido a A. Stärcke (de Den Dolder, Holanda) por duas publicações suas, “Der Kastrationskomplex” [1920] e “Psychoanalyse und Psychiatrie” [1921] (ambas comunicações apresentadas ao congresso), das quais a primeira apareceu no presente volume deste periódico, e a segunda, em número suplementar. O prêmio de psicanálise aplicada foi para o Dr. G. Róheim (de Budapest), pelo seu artigo “Das Selbst” [1921] e pela sua comunicação ao congresso sobre o totemismo australiano [1920]. O total de cada prêmio foi de mil marcos. [Aproximadamente 50 libras.]
FREUD.’
O segundo desses anúncios foi publicado no final de 1922:
‘OFERTA DE PRÊMIO
‘No Sétimo Congresso Psicanalítico Internacional, em Berlim, estabeleci como tema para um prêmio: “A Relação entre a Técnica Analítica e a Teoria Analítica”. As questões a serem expostas referem-se a até que ponto a técnica influenciou a teoria e até que ponto se ajudam ou obstruem uma à outra no momento atual.
‘Trabalhos que tratem desse tema devem ser-me enviados, para o endereço dado abaixo, antes do dia 1° de maio de 1923. Devem ser legivelmente datilografados. Devem trazer um lema e ser acompanhados de um envelope selado, contendo o nome do autor. Devem ser escritos em alemão ou em inglês. Na apreciação das obras submetidas a julgamento, contarei com a assistência do Dr. K. Abraham e do Dr. M. Eitingon.
‘O prêmio totaliza 20.000 marcos, ao valor corrente à época do congresso.
‘Berggasse 19, Viena IX.FREUD.’De acordo com uma declaração oficial, na Int Z. Psychoanal., 10, 106, não se inscreveram trabalhos para esse prêmio; mas o tema foi debatido num simpósio, no Oitavo Congresso (Salzburg), em 1924.

JAMES J. PUTNAM (1919)

Entre as primeiras novas que nos chegam, após serem suspensas as barreiras que nos separam dos países anglo-saxões, vem a dolorosa notícia da morte de Putnam, presidente do grande grupo psicanalítico pan-americano. Viveu além dos setenta e dois anos de idade, permaneceu intelectualmente ativo até o fim e morreu serenamente, de uma deficiência cardíaca, durante o sono, em novembro de 1918. Putnam, que foi até alguns anos atrás professor de neuropatologia na Universidade de Harvard, era o grande apoio da psicanálise nos Estados Unidos. Suas numerosas obras teóricas (algumas das quais apareceram pela primeira vez na Internationale Zeitschrift) contribuíram imensamente, pela clareza e riqueza de idéias e pela linha decisivamente favorável que assumiram, para criar a alta estima que a psicanálise desfruta hoje nos Estados Unidos, tanto no ensino psiquiátrico como na opinião pública. O seu exemplo não pode ter sido menos efetivo. Era universalmente respeitado pelo seu caráter inatacável, reconhecendo-se que era influenciado apenas pelas considerações éticas mais elevadas. As suas relações pessoais mais chegadas não podiam fugir à conclusão de que era uma daquelas pessoas grandemente dotadas, do tipo obsessivo, para quem a dignidade é a sua segunda natureza e para quem qualquer concessão à desonra se torna uma impossibilidade.
A aparência pessoal de J. J. Putnam tornou-se familiar aos analistas europeus através da sua participação no Congresso de Weimar, de 1911. O organizador da Zeitschrift espera incluir no próximo número um retrato do nosso ilustre amigo e uma apreciação detalhada dos seus feitos científicos



VICTOR TAUSK (1919)

Entre as vítimas, felizmente poucas em número, reivindicadas pela guerra às fileiras da psicanálise, devemos contar o Dr. Victor Tausk. Esse homem de raros dons, um especialista vienense em doenças nervosas, tirou a sua própria vida antes que a paz fosse assinada.
O Dr. Tausk, que tinha apenas quarenta e dois anos, fora durante mais de dez anos um dos seguidores de Freud pertencentes ao seu círculo íntimo. Originalmente advogado de profissão, atuou por um período considerável como magistrado na Bósnia, quando, por pressão de graves problemas pessoais, abandonou a carreira e voltou-se para o jornalismo, ao qual particularmente se ajustava, por sua ampla cultura geral. Após trabalhar durante algum tempo como jornalista, em Berlim, veio para Viena com essa mesma atividade. Aqui entrou em contato com a psicanálise e logo decidiu dedicar-se a ela inteiramente. Embora já não fosse um jovem e tivesse a responsabilidade de uma família, não se intimidou com as grandes dificuldades e sacríficios em que implicava uma nova mudança de profissão, ainda mais para uma em que precisaria de uma interrupção de vários anos antes que pudesse voltar outra vez a ganhar a vida. Empenhou-se no tedioso estudo da medicina apenas como um meio que o capacitasse a levar a cabo a prática psicanalítica.
Pouco antes da deflagração da [primeira] guerra mundial, Tausk obtivera o seu segundo grau de doutor e estabelecera-se em Viena como especialista em distúrbios nervosos. Aqui, após um período relativamente curto, começara a desenvolver uma prática considerável e alcançara alguns resultados excelentes. Essas atividades prometiam ao jovem médico em ascensão plena satisfação, bem como meio de sustento; mas isto lhe foi arrancado repentinamente e com violência pela guerra. Foi imediatamente convocado para o serviço ativo e logo promovido ao primeiro escalão. Levou a cabo as suas obrigações de médico com dedicação, nos diversos teatros da guerra, no norte e nos Bálcãs (finalmente em Belgrado), e recebeu uma condecoração oficial. Para grande honra sua, também, é que se lançou durante a guerra, com toda a sinceridade e sem considerar absolutamente as conseqüências, à denúncia dos numerosos abusos que tantos médicos infelizmente toleraram em silêncio ou pelos quais até mesmo dividiram a responsabilidade [ver em [1].]
As tensões de um serviço de vários anos no campo não podiam deixar de exercer um efeito psicológico gravemente prejudicial sobre um homem tão intensamente consciencioso. No último Congresso Psicanalítico, que realizamos em Budapest, em setembro de 1918, e que reuniu uma vez mais os analistas, após muitos anos de separação, o Dr. Tausk, que havia muito já estava com a saúde física abalada, começava a mostrar sinais de uma irritabilidade nervosa incomum. Quando, pouco depois, no fim do outono do ano passado, concluiu o seu serviço militar e regressou a Viena, enfrentou pela terceira vez, no seu estado de exaustão mental, a difícil tarefa de erigir uma nova existência - desta vez sob condições internas e externas as mais desfavoráveis. Além disso, o Dr. Tausk, que deixou dois filhos crescidos, para quem foi um pai dedicado, estava prestes a contrair novo casamento. Não mais conseguia lutar com as muitas exigências que lhe foram impostas, no seu estado de doença, pela dura realidade. Na manhã de 3 de julho [1919], pôs fim à própria vida.
O Dr. Tausk era membro da Sociedade Psicanalítica de Viena desde o outono de 1909. Era bem conhecido dos leitores deste periódico por suas numerosas contribuições, que se distinguiam pela observação aguda, pelo sólido raciocínio e por uma particular clareza de expressão. Esses escritos exibem abertamente a formação filosófica, que o autor conseguia combinar, com rara felicidade, com os métodos exatos da ciência. A sua forte necessidade de estabelecer as coisas com fundamento filosófico e de atingir a clareza epistemológica, compelia-o a formular, e procurar também dominar, toda a profundidade e o significado extensivo dos dificílimos problemas em questão. Talvez por vezes tenha ido longe demais nessa direção, na sua ânsia impetuosa de pesquisa. Talvez a época não fosse ainda propícia para fixar fundamentos tão gerais como esses para a jovem ciência da psicanálise. A consideração psicanalítica de problemas filosóficos, para a qual Tausk demonstrava particular aptidão, promete tornar-se cada vez mais fecunda. Um dos seus últimos trabalhos, sobre a psicanálise da função do juízo, que foi apresentado no Congresso de Budapest e não está ainda publicado, evidencia essa direção assumida pelo seu interesse.
Além do seu dom para a filosofia e da atração que o ligava a ela, Tausk possuía uma capacidade médico-psicológica excepcional e produziu excelentes trabalhos também nesse campo. Suas atividades clínicas, a que devemos valiosas pesquisas das várias psicoses (por exemplo, a melancolia e a esquizofrenia), justificavam as melhores esperanças e davam-lhe perspectivas de uma designação para a docência universitária [Dozentur], pela qual se havia empenhado.
A psicanálise em particular está em dívida com o Dr. Tausk, que era um brilhante orador, pelas séries de conferências que proferiu, por um período de muitos anos, a grandes audiências de ambos os sexos e nas quais introduzia os ouvintes nos princípios e problemas da psicanálise. O seu público conseguia admirar a clareza e habilidade didática das suas conferências, não menos do que a profundidade com que abordava os tópicos individuais.
Todos aqueles que o conheceram bem valorizavam o seu caráter franco, a sua honestidade consigo mesmo e com os outros e a superioridade de uma natureza que se distinguia por um empenho pela nobreza e pela perfeição. O seu temperamento apaixonado encontrava expressão em críticas agudas e por vezes demasiado agudas, que no entanto se combinavam com um brilhante dom para a exposição. Essas qualidades pessoais exerciam grande atração sobre muitas pessoas, enquanto algumas, também, podem ter sido repelidas por elas. Ninguém contudo, podia fugir à impressão de que ali se encontrava um homem de importância.
O quanto a psicanálise significava para ele, até os seus últimos momentos, é demonstrado pelas cartas que deixou, nas quais expressava a sua crença sem reserva na psicanálise e a esperança de que esta encontrasse reconhecimento num futuro não muito remoto. Não há dúvida de que esse homem, de quem a nossa ciência e os seus amigos em Viena foram prematuramente roubados, contribuiu para esse objetivo. Ele assegurou uma lembrança honrosa na história da psicanálise e das suas primeiras lutas.