O caso Schereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos
VOLUME XII
(1911-1913)
Dr. Sigmund Freud
NOTAS PSICANALÍTICAS SOBRE UM RELATO AUTOBIOGRÁFICO DE UM CASO DE
PARANÓIA (DEMENTIA PARANOIDES) (1911)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
PSYCHOANALYTISCHE BEMERKUNGEN ÜBER EINEN
AUTOBIOGRAPHISCH BESCHRIEBENEN FALL VONPARANOIA (DEMENTIA PARANOIDES)
(a) EDIÇÕES
ALEMÃS:
1911 Jb. psychoan. psychopath. Forsch., 3 (1), 9-68.
1913 S. K. S. N., 3, 198-266. (1921, 2ª ed.)
1924 G. S.., 8, 355-431.
1932 Vier Krankengeschichten, 377-460.
1943 G. W., 8, 240-316.
1912 ‘Nachtrag zu dem
autobiographisch beschriebenen Fall von Paranoia (Dementia paranoides)’, Jb.
psychoan. psychopath. Forsch., 3, (2), 588-90.
1913 S. K. S. N., 3, 267-70. (1921, 2ª ed.)
1924 G. S., 8, 432-5.
1932 Vier Krankengeschichten, 460-3.
1943 G. W., 8,
317-20.
(b) TRADUÇÃO
INGLESA:
‘Psycho-Analytic Notes
upon an Autobiographical Account of a Case of Paranoia (Dementia paranoides)’
1925 C. P., 3, 387-466. - ‘“Pós-escrito” ao Caso de Paranóia’, ibid.,
467-70. (Trad. de Alix e James Strachey.)
A presente tradução inglesa constitui reedição
da publicada em 1925, algumas correções e notas adicionais.
As Memórias de Schreber foram publicadas
em 1903; mas, embora houvessem sido amplamente debatidas em círculos
psiquiátricos, só parecem ter atraído a atenção de Freud no verão de 1910.
Sabe-se que falou sobre elas e sobre todo o tema da paranóia durante sua viagem
à Sicília, com Ferenczi, em setembro desse ano. No retorno a Viena, começou a
escrever o artigo, cujo término foi anunciado a Abraham e Ferenczi em cartas
datadas de 16 de dezembro. Não parece ter sido publicado até o verão de 1911. O
‘Pós-escrito’ foi lido perante o Terceiro Congresso Psicanalítico Internacional
(realizado em Weimar), em 22 de setembro de 1911, e publicado no início do ano
seguinte.
Freud atacara o problema da paranóia numa fase
muito prematura de suas pesquisas em psicopatologia. Em 24 de janeiro de 1895,
alguns meses antes da publicação dos Estudos sobre a Histeria, enviou a
Fliess longo memorando sobre o assunto (Freud, 1950a, Rascunho H). Este
incluía uma breve história clínica e um exame teórico que visava a estabelecer
dois pontos principais: que a paranóia é uma neurose de defesa e que seu
mecanismo principal é a projeção. Quase um ano depois (em 1º de janeiro
de 1896), enviou a Fliess outra nota, muito mais breve, sobre paranóia, parte
de um relato geral sobre as ‘neuroses de defesa’ (ibid., Rascunho K), que pouco
depois ampliou em seu segundo trabalho publicado com aquele título (1896b).
Nessa publicação, a Seção II incluía outra história clínica, mais extensa,
intitulada ‘Análise de um Caso de Paranóia Crônica’, caso para o qual Freud (em
nota de rodapé acrescentada quase 20 anos depois) preferiu o diagnóstico
corrigido de ‘dementia paranoides’. Com referência à teoria, esse trabalho de
1896 pouco acrescentava às suas sugestões anteriores; mas, numa carta a Fliess
não muito posterior (9 de dezembro de 1899, Freud, 1950a, Carta 125), há
um parágrafo um tanto crítico, que prenuncia considerações posteriores de
Freud, inclusive a sugestão de que a paranóia acarreta o retorno a um
auto-erotismo primitivo. Este parágrafo é transcrito na íntegra na Nota do
Editor Inglês ao artigo sobre ‘A Disposição à Neurose Obsessiva’, com relação
ao problema da ‘escolha da neurose’. (Ver a partir de [1].).
Entre a data desta última passagem e a
publicação da história clínica de Schreber, mais de dez anos se passaram quase
sem haver menção à paranóia nos escritos publicados de Freud. Informam-nos
Ernest Jones (1955, 281), contudo, que em 21 de novembro de 1906 ele apresentou
um caso de paranóia feminina perante a Sociedade Psicanalítica de Viena. Nessa
data, aparentemente ainda não havia chegado ao que deveria ser sua
generalização principal sobre o assunto, a saber, a vinculação existente entre
paranóia e homossexualismo passivo reprimido. Não obstante, pouco mais de um
ano mais tarde, apresentava esta hipótese em cartas a Jung (27 de janeiro de
1908) e Ferenczi (11 de fevereiro de 1908), dela pedindo e recebendo
confirmação. Mais de três anos se passaram antes que as memórias de Schreber
lhe oferecessem a oportunidade de publicar sua teoria pela primeira vez e de
apoiá-la em um relato detalhado de sua análise dos processos inconscientes em
ação na paranóia.
Há várias referências a essa enfermidade nos
escritos posteriores de Freud. As mais importantes foram seu artigo sobre ‘Um
Caso de Paranóia que Contraria a Teoria Psicanalítica da Doença’ (1915f),
e a Seção B de ‘Alguns Mecanismos Neuróticos no Ciúme, na Paranóia e no
Homossexualismo’ (1922b). Além disso, ‘Uma Neurose Demonológica do
Século XVII’ (1923d) inclui um exame do caso Schreber, embora a neurose,
que é o tema do trabalho, em parte alguma seja descrita por Freud como
paranóia. Em nenhum desses escritos posteriores há qualquer modificação
essencial dos pontos de vista sobre paranóia expressos no presente trabalho.
A importância da análise de Schreber, contudo,
de maneira alguma se restringe à luz que lança sobre o problema da paranóia. A
terceira parte, especialmente, foi, sob muitos aspectos, assim como o breve
artigo simultaneamente publicado sobre os dois princípios do funcionamento
mental (1911b), ver em [1], precursora dos artigos metapsicológicos a
que Freud se dedicou, três ou quatro anos mais tarde. Expuseram-se vários temas
que posteriormente deveriam ser examinados mais detalhadamente. Assim, as
observações sobre narcisismo (Ver a partir de [1].) antecederam o artigo
dedicado a este tema (1914c), a descrição do decurso de alguns anos
(1915d), e o exame dos instintos (ver em [2]) preparava terreno para um
estudo mais elaborado em ‘os Instintos e suas Vicissitudes’ (1915c). Já
o parágrafo sobre projeção (ver em [3]), apesar de promissor, não encontraria
nenhuma seqüência. Cada um dos dois tópicos examinados na última parte do
trabalho, contudo - as diversas causas do desencadeamento da neurose (inclusive
o conceito de ‘frustração’) e o papel desempenhado por ‘pontos de fixação’
sucessivos - deveria ser tratado antes que decorresse muito tempo, em artigos
separados (1912c e 1913f). Finalmente, no pós-escrito,
encontramos a primeira rápida excursão de Freud pelo campo da mitologia e a
primeira menção aos totens, que estavam começando a ocupar seus pensamentos e
deveriam fornecer o título para uma de suas obras principais (1912-13).
Como Freud nos diz (Ver em [1].), sua história
clínica faz uso apenas de um único fato (a idade de Schreber à época em que
caiu enfermo) que não se achava contido nas Memórias. Possuímos hoje,
graças a um trabalho escrito pelo Dr. Franz Baumeyer (1956), certa quantidade
de informações adicionais. O Dr. Baumeyer esteve por alguns anos (1946-9)
encarregado de um hospital situado perto de Dresden, onde encontrou alguns dos
registros clínicos originais das sucessivas doenças de Schreber. Resumiu estes
registros e citou muitos deles na íntegra. Além disso, coligiu grande número de
fatos relacionados à história familiar e aos antecedentes de Schreber. Toda vez
que esse material for importante para o trabalho de Freud, será mencionado nas
notas de rodapé. Neste momento, é necessário apenas relatar a seqüência à
história narrada nas Memórias. Após sua alta, em fins de 1902, Schreber
parece terlevado uma existência exteriormente normal por alguns anos. Então, em
novembro de 1907, a esposa teve uma crise de paralisia (embora vivesse até
1912), o que parece ter precipitado novo desencadeamento de sua enfermidade.
Foi novamente internado - agora num asilo situado no distrito de Dösen em
Leipzig - duas semanas mais tarde. Ali permaneceu, em estado extremamente
perturbado e muito intratável, até sua morte, após deterioração física
gradativa, na primavera de 1911 - pouco tempo apenas antes da publicação do
trabalho de Freud. O seguinte quadro cronológico, baseado em dados derivados,
parte das Memórias e parte do material de Baumeyer, pode tornar os
pormenores do estudo de Freud mais fáceis de desemaranhar.
1842 25
de julho. Daniel Paul Schreber nasce em Leipzig.
1861
Novembro. Morre-lhe o pai, com 53 anos de idade.
1877 O
irmão mais velho (3 anos mais) morre com 38 anos.
1878
Casamento.
Primeira Doença
1884
Outono. Apresenta-se como candidato ao Reichstag.
1884
Outubro. Passa algumas semanas no Asilo de Sonnenstein.
8 de dezembro. Clínica Psiquiátrica de Leipzig.
1885 1º
de junho. Alta.
1886 1º
de janeiro. Toma posse no Landgericht de Leipzig.
Segunda Doença
1893
Junho. É informado da nomeação próxima para o Tribunal de Apelação.
1º de outubro. Toma posse como juiz presidente.
21 de novembro. É internado novamente na
Clínica de Leipzig.
1894
14 de junho. É transferido para o Asilo de
Lindenhof.
29 de junho. É transferido para o Asilo de
Sonnenstein.
1900-1902
Escreve as Memórias e impetra ação judicial para ter alta.
1902 14
de julho. Decisão judicial de alta.
1903
Publicação das Memórias.
Terceira Doença
1907
Maio. Morre-lhe a mãe, com 92 anos de idade.
14 de novembro. A esposa tem uma crise de
paralisia.
Cai enfermo imediatamente após.
27 de novembro. É admitido no Asilo, em
Leipzig-Dösen.
1911 14
de abril. Morte.
1912
Maio. Morre a esposa, com 54 anos de idade.
Uma nota sobre os três hospitais psiquiátricos
a que se faz menção, de várias maneiras, no texto, também pode ser útil.
(1) Clínica Psiquiátrica (departamento de
pacientes internados) da Universidade de Leipzig. Diretor: Professor Flechsig.
(2) Schloss Sonnenstein. Asilo Público Saxônico
em Pirna sobre o Elba, dez milhas acima de Dresden. Diretor: Dr. G. Weber.
(3) Asilo Particular Lindenhof. Perto de
Coswig, onze milhas a noroeste de Dresden. Diretor: Dr. Pierson.
Uma tradução inglesa das Denkwürdigkeiten,
de autoria da Dra. Ida Macalpine e do Dr. Richard A. Hunter, foi publicada em
1955 (Londres, William Dawson). Por diversas razões, algumas das quais serão
evidentes a quem quer que compare sua versão com a presente tradução inglesa,
não foi possível fazer uso dela para as muitas citações do livro de Schreber
que ocorrem na história clínica. Há dificuldades específicas em traduzir as
produções dos esquizofrênicos, nas quais as palavras, como o próprio Freud
apontou em seu artigo sobre ‘O Inconsciente’ (Ver a partir de [1], 1974),
desempenham papel tão predominante. Aqui o tradutor se defronta com os mesmos
problemas que tão amiúde encontra em sonhos, lapsos de língua e chistes. Em
todos esses casos, o método adotado na Standard Edition é o método
prosaico de, onde necessário, fornecer as palavras originais alemãs em notas de
rodapé e procurar, mediante comentários explicativos, oferecer ao leitor
[inglês] oportunidade para formar opinião própria sobre o material. Ao mesmo
tempo, seria enganoso desprezar inteiramente as formas exteriores e, através de
uma tradução puramente literal, apresentar um retrato inculto do estilo de
Schreber. Uma das características notáveis do original é o contraste que
perpetuamente oferece entre as frases complicadas e elaboradas do alemão
oficial acadêmico do século XIX e as extravagâncias outré dos eventos
psicóticos que descrevem. Informações adicionais interessantes sobre o pai de
Schreber podem ser encontradas em Niederland, W. G. (1959a) e (1959b).
Por todo o trabalho, os números entre colchetes
sem serem precedidos por ‘p.’ constituem referências às páginas da edição alemã
original das memórias de Schreber - Denkwürdikeiten eines Nervendranken,
Leipzig, Oswald Mutze. Números entre colchetes precedidos por ‘p.’ são, como
sempre acontece na Standard Edition, referências a páginas do presente
volume.
INTRODUÇÃO
A investigação analítica da paranóia apresenta
dificuldades para médicos que, como eu, não estão ligados a instituições
públicas. Não podemos aceitar pacientes que sofram desta enfermidade, ou, de
qualquer modo, mantê-los por longo tempo, visto não podermos oferecer
tratamento a menos que haja alguma perspectiva de sucesso terapêutico. Somente
em circunstâncias excepcionais, portanto, é que consigo obter algo mais que uma
visão superficial da estrutura da paranóia - quando, por exemplo, o diagnóstico
(que nem sempre é questão simples) é incerto o bastante para justificar uma
tentativa de influenciar o paciente, ou quando, apesar de um diagnóstico
seguro, submeto-me aos rogos de parentes do paciente e encarrego-me de tratá-lo
por algum tempo. Independente disto, naturalmente, vejo muitos casos de
paranóia e de demência precoce e aprendo sobre eles tanto quanto outros
psiquiatras o fazem a respeito de seus casos; mas em geral isso não é
suficiente para levar a quaisquer conclusões analíticas.
A investigação psicanalítica da paranóia seria
completamente impossível se os próprios pacientes não possuíssem a
peculiaridade de revelar (de forma distorcida, é verdade) exatamente aquelas
coisas que outros neuróticos mantêm escondidas como um segredo. Visto que os
paranóicos não podem ser compelidos a superar suas resistências internas e
desde que, de qualquer modo, só dizem o que resolvem dizer, decorre disso ser a
paranóia um distúrbio em que um relatório escrito ou uma história clínica
impressa podem tomar o lugar de um conhecimento pessoal do paciente. Por esta
razão, penso ser legítimo basear interpretações analíticas na história clínica
de um paciente que sofria de paranóia (ou, precisamente, de dementia
paranoides) e a quem nunca vi, mas que escreveu sua própria história clínica e
publicou-a.
Refiro-me ao doutor em Direito Daniel Paul
Schreber, anteriormente Senatspräsident em Dresden, cujo livro. Denkwürdigkeiten
eines Nervenkranken [Memórias de um Doente dos Nervos], foi
publicado em 1903, e, se estou corretamente informado, despertou considerável
interesse entre os psiquiatras. É possível que o Dr. Schreber viva ainda hoje e
que se tenha distanciado de tal forma do sistema delirante que apresentou em
1903 que possa sentir-se magoado por estas notas a respeito do seu livro.
Contudo, na medida em que ele ainda se identifique com sua personalidade
anterior, posso apoiar-me nos argumentos com que ele próprio - ‘homem de dotes
mentais superiores e contemplado com agudeza fora do comum, tanto de intelecto
quanto de observação’ - contraditou os esforços levados a efeito visando a
coibi-lo de publicar suas memórias: “Não tive problemas’, escreve ele, “em
fechar os olhos às dificuldades que pareciam jazer no caminho da publicação, e,
em particular, à preocupação de render devida consideração às suscetibilidades
de algumas pessoas ainda vivas. Por outro lado, sou de opinião que poderia ser
vantajoso tanto para a ciência quanto para o reconhecimento de verdades
religiosas se, durante meu tempo de vida, autoridades qualificadas pudessem
encarregar-se de examinar meu corpo e realizar pesquisas sobre minhas
experiências pessoais. Todos os sentimentos de caráter pessoal devem
submeter-se a esta ponderação. Declara ele, em outra passagem, que decidira se
ater à sua intenção de publicar o livro, mesmo que, em conseqüência, seu
médico, o Geheimrat Dr. Flechsig, de Leipzig, movesse uma ação contra
ele. Atribui ao Dr. Flechsig, porém, as mesmas considerações que lhe atribuo
agora. ‘Confio’, diz ele, ‘que mesmo no caso do Geheimrat Prof. Dr. Flechsig,
quaisquer suscetibilidades pessoais serão sobrepujadas por um interesse
científico no contexto geral de minhas memórias.’ (446.)
Embora todas as passagens das Denkwürkdigkeiten
nas quais minhas interpretações se baseiam sejam citadas literalmente nas
páginas seguintes, solicitaria a meus leitores tornarem-se familiarizados com o
livro, lendo-o pelo menos uma vez, de antemão.
I - HISTÓRIA CLÍNICA
’Duas vezes sofri de distúrbios nervosos’,
escreve o Dr. Schreber, ‘e ambas resultaram de excessiva tensão mental. Isso se
deveu, na primeira ocasião, à minha apresentação como candidato à eleição para
o Reichstag, enquanto era Landgerichtsdirektor em Cheminitz, e,
na segunda, ao fardo muito pesado de trabalho que me caiu sobre os ombros
quando assumi meus novos deveres como Senatspräsident no
Oberlandesgericht em Dresden.’(34.)
A primeira doença do Dr. Schreber começou no
outono de 1884; em fins de 1885 achava-se completamente restabelecido. Durante
este período, passou seis meses na clínica de Flechsig, que, em relatório
formal redigido posteriormente, descreveu o distúrbio como sendo uma crise de
grave hipocondria [379]. O Dr. Schreber assegura-nos que a moléstia seguiu seu
curso ‘sem a ocorrência de quaisquer incidentes que tocassem as raias do
sobrenatural.’ (35.)
Nem a própria descrição do paciente, nem os
relatórios médicos impressos no final de seu livro dizem-nos o suficiente sobre
sua história anterior ou seus pormenores pessoais. Nem mesmo tenho condições de
fornecer a idade do paciente à época de sua enfermidade, embora a elevada
posição judiciária que havia atingido antes da segunda doença estabeleça uma
espécie de limite inferior. Sabemos que o Dr. Schreber já estava casado há
muito tempo, antes da época de sua ‘hipocondria’. ‘A gratidão de minha esposa’,
escreve ele, ‘foi talvez ainda mais sincera, pois reverenciava o Professor
Flechsig como o homem que lhe havia restituído o marido; daí ter ela, durante
anos, mantido o retrato dele sobre a escrivaninha.’ E, no mesmo lugar: ‘Após me
restabelecer da primeira doença, passei oito anos com minha esposa - anos, em
geral, de grande felicidade, ricos de honrarias exteriores e nublados apenas,
de vez em quando, pela contínua frustração da esperança de sermos abençoados
com filhos.’
Em junho em 1893, ele foi informado de sua
provável indicação para Senatspräsident, e assumiu o cargo a 1º de
outubro do mesmo ano. Entre estas duas datas tivera alguns sonhos, embora só
mais tarde viesse a lhes atribuir qualquer importância. Sonhou duas ou três
vezes que o antigo distúrbio nervoso retornara e isto o tornou tão infeliz no
sonho, quanto a descoberta de ser apenas um sonho fê-lo feliz ao despertar.
Além disso, certa vez, nas primeiras horas de manhã, enquanto se achava entre o
sono e a vigília, ocorreu-lhe a idéia de que, ‘afinal de contas, deve ser
realmente muito bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula’. (36.)
Tratava-se de idéia que teria rejeitado com a maior indignação, se estivesse
plenamente consciente.
A segunda enfermidade manifestou-se em fins de
outubro de 1893, com um torturante acesso de insônia, forçando-o a retornar à
clínica Flechsig, onde, porém, sua condição piorou rapidamente. O curso
ulterior da moléstia é descrito em Relatório redigido subseqüentemente [em
1899] pelo diretor do Asilo Sonnenstein: ‘No início de seu internamento ali,
expressava mais idéias hipocondríacas, queixava-se de ter um amolecimento do
cérebro, de que morreria cedo etc. Mas idéias de perseguição já surgiam no
quadro clínico, baseadas em ilusões sensórias que, contudo, só pareciam
aparecer esporadicamente, no início, enquanto, ao mesmo tempo, um alto grau de
hiperestesia era observável - grande sensibilidade à luz e ao barulho. Mais
tarde, as ilusões visuais e auditivas tornaram-se muito mais freqüentes e,
junto com distúrbios cenestésicos, dominavam a totalidade de seu sentimento e
pensamento. Acreditava estar morto e em decomposição, que sofria de peste;
asseverava que seu corpo estava sendo manejado da maneira mais revoltante, e,
como ele próprio declara até hoje, passou pelos piores horrores que alguém
possa imaginar, e tudo em nome de um intuito sagrado. O paciente estava tão
preocupado com estas experiências patológicas, que era inacessível a qualquer
outra impressão e sentava-se perfeitamente rígido e imóvel durante horas
(estupor alucinatório). Por outro lado, elas o torturavam a tal ponto, que ele
ansiava pela morte. Fez repetidas tentativas de afogar-se durante o banho e
pediu que lhe fosse dado o “cianureto que lhe estava destinado”. Suas idéias
delirantes assumiram gradativamente caráter místico e religioso; achava-se em
comunicação direta com Deus, era joguete de demônios, via “aparições
miraculosas”, ouvia “música sagrada”, e, no final, chegou mesmo a acreditar que
estava vivendo em outro mundo.’ (380.)
Pode-se acrescentar que havia certas pessoas
por quem pensava estar sendo perseguido e prejudicado, e a quem dirigia
vitupérios. A mais proeminente delas era seu médico anterior, Flechsig, a quem
chamava de ‘assassino da alma’; e costumava gritar repetidas vezes: ‘Pequeno
Flechsig!’, dando nítida ênfase à primeira palavra (383.). Foi removido para
Leipzig e, após breve intervalo passado noutra instituição, foi trazido em
junho de 1894 para o Asilo Sonnenstein, perto de Pirna, onde permaneceu até que
o distúrbio assumiu o aspecto final. No decorrer dos anos seguintes, o quadro
clínico alterou-se de maneira que pode ser mais bem descrita pelas palavras do
Dr. Weber, diretor do asilo.
‘Não preciso me aprofundar nos pormenores do
curso da doença. Devo, contudo, chamar a atenção para a maneira pela qual, à
medida que o tempo passava, a psicose inicial comparativamente aguda, que havia
envolvido diretamente toda a vida mental do paciente e merecia o nome de
“insanidade alucinatória”, desenvolveu-se cada vez mais claramente (quase
poder-se-ia dizer cristalizou-se) até o quadro clínico paranóico que temos hoje
diante de nós.’ (385). Aconteceu que, por um lado, ele havia desenvolvido uma
engenhosa estrutura delirante, na qual temos toda razão de estar interessados,
ao passo que, por outro, sua personalidade fora reconstruída e agora se
mostrava, exceto por alguns distúrbios isolados, capaz de satisfazer as
exigências da vida cotidiana.
O Dr. Weber, em seu Relatório de 1899, faz as seguintes
observações: ‘Assim, parece que, no momento, independentemente de certos
sintomas psicomotores óbvios, que não podem deixar de impressionar como
patológicos mesmo o observador superficial, Herr Senatspräsident Dr.
Schreber não apresenta sinais de confusão ou de inibição psíquica, nem sua
inteligência se acha notadamente prejudicada. Sua mente é calma, a memória
excelente, tem à disposição estoque considerável de conhecimentos (não somente
sobre questões jurídicas, mas em muitos outros campos) e é capaz de
reproduzi-los numa seqüência vinculada de pensamento. Interessa-se em
acompanhar os acontecimentos do mundo da política, da ciência, da arte etc. e
ocupa-se constantemente com tais assuntos… e um observador desinformado sobre
sua condição geral dificilmente notaria algo de peculiar nesses procedimentos.
Apesar disso tudo, entretanto, o paciente acha-se repleto de idéias de origem
patológica, que se constituíram num sistema completo; são mais ou menos fixas e
parecem inacessíveis à correção por meio de qualquer apreciação e juízo
objetivos dos fatos externos.’ (385-6.)
Assim, o estado do paciente experimentava
grande mudança e ele agora se considerava capaz de levar existência
independente. Por conseguinte, adotou as medidas apropriadas para retomar o
controle de seus próprios assuntos e assegurar sua alta do asilo. O Dr. Weber
dispôs-se a impedir a realização destas intenções e redigiu relatórios
contrários a elas. Não obstante, em seu Relatório datado de 1900, sentiu-se
obrigado a dar esta descrição apreciativa do caráter e conduta do paciente:
‘Visto que, durante os últimos nove meses, Herr Präsident Schreber fez
suas refeições diariamente em minha mesa familiar, tive as mais amplas
oportunidades de conversar com ele sobre todos os tópicos imagináveis. Qualquer
que fosse o assunto em debate (exceto, naturalmente, suas idéias delirantes),
concernente a acontecimentos no campo da administração e do direito, da
política, da arte, da literatura e da vida social - em resumo, qualquer que
fosse o tópico, o Dr. Schreber mostrava interesse vivaz, mente bem informada,
boa memória e julgamento sólido; ademais, era impossível não endossar sua
concepção ética. Também, em conversa mais superficial com as senhoras da
reunião, era tão cortês quanto afável, e, ao aflorar assuntos de maneira mais
jocosa, invariavelmente demonstrava tato e decoro. Nem uma só vez, durante
essas conversas inocentes à mesa de jantar, introduziu ele assuntos que mais
apropriadamente seriam levantados numa consulta médica.’ (397-8.) Na verdade,
em determinada ocasião durante este período, quando surgiu uma questão de
negócios que envolvia os interesses de toda a sua família, tomou parte nela de
um modo que demonstrava tanto conhecimento técnico quanto senso comum (401 e
510).
Nas numerosas solicitações aos tribunais,
através das quais o Dr. Schreber esforçou-se por recobrar a liberdade, não
repudiou de modo algum seus delírios ou fez qualquer segredo da intenção de
publicar as Denkwürdigkeiten. Pelo contrário, estendeu-se sobre a
importância de suas idéias para o pensamento religioso e sua invulnerabilidade
aos ataques da ciência moderna; mas, ao mesmo tempo, dava ênfase à ‘absoluta
inocuidade’ (430) de todas as ações que, como se dava conta, seus delírios
obrigavam-nos a realizar. Na verdade, tais eram sua perspicácia e a força
convincente de sua lógica, que finalmente, e apesar de ser ele paranóico
reconhecido, seus esforços coroaram-se de sucesso. Em julho de 1902, os
direitos civis do Dr. Schreber foram restabelecidos e, no ano seguinte, suas Denkwürdigkeiten
eines Nervenkranken apareceram, embora censuradas e com muitas partes
valiosas omitidas.
A decisão judicial que devolveu ao Dr. Schreber
a liberdade resume a essência de seu sistema delirante em poucas frases:
‘Acreditava que tinha a missão de redimir o mundo e restituir-lhe o estado
perdido de beatitude. Isso, entretanto, só poderia realizar se primeiro se
transformasse de homem em mulher.’ (475.)
Para uma descrição mais pormenorizada de seus
delírios, tal como apareceram em sua forma final, podemos recorrer ao Relatório
de 1899 do Dr. Weber: ‘O ponto culminante do sistema delirante do paciente é a
sua crença de ter a missão de redimir o mundo e restituir à humanidade o estado
perdido de beatitude. Foi convocado a essa tarefa, assim assevera, por
inspiração direta de Deus, tal como aprendemos que foram os Profetas; pois os
nervos, em condições de grande excitação, assim como os seus estiveram por
longo tempo, têm exatamente a propriedade de exercer atração sobre Deus -
embora isso signifique tocar em assuntos que a fala humana mal é capaz de
expressar, se é que o pode, visto jazerem inteiramente fora do raio de ação da
experiência humana e, na verdade, terem sido revelados somente a ele. A parte
mais essencial de sua missão redentora é ela ter de ser procedida por sua transformação
em mulher. Não se deve supor que ele deseje ser transformado em
mulher; trata-se antes de um ‘dever’ baseado na Ordem das Coisas, ao qual não
há possibilidade de fugir, por mais que, pessoalmente, preferisse permanecer em
sua própria honorável e masculina posição na vida. Mas nem ele nem o resto da
humanidade podem reconquistar a vida do além, a não ser mediante a
transformação em mulher (processo que pode ocupar muitos anos ou mesmo
décadas), por meio de milagres divinos. Ele próprio, está convencido, é o único
objeto sobre o qual milagres divinos se realizam, sendo assim o ser humano mais
notável que até hoje viveu sobre a Terra. A toda hora e a todo minuto, durante
anos, experimentou estes milagres em seu corpo e teve-os confirmados pelas
vozes que com ele conversaram. Durante os primeiros anos de sua moléstia,
alguns de seus órgãos corporais sofreram danos tão terríveis que
inevitavelmente levariam à morte qualquer outro homem; viveu por longo tempo
sem estômago, sem intestinos, quase sem pulmões, com o esôfago rasgado, sem
bexiga e com as costelas despedaçadas; costumava às vezes engolir parte de sua
própria laringe com a comida etc. Mas milagres divinos (“raios”) sempre
restauravam o que havia sido destruído, e portanto, enquanto permanecer homem,
é inteiramente imortal. Estes fenômenos alarmantes cessaram há muito tempo e,
como alternativa, sua “feminilidade” tornou-se proeminente. Trata-se de um
processo de desenvolvimento que provavelmente exigirá décadas, senão séculos,
para sua conclusão, sendo improvável que alguém hoje vivo sobreviva para ver
seu final. Ele tem a sensação de que um número enorme de “nervos femininos” já
passou para o seu corpo e, a partir deles, uma nova raça de homens
originar-se-á, através de um processo de fecundação direta por Deus. Somente
então, segundo parece, poderá morrer de morte natural e, juntamente com o resto
da humanidade, reconquistará um estado de beatitude. Nesse meio tempo, não
apenas o Sol, mas também árvores e pássaros, que têm a natureza de ‘resíduos
miraculados (bemiracled) de antigas almas humanas, falam-lhe com
inflexões humanas, e coisas miraculosas acontecem por toda a parte a seu
redor.’ (386-8.)
O interesse sentido pelo psiquiatra militante
em formações delirantes como estas exaure-se, geralmente, uma vez haja
determinado o caráter dos produtos do delírio e feito uma estimativa de sua
influência sobre a conduta geral do paciente; em seu caso, maravilhar-se não é
o início da compreensão. O psicanalista, à luz de seu conhecimento das
psiconeuroses, aborda o assunto com a suspeita de que mesmo estruturas de
pensamento tão extraordinárias como estas, e tão afastadas de nossas
modalidades comuns de pensar, derivam, todavia, dos mais gerais e
compreensíveis impulsos da mente humana; e gostaria de descobrir os motivos de
tal transformação, bem como a maneira pela qual ela se realizou. Com este
objetivo em vista, desejará aprofundar-se mais nos pormenores do delírio e na
história de seu desenvolvimento.
(a) O diretor da clínica acentua dois
pontos como sendo de suma importância: a assunção, pelo paciente, do
papel de Redentor e sua transformação em mulher. O delírio de
Redentor constitui fantasia que nos é familiar, pela freqüência com que forma o
núcleo da paranóia religiosa. O fator adicional, que faz a redenção depender de
o homem transformar-se previamente em mulher, é fora do comum e em si próprio
desconcertante, visto apresentar divergência muito ampla do mito histórico que
a fantasia do paciente se propõe reproduzir. Segue-se naturalmente o relatório
médico a presumir que a força motivadora desse complexo delirante foi a ambição
do paciente em desempenhar o papel de Redentor e que sua emasculação
merece ser encarada apenas como um meio de alcançar esse fim. Ainda que isto
possa parecer verdade, a partir do delírio em sua forma final, um estudo das Denkwürdigkeiten
compele-nos a assumir ponto de vista muito diferente sobre o assunto. Sabemos
que a idéia de se transformar em mulher (isto é, de ser emasculado) constituiu
o delírio primário, que ele no início encarava esse ato como grave injúria e
perseguição, e que o mesmo só se relacionou com o papel de Redentor de maneira
secundária. Não pode haver dúvida, além disso, de que ele originalmente
acreditava que a transformação deveria ser efetuada com a finalidade de abusos
sexuais e não para servir a altos desígnios. Pode-se formular a situação,
dizendo-se que um delírio sexual de perseguição foi posteriormente
transformado, na mente do paciente, em delírio religioso de grandeza. O papel
de perseguidor foi primeiramente atribuído ao Professor Flechsig, médico sob
cujos cuidados estava; mais tarde, o lugar foi assumido pelo Próprio Deus.
Citarei na íntegra as passagens pertinentes das
Denkwürdigkeiten: ‘Desse modo, uma conspiração contra mim foi levada ao
ponto culminante (por volta de março ou abril de 1894). Seu objetivo era
conseguir que, uma vez minha doença nervosa houvesse sido reconhecida como
incurável ou assim admitida, eu fosse entregue a certa pessoa, de maneira específica:
minha alma deveria ser-lhe entregue, mas meu corpo - devido a uma má
compreensão do que acima descrevi como o propósito subjacente à Ordem das
Coisas - deveria ser transformado num corpo feminino e como tal entregue à
pessoa em apreço com vistas e abusos sexuais, então simplesmente seria “deixado
de lado” - o que indubitavelmente significa ser entregue à corrupção.’ (56.)
‘Além disso, era perfeitamente natural que, do
ponto de vista humano (único pelo qual, àquela época, eu era ainda
principalmente dirigido), encarasse o Professor Flechsig ou sua alma como meu
único verdadeiro inimigo - em data posterior, houve também a alma de von W., a
respeito da qual terei mais a dizer dentro em pouco - e que eu considerasse
Deus Todo-Poderoso como aliado natural. Simplesmente imaginei que Ele se achava
em grande dificuldade com referência ao Professor Flechsig e, por conseguinte,
senti-me obrigado a apoiá-lo por todos os meios concebíveis, até o extremo de
sacrificar-me a mim mesmo. Só muito mais tarde foi que me ocorreu a idéia de
que o próprio Deus havia desempenhado o papel de cúmplice, senão de instigador,
na conspiração em que minha alma deveria ser assassinada e meu corpo usado como
o de uma rameira. De fato, posso dizer que esta idéia em parte só se tornou claramente
consciente para mim enquanto escrevia o presente trabalho.’ (59.)
‘Toda tentativa de assassinar minha alma, de
emascular-me para fins contrários a Ordem das Coisas (isto é, para
satisfação dos apetites sexuais de um indivíduo) ou, mais tarde, de destruir
meu entendimento - toda tentativa como essa redundou em nada. Desse combate
aparentemente desigual entre um débil homem e o Próprio Deus, emergi como
vencedor - embora com muito amargo sofrimento e privação - porque a Ordem das
Coisas está do meu lado.’ (61.)
Em nota de rodapé ligada às palavras ‘contrários
à Ordem das Coisas‘, na passagem anterior, o autor prenuncia a
transformação subseqüente de seu delírio de emasculação e de sua relação com
Deus: ‘Demonstrarei mais tarde que a emasculação para propósito inteiramente
diferente - um propósito em harmonia com a Ordem das Coisas - acha-se
dentro dos limites da possibilidade, e, na verdade, que muito provavelmente
pode proporcionar a solução do conflito.’
Estas afirmações são de importância decisiva para
determinar a opinião que devemos formar quanto ao delírio da emasculação,
dando-nos assim uma compreensão geral do caso. Pode-se acrescentar que as
‘vozes’ que o paciente ouvia nunca tratavam de sua transformação em mulher como
algo que não fosse uma ignomínia sexual, o que lhes fornecia desculpa para dele
escarnecer. ‘Raios de Deus não raramente julgaram-se no direito de zombar de
mim, chamando-me de “Miss Schreber”, em alusão à emasculação que, segundo se
afirmava, achava-me a ponto de sofrer.’ (127.) Ou então diziam: ‘Então isso
declara ter sido um Senatspräsident, essa pessoa que se deixa ser f.…
a!’ Ou, ainda: ‘Não se sente envergonhado, na frente de sua mulher?’ (177.)
Que a fantasia de emasculação era de natureza
primária e originalmente independente do motif do Redentor, torna-se
ainda mais provável quando relembramos a ‘idéia’ que, como mencionei em página
anterior [Ver em [1].], ocorreu-lhe enquanto se achava semi-adormecido, no
sentido de que deve ser bom ser uma mulher e submeter-se ao ato da cópula.
(36.) Esta fantasia apareceu durante o período de incubação de sua moléstia, e
antes que tivesse começado a sentir os efeitos do excesso de trabalho em
Dresden.
O próprio Schreber indica o mês de novembro de
1895 como a época em que se estabeleceu a vinculação entre a fantasia de
emasculação e a idéia do Redentor, preparando-se assim o caminho para ele
reconciliar-se com a primeira. ‘Agora, contudo’, escreve, ‘dei-me claramente
conta de que a Ordem das Coisas exigia imperativamente a minha emasculação,
gostasse ou não disso pessoalmente, e que nenhum caminho razoável se
abre para mim exceto reconciliar-me com o pensamento de ser transformado em
mulher. A outra conseqüência de minha emasculação, naturalmente, só poderia ser
a minha fecundação por raios divinos, a fim de que uma nova raça de homens
pudesse ser criada.’ (177.)
A idéia de ser transformado em mulher foi a
característica saliente e o germe mais primitivo de seu sistema delirante.
Mostrou também ser a única parte deste que persistiu após a cura e a única que
pôde permanecer em sua conduta na vida real, após haver-se restabelecido. ‘A única
coisa que poderia parecer disparatada aos olhos de outras pessoas é o fato,
já aflorado no relatório do perito, de que sou às vezes encontrado parado em
frente do espelho ou em outro lugar, com a parte superior de meu corpo desnuda
e usando adornos femininos variados, tais como fitas, colares falsos e
similares. Isto só ocorre, posso acrescentar, quando estou sozinho, e
nunca, pelo menos na medida em que posso evitá-lo, na presença de outras
pessoas.’ (429.) O Herr Senatspräsident confessa esta frivolidade numa
data (julho de 1901) em que já se achava em posição de expressar de modo muito
capaz o caráter completo de seu restabelecimento no campo da vida prática: ‘Há
muito tempo me venho dando conta de que as pessoas que vejo a meu redor não são
“homens apressadamente improvisados”, mas pessoas reais, e que devo, portanto,
conduzir-me em relação a eles como um homem razoável está acostumado a
conduzir-se em relação a seus semelhantes.’ (409.) Em contraste com a maneira
pela qual colocou em ação sua fantasia de emasculação, o paciente nunca tomou
quaisquer medidas no sentido de induzir as pessoas a reconhecerem sua missão de
Redentor, fora a publicação de suas Denkwürdigkeiten.
(b) A atitude de nosso paciente para com
Deus é tão singular e cheia de contradições internas, que exige mais que
um pouco de fé persistir na crença de que, não obstante, existe ‘método’ em sua
‘loucura’. Com auxílio do que o Dr. Schreber nos conta nas Denkwürdigkeiten,
temos agora de esforçar-nos por chegar a uma visão mais exata de seu sistema
teológico-psicológico, e devemos expor suas opiniões sobre os nervos, o
estado de beatitude, a hierarquia divina e os atributos de Deus, em seu
nexo delirante (manifesto). Em todos os pontos de sua teoria, ficaremos
impressionados pela espantosa mistura do banal e do brilhante, do que foi
tomado emprestado e do que é original.
A alma humana está contida nos nervos do
corpo. Estes devem ser entendidos como estruturas de extraordinária finura,
comparáveis ao fio mais delgado. Alguns desses nervos são apropriados apenas
para a recepção de percepções sensórias, enquanto que outros (os nervos do
entendimento) executam todas as funções da mente; com respeito a isso, é de
notar que cada nervo do entendimento isolado representa a individualidade
mental inteira de uma pessoa, e que a presença de um número maior ou menor
de nervos do entendimento não tem influência, exceto sobre a duração de tempo
durante o qual a mente pode reter suas impressões.
Enquanto que os homens se compõem de corpos e
nervos, Deus é, por Sua própria natureza, somente nervos. Os nervos de Deus,
porém, não estão presente em número limitado, como no caso dos corpos humanos,
mas são infinitos ou eternos. Possuem todas as propriedades dos nervos humanos,
em grau enormemente intensificado. Em sua capacidade criativa - isto é, no
poder de se transformarem em todo objeto imaginável no mundo criado - são
conhecidos como raios. Existe íntima relação entre Deus, o céu estrelado
e o Sol.
Quando a obra da criação terminou, Deus
retirou-se para muito longe (10-11 e 252) e abandonou o mundo às suas próprias
leis. Limitou Suas atividades a chamar a Si as almas dos mortos. Somente em
ocasiões excepcionais é que entraria em relação com pessoas específicas,
altamente dotadas, ou interviria, por meio de um milagre, nos destinos do
mundo. Deus não tem nenhuma comunicação regular com as almas humanas, de acordo
com a Ordem das Coisas, até depois da morte. Quando um homem morre, suas partes
espirituais (isto é, seus nervos) sofrem um processo de purificação antes de
finalmente se reunirem com o Próprio Deus como ‘ante-salas do Céu’. Assim,
ocorre que tudo se move numa ronda eterna, que está na base da Ordem das Coisas.
Ao criar qualquer coisa, Deus se separa de uma parte de Si Próprio, ou dá a uma
parte de Seus nervos forma diferente. A perda aparente que assim experimenta é
compensada quando, após centenas e milhares de anos, os nervos dos mortos, que
ingressaram no estado de beatitude, mais uma vez se Lhe acrescem, como
‘ante-salas do Céu’ (18 e 19 n.).
As almas que passaram por este processo de
purificação começam a gozar de um estado de beatitude. Nesse meio tempo,
perderam um pouco de sua consciência individual e se fundiram com outras almas
em unidades mais elevadas. Almas importantes, aquelas de homens como Goethe,
Bismarck etc., podem ter de manter seu senso de identidade por centenas de anos
mais, antes que também elas possam se transformar em complexos anímicos
superiores, tais como ‘raios de Javé’, no caso do antigo povo judeu, ou ‘raios
de Zoroastro’, no caso da antiga Pérsia. No decurso de sua purificação, ‘as
almas aprendem a língua que é falada pelo próprio Deus, a chamada “língua
básica”, um alemão vigoroso, ainda que um tanto antiquado, que se caracteriza
especialmente pela grande riqueza em eufemismos’ (13.)
O Próprio Deus não é uma entidade simples.
‘Acima das “ante-salas do Céu” pairava o Próprio Deus, que, em contraposição a
estes “domínios anteriores de Deus”, era também descrito como os ‘‘domínios
posteriores de Deus’’. Os domínios posteriores de Deus eram, e ainda são,
divididos estranhamente em duas partes, de modo que um Deus inferior (Arimã) se
diferenciava de um Deus superior (Ormuzd).’ (19.) Com referência ao significado
desta distinção, Schreber só nos pode informar que o Deus inferior era mais
especialmente ligado aos povos de uma raça escura (ou semitas) e o Deus
superior aos de uma raça loura (os arianos); e nem seria razoável, em assuntos
tão elevados, esperar mais do conhecimento humano. Não obstante, diz-nos também
que ‘apesar do fato de, sob certos aspectos, o Deus Todo-Poderoso formar uma
unidade, o Deus inferior e o superior devem ser considerados como Seres
separados, cada um dos quais possui seu próprio egoísmo e instinto particular
de autopreservação, mesmo em relação ao outro, e cada um dos quais se
está, portanto, constantemente esforçando por arremessar-se na frente do outro’
(140 n.). Ademais, os dois Seres divinos comportavam-se de maneira
inteiramente diferente em relação ao infeliz Schreber, durante o estádio agudo
da doença.
Em dias anteriores à sua doença, o Senatspräsident
Schreber tivera dúvida sobre assuntos religiosos (29 e 64); nunca fora capaz de
persuadir-se a ter uma firme crença na existência de um Deus pessoal. Na
verdade, ele aduz este fato sobre sua vida anterior como argumento em favor da
completa realidade de seus delírios. Mas quem quer que leia a descrição que se
segue dos traços caracterológicos do Deus de Schreber terá de admitir que a
transformação efetuada pelo distúrbio paranóico não foi fundamental, e que no
Redentor de hoje muito permanece daquele que ontem duvidava.
É que existe uma falha na Ordem das Coisas, em
conseqüência da qual a existência do Próprio Deus parece ser colocada em
perigo. Devido a circunstâncias sem maior explicação, os nervos dos homens
vivos, especialmente quando em estado de intensa excitação, podem
exercer sobre os nervos de Deus atração tão poderosa que ele não se pode
libertar deles novamente, e assim Sua própria existência pode ser ameaçada.
(11.) Esta ocorrência excepcionalmente rara realizou-se no caso de Schreber e
envolveu-o nos maiores sofrimentos. O instinto de autopreservação foi
despertado em Deus (30) e então tornou-se evidente que Ele se achava muito
afastado da perfeição que lhe é atribuída pelas religiões. Por todo o livro de
Schreber ressoa a amarga queixa de que Deus, estando acostumado apenas à
comunicação com os mortos, não compreende os homens vivos.
‘Com relação a isso, contudo, prevalece um
mal-entendido fundamental, que desde então atravessou minha vida inteira
como um fio escarlate. Baseia-se precisamente no fato de que, de acordo com
a Ordem das Coisas, Deus realmente não sabia nada sobre os homens vivos
e não precisava conhecer; em consonância com a Ordem das Coisas, Ele precisava
apenas manter comunicação com cadáveres.’ (55.) - ‘Esse estado de coisas… estou
convencido, deve mais uma vez ser vinculado ao fato de que Deus era, se assim
posso exprimi-lo, inteiramente incapaz de lidar com homens vivos, e só estava
acostumado a comunicar-se com cadáveres, ou, no máximo, com homens adormecidos
(isto é, em seus sonhos).’ (141.) - ‘Eu próprio senti-me inclinado a exclamar:
“Incredibile scriptu!” Todavia, tudo é literalmente verídico, por
difícil que possa ser para outras pessoas apreender a idéia da completa
incapacidade de Deus em julgar corretamente os homens vivos, e por mais tempo
que eu próprio tenha levado para acostumar-me a esta idéia, após minhas
inumeráveis observações sobre o assunto.’ (246.)
Entretanto, como resultado da má compreensão
que Deus tem dos homens vivos, foi-Lhe possível tornar-se o instigador da
conspiração contra Schreber, tomá-lo por idiota e submetê-lo a essas severas
provações (264). Para evitar ser considerado um idiota, ele se submeteu a um
sistema extremamente fatigante de ‘pensamento forçado’, pois ‘cada vez que
minhas atividades intelectuais cessavam, Deus chegava à conclusão de que minhas
faculdades mentais achavam-se extintas e que a destruição de meu entendimento
(a idiotia), pela qual Ele esperava, havia-se realmente estabelecido, e que uma
retirada se tornara agora possível’. (206.)
O comportamento de Deus na questão da premência
de evacuar (ou ‘c…r’) leva-o a um grau especialmente alto de indignação. A
passagem é tão característica que a citarei na íntegra; mas, para esclarecê-la,
devo primeiro explicar que tanto os milagres quanto as vozes procedem de Deus,
isto é, dos raios divinos.
‘Embora se torne necessário que eu aflore um
tema desagradável, tenho de dedicar mais algumas palavras à pergunta que acabei
de citar (“Por que você não c… a?”), devido ao caráter típico de todo o
assunto. A necessidade de evacuação, como tudo o mais que tem a ver com o meu
corpo, é evocada por milagre. É ocasionada pelo fato de minhas fezes serem
forçadas para a frente (e, às vezes, para trás novamente) em meus intestinos; e
se, devido a já ter havido uma evacuação, não se apresenta material suficiente,
então pequenos resíduos que ainda possa haver do conteúdo de meus intestinos se
espalham sobre meu orifício anal. A ocorrência é um milagre realizado pelo Deus
superior, e repete-se diversas dúzias de vezes pelo menos, a cada dia.
Associa-se a uma idéia que é inteiramente incompreensível para os seres humanos
e só pode ser explicada pela ignorância completa de Deus quanto ao homem vivo
como um organismo. De acordo com esta idéia, “c… r” é, em certo sentido, o ato
final, o que equivale a dizer que, uma vez que a premência de c…r tenha sido
causada por milagre, o objetivo de destruir o entendimento é alcançado e uma
retirada final dos raios torna-se possível. Para chegar ao fundo desta idéia,
temos de supor, segundo me parece, que há um equívoco em relação ao significado
simbólico do ato da evacuação, uma noção, na verdade, de que qualquer um que
tenha mantido uma relação como a que mantenho com os raios divinos tem, até
certo ponto, direito de c…r sobre o mundo inteiro.’
‘Mas o que agora se segue revela toda a
perfídia da política que foi seguida com relação a minha pessoa. Quase toda vez
que a necessidade de evacuação me aparecia por milagre, outra pessoa nas
imediações era enviada (por ter seus nervos estimulados com esse intuito) para
o banheiro, a fim de impedir-me de evacuar. Trata-se de fenômeno que observei
durante anos e em ocasiões tão incontáveis - milhares delas - e com tal
regularidade que exclui qualquer possibilidade de ser atribuível ao acaso. E,
então, surge a pergunta: “Por que você não c…a?”, à qual é dada a vivaz réplica
de que sou “tão estúpido ou coisa assim”. A pena quase se esquiva de registrar
tamanho absurdo, que Deus, cego por Sua ignorância da natureza humana, possa
positivamente chegar ao extremos de supor que exista um homem estúpido demais
para fazer o que todo animal faz - estúpido demais para poder c…r. Quando,
levado por tal impulso, eu realmente consigo evacuar - e, geralmente, visto
quase sempre encontrar o banheiro ocupado, uso um balde para esse fim - o
processo é sempre acompanhado pelo aparecimento de uma sensação extremamente
intensa de voluptuosidade espiritual, pois o alívio da pressão causada pela
presença das fezes nos intestinos produz intenso bem-estar nos nervos da
voluptuosidade; e o mesmo também acontece com a urina. Por esta razão, ainda
até o dia de hoje, enquanto estou evacuando ou urinando, todos os raios
acham-se sempre, sem exceção, unidos; por esta mesma razão, sempre que me
dedico a estas funções naturais, é invariavelmente feita uma tentativa, embora
vã, de inverter por milagre o impulso de defecar ou urinar.’ (225-7.)
Ademais, este extraordinário Deus de Schreber é
incapaz de aprender qualquer coisa pela experiência: ‘Devido a uma ou outra
qualidade inerentes à sua natureza, parece impossível a Deus inferir quaisquer
lições para o futuro da experiência assim obtida.’ (186.) Ele pode, portanto,
continuar a repetir as mesmas atormentadoras provações, milagres e vozes, sem
alteração, ano após ano, até que, inevitavelmente, se torna motivo de riso para
a vítima de Duas perseguições.
‘A conseqüência é que, agora que os milagres em
grande parte perderam o poder que antigamente possuíam de produzir efeitos
aterrorizantes, Deus me parece principalmente, em quase tudo o que me acontece,
ridículo ou pueril. Com referência à minha própria conduta, sou amiúde
obrigado, em autodefesa, a desempenhar o papel de escarnecedor de Deus, e
mesmo, ocasionalmente, de zombrar Dele em voz alta.’ (333.)
A esta atitude crítica e rebelde para com Deus,
contudo, opõe-se na mente de Schreber uma enérgica contracorrente, expressa em
muitos lugares: ‘Mas aqui novamente devo mui enfaticamente declarar que isto é
apenas um episódio que, espero, terminará o mais tardar com meu falecimento, e
que o direito de escarnecer de Deus pertence, em conseqüência, a mim somente e
não a outros homens. Para estes, Ele permanece sendo o criador todo-poderoso do
Céu e da Terra, a causa primeira de todas as coisas, e a salvação de seu
futuro, a quem - embora algumas das idéias religiosas convencionais possam
exigir revisão - são devidas adoração e a mais profunda reverência.’ (333-4.)
Fazem-se, portanto, repetidas tentativas de
encontrar justificação para a conduta de Deus em relação ao paciente. Nestas
tentativas, que apresentam tanta engenhosidade quanto qualquer outra teodicéia,
a explicação baseia-se ora na natureza geral das almas, ora na necessidade de
autopreservação divina, e na influência desencaminhadora da alma de Flechsig.
(60-1 e 160.) Em geral, porém, a enfermidade é encarada como uma luta entre
Schreber, o homem e Deus, luta na qual a vitória fica com o homem, fraco que
seja, porque a Ordem das Coisas acha-se do seu lado. (61.)
O relatório médico poderia facilmente levar-nos
a supor que Schreber apresentava a forma corriqueira de fantasia de Redentor,
na qual o paciente acredita ser o filho de Deus, destinado a salvar o mundo de
sua desgraça ou da destruição que o ameaça, e assim por diante. É por esta
razão que tive o cuidado de apresentar com pormenores as peculiaridades da
relação de Schreber com Deus. A importância desta relação para o resto da
humanidade só raramente é mencionada nas Denkwürdigkeiten, e apenas na
última fase de sua formação delirante. Consiste essencialmente no fato de que
ninguém que morra pode ingressar no estado de beatitude enquanto a maior parte
dos raios de Deus for absorvida por sua pessoa (de Schreber), devido a seus
poderes de atração. (32.) É somente num estádio muito tardio, também, que sua
identificação com Jesus Cristo aparece claramente. (338 e 431.)
Nenhuma tentativa de explicar o caso de
Schreber terá possibilidade de ser correta, se não levar em consideração essas
peculiaridades de sua concepção de Deus, essa mistura de reverência e rebeldia
em sua atitude para com Ele.
Voltar-me-ei agora para outro assunto,
estreitamente vinculado a Deus, ou seja, o estado de beatitude. Este é
também mencionado por Schreber como ‘a vida do além’, à qual a alma humana é
elevada após a morte, pelo processo da purificação. Ele o descreve como um estado
de fruição ininterrupta, ligado à contemplação de Deus. Isso não é muito
original mas, por outro lado, é surpreendente saber que Schreber faz distinção
entre um estado de beatitude masculino e outro feminino.
‘O estado masculino de beatitude era superior
ao feminino, que parece ter consistido principalmente numa sensação
ininterrupta de voluptuosidade.’ (18.) Em outras passagens, esta coincidência
entre o estado de beatitude e a voluptuosidade é expressa em linguagem mais
simples e sem referência à distinção de sexo; ademais, o elemento do estado de
beatitude que consiste na contemplação de Deus não é mais comentado. Assim, por
exemplo: ‘A natureza dos nervos de Deus é tal que o estado de beatitude (…) se
faz acompanhar por uma sensação muito intensa de voluptuosidade, ainda que não
consista exclusivamente nela.’ (51.) E ainda: ‘A voluptuosidade pode ser
encarada como um fragmento do estado de beatitude, dado antecipadamente, por
assim dizer, aos homens e às outras criaturas vivas.’ (281.) Assim, o estado de
beatitude celestial deve ser compreendido como sendo, em sua essência, uma
continuação intensificada do prazer sensual sobre a Terra!
Esta visão do estado de beatitude achava-se
longe de ser, no delírio de Schreber, um elemento originado nos primeiros estádios
de sua doença e posteriormente eliminado, como incompatível com o resto. Na
Exposição de seu Caso, redigida pelo paciente para o Tribunal de Apelação em
julho de 1901, ele enfatiza como uma de suas maiores descobertas o fato de ‘que
a voluptuosidade se acha em estreito relacionamento (até então não perceptível
ao resto da humanidade) com o estado de beatitude fruído pelos espíritos que já
não mais se acham aqui’. [442.]
Descobriremos, na verdade, que este
“relacionamento estreito’ é a rocha sobre a qual o paciente funda suas
esperanças de uma reconciliação final com Deus e de que seus sofrimentos
recebam um fim. Os raios de Deus abandonam sua hostilidade assim que se
certificam de que, sendo absorvidos pelo corpo dele, experimentarão
voluptuosidade espiritual (133); o próprio Deus exige poder encontrar
voluptuosidade nele (283) e ameaça-o com a retirada de Seus raios, se se
esquecer de cultivar a voluptuosidade e não puder oferecer a Deus o que Este
exige. (320.)
Essa surpreendente sexualização do estado de
beatitude celestial sugere a possibilidade de que o conceito que Schreber tem
do estado de beatitude derive de uma condensação dos principais significados da
palavra alemã ‘selig‘, a saber, ‘falecido’ e ‘sensualmente feliz’. Mas
esse exemplo de sexualização fornecer-nos-á também ocasião de examinar a
atitude geral do paciente para com o lado erótico da vida e para com assuntos
de indulgência sexual, pois nós, psicanalistas, até o presente apoiamos a
opinião de que as raízes de todo distúrbio nervoso e mental devem se encontrar
principalmente na vida sexual do paciente - alguns de nós baseados simplesmente
em fundamentos empíricos, outros, influenciados, além disso, por considerações
teóricas.
As amostras dos delírios de Schreber já
fornecidas capacitam-nos, sem mais, a pôr de lado a suspeita de que exatamente
esse distúrbio paranóide pudesse vir a ser o ‘caso negativo’ há tanto tempo
procurado: um caso em que a sexualidade desempenhe apenas papel muito pouco
importante. O próprio Schreber fala repetidas vezes como se partilhasse de
nosso preconceito. Fala constantemente, e no mesmo alento, de ‘distúrbio
nervoso’ e lapsos eróticos, como se as duas coisas fossem inseparáveis.
Antes de sua enfermidade, o Senatspräsident
Schreber fora homem de moral estrita: ‘Poucas pessoas’, declara ele, e não vejo
razão para duvidar de sua assertiva, ‘podem ter sido criadas segundo os
estritos princípios morais em que fui, e poucas pessoas, durante toda a sua
vida, podem ter exercido (especialmente em assuntos sexuais) uma autocoibição
que se conformasse tão estritamente a esses princípios, como posso dizer de mim
mesmo que exerci.’ (281.) Após o severo combate espiritual, do qual os
fenômenos de sua moléstia foram os sinais exteriores, sua atitude para com o
lado erótico da vida se alterou. Chegara a perceber que o cultivo da
voluptuosidade lhe incumbia como um dever e que somente pelo cumprimento desse
dever é que poderia terminar o grave conflito que irrompera dentro dele - ou,
como pensava, a seu respeito. A voluptuosidade, assim as vozes lhe asseguravam,
havia-se tornado ‘temente a Deus’, e só lhe restava lamentar que não se pudesse
dedicar a seu cultivo durante todo o dia. (285.)
Foi esse, então, o resultado das modificações
produzidas em Schreber por sua doença, tal como as encontramos expressas nas
duas características principais de seu sistema delirante. Antes dela,
inclinara-se ao ascetismo sexual e fora um descrente com referência a Deus,
enquanto que, após a mesma, se tornou crente em Deus e devoto da voluptuosidade.
Entretanto, assim como sua fé em Deus reconquistada era de tipo peculiar, assim
também a fruição sexual que havia alcançado para si próprio era de caráter
muito raro. Não era a liberdade sexual de um homem, mas os sentimentos sexuais
de uma mulher. Ele assumiu uma atitude feminina para com Deus; sentiu que era a
esposa de Deus.
Nenhuma outra parte de seus delírios é tratada
pelo paciente tão exaustivamente, quase poder-se-ia dizer insistentemente, como
sua alegada transformação em mulher. Os nervos por ele absorvidos, assim diz,
assumiram em seu corpo o caráter de nervos femininos de voluptuosidade e lhe
deram um molde mais ou menos feminil, e, mais particularmente, à sua pele, a
suavidade peculiar ao sexo feminino. (87.) Se aperta levemente com os dedos
qualquer parte do corpo, pode sentir esses nervos, sob a superfície da pele,
como um tecido de textura fibrosa ou semelhante a fios; eles se acham
especialmente presentes na região do tórax, onde, numa mulher, ficariam os
seios. ‘Aplicando pressão a este tecido, sou capaz de evocar uma sensação de
voluptuosidade, tal como as mulheres experimentam, e especialmente se penso em
algo feminino ao mesmo tempo.’ (277.) Sabe com certeza que o tecido
originalmente nada mais era que nervos de Deus, que dificilmente poderiam ter
perdido o caráter de nervos simplesmente por terem passado para seu corpo.
(279.) Por meio do que chama de ‘atrair’ (isto é, pela invocação de imagens
visuais), é capaz de dar tanto a si quanto aos raios a impressão de que seu
corpo se acha aparelhado com seios e órgãos genitais femininos: ‘Tornou-se
tanto um hábito para mim atrair nádegas femininas para meu corpo - honi soit
qui mal y pense - que o faço quase involuntariamente, a cada vez que me
abaixo.’ (233.) É ‘ousado o bastante para asseverar que quem quer que tenha
oportunidade de me ver diante do espelho com a parte superior de meu corpo
desnuda - especialmente se a ilusão é auxiliada por estar eu usando algum
atavio feminino - receberia uma impressão inequívoca de um busto feminino‘.
(280.) Solicita exame médico, a fim de estabelecer o fato de que todo o seu
corpo possui nervos de voluptuosidade dispersos sobre ele, da cabeça aos pés,
situação, que, em sua opinião, só pode ser encontrada no corpo feminino,
enquanto no indivíduo do sexo masculino, segundo melhor de seu conhecimento, os
nervos da voluptuosidade existem apenas nos órgãos sexuais e em sua vizinhança
imediata. (274.) A voluptuosidade espiritual que se desenvolveu devido a essa
acumulação de nervos em seu corpo é tão intensa que exige apenas ligeiro
esforço de sua imaginação (especialmente quando se acha deitado na cama) para
proporcionar-lhe uma sensação de bem-estar sexual que permite um prenúncio mais
ou menos claro do prazer sexual desfrutado por uma mulher durante a cópula.
(269.)
Se recordamos agora o sonho que o paciente teve
durante o período de incubação de sua enfermidade, antes de mudar-se para
Dresden [ver em [1]], tornar-se-á claro, acima de qualquer dúvida, que seu
delírio de ser transformado em mulher nada mais era que a realização do
conteúdo desse sonho. Naquela época, rebelou-se contra o sonho com máscula
indignação, e, da mesma maneira, começou a lutar contra a sua realização na
enfermidade e encarou sua transformação em mulher como uma catástrofe porque
era ameaçado com intenções hostis. Mas chegou a ocasião (foi em novembro de
1895) em que começou a reconciliar-se com a transformação e a colocá-la em
harmonia com os propósitos mais altos de Deus: ‘Desde então, e com plena
consciência do que fiz, inscrevi em minha bandeira o cultivo da feminilidade.’
(177-8.)
Chegou então à firme convicção de que era o
Próprio Deus que, para Sua satisfação, exigia dele a feminilidade:
‘Mal, contudo, acho-me a sós com Deus (se assim
posso expressá-lo), torna-se uma necessidade para mim empregar todo artifício
imaginável e convocar a totalidade de minhas faculdades mentais, e
especialmente minha imaginação, a fim de fazer com que os raios divinos passam
ter a impressão, tão continuamente quanto possível (ou, visto isto achar-se
além do poder mortal, pelo menos em certas ocasiões do dia), de que sou uma
mulher a deleitar-se com sensações voluptuosas.’ (281.)
‘Por outro lado, Deus exige um estado
constante de prazer, tal como estaria de acordo com as condições de
existência impostas às almas pela Ordem das Coisas; e é meu dever fornecer-lhe
isso… sob a forma da maior geração possível de voluptuosidade espiritual. E se,
nesse processo, um pouco de prazer sensual cabe a mim, sinto-me justificado em
aceitá-lo como diminuta compensação pela excessiva quantidade de sofrimento e
privação que foi minha por tantos anos passados…’ (283.)
‘…Penso que posso mesmo arriscar-me a
apresentar a opinião, baseada em impressões que recebi, de que Deus nunca
tomaria quaisquer medidas no sentido de efetuar uma retirada - cujo primeiro
resultado é, invariavelmente, alterar minha condição física acentuadamente para
pior -, mas quieta e permanentemente render-se-ia a meus poderes de atração, se
me fosse possível estar sempre desempenhando o papel de uma mulher e
jazer em meus próprios abraços amorosos, estar sempre modelando minha
aparência em formas femininas, estar sempre contemplando retratos de
mulheres, e assim por diante.’ (284-5.)
No sistema de Schreber, os dois elementos
principais de seus delírios (sua transformação em mulher e sua relação
favorecida com Deus) acham-se vinculados na adoção de uma atitude feminina para
com Deus. Será parte inevitável de nossa tarefa demonstrar que existe uma
relação genética essencial entre esses dois elementos. De outra maneira,
nossas tentativas de elucidar os delírios de Schreber conduzir-nos-iam à
posição absurda descrita no famoso símile de Kant na Crítica da Razão Pura:
seríamos como um homem a segurar uma peneira debaixo de um bode, enquanto
alguém o ordenha.
II - TENTATIVAS DE INTERPRETAÇÃO
Existem dois ângulos a partir dos quais
poderíamos tentar chegar a uma compreensão dessa história de um caso de
paranóia e nela expor os conhecidos complexos e forças motivadoras da vida mental.
Poderíamos partir das próprias declarações delirantes do paciente ou das causas
ativadoras de sua moléstia.
O primeiro método deve parecer tentador, desde
o brilhante exemplo fornecido por Jung [1907] em sua interpretação de um caso
de demência precoce que era muito mais grave que este e exibia sintomas muito
mais afastados do normal. O alto nível e inteligência de nosso paciente atual,
também, e sua comunicatividade parecem ter probabilidades de facilitar a
realização de nossa tarefa dentro dessa orientação. Ele próprio, não raro,
oferece-nos a chave, pelo acréscimo de uma glosa, citação ou exemplo de alguma
proposição delirante, de modo aparentemente acidental, ou mesmo por negar
expressamente algum paralelo a ela, que tenha surgido em sua própria mente.
Pois, quando isso acontece, temos apenas de seguir nossa técnica psicanalítica
habitual - despir a frase de sua forma negativa, tomar o exemplo como sendo a
coisa real, ou a citação ou glosa como a fonte original, e encontramo-nos de
posse do que estamos procurando, a saber, uma tradução da maneira paranóica de
expressão para a normal.
Talvez valha a pena fornecer uma ilustração
mais pormenorizada desse procedimento. Schreber se queixa do aborrecimento
criado pelos chamados ‘pássaros miraculados’ ou ‘pássaros falantes’, aos quais
atribui certo número de qualidades extraordinárias. (208-14.) É crença sua que
eles sejam formados de antigas ‘ante-salas do Céu’, isto é, almas humanas que
ingressaram em estado de beatitude, e que foram impregnados com veneno de
ptomaína e açulados contra ele. Foram condicionados a repetir ‘frases sem
sentido, que aprenderam de cor’ e que ‘se lhes ofereceram como jantar’. Cada
vez que descarregavam a carga de veneno ptomaínico sobre ele - isto é, cada vez
que ‘desfiavam as frases que lhe foram oferecidas como jantar, por assim dizer’
- eram, até certo ponto, incorporados em sua alma, com as palavras ‘Diacho de
sujeito!’ ou ‘O diabo o leve!’, que constituem as únicas que ainda são capazes
de empregar para expressar um sentimento genuíno. Eles não podem entender o
significado das palavras que dizem, mas são, por natureza, suscetíveis à
similaridade de sons, embora a semelhança não precise necessariamente ser
completa. Assim, é-lhes indiferente dizer:
‘Santiago‘ ou ‘Karthago‘,
‘Chinesentum‘ ou ‘Jesum Christum‘,
‘Abendrot‘ ou ‘Atemnot‘,
‘Ariman‘ ou ‘Ackermann‘ etc.
(210.)
Quando lemos esta descrição, não podemos evitar
a idéia de que ela deve realmente se referir a moças. Criticamente amiúde
comparam-nas a gansos, pouco galantemente acusam-nas de terem ‘miolos de
passarinho’ e declara-se que nada podem dizer além de frases aprendidas de cor
e que revelam sua falta de instrução ao confundirem palavras estrangeiras que
soam de modo semelhante. A frase ‘diacho de sujeito!’, única coisa sobre a qual
são sérias, constituiria, no caso, uma alusão ao triunfo do jovem que conseguiu
impressioná-la. E, com efeito, algumas páginas adiante deparamo-nos com uma
passagem em que Schreber confirma esta interpretação: ‘Para fins de distinção,
de brincadeira dei nomes de moças a grande número das almas-pássaros restantes,
visto que, por sua curiosidade, inclinação voluptuosa etc., elas, unânime e mui
prontamente, sugerem uma comparação com menininhas. Alguns desse nomes de moças
foram, desde então, adotados pelos raios de Deus e mantidos como designação das
almas-pássaros em apreço.’ (214.) Essa fácil interpretação dos ‘pássaros
miraculados’ fornece-nos uma sugestão que pode auxiliar-nos no sentido de
compreender as enigmáticas ‘ante-salas do Céu’.
Dou-me perfeitamente conta de que um
psicanalista necessita de certa quantidade de tato e reserva sempre que, no
decurso de seu trabalho, vai além dos casos típicos de interpretação, e de que
seus ouvintes ou leitores só o seguirão na medida em que a familiaridade deles
com a técnica analítica lhes permita. Tem ele toda razão, portanto, de
guardar-se contra o risco de que uma exagerada exibição de perspicácia de sua
parte possa se fazer acompanhar de uma diminuição na certeza e fidedignidade
dos seus resultados. Assim, é apenas natural que determinado analista tenda
demasiadamente para a cautela e outro excessivamente para a ousadia. Não será
possível definir os limites precisos da interpretação justificável até que se
tenham realizado muitos experimentos e que o assunto se tenha tornado mais
conhecido. Trabalhando no caso de Schreber, uma política de restrição me foi
forçada pela circunstância de que a oposição a que ele publicasse as Denkwürdigkeiten
foi eficaz, a ponto de afastar do nosso conhecimento considerável parte do
material - a parte também que, com toda probabilidade, teria lançado a luz mais
importante sobre o caso. Assim, por exemplo, o terceiro capítulo do livro
inicia com esse anúncio promissor: ‘Passarei agora a descrever certos
acontecimentos ocorridos com outros membros de minha família e que
podem, concebivelmente, se achar vinculados ao assassinato de alma que
postulei; pois há, de qualquer modo, algo mais ou menos problemático a respeito
de todos eles, algo não facilmente explicável segundo as linhas da experiência
humana comum. (33.) Mas a frase posterior, que é também a última do capítulo, é
a seguinte: ‘O restante deste capítulo foi retirado de impressão por ser
impróprio para publicação.’ Desse modo, terei de dar-me por satisfeito se
conseguir pelo menos, com algum grau de certeza, remontar o núcleo da estrutura
delirante a motivos humanos familiares.
Com este objetivo em vista, mencionarei agora
outro pequeno fragmento da história clínica ao qual não se deu peso suficiente
nos relatórios, embora o próprio paciente tenha feito tudo o que pôde para
colocá-lo em primeiro plano. Refiro-me às relações de Schreber com seu primeiro
médico, o Geheimrat Prof. Flechsig, de Leipzig.
Conforme já sabemos, o caso de Schreber assumiu
a princípio a forma de delírios de perseguição e só começou a perdê-la quando
chegou ao ponto decisivo de sua moléstia (a ocasião de sua ‘reconciliação’).
Dessa época em diante, as perseguições tornaram-se cada vez menos intoleráveis
e o propósito ignominioso que a princípio fundamentava sua ameaçada emasculação
começou a ser suplantado por um propósito em consonância com a Ordem das
Coisas. Mas o primeiro autor de todos esses atos de perseguição foi Flechsig e
permaneceu sendo seu instigador durante todo o curso da doença.
Sobre a natureza real da perversidade de
Flechsig e seus motivos o paciente fala com a vagueza e a obscuridade
características, que podem ser encaradas como sinais de um trabalho
particularmente intenso de formação delirante, se é que é legítimo julgar a
paranóia segundo o modelo de um fenômeno mental muito mais conhecido - o sonho.
Flechsig, segundo o paciente, cometeu ou tentou cometer ‘assassinato de alma’
contra ele - ato que, pensava, era comparável aos esforços feitos pelo Diabo ou
por demônios para tomar posse de uma alma, e que pode ter tido seu protótipo em
acontecimentos ocorridos entre membros das famílias Flechsig e Schreber há
muito falecidos. Alegrar-nos-íamos em saber mais sobre o significado desse
‘assassinato de alma’, mas nesse ponto nossas fontes mais uma vez recaem num
silêncio tendencioso: ‘Quanto ao que constitui a verdadeira essência do
assassinato de alma, e à sua técnica, se assim posso descrevê-la, nada mais
posso dizer além do que já foi indicado. Existe apenas isto, talvez, a ser
acrescentado.…) (A passagem que se segue é imprópria para publicação.)’ (28.)
Em resultado dessa omissão, deixam-nos às escuras sobre a questão do que
significa ‘assassinato de alma’. Referir-nos-emos mais tarde [ver em [1]] à
única alusão ao assunto que escapou à censura.
Seja como for, logo houve outra manifestação
dos delírios de Schreber, que afetou suas relações com Deus sem alterar as
relações com Flechsig. Até então, havia considerado Flechsig (ou melhor, a alma
dele) seu único inimigo verdadeiro e encarado Deus Todo-Poderoso como aliado;
mas, agora não podia evitar o pensamento de que o Próprio Deus havia
desempenhado o papel de cúmplice, senão de instigador, na trama contra ele.
(59.) Flechsig, contudo, permanecia sendo o primeiro sedutor, a cuja influência
Deus se havia rendido. (60.) Ele conseguira abrir caminho até o Céu, com toda a
sua alma ou parte dela, e tornar-se ‘líder dos raios’, sem morrer ou passar por
qualquer purificação preliminar. (56.) A alma de Flechsig continuou a
representar esse papel mesmo após o paciente ser removido da clínica de Leipzig
para o asilo do Dr. Pierson. A influência do novo ambiente foi demonstrada pelo
fato de a alma de Flechsig reunir-se à alma do assistente-chefe, a quem o
paciente reconheceu como uma pessoa que anteriormente morara no mesmo bloco de
apartamentos que ele próprio. Esta foi descrita como sendo a alma de von W. A
alma de Flechsig introduziu então o sistema de ‘divisão de almas’, que assumiu
grandes proporções. Em determinada época, chegou a haver de 40 a 60 subdivisões
da alma de Flechsig; duas de suas divisões maiores eram conhecidas como o
‘Flechsig superior’ e o ‘Flechsig médio’. A alma de von W. (o assistente-chefe)
comportava-se exatamente da mesma maneira. (111.) Era, às vezes, muito
divertido observar a maneira pela qual essas duas almas, apesar de sua aliança,
levavam adiante uma rixa mútua, com o orgulho aristocrático de uma oposto à
vaidade professoral da outra. (113.) No decorrer de suas primeiras semanas em
Sonnestein (para onde foi finalmente removido no verão de 1894), a alma de seu
novo médico, Dr. Weber, entrou em jogo; e pouco após ocorreu, no
desenvolvimento de seus delírios, a reviravolta que viemos a conhecer com sua
‘reconciliação’.
Durante essa estada posterior em Sonnestein,
quando Deus começara a apreciá-lo melhor, fez-se uma incursão sobre as almas,
que se haviam multiplicado a ponto de se tornarem um aborrecimento. Em
resultado, a alma de Flechsig sobreviveu sob apenas uma ou duas formas e a de
von W. sob uma única, que em breve desapareceu completamente. As divisões da
alma de Flechsig, que lentamente perderam tanto a inteligência quanto o poder,
passaram então a ser descritas como o ‘Flechsig posterior’ e o ‘Partido “Oh,
bem!”’. Que a alma de Flechsig conservou sua importância até o fim é
demonstrado por Schreber no preâmbulo ‘Carta Aberta ao Herr Geheimrat
Prof. Dr. Flechsig’.
Nesse notável documento, Schreber expressa sua
firme convicção de que o médico que o influenciou teve as mesmas visões e
recebeu as mesmas revelações sobre coisas sobrenaturais que ele próprio.
Protesta, já na primeira página, que o autor das Denkwürdigkeiten não
tem a mais remota intenção de atacar a honra do médico, e o mesmo argumento é
séria e enfaticamente repetido nas apresentações que o paciente faz de sua
posição. (343, 445.) É evidente que se está esforçando por distinguir a ‘alma
Flechsig’ do homem vivo de mesmo nome, o Flechsig de seus delírios, do Flechsig
real.
O estudo de vários casos de delírios de
perseguição levou-me, bem como a outros pesquisadores, à opinião de que a
relação entre o paciente e o seu perseguidor pode ser reduzida a fórmula
simples. Parece que a pessoa a quem o delírio atribui tanto poder e influência,
a cujas mãos todos os fios da conspiração convergem, é, se claramente nomeada,
idêntica a alguém que desempenhou papel igualmente importante na vida emocional
do paciente antes de sua enfermidade, ou facilmente reconhecível como
substituto dela. A intensidade da emoção é projetada sob a forma de poder
externo, enquanto sua qualidade é transformada no oposto. A pessoa agora odiada
e temida, por ser um perseguidor, foi, noutra época, amada e honrada. O
principal propósito da perseguição asseverada pelo delírio do paciente é
justificar a modificação em sua atitude emocional.
Mantendo esse ponto de vista em mente,
examinemos agora as relações que haviam anteriormente existido entre Schreber e
seu médico e perseguidor, Flechsig. Já soubemos [ver em [1]] que, nos anos de
1884 e 1885, Schreber sofrera uma primeira crise de distúrbio nervoso, que
seguiu seu curso ‘sem a ocorrência de quaisquer indigentes que tocassem as
raias do sobrenatural’. (35.) Enquanto se achava nesse estado, que foi descrito
como ‘hipocondria’ e não parece ter ultrapassado os limites de uma neurose,
Flechsig atuou como seu médico. Nessa ocasião, Schreber passou seis meses na
Clínica da Universidade, em Leipzig. Sabemos que, após o restabelecimento, ele
manteve sentimentos cordiais em relação ao médico. ‘O principal foi que, após período
bastante longo de convalescença, que passei viajando, fiquei finalmente curado;
e, portanto, era impossível que, àquela época, sentisse algo a não ser a mais
viva gratidão para com o Professor Flechsig. Expressei de forma acentuada esse
sentimento não só em visita pessoal que subseqüentemente lhe fiz quanto no que
considerei serem honorários apropriados.’ (35-6.) É verdade que o encômio de
Schreber nas Denkwürdigkeiten sobre esse primeiro tratamento de Flechsig
não é inteiramente sem reservas; mas estas podem ser facilmente entendidas, se
considerarmos que sua atitude, nesse meio tempo, fora alterada. A passagem
imediatamente seguinte à que acabou de ser citada dá testemunho da cordialidade
original de seus sentimentos para com o médico que o havia tratado com tanto
sucesso: ‘A gratidão de minha esposa foi talvez ainda mais sincera, pois
reverenciava o Professor Flechsig como o homem que lhe havia restituído o
marido; daí ter ela, durante anos, mantido o retrato dele sobre a
escrivaninha.’ (36.)
Visto não podermos conseguir nenhuma
compreensão interna (insight) das causas da primeira doença (cujo
conhecimento é sem dúvida indispensável para elucidar apropriadamente a segunda
enfermidade, mais grave), temos agora de mergulhar ao acaso numa concatenação
desconhecida de circunstâncias. Durante o período de incubação de sua doença,
como sabemos (isto é, entre junho de 1893, quando foi nomeado para novo posto,
e o outubro seguinte, quando assumiu seus encargos), ele sonhou repetidamente
que seu antigo distúrbio nervoso havia retornado. Além disso, certa vez, quando
se achava semi-adormecido, teve a impressão de que, afinal de contas, deveria
ser bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula. Os sonhos e a fantasia são
comunicados por Schreber em sucessão imediata; e, se também reunirmos o tema
geral de ambos, poderemos inferir que, ao mesmo tempo em que rememorava a
doença, uma recordação de seu médico foi-lhe despertada na mente, e que a
atitude feminina que assumiu na fantasia foi, desde o início, dirigida para o
médico. Ou pode ser que o fato de o sonho de sua enfermidade haver retornado
simplesmente expressasse algum anseio tal como ‘Quisera poder ver Flechsig
novamente!’ A ignorância do conteúdo mental da primeira doença barra nosso
caminho nessa direção. Talvez ela houvesse deixado no paciente um sentimento de
dependência afetuosa do médico, o qual havia agora, por alguma razão
desconhecida, aumentado até chegar ao grau de intensidade de um desejo erótico.
Essa fantasia feminina, que se havia conservado impessoal, defrontou-se
imediatamente com um repúdio indignado - um verdadeiro ‘protesto masculino’,
para utilizar a expressão de Adler, mas num sentido diferente do seu. Na aguda
psicose que irrompeu logo após, porém, a fantasia feminina venceu todas as dificuldades;
e só é preciso ligeira correção da imprecisão paranóica característica do modo
de expressão de Schreber, para permitir-nos adivinhar o fato de que o paciente
temia um abuso sexual das mãos do próprio médico. A causa ativadora de sua
doença, então, foi uma manifestação de libido homossexual; o objeto desta
libido foi provavelmente, desde o início, o médico, Flechsig, e suas lutas
contra o impulso libidinal produziram o conflito que deu origem aos sintomas.
Farei uma pausa aqui, por um momento, para enfrentar
uma tempestade de protestos e objeções. Quem quer que esteja familiarizado com
o estado atual da psiquiatria deve estar preparado para enfrentar problemas.
Não constitui um ato de irresponsável
leviandade, uma indiscrição e uma calúnia acusar um homem de posição ética tão
elevada quanto o ex-Senatspräsident Schreber, de homossexualismo? - Não.
O próprio paciente informou o mundo em geral de sua fantasia de ser
transformado em mulher, e permitiu que todas as considerações pessoais fossem
superadas por interesses de natureza mais alta. Desse modo, ele próprio
concedeu-nos o direito de ocupar-nos com sua fantasia, e, ao traduzi-la para a
terminologia técnica da medicina, não efetuamos a menor adição a seu conteúdo.
‘Sim, mas ele não estava em seu pleno juízo
quando o fez. O delírio de estar sendo transformado em mulher era uma idéia
patológica.’ Não esquecemos isso. Na verdade, nosso único interesse é o
significado e a origem dessa idéia patológica. Apelaremos para a distinção que
ele próprio traça entre o homem Flechsig e a ‘alma Flechsig’. Não lhe estamos
fazendo censuras de espécie alguma, quer por ter tido impulsos homossexuais
quer por ter-se esforçado por suprimi-los. Os psiquiatras deveriam, pelo menos,
tirar uma lição desse paciente, ao vê-lo tentando, apesar de seus delírios, não
confundir o mundo do inconsciente com o da realidade.
‘Mas em parte alguma acha-se expressamente
afirmado que a transformação em mulher que ele tanto temia devesse realizar-se
em benefício de Flechsig.’ Isso é verdade e não é difícil compreender que, ao
preparar suas memórias para publicação, visto estar ansioso por não insultar o
‘homem Flechsig’, ele evitasse acusação tão grosseira. Mas a moderação de sua
linguagem, devido a essas considerações, não chega ao ponto de poder esconder o
verdadeiro significado da acusação. Na verdade, pode-se sustentar que, afinal
de contas, ela se acha visivelmente expressa numa passagem como a seguinte:
‘Desse modo, uma conspiração contra mim foi levada ao ponto culminante (por
volta de março ou abril de 1894). Seu objetivo era conseguir que, uma vez minha
doença nervosa houvesse sido reconhecida como incurável ou assim admitida, eu
fosse entregue a certa pessoa de maneira que minha alma lhe fosse entregue,
mas meu corpo… fosse transformado num corpo feminino e como tal entregue à
pessoa em apreço, com vistas a abusos sexuais… (56.) É desnecessário
observar que não é sequer nomeado algum outro indivíduo que pudesse ser
colocado no lugar de Flechsig. Perto do fim da estada de Schreber na clínica de
Leipzig, veio-lhe à mente o temor de que ele ‘deveria ser jogado aos
assistentes’ para fins de abusos sexuais. (98.) Quaisquer dúvidas remanescentes
sobre a natureza do papel originalmente atribuído ao médico dissipam-se quando,
nos estágios posteriores de seu delírio, vemos Schreber admitir abertamente sua
atitude feminina para com Deus. A outra acusação contra Flechsig ecoa
excessivamente alto por todo o livro, Flechsig, diz, tentou cometer assassinato
de alma contra ele. Como já sabemos [Ver a partir de [1].], o próprio paciente
não foi claro quanto à natureza real desse crime, mas a mesma estava ligada a
questões de discrição que impediram sua publicação (como percebemos pelo
terceiro capítulo suprimido). A partir deste ponto, um único fio conduz-nos à
frente. Schreber ilustra a natureza do assassinato de alma referindo-se às
lendas corporificadas no Fausto de Goethe, no Manfred de Byron,
no Freichütz de Weber etc. (22), e um desses casos é citado em outra
passagem, mais adiante. Ao examinar a divisão de Deus em duas pessoas, Schreber
identifica seu ‘Deus inferior’ e ‘Deus superior’ com Arimã e Ormuzd,
respectivamente (19); e, pouco depois, ocorre uma nota de rodapé casual: ‘Além
disso, o nome de Arimã também aparece em vinculação com um assassinato de alma
no Manfred de Byron, por exemplo.’ (20.) Na peça mencionada,
dificilmente existe algo comparável à barganha da alma de Fausto, e procurei em
vão a expressão ‘assassinato de alma’. Mas a essência e o segredo de toda a
obra residem numa relação incestuosa entre irmão e irmã. E aqui nosso fio se
rompe abruptamente.
Em estádio posterior deste trabalho, pretendo
retornar ao exame de algumas outras objeções; entrementes, porém,
considerar-me-ei justificado em manter a opinião de que a base da moléstia de
Schreber foi a irrupção de um impulso homossexual. Esta hipótese se harmoniza
com importante pormenor da história clínica, que do contrário permanece
inexplicável. O paciente teve novo ‘colapso nervoso’, que exerceu efeito
decisivo sobre o curso de sua doença, na ocasião em que sua esposa estava
tirando umas pequenas férias por causa da própria saúde. Até então, ela havia
passado diversas horas com ele todo dia e feito as refeições de meio-dia com
ele. Entretanto, quando retornou após uma ausência de quatro dias, encontrou-o
muito tristemente alterado, tanto, na verdade, que ele próprio não mais queria
vê-la. ‘O que determinou particularmente meu colapso mental foi uma noite
específica, durante a qual tive um número extraordinário de emissões - positivamente
meia-dúzia, todas naquela noite.’ (44.) É fácil compreender que a simples
presença da esposa deve ter atuado como proteção contra o poder atrativo dos
homens a seu redor, e, se estivermos preparados para admitir que uma emissão
não pode ocorrer num adulto sem algum acompanhamento mental, poderemos
suplementar as emissões do paciente naquela noite presumindo que elas se
fizeram acompanhar de fantasias homossexuais que permaneceram inconscientes.
A razão de essa irrupção de libido homossexual
ter dominado o paciente exatamente nesse período (isto é, entre as datas de sua
nomeação e da mudança para Dresden) não pode ser explicada na ausência de um
conhecimento mais preciso da história de sua vida. Falando de modo geral, todo
ser humano oscila, ao longo da vida, entre sentimentos heterossexuais e
homossexuais e qualquer frustração ou desapontamento numa das direções pode
impulsioná-lo para outra. Nada sabemos desses fatores no caso de Schreber, mas
não devemos deixar de chamar atenção para um fator somático que pode muito bem
ter sido relevante. Na época dessa doença, o Dr. Schreber contava 51 anos e,
portanto, atingira uma idade de importância decisiva na vida sexual. É um
período no qual, nas mulheres, a função sexual, após uma fase de atividade
intensificada, ingressa num processo de involução de grandes conseqüências;
tampouco os homens parecem estar isentos de sua influência, pois tanto eles
quanto as mulheres estão sujeitos a um ‘climatério’ e às suscetibilidades a
doença que o acompanham.
Bem posso imaginar que hipótese dúbia deve
parecer a suposição de que o sentimento amistoso de um homem para com seu
médico possa repentinamente surgir sob forma intensificada, após um lapso de
oito anos, e ocasionar tão grave doença mental. Mas não acho que seja justo pôr
de lado tal hipótese simplesmente por causa de sua inerente improbabilidade, se
ela se recomenda a nós por outros motivos; devemos antes indagar até onde
chegaremos, se a seguirmos. Pois a improbabilidade pode ser de tipo passageiro
e devido ao fato de a hipótese duvidosa ainda não ter sido relacionada com
outras parcelas de conhecimento, e de ser ela a primeira hipótese com que o
problema foi abordado. Mas, em benefício daqueles que são incapazes de manter o
julgamento em suspenso e que encaram nossa hipótese como inteiramente
insustentável, é fácil sugerir uma possibilidade que a despojaria de seu
caráter desconcertante. O sentimento amistoso do paciente para com o médico bem
se pode ter devido a um processo de ‘transferência’, por meio do qual uma
catexia emocional se transpôs de alguma pessoa que lhe era importante para o
médico que, na realidade, era-lhe indiferente; de maneira que o último terá
sido escolhido como representante ou substituto de alguém muito mais chegado ao
paciente. Para colocar o assunto de forma mais concreta: o paciente lembrou-se
de seu irmão ou de seu pai ante a figura do médico; redescobriu-os nele; então,
não causará espanto que, em certas circunstâncias, um anseio pela figura
substituta reaparecesse nele e operasse com uma violência que só pode ser
explicada à luz de sua origem e significação primária.
Com o fito de acompanhar essa tentativa de
explicação, naturalmente achei que valeria a pena descobrir se o pai do
paciente ainda se achava vivo à época em que ele caiu doente, se tivera um
irmão e, nesse caso, se ainda se achava vivo ou entre os ‘abençoados’. Fiquei
satisfeito, portanto, quando, após prolongada busca pelas páginas das Denkwürdigkeiten,
deparei por fim com uma passagem em que o paciente aplaca estas dúvidas: ‘A
memória de meu pai e meu irmão… é tão sagrada para mim como…’ etc. (442.) De
modo que ambos eram falecidos por ocasião do desencadeamento de sua segunda
doença (e, é possível, também da primeira).
Não levantaremos, portanto, penso eu, novas
objeções à hipótese de que a causa ativadora da enfermidade foi o aparecimento
de uma fantasia feminina (isto é, homossexual passiva) de desejo, que tomou por
objeto a figura do médico. Uma resistência intensa a esta fantasia surgiu por
parte da personalidade de Schreber, e a luta defensiva que se seguiu, e que
talvez pudesse ter assumido alguma outra forma, tomou, por razões que nos são
desconhecidas, a forma de delírio de perseguição. A pessoa por que agora
ansiava tornou-se seu perseguidor, e a essência da fantasia de desejo tornou-se
a essência da perseguição. Pode-se presumir que o mesmo delineamento
esquemático se tornará aplicável a outros casos de delírios de perseguição. O
que distingue o caso de Schreber dos outros, contudo, é seu desenvolvimento
ulterior, e a transformação que sofreu no decurso deste.
Uma das modificações foi a substituição de
Flechsig pela figura superior de Deus. Isto parece, a princípio, um sinal de
agravamento do conflito, uma intensificação da perseguição insuportável, mas
logo se torna evidente que preparava o caminho para a segunda mudança, e, com
esta, a solução do conflito. Era impossível para Schreber resignar-se a
representar o papel de uma devassa para com seu médico, mas a missão de
fornecer ao Próprio Deus as sensações voluptuosas que Este exigia não provocava
tal resistência por parte de seu ego. A emasculação, agora, não era mais uma
calamidade; tornava-se ‘consonante com a Ordem das Coisas’, assumia seu lugar
numa grande cadeia cósmica de eventos e servia de instrumento para a recriação
da humanidade, após a extinção desta. ‘Uma nova raça de homens, nascida do
espírito de Schreber’, assim pensava ele, reverenciaria como ancestral esse
homem que se acreditava vítima de perseguição. Por esse meio, fornecia-se uma
saída que satisfaria ambas as forças em contenda. Seu ego encontrava satisfação
na megalomania, enquanto que sua fantasia feminina de desejo avançava e
tornava-se aceitável. A luta e a doença podiam cessar. O senso de realidade do
paciente, contudo, que nesse meio tempo tornara-se mais forte, compelia-o a
adiar a solução do presente para o futuro remoto, e a contentar-se com o que
poderia ser descrito como uma realização de desejo assintótica. A qualquer
momento, previa ele, sua transformação em mulher ocorreria; até então, a
personalidade do Dr. Schreber permaneceria indestrutível.
Em compêndios de psiquiatria, freqüentemente
deparamos com afirmações segundo as quais a megalomania pode desenvolver-se a
partir de delírios de perseguição. Imagina-se que o processo seja o seguinte: o
paciente é primariamente vítima de um delírio de estar sendo perseguido por
forças de máximo poder. Sente então necessidade de explicar isto a si próprio
e, dessa maneira, ocorre-lhe a idéia de que ele próprio é personagem muito
eminente e digna de tal perseguição. O desenvolvimento da megalomania é assim
atribuído, pelos livros didáticos, a um processo que (tomando de empréstimo a
Ernest Jones [1908] uma palavra útil) podemos descrever como ‘racionalização’.
Mas atribuir conseqüências afetivas tão importantes a uma racionalização é,
segundo nos parece, procedimento inteiramente não psicológico e,
conseqüentemente, traçaríamos a divisão nítida entre nossa opinião e aquela que
citamos, dos livros didáticos. Não estamos reivindicando, por enquanto, conhecer
a origem da megalomania.
Voltando mais uma vez ao caso de Schreber,
somos obrigados a admitir que qualquer tentativa de lançar luz sobre a
transformação de seu delírio faz-nos defrontar com dificuldades
extraordinárias. De que maneira e por que meios foi realizada a ascensão de
Flechsig para Deus? De que fonte derivou ele a megalomania que tão
afortunadamente o capacitou a resignar-se a essa perseguição, ou em fraseologia
analítica, a aceitar a fantasia de desejo que tivera de ser reprimida? As Denkwürdkeiten
dão-nos uma primeira pista, pois mostram-nos que, na mente do paciente,
‘Flechsig’ e ‘Deus’ pertenciam à mesma classe. Numa de suas fantasias, ele
escutou por acaso uma conversa entre Flechsig e a esposa deste, na qual o
primeiro asseverava ser ‘Deus Flechsig’, de modo que a esposa pensou que ele
ficara louco. (82.) Mas há outro aspecto no desenvolvimento dos delírios de
Schreber que exige nossa atenção. Se efetuarmos um levantamento das ilusões
como um todo, veremos que o perseguidor se acha dividido em Flechsig e Deus;
exatamente da mesma maneira, o próprio Flechsig, subseqüentemente, cinde-se em
duas personalidades, o ‘superior’ e o ‘médio’ Flechsig [ver em [1]], e Deus, em
Deus ‘inferior’ e ‘superior’. Nos estágios posteriores da doença, a decomposição
de Flechsig progride ainda mais. (193.) Um processo de decomposição desse tipo
é muito característico da paranóia. A paranóia decompõe, tal como a histeria
condensa. Ou antes, a paranóia reduz novamente a seus elementos os produtos das
condensações e identificações realizadas no inconsciente. A freqüente repetição
do processo de decomposição no caso de Schreber seria, de acordo com Jung,
expressão da importância que a pessoa em apreço possuía para ele. Toda essa
divisão de Flechsig e Deus em certo número de pessoas possuía assim o mesmo
significado que a cisão do perseguidor em Flechsig e Deus. Todas eram
duplicações do mesmo importante relacionamento. Mas, a fim de interpretar todos
estes pormenores, temos ainda de chamar atenção para nossa visão da
decomposição do perseguidor em Flechsig e Deus como uma reação paranóide a uma
identificação previamente estabelecida das duas figuras ou a pertencerem elas à
mesma classe. Se o perseguidor Flechsig fora originalmente uma pessoa a quem
Schreber amara, então também Deus deveria ser simplesmente o reaparecimento de
alguém mais que ele amara, e, provavelmente, alguém de maior importância.
Se acompanharmos essa seqüência de pensamento,
que parece ser legítima, seremos levados à conclusão de que esta outra pessoa
deve ter sido seu pai; isso torna ainda mais claro que Flechsig deve ter
representado o irmão, que, esperemos, pode ter sido mais velho que ele próprio.
A fantasia feminina, que despertou uma oposição tão violenta no paciente, tinha
assim suas raízes num anseio, intensificado até um tom erótico, pelo pai e pelo
irmão. Esse sentimento, na medida em que se referia ao irmão, passou, por um
processo de transferência, para o médico, Flechsig; e, quando foi devolvido ao
pai, chegou-se a uma estabilização do conflito.
Não acharemos que tivemos razão de introduzir
assim o pai de Schreber em seus delírios, a menos que a nova hipótese mostre,
ela própria, ser de alguma utilidade para compreensão do caso e a elucidação de
pormenores dos delírios que ainda são ininteligíveis. Recordar-se-á que o Deus
de Schreber e as relações deste com Ele exibiam as características mais
curiosas: como apresentavam uma estranha mistura de crítica blasfema e
insubordinação amotinada, por um lado, e de devoção reverente, por outro. Deus,
segundo ele, sucumbira à influência desencaminhadora de Flechsig: era incapaz
de aprender qualquer coisa pela experiência e não compreendia os homens vivos,
porque só sabia lidar com cadáveres, e manifestava o Seu poder numa sucessão de
milagres que, por espantosos que fossem, eram, todavia, fúteis e ridículos.
Ora, o pai do Senatspräsident Dr.
Schreber não era pessoa insignificante. Era o Dr. Daniel Gottlob Moritz
Schreber, cuja memória é mantida viva até os dias de hoje pelas numerosas
Associações Schreber que florescem especialmente na Saxônia; e, além disso, era
médico. Suas atividades em favor da promoção da criação harmoniosa dos
jovens, de assegurar uma coordenação entre a educação no lar e na escola, de
introduzir a cultura física e o trabalho manual com vistas a elevar os padrões
de saúde, tudo isto exerceu influência duradoura sobre seus contemporâneos. Sua
grande reputação como fundador da ginástica terapêutica na Alemanha é ainda
comprovada pela ampla circulação de seus Ärztliche Zimmergymnastik nos
círculos médicos e pelas numerosas edições que teve.
Um pai como esse de maneira alguma seria
inadequado para a transfiguração em Deus na lembrança afetuosa do filho de quem
tão cedo havia sido separado pela morte. É verdade que não podemos deixar de
achar que existe um abismo intransponível entre a personalidade de Deus e a de
qualquer ser humano, por eminente que este possa ser, mas devemos lembrar que
isto nem sempre foi assim. Os deuses dos povos da antiguidade achavam-se em
relacionamento humano mais estreito com eles. Os romanos costumavam deificar
seus imperadores mortos, como questão de rotina, e o Imperador Vespasiano,
homem sensato e competente, exclamou quando pela primeira vez caiu doente: ‘Ai
de mim! Parece-me que me estou transformando em Deus!’
Estamos perfeitamente familiarizados com a
atitude infantil dos meninos para com o pai; ela se compõe da mesma mistura de
submissão reverente e insubordinação amotinada que encontramos na relação de
Schreber com o seu Deus, e é o protótipo inequívoco dessa relação, fielmente
copiada dela. Mas a circunstância de o pai de Schreber ter sido médico, e
médico dos mais eminentes, que sem dúvida foi muito respeitado por seus
pacientes, é que explica as características mais notáveis de seu Deus e aquelas
sobre as quais se demora, de maneira tão crítica. Poderia um escárnio mais
acerbo ser demonstrado por um médico, do que declarar que ele nada compreende
sobre os homens vivos e só sabe lidar com cadáveres? Sem dúvida, constitui
atributo essencial de Deus realizar milagres, mas um médico os realiza também;
ele efetua curas miraculosas, como seus clientes entusiásticos proclamam. De
maneira que, quando vemos que esses próprios milagres (para os quais o material
foi fornecido pela hipocondria do paciente) mostram ser incríveis, absurdos e,
até certo ponto, positivamente ridículos, lembramo-nos da asserção feita em
A Interpretação de Sonhos, de que o absurdo nos sonhos expressa ridículo e
derrisão. Evidentemente, portanto, ele é utilizado com os mesmos propósitos na
paranóia. Com referência a algumas das outras censuras que ele dirige contra
Deus, tais como, por exemplo, a de que nada aprendeu pela experiência, é
natural supor que constituem exemplos do mecanismo tu quoque empregado
pelas crianças, que, quando recebem uma reprovação, dirigem-na de volta,
inalterada, à pessoa que a originou. Semelhantemente, as vozes dão-nos
fundamentos para suspeitar que a acusação de assassinato de alma levantada
contra Flechsig foi, desde o início, uma auto-acusação.
Encorajados pela descoberta de que a profissão
do pai auxilia a explicar as peculiaridades do Deus de Schreber,
aventurar-nos-emos agora a uma interpretação que pode lançar certa luz sobre a
extraordinária estrutura desse Ser. O mundo celestial consistia, como sabemos,
nos ‘domínios anteriores de Deus’, também chamados de ‘ante-salas do Céu’ e que
continham as almas dos mortos, e de deus ‘inferior’ e Deus ‘superior’ que,
juntos, constituíam os ‘domínios posteriores de Deus’. (19.) [ver em [1]].
Embora devamos estar preparados para descobrir que existe aqui uma condensação
que não poderemos solucionar, todavia vale a pena referir-nos a uma pista que
já se acha em nossas mãos. Se os pássaros ‘miraculados’, que se demonstrou
serem moças, foram originalmente ante-salas do Céu [ver em [1]], não poderá
acontecer que os domínios anteriores de Deus e as ante-salas do Céu
devam ser encarados como símbolo do que é feminino, e os domínios posteriores
de Deus, do que é masculino? Se tivéssemos certeza de que o irmão falecido de Schreber
era mais velho que ele, poderíamos supor que a decomposição de Deus em inferior
e superior expressava a recordação do paciente de que, após a morte prematura
do pai, o irmão mais velho ocupara seu lugar.
Com relação a isso, finalmente, gostaria de
chamar a atenção para o tema do Sol, o que, através de seus ‘raios’,
veio a ter tanta importância na expressão dos delírios. Schreber mantém uma
relação bastante peculiar com o Sol. Este lhe fala em linguagem humana, e assim
se lhe revela como um ser humano, ou como o órgão de um ser superior, que está
por trás dele. (9.) Somos informados, por um relatório médico, de que, em
determinada ocasião, Schreber ‘costumava gritar-lhe ameaças e insultos, e
positivamente berrar com ele’ (382) e gritar-lhe que deveria rastejar para
longe e esconder-se. Ele próprio nos conta que o Sol empalidece na sua frente.
A maneira pela qual o Sol se encontra ligado a seu destino é demonstrada pelas
importantes alterações que aquele experimenta logo que ele sofre mudanças,
assim como, por exemplo, durante suas primeiras semanas em Sonnenstein. (135.)
Schreber facilita-nos a interpretação deste seu mito solar. Ele identifica o
Sol diretamente com Deus, às vezes com o Deus inferior (Arimã), outras com o
superior. ‘No dia seguinte… vi o Deus superior (Ormuzd), e desta vez não com
meus olhos espirituais, mas com os corporais. Era o Sol, mas não o Sol em seu
aspecto comum, como é conhecido de todos os homens; era…’ (137-8.) Portanto,
não é mais que coerente de sua parte tratá-lo do mesmo modo que trata o Próprio
Deus.
O Sol, por conseguinte, nada mais é que outro
símbolo sublimado do pai, e, salientando isto, devo declinar de toda
responsabilidade pela monotonia das soluções fornecidas pela psicanálise. Neste
caso, o simbolismo ignora o gênero gramatical, pelo menos no que concerne ao
alemão, pois na maioria das outras línguas o Sol é masculino. Seu
correspondente neste quadro dos dois pais é a ‘Terra Mãe’, como é geralmente
chamada. Freqüentemente deparamos com confirmações dessa afirmação, ao
solucionar as fantasias patogênicas dos neuróticos por meio da psicanálise. Não
posso fazer mais que simples alusão à relação de tudo isso com os mitos
cósmicos. Um de meus pacientes, que perdera o pai muito cedo, estava sempre
procurando redescobri-lo no que era grande e sublime na Natureza. Desde que
soube disto, pareceu-me provável que o hino de Nietzsche, ‘Vor Sonnenaufgang’
(‘Antes do Amanhecer’), constitua expressão do mesmo anseio. Outro paciente,
que se tornou neurótico após a morte do pai, foi acometido da primeira crise de
ansiedade e tonturas quando o Sol resplandeceu sobre ele, no momento em que
estava trabalhando no jardim com uma pá. Apresentou espontaneamente, como
interpretação, o fato de se ter assustado porque o pai o olhara enquanto trabalhava
na mãe com um instrumento pontudo. Quando me aventurei a uma suave admoestação,
deu ar de maior plausibilidade à sua opinião dizendo que, mesmo em vida do pai,
ele o havia comparado ao Sol, ainda que em sentido satírico. Sempre que lhe
perguntavam onde seu pai ia passar o verão, respondia nestas sonoras palavras
do ‘Prólogo no Céu’:
Und
seine vorgeschrieb’ne ReiseVollendet er mit Donnergang.
O pai, a conselho médico, costumava fazer uma
visita anual a Marienbad. A atitude infantil deste paciente para com ele
manifestou-se em duas fases sucessivas. Enquanto o pai estava vivo, revelou-se
em rebeldia indomável e franca discórdia, mas, imediatamente após sua morte, assumiu
a forma de uma neurose baseada em submissão abjeta e obediência tardia para com
ele.
Assim, no caso de Schreber, mais uma vez
encontramo-nos no terreno familiar do complexo paterno. A luta do paciente com
Flechsig revelou-se a ele como um conflito com Deus, e temos portanto de
explicá-la como um conflito infantil com o pai que amava; os pormenores desde
conflito (sobre o qual nada sabemos) foram o que determinou o conteúdo de seus
delírios. Nenhum material que, em outros casos dessa natureza, é revelado pela
análise, acha-se ausente no caso atual: todo elemento é sugerido, de uma
maneira ou de outra. Em experiência infantis como essa, o pai interfere com a
satisfação que a criança está tentando obter; esta é geralmente de caráter
auto-erótico, embora, posteriormente, seja amiúde substituída na fantasia por
alguma outra satisfação de tipo menos inglório. No estágio final do delírio de
Schreber, vitória magnífica foi alcançada pelo impulso sexual infantil, pois a
voluptuosidade tornou-se temente a Deus e o Próprio Deus (o pai) nunca se
cansava de exigi-la dele. A ameaça paterna mais temida, a castração, na
realidade forneceu o material para sua fantasia de desejo (a princípio
combatida mas depois aceita) de ser transformado em mulher. Sua alusão a um delito
acobertado pela idéia substituta de ‘assassinato de alma’ não poderia ser mais
transparente. Descobriu-se que o assistente-chefe era idêntico a seu vizinho
von W. [Ver a partir de [1].], que, conforme as vozes, havia-o falsamente
acusado de masturbação. (108.) As vozes diziam, como se fornecendo fundamentos
para a ameaça de castração: ‘Pois você deve ser representado como sendo
dado a excessos voluptuosos.’ (127-8.) Finalmente, chegamos ao pensamento
forçado (47) a que o paciente se submeteu porque supunha que Deus acreditaria
que ele se havia tornado idiota e se afastaria dele se deixasse de pensar por
um só momento. [Ver em [1].] Trata-se de reação (com a qual estamos também
familiarizados, sob outros aspectos) à ameaça ou temor de perder a razão por entregar-se
a práticas sexuais e, especialmente, à masturbação. Considerando o enorme
número de idéias delirantes de natureza hipocondríaca que o paciente
desenvolveu, talvez não se deva dar grande importância ao fato de algumas delas
coincidirem, palavra por palavra, com os temores hipocondríacos dos
masturbadores.
Qualquer um que fosse mais audacioso do que eu
em efetuar interpretações, ou estivesse em contato com a família de Schreber e,
conseqüentemente, mais familiarizado com a sociedade em que se movimentava e
com os pequenos fatos de sua vida, acharia fácil remontar inumeráveis
pormenores de seus delírios às fontes e descobrir assim seu significado; e isso
apesar da censura a que as Denkwürdigkeiten foram submetidas. Sendo como
é, porém, devemos necessariamente contentar-nos com este enevoado esboço do
material infantil que foi utilizado pelo distúrbio paranóico ao retratar o
conflito atual.
Talvez me seja permitido acrescentar umas
poucas palavras, com vistas a estabelecer as causas deste conflito que irrompeu
em relação à fantasia feminina de desejo. Como sabemos, quando uma fantasia
feminina de desejo aparece, nossa tarefa é associá-la com alguma frustração,
alguma privação na vida real. Ora, Schreber admite haver sofrido privação deste
tipo. Seu casamento, que descreve como feliz, sob outros aspectos, não lhe deu
filhos; e, em particular, não lhe trouxe filho homem que poderia tê-lo
consolado da perda do pai e do irmão e sobre quem poderia ter drenado suas
afeições homossexuais insatisfeitas. Sua linha familiar ameaçava perecer e
parece que ele sentia bastante orgulho de seu nascimento e linhagem: ‘Tanto os
Flechsigs quanto os Schrebers eram membros da “mais alta nobreza do Céu”, como
diz a expressão. Os Schrebers, em particular, portavam o título de “Margraves
da Toscana e Tasmânia”; pois as almas, instigadas por algum tipo de vaidade
pessoal, têm o costume de adornar-se com títulos um tanto antissonantes,
tomados de empréstimos a este mundo.’ (24.) O grande Napoleão obteve divórcio
de Josefina (embora somente após graves lutas internas) porque ela não poderia
propagar a dinastia. O Dr. Schreber pode ter formado uma fantasia de que, se
fosse mulher, trataria o assunto de ter filhos com mais sucesso; e pode ter
assim retornado à atitude feminina em relação ao pai que apresentaria nos
primeiros anos de sua infância. Se assim fosse, então o delírio de que, por
causa de sua emasculação, o mundo se povoaria de ‘uma nova raça de homens
nascidos no espírito de Schreber’ (288) - delírio cuja realização continuamente
adiava para um futuro cada vez mais remoto - teria também a intenção de
oferecer-lhe uma saída para sua falta de filhos. Se os ‘homenzinhos’ que o
próprio Schreber acha tão enigmáticos fossem crianças, então não teríamos
dificuldade em compreender por que se achavam reunidos em tão grande número em
sua cabeça (158): eles eram, verdadeiramente, os ‘filhos de seu espírito’.
III - SOBRE O MECANISMO DA PARANÓIA
Estivemos até aqui lidando com o complexo
paterno, elemento dominante no caso de Schreber, e com a fantasia de desejos em
torno da qual a doença se centralizou. Mas, em tudo isso, nada existe de
característico da enfermidade conhecida como paranóia, nada que não possa ser
encontrado (e que não tenha sido, em verdade, encontrado) em outros tipos de neuroses.
O caráter distintivo da paranóia (ou da dementia paranoides) deve ser procurar
alhures, a saber, na forma específica assumida pelos sintomas; e esperamos
descobrir que esta é determinada, não pela natureza dos próprios complexos, mas
pelo mecanismo mediante o qual os sintomas são formados ou a repressão é
ocasionada. Tenderíamos a dizer que caracteristicamente paranóico na doença foi
o fato de o paciente, para repelir uma fantasia de desejo homossexual, ter
reagido precisamente com delírios de perseguição desta espécie.
Estas considerações emprestam, portanto, peso
adicional à circunstância de que somos, na realidade, levados pela experiência
a atribuir às fantasias de desejo homossexuais uma relação íntima (talvez
invariável) com essa forma específica de enfermidade. Duvidando de minha
própria experiência no assunto, durante os últimos anos reuni-me a meus amigos
C.G. Jung, de Zurique, e Sándor Ferenczi, de Budapest, para pesquisar, sob esta
única característica, certo número de casos de distúrbio paranóide que tinham
estado sob observação. Os pacientes cujas histórias forneceram o material para
esta pesquisa incluíam tanto homens quanto mulheres e variavam quanto à raça,
ocupação e posição social. Ainda assim, ficamos estupefatos ao descobrir que, em
todos esses casos, uma defesa contra o desejo homossexual era claramente
identificável no próprio centro do conflito subjacente à moléstia, e que fora
numa tentativa de dominar uma corrente inconscientemente reforçada de
homossexualismo que todos eles haviam fracassado. Isso certamente não era o que
havíamos esperado. A paranóia constitui exatamente um distúrbio no qual a
etiologia sexual de maneira alguma é óbvia; longe disso, as características
notavelmente relevantes na origem da paranóia, particularmente entre indivíduos
do sexo masculino, são as humilhações e desconsiderações sociais. Mas, se nos
aprofundarmos apenas um pouco mais no assunto, poderemos perceber que o fator
realmente eficaz nessas afrontas sociais reside na parte que nelas desempenham os
componentes homossexuais da vida emocional. Enquanto o indivíduo age
normalmente e é, por conseguinte, impossível perscrutar as profundezas de sua
vida psíquica, podemos duvidar que suas relações emocionais com o próximo na
sociedade tenham algo a ver com a sexualidade, concretamente ou em sua gênese.
Mas os delírios nunca deixam de revelar estas relações e de remontar os
sentimentos sociais às suas raízes num desejo erótico positivamente sensual.
Enquanto foi sadio, também o Dr. Schreber, cujos delírios culminaram por uma
fantasia de desejo de natureza inequivocamente homossexuais, não havia, segundo
afirmam todos, demonstrado quaisquer sinais de homossexualismo no sentido comum
da palavra.
Esforçar-me-ei agora (e penso que a tentativa
não é desnecessária nem injustificável) por demonstrar que o conhecimento dos
processos psicológicos, que graças à psicanálise hoje possuímos, já nos permite
compreender o papel desempenhado por um desejo homossexual no desenvolvimento
da paranóia. Pesquisas recentes dirigiram nossa atenção para um estádio do
desenvolvimento da libido, entre o auto-erotismo e o amor objetal. Este estádio
recebeu o nome de narcisismo. O que acontece é o seguinte: chega uma ocasião,
no desenvolvimento do indivíduo, em que ele reúne seus instintos sexuais (que
até aqui haviam estado empenhados em atividades auto-eróticas), a fim de
conseguir um objeto amoroso; e começa por tomar a si próprio, seu próprio
corpo, como objeto amoroso, sendo apenas subseqüentemente que passa daí para a
escolha de alguma outra pessoa que não ele mesmo, como objeto. Essa fase
eqüidistante entre o auto-erotismo e o amor objetal pode, talvez, ser
indispensável normalmente; mas parece que muitas pessoas se demoram por tempo
inusitadamente longo nesse estado e que muitas de suas características são por
elas transportadas para os estádios posteriores de seu desenvolvimento. De
importância principal no eu (self) do sujeito assim escolhido como
objeto amoroso já podem ser os órgãos genitais. A linha de desenvolvimento,
então, conduz à escolha de um objeto externo com órgãos genitais semelhantes -
isto é, a uma escolha objetal homossexual - e daí ao heterossexualismo. As
pessoas que se tornam homossexuais manifestas mais tarde, nunca se emanciparam,
pode-se presumir, da condição obrigatória de que o objeto de sua escolha deve
possuir órgãos genitais como os seus; e, com relação a isto, as teorias sexuais
infantis que atribuem o mesmo tipo de órgãos genitais a ambos os sexos exercem
muita influência. [Cf. Freud, 1908c.]
Após o estádio de escolha objetal heterossexual
ter sido atingido, as tendências homossexuais não são, como se poderia supor,
postas de lado ou interrompidas; são simplesmente desviadas de seu objetivo
sexual e aplicadas a novas utilizações. Combinam-se agora com partes dos
instintos do ego e, como componentes ‘ligados’, ajudam a constituir os
instintos sociais, contribuindo assim como um fator erótico para a amizade e a
camaradagem, para o esprit de corps e o amor à humanidade em geral. Quão
grande é a contribuição realmente derivada de fontes eróticas (com o objetivo
sexual inibido) dificilmente poder-se-ia adivinhar pelas relações sociais
normais da humanidade. Mas não é irrelevante observar que são precisamente os
homossexuais manifestos, e entre eles exatamente aqueles que se colocam contra
a tolerância quanto a atos sensuais, que se distinguem por participação
particularmente ativa nos interesses gerais da humanidade - interesses que por
si mesmo se originaram de uma sublimação de instintos eróticos.
Em meus Três Ensaios sobre a Teoria da
Sexualidade [Ver em [1], 1972], expressei a opinião de que cada estádio no
desenvolvimento da psicossexualidade fornece uma possibilidade de ‘fixação’, e,
assim, de um ponto disposicional. As pessoas que não se libertaram completamente
do estádio de narcisismo - que, equivale a dizer, têm nesse ponto uma fixação
que pode operar como disposição para uma enfermidade posterior - acham-se
expostas ao perigo de que alguma vaga de libido excepcionalmente intensa, não
encontrando outro escoadouro, possa conduzir a uma sexualização de seus
instintos sociais e desfazer assim as sublimações que haviam alcançado no curso
de seu desenvolvimento. Este resultado pode ser produzido por qualquer coisa
que faça a libido fluir regressivamente (isto é, que causa uma ‘regressão’):
quer, por um lado, a libido se torne colateralmente reforçada, devido a algum
desapontamento com uma mulher, ou seja diretamente represada devido a um
infortúnio nas relações sociais com outros homens, ambos os casos sendo exemplos
de ‘frustração’; quer, por outro lado, haja uma intensificação geral da libido,
de maneira que ela se torne poderosa demais para encontrar um escoadouro ao
longo dos canais que já lhe estão abertos, e, conseqüentemente, irrompa por
suas margens no ponto mais fraco. Visto nossas análises demonstrarem que os
paranóicos se esforçam por proteger-se contra esse tipo de sexualização de
suas catexias sociais instintuais, somos levados a supor que o ponto fraco
em seu desenvolvimento deve ser procurado em algum lugar entre os estádios de
auto-erotismo, narcisismo e homossexualismo, e que sua disposição à enfermidade
(que talvez seja suscetível de definição mais precisa) deve estar localizada
nessa região. Uma disposição semelhante teria de ser atribuída aos pacientes
que sofrem da demência precoce de Kraepelin ou de (como Bleuler a denominou) esquizofrenia;
e esperamos, posteriormente, encontrar pistas que nos permitam remontar às
diferenças entre os dois distúrbios (com referência tanto à forma que assumem
quanto ao curso que seguem) a diferenças correspondentes nas fixações
disposicionais dos pacientes.
Assumindo então o ponto de vista de que o que
jaz no cerne do conflito, nos casos de paranóia entre indivíduos do sexo
masculino, é uma fantasia de desejo homossexual de amar um homem,
certamente não esqueceremos que a confirmação de hipótese tão importante só
pode decorrer da investigação de um grande número de exemplos de toda espécie
de distúrbio paranóide. Temos, portanto, de estar preparados, se preciso for,
para limitar nossa assertiva a um único tipo de paranóia. Não obstante,
constitui fato notável que as principais formas de paranóia conhecidas podem
ser todas representadas como contradições da proposição única ‘eu (um
homem) o amo (um homem)’, e que, na verdade, exaurem todas as maneiras
possíveis em que tais contradições poderiam ser formuladas.
A proposição ‘eu (um homem) o amo’ é
contraditada por:
(a) Delírios de perseguição, pois
eles ruidosamente asseveram:
‘Eu não o amo - Eu o odeio.’
Esta contradição, que deve ter sido enunciada
assim no inconsciente, não pode, contudo, tornar-se consciente para um
paranóico sob essa forma. O mecanismo de formação de sintomas na paranóia exige
que as percepções internas - sentimentos - sejam substituídas por percepções
externas. Conseqüentemente, a proposição ‘eu o odeio’ transforma-se, por
projeção, em outra: ‘Ele me odeia (persegue), o que me desculpará por
odiá-lo.’ E, assim, o sentimento inconsciente compulsivo surge como se fosse a
conseqüência de uma percepção externa:
‘Eu não o amo - eu o odeio,
porque ELE ME PERSEGUE.’
A observação não deixa lugar para dúvidas de
que o perseguidor é alguém que foi outrora amado.
(b) Outro elemento é escolhido para a
contradição na erotomania, que permanece totalmente ininteligível sob
qualquer outro ponto de vista:
‘Eu não o amo - eu a amo.’
E, em obediência à mesma necessidade de
projeção, a proposição é transformada em: ‘Eu noto que ela me ama.’
‘Eu não o amo - eu a amo, porque
ELA ME AMA.’
É possível a muitos casos de erotomania dar a
impressão de que poderiam ser satisfatoriamente explicados como fixações
heterossexuais exageradas ou deformadas, se nossa atenção não fosse atraída
pela circunstância de que essas afeições começam invariavelmente não por
qualquer percepção interna de amar, mas por uma percepção externa de ser amado.
Nessa forma de paranóia, porém, a proposição intermediária ‘eu a amo’
também se pode tornar consciente, porque a contradição entre ela e a proposição
original não é diametral nem tão irreconciliável como a existente entre amor e
ódio; afinal de contas, é possível amar tanto ela quanto ele.
Assim, pode acontecer que a proposição que foi substituída por projeção (‘ela
me ama‘) abra caminho novamente para a proposição da ‘língua básica’ ‘eu a
amo’.
(c) A terceira modalidade pela qual a
proposição original pode ser contraditada seria por delírios de ciúme,
que podemos estudar nas formas características sob que aparecem em cada sexo.
() Delírios alcoólicos de ciúme. O papel desempenhado
pelo álcool nesse distúrbio é, sob todos os aspectos, inteligível. Sabemos que
aquela fonte de prazer afasta inibições e desfaz sublimações. Não é raro que o
desapontamento com uma mulher leve um homem a beber - mas isso significa,
geralmente, que ele recorre ao bar e à companhia de homens, que lhe
proporcionam a satisfação emocional que deixou de conseguir de sua mulher em
casa. Se então esses homens se tornarem os objetos de uma forte catexia
libidinal em seu inconsciente, ele a repelirá com o terceiro tipo de
contradição:
‘Não sou eu quem ama o homem - ela
o ama’, e suspeita da mulher em relação a todos os homens a quem ele próprio é
incitado a amar.
A deformação por meio da projeção acha-se
necessariamente ausente nesse caso, visto que, com a mudança do sujeito que
ama, todo o processo é, de qualquer modo, lançado para fora do ego. O fato de a
mulher amar os homens constitui matéria de percepção externa para ele, ao passo
que os fatos de que ele próprio não ama, mas odeia, ou de que ele mesmo ama,
não esta, mas aquela pessoa, são assuntos de percepção interna.
() Os delírios de ciúme nas mulheres são
exatamente análogos.
‘Não sou eu quem ama as mulheres - ele
as ama.’ A mulher ciumenta suspeita do marido em relação a todas as mulheres
por quem ela própria é atraída, devido ao seu homossexualismo e ao efeito
disposicional de seu narcisismo excessivo. A influência da época da vida em que
sua fixação ocorreu é claramente demonstrada pela seleção dos objetos amorosos
que imputa ao marido; são amiúde velhas e inteiramente inapropriadas para uma
relação amorosa real - revivescência das babás, criadas e meninas que foram
suas amigas na infância, ou das irmãs, que foram suas rivais verdadeiras.
Ora, poder-se-ia supor que uma proposição
composta de três termos, tal como ‘eu o amo‘, só pudesse ser contestada
por três maneiras diferentes. Os delírios de ciúme contradizem o sujeito, os
delírios de perseguição contradizem o predicado, e a erotomania contradiz o
objeto. Na realidade, porém, é possível um quarto tipo de contradição - a
saber, aquele que rejeita a proposição como um todo:
‘Não amo de modo algum - não amo ninguém‘.
E visto que, afinal de contas, a libido tem de ir para algum lugar, essa
proposição parece ser o equivalente psicológico da proposição: ‘Eu só amo a mim
mesmo’. Desta maneira, esse tipo de contradição dar-nos-ia a megalomania, que
podemos encarar como uma supervalorização sexual do ego e ser assim
colocada ao lado da supervalorização do objeto amoroso, com a qual já nos
achamos familiarizados.
É de alguma importância, com relação a outras
partes da teoria da paranóia, observar que podemos detectar um elemento de
megalomania na maioria das outras formas de distúrbio paranóide. É justo
presumir que a megalomania é essencialmente de natureza infantil e que, à
medida que o desenvolvimento progride, ela é sacrificada às considerações
sociais. Do mesmo modo, a megalomania de um indivíduo nunca é tão veementemente
abafada como quando ele se acha em poder de um amor irresistível:
Denn
wo die Lieb’ erwachet, stirbt
das Ich, der finstere Despot.
Após este exame do papel inesperadamente
importante desempenhado pelas fantasias de desejo homossexuais na paranóia,
retornemos aos dois fatores em que esperávamos, desde o princípio, encontrar os
sinais característicos da paranóia, a saber, o mecanismo pelo qual os
sintomas são formados e o mecanismo pelo qual a repressão é ocasionada [ver
em [1]].
Certamente não temos direito de começar por
presumir que estes dois mecanismos são idênticos e que a formação de sintomas
segue o mesmo caminho que a repressão, cada qual avançando ao longo dele,
talvez, em direção oposta. Tampouco parece haver qualquer grande possibilidade
de que tal identidade exista. Não obstante, abster-nos-emos de expressar
qualquer opinião sobre o assunto até termos completado nossa pesquisa.
A característica mais notável da formação de
sintomas na paranóia é o processo que merece o nome de projeção. Uma
percepção interna é suprimida e, ao invés, seu conteúdo, após sofrer certo tipo
de deformação, ingressa na consciência sob a forma de percepção externa. Nos
delírios de perseguição, a deformação consiste numa transformação do afeto; o
que deveria ter sido sentido internamente como amor é percebido externamente
como ódio. Deveríamos sentir-nos tentados a encarar esse processo notável como
o elemento mais importante na paranóia e dela absolutamente patognomônico, se
oportunamente não nos lembrássemos de duas coisas. Em primeiro lugar, a
projeção não desempenha o mesmo papel em todas as formas de paranóia; e, em
segundo, ela faz seu aparecimento não apenas na paranóia mas também sob outras
condições psicológicas, e de fato é-lhe concedida participação regular em nossa
atitude para com o mundo externo. Pois, quando atribuímos as causas de certas
sensações ao mundo externo, ao invés de procurá-las (como fazemos no caso dos
outros) dentro de nós mesmos, esse procedimento normal também merece ser
chamado de projeção. Cientes de que problemas psicológicos mais gerais acham-se
envolvidos na questão da natureza da projeção, decidamos adiar sua investigação
(e, com ela, a do mecanismo da formação paranóide de sintomas em geral) para
outra ocasião, e passemos agora a considerar que idéias podemos reunir sobre o
tema do mecanismo da repressão na paranóia. Gostaria de dizer ao mesmo tempo,
para justificar esta renúncia temporária, que descobriremos que a maneira pela
qual o processo de repressão ocorre acha-se muito mais intimamente vinculada à
história do desenvolvimento da libido e à disposição a que ele dá origem, do
que a maneira pela qual os sintomas se formam.
Na psicanálise, acostumamo-nos a encarar os
fenômenos patológicos como derivados, de maneira geral, da repressão. Se
examinarmos mais de perto o que é chamado de ‘repressão’, encontraremos razões
para dividir o processo em três fases que são facilmente distinguíveis uma da
outra, conceptualmente.
(1) A primeira fase consiste na fixação,
que é a precursora e condição necessária de toda ‘repressão’. A fixação pode
ser descrita da seguinte maneira: determinado instinto ou componente instintual
deixa de acompanhar os demais ao longo do caminho normal previsto de
desenvolvimento, e, em conseqüência desta inibição em seu desenvolvimento, é
deixado para trás, num estádio mais infantil. A corrente libidinal em apreço
comporta-se então, em relação a estruturas psicológicas posteriores, como se
pertencesse ao sistema do inconsciente, como reprimida. Já demonstramos [ver em
[1]] que essas fixações instintuais constituem a base para a disposição à
enfermidade subseqüente, e podemos agora acrescentar que elas constituem, acima
de tudo, a base para a determinação do resultado da terceira fase da repressão.
(2) A segunda fase da repressão é a da
repressão propriamente dita - fase à qual foi dada, até aqui, a máxima atenção.
Provém dos sistemas mais altamente desenvolvidos do ego - sistemas capazes de
serem conscientes - e pode, na realidade, ser descrita como um processo de
‘pós-pressão’. Aparenta ser um processo essencialmente ativo, ao passo que a
fixação parece de fato constituir um retardamento passivo. Podem sofrer
repressão que os derivados psíquicos dos instintos retardados originais, quando
estes se reforçam e entram assim em conflito com o ego (ou instintos
egossintônicos), quer tendências psíquicas que, por outras razões, despertaram
uma forte aversão. Mas esta aversão, em si própria, não conduziria à repressão,
a menos que alguma vinculação tenha sido estabelecida e entre as tendências
indesejáveis que têm de ser reprimidas e aquelas que já o foram. Onde isso acontece,
a repulsa exercida pelo sistema consciente e a atração exercida pelo
inconsciente tendem na mesma direção, no sentido de ocasionar a repressão. As
duas possibilidades que são aqui isoladamente tratadas podem, talvez, ser menos
nitidamente diferençadas na prática, e a distinção entre elas pode depender
simplesmente do maior ou menor grau em que os instintos primariamente
reprimidos contribuem para o resultado.
(3) A terceira fase, e a mais importante no que
se refere aos fenômenos patológicos, é a do fracasso da repressão, da irrupção,
do retorno do reprimido. Esta irrupção toma seu impulso do ponto de
fixação, e implica uma regressão do desenvolvimento libidinal a esse ponto.
Já aludimos [Ver a partir de [1].] à
multiplicidade dos pontos possíveis de fixação; existem na realidade, tantos
quantos são os estádios no desenvolvimento da libido. Devemos estar preparados
para encontrar uma multiplicidade semelhante de mecanismos da repressão
propriamente dita e de mecanismos de irrupção (ou de formação de sintomas), e
já podemos começar a suspeitar que não será possível remontar todas essas
multiplicidades somente à história desenvolvimental da libido.
É fácil perceber que esse exame está começando
a invadir o problema da ‘escolha da neurose’, que, contudo, não pode ser
abordado até que um trabalho preliminar de outro tipo tenha sido realizado.
Mantenhamos em mente, por enquanto, que já tratamos da fixação, e que adiamos o
assunto da formação de sintomas; e restrinjamo-nos à questão de saber se a
análise do caso de Schreber lança alguma luz sobre o mecanismo da repressão
propriamente dita que predomina na paranóia.
No clímax de sua moléstia, sob a influência de
visões que eram ‘parcialmente de caráter terrificante, mas em parte, também, de
grandeza indescritível’ (73), Schreber convenceu-se da iminência de uma grande
catástrofe, do fim do mundo. Vozes disseram-lhe que o trabalho dos 14.000 anos
passados viera agora a dar em nada, e que o período de vida concedido à Terra
era apenas 212 anos mais (71); durante a última parte de sua estada na clínica
de Flechsig, acreditou que esse período já havia passado. Ele próprio era ‘o
único homem real deixado vivo’ e as poucas formas humanas que ainda via - o
médico, os assistentes, os outros pacientes - explicava-as como ‘miraculadas,
homens apressadamente improvisados.’ Ocasionalmente, a corrente inversa de
sentimento também aparecia: foi colocado em suas mãos um jornal no qual havia
um comunicado de sua própria morte (81); ele próprio existia sob forma
secundária, inferior, e sob esta forma secundária, certo dia tranqüilamente
faleceu (73). Mas a forma de seu delírio, em que seu ego era mantido e o mundo
sacrificado, mostrou ser, de longe, a mais poderosa. Ele tinha várias teorias
sobre a causa da catástrofe. Certa ocasião, teve em mente um processo de
glaciação devido a retirada do Sol; em outra, seria a destruição por um
terremoto, ocorrência na qual ele, com sua capacidade de ‘vidente de
espíritos’, deveria representar papel dominante, tal como se alega que outro
vidente desempenhou no terremoto de Lisboa de 1755. (91.) Ou, então, Flechsig
era o culpado, visto que através de suas artes mágicas semeara o medo e o
terror entre os homens, destruíra os fundamentos da religião e disseminara
distúrbios nervosos gerais e imoralidades, de modo que pestilências
devastadoras se haviam abatido sobre a humanidade. (91.) Em qualquer caso, o
fim do mundo era a conseqüência do conflito que irrompera entre ele Flechsig
ou, de acordo com a etiologia adotada na segunda fase de seu delírio, do
vínculo indissolúvel que se formara entre ele e Deus; era, na realidade, o
resultado inevitável de sua doença. Anos após, quando o Dr. Schreber retornou à
sociedade humana, e não podia encontrar os livros, nas partituras musicais ou
nos outros artigos de uso cotidiano que lhe caíam mais uma vez nas mãos traço
algum que corroborasse sua teoria de que tinha havido um hiato de imensa
duração na história da humanidade, ele admitiu que sua opinião não era mais
sustentável: ‘Não posso mais evitar reconhecer que, considerado externamente,
tudo está como costumava ser. Se, todavia, não pode ter havido uma profunda
mudança interna é uma questão a que retornarei mais tarde.’ (84-5.) Ele não
se podia permitir duvidar que, durante sua moléstia, o mundo havia chegado ao
fim e que, apesar de tudo, aquele que agora via diante de si era um mundo
diferente.
Uma catástrofe mundial deste tipo não é
infreqüente durante o estádio agitado em outros casos de paranóia. Se nos
basearmos em nossa teoria da catexia libidinal, e seguirmos a sugestão dada
pela visão que Schreber tinha das outras pessoas como ‘homens apressadamente
improvisados’, não acharemos difícil explicar estas catástrofes. O paciente
retirou das pessoas de seu ambiente, e do mundo externo em geral, a catexia
libidinal que até então havia dirigido para elas. Assim, tudo tornou-se
indiferente e irrelevante para ele, e tem de ser explicado através de uma
racionalização secundária, como ‘miraculado, apressadamente improvisado’. O fim
do mundo é a projeção dessa catástrofe interna; seu mundo subjetivo chegou ao
fim, desde o retraimento de seu amor por ele.
Após Fausto ter pronunciado as maldições que o
liberam do mundo, o coro dos Espíritos canta:
Weh!
Weh!
Du
hast sie zerstort,
die
schöne Welt,
mit
mächtiger Faust!
sie
stürzt, sie zerfällt!
Ein
Halbgott hat sie zerschlagen!
…………………………………
Mächtiger
der Erdensöhne,
Prächtiger
baue sie wieder,
in
deinem Busen baue sie auf!
E o paranóico constrói-o de novo, não mais
esplêndido, é verdade, mas pelo menos de maneira a poder viver nele mais uma
vez. Constrói-o com o trabalho de seus delírios. A formação delirante, que
presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de
restabelecimento, um processo de reconstrução. Tal reconstrução após a
catástrofe é bem sucedida em maior ou menor grau, mas nunca inteiramente; nas
palavras de Schreber, houve uma ‘profunda mudança interna’ no mundo. Mas o
indivíduo humano recapturou uma relação, e freqüentemente uma relação muito
intensa, com as pessoas e as coisas do mundo, ainda que esta seja agora hostil,
onde anteriormente fora esperançosamente afetuosa. Podemos dizer, então, que o
processo da repressão propriamente dita consiste num desligamento da libido em
relação às pessoas - e coisas - que foram anteriormente amadas. Acontece
silenciosamente; dele não recebemos informações, só podemos inferi-lo dos
acontecimentos subseqüentes. O que se impõe tão ruidosamente à nossa atenção é
o processo de restabelecimento, que desfaz o trabalho da repressão e traz de
volta novamente a libido para as pessoas que ela havia abandonado. Na paranóia,
este processo é efetuado pelo método da projeção. Foi incorreto dizer que a
percepção suprimida internamente é projetada para o exterior; a verdade é, pelo
contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido
retorna desde fora. O exame completo do processo de projeção, que adiamos para
outra ocasião, esclarecerá as dúvidas remanescentes sobre o assunto.
Entrementes, contudo, constitui fonte de alguma
satisfação descobrir que o conhecimento que acabamos de adquirir nos envolve em
várias argumentações adicionais.
(1) Nossa primeira reflexão revelar-nos-á que
não é possível que esse desligamento da libido ocorra exclusivamente na
paranóia; tampouco pode acontecer que, em outra parte que ocorra, tenha as
mesmas conseqüências desastrosas. É bem possível que um desligamento da libido
seja o mecanismo essencial e regular de toda repressão. Não podemos ter
conhecimento positivo sobre esse ponto até que as outras perturbações que se
baseavam na repressão tenham sido similarmente examinadas. Mas é certo que, na
vida mental normal (e não apenas em períodos de luto), estamos constantemente
desligando nossa libido, desta maneira, de pessoas ou de outros objetos, sem
cairmos enfermos. Quando Fausto se libertou do mundo pela enunciação de suas
maldições, o resultado não foi uma paranóia ou qualquer outra neurose, mas
simplesmente uma exata estrutura geral da mente. Por conseguinte, o
desligamento da libido não pode, em si próprio, ser o fator patogênico na
paranóia; tem de haver alguma característica especial que distinga o
desligamento paranóico da libido dos outros tipos. Não é difícil sugerir qual
possa ser essa característica. Que emprego se faz da libido após ela ter sido
liberada pelo processo de desligamento? Uma pessoa normal começará
imediatamente a procurar um substituto para a ligação perdida e, até que esse
substituto seja encontrado, a libido liberada será mantida em suspenso dentro
da mente, e aí dará origem a tensões e alterará o seu humor. Na histeria, a
libido liberada transforma-se em inervações somáticas ou em ansiedade. Na
paranóia, porém, a evidência clínica vai demonstrar que a libido, após ter sido
retirada do objeto, é utilizada de modo especial. Recordar-se-á [ver em [1]]
que a maioria dos casos de paranóia exibe traços de megalomania, e que a
megalomania pode, por si mesma, constituir uma paranóia. Disto pode-se concluir
que, na paranóia, a libido liberada vincula-se ao ego e é utilizada para o
engrandecimento deste. Faz-se assim um retorno ao estádio do narcisismo (que
reconhecemos como estádio do desenvolvimento da libido), no qual o único objeto
sexual de uma pessoa é seu próprio ego. Com base nesta evidência clínica,
podemos supor que os paranóicos trouxeram consigo uma fixação no
estádio do narcisismo, e podemos asseverar que a extensão do retrocesso
do homossexualismo sublimado para o narcisismo constitui medida da
quantidade de regressão característica da paranóia.
(2) Objeção igualmente plausível pode-se basear
na história clínica de Schreber, bem como em muitas outras. Pois pode-se alegar
que os delírios de perseguição (que eram dirigidos contra Flechsig)
inquestionavelmente surgiram em data anterior à da fantasia de fim do mundo; de
maneira que o que se supõe ter sido um retorno do reprimido, realmente precedeu
a própria repressão … o que é absurdo patente. A fim de enfrentar esta objeção,
temos de abandonar o campo elevado da generalização e descer à consideração
pormenorizada das circunstâncias concretas, que são, indubitavelmente,
muitíssimo mais complicadas. Temos de admitir a possibilidade de que um
desligamento da libido como o que estamos examinando pudesse ser tanto parcial
- um recuo a partir de algum complexo isolado - quanto geral. Um desligamento parcial
seria, de longe, o mais comum dos dois, e deveria preceder o geral, visto que,
inicialmente, é apenas para o desligamento parcial que as influências da vida
fornecem motivo. O processo pode então interromper-se no estádio de um
desligamento parcial ou pode estender-se ao geral, que em alta voz proclamará
sua presença nos sintomas da megalomania. Dessa maneira, o desligamento da
libido em relação à figura de Flechsig pode, não obstante, ter constituído o
elementar no caso de Schreber; foi imediatamente seguido pelo aparecimento do
delírio, que trouxe a libido de volta novamente para Flechsig (embora com sinal
negativo, para assinalar o fato de que a repressão se efetuara) e anulou assim
o trabalho da repressão. E então a batalha da repressão irrompe de novo, mas
desta vez com armas mais poderosas. Na proporção em que o objeto de disputa se
tornou a coisa mais importante do mundo externo, tentando, por um lado,
arrastar a totalidade da libido para si, e, por outro, mobilizando todas as
resistências contra si, assim também a luta que se trava em torno desse objeto
único tornou-se cada vez mais comparável a um conflito geral; até que, por fim,
uma vitória para a forças da repressão expressou-se na convicção de que o mundo
chegara ao fim e de que somente o eu (self) sobrevivia. Se passarmos em
revista as engenhosas construções erigidas pelo delírio de Schreber no campo da
religião - a hierarquia de Deus, as almas provadas, as antes-salas do Céu, o
Deus inferior e o superior - podemos avaliar, retrospectivamente, a quantidade
de sublimações transformadas em ruínas pela catástrofe do desligamento geral da
libido.
(3) Uma terceira consideração que surge das
opiniões desenvolvidas nestas páginas é a seguinte: devemos supor que um
desligamento geral da libido do mundo externo constitua agente eficaz o
bastante para explicar o ‘fim do mundo’? Ou as catexias pelo ego ainda efetivas
não teriam sido suficientes para manter rapport- com o mundo externo?
Para enfrentar esta dificuldade, teríamos ou de presumir que aquilo que
chamamos de catexia libidinal (isto é, um interesse que emana de fontes
eróticas) coincide com o interesse em geral, ou de considerar a possibilidade
de que um distúrbio muito disseminado na distribuição da libido possa ocasionar
perturbação correspondente nas catexias pelo ego. Mas estes são problemas que
ainda nos achamos inteiramente impotentes e incompetentes para resolver. Seria
diferente se pudéssemos partir de alguma teoria bem fundamentada dos instintos,
mas, na realidade, nada disso possuímos à nossa disposição. Consideramos o
instinto como sendo o conceito sobre a fronteira entre o simático e o mental, e
vemos nele o representante psíquico de forças orgânicas. Ademais, aceitamos a
distinção popular entre instintos do ego e instinto sexual, pois tal distinção
parece concordar com a concepção biológica de que o indivíduo possui dupla
orientação, visando, por um lado, à autopreservação e, por outro, à preservação
das espécies. Além disso, porém, existem apenas hipóteses, que encampamos - e
estamos inteiramente prontos a abandonar de novo - para que nos ajudassem a
encontrar orientação no caso dos processos mais obscuros da mente. O que
esperamos das investigações psicanalíticas dos processos patológicos mentais é
exatamente que nos levem a algumas conclusões sobre questões vinculadas à
teoria dos instintos. Estas investigações, contudo, acham-se no começo, e são
realizadas apenas por pesquisadores isolados, de maneira que as esperanças que
nelas depositamos devem ainda permanecer irrealizadas. Não podemos mais pôr de
lado a possibilidade de que distúrbios da libido reajam sobre as catexias pelo
ego. Na verdade, é provável que processos deste tipo constituam a
característica istintiva das psicoses. O quanto de tudo isso se pode aplicar à
paranóia é impossível dizer presentemente. Existe uma consideração, contudo,
que gostaria de acentuar. Não se pode asseverar que um paranóico, mesmo no auge
da repressão, retire completamente seu interesse do mundo externo - como se
julga ocorrer em alguns outros tipos de psicose alucinatória (tais como a
amência de Meynert). O paranóico percebe o mundo externo e leva em consideração
quaisquer alterações que nele possam acontecer, e o efeito que aquele lhe causa
estimula-o a inventar teorias explanatórias (tais como os ‘homens
apressadamente improvisados’, de Schreber). Parece-me, portanto, muito mais
provável que a relação alterada do paranóico com o mundo deva ser explicada
inteira ou principalmente pela perda de seu interesse libidinal.
(4) É impossível evitar perguntar, em vista da
estreita vinculação entre os dois distúrbios, até onde esta concepção de
paranóia afetará a nossa concepção de demência precoce. Sou de opinião que
Kraepelin estava inteiramente justificado em tomar a medida de separar grande
parte do que até então havia sido chamado de paranóia e fundi-la, junto com a
catatonia e certas outras formas de doença, numa nova entidade clínica - embora
‘demência precoce’ fosse um nome particularmente infeliz de se escolher para
ela. A designação escolhida por Bleuler para o mesmo grupo de formas -
‘esquizofrenia’ - acha-se também exposta à objeção, de que o nome parece
apropriado contanto que esqueçamos seu significado literal, pois, de outro
modo, ele cria prevenção contra o assunto, visto basear-se numa característica
da moléstia postulada teoricamente - característica, além disso, que não
pertence exclusivamente a essa doença, e que, à luz de outras considerações,
não pode ser encarada como sendo a essencial. Em geral, contudo, não são de
muito grande importância as denominações, que damos aos quadros clínicos. O que
me parece mais essencial é que a paranóia deve ser mantida com um tipo clínico
independente, por mais freqüentemente que o quadro que ofereça possa ser
complicado pela presença de características esquizofrênicas. Do ponto de vista
da teoria da libido, embora se assemelhe à demência precoce na medida em que a
repressão propriamente dita em ambas as moléstias teria o mesmo aspecto
principal - desligamento da libido, juntamente com sua regressão para o ego -,
ela se distinguiria da demência precoce por ter sua fixação disposicional
diferentemente localizada e por possuir um mecanismo diverso para o retorno do
reprimido (isto é, para a formação de sintomas). Parecer-me-ia plano mais
conveniente dar à demência precoce o nome de parafrenia. Este termo não
possui conotação especial e serviria para indicar um relacionamento com a
paranóia (nome que não pode ser modificado) e, além disso, relembraria a
hebefrenia, entidade que hoje se acha fundida com a demência precoce. É verdade
que o nome já foi proposto para outros fins, mas isto não precisa nos
preocupar, visto que as aplicações alternativas ainda não passaram para uso
geral.
Abraham muito convincentemente demonstrou que o
afastamento da libido do mundo externo é uma característica particular e
claramente marcada da demência precoce. Desta característica inferimos que a
repressão é efetuada por meio do desligamento da libido. Aqui, mais uma vez,
podemos considerar a fase de alucinações violentas como uma luta entre a
repressão e uma tentativa de restabelecimento, por devolver a libido novamente
a seus objetos. [Cf. em [1]]. Jung, com extraordinário acume analítico,
percebeu que os delírios (delíria) e estereótipos motores que ocorrem
nessa perturbação são os resíduos de antigas catexias objetais, que se apegam
com grande persistência. Essa tentativa de restabelecimento, que os
observadores equivocadamente tomam pela própria doença, não faz uso da
projeção, como na paranóia, mas emprega um mecanismo alucinatório (histérico).
Este é um dos principais aspectos em que a demência precoce difere da paranóia
e esta diferença pode ser geneticamente explicada a partir de outro ângulo. A
segunda diferença é demonstrada pelo resultado da doença naqueles casos em que
o processo não permaneceu demasiadamente restrito. O prognóstico, em geral, é
mais desfavorável do que na paranóia. A vitória fica com a reconstrução. A
regressão estende-se não simplesmente ao narcisismo (manifestando-se sob a
forma de megalomania), mas a um completo abandono do amor objetal e um retorno
ao auto-erotismo infantil. A fixação disposicional deve, portanto, achar-se
situada mais atrás do que na paranóia, e residir em algum lugar no início do
curso do desenvolvimento entre o auto-erotismo e o amor objetal. Além disso,
não é de modo algum provável que impulsos homossexuais, tão freqüentemente -
talvez invariavelmente - encontrados na paranóia, desempenham papel igualmente
importante na etiologia dessa enfermidade muito mais abrangente, a demência precoce.
Nossas hipóteses quanto às fixações
disposicionais na paranóia e na parafrenia tornam fácil perceber que um caso
pode começar por sintomas paranóides e, apesar disso, transformar-se em
demência precoce, e que fenômenos paranóides e esquizofrênicos podem achar-se
combinados em qualquer proporção. E podemos compreender como um quadro clínico
como o de Schreber pode ocorrer, e merecer o nome de demência paranóide, a
partir do fato de que, na produção de uma fantasia de desejo e de alucinações,
ele apresenta traços parafrênicos, enquanto que, na causa ativadora, no emprego
do mecanismo da projeção, e no desfecho, exibe um caráter paranóide. Porque é
possível que diversas fixações sejam abandonadas no curso do desenvolvimento, e
cada uma delas, sucessivamente, pode permitir uma irrupção da libido que havia
sido impelida para fora - começando talvez com as últimas fixações adquiridas,
e passando, à medida que a moléstia se desenvolve, às originais, que se acham
mais perto do ponto de partida. Gostaríamos de saber a que condições o
resultado relativamente favorável do presente caso se deve; pois não podemos de
bom grado atribuir toda a responsabilidade pelo desfecho a algo tão casual
quanto a ‘melhora devido à mudança de domicílio’, que se estabeleceu após a remoção
do paciente da clínica de Flechsig. Mas nosso conhecimento insuficiente das
circunstâncias íntimas da história clínica torna impossível fornecer resposta a
essa interessante questão. Pode-se suspeitar, contudo, que aquilo que capacitou
Schreber a reconciliar-se com sua fantasia homossexual, e possibilitou à sua
moléstia terminar em algo que se aproxima de um restabelecimento, pode ter sido
o fato de que seu complexo paterno se achava, principalmente, afinado de
maneira positiva, e que, na vida real, os anos finais de seu relacionamento com
um pai excelente provavelmente não foram tempestuosos.
Visto não temer a crítica dos outros nem
esquivar-me de criticar a mim próprio, não tenho motivos para evitar a menção
de uma semelhança que tem possibilidade de prejudicar nossa teoria da libido na
opinião de muitos de meus leitores. Os ‘raios de Deus’ de Schreber, que se
constituíam de uma condensação de raios de Sol, fibras nervosas e
espermatozóides [ver em [1]], nada mais são, na realidade, que uma representação
concreta e uma projeção para o exterior de catexias libidinais, e emprestam
assim a seus delírios uma conformidade marcante com nossa teoria. A crença de
que o mundo deveria acabar porque seu ego estava atraindo todos os raios para
si, a preocupação ansiosa num período posterior, durante o processo de
reconstrução, de que Deus rompesse Sua vinculação de raios com ele - esses e
muitos outros pormenores da estrutura delirante de Schreber soam quase como
percepções endo-psíquicas dos processos cuja existência presumi nestas páginas,
como base de nossa explicação da paranóia. Posso, não obstante, invocar um
amigo e colega especialista para testemunhar que desenvolvi minha teoria da
paranóia antes de me familiarizar com o conteúdo do livro de Schreber. Compete ao
futuro decidir se existe mais delírio em minha teoria do que eu gostaria de
admitir, ou se há mais verdade no delírio de Schreber do que outras pessoas
estão, por enquanto, preparadas para acreditar.
Por fim, não posso concluir o presente trabalho
- que, mais uma vez, constitui apenas fragmento de um todo maior - sem
prenunciar as duas teses principais no sentido de cujo estabelecimento a teoria
da libido das neuroses e das psicoses está avançando: a saber, que as neuroses
surgem, principalmente, de um conflito entre o ego e o instinto sexual, e que
as formas que elas assumem guardam a marca do curso do desenvolvimento seguido
pela libido - e pelo ego.
PÓS-ESCRITO (1912 [1911])
Ao lidar com a história clínica do Senatspräsident
Schreber, propositadamente restringi-me a um mínimo de interpretação; e
sinto-me confiante de que todo leitor com um conhecimento de psicanálise terá
aprendido, a partir do material que apresentei, mais do que foi explicitamente
afirmado por mim, e que não terá encontrado dificuldade em juntar mais os fios
e em chegar a conclusões que apenas insinuei. Por um feliz acaso, o mesmo
número da revista em que meu próprio artigo apareceu mostrou que a atenção de
alguns outros colaboradores fora dirigida para a autobiografia de Schreber e
tornou fácil adivinhar quanto material mais resta a ser coletado do conteúdo
simbólico das fantasias e delírios desse talentoso paranóico.
Desde que publiquei meu trabalho sobre
Schreber, uma aquisição fortuita de conhecimento colocou-me em posição de
apreciar mais adequadamente uma de suas crenças delirantes e de reconhecer a
riqueza de sua relação com a mitologia. Mencionei em [1] a estranha
relação do paciente com o Sol e fui levado a explicar este último como um
‘símbolo paterno’ sublimado. O Sol costumava falar-lhe em linguagem humana e
assim se revelou a ele como ser vivo. Schreber tinha o hábito de vituperá-lo e
de gritar-lhe ameaças; declara, além disso, que quando se detinha a encará-lo e
falava alto, seus raios empalideciam perante ele. Após seu ‘restabelecimento’,
gaba-se de poder olhá-lo fixamente sem qualquer dificuldade e sem ficar mais
que ligeiramente ofuscado, coisa que, naturalmente, ter-lhe-ia sido impossível
previamente.
É a este privilégio delirante de ser capaz de
olhar fixamente o Sol sem ficar ofuscado que o interesse mitológico se prende.
Lemos em Reinach que os autores de histórias naturais da antigüidade atribuíam
esse poder somente à águia, que, como moradora das mais altas regiões do ar,
era colocada em relação especialmente íntima com os céus, com o Sol e com o
relâmpago. Aprendemos das mesmas fontes, ademais, que a águia submete seus
filhotes a um teste, antes de reconhecê-los como sua descendência legítima: a
menos que consigam olhar para o Sol sem piscar, são arrojados para fora do
ninho.
Não pode haver dúvida sobre o significado deste
mito animal. É certo que ele está simplesmente atribuindo a animais algo que
constitui costume sagrado entre os homens. O processo usado pela águia com seus
filhotes é um ordálio, teste de linhagem, tal como é transmitido das
mais diversas raças da antigüidade. Assim, os celtas, que viviam nas margens do
Reno, costumavam confiar seus bebês recém-nascidos às águas do rio, a fim de
determinar se eles eram verdadeiramente do seu próprio sangue. O clã dos
psilos, que habitavam o que hoje é Trípoli, gabava-se de serem descendentes de
serpentes e costumavam expor os filhos ao contato destas; aqueles que eram
filhos verdadeiramente nascidos do clã não eram picados ou restabeleciam-se
rapidamente dos efeitos da picada. A suposição subjacente a esses testes
conduz-nos profundamente aos hábitos totêmicos de pensamento dos povos
primitivos. O totem - um animal, ou uma força natural, animisticamente
concebido, ao qual a tribo remonta sua origem - poupa os membros da tribo como
sendo seus próprios filhos, tal como ele próprio é por estes honrado como
ancestral e por eles poupado. Chegamos aqui à consideração de assuntos que,
segundo me parece, podem tornar possível chegar-se a uma explicação
psicanalítica das origens da religião.
A águia, pois, que faz os filhotes olharem para
o Sol e deles exige que não sejam ofuscados por sua luz, comporta-se como se
ela própria fosse descendente do Sol e estivesse submetendo os filhos a um
teste de linhagem. E quando Schreber se gaba de poder olhar para o Sol ileso e
não ofuscado, redescobriu o método mitológico de expressar sua relação filial
com o Sol, e mais uma vez confirmou nossa opinião de que o Sol é um símbolo do
pai. Recordar-se-á que, durante sua enfermidade, Schreber deu livre expressão
ao seu orgulho familiar, e que descobrimos no fato de sua falta de filhos um
motivo humano para ele ter caído enfermo com uma fantasia feminina dedesejo
[ver em [1]]. Assim, a vinculação entre seu privilégio delirante e a origem de
sua moléstia se torna evidente.
Este breve pós-escrito à minha análise de um
paciente paranóide pode servir para demonstrar que Jung tinha excelentes
fundamentos para sua asserção de que as forças criadoras de mitos da humanidade
não se acham extintas, mas que, até o dia de hoje, originam nas neuroses os
mesmos produtos psíquicos que originaram nas mais remotas eras passadas.
Gostaria de retomar uma sugestão que eu próprio fiz há algum tempo, e
acrescentar que a mesma é válida para as forças que constroem as religiões. E
sou de opinião que em breve chegará a hora propícia para efetuarmos a ampliação
de uma tese que há muito tempo foi sustentada por psicanalistas, e completar o
que até aqui teve apenas aplicação individual e ontogenética acrescentando-lhe
o correspondente antropológico, que deve ser concebido filogeneticamente. ‘Nos
sonhos e nas neuroses”, assim dizia nossa tese, ‘deparamos mais uma vez com a criança
e as peculiaridades que caracterizam suas modalidades de pensamento e sua vida
emocional.’ ‘E deparamos também com o selvagem‘, podemos agora
acrescentar, ‘com o homem primitivo, tal como se nos revela à luz das
pesquisas da arqueologia e da etnologia.’
ARTIGOS SOBRE TÉCNICA (1911-1915 [1914])
INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS
Em sua contribuição a Estudos sobre a
Histeria (1895d), Freud forneceu um relato muito completo do
procedimento psicanalítico que havia desenvolvido com base nas descobertas de
Breuer. Este pode ser descrito como a técnica de ‘pressão’ e ainda incluía
consideráveis elementos de sugestão, embora estivesse avançando rapidamente no
sentido daquele que cedo ele deveria chamar de método ‘psicanalítico’. Um exame
da relação dos escritos técnicos de Freud, publicada adiante (ver em [1]), mostrará
que, depois desse, a não ser por duas descrições muito superficiais datadas de
1903 e 1904, ele não publicou nenhuma descrição geral de sua técnica por mais
de 15 anos. O pouco que sabemos de seus métodos durante este período tem de ser
inferido principalmente de observações ocasionais - por exemplo, em A
interpretação de Sonhos (1900a) - e mais particularmente do que é
revelado em suas três principais histórias clínicas do período, ‘Dora’ (1905e
[1901]), ‘Little Hans’ (1909b) e o “Rat Man’ (1909d). (As duas
últimas, incidentalmente, muito próximo do final deste período de relativo
silêncio.) Informa-nos o Dr. Ernest Jones (1955, 258 e segs.) que já em 1908
Freud alimentava a idéia de escrever uma Allgemeine Technik der
Psychoanalyse (Exposição Geral da Técnica Psicanalítica). Deveria
ter cerca de 50 páginas, e 36 destas já haviam sido escritas ao final do ano.
Neste ponto, porém, houve uma interrupção, e ele decidiu adiar-lhe o término
para as férias de verão de 1909. Quando estas chegaram, porém, havia o artigo
do ‘Rat Man’ para completar e a visita aos Estados Unidos a preparar, e o
trabalho sobre técnica foi mais uma vez deixado de lado. Não obstante, durante
esse mesmo verão, Freud disse ao dr. Jones que estava planejando ‘um pequeno
memorando sobre máximas e normas de técnicas’, que deveria ser distribuído
privadamente apenas entre os seus mais chegados seguidores. Daí em diante, nada
mais se ouviu sobre o assunto até o artigo sobre ‘As Perspectivas Futuras da
Psicanálise’, lido por ele no final de março do ano seguinte para o Congresso
de Nuremberg (1910d). Nesse trabalho, que aflorava a questão da técnica,
anunciou Freud que pretendia, ‘em futuro próximo’, produzir uma Allgemeine
Methodik der Psychoanalyse (Metodologia Geral da Psicanálise), presumivelmente
um trabalho sistemático sobre técnica (Ver em [1], 1970). Mais uma vez, porém,
a não ser pelo comentário crítico sobre análise ‘silvestre’ escrito alguns
meses mais tarde (1910k), houve um atraso de mais de 18 meses, e foi
somente em fins de 1911 que o trabalho foi iniciado, com a publicação dos seis
artigos seguintes.
Os quatro princípios deles foram publicados em
sucessão bastante rápida durante os 15 meses seguintes (entre dezembro de 1911
e março de 1913). Houve então outra pausa e os dois últimos trabalhos da série
apareceram em novembro de 1914 e janeiro de 1915. Estes dois, porém, foram na
realidade terminados por volta do final de julho de 1914, exatamente antes da
deflagração da Primeira Guerra Mundial. Embora os seis artigos se achassem
assim espalhados por cerca de dois anos e meio. Freud parece tê-los considerado
como formando uma série, como se verá pela nota de rodapé ao quarto artigo (Ver
em [1]) e pelo fato de os últimos quatro originalmente partilharem um título
comum; além disso, reimprimiu-os juntos em sua quarta compilação de artigos
breves, em 1918, sob o título ‘Zur Technik der Psychoanalyse’ (‘Sobre a Técnica
da Psicanálise’). Portanto, achamos correto, neste caso, desprezar a cronologia
e incluir a série inteira no presente volume.
Embora estes seis artigos abranjam grande
número de temas importantes, dificilmente podem ser descritos como mais
exposição sistemática da técnica psicanalítica. Representam, no entanto, a
abordagem mais aproximada de Freud sobre uma exposição desse tipo, pois, nos
vinte anos que se seguiram à sua publicação, ele não efetuou mais que um par de
contribuições mais explícitas ao assunto: um exame dos métodos ‘ativos’ de
tratamento, em seu artigo para o congresso de Budapest (1919a [1918]), e
alguns títulos de conselhos práticos sobre interpretação de sonhos (1923c).
Fora estes, temos de nos apoiar principalmente, como antes, no material
incidental das histórias clínicas, em particular na análise do ‘Wolf Man’
(1918b [1914]), mais ou menos contemporânea dos presentes artigos. Além disso,
há, naturalmente, o longo enunciado dos princípios que fundamentam a terapia
psicanalítica nas Conferências XXVII e XXVIII de suas Conferências
Introdutórias (1916-17), embora dificilmente possa ser encarado como contribuição
direta às questões de técnica. Na verdade, foi somente no fim da vida, em 1937,
que mais uma vez ele retornou a esse tópico, em dois importantes artigos de
natureza explicitamente técnica (1937c e 1937d).
A relativa escassez de trabalhos de Freud sobre
técnica, bem como suas hesitações e demoras para produzi-los, sugere que havia
de sua parte um sentimento de relutância em publicar esse tipo de material. E
na verdade parece ter sido este o caso, por vários motivos. Antipatizava
certamente com a idéia de pacientes futuros virem a conhecer demais sobre os
pormenores de sua técnica, e dava-se conta de que estes escrutinariam
avidamente tudo aquilo que escrevesse sobre o assunto. (Este sentimento é
exemplificado por sua proposta, mencionada acima, de restringir a circulação do
trabalho sobre técnica a número limitado de analistas.) Independentemente
disso, porém, ele era altamente cético quanto ao valor, para principiantes, do
que se poderia descrever como ‘Manuais para Jovens Analistas’. É somente no terceiro
e no quarto artigos desta série que algo semelhante pode ser encontrado. Isto
se deveu em parte, como nos diz no artigo ‘Sobre o Início do Tratamento’, ao
fato de os fatores psicológicos envolvidos (inclusive a personalidade do
analista) serem complexos e variáveis demais para tornar possíveis regras
rígidas e firmes. Tais regras só poderiam ter valor se suas razões fossem
apropriadamente compreendidas e digeridas; e, de fato, grande parte destes
trabalhos é dedicada a uma exposição do mecanismo da terapia psicanalítica e,
na verdade, da psicoterapia em geral. Uma vez apreendido este mecanismo,
tornava-se possível explicar as reações do paciente (e do analista) e formar
opinião sobre os prováveis efeitos e méritos de qualquer artifício técnico
específico.
Depois de todos os seus estudos sobre técnica,
contudo, Freud nunca deixou de insistir que um domínio apropriado do assunto só
poderia ser adquirido pela experiência clínica e não pelos livros. Experiência
clínica com pacientes, sem dúvida, mas, acima de tudo, experiência clínica
oriunda da própria análise do analista. Esta, como Freud cada vez mais se
convenceu, constituía a necessidade fundamental de todo psicanalista militante.
Apresentou a idéia de forma bastante experimental a princípio, tal como, por
exemplo, em ‘As Perspectivas Futuras da Terapêutica Psicanalítica’ (1910d),
ver em [1], 1970; expressou-a mais definitivamente num trabalho da presente
série (Ver a partir de [2].); e, num de seus últimos trabalhos, ‘Análise
Terminável e Interminável’ (1937c), estabelece que todo analista
deveria, periodicamente, talvez a cada cinco anos, reingressar em análise. Os
artigos sobre técnica que se seguem têm obviamente de ser lidos sob a impressão
constante desta condição orientadora.
Finalmente, pode-se observar que, na presente
série de artigos, Freud não faz referência à questão de se a posse de uma
qualificação médica constitui atributo não menos necessário a todo
psicanalista. Nestes trabalhos, parece ser tomado como evidente que o analista
será um médico e ele é assim chamado com muito mais freqüência que o caso
contrário: a palavra ‘Arzt‘ - ‘médico’ ou ‘doutor’ - encontra-se em toda
parte. A primeira publicação de Freud a abordar o possível surgimento de
psicanalistas não-médicos foi, de fato, contemporânea do último destes
trabalhos e será encontrada adiante (Ver a partir de [1].), em sua introdução a
um livro de autoria de Pfister. Seus principais estudos sobre o assunto vieram
muito mais tarde na brochure sobre análise leiga (1926e) e no
pós-escrito a esta (1927a). Pode-se conjeturar que, se houvesse escrito
os presentes artigos em fase posterior de sua carreira, a palavra ‘Arzt‘
teria ocorrido com menos freqüência. Na verdade, nos dois últimos trabalhos
sobre técnica (1937c e 1937d), ela não aparece de modo algum; é
substituída, em toda a parte, por ‘Analytiker‘ - ‘analista’.
O MANEJO DA INTERPRETAÇÃO DE SONHOS NA PSICANÁLISE (1911)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DIE HANDHABUNG DER TRAUMDEUTUNG IN DER
PSYCOANALYSE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1911
Zbl. Psychoan., 2, (3), 109-13.
1918
S. K. S. N., 4, 378-85 (1922, 2ª ed.)
1924
Technik un Metapsychol., 45-52.
1925
G. S., 6, 45-52.
1931
Neurosenlehre und Technik, 321-8.
1943
G. W., 8, 350-7.
(b)
TRADUÇÃO INGLESA:
‘The
Employment of Dream-Interpretation in Psycho-Analysis’
1924 C. P., 2, 305-11. (Trad. de Joan Riviere.)
A presente tradução inglesa é versão
modificada, com o título ligeiramente alterado, da publicada em 1924.
O artigo foi publicado pela primeira vez em
dezembro de 1911. Seu tópico, como o título indica, é restrito: relaciona-se
aos sonhos apenas como aparecem numa análise terapêutica. Outras constituições
ao mesmo assunto serão encontradas nas Seções I a VIII de ‘Considerações sobre
a Teoria da Interpretação de Sonhos’ (1923c).
O MANEJO DA INTERPRETAÇÃO DE SONHOS NA PSICANÁLISE
A Zentralblatt für Psychoanalyse não foi
planejada apenas para manter os leitores informados dos progressos efetuados no
conhecimento psicanalítico, e para publicar contribuições ao assunto
relativamente breves; visa também a realizar as tarefas adicionais de
apresentar ao estudioso um esboço claro do que já é conhecido e de economizar
tempo e esforços dos principiantes na prática analítica, oferecendo-lhes
instruções apropriadas. Doravante, portanto, artigos de natureza didática e
sobre assuntos técnicos, não necessariamente contendo matéria nova, aparecerão
também neste periódico.
A questão de que pretendo agora tratar não é a
da técnica de interpretação de sonhos: nem os métodos pelos quais os sonhos devem
ser interpretados nem o emprego de tais interpretações, quando efetuadas, serão
considerados, mas apenas a maneira pela qual o analista deve utilizar a arte da
interpretação de sonhos no tratamento psicanalítico dos pacientes. Existem
indubitavelmente maneiras diferentes de trabalhar no assunto, mas por outro
lado a resposta a questões de técnica em análise nunca é coisa rotineira.
Embora haja talvez mais de um bom caminho a seguir, existem ainda muitíssimos
maus, e uma comparação entre os diversos métodos não deixa de ser
esclarecedora, mesmo que não conduza a uma decisão em favor de algum
especificamente.
Quem passar da interpretação de sonhos para a
clínica analítica conservará o interesse no conteúdo dos sonhos, e tenderá a
interpretar tão completamente quanto possível cada sonho relatado pelo
paciente. Mas cedo observará que está trabalhando agora sob condições
inteiramente diversas e que, se tentar levar a cabo sua intenção, entrará em
choque com as tarefas mais imediatas do tratamento. Mesmo que o primeiro sonho
de uma paciente se mostre admiravelmente adequado para a introdução das
primeiras explicações, outros sonhos prontamente aparecerão, tão longos e
obscuros, que seu significado completo não poderá ser extraído no limitado
período de um dia de trabalho. Se o médico continuar o trabalho de
interpretação durante os dias posteriores, produzir-se-ão, nesse meio tempo,
novos sonhos que terão de ser postos de lado, até que ele possa considerar o
primeiro sonho como finalmente solucionado. A produção de sonhos é às vezes tão
copiosa, e o progresso do paciente no sentido de sua compreensão tão hesitante,
que surgirá no analista a suspeita de que o aparecimento do material, dessa
maneira, pode ser simplesmente uma manifestação da resistência do paciente, que
se aproveita da descoberta de que o método é incapaz de dominar o que é assim
apresentado. Além do mais, nesse ínterim o tratamento ter-se-á distanciado
bastante do presente e terá perdido o contato com a atualidade. Em oposição a
tal técnica, levanta-se a regra de que é da maior importância para o tratamento
que o analista esteja sempre cônscio da superfície da mente do paciente, em
qualquer momento, que saiba que complexos e resistências estão ativos nele na
ocasião e que reação consciente a eles lhe orientará o comportamento. Quase
nunca é correto sacrificar este objetivo terapêutico a um interesse na
interpretação de sonhos.
Qual, então, se tivermos em mente esta regra,
deve ser a nossa atitude ao interpretar sonhos na análise? Mais ou menos a seguinte.
A interpretação que possa ser realizada em uma sessão deve ser aceita como
suficiente e não se deve considerar prejuízo que o conteúdo do sonho não seja
inteiramente descoberto. No dia seguinte, a interpretação do sonho não deve ser
retomada novamente, como coisa natural, até que se tenha tornado evidente que
nada mais, nesse meio tempo, abriu caminho para o primeiro plano dos
pensamentos do paciente. Desse modo, nenhuma exceção, em favor de uma
interpretação de sonhos interrompida, deve ser feita à regra de que a primeira
coisa que vem à cabeça do paciente é a primeira coisa a ser tratada. Se novos
sonhos ocorrem antes que os anteriores tenham sido examinados, as produções
mais recentes devem ser atendidas e nenhum constrangimento se precisa sentir por
negligenciar as mais antigas. Se os sonhos se tornam por demais difusos e
volumosos, toda a esperança de decifrá-los deve ser tacitamente abandonada
desde o início. Devemos em geral evitar demonstrar interesse muito especial na
interpretação de sonhos, ou despertar no paciente a idéia de que o trabalho se
interromperia se ele não apresentasse sonhos; de outra maneira, há o perigo de
a resistência ser dirigida para a produção de sonhos, com a conseqüente
cessação destes. Pelo contrário, o paciente deve ser levado a crer que a
análise invariavelmente encontra material para sua continuação,
independentemente de ele apresentar ou não sonhos, ou da atenção que lhes é
dedicada.
Perguntar-se-á agora se não estaremos
abandonando material excessivamente valioso, que poderia lançar luz sobre o
inconsciente, se a interpretação de sonhos só puder ser realizada sujeita a
tais restrições de método. A resposta a isto é que a perda de modo algum é tão
grande quanto poderia parecer a um exame superficial do assunto. Inicialmente,
tem-se de reconhecer que, em casos de neurose grave, quaisquer produções
oníricas elaboradas devem, pela natureza das coisas, ser encaradas como
incapazes de solução completa. Um sonho deste tipo amiúde se baseia em todo o
material patogênico do caso, ainda desconhecido tanto do médico quanto do
paciente (os chamados ‘sonhos programáticos’ e sonhos biográficos), sendo às
vezes equivalente a uma tradução, em linguagem onírica, de todo o conteúdo da
neurose. Na tentativa de interpretar tal sonho, todas as resistências latentes,
ainda intocadas, serão postas em atividade e logo estabelecerão um limite à sua
compreensão. A interpretação completa deste sonho coincidirá com o término de
toda a análise; se se tomar nota dele, no início, talvez seja possível compreendê-lo
ao final, muitos meses mais tarde. É o mesmo que acontece com a elucidação de
um sintoma isolado (o sintoma principal, talvez). É preciso a análise completa
para explicá-lo; no decorrer do tratamento, temos de esforçar-nos por apreender
primeiro este, depois aquele fragmento do significado do sintoma, um após
outro, até que possam ser todos reunidos. Semelhantemente, não se pode esperar
mais de um sonho que ocorre nos primeiros estádios da análise; temos de
contentar-nos se a tentativa de interpretação traz à luz um único impulso
patogênico de desejo.
Assim, não se abandona nada que se pode obter,
se se desiste da idéia de uma interpretação de sonhos completa; tampouco nada
se perde, via de regra, se interrompemos a interpretação de um sonho relativamente
antigo e voltamo-nos para uma mais recente. Descobrimos, em ótimos exemplos de
sonhos inteiramente analisados, que diversas cenas sucessivas de um só sonho
podem ter o mesmo conteúdo, o qual pode nelas ser expresso com crescente
clareza, e aprendemos também que diversos sonhos que ocorrem em uma mesma noite
não passam de tentativas, manifestadas sob várias formas, de representar um só
significado. Em geral, podemos ficar certos de que todo impulso de desejo que
cria hoje um sonho reaparecerá noutros sonhos, enquanto não tiver sido
compreendido e retirado do domínio do inconsciente. Por isso acontece
freqüentemente que a melhor maneira de completar a interpretação de um sonho
seja abandoná-lo e dedicar a atenção a um sonho novo, que pode conter o mesmo
material sob forma possivelmente mais acessível. Sei que é pedir muito, não
apenas do paciente mas também do médico, esperar que abandonem seus propósitos
conscientes durante o tratamento e entreguem-se a uma orientação que, apesar de
tudo, ainda nos parece ‘acidental’. Mas posso responder que se é recompensado
toda vez que se resolve ter fé nos próprios princípios teóricos e se persuade a
não discutir a orientação do inconsciente ao estabelecer elos de ligação.
Advirto, portanto, que a interpretação de
sonhos não deve ser perseguida no tratamento analítico como arte pela arte, mas
que seu manejo deve submeter-se àquelas regras técnicas que orientam a direção
do tratamento como um todo. Ocasionalmente, é natural, pode-se agir de outra
maneira e permitir um pouco de liberdade de ação ao próprio interesse teórico;
mas deve-se sempre estar cônscio do que se está fazendo. Outra situação a ser
considerada é a que surgiu desde que adquirimos mais confiança em nossa
compreensão do simbolismo onírico, e não dependemos tanto das associações do
paciente. Um intérprete onírico excepcionalmente hábil encontrar-se-á às vezes
em posição de poder perscrutar cada um dos sonhos de um paciente, sem exigir
que este passe pelo tedioso e demorado processo de elaborá-los. Um analista
desse tipo acha-se assim livre de qualquer conflito entre as exigências da
interpretação de sonhos e as do tratamento. Além disso, ficará tentado a fazer
pleno uso da interpretação de sonhos em toda ocasião, dizendo ao paciente tudo
o que detectou em seus sonhos. Assim procedendo, contudo, terá adotado um
método de tratamento que se afasta consideravelmente do estabelecido, como
indicarei em relação a outro assunto. Os principiantes na clínica
psicanalítica, de qualquer modo, são aconselhados a não tomarem este caso
excepcional por modelo.
Todo analista se encontra na posição do
intérprete de sonhos superior que estivemos imaginando, com referência aos
primeiríssimos sonhos que os pacientes trazem, antes de terem aprendido algo da
técnica de traduzi-los. Estes sonhos iniciais podem ser descritos como não
refinados; revelam muito ao ouvinte, tal como os sonhos das chamadas pessoas
sadias. Surge então a questão de saber se o analista deve imediatamente
traduzir para o paciente tudo o que lê neles. Não é este, porém, o lugar para
responder a esta questão, pois ela evidentemente faz parte de outra mais ampla:
em que estádio do tratamento e com que rapidez deve o analista deixar o
paciente conhecer o que jaz oculto em sua mente? Quanto mais o paciente aprende
da prática da interpretação de sonhos, mais obscuros, geralmente, se tornam
seus sonhos posteriores. Todo o conhecimento adquirido sobre sonhos serve
também para colocar em guarda o processo de construção onírica.
Nas obras ‘científicas’ sobre sonhos, que,
apesar de seu repúdio da interpretação de sonhos, receberam da psicanálise novo
estímulo, descobrimos com freqüência que um cuidado escrupuloso é
desnecessariamente concedido à preservação acurada do texto do sonho. Supõe-se
que este precise de proteção contra deformações e atritos, nas horas que seguem
imediatamente o despertar. Alguns psicanalistas até, ao darem ao paciente
instruções para anotar cada sonho logo após acordar, não parecem confiar
consistentemente em seu conhecimento das condições de formação onírica. No
trabalho terapêutico, essa regra é supérflua, e os pacientes alegram-se em
fazer uso dela para perturbar o próprio sono e demonstrar grande zelo quando
este é inútil. Pois, mesmo que o texto de um sonho seja dessa maneira
arduamente salvo do esquecimento, é bastante fácil convencer-nos de que nada
foi conseguido para o paciente. Não surgirão associações no texto e o resultado
será igual ao que haveria se o sonho não houvesse sido preservado.
Indubitavelmente, o médico adquiriu um conhecimento que de outro modo não teria
conseguido, mas não é a mesma coisa se o analista sabe de algo ou se o paciente
o sabe; a importância desta distinção para a técnica da psicanálise será mais
amplamente considerada alhures.
Em conclusão, mencionarei um tipo específico de
sonho que, conforme o caso, ocorre apenas no decurso do tratamento
psicanalítico, e pode desconcertar ou desorientar os principiantes. Trata-se
dos sonhos corroborativos que, por assim dizer, ‘vão no rastro’; são facilmente
acessíveis à análise e sua tradução simplesmente apresenta o que o tratamento
já inferiu, durante os últimos dias, do material das associações diárias.
Quando isto acontece, é como se o paciente houvesse sido amável o bastante para
trazer, sob forma onírica, exatamente o que lhe havíamos estado ‘sugerindo’
pouco antes. O analista mais experiente achará sem dúvida difícil atribuir
amabilidade desse tipo ao paciente; ele aceita tais sonhos como confirmações
esperadas e reconhece que só são observados sob certas condições ocasionadas
por influência do tratamento. A grande maioria dos sonhos antecipa-se à
análise, de maneira que, após subtrair deles tudo que já é sabido e
compreendido, resta ainda uma alusão mais ou menos clara a algo que até então
estivera oculto.
A DINÂMICA DA TRANSFERÊNCIA (1912)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ZUR DYNAMIK DER ÜBERTRAGUNG
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1912
Zbl. Psychoan., 2, (4), 167-73.
1918
S. K. S. N., 4, 388-98. (1922, 2ª ed.)
1924
Technik und Metapsychol., 53-63.
1925
G. S., 6, 53-63.
1931
Neurosenlehre und Technik, 328-40.
1943 G. W., 8, 364-74.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘The
Dynamics of Transference’
1924
C. P., 2, 312-22. (Trad.
de Joan Riviere.)
A presente tradução inglesa, da autoria de
James Strachey, aparece aqui pela primeira vez.
Embora Freud incluísse este artigo (publicado
em janeiro de 1912) na série sobre técnica, ele é na verdade mais um exame
teórico do fenômeno da transferência e da maneira pela qual esta opera no
tratamento analítico. Freud já havia abordado o assunto em breves considerações
ao final da história clínica de ‘Dora’ (1905e [1901]), ver em [1], 1972.
Tratou dele muito mais amplamente na segunda metade da Conferência XXVII e na
primeira metade da Conferência XXVIII de suas Conferências Introdutórias
(1916-17); e, perto do fim da vida, fez vários importantes comentários sobre o
tema no decurso de seu longo artigo ‘Análise Terminável e Interminável’ (1937c).
A DINÂMICA DA TRANSFERÊNCIA
O tópico quase inexaurível da transferência foi
recentemente tratado por Wilhelm Stekel [1911b] nesse periódico, em
estilo descritivo. Gostaria de, nas páginas seguintes, acrescentar algumas
considerações destinadas a explicar como a transferência é necessariamente
ocasionada durante o tratamento psicanalítico, e como vem ela a desempenhar
neste seu conhecido papel.
Deve-se compreender que cada indivíduo, através
da ação combinada de sua disposição inata e das influências sofridas durante os
primeiros anos, conseguiu um método específico próprio de conduzir-se na vida
erótica - isto é, nas precondições para enamorar-se que estabelece, nos
instintos que satisfaz e nos objetivos que determina a si mesmo no decurso
daquela. Isso produz o que se poderia descrever como um clichê estereotípico
(ou diversos deles), constantemente repetido - constantemente reimpresso - no
decorrer da vida da pessoa, na medida em que as circunstâncias externas e a
natureza dos objetos amorosos a ela acessíveis permitam, e que decerto não é
inteiramente incapaz de mudar, frente a experiências recentes. Ora, nossas
observações demonstraram que somente uma parte daqueles impulsos que determinam
o curso da vida erótica passou por todo o processo de desenvolvimento psíquico.
Esta parte está dirigida para a realidade, acha-se à disposição da
personalidade consciente e faz parte dela. Outra parte dos impulsos libidinais
foi retida no curso do desenvolvimento; mantiveram-na afastada da personalidade
consciente e da realidade, e, ou foi impedida de expansão ulterior, exceto na
fantasia, ou permaneceu totalmente no inconsciente, de maneira que é
desconhecida pela consciência da personalidade. Se a necessidade que alguém tem
de amar não é inteiramente satisfeita pela realidade, ele está fadado a
aproximar-se de cada nova pessoa que encontra com idéias libidinais
antecipadas; e é bastante provável que ambas as partes de sua libido, tanto a
parte que é capaz de se tornar consciente quanto a inconsciente, tenham sua
cota na formação dessa atitude.
Assim, é perfeitamente normal e inteligível que
a catexia libidinal de alguém que se acha parcialmente insatisfeito, uma
catexia que se acha pronta por antecipação, dirija-se também para a figura do
médico. Decorre de nossa hipótese primitiva que esta catexia recorrerá a
protótipos, ligar-se-á a um dos clichês estereotípicos que se acham presentes
no indivíduo; ou, para colocar a situação de outra maneira, a catexia incluirá
o médico numa das ‘séries’ psíquicas que o paciente já formou. Se a ‘imago
paterna’, para utilizar o termo adequado introduzido por Jung (1911, 164), foi
o fator decisivo no caso, o resultado concordará com as relações reais do
indivíduo com seu médico. Mas a transferência não se acha presa a este
protótipo específico: pode surgir também semelhante à imago materna ou à imago
fraterna. As peculiaridades da transferência para o médico, graças às quais ela
excede, em quantidade e natureza, tudo que se possa justificar em fundamentos
sensatos ou racionais, tornam-se inteligíveis se tivermos em mente que essa
transferência foi precisamente estabelecida não apenas pelas idéias antecipadas
conscientes, mas também por aquelas que foram retidas ou que são
inconscientes.
Nada mais haveria a examinar ou com que se
preocupar a respeito deste comportamento da transferência, não fosse permanecerem
inexplicados nela dois pontos que são de interesse específico para os
psicanalistas. Em primeiro lugar, não compreendemos por que a transferência é
tão mais intensa nos indivíduos neuróticos em análise que em outras pessoas
desse tipo que não estão sendo analisadas. Em segundo, permanece sendo um
enigma a razão por que, na análise, a transferência surge como a resistência
mais poderosa ao tratamento, enquanto que, fora dela, deve ser encarada
como veículo de cura e condição de sucesso. Pois nossa experiência demonstrou -
e o fato pode ser confirmado com tanta freqüência quanto o desejarmos - que, se
as associações de um paciente faltam, a interrupção pode invariavelmente ser
removida pela garantia de que ele está sendo dominado, momentaneamente, por uma
associação relacionada com o próprio médico ou com algo a este vinculado. Assim
que esta explicação é fornecida, a interrupção é removida ou a situação se
altera, de uma em que as associações faltam para outra em que elas estão sendo
retidas. À primeira vista, parece ser uma imensa desvantagem, para a
psicanálise como método, que aquilo que alhures constitui o fator mais forte no
sentido do sucesso nela se transforme no mais poderoso meio de resistência.
Contudo, se examinarmos a situação mais de perto, podemos pelo menos dissipar o
primeiro de nossos dois problemas. Não é fato que a transferência surja com
maior intensidade e ausência de coibição durante a psicanálise que fora dela.
Nas instituições em que doentes dos nervos são tratados de modo não analítico,
podemos observar que a transferência ocorre com a maior intensidade e sob as
formas mais indignas, chegando a nada menos que servidão mental e, ademais,
apresentando o mais claro colorido erótico. Gabriele Reuter, com seus agudos
poderes de observação, descreveu isso em época na qual não havia ainda uma
coisa chamada psicanálise, num livro notável, que revela, sob todos os
aspectos, a mais clara compreensão interna (insight) da natureza e
gênese das neuroses. Essas características da transferência, portanto, não
devem ser atribuídas à psicanálise, mas sim à própria neurose.
Nosso segundo problema - o problema de saber
por que a transferência aparece na psicanálise como resistência - está por
enquanto intacto; e temos agora de abordá-lo mais de perto. Figuremos a
situação psicológica durante o tratamento. Uma precondição invariável e
indispensável de todo desencadeamento de uma psiconeurose é o processo a
que Jung deu o nome apropriado de ‘introversão’. Isto equivale a dizer: a parte
da libido que é capaz de se tornar consciente e se acha dirigida para a
realidade é diminuída, e a parte que se dirige para longe da realidade e
é inconsciente, e que, embora possa ainda alimentar as fantasias do indivíduo,
pertence todavia ao inconsciente, é proporcionalmente aumentada. A libido
(inteiramente ou em parte) entrou num curso regressivo e reviveu as imagos
infantis do indivíduo. O tratamento analítico então passa a segui-la; ele
procura rastrear a libido, torná-la acessível à consciência e, enfim, útil à
realidade. No ponto em que as investigações da análise deparam com a libido
retirada em seu esconderijo, está fadado a irromper um combate; todas as forças
que fizeram a libido regredir se erguerão como ‘resistências’ ao trabalho da
análise, a fim de conservar o novo estado de coisas. Pois, se a introversão ou
regressão da libido não houvesse sido justificada por uma relação específica
entre o indivíduo e o mundo externo - enunciado, em termos mais gerais, pela
frustração da satisfação - e se não se tivesse, no momento, tornado mesmo
conveniente, não teria absolutamente ocorrido. Mas as resistências oriundas
desta fonte não são as únicas ou, em verdade, as mais poderosas. A libido à
disposição da personalidade do indivíduo esteve sempre sob a influência da
atração de seus complexos inconscientes (ou mais corretamente, das partes desse
complexos pertencentes ao inconsciente), e encontrou num curso regressivo
devido ao fato de a atração da realidade haver diminuído. A fim de liberá-la,
esta atração do inconsciente tem de ser superada, isto é, a repressão dos
instintos inconscientes e de suas produções, que entrementes estabeleceu no
indivíduo, deve ser removida. Isto é responsável, de longe, pela maior parte da
resistência, que tão amiúde faz a doença persistir mesmo após o afastamento da
realidade haver perdido sua justificação temporária. A análise tem de lutar
contra as resistências oriundas de ambas essas fontes. A resistência acompanha
o tratamento passo a passo. Cada associação isolada, cada ato da pessoa em
tratamento tem de levar em conta a resistência e representa uma conciliação
entre as forças que estão lutando no sentido do restabelecimento e as que se
lhe opõem, já descritas por mim.
Se acompanharmos agora um complexo patogênico
desde sua representação no consciente (seja ele óbvio, sob a forma de um
sintoma, ou algo inteiramente indiscernível) até sua raiz no inconsciente, logo
ingressaremos numa região em que a resistência se faz sentir tão claramente que
a associação seguinte tem de levá-la em conta a aparecer como uma conciliação
entre suas exigências e as do trabalho de investigação. É neste ponto, segundo
prova nossa experiência, que a transferência entra em cena. Quando algo no
material complexivo (no tema geral do complexo) serve para ser transferido para
a figura do médico, essa transferência é realizada; ela produz a associação
seguinte e se anuncia por sinais de resistências - por uma interrupção, por
exemplo. Inferimos desta experiência que a idéia transferencial penetrou na
consciência à frente de quaisquer outras associações possíveis, porque
ela satisfaz a resistência. Um evento deste tipo se repete inúmeras vezes no
decurso de um análise. Reiteradamente, quando nos aproximamos de um complexo
patogênico, a parte desse complexo capaz de transferência é empurrada em
primeiro lugar para a consciência e defendida com a maior obstinação.
Depois que ela for vencida, a superação das
outras partes do complexo quase não apresenta novas dificuldades. Quanto mais
um tratamento analítico demora e mais claramente o paciente se dá conta de que
as deformações do material patogênico não podem, por si próprias, oferecer
qualquer proteção contra sua revelação, mais sistematicamente faz ela uso de um
tipo de deformação que obviamente lhe concede as maiores vantagens - a deformação
mediante a transferência. Essas circunstâncias tendem para uma situação na
qual, finalmente, todo conflito tem de ser combatido na esfera da
transferência.
Assim, a transferência, no tratamento
analítico, invariavelmente nos aparece, desde o início, como a arma mais forte
da resistência, e podemosconcluir que a intensidade e persistência da
transferência constituem efeito e expressão da resistência. Ocupamo-nos do mecanismo
da transferência, é verdade, quando o remontamos ao estado de prontidão da
libido, que conservou imagos infantis, mas o papel que a transferência
desempenha no tratamento só pode ser explicado se entrarmos na consideração de
suas relações com as resistências.
Como é possível que a transferência sirva tão
admiravelmente de meio de resistência? Poder-se-ia pensar que a resposta possa
ser fornecida sem dificuldade, pois é claro que se torna particularmente
difícil de admitir qualquer impulso proscrito de desejo, se ele tem de ser
revelado diante desse tipo dá origem a situações que, no mundo real, mal
parecem possíveis. Mas é precisamente a isso que o paciente visa, quando faz o
objeto de seus impulsos emocionais coincidir com o médico. Uma nova
consideração, no entanto, mostra que essa vitória aparente não pode fornecer a
solução do problema. Na verdade, uma relação de dependência afetuosa e dedicada
pode, pelo contrário, ajudar uma pessoa a superar todas as dificuldades de
fazer uma confissão. Em situações reais análogas, as pessoas geralmente dirão:
‘Na sua frente, não sinto vergonha: posso dizer-lhe qualquer coisa.’ Assim, a
transferência para o médico poderia, de modo igualmente simples, servir para facilitar
as confissões, e não fica claro por que deve tornar as coisas mais difíceis.
A resposta à questão que foi tão amiúde repetida
nestas páginas não pode ser alcançada por nova reflexão, mas pelo que
descobrimos quando examinamos resistências transferenciais particulares que
ocorrem durante o tratamento. Percebemos afinal que não podemos compreender o
emprego da transferência como resistência enquanto pensarmos simplesmente em
‘transferência’. Temos de nos resolver a distinguir uma transferência
‘positiva’ de uma ‘negativa’, a transferência de sentimentos afetuosos da dos
hostis e tratar separadamente os dois tipos de transferência para o médico. A
transferência positiva é ainda divisível em transferência de sentimentos
amistosos ou afetuosos, que são admissíveis à consciência, e transferência de
prolongamentos desses sentimentos no inconsciente. Com referência aos últimos,
a análise demonstra que invariavelmente remontam a fontes eróticas. E somos
assim levados à descoberta de que todas as relações emocionais de simpatia,
amizade, confiança e similares, das quais podemos tirar bom proveito em nossas
vidas, acham-se geneticamente vinculadas à sexualidade e se desenvolveram a
partir de desejos puramente sexuais, através da suavização de seu objetivo
sexual, por mais puros e não sensuais que possam parecer à nossa autopercepção
consciente. Originalmente, conhecemos apenas objetos sexuais, e a psicanálise
demonstra-nos que pessoas que em nossa vida real são simplesmente admiradas ou
respeitadas podem ainda ser objetos sexuais para nosso inconsciente.
Assim, a solução do enigma é que a
transferência para o médico é apropriada para a resistência ao tratamento
apenas na medida em que se tratar de transferência negativa ou de transferência
positiva de impulsos eróticos reprimidos. Se “removermos’ a transferência por
torná-la consciente, estamos desligando apenas, da pessoa do médico, aqueles dois
componentes do ato emocional; o outro componente, admissível à consciência e
irrepreensível, persiste, constituindo o veículo de sucesso na psicanálise,
exatamente como o é em outros métodos de tratamento. Até este ponto admitimos
prontamente que os resultados da psicanálise baseiam-se na sugestão; por esta,
contudo, devemos entender, como o faz Ferenczi (1909), a influenciação de uma
pessoa por meio dos fenômenos transferenciais possíveis em seu caso. Cuidamos
da independência final do paciente pelo emprego da sugestão, a fim de fazê-lo
realizar um trabalho psíquico que resulta necessariamente numa melhora
constante de sua situação psíquica.
Pode-se levantar ainda a questão de saber por
que os fenômenos de resistência da transferência só aparecem na psicanálise e
não em formas indiferentes de tratamento (em instituições, por exemplo). A
resposta é que eles também se apresentam nestas outras situações, mas têm de
ser identificados como tal. A manifestação de uma transferência negativa é, na
realidade, acontecimento muito comum nas instituições. Assim que um paciente
cai sob o domínio da transferência negativa, ele deixa a instituição em estado
inalterado ou agravado. A transferência erótica não possui efeito tão inibidor
nas instituições, visto que nestas, tal como acontece na vida comum, ela é
encoberta ao invés de revelada. Mas se manifesta muito claramente como
resistência ao restabelecimento, não, é verdade, por levar o paciente a sair da
instituição - pelo contrário, retém-no aí - mas por mantê-lo a certa distância
da vida. Pois, do ponto de vista do restabelecimento, é completamente
indiferente que o paciente supere essa ou aquela ansiedade ou inibição na
instituição; o que importa é que ele fique livre dela também na vida real.
A transferência negativa merece exame
pormenorizado, que não pode ser feito dentro dos limites do presente trabalho.
Nas formas curáveis de psiconeurose, ela é encontrada lado a lado com a
transferência afetuosa, amiúde dirigidas simultaneamente para a mesma pessoa.
Bleuler adotou o excelente termo ‘ambivalência’ para descrever este fenômeno.
Até certo ponto, uma ambivalência de sentimento deste tipo parece ser normal;
mas um alto grau dela é, certamente, peculiaridade especial de pessoas
neuróticas. Nos neuróticos obsessivos, uma separação antecipada dos ‘pares de
contrários’ parece ser característica de sua vida instintual e uma de suas
precondições constitucionais. A ambivalência nas tendências emocionais dos
neuróticos é a melhor explicação para sua habilidade em colocar as transferências
a serviço da resistência. Onde a capacidade de transferência tornou-se
essencialmente limitada a uma transferência negativa, como é o caso dos
paranóicos, deixa de haver qualquer possibilidade de influência ou cura.
Em todas estas reflexões, porém, lidamos até
agora com apenas um dos lados do fenômeno da transferência; temos de voltar
nossa atenção para outro aspecto do mesmo assunto. Todo aquele que faça uma
apreciação correta da maneira pela qual uma pessoa em análise, assim que entra
sob o domínio de qualquer resistência transferencial considerável, é
arremessada para fora de sua relação real com o médico, como se sente então em
liberdade para desprezar a regra fundamental da psicanálise, que estabelece que
tudo que lhe venha à cabeça deve ser comunicado sem crítica, como esquece as
intenções com que iniciou o tratamento, e como encara com indiferença
argumentos e conclusões lógicas que, apenas pouco tempo antes, lhe haviam
causado grande impressão - todo aquele que tenha observado tudo isso achará
necessário procurar uma explicação de sua impressão em outros fatores além dos
que já foram aduzidos. E esses fatores não se acham longe; originam-se, mais
uma vez, da situação psicológica em que o tratamento coloca o paciente.
No processo de procurar a libido que fugira do
consciente do paciente, penetramos no reino do inconsciente. As reações que
provocamos revelam, ao mesmo tempo, algumas das características que viemos a
conhecer a partir do estudo dos sonhos. Os impulsos inconscientes não desejam
ser recordados da maneira pela qual o tratamento quer que o sejam, mas
esforçam-se por reproduzir-se de acordo com a atemporalidade do inconsciente e
sua capacidade de alucinação. Tal como acontece aos sonhos, o paciente encara
os produtos do despertar de seus impulsos inconscientes como contemporâneos e
reais; procura colocar suas paixões em ação sem levar em conta a situação real.
O médico tenta compeli-lo a ajustar esses impulsos emocionais ao nexo do
tratamento e da história de sua vida, a submetê-los à consideração intelectual
e a compreendê-los à luz de seu valor psíquico. Esta luta entre o médico e o
paciente, entre o intelecto e a vida instintual, entre a compreensão e a
procura da ação, é travada, quase exclusivamente, nos fenômenos da transferência.
É nesse campo que a vitória tem de ser conquistada - vitória cuja expressão é a
cura permanente da neurose. Não se discute que controlar os fenômenos da
transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não
se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o inestimável
serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e
esquecidos do paciente. Pois, quando tudo está dito e feito, é impossível
destruir alguém in absentia ou in effligie.
RECOMENDAÇÕES AOS MÉDICOS QUE EXERCEM A PSICANÁLISE (1912)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
RATSCHLÄGE FÜR DEN ARZT BEI DER
PSYCHOANALYTISCHEN BEHANDLUNG
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1912 Zbl. Psychoan., 2 (9), 483-9.
1918
S. K. S. N., 4, 399-411. (1922, 2ª ed.)
1924
Technik und Metapsychol., 64-75.
1925
G. S., 6, 64-75.
1931
Neurosenlehre und Technik, 340-51.
1943 G. W., 8, 376-87.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Recommendations
for Physicians on the Psycho-AnalyticMethod of Treatment’
1924 C. P., 2, 323-33. (Trad. de Joan Riviere)
A presente tradução inglesa, com o título
alterado, constitui versão modificada da publicada em 1924.
Este artigo apareceu pela primeira vez em junho
de 1912.
RECOMENDAÇÕES AOS MÉDICOS QUE EXERCEM A PSICANÁLISE
As regras técnicas que estou apresentando aqui
alcancei-as por minha própria experiência, no decurso de muitos anos, após
resultados pouco afortunados me haverem levado a abandonar outros métodos.
Ver-se-á facilmente que elas (ou, pelo menos, muitas delas) podem ser resumidas
num preceito único [cf. em [1]]. Minha esperança é que a observação delas poupe
aos médicos que exercem a psicanálise muito esforço desnecessário e
resguarde-os contra algumas inadvertências. Devo, contudo, tornar claro que o
que estou asseverando é que esta técnica é a única apropriada à minha
individualidade; não me arrisco a negar que um médico constituído de modo
inteiramente diferente possa ver-se levado a adotar atitude diferente em
relação a seus pacientes e à tarefa que se lhe apresenta.
(a) O primeiro problema com que se
defronta o analista que está tratando mais de um paciente por dia lhe parecerá
o mais árduo. Trata-se da tarefa de lembrar-se de todos os inumeráveis nomes,
datas, lembranças, pormenorizadas e produtos patológicos que cada paciente
comunica no decurso de meses e anos de tratamento, e de não confundi-los com
material semelhante produzido por outros pacientes em tratamento, simultânea ou
previamente. Se nos é exigido analisar seis, oito ou mesmo mais pacientes
diariamente, o esforço de memória que isto implica provocará incredulidade,
espanto ou até mesmo comiseração em observadores pouco informados. De qualquer
modo, sentir-se-á curiosidade pela técnica que torna possível dominar tal
abundância de material, e a expectativa será de que alguns expedientes
especiais sejam exigidos para esse fim.
A técnica, contudo, é muito simples. Como se
verá, ela rejeita o emprego de qualquer expediente especial (mesmo de tomar
notas). Consiste simplesmente em não dirigir o reparo para algo específico e em
manter a mesma ‘atenção uniformemente suspensa’ (como a denominei) em face de
tudo o que se escuta. Desta maneira, poupamos de esforço violento nossa
atenção, a qual, de qualquer modo, não poderia ser mantida por várias horas
diariamente, e evitamos um perigo que é inseparável do exercício da atenção
deliberada. Pois assim que alguém deliberadamente concentra bastante a atenção,
começa a selecionar o material que lhe é apresentado; um ponto fixar-se-á em
sua mente com clareza particular e algum outro será, correspondentemente,
negligenciado, e, ao fazer essa seleção, estará seguindo suas expectativas ou
inclinações. Isto, contudo, é exatamente o que não deve ser feito. Ao efetuar a
seleção, se seguir suas expectativas, estará arriscado a nunca descobrir nada
além do que já sabe; e, se seguir as inclinações, certamente falsificará o que
possa perceber. Não se deve esquecer que o que se escuta, na maioria, são
coisas cujo significado só é identificado posteriormente.
Ver-se-á que a regra de prestar igual reparo a
tudo constitui a contrapartida necessária da exigência feita ao paciente, de
que comunique tudo o que lhe ocorre, sem crítica ou seleção. Se o médico se
comportar de outro modo, estará jogando fora a maior parte da vantagem que
resulta de o paciente obedecer à ‘regra fundamental da psicanálise’. A regra
para o médico pode ser assim expressa: ‘Ele deve conter todas as influências
conscientes da sua capacidade de prestar atenção e abandonar-se inteiramente à
‘memória inconsciente”.’ Ou, para dizê-lo puramente em termos técnicos: ‘Ele
deve simplesmente escutar e não se preocupar se está se lembrando de alguma
coisa.’
O que se consegue desta maneira será suficiente
para todas as exigências durante o tratamento. Aqueles elementos do material
que já formam um texto coerente ficarão à disposição consciente do médico; o
resto, ainda desconexo e em desordem caótica, parece a princípio estar
submerso, mas vem rapidamente à lembrança assim que o paciente traz à baila
algo de novo, a que se pode relacionar e pelo qual pode ser continuado. O
cumprimento imerecido de ter ‘uma memória excepcionalmente boa’, que o paciente
nos presta quando reproduzimos algum pormenor após mais de ano, pode então ser
aceito com um sorriso, enquanto que uma determinação consciente de relembrar o
assunto provavelmente teria resultado em fracasso.
Equívocos neste processo de recordação ocorrem
apenas em ocasiões e lugares em que nos achamos perturbados por alguma
consideração pessoal (ver em [1]) - isto é, quando se caiu seriamente abaixo do
padrão de um analista ideal. Confusão com material trazido por outros pacientes
muito raramente ocorre. Quando há uma discussão com o paciente quanto a se ou
como ele disse alguma coisa específica, o médico geralmente está com a razão.
(b) Não posso aconselhar a tomada de
notas integrais, a manutenção de um registro estenográfico etc., durante as
sessões analíticas. À parte a impressão desfavorável que isto causa em certos
pacientes, as mesmas considerações que foram apresentadas com referência à atenção
aplicam-se também aqui. Far-se-á necessariamente uma seleção prejudicial do
material enquanto se escrevem ou se taquigrafam as notas, e parte de nossa
própria atividade mental acha-se dessa maneira presa, quando seria mais bem
empregada na interpretação do que se ouviu. Nenhuma objeção pode ser levantada
a fazerem-se exceções a esta regra no caso de datas, texto de sonhos, ou
eventos específicos dignos de nota, que podem ser facilmente desligados de seu
contexto e são apropriados para uso independente, como exemplos. Mas tampouco
tenho o hábito de fazer isto. Quanto aos exemplos, anoto-os, de memória, à
noite, após o trabalho se encerrar; quanto aos textos de sonhos a que dou
importância, faço o paciente repeti-los, após havê-los relatado, de maneira a
que eu possa fixá-los na mente.
(c) Tomar notas durante a sessão com o
paciente poderia ser justificado pela intenção de publicar um estudo científico
do caso. Em fundamentos gerais, isto dificilmente pode ser negado. Não
obstante, deve-se ter em mente que relatórios exatos de histórias clínicas
analíticas são de menor valor do que se poderia esperar. Estritamente falando,
possuem apenas a exatidão ostensiva de que a psiquiatria ‘moderna’
fornece-nos alguns exemplos marcantes. São, via de regra, fatigantes para o
leitor e ainda não conseguem substituir sua presença concreta em uma análise. A
experiência invariavelmente demonstra que, se os leitores estão dispostos a
acreditar num analista, terão confiança em qualquer revisão ligeira a que ele
tenha submetido o material; se, por outro lado, não estão dispostos a levar a
sério análise e analista, tampouco prestarão atenção a acurados registros
literais do tratamento. Não é esta, segundo parece, a maneira de remediar a
falta de provas convincentes em relatórios psicanalíticos.
(d) Uma das reivindicações da
psicanálise em seu favor é indubitavelmente, o fato de que, em sua execução,
pesquisa e tratamento coincidem; não obstante, após certo ponto, a técnica
exigida por uma opõe-se à requerida pelo outro. Não é bom trabalhar
cientificamente num caso enquanto o tratamento ainda está continuando - reunir
sua estrutura, tentar predizer seu progresso futuro e obter, de tempos em
tempos, um quadro do estado atual das coisas, como o interesse científico
exigiria. Casos que são dedicados, desde o princípio, a propósitos científicos,
e assim tratados, sofrem em seu resultado; enquanto os casos mais bem sucedidos
são aqueles em que se avança, por assim dizer, sem qualquer intuito em vista,
em que se permite ser tomado de surpresa por qualquer nova reviravolta neles, e
sempre se o enfrenta com liberalidade, sem quaisquer pressuposições. A conduta
correta para um analista reside em oscilar, de acordo com a necessidade, de uma
atitude mental para outra, em evitar especulação ou meditação sobre os casos,
enquanto eles estão em análise, e em somente submeter o material obtido a um
processo sintético de pensamento após a análise ter sido concluída. A distinção
entre as duas atitudes seria sem sentido se já possuíssemos todo o conhecimento
(ou, pelo menos, o conhecimento essencial) sobre a psicologia do inconsciente e
a estrutura das neuroses que podemos obter do trabalho psicanalítico.
Atualmente, ainda nos achamos longe desse objetivo e não devemos cercear-nos a
possibilidade de conferir o que já sabemos e ampliar mais nosso conhecimento.
(e) Não posso aconselhar insistentemente
demais os meus colegas a tomarem como modelo, durante o tratamento
psicanalítico, o cirurgião, que põe de lado todos os sentimentos, até mesmo a
solidariedade humana, e concentra suas forças mentais no objetivo único de
realizar a operação tão competentemente quanto possível. Nas condições atuais,
o sentimento mais perigoso para um psicanalista é a ambição terapêutica de
alcançar, mediante este método novo e muito discutido, algo que produza efeito
convincente sobre outras pessoas. Isto não apenas o colocará num estado de
espírito desfavorável para o trabalho, mas torna-lo-á impotente contra certas
resistências do paciente, cujo restabelecimento, como sabemos, depende
primordialmente da ação recíproca de forças nele. A justificativa para exigir
essa frieza emocional no analista é que ela cria condições mais vantajosas para
ambas as partes: para o médico, uma proteção desejável para sua própria vida
emocional, e, para o paciente, o maior auxílio que lhe podemos hoje dar. Um
cirurgião dos tempos antigos tomou como divisa as palavras: ‘Je le pansai, Dieu
le guérit.’ O analista deveria contentar-se com algo semelhante.
(f) É fácil perceber para que objetivo
as diferentes regras que apresentei convergem. [Ver em [1].] Todas elas se
destinam a criar, para o médico, uma contrapartida à ‘regra fundamental da
psicanálise’ estabelecida para o paciente. Assim como o paciente deve relatar
tudo o que sua auto-observação possa detectar, e impedir todas as objeções
lógicas e afetivas que procuram induzi-lo a fazer uma seleção dentre elas,
também o médico deve colocar-se em posição de fazer uso de tudo o que lhe é
dito para fins de interpretação e identificar o material inconsciente oculto,
sem substituir sua própria censura pela seleção de que o paciente abriu mão.
Para melhor formulá-lo: ele deve voltar seu próprio inconsciente, como um órgão
receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente. Deve ajustar-se
ao paciente como um receptor telefônico se ajusta ao microfone transmissor.
Assim como o receptor transforma de novo em ondas sonoras as oscilações
elétricas na linha telefônica, que foram criadas por ondas sonoras, da mesma
maneira o inconsciente do médico é capaz, a partir dos derivados do
inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse inconsciente, que
determinou as associações livres do paciente.
Mas se o médico quiser estar em posição de
utilizar seu inconsciente desse modo, como instrumento da análise, deve ele
próprio preencher determinada condução psicológica em alto grau. Ele não pode
tolerar quaisquer resistências em si próprio que ocultem de sua consciência o
que foi percebido pelo inconsciente; doutra maneira, introduziria na análise
nova espécie de seleção e deformação que seria muito mais prejudicial que a
resultante da concentração da atenção consciente. Não basta para isto que ele
próprio seja uma pessoa aproximadamente normal. Deve-se insistir, antes, que
tenha passado por uma purificação psicanalítica e ficado ciente daqueles
complexos seus que poderiam interferir na compreensão do que o paciente lhe
diz. Não pode haver dúvida sobre o efeito desqualificante de tais defeitos no
médico; toda repressão não solucionada nele constitui o que foi apropriadamente
descrito por Stekel como um ‘ponto cego’ em sua percepção analítica.
Há alguns anos, dei como resposta à pergunta de
como alguém se pode tornar analista: ‘Pela análise dos próprios sonhos’ Esta
preparação, fora de dúvida, é suficiente para muitas pessoas, mas não para
todos que desejam aprender análise. Nem pode todo mundo conseguir interpretar
seus próprios sonhos sem auxílio externo. Enumero como um dos muitos méritos da
escola de análise de Zurique terem eles dado ênfase aumentada a este requisito,
e terem-no corporificado na exigência de que todos que desejem efetuar análise
em outras pessoas terão primeiramente de ser analisados por alguém com
conhecimento técnico. Todo aquele que tome o trabalho a sério deve escolher
este curso, que oferece mais de uma vantagem; o sacrifício que implica
revelar-se a outra pessoa, sem ser levado a isso pela doença, é amplamente
recompensado. Não apenas o objetivo de aprender a saber o que se acha oculto na
própria mente é muito mais rapidamente atingido, e com menos dispêndio de
afeto, mas obter-se-ão, em relação a si próprio, impressões e convicções que em
vão seriam buscadas no estudo de livro e na assistência a palestras. E, por
fim, não devemos subestimar a vantagem que deriva do contato mental duradouro
que, via de regra, se estabelece entre o estudioso e seu guia.
Uma análise como esta, de alguém particamente
sadio, permanecerá incompleta, como se pode imaginar. Todo aquele que possa
apreciar o alto valor do autoconhecimento e aumento de autocontrole assim
adquiridos continuará, quando ela terminar, o exame analítico de sua
personalidade sob a forma de auto-análise, e ficará contente em compreender
que, tanto dentro de si quanto no mundo externo, deve sempre esperar descobrir
algo de novo. Mas quem não se tiver dignado tomar a precaução de ser analisado
não só será punido por ser incapaz de aprender um pouco mais em relação a seus
pacientes, mas correrá também perigo mais sério, que pode se tornar perigo
também para os outros. Cairá facilmente na tentação de projetar para fora
algumas das peculiaridades de sua própria personalidade, que indistintamente
percebeu, no campo da ciência, como uma teoria de validade universal; levará o
método psicanalítico ao descrédito e desencaminhará os inexperientes.
(g) Acrescentarei agora algumas outras
regras, que servirão como uma transição da atitude do médico para o tratamento
do paciente.
Os psicanalistas jovens e ávidos
indubitavelmente ficarão tentados a colocar sua própria individualidade
livremente no debate, a fim de levar o paciente com eles e de erguê-lo sobre as
barreiras de sua própria personalidade limitada. Poder-se-ia esperar que seria
inteiramente permissível e, na verdade, útil, com vistas a superar as
resistências do paciente, conceder-lhe o médico um vislumbre de seus próprios
defeitos e conflitos mentais e, fornecendo-lhe informações íntimas sobre sua
própria vida, capacitá-lo a pôr-se ele próprio, paciente, em pé de igualdade.
Uma confidência merece outra e todo aquele que exige intimidade de outra pessoa
deve estar preparado para retribuí-la.
Mas nas relações psicanalíticas as coisas
amiúde acontecem de modo diferente do que a psicologia da consciência poderia
levar-nos a esperar. A experiência não fala em favor de uma técnica afetiva
deste tipo. Tampouco é difícil perceber que ela envolve um afastamento dos
princípios psicanalíticos e beira o tratamento por sugestão. Ela pode induzir o
paciente a apresentar mais cedo, e com menos dificuldade, coisas que já
conhece, mas que, de outra maneira, esconderia por certo tempo, mediante as
resistências convencionais. Mas esta técnica não consegue nada no sentido de
revelar o que é inconsciente ao paciente. Torna-o ainda mais incapaz de superar
suas resistências mais profundas e, em casos mais graves, invariavelmente
fracassa, por incentivar o paciente a ser insaciável: ele gostaria de inverter
a situação, e acha a análise do médico mais interessante que a sua. A solução
da transferência, também - uma das tarefas principais do tratamento -, é
dificultada por uma atitude íntima por parte do médico, de maneira que qualquer
proveito que possa haver no princípio é mais que superado ao final. Não hesito,
portanto, em condenar este tipo de técnica como incorreto. O médico deve ser
opaco aos seus pacientes e, como um espelho, não mostrar-lhes nada, exceto o
que lhe é mostrado. Na prática, é verdade, nada se pode dizer contra um
psicoterapeuta que combine uma certa quantidade de análise com alguma
influência sugestiva, a fim de chegar a um resultado perceptível em tempo mais
curto - tal como é necessário, por exemplo, nas instituições. Mas é lícito
insistir em que ele próprio não se ache em dúvida quanto ao que está fazendo e
saiba que o seu método não é o da verdadeira psicanálise.
(h) Outra tentação surge da atividade educativa
que, no tratamento psicanalítico, incumbe ao médico, sem qualquer intenção
deliberada de sua parte. Quando as inibições evolucionárias estão solucionadas,
acontece, espontaneamente, que o médico se encontra na posição de indicar novos
objetivos para as inclinações que foram liberadas. Não é, então, nada mais que
ambição natural que ele se esforce por transformar em especialmente excelente
uma pessoa que ele lutou para livrar da neurose, e que determine altos
propósitos para seus desejos. Mas novamente aqui o médico deve controlar-se e
guiar-se pelas capacidades do paciente em vez de por seus próprios desejos. Nem
todo neurótico possui grande talento para sublimação; pode-se presumir que
muitos deles de modo algum teriam caído enfermos se possuíssem a arte de
sublimar seus instintos. Se os pressionarmos indevidamente no sentido da
sublimação e lhes cercearmos as satisfações instintuais mais acessíveis e
convenientes, geralmente tornar-lhe-emos a vida ainda mais árdua do que a
sentem ser, de qualquer modo. Como médico, tem-se acima de tudo de ser
tolerante com a fraqueza do paciente, e contentar-se em ter reconquistado certo
grau de capacidade de trabalho e divertimento para uma pessoa mesmo de valor
apenas moderado. A ambição educativa é de tão pouca utilidade quanto a ambição
terapêutica. Deve-se, ademais, manter em mente que muitas pessoas caem enfermas
exatamente devido à tentativa de sublimar os seus instintos além do grau
permitido por sua organização e que, naqueles que possuem capacidade de sublimação,
o processo geralmente se dá espontaneamente, assim que as suas inibições são
superadas pela análise. Em minha opinião, portanto, invariavelmente, esforços
no sentido de usar o tratamento analítico para ocasionar a sublimação do
instinto - embora, fora de dúvida, sempre louváveis - estão longe de ser
aconselháveis em todos os casos.
(i) Até que ponto deve-se buscar a
cooperação intelectual do paciente no tratamento? É difícil dizer algo de
aplicabilidade geral sobre este ponto: a personalidade do paciente é o fator
determinante. Em todos os casos, porém, cautela e autodomínio devem ser
observados a este respeito. É errado determinar tarefas ao paciente, tais como
coligir suas lembranças ou pensar sobre um período específico de sua vida. Pelo
contrário, ele tem de aprender, acima de tudo - o que nunca acontece facilmente
com alguém -, que atividades mentais, tais como refletir sobre algo ou
concentrar a atenção, não solucionam nenhum dos enigmas de uma neurose; isto só
pode ser efetuado ao se obedecer pacientemente à regra psicanalítica, que impõe
a exclusão de toda crítica do inconsciente ou de seus derivados. Deve-se ser
especialmente inflexível a respeito da obediência a essa regra com pacientes
que praticam a arte de desviar-se para o debate intelectual durante o
tratamento, que teorizam muito e com freqüência muito sabiamente sobre o seu
estado e, dessa maneira, evitam fazer algo para superá-lo. Por esta razão, não
gosto de utilizar-me de escritos analíticos como assistência a meus pacientes;
exijo que aprendam por experiência pessoal e asseguro-lhes que adquirirão
conhecimento mais amplo e valioso do que toda a literatura da psicanálise
poderia transmitir-lhes. Todavia, reconheço que, em condições institucionais,
pode ser de grande vantagem empregar a leitura como preparação para pacientes
em análise e como meio de criar uma atmosfera de influência.
Devo fazer a mais séria advertência contra
qualquer tentativa de conquistar a confiança ou apoio de pais ou parentes
dando-lhes livros psicanalíticos para ler, de natureza introdutória ou
avançada. Esta medida bem intencionada geralmente tem o efeito de fazer surgir
prematuramente a oposição natural dos parentes ao tratamento - oposição fadada
a aparecer, mais cedo ou mais tarde - de maneira que o tratamento nunca é
sequer iniciado.
Permitam-me expressar a esperança de que a
experiência crescente da psicanálise cedo conduza à concordância sobre questões
de técnica e sobre o método mais eficaz de tratar os pacientes neuróticos. Com
referência ao tratamento de seus parentes, tenho de confessar-me inteiramente
perplexo e, em geral, deposito pouca fé no seu tratamento individual.
SOBRE O INÍCIO DO TRATAMENTO (NOVAS RECOMENDAÇÕES SOBRE A TÉCNICA DA
PSICANÁLISE I ) (1913)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ZUR EINLEITUNG DER BEHANDLUNG
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1913 Int. Z. Psychoanal., 1 (1), 1-10 e (2),
139-46.
1918
S. K. S. N., 4, 412-40. (1922, 2ª ed.)
1924
Technik und Metapsychol., 84-108.
1925
G. S., 6, 84-108.
1931
Neurosenlehre und Technik, 359-85.
1943 G. W., 8, 454-78.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Further
Recommendations in the Technique of Psycho-Analysis: On Beginning the
Treatment. The Question of the First Communications. The Dynamics of the Cure’
1924 C. P., 2, 342-65. (Trad. de Joan Riviere.)
A presente tradução inglesa, com o título
alterado, é versão modificada da publicada em 1924.
Este artigo foi publicado em duas partes, em
janeiro e março de 1913. A primeira parte, terminando com as palavras ‘com que material
deve o tratamento começar?’ (ver em [1]), tinha o título de ‘Weitere Ratschläge
zur Technik der Psychoanalyse: I. Zur Einleitung der Behandlung’. A segunda
tinha o mesmo título, mas com as palavras adicionais: ‘- Die Frage der ersten
Mitteilungen - Die Dynamik der Heilung’. Este título completo é o traduzido na
primeira versão inglesa, tal como fornecido acima. Todas as edições alemãs, de
1924 em diante, adotaram o título curto ‘Zur Einleitung der Behandlung’, sem
quaisquer acréscimos. Na opinião original do autor (como é demonstrado por seu
manuscrito), o artigo dividia-se em três seções, correspondentes ao título. A
primeira destas, ‘Sobre o Início do Tratamento’, termina em [1]; a segunda, ‘A
Questão das Primeiras Comunicações’, em [2], onde a terceira, ‘A Dinâmica da
Cura’, começa.
SOBRE O INÍCIO DO TRATAMENTO (NOVAS RECOMENDAÇÕES
SOBRE A TÉCNICA DA PSICANÁLISE I)
Todo aquele que espera aprender o nobre jogo de
xadrez nos livros, cedo descobrirá que somente as aberturas e os finais de
jogos admitem uma apresentação sistemática exaustiva e que a infinita variedade
de jogadas que se desenvolvem após a abertura desafia qualquer descrição desse
tipo. Esta lacuna na instrução só pode ser preenchida por um estudo diligente
dos jogos travados pelos mestres. As regras que podem ser estabelecidas para o
exercício do tratamento psicanalítico acham-se sujeitas a limitações
semelhantes.
No que segue, esforçar-me-ei por reunir, para
uso de psicanalistas militantes, algumas das regras para o início do
tratamento. Entre elas estão algumas que podem parecer pormenores
insignificantes, como na verdade são. Sua justificativa é serem simplesmente
regras que adquirem importância por sua relação com o plano geral do jogo.
Penso estar sendo prudente, contudo, em chamar estas regras de ‘recomendações’
e não reivindicar qualquer aceitação incondicional para elas. A extraordinária
diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os
processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer
mecanização da técnica; e ocasionam que um curso de ação que, via de regra, é
justificado possa, às vezes, mostrar-se ineficaz, enquanto outro que
habitualmente é errôneo possa, de vez em quando, conduzir ao fim desejado.
Estas circunstâncias, contudo, não nos impedem de estabelecer para o médico um
procedimento que, em média, é eficaz.
Há alguns anos especifiquei as indicações mais
importantes para a seleção de pacientes e, portanto, não as repetirei aqui.
Nesse meio tempo, elas foram aprovadas por outros psicanalistas. Mas posso
acrescentar que desde então tornei hábito meu, quando conheço pouco sobre um
paciente, só aceitá-lo a princípio provisoriamente, por um período de uma ou
duas semanas. Se se interrompe o tratamento dentro deste período, poupa-se ao
paciente a impressão aflitiva de uma tentativa de cura que falhou. Esteve-se
apenas empreendendo uma ‘sondagem’, a fim de conhecer o caso e decidir se ele é
apropriado para a psicanálise. Nenhum outro tipo de exame preliminar, exceto
este procedimento, encontra-se à nossa disposição; os mais extensos debates e
questionamentos, em consultas comuns, não lhe ofereceriam substituto. Este
experimento preliminar, contudo, é, ele próprio, o início de uma psicanálise e
deve conformar-se às regras desta. Pode-se talvez fazer a distinção de que,
nele, se deixa o paciente falar quase todo o tempo e não se explica nada mais
do que o absolutamente necessário para fazê-lo prosseguir no que está dizendo.
Existem também razões diagnósticas para começar
o tratamento por um período de experiência deste tipo, a durar uma ou duas
semanas. Com bastante freqüência, quando se vê uma neurose com sintomas
histéricos ou obsessivos, que não é excessivamente acentuada e não existe há
muito tempo - isto é, exatamente o tipo de caso que se consideraria apropriado
para tratamento - tem-se de levar em conta a possibilidade de que ela possa ser
um estádio preliminar do que é conhecido por demência precoce (‘esquizofrenia’,
na terminologia de Bleuler; ‘parafrenia’, como propus chamá-la) e que, mais
cedo ou mais tarde, apresentará um quadro bem pronunciado dessa afecção. Não
concordo que seja sempre possível fazer a distinção tão facilmente. Estou
ciente de que existem psiquiatras que hesitam com menos freqüência em seu
diagnóstico diferencial, mas convenci-me de que, com a mesma freqüência,
cometem equívocos. Cometer um equívoco, além disso, é de muito mais gravidade
para o psicanalista que para o psiquiatra clínico, como este é chamado, pois o
último não está tentando fazer algo que seja de utilidade, seja qual for o tipo
de caso. Ele simplesmente corre o risco de cometer um equívoco teórico e seu
diagnóstico não tem mais que um interesse acadêmico. No que concerne ao
psicanalista, contudo, se o caso é desfavorável, ele cometeu um erro prático;
foi responsável por despesas desnecessárias e desacreditou o seu método de
tratamento. Ele não pode cumprir sua promessa de cura se o paciente está
sofrendo, não de histeria ou neurose obsessiva, mas de parafrenia, e, portanto,
tem motivos particularmente fortes para evitar cometer equívocos no
diagnóstico. Num tratamento experimental de algumas semanas, ele amiúde
observará sinais suspeitos que possam determiná-lo a não levar além a
tentativa. Infelizmente, não posso asseverar que uma tentativa deste tipo
sempre nos capacite a chegar à decisão certa; trata-se apenas de uma sábia
precaução a mais.
Longos debates preliminares antes do início do
tratamento analítico, tratamento prévio por outro método e também conhecimento
anterior entre o médico e o paciente que deve ser analisado, têm conseqüências
desvantajosas especiais, para as quais se tem de estar preparado. Elas resultam
em o paciente encontrar o médico com uma atitude transferencial já estabelecida
e que o médico deve, em primeiro lugar, revelar lentamente, em vez de ter a
oportunidade de observar o crescimento e o desenvolvimento da transferência
desde o início. Desta maneira, o paciente obtém sobre nós uma dianteira
temporária, que não lhe concederíamos voluntariamente no tratamento.
Deve-se desconfiar de todos os pacientes em
perspectiva que querem esperar um pouco antes de começar o tratamento. A
experiência demonstra que, quando a ocasião combinada chega, eles deixam de
aparecer, ainda que o motivo para o atraso - isto é, a racionalização de sua
intenção - pareça ao não iniciado acima de qualquer suspeita.
Dificuldades especiais surgem quando o analista
e seu novo paciente, ou suas famílias, acham-se em termos de amizade ou têm
laços sociais um com o outro. O psicanalista chamado a encarregar-se do
tratamento da esposa ou do filho de um amigo deve estar preparado para que isso
lhes custe esta amizade, qualquer que seja o resultado do tratamento; todavia,
terá de fazer o sacrifício, se não puder encontrar um substituto merecedor de
confiança.
Tanto o público leigo quanto os médicos - ainda
prontos a confundir a psicanálise com o tratamento por sugestão - inclinam-se a
atribuir grande importância às expectativas que o paciente traz para o novo
tratamento. Amiúde acreditam, no caso de determinado paciente, que não dará
muito trabalho, pois tem grande confiança na psicanálise e acha-se plenamente
convicto de sua verdade e eficácia; ao passo que, no caso de outro, acham que
ele indubitavelmente mostrará ser mais difícil, por ter uma concepção cética, e
não acreditará em nada até haver experimentado os resultados bem sucedidos em
sua própria pessoa. Todavia, na realidade, esta atitude por parte do paciente
tem muito pouca importância. Sua confiança ou desconfiança inicial é quase
desprezível, comparada às resistências internas que mantêm a neurose firmemente
no lugar. É verdade que a confiança alegre do paciente torna nosso primeiro
relacionamento com ele muito agradável; ficamos-lhe gratos por isso, mas
advertimo-lo de que sua impressão favorável será destruída pela primeira
dificuldade que surgir na análise. Ao cético, dizemos que análise não exige fé,
que ele pode ser tão crítico e desconfiado quanto queira e que não encaramos
sua atitude de modo algum como sendo efeito de seu julgamento, pois ele não se
acha em posição de formar um juízo fidedigno sobre esses assuntos; sua
desconfiança é apenas um sintoma, como os seus outros sintomas, e não
constituirá interferência, desde que conscienciosamente execute o que dele
requer a regra do tratamento.
Ninguém que esteja familiarizado com a natureza
da neurose ficará espantado em ouvir que mesmo um homem que é muito bem capaz
de realizar uma análise em outras pessoas possa comportar-se como qualquer
outro mortal e ser capaz de produzir as mais intensas resistências, assim que
ele próprio se torna objeto da investigação analítica. Quando isto acontece,
somos mais uma vez relembrados da dimensão da profundidade da mente, e não nos
surpreende descobrir que a neurose tem suas raízes em estratos psíquicos nos
quais o conhecimento intelectual da análise não penetrou.
Pontos de importância no início do tratamento
são os acordos quanto a tempo e dinheiro.
Com referência ao tempo, atenho-me estritamente
ao princípio de ceder uma hora determinada. A cada paciente é atribuída uma
hora específica de meu dia de trabalho disponível; pertence a ele que é
responsável por ela, mesmo que não faça uso da mesma. Este acordo, que é aceito
como natural para professores de música ou idiomas na sociedade, pode talvez
parecer rigoroso demais num médico, ou até mesmo indigno de sua profissão.
Tender-se-á a indicar os muitos acidentes que podem impedir o paciente de
comparecer todos os dias à mesma hora e esperar-se-á que sejam levadas em conta
as numerosas indisposições intervenientes que podem ocorrer no decurso de um
tratamento analítico prolongado. A minha resposta, porém, é: nenhuma outra
maneira é praticável. Sob regime menos estrito, as faltas ‘ocasionais’ aumentam
de tal forma que o médico vê sua existência material ameaçada; ao passo que,
quando o acordo é seguido, acontece que impedimentos acidentais não ocorrem de
modo algum, e moléstias intervenientes, apenas de modo muito raro. O analista
quase nunca é colocado em posição de desfrutar de uma hora de lazer pela qual é
pago e da qual se envergonharia; e pode continuar seu trabalho sem
interrupções, sendo-lhe poupada a aflitiva e desconcertante experiência de
descobrir que um intervalo pelo qual não se pode culpar está sempre sujeito a
acontecer exatamente quando o trabalho promete ser especialmente importante e
rico em conteúdo. Nada nos convence tão fortemente da significação do fator
psicogênico na vida cotidiana dos homens, da freqüência com que se simula
doença e da inexistência do acaso, quanto alguns anos de prática da psicanálise
segundo o princípio estrito da hora marcada. Em casos de moléstias orgânicas
indubitáveis, que, afinal de contas, não podem ser afastadas, pelo fato de o
paciente ter interesse psíquico em comparecer, interrompo o tratamento,
considero-me no direito de empregar alhures a hora que fica livre e aceito o
paciente de volta novamente assim que ele se restabelece e disponho de outra
hora vaga.
Trabalho com meus pacientes todos os dias,
exceto aos domingos e feriados oficiais - isto é, geralmente seis dias por
semana. Para casos leves ou continuação de um tratamento que já se acha bem
avançado, três dias por semana bastarão. Quaisquer restrições de tempo além
destas não trazem vantagem, quer para o médico quer para o paciente; e, no
início de um análise, se chama inteiramente fora de questão. Mesmo interrupções
breves têm efeito ligeiramente obscurecedor sobre o trabalho. Costumávamos
falar, por brincadeira, da ‘crosta da segunda-feira’, quando retomamos o trabalho,
após o descanso dominical. Quando as horas de trabalho são menos freqüentes, há
o risco de não se poder manter o passo com a vida real do paciente e de o
tratamento perder contato com o presente e ser forçado a utilizar atalhos.
Ocasionalmente, também, deparamos com pacientes a quem se tem de conhecer mais
que o tempo médio de uma hora por dia, porque a maior parte de uma hora já se
passou antes que comecem a se abrir e a se tornarem comunicativos.
Uma pergunta importuna que o paciente faz ao
médico, no início, é: ‘Quanto tempo durará o tratamento? De quanto tempo o
senhor precisará para aliviar-me de meu problema?’ Se se propôs um tratamento
experimental de algumas semanas, pode-se evitar fornecer resposta direta a esta
pergunta, prometendo-se fazer um pronunciamento mais fidedigno ao final do
período de prova. Nossa resposta assemelha-se à resposta dada pelo Filósofo ao
Caminhante, na fábula de Esopo. Quando o caminhante perguntou quanto tempo
teria de jornada, o Filósofo simplesmente respondeu ‘Caminha”! e justificou sua
resposta aparentemente inútil, com o pretexto de que precisava saber a
amplitude do passo do Caminhante antes de lhe poder dizer quanto tempo a viagem
duraria. Este expediente auxilia-nos a superar as primeiras dificuldades, mas a
comparação não é boa, pois o neurótico pode facilmente alterar o passo e, às
vezes, fazer apenas progresso muito lento. Na verdade, a pergunta relativa à
duração provável de um tratamento é quase irrespondível.
Como resultado conjunto de falta de compreensão
interna (insight) por parte dos pacientes e falta de engenhosidade por
parte dos médicos, espera-se que a análise atenda às exigências mais
ilimitadas, e isso no tempo mais curto. Permitam-me, como exemplo, fornecer
alguns pormenores de uma carta que recebi, há alguns dias, de uma senhora da
Rússia. Ela conta 53 anos de idade, sua doença começou há 23 anos e, durante os
últimos dez anos, não pôde mais fazer qualquer trabalho continuado. ‘O
tratamento em várias instituições para casos nervosos’ não conseguiu tornar-lhe
possível uma ‘vida ativa’. Ela espera ser completamente curada pela
psicanálise, sobre a qual leu, mas sua enfermidade já custou à família tanto
dinheiro que ela não pode conseguir vir a Viena por mais de seis semanas ou
dois meses. Outra dificuldade a acrescentar é que deseja, desde o início,
‘explicar-se’, apenas por escrito, visto que qualquer exame de seus complexos
causar-lhe-ia uma explosão de sentimento ou ‘torná-la-ia temporariamente
incapaz de falar’. Ninguém espera que um homem levante uma pesada mesa com dois
dedos, como se fosse uma leve banqueta, ou construa uma grande casa no tempo
que levaria para levantar uma cabana de madeira; mas assim que se trata de uma
questão de neuroses - que não parecem, até agora haver encontrado lugar
apropriado no pensamento humano -, mesmo pessoas inteligentes esquecem que uma
proporção necessária tem de ser observada entre tempo, trabalho e sucesso.
Isto, incidentalmente, constitui resultado compreensível da profunda ignorância
que predomina a respeito da etiologia das neuroses. Graças a esta ignorância, a
neurose é encarada como uma espécie de ‘donzela vinda de longe’. ‘Ninguém sabia
donde ela viera’, de maneira que esperavam que um dia desapareceria.
Os médicos emprestam apoio a estas vãs
esperanças. Mesmo os bem informados dentre eles deixam de avaliar corretamente
a gravidade das perturbações nervosas. Um amigo e colega meu, para cujo maior
crédito conto o fato de que, após várias décadas de trabalho científico segundo
outros princípios, converteu-se aos méritos da psicanálise, escreveu-me certa
vez: ‘Precisamos é de um tratamento curto, conveniente e externo para a neurose
obsessiva.’ Não lhe pude fornecer e senti-me envergonhado; então tentei
desculpar-me com o comentário de que também os especialistas em doenças
internas ficariam contentes com um tratamento para tuberculose ou carcinoma que
combinasse essas vantagens.
Para falar claramente, a psicanálise é sempre
questão de longos períodos de tempo, de meio ano ou de anos inteiros - de
períodos maiores do que o paciente espera. É nosso dever, portanto, dizer-lhe
isso antes que ele se decida finalmente sobre o tratamento. Considero muito
mais honroso, e também mais conveniente, chamar sua atenção - sem tentar
assustá-lo, mas bem no começo - para as dificuldades e sacrifícios que o
tratamento analítico envolve, e, desta maneira, privá-lo de qualquer direito de
dizer mais tarde que foi enganado para um tratamento de cuja extensão e
implicações não se deu conta. Um paciente que se deixa dissuadir por esta
informação mostrar-se-ia, de qualquer modo, inadequado posteriormente. É bom o
progresso do entendimento entre pacientes, o número daqueles que enfrentam com
êxito este primeiro teste aumenta.
Não obrigo os pacientes a continuar o
tratamento por um certo período de tempo; permito a cada qual interrompê-lo
quando quiser. Mas não escondo dele que, se o tratamento é interrompido após
somente um pequeno trabalho ter sido feito, ele não será bem sucedido, e poderá
facilmente, como uma operação inacabada, deixá-lo em estado insatisfatório. Nos
primeiros anos de minha clínica psicanalítica, costumava ter a maior
dificuldade em persuadir meus pacientes a continuarem sua análise. Esta
dificuldade há muito tempo foi substituída e hoje tenho de me dar aos maiores trabalhos
para induzi-los a abandoná-la.
Abreviar o tratamento analítico é um desejo
justificável, e sua realização, como aprenderemos, está sendo tentada dentro de
várias orientações. Infelizmente, opõe-se-lhe um fator muito importante, a
saber, a lentidão com que se realizam as mudanças profundas na mente - em
última instância, fora de dúvida, a ‘atemporalidade’ de nossos processos
inconscientes. Quando os pacientes se defrontam com a dificuldade do grande
dispêndio de tempo exigido pela análise, não raro conseguem propor uma saída
para ela. Dividem os seus achaques e descrevem alguns como insuportáveis e
outros como secundários, e então dizem: ‘Se apenas o senhor me aliviasse deste
(uma dor de cabeça ou um medo específico, por exemplo), eu poderia lidar com o
outro sozinho, em minha vida normal.’ Fazendo isto, contudo, sobrestimam o
poder seletivo da análise. O analista é certamente capaz de fazer muito, mas
não pode determinar de antemão exatamente quais os resultados que produzirá.
Ele coloca em movimento um processo, o processo de solucionamento das
repressões existentes. Pode supervisar este processo, auxiliá-lo, afastar
obstáculos em seu caminho, e pode indubitavelmente invalidar grande parte dele.
Mas, em geral, uma vez começado, segue sua própria rota e não permite que quer
a direção que toma quer a ordem em que colhe seus pontos lhe sejam prescritas.
O poder do analista sobre os sintomas da doença pode, assim, ser comparado à
potência sexual masculina. Um homem pode, é verdade, gerar uma criança inteira,
mas mesmo o homem mais forte não pode criar no organismo feminino só uma
cabeça, ou um braço, ou uma perna; não pode sequer determinar de antemão o sexo
da criança. Também ele coloca em movimento um processo altamente complicado,
determinado por eventos no passado remoto, processo que termina pela separação
entre a criança e a mãe. Também a neurose tem o caráter de um organismo. Suas
manifestações não são independentes umas das outras; condicionam-se mutuamente
e dão-se apoio recíproco. Uma pessoa padece apenas de uma neurose, nunca de
várias que acidentalmente se tenham reunido num indivíduo isolado. Libertado o
paciente, conforme seu desejo, de determinado sintoma insuportável, poderia ele
facilmente descobrir que um sintoma anteriormente insignificante aumentara
agora e tornara-se insuportável. O analista que deseja que o tratamento deva
seu êxito tão pouco quanto possível a seus elementos de sugestão (isto é, a
transferência) fará bem em abster-se de fazer uso até de vestígio de influência
seletiva sobre os resultados da terapia que talvez possa lhe ser acessível. Os
pacientes destinados a serem mais bem acolhidos são aqueles que lhe pedem para
dar-lhes saúde completa, na medida em que esta é atingível, e colocam à sua
disposição tanto tempo quanto foi necessário para o processo de
restabelecimento. Condições favoráveis como estas, é natural, devem ser
esperadas apenas em alguns casos.
O próximo ponto a ser decidido no início do
tratamento é o do dinheiro, dos honorários do médico. Um analista não discute
que o dinheiro deve ser considerado, em primeira instância, como meio de
autopreservação e de obtenção de poder, mas sustenta que, ao lado disto,
poderosos fatores sexuais acham-se envolvidos no valor que lhe é atribuído. Ele
pode indicar que as questões de dinheiro são tratadas pelas pessoas civilizadas
da mesma maneira que as questões sexuais - com a mesma incoerência, pudor de
hipocrisia. O analista, portanto, está determinado desde o princípio a não
concordar com esta atitude, mas, em seus negócios com os pacientes, a tratar de
assuntos de dinheiro com a mesma franqueza natural com que deseja educá-los nas
questões relativas à vida sexual. Demonstra-lhes que ele próprio rejeitou uma
falsa vergonha sobre esses assuntos, ao dizer-lhes voluntariamente o preço em
que avalia seu tempo. O bom senso comum, ademais, adverte-o a não permitir que
grandes somas de dinheiros se acumulem, mas a solicitar pagamento a intervalos
regulares bastante curtos - mensalmente, talvez. (Constitui fato conhecido que
o valor do tratamento não se realça aos olhos do paciente, se forem pedidos
honorários muito baixos.) Esta, naturalmente, não é a prática usual dos
especialistas em nervos e outros médicos em nossa sociedade européia. Mas o
psicanalista deve colocar-se na posição do cirurgião, que é franco e caro por
ter à sua disposição métodos de tratamento que podem ser úteis. Parece-me mais
respeitável e eticamente menos objetável reconhecer os próprios direitos e
necessidades reais do que, como ainda é costume entre os médicos, desempenhar o
papel do filantropo desinteressado - posição que não se pode, na realidade,
ocupar, sob pena de ficar-se secretamente prejudicado, ou queixar-se em alta
voz da falta da consideração e do desejo de exploração evidenciado pelos
pacientes. Ao fixar os honorários, o analista deve também considerar o fato de
que, por mais que trabalhe, nunca poderá ganhar tanto quanto outros
especialistas médicos.
Pela mesma razão, deve também abster-se de
fornecer tratamento gratuito e não fazer exceções em favor de colegas ou suas
famílias. Esta última recomendação parecerá uma transgressão às vantagens
profissionais. Deve-se lembrar, contudo, que um tratamento gratuito significa
muito mais para um psicanalista do que para qualquer outro médico; significa o
sacrifício de uma parte considerável - um sétimo ou um oitavo, talvez - do
tempo de trabalho de que dispõe para ganhar a vida, durante um período de
muitos meses. Um segundo tratamento gratuito efetuado ao mesmo tempo
privá-lo-ia de um quarto ou de um terço de sua capacidade de ganho, o que seria
comparável ao prejuízo infligido por um grave acidente.
Surge então a questão de saber se a vantagem
obtida pelo paciente não contrabalançaria, até certo ponto, o sacrifício feito
pelo médico. Posso aventurar-me a formar julgamento sobre isto, visto que,
durante dez anos ou mais separei, uma hora por dia, e às vezes duas, para
tratamentos gratuitos, porque desejaria, a fim de penetrar nas neuroses,
trabalhar frente a tão pouca resistência quanto possível. As vantagens que
busquei por este meio não apareceram. O tratamento gratuito aumenta enormemente
algumas das resistências do neurótico - em moças, por exemplo, a tentação
inerente à sua relação transferencial, e, em moços, sua oposição à obrigação de
se sentirem gratos, oposição oriunda de seu complexo paterno e que apresenta um
dos mais perturbadores obstáculos à aceitação de auxílio médico. A ausência do
efeito regulador oferecido pelo pagamento de honorários ao médico torna-se, ela
própria, muito penosamente sentida; todo o relacionamento é afastado do mundo
real e o paciente é privado de um forte motivo para esforçar-se por dar fim ao
tratamento.
Pode-se estar muito longe da visão ascética do
dinheiro como sendo uma maldição e ainda lamentar que a terapia analítica seja
quase inacessível às pessoas pobres, tanto por razões externas quanto internas.
Pouco se pode fazer para remediar isto. Talvez haja verdade na crença
disseminada de que aqueles que são forçados, pela necessidade, a uma vida de
árdua labuta são menos facilmente dominados pela neurose. Por outro lado,
porém, a experiência demonstra, sem qualquer dúvida, que quando um homem pobre
produz uma neurose, só com dificuldade permite ser livrado dela. Ela lhe presta
ótimo serviço na luta pela existência; o livro secundário da doença, que ela
lhe traz, é demasiadamente importante. Ele agora reivindica, por direito de sua
neurose, a piedade que o mundo lhe recusou à aplicação material, e pode então
eximir-se da obrigação de combater sua pobreza por meio do trabalho. Todo
aquele, portanto, que teme tratar da neurose de uma pessoa pobre pela
psicoterapia, geralmente descobre que o que é aqui exigido dele é uma terapia
prática do tipo muito diferente - o tipo que, segundo nossa tradição local,
costumava ser dispensado pelo Imperador José II. Ocasionalmente, é natural,
deparamos com pessoas merecedoras que se acham desamparadas sem culpa alguma de
sua parte, nas quais o tratamento não remunerado não se defronta com nenhum dos
obstáculos mencionados e conduz a excelentes resultados.
No que concerne às classes médias, a despesa
envolvida na psicanálise é excessiva apenas na aparência. Inteiramente à parte
do fato de nenhuma comparação ser possível entre a saúde e a eficiência
restauradas, por um lado, e um moderado dispêndio financeiro por outro, quando
adicionamos os custos incessantes das casas de saúde e do tratamento médico e
contrastamo-los com o aumento de eficiência e de capacidade de ganhar a vida
que resulta de uma análise inteiramente bem sucedida, temos o direito de dizer
que os pacientes fizeram um bom negócio. Nada na vida é tão caro quanto a
doença - e a estupidez.
Antes de concluir estas considerações sobre o
início do tratamento analítico, tenho de dizer uma palavra sobre um certo
cerimonial que concerne à posição na qual o tratamento é realizado. Atenho-me
ao plano de fazer com que o paciente se deite num divã, enquanto me sento atrás
dele, fora de sua vista. Esta disposição possui uma base histórica: é o
remanescente do método hipnótico, a partir do qual a psicanálise se
desenvolveu. Mas ele merece ser mantido por muitas razões. A primeira é um
motivo pessoal, mas que outros podem partilhar comigo. Não posso suportar ser
encarado fixamente por outras pessoas durante oito horas (ou mais) por dia.
Visto que, enquanto estou escutando o paciente, também me entrego à corrente de
meus pensamentos inconscientes; não desejo que minhas expressões faciais dêem
ao paciente material para interpretação ou influenciem-no no que me conta. Em
geral, o paciente encara a obrigação de adotar essa posição como um incômodo e
rebela-se contra ele, especialmente se o instinto de olhar (escopofilia)
desempenhar papel importante em sua neurose. Insisto nesse procedimento,
contudo, pois seu propósito e resultado são impedir que a transferência se
misture imperceptivelmente às associações do paciente, isolar a transferência e
permitir-lhe que apareça, no devido tempo, nitidamente definida como
resistência. Sei que muitos analistas trabalham de modo diferente, mas não sei
se esta variação se deve mais a um anseio de agir diferentemente ou a alguma
vantagem que pensem obter dela. [Ver também em [1].]
Havendo as condições de tratamento sido
reguladas desta maneira, surge a questão: em que ponto e com que material deve
o tratamento começar?
O material com que se inicia o tratamento é, em
geral, indiferente - a história da vida do paciente, ou a história de sua
doença, ou suas lembranças de infância. Mas, em todos os casos, deve-se deixar
que o paciente fale e ele deve ser livre para escolher em que ponto começará.
Dessa maneira, dizemos-lhe: ‘Antes que eu possa lhe dizer algo, tenho de saber
muita coisa sobre você; por obséquio, conte-me o que sabe a respeito de si
próprio.’
A única exceção a isto refere-se à regra
fundamental da técnica psicanalítica, que o paciente tem de observar. Isto lhe
deve ser comunicado bem no começo: ‘Uma coisa mais, antes que você comece. O
que me vai dizer deve diferir, sob determinado aspecto, de uma conversa comum.
Em geral, você procura, corretamente, manter um fio de ligação ao longo de suas
observações e exclui quaisquer idéias intrusivas que lhe possam ocorrer, bem
como quaisquer temas laterais, de maneira a não divagar longe demais do
assunto. Neste caso, porém, deve proceder de modo diferente. Observará que, à
medida que conta coisas, ocorrer-lhe-ão diversos pensamentos que gostaria de
pôr de lado, por causa de certas críticas e objeções. Ficará tentado a dizer a
si mesmo que isto ou aquilo é irrelevante aqui, ou inteiramente sem
importância, ou absurdo, de maneira que não há necessidade de dizê-lo. Você
nunca deve ceder a estas críticas, mas dizê-lo apesar delas - na verdade, deve
dizê-lo exatamente porque sente aversão a fazê-lo. Posteriormente, você
descobrirá e aprenderá a compreender a razão para esta exortação, que é
realmente a única que tem de seguir. Assim, diga tudo o que lhe passa pela
mente. Aja como se, por exemplo, você fosse um viajante sentado à janela de um
vagão ferroviário, a descrever para alguém que se encontra dentro as vistas
cambiantes que vê lá fora. Finalmente, jamais esqueça que prometeu ser
absolutamente honesto e nunca deixar nada de fora porque, por uma razão ou
outra, é desagradável dizê-lo.
Os pacientes que datam sua enfermidade de um
momento específico geralmente se concentram na causa precipitante. Outros, que
por si reconhecem a vinculação entre sua neurose e a infância, amiúde começam
pelo relato de toda a história de sua vida. Nunca se deve esperar uma narrativa
sistemática e nada deve ser feito para incentivá-la. Cada pormenor da história
terá de ser repetido mais tarde e é apenas com estas repetições que aparecerá
material adicional para suprir as importantes associações que são desconhecidas
do paciente.
Há pacientes que, desde as primeira horas,
preparam com cuidado o que irão comunicar, aparentemente de maneira a se
certificarem de que estão fazendo o melhor uso do tempo dedicado ao tratamento.
O que assim se disfarça como avidez é resistência. Qualquer preparação deste
tipo não deve ser recomendada, pois ela é empregada apenas para impedir que
pensamentos desagradáveis venham à superfície. Por mais sinceramente que o
paciente possa acreditar em suas excelentes intenções, a resistência
desempenhará seu papel neste método deliberado de preparação e providenciará
para que o material mais valioso escape à comunicação. Cedo se descobrirá que o
paciente planeja ainda outros meios pelos quais o que é exigido possa ser
negado ao tratamento. Ele pode distribuir o tratamento todo o dia com um amigo
íntimo, e trazer a este debate todos os pensamentos que deveriam apresentar-se
na presença do médico. O tratamento possui assim um vazamento que deixa passar
exatamente o que é mais valioso. quando isto acontece, o paciente deve, sem
muita demora, ser aconselhado a considerar a análise como um assunto entre ele
e seu método e a excluir todos ou demais de partilhar o conhecimento daquela,
por íntimos que possam ser, os indagadores. Em estádios posteriores do
tratamento, o paciente geralmente não fica sujeito a tentações deste tipo.
Certos pacientes querem que seu tratamento seja
mantido secreto, freqüentemente porque mantiveram secreta sua neurose, e não
lhes ponho obstáculos. O fato de que, em conseqüência disso, o mundo nada saiba
de algumas das curas mais bem sucedidas é, naturalmente, consideração que não
pode ser levada em conta. É evidente que a decisão de um paciente em favor do
segredo já revela uma característica de sua história secreta.
Ao aconselhar o paciente, no início do
tratamento, a contar ao menor número de pessoas possível a respeito dele,
protegemo-lo também até certo ponto, das muitas influências hostis que
procurarão atraí-lo para longe da análise. Tais influências podem ser muito
daninhas no começo do tratamento; mais tarde, geralmente não têm importância ou
são até mesmo úteis, por colocarem em evidência resistências que estão tentando
ocultar-se.
Se, no decorrer da análise, o paciente
necessitar temporariamente de algum outro tratamento médico ou especializado, é
muito mais sensato chamar um colega não analista do que fornecermos esse outro
tratamento. Tratamentos combinados para distúrbios neuróticos, que têm poderosa
base orgânica, são quase sempre impraticáveis. Os pacientes afastam o interesse
da análise assim que lhes é mostrado mais de um caminho que promete levá-los à
saúde. O melhor plano é adiar o tratamento orgânico até que o tratamento
psíquico se complete; se aquele fosse tentado primeiro, na maioria dos casos
não encontraria êxito.
Retornando ao início do tratamento,
encontram-se ocasionalmente pacientes que iniciam o tratamento assegurando-nos
que não conseguem pensar em nada para dizer, embora todo o campo da história de
sua vida e da história de sua doença se lhes ache aberto para escolher. Sua
solicitação de que lhes digamos sobre o que falar não deve ser atendida nesta
primeira ocasião, não mais do que em qualquer outra, posterior. Temos de ter em
mente o que se acha aqui envolvido. Uma forte resistência adiantou-se, a fim de
defender a neurose; temos de aceitar o desafio, então e aí, e enfrentá-la.
Afirmações enérgicas e repetidas ao paciente de que é impossível que não lhe
ocorra idéia alguma ao início, e de que o que se acha em pauta é uma
resistência contra a análise, cedo obrigam-no a efetuar as admissões esperadas
ou a revelar uma primeira amostra de seus complexos. É mau sinal ele confessar
que, enquanto escutava a regra fundamental de análise, fez a reserva mental de
que, não obstante, guardaria isto ou aquilo para si; já não é tão sério se tudo
o que tem a nos dizer é quão desconfiado se acha da análise ou das coisas
horripilantes que ouviu a respeito dela. Se negar essas e outras possibilidades
semelhantes, quando lhe são apresentadas, pode ser levado, por nossa
insistência, a reconhecer que todavia desprezou certos pensamentos que lhe
ocupavam a mente. Pensara no tratamento em si, embora nada de definido a seu
respeito, ou estivera ocupado com a aparência da sala em que estava, ou não
pudera deixar de pensar nos objetos do consultório e no fato de lá se achar
deitado num divã - tudo que substituíra pela palavra ‘nada’. Estas indicações
são bastante inteligíveis: tudo que é relacionado com a situação atual
representa uma transferência para o médico, que se mostra apropriada para
servir como uma primeira resistência. Somos assim obrigados a começar por descobrir
esta transferência; e um caminho que dela parte fornecerá rápido acesso ao
material patogênico do paciente. Mulheres que estão preparadas, por
acontecimentos em sua história passada, para serem submetidas a agressão
sexual, e homens com homossexualismo reprimido excessivamente forte são os mais
aptos a reterem desta maneira as idéias que lhes ocorrem no início da análise.
Os primeiros sintomas ou ações fortuitas do
paciente, tal como sua primeira resistência, podem possuir interesse especial e
revelar um complexo que dirige sua neurose. Um arguto e jovem filósofo, com
delicada sensibilidade estética, apressar-se-á a endireitar os vincos das
calças antes de deitar-se para a sua primeira hora; está-se revelando como um
ex-coprófilo do mais alto requinte - o que era de se esperar do recente esteta.
Uma moça, na mesma conjuntura, apressadamente puxará a barra da saia sobre os
tornozelos expostos; assim procedendo, está revelando a essência do que sua
análise mais tarde demonstrará: um orgulho narcísico de sua beleza física e
inclinações ao exibicionismo.
Um número particularmente grande de pacientes
não gosta de que lhes seja pedido para deitar, enquanto o médico se senta atrás
dele, fora de sua vista. Pedem que lhe seja concedido passar o tratamento em alguma
outra posição, na maioria dos casos por estarem ansiosos por não serem privados
da visão do médico. A permissão é geralmente recusada, mas não se pode
impedi-los de darem um jeito de dizer algumas frases antes do início da
‘sessão’ real ou após ter-se indicado que ela terminou e eles terem se
levantado do divã. Deste modo, dividem o tratamento, no seu ponto de vista, em
uma parte oficial, na qual se comportam principalmente de maneira muito
inibida, e em uma parte informal e ‘amistosa’ na qual falam realmente de modo
livre e dizem toda espécie de coisas que eles próprios não encaram como fazendo
parte do tratamento. O médico não aceita esta divisão por muito tempo. Toma
nota do que é dito antes ou depois da sessão e apresenta na primeira
oportunidade, derrubando assim a divisão que o paciente tentou erguer. Esta
divisão, mais uma vez, terá sido formada a partir do material de uma
resistência transferencial.
Enquanto as comunicações e idéias do paciente
fluírem sem qualquer obstrução, o tema da transferência não deve ser aflorado.
Deve-se esperar até que a transferência, que é o mais delicado de todos os
procedimentos, tenha-se tornado uma resistência.
A outra pergunta com que nos defrontamos
levanta uma questão de princípio. É ela: Quando devemos começar a fazer nossas
comunicações ao paciente? Qual é o momento para revelar-lhe o significado
oculto das idéias que lhe ocorrem, e para iniciá-los nos postulados, e
procedimentos técnicos da análise?
A resposta a isto só pode ser: somente após uma
transferência eficaz ter-se estabelecido no paciente, um rapport
apropriado com ele. Permanece sendo o primeiro objetivo do tratamento ligar o
paciente a ele e à pessoa do médico. Para assegurar isto, nada precisa ser
feito, exceto conceder-lhe tempo. Se se demonstra um interesse sério nele, se
cuidadosamente se dissipam as resistências que vêm à tona no início e se evita
cometer certos equívocos, o paciente por si próprio fará essa ligação e
vinculará o médico a uma das imagos das pessoas por quem estava acostumado a ser
tratado com afeição. É certamente possível sermos privados deste primeiro
sucesso se, desde o início, assumirmos outro ponto de vista que não o da
compreensão simpática, tal como um ponto de vista moralizador, ou se nos
comportarmos como representantes ou advogados da parte litigante - o outro
cônjuge, por exemplo.
Esta resposta, naturalmente, implica uma
condenação de qualquer linha de conduta que nos levasse a dar ao paciente uma
tradução de seus sintomas assim que nós próprios a adivinhássemos, ou mesmo a
considerar triunfo especial lançar-lhe essas ‘soluções’ ao rosto na primeira
entrevista. Não é difícil para um analista treinado ler claramente os desejos
secretos do paciente nas entrelinhas de suas queixas e da história de sua
doença; mas quanta vaidade e falta de reflexão deve possuir aquele que, com o
mais breve conhecimento, pode informar a um estranho, inteiramente ignorante de
todos os princípios da análise, que ele se acha ligado à mãe por laços
incestuosos, que abriga desejos de morte da esposa, a quem parece amar, que
oculta uma intenção de trair seu superior, e assim por diante! Ouvi dizer que
há analistas que se vangloriam destes tipos de diagnósticos-relâmpago e
tratamentos ‘expressos’, mas tenho de prevenir a todos contra seguir tais exemplos.
Um comportamento deste tipo desacreditará completamente a nós e ao tratamento
aos olhos do paciente e nele despertará a mais violenta oposição, tenha o nosso
palpite sido verdadeiro ou não; na verdade, quanto mais verdadeiro for, mas
violenta será a resistência. Via de regra, o efeito terapêutico será nenhum,
mas o desencorajamento do paciente quanto à análise será definitivo. Mesmo nos
estádios posteriores da análise, tem-se de ter cuidado em não fornecer ao
paciente a solução de um sintoma ou a tradução de um desejo até que ele esteja
tão próximo delas que só tenha de dar mais um passo para conseguir a explicação
por si próprio. Em anos anteriores, com freqüência tive ocasião de descobrir
que a comunicação prematura de uma solução punha ao tratamento um fim
intempestivo, devido não apenas às resistências que assim subitamente
despertava, mas também ao alívio que a solução trazia consigo.
Neste ponto, porém, levantar-se-á uma objeção.
Será então nossa tarefa alongar o tratamento e não, pelo contrário, lhe dar fim
tão rapidamente quanto possível? Não são os achaques do paciente devidos à sua
falta de conhecimento e compreensão e não constitui um dever esclarecê-lo tão
pronto quanto possível - isto é, tão logo o próprio médico conheça as
explicações? A resposta a esta pergunta exige uma breve digressão sobre o
significado de conhecimento e o mecanismo de cura na análise.
É verdade que nos primórdios da técnica
analítica assumíamos uma visão intelectualista da situação. Dávamos alto valor
ao conhecimento, pelo paciente, do que havia esquecido, e nisto mal fazíamos
distinção entre o nosso conhecimento e o dele. Pensávamos ser uma verdadeira
sorte se poderíamos obter informações sobre um esquecido trauma infantil a
partir de outras fontes - dos pais, babás ou do próprio sedutor, por exemplo -
como em alguns casos foi possível fazer; e apressávamo-nos a transmitir a
informação e as provas de sua exatidão ao paciente, na expectativa certa de
assim dar um fim rápido à neurose e ao tratamento. Era um sério desapontamento
quando o sucesso esperado não vinha. Como era possível que o paciente, que
agora sabia a respeito de sua experiência traumática, todavia se comportasse
ainda como se sobre ela não soubesse mais do que antes? Na verdade, contar e
descrever-lhe o trauma reprimido nem mesmo resultava em que alguma recordação
dele lhe viesse à mente.
Em um caso específico, a mãe de uma moça
histérica confidenciou-me a experiência homossexual que contribuíra grandemente
para fixação das crises da moça. A própria mãe havia surpreendido a cena, mas a
paciente esquecera-a completamente, embora houvesse ocorrido quando ela já se
aproximava da puberdade. Pude então efetuar uma observação muito instrutiva.
Cada vez que eu repetia à moça a história da mãe, ela reagia com uma crise
histérica após a qual esquecia mais uma vez a história. Não há dúvida de que a
paciente estava expressando uma resistência violenta contra o conhecimento que
lhe estava sendo imposto. Por fim, simulou imbecilidade e uma completa perda de
memória, a fim de proteger-se contra o que eu lhe havia contado. Após isto, não
havia, escolha exceto deixar de atribuir ao fato de saber, em si, a importância
que anteriormente lhe havia sido concedida e pôr a ênfase nas resistências que,
no passado, haviam ocasionado o estado de desconhecimento e que ainda se
achavam prontas para defender esse estado. O conhecimento consciente, mesmo
quando não era subseqüentemente expulso outra vez, era impotente contra essas
resistências.
A estranha conduta dos pacientes, por serem capazes
de combinar um conhecimento consciente com o desconhecimento, permanece
inexplicável pela chamada psicologia normal. Para a psicanálise, entretanto,
que reconhece a existência do inconsciente, ela não apresenta dificuldade. O
fenômeno que descrevemos, ademais, fornece o melhor apoio do ângulo da
diferenciação topográfica. Os pacientes conhecem agora a experiência reprimida
em seu pensamento consciente, mas falta a este pensamento qualquer vinculação
com o lugar em que a lembrança reprimida, de uma ou outra maneira, está
contida. Nenhuma mudança é possível até que o processo consciente de pensamento
tenha penetrado até esse lugar e lá superado as resistências da repressão. É
exatamente como se fosse promulgado pelo Ministério da Justiça um decreto no sentido
de que os delitos juvenis fossem tratados de modo decididamente demente.
Enquanto esse decreto não chegar ao conhecimento dos magistrados locais, ou no
caso de eles não pretenderem obedecê-lo, mas preferirem administrar a justiça
segundo suas próprias luzes, nenhuma mudança pode ocorrer no tratamento de
determinados delinqüentes juvenis. Todavia, a bem da completa exatidão,
dever-se-ia acrescentar que a comunicação do material reprimido à consciência
do paciente não fica, entretanto, sem efeito. Ela não produz o resultado
desejado de acabar com os sintomas, mas tem outras conseqüências. A princípio,
desperta resistências, mas depois, quando estas foram superadas, estabelece um
processo de pensamento no decorrer do qual a influência esperada da recordação
inconsciente acaba por realizar-se.
É tempo, agora, que empreendamos um
levantamento do jogo de forças colocado em ação pelo tratamento. A força
motivadora primária na terapia é o sofrimento do paciente e o desejo de ser
curado que deste se origina. A intensidade desta força motivadora é diminuída
por diversos fatores - que não são descobertos até que a análise se acha em
andamento -, sobretudo pelo que chamamos de ‘livro secundário da doença’; e mas
ela deve ser mantida até o fim do tratamento. Cada melhora efetua uma sua
diminuição. Sozinha, porém, esta força motivadora não é suficiente para
livrar-se da doença. Duas coisas lhe faltam para isto: não sabe que caminhos
seguir para chegar a esse fim a não possui a necessária cota da energia para se
opor às resistências. O tratamento analítico ajuda a remediar ambas as
deficiências. Fornece as quantidades de energia necessárias para superar as
resistências, pela mobilização das energias que estão prontas para a
transferência; e, dando ao paciente informações no momento correto, mostra-lhe
os caminhos ao longo dos quais deve dirigir essas energias. Com bastante
freqüência, a transferência é capaz de remover os sintomas da doença por si
mesma, mas só por pouco tempo - apenas enquanto ela própria perdura. Neste
caso, o tratamento é por sugestão, e não, de modo algum, a psicanálise. Só
merece o último nome se a intensidade da transferência foi utilizada para a
superação das resistências. Somente então a enfermidade tornou-se impossível,
mesmo quando a transferência foi mais uma vez desfeita, o que é seu destino.
No decurso do tratamento, ainda é estimulado
outro fator útil, que é o interesse e a compreensão intelectuais do paciente.
Mas ele, sozinho, mal entra em consideração, comparado às outras forças que se
acham empenhadas na luta, pois está sempre em perigo de perder seu valor, em
resultado da perturbação de juízo que se origina das resistências. Assim, as
novas fontes de força pelas quais o paciente é grato ao analista reduzem-se à
transferência e à instrução (através das comunicações que lhe são feitas). O
paciente, contudo, só faz uso da instrução na medida em que é induzido a
fazê-lo pela transferência; é por esta razão que nossa primeira comunicação
deve ser retida até que uma forte transferência se tenha estabelecido. E isto,
podemos acrescentar, vale para todas as comunicações subseqüentes. Em cada
caso, temos de esperar até que a perturbação da transferência pelo aparecimento
sucessivo de resistências transferenciais tenha sido removida.
RECORDAR, REPETIR E ELABORAR (NOVAS RECOMENDAÇÕES
SOBRE A TÉCNICA DA PSICANÁLISE II) (1914)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ERINNERN, WIEDERHOLEN UND DURCHARBEITEN
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1914
Int. Z. Psychoanal., 2 (6), 485-91.
1918
S. K. S. N., 4, 441-52, (1922, 2ª ed.)
1924
Technik und Metapsychol., 109-19
1925
G. S., 6, 109-19.
1931
Neurosenlehre und Technik, 385-96.
1946
G. W., 10, 126-36.
(b)
TRADUÇÃO INGLESA:
‘Further
Recommendations in the Technique of Psycho-Analysis: Recollection, Repetition
and Working-Through’
1924 C. P., 2, 366-76. (Trad. de Joan
Riviere.)
A presente tradução inglesa, com o título
alterado, é versão modificada da publicada em 1924.
Em seu aparecimento original (ao final de
1914), o título deste artigo era: ‘Weitere Ratschläge zur Technik der
Psychoanalyse (II): Erinnern, Wiederholen und Durcharbeiten.’ O título da
versão inglesa de 1924, citado acima, é tradução deste. De 1924 em diante, as
edições alemãs adotaram o título mais curto.
Este trabalho é digno de nota, à parte seu
interesse técnico, por conter o primeiro aparecimento dos conceitos da
‘compulsão à repetição’ (ver em [1]) e da ‘elaboração’ (ver em [2]).
RECORDAR, REPETIR E ELABORAR (NOVAS RECOMENDAÇÕES
SOBRE A TÉCNICA DA PSICANÁLISE II)
Não me parece desnecessário continuar a lembrar
aos estudiosos as alterações de grandes conseqüências que a técnica
psicanalítica sofreu desde os primórdios. Em sua primeira fase - a da catarse
de Breuer - ela consistia em focalizar diretamente o momento em que o sintoma
se formava, e em esforçar-se persistentemente por reproduzir os processos
mentais envolvidos nessa situação, a fim de dirigir-lhes a descarga ao longo do
caminho da atividade consciente. Recordar e ab-reagir, com o auxílio, era a
que, àquela época, se visava. A seguir, quando a hipnose foi abandonada, a
tarefa transformou-se em descobrir, a partir das associações livres do
paciente, o que ele deixava de recordar. A resistência deveria ser contornada
pelo trabalho da interpretação e por dar a conhecer os resultados desta ao
paciente. As situações que haviam ocasionado a formação do sintoma e as outras
anteriores ao momento em que a doença irrompeu conservaram seu lugar como foco
de interesse; mas o elemento da ab-reação retrocedeu para segundo plano e pareceu
ser substituído pelo dispêndio de trabalho que o paciente tinha de fazer por
ser obrigado a superar sua censura das associações livres, de acordo com a
regra fundamental da psicanálise. Finalmente, desenvolveu-se a técnica
sistemática hoje utilizada, na qual o analista abandona a tentativa de colocar
em foco um momento ou problema específicos. Contenta-se em estudar tudo o que
se ache presente, de momento, na superfície da mente do paciente, e emprega a
arte da interpretação principalmente para identificar as resistências que lá
aparecem, e torná-las conscientes ao paciente. Disto resulta um novo tipo de
divisão de trabalho: o médico revela as resistências que são desconhecidas ao
paciente; quando essas tiverem sido vencidas, o paciente amiúde relaciona as
situações e vinculações esquecidas sem qualquer dificuldade. O objetivo destas
técnicas diferentes, naturalmente, permaneceu sendo o mesmo. Descritivamente
falando, trata-se de preencher lacunas na memória; dinamicamente, é superar
resistências devidas à repressão.
Ainda devemos ser gratos à velha técnica
hipnótica por ter-nos apresentado processos psíquicos únicos de análise sob
forma isolada ou esquemática. Somente isto poder-nos-ia ter dado a coragem para
criar situações mais complicadas no tratamento analítico e mantê-las claras
diante de nós.
Nesses tratamentos hipnóticos, o processo de
recordar assumia forma muito simples. O paciente colocava-se de volta numa
situação anterior, que parecia nunca confundir com a atual, e fornecia um
relato dos processos mentais a ela pertencentes, na medida em que permaneciam
normais; acrescentava então a isso tudo o que podia surgir como resultado da
transformação dos processos, que na época haviam sido inconscientes, em
conscientes.
Neste ponto, interpolarei algumas considerações
que todo analista já viu confirmadas em suas observações. Esquecer impressões,
cenas ou experiências quase sempre se reduz a interceptá-las. Quando o paciente
fala sobre estas coisas ‘esquecidas’, raramente deixa de acrescentar: ‘Em verdade,
sempre o soube; apenas nunca pensei nisso.’ Amiúde expressa desapontamento por
não lhe vierem à cabeça coisas bastantes que possa chamar de ‘esquecidas’ - em
que nunca pensou desde que aconteceram. Não obstante, mesmo este desejo é
realizado, especialmente no caso das histerias de conversão. O ‘esquecer’
torna-se ainda mais restrito quando avaliamos em seu verdadeiro valor as
lembranças encobridoras que tão geralmente se acham presentes. Em certos casos,
tive a impressão de que a conhecida amnésia infantil, que teoricamente nos é
tão importante, é completamente contrabalançada pelas lembranças encobridoras.
Não apenas algo, mas a totalidade do que é essencial na infância
foi retido nessas lembranças. Trata-se simplesmente de saber como extraí-lo
delas pela análise. Elas representam os anos esquecidos da infância tão
adequadamente quanto o conteúdo manifesto de um sonho representa os pensamentos
oníricos.
O outro grupo de processos psíquicos -
fantasias, processos de referência, impulsos emocionais, vinculações de
pensamento - que, como atos puramente internos, não podem ser contrastados com
impressões e experiências, deve, em sua relação com o esquecer e o recordar,
ser considerado separadamente. Nestes processos, acontece com extraordinária
freqüência ser ‘recordado’ algo que nunca poderia ter sido ‘esquecido’, porque
nunca foi, em ocasião alguma, notado - nunca foi consciente. Com referência ao
curso tomado pelos eventos psíquicos, parece não fazer nenhuma diferença se
determinada ‘vinculação de pensamento’ foi consciente e depois esquecida ou se
nunca, de modo algum, conseguiu tornar-se consciente. A convicção que o
paciente alcança no decurso de sua análise é inteiramente independente deste
tipo de lembrança.
Nas muitas formas diferentes da neurose obsessiva,
em particular, o esquecer restringe-se principalmente à dissolução das
vinculações de pensamento, ao deixar de tirar as conclusões corretas e isolar
lembranças.
Há um tipo especial de experiências da máxima
importância, para a qual lembrança alguma, via de regra, pode ser recuperada.
Trata-se de experiências que ocorreram em infância muito remota e não foram
compreendidas na ocasião, mas que subseqüentemente foram compreendidas e
interpretadas. Obtém-se conhecimento delas através dos sonhos e é-se obrigado a
acreditar neles com base nas provas mais convincentes fornecidas pela estrutura
da neurose. Ademais, podemos certificar-nos de que o paciente, após suas
resistências haverem sido superadas, não mais invoca a ausência de qualquer
lembrança delas (qualquer sensação de familiaridade com elas) como fundamento
para recusar-se a aceitá-las. Este assunto, contudo, exige tanta cautela
crítica e introduz tanta coisa nova e espantosa que reservá-lo-ei para um exame
separado, juntamente com material apropriado.
Sob a nova técnica, muito pouco, e com
freqüência nada resta deste deliciosamente calmo curso de acontecimentos. Há
certos casos que se comportam como aqueles sob a técnica hipnótica até certo
ponto e só mais tarde deixam de fazê-lo, mas outros conduzem-se diferentemente
desde o início. Se nos limitarmos a este segundo tipo, a fim de salientar a
diferença, podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que
esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out).
Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem,
naturalmente, saber que o está repetindo.
Por exemplo, o paciente não diz que recorda que
costumava ser desafiador e crítico em relação à autoridade dos pais; em vez
disso, comporta-se dessa maneira para com o médico. Não se recorda de como
chegou a um impotente e desesperado impasse em suas pesquisas sexuais infantis;
mas produz uma massa de sonhos e associações confusas, queixa-se de que não
consegue ter sucesso em nada e assevera estar fadado a nunca levar a cabo o que
empreende. Não se recorda de ter-se envergonhado intensamente de certas
atividades sexuais e de ter tido medo de elas serem descobertas; mas demonstra
achar-se envergonhado do tratamento que agora empreendeu e tenta escondê-lo de
todos. E assim por diante.
Antes de mais nada, o paciente começará
seu tratamento por uma repetição deste tipo. Quando anunciamos a regra
fundamental da psicanálise a um paciente com uma vida cheia de acontecimentos e
uma longa história de doença, e então lhe pedimos para dizer-nos o que lhe vem
à mente, esperamos que ele despeje um dilúvio de informações; mas, com
freqüência, a primeira coisa que acontece é ele nada ter a dizer. Fica
silencioso e declara que nada lhe ocorre. Isto, naturalmente, é simplesmente a
repetição de uma atitude homossexual que se evidencia como uma resistência
contra recordar alguma coisa [ver em [1]]. Enquanto o paciente se acha em
tratamento, não pode fugir a esta compulsão à repetição; e, no final,
compreendemos que esta é a sua maneira de recordar.
O que nos interessa, acima de tudo, é,
naturalmente, a relação desta compulsão à repetição com a transferência e com a
resistência. Logo percebemos que a transferência é, ela própria, apenas um
fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência do passado
esquecido, não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos
da situação atual. Devemos estar preparados para descobrir, portanto, que o
paciente se submete à compulsão, à repetição, que agora substitui o impulso a recordar,
não apenas em sua atitude pessoal para com o médico, mas também em cada
diferente atividade e relacionamento que podem ocupar sua vida na ocasião - se,
por exemplo, se enamora, incumbe-se de uma tarefa ou inicia um empreendimento
durante o tratamento. Também o papel desempenhado pela resistência é facilmente
identificável. Quanto maior a resistência, mais extensivamente a atuação (acting
out) (repetição) substituirá o recordar, pois o recordar ideal do que foi
esquecido, que ocorre na hipnose, corresponde a um estado no qual a resistência
foi posta completamente de lado. Se o paciente começa o tratamento sob os
auspícios de uma transferência positiva branda e impronunciada, ela lhe torna
possível, de início, desenterrar suas lembranças tal como o faria sob hipnose,
e, durante este tempo, seus próprios sintomas patológicos acham-se inativos.
Mas se, à medida que a análise progride, a transferência se torna hostil ou
excessivamente intensa e, portanto, precisando de repressão, o recordar
imediatamente abre caminho à atuação (acting out). Daí por diante, as
resistências determinam a seqüência do material que deve ser repetido. O
paciente retira do arsenal do passado as armas com que se defende contra o
progresso do tratamento - armas que lhe temos de arrancar, uma por uma.
Aprendemos que o paciente repete ao invés de
recordar e repete sob as condições da resistência. Podemos agora perguntar o
que é que ele de fato repete ou atua (acts out). A resposta é que repete
tudo o que já avançou a partir das fontes do reprimido para sua personalidade
manifesta - suas inibições, suas atitudes inúteis e seus traços patológicos de
caráter. Repete também todos os seus sintomas, no decurso do tratamento. E
podemos agora ver que, ao chamar atenção para a compulsão à repetição, não
obtivemos um fato novo, mas apenas uma visão mais ampla. Só esclarecemos a nós
mesmos que o estado de enfermidade do paciente não pode cessar com o início de
sua análise, e que devemos tratar sua doença não como um acontecimento do
passado, mas como uma força atual. Este estado de enfermidade é colocado,
fragmento por fragmento, dentro do campo e alcance do tratamento e, enquanto o
paciente o experimenta como algo real e contemporâneo, temos de fazer sobre ele
nosso trabalho terapêutico, que consiste, em grande parte, em remontá-lo ao
passado.
O recordar, tal como era induzido pela hipnose,
só podia dar a impressão de um experimento realizado em laboratório. O repetir,
tal como é induzido no tratamento analítico, segundo a técnica mais recente,
implica, por outro lado, evocar um fragmento da vida real; e, por essa razão,
não pode ser sempre inócuo e irrepreensível. Esta consideração revela todo o
problema do que é tão amiúde inevitável - a ‘deterioração durante o
tratamento’.
Primeiro e antes de tudo, o início do
tratamento em si ocasiona uma mudança na atitude consciente do paciente para
com sua doença. Ele habitualmente se contentava em lamentá-la, desprezá-la como
absurda e subestimar sua importância; quanto ao resto, estendeu às
manifestações dela a política de avestruz de repressão que adotara em relação
às suas origens. Assim, pode acontecer que não saiba corretamente em que
condições sua fobia se manifesta, não escute o fraseado preciso de suas idéias
obsessivas ou não apreenda o intuito real de seu impulso obsessivo. O
tratamento, naturalmente, não é auxiliado por isto. O paciente tem de criar
coragem para dirigir a atenção para os fenômenos de sua moléstia. Sua
enfermidade em si não mais deve parecer-lhe desprezível, mas sim tornar-se um
inimigo digno de sua têmpera, um fragmento de sua personalidade, que possui
sólido fundamento para existir e da qual coisas de valor para sua vida futura
têm de ser inferidas. Acha-se assim preparado o caminho, desde o início, para
uma reconciliação com o material reprimido que se está expressando em seus
sintomas, enquanto, ao mesmo tempo, acha-se lugar para uma certa tolerância
quanto ao estado de enfermidade. Se esta nova atitude em relação à doença
intensifica os conflitos e põe em evidência sintomas que até então haviam
permanecido vagos, podemos facilmente consolar o paciente mostrando-lhe que se
trata apenas de agravamentos necessários e temporários e que não se pode vencer
um inimigo ausente ou fora de alcance. A resistência, contudo, pode explorar a
situação para seus próprios fins e abusar da licença de estar doente. Ela
parece dizer: ‘Veja o que acontece se eu realmente transijo com tais coisas.
Não tinha razão em confiá-las à repressão?’ Pessoas jovens e pueris, em
particular, inclinam-se a transformar a necessidade, imposta pelo tratamento,
de prestar atenção à sua doença, numa desculpa bem-vinda para regalar-se em
seus sintomas.
Outros perigos surgem do fato de que, no curso
do tratamento, novos e mais profundos impulsos instintuais, que até então não se
haviam feito sentir, podem vir a ser ‘repetidos’. Finalmente, é possível que as
ações do paciente, fora da transferência, possam causar-lhe dano temporário em
sua vida normal, ou até mesmo terem sido escolhidos para invalidar
permanentemente suas perspectivas de restabelecimento.
As táticas a serem adotadas pelo médico, nesta
situação, são facilmente justificadas. Para ele, recordar à maneira antiga -
reprodução no campo psíquico - é o objetivo a que adere, ainda que saiba que
tal objetivo não pode ser atingido na nova técnica. Ele está preparado para uma
luta perpétua com o paciente, para manter na esfera psíquica todos os impulsos
que este último gostaria de dirigir para a esfera motora; e comemora como um
triunfo para o tratamento o fato de poder ocasionar que algo que o paciente
deseja descarregar em ação seja utilizado através do trabalho de recordar. Se a
ligação através da transferência transformou-se em algo de modo algum
utilizável, o tratamento é capaz de impedir o paciente de executar algumas das
ações repetitivas mais importantes e utilizar sua intenção de assim proceder, in
statu nascendi, como material para o trabalho terapêutico. Protege-se
melhor o paciente de prejuízos ocasionados pela execução de um de seus
impulsos, fazendo-o prometer não tomar quaisquer decisões importantes que lhe
afetem a vida durante o tempo do tratamento - por exemplo, não escolher
qualquer profissão ou objeto amoroso definitivo - mas adiar todos os planos
desse tipo para depois de seu restabelecimento.
Ao mesmo tempo, deixa-se voluntariamente
intocado um tanto da liberdade pessoal do paciente quanto é compatível com
estas restrições, e não se o impede de levar a cabo intenções sem importância,
mesmo que sejam tolas; não nos esqueçamos de que, na realidade, é apenas através
de sua própria experiência e infortúnios que uma pessoa se torna sagaz. Há
também pessoas a quem não se pode impedir de mergulharem em algum projeto
inteiramente indesejável durante o tratamento e que somente depois ficam
prontas para a análise ou a esta acessíves. Ocasionalmente, também, está
sujeito a acontecer que os instintos indomados se afirmem antes que haja tempo
de colocar-lhes as rédeas da transferência, ou que os laços que ligam o
paciente ao tratamento sejam por ele rompidos numa ação repetitiva. Como
exemplo extremo disto, posso citar o caso de uma senhora de idade que havia
repetidamente fugido de casa e do marido em estado crepuscular e ido para onde
ninguém sabia, sem sequer tornar-se consciente de seu motivo para partir desta
maneira. Ela chegou ao tratamento com uma acentuada transferência afetuosa que
cresceu em intensidade com misteriosa rapidez nos primeiros dias; ao final da
semana, havia-me abandonado também, antes que tivesse tempo de dizer-lhe algo
que pudesse ter impedido esta repetição.
Toda vida, o instrumento principal para
reprimir a compulsão do paciente à repetição e transformá-la num motivo para
recordar reside no manejo da transferência. Tornamos a compulsão inócua, e na
verdade útil, concedendo-lhe o direito de afirmar-se num campo definido.
Admitimo-la à transferência como a um playground no qual se espera que
nos apresente tudo no tocante a instintos patogênicos, que se acha oculto na
mente do paciente. Contanto que o paciente apresente complacência bastante para
respeitar as condições necessárias da análise, alcançamos normalmente sucesso
em fornecer a todos os sintomas da moléstia um novo significado transferencial
e em substituir sua neurose comum por uma ‘neurose de transferência’, da qual
pode ser curado pelo trabalho terapêutico. A transferência cria, assim, uma
região intermediária entre a doença e a vida real, através da qual a transição
de uma para a outra é efetuada. A nova condição assumiu todas as
características da doença, mas representa uma doença artificial, que é, em
todos os pontos, acessível à nossa intervenção. Trata-se de um fragmento de
experiência real, mas um fragmento que foi tornado possível por condições
especialmente favoráveis, e que é de natureza provisória. A partir das reações
repetitivas exibidas na transferência, somos levados ao longo dos caminhos
familiares até o despertar das lembranças, que aparecem sem dificuldade, por
assim dizer, após a resistência ter sido superada.
Poder-me-ia deter neste ponto, não fosse o título
deste artigo, que me obriga a debater ainda um ponto na técnica analítica. O
primeiro passo para superar as resistências é dado, como sabemos, pelo fato de
o analista revelar a resistência que nunca é reconhecida pelo paciente, e
familiarizá-lo com ela. Ora, parece que os principiantes na clínica analítica
inclinam-se a encarar este passo introdutório como a totalidade do seu
trabalho. Amiúde me têm sido pedidos conselhos sobre casos em que o médico se
queixou de ter apontado a resistência ao paciente e, não obstante, mudança
alguma ter-se efetuado; na verdade, a resistência tornou-se ainda mais forte e
toda situação ficou mais obscura do que nunca. O tratamento parecia não
progredir. Este prenúncio sombrio sempre se mostrou errôneo. O tratamento, via
de regra, progredia muito satisfatoriamente. O analista simplesmente se havia
esquecido de que o fato de dar à resistência um nome poderia não resultar em
sua cessão imediata. Deve-se dar ao paciente tempo para conhecer melhor esta
resistência com a qual acabou de se familiarizar, para elaborá-la, para
superá-la, pela continuação, em desafio a ela, do trabalho analítico segundo a
regra fundamental da análise. Só quando a resistência está em seu auge é que
pode o analista, trabalhando em comum com o paciente, descobrir os impulsos
instintuais reprimidos que estão alimentando a resistência; e é este tipo de
experiência que convence o paciente da existência e do poder de tais impulsos.
O médico nada mais tem a fazer senão esperar e deixar as coisas seguirem seu curso,
que não pode ser evitado nem continuamente apressado. Se se apegar a esta
convicção, amiúde ser-lhe-á poupada a ilusão de ter fracassado, quando, de
fato, está conduzindo o tratamento segundo as linhas corretas.
Esta elaboração das resistências pode, na
prática, revelar-se uma tarefa árdua para o sujeito da análise e uma prova de
paciência para o analista. Todavia, trata-se da parte do trabalho que efetua as
maiores mudanças no paciente e que distingue o tratamento analítico de qualquer
tipo de tratamento por sugestão. De um ponto de vista teórico, pode-se
correlacioná-la com a ‘ab-reação’ das cotas de afeto estranguladas pela
repressão - uma ab-reação sem a qual o tratamento hipnótico permanecia
ineficaz.
OBSERVAÇÕES SOBRE O AMOR TRANSFERENCIAL (NOVAS RECOMENDAÇÕES SOBRE A
TÉCNICA DA PSICANÁLISE III) (1915 [1914])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
BEMERKUNGEN ÜBER DIE ÜBERTRAGUNGSLIEBE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1915 Int. Z. Psychoanl., 3, (1), 1-11.
1918
S. D. S. N., 4, 453-69. (1922, 2ª ed.)
1924
Technik und Metapsychol. 120-35.
1925
G. S., 6, 120-35.
1931
Neurosenlehre und Technik, 385-96.
1946 G. W., 10, 306-21.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Further
Recommendations in the Technique of Psycho-Analysis: Observations on
Transference-Love’
1924 C.P., 2, 377-91. (Trad. de Joan
Riviere.)
A presente traducão inglesa, com o título
alterado, é versão modificada da publicada em 1924.
Quando este artigo foi publicado pela primeira
vez (em começos de 1915), seu título era: ‘Weitere Ratschläge zur Technik der
Psychoanalyse (III): Bemerkungen über die Übertragungsliebe.’ O título da
versão inglesa de 1924, tal como fornecido acima, é tradução disto. As edições
alemãs, de 1924 em diante, adotaram o título mais curto.
O Dr. Erneste Jones nos conta (1955, 266) que
Freud considerava este o melhor da presente série de trabalhos técnicos. Uma
carta escrita por Freud a Ferenczi, em 13 de dezembro de 1931, com respeito às
inovações técnicas introduzidas pelo último, constitui interessante pós-escrito
a este artigo. Ela foi publicada pelo Dr. Jones quase no final do Capítulo IV
de seu terceiro volume da biografia de Freud (1957, 174 e segs.)
OBSERVAÇÕES SOBRE O AMOR TRANSFERENCIAL (NOVAS
RECOMENDAÇÕES SOBRE A TÉCNICA DA PSICANÁLISE III)
Todo principiante em psicanálise provavelmente
se sente alarmado, de início, pelas dificuldades que lhe estão reservadas
quando vier a interpretar as associações do paciente e lidar com a reprodução
do reprimido. Quando chega a ocasião, contudo, logo aprende a encarar estas
dificuldades como insignificantes e, ao invés, fica convencido de que as únicas
dificuldades realmente sérias que tem de enfrentar residem no manejo da transferência.
Entre as situações que surgem a este respeito,
selecionarei uma que é muito nitidamente definida; e selecioná-la-ei, em parte,
porque ocorre muito amiúde e é tão importante em seus aspectos reais e em parte
devido ao seu interesse teórico. O que tenho em mente é o caso em que uma
paciente demonstra, mediante indicações inequívocas, ou declara abertamente,
que se enamorou, como qualquer outra mulher mortal poderia fazê-lo, do médico
que a está analisando. Esta situação tem seus aspectos aflitivos e cômicos, bem
como os sérios. Ela é também determinada por tantos e tão complicados fatores,
é tão inevitável e tão difícil de esclarecer, que uma discussão sobre o
assunto, para atender a uma necessidade vital da técnica analítica, já há muito
se fazia necessária. Mas visto que nós, que rimos das fraquezas de outras
pessoas, nem sempre estamos livres delas, até agora não estivemos precisamente
apressados em cumprir esta tarefa. Deparamos constantemente com a obrigação à
discrição profissional - discrição que não se pode dispensar na vida real, mas
que é inútil em nossa ciência. Na medida em que as publicações psicanalíticas
também fazem parte da vida real, temos aqui uma contradição insolúvel.
Recentemente desprezei esta questão da discrição a certa altura, e demonstrei
como esta mesma situação transferencial retardou o desenvolvimento da terapia
psicanalítica durante sua primeira década.
Para um leigo instruído (a pessoa civilizada
ideal, em relação à psicanálise), as coisas que se relacionam com o amor são incomensuráveis;
acham-se, por assim dizer, escritas numa página especial em que nenhum outro
texto é tolerado. Se uma paciente enamorou-se de seu médico, parece a tal leigo
que são possíveis apenas dois desfechos. Um, que acontece de modo
comparativamente raro, é que todas as circunstâncias permitam uma união legal e
permanente entre eles; o outro, mais freqüente, é que médico e paciente se
separem e abandonem o trabalho que começaram e que deveria levar ao
restabelecimento dela, como se houvesse sido interrompido por algum fenômeno
elementar. Há, sem dúvida, um terceiro desfecho concebível, que até mesmo
parece compatível com a continuação do tratamento. É que eles iniciam um
relacionamento amoroso ilícito e que não se destina a durar para sempre. Mas
esse caminho é impossível por causa da moralidade convencional e dos padrões
profissionais. Não obstante, o nosso leigo implorará ao analista que lhe
assegure, tão inequivocamente quanto possível, que esta terceira alternativa se
acha excluída.
É claro que um psicanalista tem de encarar as
coisas de um ponto de vista diferente.
Tomemos o caso do segundo desfecho da situação
que estamos considerando. Após a paciente ter-se enamorado de seu médico, eles
se separam; o tratamento é abandonado. Mas logo o estado da paciente obriga-a a
fazer uma segunda tentativa de análise, com outro médico. O que acontece a
seguir é que ela sente se ter enamorado deste segundo médico também; e, se
romper com ele e recomeçar outra vez, o mesmo acontecerá com o terceiro médico,
e assim por diante. Este fenômeno, que ocorre constantemente e que é, como
sabemos, um dos fundamentos da teoria psicanalítica, pode ser avaliado a partir
de dois pontos de vista, o do médico e o da paciente que dele necessita.
Para o médico, o fenômeno significa um
esclarecimento valioso e uma advertência útil contra qualquer tendência a uma
contratransferência que pode estar presente em sua própria mente. Ele deve
reconhecer que o enamoramento da paciente é induzido pela situação analítica e
não deve ser atribuído aos encantos de sua própria pessoa; de maneira que não
tem nenhum motivo para orgulhar-se de tal ‘conquista’, como seria chamada fora
da análise. E é sempre bom lembrar-se disto. Para a paciente, contudo, há duas
alternativas: abandonar o tratamento psicanalítico ou aceitar enamorar-se de
seu médico como um destino inelutável.
Não tenho dúvida de que os parentes e amigos da
paciente se decidirão enfaticamente pela primeira destas duas alternativas,
assim como o analista optará pela segunda. Mas acho que temos aqui um caso em
que a decisão não pode ser deixada ao terno - ou antes, egoísta e ciumento -
cuidado dos parentes. Somente o bem-estar da paciente deveria ser a pedra de
toque; o amor dos parentes não pode insistir que é indispensável para a consecução
de certos fins. Qualquer parente que adote a atitude de Tolstoi em relação ao
problema pode permanecer na posse imperturbada de sua esposa ou filha; mas terá
de tentar suportar o fato de que ela, de sua parte, mantém a neurose e a
interferência com sua capacidade de amar que aquela acarreta. A situação,
afinal, é semelhante à de um tratamento ginecológico. Além disso, o pai ou
marido ciumento está grandemente equivocado se pensa que a paciente escapará de
enamorar-se do médico se ele entregá-la a algum outro tipo de tratamento, que
não a análise, para combater-lhe a neurose. Pelo contrário, a única diferença
será que um amor deste tipo, fadado a permanecer oculto e não analisado, nunca
poderá prestar ao restabelecimento da paciente a contribuição que a análise
dele teria extraído.
Chegou ao meu conhecimento que alguns médicos
que praticam a análise preparam freqüentemente suas pacientes para o surgimento
da transferência erótica ou até mesmo as instam a ‘ir em frente a enamorar-se
do médico, de modo a que o tratamento possa progredir’. Dificilmente posso
imaginar procedimento mais insensato. Assim procedendo, o analista priva o
fenômeno do elemento de espontaneidade que é tão convincente e cria para si
próprio, no futuro, obstáculos difíceis de superar.
À primeira vista, certamente não parece que o
fato de a paciente se enamorar na transferência possa resultar em qualquer
vantagem para o tratamento. Por mais dócil que tenha sido até então, ela
repentinamente perde toda a compreensão do tratamento e todo o interesse nele,
e não falará ou ouvirá a respeito de nada que não seja o seu amor, que exige
que seja retribuído. Abandona seus sintomas ou não lhes presta atenção; na
verdade, declara que está boa. Há uma completa mudança de cena; é como se uma
peça de fingimento houvesse sido interrompida pela súbita irrupção da realidade
- como quando, por exemplo, um grito de incêndio se erguer durante uma
representação teatral. Nenhum médico que experimente isto pela primeira vez
achará fácil manter o controle sobre o tratamento analítico e livrar-se da
ilusão de que o tratamento realmente chegou ao fim.
Uma pequena reflexão capacita-nos a encontrar
orientação. Primeiro e antes de tudo, mantém-se na mente a suspeita de que tudo
que interfere com a continuação do tratamento pode constituir expressão da
resistência. Não pode haver dúvida de que a irrupção de uma apaixonada
exigência de amor é, em grande parte, trabalho da resistência. Há muito
notaram-se na paciente sinais de uma transferência afetuosa, e pôde-se ter certeza
de que a docilidade dela, sua aceitação das explicações analíticas, sua notável
compreensão e o alto grau de inteligência que apresentava deveriam ser
atribuídos a esta atitude em relação ao médico. Agora, tudo isto passou. Ela
ficou inteiramente sem compreensão interna (insight) e parece estar
absorvida em seu amor. Ademais, esta modificação ocorre muito regularmente na
ocasião precisa em que se está tentando levá-la a admitir ou recordar algum
fragmento particularmente aflitivo e pesadamente reprimido da história da sua
vida. Ela esteve enamorada, portanto, por longo tempo; mas agora a resistência
está começando a utilizar seu amor a fim de estorvar a continuação do
tratamento, desviar todo o seu interesse do trabalho e colocar o analista em
posição canhestra.
Se se examinar a situação mais de perto,
reconhece-se a influência de motivos que complicam ainda mais as coisas - dos
quais, alguns acham-se vinculados ao enamoramento e outros são expressões
específicas da resistência. Do primeiro tipo são os esforços da paciente em
certificar-se de sua irresistibilidade, em destruir a autoridade do médico
rebaixando-o ao nível de amante e em conquistar todas as outras vantagens
prometidas, que são incidentais à satisfação do amor. Com referência à
resistência, podemos suspeitar que, ocasionalmente, ela faz uso de uma
declaração de amor da paciente como meio de colocar à prova a severidade do
analista, de maneira que, se ele mostra sinais de complacência, pode esperar se
chamado à ordem por isso. Acima de tudo, porém, fica-se com a impressão de que
a resistência está agindo como um agent provocateur; ela intensifica o
estado amoroso da paciente e exagera sua disposição à rendição sexual, a fim de
justificar ainda mais enfaticamente o funcionamento da repressão, ao apontar os
perigos de tal licenciosidade. Todos estes motivos acessórios, que em casos
mais simples podem não se achar presente, foram, como sabemos, encarados por
Adler como parte essencial de todo o processo.
Mas como deve o analista comportar-se, a fim de
não fracassar nessa situação, se estiver persuadido de que o tratamento deve
ser levado avante, apesar desta transferência erótica, e que deve enfrentá-la
com calma?
Ser-me-ia fácil enfatizar os padrões universalmente
aceitos de moralidade e insistir que o analista nunca deve, em quaisquer
circunstâncias aceitar ou retribuir os ternos sentimentos que lhe são
oferecidos; que, ao invés disso, deve ponderar que chegou sua vez de apresentar
à mulher que o ama as exigências da moralidade social e a necessidade de
renúncia, conseguir fazê-las abandonar seus desejos e, havendo dominado o lado
animal do seu eu (self), prosseguir com o trabalho da análise.
Não atenderei, contudo, a estas expectativas -
nem a primeira nem a segunda delas. A primeira, porque não estou escrevendo
para pacientes, mas sim para médicos que têm sérias dificuldades com que lutar,
e também porque, neste caso, posso remontar a prescrição moral à sua fonte, ou
seja, a conveniência. Encontro-me, nesta ocasião, na feliz posição de poder
substituir o impedimento moral por considerações de técnica analítica, sem
qualquer alteração no resultado.
Ainda mais decididamente, contudo, recuso-me a
atender à segunda das expectativas que mencionei. Instigar a paciente a
suprimir, renunciar ou sublimar seus instintos, no momento em que ela admitiu
sua transferência erótica, seria, não uma maneira analítica de lidar com eles,
mas uma maneira insensata. Seria exatamente como se, após invocar um espírito
dos infernos, mediante astutos encantamentos, devêssemos mandá-lo de volta para
baixo, sem lhe haver feito uma única pergunta. Ter-se-ia trazido o reprimido à
consciência, apenas para reprimi-lo mais uma vez, um susto. Não devemos
iludir-nos sobre o êxito de qualquer procedimento desse tipo. Como sabemos, as
paixões pouco são afetadas por discursos sublimes. A paciente sentirá apenas
humilhação e não deixará de vingar-se por ela.
Tampouco posso eu advogar um caminho
intermediário, que a certas pessoas se recomendaria como especialmente
engenhoso. Consistiria em declarar que se retribuem os amorosos sentimentos da
paciente, mas, ao mesmo tempo, em evitar qualquer complementação física desta
afeição, até que se possa orientar o relacionamento para canais mais calmos e elevá-lo
a um nível mais alto. Minha objeção a este expediente é que o tratamento
analítico se baseia na sinceridade, e neste fato reside grande parte de seu
efeito educativo e de seu valor ético. É perigoso desviar-se deste fundamento.
Todo aquele que se tenha embebido na técnica analítica não mais será capaz de
fazer uso das mentiras e fingimentos que um médico normalmente acha
inevitáveis; e se, com a melhor das intenções, tentar fazê-lo, é muito provável
que se traia. Visto exigirmos estrita sinceridade de nossos pacientes,
colocamos em perigo toda a nossa autoridade, se nos deixarmos ser por eles
apanhados num desvio da verdade. Além disso, a experiência de se deixar levar
um pouco por sentimentos ternos em relação à paciente não é inteiramente sem
perigo. Nosso controle sobre nós mesmos não é tão completo que não possamos
subitamente, um dia, ir mais além do que havíamos pretendido. Em minha opinião,
portanto, não devemos abandonar a neutralidade para com a paciente, que
adquirimos por manter controlada a contratransferência.
Já deixei claro que a técnica analítica exige
do médico que ele negue à paciente que anseia por amor a satisfação que ela
exige. O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência. Com isto não quero
significar apenas a abstinência física, nem a privação de tudo o que a paciente
deseja, pois talvez nenhuma pessoa enferma pudesse tolerar isto. Em vez disso,
fixarei como princípio fundamental que se deve permitir que a necessidade e
anseio da paciente nela persistam, a fim de poderem servir de forças que a
incitem a trabalhar e efetuar mudanças, e que devemos cuidar de apaziguar estas
forças por meio de substitutos. O que poderíamos oferecer nunca seria mais que
um substituto, pois a condição da paciente é tal que, até que suas repressões sejam
removidas, ela é incapaz de alcançar satisfação real.
Admitamos que este princípio fundamental de o
tratamento ser levado a cabo na abstinência estenda-se muito além do caso
isolado que estamos aqui considerando, e que ele necessite ser completamente
debatido, a fim de podermos definir os limites de sua possível aplicação.
Todavia, abordaremos agora este assunto, mas manter-nos-emos tão próximos
quanto possível da situação de que partimos. O que aconteceria se o médico se
comportasse diferentemente e, supondo que ambas as partes fossem livres, se
aproveitasse dessa liberdade para retribuir o amor da paciente e acalmar sua
necessidade de afeição?
Se ele houvesse sido guiado pelo cálculo de que
esta concordância de sua parte lhe garantiria o domínio sobre a paciente e
assim capacitá-lo-ia a influenciá-la a realizar as tarefas exigidas pelo
tratamento e, dessa maneira, liberar-se permanentemente de sua neurose, então a
experiência inevitavelmente mostrar-lhe-ia que seu cálculo estava errado. A
paciente alcançaria o objetivo dela, mas ele nunca alcançaria o seu.
O que aconteceria ao médico e à paciente seria apenas o que aconteceu, segundo
a divertida anedota, ao pastor e ao corretor de seguros. O corretor de seguros,
livre pensador, estava à morte e seus parentes insistiram em trazer um homem de
deus para convertê-lo antes de morrer. A entrevista durou tanto tempo que
aqueles que esperavam do lado de fora começaram a ter esperanças. Por fim, a
porta do quarto do doente se abriu. O livre pensador não havia sido convertido,
mas o pastor foi embora com um seguro.
Se os avanços da paciente fossem retribuídos,
isso constituiria grande triunfo para ela, mas uma derrota completa para o
tratamento. Ela teria alcançado sucesso naquilo por que todos os pacientes
lutam na análise - teria tido êxito em atuar (acting out), em repetir na
vida real o que deveria apenas ter lembrado, reproduzido como material psíquico
e mantido dentro da esfera dos eventos psíquicos. No curso ulterior do
relacionamento amoroso, ela expressaria todas as inibições e reações
patológicas de sua vida erótica, sem que houvesse qualquer possibilidade de
corrigi-las; e o episódio penoso terminaria em remorso e num grande
fortalecimento de sua propensão à repressão. O relacionamento amoroso, em verdade,
destrói a suscetibilidade da paciente à influência do tratamento analítico. Uma
combinação dos dois seria impossível.
É, portanto, tão desastroso para a análise que
o anseio da paciente por amor seja satisfeito, quanto que seja suprimido. O
caminho que o analista deve seguir não é nenhum destes; é um caminho para o
qual não existe modelo na vida real. Ele tem de tomar cuidado para não se
afastar do amor transferencial, repeli-lo ou torná-lo desagradável para a
paciente; mas deve, de modo igualmente resoluto, recusar-lhe qualquer
retribuição. Deve manter um firme domínio do amor transferencial, mas tratá-lo
como algo irreal, como uma situação que se deve atravessar no tratamento e
remontar às suas origens inconscientes e que pode ajudar a trazer tudo que se
acha muito profundamente oculto na vida erótica da paciente para sua
consciência e, portanto, para debaixo de seu controle. Quanto mais claramente o
analista permite que se perceba que ele está à prova de qualquer tentação, mais
prontamente poderá extrair da situação seu conteúdo analítico. A paciente, cuja
repressão sexual naturalmente ainda não foi removida, mas simplesmente
empurrada para segundo plano, sentir-se-á então segura o bastante para permitir
que todas as suas precondições para amar, todas as fantasias que surgem de seus
desejos sexuais, todas as características pormenorizadas de seu estado amoroso
venham à luz. A partir destas, ela própria abrirá o caminho para as raízes
infantis de seu amor.
Existe, é verdade, determinada classe de
mulheres com quem esta tentativa de preservar a transferência erótica para fins
do trabalho analítico, sem satisfazê-la, não logrará êxito. Trata-se de
mulheres de paixões poderosas, que não toleram substitutos. São filhas da
natureza que se recusam a aceitar o psíquico em lugar do material e que, nas
palavras do poeta, são acessíveis apenas à ‘lógica da sopa, com bolinhos por
argumentos’. [‘Suppenlongik mit Knödelgründen’, de ‘Die Wanderraten’ de Heine.
(Transcrito erradamente por Freud: ‘Knödelargumenten’.)] Com tais pessoas
tem-se de escolher entre retribuir seu amor ou então acarretar para si toda a
inimizade de uma mulher desprezada. Em nenhum dos casos se podem salvaguardar
os interesses do tratamento. Tem-se de bater em retirada, sem sucesso, e tudo o
que se pode fazer é revolver na própria mente o problema de como é que uma
capacidade de neurose se liga a tão obstinada necessidade de amor.
Muitos analistas indubitavelmente estarão de
acordo sobre o método pelo qual outras mulheres, menos violentas em seu amor,
podem ser gradativamente levadas a adotar a atitude analítica. O que fazemos,
acima de tudo, é acentuar para a paciente o elemento inequívoco de resistência
nesse ‘amor’. O amor genuíno, dizemos, torná-la-ia dócil e intensificaria sua
presteza em solucionar os problemas de seu caso, simplesmente porque o homem de
quem está enamorada espera isso dela. Em tal caso, ela alegremente escolheria a
estrada da conclusão do tratamento, a fim de adquirir valor aos olhos do médico
e preparar-se para a vida real, onde este sentimento de amor poderia encontrar
lugar adequado. Em vez disso, apontamos nós, ela está mostrando um espírito
teimoso e rebelde, abandonou todo o interesse no tratamento e claramente não
sente respeito pelas convicções bem fundadas do médico. Está assim expressando
uma resistência, sob o disfarce de estar enamorada dele; e, além disso, não se
compunge por colocá-lo numa situação difícil. Pois, se ele recusa seu amor,
como o dever e a compreensão compelem-no a fazer, ela pode representar o papel
de mulher desprezada e então afastar-se de seus esforços terapêuticos por
vingança e ressentimento, exatamente como agora está fazendo por amor
ostensivo.
Como segundo argumento contra a genuinidade
desse amor, apresentamos o fato de que ele não exibe uma só característica nova
que se origine da situação atual, mas compõe-se inteiramente de repetições e
cópias de reações anteriores, inclusive infantis. Prometemos provar isso
mediante uma análise pormenorizada do comportamento da paciente no amor.
Se se acrescenta a dose necessária de paciência
a estes argumentos, é geralmente possível superar a difícil situação e
continuar o trabalho com um amor que foi moderado ou transformado; o trabalho
visa então a desvendar a escolha objetal infantil da paciente e as fantasias
tecidas ao redor dela.
Todavia, gostaria agora de examinar estes
argumentos com olhos críticos e levantar a questão de saber se, apresentando-os
à paciente, estamos realmente dizendo a verdade, ou se não nos estamos valendo,
em nosso desespero, de ocultamentos e deturpações. Em outras palavras: podemos
verdadeiramente dizer que o estado de enamoramento que se manifesta no
tratamento analítico não é real?
Acho que dissemos à paciente a verdade, mas não
toda a verdade, sem atentar para as conseqüências. Dos nossos dois argumentos,
o primeiro é o mais forte. O papel desempenhado pela resistência no amor
transferencial é inquestionável e muito considerável. Entretanto, a
resistência, afinal de contas, não cria esse amor; encontra-o pronto, à
mão, faz uso dele e agrava suas manifestações. Tampouco a genuinidade do
fenômeno deixa de ser provada pela resistência. O segundo argumento é muito
mais débil. É verdade que o amor consiste em novas adições de antigas
características e que ele repete reações infantis. Mas este é o caráter
essencial de todo estado amoroso. Não existe estado deste tipo que não
reproduza protótipos infantis. É precisamente desta determinação infantil que
ele recebe seu caráter compulsivo, beirando, como o faz, o patológico. O amor
transferencial possui talvez um grau menor de liberdade do que o amor que
aparece na vida comum e é chamado de normal; ele exibe sua dependência do
padrão infantil mais claramente e é menos adaptável e capaz de modificação; mas
isso é tudo, e não o que é essencial.
Por que outros sinais pode a genuinidade de um
amor ser reconhecida? Por sua eficácia, sua utilidade em alcançar o objetivo do
amor? A esse respeito, o amor transferencial não parece ficar devendo nada a
ninguém; tem-se a impressão de que se poderia obter dele qualquer coisa.
Resumamos, portanto. Não temos o direito de
contestar que o estado amoroso que faz seu aparecimento no decurso do
tratamento analítico tenha o caráter de um amor ‘genuíno’. Se parece tão
desprovido de normalidade, isto é suficientemente explicado pelo fato de que
estar enamorado na vida comum, fora da análise, é também mais semelhante aos
fenômenos mentais anormais que aos normais. Não obstante, o amor transferencial
caracteriza-se por certos aspectos que lhe asseguram posição especial. Em
primeiro lugar, é provocado pela situação analítica; em segundo, é grandemente
intensificado pela resistência, que domina a situação; e, em terceiro,
falta-lhe em alto grau consideração pela realidade, é menos sensato, menos
interessado nas conseqüências e mais ego em sua avaliação da pessoa amada do
que estamos preparados para admitir no caso do amor normal. Não devemos
esquecer, contudo, que esses afastamentos da norma constituem precisamente
aquilo que é essencial a respeito de estar enamorado.
Quanto à linha de ação do analista, é a
primeira destas três características do amor transferencial que constitui o
fator decisivo. Ele evocou este amor, ao instituir o tratamento analítico a fim
de curar a neurose. Para ele, trata-se de conseqüência inevitável de uma
situação médica, tal como a exposição do corpo de um paciente ou a comunicação
de um segredo vital. É-lhe, portanto, evidente que não deve tirar qualquer
vantagem pessoal disso. A disposição da paciente não faz diferença;
simplesmente lança toda a responsabilidade sobre o próprio analista. Na
verdade, como ele deve saber, a paciente não se preparara para nenhum outro
mecanismo de cura. Após todas as dificuldades haverem sido triunfantemente
superadas, ela muitas vezes confessará ter tido uma fantasia antecipatória na
ocasião em que começou o tratamento, no sentido de que, se se comportasse bem,
seria recompensada no final pela afeição do médico.
Para o médico, motivos éticos unem-se aos
técnicos para impedi-lo de dar à paciente seu amor. O objetivo que tem de
manter em vista é que a essa mulher, cuja capacidade de amor acha-se
prejudicada por fixações infantis, deve adquirir pleno controle de uma função
que lhe é de tão inestimável importância; que ela não deve, porém, dissipá-lo
no tratamento, mas mantê-la pronta para o momento em que, após o tratamento, as
exigências da vida real se fazem sentir. Ele não deve encenar a situação de uma
corrida de cães em que o prêmio deveria ser uma guirlanda de salsichas, mas que
algum humorista estragou ao atirar uma salsicha na pista. O resultado foi,
naturalmente, que os cães se atiraram sobre ela e esqueceram tudo sobre a
corrida e sobre a guirlanda que os atraía à vitória muito distante. Não quero
dizer que é sempre fácil ao médico se manter dentro dos limites prescritos pela
ética e pela técnica. Aqueles que ainda são jovens e não estão ligados por
fortes laços podem, em particular, achá-lo tarefa árdua. O amor sexual é
indubitavelmente uma das principais coisas da vida, e a união da satisfação
mental e física no gozo do amor constitui um de seus pontos culminantes. À
parte alguns excêntricos fanáticos, todos sabem disso e conduzem sua vida dessa
maneira; só a ciência é refinada demais para admiti-lo. Por outro lado, quando
uma mulher solicita amor, rejeitá-la e recusá-la constitui papel penoso para um
homem desempenhar; e, apesar da neurose e da resistência, existe um fascínio
incomparável numa mulher de elevados princípios que confessa sua paixão. Não
são os desejos cruamente sensuais da paciente que constituem a tentação. É mais
provável que estes repugnem, e encará-los como fenômeno natural exigirá toda a
tolerância do médico. São, talvez, os desejos de mulher mais sutis e inibidos
em seu propósito que trazem consigo o perigo de fazer um homem esquecer sua técnica
e sua missão médica no interesse de uma bela experiência.
E no entanto é inteiramente impossível para o
analista ceder. Por mais alto que possa prezar o amor, tem de prezar ainda mais
a oportunidade de ajudar sua paciente a passar por um estádio decisivo de sua
vida. Ela tem de aprender com ele a superar o princípio do prazer, e abandonar
uma satisfação que se acha à mão, mas que socialmente não é aceitável, em favor
de outra mais distante, talvez inteiramente incerta, mas que é psicológica e
socialmente irrepreensível. Para conseguir esta superação, ela tem de ser
conduzida através do período primevo de seu desenvolvimento mental e, nesse
caminho, tem de adquirir a parte adicional de liberdade mental que distingue a
atividade mental consciente - no sentido sistemático - da inconsciente.
O psicoterapeuta analítico tem, assim, uma
batalha tríplice a travar - em sua própria mente, contra as forças que procuram
arrastá-lo para abaixo do nível analítico; fora da análise, contra opositores
que discutem a importância que ele dá às forças instintuais sexuais e
impedem-nos de fazer uso delas em sua técnica científica; e, dentro da análise,
contra as pacientes, que a princípio comportam-se como opositores, mas,
posteriormente, revelam a supervalorização da vida sexual que as domina e
tentam torná-lo cativo de sua paixão socialmente indomada.
O público, leigo, sobre cuja atitude em relação
à psicanálise falei no início, indubitavelmente apossar-se-á deste debate do
amor transferencial como mais outra oportunidade de dirigir a atenção do mundo
para o sério perigo desse método terapêutico. O psicanalista sabe que está
trabalhando com forças altamente explosivas e que precisa avançar com tanto
cautela e escrúpulo quanto um químico. Mas quando foram os químicos proibidos,
devido ao perigo, de manejar substâncias explosivas, que são indispensáveis,
por causa de seus efeitos? É digno de nota que a psicanálise tenha de
conquistar para a própria, de novo, todas as liberdades que há muito tempo
foram concebidas a outras atividades médicas. Certamente não sou favorável a
abandonar os métodos inócuos de tratamento. Para muitos casos, eles são
suficientes e, quando tudo está dito, a sociedade humana não tem mais uso para
o furor senandi do que para qualquer outro fanatismo. Mas acreditar que
as neuroses podem ser vencidas pela administração de remediozinhos inócuos é
subestimar grosseiramente esses distúrbios, tanto quanto à sua origem quanto à
sua importância prática. Não; na clínica médica sempre haverá lugar para o ‘ferrum‘
e para o ‘ignis‘, lado a lado com as ‘medicinas‘; e, da mesma
maneira, nunca seremos capazes de passar sem uma psicanálise estritamente
regular e forte, que não tenha medo de manejar os mais perigosos impulsos
mentais e de obter domínio sobre eles, em benefício do paciente.
APÊNDICE: RELAÇÃO DOS TRABALHOS DE FREUD QUE TRATAM
PRINCIPALMENTE DA TÉCNICA PSICANALÍTICA E DA TEORIA DA PSICOTERAPIA
[A data ao início de cada título é a do ano
durante o qual o trabalho em apreço foi provavelmente escrito. A data ao final
é a da publicação, e sob esta data pormenores mais completos da obra serão
encontrados na Biblio-grafia e Índice Remissivo de Autores.]
1888 *
Crítica de Der Hypnotismus, de Forel (1889a)
1888 *
Introdução à tradução de De la suggestion, de Bernheim (1888-9)
1890 *
‘Tratamento Psíquico (ou Mental)’ (1890a)
1891 *
‘Hipnose’ em Therapeutisches Lexikon, de Bum (1891d)
1892 *
‘Um Caso de Tratamento Bem Sucedido pelo Hipnotismo’ (1892-93b)
1895 Estudos
sobre a Histeria, Parte IV (1895d)
1898 ‘A
Sexualidade na Etiologia das Neuroses’ (última parte) (1898a)
1899 A
Interpretação de Sonhos, Capítulo H (primeira parte) (1900a)
1901
‘Fragmento de uma Análise de um Caso de Histeria’, Capítulo IV (1905e)
1903 ‘O
Procedimento Psicanalítico de Freud’ (1904a)
1904
‘Sobre a Psicoterapia’ (1905a)
1910
‘As Perspectivas Futuras da Terapia Psicanalítica’ (1910d)
1910
‘Psicanálise “Silvestre”’ (1910k)
1911 ‘O
Manejo da Interpretação de Sonhos na Psicanálise’ (1911e)
1912 ‘A
Dinâmica da Transferência’ (1912b)
1912
‘Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise’ (1912e)
1913
‘Sobre o Início do Tratamento’ (1913c)
1914
‘Fausse Reconnaissance (“déjà raconté”) no Tratamento Psicanalítico’
(1914a)
1914
‘Recordar, Repetir e Elaborar’ (1914g)
1914
‘Observações sobre o Amor Transferencial’ (1915a)
1917 Conferências
Introdutórias sobre Psicanálise, Conferências XXVII e XXVIII (1916-17)
1918
‘Linhas de Avanço na Terapia Psicanalítica’ (1919a)
1920 Além
do Princípio de Prazer, Capítulo III (1920g)
1923
‘Considerações sobre a Teoria e Prática da Interpretação de Sonhos’
(1923c)
1926 A
Questão da Análise Leiga, Capítulo V (1926e)
1932
Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Conferência XXXIV
(última parte) (1933a)
1937
‘Análise Terminável e Interminável’ (1937c)
1937
‘Construções em Análise’ (1937d)
1938 Compêndio
de Psicanálise, Capítulo VI (1940a)
OS SONHOS NO FOLCLORE (FREUD E OPPENHEIM) (1957 [1911])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
TRÄUME IM FOLKLORE
(a) EDIÇÃO ALEMÃ:
(1911 Data provável da composição.)
1958 Dreams in Folklore, Parte II, Nova Iorque,
International Universities Press, pp. 69-111.
(b)
TRADUÇÃO INGLESA:
‘Dreams in Folklore’
1958 Id., Parte I, Nova Iorque, International
Universities Press,pp. 19-65, (Trad. de A. M. O. Richards; intr. de J.
Strachey.)
A presente tradução inglesa constitui
reimpressão da publicada em Nova Iorque, com algumas mudanças muito pequenas. O
artigo recebeu originalmente o número de referência 1957a, da Standard
Edition, e pensou-se ser melhor mantê-lo, embora a publicação real do
artigo fosse inesperadamente adiada para 1958.
A existência deste artigo, escrito conjuntamente
por Freud e o Professor D. E. Oppenheim, de Viena, foi com efeito ignorada até
o verão de 1956, quando a Sra. Liffman, filha de Oppenheim, morando então na
Austrália, trouxe-o ao conhecimento de um livreiro de Nova Iorque. Logo depois,
o manuscrito foi adquirido em nome dos Arquivos Sigmund Freud pelo Dr. Bernard
L. Pacella, e é graças à sua generosidade e à ajuda infalível do Dr. K. R.
Eissler, Secretário dos Arquivos, que podemos incluir o trabalho na Standard
Edition.
David Ernst Oppenheim, colaborador de Freud
neste artigo, nasceu em Brünn, no que hoje é a Tchecoslováquia, em 1881. Foi um
erudito clássico e tornou-se professor de Akademisches Gymnasium, escola
secundária de Viena, onde ensinou grego e latim. O Dr. Ernest Jones (1955, 16)
menciona-o entre os que assistiram às conferências universitárias de Freud em
1906, mas suas relações com este aparentemente datam apenas de 1909. No outono
desse ano, parece ter enviado a Freud cópia de um artigo que tratava da
mitologia clássica, de maneira que demonstrava conhecimento da literatura
psicanalítica, pois há uma carta de Freud (datada de 28 de outubro de 1909)
agradecendo-lhe por ele em termos muito cordiais e sugerindo que colocasse seu
conhecimento dos clássicos a serviço dos estudos psicanalíticos. O resultado
foi, evidentemente, a associação de Oppenheim com a Sociedade Psicanalítica de
Viena, da qual (novamente segundo Jones, loc. cit.) tornou-se membro em
1910. Em 20 de abril desse ano, abriu um simpósio da Sociedade de Viena sobre o
suicídio (particularmente entre escolares), que foi publicado sob forma de
brochura (1910; ver também Freud, 1910g). A contribuição de Oppenheim lá
será encontrada sob a assinatura ‘Unus Multorum’, mas ela foi reimpressa sob
seu próprio nome alguns anos mais tarde, num trabalho coletivo, Heilen und
Bilden, coordenado por Adler e Furtmüller (1914). As minutas publicadas da
Sociedade de Viena demonstram que lá ele leu três ‘comunicações breves’ durante
1910 e 1911, a primeira das quais, sobre ‘Material Folclórico Relacionado ao
Simbolismo Onírico’ (16 de novembro de 1910), possui relação evidente com o
presente trabalho. Na primavera de 1911, Freud publicou a terceira edição de A
Interpretação de Sonhos e nela inseriu uma nota de rodapé mencionando o
trabalho de Oppenheim com relação a sonhos no folclore e declarando que um
artigo sobre o assunto deveria aparecer brevemente (Ver em [1], 1972). Esta
nota foi omitida em todas as edições posteriores. A omissão, bem como o
desaparecimento do presente artigo são indubitavelmente explicados pelo fato
de, logo depois, Oppenheim haver-se tornado um adepto de Adler e, juntamente
com cinco outros membros, ter-se demitido da Sociedade Psicanalítica de Viena,
em 11 de outubro de 1911. Morreu durante a Segunda Guerra Mundial no campo de
concentração de Theresienstadt, no qual ele e sua esposa haviam sido
internados. Após a guerra, a esposa emigrou para a Austrália, levando consigo o
manuscrito; que pudera preservar. De acordo com seus desejos, a publicação dele
foi retida até depois de sua morte.
É possível datar a participação de Freud neste
artigo dentro de limites bastante restritos. Ele não pode ter sido escrito
antes da primeira parte de 1911, como se demonstra por uma referência do mesmo
ao Die Sprache des Traumes, de Stekel, publicado por volta do início
desse ano (Ver em [1].); e deve ter sido completado antes do rompimento final
com Adler no mesmo verão.
Embora o manuscrito, tal como agora o
possuímos, não tenha sofrido uma revisão final por parte dos autores, ele de
fato exige apenas uma organização editorial muito pequena e fornece-nos um meio
claro de ajuizar a parte que nele coube aos dois autores. O material bruto foi
evidentemente coligido por Oppenheim e deriva em grande parte da revista Anthropophyteia
(Leipzig, 1904-1913), editada por F. S. Krauss, na qual Freud sempre tivera
interesse especial. (Cf. sua carta aberta ao editor da mesma, 1910f, e seu
prefácio a Scatalogic Rites of All Nations [Ritos Escatológicos de Todas
as Nações], da autoria de Bourke, 1913k, p. 423 adiante, especialmente
pertinente ao presente artigo.) Oppenheim copiou este material, parte à máquina
e parte à mão (acrescentando breves observações), e submeteu-o a Freud, que
então o dispôs em seqüência apropriada, colou as laudas de Oppenheim nas suas,
muito maiores, e interpolou-as com profusos comentários. Freud deve ter então
devolvido todo o manuscrito a Oppenheim, que parece mais uma vez ter adicionado
duas ou três outras notas (algumas delas taquigrafadas).
Na versão apresentada a seguir, portanto, as
contribuições dos dois autores são automaticamente distinguidas, se não
levarmos em consideração qualquer intercâmbio prévio de idéias. Todo material
bruto, impresso aqui em tipo um pouco menor, deve ser atribuído a Oppenheim;
Freud é responsável por tudo o mais - a introdução, os comentários, a conclusão
e toda a disposição do material. A única modificação efetuada pelos
coordenadores foi transferir as referências do corpo do texto para as notas de
rodapé. As poucas observações marginais de Oppenheim foram também impressas
como notas de rodapé, com a especificação, de sua autoria. Algumas delas,
contudo, infelizmente, haviam-se tornado ilegíveis.
Nenhuma tentativa se fez, na tradução, de
reproduzir os diversos dialetos em que muitas das histórias originais acham-se
redigidas. Adotou-se um idioma convencional, de um tipo geralmente associado
aos contos folclóricos. Onde possível, as referências foram conferidas e nelas
corrigidos vários erros.
OS SONHOS NO FOLCLORE
Por Sigm. Freud e Prof. Ernst Oppenheim (Viena)
‘Celsi praetereunt austera poemata
Ramnes.’Pérsio, Sátiras.
Um de nós (O.) em seus estudos do folclore,
efetuou duas observações com referência aos sonhos ali narrados que lhe
pareceram dignas de serem comunicadas. Em primeiro lugar, que o simbolismo
empregado nesses sonhos coincide inteiramente com o aceito pela psicanálise, e,
em segundo, que grande número desses sonhos são entendidos pelo povo comum da
mesma maneira que seriam interpretados pela psicanálise, isto é, não como
premonições sobre um futuro ainda não revelado, mas como realização de desejos,
satisfação de necessidades que surgem durante o estado de sono. Certas
peculiaridades desses sonhos geralmente indecentes, contados como anedotas cômicas,
incentivaram o segundo de nós (Fr.) a tentar uma interpretação deles, a qual os
fez parecer mais sérios e mais merecedores de atenção.
I - SIMBOLISMO DO PÊNIS EM SONHOS
QUE OCORREM NO FOLCLORE
O sonho que apresentamos em primeiro lugar,
embora não contenha representações simbólicas, soa quase como uma
ridicularização do profético e um apelo em favor da interpretação psicológica
dos sonhos.
UMA INTERPRETAÇÃO DE
SONHO
Uma moça levantou-se da cama e disse à mãe que
tivera um sonho muito estranho.
’E o que foi que você sonhou? - perguntou a
mãe.
‘Como lhe contar? Eu própria não sei o que era
- uma espécie de coisa comprida, vermelha e rombuda.’
‘Comprida quer dizer uma estrada’, disse a mãe,
reflexivamente, ‘uma estrada comprida; vermelho quer dizer alegria, mas não sei
o que pode significar rombuda.’
O pai da moça, que nesse meio tempo se vestia e
escutava tudo o que a mãe e a filha estavam dizendo, ante isso murmurou, mais
ou menos para si próprio:
‘Parece-se mais com o meu peru.’
É muito mais conveniente estudar o simbolismo
onírico no folclore do que nos sonhos reais. Estes são obrigados a esconder
coisas e só entregar seus segredos à interpretação; contudo, estas anedotas
cômicas disfarçadas em sonhos visam a ser comunicações destinadas a dar prazer
à pessoa que as conta assim como à que as escuta, e, portanto, a interpretação
se acrescenta bastante desavergonhadamente ao símbolo. Estas histórias
deleitam-se em revelar os símbolos ocultadores.
No quarteto seguinte, o pênis aparece como um
cetro:
Noite passada sonhei
Que era o rei da região
E quão alegre eu estava
Com um peru na mão.
Compare-se isto com os exemplos, nos quais o
mesmo simbolismo é empregado externamente a um sonho.
Amo uma rapariga,
Que é bonita mas não minha;
Por-te-ei um cetro na mão
E serás uma rainha.
‘Recorda-te, meu rapaz’, disse Napoleão,
O imperador que não falava à toa,
‘Enquanto o peru for o cetro,
A boceta será a coroa’.
Uma variante diferente desta exaltação
simbólica dos órgãos genitais é favorecida na imaginação dos artistas. Uma bela
gravura da autoria de Félicien Rops, com o título ‘tout est grand chez les
rois‘ [‘Tudo nos reis é grande’], mostra a figura nua de um rei com as
feições do Roi Soleil [Luíz XIV], cujo pênis gigantesco, que se ergue ao
nível do braço, porta, ele próprio, uma coroa. A mão direita equilibra o cetro,
enquanto a esquerda agarra uma grande orbe, que, em virtude de uma fenda
central, apresenta semelhança inequívoca com outra parte do corpo que é objeto
de desejos eróticos. O dedo indicador da mão esquerda acha-se inserido neste
sulco.
Na canção folclórica que se segue, na Silésia,
o sonho só é inventado para ocultar uma ocorrência diferente. O pênis aparece
aqui como um verme (‘gorda minhoca’) que se esgueirou para dentro da
moça, e, na ocasião apropriada, arrasta-se de novo para fora, como um vermezinho
(bebê).
CANÇÃO DA
MINHOCA
Deitada na relva, certo dia, uma jovem,
Susana seu nome, com paixão sonhava;
E, a dormir, um sorriso no rosto lhe dançava,
Enquanto em seu zagal e nos ardis dele pensava.
Mas, enquanto dormia - ó sonho de temor! -
Sonhou que seu amor se havia transformado,
De belo e encantador, numa gorda minhoca,
E que esta dentro dela havia penetrado.
Com pavor no coração, assustada despertou;
Rápida, em direção à aldeia, se lançou
E que uma minhoca corpo a dentro lhe entrara
A chorar a todos, moços e velhos, contou.
Dos lamentos e prantos o som chegou
Aos ouvidos da mãe, que muito praguejou;
Pressentindo desgraça, ao quarto acorreu
E mui completamente a donzela examinou.
A minhoca buscava, mas nada achou -
Infelicidade de desanimar.
E assim, sem delongas, se apressou,
Em auxílio à cartomante solicitar.
Esta com perícia as cartas botou
E falou: ‘Ainda temos de esperar.
‘O Valete, indagado, resposta não deu;
‘Mais forte o Rei Vermelho há de se mostrar.
‘Aquilo que temeis Rei Vermelho confirmou:
‘O verme, realmente, nela penetrou;
‘Mas, como em tudo, há de se dar tempo ao
tempo,
‘A hora de apanhá-lo ainda não chegou.’
Quando as funestas palavras Susana escutou,
Cheia de tristeza no quarto se encerrou,
Até que chegou a pavorosa hora, e, para fora,
Alegremente o vermezinho se esgueirou.
Alertadas assim, ó donzelas, ficai,
De a sorte de Susana por guia tomar,
Pois senão, para vossa pena e pesar,
Uma gorda minhoca em vós há de penetrar.
A mesma simbolização do pênis por um verme
é encontrada em diversas piadas obscenas.
No sonho que agora se segue o pênis é
simbolizado por uma adaga; a mulher que o sonha está puxando uma adaga a
fim de apunhalar-se, quando é acordada pelo marido e exortada a não arrancar
fora seu membro.
UM SONHO MAU
Uma mulher sonhou que as coisas haviam chegado
a tal ponto que nada tinham para comer antes do feriado de fim de ano e
tampouco podiam comprar coisa alguma. O marido havia bebido todo o dinheiro.
Sobrava apenas um bilhete de loteria e até este realmente teriam de penhorar.
Mas o homem ainda o estava guardando, porque a extração deveria realizar-se no
dia 2 de janeiro. Disse ele: ‘Mulher, a extração será amanhã; deixemos o
bilhete esperar mais um pouco. Se não ganharmos, então teremos de vendê-lo ou
penhorá-lo.’ - ‘Bem, que o diabo o leve; tudo o que você comprou foi
aborrecimento e tirou tanto dele quanto leite de um bode.’ Então, o dia
seguinte chegou e lá veio o jornaleiro. Ele o fez parar, apanhou um exemplar e
começou a olhar a lista. Passou os olhos pelos números, correu todas as colunas
seu número não se achava nelas. Não confiou nos próprios olhos, examinou-as
novamente e, desta vez, realmente, deu com o número de seu bilhete. O número
era o mesmo, mas o número da série não conferia. Mais uma vez não confiou em si
mesmo e pensou consigo:
‘Deve ser um engano. Espera um pouco, irei ao
banco e certificar-me-ei de qualquer maneira.’ E lá se foi, cabisbaixo. No
caminho, encontrou um segundo jornaleiro. Comprou outro exemplar de um segundo
jornal, conferiu atentamente a lista e logo encontrou o número de seu bilhete.
O número da série também era o mesmo que se achava no bilhete. Coubera-lhe o
prêmio de 5.000 rublos. Irrompeu banco a dentro, correu para cima e pediu-lhes
que pagassem imediatamente o bilhete premiado. O banqueiro disse-lhe que não poderiam
pagar-lhe ainda, somente dentro de uma semana ou duas. O homem começou a
implorar e a rogar: ‘Por favor, seja bondoso! Dê-me mil, pelo menos; posso
receber o resto depois!’ O banqueiro recusou-se, mas aconselhou-o a procurar o
vendedor que lhe havia fornecido o bilhete premiado. Que fazer agora?
Exatamente então, como se houvesse saído do chão, apareceu um pequeno judeu.
Este cheirou um bom negócio e fez-lhe a oferta de pagar o dinheiro
imediatamente, só que, ao invés de 5.000, apenas 4.000. Os outros mil seria a
sua cota. O homem ficou encantado com sua boa sorte e decidiu dar ao judeu os
1.000 rublos, de maneira a obter o dinheiro no ato. Recebeu o dinheiro do judeu
e entregou-lhe o bilhete; depois foi para casa. No caminho, entrou numa
estalagem, tomou um trago e de lá seguiu direto para casa. Caminhava sorrindo e
trauteando uma canção. Sua mulher o viu pela janela e pensou: ‘Ele certamente
vendeu o bilhete de loteria; pode-se ver como está alegre. Provavelmente fez
uma visita à estalagem e embebedou-se, porque estava se sentindo infeliz.’ Aí o
homem entrou, colocou o dinheiro sobre a mesa da cozinha e procurou a mulher
para dar-lhe a boa notícia de que havia ganho e conseguido o dinheiro. Enquanto
se abraçavam e beijavam, com alegria no coração por serem tão felizes, a filha
de três anos apanhou o dinheiro e jogou-o no fogão. Aí, eles vieram contar o
dinheiro e este não se achava mais lá. O último maço de notas já estava pegando
fogo. Enfurecido, o homem apanhou a meninazinha pelas pernas e arremessou-a
contra o fogão. Ela caiu morta. A desgraça era evidente, agora não havia meio
de fugir à Sibéria. Apanhou o revólver e - bang! - deu um tiro no peito e caiu
morto. Horrorizada por tal calamidade, a mulher agarrou uma adaga e ia
apunhalar-se. Tentou tirá-la para fora da bainha, mas não conseguia, por mais
que tentasse. Escutou então uma voz, como se proviesse do Céu: ‘Chega, pára! O
que está fazendo?’ Ela acordou e viu que não estava puxando da adaga, mas sim
do instrumento do marido, que lhe dizia: ‘Chega, larga, senão você vai
arrancá-lo fora!’
A representação do pênis por uma arma, faca de
corte, adaga etc., é-nos familiar a
partir dos sonhos de ansiedade das mulheres abstinentes em geral, achando-se
também na raiz de numerosas fobias em pessoas neuróticas. O complicado disfarce
do presente sonho, contudo, exige que façamos uma tentativa de torná-lo mais
claro para nós mediante uma interpretação psicanalítica baseada em
interpretações já efetuadas. Assim procedendo, não estamos desprezando o fato
de que iremos além do material apresentado no próprio conto folclórico e que,
conseqüentemente, nossas conclusões perderão em certeza.
Visto este sonho terminar num ato de agressão
sexual efetuado pela mulher como uma ação onírica. Isto sugere que devemos
tomar o estado de necessidade material do conteúdo do sonho como
substituto de um estado de necessidade sexual. Só a compulsão libidinal
mais extrema pode justificar tal agressividade por parte de uma mulher. Outros
fragmentos do conteúdo onírico apontam em direção bastante definida e
diferente. A culpa por este estado de necessidade é atribuída ao homem. (Ele
bebera todo o dinheiro.) O sonho prossegue livrando-se do homem e da filha e,
astuciosamente, foge ao senso de culpa ligado a estes desejos, fazendo com que
a filha seja morta pelo homem, que, então, comete suicídio devido ao remorso.
Visto ser este o conteúdo do sonho, somos levados a concluir, de muitos
exemplos análogos, que aqui está uma mulher que não se acha satisfeita com o
marido e que, em suas fantasias, anseia por outro casamento. É a mesma coisa
para a interpretação encararmos esta insatisfação da pessoa que sonha como um
estado permanente de carência ou simplesmente como expressão de um estado
temporário. A loteria, que no sonho ocasionou um efêmero estado de felicidade,
talvez pudesse ser entendida como referência simbólica ao casamento. Este
símbolo ainda não foi identificado com certeza no trabalho psicanalítico, mas o
povo tem o hábito de dizer que o casamento é um jogo de azar, que no matrimônio
se tira o bilhete premiado ou então um em branco. Os números, que foram
enormemente ampliados pela elaboração onírica, bem poderiam corresponder, neste
caso, ao número de repetições do ato satisfatório que são desejadas. Damo-nos
assim conta de que o ato de puxar o membro do homem não apenas tem o
significado de uma provocação libidinal, mas também o sentido adicional de
crítica desdenhosa, como se a mulher quisesse arrancar o membro fora - como o
homem corretamente presumiu - por ele não ser bom, não cumprir suas obrigações.
Não nos teríamos demorado na interpretação
deste sonho e investigado-o além de seu simbolismo aberto, não fosse pelo fato
de que outros sonhos, que da mesma maneira terminam por uma ação onírica,
demonstram que o povo comum identificou aqui uma situação típica que, onde quer
que ocorra, é suscetível da mesma explicação. (Cf. em [1].)
II - SIMBOLISMO DAS FEZES E AÇÕES ONÍRICAS
RELACIONADAS
A psicanálise ensinou-nos que, no mais
primitivo período da infância, as fezes constituem substância muito apreciada,
em relação à qual os instintos coprófilos encontram satisfação. Com a repressão
destes instintos, que é acelerada tanto quanto possível pela educação, essa
substância cai em desprezo e então serve a propósitos conscientes como meio de
expressar desdém e menosprezo. Certas formas de atividade mental, tais como o
chiste, ainda são capazes de tornar a fonte obstruída de prazer acessível por
um breve momento, e assim demonstram quanto da estima que os seres humanos
outrora dedicaram a suas fezes ainda continua preservada no inconsciente. O
remanescente mais importante desta antiga estima é, porém, que todo o interesse
que a criança teve nas fezes transfere-se, no adulto, para outro material, que
aprende na vida a colocar acima de quase tudo o mais - o ouro. Quão antiga é
esta vinculação entre excremento e ouro pode-se ver a partir de uma observação
de Jeremias: o ouro, segundo antiga mitologia oriental, é o excremento do
inferno.
Nos sonhos do folclore, o ouro é visto, da
maneira menos ambígua, como símbolo das fezes. Se o que dorme sente necessidade
de defecar, sonha com ouro, com tesouros. O disfarce do sonho, que se destina a
induzi-lo erradamente a satisfazer suas necessidades na cama, geralmente faz o
monte defezes servir de sinal para assinalar o lugar em que o tesouro pode ser
encontrado; o que equivale a dizer que o sonho - como se através de uma
percepção endopsíquica - afirma diretamente, ainda que em forma invertida, ser
o ouro um sinal ou símbolo das fezes.
Um simples sonho de tesouro ou defecação deste
tipo é o seguinte, relatado nas Facetiae, de Poggio.
OURO DE
SONHO
Certo homem contou em um grupo que sonhara
haver encontrado ouro. Imediatamente, outro homem suplantou-o com esta história.
(O que se segue é citado literalmente).
‘Meu vizinho um dia sonhou que o Diabo
conduziu-o a um lugar, para escavar em busca de ouro, mas ele não encontrou
nada. Então o Diabo disse “Está aí, certamente; somente você não pode
desenterrá-lo agora; mas tome nota do lugar, de modo a poder reconhecê-lo de
novo, sozinho.”
‘Quando o homem perguntou se o lugar deveria
ser identificado por algum sinal, o Diabo sugeriu: ‘‘Basta cagar nele; assim,
não ocorrerá a ninguém que haja ouro escondido aí e você poderá reconhecer o
lugar exato.” O homem assim fez e então acordou imediatamente e viu que havia
feito um grande monte na cama.’
(Damos a conclusão em resumo.) Enquanto deixava
apressadamente a casa, pôs um boné em que um gato havia feito suas necessidades
durante a mesma noite. Teve de lavar a cabeça e os cabelos. ‘E assim o ouro de
seu sonho transformou-se em imundície.’
Trarasevsky (1909, 194, nº 232) relata um sonho
semelhante, oriundo da Ucrânia, no qual o camponês recebe um tesouro do Diabo,
a quem acendera uma vela, e põe um monte de fezes para assinalar o lugar.
Não precisamos surpreender-nos com que o Diabo
aparece nestes dois sonhos como outorgante de tesouros e sedutor, pois o Diabo
- ele próprio anjo expulso do Paraíso - ‘certamente nada mais é que a personificação
da vida instintual reprimida e inconsciente.’
Os motivos por trás destas simples anedotas
cômicas sobre sonhos parecem esgotar-se num deleite cínico, na sujeira e numa
satisfação maliciosa pelo constrangimento do que sonha. Noutros sonhos sobre
tesouros, porém, a forma assumida pelo sonho é variada [‘Variirt‘ no MS
- transcrito incorretamente como ‘verwirrt‘ no texto alemão.] sob todos
os aspectos e inclui diversos constituintes cuja origem e significação bem
podemos investigar; pois não encararemos nem mesmo estes conteúdos oníricos,
destinados a fornecer uma justificação racionalista para a obtenção da
satisfação, como inteiramente arbitrários e sem sentido.
Nos dois exemplos seguintes, o sonho não é
atribuído a uma pessoa a dormir sozinha, mas a uma de duas pessoas - dois
homens - que partilham um só leito. Como resultado do sonho, o sonhador suja
seu companheiro de cama.
UM SONHO
VÍVIDO
Dois viajantes chegaram cansados a uma
estalagem e solicitaram acomodações para a noite. ‘Sim’ respondeu o
estalajadeiro, ‘se não tiverem medo, poderão conseguir um quarto, mas ele é
mal-assombrado. Se quiserem ficar, está bem, e o pernoite nada lhes custará, no
que diz respeito ao quarto. Os rapazes se perguntaram: ‘Você tem medo?’ ‘Não’.
Então apanharam outro litro de vinho e foram para o quarto que lhes fora
destinado.
Mal se haviam deitado quando a porta se abriu e
uma figura branca deslizou através do quarto. Um dos companheiros perguntou ao
outro: ‘Você viu algo?’ ‘Vi’. ‘E por que não disse nada?’ ‘Espere, ela vai
atravessar de novo o quarto.’ E, realmente, a figura deslizou para dentro de
novo. Um dos rapazes pulou da cama rapidamente, mas mais rápido ainda o
fantasma deslizou para fora através da abertura da porta. O rapaz, muito
rápido, escancarou a porta e viu a figura, uma bela mulher, já a meio caminho
escadas abaixo. ‘O que está fazendo aqui?’ gritou-lhe o rapaz. A figura parou,
virou e falou: ‘Agora estou livre. Muito tempo tive de vagar. Como recompensa,
fique com o tesouro que se acha exatamente no lugar onde você está parado.’ O
rapaz ficou tão assustado quanto deliciado e, a fim de assinalar o lugar,
levantou sua camisa de dormir e deixou cair um belo monte, porque pensava que
ninguém limparia aquele sinal. Mas, exatamente quando se achava no melhor da
coisa, sentiu alguém subitamente agarrá-lo. ‘Seu porco sujo’, berraram-lhe no
ouvido, você está cagando na minha camisa.’ Ante essas grosseiras palavras, o
feliz sonhador despertou de sua boa sorte de mentira para descobrir-se
rudemente arremessado para fora do leito.
CAGOU NA
SEPULTURA
Dois cavalheiros chegaram a um hotel, comeram a
ceia, beberam e, por fim, quiseram recolher-se. Perguntaram ao encarregado se
podia conseguir-lhes um quarto. Como os quartos se achavam todos tomados, o
encarregado cedeu-lhes o seu, em que ambos deveriam pernoitar, pois logo
encontraria um lugar para dormir noutra parte. Os dois homens deitaram-se na
mesma cama. Um espírito apareceu a um deles em sonho, acendeu uma vela e
conduziu-o ao cemitério. O portão se abriu e o espírito, com a vela na mão e o
homem atrás dele, caminhou até a sepultura de uma virgem. Quando lá chegaram, a
vela subitamente se apagou. ‘O que farei agora? Como poderei dizer qual é a
sepultura da donzela amanhã, quando for dia?’ perguntou ele no sonho. Então uma
idéia lhe veio em salvação; abaixou as calças e cagou na sepultura. Quando
acabou de cagar, seu companheiro, que dormia ao lado, esbofeteou-o primeiro
numa face e depois na outra: ‘O quê? e você me caga bem na cara?’
Nestes dois sonhos, em lugar do Demônio
aparecem outras figuras sobrenaturais, a saber, fantasmas - isto é, espírito de
mortos. O espírito do segundo sonho conduz realmente o que sonha até o
cemitério, onde deve assinalar uma sepultura específica defecando sobre ela.
Uma parte desta situação é muito fácil de entender. Quem dorme sabe que a cama
não é lugar apropriado para satisfazer suas necessidades; daí, no sonho, faz-se
afastar dela e arranja uma pessoa que mostra a seu impulso oculto o caminho
certo para outro lugar onde lhe é permitido satisfazê-las e, na verdade, as
circunstâncias lhe exigem que o faça. O espírito do segundo sonho utiliza uma
vela ao conduzi-lo, como um criado faria se estivesse levando um estranho à
privada, à noite, quando está escuro. Mas por que estes representantes da
exigência de uma mudança de cena, que a pessoa adormecida preguiçosamente
deseja evitar a todo custo, são indivíduos tão sinistros como fantasmas e
espíritos de mortos? Por que o espírito do segundo sonho mostra o caminho até o
cemitério, como para profanar uma sepultura? Afinal de contas, estes elementos
nada parecem ter a ver com a premência de defecar e a simbolização das fezes
pelo ouro. Há neles indicação de uma ansiedade que talvez pudesse ser remontada
a um esforço para suprimir a realização da satisfação na cama; mas esta
ansiedade não explicaria a natureza específica do conteúdo onírico, ou seja,
sua referência à morte. Abster-nos-emos de efetuar uma interpretação neste
ponto e acentuaremos ainda, como a necessitar de explicação, o fato de que em
ambas as situações, em que dois homens estão dormindo juntos, o elemento
sinistro do guia fantasmagórico acha-se associado a uma mulher. O espírito do
primeiro sonho é logo revelado como sendo uma bela mulher, que sente ter sido
agora libertada, e o do segundo mostra o caminho até a sepultura de uma moça,
na qual a marca assinaladora deve ser colocada.
Voltemo-nos, em busca de maiores
esclarecimentos, para alguns outros sonhos de defecação deste tipo, em que os
companheiros de leito não são mais dois homens, mas sim um homem e uma mulher,
um casal. O ato de satisfação realizado no sono, em resultado do sonho, parece
aqui particularmente repelente, mas talvez por essa própria razão oculte um
sentido especial.
Em primeiro lugar, porém apresentaremos um
sonho (por causa de sua vinculação em conteúdo com o que o seguem) que,
estritamente falando, não se ajusta no plano que acabamos de formular. Ele é
incompleto, visto que um elemento, isto é, o sonhador a sujar seu companheiro
de leito, a esposa, acha-se ausente. Por outro lado, a vinculação entre a
premência de defecar e temor da morte é extremamente evidente. O camponês,
descrito como casado, sonha que foi atingido por um raio e que sua alma
ascendeu ao Céu. Lá em cima, implora que lhe seja permitido retornar mais uma
vez à Terra, a fim de ver a mulher e os filhos, obtém permissão para
transformar-se numa aranha e deixar-se cair pelo fio tecido por ele próprio. O
fio é curto demais e o esforço para emitir ainda mais fio do corpo resulta em
defecação.
SONHO E
REALIDADE
Um camponês deitou-se e teve um sonho. Viu-se
no campo com os seus bois, arando. Então repentinamente, caiu um raio e o
matou. Depois sentiu muito claramente sua alma flutuando para cima, até que,
por fim, chegou ao Céu. São Pedro estava parado nos portões de entrada e ia
mandar o camponês entrar sem mais conversa, mas esse implorou que lhe fosse
permitido descer à Terra uma vez mais, a fim de poder, pelo menos, despedir-se
da mulher e dos filhos. Mas São Pedro disse que não poderia fazê-lo, pois uma
vez um homem chegue ao Céu não lhe é permitido retornar ao mundo. Ante isto, o
camponês chorou e implorou lastimosamente, até que, por fim, São Pedro
concordou. Entretanto, só havia uma maneira possível de o camponês ver sua
família de novo e essa era São Pedro transformá-lo num animal e enviá-lo para
baixo. Assim, o camponês foi transformado numa aranha e teceu um longo fio,
pelo qual se deixou cair. Quando chegou exatamente em cima de seu lar, ao nível
das chaminés e já podia ver as crianças brincando no prado, para seu horror
notou que não podia mais fiar. Naturalmente, seu medo foi grande, pois
certamente queria chegar até o chão. Então se espremeu e espremeu para fazer o
fio mais comprido. Espremeu-se com toda a força - houve um ruído alto - e o
camponês acordou. Algo muito humano havia-lhe acontecido enquanto dormia.
Encontramos aqui o fio tecido como um novo
símbolo para fezes evacuadas, embora a psicanálise não nos forneça nenhu
correspondente para essa simbolização mas, pelo contrário, atribua outro
significado simbólico a fio. Esta contradição será resolvida posteriormente.
[Ver em [1].]
O sonho seguinte, ricamente elaborado e
mordazmente narrado, poderia ser descrito como ‘sociável’; ele termina com a
esposa sendo sujada. Seus pontos de concordância com o sonho anterior, no
entanto, são muito marcantes. O Camponês, é verdade, não está morto, mas se
acha no Céu, quer retornar à Terra e experimenta a mesma dificuldade em ‘fiar’
um fio suficientemente longo para permitir-lhe chegar em baixo. Todavia, não
tece este fio para si mesmo como uma aranha, de seu próprio corpo, mas, de
maneira menos fantástica, de tudo que pode amarrar, e, como o fio ainda não é
bastante longo para chegar, os anjinhos efetivamente o aconselham a defecar e a
encompridar a corda com os excrementos.
A ASCENSÃO DO CAMPONÊS AO CÉU
Um camponês teve o seguinte sonho. Ele escutara
que o trigo no Céu estava muito valorizado, de maneira que pensou que gostaria
de levar seu trigo para lá. Carregou a carroça, arreou o cavalo e pôs-se a
caminho. Viajou muito tempo até que viu a estrada do Céu e a seguiu. Assim
chegou aos portões do Céu e - vejam só! - eles estavam abertos. Avançou direto,
a fim de ir parar lá dentro, mas mal havia dirigido a carroça para eles quando
- blam! - os portões se fecharam com estrondo. Então, começou a implorar:
‘Deixem-me entrar, por favor, sejam bondosos!’ Mas os anjos não o deixaram entrar
e disseram-lhe que havia chegado tarde. Então, ele viu que nada tinha a fazer
ali, que não havia nada para ele, de modo que deu meia volta. Mas - imaginem! -
a estrada pela qual havia viajado desaparecera. O que deveria fazer? Dirigiu-se
novamente aos anjos: ‘Queridinhos, por favor, sejam bonzinhos e levem-me de
volta à Terra, se for possível! Dêem-me uma estrada, a fim de que possa voltar
a casa com meu cavalo e minha carroça!’ Mas os anjos responderam: ‘Não, filho
do homem, seu cavalo e sua carroça ficam aqui e você pode descer como quiser.’
‘Mas como é que vou descer.’ Então, ele apanhou as rédeas. Desceu, desceu, e
então olhou para baixo - a Terra ainda estava muito longe. Subiu novamente e
encompridou a corda que havia atado, acrescentando-lhe a cilha e os tirantes.
Depois, começou a descer novamente, mas mesmo assim ainda não alcançava a
Terra; de modo que atou também os varais e o corpo da carroça. Ainda era curto.
O que fazer agora? Deu tratos à bola e então pensou: ‘Ah, vou encompridá-la com
o casaco, as calças, a camisa e depois com o cinto’. E foi o que fez; atou tudo
e desceu. Quando chegou ao final do cinto, a Terra ainda se achava longe. E aí
não soube o que fazer; não tinha mais nada para atar e pular era perigoso;
poderia quebrar o pescoço. Implorou novamente aos anjos: ‘Sejam gentis,
levem-me de volta para a Terra!’ Os anjos responderam: ‘Cague, que o estrume
dará uma corda.’ E ele cagou e cagou quase meia hora, até não lhe sobrar mais
nada para cagar. Deu uma longa corda e ele desceu por ela. Desceu, desceu e
chegou ao fim da corda, mas a Terra ainda se achava longe. Começou então a
implorar de novo aos anjos que o levassem de volta para a Terra. Mas os anjos
responderam: ‘Ora, filho do homem, mije, que o mijo dará um cordão de seda!’ O camponês
mijou e mijou, sem parar, até não poder mais. Viu que o mijo se havia realmente
transformado num cordão de seda e agarrou-se nele. Desceu, desceu e chegou ao
fim do cordão; olhou e este não chegava ainda à Terra: eram necessárias ainda
uma braça e meia ou duas. Mais uma vez implorou aos anjos que o levassem para
baixo, mas os anjos responderam: ‘Não, irmão, agora não tem mais ajuda; pula!’
O camponês balançou-se indeciso na corda; não conseguia reunir coragem para
pular. Mas, então, viu que não lhe restava outra saída e - bum! - em vez de
pular do Céu, caiu voando da estufa e só recobrou os sentidos no meio do
quarto. Aí acordou e gritou: ‘Mulher, mulher, onde é que você está?’ A esposa
acordou, pois escutara o alarido, e disse ‘Diabos o levem, está ficando
maluco?’ Apalpou em volta e viu a sujeira: o marido havia cagado e mijado em
cima dela. Começou a xingá-lo e a repreendê-lo severamente. O camponês
perguntou: ‘Por que está reclamando? Já temos amolações bastantes, de qualquer
jeito. O cavalo está perdido, ficou lá no Céu, e eu quase morri. Deus seja
louvado que ainda me acho vivo, pelo menos!’ ‘que besteiras está falando? Você
andou bebendo demais. O cavalo está no estábulo, você estava em cima da estufa
e me sujou toda e depois pulou lá de cima’. Foi então que o homem recobrou o
domínio e somente aí começou a compreender que havia simplesmente sonhado
aquilo tudo e então contou à mulher o sonho, de como havia viajado até o Céu e,
de lá, descera novamente à Terra.
Neste ponto, contudo, a psicanálise impõe-nos
uma interpretação que altera toda nossa visão desta espécie de sonhos. Objetos
extensíveis, assim nos diz a experiência de interpretação de sonhos, são
normalmente símbolos de ereção. Em ambas estas anedotas de sonhos, a ênfase
reside no elemento de o fio recusar-se a ficar suficientemente longo e a
ansiedade no sonho acha-se também ligada ao mesmo elemento. O fio, além disso,
como todas as coisas a ele análogas (cordel, corda, barbante etc.), é um
símbolo do sêmem. O camponês, pois, está-se esforçando por produzir uma ereção
e somente quando esta não é bem sucedida é que recorre à defecação. Surge
imediatamente, nestes sonhos, uma necessidade sexual por trás da excremencial.
Esta necessidade sexual, porém, é muito mais
adequada para explicar os constituintes remanescentes do conteúdo do sonho.
Somos forçados a admitir, se estivermos prontos a presumir que estes sonhos
fictícios são, em essência, corretamente construídos, que a ação onírica pela
qual terminam deve ter um significado, o significado pretendido pelos
pensamentos latentes do sonhador. Se este defeca sobre a mulher no final, então
todo sonho deve ter isto por objetivo e fornecer o motivo para tal desenlace.
Este motivo não pode significar senão um insulto à esposa, ou, estritamente
falando, uma rejeição a ela. É então fácil estabelecer associação entre isto e
a significação mais profunda da ansiedade expressa no sonho.
A situação, a partir da qual este último sonho
se desenvolve, pode ser explicada de acordo com as sugestões seguintes. A
pessoa adormecida é dominada por uma intensa necessidade erótica, indicada por
símbolos bastante claros no início do sonho (ele ouvira dizer que o trigo -
provavelmente equivalente ao sêmen - estava muito valorizado. Avançou, a fim de
passar com seu cavalo e carroça - símbolos genitais - pelos portões abertos do
Céu). Mas este impulso libidinal provavelmente se aplica a um objeto
inatingível. Os portões se fecham, ele abandona sua intenção e quer retornar à
Terra. Mas a esposa, deitada a seu lado, não o atrai; esforça-se em vão por
conseguir uma ereção com ela. O desejo de livrar-se dela, a fim de substituí-la
por outra mulher melhor é, no sentido infantil, um desejo de morte. Quando
alguém acalenta tais desejos em seu inconsciente contra uma pessoa que, não
obstante, é realmente amada, eles se transformam, para esse alguém, em medo da
morte, temor por sua própria vida. Daí a presença, nestes sonhos, do estado de
morto, da ascensão ao Céu, do desejo hipócrita de ver mulher e filhos
novamente. Mas a libido sexual desapontada encontra liberação ao longo do
caminho da regressão, no impulso de desejo excremencial, que injuria e
emporcalha o objeto sexual imprestável.
Se este sonho específico torna plausível uma
interpretação deste tipo, então, em vista das peculiaridades do material que o
sonho contém, só podemos conseguir testar a interpretação aplicando-a a toda
uma sucessão de sonhos com conteúdo afim. Com este objetivo em vista,
retornemos aos sonhos anteriormente mencionados, onde encontramos a situação de
um homem que dorme com outro como companheiro de leito. A presença da mulher
nestes sonhos adquire agora, retrospectivamente, significado adicional. O que
dorme, dominado por um impulso libidinal, rejeita o homem; quer vê-lo longe e
uma mulher em seu lugar. Um desejo de morte, dirigido contra o companheiro de
cama masculino e indesejado, é certo que não é tão severamente punido pela
censura moral quanto um dirigido contra a esposa, mas a reação é
suficientemente ampla para fazer voltar o desejo contra si próprio ou contra o
objeto feminino desejado. O próprio sonhador é levado pela morte; e não é o
homem que está morto, mas a mulher pela qual o sonhador anseia. Todavia, no
final, a rejeição do objeto sexual masculino encontra um escoadouro no
emporcalhamento deste, e isto é sentido e vingado pelo outro como uma afronta.
Nossa interpretação adapta-se, assim, a este
grupo de sonhos. Se retornarmos agora aos sonhos acompanhados pelo
emporcalhamento da mulher, estaremos preparados para descobrir que elementos
ausentes ou apenas sugeridos no sonho que tomamos como exemplo são
inequivocamente expressos em outros sonhos semelhantes.
No sonho de defecação seguinte, o
emporcalhamento da mulher não é enfatizado, mas é-nos dito muito claramente,
tanto quanto possível no reino do simbolismo, que o impulso libidinal se acha
dirigido para outra mulher. A pessoa que sonha não deseja sujar seu próprio
campo, mas pretende defecar na terra do vizinho.
ESTÚPIDO!
Um camponês sonhou que estava trabalhando em
seu campo de trevos. Foi surpreendido por uma necessidade urgente e, visto não
querer sujar seu próprio trevo, correu até a árvore que se erguia no campo do
vizinho, baixou as calças e deixou cair uma rodela de bom tamanho sobre o chão.
Finalmente, quando satisfeito acabou, quis limpar-se e começou a arrancar grama
com vontade. Mas, o que era aquilo? Nosso camponês acordou de seu sono com um
tranco e agarrou sua bochecha dolorida, que alguém havia acabado de esbofetear.
‘Seu estúpido velho e surdo’ - voltando a si, ouviu a mulher, a seu lado na
cama, a xingá-lo. ‘Quer parar de puxar os meus pêlos, quer?’
Arrancar cabelos (grama), que aqui toma o lugar
de emporcalhar, está mencionado ao lado deste no sonho seguinte. A experiência
psicanalítica demonstra que se origina do grupo de símbolos relativos à
masturbação (ausreissen, abreissen [sacar, arrancar]).
O desejo de morte da pessoa que sonha, dirigido
contra a esposa, pareceria ser o que mais exige confirmação em nossa
interpretação. Mas no sonho que se segue, o sonhador realmente enterra a esposa
(hipocritamente designada como um tesouro), ao enterrar o recipiente que contém
o ouro na terra e, como é comum nos sonhos sobre tesouro, ao deixar cair um
monte de fezes em cima, para assinalar o lugar. Durante a escavação, ele está
com as mãos ocupadas na vagina da mulher.
O SONHO DO
TESOURO
Certa vez um camponês teve um sonho terrível.
Pareceu-lhe que era tempo de guerra e que todo o distrito estava sendo saqueado
pelos soldados inimigos. Mas ele possuía um tesouro em relação ao qual se
achava tão assustado que não sabia bem o que fazer com ele nem mesmo onde, na
verdade, deveria escondê-lo. Por fim, pensou em enterrá-lo no jardim, onde
sabia de um lugar bom e apropriado. E sonhou ainda que saiu e foi até o lugar
onde queria cavar a terra, de maneira a colocar grande pote no buraco. Mas, ao
procurar uma ferramenta para escavar, não encontrou nada em volta e afinal teve
de usar as mãos. Assim, cavou o buraco com as mãos nuas, nele depositou o pote
de barro com o dinheiro e cobriu tudo novamente com terra. Já ia embora, mas
deteve-se lá um instante e pensou consigo mesmo: ‘Mas, quando os soldados se
forem de novo, como farei para encontrar o tesouro, se não puser uma marca
aqui?’ E imediatamente começou a procurar; procurou aqui e acolá, em cima e em
baixo, em todo o lugar. Não, no final nada encontrou, em parte alguma que lhe
pudesse indicar novamente o lugar em que enterrara o dinheiro. Logo em seguida,
porém, sentiu uma necessidade. ‘Ah’, disse consigo, ‘é isso mesmo, posso cagar
em cima’. De maneira que abaixou as calças imediatamente e fez um belo monte no
lugar em que enterrara o pote. Viu então perto dele, um pouco de grama e ia arrancá-la,
de modo a poder limpar-se com ela. Nesse momento, porém, recebeu uma bofetada
tal que, por um segundo, ficou inteiramente tonto e olhou em volta espantado.
Logo em seguida escutou a esposa, fora de si de raiva, a gritar-lhe: ‘Seu
bastardo atrevido, seu imprestável! Pensa que tenho de aturar tudo que vem de
você? Primeiro mexe com as duas mão na minha boceta, depois caga em cima dela e
agora quer até arrancar-lhe os pêlos!’
Com este exemplo, retornamos aos sonhos de
tesouro com que começamos, e observamos que estes sonhos de defecação que se
relacionam a tesouros contêm pouco ou nenhum medo da morte, enquanto que os
outros, nos quais a relação com a morte é diretamente expressa (sonhos de uma
ascensão ao Céu), desprezam o tesouro e motivam a defecação de outras maneiras.
É quase como se a transformação hipócrita da esposa num tesouro evitasse a
punição pelo desejo de morte.
Um desejo de morte dirigido contra a mulher é
muito claramente admitido em outro sonho de ascensão ao Céu, o qual, contudo,
não termina pela defecação sobre o corpo da mulher, mas por uma atividade
sexual que inclui seus órgãos genitais, como já acontecera no sonho anterior. A
pessoa que sonha realmente encurta a vida da esposa, a fim de alongar a sua, ao
passar óleo da lâmpada da vida dela para a sua própria. Como compensaçãopor
esta hostilidade indisfarçada, aparece no final do sonho algo semelhante a uma
tentativa de carícia.
A LUZ
DA VIDA
São Pedro apareceu a um homem quando este se
achava profundamente adormecido e levou-o para o Paraíso. O homem concordou em
ir de toda boa vontade e partiu com São Pedro. Passearam pelo Paraíso longo
tempo e chegara a um bosque, grande e espaçoso mas mantido em perfeita ordem,
onde lâmpadas dependuradas ardiam em cada árvore. O homem perguntou a São Pedro
o que significava aquilo. São Pedro respondeu que eram lâmpadas que só ardiam
enquanto um homem vivia; assim que o óleo se gastava e a lâmpada se apagava, o
homem também tinha de morrer ao mesmo tempo. Isto interessou muito ao homem e
ele perguntou a São Pedro se podia levá-lo até sua própria Lâmpada. São Pedro
deferiu-lhe o pedido e conduziu-o até a lâmpada da esposa; ao lado desta,
achava-se a lâmpada do homem. Este viu que a lâmpada da esposa ainda tinha
bastante óleo, mas que havia muito pouco na sua e isto o deixou muito triste,
pois teria de morrer cedo, e perguntou se São Pedro podia despejar um pouco
mais de óleo na sua lâmpada. São Pedro respondeu que era Deus que colocava o
óleo, no momento em que um homem nascia e determinava para cada um a duração da
vida. Isto deixou o homem muito abatido e ele chorou e lamentou-se ao lado de
sua lâmpada. São Pedro lhe disse: ‘Fique aí, mas eu tenho de ir - tenho mais o
que fazer.’ O homem rejubilou-se com isto e, mal São Pedro se achava fora de
vista, começou a mergulhar o dedo na lâmpada da mulher e a pingar o óleo na sua
própria. Fez isto diversas vezes e, quando São Pedro se aproximou, ele deu um
pulo, aterrorizado, acordou do sonho, e viu que estivera enfiando o dedo na
boceta da mulher e depois fazendo-o pingar dentro da boca e lambendo o dedo.
Nota. Segundo uma versão contada por um viajante de
Sarajevo, o homem desperta após levar da mulher um bofetão nos ouvidos, pois a
havia acordado ao mexer em suas partes pudendas. Nesta versão, São Pedro
acha-se ausente e, ao invés de lâmpadas pendentes, há vidros com óleo a
queimar. De acordo com uma terceira versão, que escutei de um estudante em
Mostar, um venerável homem de barbas brancas mostra ao homem diversas velas a
arder. A dele é muito delgada, e a da mulher enormemente espessa. A fim de
alongar sua vida, o homem começa então, com ardente entusiasmo, a lamber a vela
grossa. Mas leva então uma tremenda bofetada.
’Eu sabia que você era um bobo, mas, honestamente, não sabia que fosse
um porco também’, disse-lhe a mulher, porque, no sono, ele lhe estava lambendo
a boceta.
A história é extraordinariamente difundida na
Europa.
Este é o momento de relembrar o ‘sonho mau’ da
mulher que terminou por ela puxar o órgão de seu marido, como se quisesse
arrancá-lo [Ver a partir de [1].]. A interpretação que vimos razão para efetuar
naquele caso concorda inteiramente com a interpretação dos sonhos de defecação
dos homens, tal como é exposta aqui. No sonho da esposa insatisfeita, também
ela descaradamente se livra do marido (e da filha), como obstáculos existentes
no caminho da satisfação.
Outro sonho de defecação, sobre cuja
interpretação não podemos, talvez, estar completamente certos, sugere, contudo,
que devemos admitir existirem certas diferenças na intenção desses sonhos, e
lança nova luz sobre sonhos como os que acabamos de mencionar e sobre alguns
que ainda devem se seguir, nos quais a ação onírica consiste na manipulação dos
órgãos genitais da mulher.
‘DE
MEDO’
O Paxá passou a noite com o Bei. Quando chegou
o dia seguinte, o Bei ficou deitado na cama e não quis levantar-se. O Bei
perguntou ao Paxá: ‘O que foi que você sonhou?’ ‘Sonhei que sobre o minarete
havia outro minarete.’ ‘Poderia ser?’ ficou pensando o Bei. ‘E que mais você
sonhou?’ ‘Sonhei’, disse ele, ‘que sobre o minarete havia um cântaro de cobre e
que havia água no cântaro. O vento soprou e o cântaro de cobre balançou. Agora,
o que teria feito você, se houvesse sonhado isso?’ ‘Teria me mijado, e cagado
também, de medo.’ ‘Veja você, eu só me mijei.’
Este sonho exige uma interpretação simbólica,
por seu conteúdo manifesto ser inteiramente incompreensível, embora os símbolos
sejam inequivocamente claros. Por que deveria o sonhador senti-se realmente
assustado pela visão de um cântaro de água a balançar-se na ponta de um
minarete? Mas um minarete é otimamente adequado para ser símbolo do pênis e o
receptáculo de água a mover-se ritmicamente parece um bom símbolo dos órgãos
genitais femininos no ato da copulação. O Paxá teve portanto um sonho de
copulação e, se seu hospedeiro sugere a defecação com relação a ele, é provável
que a interpretação deva ser buscada na circunstância de ambos serem homens
velhos e impotentes, em quem a velhice ocasionou a mesma proverbial
substituição do prazer sexual pelo excremencial que, como vimos, surgiu nos
outros devido à falta de um objeto sexual apropriado. Para um homem que não
mais pode copular, diz o povo com seu grosseiro amor pela verdade, ainda resta
o prazer de cagar; podemos dizer de tal homem que há uma volta do erotismo
anal, que existia antes do erotismo genital, e foi reprimido e substituído por
este último impulso. Os sonhos de defecação podem assim ser também sonhos de
impotência.
A diferença entre as interpretações não é tão
pronunciada como poderia parecer à primeira vista. Também os sonhos de
defecação, nos quais a vítima é uma mulher, tratam da impotência - uma
impotência relativa, pelo menos, quanto à pessoa específica que não mais possui
qualquer atração para o que sonha. Uma sonho de defecação torna-se assim o
sonho de um homem que não mais pode satisfazer uma mulher, bem como de um homem
a quem uma mulher não mais satisfaz.
A mesma interpretação (de sonhos de impotência)
também pode ser aplicada a um sonho das Facetiae, de Poggio, que,
manifestamente, se apresenta como o sonho de um homem ciumento - isto é, na
realidade, de um homem que não acha que possa satisfazer sua mulher.
O ANEL DA FIDELIDADE
Franciscus Philelphus tinha ciúmes da mulher e,
atormentado pelo grande temor de que ela tivesse relações com outro homem, dia
e noite lhe montava guarda. Visto que o que nos ocupa na vigília costuma
retornar nos sonhos, apareceu-lhe durante o sono um demônio que lhe disse que,
se agisse de acordo com suas ordens, a mulher sempre lhe permaneceria fiel. No
sonho, Franciscus respondeu-lhe que ficaria muito penhorado e prometeu-lhe uma
recompensa.
’Toma este anel!’, respondeu o demônio, ‘ e
usa-o em teu dedo com cuidado. Enquanto o usares, tua mulher não poderá
deitar-se com nenhum outro homem sem o teu conhecimento.’
Enquanto acordava, excitado de alegria, sentiu
que estava enfiando o dedo na vulva da esposa.
Os ciumentos não tem melhor expediente; desta
maneira, suas mulheres nunca se podem deixar possuir por outro homem sem o
conhecimento dos maridos.
Esta anedota de Poggio é considerada como a
fonte de uma história de Rabelais, que, sob outros aspectos muito semelhante, é
mais clara, uma vez que realmente descreve o marido, já velho, a trazer para
casa uma jovem esposa, que então lhe dá motivos para temores ciumentos.
Hans Carvel era um homem instruído,
experimentado e diligente; um homem de honra, de boa compreensão e julgamento,
benevolente, caridoso com os pobres, e um alegre filósofo. Além disso, era um
bom companheiro, que gostava de uma troça, um tanto corpulento e instável, mas
também bem construído sob todos os aspectos. Na velhice, casou-se com a filha
de Concordat, o meirinho, mulher jovem, bonita, boa, alegre, vivaz e agradável,
apenas talvez um pouco amistosa demais com os vizinhos e criados do sexo
masculino. Assim, aconteceu que, ao fim de algumas semanas, ele se tornou
ciumento como um tigre e desconfiou que ela estivesse dando suas voltinhas por
aí. Para resguardar-se disto, relatou-lhe toda uma série de agradáveis
histórias de castigos por adultério, leu-lhe muitas vezes em voz alta
encantadoras lendas de mulheres virtuosas, pregou-lhe o evangelho da castidade,
escreveu-lhe um pequeno volume de canções em louvor da fidelidade matrimonial,
atacou com palavras mordazes e cáusticas a licenciosidade das esposas
indisciplinadas e, além disso tudo, ofertou-lhe um magnífico colar, cravejado
de safiras orientais.
Mas, independente disso, viu que ela se dava
com os vizinhos de maneira tão amistosa e sociável que seu ciúme cresceu ainda
mais. Certa noite, enquanto se achava deitado com ela na cama, em meio a estas
penosas reflexões, sonhou que falava com o Demônio Personificado e lamentava
seu pesar. Mas o Diabo o confortou, pôs-lhe um anel no dedo e disse-lhe: ‘Toma
este anel; enquanto o levares no dedo, nenhum outro homem terá conhecimento
carnal de tua mulher, sem teu conhecimento e contra tua vontade.’ ‘Mil
agradecimentos, ó Senhor Diabo!’ exclamou Hans Carvel. ‘Renegarei Maomé antes
de tirar este anel do dedo.’ O Diabo desapareceu: Hans Carvel, porém, acordou
com o coração feliz e descobriu que estava com o dedo enfiado naquela parte de
sua mulher.
Esqueci-me de contar que a jovem esposa, ao
senti-lo deu um pulo com as nádegas para trás, como se dissesse: ‘Pare! Não,
não! Não é isso o que se deve botar aí!’ - o que fez Hans Carvel imaginar que
alguém queria arrancar o seu anel.
Não é uma medida infalível? Creiam-me, ajam de
acordo com este exemplo e tomem cuidado para, em todas as ocasiões, ter o anel
da mulher no dedo!
O Demônio, que aparece aqui como conselheiro,
como o faz nos sonhos de tesouro, dá-nos uma pista sobre algo dos pensamentos
latentes do sonhador. Originalmente, pelo menos, imaginava-se que ele ‘tomasse’
a esposa infiel que é difícil de vigiar. Mostra, então, no sonho manifesto, um
meio infalível de guardá-la permanentemente. Nisto também identificamos uma
analogia com o desejo de livrar-se de alguém (desejo de morte) dos sonhos de
defecação.
Concluiremos esta pequena compilação de sonhos,
acrescentando um sonho de loteria, cuja vinculação com os outros é bastante
ligeira, mas serve para confirmar a sugestão que apresentamos anteriormente
[ver em [1]], de que a loteria simboliza um contrato de casamento.
NÃO ADIANTA CHORAR SOBRE O
LEITE DERRAMADO!
Um mercador teve um estranho sonho. Sonhou que
vira uma bunda de mulher, com tudo o que lhe é próprio. Numa das metades estava
o número 1 e, na outra, um 3. Diante disso, o mercador teve a idéia de comprar
um bilhete de loteria. Pareceu-lhe que essa figura de seu sonho constituía um
augúrio feliz. Sem esperar até a nona hora, a primeira coisa que fez foi correr
até o banco, pela manhã, a fim de adquirir o bilhete. Chegado lá, sem deter-se
para pensar, pediu o bilhete nº 13, ou seja, os menos algarismos que havia
visto no sonho. Após haver comprado o bilhete, nem só um dia se passou sem que
ele examinasse todos os jornais, para ver se seu número havia saído. Após uma
semana, ou no máximo dez dias, surgiu a lista de extração. Quando a examinou,
viu que seu número não havia saído, mas sim o número 103, série 8, que havia
ganho 200.000 rublos. O mercador quase arrancou os cabelos. ‘Devo ter cometido
um engano! Há algo errado!’ Achava-se fora de si, quase inconsolável e não
podia conceber qual a razão de haver ele tido um sonho assim. Resolveu então
debater o assunto com um amigo, para ver se este não poderia explicar seu
infortúnio. Encontrou o amigo e contou-lhe tudo minuciosamente. Então, o amigo
disse: ‘Seu simplório! Então você não viu o zero entre o número 1 e o número 3
na bunda?!’ ‘Ah, diabos me levem, nunca me ocorreu que a bunda tinha um zero.’
‘Mas estava lá claro e evidente, só que você não calculou certo o número da
loteria. E o número 8, pertencente à série - a boceta lhe mostra isso - ela é
como um número 8’. - Não adianta chorar sobre o leite derramado!
Nossa intenção ao publicar este breve artigo foi
dupla. Por um lado, desejávamos sugerir que não se deve deixar desencorajar
pela natureza amiúde repulsivamente suja e indecente deste material popular de
nele buscar confirmação valiosa das opiniões psicanalíticas. Assim, nesta
ocasião, pudemos estabelecer o fato de que o folclore interpreta os símbolos
oníricos da mesma maneira que a psicanálise, e que, ao contrário da altamente
proclamada opinião popular, deriva um grupo de sonhos de necessidades e desejos
que se tornaram imediatos. Por outro lado, gostaríamos de expressar a opinião
de que é cometer uma injustiça com o povo comum supor que emprega esta forma de
entretenimento simplesmente para satisfazer os desejos mais grosseiros. Parece
antes que por trás destas feias fachadas se acham ocultas reações mentais a
impressões da vida que devem ser tomadas a sério, que até mesmo entristecem -
reações a que o povo comum está pronto a entregar-se, desde que se façam
acompanhar por uma produção de prazer grosseiro.