Continuação da Parte 1
SOBRE A PSICANÁLISE (1913 [1911])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
(a) EDIÇÃO ALEMÃ:
(1911 Data de composição; não subsiste texto alemão.)
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘On Psycho-Analysis’
1913 Congresso Médico Australasiano, Atas da Nona Sessão, 2, Parte 8, 839-42.
A presente tradução inglesa é uma versão modificada da publicada em 1913.
No começo de março de 1911, Freud recebeu um convite do Dr. Andrew Davidson, secretário da Seção de Medicina Psicológica e Neurologia, para enviar um artigo a ser lido perante o Congresso Médico Australasiano, que se deveria reunir em Sidney em setembro daquele ano. Ele enviou o artigo em 13 de maio; foi devidamente lido e posteriormente publicado nas Atas do Congresso, juntamente com artigos (também sobre assuntos psicanalíticos) da autoria de Jung e Havelock Ellis.
Nenhum texto alemão pôde ser achado, mas parece improvável, a partir de evidências internas, que a versão publicada possa ter sido escrita pelo próprio Freud em inglês. É mais provável que tenha sido traduzida de um original, alemão, possivelmente na Austrália. Não parece haver razão específica, portanto, para ater-se ao texto publicado, e, por conseguinte, efetuamos nele algumas ligeiras modificações terminológicas e estilísticas.
SOBRE A PSICANÁLISE
Em resposta à amistosa solicitação do Secretário de sua Seção de Neurologia e Psiquiatria, aventuro-me a chamar a atenção deste Congresso para o tema da psicanálise, que está sendo extensamente estudada, na época atual, na Europa e nos Estados Unidos.
A psicanálise constitui uma combinação notável, pois abrange não apenas um método de pesquisas das neuroses, mas também um método de tratamento baseado na etiologia assim descoberta. Posso começar dizendo que a psicanálise não é fruto da especulação mas sim o resultado da experiência; e, por essa razão, como todo novo produto da ciência, acha-se incompleta. É viável a todos convencerem-se por suas próprias investigações da correção das teses nelas corporificadas e auxiliar no desenvolvimento ulterior do estudo.
A psicanálise começou com pesquisas sobre histeria, mas, com o decorrer dos anos, estendeu-se muito além desse campo de trabalho. Os Estudos sobre a Histeria, de autoria de Breuer e minha, publicados em 1895, foram os primórdios da psicanálise. Eles seguiram o rastro do trabalho de Charcot sobre histeria ‘traumática’, as investigações dos fenômenos da hipnose efetuadas por Liébeault e Bernheim e os estudos de Janet sobre os processos mentais inconscientes. A psicanálise logo encontrou-se em nítida oposição com as opiniões de Janet, por (a) declinar de remontar a histeria diretamente à degeneração hereditária congênita; (b) oferecer, ao invés de mera descrição, uma explicação dinâmica baseada na ação recíproca das forças psíquicas, e (c) atribuir a origem da dissociação psíquica (cuja importância fora reconhecida também por Janet) não a uma [falha de] síntese mental resultante de incapacidade congênita, mas sim a um processo psíquico especial, conhecido como ‘repressão’ (‘Verdrängung‘).
Foi conclusivamente provado que os sintomas histéricos são resíduos (reminiscências) de experiências profundamente comovedoras, afastadas da consciência cotidiana, e que sua forma é determinada (de maneira que exclui a ação deliberada) por pormenores dos efeitos traumáticos das experiências. Segundo este ponto de vista, as perspectivas terapêuticas residem na possibilidade de livrar-se desta ‘repressão’, de modo a permitir que parte do material psíquico inconsciente se torne consciente e privá-la assim de seu poder patogênico. Esta visão é dinâmica, na medida em que encara os processos psíquicos como deslocamentos de energia psíquica que podem ser medidos pelo valor de seu efeito sobre os elementos afetivos. Isto é muito significativo na histeria, onde o processo de ‘conversão’ cria os sintomas pela transformação de uma quantidade de impulsos mentais em inervações somáticas.
Os primeiros exames e tentativas psicanalíticas de tratamento foram feitos com o auxílio do hipnotismo. Posteriormente, este foi abandonado e o trabalho foi efetuado pelo método da ‘associação livre’, com o paciente em seu estado normal. Esta modificação teve a vantagem de permitir que o processo fosse aplicado a um número muito maior de casos de histeria, assim como a outras neuroses e também a pessoas sadias. Tornou-se necessário, porém, o desenvolvimento de uma técnica especial de interpretação, a fim de tirar conclusões das idéias expressadas pela pessoa em investigação. Estas interpretações estabeleceram com completa certeza o fato de que as dissociações psíquicas são inteiramente sustentadas por ‘resistências internas’. Parece portanto justificada a conclusão de que as dissociações se originaram devido a conflito interno, que conduziu à ‘repressão’ do impulso subjacente. Para superar este conflito e desta maneira curar a neurose, é necessária a mão orientadora de um médico treinado em psicanálise.
Ademais, demonstrou-se ser geralmente verdadeiro que, em todas as neuroses, os sintomas patológicos são realmente os produtos finais desses conflitos, que conduziram à ‘repressão’ e à ‘divisão’ (splitting) da mente. Os sintomas são gerados por mecanismos diferentes: (a) seja como formações de substituição das forças reprimidas, seja (b) como conciliações entre as forças repressoras e reprimidas, seja (c) como formações reativas e salvaguardas contra as forças reprimidas.
As pesquisas estenderam-se ulteriormente às condições que determinam se os conflitos psíquicos conduzirão ou não à ‘repressão’ (isto é, à dissociação dinamicamente provocada), visto não ser necessário dizer que um conflito psíquico, per se, pode ter também um desfecho normal. A conclusão a que a psicanálise chegou foi que tais conflitos davam-se sempre entre os instintos sexuais (empregando a palavra ‘sexual’ em seu sentido mais amplo) e os desejos e tendências do restante do ego. Nas neuroses, são os instintos sexuais que sucumbem à ‘repressão’, e constituem assim a base mais importante para a gênese dos sintomas, que podem, por conseguinte, ser encarados como substitutos de satisfações sexuais.
Nosso trabalho sobre a questão da disposição às afecções neuróticas acrescentou o fato ‘infantil’ ao somático e ao hereditário, até então identificados. A psicanálise foi obrigada a remontar a vida mental dos pacientes até sua primeira infância, e chegou-se à conclusão de que inibições de desenvolvimento mental (‘infantilismos’) apresentam uma disposição à neurose. Especificamente, aprendemos, de nossas investigações da vida sexual, que existe realmente algo chamado ‘sexualidade infantil’, que o instinto sexual é constituído de muitos componentes e atravessa um complicado curso de desenvolvimento, cujo desfecho final, após muitas restrições e transformações, é a sexualidade ‘normal’ dos adultos. As enigmáticas perversões do instinto sexual que ocorrem em adultos parecem ser inibições de desenvolvimento, fixações ou crescimentos assimétricos. Assim, as neuroses são o negativo das perversões.
O desenvolvimento cultural imposto à humanidade é o fator que torna inevitáveis as restrições e repressões do instinto sexual, sendo exigidos sacrifícios maiores ou menores, de acordo com a constituição individual. O desenvolvimento quase nunca é conseguido de modo suave e podem ocorrer distúrbios (quer por causa da constituição individual ou de incidentes sexuais prematuros) que deixem atrás de si uma disposição a futuras neuroses. Tais disposições podem permanecer inofensivas se a vida do adulto progride de modo satisfatório e tranqüilo, mas podem tornar-se patogênicas se as condições da vida madura proíbem a satisfação da libido ou exigem gravemente sua supressão.
Pesquisas sobre a atividade sexual de crianças conduziram a outra concepção do instinto sexual, baseada não em seus intuitos, mas em suas fontes. O instinto sexual possui em alto grau a capacidade de ser desviado dos objetivos sexuais diretos e ser dirigido no sentido de metas mais elevadas, que não são mais sexuais (‘sublimação’). O instinto fica assim capacitado a efetuar contribuições muito importantes às realizações sociais e artísticas da humanidade.
O reconhecimento da presença simultânea dos três fatores de ‘infantilismo’, ‘sexualidade’ e ‘repressão’ constitui a principal característica da teoria psicanalítica e assinala sua distinção de outras visões da vida mental patológica. Ao mesmo tempo, a psicanálise demonstrou que não existe diferença fundamental, mas apenas de grau, entre a vida mental das pessoas normais, dos neuróticos e dos psicóticos. Uma pessoa normal tem de passar pelas mesmas repressões e lutar com as mesmas estruturas substitutas; a única diferença é que ela lida com estes acontecimentos com menos dificuldade e mais sucesso. O método psicanalítico de investigação pode, por conseguinte, ser aplicado igualmente à explanação dos fenômenos psíquicos normais e tornou possível descobrir o estreito relacionamento existente entre produtos psíquicos patológicos e estruturas normais, tais como os sonhos, os pequenos erros da vida cotidiana, e fenômenos tão valiosos como chistes, mitos e obras da imaginação. A explicação foi conduzida mais longe no caso dos sonhos e resultou aqui na seguinte fórmula geral: ‘O sonho é uma realização, disfarçada de um desejo reprimido.’ A interpretação de sonhos tem por objetivo a remoção do disfarce a que os pensamentos do que sonha foram submetidos. Constitui, além disso, auxílio altamente valioso à técnica psicanalítica, porque é o método mais conveniente de obter uma compreensão interna (insight) da vida psíquica inconsciente.
Amiúde há uma tendência nos círculos médicos e, especialmente, nos círculos psiquiátricos, para contradizer as teorias da psicanálise sem nenhum estudo real ou aplicação prática delas. Isto se deve não apenas à notável novidade destas teorias e ao contraste que apresentam com as opiniões até aqui sustentadas pelos psiquiatras, mas também ao fato de as premissas e a técnica da psicanálise acharem-se relacionadas muito mais de perto com o campo da psicologia que com o da medicina. Não se pode discutir, contudo, que os ensinamentos puramente médicos e não psicológicos até o presente muito pouco fizeram por uma compreensão da vida mental. O progresso da psicanálise é ainda retardado pelo termo que o observador médio sente de ver-se a si mesmo em seu próprio espelho. Os homens de ciência tendem a enfrentar resistências emocionais com argumentos e, assim, satisfazem-se a si mesmos para sua própria satisfação! Quem quer que deseje não ignorar uma verdade fará bem em desconfiar de suas antipatias e, se quiser submeter a teoria da psicanálise a um exame crítico, que primeiro se analise a si mesmo.
Não posso achar que nestas poucas frases tenha conseguido pintar um quadro claro dos princípios e propósitos da psicanálise, mas a elas adicionarei uma relação das principais publicações sobre o assunto, cujo estudo fornecerá maiores esclarecimentos a quem quer que eu possa ter interessado.
1. Breuer e Freud, Studien über Hysterie, 1895, Fr. Deuticke, Viena. Uma parte deles foi traduzida para o inglês em ‘Selected Papers on Hysteria and other Psycho-neuroses’, do Dr. A. A. Brill, Nova Iorque, 1909.
2. Freud, Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie, Viena, 1905. Tradução inglesa do Dr. Brill, ‘Three Contributions to the Sexual Theory’, Nova Iorque, 1910.
3. Freud, i, S. Karger, Berlim, 3ª edição. 1910.
4. Freud, Die Traumdeutung, Viena, 1900, 3ª ed., 1911.
5. Freud, ‘The Origin and Development of Psycho-analysis’, Amer. Jour. of Psychology, abril, 1910. Também em alemão: Ueber Psychoanalyse, Cinco conferências pronunciadas na Universidade Clark, Worcester, Mass., 1909.
6. Freud, Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten, Viena, 1905.
7. Freud, Collection of minor papers on the Doctrine of Neuroses, 1893-1906. Viena, 1906.
8. Idem, segunda compilação. Viena, 1909.
9. Hitschmann, Freud’s Neurosenlehre, Viena, 1911.
10. C. G. Jung, Diagnostische Associationsstudien, dois volumes, 1906-1910.
11. C. G. Jung, Über die Psychologie der Dementia Praecox, 1907.
12. Jahrbuch für psycho-analytische und psychopathologische Forschungen, publicado por E. Bleuler e S. Freud, organizado por Jung. A partir de 1909.
13. Schriften zur angewandten Seelenkunde, Fr. Deuticke, Viena, a partir de 1907. Onze partes, da autoria de Freud, Jung, Abraham, Pfister, Rank, Jones, Riklin, Graf, Sadger.
14. Zentralblatt für Psychoanalyse. Organizado por A. Adler e W. Stekel. J. Bergmann, Wiesbaden. A partir de setembro de 1910.
FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS
DO FUNCIONAMENTO MENTAL (1911)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
FORMULIERUNGEN ÜBER DIE ZWEI PRINZIPIEN DES PSYCHISCHEN GESCHEHENS
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1911 Jb. psychoan. psychopath. Forsch., 3 (1), 1-8.
1913 S. K. S. N., 3, 271-9. (1921, 2ª ed.)
1924 G. S., 5, 409-17.
1931 Theoretische Schriften, 5-14.
1943 G. W., 8, 230-8.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Formulations Regarding the Two Principle in Mental Functioning’
1925 C. P., 4, 13-21. (Trad. de M. N. Searl.)
A presente tradução inglesa, com o título modificado, baseia-se na publicada em 1925, mas foi em grande parte redigida novamente.
Informa-nos o Dr Ernest Jones que Freud começou a planejar este artigo em junho de 1910, e que trabalhava nele simultaneamente com a história clínica de Schreber (1911c). Seu progresso foi lento, mas, em 26 de outubro, falou sobre o assunto perante a Sociedade Psicanalítica de Viena; achou a assistência indiferente, porém, e ele próprio se achava insatisfeito com sua apresentação. Foi somente em dezembro que começou realmente a escrever o artigo. Achava-se pronto ao final de janeiro de 1911, mas não foi publicado senão no fim da primavera, quando apareceu no mesmo número do Jahrbuch que o caso Schreber.
Com este notório artigo, que constitui um dos clássicos da psicanálise, e com a terceira parte, quase contemporânea, da história clínica de Schreber, Freud pela primeira vez, após um intervalo de mais de dez anos, novamente empreendeu o exame das hipóteses teóricas gerais que se achavam implícitas em suas descobertas clínicas. Sua primeira tentativa ampla de tal exame fora feita em terminologia quase neurológica, em seu ‘Project for a Scientific Psychology’, de 1895, que, no entanto, não foi publicado durante a sua vida (Freud, 1950a). O Capítulo VII de A Interpretação de Sonhos (1900a) foi a exposição de um conjunto muito semelhante de hipótese, mas, desta vez, em termos puramente psicológicos. Grande parte do material do presente artigo (especialmente em sua primeira parte) deriva diretamente destas duas fontes. O trabalho dá a impressão de ter o caráter de um levantamento de estoque. É como se Freud estivesse trazendo à sua própria inspeção, por assim dizer, as hipóteses fundamentais de um período anterior e preparando-as para servir de base para os principais exames teóricos que se achavam adiante, no futuro imediato: o artigo sobre narcisismo, por exemplo, e a grande série dos artigos metapsicológicos.
A presente exposição de suas opiniões é excessivamente condensada, não sendo fácil de assimilar, mesmo hoje. Embora saibamos agora que Freud muito pouco dizia nela que já não se achasse há muito tempo em sua mente, por ocasião de sua publicação deve ter impresionado os leitores como desconcertantemente cheia de novidades. Os parágrafos assinalados (1), por exemplo, a partir de [1], seriam verdadeiramente obscuros para aqueles que não se achassem familiarizados com o ‘Projeto’ ou com os artigos metapsicológicos e que tivessem de retirar o esclarecimento que pudessem de um certo número de passagens quase igualmente condensadas e muito pouco sistematizadas de A Interpretação de Sonhos. Não é de surpreender que a primeira assistência de Freud se mostrasse indiferente.
O tema principal da obra é a distinção entre os princípios reguladores (o princípio de prazer e o princípio de realidade) que dominam, respectivamente, os processos mentais primário e secundário. A tese, na verdade, já fora enunciada na Seção 1 da Parte I do ‘Projeto’ e elaborada nas Seções 15 e 16 da Parte I e nas partes posteriores da Seção I da Parte III. Foi novamente examinada no Capítulo VII de A interpretação de Sonhos (Ver a partir de [1] e [2], 1972), mas o tratamento mais completo foi reservado para o artigo sobre a metapsicologia dos sonhos (1917d [1915]), escrito cerca de três anos após o presente. Um relato mais pormenorizado do desenvolvimento das opiniões de Freud sobre a questão de nossa atitude mental para com a realidade pode ser encontrado na Nota do Editor Inglês a esse artigo (Ver a partir de [1], 1974).
Perto do fim do trabalho, surgem vários outros tópicos relacionados, cujo desenvolvimento ulterior (como o do tema principal) é deixado para posterior investigação. Na verdade, todo o artigo foi (como o próprio Freud observa) de natureza preparatória e exploratória, mas não é menos interessante por essa razão.
A maior parte deste artigo, na versão de 1925, foi incluída em General Selection from the Works of Simund Freud (1937, 45-53), de Rickman.
FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL
Há muito tempo observamos que toda neurose tem como resultado e, portanto, provavelmente, como propósito arrancar o paciente da vida real, aliená-lo da realidade. Não poderia um fato assim fugir à observação de Piere Janet; ele falou de uma perda de ‘la fonction du réel‘ [‘a função da realidade’] como sendo característica especial dos neuróticos, mas sem descobrir a vinculação deste distúrbio com as determinantes fundamentais da neurose. Pela introdução do processo de repressão na gênese das neuroses, pudemos obter uma certa compreensão interna (insight) com referência a isto. Os neuróticos afastam-se da realidade por achá-la insuportável - seja no todo ou em parte. O tipo mais extremo deste afastamento da realidade é apresentado por certos casos de psicose alucinatória que procuram negar o evento específico que ocasionou o desencadeamento de sua insanidade (Griesinger). Mas, na verdade, todo neurótico faz o mesmo com algum fragmento da realidade. E defrontamo-nos agora com a tarefa de investigar o desenvolvimento da relação dos neuróticos e da humanidade em geral com a realidade e, desta maneira, de trazer a significação psicológica do mundo externo e real para a estrutura de nossas teorias.
Na psicologia que se baseia na psicanálise, acostumamo-nos a tomar como ponto de partida os processos mentais inconscientes, com cujas peculiaridades nos tornamos familiarizados através da análise. Consideramos que são os processos mais antigos, primários, resíduos de uma fase de desenvolvimento em que eram o único tipo de processo mental. O propósito dominante obedecido por estes processos primários é fácil de reconhecer; ele é descrito como o princípio de prazer-desprazer [Lust-Unlust], ou, mais sucintamente, princípio de prazer. Estes processos esforçam-se por alcançar prazer; a atividade psíquica afasta-se de qualquer evento que possa despertar desprazer. (Aqui, temos a repressão.) Nossos sonhos à noite e, quando acordados, nossa tendência a afastar-nos de impressões aflitivas são resquícios do predomínio deste princípio e provas do seu poder.
Retorno a linhas de pensamento já desenvolvidas noutra parte quando sugiro que o estado de repouso psíquico foi originalmente perturbado pelas exigências peremptórias das necessidades internas. Quando isto aconteceu, tudo que havia sido pensado (desejado) foi simplesmente apresentado de maneira alucinatória, tal como ainda acontece hoje com nossos pensamentos oníricos a cada noite. Foi apenas a ausência da satisfação esperada, o desapontamento experimentado, que levou ao abandono desta tentativa de satisfação por meio da alucinação. Em vez disso, o aparelho psíquico teve de decidir tomar uma concepção das circunstâncias reais no mundo externo e empenhar-se por efetuar nelas uma alteração real. Um novo princípio de funcionamento mental foi assim introduzido; o que se apresentava na mente não era mais o agradável, mas o real, mesmo que acontecesse ser desagradável. Este estabelecimento do princípio de realidade provou ser um passo momentoso.
(1) Em primeiro lugar, as novas exigências efetuaram uma sucessão de adaptações necessárias no aparelho psíquico, as quais, devido a nosso conhecimento insuficiente ou incerto, só podemos relatar muito superficialmente.
A significação crescente da realidade externa elevou também a importância dos órgão sensoriais, que se acham dirigidos para esse mundo externo, e da consciência a eles ligada. A consciência aprendeu então a abranger qualidades sensórias, em acréscimo às qualidades de prazer e desprazer que até então lhe haviam exclusivamente interessado. Institui-se uma função especial, que tinha de periodicamente pesquisar o mundo externo, a fim de que seus dados já pudessem ser conhecidos se uma urgente necessidade interna surgisse: a função da atenção. Sua atividade vai encontrar as impressões sensórias a meio caminho, ao invés de esperar por seu aparecimento. Ao mesmo tempo, provavelmente, foi introduzido um sistema de notação, cuja tarefa era assentar os resultados desta atividade periódica da consciência - uma parte do que chamamos memória.
O lugar da repressão, que excluía da catexia como produtoras de desprazer algumas das idéias emergentes, foi assumido por uma passagem de julgamento imparcial, que tinha de decidir se determinada idéia era verdadeira ou falsa - isto é, se se achava ou não em concordância com a realidade -, decisão que era determinada efetuando-se uma comparação com os traços de memória da realidade.
Nova função foi então atribuída à descarga motora, que, sob o predomínio do princípio de prazer, servira como meio de aliviar o aparelho mental de adições de estímulos, e que realizara esta tarefa ao enviar inervações para o interior do corpo (conduzindo a movimentos expressivos, mímica facial e manifestações de afeto). A descarga motora foi agora empregada na alteração apropriada da realidade; foi transformada em ação.
A coibição da descarga motora (da ação), que então se tornou necessária, foi proporcionada através do processo do pensar, que se desenvolveu a partir da apresentação de idéias. O pensar foi dotado de características que tornavam possível ao aparelho mental tolerar uma tensão aumentada de estímulo, enquanto o processo de descarga era adiado. Ele é essencialmente um tipo experimental de atuação acompanhado por deslocamento de quantidades relativamente pequenas de catexia, junto com menor dispêndio (descarga) destas. Para este fim, foi necessária a transformação de catexias livremente móveis em catexias vinculadas o que se conseguiu mediante elevação do nível de todo o processo catexial. É provável que o pensar fosse originalmente inconsciente, na medida em que ultrapassava simples apresentações ideativas e era dirigido para as relações entre impressões de objetos, e que não adquiriu outras qualidades perceptíveis à consciência até haver-se ligado a resíduos verbais.
(2) Uma tendência geral de nosso aparelho mental, que pode ser remontada ao princípio econômico de poupar consumo [de energia], parece encontrar expressão na tenacidade com que nos apegamos às fontes de prazer à nossa disposição e na dificuldade com que a elas renunciamos. Com a introdução do princípio de realidade, uma das espécies de atividade de pensamento foi separada; ela foi liberada no teste de realidade e permaneceu subordinada somente ao princípio de prazer. Esta atividade é o fantasiar, que começa já nas brincadeiras infantis, e, posteriormente, conservada como devaneio, abandona a dependência de objetos reais.
(3) A substituição do princípio de prazer pelo principio de realidade, com todas as conseqüências psíquicas envolvidas aqui esquematicamente condensadas numa só frase, não se realiza, na verdade, de repente; tampouco se efetua simultaneamente em toda a linha, pois, enquanto este desenvolvimento tem lugar nos instintos do ego, os instintos sexuais se desligam deles de maneira muito significativa. Os instintos sexuais comportam-se auto-eroticamente a princípio; obtêm sua satisfação do próprio corpo do indivíduo e, portanto, não se encontram na situação de frustração que forçou a instituição do princípio de realidade. Quando, posteriormente, começa o processo de encontrar um objeto, ele é logo interrompido pelo longo período de latência que retarda o desenvolvimento sexual até a puberdade. Estes dois fatores - auto-erotismo e período de latência - ocasionam que o instinto sexual seja detido em seu desenvolvimento psíquico e permaneça muito mais tempo sob o domínio do princípio de prazer, do qual, em muitas pessoas, nunca é capaz de se afastar.
Em conseqüência dessas condições, surge uma vinculação mais estreita entre o instinto sexual e a fantasia, por um lado, e, por outro, entre os instintos do ego e as atividades da consciência. Tanto em pessoas sadias quanto em neuróticos, esta vinculação impressiona-nos como muito íntima, embora as considerações de psicologia genética que acabaram de ser apresentadas levem-nos a identificá-la como secundária. A continuidade do auto-erotismo é que torna possível reter por tanto tempo a satisfação momentânea e imaginária mais simples em relação ao objeto sexual, em lugar da satisfação real, que exige esforço e adiamento. No campo da fantasia, a repressão permanece todo-poderosa; ela ocasiona a inibição de idéias in statu nascendi antes que possam ser notadas pela consciência, se a catexia destas tiver probabilidade de ocasionar uma liberação de desprazer. Este é o ponto fraco de nossa organização psíquica; e ele pode ser empregado para restituir ao domínio do princípio de prazer processos de pensamento que já se haviam tornado racionais. Parte essencial da disposição psíquica à neurose reside assim na demora em ensinar os instintos sexuais a considerar a realidade e, como corolário, nas condições que tornam possível esta demora.
(4) Tal como o ego-prazer nada pode fazer a não ser querer, trabalhar para produzir prazer e evitar o desprazer, assim o ego-realidade nada necessita fazer a não ser lutar pelo que é útil e resguardar-se contra danos. Na realidade, a substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade não implica a deposição daquele, mas apenas sua proteção. Um prazer momentâneo, incerto quanto a seus resultados, é abandonado, mas apenas a fim de ganhar mais tarde, ao longo do novo caminho, um prazer seguro. Mas a impressão endopsíquica causada por esta substituição foi tão poderosa que se reflete num mito religioso especial. A doutrina da recompensa noutra vida pela renúncia - voluntária ou forçada - dos prazeres terrenos nada mais é que uma projeção mítica desta revolução na mente. Seguindo constantemente neste sentido, as religiões puderam efetuar uma renúncia completa do prazer na vida, adiante a promessa de compensação numa existência futura; mas não realizaram, por este meio, uma conquista do princípio de prazer. É a ciência que chega mais perto de obter êxito nessa conquista; ela, contudo, também oferece prazer intelectual durante seu trabalho e promete um lucro prático ao final.
(5) A educação pode ser descrita, sem mais, como um incentivo à conquista do princípio de prazer e à sua substituição pelo princípio de realidade; isto é, ela procura auxiliar o processo de desenvolvimento que afeta o ego. Para este fim, utiliza uma oferta de amor dos educadores como recompensa; e falha, portanto, se uma criança mimada pensa que possui esse amor de qualquer jeito e não pode perdê-lo, aconteça o que acontecer.
(6) A arte ocasiona uma reconciliação entre os dois princípios, de maneira peculiar. Um artista é originalmente um homem que se afasta da realidade, porque não pode concordar com a renúncia à satisfação instintual que ela a princípio exige, e que concede a seus desejos eróticos e ambiciosos completa liberdade na vida de fantasia. Todavia, encontra o caminho de volta deste mundo de fantasia para a realidade, fazendo uso de dons especiais que transformam suas fantasias em verdades de um novo tipo, que são valorizadas pelos homens como reflexos preciosos da realidade. Assim, de certa maneira, ele na verdade se torna o herói, o rei, o criador ou o favorito que desejava ser, sem seguir o longo caminho sinuoso de efetuar alterações reais no mundo externo. Mas ele só pode conseguir isto porque outros homens sentem a mesma insatisfação, que resulta da substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade; é em si uma parte da realidade.
(7) Enquanto o ego passa por suas transformações, de ego-prazer para ego-realidade, os instintos sexuais sofrem as alterações que os levam de seu auto-erotismo original, através de diversas fases intermediárias, ao amor objetal a serviço da procriação. Se estamos certos em pensar que cada passo destes dois cursos de desenvolvimento pode tornar-se local de uma disposição à doença neurótica posterior, é plausível supor que a forma assumida pela doença subseqüente (a escolha da neurose) dependerá da fase específica de desenvolvimento do ego e da libido na qual a inibição disposicional do desenvolvimento ocorreu. Assim, uma significação inesperada liga-se aos aspectos cronológicos dos dois desenvolvimentos (que ainda não foram estudados) e a possíveis variações em sua sincronização.
(8) A característica mais estranha dos processos inconscientes (reprimidos), à qual nenhum pesquisador se pode acostumar sem o exercício de grande autodisciplina, deve-se ao seu inteiro desprezo pelo teste de realidade; eles equiparam a realidade do pensamento com a realidade externa e os desejos com sua realização - com o fato - tal como acontece automaticamente sob o domínio do antigo princípio de prazer. Daí também a dificuldade de distinguir fantasias inconscientes de lembranças que se tornaram inconscientes. Mas nunca nos devemos permitir ser levados erradamente a aplicar os padrões da realidade a estruturas psíquicas reprimidas e, talvez por causa disso, a menosprezar a importância das fantasias na formação dos sintomas, sob o pretexto de elas não serem realidades, ou a remontar um sentimento neurótico de culpa a alguma outra fonte, por não haver provas de que qualquer crime real tenha sido cometido. Somos obrigados a empregar a moeda-corrente do país que estamos explorando; em nosso caso, uma moeda neurótica. Suponha-se, por exemplo, que estamos tentando solucionar um sonho como este. Um homem, que outrora cuidara do pai durante longa e penosa doença mortal, contou-me que nos meses seguintes à morte daquele havia repetidamente sonhado que o pai estava novamente vivo e lhe falava da maneira costumeira. Mas ele achava excessivamente penoso que o pai houvesse realmente morrido, apenas sem sabê-lo O único modo de compreender este sonho aparentemente absurdo é acrescentar ‘como aquele que sonhou quisera’ ou ‘em conseqüência de seu desejo’ após as palavras ‘que ele [o que sonhou] o desejaria’, às últimas palavras. O pensamento onírico é então o seguinte: foi-lhe penosa a lembrança de haver sido obrigado a desejar a morte do pai (como liberação) enquanto este ainda se achava vivo, e quão terrível teria sido se o pai houvesse tido qualquer suspeita disso.
As deficiências deste breve artigo, que é mais preparatório que expositivo, serão talvez desculpadas, apenas em pequena parte, se eu alegar que são inevitáveis. Nestas poucas observações sobre as conseqüências psíquicas da adaptação ao princípio de realidade, fui obrigado a esboçar opiniões que, no momento, teria preferido reter e cuja justificação certamente exigirá esforço nada insignificante. Mas tenho esperança de que não escapará à observação do leitor benevolente como, nestas páginas também, o predomínio do princípio de realidade está começando.
TIPOS DE DESENCADEAMENTO DA NEUROSE (1912)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ÜBER NEUROTISCHE ERKRANKUNGSTYPEN
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1912 Zbl. Psychoan., 2 (6), 297-302.
1913 S. K. S. N., 3, 306-13. (1921, 2ª ed.)
1924 G. S., 5, 400-8.
1943 G. W., 8, 322-30.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Types of Neurotic Nosogenesis’
1924 C. P., 2, 113-21. (Trad. de E. C. Mayne.)
A presente tradução inglesa, com título diferente, é nova, da autoria de James Strachey.
Este artigo apareceu no número de março de 1912 da Zentralblatt. Constitui uma ampliação de observações contidas num parágrafo da análise de Schreber (1911c), pp. 83 e seg., anteriores, e seu tema é a classificação das causas precipitantes das enfermidades neuróticas. Naturalmente, Freud já se ocupara muitas vezes com o assunto mas em seus primeiros escritos a posição foi obscurecida pela proeminência neles concedida aos eventos traumáticos. Após haver abandonado mais ou menos completamente a teoria do trauma, seu interesse focalizou-se em grande parte [p. ex., no ‘Resumo’, ao final dos Três Ensaios (1905d), ver a partir de [1], 1972] nas diversas causas predisponentes à neurose. As causas precipitantes são mencionadas em um ou dois artigos contemporâneos, mas apenas nos termos mais gerais e, às vezes, depreciativos. [Ver, por exemplo, o artigo sobre a etiologia das neuroses (1906a), em [2]] É verdade, contudo, que a noção de ‘privação’ (‘Entbehrung‘) aparece ocasionalmente, p. ex. em ‘Sobre a Psicoterapia’ (1905a), em [3], mas somente no sentido de privação devida a circunstância externa. A possibilidade de a neurose resultar de um obstáculo interno à satisfação surge em data um tanto posterior - no artigo, por exemplo, sobre os efeitos da moralidade ‘civilizada’ (1908d) - talvez, como Freud sugere adiante (em [4]), sob o impacto do trabalho de Jung. No artigo por último mencionado, o termo ‘Versagung (frustração)’ é utilizado para descrever obstáculo interno. Reaparece, mas desta vez com referência apenas a obstáculos externos, na análise de Schreber, bastante anterior (1911c) (ver em [1] e [2]), bem como em dois artigos contemporâneos deste - sobre a dinâmica da transferência (1912b), em [3], e sobre a tendência ao aviltamento no amor (1912d), ver em [4], 1970. No presente artigo, porém, Freud empregou a palavra pela primeira vez, a fim de introduzir um conceito mais abrangente, a abarcar ambos os tipos de obstáculos.
Daqui por diante, ‘Frustração’, como principal causa precipitante da neurose, tornou-se uma das armas mais comumente usadas no arsenal clínico de Freud, e reaparece em muitos de seus escritos posteriores. O mais elaborado destes exames posteriores pode ser encontrado na Conferência XXII das Conferências Introdutórias (1916-17). O caso aparentemente contraditório de uma pessoa cair doente no momento de alcançar êxito - o próprio oposto na frustração - foi apresentado e resolvido por Freud no decurso de um artigo sobre diversos tipos de caráter (1916d), ver a partir de [1], 1974, e ele retornou mais uma vez ao mesmo ponto em sua carta aberta a Romain Rolland, que descreve uma visita à Acrópole (1936a). Numa passagem da história clínica do ‘Wolf Man’ (1918b), Freud mostrou existir uma omissão na presente relação de tipo de desencadeamento da neurose - o tipo resultante de uma frustração narcísica (ver em [1]).
A maior parte deste artigo, na versão de 1924, foi incluída na General Selection from the Works of Sigmund Freud (1937, 70-8), de Rickman.
TIPOS DE DESENCADEAMENTO DA NEUROSE
Nas páginas que se seguem, descreverei, com bases em impressões alcançadas empiricamente, as mudanças que as condições têm de experimentar a fim de ocasionar a irrupção de uma doença neurótica numa pessoa com disposição a essa. Tratarei assim da questão dos fatores precipitantes das enfermidades e pouco terei a dizer sobre suas formas. O presente exame das causas precipitantes diferirá de outros pelo fato de que as mudanças a serem enumeradas referem-se exclusivamente à libido do indivíduo, pois a psicanálise nos ensinou que são as vicissitudes da libido que decidem em favor da saúde ou da moléstia nervosa. Neste sentido, tampouco se gastarão palavras sobre o conceito de disposição. Foi precisamente a pesquisa psicanalítica que nos capacitou a demonstrar que a disposição neurótica reside na história do desenvolvimento da libido, e a remontar os fatores operantes nesse desenvolvimento a variedade inatas de constituição sexual e a influências do mundo externo experimentadas na primeira infância.
(a) A causa precipitante mais óbvia, mais facilmente descobrível e mais inteligível de um desencadeamento da neurose deve ser vista no fator externo que pode ser descrito, em termos gerais, como frustração. O indivíduo foi sadio enquanto sua necessidade de amor foi satisfeita por um objeto real no mundo externo; torna-se neurótico assim que esse objeto é afastado dele, sem que um substituto ocupe seu lugar. Aqui, a felicidade coincide com a saúde e a infelicidade, com a neurose. É mais fácil para o destino que para o médico ocasionar uma cura, pois aquele pode oferecer ao paciente um substituto para a possibilidade de satisfação que perdeu.
Assim, para este tipo, ao qual indubitavelmente pertence a maioria dos seres humanos em geral, a possibilidade de cair enfermo surge apenas quando há abstinência. E daí se pode avaliar que papel importante na causação das neuroses pode ser desempenhado pela limitação imposta pela civilização ao campo das satisfações acessíveis. A frustração tem efeito patogênico por represar a libido e submeter assim o indivíduo a um teste de quanto tempo ele pode tolerar este aumento de tensão psíquica e que métodos adotará para lidar com ela. Há apenas duas possibilidades de permanecer sadio quando existe uma frustração persistente de satisfação no mundo real. A primeira é transformar a tensão psíquica em energia ativa, que permanece voltada para o mundo externo e acaba por arrancar dele uma satisfação real da libido. A segunda é renunciar à satisfação libidinal, sublimar a libido represada e voltá-la para a consecução de objetivos que não são mais eróticos e fogem à frustração. O fato de estas duas possibilidades serem realizadas nas vidas dos homens prova que a infelicidade não coincide com a neurose e que a frustração não decide sozinha se sua vítima permanece sadia ou tomba enferma. O efeito imediato da frustração reside em ela colocar em jogo os fatores disposicionais que até então haviam sido inoperantes.
Onde estes se acham presentes e são desenvolvidos de modo suficientemente intenso, há o risco de a libido tornar-se ‘introvertida’. Ela vira as costas à realidade, que, devido à frustração persistente, perdeu o valor para o indivíduo, e volta-se para a vida da fantasia, na qual cria novas estruturas de desejo e revive os traços de outras anteriores, esquecidas. Em conseqüência da estreita vinculação existente entre a atividade da fantasia e o material presente em todos, que é infantil e reprimido e se tornou inconsciente, bem como graças à excepcional posição desfrutada pela vida de fantasia com referência ao teste de realidade, a libido pode, daí por diante, mover-se num curso retroativo; pode seguir o caminho da regressão ao longo de linhas infantis e lutar por objetivos que se coadunem com elas. Se estes esforços, que são incompatíveis com a individualidade atual do paciente, adquirem intensidade suficiente, tem de resultar um conflito entre eles e a outra parte da personalidade, que manteve sua relação com a realidade. O conflito é solucionado pela formação de sintomas e seguido pelo desencadeamento da doença manifesta. O fato de todo o processo ter-se originado da frustração no mundo real reflete-se no resultado: os sintomas, nos quais o terreno da realidade é mais uma vez alcançado, representam satisfações substitutas.
(b) O segundo tipo de causas precipitante da enfermidade não é, de maneira alguma, tão evidente quanto o primeiro e, em verdade, só foi possível descobri-lo através de minuciosas investigações analíticas que se seguiram à teoria dos complexos da escola de Zurique. Aqui o indivíduo não cai enfermo em resultado de uma mudança no mundo externo, que substituiu a satisfação pela frustração, mas em resultado de um esforço interno para conseguir a satisfação que lhe é acessível na realidade. Cai enfermo por causa de sua tentativa de adaptar-se à realidade e de atender às exigências da realidade - tentativa no curso da qual se defronta com dificuldades internas insuperáveis.
É aconselhável traçar uma distinção nítida entre os dois tipos de desencadeamento de enfermidade, uma distinção mais nítida do que a observação via de regra permite. No primeiro tipo, o proeminente é uma mudança no mundo externo; no segundo, a ênfase recai sobre uma mudança interna. No primeiro, o indivíduo cai doente a partir de uma experiência; no segundo, a partir de um processo de desenvolvimento. No primeiro caso, defronta-se com a tarefa de renunciar à satisfação e cai enfermo devido à sua incapacidade de resistência; no segundo, sua tarefa é trocar um tipo de satisfação por outro, e sucumbe devido à sua inflexibilidade. No segundo caso, o conflito entre o esforço do indivíduo para permanecer tal como é e o esforço para modificar-se, a fim de atender a novos intuitos e novas exigências da realidade, acha-se presente desde o início. No primeiro caso, o conflito só surge após a libido represada haver escolhido outras, e incompatíveis, possibilidades de satisfação. O papel desempenhado pelo conflito e pela fixação anterior da libido é incomparavelmente mais óbvio no segundo tipo que no primeiro, onde tais fixações imprestáveis podem talvez surgir apenas como resultado da frustração externa.
Um jovem que até então tenha satisfeito sua libido por meio de fantasias que findem pela masturbação, e que agora busca substituir um regime que se aproxima do auto-erotismo pela escolha de um objeto real - ou uma jovem que dedicou toda sua afeição ao pai ou ao irmão e que deve agora, a bem de um homem que a está cortejando, permitir que seus desejos libidinais incestuosos até então inconscientes se tornem conscientes -, ou uma mulher casada, que gostaria de renunciar a suas inclinações polígamas e fantasias de prostituição, de modo a tornar-se uma consorte fiel ao marido e perfeita mãe para o filho: todos estes caem enfermos devido aos mais louváveis esforços, se as fixações anteriores de suas libidos são suficientemente poderosas para resistir a um deslocamento; e este ponto será decidido, uma vez mais, pelos fatores da disposição, da constituição e da experiência infantil. Todos eles, poder-se-ia dizer, defrontam-se com a sorte da arvorezinha do conto de fadas de Grimm, que queria ter folhas diferentes. Do ponto de vista higiênico - que, certamente, não é o único a ser levado em consideração - só se poderia desejar para eles que continuassem a ser tão subdesenvolvidos, inferiores e inúteis como o eram, antes de caírem enfermos. A mudança pela qual os pacientes se esforçam, mas realizam apenas imperfeitamente ou de modo algum, tem invariavelmente o valor de um passo à frente do ponto de vista da vida real. Mas é diferente se aplicarmos padrões éticos; vemos as pessoas caírem enfermas tão freqüentemente quando põem de lado um ideal como quando buscam atingi-lo.
Apesar das diferenças muito claras entre os dois tipos de desencadeamento de enfermidade que descrevemos, eles, não obstante coincidem em seus pontos essenciais e podem, sem dificuldade, ser reunidos numa unidade. Cair doente devido à frustração também pode ser encarado como uma incapacidade de adaptação à realidade - isto é, no caso específico em que a realidade frustra a satisfação da libido. Cair enfermo sob as condições do segundo tipo conduz diretamente a um caso especial de frustração. É verdade que a realidade não frustra aqui todos os tipos de satisfação, mas frustra aquele que o indivíduo declara ser o único possível. Tampouco a frustração provém imediatamente do mundo externo, mas, em primeiro lugar, de certas tendências no ego do indivíduo. Não obstante, ela permanece sendo o fator comum e o mais abrangente. Em conseqüência do conflito que se estabelece imediatamente no segundo tipo, ambas as espécies de satisfação - tanto a habitual quanto a que se visa - são igualmente inibidas; dá-se um represamento da libido, com todas as suas conseqüências, tal como no primeiro caso. Os eventos psíquicos que conduzem à formação de sintomas são, se é que há alguma diferença, mais fáceis de acompanhar no segundo tipo que no primeiro; pois naquele as fixações patogênicas da libido não precisam ser recentemente estabelecidas, mas já se encontraram em vigor enquanto o indivíduo era sadio. Certa quantidade de introversão da libido em geral já se acha presente; e poupa-se parte da regressão do indivíduo ao estádio infantil, devido ao fato de seu desenvolvimento não ter ainda completado seu curso.
(c) O tipo seguinte, que descreverei como cair doente devido a uma inibição no desenvolvimento, parece uma exageração do segundo, ou seja, cair doente devido às exigências da realidade. Não existe razão teórica para distingui-lo, mas apenas prática, pois aqueles em que nos achamos interessados aqui são pessoas que caem enfermas logo que passam da idade irresponsável da infância e que, assim, nunca atingiram uma fase de saúde - isto é, uma fase de capacidade de realização e fruição que é geralmente ilimitada. A característica essencial do processo disposicional é, nestes casos, muito simples. A libido nunca abandonou as fixações infantis; as exigências da realidade não são subitamente feitas a uma pessoa integral ou parcialmente madura, mas originam-se do próprio fato de ficar mais velho, visto ser óbvio que elas constantemente se alteram com a idade crescente do indivíduo. Assim, o conflito cai para o segundo plano, em comparação com a insuficiência. Mas também aqui toda nossa outra experiência leva-nos a postular um esforço de superação das fixações da infância; pois, de outra maneira, o resultado do processo nunca poderia ser a neurose, mas apenas um infantilismo estacionário.
(d) Tal como o terceiro tipo apresentou-nos a determinante disposicional quase em isolamento, também o quarto tipo, que agora se segue, chama nossa atenção para outro fator, que entra em consideração em todo caso isolado e facilmente poderia, por essa própria razão, ser negligenciado num exame teórico. Vemos cair enfermas pessoas que até então haviam sido sadias, que não se defrontaram com nenhuma experiência nova e cuja relação com o mundo externo não sofreu alteração, de maneira que o desencadeamento de sua moléstia inevitavelmente dá a impressão de espontaneidade. Uma consideração mais chegada desses casos, contudo, demonstra-nos que, não obstante, uma mudança realizou-se neles, mudança cuja importância temos de avaliar em alto grau como causa de enfermidade. Em resultado de haverem atingido um período específico da vida, e em conformidade com processos biológicos normais, a quantidade de libido em sua economia mental experimentou um aumento que em si é suficiente para perturbar o equilíbrio da saúde e estabelecer as condições necessárias para uma neurose. É notório que aumentos mais ou menos súbitos de libido deste tipo acham-se habitualmente associados à puberdade e à menopausa - quando as mulheres chegam a determinada idade; além disso, em algumas pessoas, eles se podem manifestar em periodicidades que ainda são desconhecidas. Aqui, o represamento da libido é o fator primário; ele se torna patogênico em conseqüência de uma frustração relativa procedente do mundo externo, que ainda teria concedido satisfação a uma reivindicação menor por parte da libido. Esta, insatisfeita e represada, pode mais uma vez abrir caminhos para a regressão e despertar os mesmos conflitos que demonstramos no caso da frustração externa absoluta. Desse modo, lembramo-nos de que o fator qualitativo não deve ser negligenciado em qualquer consideração das causas precipitantes da doença. Todos os outros fatores - frustração, fixação, inibição de desenvolvimento - permanecem ineficientes, a menos que afetem determinada quantidade de libido e ocasionem um razoável represamento desta. É verdade que não podemos medir esta quantidade de libido que nos parece indispensável para um efeito patogênico; só podemos postulá-la após a moléstia resultante haver começado. Só há uma direção na qual podemos determiná-la mais precisamente. Podemos supor que não se trata de uma quantidade absoluta, mas da relação entre a cota de libido em operação e a quantidade de libido com que o ego individual é capaz de lidar - isto é, de manter sob tensão, sublimar ou empregar diretamente. Por este motivo, um aumento relativo na quantidade de libido pode ter os mesmos efeitos que um aumento absoluto. Um debilitamento do ego, devido a doença orgânica ou a alguma exigência especial à sua energia, poderá causar o surgimento de neuroses que de outra maneira permaneceriam latentes, apesar de qualquer disposição que pudesse se achar presente.
A importância na causação de doenças que deve ser atribuída à quantidade de libido acha-se em concordância satisfatória com duas teses principais da teoria das neuroses a que a psicanálise nos levou; em primeiro lugar, a tese de que as neuroses derivam do conflito entre o ego e a libido e, em segundo, a descoberta de que não existe distinção qualitativa entre as determinantes da saúde e as da neurose, e que, pelo contrário, as pessoas sadias têm de avir-se com as mesmas tarefas de dominação de sua libido - simplesmente, saíram-se melhor nelas.
Resta dizer algumas palavras sobre a relação destes tipos com os fatos da observação. Se passar em revista o conjunto de pacientes em cuja análise acho-me presentemente empenhado, tenho de registrar que nem um só deles constitui exemplo puro de qualquer dos quatro tipos de desencadeamento. Em cada um, antes, encontro uma parte de frustração operando lado a lado com uma parte de incapacidade a adaptar-se às exigências da realidade; a inibição no desenvolvimento, que coincide, naturalmente, com a inflexibilidade das fixações, tem de ser levada em conta em todos eles e, como já disse, a importância da quantidade de libido nunca deve ser desprezada. Descubro, em verdade, que em diversos desses pacientes a doença apareceu em ondas sucessivas, entre as quais houve intervalos sadios, e que cada uma dessas ondas foi remontável a um tipo diferente de causa precipitante. Dessa maneira, a formulação desses quatro tipos não pode reivindicar qualquer valor teórico elevado; eles são simplesmente modos diferentes de estabeleceruma constelação patogênica específica na economia mental - a saber, o represamento da libido, que o ego não pode desviar sem danos com os meios à sua disposição. Mas esta situação em si apenas se torna patogênica em resultado de um fator quantitativo; ela não chega como novidade à vida mental e não é criada pelo impacto daquilo que se denomina ‘causa da doença’.
Determinada importância prática pode ser prontamente concedida a estes tipos de desencadeamento. Na verdade, devem ser encontrados em sua forma pura em casos individuais; não teríamos observado o terceiro e o quarto tipos se eles não houvessem, em certos indivíduos, constituído as únicas causas precipitantes da enfermidade. O primeiro tipo expõe-nos a influência extraordinariamente poderosa do mundo externo, e o segundo, a influência não menos importante - e que se opõe à primeira - da individualidade peculiar do sujeito. A patologia não poderia fazer justiça ao problema dos fatores precipitantes nas neuroses enquanto estivesse simplesmente preocupada em decidir se estas afecções eram de natureza ‘endógena’ ou ‘exógena’. Era obrigada a enfrentar toda observação que apontasse para a importância da abstinência (no sentido mais alto da palavra) como causa precipitante, com a objeção de que outras pessoas toleram as mesmas experiências sem caírem enfermas. Se, contudo, buscasse enfatizar a individualidade peculiar do sujeito como sendo o fator decisivo essencial entre a doença e a saúde, estaria obrigada a tolerar a ressalva de que pessoas que possuem esta peculiaridade podem permanecer sadias indefinidamente, enquanto são capazes de mantê-la. A psicanálise alertou-nos de que devemos abandonar o contraste infrutífero entre fatores externos e internos, entre experiência e constituição, e ensinou-nos que invariavelmente encontraremos a causa do desencadeamento da enfermidade neurótica numa situação psíquica específica que pode ser ocasionada de várias maneiras.
CONTRIBUIÇÕES A UM DEBATE SOBRE A MASTURBAÇÃO (1912)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ZUR ONANIE-DISKUSSION
(a)EDIÇÕES ALEMÃS:
1912 Em Die Onanie (Diskussionen der Wiener Psychoanalytischen Vereinigung, 2), Wiesbaden: Bergmann, p. iii-iv e 132-40.
1925 G. S., 3 324-37.
1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 228-39.
1943 G. W., 8, 332-45.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Masturbation’
1921 Medical Critic and Guide (Nova Iorque), 24 (setembro), 327-34. (Omitindo a ‘Introdução’.) (Trad. de Eden Paul.)
A presente tradução inglesa, nova, é da autoria de James Strachey.
O debate sobre masturbação realizado na Sociedade Psicanalítica de Viena foi muito mais prolongado que o anterior, sobre o suicídio; as contribuições de Freud a este foram igualmente publicadas (1910g). As minutas da Sociedade, impressas no Volume II do Zentralblatt für Psychoanalyse (1911-12), mostram que 14 membros (incluindo Freud) tomaram parte nos debates, que ocuparam 9 noites, de 22 de novembro de 1911 a 24 de abril de 1912. Foi nesta última ocasião que Freud fez suas observações finais, descritas nas minutas como ‘Epílogo’. A ‘Introdução’ não foi pronunciada numa reunião, mas constitui simplesmente o prefácio ao opúsculo em que os artigos acabaram por ser publicados.
Este trabalho contém, de longe, o exame mais amplo da masturbação que pode ser encontrado nos escritos de Freud, embora breves alusões a ela sejam bastante freqüentes. Em seus primeiros artigos, a masturbação figura principalmente por causa de sua relação com as ‘neuroses atuais’ e, em particular, como agente causador da neurastenia. (Ver, por exemplo, a Seção I de seu artigo em francês sobre a etiologia das neuroses, 1896a.) É interessante descobrir Freud defendendo bravamente essa posição no presente trabalho e aproveitando a oportunidade para efetuar um de seus poucos pronunciamentos posteriores sobre as ‘neuroses atuais’ em geral (ver em [1] e nota de rodapé do Editor Inglês ao artigo sobre psicanálise ‘silvestre’ (1910k), em [2], 1970.
Após estes primeiros artigos, a primeira descrição importante da masturbação, feita por Freud, apareceu na Seção 4 do segundo de seus Três Ensaios (1905d), a partir de [1], 1972. Aqui pela primeira vez, pôs ele em relevo a significação da masturbação na primeira infância. Entretanto, foi apenas na terceira edição (1915) daquela obra (isto é, após a data do presente debate) que a existência de três fases distintas de masturbação foi claramente demonstrada. (Ver em [2].) Tampouco foi essa distinção evidenciada na seguinte referência demorada ao assunto, por parte de Freud, na história clinica do ‘Rat Man’ (1909d), em [1]. Contudo, duas proposições importantes foram demonstradas em artigos aproximadamente do mesmo período: a vinculação da masturbação com as fantasias, no artigo sobre fantasias histéricas (1908a), e sua conexão com a ameaça de castração, no trabalho sobre teorias sexuais infantis (1908c), e, naturalmente, na análise de ‘Little Hans’ (1909b). Uma curta passagem no artigo sobre os efeitos da moral ‘civilizada’ (1908d) deve também ser mencionada, na qual as objeções à masturbação são apresentadas em linhas semelhantes às do presente trabalho. Incidentalmente, Freud aí observa que o comportamento sexual de uma pessoa amiúde ‘estabelece um padrão’ para toda sua maneira de reagir ao mundo externo; e isto indubitavelmente explica a obscura referência adiante, no parágrafo (b), em [1], ao ‘estabelecimento de um padrão psíquico’.
É fato curioso que, à parte seus exames dos sentimentos de culpa ligados à masturbação e das características especiais desta em meninas, para a qual se chama a atenção em notas de rodapé adiante, em [1] e [2], quase todas as referências posteriores de Freud ao tópico ocorrem em relação ao pavor da castração. Seu interesse nos outros aspectos do assunto parece ter-se exaurido na presente contribuição.
CONTRIBUIÇÕES A UM DEBATE SOBRE A MASTURBAÇÃO
I - INTRODUÇÃO
Nunca foi objetivo dos debates na Sociedade Psicanalítica de Viena afastar divergências ou chegar a conclusões. Os diferentes oradores, que se mantêm unidos por assumirem uma visão fundamental semelhante dos mesmos fatos, permitem-se dar a mais nítida expressão à variedade de suas opiniões individuais, sem considerar sequer a probabilidade de converterem alguém da platéia que possa pensar de modo diverso. Pode haver muitos pontos nesses debates que foram mal enunciados e mal compreendidos, mas o resultado final, não obstante, é que todos receberam a mais clara impressão das opiniões diferentes das suas e comunicaram suas próprias opiniões diferentes a outras pessoas.
O debate sobre masturbação, do qual, na realidade, apenas fragmentos são publicados aqui, durou diversos meses e foi conduzido segundo o plano de cada orador, por seu turno, ler um artigo, que era seguido de um debate exaustivo. Somente os artigos acham-se incluídos na atual publicação, não os debates, que foram altamente estimulantes e nos quais as diferentes opiniões foram expressas e defendidas. De outro modo, este opúsculo teria atingido dimensões que certamente o impediriam de ser amplamente lido e provar-se eficaz.
A escolha do tópico não necessita justificativas, nestes dias em que por fim se faz uma tentativa de submeter os problemas da vida sexual do homem a exame científico. Numerosas repetições dos mesmos pensamentos e assertivas foram inevitáveis; elas constituem, naturalmente, os sinais de concordância entre os oradores. Com referência às muitas divergências de opiniões, não pode ser tarefa do coordenador harmonizá-las ou tentar ocultá-las. Espera-se que o interesse do leitor não seja rechaçado pelas repetições nem pelas contradições.
Foi nosso intuito, nesta ocasião, indicar a direção em que o estudo do problema da masturbação foi forçado, pelo surgimento de método de abordagem psicanalítico. Até onde fomos bem sucedidos nesse propósito tornar-se-á evidente do aplauso dos leitores, ou talvez de modo ainda mais claro, de sua desaprovação.
VIENA, verão de 1912.
II - CONSIDERAÇÕES FINAIS
SENHORES: os membros mais idosos deste grupo serão capazes de lembrar que, há alguns anos, fizemos uma tentativa prévia de um debate coletivo deste tipo - um ‘simpósio’, como nossos colegas americanos o chamam - sobre o assunto da masturbação. Naquela ocasião, as opiniões expressas apresentavam divergências tão importantes que não nos aventuramos a expor nossas Atas ao público. Desde então o mesmo grupo, juntamente com alguns recém-chegados, havendo estado ininterruptamente em contato com fatos observados e mantido um intercâmbio constante de idéias uns com os outros, esclareceram suas opiniões e chegaram a um terreno comum, de maneira que a aventura que havíamos anteriormente abandonado não mais parece tão temerária. Tenho realmente a impressão de que os pontos sobre os quais concordamos, em conexão com a masturbação, são hoje mais firmes e mais profundos que as divergências, embora estas últimas inegavelmente existam. Algumas das aparentes contradições são apenas resultado das muitas direções diferentes a partir das quais os senhores se aproximaram do assunto, enquanto que, na verdade, as opiniões em apreço podem muito bem encontrar lugar lado a lado.
Com sua permissão, apresentar-lhes-ei um resumo dos pontos sobre os quais parecemos achar-nos acordes ou divididos.
Todos nós concordamos, acho eu,
(a) sobre a importância das fantasias que acompanham ou representam o ato masturbatório,
(b) sobre a importância do sentimento de culpa, qualquer que seja sua fonte, que se acha ligado à masturbação, e
(c) sobre a impossibilidade de atribuir um determinante qualitativo aos efeitos prejudiciais da masturbação. (Sobre este último ponto, o acordo não é unânime.)
Diferenças não solucionadas de opinião apareceram
(a) com respeito à negação de um fator somático nos efeitos da masturbação,
(b) com respeito a uma negação geral dos efeitos prejudiciais da masturbação,
(c) com respeito à origem do sentimento de culpa, que alguns dos senhores desejam atribuir diretamente à falta de satisfação, enquanto outros aduzem fatores sociais, além disso, ou à atitude da personalidade do indivíduo no momento, e
(d) com respeito à ubiqüidade da masturbação nas crianças.
Por fim, incertezas significativas existem
(a) quanto ao mecanismo dos efeitos prejudiciais da masturbação, se os houver, e
(b) quanto à relação etiológica da masturbação com as ‘neuroses atuais’.
Com referência à maioria dos pontos de controvérsia entre nós, temos de agradecer as críticas desafiantes de nosso colega, Wilhelm Stekel, baseadas em sua grande e independente experiência. Não há dúvida de que deixamos muitíssimos pontos para serem estabelecidos e esclarecidos por algum grupo futuro de observadores e pesquisadores, mas podemos consolar-nos em saber que trabalhamos honestamente e sem espírito estreito, e que, assim procedendo, abrimos caminhos ao longo dos quais a pesquisa posterior poderá viajar.
Não devem esperar muito de minhas próprias contribuições às questões em que estamos interessados. Estão cientes da minha preferência pelo tratamento fragmentário de um assunto, com ênfase nos pontos que me parecem mais bem estabelecidos. Nada tenho de novo a oferecer - nenhuma solução, só algumas repetições de coisas que já sustentei, algumas palavras em defesa dessas velhas assertivas contra ataques a elas feitos por alguns dos senhores, e, além disso, alguns comentários que se devem inevitavelmente impor a quem quer que escute seus artigos.
Como bem sabem, dividi a masturbação segundo a idade do indivíduo em (1) masturbação em bebês, que inclui todas as atividades auto-eróticas que servem ao intuito da satisfação sexual, (2) masturbação em crianças, que se origina diretamente do tipo precedente e já se fixou em certas zonas erógenas, e (3) masturbação na puberdade, que continua a masturbação da infância ou é dela separada pelo período de latência. Em algumas das explicações que ouvi dos senhores, plena justiça não foi inteiramente feita a esta divisão temporal. A unidade ostensiva da masturbação, que é nutrida pela terminologia médica costumeira, deu origem a certas generalizações em que uma diferenciação segundo os três períodos da vida teria sido mais justificada. Foi também de lamentar não termos sido capazes de prestar tanta atenção à masturbação feminina quanto à masculina; a masturbação feminina, acredito eu, é merecedora de estudo especial e em seu caso é particularmente verdadeiro que uma ênfase especial resida nas modificações dela que aparecem em relação à idade do indivíduo.
Chego agora às objeções levantadas por Reitler ao meu argumento teleológico em favor da ubiqüidade da masturbação na primeira infância. Admito que este argumento tem de ser abandonado. Se mais uma edição de meus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade for exigida, ela não mais conterá a frase que se acha sob ataque. Renunciarei à minha tentativa de adivinhar os intuitos da Natureza e contentar-me-ei em descrever os fatos.
Outra observação de Reitler, é, penso eu, significativa e importante. Foi ela no sentido de que certas disposições do aparelho genital, que são peculiares aos seres humanos, parecem tender a impedir a relação sexual na infância. Aqui, contudo, surgem minhas dúvidas. A oclusão do orifício sexual feminino e a ausência de um os penis que garantisse a ereção são, afinal de contas, dirigidos apenas contra o coito real, não contra excitações sexuais em geral. Reitler parece-me assumir uma visão antropomórfica demais da maneira pela qual a Natureza persegue seus objetivos - como se se tratasse de uma questão de ela sustentar um só propósito, como é o caso da atividade humana. Entretanto, até onde podemos ver, nos processos naturais grande número de objetivos é perseguido, um ao lado de outro, sem interferir um com o outro. Se devemos falar da Natureza em termos humanos, teríamos de dizer que ela nos parece ser o que, no caso dos homens, chamaríamos de inconsistente. De minha parte, penso que Reitler não deveria dar tanto peso a seus próprios argumentos teleológicos. O emprego da teleologia como hipótese heurística tem seu lado duvidoso: em determinadas ocasiões, nunca se pode dizer se demos com uma ‘harmonia’ ou uma ‘desarmonia’. É o mesmo que acontece quando se enfia um prego na parede de uma sala; não podemos estar certos se vamos dar contra ripa, emboço ou tijolo.
Sobre a questão da relação da masturbação e das emissões com a causação da chamada ‘neurastenia’, descobri-me, como muito dos senhores, em oposição a Stekel, e, sujeito a uma limitação que mencionarei dentro em pouco, sustento contra ele minhas opiniões anteriores. Nada vejo que nos obrigue a abandonar a distinção entre ‘neuroses atuais’ e psiconeuroses, e não posso encarar a gênese dos sintomas, no caso das primeiras, senão como tóxica. Aqui, Stekel me parece realmente estender demais a psicogenia. Minha opinião ainda é a mesma da primeira ocasião, há mais de quinze anos: a saber, que as duas ‘neuroses atuais’ - a neurastenia e a neurose de angústia (e talvez devêssemos adicionar a hipocondria propriamente dita como uma terceira ‘neurose atual’) - fornecem às psiconeuroses a necessária ‘submissão somática’; elas fornecem o material excitativo, que é então psiquicamente selecionado e recebe um ‘revestimento psíquico’, de maneira que, falando de modo geral, o núcleo do sintoma psiconeurótico - o grão de areia no centro da pérola - é formado de uma manifestação sexual somática. Isto é mais claro, é verdade, na neurose de angústia e sua relação com a histeria do que na neurastenia, sobre a qual nenhuma investigação psicanalítica cuidadosa foi feita ainda. Na neurose de angústia, como amiúde puderam convencer-se, há no fundo um pequeno fragmento de excitação não descarregada, vinculada ao coito, que emerge como sintoma de ansiedade ou fornece o núcleo para a formação de um sintoma histérico.
Stekel partilha com muitos autores psicanalíticos de uma inclinação a rejeitar as diferenciações morfológicas que fizemos dentro da mixórdia das neuroses e a aglomerá-las todas sob uma só denominação - psicastenia, talvez. Neste ponto freqüentemente o contradissemos e apegamo-nos à nossa expectativa de que as diferenças morfológico-clínicas se mostrarão valiosas como indicações ainda não compreendidas de processos essencialmente distintos. Quando ele - corretamente - nos mostra que encontrou regularmente os mesmos complexos presentes, tanto no que são chamados de neurastênicos como em outros neuróticos, seu argumento falha em atender o tema em debate. Há muito tempo sabemos que os mesmos complexos e conflitos devem ser procurados também em todas as pessoas normais e sadias. Na verdade, acostumamo-nos a atribuir a todo ser humano civilizado certa quantidade de repressão e impulsos perversos, determinada cota de erotismo anal, de homossexualismo e assim por diante, bem como uma porção de complexo paterno e complexo materno e de outros complexos fora esses, tal como na análise química de uma substância orgânica esperamos encontrar certos elementos: carbono, oxigênio, hidrogênio, nitrogênio e traços de enxofre. O que distingue as substâncias orgânicas umas das outras são as quantidades relativas desses elementos e a maneira pela qual as ligações entre eles se acham constituídas. Do mesmo modo, no caso das pessoas normais e neuróticas, o que se acha em debate não é se esses complexos e conflitos existem, mas se se tornaram patogênicos e, nesse caso, mediante que mecanismos assim se tornaram.
A essência das teorias a respeito das ‘neuroses atuais’ que apresentei no passado e estou defendendo hoje reside na minha declaração, baseada em experimentos, de que seus sintomas, diferentemente dos psiconeuróticos, não podem ser analisados. Isto equivale a dizer que a prisão-de-ventre, as dores de cabeça e a fadiga do chamado neurastênico não admitem serem remontadas, histórica ou simbolicamente, a experiência operantes, e não podem ser compreendidas como substitutos da satisfação sexual ou como conciliações entre impulsos instintuais opostos, como é o caso dos sintomas psiconeuróticos (ainda que os últimos talvez possam ter a mesma aparência). Não acredito que seja possível contrariar esta declaração com o auxílio da psicanálise. Por outro lado, admitirei hoje aquilo em que fui incapaz de acreditar anteriormente - que um tratamento analítico pode ter um efeito curativo indireto sobre sintomas ‘atuais’. Ele pode consegui-lo, ou permitindo que os danos atuais sejam mais bem tolerados, ou capacitando a pessoa doente a escapar deste danos pela efetivação de uma mudança em seu regime sexual. Seriam perspectivas desejáveis, do ponto de vista de nosso interesse terapêutico.
Se no final eu for condenado por estar errado sobre o problema teórico das ‘neuroses atuais’, poderei consolar-me com o progresso em nosso conhecimento, que deve desprezar as opiniões de um indivíduo. Podem perguntar então por que, visto que faço uma estimativa tão louvável das limitações de minha própria infalibilidade, não cedo imediatamente a estas novas sugestões, mas prefiro representar de novo a familiar comédia de um velho a aferrar-se obstinadamente às suas opiniões. Minha resposta é que ainda não vejo nenhuma prova que me induza a ceder. Anteriormente, efetuei várias alterações em meus pontos de vista e não as ocultei do público. Fui censurado por causa dessas mudanças, tal como hoje sou censurado por causa de meu conservadorismo. Não que fique intimado por uma censura ou pela outra, mas sei que tenho um destino a cumprir. Não posso fugir a ele e não preciso movimentar-me em sua direção. Esperá-lo-ei e, entrementes, conduzir-me-ei em relação a nossa ciência tal como a experiência anterior me ensinou.
Repugna-me assumir posição na questão, tratada tão amplamente pelos senhores, da nocividade da masturbação, pois ela não oferece uma abordagem correta aos problemas que nos interessam. Mas todos temos de fazê-lo, não há dúvida: o mundo não parece ter outro interesse na masturbação. Lembrar-lhe-ei que, em nossa série anterior de debates sobre o assunto, tivemos entre nós, como visitante, um eminente pediatra vienense. O que foi que ele repetidamente pediu-nos para dizer-lhe? Simplesmente, até que ponto a masturbação é prejudicial e por que ela prejudica certas pessoas e não outras. Dessa maneira, temos de forçar nossas pesquisas a efetuar um pronunciamento para atender a esta exigência prática.
Tenho de confessar que aqui, mais uma vez, não posso partilhar o ponto de vista de Stekel, apesar das muitas observações corretas e corajosas que ele nos fez sobre o assunto. A seu ver, a nocividade da masturbação equivale apenas a um preconceito insensato que, devido simplesmente a limitações pessoais, não nos dispomos a rejeitar com suficiente cuidado. Acredito, contudo, que, se fixarmos nossos olhos sobre o problemas sine ira et studio - na medida, é claro, em que pudermos fazê-lo -, seremos antes obrigados a declarar que assumir tal posição contradiz nossas opiniões fundamentais sobre a etiologia das neuroses. A masturbação corresponde essencialmente à atividade sexual infantil e à sua retenção subseqüente, em idade mais madura. Derivamos as neuroses de um conflito entre os impulsos sexuais de uma pessoa e suas outras tendências (do ego). Ora, alguém poderia dizer: ‘Em minha opinião o fator patogênico nesta relação etiológica reside unicamente na reação do ego à sua sexualidade.’ Com isto, estaria afirmando que qualquer um poderia manter-se livre da neurose, se apenas estivesse disposto a permitir uma satisfação irrestrita aos seus impulsos sexuais. Mas é evidentemente arbitrário, e também sem sentido, chegar a tal decisão, e não permitir que os próprios impulsos sexuais tomem qualquer parte no processo patogênico. Mas se admitirmos que os impulsos sexuais podem ter um efeito patogênico, não mais negaremos um significado semelhante à masturbação, que afinal consiste apenas em pôr em execução esses impulsos instintuais, do sexo. Em todos os casos que parecem demonstrar que a masturbação é patogênica, poderão sem dúvida remontar a operação ainda mais longe - até os instintos que se manifestam na masturbação e as resistências que são dirigidas contra esses instintos. A masturbação não é nada definitivo - somática ou psicologicamente -, não é um ‘agente’ real, mas simplesmente o nome para certas atividades. Entretanto, por mais que remontemos atrás, nossa opinião sobre a causação da doença continuará, não obstante, adequadamente ligada a essa atividade. E não esqueçam que a masturbação não deve ser igualada à atividade sexual em geral: ela é atividade sexual sujeita a certas condições limitantes. Assim também persiste a possibilidade de que sejam precisamente essas peculiaridades da atividade masturbatória os veículos de seus efeitos patogênicos.
Somos, portanto, mais uma vez trazidos dos argumentos para a observação clínica, e por ela advertidos para não apagar o título ‘Efeitos Prejudiciais da Masturbação’. Somos, pelo menos, confrontados nas neuroses com casos em que a masturbação causou dano.
Este dano parece ocorrer de três modos diferentes:
(a) Um prejuízo orgânico pode ocorrer, mediante algum mecanismo desconhecido. Aqui temos de levar em conta as considerações de excesso e satisfação inadequada, que foram amiúde mencionadas pelos senhores.
(b) O prejuízo pode ocorrer através do estabelecimento de um padrão psíquico, segundo o qual não há necessidade de tentar alterar o mundo externo a fim de satisfazer uma grande necessidade. Todavia, onde se desenvolve uma reação de grande alcance contra este padrão, os mais valiosos traços de caráter podem ser iniciados.
(c) Uma fixação de objetivos sexuais infantis pode ser possível, e uma persistência de infantilismo psíquico. Temos aqui a disposição para a ocorrência de uma neurose. Como psicanalistas, não podemos deixar de estar grandemente interessados neste resultado da masturbação - que neste caso significa, é claro, uma masturbação que ocorre na puberdade e continua posteriormente. Devemos lembrar a significação que a masturbação adquire como realizadora da fantasia - aquela região a meio caminho, inserida entre a vida de acordo com o princípio de prazer e a vida de acordo com o princípio de realidade e temos de lembrar-nos de como a masturbação possibilita efetuar desenvolvimentos e sublimações sexuais na fantasia, que, não obstante, não são progressos, mas conciliações prejudiciais - embora seja verdade, como uma importante observação de Stekel apontou, que esta mesma conciliação torna inofensivas graves inclinações perversas e previne as piores conseqüências da abstinência.
Com base em minha experiência médica, não posso excluir uma redução permanente na potência como um dos resultados da masturbação, embora assegure a Stekel que, em vários casos, ela pode tornar-se apenas aparente. Este resultado específico da masturbação, contudo, não pode ser classificado sem hesitação entre os prejudiciais. Certa diminuição da potência masculina e da brutal agressividade nela envolvida é muito apropositada, do ponto de vista da civilização. Ela facilita a prática, pelos homens civilizados, das virtudes da moderação e confiança sexual que lhes incumbem. A virtude acompanhada de plena potência é geralmente considerada tarefa árdua.
Isto pode parecer-lhes cínico, mas podem ficar certos de que não há essa intenção. Dispõe-se a ser apenas um fragmento de descrição árida, sem considerar se pode causar satisfação ou aborrecimento, pois a masturbação, como tantas outras coisas, tem les défauts de ses vertus e, por outro lado, les vertus de ses défauts. Se estamos deslindando um assunto complicado e complexo com um interesse prático unilateral em sua nocividade e empregos, temos de aturar descobertas desagradáveis.
Além disso, penso que podemos distinguir com vantagem o que podemos descrever como prejuízos diretos causados pela masturbação daqueles que resultam indiretamente da resistência e indignação do ego contra essa atividade sexual. Não me interessei por estas últimas conseqüências.
E agora sou obrigado a acrescentar algumas palavras sobre a segunda das duas penosas questões que foram formuladas. Supondo que a masturbação possa ser prejudicial, sob que condições e em que pessoas ela prova sê-lo?
Como a maioria dos senhores, acho-me inclinado a recusar dar uma resposta geral à questão. Ela coincide parcialmente com outra pergunta, mais abrangente: quando a atividade sexual em geral se torna patogênica para determinadas pessoas? Se colocarmos esta consideração de lado, resta-nos uma questão de pormenor, referente às características da masturbação, na medida em que representa uma maneira e forma especiais de satisfação sexual. Aqui seria o lugar para repetir o que já conhecemos e foi debatido em relação a outros assuntos - avaliar a influência do fator quantitativo e da operação combinada de diversos fatores patogênicos. Acima de tudo, contudo, deveríamos deixar amplo campo para o que se conhece como disposições constitucionais de um indivíduo. Mas é preciso confessar que lidar com estas é ocupação difícil, pois temos o hábito de formar nossa opinião sobre as disposições individuais ex post facto: atribuímos esta ou aquela disposição às pessoas após o evento, quando elas já caíram doentes. Não temos método de descobri-las de antemão. Conduzimo-nos, em verdade, como o rei escocês de uma das novelas de Victor Hugo, que se gabava de possuir um método infalível de identificar a feitiçaria. Ele fazia cozer a mulher acusada em água fervente e depois provava o caldo. Segundo o gosto, julgava então: ‘Esta era bruxa’, ou ‘Esta não era.’
Poderia chamar sua atenção para outra questão, da qual muito pouco nos ocupamos em nossos debates: a da masturbação ‘inconsciente’. Quero dizer a masturbação durante o sono, durante estados anormais, ou crises. Lembrar-se-ão das muitas crises histéricas em que atos masturbatórios tornam a acontecer de maneira disfarçada ou irreconhecível, após o indivíduo haver renunciado a essa forma de satisfação, e dos muitos sintomas na neurose obsessiva que buscam substituir e repetir este tipo de atividade sexual, que foi anteriormente proibido. Podemos também falar de um retorno terapêutico da masturbação. Muitos dos senhores terão descoberto ocasionalmente, como eu, que representa um grande progresso se, durante o tratamento, o paciente se aventura a dedicar-se à masturbação novamente, embora possa não ter intenção de estacionar permanentemente neste ponto de parada infantil. Com respeito a isto, posso lembrar-lhes que número considerável precisamente dos mais graves padecedores de neuroses evitou toda rememoração da masturbação no passado, enquanto que a psicanálise é capaz de provar que essa espécie de atividade sexual não lhes foi de forma alguma estranha durante o mais remoto e esquecido período de suas vidas.
Mas penso que chegou a hora de parar, pois todos nós achamo-nos de acordo sobre uma coisa - que o assunto da masturbação é inteiramente inexaurível.
UMA NOTA SOBRE O INCONSCIENTE NA PSICANÁLISE (1912)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
A NOTE ON THE UNCONSCIOUS IN PSYCHO-ANALYSIS
(a) EDIÇÕES INGLESAS:
1912 Atas da Sociedade de Pesquisas Psíquicas, 26 (Parte 66), 312-18.
1925 C. P., 4, 22-9.
(b) TRADUÇÃO ALEMÃ:
‘Einige Bemerkungen über den Begriff des Unbewussten in der Psychoanalyse’
1913 Int. Z. Psychoanal., 1 (2), 117-23.
1918 S. K. S. N., 4, 157-67 (1922, 2ª ed.)
1924 G. S., 5, 433-42.
1924 Technik und Metapsychol., 155-64.
1931 Theorestische Schriften, 15-24.
1943 G. W., 8, 430-39.
Em 1912, Freud foi convidado pela Sociedade de Pesquisas Psíquicas de Londres a contribuir para uma ‘Parte Médica Especial’ de suas Atas, sendo o presente artigo o resultado. Foi escrito por Freud em inglês, mas revisado, segundo parece, na Inglaterra, antes de sua publicação em novembro de 1912. Uma versão alemã do trabalho apareceu no número de março de 1913 da Zeitschrift. Nada existe nele que demonstre que não tenha sido também escrito pelo próprio Freud, mas explica-nos o Dr. Jones. (19155, 352) que constituiu de fato uma tradução do artigo inglês de Freud por um de seus principais seguidores, Hanns Sachs. Por último, deve-se acrescentar que quando o artigo foi reimpresso no Volume IV dos Collected Papers, em 1925, foi submetido a outra ligeira ‘revisão secundária’, que atualizou a terminologia.
Em resultado disto tudo, ficamos sem nenhum texto completamente fidedigno do artigo. Indubitavelmente, tanto a revisão quanto a tradução foram excelentemente realizadas e, provavelmente, o próprio Freud examinou a ambas. Não obstante, temos de necessariamente permanecer na incerteza onde há uma questão da escolha precisa de termos por Freud. Para tomar um exemplo de uma das dificuldades: o termo ‘concepção’ é repetidamente utilizado nos parágrafos 2 a 5. Estaríamos inclinados a supor que Freud tivesse em mente a palavra alemã ‘Vorstellung‘, que é geralmente vertida nesta tradução pela palavra inglesa ‘idea‘ (‘idéia’). E, de fato, ‘Vorstellung‘ é a palavra empregada, nos lugares correspondentes, na tradução alemã. Ao final do sétimo parágrafo e no oitavo, a palavra ‘idea‘ aparece no texto inglês, e a palavra correspondente no alemão é ‘Idee‘. Mas, no décimo e décimo primeiro parágrafos, onde mais uma vez encontramos o inglês ‘idea‘, a tradução alemã é quase sempre ‘Gedanke‘ (que geralmente traduzimos como ‘thought‘, ‘pensamento’), mas num dos lugares, ‘Vorstellung‘.
Nas circunstâncias, achamos ser o procedimento mais apropriado simplesmente reimprimir a versão original inglesa, exatamente como apareceu nas Atas originais da S. P. P., com notas de rodapé ocasionais, onde a terminologia exige comentários.
Nossa razão para lamentar esta incerteza textual será compreendida quando se lembrar que este se acha entre os mais importantes dos trabalhos teóricos de Freud. Aqui, pela primeira vez, forneceu ele uma longa e ponderada descrição das premissas para sua hipótese de processos mentais inconscientes e especificou os diversos sentidos em que empregou o termo ‘inconsciente’ O artigo constitui de fato um estudo para o trabalho maior sobre o mesmo assunto que deveria escrever cerca de três anos mais tarde (1915e). Como o artigo anterior, ‘Sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental’ (1911b), e a Seção III da análise de Schreber (1911c), o atual constitui prova do interesse renovado de Freud pela teoria psicanalítica.
A discussão das ambigüidades inerentes à palavra ‘inconsciente’ é de particular interesse, com a distinção entre os seus três empregos - o ‘descritivo’, o ‘dinâmico’, e o ‘sistemático’. O presente relato é mais elaborado e claro que o muito mais sucinto fornecido na Seção II do artigo maior (Ver em [1], 1974). Neste apenas dois usos são diferenciados, o ‘descritivo’ e o ‘sistemático’, e nenhuma distinção clara parece ser feita entre este último e o ‘dinâmico’ - termo que, no presente artigo, é aplicado ao inconsciente reprimido. Em dois exames posteriores do mesmo tópico, no Capítulo I de O Ego e o Id (1923b), e na Conferência XXXI das New Introductory Lectures (1933a), Freud retornou à distinção tríplice feita aqui; e o terceiro emprego do termo, o ‘sistemático’ (aflorado apenas ligeiramente ao final do presente trabalho), surgiu então com um passo no sentido da divisão estrutural da mente em ‘id’, ‘ego’, e ‘superego’, que muito deveria esclarecer toda a situação.
A maior parte deste artigo, na versão de 1925, foi incluída na General Selection from the Works of Sigmund Freud (1937, 54-62), da autoria de Rickman.
UMA NOTA SOBRE O INCONSCIENTE NA PSICANÁLISE
Desejo expor em poucas palavras e tão simplesmente quanto possível o que o termo ‘inconsciente’ veio a significar na Psicanálise e somente nesta.
Uma concepção - ou qualquer outro elemento psíquico - que se ache agora presente em minha consciência pode tornar-se ausente no momento seguinte, e novamente presente, após um intervalo, imutada, e, como dizemos, de memória, não como resultado de uma nova percepção por nossos sentidos. É este fato que estamos acostumados a explicar pela suposição de que, durante o intervalo, a concepção esteve presente em nossa mente, embora latente na consciência. Sob que forma ela pode ter existido enquanto presente na mente e latente na consciência não temos meios de adivinhar.
Neste exato momento, podemos estar preparados para enfrentar a objeção filosófica de que a concepção latente não existiu como objeto de psicologia, mas como uma disposição física para a repetição do mesmo fenômeno psíquico, isto é, da dita concepção. Mas podemos replicar que isso é uma teoria que ultrapassa de muito o domínio da psicologia propriamente dita; que ela simplesmente incorre em petição de princípio ao asseverar que ‘consciente’ é um termo idêntico a ‘psíquico’, e que está positivamente errada ao negar à psicologia o direito de explicar seus fatos mais comuns, tais como a memória, por seus próprios meios.
Ora, permitam-nos chamar de ‘consciente’ a concepção que está presente em nossa consciência e da qual nos damos conta, e que este seja o único significado do termo ‘consciente’. Quanto às concepções latentes, se temos qualquer razão para supor que elas existam na mente - como tínhamos, no caso da memória - que elas sejam designadas pelo termo ‘inconsciente’.
Assim, uma concepção inconsciente é uma concepção da qual não estamos cientes, mas cuja existência, não obstante, estamos prontos a admitir, devido a outras provas ou sinais.
Esta poderia ser considerada uma amostra desinteressante de trabalho descritivo ou classificatório se nenhuma outra experiência apelasse ao nosso julgamento senão os fatos da memória ou os casos de associação por vínculos inconscientes. Entretanto, o experimento bem conhecido da ‘sugestão pós-hipnótica’ ensina-nos a insistir na importância da distinção entre consciente e inconsciente, e parece aumentar o seu valor.
Neste experimento, tal como realizado por Bernheim, uma pessoa é colocada em estado hipnótico e subseqüentemente despertada. Enquanto se encontrava no estado hipnótico, sob a influência do médico, foi-lhe ordenado executar determinada ação num certo momento fixado após seu despertar, digamos meia hora mais tarde. Ela desperta e parece plenamente consciente e em seu estado normal; não tem lembrança do estado hipnótico e, contudo, no momento predeterminado, aparece-lhe na mente o impulso a fazer tal tipo de coisa, e ela o faz conscientemente, embora sem saber por quê. Parece impossível fornecer qualquer outra descrição do fenômeno a não ser dizer que a ordem esteve presente na mente da pessoa num estado de latência, ou que esteve presente inconscientemente, até que o momento determinado chegou, e então tornou-se consciente. Mas não foi sua totalidade que emergiu para a consciência: somente a concepção do ato a ser executado. Todas as outras idéias associadas a essa concepção - a ordem, a influência do médico, a recordação do estado hipnótico - permaneceram inconscientes mesmo então.
Mas temos mais a aprender deste experimento. Somos levados da visão puramente descritiva a uma visão dinâmica do fenômeno. A idéia da ação ordenada na hipnose não apenas tornou-se objeto de consciência em determinado momento, mas o aspecto mais notável do fato é que esta idéia tornou-se ativa; foi traduzida em ação, assim que a consciência tornou-se ciente de sua presença. Sendo a ordem do médico o estímulo real à ação, é difícil não admitir que a idéia da ordem do médico se tornou ativa também. Entretanto, esta última idéia não se revelou à consciência, como o fez seu resultado, a idéia da ação; permaneceu inconsciente e, assim, foi ativa e inconsciente ao mesmo tempo.
Uma sugestão pós-hipnótica é uma produção de laboratório, um fato artificial. Mas, se adotarmos a teoria dos fenômenos histéricos, primeiramente apresentada por P. Janet e elaborada por Breuer e eu mesmo, não nos faltarão muitos fatos naturais que mostram o caráter psicológico da sugestão pós-hipnótica ainda mais clara e distintamente.
A mente do paciente histérico acha-se cheia de idéias ativas, porém inconscientes; todos os seus sintomas procedem de tais idéias. É, na verdade, a característica mais marcante da mente histérica ser governada por elas. Se a mulher histérica vomita, pode fazê-lo devido à idéia de estar grávida. Entretanto, ela não tem conhecimento desta idéia, embora possa ser facilmente detectada em sua mente e tornada consciente mediante um dos processos técnicos da psicanálise. Se se acha executando os arrancos e movimentos que constituem seu ‘ataque’, ela nem mesmo conscientemente representa para si as ações pretendidas e pode perceber estas ações com os sentimentos desligados de um observador. Não obstante, a análise demonstrará que estava desempenhando seu papel na reprodução dramática de algum incidente de sua vida, cuja lembrança esteve inconscientemente ativa durante a crise. A mesma preponderância de idéias inconscientes ativas é revelada pela análise como sendo o fato essencial na psicologia de todas as outras formas de neurose.
Aprendemos, portanto, pela análise dos fenômenos neuróticos, que uma idéia latente ou inconsciente não é, necessariamente, uma idéia fraca, e que a presença dessa idéia na mente admite provas indiretas do tipo mais convincente, equivalentes à prova direta fornecida pela consciência. Sentimo-nos justificados em fazer nossa classificação concordar com este acréscimo ao nosso conhecimento, introduzindo uma distinção fundamental entre diferentes tipos de idéias latentes ou inconscientes. Estávamos acostumados a pensar que toda idéia latente assim se tornou por ser fraca e que se transformou em consciente logo que se tornou forte. Adquirimos hoje a convicção de que há algumas idéias latentes que não penetram na consciência, por mais fortes que possam se haver tornado. Assim, chamamos as idéias latentes do primeiro tipo de pré-conscientes, enquanto reservamos o termo inconsciente (propriamente dito) para o último tipo que viemos a estudar nas neuroses. O termo inconsciente, que foi empregado antes no sentido puramente descritivo, vem agora a implicar algo mais. Designa não apenas as idéias latentes em geral, mas especialmente idéias com certo caráter dinâmico, idéias que se mantêm à parte da consciência, apesar de sua intensidade e atividade.
Antes de prosseguir com minha exposição, referir-me-ei a duas objeções que têm probabilidades de serem levantadas neste ponto. A primeira delas pode ser assim enunciada: ao invés de concordar com a hipótese de idéias inconscientes, das quais nada sabemos, é melhor presumir que a consciência pode ser dividida, de modo que certas idéias ou outros atos psíquicos possam constituir uma consciência separada, que se tornou desligada e separada da massa de atividade psíquica consciente. Casos patológicos famosos, como o do Dr. Azam [A referência é ao caso de Félida X, notável exemplo de personalidade alternada ou dupla, provavelmente o primeiro deste tipo a ser investigado e registrado minuciosamente. O caso foi descrito em várias publicações por E. Azam, de Bordeaux. Seu primeiro relatório apareceu na Revue Scientifique, em 26 de maio de 1876, e foi seguido, algumas semanas depois, por um artigo dos Annales médico-psychologiques. (Ver Azam, 1876, e seu último livro, 1887.)], parecem contribuir muito para demonstrar que a divisão da consciência não constitui imaginação fantasista.
Aventuro-me a alegar contra essa teoria que ela é uma suposição gratuita, baseada no mau uso da palavra ‘consciente’. Não temos o direito de estender o significado desta palavra a ponto de fazê-la incluir uma consciência da qual seu próprio possuidor não se acha ciente. Se os filósofos encontram dificuldade em aceitar a existência de idéias inconscientes, a existência de uma consciência inconsciente parece-me ainda mais objetável. Os casos descritos como divisão (splitting) da consciência, como o do Dr. Azam, poderiam de preferência ser denominados de deslocamento da consciência - essa função ou o que quer que seja - que oscila entre dois complexos psíquicos diferentes que se tornam conscientes e inconscientes alternadamente.
A outra objeção que poderia ser levantada seria que aplicamos à psicologia normal conclusões que são tiradas principalmente do estudo de estados patológicos. Estamos capacitados a respondê-la por outro fato, cujo conhecimento devemos à psicanálise. De certas deficiências de função da mais freqüente ocorrência entre pessoas sadias, tais como por exemplo, lapsus linguae, erros de memória e de fala, esquecimento de nomes etc., pode-se facilmente demonstrar que dependem da ação de fortes idéias inconscientes, da mesma maneira que os sintomas neuróticos. Apresentaremos outro argumento ainda mais convincente num estádio posterior deste estudo.
Pela diferenciação de idéias pré-conscientes e inconscientes, somos levados a abandonar o campo da classificação e a formar uma opinião sobre as relações funcionais e dinâmicas na ação psíquica. Encontramos uma atividade pré-consciente que passa para a consciência sem dificuldade e uma atividade inconsciente que assim permanece e parece se achar isolada da consciência.
Ora, não sabemos se estes dois modos de atividade psíquica são idênticos ou essencialmente divergentes desde o início, mas podemos perguntar por que devem tornar-se diferentes no decorrer da ação psíquica. A esta última questão, a psicanálise fornece uma resposta clara e firme. Não é, de modo algum, impossível ao produto da atividade inconsciente penetrar na consciência, mas para esta tarefa é necessária uma certa quantidade de esforço. Quando tentamos realizá-la em nós próprios, damo-nos conta de uma sensação distinta de repulsão, que tem de ser dominada, e, quando a produzimos num paciente, obtemos os mais indiscutíveis sinais do que chamamos de sua resistência a ela. Assim, aprendemos que a idéia inconsciente acha-se excluída da consciência por forças vivas que se opõem à sua recepção, embora não objetem a outras idéias, as pré-conscientes. A psicanálise não deixa campo para dúvida de que a repulsão das idéias inconscientes só é provocada pelas tendências incluídas na essência destas. A teoria mais provável que pode ser formulada, neste estádio de nosso conhecimento, é a seguinte. A inconsciência é uma fase regular e inevitável nos processos que constituem nossa atividade psíquica; todo ato psíquico começa como um ato inconsciente e pode permanecer assim ou continuar a evoluir para a consciência, segundo encontra resistência ou não. A distinção entre atividade pré-consciente e inconsciente não é primária, mas vem a ser estabelecida após a repulsão ter surgido. Somente então a diferença entre idéias pré-conscientes, que podem aparecer na consciência e reaparecer a qualquer momento, e idéias inconscientes, que não podem fazê-lo, adquire um valor tanto teórico quanto prático. Uma analogia grosseira, mas não inadequada, a esta suposta relação da atividade consciente com a inconsciente poderia ser traçada com o campo da fotografia comum: a primeira etapa da fotografia é o ‘negativo’; toda imagem fotográfica tem de passar pelo processo negativo e alguns desses negativos, que se saíram bem no exame, são admitidos ao ‘processo positivo’, que termina pelo retrato.
Mas a distinção entre atividade pré-consciente e inconsciente e o reconhecimento da barreira que as mantêm apartadas não são o último ou o mais importante resultado da investigação psicanalítica da vida psíquica. Existe um produto psíquico encostando nas pessoas mais normais que, contudo, apresenta analogia muito marcante com as mais violentas produções da insanidade e não foi mais inteligível aos filósofos que a própria insanidade. Refiro-me aos sonhos. A psicanálise se fundamenta na análise dos sonhos e a interpretação deles constitui a obra mais completa que a jovem ciência realizou até o presente. Um dos mais comuns de formação onírica pode ser descrito como segue: uma seqüência de pensamentos foi despertada pelo funcionamento da mente durante o dia e reteve um pouco de sua atividade, fugindo à inibição geral de interesses que introduz o sono e constitui a preparação psíquica para o dormir. Durante a noite, a seqüência de pensamentos consegue encontrar vinculações com uma das tendências inconscientes presentes desde a infância na mente do que sonha, mas ordinariamente reprimida e excluída de sua vida consciente. Com a força tomada de empréstimo a esta ajuda inconsciente, os pensamentos, resíduo do trabalho do dia, tornam-se então ativos novamente e surgem na consciência sob a forma de sonho. Ora, três coisas aconteceram:
(1) Os pensamentos sofreram uma mudança, um disfarce e uma deformação, que representam a parte do ajudante inconsciente.
(2) Os pensamentos ocuparam a consciência numa ocasião em que não o deveriam.
(3) Uma parte do inconsciente, que doutra maneira não teria podido fazê-lo, surgiu na consciência.
Aprendemos a arte de descobrir os ‘pensamentos residuais’, os pensamentos latentes dos sonhos, e, comparando-os com o sonho aparente, pudemos formar opinião sobre as modificações que experimentaram e a maneira pela qual estas foram ocasionadas.
Os pensamentos latentes do sonho não diferem em nenhum aspecto dos produtos de nossa atividade consciente habitual; merecem o nome de pensamentos pré-conscientes e, em verdade, podem ter sido conscientes em algum momento do estado de vigília. Entretanto, por entrarem em contato com as tendências inconscientes durante a noite, assimilaram-se a estas, degradaram-se, por assim dizer, à condição de pensamentos inconscientes, e ficaram sujeitos às leis pelas quais a atividade inconsciente é dirigida. E aqui temos a oportunidade de aprender o que não poderíamos ter adivinhado pela especulação, ou por outra fonte de informação empírica - que as leis da atividade inconsciente diferem amplamente daquelas da consciente. Inferimos pormenorizadamente quais são as peculiaridades do Inconsciente e podemos esperar aprender ainda mais sobre elas mediante investigação mais profunda dos processos da formação onírica.
Essa investigação não se acha ainda nem na metade, e uma exposição dos resultados obtidos até agora é pouco possível sem entrar nos problemas mais intocados da análise de sonhos. Não gostaria de interromper este exame, porém, sem indicar a mudança e o progresso em nossa compreensão do inconsciente devido ao estudo psicanalítico dos sonhos.
A inconsciência pareceu-nos, a princípio, apenas uma característica enigmática de um ato psíquico definido. Atualmente ela significa mais para nós. É sinal de que este ato partilha da natureza de determinada categoria psíquica, que conhecemos por outras características mais importantes, e que ele pertence a um sistema de atividade psíquica merecedor de nossa plena atenção. O valor índice do inconsciente ultrapassou de muito sua importância como propriedade. O sistema assinalado pelo fato de seus atos isolados serem inconscientes é chamado ‘O Inconsciente’, por falta de termo melhor e menos ambíguo. Em alemão, proponho denotar esse sistema pelas letras Ubw, abreviatura da palavra ‘Unbewusst‘. E este é o terceiro e mais significativo sentido que o termo ‘inconsciente’ adquiriu na psicanálise.
UM SONHO PROBATÓRIO (1913)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
EIN TRAUM ALS BEWEISMITTEL
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1913 Int. Z. Psychoanal., 1 (1), 73-8.
1918 S. K. S. N., 4 177-188. (1922, 2ª ed.)
1925 G. S., 3 267-77.
1925 Traumlehre, 11-21.
1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 316-26.
1946 G. W.,10, 12-22.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘A Dream which Bore Testimony’
1924 C. P., 2, 133-43 (Trad. de E. Glover.)
A presente tradução inglesa baseia-se na publicada em 1924.
Em seu primeiro aparecimento na Zeitschrift (no começo de 1913), este artigo foi o primeiro de vários, escritos por diversos autores, incluídos sob o título geral ‘Beitrãge zur Traumdeutung’ (‘Contribuições à Intepretação de Sonhos’).
O trabalho apresenta a peculiaridade de ser uma análise de sonhos, de segunda mão. Independente disto, é digno de nota por contar uma descrição excepcionalmente clara do papel desempenhado pelos pensamentos oníricos latentes na formação de sonhos e por sua insistência na necessidade de manter em mente a distinção entre os pensamentos oníricos e o próprio sonho.
UM SONHO PROBATÓRIO
Uma senhora que padecia da mania dubitativa e cerimoniais obsessivos insistia em que suas enfermeiras nunca a deixassem fora de suas vistas por um só momento: doutra maneira, ela começaria a ruminar sobre ações proibidas que poderia ter cometido enquanto não se achava sendo observada. Certa noite, enquanto repousava no sofá, pensou que vira a enfermeira de serviço adormecer. Ela gritou: ‘Está me vendo?’ A enfermeira deu um pulo e respondeu: ‘Naturalmente que estou.’ Isto forneceu à paciente motivo para nova dúvida e, após certo tempo, repetiu a pergunta, que a enfermeira respondeu com protestos renovados; exatamente nesse momento, outra assistente chegou, trazendo a ceia da paciente.
Este incidente ocorreu numa sexta-feira à noite. Na manhã seguinte, a enfermeira relatou um sonho que teve o efeito de desfazer as dúvidas da paciente.
SONHO - Alguém lhe havia confiado uma criança. A mãe da criança saíra de casa e ela [a que sonhou] perdera-a. Enquanto andava, indagava das pessoas na rua se haviam visto a criança. Depois, chegou a uma grande extensão de água e cruzou uma estreita ponte para pedestres. (Houve um adendo: Subitamente apareceu-lhe à frente, sobre a ponte, como uma ‘fata Morgana’, a figura de outra enfermeira.) Então, achou-se num lugar familiar, onde econtrou uma mulher que conhecera menina e que na época era vendedora numa loja de víveres e depois se casara. Perguntou à mulher, que estava parada em frente a sua porta: ‘Você viu a criança?’ A mulher não prestou atenção à pergunta, mas informou-a de que se achava divorciada do marido, acresentando que tampouco o casamento é sempre feliz. Ela acordou sentindo-se tranqüilizada e pensou que a criança apareceria perfeitamente bem na casa de um vizinho.
ANÁLISE - A paciente presumiu que este sonho se referia ao cochilo que a enfermeira havia negado. A partir de informações adicionais voluntariamente prestadas pela última, pôde interpretar o sonho de maneira que, embora incompleta sob certos aspectos, foi suficiente para todos os fins práticos. Eu próprio somente ouvi o relato da senhora e não entrevistei a enfermeira. Citarei primeiramente a interpretação da paciente e depois suplementá-la-ei com o que nossa compreensão geral das leis que governam a formação onírica nos permitem acrescentar.
’A enfermeira contou-me que a criança do sonho fazia-a lembrar-se de um caso cujo cuidado lhe dera a mais viva satisfação. Foi o de uma criança incapaz de enxergar devido a uma inflamação dos olhos (blenorréia). A mãe, contudo, não abandonava a casa: ajudava a cuidar da criança. Por outro lado, recordo-me também que quando meu marido, que tem alta consideração por esta enfermeira, partiu, deixou-me aos seus cuidados e ela prometeu cuidar de mim como cuidaria de uma criança.’
Além disso, sabemos pela análise da paciente que, ao insistir em nunca ser deixada fora da vista, ela se recolocara na posição de ser outra vez criança.
‘Ter perdido a criança’, continuou a paciente, ‘significou que ela não me vira; perdera-me de vista. Isto constituiu sua admissão de que realmente adormecera por certo tempo e não me contara a verdade posteriormente.’
Ignorava o significado do pequeno fragmento de sonho em que a enfermeira indagava das pessoas na rua se haviam visto a criança; por outro lado, foi capaz de elucidar os pormenores posteriores do sonho manifesto.
‘A grande extensão de água fez a enfermeira pensar no Reno; acrescentou, contudo, que era muito maior que o Reno. Então lembrou-se de que na noite anterior eu lhe lera a história de Jonas e a baleia, e lhe contara que, certa vez, eu própria vira uma baleia no Canal da Mancha. Imagino que a grande extensão de água fosse o mar e constituísse uma alusão à história de Jonas.
‘Acho também que a estreita ponte para pedestres proveio da mesma história, que era divertidamente escrita em dialeto. A anedota relata como um instrutor religioso descreveu a seus alunos as maravilhosas aventuras de Jonas, após o que um menino objetou que não podia ser verdade, visto que o próprio professor lhes disssera antes que as baleias só podiam engolir criaturas minúsculas, devido à estreiteza de seus esôfagos. O professor escapou da dificuldade dizendo que Jonas era judeu e que os judeus se enfiavam em qualquer lugar. Minha enfermeira é muito piedosa mas inclinada a dúvidas religiosas, e censurei-me no caso de a história que lhe lera poder tê-las suscitado.
‘Nessa ponte estreita, viu agora o aparecimento de outra enfermeira, a quem conhecia. Contou-me a história desta última: havia-se jogado no Reno por ter sido dispensada de um caso, devido a algo de que fora culpada. Ela própria temera, portanto, ser dispensada por haver adormecido. Ademais, no dia seguinte ao incidente e após relatar o sonho, a enfermeira chegou amargamente e, quando lhe perguntei o motivo, respondeu de modo bastante rude: “A senhora sabe por que tão bem quanto eu e agora não vai mais confiar em mim!”
Visto a aparição da enfermeira afogada constituir um adendo, e um adendo especialmente claro, teríamos aconselhado a senhora a começar sua interpretação do sonho neste ponto. Segundo o relato daquela que sonhou, também esta primeira metade do sonho foi acompanhada por aguda ansiedade; a segunda parte preparou o caminho para a sensação de tranqüilidade com que despertou.
‘Encaro a parte seguinte do sonho’, disse a senhora, continuando sua análise, ‘como corroboração certa de minha opinião de que o sonho tinha a ver com o que acontecera naquela noite de sexta-feira, pois a pessoa que anteriormente fora vendedora numa loja de víveres só se podia referir à atendente que trouxe a ceia naquela ocasião. Observei também que a enfermeira se havia queixado de náuseas o dia todo. A pergunta que fez àquela mulher: “Viu a criança?” é obviamente remontável à minha pergunta: “Está me vendo?”, que lhe fiz pela segunda vez exatamente quando a atendente chegou com os pratos.’
Também no sonho a indagação a respeito da criança foi feita em duas ocasiões. O fato de a mulher não responder - não prestar atenção - pode ser por nós encarado como uma depreciação desta outra atendente, feita em favor da que sonhou; ela representou-se no sonho como superior à outra mulher, exatamente porque ela própria tinha de enfrentar censuras devido à sua própria falta de atenção.
‘A mulher que apareceu no sonho não era, na realidade, divorciada do marido. A situação foi tirada de um incidente da vida da outra atendente, que se separara - “divorciara” - de um homem, por ordem dos pais. A observação de que “tampouco o casamento sempre corre bem” foi provavelmente uma consolação utilizada no decurso da conversa entre as duas mulheres. Esta consolação prefigurou outra, com a qual o sonho terminou: “A criança aparecerá perfeitamente bem”.
‘Concluí deste sonho que, na noite em apreço, a enfermeira realmente adormecera e que estava com medo de ser demitida por causa disso. Devido a isso, não mais senti qualquer dúvida sobre a correção de minha observação. Incidentalmente, após relatar o sonho, ela acrescentou sentir muito não ter trazido um livro de sonhos com ela. Ao meu comentário de que tais livros se acham repletos das mais ignorantes superstições, respondeu que, embora não fosse de modo algum supersticiosa, apesar disso todos os acontecimentos desagradáveis da sua vida haviam acontecido numa sexta-feira. Devo acrescentar que, atualmente, o tratamento que me dá não é de modo algum satisfatório; ela anda suscetível e irritável e faz cenas a respeito de nada.’
Acho que devemos reconhecer à senhora o mérito de ter interpretado e avaliado corretamente o sonho de sua enfermeira. Como tão amiúde acontece com a interpretação de sonhos durante a análise, a tradução do sonho não depende unicamente dos produtos da associação, mas também temos de levar em conta as circunstâncias de sua narração, o comportamento do que sonhou antes e depois da análise do sonho, bem como toda observação e revelação feita pelo que sonhou durante a mesma ocasião - durante a mesma sessão analítica. Se levarmos em consideração a suscetibilidade da enfermeira, sua atitude para com as sextas-feiras aziagas etc., confirmaremos a conclusão de que o sonho continha uma admissão de que, apesar de sua negativa, ela havia realmente cochilado e estava com medo de ser mandada embora para longe da ‘criança’ a seus cuidados.
Enquanto, para a senhora que o relatou a mim, este sonho tinha significação prática, para nós ele estimula o interesse teórico em duas direções. É verdade que terminou por uma consolação, mas, em geral, representou uma admissão importante com referência à relação da enfermeira com sua paciente. Como acontece que um sonho, que afinal de contas deve servir de realização de um desejo, possa tomar o lugar de uma admissão que nem mesmo foi de qualquer vantagem para a que sonhou? Devemos realmente admitir que, além de sonhos de realização de desejo (e de ansiedade), existem também sonhos de admissão, assim como de advertência, reflexão, adaptação etc.?
Devo confessar que ainda não compreendo muito bem por que a posição que tomei contra qualquer tentação desse tipo, em A Interpretação de Sonhos, causou desconfianças nas mentes de tantos psicanalistas, entre eles alguns bem conhecidos. Parece-me que a diferenciação entre sonhos de realização de desejo, admissão, advertência, adaptação etc. não tem muito mais sentido que a diferenciação, necessariamente aceita, dos especialistas médicos em ginecologistas, pediatras e dentistas. Permitam-me recapitular aqui, tão sucintamente quanto possível, o que disse sobre este assunto em A Interpretação de Sonhos.
Os chamados ‘resíduos diurnos’ podem atuar como perturbadores do sonho e construtores de sonhos; eles são processos de pensamento afetivamente catexizados do dia do sonho, que resistiram ao rebaixamento geral [de energia] pelo sono. Estes resíduos diurnos são descobertos por remontarem o sonho manifesto aos pensamentos oníricos latentes; constituem porções do último e acham-se assim entre as atividades do estado de vigília - conscientes ou inconscientes - que conseguiram persistir no período de sono. Em consonância com a multiplicidade de processos de pensamento no consciente e pré-consciente, estes resíduos diurnos têm os mais numerosos e diversos significados: eles podem ser desejos ou temores que não foram resolvidos, ou intenções, reflexões, advertências, tentativas de adaptação a tarefas atuais etc. Até este ponto, a classificação de sonhos que se acha em consideração parece ser justificada pelo conteúdo que é revelado pela interpretação. Estes resíduos do dia, contudo, não são o próprio sonho: falta-lhes o elemento essencial principal de um sonho. De si próprios não são capazes de construir um sonho. São, estritamente falando, apenas o material psíquico para a elaboração onírica, exatamente como os estímulos sensórios e somáticos, quer acidentais quer produzidos sob condições experimentais, constituem o material somático para a elaboração onírica. Conferir-lhes o papel principal na construção de sonhos é simplesmente repetir, num ponto novo, o erro pré-analítico que explicava os sonhos atribuindo-os à má digestão ou à pressão sobre a pele. Os erros científicos, em verdade, têm vida tenaz, e mesmo quando refutados acham-se prontos a insinuar-se novamente, sob novos disfarces.
O estado atual de nosso conhecimento leva-nos a concluir que o fator essencial na construção de sonhos é um desejo inconsciente - geralmente um desejo infantil, agora reprimido - que pode vir a se expressar nesse material somático ou psíquico (e também nos resíduos diurnos, portanto) e pode abastecer estes com uma força que os capacita a forçar seu caminho em direção à consciência, mesmo durante a suspensão do pensamento, à noite. O sonho é, em todos os casos, uma realização deste desejo inconsciente, seja o que for que possa conter mais - advertência, reflexão, admissão, ou qualquer outra parte do rico conteúdo do estado de vigília pré-consciente que continuou, sem ser tratado, noite adentro. É este desejo inconsciente que dá à elaboração onírica seu caráter peculiar, como revisão inconsciente do material pré-consciente. Um psicanalista pode caracterizar como sonhos apenas os produtos da elaboração onírica: apesar do fato de só se chegar aos pensamentos oníricos latentes a partir da interpretação do sonho, ele não pode considerá-los como parte deste, mas apenas como parte da reflexão pré-consciente. (A revisão secundária pela instância consciente é aqui considerada como parte da elaboração onírica. Mesmo que devêssemos separá-la, isto não envolveria nenhuma alteração em nossa concepção. Teríamos então de dizer: os sonhos, no sentido analítico, compreendem a elaboração onírica propriamente dita, juntamente com a revisão secundária de seus produtos.) A conclusão a ser tirada destas considerações é que não se pode colocar o caráter realizador de desejos dos sonhos no mesmo nível que seu caráter de advertência, admissão, tentativa de solução etc., sem negar o conceito de uma dimensão psíquica de profundidade, o que equivale a dizer, sem negar o ponto de vista da psicanálise.
Retornemos agora ao sonho da enfermeira, a fim de demonstrar a qualidade de profundidade na realização de desejo nele contida. Já sabemos que a interpretação que a senhora deu ao sonho não era, de modo algum, completa; havia partes dele a que ela foi incapaz de fazer justiça. Ademais, ela sofria de neurose obsessiva, condição que, pelo que observei, torna consideravelmente mais difícil compreender os símbolos oníricos, tal como a demência precoce torna-o mais fácil.
Não obstante, nosso conhecimento do simbolismo onírico capacita-nos a compreender partes não interpretadas deste sonho e descobrir uma significação mais profunda por trás das interpretações já fornecidas. Não podemos deixar de notar que parte do material empregado pela enfermeira provém do complexo de dar a luz, de ter filhos. A extensão de água (o Reno, o Canal onde a baleia foi vista) era certamente a água da qual as crianças provém. E depois, também, ela veio à água em busca de uma criança. A lenda de Jonas, fator de determinação dessa água, a pergunta de saber como Jonas (a criança) podia passar através de passagem tão estreita pertencem ao mesmo complexo. E a enfermeira que se atirou no Reno por mortificação encontrou uma consolação simbólico-sexual para seu desespero de vida na modalidade de sua morte - entrando na água. A estreita ponte para pedestres sobre a qual a aparição a encontrou foi, com toda probabilidade, também um símbolo genital, embora tenha de admitir que aqui nos falta ainda um conhecimento mais preciso.
O desejo ‘quero ter um filho’ parece, portanto, ter sido o construtor onírico a partir do inconsciente; nenhum outro seria mais bem calculado para consolar a enfermeira pelo estado aflitivo das coisas na vida real. ‘Serei dispensada: perderei a criança que está aos meus cuidados. Que importa? Em vez disso, arranjarei uma criança real, minha própria.’ A parte não interpretada do sonho, na qual ela pergunta a todos na rua sobre a criança, pode talvez caber aqui; a interpretação então seria: ‘E mesmo que tenha de me oferecer nas ruas, sei como arranjar um filho para mim.’ Um laivo de desafio na que sonhou, até aqui disfarçado, se revela subitamente neste ponto. Sua admissão encaixa-se aqui pela primeira vez: ‘Fechei os olhos e comprometi minha reputação profissional de pessoa conscienciosa; agora, vou perder meu lugar. Serei tão tola de afogar-me, como a enfermeira X? Não: abandonarei a enfermagem completamente e me casarei; serei uma mulher e terei um filho de verdade; nada me impedirá.’ Esta interpretação é justificada pela consideraçãode que ‘ter filhos’ constitui realmente a expressão infantil de um desejo de ter relações sexuais; na verdade, pode ter sido escolhida na consciência como expressão eufemística deste desejo objetável.
Assim, a admissão desvantajosa da que sonhou, admissão para que mostrou inclinação mesmo no estado de vigília, tornou-se possível no sonho por ser empregada por um seu traço latente de caráter [o ‘laivo de desafio’], com o intuito de ocasionar a realização de um desejo infantil. Podemos presumir que este traço tinha uma vinculação estreita - com referência tanto a época quanto a conteúdo - com o desejo de um filho e de prazer sexual.
A inquirição subseqüente da senhora a quem devo a primeira parte desta interpretação forneceu algumas informações inesperadas sobre a vida anterior da enfermeira. Antes de dedicar-se à enfermagem desejara casar com um homem que estivera intensamente interessado nela, mas abandonara o casamento projetado devido à oposição de uma tia, com quem suas relações constituíam uma curiosa mistura de dependência e desafio. Esta tia que impedira o matrimônio era a superiora de uma Ordem dedicada à enfermagem. A que sonhou sempre a considerara como modelo. Tinha esperanças de ser sua herdeira e a ela achava-se ligada por esse motivo. Não obstante opusera-se à tal, não ingressando na Ordem como aquela havia planejado. O desafio apresentado no sonho era, portanto, dirigido contra a tia. Atribuímos uma origem anal-erótica a este traço caracterológico, e podemos levar em consideração o fato de os interesses que a tornavam dependente da tia serem de natureza financeira; lembramo-nos também de que as crianças favorecem a teoria anal de nascimento.
Este fator de desafio infantil pode talvez permitir-nos presumir uma relação mais estreita entre a primeira e a última cena do sonho. A antiga vendedora numa loja de víveres representa no sonho a atendente que trouxe a ceia da senhora para a sala exatamente quando essa fazia a pergunta: ‘Está me vendo?’ Parece, contudo, que ela foi destinada para o papel de rival hostil em geral. A que sonhou depreciou sua capacidade como enfermeira fazendo-a não tomar o menor interesse pela criança perdida, mas tratar apenas de assuntos particulares em sua resposta. Deslocou assim para esta figura a indiferença que começava a sentir pela criança a seus cuidados. O infeliz casamento e divórcio que ela própria deve ter temido em seus mais secretos desejos foram atribuídos à outra mulher. Sabemos, contudo, que fora a tiaque separara a que sonhou de seu noivo. Daí a ‘vendedora de víveres’ (figura não necessariamente sem significado infantil simbólico) poder representar a superiora-tia, que na realidade não era muito mais idosa do que a que sonhou e que desempenhara o papel tradicional de rival-mãe em sua vida. Uma confirmação satisfatória desta interpretação pode ser achada no fato de que o lugar ‘familiar’ em que ela encontrou essa pessoa, parada na frente da porta, era exatamente o lugar em que sua tia residia, como superiora.
Devido à falta de contato entre o analista e a pessoa sob análise, não é aconselhável penetrar mais profundamente na estrutura do sonho. Entretanto podemos talvez dizer que, na medida em que foi acessível à interpretação, forneceu-nos muitas confirmações bem como muitos novos problemas.
A OCORRÊNCIA, EM SONHOS, DE MATERIAL ORIUNDO DE
CONTOS DE FADAS (1913)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
MÄRCHENSTOFFE IN TRÄUMEN
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1913 Int. Z. Psychoanal., 1 (2), 147-51.
1918 S. K. S. N., 4 168-76 (1922, 2ª ed.)
1925 G. S., 3, 259-66.
1925 Traumlehre, 3-10.
1931 Sexualtheorie und Tramlehre, 308-15.
1946 G. W., 10, 2-9.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘The Occurrence in Dreams of Material from Fairy Tales’
1925 C. P., 4, 236-43 (Trad. de James Strachey.)
A presente tradução inglesa é uma reimpressão ligeiramente corrigida da publicada em 1925.
O segundo dos dois exemplos relatados neste artigo derivou da análise do caso do ‘Wolf Man’, que ainda se achava em tratamento com Freud por ocasião de sua publicação. A totalidade desta parte do trabalho foi incluída literalmente na história clínica, escrita em 1914 mas só publicada quatro anos depois - ‘From the History of on Infantile Neurosis’ (1918b). A análise do sonho é ali levada muito adiante (Ver a partir de [1].)
A OCORRÊNCIA, EM SONHOS, DE MATERIAL ORIUNDO DE CONTOS DE FADAS
Não é surpreendente descobrir que a psicanálise confirma nosso reconhecimento do lugar importante que os contos de fadas populares alcançaram na vida mental de nossos filhos. Em algumas pessoas, a rememoração de seus contos de fadas favoritos ocupa o lugar das lembranças de sua própria infância; elas transformaram esses contos em lembranças encobridoras.
Elementos e situações derivados de contos de fadas podem também ser encontrados em sonhos. Interpretando as passagens em apreço, o paciente produzirá o conto de fadas significativo como associação. No presente artigo, darei dois exemplos desta ocorrência muito comum, mas não será possível fazer mais que aludir às relações entre os contos de fadas e a história da infância do que sonhou e sua neurose, embora esta limitação envolva o risco de romper vínculos que foram de máxima importância para o analista.
I
Aqui temos o sonho de uma jovem casada, que recebera a visita do marido alguns dias antes: Ela se achava num quarto que era inteiramente castanho. Uma portinha levava ao alto de uma escada íngreme e, por esta escada, entrou no quarto um curioso homenzinho - pequeno, de cabelos brancos, calvo no alto da cabeça e de nariz vermelho. Ele dançou em volta do quarto na frente dela, portou-se da maneira mais engraçada e depois desceu pela escada novamente. Estava vestido com uma indumentária cinzenta, através da qual todas as partes de sua figura achavam-se visíveis. (Subseqüentemente, foi feita uma correção: Estava usando um casaco preto comprido e calças cinzentas.)
A análise foi a seguinte. A descrição da aparência pessoal do homúnculo ajustava-se ao sogro da que sonhou, sem que nenhuma alteração fosse necessária. Imediatamente depois, porém, ela pensou na história de ‘Rumpelstiltskin’, que dançou à roda da mesma maneira engraçada que o homem no sonho e, assim fazendo, revelou seu nome à rainha; mas por isso perdeu seu direito ao primeiro filho daquela, e, em sua fúria, rasgou-se em dois.
No dia anterior ao do sonho, ela estivera do mesmo modo furiosa com o marido e exclamara: ‘Poderia rasgá-lo em dois’.
O quarto castanho, a princípio, causou dificuldades. Tudo o que lhe ocorria era a sala de jantar dos pais, que tinha painéis dessa cor - em madeira castanha. Contou então algumas histórias de cama que eram tão inconfortáveis para duas pessoas dormirem. Poucos dias antes, quando o assunto da conversa fora camas de outros países, ela dissera algo muito mal à propôs - de modo inteiramente inocente, segundo sustentava - e todos na sala haviam rido às gargalhadas.
O sonho era agora quase inteligível. O quarto de madeira castanha era, em primeiro lugar, uma cama, e, através da vinculação com a sala de jantar, um leito matrimonial. Ela, portanto, achava-se em sua cama de casal. O visitante deve ter sido seu jovem marido, que, após uma ausência de vários meses, visitara-a para desempenhar seu papel na cama dupla. Mas primeiramente era o pai do marido, seu sogro.
Por trás desta primeira interpretação, temos um vislumbre de material mais profundo e puramente sexual. Aqui, o quarto era a vagina. (O quarto estava nela - o que foi invertido no sonho.) O homenzinho que fazia caretas e comportava-se de modo tão engraçado era o pênis. A porta estreita e a escada íngreme confirmavam a opinião de que a situação era uma representação da relação sexual. Geralmente estamos acostumados a encontrar o pênis simbolizado por uma criança; mas descobriremos que havia boas razões para um pai ser introduzido para representar o pênis, neste caso.
A solução da parte remanescente do sonho confirmar-nos-á inteiramente esta interpretação. A que sonhou, ela própria, explicou a indumentária cinzenta transparente como um preservativo. Podemos depreender que considerações de prevenção de concepção e preocupações sobre saber se aquela visita do marido não poderia ter lançado a semente de um segundo filho, achavam-se entre as causas induzidoras do sonho.
O casaco preto. Casacos deste tipo ficavam admiravelmente bem no marido. Ela queria persuadi-lo a usá-los sempre, ao invés de suas roupas usuais. Vestido no casaco preto, portanto, seu marido era como ela gostava de vê-lo. O casaco preto e as calças cinzentas. Em dois níveis diferentes, um acima do outro, isto tinha o mesmo significado: ‘Gostaria que você se vestisse assim. Gosto de você assim.’
Rumpelstiltskin estava vinculado aos pensamentos contemporâneos subjacentes ao sonho - os resíduos diurnos - por uma nítida relação antitética. No conto de fadas, ela chega a fim de levar o primeiro filho da rainha. No sonho, o homenzinho chega sob a forma de um pai, porque presumivelmente trouxera consigo um segundo filho. Mas Rumpelstiltskin também forneceu acesso ao estrato infantil, mais profundo, dos pensamentos oníricos. O cômico sujeitinho, cujo próprio nome é desconhecido, cujo segredo é tão avidamente discutido, que pode realizar truques extraordinários - no conto de fadas, transforma palha em ouro - a fúria contra ele, ou melhor, contra seu possuidor, que é invejado por possuí-lo (a inveja que a menina tem do pênis) - todos foram elementos cuja relação com os fundamentos da neurose da paciente mal podem, como disse, ser aflorados neste artigo. Os cabelos cortados curtos do homenzinho do sonho achavam-se indubitavelmente vinculados também ao tema da castração.
Se observarmos cuidadosamente, a partir de exemplos claros, a maneira pela qual os sonhadores utilizam os contos de fadas e o momento no qual os trazem à baila, podemos talvez conseguir recolher algumas sugestões que nos ajudarão a interpretar obscuridades remanescentes nos próprios contos de fadas.
II
Um jovem contou-me o sonho abaixo. Ele possuía uma base cronológica para suas primeiras lembranças na circunstância de os pais terem-se mudado de uma propriedade rural para outra antes de ele completar cinco anos de idade; o sonho, que disse ser o seu mais antigo, ocorreu quando se achava ainda na primeira propriedade.
‘Sonhei que era noite e que eu estava deitado na cama. (Meu leito tem o pé da cama voltado para a janela: em frente da janela havia uma fileira de velhas nogueiras. Sei que era inverno quando tive o sonho, e de noite.) De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da janela. Havia seis ou sete deles. Os lobos eram inteiramente brancos e pareciam-se mais com raposas ou cães pastores, pois tinham caudas grandes, como as raposas, e orelhas empinadas, como cães quando prestam atenção a algo. Com grande terror, evidentemente de ser comido pelos lobos, gritei e acordei. Minha babá correu até minha cama, para ver o que me havia acontecido. Levou muito tempo até que me convencesse de que fora apenas um sonho; tivera uma imagem tão clara e vívida da janela a abrir-se e dos lobos sentados na árvore. Por fim acalmei-me, senti-me como se houvesse escapado de algum perigo e voltei a dormir.
‘A única ação no sonho foi a abertura da janela, pois os lobos estavam sentados muito quietos e sem fazer nenhum movimento sobre os ramos da árvore, à direita e à esquerda do tronco, e olhavam para mim. Era como se tivessem fixado toda a atenção sobre mim. Acho que foi meu primeiro sonho de ansiedade. Tinha três, quatro, ou no máximo, cinco anos de idade na ocasião. Desde então, até contar onze ou doze anos, sempre tive medo de ver algo terrível em meus sonhos.’
Ele acrescentou um desenho da árvore com os lobos, que confirmava sua descrição. A análise do sonho trouxe à luz o seguinte material.
Sempre vinculara este sonho à recordação de que, durante esses anos de infância, tinha um medo tremendo da figura de um lobo num livro de contos de fadas. Sua irmã mais velha, que era muito mais idosa que ele, costumava apoquentá-lo segurando esta figura específica na sua frente, sob qualquer pretexto, para que ele ficasse aterrorizado e começasse a gritar. Na figura, o lobo achava-se ereto, dando um passo com uma das patas, com as garras estendidas e as orelhas empinadas. Achava que a figura deveria ter sido uma ilustração da história do ‘Chapeuzinho Vermelho’.
Por que os lobos eram brancos? Isto fê-lo pensar nas ovelhas, grandes rebanhos das quais eram mantidos nas vizinhanças da propriedade. O pai ocasionalmente o levava a visitar esses rebanhos e, todas as vezes que isso acontecia, ele se sentia muito orgulhoso e feliz. Posteriormente - segundo indagações feitas, pode facilmente ter sido pouco antes da época do sonho - irrompeu uma epidemia entre as ovelhas. O pai mandou buscar um seguidor de Pasteur, que vacinou os animais, mas após a inoculação morreram ainda mais delas que antes.
Como os lobos apareceram na árvore? Isto fê-lo lembrar-se de uma história que ouvira o avô contar. Não podia recordar-se se fora antes ou depois do sonho, mas seu assunto constitui argumento decisivo em favor da primeira opinião. A história dizia assim: um alfaiate estava sentado trabalhando em seu quarto, quando a janela se abriu e um lobo pulou para dentro. O Alfaiate perseguiu-o com seu bastão - não (corrigiu-se), apanhou-o pela cauda e arrancou-a fora, de modo que o lobo fugiu correndo, aterrorizado. Algum tempo mais tarde, o alfaiate foi até a floresta e subitamente viu uma alcatéia de lobos vindo em sua direção; então trepou numa árvore para fugir-lhes. A princípio, os lobos ficaram perplexos; mas o aleijado, que se achava entre eles e queria vingar-se do alfaiate, propôs que trepassem uns sobre os outros, até que o último pudesse apanhá-lo. Ele próprio - tratava-se de um animal velho e vigoroso - ficaria na base da pirâmide. Os lobos fizeram como ele sugeria, mas o alfaiate reconhecera o visitante a que havia castigado e de repente gritou, como fizera antes: ‘Apanhem o cinzento pela cauda!’ O lobo sem rabo, aterrorizado pela recordação, correu, e todos os outros desmoronaram.
Nesta história aparece a árvore sobre a qual os lobos se achavam sentados no sonho; mas contém também uma alusão inequívoca ao complexo de castração. O lobo velho tivera a cauda arrancada pelo alfaiate. As caudas de raposa dos lobos do sonho eram provavelmente compensações por esta falta de cauda.
Por que havia seis ou sete lobos? Não parecia haver resposta para esta pergunta, até eu levantar uma dúvida sobre saber se a figura que o assustava estava vinculada à história de ‘Chapeuzinho Vermelho’. Este conto de fadas só oferece oportunidade para duas ilustrações - Chapeuzinho Vermelho encontrando-se com o lobo na floresta e a cena em que o lobo se deita na cama, com o barrete de dormir da avó. Teria de haver, portanto, algum outro conto de fadas por trás de sua recordação da figura. Ele logo descobriu que só podia ser a história de ‘O Lobo e os Sete Cabritinhos’. Nesta, ocorre o número sete, e também o número seis, pois o lobo só comeu seis dos cabritinhos, enquanto que o sétimo se escondeu na caixa do relógio. O branco também nela aparece, pois o lobo fizera branquear sua pata no padeiro, após o cabritinhos haverem-no reconhecido, em sua primeira visita, pela pata cinzenta. Além disso, os dois contos de fadas possuem muito em comum. Em ambos existe o comer, a abertura da barriga, a retirada das pessoas que haviam sido comidas e sua substituição por pesadas pedras, e, finalmente, em ambas o lobo mau perece. Além disso tudo, na história dos cabritinhos aparece a árvore. O lobo deitou-se sob uma árvore, após a refeição, e roncou.
Por uma razão especial, terei de tratar deste sonho novamente alhures, interpretá-lo e julgar sua significação com maiores pormenores; pois ele é o mais antigo sonho de ansiedade que o jovem que sonhou recordou de sua infância, e seu conteúdo, tomado juntamente com outros sonhos que o seguiram pouco após e com certos acontecimentos de seus primeiros anos de vida, é de interesse muito especial. Temos de limitar-nos aqui à relação do sonho com os dois contos de fadas que têm tanto em comum um com o outro, ‘Chapeuzinho Vermelho’ e ‘O Lobo e os Sete Cabritinhos’. O efeito produzido por estas histórias foi demonstrado no pequeno que as sonhou mediante uma fobia animal comum. Esta fobia só se distinguia de outros casos semelhantes pelo fato de o animal causador da ansiedade não ser um objeto facilmente acessível à observação (tal como um cavalo ou um cão), mas conhecido dele somente de histórias e livros de figuras.
Examinarei em outra ocasião a explicação destas fobias animais e a significação que se lhes atribui. Observarei apenas, por antecipação, que essa explicação se acha em completa harmonia com a característica principal apresentada pela neurose de que o atual sonhador padeceu mais tarde na vida. Seu medo do pai era o motivo mais forte para ele cair doente e sua atitude ambivalente em relação a todo representante paterno foi o aspecto dominante de sua vida, assim como de seu comportamento durante o tratamento.
Se, no caso de meu paciente, o lobo foi simplesmente um primeiro representante paterno, surge a questão de saber se o conteúdo oculto nos contos de fadas do lobo que comeu os cabritinhos e de ‘Chapeuzinho Vermelho não pode ser simplesmente um medo infantil do pai. Além disso, o pai de meu paciente tinha a característica, apresentada por tantas pessoas em relação aos filhos, de permitir-se ‘ameaças afetuosas’; e é possível que, durante os primeiros anos do paciente, o pai (embora se tornasse severo mais tarde) pudesse, mais de uma vez, enquanto acariciava o menininho ou com ele brincava, tê-lo ameaçado por brincadeira ‘de engoli-lo’. Uma de minhas pacientes contou-me que seus dois filhos nunca puderam chegar a gostar do avô, porque, no decurso de seus ruidosos e afetuosos brinquedos com eles, costumava assustá-los dizendo que lhes cortaria as barrigas.
O TEMA DOS TRÊS ESCRÍNIOS (1913)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DAS MOTIV DER KÄSTCHENWAHL
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1913 Imago, 2 (3), 257-66.
1918 S. K. S. N., 4, 470-85 (1922, 2ª ed.)
1924 G. S., 10, 243-56.
1924 Dichtung und Kunst, 15-28.
1946 G. W., 10, 24-37.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘The Theme of the Three Caskets’
1925 C. P., 4, 244-56. (Trad. de C. J. M. Hubback.)
A presente tradução inglesa baseia-se na de 1925.
A correspondência de Freud (citada em Jones, 1955, 405) mostra que a idéia subjacente a este artigo ocorreu-lhe em junho de 1912, embora o trabalho só fosse publicado um ano depois. Em carta a Ferenczi de 7 de julho de 1913, ele relacionou a ‘determinante subjetiva’ do artigo com suas três filhas (Freud, 1960a).
O TEMA DOS TRÊS ESCRÍNIOS
I
Duas cenas de Shakespeare, uma de uma comédia e a outra de uma tragédia, proporcionaram-me ultimamente ocasião para colocar e solucionar um pequeno problema.
A primeira destas cenas é a escolha dos pretendentes entre os três escrínios, em O Mercador de Veneza. A bela e sábia Portia está comprometida, a pedido do pai, a tomar como marido apenas aquele de seus pretendentes que escolha o escrínio certo entre os três que se lhe acham à frente. Os três escrínios são de ouro, prata e chumbo: o certo é aquele que contém o retrato dela. Dois pretendentes já partiram sem sucesso; escolheram ouro e prata. Bassanio, o terceiro, decide-se em favor do chumbo; assim ganha a noiva, cuja afeição já era sua antes do julgamento da fortuna. Cada um dos pretendentes dá os motivos para sua escolha num discurso em que louva o metal que prefere e deprecia os outros dois. A tarefa mais difícil compete assim ao afortunado terceiro pretendente; o que ele encontra para dizer em glorificação do chumbo, contra o ouro e a prata, é pouco e tem um cunho forçado. Se, na clínica psicanalítica, nos defrontássemos com tal discurso, suspeitaríamos que haveria motivos escondidos por trás das insatisfatórias razões apresentadas.
Shakespeare não inventou este oráculo da escolha de um escrínio; tirou-o de uma história das Gesta Romanorum, no qual uma moça tem de fazer a mesma escolha para conquistar o filho do Imperador. Também aqui o terceiro metal, o chumbo, é o portador da fortuna. Não é difícil adivinhar que temos aqui um tema antigo, que exige ser interpretado, explicado à sua origem. Uma primeira conjectura quanto ao significado desta escolha entre ouro, prata e chumbo é rapidamente confirmada por uma afirmação de Stucken, que efetuou um estudo do mesmo material num amplo campo. Escreve ele: ‘A identidade dos três pretendentes de Portia fica clara por sua escolha: o Príncipe de Marrocos escolhe o escrínio de ouro - ele é o Sol; o Príncipe de Aragão escolhe o escrínio de prata - ele é a Lua; Bassanio escolhe o escrínio de chumbo - ele é o filho da estrela!’ Em apoio de sua explicação, cita um episódio da epopéia folclórica estoniana, ‘Kalewipoeg’, no qual os três pretendentes aparecem sem disfarce como os filhos do Sol, da Lua e estrelas (o último sendo ‘o filho mais velho da Estrela Polar’) e, mais uma vez, a noiva cabe ao terceiro.
Assim nosso pequeno problema conduziu-nos a um mito astral! Só é pena que, com esta explicação, não nos achemos no final da questão. Ela não está exaurida, pois não partilhamos da crença de alguns pesquisadores de que os mitos foram lidos nos céus e trazidos à Terra; estamos mais inclinados a julgar, com Otto Rank, que eles foram projetados para os céus após haverem surgido alhures, sob condições puramente humanas. É neste conteúdo humano que reside nosso interesse.
Examinemos novamente nosso material. Na épica estoniana, tal como no conto oriundo das Gesta Romanorum, o tema é uma moça que escolhe entre três pretendentes; na cena de O Mercador de Veneza, o assunto é aparentemente o mesmo, mas, ao mesmo tempo, nele aparece algo com o caráter de uma inversão do tema: um homem escolhe entre três - escrínios. Se aquilo em que estamos interessados fosse um sonho, ocorrer-nos-ia em seguida que os escrínios são também mulheres, símbolos do que é essencial na mulher, e portanto da própria mulher - como arcas, cofres, caixas, cestos etc. Se corajosamente presumirmos que há substituições simbólicas do mesmo tipo também nos mitos, então a cena do escrínio em O Mercador de Veneza tornar-se realmente a inversão que suspeitamos. Com um aceno de varinha de condão, como se estivéssemos num conto de fadas, despojamos de nosso tema a indumentária astral e agora percebemos que ele é um tema humano, a escolha de um homem entre três mulheres.
Este mesmo conteúdo, porém, pode ser encontrado noutra cena de Shakespeare, num de seus dramas mais poderosamente comoventes; não a escolha de uma noiva desta vez, mas ligada por muitas semelhanças ocultas à escolha do escrínio em O Mercador de Veneza. O velho Rei Lear resolve dividir seu reino, enquanto ainda se acha vivo, entre as três filhas, em proporção à quantidade de amor que cada uma delas expressar por ele. As duas mais velhas, Goneril e Regan, exaurem-se em asseverações e louvores de seu amor por ele; a terceira, Cordélia, recusa-se a fazê-lo. Ele deveria ter reconhecido o despretensioso e mudo amor da terceira filha e o recompensado, mas não o faz. Repudia Cordélia e divide o reino entre as outras duas, para sua própria ruína e ruína geral. Não é esta, mais uma vez, a cena de uma escolha entre três mulheres, das quais a mais jovem é a melhor, a mais excelsa?
Imediatamente ocorrer-nos-ão outras cenas oriundas de mitos, contos de fadas e da literatura, com a mesma situação por conteúdo. O pastor Páris tem de escolher entre três deusas, das quais declara ser a terceira a mais bela. Cinderela também é uma filha mais nova, preferida pelo príncipe às duas irmãs mais velhas. Psiqué, na história de Apulcio, é a mais jovem e bela de três irmãs. Ela é, por um lado, reverenciada como Alfrodite em forma humana; por outro, é tratada por esta deusa como Cinderela foi tratada por sua madrasta e é-lhe atribuída a tarefa de selecionar um monte de sementes misturadas, o que realiza com o auxílio de pequenas criaturas (pombas no caso de Cinderela, formigas no de Psiqué). Quem quer que me preocupasse em fazer um levantamento mais amplo do material descobriria indubitavelmente outras versões do mesmo tema, conservando as mesmas características essenciais.
Contentemo-nos com Cordélia, Afrodite, Cinderela e Psiqué. Em todas as histórias, as três mulheres, das quais a terceira é a mais excelsa, devem seguramente ser encaradas como de certo modo semelhantes, se são representadas como irmãs. (Não devemos deixar-nos desencaminhar pelo fato de a escolha de Lear ser entre três filhas; isto pode não representar nada mais do que ele ter de ser representado como um velho. Um velho não pode escolher muito bem entre três mulheres, de nenhuma outra maneira. Assim, elas se tornaram suas filhas.)
Mas quem são estas três irmãs e por que deve a escolha recair na terceira? Se pudermos responder esta pergunta, estaremos na posse da interpretação que estamos buscando. Já fizemos anteriormente uso de uma aplicação da técnica psicanalítica, quando explicamos os três escrínios simbolicamente como três mulheres. Se tivermos a coragem de proceder da mesma maneira, estaremos iniciando um caminho que nos levará primeiro a algo inesperado e incompreensível, mas que talvez, por uma estrada indireta, nos conduzirá a um objetivo.
Deve impressionar-nos que esta excelsa terceira mulher tenha, em diversos casos, certas qualidades peculiares, além de sua beleza. São qualidadesque parecem tender no sentido de algum tipo de unidade e não devemos por certo esperar encontrá-las igualmente bem assinaladas em todos os exemplos. Cordélia torna-se irreconhecível, indistinguível como o chumbo, permanece muda, ‘ama e cala’. Cinderela se esconde de maneira a não ser encontrada. Podemos talvez permitir-nos igualar ocultamento e mudez. Estes, naturalmente, seriam apenas dois exemplos, dos cinco que escolhemos. Mas há uma insinuação da mesma coisa a ser encontrada, de modo bastante curioso, em dois outros casos. Decidimos comparar Cordélia, com sua recusa obstinada, ao chumbo. No breve discurso de Bassanio, enquanto está escolhendo o escrínio, diz ele do chumbo (sem, de maneira alguma, conduzir a fala para a observação):
‘Tua palidez comove-me mais que a eloqüência.’
Quer dizer: ‘Tua simplicidade comove-me mais que a natureza espalhafatosa dos outros dois.’ Ouro e prata são ‘gritantes’; o chumbo é mudo - na verdade, como Cordélia, que ‘ama e cala’.
Nos antigos relatos gregos do julgamento de Páris, nada se diz de tal reticência por parte de Afrodite. Cada uma das três deusas fala ao jovem e tenta conquistá-lo através de promessas. Mas, de modo bastante esquisito, num tratamento inteiramente moderno da mesma cena, esta característica da terceira, que nos impressionou, faz seu aparecimento de novo. No libreto de La Belle Hélène, de Offenbach, Páris, após falar das solicitações das outras duas deusas, descreve a conduta de Afrodite na competição pelo prêmio da beleza:
La troisième, ah! la troisième…
La troisième ne dit rien.
Elle eut le prix tout de même…
Se nos decidirmos a encarar as peculiaridades de nossa ‘terceira’ como concentradas em sua ‘mudez’, então a psicanálise nos dirá que, nos sonhos, a mudez é uma representação comum da morte.
Há mais de dez anos, um homem muito inteligente me contou um sonho que desejava utilizar como prova da natureza telepática dos sonhos. Nele, vira um amigo ausente de quem não havia recebido notícias por tempo muito longo, e censurara-o energicamente por seu silêncio. O amigo não deu resposta. Posteriormente descobriu-se que havia encontrado a morte por suicídio, aproximadamente à época do sonho. Permitam-nos deixar o problema da telepatia de lado: entretanto, não parece haver qualquer dúvida de que aqui a mudez no sonho representava a morte. Esconder-se e não ser encontrado - algo com que o príncipe se defronta por três vezes na história de Cinderela - constitui outro símbolo inequívoco de morte nos sonhos; assim também um palor acentuado, do qual a ‘palidez’ do chumbo em determinada variante do texto shakespereano é um lembrete. Ser-nos-ia muito mais fácil transpor estas interpretações da linguagem dos sonhos para a modalidade da expressão empregada no mito que agora está sendo considerada, se pudéssemos fazer parecer provável que a mudez deve ser interpretada como sinal de estar morto, em outras produções que não os sonhos.
Neste ponto, escolheria a nona história dos Contos de Fadas de Grimm, a que tem o título de ‘Os Doze Irmãos’. Um rei e uma rainha têm doze filhos, todos rapazes. O rei declara que se o décimo terceiro for uma menina, os rapazes terão de morrer. Na expectativa do nascimento dela, manda fazer doze ataúdes. Com o auxílio da mãe, os doze filhos buscam refúgio numa floresta escondida e juram dar morte a qualquer moça que possam encontrar. Nasce uma menina, cresce e sabe um dia, por sua mãe, que teve doze irmãos. Decide procurá-los e, na floresta, encontra o mais jovem; este a reconhece, mas fica ansioso por escondê-la, devido ao juramento dos irmãos. A irmã diz: ‘Morrerei alegremente, se assim puder salvar meus doze irmãos.’ Estes a acolhem afetuosamente porém, e ela fica com eles, tomando conta da casa. Num pequeno jardim ao lado da casa crescem doze lírios. A moça os colhe e dá um a cada irmão. Nesse momento, os irmãos são transformados em corvos e desaparecem, junto com a casa e o jardim. (Corvos são pássaros-espíritos; a morte dos doze irmãos pela irmã é representada pela colheita das flores, tal como o é, no começo da história, pelos ataúdes e pelo desaparecimento dos irmãos.) À moça, que mais uma vez está pronta a salvar os irmãos da morte, é dito então que, como condição, ela deve ficar muda por sete anos e não pronunciar uma só palavra. Ela se submete ao teste, que a coloca em perigo mortal; isto é, ela própria morre pelos irmãos, como prometera fazer antes de encontrá-los. Por permanecer muda, consegue finalmente libertar os corvos.
Na história de ‘Os Setes Cisnes’, os irmãos que foram transformados em pássaros são libertados exatamente da mesma maneira: são restituídos à vida pela mudez da irmã. A moça tomou a firme resolução de liberar os irmãos, ‘mesmo que isso lhe custasse a vida’, e mais uma vez (sendo esposa do rei) arrisca a própria vida ao recusar-se a abandonar sua mudez, a fim de defender-se contra acusações perversas.
Seria certamente possível coligar outras provas, nos contos de fadas, de que a mudez deve ser compreendida como representando a morte. Estas indicações levar-nos-iam a concluir que a terceira das irmãs entre as quais a escolha é feita é uma morta. Mas ela pode ser também algo mais - a saber, a própria Morte, a Deusa da Morte. Graças a um deslocamento que está longe de ser raro, as qualidades que uma divindade confere aos homens são atribuídas à própria divindade. Um deslocamento assim surpreender-nos-ia ainda menos em relação à Deusa da Morte, visto que nas versões e representações modernas, que estas histórias estariam assim antecipando, a própria Morte nada mais é que um morto.
Mas se a terceira das irmãs é a Deusa da Morte, as irmãs nós conhecemos. Trata-se das Parcas, das Moiras, das Nornas, a terceira das quais é chamada Átropos, a inexorável.
II
Colocaremos de lado por enquanto a tarefa de inserir a interpretação encontrada em nosso mito e escutaremos o que os mitólogos têm a ensinar-nos sobre o papel e a origem das Parcas.
A primitiva mitologia grega (em Homero) conhecia apenas uma só g, a personificar o destino inevitável. O desenvolvimento ulterior desta Moira única num conjunto de três (ou, menos amiúde, duas) deusas-irmãs provavelmente efetuou-se com base noutras figuras divinas a que as Moiras se achavam estreitamente relacionadas - as Graças e as Horas [as Estações].
As Horas eram originalmente deusas das águas do céu, distribuidoras da chuva e do orvalho, e das nuvens das quais a chuva cai; visto as nuvens serem concebidas como algo que fora tecido, aconteceu que essas deusas fossem encaradas como fiandeiras, atributo que depois se relacionou às Moiras. Nas terras mediterrâneas favorecidas pelo Sol, é da chuva que a fertilidade do solo depende, e assim as Horas tornaram-se deusas da vegetação. A beleza das flores e a abundância dos frutos eram criações suas, e a elas era creditada abundância de traços agradáveis e encantadores. Tornaram-se as representantes divinas das Estações, sendo provavelmente devido a esta conexão que havia três delas, se a natureza sagrada do número três não foi explicação suficiente. Pois os povos da antigüidade a princípio distinguiam apenas três estações: inverno, primavera e verão. O Outono só foi acrescentado em período greco-romano posterior, após o que as Horas foram muitas vezes representadas na arte em número de quatro.
As Horas mantiveram sua relação com o tempo. Posteriormente, presidiram às horas do dia, como a princípio haviam feito às épocas do ano; e, por fim, seu nome veio a ser simplesmente uma designação das horas (heure, ora). As Nornas da mitologia germânica são aparentadas com as Horas e as Moiras e apresentam esta significação de tempo em seus nomes. Era inevitável, contudo, que se viesse a ter uma visão mais profunda da natureza essencial desta deidades, e que sua essência fosse transposta para a regularidade com que as estações mudam. As Horas, assim, tornaram-se as guardiãs da lei natural e da Ordem divina que fazem a mesma coisa reaparecer na Natureza numa seqüência inalterável.
Esta descoberta da Natureza reagiu sobre a concepção da vida humana. O mito da natureza transformou-se num mito humano: as deusas do tempo tornaram-se deusas do Destino. Este aspecto das Horas, porém, encontrou expressão apenas nas Moiras, que vigiam a ordenação necessária da vida humana tão inexoravelmente quanto as Horas, a ordem normal da Natureza. A inelutável severidade da Lei e sua relação com a morte e a dissolução, que haviam sido evitadas nas encantadoras figuras das Horas, estavam agora caracterizadas nas Moiras, como se os homens só houvessem percebido toda a seriedade da lei natural quando tiveram de submeter suas próprias personalidades a ela.
Os nomes das três fiandeiras foi também significativamente explicado pelos mitólogos. Láquesis, o nome da segunda, parece designar ‘o acidental que se acha incluído na regularidade do destino’ - ou, como diríamos, a ‘experiência’; tal como Átropos representa ‘o inelutável’ - a Morte. A Cloto sobraria então significar a disposição inata, com suas implicações fatídicas.
Mas já é tempo de retornar ao tema que estamos tentando interpretar - o tema da escolha entre três irmãs. Ficaremos profundamente desapontados em descobrir quão ininteligíveis se tornam as situações sob exame e que contradições resultam de seu conteúdo aparente, se aplicarmos a elas a interpretação que descobrimos. Segundo nossa suposição, a terceira das irmãs é a Deusa da Morte, a própria Morte. Mas no Julgamento de Páris ela é a deusa por sua beleza; em O Mercador de Veneza, é a mais bela e sábia das mulheres; no Rei Lear, é a única filha leal. Podemos perguntar se pode existir contradição mais completa. Talvez, por improvável que possa parecer, haja outra ainda mais completa ao alcance da mão. Na verdade, certamente existe, visto que, onde quer que nosso tema ocorra, a escolha entre as mulheres é livre e no entanto recai na morte. Afinal de contas, ninguém escolhe a morte e é apenas por fatalidade que se tomba vítima dela.
Entrentanto, contradições de um certo tipo - substituições pelo contrário exato - não oferecem dificuldade séria ao trabalho da interpretação analítica. Não apelaremos aqui para o fato de os contrários serem tão amiúde representados por um só e mesmo elemento nos modos de expressão utilizados pelo inconsciente, tal como, por exemplo, nos sonhos. Mas lembraremos que existem na vida mental forças motivadoras que ocasionam a substituição pelo oposto, na forma do que é conhecido como formação reativa; e é precisamente na relação de forças ocultas como estas que procuramos a recompensa de nossa indagação. As Moiras foram criadas em resultado de uma descoberta que advertiu o homem de que ele também faz parte da natureza e, portanto, acha-se sujeito à imutável lei da morte. Algo no homem estava fadado a lutar contra esta sujeição, pois é apenas com extrema má-vontade que ele abandona sua pretensão a uma posição excepcional. O homem, como sabemos, faz uso de sua atividade imaginativa a fim de satisfazer os desejos que a realidade não satisfaz. Assim sua imaginação rebelou-se contra o reconhecimento da verdade corporificada no mito das Moiras e construiu em seu lugar o mito dele derivado, no qual a Deusa da Morte foi substituída pela Deusa do Amor e pelo que lhe era equivalente em forma humana. A terceira das irmãs não era mais a Morte; era a mais bela, a melhor, a mais desejável e amável das mulheres. Tampouco foi esta substituição, de modo algum, tecnicamente difícil: ela foi preparada por uma antiga ambivalência e executada ao longo de uma linha primeva de conexão, que não poderia ter sido há muito esquecida. A própria Deusa do Amor, que agora assumira o lugar da Deusa da Morte, fora outrora idêntica a ela. Mesmo a Afrodite grega não abandonara inteiramente sua vinculação com o mundo dos mortos, embora há muito tempo houvesse entregado seu papel ctônico a outras figuras divinas, a Perséfone ou à triforme Artêmis-Hécate. As grandes deusas-Mães dos povos orientais, contudo, parecem todas ter sido tanto criadoras quanto destruidoras - tanto deusas da vida e da fertilidade quanto deusas da morte. Assim, a substituição por um oposto desejado em nosso tema retorna a uma identidade primeva.
A mesma consideração responde à pergunta de como a característica de uma escolha juntou-se ao mito das três irmãs. Aqui também houve uma inversão desejada. A escolha se coloca no lugar da necessidade, do destino. Desta maneira, o homem supera a morte, que reconheceu intelectualmente. Não é concebível maior triunfo da realização de desejos. Faz-se uma escolha onde, na realidade, há obediência a uma compulsão; e o escolhido não é uma figura de terror, mas a mais bela e desejável das mulheres.
Numa inspeção mais chegada observamos, sem dúvida, que o mito original não é tão completamente deformado que traços dele não apareçam e revelem sua presença. A livre escolha entre as três irmãs não é, propriamente falando, uma escolha livre, pois deve necessariamente recair na terceira, do contrário todo tipo de malefício pode acontecer, como sucede em Rei Lear. A mais bela e melhor das mulheres, que assumiu o lugar da Deusa da Morte, manteve certas características que beiram o sinistro, de maneira que, a partir delas, pudemos adivinhar o que jaz por baixo.
Até aqui, estivemos acompanhando o mito e sua transformação, sendo de se esperar que indicamos corretamente as causas ocultas da transformação. Podemos agora voltar nosso interesse para a maneira pela qual o dramaturgo fez uso do tema. Ficamos com a impressão de que uma redução do tema ao mito original está sendo realizada em seu trabalho, de maneira que, uma vez mais, temos a sensação da comovente significação que foi enfraquecida pela deformação. É mediante esta redução da deformação, este retorno parcial ao original, que o dramaturgo alcança seu efeito mais profundo sobre nós.
Para evitar más interpretações, gostaria de dizer que não é minha intenção negar que a história dramática do Rei Lear destina-se a inculcar duas sábias lições: a própria vida e que devemos guardar-nos de aceitar a lisonja pelo seu valor aparente. Estas advertências e outras semelhantes são indubitavelmente postas em relevo pela peça; mas me parece inteiramente impossível explicar o irresistível efeito de Rei Lear a partir da impressão que tal seqüência de pensamento produziria, ou supor que os motivos pessoais do dramaturgo não foram além da intenção de ensinar essas lições. Sugere-se, também, que seu intuito foi apresentar a tragédia da ingratidão, cujo aguilhão bem pode ter sentido no próprio coração, e que o efeito da peça repousa no elemento puramente formal de sua apresentação artística; mas isto não pode, segundo me parece, tomar o lugar da compreensão que nos foi trazida pela explicação a que chegamos do tema da escolha entre as três irmãs.
Lear é um homem velho. É por esta razão, como já dissemos, que as três irmãs aparecem como filhas suas. O relacionamento de um pai com os filhos, que poderia ser uma fonte fecunda de muitas situações dramáticas, não recebe consideração ulterior na peça. Mas Lear não é apenas um homem velho: é um homem moribundo. Desta maneira, a extraordinária premissa da divisão de sua herança perde toda sua estranheza. Mas o homem condenado não está disposto a renunciar o amor das mulheres; insiste em ouvir quanto é amado. Permitam-nos agora recordar a comovente cena final, um dos pontos culminantes da tragédia no teatro moderno. Lear carrega o corpo morto de Cordélia para o palco. Cordélia é a Morte. Se invertermos a situação, ela se torna inteligível e familiar par nós. Ela é Deusa da Morte que, como as Valquírias na mitologia germânica, recolhe do campo de batalha o herói morto. A sabedoria eterna, vestida deste mito primevo, convida o velho a renunciar ao amor, escolher a morte e reconciliar-se com a necessidade de morrer.
O dramaturgo nos leva mais próximo do tema antigo, por representar o homem que faz a escolha entre as três irmãs como idoso e moribundo. A revisão regressiva que assim aplicou ao mito, deformada como foi pela transformação prenhe de desejo, permite-nos vislumbres suficientes de seu significado original para capacitar-nos a chegar também a uma interpretação alegórica superficial das três figuras femininas do tema. Poderíamos argumentar que o que se acha representado aqui são as três inevitáveis relações que um homem tem com uma mulher - a mulher que o dá à luz, a mulher que é a sua companheira e a mulher que o destrói; ou que elas são as três formas assumidas pela figura da mãe no decorrer da vida de um homem - a própria mãe, a amada que é escolhida segundo o modelo daquela, e por fim, a Terra Mãe, que mais uma vez o recebe. Mas é em vão que um velho anseia pelo amor de uma mulher, como o teve primeiro de sua mãe; só a terceira das Parcas, a silenciosa Deusa da Morte, toma-lo-á nos braços.
DUAS MENTIRAS CONTADAS POR CRIANÇAS (1913)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ZWEI KINDERLÜGEN
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1913 Int. Z. Psychoanal., 1, (4), 359-62.
1918 S. K. S. N., 4, 189-94, (1922, 2ª ed.)
1924 G. S., 5, 238-43.
1926 Psychoanalyse der Neurosen, 16-22.
1931 Neurosenlehre und Technik, 17-21.
1943 G. W., 8, 422-7.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Infantile Mental Life: Two Lies Told by Children’
1924 C. P., 2, 144-9. (Trad. de E. C. Mayne.)
A presente tradução inglesa é versão modificada (sob um título abreviado) da publicada em 1924.
Em seu primeiro aparecimento na Zeitschrift (no verão de 1931), este artigo foi o primeiro de vários, escritos por diversos autores, incluídos sob o título geral ‘Aus dem infantilen Seelenleben’. Este título foi incorporado à reimpressão de 1918 do trabalho e também inserido no título da tradução inglesa de 1924; posteriormente, foi abandonado.
DUAS MENTIRAS CONTADAS POR CRIANÇAS
Podemos entender que as crianças contem mentiras quando, assim procedendo, estão imitando as mentiras ditas por adultos. Mas um certo número de mentiras contadas por crianças bem educadas possuem significação especial e deveriam fazer com que seus responsáveis refletissem, de preferência a ficarem zangados. Estas mentiras ocorrem sob a influência de sentimentos excessivos de amor e se tornam momentosas quando conduzem a uma má compreensão entre a criança e a pessoa que ela ama.
I
Uma menina de sete anos (em seu segundo ano na escola) pedira ao pai dinheiro para comprar tintas de pintar ovos de Páscoa. O pai recusara, dizendo que não o tinha. Pouco depois, a menina pediu-lhe dinheiro como contribuição para uma coroa para o funeral da princesa reinante, que falecera recentemente. Cada um dos escolares deveria trazer cinqüenta pfennigs [seis pence]. O pai deu-lhe dez marcos [dez xelins]; ela pagou sua contribuição, colocou nove marcos na escrivaninha do pai e com os restantes cinqüenta pfennigs comprou algumas tintas, que escondeu em seu armário de brinquedos. Ao jantar, o pai suspeitosamente perguntou-lhe o que havia feito com os cinqüenta pfennigs faltantes e se ela não havia comprado tintas com eles, afinal. Ela o negou, mas o irmão, dois anos mais velho que ela, e com quem havia planejado pintar os ovos, traiu-a; as tintas foram encontradas no armário. O pai irado entregou a criminosa à mãe, para o castigo, e este foi severamente administrado. Posteriormente, a mãe ficou, ela própria, muito abalada, quando viu quão grande era o desespero da filha. Acariciou a menininha após a punição e levou-a para um passeio, a fim de consolá-la. Mas os efeitos da experiência, descritos pela própria paciente como o ‘ponto decisivo em sua vida’, mostraram ser inerradicáveis. Até então, fora uma criança brincalhona e autoconfiante; depois, tornou-se acanhada e tímida. Quando noivou e sua mãe empreendeu a compra dos móveis e do enxoval, assumiu uma raiva incompreensível até mesmo para ela própria. Tinha a impressão de que, afinal de contas, era o dinheiro dela, e que ninguém mais deveria comprar nada com ele. Como recém-casada, acanhava-se de pedir dinheiro ao marido para qualquer despesa com suas necessidades pessoais e efetuou uma distinção não exigida entre o dinheiro ‘dela’ e o dele. Durante o tratamento, aconteceu ocasionalmente que as remessas do marido a ela se atrasassem, de modo que era deixada sem recursos numa cidade estranha. Após haver-me contado isto uma vez, fi-la prometer que, se acontecesse de novo, ela me pediria emprestada a pequena quantia necessária. Prometeu fazê-lo; mas, na ocasião seguinte de dificuldades financeiras, não se ateve à promessa, mas preferiu empenhar suas jóias. Explicou-me que não poderia receber dinheiro de mim.
A apropriação dos cinqüenta pfennigs em sua infância tivera uma significação que o pai não poderia adivinhar. Algum tempo antes de começar a ir à escola, fizera uma travessura singular com dinheiro. Um vizinho, com quem mantinham relações amistosas, mandara a menina com uma pequena soma de dinheiro, na companhia de seu próprio filho, que era ainda mais moço, comprar algo numa loja. Sendo a mais velha dos dois, ela trazia o troco de volta para casa; mas ao encontrar o criado do vizinho na rua, jogou o dinheiro sobre a calçada. Na análise desta ação, que ela própria achava inexplicável, ocorreu-lhe pensar em Judas, que jogara fora os trinta dinheiros de prata que recebera por trair o Mestre. Disse que certamente se achava familiarizada com a história da Paixão, antes de freqüentar a escola. Mas de que maneira poderia ela identificar-se com Judas?
Quando contava três anos e meio de idade, tivera uma babá de quem gostava extremamente. Esta moça envolveu-se num caso amoroso com um médico cuja clínica cirúrgica ela visitou com a criança. Parece que, nessa ocasião, a criança assentiu a diversos atos sexuais. Não é certo se ela viu o médico dar dinheiro à moça, mas não há dúvida de que, para assegurar-se do silêncio da menina, a moça deu-lhe algumas moedinhas, com as quais compras foram feitas (provavelmente doces) no caminho para casa. É também possível que o próprio médico, ocasionalmente, desse dinheiro à criança. Não obstante, por ciúme, a menina traiu a moça à mãe. Brincou tão ostensivamente com as moedas que trouxera para casa que a mãe não pôde deixar de perguntar: ‘Onde foi que você conseguiu esse dinheiro?’ A moça foi despedida.
Tirar dinheiro de alguém veio assim a significar precocemente para ela uma rendição física, uma relação erótica. Tirar dinheiro do pai equivalia a uma declaração de amor. A fantasia de que o pai era seu amante era tão sedutora que, com seu auxílio, seu desejo pueril de tintas para os ovos de Páscoa facilmente pôs-se em ação, apesar da proibição. Ela não podia admitir, contudo, que se havia apropriado do dinheiro; foi obrigada a negá-lo, porque seu motivo para o feito, inconsciente para ela própria, não podia ser admitido. A punição do pai constituiu assim uma rejeição da ternura que ela lhe oferecia - uma humilhação - e, dessa maneira, desencorajou-a. Durante o tratamento, ocorreu um período de grave depressão (cuja explicação levou-a a recordar-se dos acontecimentos aqui descritos) quando, em certa ocasião, fui obrigado a reproduzir essa humilhação, ao pedir-lhe para não me trazer mais flores.
Para os psicanalistas, mal preciso enfatizar o fato de que, nessa pequena experiência da criança, temos diante de nós um daqueles casos extremamente comuns em que o erotismo anal primitivo persiste na vida erótica posterior. Mesmo o desejo dela de pintar ovos com tintas derivava da mesma fonte.
II
Uma mulher, que hoje se acha seriamente enferma em conseqüência de uma frustração na vida, foi, em outros tempos, uma moça particularmente capaz, amante da verdade, séria e virtuosa, e tornou-se uma esposa afetuosa. Mais cedo ainda, porém, nos primeiros anos de vida, havia sido uma criança descontente e cheia de vontades e, embora se houvesse transformado de modo bastante rápido numa menina excessivamente boa e conscienciosa, havia ocorrências em seus dias escolares que, quando caía enferma, provocavam-lhe profundas auto-acusações, e eram por ela encaradas como provas de depravação fundamental. Sua memória contou-lhe que, naqueles dias, amiúde gabara-se e mentira. Certa vez, no caminho para a escola, um colega dissera-lhe jactanciosamente: ‘Ontem tivemos gelo ao jantar.’ Ela replicou: ‘Ora, nós temos gelo todos os dias.’ Na realidade, não sabia o que gelo ao jantar poderia significar; só conhecia gelo nos compridos blocos em que é transportado, mas presumiu que deveria haver algo de grandioso em tê-lo ao jantar, de maneira que se recusou a ser suplantada pelo colega.
Quando estava com dez anos de idade, receberam a incumbência, na aula de desenho, de fazerem o desenho a mão livre de um círculo. Ela, porém, usou um compasso, produzindo assim facilmente um círculo perfeito, e mostrou sua realização em triunfo ao vizinho de sala. A professora chegou, ouviu-a gabar-se, descobriu as marcas do compasso no círculo e interrogou a criança. Mas ela obstinadamente negou o que havia feito, não se rendeu a nenhuma prova e refugiou-se num silêncio embirrado. A professora consultou seu pai a respeito e foram ambos influenciados pelo comportamento geralmente bom da menina ao decidir não tomar outras medidas quanto ao assunto.
Ambas as mentiras da criança foram estimuladas pelo mesmo complexo. Como a mais velha de cinco filhos, a menininha cedo desenvolveu uma ligação inusitadamente intensa com o pai, que estava destinada, quando ela crescesse, a arruinar sua felicidade na vida. Mas ela não podia mais fugir à descoberta de que seu pai bem-amado não era uma personagem tão grande quanto se achava inclinada a pensar. Ele tinha de lutar com dificuldades financeiras; não era tão poderoso ou tão distinto quanto ela imaginara. Mas ela não podia suportar esse afastamento do seu ideal. Visto que, como fazem as mulheres, ela baseara toda sua ambição no homem que amava, tornou-se intensamente dominada pelo motivo de apoiar seu pai contra o mundo. Assim, gabava-se a seus colegas de escola, a fim de não ter de diminuir o pai. Mais tarde, quando aprendeu a traduzir gelo ao jantar por ‘glace‘, suas auto-acusações a respeito desta reminiscência conduziram-na facilmente a um pavor patológico de fragmentos ou estilhas de vidro.
Seu pai era um excelente desenhista e amiúde despertara o prazer e a admiração dos filhos através de exibições de sua habilidade. Fora como uma identificação dela própria com o pai que desenhara o círculo na escola - o que só pôde fazer com sucesso através de métodos enganosos. Era como se tivesse querido gabar-se: ‘Olhem o que meu pai pode fazer!’ A sensação de culpa que se achava ligada a seu afeto excessivo pelo pai encontrou expressão juntamente com a mesma tentativa de burla; uma admissão era impossível pela mesma razão que foi dada na primeira destas observações [ver em [1]]: inevitavelmente teria sido uma admissão de seu amor oculto e incestuoso.
Não devemos pensar levianamente em tais episódios da vida de crianças. Seria sério equívoco interpretar más ações infantis como estas como prognóstico de desenvolvimento de um mau caráter. Não obstante, elas se acham intimamente vinculadas às forças motivadoras mais poderosas nas mentes das crianças e anunciam disposições que levarão a contingências posteriores em suas vidas ou a futuras neuroses.
A DISPOSIÇÃO À NEUROSE OBSESSIVA
UMA CONTRIBUIÇÃO AO PROBLEMA DA ESCOLHA DA NEUROSE (1913)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DIE DISPOSITION ZUR ZWANGSNEUROSE
EIN BEITRAG ZUM PROBLEM DER NEUROSENWAHL
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1913 Int. Z. Psychoanal., 1 (6), 525-32.
1918 S. K. S. N., 4, 113-24, (1922, 2ª ed.)
1924 G. S., 5, 277-87.
1926 Psychonalyse der Neurosen, 3-15.
1931 Neurosenlehre und Technik, 5-16.
1943 G. W., 8, 442-52.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘The Predisposition to Obsessional Neurosis: A Contribution to the Problem of the Option of Neurosis’
1924 C. P., 2, 122-32. (Trad. de E. Glover e E. C. Mayne.)
A presente tradução inglesa da autoria de James Strachey, com o título modificado, aparece aqui pela primeira vez.
Este artigo foi lido por Freud perante o Quarto Congresso Psicanalítico Internacional, realizado em Munique em 7 e 8 de setembro de 1913, e publicado no final desse ano.
Dois tópicos de importância especial são nele examinados. Em primeiro lugar, há o problema da ‘escolha da neurose’, que dá ao trabalho o seu subtítulo. Era um problema que apoquentava Freud desde tempos muito antigos. Três longos exames dele poderão ser encontrados entre os documentos de Fliess, datando de 1º de janeiro de 1896 (Freud, 1950a, Rascunho K), 30 de maio de 1896 (ibid., Carta 46, onde a própria expressão aparece), e 6 de dezembro de 1896 (ibid., Carta 52). Aproximadamente ao mesmo tempo que os dois primeiros destes, referências ao assunto apareceram em três trabalhos publicados de Freud: em seu artigo em francês sobre a hereditariedade e a etiologia das neuroses (1896a), no segundo de seus dois trabalhos sobre as neuropsicoses de defesa (1896b) e no artigo sobre ‘The Aetiology of Hysteria’ (1896c).
Nestes primeiros exames do problema, pode-se distinguir duas soluções diferentes, que se assemelhavam muito, contudo, por postular uma etiologia traumática para as neuroses. Primeiramente, houve a teoria passiva e ativa mencionada no presente artigo (ver em [1]), a teoria de que experiências sexuais passivas na primeira infância predispunham à histeria, e as ativas à neurose obsessiva. Dez anos depois, num exame do papel desempenhado pela sexualidade nas neuroses (1906a), Freud repudiou inteiramente essa teoria (Ver em [1], 1972).
A segunda destas primitivas teorias, que não foi mantida completamente distinta da primeira, atribuía o fator decisivo a considerações cronológicas. Imaginava-se que a forma assumida por uma neurose dependesse do período da vida em que a experiência traumática ocorrera, ou, noutra versão, dos períodos da vida em que se empreendeu ação defensiva contra o revivescimento da experiência traumática. Numa carta a Fliess, de 24 de janeiro de 1897 (Freud, 1950a, Carta 57), escreveu ele: ‘entrementes, a opinião que até aqui havia sustentado, de que a escolha da neurose era determinada pela ocasião de sua gênese, está-se tornando menos segura; a escolha parece antes ser fixada na mais remota infância. Mas a decisão ainda oscila entre a ocasião da gênese e a época da repressão, embora prefira agora a última.’ E, alguns meses mais tarde, em 14 de novembro de 1897 (ibid., Carta 75): ‘A escolha da neurose - a decisão de se é gerada histeria, neurose obsessiva ou paranóia - depende provavelmente da natureza da onda [de desenvolvimento] (isto é, de sua situação cronológica) que torna possível a repressão (isto é, que transforma uma fonte de prazer interno noutra de repugnância interna).’
Mas após outros dois anos, em 9 de dezembro de 1899 (ibid., Carta 125), surge uma passagem que parece prenunciar as opiniões posteriores de Freud: ‘Há não muito tempo, tive o que pode ter sido um primeiro vislumbre de algo novo. Tenho diante de mim o problema da “escolha da neurose’. Quando é que uma pessoa se torna histérica, ao invés de paranóica? Uma primeira tentativa grosseira, feita numa ocasião em que estava tentando assaltar a cidadela à força, apresentou a opinião de que isso dependia da idade em que os traumas sexuais ocorreram - da idade do indivíduo na época da experiência. Abandonei isso há muito tempo e fiquei sem nenhuma pista, até alguns dias atrás, quando comecei a perceber um vínculo com a teoria da sexualidade.
‘O estrato sexual mais baixo é o auto-erotismo, que passa sem qualquer objetivo psicossexual e exige apenas sensações locais de satisfação. Ele é sucedido pelo auto-erotismo (homo- e heteroerotismo); mas certamente também continua a existir como corrente separada. A histeria (e sua variante, a neurose obsessiva) é auto-erótica; seu principal caminho é a identificação com a pessoa amada. A paranóia desfaz a identificação novamente; ela restabelece todas as figuras amadas na infância, que foram abandonadas (cf. meu exame dos sonhos exibicionistas), e desfaz o próprio ego em figuras exteriores. Assim, vem a encarar a paranóia como uma onda dianteira da corrente auto-erótica, como um retorno ao ponto de vista então predominante. A perversão correspondente a ela seria o que é conhecido como “paranóia idiopática”. As relações especiais do auto-erotismo com o “ego” original lançariam luz clara sobre a natureza desta neurose. Neste ponto, o fio se rompe.’
Aqui Freud se aproximava da posição delineada nas páginas de encerramento de seus Três Ensaios (1905d), a partir de [1], 1972. O complicado processo de desenvolvimento sexual sugerira uma nova versão da teoria cronológica; a noção de uma sucessão de possíveis ‘pontos de fixação’, nos quais esse processo está sujeito a ser detido e aos quais uma regressão se pode realizar, se são encontradas dificuldades na vida posterior. Deveria demorar vários anos, contudo, para que uma afirmação explícita fosse feita quanto à relação entre esta sucessão de pontos de fixação e a escolha da neurose. Ela se deu no artigo sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911b) , em [1], e (com muito maior extensão) na análise de Schreber, quase contemporânea (1911c), a partir de [2], anteriores. (Parece provável que este último exame fosse o que Freud tinha em mente ao falar aqui (ver em [3]) de uma abordagem anterior ao problema.) Mas toda a questão é examinada em termos mais gerais no presente artigo.
Isto nos conduz ao segundo tópico de importância especial que ele examina - a saber, o tópico das ‘organizações’ pré-genitais da libido. A noção é hoje tão familiar que nos surpreendemos em saber que ela fez seu primeiro aparecimento aqui; mas toda a seção dos Três Ensaios que dela trata (Ver em [1], 1972) foi, em verdade, acrescentada somente em 1915, dois anos após este trabalho ter sido publicado. O conhecimento de haver instintos sexuais componentes não genitais remonta, naturalmente, há muito mais atrás. Ele é proeminente na primeira edição dos Três Ensaios (1905d) e sugerido, nas cartas de Fliess, mais cedo ainda. (Ver, por exemplo, a Carta 75, de 14 de novembro de 1897.) O que é novo é a idéia de haver, no desenvolvimento sexual, estádios regulares, nos quais um ou outro dos instintos componentes domina todo o quadro.
Apenas um de tais estádios, o anal-sádico, é examinado no presente artigo. Freud, contudo, já distinguira dois estádios anteriores de desenvolvimento sexual; mas estes não eram caracterizados pelo predomínio de nenhum instinto componente determinado. O mais primitivo de todos, o do auto-erotismo, antes de qualquer escolha objetal ter sido feita, aparece na primeira edição dos Três Ensaios (Ver em [1], 1972), mas já fora especificado na carta a Fliess, de 1899, anteriormente citada (p. 394). O estádio seguinte, o primeiro em que ocorre escolha de objeto, mas onde este é o próprio eu (self) da pessoa, fora apresentado por Freud, sob o nome de narcisismo, cerca de três ou quatro anos antes do presente artigo (ver em [1]). Restavam a ser descritos dois outros estádios organizados no desenvolvimento da libido - um anterior e o outro posterior ao anal-sádico. O anterior, o estádio oral, mais uma vez demonstrou o predomínio de um instinto componente; ele foi primeiramente mencionado na seção da edição de 1915 dos Três Ensaios a que já se aludiu (Ver em [1], 1972). O estádio posterior, não mais pré-genital, mas ainda não inteiramente genital no sentido adulto, o estádio ‘fálico’, só apareceu em cena muitos anos depois, no artigo de Freud sobre ‘A Organização Geral Infantil da Libido’ (1923e).
Essa maneira, a ordem de publicação dos achados de Freud sobre as sucessivas organizações prematuras do instinto sexual pode ser assim resumida: estádio auto-erótico, 1905 (já descrito em particular, em 1899); estádio narcísico, 1911 (em particular, 1909); estádio anal-sádico, 1913; estádio oral, 1915; estádio fálico, 1923.
A DISPOSIÇÃO À NEUROSE OBSESSIVA
UMA CONTRIBUIÇÃO AO PROBLEMA DA ESCOLHA DA NEUROSE
O problema de saber por que e como uma pessoa pode ficar doente de uma neurose acha-se certamente entre aqueles aos quais a psicanálise deveria oferecer uma solução, mas provavelmente será preciso encontrar primeiro solução para outro problema, mais restrito - a saber, por que é que esta ou aquela pessoa tem de cair enferma de uma neurose específica e de nenhuma outra. Este é o problema da ‘escolha da neurose’.
O que sabemos, até o presente, sobre este problema? Estritamente falando, apenas uma única proposição geral pode ser asseverada com certeza sobre o assunto. Lembrar-se-á que dividimos os determinantes patogênicos que estão envolvidos nas neuroses em aqueles que uma pessoa traz consigo, para a sua vida, e aqueles que a vida lhe traz - o constitucional e o acidental - mediante cuja operação combinada, somente, o determinante patogênico é via de regra estabelecido. Além disso, a proposição geral, à que aludi acima, estabelece que os motivos para determinar a escolha da neurose são inteiramente do primeiro tipo - isto é, que eles têm caráter de disposições e são independentes de experiências que operam patogenicamente.
Onde devemos procurar a fonte destas disposições? Tornamo-nos cientes de que as funções psíquicas envolvidas - sobretudo a função sexual, mas também várias importantes funções do ego - têm de passar por um longo e complicado desenvolvimento, antes de chegar ao estado característico do adulto normal. Podemos presumir que estes desenvolvimentos não são sempre tão serenamente realizados que a função total atravesse esta modificação regular progressiva. Onde quer que uma parte dela se apegue a um estádio anterior resulta o que se chama ‘ponto de fixação’, para o qual a função pode regredir se o indivíduo ficar doente devido a alguma perturbação externa.
Assim, nossas disposições são inibições de desenvolvimento. Somos corroborados nesta opinião pela analogia dos fatos da patologia geral de outras moléstias. Entretanto, ante a questão de saber que fatores podem ocasionar tais distúrbios de desenvolvimento, o trabalho da psicanálise se interrompe: ela deixa o problema para a pesquisa biológica.
Já há alguns anos arriscamo-nos, com o auxílio destas hipóteses, a abordar o problema da escolha da neurose. Nosso método de trabalho, que visa a descobrir condições normais pelo estudo de suas perturbações, levou-nos a adotar uma linha de ataque muito singular e inesperada. A ordem em que as principais formas de psiconeurose são geralmente enumeradas - Histeria, Neurose Obsessiva, Paranóia, Demência Precoce - corresponde (ainda que não de modo inteiramente exato) à ordem das idades em que o desencadeamento destas perturbações ocorre. Formas histéricas de doença podem ser observadas mesmo na mais primitiva infância; a neurose obsessiva geralmente apresenta seus primeiros sintomas no segundo período da infância (entre as idades de seis e oito anos); enquanto as outras duas psiconeuroses, que reuni sob o título de ‘parafrenia’, não aparecem senão depois da puberdade e durante a vida adulta. Estes distúrbios - os últimos a surgir - foram os primeiros a se mostrar acessíveis a nossa indagação sobre as disposições que resultam na escolha da neurose. As características peculiares a ambos - megalomania, afastamento do mundo dos objetos, dificuldade aumentada na transferência - obrigaram-nos a concluir que sua fixação disposicional deve ser procurada num estádio de desenvolvimento libidinal antes de a escolha objetal ter-se estabelecido - isto é, na fase do auto-erotismo e do narcisismo. Assim, estas formas de moléstia, que fazem seu aparecimento tão tardiamente, remontam a inibições e fixações muito primitivas.
Isto, por conseguinte, nos levaria a supor que a disposição à histeria e à neurose obsessiva, as duas neuroses de transferência propriamente ditas, que produzem seus sintomas bem cedo na vida, reside em fases posteriores de desenvolvimento libidinal. Mas em que ponto delas deveríamos encontrar uma inibição desenvolvimental? E, acima de tudo, qual seria a diferença de fases que determinaria uma disposição para a neurose obsessiva, em contraste com a histeria? Por longo tempo, nada deveria se aprender sobre isto, e minhas primeiras tentativas de descobrir estas duas disposições - a noção, por exemplo, de que a histeria poderia ser determinada pela passividade e a neurose obsessiva pela atividade, na experiência infantil - teve de ser logo abandonada, por incorreta.
Apoiar-me-ei agora, mais uma vez, na observação clínica de um caso individual. Durante longo período estudou uma paciente cuja neurose experimentou uma mudança fora do comum. Começou, após uma experiência traumática, como uma histeria direta de ansiedade e manteve esse caráter por alguns anos. Certo dia, contudo, subitamente, transformou-se numa neurose obsessiva do tipo mais grave. Um caso desta espécie não poderia deixar de ser significativo em mais de um sentido. Por um lado, poderia talvez reivindicar ser encarado como um documento bilingual e demonstrar como um conteúdo idêntico pode ser expresso, pelas duas neuroses, em linguagens diferentes. Por outro lado, ameaçava contradizer completamente nossa teoria de que a disposição origina-se da inibição do desenvolvimento, a menos que estivéssemos preparados para aceitar a suposição de que uma pessoa poderia possuir congenitamente mais de um ponto fraco em seu desenvolvimento libidinal. Disse a mim mesmo que não tínhamos o direito de desprezar esta última possibilidade, mas achava-me grandemente interessado em chegar a uma compreensão do caso.
Quando, no decurso da análise, isto aconteceu, fui forçado a ver que a situação era inteiramente diferente do que havia imaginado. A neurose obsessiva não constituía outra reação ao mesmo trauma que primeiramente provocara a histeria de ansiedade; era uma reação a uma segunda experiência, que havia apagado completamente a primeira. (Aqui, então, temos uma exceção - embora, é verdade, uma exceção não indiscutível - à nossa proposição que afirma que a escolha da neurose é independente da experiência [ver em [1]].)
Infelizmente, acho-me incapacitado, por razões familiares, para ingressar na história do caso até onde gostaria de fazê-lo e tenho de restringir-me à descrição que se segue. Até a ocasião em que caiu doente, a paciente fora uma esposa feliz e quase completamente satisfeita. Queria ter filhos, por motivos baseados numa fixação infantil de seus desejos, e adoeceu quando soube que era impossível tê-los do marido que era o único objeto de seu amor. A histeria de ansiedade com que reagiu a esta frustração correspondia, como ela própria logo aprendeu a compreender, ao repúdio de fantasias de sedução em que seu firmemente implantado desejo de um filho encontrava expressão. Ela então fez tudo o que pôde para impedir que o marido adivinhasse que caíra enferma devido à frustração de que era a causa. Mas tenho boas razões para asseverar que todos possuem, em seu próprio inconsciente, um instrumento com que podem interpretar as elocuções do inconsciente das outras pessoas. O marido compreendeu, sem qualquer admissão ou explicação da parte dela, o que a ansiedade de sua esposa significava; sentiu-se magoado, sem demonstrá-lo, e, por sua vez, reagiu neuroticamente, fracassando - pela primeira vez - nas relações sexuais com ela. Imediatamente depois, partiu para uma viagem. A esposa acreditou que ele se havia tornado permanentemente impotente e produziu seus primeiros sintomas obsessivos no dia anterior ao seu esperado regresso.
O conteúdo de sua neurose obsessiva era uma compulsão por lavagem e limpeza escrupulosas, bem como medidas protetoras extremamente enérgicas contra danos graves que pensava que outras pessoas tinham razão para temer dela - isto é, formações reativas contra seus próprios impulsos anal-eróticos e sádicos. Sua necessidade sexual foi obrigada a encontrar expressão nestas formas, após sua vida genital ter perdido todo o valor devido à impotência do único homem que lhe poderia importar.
Este é o ponto de partida do pequeno e novo fragmento da teoria que formulei. Naturalmente, é apenas na aparência que ela se baseia nesta observação determinada; na realidade, reúne grande número de impressões anteriores, embora uma compreensão delas só tenha sido possibilitada por esta última experiência. Disse a mim mesmo que meu quadro esquemático do desenvolvimento da função libidinal exigia uma inserção suplementar. Para começar, havia apenas distinguido, primeira, a fase do auto-erotismo, durante a qual os instintos parciais do indivíduo, cada um por sua conta, buscam a satisfação de seus desejos no próprio corpo, e, depois, a combinação de todos os instintos componentes para a escolha de um objeto, sob a primazia dos órgãos genitais a agir em nome da reprodução. A análise das parafrenias, como sabemos, tornou necessária a inserção entre elas de um estádio de narcisismo, durante o qual a escolha de um objeto já se realizou, mas esse objeto coincide com o próprio ego do indivíduo. E agora vemos a necessidade de outro estádio ainda ser inserido, antes que a forma final seja alcançada, um estádio no qual os instintos componentes já se reuniram para a escolha de um objeto e este objeto é já algo extrínseco, em contraste com o próprio eu (self) do sujeito, mas no qual a primazia das zonas genitais ainda não foi estabelecida. Pelo contrário, os instintos componentes que dominam esta organização pré-genital da vida sexual são anal-erótico e o sádico.
Estou ciente de que tais hipóteses soam estranhas a princípio. É somente descobrindo suas relações com nosso conhecimento anterior que elas se nos tornam familiares; e, no final, é muitas vezes sua sina serem encarados como inovações menores e há muito tempo previstas. Voltemos-nos, portanto, com previsões como estas, para um exame da ‘organização sexual pré-genital’.
(a) O papel extraordinário desempenhado por impulsos de ódio e erotismo anal na sintomatologia da neurose obsessiva já impressionou muitos observadores e foi recentemente enfatizado, com particular clareza, por Ernest Jones (1913). Isto decorre diretamente de nossa hipótese, se supomos que, nessa neurose, os instintos componentes em apreço mais uma vez assumiram a representação dos instintos genitais, dos quais foram precursores no processo de desenvolvimento.
Neste ponto, ajunta-se uma parte de nossa história clínica, que até agora havia escondido. A vida sexual da paciente começou, em sua mais remota infância, com fantasias de espancamento. Após estas haverem sido suprimidas, estabeleceu-se um período de latência inusitadamente longo, durante o qual passou por um período de crescimento moral exaltado, sem qualquer despertar das sensações sexuais femininas. O casamento, que se realizou muito cedo, iniciou uma época de atividade sexual normal. Este período, durante o qual ela foi uma esposa feliz, continuou por vários anos, até que sua primeira grande frustração provocou a neurose histérica. Quando isto foi seguido pela perda de valor de sua vida genital, a vida sexual, como já disse, retornou ao estádio infantil do sadismo.
Não é difícil determinar a característica que distingue este caso de neurose obsessiva daqueles mais freqüentes que começam bem cedo e depois seguem um curso crônico, com exacerbações de tipo mais ou menos marcante. Nestes outros casos, uma vez estabelecida a organização sexual que contém a disposição à neurose obsessiva, ela, depois, nunca mais é completamente superada; em nosso caso, para começar, ela foi substituída pelo estádio mais alto de desenvolvimento e depois reativada, por regressão, a partir deste último.
(b) Se desejarmos colocar nossa hipótese em contato com linhas biológicas de pensamento, não devemos esquecer que a antítese entre masculino e feminino, que é introduzida pela função reprodutora, não pode ainda estar presente no estádio da escolha objetal pré-genital. Encontramos, em seu lugar, a antítese entre tendências com objetivo ativo e com objetivo passivo, a qual, posteriormente, se torna firmemente ligada à existente entre os sexos. A atividade é suprida pelo instinto comum de domínio, que chamamos sadismo quando o encontramos a serviço da função sexual; e, mesmo na vida sexual normal plenamente desenvolvida, ele tem importantes serviços subsidiários a desempenhar. A tendência passiva é alimentada pelo erotismo anal, cuja zona erógena corresponde à antiga e indiferenciada cloaca. Uma acentuação deste erotismo anal no estádio pré-genital de organização deixa atrás de si uma predisposição significante ao homossexualismo, nos homens, quando o estádio seguinte da função sexual, a primazia dos órgãos genitais, é atingido. A maneira pela qual esta última fase é erguida sobre a precedente e a concomitante remodelação das catexias libidinais oferecem à pesquisa analítica os mais interessantes problemas.
Pode-se sustentar a opinião de que todas as dificuldades e complicações envolvidas nisto podem ser evitadas negando-se que haja qualquer organização pré-genital da vida sexual e sustentando que a vida sexual coincide com a função genital e reprodutora e começa com ela. Afirma-se-ia então, considerando as descobertas inequívocas da pesquisa analítica, que, pelo processo de repressão sexual, as neuroses são compelidas a dar expressão a tendências sexuais através de outros instintos, não sexuais, e assim sexualizam estes últimos à guisa de compensação. Mas esta linha de argumento colocar-nos-ia fora da psicanálise. Colocar-nos-á onde nos achávamos antes desta e significaria abandonar a compreensão que a psicanálise nos deu das relações entre saúde, perversão e neurose. A psicanálise sustenta-se ou tomba com o reconhecimento dos instintos componentes sexuais, das zonas erógenas e da ampliação, que assim se torna possível, do conceito de ‘função sexual’, em contraste com a ‘função genital’, mais restrita. Além disso, a observação dedesenvolvimento normal das crianças é, em si própria, suficiente para fazer-nos rejeitar qualquer tentação desse tipo.
c) No campo do desenvolvimento do caráter, estamos sujeitos a encontrar as mesmas forças instituais que encontramos em operação nas neuroses. Mas uma nítida distinção teórica entre as duas se faz necessária pelo único fato de que o fracasso da repressão e o retorno do reprimido - peculiares ao mecanismo da neurose - acham-se ausentes na formação do caráter. Nesta, a repressão não entra em ação ou então alcança sem dificuldades reativas e sublimações. Daí os processos da formação de caráter serem mais obscuros e menos acessíveis à análise que os neuróticos.
Mas é precisamente no campo do desenvolvimento do caráter que deparamos com uma boa analogia com o caso que estivemos descrevendo - isto é, uma confirmação da ocorrência da organização sexual pré-genital sádica e anal-erótica. É fato bem conhecido, e que tem dado muito motivo para queixas, que após as mulheres perderem a função genital seu caráter, amiúde, sofre uma alteração peculiar. Tornam-se briguentas, irritantes, despóticas, mesquinhas e sovinas, o que equivale a dizer que apresentam tipicamente traços sádicos e anal-eróticos que não possuíam antes, durante seu período de feminilidade. Os autores de comédias e os satiristas em todas as épocas dirigiram suas invectivas contra o ‘velho dragão’ no qual a moça encantadora, a esposa amante e a terna mãe se transformaram. Podemos ver que esta alteração de caráter corresponde a uma regressão da vida sexual ao estádio pré-genital sádico e anal-erótico, na qual descobrimos a disposição à neurose obsessiva. Ela parece ser, então, não apenas o precursor da fase genital, mas, bastante amiúde, também seu sucessor, seu término, após os órgãos genitais haverem desempenhado sua função.
Uma comparação entre tal mudança de caráter e a neurose obsessiva é muito impressionante. Em ambos os casos, o trabalho da regressão é aparente. Mas enquanto na primeira encontramos uma regressão completa a seguir a repressão (ou supressão) que ocorreu suavemente, na neurose há conflito, um esforço para impedir que a regressão ocorra, formações reativas contra ela e formações de sintomas produzidos por conciliações entre os dois lados opostos, assim como uma divisão (splitting) das atividades psíquicas em algumas que são admissíveis à consciência e outras que são inconscientes.
(d) Nossa hipótese de uma organização sexual pré-genital é incompleta sob dois aspectos. Em primeiro lugar, não leva em consideração o comportamento de outros instintos componentes, com referência aos quais há muita coisa que valeria o exame e a discussão, e contenta-se com acentuar a marcante primazia do sadismo e do erotismo anal. Em particular, ficamos sempre com a impressão de que o instinto do conhecimento pode realmente tomar o lugar do sadismo no mecanismo da neurose obsessiva. Na verdade, ele é, no fundo, uma ramificação sublimada do instinto de domínio, exaltado em algo intelectual, e seu repúdio sob a forma de dúvida desempenha grande papel no quadro da neurose obsessiva.
A segunda lacuna em nossa hipótese é muito mais importante. Como sabemos, a disposição desenvolvimental a uma neurose só é completa se a fase do desenvolvimento do ego em que a fixação ocorre é levada em consideração, assim como a da libido. Mas nossa hipótese só se relacionou com a última, e, portanto, não inclui todo o conhecimento que deveríamos exigir. Os estádios de desenvolvimento dos instintos do ego são-nos presentemente muito pouco conhecidos; só sei de uma tentativa - a altamente promissora, feita por Ferenczi (1913) - de abordar estas questões. Não posso dizer se pode parecer muito precipitado se, com base nas indicações que possuímos, sugiro a possibilidade que uma ultrapassagem cronológica do desenvolvimento libidinal pelo desenvolvimento do ego deve ser incluída na disposição à neurose obsessiva. Uma precocidade deste tipo tornaria necessária a escolha de um objeto sob a influência dos instintos do ego, numa época em que os instintos sexuais ainda não assumiram sua forma final, e uma fixação no estádio da organização sexual pré-genital seria assim abandonada. Se considerarmos que os neuróticos obsessivos têm de desenvolver uma supermoralidade a fim de proteger seu amor objetal da hostilidade que espreita por trás dele, ficaremos incl que, na ordem deinados a considerar um certo grau desta precocidade de desenvolvimento do ego como típico da natureza humana e derivar a condição para a origem da moralidade do fato de desenvolvimento, o ódio é o precursor do amor. É este talvez o significado de uma assertiva da autoria de Stekel (1911a, 536), que na ocasião achei incompreensível de que o ódio, e não o amor, é a relação emocional primária entre os homens.
(e) Decorre, do que foi dito, que resta para a histeria uma relação íntima com a fase final do desenvolvimento libidinal, que se caracteriza pela primazia dos órgãos genitais e pela introdução da função reprodutora. Na neurose histérica, esta aquisição acha-se sujeita à repressão, que não implica regressão ao estádio pré-genital. A lacuna na determinação da disposição, devida à nossa ignorância do desenvolvimento do ego, é ainda mais evidente aqui do que na neurose obsessiva.
Por outro lado, não é difícil demonstrar que uma outra regressão, a um nível mais primitivo, ocorre também na histeria. A sexualidade das crianças do sexo feminino é, como sabemos, dominada e dirigida por um órgão masculino (o clitóris) e amiúde se comporta como a sexualidade dos meninos. Esta sexualidade masculina tem de ser abandonada mediante uma última onda de desenvolvimento, na puberdade, e a vagina, órgão derivado da cloaca, tem de ser elevada à zona erógena dominante. Ora, é muito comum na neurose histérica que esta sexualidade masculina reprimida seja reativada e, então, que a luta defensiva por parte dos instintos egossintônicos seja dirigida contra ela. Mas parece-me cedo demais para ingressar aqui num debate dos problemas da disposição à histeria.
INTRODUÇÃO A THE PSYCHO-ANALYTIC METHOD, DE PFISTER (1913)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1913 Em O. Pfister, Die psychanalytische [sic] Methode (Vol. 1 de Pädagogium), iv-v, Leipzig e Berlim, Klinkhardt. (1921, 2ª ed.; 1924, 3ª ed.)
1928 G. S., 11, 244-6.
1931 Neurosenlehre und Technik, 315-18.
1946 G. W., 10, 448-50.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
Introduction to Pfister’s The Psychoanalytic Method
1917 Em Pfister, The Psychoanalytic Method, v-viii, Nova Iorque: Moffat, Yard; Londres: Kegan Paul. (Trad. de C. R. Payne.)
A presente tradução inglesa é nova, da autoria de James Strachey.
O Dr. Oskar Pfister, pastor religioso e educador de Zurique, autor da obra da qual este trabalho constitui introdução, foi por trinta anos amigo íntimo de Freud e inabalável partidário de suas teorias. Foi ele um dos primeiríssimos leigos a praticar a psicanálise e a parte posterior da introdução de Freud é talvez o seu primeiro apelo publicado em favor do reconhecimento dos analistas não médicos. Ele desenvolveu seus argumentos com muito maior amplitude, cerca de vinte anos mais tarde, em The Question of Lay Analysis (1926e).
A data ao final da introdução (que aqui aparece por acordo com os Srs. Routledge e Kegan Paul) é omitida nas reimpressões alemãs.
INTRODUÇÃO A THE PSYCHO-ANALYTIC METHOD, DE PFISTER
A psicanálise teve sua origem em terreno médico, como um procedimento terapêutico para o tratamento de certas doenças nervosas que foram denominadas de ‘funcionais’ e consideradas, com crescente certeza, como conseqüências de distúrbios na vida emocional. Ela alcança seu fim - de remover as manifestações destes distúrbios, os sintomas - ao presumir que eles não são o único e possível resultado final de processos psíquicos específicos. Revela, portanto, a história do desenvolvimento desses sintomas na memória do paciente, revivifica os processos que os fundamentam e então os conduz, sob a orientação do médico, a um escoadouro mais favorável. A psicanálise estabeleceu para si os mesmos objetivos terapêuticos que o tratamento pelo hipnotismo, que foi introduzido por Liébeault e Bernheim e após demoradas e severas lutas alcançou lugar na técnica dos neuro-especialistas. Mas ela vai muito mais fundo na estrutura do mecanismo da mente e procura ocasionar resultados duradouros e modificações viáveis em seus assuntos.
Em sua época, o tratamento hipnótico por sugestão muito cedo ultrapassou a esfera da aplicação médica e pôs-se ao serviço da educação de jovens. Se devemos acreditar nos relatórios, ele mostrou ser um meio eficiente para pôr fim a defeitos pueris, hábitos físicos inconvenientes e traços de caráter doutra maneira irredutíveis. Ninguém nessa época deixou de concordar ou surpreendeu-se com a ampliação de seus empregos, que, incidentalmente, só se tornaram plenamente compreensíveis mediante as pesquisas da psicanálise. Pois sabemos hoje que os sintomas patológicos amiúde nada mais são que substitutos de inclinações más (isto é, inúteis) e que os determinantes desses sintomas são estabelecidos nos anos de infância e juventude - durante o mesmo período em que os seres humanos são objeto da educação - quer as próprias doenças surjam já na juventude quer somente em época posterior da vida.
A educação e a terapêutica acham-se em relação atribuível, uma com a outra. A educação procura garantir que algumas das disposições [inatas] da criança não causem qualquer prejuízo ao indivíduo ou à sociedade. A terapêutica entra em ação se essas mesmas disposições já conduziram ao resultado não desejado dos sintomas patológicos. O desfecho alternativo - das disposições inúteis da criança, conduzindo, não a substitutos sob a forma de sintomas, mas a perversões diretas de caráter - é quase inacessível à terapêutica e, geralmente, fora da influência do educador. A educação constitui uma profilaxia, que se destina a prevenir ambos os resultados - tanto a neurose quanto a perversão; a psicoterapia procura desfazer o menos estável dos dois resultados a instituir uma espécie de pós-educação.
Em vista desta situação, surge imediatamente a questão de saber se a psicanálise não deveria ser utilizada para fins educativos, tal como a sugestão hipnótica o foi no passado. As vantagens seriam óbvias. O educador, por um lado, estaria preparado, por seu conhecimento das disposições humanas gerais da infância, para julgar quais dessas disposições ameaçam conduzir a um desfecho indesejável; e, se a psicanálise pode influenciar o curso tomado por tais desenvolvimentos, poderia aplicá-la antes que os sinais de um desenvolvimento desfavorável se estabeleçam. Assim, com o auxílio da análise, ele poderia ter uma influência profilática na criança, enquanto esta ainda é sadia. Por outro lado, poderia detectar as primeiras indicações de um desenvolvimento, na direção da neurose e resguardar a criança contra o seu desenvolvimento ulterior, numa época em que, por diversas razões, uma criança nunca é levada ao médico. Não se pode deixar de pensar que uma atividade psicanalítica como esta por parte do educador - e do assistente pastoral em posição semelhante, nos países protestantes - inevitavelmente seria de inestimável valor e com freqüência poderia tornar desnecessária a intervenção do médico.
A única questão é saber se a prática da psicanálise pode não ter como pré-requisito um treinamento médico, do qual o educador e o assistente pastoral devem permanecer excluídos, ou se pode haver outras considerações que se oponham à sugestão de que a técnica da psicanálise não seja confiada a outra mão que não a de um médico. Confesso que não posso encontrar fundamento para reservas desse tipo. A prática da psicanálise exige muito menos treinamento médico que instrução psicológica e concepção humana livre. A maioria dos médicos não se acha preparada para exercer a psicanálise e fracassou completamente em apreender o valor desse procedimento terapêutico. O educador e o assistente pastoral estão sujeitos, pelos requisitos de sua profissão, a exercer a mesma consideração, cuidado e limitação que são geralmente praticados pelo médico, e, à parte isso, sua associação com jovens talvez os torne mais bem qualificados para compreender a vida mental desses jovens. Em ambos os casos, porém, a única garantia da aplicação inócua do procedimento analítico tem de depender da personalidade do analista.
Onde um caso margina a anormalidade mental, o educador analítico estará obrigado a familiarizar-se com o conhecimento psiquiátrico mais necessário e, além disso, a consultar um médico quando o diagnóstico e a prognose do distúrbio parecem duvidosos. Em muitos casos só será possível alcançar sucesso se houver colaboração entre o educador e o médico.
Sob determinado aspecto isolado, a responsabilidade de um educador pode talvez exceder a de um médico. Este tem como regra lidar com estruturas psíquicas que já se tornaram rígidas e encontrará na individualidade estabelecida do paciente um limite ao seu próprio êxito, mas, ao mesmo tempo, uma garantia da capacidade do paciente de resistir sozinho. O educador, contudo, trabalha com um material que é plástico e aberto a toda impressão, e tem de observar perante si mesmo a obrigação de não moldar a jovem mente de acordo com suas próprias idéias pessoais, mas, antes, segundo as disposições e possibilidades do educando.
Esperemos que a aplicação da psicanálise a serviço da educação rapidamente realizará as esperanças que educadores e médicos podem corretamente ligar a ela. Um livro como este de Pfister, que procura familiarizar os educadores com análise, poderá então contar com a gratidão das gerações posteriores.
VIENA, fevereiro de 1913.
PREFÁCIO A SCATALOGIC RITES OF ALL NATIONS, DE BOURKE (1913)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1913 Em J. G. Bourke, Der Unrat in Sitte, Brauch, Glauben und Gewohnheitsrecht der Völker, traduzido para o alemão por F. S. Krauss e H. Ihm, Leipzig, Ethnologischer Verlag.
1928 G. S., 11, 249-51.
1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 242-5.
1946 G. W., 10, 453-5.
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
Preface to Bourke’s Scatalogic [sic] Rites of All Nations.
1934 Em J. G. Bourke, Scatalogic Rites of All Nations (Nova Edição), vii-ix, Nova Iorque, American Anthropological Society.
1950 C. P., 5, 88-91. (Sob o título ‘The Excretory Functions in Psycho-Analysis and Folklore’) (Trad. de J. Strachey.)
A presente tradução inglesa é a publicada em 1950, ligeiramente revista.
O trabalho da autoria do Capitão John Gregory Bourke (Terceira Cavalaria, E. U. A.), a cuja tradução Freud contribuiu com este prefácio, foi originalmente publicado em 1891 (Washington: Lowdermilk), com as palavras ‘Não é para Leitura Geral’ na página de rosto. A atenção de Freud foi atraída para o livro (sem dúvida pelo Dr. Ernest Jones) no começo de 1912 e parece provável que a tradução alemã tenha sido feita por sua recomendação. Ela apareceu como um dos volumes suplementares lançados anualmente pela revista Anthropophyteia, que era editada por um dos tradutores, F. S. Krauss. Freud mostrara seu interesse na revista dois ou três anos antes, numa carta aberta ao seu editor (1910f). Grande parte do material citado no artigo de Freud e Oppenheim sobre ‘Os Sonhos no Folclore’ (1957a [1911], em [1], anteriores) derivou da Anthropophyteia e trata dos tópicos examinados neste prefácio.
PREFÁCIO A SCATALOGIC RITES OF ALL NATIONS, DE BOURKE
Enquanto vivia em Paris, em 1885, como aluno de Charcot, o que principalmente me atraía, à parte as próprias conferências do grande homem, eram as demonstrações e preleções dadas por Brouardel. Ele nos costumava mostrar, de material post-mortem no necrotério, quanto havia que merecia ser conhecido por médicos, mas de que a ciência preferia não fazer caso. Certa ocasião, ele estava discutindo as indicações que permitiam imaginar a categoria social, o caráter e a origem de um corpo não identificado, e ouvi-o dizer: ‘Les genoux sales sont le signe d’une file honnête‘. Utilizava os joelhos sujos de uma moça como prova de sua virtude!
A lição de que a limpeza corporal é muito mais prontamente associada ao vício que à virtude amiúde me ocorreu posteriormente, quando o trabalho psicanalítico me familiarizou com a maneira pela qual os homens civilizados lidam hoje com o problema de sua natureza física. Ficam claramente embaraçados com qualquer coisa que os faça lembrar demasiadamente sua origem animal. Tentam emular os ‘anjos mais aperfeiçoados’ da última cena de Fausto, que se queixam:
Uns bleibt ein Erdenrest
zu tragen peinlich,
und wär’er von Asbest,
es ist nicht reinlich.
Entretanto, desde que devem necessariamente permanecer muito afastados de tal perfeição, os homens decidiram fugir ao dilema, negando, tanto quanto possível, a própria existência deste inconveniente ‘resíduo da Terra’, ocultando-o mutuamente e negando-lhe a atenção e o cuidado que poderia reivindicar como componente integrante de seu ser essencial. O caminho mais sábio indubitavelmente teria sido admitir sua existência e dignificá-lo tanto quanto sua natureza permitisse.
Está longe de ser matéria simples examinar ou descrever as conseqüências envolvidas nesta maneira de tratar o ‘penoso resíduo da Terra’, do que as funções sexuais e excretórias podem ser consideradas o núcleo. Bastará mencionar uma só destas conseqüências, aquela em que nos achamos mais interessados aqui: o fato de a ciência ser proibida de lidar com estes aspectos proscritos da vida humana, de maneira que quem quer que estude tais coisas é encarado como pouco menos ‘impróprio’ do que alguém que realmente faz coisa impróprias.
Não obstante, a psicanálise e o folclore não se deixaram impedir de transgredir essas proibições e, em resultado, puderam ensinar-nos todo tipo de coisas que são indispensáveis a uma compreensão da natureza humana. Se nos limitarmos aqui ao que foi aprendido sobre as funções excretórias, pode-se dizer que o principal achado da pesquisa psicanalítica foi o fato de que o bebê humano é obrigado a recapitular, durante a primeira parte de seu desenvolvimento, as mudanças na atitude da raça humana para com matérias excrementícias que provavelmente tiveram seu início quando o homo sapiens pela primeira vez ergueu-se da Mãe Terra. Nos primeiros anos da infância, não existe ainda nenhum resíduo de vergonha sobre as funções excretórias ou de nojo pelas excreções. As crianças pequenas mostram grande interesse nestas, tal como em outras de suas secreções corporais; gostam de ocupar-se com elas e podem derivar muitos tipos de prazer deste procedimento. As excreções, encaradas como partes do próprio corpo da criança e produtos de seu próprio organismo, têm uma cota na estima - a estima narcísica, como deveríamos chamá-la - com que encara tudo que se relaciona ao seu eu (self). As crianças, em verdade, orgulham-se de suas próprias excreções e fazem uso delas para ajudar a fazer valer seus direitos contra os adultos. Sob a influência da criação, os instintos e inclinações coprófilas da criança sucumbem gradativamente à repressão; ela aprende a mantê-los secretos, a envergonhar-se deles e a sentir nojo pelos seus objetos. Estritamente falando, contudo, o nojo nunca chega ao ponto de aplicar-se às próprias excreções da criança, mas contenta-se em repudiá-los quando são produtos de outras pessoas. O interesse que até aqui se ligara ao excremento é transferido para outros objetos - por exemplo, das fezes para o dinheiro, que, naturalmente, demora a adquirir significação para as crianças. Importantes constituintes da formação do caráter se desenvolvem ou fortalecem a partir da repressão das inclinações coprófilas.
A psicanálise mostra ainda que, para começar, os intintos excrementais e sexuais não são distintos uns dos outros, nas crianças. O divórcio entre eles só ocorre mais tarde e permanece incompleto. Sua afinidade original, estabelecida pela anatomia do corpo humano, ainda se faz sentir de muitas maneiras em adultos normais. Finalmente, não se deve esquecer que não se pode esperar que estes desenvolvimentos produzam resultados mais perfeitos que quaisquer outros. Parte das antigas preferências persiste, parte das inclinações coprófilas continua a operar na vida posterior e se expressa nas neuroses, perversões e maus hábitos dos adultos.
O folclore adotou um método inteiramente diferente de pesquisa e, mesmo assim, chegou aos mesmos resultados que a psicanálise. Ele nos mostra quão incompletamente a representação das inclinações coprófilas foi efetuada entre diversos povos, em várias épocas, e quão de perto, em outros níveis culturais, o tratamento das substâncias excretórias se aproxima do usado pelas crianças. Demonstra também a natureza persistente e em verdade inerradicável dos interesses coprófilos, apresentando a nosso olhar espantado a multiplicidade de aplicações - no ritual mágico, nos costumes tribais, nas observâncias dos cultos religiosos e na arte de curar - mediante as quais a velha estima pelas excreções humanas encontrou nova expressão. Também a vinculação com a vida sexual parece ser integralmente preservada.
Esta expansão de nosso conhecimento certamente não envolve risco para nossa moralidade. A parte principal do que se conhece sobre o papel desempenhado pelas excreções na vida humana foi reunida em Ritos Escatológicos de Todas as Nações, de J. G. Bourke. Torná-la acessível aos leitores alemães é, portanto, não apenas um empreendimento corajoso, mas também meritório.
BREVES ESCRITOS (1911-1913)
A SIGNIFICAÇÃO DAS SEQÜÊNCIAS DE VOGAIS (1911)
Indubitavelmente, objeções foram amiúde levantadas à asserção feita por Stekel de que, em sonhos e associações, nomes que têm de ser encobertos parecem ser substituídos por outros que se lhes assemelham apenas por conterem a mesma seqüência de vogais. Uma analogia notável, contudo, é proporcionada pela história da religião. Entre os antigos hebreus, o nome de Deus era tabu; não podia ser falado em voz alta, nem registrado por escrito. (Isto está longe de ser um exemplo isolado da significação especial dos nomes nas civilizações arcaicas.) Esta proibição foi tão implicitamente obedecida que, até o dia de hoje, a vocalização das quatro consoantes do nome de Deus [Y H V H] permanece desconhecida. Ele era, contudo, pronunciado ‘Jehovah’, sendo suprido pelas vogais da palavra ‘Adonai’ (‘Senhor’), contra a qual não havia tal proibição. (Reinach, 1905-12, 1 1.)
’GRANDE É DIANA DOS EFÉSIOS’(1911)
A antiga cidade grega de Éfeso na Ásia Menor, pela exploração de cujas ruínas, incidentalmente, tem-se de agradecer à nossa arqueologia austríaca, era especialmente célebre na antigüidade por seu esplêndido templo, dedicado a Artêmis (Diana). Os invasores jônicos - talvez no século VII antes de Cristo - conquistaram a cidade, que por muito tempo fora habitada por povos de raça asiática, e encontraram nela o culto de uma antiga deusa-mãe que possivelmente portava o nome de Oupis, e identificaram-na com Artêmis, deidade de sua terra natal. A prova das escavações mostra que, no decurso dos séculos, diversos templos foram erguidos no mesmo local em honra da deusa. Foi o quarto destes templos que foi destruído por um incêndio iniciado pelo louco Heróstrato, no ano de 356, durante a noite em que Alexandre, o Grande, nasceu. Ele foi reconstruído, mais magnífico que nunca. Com a afluência de sacerdotes, mágicos e peregrinos, e com suas lojas em que amuletos, lembranças e oferendas eram vendidas, a metrópole comercial de Éfeso poderia ser comparada à moderna Lourdes.
Por volta de 54 A. D., o apóstolo Paulo passou diversos anos em Éfeso. Pregou, realizou milagres e encontrou muitos seguidores entre o povo. Foi perseguido e acusado pelos judeus; separou-se deles e fundou uma comunidade cristã independente. Em conseqüência da disseminação de sua doutrina, houve uma queda no comércio dos ourives, que costumavam fazer lembranças do lugar sagrado - figurinhas de Artêmis e modelos do templo - para os fiéis e peregrinos que chegavam de todo o mundo. Paulo era um judeu estrito demais para deixar a antiga deidade sobreviver sob outro nome; rebatizou-a, como os conquistadores jônicos haviam feito com a deusa Oupis. Foi assim que os piedosos artesãos e artistas da cidade tornaram-se apreensivos quanto a sua deusa, bem como quanto a seus ganhos. Revoltaram-se e, com gritos infindavelmente repetidos, de ‘Grande é Diana dos Efésios!’, afluíram pela rua principal, chamada ‘Arcádia’, até o teatro, onde seu líder, Demétrio, pronunciou discurso incendiário contra os judeus e contra Paulo. As autoridades tiveram dificuldade em reprimir o tumulto, o que conseguiram pela garantia de que a majestade da deusa era inatingível e achava-se fora do alcance de qualquer ataque.
A igreja fundada por Paulo em Éfeso não lhe permaneceu fiel muito tempo. Caiu sob a influência de um homem chamado João, cuja personalidade apresentou aos críticos alguns difíceis problemas. Ele pode ter sido o autor do Apocalipse, que abunda em invectivas contra o apóstolo Paulo. A tradição o identifica com o apóstolo João, a quem o quarto evangelho é atribuído. Segundo este evangelho, quando Jesus achava-se na cruz, exclamou para seu discípulo favorito, apontando para Maria; ‘Eis tua mãe!’ E, a partir daquele momento, João dedicou-se a Maria. Desse modo, quando João foi para Éfeso, Maria o acompanhou, e, por conseguinte, ao lado da igreja do apóstolo de Éfeso, foi construída a primeira basílica em honra da nova deusa-mãe dos cristãos. Sua existência é confirmada a partir do século IV. Agora, mais uma vez, a cidade tinha sua grande deusa e, fora o nome, pouca modificação houve. Também os ourives recuperaram o trabalho de fazer modelos do templo e imagens da deusa para os novos peregrinos. A função de Artêmis, contudo, expressa pelo atributo de , foi transmitida a um Santo Artemidoro, que assumiu a proteção das mulheres em trabalho de parto.
Depois veio a conquista pelo Islã, e finalmente, sua ruína e abandono, devido ao rio sobre o qual ficava haver-se tornado entulhado de areia. Mas, mesmo então, a grande deusa de Éfeso não abandonou suas reivindicações. Em nossos próprios dias, ela apareceu como uma virgem santa a uma piedosa menina alemã, Katharina Emmerich, em Dülmen. Descreveu a esta sua viagem a Éfeso, os móveis da casa em que lá vivera e na qual morrera, o formato de seu leito, e assim por diante. E tanto a casa quanto o leito foram de fato encontrados, exatamente como a virgem os descrevera, e são mais uma vez a meta das peregrinações dos fiéis.
PREFÁCIO A OS DISTÚRBIOS PSÍQUICOS DA POTÊNCIA MASCULINA,
DE MAXIM STEINER (1913)
O autor desta pequena monografia, que trata da patologia e tratamento da impotência psíquica em indivíduos do sexo masculino, faz parte do pequeno grupo de médicos que cedo reconheceram a importância da psicanálise para o seu ramo especial da medicina e nunca deixaram de aperfeiçoar-se em sua teoria e técnica. Estamos cientes de que apenas uma pequena parte dos males neuróticos - que agora viemos a conhecer como resultado de distúrbios da função sexual - é tratada na própria neuropatologia. O maior número delas encontra lugar entre os distúrbios do órgão específico que é vítima de uma perturbação neurótica. É, portanto, conveniente e próprio que o tratamento desses sintomas ou síndromes seja também assunto do especialista, que, somente ele, é capaz de efetuar um diagnóstico diferencial entre uma doença orgânica e uma neurótica, que pode fixar o limite, no caso das formas mistas, entre seus elementos orgânicos e neuróticos, e que em geral nos pode dar informações sobre a maneira pela qual os dois fatores da doença reforçam-se mutuamente. Mas se as moléstias orgânicas ‘nervosas’ não devem ser negligenciadas, como meros apêndices dos distúrbios materiais do mesmo órgão - negligência esta que, por sua freqüência e importância prática, estão longe de merecer -, o especialista, quer esteja interessado no estômago, no coração ou no sistema urogenital, deve, além de seu saber médico geral e de seus conhecimentos especializados, ser também capaz de fazer uso, para seu próprio campo de trabalho, das linhas de abordagem, descobertas e técnicas do especialista de nervos.
Um grande progresso terapêutico será feito quando os especialistas não mais dispensarem um paciente que sofra de um mal nervoso com um pronunciamento como ‘Você não tem nada; são só nervos’, ou com o conselho muito melhor: ‘Vá a um especialista de nervos; ele lhe ordenará um tipo leve de tratamento de água fria’. Indubitavelmente, também exigiremos do especialista em qualquer órgão que seja capaz de compreender e tratar distúrbios nervosos em seu campo, em vez de esperar que o especialista de nervos seja treinado para ser um especialista universal em todos os órgãos em que as neuroses produzem sintomas, E, por conseguinte, pode-se prever que somente as neuroses com sintomas principalmente psíquicos permanecerão na esfera do especialista em nervos.
Podemos esperar, portanto, que não esteja longe o dia em que se reconhecerá em geral que nenhuma espécie de perturbação nervosa pode ser compreendida e tratada sem o auxílio da linha de abordagem e, freqüentemente, da técnica da psicanálise. Uma asserção assim pode soar hoje como demonstração de exagero presunçoso, mas aventuro-me a profetizar que está destinada a tornar-se um lugar comum. Todavia, será sempre creditado ao autor da presente obra não ter esperado que isto acontecesse para admitir a psicanálise como tratamento dos males nervosos dentro de seu próprio e especializado ramo da medicina.
VIENA, março de 1913.