Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade
TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE (1905)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DREI ABHANDLUNGEN ZUR SEXUAL THEORIE
(a)EDIÇÕES ALEMÃS:
1905 Leipzig e Viena: Deuticke, ii + 83 págs.
1910 2ª Ed., Leipzig e Viena: Deuticke, iii + 87 págs. (Com
acréscimos)
1915 3ª Ed., Leipzig e Viena: Deuticke, vi + 101 págs. (Com
acréscimos)
1920 4ª Ed., Leipzig e Viena: Deuticke: viii + l04 págs.
(Com acréscimos)
1922 5ª Ed., Leipzig e Viena: Deuticke: viii + l04 págs.
(Sem alterações)
1924 G.S., 5, 3-119 (Com acréscimos)
1925 6ª Ed., Leipzig e Viena: Deuticke, 120 págs. (= G S. 5)
1942 G.W., 5, 29-145 (Sem alterações)
1972 S.A., 5, pp. 37-145.
“Vorwort
zur vierten Auflage”
1920 Int.
Z. Psychoanal., 6, p. 247.
1920 Leipzig e Viena: Deuticke, pp. vii-viii.
1922 Leipzig e Viena: Deuticke, pp. vii-viii.
1924 G.S., 5, pág. 5.
1925 Leipzig e Viena: Deuticke, p. 5.
1942 G.W., 5, pp. 31-2.
1972 S.A., 5, pp. 45-6.
(b) TRADUÇÕES EM INGLÊS:
Three
Contributions to the Sexual Theory
1910 Nova
York: Journal of Nerv. and Ment. Dis. Publ. Co. (Série de Monografias
nº 7), x + 91 págs. (Trad. de A.A. Brill; Introd. de J.J.
Putnam.)
Three
Contributions to the Theory of Sexc
1916 2ª Ed. da de 1910, acima, xi + 117 págs. (Com acréscimos)
1918 3ª
Ed., xii + 117 págs.
1930 4ª
Ed., xiv + l04 págs. (Revisada)
1938 Basic Writings, 553-629 (Reedição da ed. de 1930,
acima.)
Three
Essays on the Theory of Sexuality
1949
Londres: Imago Publishing Co., 133 págs. (Trad. de James Strachey.)
A presente tradução [inglesa] é uma versão corrigida e
ampliada da que se publicou em
1949.
Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, juntamente
com A Interpretação dos
Sonhos, figuram sem dúvida como as contribuições mais
significativas e originais de Freud para o
conhecimento humano. Não obstante, na forma em que costumamos ler esses ensaios, é difícil
avaliar a natureza exata de seu impacto quando da primeira
publicação. É que, no decorrer de
edições sucessivas num período de vinte anos, eles foram submetidos por seu autor a mais
modificações e acréscimos do que qualquer outro de seus escritos, salvo, talvez, pela própria
Interpretação dos Sonhos. Esta edição difere num importante
aspecto de todas as que a
antecederam, seja em alemão ou em inglês. Embora sebaseie na
sexta edição alemã de 1925,
última a ser publicada durante a vida de Freud, elaindica,
com as respectivas datas, todas as
alterações substanciais introduzidas na obra desde sua primeira edição. Em todos os pontos em
que se suprimiu ou modificou grandemente o materialnas
edições posteriores, o trecho omitido ou
a versão anterior são fornecidos em notas de rodapé. Isso
permitirá ao leitor ter uma noção mais
clara de como eram estes ensaios em sua forma original.
Provavelmente causará surpresa, por exemplo, saber que a íntegra das seções sobre as
teorias sexuais infantis e sobre a organização pré-genital
da libido (ambas no segundo ensaio) só
foi acrescentada em 1915, dez anos após a primeira edição do livro. Esse mesmo ano trouxe
também o acréscimo da seção sobre a teoria da libido, no
terceiro ensaio. Menos surpreendente é
que os avanços da bioquímica tenham tornado necessário (em
1920) reescrever o parágrafo sobre
as bases químicas da sexualidade. Nesse ponto, a rigor, a
surpresa funciona mais no sentido
inverso, pois a versão original desse parágrafo, aqui
impressa numa nota, mostra a notável
antevisão de Freud nesse aspecto e revela quão pouco se fez
necessário alterar suas concepções
(ver em [1]).
Entretanto, a despeito dos acréscimos consideráveisfeitos ao
livro após sua publicação
original, sua essência já estava presente em 1905, sendo mesmo possível rastrear-lhe as origens
até datas ainda mais remotas. A história completa do
interesse de Freud pelo assunto pode agora,
graças à publicação da correspondência com Fliess (1950a),
ser pormenorizadamente
acompanhada, mas basta-nos aqui indicar seus contornos
gerais. As observações clínicas da
importância dos fatores sexuais na causação da neurose de
angústia e da neurastenia,
inicialmente, e das psiconeuroses, mais tarde, foram o que
levou Freud pela primeira vez a uma
investigação geral do tema da sexualidade. Suas primeiras
abordagens, durante o início da década
de 1890, partiram dos pontos de vista da fisiologiae da
química. Por exemplo, encontra-se uma
hipótese neurofisiológica sobre os processos de excitação e
descarga sexuais na Seção III de seu
primeiro artigo sobre a neurose de angústia (1895b); um
notável diagrama ilustrando essa hipótese
aparece no Rascunho G das cartas a Fliess, aproximadamente
na mesma época, mas já fora
mencionado um ano antes (no Rascunho D). A insistência de
Freud nas bases químicas da
sexualidade remonta pelo menos a essa época (mas hátambém
uma alusão ao tema no
Rascunho D, provavelmente datado da primavera de 1894).
Nesse caso, Freud acreditava dever
muito às sugestões de Fliess, como fica demonstrado, entre
outros pontos, em suas associações
ao famoso sonho da injeção de Irma, no verão de 1895 (A
Interpretação dos Sonhos, Capítulo II).
Era também a Fliess que devia algumas sugestões sobre o tema
correlato da bissexualidade (ver
em [1]), que Freud mencionou numa carta de 6 de dezembro de
1896 (Carta 52) e que, mais tarde,
veio a considerar como um “fator decisivo” (ver em [1]),
embora sua opinião final sobre a atuação
desse fator o tenha colocado em desacordo com Fliess. É
nessa mesma carta de fins de 1896
(Freud, l950a, Carta 52) que encontramos a primeira
referência às zonas erógenas (passíveis de
estimulação na infância, porém mais tarde sufocadas) e a
seus vínculos com as perversões. No
início do mesmo ano (Rascunho K, de 1º de janeiro de 1896) -
e aqui podemos ver indícios de uma
abordagem mais psicológica -, surge também uma discussão
sobre as forças recalcadoras, o asco,
a vergonha e a moral.
Contudo, embora tantos elementos da teoria de Freudsobre a
sexualidade já estivessem
em sua mente por volta de 1896, sua pedra angular ainda
estava por ser descoberta. Desde os
primórdios tinha havido uma suspeita de que os fatores
casuais da histeria remontavam à infância;
há uma alusão a esse fato nos parágrafos iniciais da
“Comunicação Preliminar” de Breuer e Freud,
de 1893. Por volta de 1895 (ver, por exemplo, a Parte II do
“Projeto”, impressa como um apêndice
à correspondência com Fliess), Freud dispunha de uma
explicação completa da histeria, com base
nos efeitos traumáticos da sedução sexual na primeira
infância. Durante todos esses anos
anteriores a 1897, porém, a sexualidade infantil era encarada
como nada além de um fator latente,
passível de vir à luz, com resultados desastrosos, somente pela intervenção de um adulto. É
verdade que se poderia supor uma aparente exceção aisso a
partir do contraste traçado por Freud
entre a causação da histeria e a da neurose obsessiva: a
primeira, afirmava ele, remontava a
experiências sexuais
passivasna infância, ao passo que a segunda se originaria em
experiências
ativas. Mas Freud deixa muito claro, em seu segundo ensaio
sobre “As Neuropsicoses de Defesa”
(1896b), onde essa distinção é traçada, que as experiências
ativas subjacentes à neurose
obsessiva são invariavelmente precedidaspor experiências passivas, donde,
mais uma vez, a
mobilização da sexualidade infantil se deveria, em última análise, à interferência externa. Foi
somente no verao de 1897 que Freud se viu forçado aabandonar
sua teoria da sedução. Anunciou
esse acontecimento em sua carta a Fliess de 21 de setembro
(Carta 69), e sua descoberta quase
simultânea do complexo de Édipo, feita em sua auto-análise
(Cartas 70 e 71, de 3 e 15 de
outubro), levou inevitavelmente ao reconhecimento de que as
moções sexuais atuavam
normalmente nas crianças de mais tenra idade, sem nenhuma
necessidade de estimulação
externa. Com essa descoberta, a teoria sexual de Freud
estava realmente completa.
Levou alguns anos, porém, para que ele acatasse porinteiro
sua própria descoberta. Num
trecho do ensaio sobre “A Sexualidade na Etiologia das Neuroses” (1898a), por exemplo, ele se
pronuncia ora a favor, ora contra ela. De um lado, afirma
que as crianças são “capazes de todas as
funções sexuais psíquicas e de muitas das somáticas” e que é
errôneo supor que sua vida sexual
só comece na puberdade. De outro lado, entretanto, declara que “a organização e a evolução da
espécie humana buscam evitar qualquer atividade sexual
considerável na infância”, que as forças
motoras sexuais dos seres humanos devem ser armazenadas e
somente liberadas na puberdade,
e que isso explica por que as experiências sexuais infantis estão fadadas a ser patogênicas. O
importante, prossegue ele, são os efeitos posterioresproduzidos por tais
experiências na
maturidade, graças ao desenvolvimento do aparelho sexual
somático e psíquico ocorrido no
entretempo. Até mesmo na primeira edição de A Interpretação dos Sonhos(1900a) vê-se um
trecho curioso, ao final do Capítulo III (ver em [1]), onde
Freud comenta que temos “em alta conta a
felicidade da infância, por ser ela ainda inocente de desejos sexuais”. (Uma nota corretiva foi
acrescentada a esse trecho em 1911, por sugestão deJung,
segundo afirma Ernest Jones.) Isso
foi, sem dúvida, um remanescente de um rascunho inicial do
livro, pois em outros trechos (por
exemplo, na discussão do complexo de Édipo no Capítulo V)
ele escreve, de maneira
perfeitamente inequívoca, sobre a existência de desejos
sexuais mesmo nas crianças normais. E é
evidente que, ao redigir seu caso clínico de “Dora”(no
início de 1901), já estavam firmemente
estabelecidas as linhas principais de sua teoria
dasexualidade. (Ver em [1].)
Ainda assim, porém, Freud não tinha pressa em publicar seus
resultados. Concluída e
prestes a ser lançada
A Interpretação dos Sonhos, em 11 de outubro de 1899 (Carta 121),
escreveu ele a Fliess: “É possível que uma teoria da
sexualidade seja a sucessora imediata do livro
dos sonhos.” E, decorridos três meses, em 26 de janeiro de
1900 (Carta 128): “Estou colhendo
material para a teoria sexual e esperando que alguma
centelha inflame o material já acumulado.”
Mas a centelha demoraria muito a surgir. Salvo pelopequeno
ensaio Sobre os Sonhose pela
Psicopatologia da Vida Cotidiana, ambos lançados antes do
outono de 1901, Freud nada publicou
de importante nos cinco anos que se seguiram.
E então, repentinamente, em 1905, lançou três
obrasfundamentais: seu livro sobre O
Chiste, os Três
Ensaiose o caso clínico de “Dora”. É certo que este último fora escrito, em sua
maior parte, quatro anos antes (ver a partir de [1]), sendo
publicado em outubro e novembro de
1905. As outras duas obras foram lançadas quase
simultaneamente alguns meses antes, embora
se ignorem as datas exatas (ver uma discussão mais extensa a
esse respeito no Prefácio do Editor
ao livro sobre o chiste (1905c), em [1]).
Nas edições alemãs, as seções só aparecem numeradasno
primeiro ensaio, e mesmo
neste, a rigor, antes de 1924, só eram numeradas até a
metade do texto. Para facilitar as
referências, estendemos aqui a numeração das seçõesao
segundo e terceiro ensaios.
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
O autor, que não se deixa enganar sobre as lacunas e obscuridades deste pequeno
escrito, ainda assim resistiu à tentação de incorporar-lhe
os resultados das investigações dos
últimos cinco anos, por não querer destruir seu caráter de
documento unitário. Por isso reproduz o
texto original com alterações míninas e se contentaem
acrescentar algumas notas de rodapé, que
se distinguem das antigas por levarem um asterisco.Ademais,
é seu fervoroso desejo que este
livro envelheça rapidamente, obtida uma aceitação universal
para o que outrora trouxe de novo e
substituídas as imperfeições que contém por teses mais
corretas.
Viena, dezembro de 1909.
PREFÁCIO À TERCEIRA EDIÇÃO
Depois de observar por um decênio a recepção e os efeitos
deste livro, cabe-me dotar esta
terceira edição de algumas observações prévias destinadas a
corrigir mal-entendidos e
expectativas irrealizáveis em relação a ele. É preciso
frisar, acima de tudo, que a exposição aqui
encontrada parte inteiramente da experiência
médicacotidiana, à qual os resultados da
investigação psicanalítica pretendem trazer aprofundamento e
relevância científica. Os Tres
Ensaios sobre a Teoria da Sexualidadenão podem conter nada
além daquilo que a psicanálise
precisa supor ou permite confirmar. Exclui-se, portanto, a
possibilidade de que algum dia se
ampliem a ponto de constituir uma “teoria sexual”, e é compreensível que não tomem posição
acerca de muitos problemas importantes da vida sexual. Mas
nem por isso se deve acreditar que
tais capítulos omitidos desse grande tema sejam
desconhecidos do autor, ou que este os tenha
desprezado por considerá-los secundários.
A subordinação deste escrito às experiências psicanalíticas,
que levaram a sua redação,
mostra-se ainda não apenas na escolha do material, como
também em sua ordenação. Ao longo
de todo ele observa-se uma certa seqüência de instâncias,
dá-se prioridade aos fatores acidentais,
deixam-se em segundo plano os fatores disposicionais, e o
desenvolvimento ontogenético é
considerado antes do filogenético. É que o acidental
desempenha na análise o papel
preponderante, sendo esta dominada por ele quase por
completo; o disposicional só vem à luz por
trás dele, como algo despertado pelo vivenciar, mascuja
apreciação ultrapassa amplamente o
campo de trabalho da psicanálise.
Uma proporção semelhante domina a relação entre a ontogênese
e a filogênese. A
ontogênese pode ser vista como uma repetição da filogênese,
na medida em que esta não seja
modificada por uma vivência mais recente. A predisposição
filogenética faz-se notar por trás do
processo ontogenético. No fundo, porém, a predisposição é
justamente o precipitado de uma
vivência prévia da espécie, à qual se vem agregar
aexperiência mais nova do indivíduo como
soma dos fatores acidentais.
Junto a sua total dependência da investigação psicanalítica,
devo destacar, como
característica desse meu trabalho, sua deliberada
dependência da investigação biológica. Evitei
cuidadosamente introduzir expectativas científicas provenientes da biologia sexual geral, ou da
biologia das espécies animais em particular, no estudo da
função sexual do ser humano que nos é
possibilitado pela técnica da psicanálise. A rigor,meu
objetivo foi sondar o quanto se pode apurar
sobre a biologia da vida sexual humana com os
meiosacessíveis à investigação psicológica;
era-me lícito assinalar os pontos
de contato e concordância resultantes dessa investigação, mas não
havia por que me desconcertar com o fato de o método
psicanalítico, em muitos pontos
importantes, levar a opiniões e resultados consideravelmente
diversos dos de base meramente
biológica.
Introduzi nesta terceira edição um número abundantede
inserções, mas renunciei a
identificá-las, como na edição anterior, mediante algum
sinal particular. O trabalho científico em
nosso campo teve seu progresso lentificado nos últimos
tempos, mas era indispensável uma certa
complementação deste escrito caso se pretendesse mantê-lo em
contato com a literatura
psicanalítica mais recente.
Viena, outubro de 1914.
PREFÁCIO À QUARTA EDIÇÃO
Dissipadas as correntes da guerra, pode-se verificar com
satisfação que o interesse pela
psicanálise permanece ileso no mundo em geral, Mas nem todas as partes da doutrina tiveram o
mesmo destino. As colocações e constatações puramente
psicológicas da psicanálise sobre o
inconsciente, o recalcamento, o conflito que leva àdoença, o
lucro extraído da doença, os
mecanismos da formação de sintomas etc., gozam de crescente
reconhecimento e são
consideradas até mesmo por aqueles que em princípioas
contestam. Mas a parte da doutrina que
faz fronteira com a biologia, cujas bases são fornecidas
neste pequeno escrito, continua a
enfrentar um dissenso indiminuto, e as próprias pessoas que
por algum tempo se ocuparam
intensamente da psicanálise foram movidas a abandoná-la para
abraçar novas concepções,
destinadas a restringir mais uma vez o papel do fator sexual
na vida anímica normal e patológica.
Ainda assim, não posso decidir-me pela suposição deque essa
parte da doutrina
psicanalítica possa afastar-se muito mais que as outras da
realidade apurada. A memória e o
reexame constantemente reiterado dizem-me que ela brotou de
uma observação igualmente
esmerada e isenta de expectativas; ademais, o esclarecimento
dessa dissociação percebida no
reconhecimento público não apresenta nenhuma dificuldade. Em
primeiro lugar, os primórdios aqui
descritos da vida sexual humana só podem ser confirmados por
investigadores que tenham
paciência e habilidade técnica suficientes para reconduzir a
análise até os primeiros anos da
infância do paciente. É freqüente, ademais, não haver
possibilidade disso, porquanto a prática
médica exige que se despache com mais rapidez,
aparentemente, o caso patológico. Salvo pelos
médicos que exercem a psicanálise, entretanto, ninguém pode
ter acesso algum a esse campo,
nem qualquer possibilidade de formar por si um juízo que não
seja influenciado por suas próprias
aversões e preconceitos. Soubessem os homens aprender
através da observação direta das
crianças, estes três ensaios poderiam não ter sido escritos.
Mas convém lembrar ainda que parte do conteúdo deste escrito
- a saber, sua insistência
na importância da vida sexual para todas as realizações
humanas e a ampliação aqui ensaiada do
conceito de sexualidade - tem constituído, desde sempre, o
mais forte motivo para a resistência
que se opõe à psicanálise. No afã de encontrar tópicos
grandiloqüentes, chegou-se até a falar no
“pan-sexualismo” da psicanálise e a fazer a esta a absurda censura de que ela explicaria “tudo”
a
partir da sexualidade. Só é possível assombrar-se com isso
quando se esquece quão confuso e
distraído se pode ficar em decorrência dos fatores afetivos. Já faz um bom tempo que o filósofo
Arthur Schopenhauer mostrou aos homens em que medida seus
feitos e interesses são
determinados por aspirações sexuais - o sentido corriqueiro
da expressão -, e parece incrível que
todo um mundo de leitores tenha conseguido banir desua
mente, de maneira tão completa, uma
advertência tão impressionante! E quanto à “ampliação” do
conceito de sexualidade, que a análise
das crianças e dos chamados perversos tornou necessária,
todos aqueles que desde seu ponto de
vista superior olham desdenhosamente para a psicanálise
deveriam lembrar-se de quanto essa
sexualidade ampliada da psicanálise se aproxima do Erosdo divino Platão. (Cf. Nachmansohn,
1915.)
Viena, maio de 1920.
AS ABERRAÇÕES SEXUAIS
O fato da existência de necessidades sexuais no homem e no
animal expressa-se na
biologia pelo pressuposto de uma “pulsão sexual”. Segue-se
nisso a analogia com a pulsão de
nutrição: a fome. Falta à linguagem vulgar [no casoda pulsão
sexual] uma designação equivalente
à palavra “fome”; a ciência vale-se, para isso, de “libido”.
A opinião popular faz para si representações bem definidas
da natureza e das
características dessa pulsão sexual. Ela estaria ausente na
infância, far-se-ia sentir na época e em
conexão com o processo de maturação da puberdade, seria
exteriorizada nas manifestações de
atração irresistível que um sexo exerce sobre o outro, e seu
objetivo seria a união sexual, ou pelo
menos os atos que levassem nessa direção. Mas temosplena
razão para ver nesses dados uma
imagem muito infiel da realidade; olhando-os mais de perto,
constata-se que estão repletos de
erros, imprecisões e conclusões apressadas.
Introduzamos aqui dois termos: chamemos de objeto sexuala pessoa de quem provém a
atração sexual, e de alvo sexuala ação para a qual a pulsão
impele. Assim fazendo,a observação
cientificamente esquadrinhada mostrará um grande número de
desvios em ambos, o objeto sexual
e o alvo sexual, e a relação destes com a suposta norma
exige uma investigação minuciosa.
(1) DESVIOS COM RESPElTO AO OBJETO SEXUAL
A teoria popular sobre a pulsão sexual tem seu maisbelo
equivalente na fábula poética da
divisão do ser humano em duas metades - homem e mulher - que
aspiram a unir-se de novo no
amor. Por isso causa grande surpresa tomar conhecimento de
que há homens cujo objeto sexual
não é a mulher, mas o homem, e mulheres para quem não o
homem, e sim a mulher, representa o
objeto sexual. Diz-se dessas pessoas que são “de sexo
contrário”, ou melhor, “invertidas”, e
chama-se o fato de
inversão. O número de tais pessoas é bastante considerável,embora haja
dificuldades em apurá-lo com precisão.
(A) A INVERSÃO
COMPORTAMENTO DOS INVERTIDOS
As pessoas em questão comportam-se de maneira
muitodiversificada em vários aspectos.
(a)Podem ser invertidos
absolutos, ou seja, seu objeto sexual só pode ser do mesmo
sexo, enquanto o sexo oposto nunca é para eles objeto de
anseio sexual, mas antes os deixa frios
ou até lhes desperta aversão sexual. Quando se trata de
homens, essa aversão os incapacita de
praticarem o ato sexual normal, ou então não extraem dessa
prática nenhum gozo.
(b)Podem ser invertidos
anfígenos(hermafroditas sexuais), ou seja, seu objeto sexual
tanto pode pertencer ao mesmo sexo quanto ao outro;falta à
inversão, portanto, o caráter de
exclusividade.
(c)Podem ser invertidos
ocasionais, ou seja, em certas condições externas, dentre as
quais destacam-se a inacessibilidade do objeto sexual normal
e a imitação, elas podem tomar
como objeto sexual uma pessoa do mesmo sexo e encontrar
satisfação no ato sexual com ela.
Os invertidos mostram ainda um comportamento variado no
juízo que fazem da
peculiaridade de sua pulsão sexual. Alguns aceitam a inversão como algo natural, tal como os
normais aceitam a orientação de sua libido, e defendem
energicamente sua igualdade de direitos
com os normais. Outros, porém, rebelam-se contra o fato de sua inversão e a sentem como uma
compulsão patológica.
Outras variações concernem às relações temporais. Otraço da
inversão pode vir de longa
data no indivíduo, até onde sua memória consegue alcançar,
ou só se ter feito notar em
determinada época, antes ou depois da puberdade. Esse
caráter pode conservar-se por toda a
vida, ou ser temporariamente suspenso, ou ainda constituir
um episódio no caminho para o
desenvolvimento normal; e pode até exteriorizar-se pela primeira vez em época posterior da vida,
após um longo período de atividade sexual normal.
Observou-se também uma oscilação periódica
entre o objeto sexual normal e o invertido. Particularmente
interessantes são os casos em que a
libido se altera no sentido da inversão depois de se ter uma
experiência penosa com o objeto
sexual normal.
Em geral, essas diferentes séries de variações coexistem
independentemente umas das
outras. Em sua forma mais extrema, talvez se possa supor regularmente que a inversão existiu
desde época muito prematura e que a pessoa se senteem
consonância com sua peculiaridade.
Muitos autores se recusariam a reunir num só conjunto os
casos aqui enumerados e
prefeririam frisar as diferenças em vez das semelhanças
entre esses grupos, o que se prende a
sua maneira favorita de encarar a inversão. No entanto, por
mais legítimas que sejam essas
distinções, é impossível desconhecer que todos os graus
intermediários são abundantemente
encontrados, de modo que o estabelecimento de séries como
que se impõe por si só.
CONCEPÇÃO DA INVERSÃO
A primeira apreciação da inversão consistiu em concebê-la
como um sinal inato de
degeneração nervosa, e estava em consonância com o fato de os observadores médicos terem
deparado com ela pela primeira vez em doentes nervosos ou
pessoas que davam a impressão de
sê-lo. Essa caracterização contém dois elementos que devem
ser apreciados separadamente: o
caráter inato e a degeneração.
DEGENERAÇÃO
A degeneração está exposta às objeções que se levantam, em
geral, contra o uso
indiscriminado dessa palavra. Tornou-se costume imputar à
degeneração todos os tipos de
manifestação patológica que não sejam de origem diretamente
traumática ou infecciosa. A
classificação dos degenerados feita por Magnan faz com que nem mesmo a mais primorosa
conformação geral da função nervosa fique excluída da
aplicabilidade do conceito de degeneração.
Nessas circunstâncias, pode-se indagar que benefício e que
novo conteúdo possui em geral o
juízo “degeneração”. Parece mais oportuno falar em
degeneração apenas quando:
(1) houver uma conjugação de muitos desvios graves em
relação à norma;
(2) a capacidade de funcionamento e de sobrevivência parecer
em geral gravemente
prejudicada.
Vários fatores permitem ver que os invertidos não são
degenerados nesse sentido legítimo
da palavra:
(1) Encontra-se a inversão em pessoas que não exibem nenhum
outro desvio grave da
norma;
(2) Do mesmo modo, encontramo-la em pessoas cuja eficiência
não está prejudicada e
que inclusive se destacam por um desenvolvimento intelectual
e uma cultura ética particularmente
elevados.
(3) Se abstrairmos os pacientes encontrados em nossa
experiência médica e procurarmos
abarcar um horizonte mais amplo, depararemos em duas
direções com fatos que impedem que se
conceba a inversão como um sinal de degeneração:
(a)É preciso considerar que nos povos antigos, no auge de
sua cultura, a inversão era um
fenômeno freqüente, quase que uma instituição dotada de
importantes funções.
(b)Ela é extremamente difundida em muitos povos selvagens e
primitivos, ao passo que o
conceito de degeneração costuma restringir-se à civilização
elevada (cf. I. Bloch); e mesmo entre
os povos civilizados da Europa, o clima e a raça exercem a
mais poderosa influência sobre a
disseminação e o juízo que se faz da inversão.
CARÁTER INATO
Como é compreensível, o caráter inato só é alegado no
tocante à primeira e mais extrema
classe dos invertidos, e na verdade com base na asseveração
dessas pessoas de que em nenhum
momento de sua vida mostrou-se a elas outra orientação de
sua pulsão sexual. Já a existência das
duas outras classes, especialmente da terceira [os invertidos “ocasionais”], dificilmente se
compatibiliza com a concepção de um caráter inato. Por isso os que sustentam essa opinião
tendem a separar o grupo dos invertidos absolutos de todos
os demais, o que tem como
conseqüência a renúncia a uma concepção universalmente
válida da inversão. Assim, a inversão
teria um caráter inato numa série de casos, enquanto noutros
poderia ter-se originado de outra
maneira.
O oposto disso é a concepção alternativa de que a inversão é
um caráter adquiridoda
pulsão sexual. Ela se apóia nas seguintes considerações:
(1) Na vida de muitos invertidos (mesmo absolutos) pode-se demonstrar a influência de
uma impressão sexual prematura cuja conseqüência duradoura é
representada pela inclinação
homossexual.
(2) Na vida de muitos outros é possível indicar as influências externas favorecedoras e
inibidoras que levaram, em época mais prematura ou mais tardia, à fixação da inversão
(relacionamentos exclusivos com o mesmo sexo, companheirismo
na guerra, detenção em
presídios, os riscos da relação heterossexual, celibato,
fraqueza sexual etc.).
(3) A inversão pode ser eliminada pela sugestão hipnótica, o
que seria assombroso numa
característica inata.
Dentro dessa perspectiva, pode-se até contestar a própria
existência de uma inversão
inata. É possível objetar (cf. Havelock Ellis [1915]) que um
exame mais rigoroso dos casos
reivindicados em prol da inversão inata provavelmente também
traria à luz uma vivência da
primeira infância que foi determinante para a orientação da
libido. Essa vivência simplesmente não
se teria preservado na memória consciente da pessoa, mas
seria possível trazê-la de volta à
lembrança mediante a influência apropriada. Segundoesses
autores, a inversão só poderia ser
qualificada como uma variação freqüente da pulsão sexual,
passível de ser determinada por uma
quantidade de circunstâncias externas de vida.
Mas a aparente certeza assim adquirida chega ao fimatravés
da observação contrária de
que muitas pessoas ficam sujeitas às mesmas influências
sexuais (inclusive na meninice: sedução,
masturbação mútua), sem por isso se tornarem invertidas ou
assim continuarem
permanentemente. Somos portanto impelidos à suposição de que
a alternativa inato/adquirido é
incompleta, ou então não abarca todas as situações presentes
na inversão.
EXPLICAÇÃO DA INVERSÃO
Nem a hipótese de que a inversão é inata, nem tampouco a
conjectura alternativa de que é
adquirida explicam sua natureza. No primeiro caso, é preciso dizer o que há nela de inato, para
que não se concorde com a explicação rudimentar de que a pessoa
traz consigo, em caráter inato,
o vínculo da pulsão sexual com determinado objeto sexual. No
outro caso, cabe perguntar se as
múltiplas influências acidentais bastariam para explicar a
aquisição da inversão, sem necessidade
de que algo no indivíduo fosse ao encontro delas. Anegação
deste último fator, segundo nossas
colocações anteriores, é inadmissível.
O RECURSO À BISSEXUALIDADE
Desde Lydston [1889], Kiernan [1888] e Chevalier [1893]
tem-se recorrido, para esclarecer
a possibilidade de uma inversão sexual, a uma sériede idéias
que contém uma nova contradição
das opiniões populares. Estas admitem que o ser humano ou é
homem ou é mulher. A ciência,
porém, conhece casos em que os caracteres sexuais parecem
confusos e é portanto difícil
determinar o sexo, antes de mais nada no campo anatômico. A
genitália dessas pessoas combina
caracteres masculinos e femininos (hermafroditismo). Em
casos raros, os dois tipos de aparelho
sexual coexistem plenamente desenvolvidos (hermafroditismo
verdadeiro), porém com muito mais
freqüência acham-se ambos atrofiados.
Mas a importância dessas anormalidades está em que elas facilitam de maneira
inesperada a compreensão da formação normal. É que certo grau de hermafroditismo anatômico
constitui a norma; em nenhum indivíduo masculino oufeminino
de conformação normal faltam
vestígios do aparelho do sexo oposto, que persistiram sem
nenhuma função como órgãos
rudimentares, ou que se modificaram para tomar a seu encargo
outras funções.
A concepção resultante desses fatos anatômicos conhecidos de
longa data é a de uma
predisposição originariamente bissexual, que, no curso do
desenvolvimento, vai-se transformando
em monossexualidade, com resíduos ínfimos do sexo atrofiado.
Era sugestivo transpor essa concepção para o campo psíquico e explicar a inversão em
todas as suas variedades como a expressão de um
hermafroditismo psíquico. E para resolver a
questão restaria apenas constatar uma coincidência regular
da inversão com os sinais anímicos e
somáticos do hermafroditismo.
Só que essa expectativa não se realizou. Não é possível
imaginar relações tão estreitas
entre o suposto hibridismo psíquico e o hibridismo anatômico comprovável. O que amiúde se
constata nos invertidos é uma redução generalizada da pulsão sexual (cf. Havelock Ellis [1915])
e
uma ligeira atrofia anatômica dos órgãos. Amiúde, mas de
modo algum regularmente ou mesmo
predominantemente. Portanto, cabe reconhecer que a inversão
e o hermafroditismo somático são,
no conjunto, independentes entre si.
Tem-se ainda atribuído grande importância aos chamados
caracteres sexuais secundários
e terciários e a sua freqüente presença acentuada nos
invertidos (cf. Havelock Ellis [1915]).
Também nisso há muito de acerto, mas não se deve esquecer
que em geral os caracteres sexuais
secundários e terciários de um sexo aparecem com muitíssima
freqüência no outro; são, portanto,
indícios de hermafroditismo, mas nem por isso revela-se uma
mudança do objeto sexual no sentido
da inversão.
O hermafroditismo psíquico ganharia corpo se, com ainversão
do objeto sexual, houvesse
em paralelo ao menos uma mudança das demais qualidades
anímicas, pulsões e traços de caráter
para a variante típica do sexo oposto. Mas só se pode
esperar tal inversão do caráter com alguma
regularidade nas mulheres invertidas, pois nos homens a mais
plena virilidade anímica é
compatível com a inversão. A persistir na colocaçãode um
hermafroditismo psíquico, é preciso
acrescentar que suas manifestações nos diversos campos permitem
identificar apenas um ínfimo
condicionamento recíproco. O mesmo se aplica, aliás, ao
hibridismo somático; segundo Halban
(1903), também as atrofias de órgãos específicos e os caracteres sexuais secundários aparecem
com bastante independência uns dos outros.
A doutrina da bissexualidade foi exprimida em sua mais crua
forma por um porta-voz dos
invertidos masculinos: “um cérebro feminino num corpo
masculino”. Entretanto, ignoramos quais
seriam as características de um “cérebro feminino”.A substituição
do problema psicológico pelo
anatômico é tão inútil quanto injustificada. A tentativa de
explicação de Krafft-Ebing parece
concebida de maneira mais exata que a de Ulrichs, embora em
essência não difira dela; segundo
Krafft-Ebing [1895, 5], a disposição bissexual dotao
indivíduo tanto de centros cerebrais
masculinos e femininos quanto de órgãos sexuais somáticos.
Esses centros começam a
desenvolver-se na época da puberdade, na maioria das vezes
sob a influência das glândulas
sexuais, que independem deles na disposição [originária].
Mas a esses “centros” masculinos e
femininos aplica-se o mesmo que dissemos sobre os cérebros
masculinos e femininos, e, a
propósito, nem sequer sabemos se cabe presumir, para as
funções sexuais, áreas cerebrais
delimitadas (“centros”) como as que supomos, por exemplo,
para a fala.
Ainda assim, duas idéias permanecem de pé após essas
discussões: de algum modo, há
uma disposição bissexual implicada na inversão, embora não
saibamos em que consiste essa
disposição além da formação anatômica; e lida-se também com
perturbações que afetam a pulsão
sexual em seu desenvolvimento.
OBJETO SEXUAL DOS INVERTIDOS
A teoria do hermafroditismo psíquico pressupõe que o objeto sexual dos invertidos seja o
oposto do normal. O homem invertido sucumbiria, como a
mulher, ao encanto proveniente dos
atributos masculinos do corpo e da alma; sentir-se-ia como
uma mulher e buscaria o homem.
No entanto, por melhor que isso se aplique a toda uma série
de invertidos, ainda está
longe de revelar uma característica universal da inversão.
Não há dúvida alguma de que uma
grande parcela dos invertidos masculinos preserva ocaráter
psíquico da virilidade, traz
relativamente poucos caracteres secundários do sexooposto e,
com efeito, busca em seu objeto
sexual traços psíquicos femininos. Não fosse assim,seria
incompreensível o fato de a prostituição
masculina, que hoje como na Antigüidade se oferece aos
invertidos, copiar as mulheres em todas
as exteriorizações da indumentária e do porte; tal imitação, de outro modo, ofenderia
necessariamente o ideal dos invertidos. Nos gregos,entre os
quais os homens mais viris figuravam
entre os invertidos, está claro que o que inflamavao amor do
homem não era o caráter masculino
do efebo, mas sua semelhança física com a mulher, bem como
seus atributos anímicos femininos:
a timidez, o recato e a necessidade de ensinamentose
assistência. Mal se tornava homem, o
efebo deixava de ser um objeto sexual para o homem,e talvez
ele próprio se transformasse num
amante de efebos. Nesses casos, portanto, como em muitos
outros, o objeto sexual não é do
mesmo sexo, mas uma conjugação dos caracteres de ambos os
sexos, como que um
compromisso entre uma moção que anseia pelo homem eoutra que
anseia pela mulher, com a
condição imprescindível da masculinidade do corpo (da
genitália): é, por assim dizer, o reflexo
especular da própria natureza bissexual.
A situação é menos ambígua nas mulheres, entre as quais as
invertidas ativas exibem com
particular freqüência os caracteres somáticos e anímicos do
homem e anseiam pela feminilidade
em seu objeto sexual, muito embora, também nesse caso, um
conhecimento mais estreito pudesse
revelar uma variedade maior.
ALVO SEXUAL DOS INVERTIDOS
O fato importante a ser retido é que de modo algum se pode chamar de uniforme a meta
sexual dos invertidos. Nos homens, a relação sexual per anumnão coincide em absoluto com a
inversão; a masturbação é com igual freqüência seu alvo exclusivo, e as restrições ao alvo sexual
-
a ponto de ele ser um mero extravasamento da emoção- são
aqui ainda mais comuns do que no
amor heterossexual. Também entre as mulheres invertidas são
múltiplos os alvos sexuais,
parecendo privilegiado entre elas o contato com a mucosa
bucal.
CONCLUSÃO
É verdade que nos vemos impossibilitados de esclarecer
satisfatoriamente a origem da
inversão a partir do material apresentado até agora, mas
podemos notar que nesta indagação
chegamos a um conhecimento que talvez se revele mais
importante para nós do que a solução da
tarefa acima. Chamou-nos a atenção que imaginávamoscomo
demasiadamente íntima a ligação
entre a pulsão sexual e o objeto sexual. A experiência
obtida nos casos considerados anormais
nos ensina que, neles, há entre a pulsão sexual e oobjeto
sexual apenas uma solda, que
corríamos o risco de não ver em conseqüência da uniformidade
do quadro normal, em que a
pulsão parece trazer consigo o objeto. Assim,
somosinstruídos a afrouxar o vínculo que existe em
nossos pensamentos entre a pulsão e o objeto. É provável
que, de início, a pulsão sexual seja
independente de seu objeto, e tampouco deve ela suaorigem
aos encantos deste.
(B) ANlMAlS E PESSOAS
SEXUALMENTE IMATURAS COMO OBJETOS SEXUAIS
Enquanto as pessoas cujos objetos sexuais não pertencem ao
sexo normalmente
apropriado, ou seja, os invertidos, afiguram-se ao observador como uma coletânea de indivíduos
talvez bastante válidos em outros aspectos, os casos em que
se escolhem pessoas sexualmente
imaturas (crianças) como objetos sexuais são desde logo encarados como aberrações
esporádicas. Só excepcionalmente as crianças são objetos
sexuais exclusivos; em geral, passam a
desempenhar esse papel quando um indivíduo covarde ou impotente presta-se a usá-las como
substituto, ou quando uma pulsão urgente (impreterível) não
pode apropriar-se, no momento, de
nenhum objeto mais adequado. Ainda assim, é esclarecedor
sobre a natureza da pulsão sexual o
fato de ela admitir tão ampla variação e tamanho
rebaixamento de seu objeto, coisa que a fome,
muito mais energicamente agarrada a seu objeto, só permitiria nos casos mais extremos. Uma
observação similar é válida quanto à relação sexualcom
animais, que não é nada rara, sobretudo
entre os camponeses, e onde a atração sexual pareceultrapassar
a barreira da espécie.
Por motivos estéticos, de bom grado se atribuiriam estas e outras aberrações graves da
pulsão sexual à loucura, mas isso não é possível.
Aexperiência ensina que não se observam entre
os loucos quaisquer perturbações da pulsão sexual diferentes
das encontradas entre os sadios,
bem como em raças e classes inteiras. Assim, com a mais
insólita freqüência encontra-se o abuso
sexual contra as crianças entre os professores e aspessoas
que cuidam de crianças,
simplesmente porque a eles se oferece a melhor oportunidade
para isso. Os loucos apenas exibem
tal aberração em grau intensificado, ou então, o que é
particularmente significativo, elevado a uma
prática exclusiva e substituindo a satisfação sexual normal.
Essa curiosíssima relação entre as variações sexuais e a
escala que vai da saúde à
perturbação mental dá o que pensar. Eu opinaria queeste
fato, ainda por esclarecer, seria uma
indicação de que as moções da vida sexual, mesmo
normalmente, encontram-se entre as menos
dominadas pelas atividades anímicas superiores. Segundo
minha experiência, quem é
mentalmente anormal em algum outro aspecto, seja emtermos
sociais ou éticos, habitualmente
também o é em sua vida sexual. Mas muitos são os anormais na
vida sexual que, em todos os
outros pontos, correspondem à média, e que
passarampessoalmente pelo desenvolvimento
cultural humano, cujo ponto mais fraco continua a ser a
sexualidade.
Ora, como resultado mais genérico dessas
discussõesextrairíamos o entendimento de
que, numa grande quantidade de condições e num número
surpreendentemente elevado de
indivíduos, a índole e o valor do objeto sexual passam para
segundo plano. O essencial e
constante na pulsão sexual é alguma outra coisa.
(2) DESVIOS COM RESPEITO AO ALVO SEXUAL
Considera-se como alvo sexual normal a união dos genitais no
ato designado como coito,
que leva à descarga da tensão sexual e à extinção temporária
da pulsão sexual (uma satisfação
análoga à saciação da fome). Todavia, mesmo no processo sexual
mais normal reconhecem-se os
rudimentos daquilo que, se desenvolvido, levaria
àsaberrações descritas como perversões. É que
certas relações intermediárias com o objeto sexual (a caminho do coito), tais como apalpá-lo e
contemplá-lo, são reconhecidas como alvos sexuais
preliminares. Essas atividades, de um lado,
trazem prazer em si mesmas, e de outro, intensificam a
excitação que deve perdurar até que se
alcance o alvo sexual definitivo. Além disso, a um desses contatos, o das mucosas labiais das
duas pessoas - o beijo - , atribuiu-se em muitos povos
(dentre eles os mais altamente civilizados)
um elevado valor sexual, apesar de as partes do corpo nele
implicadas não pertencerem ao
aparelho sexual, mas constituírem a entrada do
tubodigestivo. Aí estão, portanto, fatores que
permitem ligar as perversões à vida sexual normal eque
também são aplicáveis à classificação
delas. As perversões são ou (a) transgressõesanatômicas
quanto às regiões do corpo destinadas
à união sexual, ou (b) demorasnas relações intermediárias
com o objeto sexual, que normalmente
seriam atravessadas com rapidez a caminho do alvo sexual
final.
(A) TRANSGRESSÕES
ANATÔMICAS
SUPERVALORIZAÇÃO DO OBJETO
SEXUAL
Somente em raríssimos casos a valorização psíquica com que é aquinhoado o objeto
sexual, enquanto alvo desejado da pulsão sexual,
restringe-se a sua genitália; ela se propaga,
antes, por todo o seu corpo, e tende a abranger todas as
sensações provenientes do objeto sexual.
A mesma supervalorização irradia-se pelo campo psíquico e se
manifesta como uma cegueira
lógica (enfraquecimento do juízo) perante as realizações
anímicas e as perfeições do objeto
sexual, e também como uma submissão crédula aos juízos dele
provenientes. Assim é que a
credulidade do amor passa a ser uma fonte importante, se não
a fonte originária da autoridade.
Ora, é essa supervalorização sexual que não suportabem a
restrição do alvo sexual à
união dos órgãos genitais propriamente ditos e que contribui para elevar as atividades ligadas a
outras partes do corpo à condição de alvos sexuais.
A importância desse fator da supervalorização sexual pode
ser estudada em melhores
condições no homem, cuja vida amorosa é a única a ter-se
tornado acessível à investigação,
enquanto a da mulher, em parte por causa da atrofiacultural,
em parte por sua discrição e
insinceridade convencionais, permanece envolta
numaobscuridade ainda impenetrável.
USO SEXUAL DA MUCOSA DOS LÁBIOS
E DA BOCA
O uso da boca como órgão sexual é considerado como perversão quando os lábios
(língua) de uma pessoa entram em contato com a genitália de
outra, mas não quando ambas
colocam em contato a mucosa labial. Nesta exceção reside o
ponto de ligação com o normal.
Quem, por considerá-las perversões, detesta as outras práticas,
certamente usuais desde os
primórdios da humanidade, cede nisso a um claro sentimento
de ascoque o resguarda de aceitar
tal alvo sexual. Mas os limites desse asco são, muitas
vezes, puramente convencionais; aquele
que beija com ardor os lábios de uma bela jovem talvez
usasse com asco a escova de dentes dela,
embora não tenha nenhuma razão para supor que sua própria
cavidade bucal seja mais limpa que
a da moça. Chama a atenção, aqui, o fator do asco, que estorva a supervalorização libidinosa do
objeto sexual, mas que, por sua vez, pode ser vencido pela
libido. Poder-se-ia ver no asco uma
das forças que levaram à restrição do alvo sexual. Em geral,
estas se detêm ante a genitália. Mas
não há dúvida alguma de que também os genitais do sexo oposto,
em si mesmos, podem constituir
objetos de asco, e de que esse comportamento é uma das características de todos os histéricos
(sobretudo as mulheres). A força da pulsão sexual gosta de
se exercer na dominação desse asco.
(Ver a partir de [1].)
USO SEXUAL DO ORIFÍCIO ANAL
No que concerne ao ânus, reconhece-se com clareza ainda
maior do que nos casos
anteriores que é a repugnância que apõe nesse alvo sexual o selo da perversão. Mas que eu não
seja acusado de partidarismo por observar que a fundamentação
desse asco no fato de tal parte
do corpo servir à excreção e entrar em contato com o asqueroso em si - os excrementos - não é
muito mais convincente do que a razão fornecida pelas moças
histéricas para explicar seu asco
ante o órgão genital masculino: que ele serve à micção.
O papel sexual da mucosa do ânus de modo algum se restringe
à relação sexual entre
homens, nem tampouco a predileção por ela é característica
da sensibilidade dos invertidos.
Parece, ao contrário, que o
paedicatiodo homem deve seu papel à analogia com o ato praticado
com a mulher, ao passo que a masturbação recíproca é o alvo
sexual mais facilmente encontrado
na relação sexual dos invertidos.
SIGNIFICAÇÃO DE OUTRAS PARTES DO
CORPO
A propagação do interesse sexual para outras partesdo corpo,
com todas as suas
variações em princípio nada nos oferece de novo; nada
acrescenta ao conhecimento da pulsão
sexual, que nisso não faz senão proclamar sua intenção de se
apoderar do objeto sexual em todos
os sentidos. Mas ao lado da supervalorização
sexualapresenta-se, nas transgressões anatômicas,
um segundo fator que é alheio ao conhecimento popular.
Certos lugares do corpo, como as
mucosas bucal e anal, que aparecem repetidamente nessas
práticas, como que reivindicam ser
considerados e tratados, eles mesmos, como genitais. Veremos
mais adiante que essa
reivindicação se justifica pelo desenvolvimento da pulsão sexual e que é atendida na
sintomatologia de certos estados patológicos.
SUBSTITUIÇÃO IMPRÓPRIA DO OBJETO
SEXUAL - FETICHISMO
Uma impressão muito peculiar resulta dos casos em que o
objeto sexual normal é
substituído por outro que guarda certa relação com ele, mas
que é totalmente impróprio para servir
ao alvo sexual normal. Do ponto de vista da classificação,
por certo teríamos feito melhor em
mencionar esse grupo sumamente interessante de aberrações da
pulsão sexual já entre os
desvios com respeito ao objeto sexual, mas o adiamos até
tomar conhecimento do fator da
supervalorizaçãosexual, da qual dependem esses fenômenos
ligados ao abandono do alvo
sexual.
O substituto do objeto sexual geralmente é uma parte do
corpo (os pés, os cabelos) muito
pouco apropriada para fins sexuais, ou então um objeto
inanimado que mantém uma relação
demonstrável com a pessoa a quem substitui, de preferência
com a sexualidade dela (um artigo de
vestuário, uma peça íntima). Comparou-se esse substituto,
não injustificadamente, com o fetiche
em que o selvagem vê seu deus incorporado.
A transição para os casos de fetichismo com renúncia ao alvo
sexual, seja este normal ou
perverso, constitui-se dos casos em que se exige doobjeto
sexual uma condição fetichista para
que o alvo sexual seja alcançado (determinada cor dos
cabelos, certas roupas, ou mesmo defeitos
físicos). Nenhuma outra variação da pulsão sexual nas raias
do patológico merece tanto o nosso
interesse quanto essa, dada a singularidade dos fenômenos a
que dá lugar. Um certo
rebaixamento da aspiração ao alvo sexual normal (fraqueza de
execução no aparelho sexual)
parece ser pré-requisito disso em todos os casos. Oponto de
ligação com o normal é
proporcionado pela supervalorização psicologicamente
necessária do objeto sexual, que se
propaga inevitavelmente por tudo o que está associativamente
ligado ao objeto. Por isso certo grau
desse fetichismo costuma ser próprio do amor normal,
sobretudo nos estágios de enamoramento
em que o alvo sexual normal é inatingível ou sua satisfação
parece impedida:
Schaff mir
ein Halstuch von ihrer Brust,
Ein Strumpfband meiner Liebeslust
O caso só se torna patológico quando o anseio pelo fetiche
se fixa, indo além da condição
mencionada, e se coloca no lugar do alvo sexual normal, e
ainda, quando o fetiche se desprende
de determinada pessoa e se torna o único objeto sexual. São
essas as condições gerais para que
meras variações da pulsão sexual se transformem em
aberrações patológicas.
Na escolha do fetiche manifesta-se - como Binet [1888] foi o
primeiro a sustentar e como
depois se comprovou abundantemente - a influência
persistente de uma impressão sexual
recebida, na maioria das vezes, na primeira infância, o que
se pode comparar com a proverbial
persistência do primeiro amor (“on revient toujours à ses
premiers amours”). Essa derivação é
particularmente clara nos casos em que há apenas
umcondicionamento fetichista do objeto
sexual. Voltaremos a deparar, em outro ponto (ver em [1]),
com a significação das impressões
sexuais precoces.
Em outros casos, o que leva à substituição do objeto pelo
fetiche é uma conexão simbólica
de pensamentos que, na maioria das vezes, não é consciente
para a pessoa. Os trajetos dessas
conexões nem sempre podem ser indicados com certeza(o pé,
por exemplo, é um antiquíssimo
símbolo sexual que já aparece no mito, e as “peles”decerto
devem seu papel de fetiche à
associação com os pêlos do
mons Veneris). Não obstante, nem mesmo esse simbolismo parece
independer sempre das experiências sexuais da infância.
(B) FIXAÇÕES DE ALVOS
SEXUAIS PROVISÓRIOS
SURGIMENTO DE NOVAS INTENÇÕES
Todas as condições externas e internas que dificultam ou
adiam a consecução do alvo
sexual normal (impotência, preço elevado do objeto sexual,
riscos do ato sexual) reforçam, como é
compreensível, a tendência a demorar-se nos atos
preliminares e a formar a partir deles novos
alvos sexuais, que podem tomar o lugar dos normais.Um exame
mais atento sempre mostra que
esses novos propósitos, mesmo os que se afiguram mais
estranhos, já se esboçam no processo
sexual normal.
O TOCAR E O OLHAR
Uma certa dose de uso do tato, ao menos para os seres
humanos, é indispensável para
que se atinja o alvo sexual normal. Sabe-se
também,universalmente, que fonte de prazer, por um
lado, e que afluxo de excitação renovada, por outro, são
proporcionados pelas sensações de
contato com a pele do objeto sexual. Portanto, demorar-se no
tocar, desde que o ato sexual seja
levado adiante, dificilmente pode contar entre as
perversões.
O mesmo se dá com o ver, que em última análise deriva do
tocar. A impressão visual
continua a ser o caminho mais freqüente pelo qual se
desperta a excitação libidinosa, e é com a
transitabilidade desse caminho - se é que esse tipode
consideração teleológica é permissível -
que conta a seleção natural ao fazer com que o objeto sexual
se desenvolva em termos de beleza.
A progressiva ocultação do corpo advinda com a civilização
mantém desperta a curiosidade
sexual, que ambiciona completar o objeto sexual através da
revelação das partes ocultas, mas que
pode ser desviada (“sublimada”) para a arte, caso se consiga
afastar o interesse dos genitais e
voltá-lo para a forma do corpo como um todo. A demora nesse
alvo sexual intermediário do olhar
carregado de sexo surge, em certa medida, na maioria das
pessoas normais, e de fato lhes dá a
possibilidade de orientarem uma parcela de sua libido para
alvos artísticos mais elevados. Por
outro lado, o prazer de ver [escopofilia] transforma-se em
perversão (a)quando se restringe
exclusivamente à genitália,
(b)quando se liga à superação do asco (o
voyeur- espectador das
funções excretórias), ou
(c)quando suplanta o alvo sexual normal, em vez de ser preparatório a
ele. Este último é marcantemente o caso dos exibicionistas,
que, se posso deduzi-lo após diversas
análises, exibem seus genitais para conseguir ver, em
contrapartida, a genitália do outro.
Na perversão que aspira a olhar e ser olhado distingue-se um
traço curiosíssimo, do qual
nos ocuparemos ainda mais intensamente na aberraçãoa ser
examinada a seguir, ou seja: nela, o
alvo sexual apresenta-se numa configuração dupla, nas formas
ativae passiva.
A força que se opõe ao prazer de ver, mas pode eventualmente
ser superada por ele
(como vimos antes no caso do asco), é a vergonha.
SADISMO E MASOQUISMO
A inclinação a infligir dor ao objeto sexual, bem como sua
contrapartida, que são as mais
freqüentes e significativas de todas as perversões,foram
denominadas por Krafft-Ebing, em formas
ativa e passiva, de “sadismo” e “masoquismo” (passivo).
Outros autores [p. ex., Schrenck-Notzing
(1899)] preferem a designação mais estrita de algolagnia, que destaca o prazer na dor, a
crueldade, enquanto os termos escolhidos por Krafft-Ebing
colocam em primeiro plano o prazer em
qualquer forma de humilhação ou sujeição.
No tocante à algolagnia ativa, o sadismo, suas raízes são
fáceis de apontar nas pessoas
normais. A sexualidade da maioria dos varões exibe uma mescla de
agressão, de inclinação a
subjugar, cuja importância biológica talvez resida na
necessidade de vencer a resistência do objeto
sexual de outra maneira que não mediante o ato de cortejar. Assim, o sadismo corresponderia a
um componente agressivo autonomizado e exagerado dapulsão
sexual, movido por deslocamento
para o lugar preponderante.
O conceito de sadismo oscila, na linguagem corriqueira,
desde uma atitude meramente
ativa ou mesmo violenta para com o objeto sexual até uma
satisfação exclusivamente
condicionada pela sujeição e maus-tratos a ele infligidos.
Num sentido estrito, somente este último
caso extremo merece o nome de perversão.
De maneira similar, a designação de “masoquismo” abrange
todas as atitudes passivas
perante a vida sexual e o objeto sexual, a mais extrema das
quais parece ser o condicionamento
da satisfação ao padecimento de dor física ou anímica
advinda do objeto sexual. O masoquismo
enquanto perversão parece distanciar-se mais do alvo sexual
normal do que sua contrapartida; em
primeiro lugar, pode-se pôr em dúvida se ele aparece alguma
vez como fenômeno primário, ou se,
pelo contrário, surge regularmente do sadismo mediante uma
transformação. É freqüente poder-se
reconhecer que o masoquismo não é outra coisa senãouma
continuação do sadismo que se volta
contra a própria pessoa, que com isso assume, para começar, o lugar do objeto sexual. A análise
clínica dos casos extremos de perversão masoquista mostra a
colaboração de uma ampla série de
fatores (como o complexo de castração e a consciência de
culpa) no exagero e fixação da atitude
sexual passiva originária.
A dor, que com isso é superada, alinha-se com o asco e a
vergonha que se opunham à
libido como resistência.
O sadismo e o masoquismo ocupam entre as perversõesum lugar
especial, já que o
contraste entre atividade e passividade que jaz em sua base
pertence às características universais
da vida sexual.
Que a crueldade e a pulsão sexual estão
intimamentecorrelacionadas é-nos ensinado,
acima de qualquer dúvida, pela história da civilização
humana, mas no esclarecimento dessa
correlação não se foi além de acentuar o fator agressivo da
libido. Segundo alguns autores, essa
agressão mesclada à pulsão sexual é, na realidade, um resíduo de desejos canibalísticos e,
portanto, uma co-participação do aparelho de dominação, que
atende à satisfação de outra grande
necessidade ontogeneticamente mais antiga. Afirmou-se também
que toda dor contém em si
mesma a possibilidade de uma sensação prazerosa.
Contentamo-nos aqui em afirmar que o
esclarecimento dessa perversão de modo algum tem sido
satisfatório e que, possivelmente,
diversas aspirações anímicas nela se combinam para produzir
um efeito único.
A particularidade mais notável dessa perversão reside,
porém, em que suas formas ativa e
passiva costumam encontrar-se juntas numa mesma pessoa. Quem
sente prazer em provocar dor
no outro na relação sexual é também capaz de gozar,como
prazer, de qualquer dor que possa
extrair das relações sexuais. O sádico é sempre e ao mesmo
tempo um masoquista, ainda que o
aspecto ativo ou passivo da perversão possa ter-se desenvolvido nele com maior intensidade e
represente sua atividade sexual predominante.
Assim, vemos que algumas das inclinações à perversão
apresentam-se regularmente
como pares de
opostos, o que, em conjunto com um material a ser posteriormente apresentado,
pode reivindicar uma elevada significação teórica. É ainda evidente que a existência do par de
opostos sadismo-masoquismo não é dedutível, em termos
imediatistas, da mescla de agressão. Ao
contrário, ficaríamos tentados a relacionar a presença
simultânea desses opostos com a oposição
entre masculino e feminino que se combina na bissexualidade,
oposição que amiúde é substituída
na psicanálise pelo contraste entre ativo e passivo.
(3) CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE AS PERVERSÕES
VARIAÇÃO E DOENÇA
É natural que os médicos, que inicialmente estudaram as
perversões em exemplos bem
marcados e em condições especiais, tenham-se inclinado a
adjudicar-lhes o caráter de um sinal de
degeneração ou doença, tal como havia ocorrido com a
inversão. Não obstante, é ainda mais fácil
descartar tal opinião no presente caso. A experiência
cotidiana mostrou que a maioria dessas
transgressões, no mínimo as menos graves dentre elas, são um
componente que raramente falta
na vida sexual das pessoas sadias e que é por elas julgado como qualquer outra intimidade.
Quando as circunstâncias são favoráveis, também as pessoas normais podem substituir durante
um bom tempo o alvo sexual normal por uma dessas perversões,
ou arranjar-lhe um lugar ao lado
dele. Em nenhuma pessoa sadia falta algum acréscimoao alvo
sexual normal que se possa
chamar de perverso, e essa universalidade basta, por si só,
para mostrar quão imprópria é a
utilização reprobatória da palavra perversão. Justamente no
campo da vida sexual é que se
tropeça com dificuldades peculiares e realmente insolúveis,
no momento, quando se quer traçar
uma fronteira nítida entre o que é mera variação dentro da
amplitude do fisiológico e o que constitui
sintomas patológicos.
Ainda assim, em muitas dessas perversões a qualidade do novo
alvo sexual é de tal ordem
que requer uma apreciação especial. Algumas delas afastam-se
tanto do normal em seu conteúdo
que não podemos deixar de declará-las “patológicas”,
sobretudo nos casos em que a pulsão
sexual realiza obras assombrosas (lamber excrementos, abusar
de cadáveres) na superação das
resistências (vergonha, asco, horror ou dor). Nem mesmo
nesses casos, porém, pode-se ter uma
expectativa certeira de que em seus autores se revelem
regularmente pessoas com outras
anormalidades graves ou doentes mentais. Tampouco nesses
casos pode-se passar por cima do
fato de que pessoas cuja conduta é normal em outrosaspectos
colocam-se como doentes apenas
no campo da vida sexual, sob o domínio da mais irrefreável
de todas as pulsões. Por outro lado, a
anormalidade manifesta nas outras relações da vida costuma
mostrar invariavelmente um fundo de
conduta sexual anormal.
Na maioria dos casos podemos encontrar o caráter patológico
da perversão, não no
conteúdo do novo alvo sexual, mas em sua relação com a
normalidade. Quando a perversão não
se apresenta ao ladodo alvo e do objeto sexuais normais, nos
casos em que a situação é propícia
a promovê-la e há circunstâncias desfavoráveis impedindo a
normalidade, mas antes suplanta e
substitui o normal em todas as circunstâncias, ou seja,
quando há nela as características de
exclusividadee
fixação, então nos vemos autorizados, na maioria das vezes, a julgá-la
como um
sintoma patológico.
A PARTICIPAÇÃO DO ANÍMICO NAS
PERVERSÕES
Talvez justamente nas perversões mais abjetas é quedevamos
reconhecer a mais
abundante participação psíquica na transformação dapulsão
sexual. Eis aí a obra de um trabalho
anímico ao qual não se pode negar, a despeito de seu
resultado atroz, o valor de uma idealização
da pulsão. A onipotência do amor talvez nunca se mostre com
maior intensidade do que nessas
aberrações. O mais nobre e o mais vil, por toda parte da
sexualidade, aparecem na mais íntima
dependência mútua (“vom Himmel durch die Welt zur Hölle”).
DUAS CONCLUSÕES
Do estudo das perversões resultou-nos a visão de que a
pulsão sexual tem de lutar contra
certas forças anímicas que funcionam como resistências,
destacando-se entre elas com máxima
clareza a vergonha e o asco. É lícito conjecturar que essas
forças contribuam para circunscrever a
pulsão dentro dos limites considerados normais, e que, caso
se desenvolvam precocemente no
indivíduo, antes que a pulsão sexual alcance a plenitude de
sua força, sem dúvida serão elas que
irão apontar o rumo de seu desenvolvimento.
Observamos ainda que algumas das perversões investigadas só
se tornam
compreensíveis mediante a convergência de diversos motivos.
Se elas admitem uma análise - uma
decomposição -, então devem ser de natureza composta. Com
isso podemos ter um indício de que
talvez a própria pulsão sexual não seja uma coisa simples,
mas reúna componentes que voltam a
separar-se nas perversões. A clínica nos alertaria,portanto,
para a existência de fusõesque
perderiam sua expressão como tais na conduta normaluniforme.
(4) A PULSÃO SEXUAL NOS NEURÓTICOS
A PSICANÁLISE
Uma importante contribuição para o conhecimento da pulsão sexual em pessoas que ao
menos se aproximam do normal é extraída de uma fonte
acessível apenas por determinado
caminho. Existe apenas um meio de obter
informaçõesexaustivas e sem erro sobre a vida sexual
dos chamados “psiconeuróticos” ([os que sofrem de] histeria,
neurose obsessiva, da erroneamente
chamada neurastenia, e certamente também de dementia praecoxe paranóia): submetê-los à
investigação psicanalítica, da qual se serve o procedimento
terapêutico introduzido por Josef
Breuer e eu em 1893 e então chamado de “catártico”.
Devo primeiramente esclarecer, repetindo o que já disse em
outras publicações, que essas
psiconeuroses, até onde chegam minhas
experiências,baseiam-se em forças pulsionais de cunho
sexual. Não quero dizer com isso apenas que a energia da
pulsão sexual faz uma contribuição
para as forças que sustentam os fenômenos patológicos (os
sintomas), e sim asseverar
expressamente que essa contribuição é a única
fonteenergética constante da neurose e a mais
importante de todas, de tal sorte que a vida sexualdas
pessoas em pauta expressa-se de maneira
exclusiva, ou predominante, ou apenas parcial, nesses
sintomas. Como exprimi em outro lugar
[1905e, Posfácio, ver em [1]], os sintomas são a atividade
sexual dos doentes. A prova dessa
afirmação deriva do número crescente de psicanálises de
histéricos e outros neuróticos que venho
realizando há vinte e cinco anos, e sobre cujos resultados
já prestei contas minuciosamente em
outras publicações, como ainda continuarei a fazer.
A psicanálise elimina os sintomas dos histéricos partindo da
premissa de que tais sintomas
são um substituto - uma transcrição, por assim dizer - de
uma série de processos, desejos e
aspirações investidos de afeto, aos quais, medianteum
processo psíquico especial (o
recalcamento), nega-se a descarga através de uma atividade
psíquica passível de consciência.
Assim, essas formações de pensamento que foram retidas num
estado de inconsciência aspiram a
uma expressão apropriada a seu valor afetivo, a uma descarga, e, no caso da histeria,
encontram-na
mediante o processo de
conversãoem fenômenos somáticos - justamente os sintomas
histéricos. Pela retransformação sistemática (com aajuda de
uma técnica especial) dos sintomas
em representações investidas de afeto já agora
conscientizadas, fica-se em condições de
averiguar com a máxima precisão a natureza e a origem dessas
formações psíquicas antes
inconscientes.
RESULTADOS DA PSICANÁLISE
Verificou-se por esse caminho que os sintomas representam um
substituto de aspirações
que extraem sua força da fonte da pulsão sexual.
Harmoniza-se plenamente com isso o que
sabemos sobre o caráter dos histéricos (aqui tomados por
modelo de todos os psiconeuróticos)
antes de seu adoecimento, bem como sobre as ocasiões que
precipitam a doença. O caráter
histérico permite identificar um grau de recalcamento
sexualque ultrapassa a medida normal; uma
intensificação da resistência à pulsão sexual (que já ficamos conhecendo como vergonha, asco e
moralidade); e uma fuga como que instintiva a qualquer
ocupação do intelecto com o problema do
sexo, que tem como conseqüência, nos casos mais acentuados,
a manutenção de uma completa
ignorância sexual, mesmo depois de alcançado o período de
maturidade sexual.
Esse traço de caráter, tão essencial na histeria, não raro
escapa à observação casual,
ficando encoberto pelo segundo fator constitucionalda
histeria, ou seja, o desenvolvimento
desmedido da pulsão sexual; somente a análise psicológica
sabe desvendá-lo em todas as
oportunidades e solucionar a enigmática contradiçãoda
histeria, registrando a presença desse par
de opostos: uma necessidade sexual desmedida e uma excessiva
renúncia ao sexual.
O ensejo para o adoecimento apresenta-se à pessoa de
disposição histérica quando, em
conseqüência de sua própria maturação progressiva ou das
circunstâncias externas de sua vida,
as exigências reais do sexo tornam-se algo sério para ela.
Entre a premência da pulsão e o
antagonismo da renúncia ao sexual situa-se a saída para a doença, que não soluciona o conflito,
mas procura escapar a ele pela transformação das aspirações
libidinosas em sintomas. Não passa
de exceção aparente o fato de uma pessoa histérica,um homem,
por exemplo, adoecer por causa
de uma emoção banal, de um conflito que não gire emtorno de
um interesse sexual. Nesses
casos, a psicanálise consegue demonstrar regularmente que a
doença foi possibilitada pelo
componente sexual do conflito, que privou os processos
anímicos de uma execução normal.
NEUROSE E PERVERSÃO
Boa parte da oposição contra estas minhas teses se esclarece pelo fato de que a
sexualidade, da qual derivo os sintomas psiconeuróticos, é
considerada coincidente com a pulsão
sexual normal. Só que a psicanálise ensina ainda mais. Ela
mostra que de modo algum os
sintomas surgem apenas à custa da chamada pulsão sexual
normal (pelo menos não de maneira
exclusiva ou predominante), mas que representam a expressão
convertida de pulsões que seriam
designadas de
perversas(no sentido mais lato) se pudessem expressar-se diretamente,
sem
desvio pela consciência, em propósitos da fantasia e em
ações. Portanto, os sintomas se formam,
em parte, às expensas da sexualidade anormal; a neurose é, por assim dizer, o
negativo da
perversão.
A pulsão sexual dos psiconeuróticos permite discernir todas
as aberrações que estudamos
como variações da vida sexual normal e como manifestações da
patológica.
(a)Na vida anímica de todos os neuróticos (sem exceção)
encontram-se moções de
inversão, de fixação da libido em pessoas do mesmo sexo. Sem uma discussão a fundo é
impossível apreciar adequadamente a importância desse fator
para a configuração do quadro
patológico; só posso asseverar que a tendência inconsciente
para a inversão nunca está ausente
e, em particular, presta os maiores serviços ao
esclarecimento da histeria masculina.
(b)No inconsciente dos psiconeuróticos é possível
demonstrar, como formadoras do
sintoma, todas as tendências à transgressão anatômica,
encontrando-se entre elas com particular
freqüência e intensidade as que reivindicam para asmucosas
da boca e do ânus o papel dos
genitais.
(c)Um papel muito destacado entre os formadores de sintomas
das psiconeuroses é
desempenhado pelas pulsões parciais, que na maioriadas vezes
aparecem como pares de
opostos e das quais já tomamos conhecimento como portadoras
de novos alvos sexuais - a pulsão
do prazer de ver e do exibicionismo, e a pulsão de crueldade em suas formas ativa e passiva. A
contribuição desta última é indispensável à compreensão da
natureza sofrida dos sintomas e
domina quase invariavelmente uma parte da conduta social do
doente. É também por intermédio
dessa ligação da libido com a crueldade que se dá
atransformação do amor em ódio, das moções
afetuosas em moções hostis, que é característica deum grande
número de casos de neurose e
até, ao que parece, da paranóia em geral.
O interesse por esses resultados aumenta ainda maisa partir
de certas particularidades
dos fatos.
(a)Sempre que se descobre no inconsciente uma pulsão desse tipo, passível de ser
pareada com um oposto, em geral pode-se demonstrar que este último também é eficaz. Toda
perversão “ativa”, portanto, é acompanhada por sua
contrapartida passiva: quem é exibicionista no
inconsciente é também, ao mesmo tempo, voyeur; quem sofre as conseqüências das
moções
sádicas recalcadas encontra outro reforço para seu sintoma nas fontes da tendência masoquista.
O completo acordo com a conduta nas perversões “positivas”
correspondentes decerto é muito
digno de nota, embora, nos quadros patológicos, umaou outra
das inclinações opostas
desempenhe o papel preponderante.
(b)Nos casos mais patentes de psiconeurose é raro encontrar
desenvolvida apenas uma
dessas pulsões perversas; na maioria das vezes encontramos
um grande número delas e, em
geral, vestígios de todas. Mas a intensidade de cada pulsão
isolada é independente do
desenvolvimento das outras. Também nesse aspecto o estudo das perversões “positivas”
proporciona uma contrapartida exata.
(5) PULSÕES PARCIAIS E ZONAS ERÓGENAS
Se juntarmos o que a investigação das perversões positivas e
negativas nos permitiu
averiguar, parecerá plausível reconduzi-las a uma série de
“pulsões parciais” que, no entanto, não
são primárias, já que permitem uma decomposição ulterior.
Por “pulsão” podemos entender, a
princípio, apenas o representante psíquico de uma fonte
endossomática de estimulação que flui
continuamente, para diferenciá-la do “estímulo”, que é
produzido por excitações isoladas vindas de
fora. Pulsão, portanto, é um dos conceitos da delimitação
entre o anímico e o físico. A hipótese
mais simples e mais indicada sobre a natureza da pulsão
seria que, em si mesma, ela não possui
qualidade alguma, devendo apenas ser considerada como uma
medida da exigência de trabalho
feita à vida anímica. O que distingue as pulsões entre si e
as dota de propriedades específicas é
sua relação com suas fontes
somáticas e seus alvos. A fonte da pulsão é um processo excitatório
num órgão, e seu alvo imediato consiste na supressão desse
estímulo orgânico.
Outra hipótese provisória de que não podemos furtar-nos na
teoria das pulsões afirma que
os órgãos do corpo fornecem dois tipos de excitação,
baseados em diferenças de natureza
química. A uma dessas classes de excitação designamos como a
que é especificamente sexual, e
referimo-nos ao órgão em causa como a “zona erógena” da
pulsão parcial que parte dele.
Nas inclinações perversas que reivindicam para a cavidade
bucal e para o orifício anal um
sentido sexual, o papel das zonas erógenas é imediatamente
perceptível. Elas se comportam em
todos os aspectos como uma parte do aparelho sexual. Na
histeria, esses lugares do corpo e os
tratos de mucosa que partem deles transformam-se nasede de
novas sensações e de alterações
da inervação - e mesmo de processos comparáveis à ereção -,
tal como os próprios órgãos
genitais diante das excitações dos processos sexuais
normais.
O sentido das zonas erógenas como aparelhos acessórios e
substitutos da genitália
evidencia-se com maior clareza, dentre as psiconeuroses, na
histeria, mas isso não implica que ele
deva ser menos valorizado nas outras formas de doença.
Nestas (neurose obsessiva, paranóia),
ele é apenas menos reconhecível, pois a formação dos
sintomas se dá em regiões do aparelho
anímico mais afastadas dos centros específicos que dominam o corpo. Na neurose obsessiva, o
que mais se destaca é a significação dos impulsos que criam
novos alvos sexuais e parecem
independentes das zonas erógenas. Não obstante, na escopofilia e no exibicionismo o olho
corresponde a uma zona erógena; no caso da dor e dacrueldade
como componentes da pulsão
sexual, é a pele que assume esse mesmo papel - a pele, que
em determinadas partes do corpo
diferenciou-se nos órgãos sensoriais e se transmudou em
mucosa, sendo assim a zona erógena
πατ εξοχην[por excelência].
(6) ESCLARECIMENTOS SOBRE A APARENTE PREPONDERÂNCIA DA
SEXUALIDADE PERVERSA NAS PSICONEUROSES
A discussão precedente talvez tenha colocado sob umprisma
falso a sexualidade dos
psiconeuróticos. Talvez tenha criado a aparência deque, em
virtude de sua predisposição, os
psiconeuróticos aproximam-se estreitamente dos perversos em
sua conduta sexual e se
distanciam dos normais na mesma medida. É bem possível, de
fato, que a disposição
constitucional desses doentes contenha, além de um grau
desmedido de recalcamento sexual e de
uma intensidade hiperpotente da pulsão sexual, uma tendência incomum à perversão no sentido
mais lato. Ainda assim, a investigação de casos mais brandos
mostra que esta última suposição
não é necessariamente indispensável, ou que, pelo menos, ao
formar um juízo sobre esses efeitos
patológicos, é preciso descontar a atuação de um outro
fator. Na maioria dos psiconeuróticos, a
doença só aparece depois da puberdade, a partir
dassolicitações da vida sexual normal. É contra
esta que se orienta de modo preponderante o recalcamento. Ou
então a doença se instaura mais
tardiamente, quando a libido fica privada de satisfação
pelas vias normais. Em ambos os casos a
libido se comporta como uma corrente cujo leito principal
foi bloqueado; ela inunda então as vias
colaterais que até ali talvez tivessem permanecido vazias. Assim, também o que parece ser uma
enorme tendência à perversão (apesar de negativa) nos
psiconeuróticos pode estar colateralmente
condicionado, e, em todo caso, deve ser colateralmente
intensificado. O fato é que se tem de
alinhar o recalcamento sexual, enquanto fator interno, com
os fatores externos que, como a
restrição da liberdade, a inacessibilidade do objeto sexual
normal, os riscos do ato sexual normal
etc., permitem que surjam perversões em indivíduos que, de outro modo, talvez permanecessem
normais.
Nesse aspecto, os diversos casos de neurose podem portar-se
de maneira diferente: num,
prepondera a força inata da tendência à perversão, noutro, o aumento colateral dessa mesma
tendência por ser a libido desviada do alvo e do objeto
sexuais normais. Seria errôneo presumir
uma oposição onde existe de fato uma relação de cooperação.
A neurose sempre produz seus
efeitos máximos quando a constituição e a vivência cooperam
no mesmo sentido. Uma constituição
marcante talvez possa prescindir do apoio de impressões
provenientes da vida, e um grande abalo
na vida talvez provoque a neurose até mesmo numa
constituição corriqueira. Aliás, essa visão da
importância etiológica do inato e do
acidentalmentevivenciado é igualmente válida em outros
campos.
Entretanto, caso se prefira a hipótese de que uma tendência
particularmente marcante
para as perversões é uma das peculiaridades da constituição
psiconeurótica, abre-se a perspectiva
de se poder distinguir uma multiplicidade dessas
constituições, segundo a preponderância inata
desta ou daquela zona erógena, desta ou daquela pulsão
parcial. Como acontece com tantas
outras coisas nesse campo, ainda não se investigou se há uma
relação especial entre a disposição
perversa e a escolha da forma específica da doença.
(7) INDICAÇÃO DO INFANTILISMO DA SEXUALIDADE
Ao demonstrar as moções perversas enquanto formadoras de
sintomas nas
psiconeuroses, aumentamos extraordinariamente o número de
seres humanos que poderiam ser
considerados perversos. Não é só que os próprios neuróticos
constituam uma classe muito
numerosa, há também que levar em conta que séries
descendentes e ininterruptas ligam a
neurose, em todas as suas configurações, à saúde; por isso
Moebius pôde dizer, com boas
justificativas, que todos somos um pouco histéricos. Assim,
a extraordinária difusão das perversões
força-nos a supor que tampouco a predisposição às perversões
é uma particularidade rara, mas
deve, antes, fazer parte da constituição que passa por
normal.
É discutível, como vimos, que as perversões remontem a
condições inatas ou resultem,
como supôs Binet quanto ao fetichismo (ver em [1]),de
experiências ao acaso. Agora se nos
oferece a conclusão de que há sem dúvida algo inatona base
das perversões, mas esse algo é
inato em todos os seres humanos, embora, enquanto
disposição, possa variar de intensidade e ser
acentuado pelas influências da vida. Trata-se, pois, das
raízes inatas da pulsão sexual dadas pela
constituição, as quais, numa série de casos (as perversões),
convertem-se nas verdadeiras
portadoras da atividade sexual (perversa), outras vezes
passam por uma supressão
(recalcamento) insuficiente, de tal sorte que podematrair
indiretamente para si, na qualidade de
sintomas patológicos, parte da energia sexual, e que
permitem, nos casos mais favoráveis situados
entre os dois extremos, mediante uma restrição eficaz e
outras elaborações, a origem da chamada
vida sexual normal.
Mas devemos dizer ainda que essa suposta constituição que
exibe os germes de todas as
perversões só é demonstrável na criança, mesmo que nela todas as pulsões só possam emergir
com intensidade moderada. Vislumbramos assim a fórmula de
que os neuróticos preservaram o
estado infantil de sua sexualidade ou foram retransportados
para ele. Desse modo, nosso
interesse volta-se para a vida sexual da criança,
eprocederemos ao estudo do jogo de influências
que domina o processo de desenvolvimento da sexualidade
infantil até seu desfecho na perversão,
na neurose ou na vida sexual normal.
A SEXUALIDADE INFANTIL
O DESCASO PARA COM O INFANTIL
Faz parte da opinião popular sobre a pulsão sexual que ela está ausente na infância e só
desperta no período da vida designado da puberdade.Mas esse
não é apenas um erro qualquer, e
sim um equívoco de graves conseqüências, pois é o principal
culpado de nossa ignorância de hoje
sobre as condições básicas da vida sexual. Um estudo
aprofundado das manifestações sexuais da
infância provavelmente nos revelaria os traços essenciais da
pulsão sexual, desvendaria sua
evolução e nos permitiria ver como se compõe a partir de
diversas fontes.
É digno de nota que os autores que se ocuparam do
esclarecimento das propriedades e
reações do indivíduo adulto tenham prestado muito mais
atenção à fase pré-histórica representada
pela vida dos antepassados - ou seja, atribuído
umainfluência muito maior à hereditariedade - do
que à outra fase pré-histórica, àquela que se dá
naexistência individual da pessoa, a saber, a
infância. É que, como se pode supor, a influência desse
período da vida seria mais fácil de
compreender e teria direito a ser considerada antesda
influência da hereditariedade. É certo que
na literatura sobre o assunto encontramos notas ocasionais
acerca da atividade sexual precoce em
crianças pequenas, sobre ereções, masturbação e atémesmo
atividades semelhantes ao coito.
Mas elas são sempre citadas apenas como processos excepcionais,
curiosidades ou exemplos
assustadores de depravação precoce. Nenhum autor, ao que eu
saiba, reconheceu com clareza a
normatividade da pulsão sexual na infância, e, nos escritos
já numerosos sobre o desenvolvimento
infantil, o capítulo sobre o “Desenvolvimento Sexual”
costuma ser omitido.
AMNÉSIA INFANTIL
A razão dessa estranha negligência pode ser buscada, em
parte, nas considerações
convencionais que os autores respeitam em conseqüência de
sua própria criação, e em parte, num
fenômeno psíquico que até agora escapou a qualquer explicação. Refiro-me à singular amnésia
que, na maioria das pessoas (mas não em todas!), encobre os
primeiros anos da infância, até os
seis ou oito anos de idade. Até o momento, não nos ocorreu ficar surpresos ante o fato dessa
amnésia, e no entanto, teríamos boas razões para isso. De
fato, somos informados de que,
durante esses anos, dos quais só preservamos na memória
algumas lembranças incompreensíveis
e fragmentadas, reagíamos com vivacidade frente às impressões, sabíamos expressar dor e
alegria de maneira humana, mostrávamos amor, ciúme e outras paixões que então nos agitavam
violentamente, e até formulávamos frases que eram
registradas pelos adultos como uma boa prova
de discernimento e de uma capacidade incipiente de julgamento. E de tudo isso, quando adultos,
nada sabemos por nós mesmos. Por que terá nossa memória
ficado tão para trás em relação a
nossas outras atividades anímicas? Ora, temos razões para
crer que em nenhuma outra época da
vida a capacidade de recepção e reprodução é maior do que
justamente nos anos da infância.
Por outro lado, devemos supor, ou podemos convencer-nos
disso mediante a investigação
psicológica de outrem, que as mesmas impressões pornós
esquecidas deixaram, ainda assim, os
mais profundos rastros em nossa vida anímica e se tornaram
determinantes para todo o nosso
desenvolvimento posterior. Não há como falar, portanto, em
nenhum declínio real das impressões
infantis, mas sim numa amnésia semelhante à que observamos
nos neuróticos em relação às
vivências posteriores, e cuja essência consiste nummero
impedimento da consciência
(recalcamento). Mas quais são as forças que efetuamesse
recalcamento das impressões infantis?
Quem solucionasse esse enigma teria também esclarecido a
amnésia histérica.
Todavia, não queremos deixar de destacar que a existência da
amnésia infantil fornece um
novo ponto de comparação entre o estado anímico da criança e o dos psiconeuróticos. Já
deparamos com outro desses pontos (ver em [1]) quando se
impôs a nós a fórmula de que a
sexualidade dos psiconeuróticos preserva o estado infantil
ou é reconduzida a ele. E se a própria
amnésia infantil também tiver de ser relacionada com as
moções sexuais da infância?
Aliás, ligar a amnésia infantil à histérica é mais do que um mero jogo de palavras. A
amnésia histérica, que está a serviço do recalcamento, só é
explicável pela circunstância de que o
indivíduo já possui um acervo de traços anêmicos que
deixaram de estar à disposição da
consciência e que agora, através de uma ligação associativa,
apoderam-se daquilo sobre o que
atuam as forças repulsoras do recalcamento. Pode-sedizer que
sem a amnésia infantil não haveria
amnésia histérica. [Cf. Freud, l950a, Carta 84, de 10 de
março de 1898.]
Creio, pois, que a amnésia infantil, que converte ainfância
de cada um numa espécie de
época pré-históricae oculta dele os primórdios de sua
própria vida sexual, carrega a culpa por não
se dar valor ao período infantil no desenvolvimentoda vida
sexual. Um observador isolado não
pode preencher as lacunas assim geradas em nosso
conhecimento. Já em 1896 frisei a
significação da infância para a origem de certos fenômenos
importantes que dependem da vida
sexual, e desde então nunca deixei de trazer para primeiro
plano o fator infantil na sexualidade.
(1) O PERÍODO DE LATÊNCIA SEXUAL DA INFÂNCIA E SUAS RUPTURAS
As constatações extraordinariamente amiudadas de moções
sexuais pretensamente
excepcionais e anormativas na infância, bem como a revelação das lembranças infantis do
neurótico, até então inconscientes, talvez permitamtraçar o
seguinte quadro das condutas sexuais
da infância:
Parece certo que o recém-nascido traz consigo germes de
moções sexuais que continuam
a se desenvolver por algum tempo, mas depois sofremuma
supressão progressiva, a qual, por sua
vez, pode ser rompida por avanços regulares do
desenvolvimento sexual ou suspensa pelas
peculiaridades individuais. Nada se sabe ao certo sobre a
regularidade e a periodicidade desse
curso oscilante de desenvolvimento. Parece, no entanto, que
a vida sexual da criança costuma
expressar-se numa forma acessível à observação por volta dos
três ou quatro anos de idade.
AS INIBIÇÕES SEXUAIS
Durante esse período de latência total ou apenas parcial
erigem-se as forças anímicas
que, mais tarde, surgirão como entraves no caminho da pulsão sexual e estreitarão seu curso à
maneira de diques (o asco, o sentimento de vergonha, as
exigências dos ideais estéticos e
morais). Nas crianças civilizadas, tem-se a impressão de que
a construção desses diques é obra
da educação, e certamente a educação tem muito a ver com
isso. Na realidade, porém, esse
desenvolvimento é organicamente condicionado e fixado pela
hereditariedade, podendo produzir-se,
no momento oportuno, sem nenhuma ajuda da
educação. Esta fica inteiramente dentro do
âmbito que lhe compete ao limitar-se a seguir o quefoi
organicamente prefixado e imprimi-lo de
maneira um pouco mais polida e profunda.
FORMAÇÃO REATIVA E SUBLIMAÇÃO
Com que meios se erigem essas construções tão importantes
para a cultura e normalidade
posteriores da pessoa? Provavelmente, às expensas das
próprias moções sexuais infantis, cujo
afluxo não cessa nem mesmo durante esse período de latência, mas cuja energia - na totalidade
ou em sua maior parte - é desviada do uso sexual e voltada para outros fins. Os historiadores da
cultura parecem unânimes em supor que, mediante esse desvio
das forças pulsionais sexuais das
metas sexuais e por sua orientação para novas metas, num
processo que merece o nome de
sublimação, adquirem-se poderosos componentes para todas as
realizações culturais.
Acrescentaríamos, portanto, que o mesmo processo entra em
jogo no desenvolvimento de cada
indivíduo, e situaríamos seu início no período de latência
sexual da infância.
Também sobre o mecanismo desse processo de sublimação
pode-se arriscar uma
conjectura. As moções sexuais desses anos da infância
seriam, por um lado, inutilizáveis, já que
estão diferidas as funções reprodutoras - o que constitui o
traço principal do período de latência - ,
e por outro, seriam perversas em si, ou seja, partiriam de
zonas erógenas e se sustentariam em
pulsões que, dada a direção do desenvolvimento do indivíduo,
só poderiam provocar sensações
desprazerosas. Por conseguinte, elas despertam forças
anímicas contrárias (moções reativas) que,
para uma supressão eficaz desse desprazer, erigem os diques
psíquicos já mencionados: asco,
vergonha e moral.
RUPTURAS DO PERÍODO DE LATÊNCIA
Sem nos iludirmos quanto à natureza hipotética e quanto à
clareza insuficiente de nossos
conhecimentos acerca dos processos do período infantil de
latência ou adiamento, voltemos à
realidade para indicar que esse emprego da sexualidade
infantil representa um ideal educativo do
qual o desenvolvimento de cada um quase sempre se afasta em
algum ponto, amiúde em grau
considerável. Vez por outra irrompe um fragmento
demanifestação sexual que se furtou à
sublimação, ou preserva-se alguma atividade sexual ao longo
de todo o período de latência, até a
irrupção acentuada da pulsão sexual na puberdade. Na medida
em que prestam alguma atenção à
sexualidade infantil, os educadores portam-se como se compartilhassem nossas opiniões sobre a
construção das forças defensivas morais à custa da sexualidade, e como se soubessem que a
atividade sexual torna a criança ineducável, pois perseguem
como “vícios” todas as suas
manifestações sexuais, mesmo que não possam fazer muita
coisa contra elas. Nós, porém, temos
todos os motivos para voltar nosso interesse para esses
fenômenos temidos pela educação, pois
deles esperamos o esclarecimento da configuração originária
da pulsão sexual.
(2) AS MANIFESTAÇÕES DA SEXUALIDADE INFANTIL
O CHUCHAR
Por motivos que se deduzirão posteriormente, tomaremos como
modelo das
manifestações sexuais infantis o chuchar (sugar comdeleite),
ao qual o pediatra húngaro Lindner
(1879) dedicou um excelente estudo.
O chuchar [Ludeln ou Lutschen], que já aparece no lactente e
pode continuar até a
maturidade ou persistir por toda a vida, consiste na
repetição rítmica de um contato de sucção com
a boca (os lábios), do qual está excluído qualquer propósito de nutrição. Uma parte dos próprios
lábios, a língua ou qualquer outro ponto da pele que esteja
ao alcance - até mesmo o dedão do pé
- são tomados como objeto sobre o qual se exerce essa
sucção. Uma pulsão preênsil surgida ao
mesmo tempo pode manifestar-se através de puxadas rítmicas
simultâneas do lóbulo da orelha e
apoderar-se de uma parte de outra pessoa (em geral,a orelha)
para o mesmo fim. O sugar com
deleite alia-se a uma absorção completa da atenção e leva ao adormecimento, ou mesmo a uma
reação motora numa espécie de orgasmo. Não raro, combina-se
com a fricção de alguma parte
sensível do corpo, como os seios ou a genitália externa. Por
esse caminho, muitas crianças
passam do chuchar para a masturbação.
O próprio Lindner reconheceu a natureza sexual dessa ação e
a destacou de maneira
irrestrita. Na meninice, o chuchar é
freqüentementeequiparado aos outros “maus costumes”
sexuais da criança. De numerosos pediatras e neurologistas
tem-se erguido um protesto muito
enérgico contra essa concepção, parcialmente baseado, sem
dúvida, na confusão entre “sexual” e
“genital”. Esse protesto levanta uma questão difícil e
irrecusável: por qual característica genérica
podemos reconhecer as manifestações sexuais da criança?
Parece-me que a concatenação de
fenômenos que pudemos discernir através da investigação
psicanalítica nos autoriza a ver no
chuchar uma manifestação sexual e a estudar justamente nele
os traços essenciais da atividade
sexual infantil.
AUTO-EROTlSMO
Temos a obrigação de fazer um exame aprofundado desse
exemplo. Como traço mais
destacado dessa prática sexual, salientemos que a pulsão não
está dirigida para outra pessoa;
satisfaz-se no próprio corpo, é auto-erótica, para dizê-lo com a feliz
denominação introduzida por
Havelock Ellis [1910].
Está claro, além disso, que o ato da criança que chucha é
determinado pela busca de um
prazer já vivenciado e agora relembrado. No caso mais
simples, portanto, a satisfação é
encontrada mediante a sucção rítmica de alguma parte da pele
ou da mucosa. É fácil adivinhar
também em que ocasiões a criança teve as primeiras experiências desse prazer que agora se
esforça por renovar. A primeira e mais vital das atividades
da criança - mamar no seio materno (ou
em seus substitutos) - há de tê-la familiarizado com esse
prazer. Diríamos que os lábios da criança
comportaram-se como uma zona erógena, e a estimulação pelo
fluxo cálido de leite foi sem dúvida
a origem da sensação prazerosa. A princípio, a satisfação da
zona erógena deve ter-se associado
com a necessidade de alimento. A atividade sexual apóia-se
primeiramente numa das funções que
servem à preservação da vida, e só depois torna-se
independente delas. Quem já viu uma criança
saciada recuar do peito e cair no sono, com as faces coradas
e um sorriso beatífico, há de dizer a
si mesmo que essa imagem persiste também como normada
expressão da satisfação sexual em
épocas posteriores da vida. A necessidade de repetir a
satisfação sexual dissocia-se então da
necessidade de absorção de alimento - uma separaçãoque se
torna inevitável quando aparecem
os dentes e o alimento já não é exclusivamente ingerido por
sucção, mas é também mastigado. A
criança não se serve de um objeto externo para sugar, mas
prefere uma parte de sua própria pele,
porque isso lhe é mais cômodo, porque a torna independente
do mundo externo, que ela ainda não
consegue dominar, e porque desse modo ela se proporciona
como que uma segunda zona
erógena, se bem que de nível inferior. A inferioridade dessa
segunda região a levará, mais tarde, a
buscar em outra pessoa a parte correspondente, os lábios.
(“Pena eu não poder beijar a mim
mesmo”, dir-se-ia subjazer a isso.)
Nem todas as crianças praticam esse chuchar. É de se supor
que cheguem a fazê-lo
aquelas em quem a significação erógena da zona labial for
constitucionalmente reforçada.
Persistindo essa significação, tais crianças, uma vez
adultas, serão ávidas apreciadoras do beijo,
tenderão a beijos perversos ou, se forem homens, terão um
poderoso motivo para beber e fumar.
Caso sobrevenha o recalcamento, porém, sentirão nojo da
comida e produzirão vômitos histéricos.
Por força da dupla finalidade da zona labial, o recalcamento
se estende à pulsão de nutrição.
Muitas de minhas pacientes com distúrbios alimentares,
globus hystericus, constricção na garganta
e vômitos foram, na infância, firmes adeptas do chuchar.
No chuchar ou sugar com deleite já podemos observaras três
características essenciais
de uma manifestação sexual infantil. Esta nasce apoiando-se
numa das funções somáticas vitais,
ainda não conhece nenhum objeto sexual, sendo auto-erótica, e seu alvo sexual acha-se sob o
domínio de uma zona erógena. Antecipemos que essas
características são válidastambém para a
maioria das outras atividades das pulsões sexuais infantis.
(3) O ALVO SEXUAL DA SEXUALIDADE INFANTIL
CARACTERÍSTICAS DAS ZONAS
ERÓGENAS
Do exemplo do chuchar podemos ainda deduzir várias coisas
para a caracterização do que
é uma zona erógena. Trata-se de uma parte da pele ou da
mucosa em que certos tipos de
estimulação provocam uma sensação prazerosa de determinada
qualidade. Não há dúvida de que
os estímulos produtores de prazer estão ligados a condições
especiais que desconhecemos. Entre
elas, o caráter rítmico deve desempenhar algum papel,
impondo-se aqui a analogia com as
cócegas. Menos seguro, parece, é se o caráter da sensação
prazerosa provocada pelo estímulo
pode ser designado de “particular”, particularidadeesta em
que estaria contido justamente o fator
sexual. Em matéria de prazer e desprazer, a psicologia ainda
tateia tanto no escuro que as
hipóteses mais prudentes são as mais recomendáveis.Mais
adiante, talvez deparemos com razões
que pareçam sustentar a idéia de uma qualidade particular da
sensação prazerosa.
A propriedade erógena pode ligar-se de maneira maismarcante
a certas partes do corpo.
Existem zonas erógenas predestinadas, como mostra oexemplo
do chuchar. Mas esse exemplo
ensina também que qualquer outro ponto da pele ou da mucosa
pode tomar a seu encargo as
funções de uma zona erógena, devendo, portanto, tercerta
aptidão para isso. Assim, a qualidade
do estímulo, mais do que a natureza das partes do corpo, é
que tem a ver com a produção da
sensação prazerosa. A criança chuchadora perscruta seu corpo
para sugar alguma parte dele, que
depois, por hábito, torna-se a preferida; quando tropeça
casualmente numa das partes
predestinadas (os mamilos, a genitália), esta decerto retém
a preferência. Uma capacidade de
deslocamento inteiramente análoga reaparece na
sintomatologia da histeria. Nessa neurose, o
recalcamento afeta sobretudo as zonas genitais propriamente
ditas, e estas transmitem sua
excitabilidade a outras zonas erógenas, de outro modo
relegadas na vida adulta, que então se
comportam exatamente como genitais. Além disso, porém, tal
como ocorre no chuchar, qualquer
outra parte do corpo pode ser provida da excitabilidade da
genitália e alçada à condição de zona
erógena. As zonas erógenas e histerógenas exibem asmesmas
características.
O ALVO SEXUAL INFANTIL
O alvo sexual da pulsão infantil consiste em provocar a satisfação
mediante a estimulação
apropriada da zona erógena que de algum modo foi escolhida.
Essa satisfação deve ter sido
vivenciada antes para que reste daí uma necessidadede
repeti-la, e é lícito esperarmos que a
natureza tenha tomado medidas seguras para que essavivência
não fique entregue ao acaso. Já
tomamos conhecimento do que é que promove a satisfação dessa
finalidade no caso da zona
labial: é a ligação simultânea dessa parte do corpocom a
alimentação. Ainda depararemos com
outros dispositivos semelhantes como fontes da sexualidade.
O estado de necessidade de repetir
uma satisfação transparece de duas maneiras: por
umsentimento peculiar de tensão, que tem,
antes, o caráter de desprazer, e por uma sensação de prurido
ou estimulação centralmente
condicionadae projetada para a zona erógena periférica. Por
isso, pode-se também formular o
alvo sexual de outra maneira: ele viria substituir a sensação de estimulação projetada na zona
erógena pelo estímulo externo que a abolisse ao provocar a
sensação de satisfação. Esse
estímulo externo consiste, na maioria das vezes, numa
manipulação análoga ao sugar.
Está em perfeito acordo com nossos conhecimentos
fisiológicos que a necessidade possa
também ser evocada perifericamente, através de uma modificação real na zona erógena. Só é um
tanto estranho que, para ser abolido, um estímulo pareça
exigir a colocação de um segundo no
mesmo lugar.
(4) AS MANlFESTAÇÕES SEXUAIS MASTURBATÓRIAS
Só pode alegrar-nos sumamente descobrir que, uma vez compreendida
a pulsão vinda de
uma única zona erógena, não temos muito mais
coisasimportantes a aprender sobre a atividade
sexual das crianças. As diferenças mais significativas dizem
respeito às providências necessárias à
satisfação, que, no caso da zona labial, consistiamno sugar,
e que terão de ser substituídas por
outras ações musculares conforme a posição e a natureza das
outras zonas.
ATIVIDADE DA ZONA ANAL
Tal como a zona dos lábios, a zona anal está apta, por sua
posição, a mediar um apoio da
sexualidade em outras funções corporais. É de se presumir
que a importância erógena dessa parte
do corpo seja originariamente muito grande. lnteiramo-nos
pela psicanálise, não sem certo
assombro, das transmutações por que normalmente passam as
excitações sexuais dela
provenientes e da freqüência com que essa zona conserva
durante toda a vida uma parcela
considerável de excitabilidade genital. Os distúrbios
intestinais tão freqüentes na infância
providenciam para que não faltem a essa zona excitações intensas.
Os catarros intestinais na mais
tenra idade deixam a criança “nervosa”, como se costuma
dizer; no adoecimento neurótico
posterior, eles têm uma influência determinante na
manifestação somática da neurose e colocam à
disposição dela toda a soma das perturbações intestinais.
Considerando-se a significação erógena
da zona rectal, que se preserva ao menos em sua
transmutação, tampouco podemos rir da
influência das hemorróidas, às quais a medicina antiga
atribuía tanta importância no
esclarecimento dos estados neuróticos.
As crianças que tiram proveito da estimulabilidade erógena
da zona anal denunciam-se por
reterem as fezes até que sua acumulação provoca violentas
contrações musculares e, na
passagem pelo ânus, pode exercer uma estimulação intensa na
mucosa. Com isso, hão de
produzir-se sensações de volúpia ao lado das sensações
dolorosas. Um dos melhores presságios
de excentricidade e nervosismo posteriores é a recusa
obstinada do bebê a esvaziar o intestino ao
ser posto no troninho, ou seja, quando isso é desejado pela
pessoa que cuida dele, ficando essa
função reservada para quando aprouver a ele próprio.
Naturalmente, não é que lhe interesse sujar
a cama; ele está apenas providenciando para que nãolhe
escape o dividendo de prazer que vem
junto com a defecação. Mais uma vez, os educadores têm razão ao chamarem de perversas
[schlimm] as crianças que “retardam” essas funções.
O conteúdo intestinal, que, enquanto corpo estimulador,
comporta-se frente a uma área de
mucosa sexualmente sensível como precursor de outroórgão
destinado a entrar em ação depois
da fase da infância, tem ainda para o lactante outros
importantes sentidos. É obviamente tratado
como parte de seu próprio corpo, representando o primeiro
“presente”: ao desfazer-se dele, a
criaturinha pode exprimir sua docilidade perante o meio que a cerca, e ao recusá-lo, sua
obstinação. Do sentido de “presente”, esse conteúdopassa
mais tarde ao de “bebê”, que, segundo
uma das teorias sexuais infantis (ver em [1]), é adquirido
pela comida e nasce pelo intestino.
A retenção da massa fecal, a princípio intencionalmente
praticada para tirar proveito da
estimulação como que masturbatória da zona anal, oupara ser
empregada na relação com as
pessoas que cuidam da criança, é, aliás, uma das raízes da
constipação tão freqüente nos
neuropatas. Além disso, o sentido pleno da zona anal
espelha-se no fato de se encontrarem muito
poucos neuróticos que não tenham seus rituais escatológicos
especiais, suas cerimônias e coisas
similares, por eles cuidadosamente mantidos em segredo.
A estimulação masturbatória efetiva da zona anal com a ajuda
do dedo, provocada por
uma comichão centralmente determinada ou perifericamente
mantida, não é nada rara nas
crianças mais velhas.
ATIVIDADE DA ZONA GENITAL
Entre as zonas erógenas do corpo infantil encontra-se uma
que decerto não desempenha
o papel principal nem pode ser a portadora das moções
sexuais mais antigas, mas que está
destinada a grandes coisas no futuro. Nas crianças tanto de
sexo masculino quanto feminino, está
ligada à micção (glande, clitóris) e, nas primeiras, acha-se
dentro de uma bolsa de mucosa, de
modo que não pode faltar-lhe a estimulação por secreções que
aticem precocemente a excitação
sexual. As atividades sexuais dessa zona erógena, que faz
parte dos órgãos sexuais propriamente
ditos, são sem dúvida o começo da futura vida sexual
“normal”.
Por sua posição anatômica, pelas secreções em que estão
banhadas, pela lavagem e
fricção advindas dos cuidados com o corpo e por certas
excitações acidentais (como as migrações
de vermes intestinais nas meninas), é inevitável que a
sensação prazerosa que essas partes do
corpo são capazes de produzir se faça notar à criança já na
fase de amamentação, despertando
uma necessidade de repeti-la. Considerada a soma dos
dispositivos existentes e ponderando que
as providências para manter a limpeza mal podem atuar de
modo diferente da sujeira, custa evitar
a conclusão de que é através do onanismo do lactante, do
qual praticamente nenhum indivíduo
escapa, que se estabelece a futura primazia dessa zona
erógena na atividade sexual. A ação que
elimina o estímulo e provoca a satisfação consiste num contato por fricção manual ou numa
pressão (decerto preparada nos moldes de um reflexo)
exercida com a mão ou unindo as coxas.
Este último método é de longe o mais freqüente nas meninas. Nos meninos, a preferência pela
mão já indica a importante contribuição que a pulsão de
dominação está destinada a fazer para a
atividade sexual masculina.
A bem da clareza, convém eu indicar que é preciso distinguir
três fases da masturbação
infantil. A primeira é própria do período de lactância, a
segunda pertence à breve florescência da
atividade sexual por volta do quarto ano de vida, esomente a
terceira corresponde ao onanismo da
puberdade, amiúde o único a ser levado em conta.
A SEGUNDA FASE DA MASTURBAÇÃO
INFANTIL
O onanismo do lactante parece desaparecer após um curto
prazo, mas seu
prosseguimento ininterrupto até a puberdade pode constituir
o primeiro grande desvio do
desenvolvimento a que se aspira para os seres humanos
inseridos na cultura. Em algum momento
da infância posterior ao período de amamentação, comumente
antes do quarto ano, a pulsão
sexual dessa zona genital costuma redespertar e novamente
durar algum tempo, até ser detida por
uma nova supressão, ou prosseguir ininterruptamente. As
circunstâncias possíveis são muito
variadas e só é viável apreciá-las mediante uma análise mais
rigorosa dos casos individuais. Mas
todos os detalhes dessa
segundafase de atividade sexual infantil deixam atrás de si as mais
profundas marcas (inconscientes) na memória da pessoa,
determinam o desenvolvimento de seu
caráter, caso ela permaneça sadia, e a sintomatologia de sua
neurose, caso venha a adoecer
depois da puberdade. Nesta última eventualidade, constatamos
que esse período sexual foi
esquecido e que as lembranças conscientes que o testemunham
foram deslocadas; já afirmei que
eu também vincularia a amnésia infantil normal com essa atividade sexual infantil. Através da
investigação psicanalítica é possível tornar consciente o
esquecido e, desse modo, eliminar uma
compulsão que provém do material psíquico inconsciente.
O RETORNO DA MASTURBAÇÃO DA
LACTÂNCIA
A excitação sexual do período de lactância retorna nos anos infantis já indicados, seja
como um estímulo de prurido centralmente condicionado, que
exorta a uma satisfação
masturbatória, seja como um processo da natureza deuma
polução, que, em analogia com as
poluções da maturidade, chega à satisfação sem a ajuda de
ação alguma. Este último caso é o
mais freqüente nas meninas e na segunda metade da infância;
não é inteiramente compreensível
em termos do que o condiciona e, muitas vezes, embora não
regularmente, parece ter como
premissa um período anterior de onanismo ativo. A
sintomatologia dessas manifestações sexuais é
escassa; o que dá sinal do aparelho sexual ainda não
desenvolvido é, na maioria das vezes, o
aparelho urinário, que funciona, por assim dizer, como tutor
dele. A maioria dos chamados
distúrbios vesicais dessa época são perturbações sexuais; a
enurese noturna, quando não
representa um ataque epilético, corresponde a uma polução.
Para o reaparecimento da atividade sexual são decisivas as
causas internas e as
contingências externas, ambas as quais podem ser inferidas,
nos casos de doença neurótica, a
partir da forma dos sintomas, sendo descobertas comcerteza
através da investigação
psicanalítica. Sobre as causas internas falaremos mais
adiante; as contingências fortuitas externas
ganham nesse período uma importância grande e duradoura. Em
primeiro plano situa-se a
influência da sedução, que trata a criança prematuramente
como um objeto sexual e que, em
circunstâncias que causam forte impressão, ensina-aa
conhecer a satisfação das zonas genitais -
uma satisfação que ela fica quase sempre obrigada arenovar
pelo onanismo. Tal influência pode
provir de adultos ou de outras crianças; não me é possível
admitir que, em meu ensaio sobre “A
Etiologia da Histeria” (1896c), eu tenha superestimado sua
freqüência ou sua importância, embora
eu ainda não soubesse, na época, que os indivíduos que permanecem normais podem ter tido na
infância as mesmas experiências, e por isso tenha dado maior
valor à sedução do que aos fatores
da constituição e do desenvolvimento sexuais. É evidente que
a sedução não é necessária para
despertar a vida sexual da criança, podendo esse despertar
surgir também, espontaneamente, de
causas internas.
DISPOSIÇÃO PERVERSA POLIMORFA
É instrutivo que a criança, sob a influência da sedução,
possa tornar-se perversa polimorfa
e ser induzida a todas as transgressões possíveis. Isso mostra que traz em sua disposição a
aptidão para elas; por isso sua execução encontra pouca resistência,
já que, conforme a idade da
criança, os diques anímicos contra os excessos sexuais - a
vergonha, o asco e a moral - ainda não
foram erigidos ou estão em processo de construção. Nesse
aspecto, a criança não se comporta de
maneira diversa da mulher inculta média, em quem seconserva
a mesma disposição perversa
polimorfa. Em condições usuais, ela pode
permanecersexualmente normal, mas, guiada por um
sedutor habilidoso, terá gosto em todas as perversões e as
reterá em sua atividade sexual. Essa
mesma disposição polimorfa, e portanto infantil, é também
explorada pelas prostitutas no exercício
de sua profissão, e no imenso número de mulheres
prostituídas ou em quem se deve supor uma
aptidão para a prostituição, embora tenham escapadoao
exercício dela, é impossível não
reconhecer nessa tendência uniforme a toda sorte
deperversões algo que é universalmente
humano e originário.
PULSÕES PARCIAIS
De resto, a influência da sedução não ajuda a revelar as
circunstâncias iniciais da pulsão
sexual, mas antes confunde nossa visão dela, uma vez que
apresenta prematuramente à criança
um objeto sexual de que, a princípio, a pulsão sexual
infantil não mostra nenhuma necessidade.
Contudo, devemos admitir que também a vida sexual infantil,
apesar da dominação preponderante
das zonas erógenas, exibe componentes que desde o início
envolvem outras pessoas como
objetos sexuais. Dessa natureza são as pulsões do prazer de
olhar e de exibir, bem como a de
crueldade, que aparecem com certa independência daszonas
erógenas e só mais tarde entram
em relações estreitas com a vida genital, mas que já na
infância se fazem notar como aspirações
autônomas, inicialmente separadas da atividade sexual
erógena. A criança pequena é, antes de
mais nada, desprovida de vergonha, e em certos períodos de
seus primeiros anos mostra uma
satisfação inequívoca no desnudamento do corpo, comênfase
especial nas partes sexuais. A
contrapartida dessa inclinação tida como perversa -a
curiosidade de ver a genitália de outras
pessoas - provavelmente só se torna manifesta um pouco mais
tarde na infância, quando o
obstáculo do sentimento de vergonha já atingiu certo
desenvolvimento. Sob a influência da
sedução, a perversão de ver pode alcançar grande importância
na vida sexual da criança.
Entretanto, minhas investigações da meninice tanto de pessoas sadias quanto de doentes
neuróticos forçam-me a concluir que a pulsão de verpode
surgir na criança como uma
manifestação sexual espontânea. As crianças pequenas cuja
atenção foi atraída, em algum
momento, para sua própria genitália - geralmente pela
masturbação - costumam dar o passo
adicional sem ajuda externa e desenvolver um vivo interesse
pelos genitais de seus coleguinhas.
Dado que as oportunidades de satisfazer tal curiosidade em geral
só se apresentam quando da
satisfação das duas necessidades excrementícias, tais
crianças tornam-se voyeurs, zelosos
espectadores da micção e da defecação de outrem. Uma vez
sobrevindo o recalcamento dessas
inclinações, a curiosidade de ver a genitália alheia (seja
do mesmo sexo ou do sexo oposto)
persiste como uma pressão torturante, que em muitoscasos de
neurose fornece, posteriormente, a
mais poderosa força impulsora para a formação do sintoma.
Com independência ainda maior das outras atividadessexuais
vinculadas às zonas
erógenas desenvolve-se na criança o componente de crueldade
da pulsão sexual. A crueldade é
perfeitamente natural no caráter infantil, já que atrava que
faz a pulsão de dominação deter-se
ante a dor do outro - a capacidade de compadecer-se- tem um
desenvolvimento relativamente
tardio. É sabido que ainda não se teve êxito na análise
psicológica exaustiva dessa pulsão;
podemos supor que o impulso cruel provenha da pulsão de
dominação e surja na vida sexual
numa época em que os genitais ainda não assumiram seu papel
posterior. Assim, ela domina uma
fase da vida sexual que mais adiante descreveremos como organização pré-genital. As crianças
que se distinguem por uma crueldade peculiar para com os
animais e os companheiros despertam,
em geral justificadamente, a suspeita de uma atividade
sexual intensa e precoce advinda das
zonas erógenas, e mesmo no amadurecimento precoce
esimultâneo de todas as pulsões sexuais,
a atividade sexual erógena parece ser primária. A ausência
da barreira da compaixão traz consigo
o risco de que esse vínculo estabelecido na infância entre
as pulsões cruéis e as erógenas torne-se
depois indissolúvel na vida.
Desde as Confissõesde
Jean Jacques Rousseau, a estimulação dolorosa da pele das
nádegas tem sido reconhecida por todos os educadores como
uma das raízes erógenas da pulsão
passiva de crueldade (masoquismo). Disso eles concluíram com
acerto que o castigo corporal, que
quase sempre incide nessa parte do corpo, deve ser evitado em todas as crianças cuja libido,
através das exigências posteriores da educação cultural,
possa ser forçada para vias colaterais.
(5) A INVESTIGAÇÃO SEXUAL INFANTIL
A PULSÃO DE SABER
Ao mesmo tempo em que a vida sexual da criança chega a sua
primeira florescência, entre
os três e os cinco anos, também se inicia nela a atividade
que se inscreve na pulsão de saber ou
de investigar. Essa pulsão não pode ser computada entre os
componentes pulsionais elementares,
nem exclusivamente subordinada à sexualidade. Sua atividade
corresponde, de um lado, a uma
forma sublimada de dominação e, de outro, trabalha com a energia escopofílica. Suas relações
com a vida sexual entretanto, são particularmente
significativas, já que constatamos pela
psicanálise que, na criança, a pulsão de saber é atraída, de
maneira insuspeitadamente precoce e
inesperadamente intensa, pelos problemas sexuais, etalvez
seja até despertada por eles.
O ENIGMA DA ESFINGE
Não são interesses teóricos, mas práticos, que põemem marcha
a atividade investigatória
na criança. A ameaça trazida para suas condições
existenciais pela chegada conhecida ou
suspeitada de um novo bebê, assim como o medo de que esse
acontecimento traga consigo a
perda de cuidados e de amor, tornam a criança pensativa e
perspicaz. O primeiro problema de que
ela se ocupa, em consonância com essa história do despertar
da pulsão de saber, não é a questão
da diferença sexual, e sim o enigma; de onde vêm osbebês?
Numa distorção facilmente anulável,
esse é também o enigma proposto pela Esfinge de Tebas. Ao
contrário, o fato de existirem dois
sexos é inicialmente aceito pela criança sem nenhuma
rebeldia ou hesitação. Para o menino, é
natural presumir uma genitália igual à sua em todasas
pessoas que ele conhece, sendo-lhe
impossível conjugar a falta dela com sua representação
dessas outras pessoas.
COMPLEXO DE CASTRAÇÃO E INVEJA
DO PÊNIS
Essa convicção é energicamente sustentada pelos meninos,
obstinadamente defendida
contra a tradição que logo resulta da observação, esomente
abandonada após sérias lutas
internas (o complexo de castração). As formações
substitutivas desse pênis perdido das mulheres
desempenham um grande papel na forma assumida pelasdiversas
perversões.
A suposição de uma genitália idêntica (masculina) em todos
os seres humanos é a
primeira das notáveis e momentosas teorias sexuais infantis. Tem pouca serventia para a criança
que a ciência biológica dê razão a seu preconceito e tenha
de reconhecer o clitóris feminino como
um autêntico substituto do pênis. Já a garotinha não incorre
em semelhantes recusas ao avistar os
genitais do menino, com sua conformação diferente. Está pronta a reconhecê-lo de imediato e é
tomada pela inveja do pênis, que culmina no desejo de ser
também um menino, tão importante em
suas conseqüências.
TEORIAS DO NASCIMENTO
Muitas pessoas recordam com clareza a intensidade com que se
interessaram, no período
pré-púbere, pela questão da proveniência dos bebês.As
soluções anatômicas então concebidas
foram dos mais diversos tipos: eles sairiam do seio, ou se
recortariam do ventre, ou o umbigo se
abriria para deixá-los passar. Fora da análise, é muito raro
haver lembranças de uma investigação
correspondente nos primeiros anos da infância; há muito ela
sucumbiu ao recalcamento, mas seus
resultados são uniformes: os filhos chegam quando se come
determinada coisa (como nos contos
de fadas) e nascem pelo intestino, como na eliminação de
fezes. Essas teorias infantis fazem
lembrar condições existentes no reino animal, sobretudo a
cloaca dos tipos de animais inferiores
aos mamíferos.
A CONCEPÇÃO SÁDICA DA RELAÇÃO
SEXUAL
Quando as crianças em tão tenra idade assistem à relação
sexual entre adultos, o que é
ensejado pela convicção dos mais velhos de que a criança
pequena não pode entender nada de
sexual, elas não podem deixar de conceber o ato sexual como
uma espécie de sevícia ou
subjugação, ou seja, de encará-lo num sentido sádico. A
psicanálise também nos permite verificar
que uma impressão dessa natureza na primeira infância
contribui em muito para a predisposição a
um deslocamento sádico posterior do alvo sexual. Ademais, as
crianças se ocupam muito com o
problema de saber em que consiste a relação sexual,ou, como
dizem elas, em que consiste ser
casado, e costumam buscar a solução do mistério em alguma atividade conjunta proporcionada
pelas funções de micção ou defecação.
O FRACASSO TÍPICO DA
INVESTIGAÇÃO SEXUAL INFANTIL
Em geral, pode-se dizer das teorias sexuais infantis que
elas são reflexos da própria
constituição sexual da criança, e que, apesar de seus erros
grotescos, testemunham uma maior
compreensão dos processos sexuais do que se pretenderia de
seus criadores. As crianças
também percebem as alterações provocadas na mãe pela
gravidez e sabem interpretá-las
corretamente; a fábula da cegonha é amiúde contada a uma platéia que a recebe com
desconfiança profunda, embora quase sempre silenciosa. Mas
como dois elementos permanecem
desconhecidos na investigação sexual infantil, a saber, o
papel do sêmen fecundante e a
existência do orifício sexual feminino - os mesmos pontos, aliás, em que a organização sexual
infantil ainda está atrasada -, os esforços do pequeno
investigador são geralmente infrutíferos, e
acabam numa renúncia que não raro deixa como seqüela um
prejuízo permanente para a pulsão
de saber. A investigação sexual desses primeiros anos da
infância é sempre feita na solidão;
significa um primeiro passo para a orientação autônoma no
mundo e estabelece um intenso
alheamento da criança frente às pessoas de seu meioque antes
gozavam de sua total confiança.
(6) AS FASES DE DESENVOLVIMENTO DA ORGANIZAÇÃO SEXUAL
Até agora, destacamos como características da vida sexual infantil o fato de ela ser
essencialmente auto-erótica (seu objeto encontra-seno
próprio corpo) e de suas pulsões parciais
serem inteiramente desvinculadas e independentes entre si em
seus esforços pela obtenção de
prazer. O desfecho do desenvolvimento constitui a chamada
vida sexual normal do adulto, na qual
a obtenção de prazer fica a serviço da função reprodutora, e
as pulsões parciais, sob o primado de
uma única zona erógena, formam uma organização sólida para a
consecução do alvo sexual num
objeto sexual alheio.
ORGANIZAÇÕES PRÉ-GENITAIS
O estudo das inibições e perturbações desse processo de
desenvolvimento, com a ajuda
da psicanálise, permite-nos identificar os rudimentos e
etapas preliminares de tal organização das
pulsões parciais, que ao mesmo tempo resultam numa espécie de regime sexual. Essas fases da
organização sexual são normalmente atravessadas
semdificuldade, revelando-se apenas por
alguns indícios. Somente nos casos patológicos é que são
ativadas e se tornam passíveis de
conhecimento pela observação grosseira.
Chamaremos pré-genitaisàs organizações da vida sexual em que
as zonas genitais ainda
não assumiram seu papel preponderante. Até aqui tomamos
conhecimento de duas delas, que dão
a impressão de constituir recaídas em estados anteriores da
vida animal.
A primeira dessas organizações sexuais pré-genitaisé a oral, ou, se preferirmos,
canibalesca. Nela, a atividade sexual ainda não se separou
da nutrição, nem tampouco se
diferenciaram correntes opostas em seu interior. O objeto de
uma atividade é também o da outra, e
o alvo sexual consiste na incorporaçãodo objeto - modelo do
que mais tarde irá desempenhar, sob
a forma da identificação, um papel psíquico tão importante.
Como resíduo dessa hipotética fase de
organização que nos foi imposta pela patologia podemos ver o
chuchar, no qual a atividade sexual,
desligada da atividade de alimentação, renunciou aoobjeto
alheio em troca de um objeto situado
no próprio corpo.
Uma segunda fase pré-genital é a da organização sádico-anal.
Nela, a divisão em opostos
que perpassa a vida sexual já se constituiu, mas eles ainda
não podem ser chamados de
masculinoe feminino,
e sim ativoe passivo. A atividade é produzida pela pulsão
de dominação
através da musculatura do corpo, e como órgão do alvo sexual
passivo o que se faz valer é, antes
de mais nada, a mucosa erógena do intestino; mas hápara
essas duas aspirações opostas objetos
que não coincidem. Ao lado disso, outras pulsões parciais
atuam de maneira auto-erótica. Nessa
fase, portanto, já é possível demonstrar a polaridade sexual
e o objeto alheio, faltando ainda a
organização e a subordinação à função reprodutora.
AMBIVALÊNCIA
Essa forma da organização sexual pode conservar-se por toda a vida e atrair
permanentemente para si uma boa parcela da atividade sexual.
O predomínio do sadismo e o
papel de cloaca desempenhado pela zona anal conferem-lhe um
cunho singularmente arcaico.
Como característica adicional, é próprio dela que os pares
opostos de pulsões estejam
desenvolvidos de maneira aproximadamente igual, numestado de
coisas descrito pela oportuna
designação de “ambivalência”, introduzida por Bleuler.
A hipótese das organizações pré-genitais da vida sexual
repousa na análise das neuroses
e é difícil apreciá-la independentemente do conhecimento
destas. Podemos esperar que a
continuidade dos esforços analíticos venha a fornecer-nos
muito mais informações sobre a
estrutura e o desenvolvimento da função sexual normal.
Para completar o quadro da vida sexual infantil, é preciso
acrescentar que, com freqüência
ou regularmente, já na infância se efetua uma escolha
objetal como a que mostramos ser
característica da fase de desenvolvimento da puberdade, ou
seja, o conjunto das aspirações
sexuais orienta-se para uma única pessoa, na qual elas
pretendem alcançar seus objetivos. Na
infância, portanto, essa é a maior aproximação possível da
forma definitiva assumida pela vida
sexual depois da puberdade. A diferença desta última reside
apenas em que a concentração das
pulsões parciais e sua subordinação ao primado da genitália
não são conseguidas na infância, ou
só o são de maneira muito incompleta. Assim, o
estabelecimento desse primado a serviço da
reprodução é a última fase por que passa a organização
sexual.
OS DOIS TEMPOS DA ESCOLHA
OBJETAL
Pode-se considerar como ocorrência típica que a escolha de
objeto se efetue em dois
tempos, em duas ondas. A primeira delas começa entre os dois
e os cinco anos e retrocede ou é
detida pelo período de latência; caracteriza-se pela
natureza infantil de seus alvos sexuais. A
segunda sobrevém com a puberdade e determina a configuração
definitiva da vida sexual.
Mas a existência da bitemporalidade da escolha objetal, que
se reduz essencialmente ao
efeito do período de latência, é de suma importância para o
desarranjo desse estado final. Os
resultados da escolha objetal infantil prolongam-sepelas
épocas posteriores; ou se conservam
como tal ou passam por uma renovação na época da puberdade.
Contudo, revelam-se
inutilizáveis, em conseqüência do recalcamento que se desenvolve entre as duas fases. Seus
alvos sexuais foram amenizados e agora representam o que se pode descrever como a corrente
de ternura da vida sexual. Somente a investigação
psicanalítica pode demonstrar que, por trás
dessa ternura, dessa veneração e respeito, ocultam-se as
antigas aspirações sexuais, agora
imprestáveis, das pulsões parciais infantis. A escolha de
objeto da época da puberdade tem de
renunciar aos objetos infantis e recomeçar como
umacorrente sensual. A não confluência
dessas
duas correntes tem como conseqüência, muitas vezes,a
impossibilidade de se alcançar um dos
ideais da vida sexual - a conjugação de todos os desejos num
único objeto.
(7) AS FONTES DA SEXUALIDADE INFANTIL
No esforço de rastrear as origens da pulsão sexual,descobrimos
até agora que a
excitação sexual nasce
(a)como a reprodução de uma satisfação vivenciada em relação a outros
processos orgânicos,
(b)pela estimulação periférica apropriada das zonas erógenas, e (c)como
expressão de algumas “pulsões” que ainda não nos são
inteiramente compreensíveis em sua
origem, como a pulsão de ver e a pulsão para a crueldade. A
investigação psicanalítica, que
retrocede de uma época posterior para a infância, ea
observação contemporânea da criança
conjugam-se para nos apontar outras fontes que fluem
regularmente para a excitação sexual. A
observação de crianças tem a desvantagem de trabalhar com
dados facilmente passíveis de mal-entendidos, e a psicanálise é dificultada
pelo fatode só poder chegar a seus dados e conclusões
depois de longos rodeios; em cooperação, entretanto, os dois
métodos obtêm um grau satisfatório
de certeza de conhecimentos.
Pela investigação das zonas erógenas, já descobrimos que
essas regiões da pele
meramente mostram uma intensificação especial de umtipo de
estimulabilidade que, em certo
grau, é próprio de toda a superfície cutânea. Portanto, não
nos surpreenderá constatar que é
possível atribuir efeitos erógenos muito claros a certos
tipos de estimulação geral da pele. Entre
esses, destacamos acima de tudo os estímulos térmicos, o que
talvez facilite nossa compreensão
do efeito terapêutico dos banhos quentes.
EXCITAÇÕES MECÂNICAS
Devemos ainda arrolar aqui a produção de excitação sexual pela agitação mecânica e
ritmada do corpo, na qual devemos distinguir três formas de
atuação estimulatória: no aparato
sensorial dos nervos vestibulares, na pele e nas áreas
profundas (músculos, aparelho articular). A
existência das sensações prazerosas assim geradas -vale
enfatizar que é lícito empregarmos
indistintamente, numa vasta medida, “excitação sexual” e
“satisfação”, cabendo-nos o dever de
buscar mais adiante uma explicação para isso [ver em [1]]-,
a existência dessas sensações
prazerosas, produzidas por certos tipos de agitaçãomecânica
do corpo, é confirmada pelo fato de
as crianças gostarem tanto das brincadeiras de movimento
passivo, como serem balançadas e
jogadas para o alto, e de pedirem incessantemente que sejam
repetidas. Sabe-se que é
costumeiro usar o recurso de embalar as crianças inquietas
para fazê-las adormecer. O balanço
das carruagens e, mais tarde, das viagens de trem exerce um
efeito tão fascinante nas crianças
mais velhas que pelo menos todos os meninos, em algum
momento da vida, quiseram ser
condutores de trem ou cocheiros quando crescessem. Eles dedicam um intrigante interesse de
extraordinária intensidade a tudo o que se relaciona com as
ferrovias, e, na idade em que se ativa
a fantasia (pouco antes da puberdade), fazem disso o núcleo de um simbolismo singularmente
sexual. É evidente que a compulsão a estabelecer tal vínculo
entre as viagens ferroviárias e a
sexualidade provém do caráter prazeroso das sensações de
movimento. Sobrevindo então o
recalcamento, que converte tantas das predileções infantis em
seu oposto, essas mesmas
pessoas, quando adolescentes ou adultas, reagirão com
náuseas aos balanços e sacolejos, ficarão
terrivelmente esgotadas pelas viagens de trem, ou tenderão a
sofrer ataques de angústia nas
viagens, protegendo-se da repetição dessa experiência
dolorosa através de um pavor das
ferrovias.
Alinha-se aqui o fato, ainda não compreendido, de que a
conjugação do susto com a
agitação mecânica produz a grave neurose
traumáticahisteriforme. Podemos ao menos supor que
essas influências, que numa intensidade ínfima
transformam-se em fontes de excitação sexual,
provoquem, em medida excessiva, uma profunda desordem no
mecanismo ou na química sexual.
ATIVIDADE MUSCULAR
É sabido que a atividade muscular intensa é, para acriança,
uma necessidade de cuja
satisfação ela extrai um prazer extraordinário. Se esse
prazer tem algo a ver com a sexualidade, se
encerra em si mesmo uma satisfação sexual, ou se pode
converter-se no ensejo de uma excitação
sexual, tudo isso é passível de considerações críticas que,
de fato, podem também apontar contra
a colocação contida nos parágrafos precedentes, a saber, que
o prazer extraído das sensações de
movimento passivo é de natureza sexual ou produz excitação
sexual. Mas o fato é que uma série
de pessoas informa ter vivenciado os primeiros sinais de
excitação em sua genitália no curso de
brigas ou lutas com seus companheiros de brincadeiras,
situação na qual, além do esforço
muscular generalizado, há ainda um estreito contatocom a
pele do oponente. A tendência a travar
lutas musculares com determinada pessoa, bem como, em épocas posteriores, a inclinação às
disputas verbais [“Provoca-se o que se ama”] são umbom sinal
de que a escolha de objeto recaiu
sobre essa pessoa. Na promoção da excitação sexual através da atividade muscular caberia
reconhecer uma das raízes da pulsão sádica. Em muitos
indivíduos, a vinculação infantil entre as
lutas corporais e a excitação sexual é co-determinante da
orientação privilegiada que assumirá,
mais tarde, sua pulsão sexual.
PROCESSOS AFETIVOS
Menores são as dúvidas a que ficam sujeitas as outras fontes
de excitação sexual na
criança. É fácil demonstrar, tanto pela observação contemporânea quanto pela investigação
posterior, que todos os processos afetivos mais intensos,
inclusive as excitações assustadoras,
propagam-se para a sexualidade, o que, aliás, pode contribuir para a compreensão do efeito
patogênico de tais abalos anímicos. Nos escolares, o pavor
de fazer uma prova ou a tensão diante
de uma tarefa difícil de solucionar podem ser importantes
não só para seu relacionamento com a
escola, mas também para a irrupção de manifestaçõessexuais,
na medida em que, nessas
circunstâncias, é muito freqüente surgir uma sensação
estimuladora que incita ao contato com a
genitália, ou ainda um processo da natureza de uma polução, como todas as suas conseqüências
desconcertantes. O comportamento das crianças na escola, que
propõe aos professores um
número bastante grande de enigmas, merece, em geral, ser
relacionado com o desabrochar de
sua sexualidade. O efeito sexualmente excitante de muitos afetos que em si são desprazerosos,
tais como a angústia, o medo ou o horror, conserva-se num
grande número de seres humanos por
toda a vida, e sem dúvida explica por que tantas pessoas
correm atrás da oportunidade de
vivenciar tais sensações, desde que haja apenas certas
circunstâncias secundárias (a pertença a
um mundo imaginário, à leitura ou ao teatro) para atenuar a
gravidade da sensação desprazerosa.
Presumindo-se que também as sensações de dor intensa
provoquem o mesmo efeito
erógeno, sobretudo quando a dor é abrandada ou mantida a
distância por alguma condição
concomitante, estaria nessa vinculação uma das principais
raízes da pulsão sadomasoquista, de
cujas múltiplas complexidades vamos assim ganhando aos
poucos algum discernimento.
TRABALHO INTELECTUAL
Por fim, é inequívoco que a concentração da atençãonuma
tarefa intelectual, bem como o
esforço intelectual em geral, têm por conseqüência produzir em muitas pessoas, tanto jovens
quanto adultas, uma excitação sexual concomitante, o que por certo constitui a única base
justificável para a tão duvidosa prática de derivaras
perturbações nervosas do “excesso de
trabalho” intelectual.
Correndo agora os olhos por essas provas e
indíciosfornecidos sobre as fontes da
excitação sexual infantil, e que não foram completos nem
exaustivos, podemos vislumbrar ou
reconhecer os seguintes traços universais: parece que as
mais abundantes providências são
tomadas para que o processo da excitação sexual - cuja
natureza decerto se tornou bastante
enigmática para nós - seja posto em andamento. Cuidam disso,
antes de mais nada, e de maneira
mais ou menos direta, as excitações das superfíciessensíveis
- a pele e os órgãos sensoriais -, e,
da maneira mais imediata, a influência dos estímulos sobre
certas áreas designadas como zonas
erógenas. O elemento decisivo nessas fontes de excitação
sexual é, sem dúvida, a qualidade do
estímulo, embora o fator da intensidade (no caso dador) não
seja de todo indiferente. Além disso,
porém, existem no organismo dispositivos cuja conseqüência é
fazer com que a excitação sexual
surja como um efeito concomitante num grande númerode
processos internos, tão logo a
intensidade desses processos ultrapasse certos limites
quantitativos. O que chamamos de pulsões
parciais da sexualidade deriva diretamente dessas fontes
internas da excitação sexual , ou então
se compõe de contribuições vindas dessas fontes e das zonas
erógenas. É possível que nada de
maior importância ocorra no organismo sem fornecer seus componentes para a excitação da
pulsão sexual.
Não me parece possível, no momento, trazer maior clareza e
segurança a essas
proposições gerais, e responsabilizo dois fatores por isso:
primeiro, a novidade de todo o método
de abordagem, e segundo, a circunstância de a natureza da
excitação sexual ser-nos inteiramente
desconhecida. Ainda assim, eu não gostaria de renunciar a
duas observações que prometem abrir-nos
amplas perspectivas:
AS DIFERENTES CONSTITUIÇÕES
SEXUAIS
(a)Assim como antes vimos ser possível (ver em [1] e [2]) basear uma multiplicidade de
constituições sexuais inatas na formação diferenciada das
zonas erógenas, podemos agora
experimentar a mesma coisa com a inclusão das fontes
indiretas de excitação sexual. Podemos
presumir que essas fontes façam contribuições em todos os
indivíduos, mas não tenham em todas
as pessoas a mesma intensidade, e que na conformação
privilegiada de cada fonte da excitação
sexual situe-se outra contribuição para diferenciaras
diversas constituições sexuais.
VIAS DE INFLUÊNCIA RECÍPROCA
(b)Se abandonarmos a expressão figurada a que nos apegamos
por tanto tempo ao falar
em “fontes” da excitação sexual, poderemos chegar àhipótese
de que todas as vias de ligação que
levam à sexualidade, vindo de outras funções, devemtambém
ser percorríveis na direção inversa.
Por exemplo, se o fato de a zona labial ser patrimônio comum
de duas funções é a razão por que a
ingestão de alimentos gera uma satisfação sexual, esse mesmo
fator nos permite compreender
que haja distúrbios na nutrição quando as funções erógenas
da zona comum são perturbadas. E,
uma vez, que sabemos que a concentração de atenção é capaz de provocar excitação sexual,
somos levados a supor que, atuando pela mesma via só que em
sentido inverso, o estado de
excitação sexual pode influenciar a disponibilidadede
atenção dirigível a algo. Boa parte da
sintomatologia das neuroses, que deduzo das perturbações nos
processos sexuais, expressa-se
em perturbações de outras funções não-sexuais do corpo; essa
circunstância, até agora
incompreensível, torna-se menos enigmática quando se
considera que representa apenas a
contrapartidadas influências sob as quais se dá a produção
da excitação sexual.
Mas as mesmas vias pelas quais as perturbações sexuais se
propagam para as outras
funções do corpo devem também prestar, na saúde, umoutro
importante serviço. Por elas se daria
a atração das forças pulsionais da sexualidade paraoutros
alvos não-sexuais, ou seja, a
sublimação da sexualidade. Mas devemos encerrar coma
confissão de que é ainda muito pouco o
que se conhece com certeza sobre essas vias, que sem dúvida
existem e provavelmente são
percorríveis em ambas as direções.
AS TRANSFORMAÇÕES DA PUBERDADE
Com a chegada da puberdade introduzem-se as mudanças que
levam a vida sexual infantil
a sua configuração normal definitiva. Até esse momento, a
pulsão sexual era predominantemente
auto-erótica; agora, encontra o objeto sexual. Até ali, ela atuava partindo de pulsões e zonas
erógenas distintas que, independendo umas das outras,
buscavam um certo tipo de prazer como
alvo sexual exclusivo. Agora, porém, surge um novo alvo sexual para cuja consecução todas as
pulsões parciais se conjugam, enquanto as zonas erógenas
subordinam-se ao primado da zona
genital. Posto que o novo alvo sexual atribui aos dois sexos
funções muito diferentes, o
desenvolvimento sexual de ambos passa agora a divergir
muito. O do homem é o mais
conseqüente e também o mais facilmente acessível a nossa
compreensão, enquanto o da mulher
representa até mesmo uma espécie de involução. A normalidade
da vida sexual só é assegurada
pela exata convergência das duas correntes dirigidas ao
objeto sexual e à meta sexual: a de
ternura e a sensual. A primeira destas comporta em si o que
resta da primitiva eflorescência infantil
da sexualidade. É como a travessia de um túnel perfurado
desde ambas as extremidades.
O novo alvo sexual do homem consiste na descarga dos
produtos sexuais; o anterior - a
obtenção do prazer - de modo algum lhe é estranho, mas antes, o mais alto grau de prazer se
vincula a esse ato último do processo sexual. A pulsão
sexual coloca-se agora a serviço da função
reprodutora; torna-se altruísta, por assim dizer. Para que
essa transformação tenha êxito, é preciso
contar, em seu processo, com as disposições originárias e
com todas as particularidades das
pulsões.
Como em todas as outras ocasiões em que se devem realizar no
organismo novas
combinações e composições que levam a mecanismos complexos,
também aqui há uma
oportunidade para perturbações patológicas, caso essas
reordenações não se realizem. Todas as
perturbações patológicas da vida sexual devem ser
consideradas, justificadamente, como inibições
do desenvolvimento.
(1) O PRIMADO DAS ZONAS GENITAIS E O PRÉ-PRAZER
O ponto de partida e o alvo final do processo de
desenvolvimento aqui descrito são claros
a nossos olhos. As transições intermediárias ainda nos são
obscuras em muitos aspectos; teremos
de deixar subsistir nelas mais de um enigma.
Escolheu-se o que mais se destaca nos processos da puberdade
como o que constitui sua
essência: o crescimento manifesto da genitália externa, que
exibira, durante o período de latência
da infância, uma relativa inibição. Ao mesmo tempo,o
desenvolvimento dos genitais internos
avançou o bastante para que eles possam descarregarprodutos
sexuais ou, conforme o caso,
recebê-los para promover a formação de um novo ser vivo. Assim ficou pronto um aparelho
altamente complexo, à espera do momento em que
seráutilizado.
Esse aparelho deve ser acionado por estímulos, e a
observação nos permite saber que os
estímulos podem afetá-los por três caminhos: vindo do mundo externo, mediante a excitação das
zonas erógenas já conhecidas, do interior do organismo, por
vias que ainda temos de explorar, e
da vida anímica, que por sua vez é um repositório de
impressões externas e um receptor de
excitações internas. Pelos três caminhos provoca-seo mesmo
efeito, ou seja, um estado que se
designa como “excitação sexual” e que se exprime por dois
tipos de sinais, anímicos e somáticos.
O indício anímico consiste num sentimento peculiar de
tensão, de caráter extremamente premente;
entre os múltiplos indícios corporais situa-se, em primeiro lugar, uma série de alterações nos
genitais, como o inequívoco sentido de serem disposições
preliminares, preparativos para o ato
sexual (a ereção do membro masculino e a umidificação da
vagina).
TENSÃO SEXUAL
O caráter de tensão da excitação sexual suscita um problema cuja solução é tão difícil
quanto seria importante para a compreensão dos processos
sexuais. Apesar de todas as
diferenças de opinião que reinam sobre esse ponto na
psicologia, devo insistir em que um
sentimento de tensão tem de trazer em si o caráter de desprazer. Para mim, o decisivo é que tal
sentimento traz consigo uma pressão para alterar a situação
psíquica, impulsiona de uma maneira
que é totalmente estranha à natureza do prazer sentido. Mas,
se a tensão da excitação sexual for
computada como um sentimento de desprazer, esbarraremos no
fato de que ela é
inequivocamente experimentada como prazerosa. Sempre que é
produzida por processos sexuais,
a tensão faz-se acompanhar pelo prazer, até mesmo nas
alterações preparatórias dos genitais
evidencia-se uma espécie de satisfação. Como, então,
relacionar essa tensão desprazerosa com
esse sentimento de prazer?
Tudo o que se relaciona com o problema do prazer e do desprazer toca num dos pontos
mais sensíveis da psicologia atual. Procuraremos aprender o
máximo possível a partir das
condições do caso em pauta e evitar qualquer abordagem mais
estreita do problema em sua
totalidade.
Lancemos primeiramente um olhar para o modo como aszonas
erógenas se encaixam na
nova ordem. Sobre elas recai um papel importante
naintrodução da excitação sexual. O olho,
talvez o ponto mais afastado do objeto sexual, é o que com mais freqüência pode ser estimulado,
na situação de cortejar um objeto, pela qualidade peculiar
cuja causa no objeto sexual costuma ser
chamada de “beleza”. Daí se chamarem “atrativos” osméritos
do objeto sexual. A essa
estimulação já se liga, por um lado, um prazer, e pelo outro
ela tem como conseqüência um
aumento da excitação sexual ou a produção dela, caso ainda
esteja faltando. Se a isso vem
somar-se a excitação de outra zona erógena, por exemplo, a
da mão que é tocada, o efeito é o
mesmo: uma sensação de prazer, de um lado, que logose
intensifica pelo prazer proveniente das
alterações preparatórias [da genitália], e, de outro, um
aumento da tensão sexual, que logo se
converte no mais evidente desprazer quando não lhe é permitido o acesso a um prazer ulterior.
Talvez mais transparente ainda seja um outro caso: por
exemplo, quando se estimula por contato,
numa pessoa não excitada sexualmente, uma dada zonaerógena,
digamos, a pele do seio de uma
mulher. Esse contato logo provoca uma sensação prazerosa,
mas, ao mesmo tempo, presta-se
como nenhum outro para despertar uma excitação sexual que
exige um aumento do prazer. O
problema está justamente em saber como é que o prazer
vivenciado pode despertar a necessidade
de um prazer ainda maior.
O MECANISMO DO PRÉ-PRAZER
Ora, o papel desempenhado nisso pelas zonas erógenas é
claro. O que vale para uma
delas vale para todas. Elas são todas usadas para
proporcionar, mediante sua estimulação
apropriada, um certo aumento do prazer; este leva aum
acréscimo de tensão que, por sua vez,
tem de produzir a energia motora necessária para levar a
cabo o ato sexual. A penúltima etapa
desse ato, mais uma vez, é a estimulação apropriadade uma
zona erógena (a própria zona
genital, na glande peniana) pelo objeto mais adequado para
isso (a mucosa da vagina); e do
prazer gerado por essa excitação obtém-se, dessa vez por via
reflexa, a energia motora requerida
para a expulsão das substâncias sexuais. Esse último prazer
é o de intensidade mais elevada e
difere dos anteriores por seu mecanismo. É inteiramente
provocado pela descarga: em sua
totalidade, é um prazer de satisfação, e com ele seextingue
temporariamente a tensão da libido.
Não me parece injustificável fixar através de uma
denominação essa diferença de natureza
entre o prazer advindo da excitação das zonas erógenas e o
que é produzido pela expulsão das
substâncias sexuais. O primeiro pode ser convenientemente
designado de pré-prazer, em
oposição ao prazer
finalou prazer de satisfação da atividade sexual. O pré-prazer, portanto, é o
mesmo que já pudera ser produzido, embora em menor escala,
pela pulsão sexual infantil; o prazer
final é novo e, portanto, provavelmente está ligadoa
condições que só surgem na puberdade. A
fórmula para a nova função das zonas erógenas tem, assim, o
seguinte teor: elas são empregadas
para possibilitar, por meio do pré-prazer delas extraído,
como na infância, a produção do prazer
maior da satisfação.
Pude recentemente elucidar outro exemplo, retirado de uma esfera muito diferente do
acontecer anímico, em que se alcança igualmente um efeito maior de prazer através de uma
sensação prazerosa insignificante, que atua, assim,como um
prêmio de incentivo. Surgiu também
ali a oportunidade de nos aprofundarmos mais na natureza do
prazer.
OS PERIGOS DO PRÉ-PRAZER
A ligação do pré-prazer com a vida sexual
infantil,entretanto, é corroborada pelo papel
patogênico que pode competir a ele. Do mecanismo emque está
incluído o pré-prazer pode
resultar, evidentemente, um perigo para a consecução do alvo
sexual normal, perigo este que
surge quando, em algum ponto dos processos sexuais preparatórios, o pré-prazer se revela
demasiadamente grande, e pequena demais sua contribuição
para a tensão. Falta então a força
pulsional para que o processo sexual seja levado adiante,
todo o caminho se encurta, e a ação
preparatória correspondente toma o lugar do alvo sexual
normal. A experiência nos ensina que a
precondição dessa eventualidade perniciosa é que, já na vida
infantil, a zona erógena em questão
ou a pulsão parcial correspondente haja contribuídonuma
medida incomum para a obtenção de
prazer. Quando a isso vem ainda somar-se fatores que
promovem a fixação, é fácil surgir em
época posterior da vida uma compulsão que resiste
àincorporação desse pré-prazer específico
num novo contexto. É dessa natureza, de fato, o mecanismo de
muitas perversões, que consistem
numa demora nos atos preparatórios do processo sexual.
O malogro da função do mecanismo sexual por culpa do
pré-prazer é mais facilmente
evitado quando, já na vida infantil, pronuncia-se igualmente
o primado das zonas genitais. As
medidas para isso parecem realmente ser tomadas na segunda
metade da infância (dos oito anos
até a puberdade). Durante esses anos, as zonas genitais já
se comportam de maneira semelhante
à da maturidade: convertem-se na sede de sensações de excitação e alterações preparatórias
sempre que se sente algum prazer pela satisfação deoutras
zonas erógenas, embora esse efeito
continue desprovido de finalidade, ou seja, não contribua em
nada para o prosseguimento do
processo sexual. Já na infância, portanto, junto aoprazer de
satisfação, surge uma certa dose de
tensão sexual, se bem que menos constante e menos profusa, e
agora podemos entender por que,
ao discutir as fontes da sexualidade, foi-nos igualmente
lícito dizer que o processo em questão
provocava, quer uma satisfação sexual, quer uma excitação
sexual. [Ver em [1].] Observe-se que,
no percurso para o conhecimento, começamos por fazer uma
idéia muito exagerada da diferença
entre a vida sexual infantil e a madura, e agora fazemos uma
emenda a isso. Não só os desvios da
vida sexual normal, como também a configuração normal desta
são determinados pelas
manifestações infantis da sexualidade.
(2) O PROBLEMA DA EXCITAÇÃO SEXUAL
Ficaram-nos ainda inteiramente por esclarecer tantoa origem
quanto a natureza da tensão
sexual que surge simultaneamente com o prazer ao serem
satisfeitas as zonas erógenas. A
suposição mais óbvia, ou seja, a de que essa tensãobrota de
algum modo do próprio prazer, não
só é muito improvável em si, como fica também anulada ao
considerarmos que, no prazer máximo,
o que se vincula à descarga dos produtos sexuais, não se
produz tensão alguma, porém, ao
contrário, toda a tensão é abolida. Assim, prazer etensão sexual
só podem estar relacionados de
maneira indireta.
O PAPEL DAS SUBSTÂNCIAS SEXUAIS
À parte o fato de que, normalmente, só a descarga das
substâncias sexuais põe fim à
excitação sexual, temos ainda outros pontos de referência
para relacionar a tensão sexual com os
produtos sexuais. Numa vida de continência, o aparelho
sexual costuma livrar-se das substâncias
sexuais durante a noite, a intervalos variáveis, mas não
desordenados, com uma sensação de
prazer e no curso da alucinação onírica de um ato sexual. No
tocante a esse processo - a polução
noturna -, é difícil evitar a concepção de que a tensão
sexual, que sabe descobrir o atalho
alucinatório como substituto do ato em si, é uma função da
acumulação de sêmen nos
reservatórios de produtos sexuais. Depõem no mesmo sentido as experiências feitas sobre o
caráter esgotável do mecanismo sexual. Quando se esgota a
reserva de sêmen, não só a
execução do ato sexual é impossível, como também cessa a
estimulabilidade das zonas erógenas,
cuja excitação já não é capaz de provocar nenhum prazer.
Assim nos inteiramos, de passagem, de
que certa dose de tensão sexual é necessária até mesmo para
a excitabilidade das zonas
erógenas.
Somos assim levados ao que, se não estou equivocado, é a
hipótese bastante difundida de
que a acumulação das substâncias sexuais cria e mantém a
tensão sexual; isso talvez se deva à
pressão desses produtos nas paredes de seus receptáculos,
que atuariam como um estímulo num
centro medular cujo estado seria percebido pelos centros
superiores e geraria, na consciência, a
conhecida sensação de tensão. Se a excitação das zonas
erógenas aumenta a tensão sexual, isso
só poderia acontecer pressupondo-se que elas tenhamuma
ligação anatômica prefigurada com
esses centros, elevem o tônus de excitação neles e,sendo
suficiente a tensão, ponham em
marcha o ato sexual, ou, sendo ela insuficiente, estimulem a
produção das substâncias sexuais.
Os pontos fracos dessa doutrina, que vemos aceita, por
exemplo, na exposição de Krafft-Ebing sobre
os processos sexuais, residem em
que, tendo sido criada para explicar a atividade
sexual do homem adulto, ela pouco leva em conta três
situações cujo esclarecimento deveria
igualmente proporcionar. São elas as situações das crianças, das mulheres e dos homens
castrados. Em nenhum desses três casos é possível falar numa
acumulação de produtos sexuais
no mesmo sentido que no homem, o que dificulta uma aplicação
uniforme desse esquema; todavia,
cabe admitir desde logo que seria possível encontrar meios
pelos quais também esses casos lhe
ficariam subordinados. De qualquer modo, persiste
aadvertência de que não devemos imputar ao
fator da acumulação de produtos sexuais realizaçõesde que
ele não parece capaz.
APRECIAÇÃO DOS ÓRGÃOS SEXUAIS
INTERNOS
As observações feitas em homens castrados parecem mostrar
que a excitação sexual
pode independer em grau considerável da produção
desubstâncias sexuais. Ocasionalmente, sua
libido escapa ao prejuízo trazido pela operação de castração, embora a regra seja a limitação de
libido, que aliás é o que motiva essa medida. Além disso, há muito se sabe que as doenças que
eliminam a produção de células sexuais masculinas deixam
intactas a libido e a potência do
indivíduo agora estéril. Portanto, de modo algum é tão assombroso quanto o considera Rieger
[1900] que a perda das glândulas sexuais masculinasna
maturidade possa não ter maior influência
no comportamento anímico do indivíduo. É certo que a castração praticada em idade precoce,
antes da puberdade, aproxima-se, em seu efeito, do objetivo de suprimir os caracteres sexuais,
embora aqui, além da perda das glândulas sexuais emsi,
também possa entrar em jogo uma
inibição do desenvolvimento de outros fatores, vinculada a
essa perda.
TEORIA QUÍMICA
As experiências feitas com a extirpação das
gônadas(testículos e ovários) de animais,
bem como o correspondente reimplante desses órgãos em
vertebrados do sexo oposto, finalmente
lançaram uma luz parcial sobre a origem da excitação sexual
e, com isso, reduziram ainda mais a
importância da eventual acumulação de produtos celulares
sexuais. Tornou-se possível o
experimento (E. Steinach) de transformar um macho numa fêmea
e, inversamente, uma fêmea
num macho, processo em que a conduta psicossexual dos
animais se altera de acordo com os
caracteres sexuais somáticos e ao mesmo tempo que eles. Mas
essa influência determinante do
sexo não deve ser atribuída à participação das gônadas que
produz as células sexuais específicas
(espermatozóides e óvulo), mas sim a seu tecido
intersticial, que por isso tem sido destacado pelos
autores como “glândula da puberdade”. É muito possível que
as investigações posteriores venham
a revelar que essa glândula da puberdade tem normalmente uma
disposição hermafrodita, com o
que ficaria anatomicamente fundamentada a doutrina da
bissexualidade dos animais superiores; e
já é provável que essa glândula não seja o único órgão
relacionado com a produção da excitação
sexual e dos caracteres sexuais. De qualquer modo, essa nova descoberta biológica ajusta-se ao
que já verificamos antes sobre o papel da glândula tireóide na sexualidade. Assim, estamos
autorizados a supor que na porção intersticial das gônadas produzem-se substâncias químicas
especiais que, absorvidas na corrente sangüínea, carregam de
tensão sexual determinadas partes
do sistema nervoso central. Já temos conhecimento, a partir do caso das substâncias tóxicas
introduzidas no corpo como algo estranho, de tal
transformação de um estímulo tóxico num
estímulo que atua em determinado órgão. Quanto ao modo como
a excitação sexual é gerada pela
estimulação das zonas erógenas, uma vez carregado oaparelho
central, e às interações surgidas
no curso desses processos sexuais entre os efeitos dos estímulos puramente tóxicos e os dos
fisiológicos, isso ainda só pode ser tratado hipoteticamente
e não constitui tarefa oportuna aqui.
Basta que nos atenhamos, como o essencial nessa concepção
dos processos sexuais, à hipótese
de que existem substâncias peculiares provenientes do metabolismo sexual. Essa colocação
aparentemente arbitrária apóia-se num conhecimento pouco levado em conta, porém digno da
mais alta consideração. As neuroses, que só podem ser
atribuídas a perturbações na vida sexual,
mostram a mais extrema semelhança clínica com os fenômenos
de intoxicação e abstinência
decorrentes do uso habitual de substâncias tóxicas
produtoras de prazer (alcalóides).
(3) A TEORIA DA LIBIDO
Combinam bem com essas hipóteses sobre a base química da
excitação sexual as noções
de que nos valemos para procurar dominar as manifestações
psíquicas da vida sexual.
Estabelecemos o conceito da libidocomo uma força
quantitativamente variável que poderia medir
os processos e transformações ocorrentes no âmbito da excitação sexual. Diferenciamos essa
libido, no tocante a sua origem particular, da energia que
se supõe subjacente aos processos
anímicos em geral, e assim lhe conferimos também umcaráter
qualitativo. Ao separar a energia
libidinosa de outras formas de energia psíquica, damos
expressão à premissa de que os processos
sexuais do organismo diferenciam-se dos processos de
nutrição por uma química especial. A
análise das perversões e das psiconeuroses levou-nos à
compreensão de que essa excitação
sexual é fornecida não só pelas chamadas partes sexuais, mas
por todos os órgãos do corpo.
Chegamos assim à representação [Vorstellung] de um quantumde libido a cujo substituto
[Vertretung] psíquico damos o nome de libido do ego, e cuja produção, aumento ou
diminuição,
distribuição e deslocamento devem fornecer-nos
possibilidades de explicar os fenômenos
psicossexuais observados.
Essa libido do ego, no entanto, só é convenientemente
acessível ao estudo analítico
depois de ter sido psiquicamente empregada para investir os
objetos sexuais, ou seja, quando se
converteu em libido
do objeto. Vemo-la então concentrar-se nos objetos, fixar-seneles ou
abandoná-los, passar de uns para outros e, partindodessas
posições, nortear no indivíduo a
atividade sexual que leva à satisfação, ou seja, à extinção parcial e temporária da libido. A
psicanálise das chamadas neuroses de transferência (histeria e neurose obsessiva) nos
proporciona uma clara visão disso.
Podemos ainda inteirar-nos, no tocante aos destinosda libido,
de que ela é retirada dos
objetos, mantém-se em suspenso em estados particulares de
tensão e, por fim, é trazida de volta
para o interior do ego, assim se reconvertendo em libido do
ego. Em contraste com a libido do
objeto, também chamamos a libido do ego de libido narcísica. Do ponto de observação da
psicanálise podemos contemplar, como que por sobre uma
fronteira cuja ultrapassagem não nos é
permitida, a movimentação da libido narcísica, formando
assim uma idéia da relação entre ela e a
libido objetal. A libido narcísica ou do ego parece-nos ser
o grande reservatório de onde partem as
catexias de objeto e no qual elas voltam a ser recolhidas, e
a catexia libidinosa narcísica do ego se
nos afigura como o estado originário realizado na primeira infância,
que é apenas encoberto pelas
emissões posteriores de libido, mas no fundo se conserva por
trás delas.
Deveria ser tarefa de uma teoria da libido, no campo dos
distúrbios neuróticos e psicóticos,
expressar todos os fenômenos observados e os processos
deduzidos em termos da economia
libidinal. É fácil inferir que, nesse contexto, cabe aos
destinos da libido do ego a significação maior,
sobretudo quando se trata de explicar as perturbações
psicóticas mais profundas. A dificuldade
reside, então, em que o veículo de nossas investigações, a
psicanálise, só nos proporciona
informações seguras, por enquanto, sobre as transformações
da libido de objeto, mas não
consegue estabelecer uma distinção imediata entre alibido e
as outras formas de energia que
operam no ego.
Por isso, de momento, a continuação da teoria da libido só é
possível pelo caminho da
especulação. Entretanto, renuncia-se a tudo o que foi ganho
até agora com a observação
psicanalítica quando, a exemplo de C.G. Jung, dissolve-se o
próprio conceito de libido ao
equacioná-lo com a força pulsional psíquica em geral. A
distinção entre as moções pulsionais
sexuais e as restantes, e, portanto, a restrição doconceito
de libido às primeiras, encontra forte
apoio na hipótese já discutida de uma química particular da
função sexual.
(4) DIFERENCIAÇÃO ENTRE O HOMEM E A MULHER
Sabe-se que somente com a puberdade se estabelece aseparação
nítida entre os
caracteres masculinos e femininos, num contraste que tem, a
partir daí, uma influência mais
decisiva do que qualquer outro sobre a configuraçãoda vida
humana. É certo que já na infância se
reconhecem bem as disposições masculinas e femininas; o
desenvolvimento das inibições da
sexualidade (vergonha, nojo, compaixão etc.) ocorrenas garotinhas
mais cedo e com menor
resistência do que nos meninos; nelas, em geral, a tendência ao recalcamento sexual parece
maior, e quando se tornam visíveis as pulsões parciais da
sexualidade, elas preferem a forma
passiva. Mas a atividade auto-erótica das zonas erógenas é
idêntica em ambos os sexos, e essa
conformidade suprime na infância a possibilidade deuma
diferenciação sexual como a que se
estabelece depois da puberdade. Com respeito às
manifestações auto-eróticas e masturbatórias
da sexualidade, poder-se-ia formular a tese de que a sexualidade das meninas tem um caráter
inteiramente masculino. A rigor, se soubéssemos daraos
conceitos de “masculino” e “ feminino”
um conteúdo mais preciso, seria possível defender aalegação
de que a libido é, regular e
normativamente, de natureza masculina, quer ocorra no homem ou na mulher, e abstraindo seu
objeto, seja este homem ou mulher.
Desde que me familiarizei com a noção de bissexualidade,
passei a considerá-la como o
fator decisivo e penso que, sem levá-la em conta,
dificilmente se poderá chegar a uma
compreensão das manifestações sexuais efetivamente no homem
e na mulher.
ZONAS DOMINANTES NO HOMEM E NA
MULHER
Afora isso, só tenho a acrescentar o seguinte: nas meninas, a zona erógena dominante
situa-se no clitóris e é, portanto, homóloga à zonagenital
masculina, a glande. Tudo o que pude
averiguar pela experiência sobre a masturbação nas meninas relacionou-se com o clitóris, e não
com as partes da genitália externa que são posteriormente
significativas para as funções sexuais.
Chego mesmo a duvidar de que a menina, sob a influência da
sedução, possa ser levada a outra
coisa que não a masturbação clitoridiana; a ocorrência disso
é totalmente excepcional. As
descargas espontâneas de excitação sexual, tão corriqueiras
justamente na menina pequena,
expressam-se em contrações do clitóris, e as freqüentes
ereções deste órgão facultam à menina
formular um juízo acertado, mesmo sem nenhuma instrução,
sobre as manifestações sexuais do
sexo oposto: ela meramente transfere para os meninos as
sensações de seus próprios processos
sexuais.
Quando se quer compreender a transformação da menina em
mulher, é preciso
acompanhar as vicissitudes posteriores dessa excitabilidade
do clitóris. A puberdade, que no
menino traz um avanço tão grande da libido, distingue-se, na
menina, por uma nova onda de
recalcamento que afeta justamente a sexualidade do clitóris. O que assim sucumbe ao
recalcamento é uma parcela de sexualidade masculina. O
reforço das inibições sexuais criado por
esse recalcamento da puberdade na mulher fornece então um
estímulo à libido do homem, e
obriga a um aumento de sua atividade; com essa
intensificação da libido aumenta também a
supervalorização sexual, que só aparece plenamente diante da
mulher que recusa, que renega sua
sexualidade. Quando enfim o ato sexual é permitido,o próprio
clitóris é excitado e compete a ele o
papel de retransmitir essa excitação para as partesfemininas
vizinhas, assim como as lascas de
lenha resinosa podem ser aproveitadas para atear fogo a um
pedaço de lenha mais dura. Para que
se efetue essa transferência, é preciso amiúde um certo
intervalo de tempo, durante o qual a moça
fica insensível. Essa anestesia pode tornar-se permanente,
quando a zona clitoridiana se recusa a
abrir mão de sua excitabilidade, o que é preparado justamente por sua atividade intensa na vida
infantil. Sabe-se que, muitas vezes, a anestesia damulher é
apenas aparente e localizada. Elas
ficam anestesiadas na vagina, porém de modo algum são
incapazes de excitação no clitóris ou
mesmo em outras zonas. A esses determinantes erógenos da
anestesia vêm então somar-se os
determinantes psíquicos, igualmente condicionados pelo
recalcamento.
Quando a mulher transfere a excitabilidade erógena do clitóris para a vagina, ela muda a
zona dominante para sua atividade sexual posterior,ao passo
que o homem conserva a dele
desde a infância. Nessa mudança da zona erógena dominante,
assim como na onda de
recalcamento da puberdade, que elimina, por assim dizer, a
masculinidade infantil, residem os
principais determinantes da propensão das mulheres para a neurose, especialmente a histeria.
Esses determinantes, portanto, estão intimamente
relacionados com a natureza da feminilidade.
(5) O ENCONTRO DO OBJETO
Durante os processos da puberdade firma-se o primado das
zonas genitais e, no homem, o
ímpeto do membro agora capaz de ereção remete imperiosamente
para o novo alvo sexual: a
penetração numa cavidade do corpo que excite sua zona
genital. Ao mesmo tempo, consuma-se
no lado psíquico o encontro do objeto para qual o caminho
fora preparado desde a mais tenra
infância. Na época em que a mais primitiva satisfação sexual
estava ainda vinculada à nutrição, a
pulsão sexual tinha um objeto fora do corpo próprio, no seio
materno. Só mais tarde vem a perdê-lo,
talvez justamente na época em que a
criança consegue formar para si uma representação
global da pessoa a quem pertence o órgão que lhe dispensava
satisfação. Em geral, a pulsão
sexual torna-se auto-erótica, e só depois de superado o
período de latência é que se restabelece a
relação originária. Não é sem boas razões que, paraa
criança, a amamentação no seio materno
toma-se modelar para todos os relacionamentos amorosos. O
encontro do objeto é, na verdade,
um reencontro.
O OBJETO SEXUAL NAFASE DE
AMAMENTAÇÃO
Todavia, desses primeiros e mais importantes de todos os
vínculos sexuais, resta, mesmo
depois que a atividade sexual se separa da nutrição, uma
parcela significativa que ajuda a preparar
a escolha do objeto e, dessa maneira, restaurar a felicidade
perdida. Durante todo o período de
latência a criança aprende a
amaroutras pessoas que a ajudam em seu desamparo e satisfazem
suas necessidades, e o faz segundo o modelo de sua relação de lactente com a ama e dando
continuidade a ele. Talvez se queira contestar a
identificação do amor sexual com os sentimentos
ternos e a estima da criança pelas pessoas que cuidam dela,
mas penso que uma investigação
psicológica mais rigorosa permitirá estabelecer essa
identidade acima de qualquer dúvida. O trato
da criança com a pessoa que a assiste é, para ela, uma fonte
incessante de excitação e satisfação
sexuais vindas das zonas erógenas, ainda mais que essa
pessoa - usualmente, a mãe - contempla
a criança com os sentimentos derivados de sua própria vida
sexual: ela a acaricia, beija e embala,
e é perfeitamente claro que a trata como o substituto de um
objeto sexual plenamente legítimo. A
mãe provavelmente se horrorizaria se lhe fosse esclarecido
que, com todas as suas expressões de
ternura, ela está despertando a pulsão sexual de seu filho e
preparando a intensidade posterior
desta. Ela considera seu procedimento como um amor “puro”, assexual, já que evita
cuidadosamente levar aos genitais da criança mais excitações
do que as inevitáveis no cuidado
com o corpo. Mas a pulsão sexual, como bem sabemos,não é
despertada apenas pela excitação
da zona genital; aquilo a que chamamos ternura um dia
exercerá seus efeitos, infalivelmente,
também sobre as zonas genitais. Aliás, se a mãe
compreendesse melhor a suma importância das
pulsões para a vida anímica como um todo, para todas as
realizações éticas e psíquicas, ela se
pouparia das auto-recriminações mesmo depois desse esclarecimento. Quando ensina seu filho a
amar, está apenas cumprindo sua tarefa; afinal, eledeve
transformar-se num ser humano capaz,
dotado de uma vigorosa necessidade sexual, e que possa
realizar em sua vida tudo aquilo a que
os seres humanos são impelidos pela pulsão. É verdade que o
excesso de ternura por parte dos
pais torna-se pernicioso, na medida em que acelera a maturidade sexual e também, “mimando” a
criança, torna-a incapaz de renunciar temporariamente ao
amor em épocas posteriores da vida, ou
de se contentar com menor dose dele. Um dos melhores
prenúncios de neurose posterior é
quando a criança se mostra insaciável em sua demanda de
ternura dos pais; por outro lado, são
justamente os pais neuropáticos, que em geral tendem a
exibir uma ternura desmedida, os que
mais contribuem, com suas carícias, para despertar a disposição da criança para o adoecimento
neurótico. Deduz-se desse exemplo, aliás, que os pais
neuróticos têm caminhos mais diretos que o
da herança para transferir sua perturbação para seus filhos.
ANGÚSTIA INFANTIL
As próprias crianças se comportam, desde cedo, comose sua
afeição pelas pessoas que a
assistem fosse da natureza do amor sexual. A angústia das
crianças não é, originariamente, nada
além da expressão da falta que sentem da pessoa amada; por
isso elas se angustiam diante de
qualquer estranho; temem a escuridão porque, nesta,não vêem
a pessoa amada, e se deixam
acalmar quando podem segurar-lhe a mão na obscuridade.
Atribuir a todos os bichos-papões da
infância e a todas as histórias horripilantes contadas pelas
babás a culpa por provocarem
nervosismo na criança é superestimar-lhes o efeito.Só as
crianças propensas ao estado de
angústia é que acolhem essas histórias, que em outras não
causam nenhuma impressão; e só
tendem ao estado de angústia as crianças com uma pulsão
sexual desmedida, ou prematuramente
desenvolvida, ou que se tornou muito exigente em função dos
mimos excessivos. Nesse aspecto,
a criança porta-se como o adulto, na medida em que transforma sua libido em angústia quando
não pode satisfazê-la; e inversamente, o adulto neurotizado
pela libido insatisfeita comporta-se
como uma criança em sua angústia: começa a sentir medo tão
logo fica sozinho, ou seja, sem uma
pessoa de cujo amor se acredite seguro, e a querer aplacar
esse medo através das medidas mais
pueris.
A BARREIRA DO INCESTO
Quando a ternura dos pais pelo filho é bem-sucedidaem evitar
que a pulsão seja
prematuramente despertada nele, ou seja, antes que se dêem as condições somáticas da
puberdade, e despertada com tal força que a excitação
anímica irrompa de maneira inconfundível
no sistema genital, essa ternura pode cumprir sua tarefa de
orientar esse filho, na maturidade, em
sua escolha do objeto sexual. Sem dúvida, o caminhomais
curto para o filho seria escolher como
objetos sexuais as mesmas pessoas a quem ama, desdea
infância, com uma libido, digamos,
amortecida. Com o adiamento da maturação sexual, entretanto,
ganhou-se tempo para erigir, junto
a outros entraves à sexualidade, a barreira do incesto, para
que assim se integrem os preceitos
morais que excluem expressamente da escolha objetal, na
qualidade de parentes consangüíneos,
as pessoas amadas na infância. O respeito a essa barreira é,
acima de tudo, uma exigência
cultural da sociedade, esta tem de se defender da
devastação, pela família, dos interesses que lhe
são necessários para o estabelecimento de unidades sociais superiores, e por isso, em todos os
indivíduos, mas em especial nos adolescentes, lançamão de
todos os recursos para afrouxar-lhes
os laços com a família, os únicos que eram decisivos na
infância.
Mas é na [esfera da] representação que se consuma
inicialmente a escolha do objeto, e a
vida sexual do jovem em processo de amadurecimento não dispõe
de outro espaço que não o das
fantasias, ou seja, o das representações não destinadas a
concretizar-se. Nessas fantasias, as
inclinações infantis voltam a emergir em todos os seres
humanos, agora reforçadas pela premência
somática, e entre elas, com freqüência uniforme e em
primeiro lugar, o impulso sexual da criança
em direção aos pais, quase sempre já diferenciado através da
atração pelo sexo oposto: a do filho
pela mãe e a da filha pelo pai. Contemporaneamente à
subjugação e ao repúdio dessas fantasias
claramente incestuosas consuma-se uma das realizações
psíquicas mais significativas, porém
também mais dolorosas, do período da puberdade: o
desligamento da autoridade dos pais,
unicamente através do qual se cria a oposição, tão
importante para o progresso da cultura, entre a
nova e a velha gerações. Em cada uma das etapas do curso de
desenvolvimento por que todos os
indivíduos são obrigados a passar, um certo número deles fica retido, de modo que há pessoas
que nunca superam a autoridade dos pais e não retiram deles
sua ternura, ou só o fazem de
maneira muito incompleta. Em sua maioria, são moçasque, para
a alegria dos pais, persistem em
seu amor infantil muito além da puberdade, e é muito
instrutivo constatar que é a essas moças que
falta, em seu posterior casamento, a capacidade de dar ao
marido o que é devido a ele. Tornam-se
esposas frias e permanecem sexualmente anestesiadas. Com
isso se aprende que o amor sexual
e o que parece ser um amor não-sexual pelos pais
alimentam-se das mesmas fontes, ou seja, o
segundo corresponde apenas a uma fixação infantil da libido.
Quanto mais perto se chega das perturbações mais profundas
do desenvolvimento
psicossexual, mais se destaca, de maneira inequívoca, a
importância da escolha objetal
incestuosa. Nos psiconeuróticos, grande parte da atividade
psicossexual destinada ao encontro do
objeto, ou a totalidade dela, permanece no inconsciente, em
decorrência de seu repúdio da
sexualidade. Para as moças com uma necessidade exagerada de
ternura e um horror igualmente
desmedido às exigências reais da vida sexual, torna-se uma
tentação irresistível, por um lado,
realizar em sua vida o ideal do amor assexual, e por outro,
ocultar sua libido por trás de uma
ternura que possam expressar sem auto-recriminações,
agarrando-se por toda a vida a sua
inclinação infantil, renovada na puberdade, para ospais ou
irmãos. A psicanálise mostra a essas
pessoas, sem esforço, que elas estão enamoradas, no sentido
corriqueiro da palavra, desses seus
parentes consangüíneos, uma vez que, com a ajuda dos
sintomas e outras manifestações da
doença, rastreia-lhes os pensamentos inconscientes e os traduz em pensamentos conscientes.
Também nos casos em que uma pessoa anteriormente sadia
adoece após uma experiência
amorosa infeliz, pode-se descobrir com segurança que o
mecanismo de seu adoecimento consiste
numa reversão de sua libido para as pessoas preferidas na
infância.
AS REPERCUSSÕES DA ESCOLHA
OBJETAL INFANTIL
Mesmo quem teve a felicidade de evitar a fixação incestuosa
de sua libido não escapa
inteiramente a sua influência. Observa-se um eco muito claro
dessa fase do desenvolvimento
quando o primeiro enamoramento sério de um rapaz, como é tão
freqüente, recai sobre uma
mulher madura, e o da moça, sobre um homem mais velho e
dotado de autoridade, já que essas
figuras lhes podem revivescer as imagens da mãe e do pai.
Talvez a escolha do objeto se dê, em
geral, mediante um apoio mais livre nesses modelos.O homem,
sobretudo, busca a imagem
mnêmica da mãe, tal como essa imagem o dominou desde os
primórdios da infância; e está em
perfeita harmonia com isso que a mãe, ainda viva, oponha-se
a essa reedição dela mesma e a
trate com hostilidade. Em vista dessa importância do
relacionamento infantil com os pais para a
escolha posterior do objeto sexual, é fácil compreender que
qualquer perturbação desse
relacionamento terá as mais graves conseqüências para a vida
sexual na maturidade; também ao
ciúme dos amantes nunca falta uma raiz infantil, oupelo
menos um reforço infantil. As desavenças
entre os pais ou seu casamento infeliz condicionam a mais grave predisposição para o
desenvolvimento sexual perturbado ou o adoecimento neurótico
dos filhos.
A afeição infantil pelos pais é sem dúvida o mais
importante, embora não o único, dos
vestígios que, reavivados na puberdade, apontam o caminho
para a escolha do objeto. Outros
rudimentos com essa mesma origem permitem ao homem,sempre
apoiado em sua infância,
desenvolver mais de uma
orientação sexuale criar condições muito diversificadas para sua
escolha objetal.
PREVENÇÃO DA INVERSÃO
Uma das tarefas implícitas na escolha do objeto consiste em
não se desencontrar do sexo
oposto. Isso, como é sabido, não se soluciona sem um certo
tateamento. Com freqüência, as
primeiras moções depois da puberdade se extraviam, sem que haja nenhum dano permanente.
Dessoir [1894] assinalou acertadamente a regularidade que se
deixa entrever nas amizades
apaixonadas dos rapazes e moças adolescentes por outros do
mesmo sexo. A grande força que
repele a inversão permanente do objeto sexual é, sem dúvida,
a atração que os caracteres sexuais
opostos exercem entre si; no contexto desta discussão, nada
podemos dizer para esclarecê-la.
Mas esse fator não basta, por si só, para excluir ainversão;
diversos outros fatores auxiliares vêm
juntar-se a ele. Acima de tudo, há o entrave autoritário da
sociedade; quando a inversão não é
considerada um crime, vê-se que ela responde plenamente às
inclinações sexuais de um número
nada pequeno de indivíduos. Pode-se ainda presumir,no
tocante ao homem, que sua lembrança
infantil de ternura da mãe e de outras pessoas do sexo
feminino a quem ficava entregue quando
criança contribui energicamente para nortear sua escolha
para a mulher, ao passo que a
intimidação sexual precoce que experimentou por parte do pai
e sua atitude competitiva com
relação a ele desvia-o de seu próprio sexo. Mas ambos os
fatores aplicam-se também à menina,
cuja atividade sexual fica sob a guarda especial damãe. Daí
resulta uma relação hostil com o
mesmo sexo, que influencia decisivamente a escolha do objeto
no sentido considerado normal. A
educação dos meninos por pessoas do sexo masculino (pelos escravos, na antigüidade) parece
favorecer o homossexualismo; a freqüência da inversão na
aristocracia de hoje torna-se um pouco
mais inteligível diante de seu emprego de criados do sexo
masculino, bem como pelos maiores
cuidados pessoais que a mãe dedica aos filhos. Em muitos
histéricos, vê-se que a ausência
precoce de um dos pais (por morte, divórcio ou separação),
em função da qual o remanescente
absorveu a totalidade do amor da criança, foi o determinante
do sexo da pessoa posteriormente
escolhida como objeto sexual, com isso possibilitando-se a
inversão permanente.
RESUMO
É chegado o momento de ensaiarmos um resumo. Partimos das
aberrações da pulsão
sexual com respeito a seu objeto e seu alvo, e deparamos com
a questão de saber se elas provêm
de uma disposição inata ou são adquiridas como resultado das
influências da vida. A resposta a
essa pergunta nos veio da compreensão, mediante a
investigação psicanalítica, das condições da
pulsão sexual nos psiconeuróticos, um grupo humano numeroso que não fica longe dos sadios.
Assim, descobrimos que, nessas pessoas, a inclinação para
todas as perversões é demonstrável
na qualidade de forças inconscientes e se denuncia como
formadora de sintomas, e pudemos dizer
que a neurose é como que o negativo da perversões. Diante da ampla disseminação das
tendências perversas, agora reconhecidas, fomos impelidos ao
ponto de vista de que a disposição
para as perversões é a disposição originária universal da
pulsão sexual humana, e de que a partir
dela, em conseqüência de modificações orgânicas e inibições
psíquicas no decorrer da maturação,
desenvolve-se o comportamento sexual normal. Alimentamos a
esperança de poder apontar na
infância essa disposição originária; entre as forças que
restringem a orientação da pulsão sexual
destacamos a vergonha, o asco, a compaixão e as construções
sociais da moral e da autoridade.
Assim, tivemos de ver em cada aberração fixa da vida sexual
normal um fragmento de inibição do
desenvolvimento e infantilismo. Embora tenha sido necessário
situar em primeiro plano a
importância das variações da disposição originária,tivemos
de supor entre elas e as influências da
vida uma relação de cooperação, e não de antagonismo. Por
outro lado, já que a disposição
originária é necessariamente complexa, pareceu-nos que a própria pulsão sexual seria algo
composto de diversos fatores e que, nas perversões,como que
se desfaria em seus componentes.
Com isso, as perversões se revelaram, de um lado, como
inibições do desenvolvimento normal, e
de outro, como dissociações dele. Essas duas concepções
foram reunidas na hipótese de que a
pulsão sexual do adulto nasce mediante a conjugaçãode
diversas moções da vida infantil numa
unidade, numa aspiração com um alvo único.
Juntamos a isso o esclarecimento da preponderância das inclinações perversas nos
psiconeuróticos, na medida em que a reconhecemos como o
enchimento colateral de canais
secundários em função do bloqueio do leito principal [da
corrente sexual] pelo “recalcamento”, e
passamos então ao exame da vida sexual na
infância.Pareceu-nos lamentável que se negasse a
existência da pulsão sexual na infância e que as
manifestações sexuais não raro observadas nas
crianças fossem descritas como acontecimentos que fogem à
regra. Pareceu-nos, ao contrário,
que a criança traz consigo ao mundo germes de atividade
sexual e que, já ao se alimentar, goza
de uma satisfação sexual que então busca reiteradamente
proporcionar-se através da conhecida
atividade de “chuchar”. Todavia, a atividade sexualda
criança não se desenvolve no mesmo passo
que as demais funções, mas sim, após um breve período de
florescência entre os dois e os cinco
anos, entra no chamado período de latência. Neste, a produção de excitação sexual de modo
algum é suspensa, mas continua e oferece uma provisão de
energia que é empregada, em sua
maior parte, para outras finalidades que não as sexuais, ou
seja, de um lado, para contribuir com
os componentes sexuais para os sentimentos sociais,e de
outro (através do relacionamento e da
formação reativa), para construir as barreiras posteriores
contra a sexualidade. Assim se
construiriam na infância, à custa de grande parte das moções
sexuais perversas e com a ajuda da
educação, as forças destinadas a manter a pulsão sexual em
certos rumos. Outra parte das
moções sexuais infantis escapa a esses empregos e consegue
expressar-se como atividade
sexual. Pudemos então verificar que a excitação sexual da
criança provém de uma multiplicidade
de fontes. A satisfação surge, acima de tudo, mediante a
excitação sensorial apropriada das
chamadas zonas erógenas, e provavelmente podem funcionar
como tal qualquer ponto da pele e
qualquer órgão dos sentidos - provavelmente qualquer órgão
-, embora existam certas zonas
erógenas destacadas cuja excitação estaria assegurada, desde
o começo, por certos dispositivos
orgânicos. Além disso, a excitação sexual parece surgir como
um subproduto, por assim dizer, de
um grande número de processos que ocorrem no organismo, tão
logo eles alcançam certa
intensidade, e muito especialmente, de todas as comoções
mais fortes, ainda que de natureza
penosa. As excitações de todas essas fontes ainda não estão
conjugadas, cada qual seguindo
separadamente seu alvo, que é meramente a obtenção de certo prazer. Na infância, portanto, a
pulsão sexualnão está centradae é, a princípio, desprovida
de objeto, ou seja, auto-erótica.
Ainda durante a infância começa a fazer-se notar a zona
erógena da genitália, seja porque,
como qualquer outra zona erógena, ela produz satisfação
mediante a estimulação sensorial
apropriada, seja porque, de um modo não inteiramente
inteligível, havendo uma satisfação
proveniente de outras fontes, produz-se ao mesmo tempo uma
excitação sexual que mantém uma
relação particular com a zona genital. Temos de admitir com
pesar que não se chegou a um
esclarecimento suficiente das relações entre a satisfação
sexual e a excitação sexual, como
também entre a atividade da zona genital e a das demais
fontes da sexualidade.
Pelo estudo dos distúrbios neuróticos, observamos que é
possível identificar na vida sexual
infantil, desde seus primórdios, os rudimentos de uma
organização dos componentes sexuais da
pulsão. Numa primeira fase, muito precoce, o erotismo oralfica em primeiro plano; uma
segunda
dessas organizações “pré-genitais” caracteriza-se pela
predominância do sadismo e do erotismo
anal; somente numa terceira fase (desenvolvida na criança
apenas até a primazia do falo) é que a
vida sexual passa a ser determinada pela contribuição das
zonas genitais propriamente ditas.
Tivemos então de registrar, como uma de nossas mais
surpreendentes descobertas, que
essa eflorescência precoce da vida sexual infantil (dos dois
aos cinco anos) também acarreta uma
escolha objetal, com toda a riqueza das realizaçõesanímicas
que isso implica, de modo que a fase
correspondente e ligada a ela, apesar da falta de síntese
entre os componentes pulsionais isolados
e da incerteza do alvo sexual, deve ser apreciada como uma
importante precursora da posterior
organização sexual definitiva.
A instauração
bitemporaldo desenvolvimento sexual nos seres humanos, ou seja, sua
interrupção pelo período de latência, pareceu-nos digna de
uma atenção especial. Ela se afigura
como uma das condições da aptidão do homem para o
desenvolvimento de uma cultura superior,
mas também de sua tendência à neurose. Ao que saibamos, nada
de análogo é demonstrável
entre os parentes animais do homem. A origem dessa
peculiaridade humana deveria ser buscada
na proto-história da espécie.
Não pudemos dizer que medida de atividade sexual nainfância
poderia ainda ser descrita
como normal, como não perniciosa para o desenvolvimento
ulterior. O caráter dessas
manifestações sexuais revelou-se predominantemente masturbatório. A experiência permitiu-nos
ainda comprovar que as influências externas da sedução podem
provocar rompimentos
prematuros da latência e até a supressão dela, e que, nesse
aspecto, a pulsão sexual da criança
comprova ser, de fato, perverso-polimorfa; comprovamos ainda
que tal atividade sexual prematura
prejudica a educabilidade da criança.
Apesar das lacunas em nossos conhecimentos da vida sexual
infantil, foi-nos então preciso
fazer uma tentativa de estudar as transformações sobrevindas
com a chegada da puberdade.
Destacamos duas delas como decisivas: a subordinação de todas
as outras fontes de excitação
sexual ao primado das zonas genitais e o processo do
encontro do objeto. Ambos já estão
prefigurados na vida infantil. A primeira consuma-se pelo
mecanismo de exploração do pré-prazer:
os atos sexuais outrora autônomos, ligados ao prazer e à
excitação, convertem-se em atos
preparatórios do novo alvo sexual (a descarga dos produtos
sexuais), cuja consecução,
acompanhada de enorme prazer, põe termo à excitaçãosexual.
Nesse aspecto, havíamos levado
em conta a diferenciação dos seres sexuados em masculino e
feminino e descobrimos que, no
tornar-se mulher, faz-se necessário um novo recalcamento,
que suprime parte da masculinidade
infantil e prepara a mulher para a troca da zona genital
dominante. Por fim, descobrimos que a
escolha objetal é guiada pelos indícios infantis, renovados
na puberdade, da inclinação sexual da
criança pelos pais e por outras pessoas que cuidam dela, e que, desviada dessas pessoas pela
barreira do incesto erigida nesse meio-tempo, orienta-se para
outras que se assemelhem a elas.
Cabe ainda acrescentar, por último, que durante o período de
transição da puberdade os
processos de desenvolvimento somático e psíquico prosseguem
por algum tempo sem ligação
entre si, até que a irrupção de uma intensa moção anímica de
amor, levando à inervação dos
genitais, produz a unidade da função amorosa exigida pela
normalidade.
FATORES QUE PERTURBAM O
DESENVOLVIMENTO
Cada passo nesse longo percurso de desenvolvimento pode
transformar-se num ponto de
fixação, cada ponto de articulação nessa complexa montagem
pode ensejar a dissociação da
pulsão sexual, como já discutimos em diversos exemplos.
Resta-nos ainda fornecer um panorama
dos diversos fatores internos e externos que perturbam o
desenvolvimento, e indicar o lugar do
mecanismo afetado pela perturbação proveniente deles. É
claro que os fatores mencionados numa
mesma série podem não ter o mesmo valor, e devemos estar preparados para encontrar
dificuldades na devida avaliação de cada um deles.
CONSTITUIÇÃO E HEREDITARIEDADE
Em primeiro lugar, cabe mencionar aqui a diversidadeinata da
constituição sexual, em que
provavelmente recai o peso principal, mas que, comoé
compreensível, só pode ser deduzida de
suas manifestações posteriores e, mesmo assim, nem sempre com grande certeza. Concebemos
essa diversidade como uma preponderância desta ou daquela
das múltiplas fontes de excitação
sexual, e cremos que tal diferença entre as disposições deve
expressar-se de alguma maneira no
resultado final, mesmo que este se mantenha dentro das fronteiras da normalidade. Sem dúvida é
concebível que haja também variações na disposição originária que levem necessariamente, e
sem a ajuda de outros fatores, à configuração de uma vida
sexual anormal. Poder-se-ia descrevê-los
como “degenerativos” e considerá-los
como a expressão de uma deterioração hereditária.
Nesse contexto, tenho um fato notável a relatar. Emmais da
metade dos casos de histeria,
neurose obsessiva etc. que tive em tratamento psicoterapêutico,
pude demonstrar com certeza que
o pai sofrera de sífilis antes do casamento, quer se
tratasse de tabes ou paralisia progressiva, quer
a doença luética fosse indicada de algum outro modopela
anamnese. Quero observar
expressamente que as crianças posteriormente neuróticas não
traziam em si nenhum sinal físico
de sífilis hereditária, de modo que justamente sua constituição sexual anormal é que devia ser
considerada como a última ramificação de sua herança
sifilítica. Embora eu esteja longe de afirmar
que a descendência de pais sifilíticos é a
condiçãoetiológica invariável ou imprescindível da
constituição neuropática, não creio que a coincidência por
mim observada seja acidental ou sem
importância.
As condições hereditárias dos perversos positivos são menos
conhecidas, pois eles sabem
furtar-se à investigação. Ainda assim, há boas razões para
supor que o que é válido para as
neuroses também o seja para as perversões. E que não raro se
encontram numa mesma família a
perversão e a psiconeurose, distribuídas de tal modo entre
os dois sexos que os membros
masculinos, ou um deles, são perversos positivos, enquanto
os membros femininos, em
consonância com a tendência de seu sexo ao recalcamento, são
perversos negativos, ou seja,
histéricos - uma boa prova das relações essenciais por nós
descobertas entre os dois distúrbios.
ELABORAÇÃO ULTERIOR
Por outro lado, não se pode defender o ponto de vista de que
a conformação da vida
sexual ficaria inequivocamente determinada com a instauração
dos diversos componentes da
constituição sexual. Ao contrário, o processo de
determinação prossegue e surgem outras
possibilidades, conforme as vicissitudes por que passam as
correntes tributárias das sexualidades
provenientes das diversas fontes. Obviamente, é essa elaboração ulteriorque decide em termos
definitivos, enquanto o que se poderia descrever como uma
constituição idêntica pode levar a três
desfechos diferentes:
[1] Quando todas as disposições se mantêm em sua proporção
relativa, considerada
anormal, e são reforçadas com o amadurecimento, o desfecho
só pode ser uma vida sexual
perversa. A análise dessas disposições constitucionais
anormais ainda não foi devidamente
empreendida, mas já conhecemos casos facilmente explicáveis
mediante tais hipóteses. Os
autores opinam, por exemplo (ver em [1]), que toda uma série
de perversões por fixação teria como
precondição necessária uma debilidade inata da pulsão
sexual. Expressa nessa forma, tal
colocação me parece insustentável, mas ela passa a fazer sentido quando se pensa numa
debilidade constitucional de determinado fator da pulsão
sexual, qual seja, a zona genital, zona
esta que assume posteriormente a função de conjugarnum todo
cada uma das atividades sexuais
isoladas, tendo por alvo a reprodução. [Quando a zona
genital é fraca,] essa conjugação exigida na
puberdade está fadada a fracassar, e o mais forte dentre os
demais componentes da sexualidade
impõe sua prática como uma perversão.
RECALCAMENTO
[2] Produz-se um desfecho diferente quando, no curso do
desenvolvimento, alguns
componentes que tinham força excessiva na disposição passam
pelo processo de recalcamento,
sobre o qual devemos insistir em que não é equivalente a uma
supressão. Nesse caso, as
excitações correspondentes continuam a ser produzidas como
antes, mas são impedidas por um
obstáculo psíquico de atingir seu alvo e empurradaspara
muitos outros caminhos, até que se
consigam expressar como sintomas. O resultado pode aproximar-se de uma vida sexual normal -
restrita, na maioria das vezes -, mas complementadapela
doença psiconeurótica. São justamente
esses os casos que se tornaram familiares para nós através da investigação psicanalítica dos
neuróticos. A vida sexual dessas pessoas começa como a dos
perversos, e toda uma parte de sua
infância é ocupada por uma atividade sexual perversa, que
ocasionalmente se estende para além
da maturidade. Produz-se então, por causas internas- em
geral antes da puberdade, mas vez por
outra até mesmo depois dela -, uma reversão devida ao recalcamento, e a partir daí a neurose
toma o lugar da perversão, sem que se extingam os antigos
impulsos. Isso faz lembrar o provérbio
“Junge Hure, alte Betschwester”, só que, nesse caso, a
juventude foi curta demais. Essa
substituição da perversão pela neurose na vida de uma mesma
pessoa, assim como a já
mencionada distribuição da perversão e da neurose entre os
diferentes membros de uma mesma
família, é coerente com a concepção de que a neurose é o
negativo da perversão.
SUBLIMAÇÃO
[3] O terceiro desfecho da disposição constitucional anormal
é possibilitado pelo processo
de “sublimação”, no qual as excitações hiperintensas
provenientesdas diversas fontes da
sexualidade encontram escoamento e emprego em outros campos,
de modo que de uma
disposição em si perigosa resulta um aumento nada
insignificante da eficiência psíquica. Aí
encontramos uma das fontes da atividade artística, e,
conforme tal sublimação seja mais ou menos
completa, a análise caracterológica de pessoas altamente
dotadas, sobretudo as de disposição
artística, revela uma mescla, em diferentes proporções, de
eficiência, perversão e neurose. Uma
subvariedade da sublimação talvez seja a supressão por
formação reativa, que, como
descobrimos, começa no período de latência da criança e, nos
casos favoráveis, prossegue por
toda a vida. Aquilo a que chamamos “caráter” de um homem constrói-se, numa boa medida, a
partir do material das excitações sexuais, e se compõe de
pulsões fixadas desde a infância, de
outras obtidas por sublimação, e de construções destinadas
ao refreamento eficaz de moções
perversas reconhecidas como inutilizáveis. Por conseguinte,
a disposição sexual universalmente
perversa da infância pode ser considerada como a fonte de
uma série de nossas virtudes, na
medida em que, através da formação reativa, impulsiona a
criação delas.
EXPERIÊNCIAS ACIDENTAIS
Comparadas às descargas sexuais, às ondas de recalcamento e
às sublimações (sendo
inteiramente desconhecidas para nós as condições internas
destes dois últimos processos), todas
as outras influências parecem bem menos importantes. Quem
incluir os recalcamentos e
sublimações na disposição constitucional e encará-los como
manifestações vitais desta poderá
afirmar, justificadamente, que a conformação final da vida sexual resulta, acima de tudo, da
constituição inata. Mas ninguém com algum discernimento
contestará o fato de que, em tal
cooperação de fatores, há também espaço para as influências
modificadoras do que foi
acidentalmente vivenciado na infância e depois. Nãoé fácil
avaliar a eficácia dos fatores
constitucionais e acidentais em sua relação recíproca. Na
teoria, sempre se tende a superestimar
os primeiros; a prática terapêutica destaca a importância
dos últimos. Mas em nenhum caso se
deve esquecer que existe entre ambos uma relação
decooperação, e não de exclusão. O fator
constitucional tem de aguardar experiências que o ponham em
vigor; o acidental precisa apoiar-se
na constituição para ter efeito. Na maioria dos casos,
pode-se imaginar o que se tem chamado de
“série complementar”, na qual as intensidades decrescentes
de um fator são compensadas pelas
intensidades crescentes de outro, mas não há razão alguma para negar a existência de casos
extremos nos dois limites da série.
Harmoniza-se ainda melhor com a investigação psicanalítica
dar um lugar de destaque,
entre os fatores acidentais, às experiências da primeira
infância. A série etiológica única
decompõe-se então em duas, que podem ser chamadas de
disposicionale definitiva. Na primeira,
a constituição e as vivências acidentais da infância
interagem da mesma maneira que, na segunda,
a disposição e as vivências traumáticas posteriores. Todos
os fatores nocivos ao desenvolvimento
sexual externam seu efeito promovendo uma regressão, um
retorno a uma fase anterior do
desenvolvimento.
Prossigamos agora em nossa tarefa de enumerar os fatores que
verificamos serem
influentes no desenvolvimento sexual, quer representem
forças eficazes ou meras manifestações
delas.
PRECOCIDADE
Um desses fatores é a
precocidadesexual espontânea, demonstrável com certeza pelo
menos na etiologia das neuroses, muito embora, tal como
outros fatores, não seja por si só uma
causa suficiente. Manifesta-se na interrupção, encurtamento
ou encerramento do período infantil
de latência, c converte-se em causa de perturbaçõespor
ocasionar manifestações sexuais que,
pelo estado incompleto das inibições sexuais, de umlado, e
por ainda não estar desenvolvido o
sistema genital, de outro, só podem trazer em si o caráter de perversões. Essas tendências à
perversão podem então permanecer como tais ou, instaurado o
recalcamento, transformar-se em
forças propulsoras de sintomas neuróticos. De qualquer modo,
a precocidade sexual dificulta o
desejável domínio posterior da pulsão sexual pelas instâncias anímicas superiores, e aumenta o
caráter compulsivo que, à parte isso, os substitutos
[Vertretungen] psíquicos da pulsão reivindicam
para si. A precocidade sexual amiúde corre paralelaao
desenvolvimento intelectual prematuro, e
como tal é encontrada na história infantil dos indivíduos
mais eminentes e capazes; em tais
condições, não parece tornar-se tão patogênica comoquando
surge isoladamente.
FATORES TEMPORAIS
Da mesma forma, exigem consideração outros fatores que, ao
lado da precocidade, podem
ser reunidos sob a designação de “temporais”. A ordem em que
são ativadas as diversas moções
pulsionais, bem como o lapso de tempo em que podem manifestar-se antes de sucumbir a
influência de uma nova moção pulsional emergente, ou a algum
recalcamento típico, parecem
filogeneticamente determinados. Todavia, tanto nessa
seqüência temporal quanto nessa duração
parece haver variações que devem exercer uma influência
dominante no resultado final. Não é
indiferente que uma dada corrente emerja antes ou depois de
sua corrente contraída, pois o efeito
de um recalcamento não pode ser desfeito: cada desvio
temporal na montagem dos componentes
produz invariavelmente uma alteração no resultado. Por outro lado, as moções pulsionais que
emergem com intensidade especial têm, com freqüência, um
decurso assombrantemente rápido,
como, por exemplo, o vínculo heterossexual dos que depois se tornam homossexuais manifestos.
Não há justificativa para o medo de que as tendências
estabelecidas com mais violência na
infância dominem permanentemente o caráter adulto; é igualmente esperável que elas venham a
desaparecer, cedendo lugar a seu oposto. (“Gestrenge Herren regieren nicht lange.”)
Não estamos sequer em condições de fornecer indícios das
causas dessas complicações
temporais dos processos de desenvolvimento. Abre-seaqui o
panorama de uma densa falange de
problemas biológicos, e talvez também históricos, dos quais
nem ao menos nos aproximamos o
bastante para travar batalha com eles.
ADESIVIDADE
A importância de todas as manifestações sexuais precoces é
aumentada por um fator
psíquico de origem desconhecida, que por ora decerto só pode
ser apresentado como uma
hipótese psicológica provisória. Refiro-me à elevada adesividade[Haftbarkeit] ou fixabilidade
dessas impressões da vida sexual, que é preciso admitir,
para a complementação dos fatos, nas
pessoas que depois se tornarão neuróticas ou perversas, já
que as mesmas manifestações
sexuais prematuras em outras pessoas não conseguem gravar-se de maneira tão profunda, a
ponto de produzirem uma repetição convulsiva e poderem
prescrever por toda a vida os caminhos
da pulsão sexual. Parte da explicação dessa adesividade
talvez resida num outro fator psíquico
que não podemos negligenciar na causação das neuroses, a
saber, a preponderância que cabe na
vida anímica aos traços mnêmicos, em comparação comas
impressões recentes. Esse fator é
obviamente dependente da formação intelectual e aumenta
conforme a elevação da cultura
pessoal. Em contraste com isso, o selvagem tem
sidocaracterizado como “das unglückselige Kind
des Augenblickes”. Em decorrência da relação inversa entre a
cultura e o livre desenvolvimento da
sexualidade, cujas conseqüências podem ser seguidasmuito de
perto na conformação de nossa
vida, a importância do rumo tomado pela vida sexualda
criança para a vida posterior é muito
pequena nos níveis cultural ou social mais baixos emuito
grande nos mais elevados.
FIXAÇÃO
O terreno preparado pelos fatores psíquicos que acabamos de
mencionar é favorável aos
estímulos acidentalmente vivenciados da sexualidadeinfantil.
Estes últimos (sobretudo a sedução
por outras crianças ou por adultos) fornecem o material que,
com a ajuda dos primeiros, pode fixar-se
como um distúrbio permanente. Boa
parte dos desvios da vida sexual normal posteriormente
observados tanto nos neuróticos quanto nos perversos é
estabelecida, desde o começo, pelas
impressões do período infantil, supostamente desprovido de
sexualidade. De sua causação
participam a complacência constitucional, a precocidade, a
característica da adesividade elevada e
a estimulação fortuita da pulsão sexual por influências
estranhas.
Todavia, a conclusão insatisfatória que emerge dessas
investigações das perturbações da
vida sexual provém de não sabermos, sobre os processos
biológicos que constituem a essência da
sexualidade, o bastante para formar, com base em nossos
conhecimentos isolados, uma teoria
suficiente para compreendermos tanto o normal quanto o
patológico.
APÊNDICE: LISTA DOS ESCRITOS DE FREUD QUE VERSAM
PREDOMINANTEMENTE OU EM GRANDE PARTE SOBRE A SEXUALIDADE
Claro está que as referências à sexualidade são encontradas
na grande maioria dos
escritos de Freud. A lista que se segue compreende aqueles
que versam mais diretamente sobre o
assunto. A data indicada no início de cada item corresponde
ao ano de publicação. Os detalhes
mais completos sobre cada obra serão encontrados
nabibliografia ao final deste volume.
1898a“A Sexualidade na Etiologia das Neuroses”.
1905d Três Ensaios
sobre a Teoria da Sexualidade.
1906a“Minhas Teses sobre o Papel da Sexualidade na Etiologia
das Neuroses”.
1907c“O Esclarecimento Sexual da Criança”.
1908b“Caráter e Erotismo Anal”.
1908c“Sobre as Teorias Sexuais Infantis”.
1908d“Moral Sexual `Civilizada’ e Doença Nervosa Moderna”.
1910a Cinco Lições de
Psicanálise, Conferência IV.
1910c Uma Lembrança
Infantil de Leonardo da Vinci, Capítulo III.
1910h“Um Tipo Especial de Escolha de Objeto no Homem”.
1912d“Sobre a Degradação mais Generalizada da Vida Amorosa”.
1912f“Contribuições para um Debate sobre a Masturbação”.
1913I“A Predisposição à Neurose Obsessiva”.
1913j“O Interesse pela Psicanálise”, Parte II (C).
1913kPrefácio
a Scatologic Rites of All Nations, de Bourke.
1914c“Sobre o Narcisismo: Introdução”.
1916-17 Conferências
Introdutórias sobre Psicanálise, Conferências XX, XXI, XXII e XXVI.
1917c“Sobre as Transformações da Pulsão, particularmente o
Erotismo Anal”.
1918a“O Tabu da Virgindade”.
1919e“ `Espanca-se uma Criança’ ”.
1920a“Sobre a Psicogênese de um Caso de Homossexualismo
Feminino”.
1922b“Alguns Mecanismos Neuróticos no Ciúme, na Paranóia e
no Homossexualismo”,
Seção C.
1923aDois Verbetes de Enciclopédia: (2) “A Teoria da
Libido”.
1923e“A Organização Genital Infantil”.
1924c“O Problema Econômico do Masoquismo”.
1924d“O Naufrágio do Complexo de Édipo”.
1925j“Algumas Conseqüências Psíquicas da Diferença Anatômica
entre os Sexos”.
1927e“Fetichismo”.
1931a“Tipos Libidinais”.
193lb“Sexualidade Feminina”
1933a Novas
Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Conferências XXXII e XXXIII.
1940a[1938] Um Esboço de Psicanálise, Capítulos III e VII.
1940e[1938] “A Cisão do Ego no Processo de Defesa”.