Um caso de histeria.
VOLUME VII
(1901-1905)
Dr. Sigmund Freud
FRAGMENTO DA ANÁLISE DE UM CASO DE HISTERIA (1905[1901])
NOTA DO EDITOR INGLÊS (JAMES STRACHEY)
BRUCHSTÜCK EINER HYSTERIE-ANALYSE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
(1901 24 de jan. Conclusão do primeiro manuscrito sob o
título de “Traum und
Hysterie” [“Sonhos e Histeria”].)
1905 Mschr. Psychiat. Neurol., 18 (4 e 5), out. e nov.,
285-310 e 408-467
1909
S.K.S.N., II, 1-110. (1912, 2ª ed.; 1921, 3ª ed.)
1924 G.S.,
8, 3-126.
1932 Vier
Krankengeschichten, 5-141.
1942 G.W.,
5, 163-286.
(b)
TRADUÇÃO INGLESA:
‘Fragment
of an Analysis of a Case of Hysteria’
1925 C.P., 3, 13- 146. (Tr. Alix e James Strachey.)
A presente tradução inglesa é uma versão corrigida da que foi
publicada em 1925.
Embora este caso clínico só tenha sido publicado em outubro
e novembro de 1905, sua
maior parte foi escrita em janeiro de 1901. A descoberta das
cartas de Freud a Wilhelm Fliess
(Freud, 1950a) proporcionou-nos um grande número de evidências
contemporâneas sobre o
assunto.
Em 14 de outubro de 1900 (Carta 139), Freud diz a Fliess que
começara pouco antes a
tratar de uma nova paciente, “uma jovem de dezoito anos”. Esta moça era evidentemente “Dora”,
e, como sabemos pelo próprio caso clínico (ver em [1]), seu
tratamento terminou cerca de três
meses depois, em 31 de dezembro. Durante todo aquele outono
Freud estivera dedicado a sua
Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana(1901b) e, em 10 de
janeiro, ele escreve (numa carta
não publicada) que está simultaneamente empenhado em dois
trabalhos: A Vida Cotidiana e
“Sonhos e Histeria, Fragmento de uma Análise”, que,como nos
diz seu prefácio (ver em [1]), era o
título original do presente trabalho. Em 25 de janeiro
(Carta 140) ele escreve: “ ‘Sonhos e Histeria’
foi concluído ontem. É um fragmento de análise de um caso de
histeria em que as explicações se
agrupam em torno de dois sonhos. Portanto, é, na realidade,
uma continuação do livro sobre os
sonhos. [A Interpretação dos Sonhos(1900a) fora publicada um
ano antes.] Contém ainda
resoluções de sintomas históricos e considerações sobre a
base sexual-orgânica de toda a
enfermidade. De qualquer forma, é a coisa mais sutil que já
escrevi, e produzirá um efeito ainda
mais aterrador que de hábito. Cumpre-se com o próprio dever,
entretanto, e o que se escreve não
é para um presente fugaz. O trabalho já foi aceito por Ziehen.” Este era co-editor, com Wernicke,
do Monatsschrift für Psychiatrie und Neurologie, no qual o
trabalho veio finalmente a aparecer.
Alguns dias depois, em 30 de janeiro (Carta 141), Freud
continua: “Espero que você não se
decepcione com ‘Sonhos e Histeria’. Seu interesse principal
continua sendo a psicologia - uma
estimativa da importância dos sonhos e uma descrição de
algumas das peculiaridades do
pensamento inconsciente. Há apenas vislumbres do orgânico -
as zonas erógenas e a
bissexualidade. Mas ele [o orgânico] é claramente mencionado
e reconhecido, ficando aberto o
caminho para seu exame exaustivo em outra oportunidade.
Trata-se de uma histeria com tussis
nervosae afonia, cujas origens podem ser encontradas
nas características de uma chupadora de
dedo; e o papel principal nos processos psíquicos em
conflito é desempenhado pela oposição
entre uma atração pelos homens e outra pelas mulheres.”
Esses excertos mostram como este
trabalho forma um elo entre A Interpretação dos Sonhose os Três Ensaios. O primeiro é seu
antecedente, e o segundo, sua conseqüência.
Em 15 de fevereiro (Carta 142), Freud anuncia a Fliess
que Sobre a Psicopatologia da
Vida Cotidianaestará terminado em poucos dias e que então as
duas obras ficarão prontas para
ser corrigidas e enviadas aos editores. Mas, na verdade, a
história dessas obras foi muito diferente.
Em 8 de maio (Carta 143), Freud já está revendo as primeiras
provas de Sobre a Psicopatologia da
Vida Cotidiana(que foi devidamente publicada nas edições de
julho e agosto do Monatsschrift),
mas esclarece, agora, que ainda não se decidiu a publicar o caso
clínico. Em 9 de junho, todavia
(em outra carta não publicada), ele anuncia que “ ‘Sonhos e
Histeria’ foi despachado e enfrentará o
olhar estarrecido do público no outono”. Não temos informações sobre como Freud veio
novamente a mudar de idéia e postergou a publicaçãopor mais
quatro anos. Em sua biografia de
Freud, o Dr. Ernest Jones informa (Volume 2, p. 286) que a
primeira revista para a qual o caso
clínico foi enviado foi
Journal für Psychologie und Neurologie. Seu editor, Brodmann, desistiu de
publicá-lo, aparentemente por considerá-lo uma quebra do
sigilo profissional.
Não há meio de determinar até que ponto Freud revisou o
trabalho antes de sua
publicação final em 1905. Todas as evidências internas,
contudo, sugerem que ele o alterou muito
pouco. A última seção do “Posfácio” (ver em [1] e [2]) foi
certamente acrescentada, assim como
algumas passagens, pelo menos nas “Notas Preliminares”, e
certas notas de rodapé. Salvo esses
pequenos acréscimos, porém, é lícito considerar queo ensaio
representa os métodos técnicos e as
concepções teóricas de Freud no período imediatamente
posterior à publicação de A Interpretação
dos Sonhos. Talvez pareça surpreendente que sua teoria da
sexualidade tivesse alcançado tal
ponto de desenvolvimento tantos anos antes da publicação dos
Três Ensaios(1905d), que de fato
apareceram quase simultaneamente a este trabalho. Mas nota
de rodapé da p. 55 corrobora
explicitamente o fato. Além disso, os leitores da
correspondência com Fliess hão de estar cientes
de que grande parte desta teoria já existia em época ainda
anterior. Para citar apenas um exemplo,
o dito de Freud no sentido de que as psiconeuroses são o “negativo” das perversões (ver em [1])
ocorre com palavras quase idênticas numa carta a Fliess de
24 de janeiro de 1897 (Carta 57).
Mesmo antes dessa época, já houvera uma alusão a essa idéia
numa carta de 12 de dezembro de
1896 (Carta 52), que também introduz a noção de “zonas
erógenas” e prenuncia a teoria das
“pulsões parciais”.
É curioso que por quatro vezes, em seus escritos
posteriores, Freud situe seu tratamento
de “Dora” no ano errado - 1899, ao invés de 1900. Oengano
ocorre duas vezes na primeira seção
de sua “História do Movimento Psicanalítico” (1914d) e é
repetido duas vezes na nota de rodapé
que ele acrescentou ao caso clínico em 1923 (ver em[1]). Não
há nenhuma dúvida de que o
outono de 1900 foi a data correta, já que, além
dasevidências externas citadas acima, essa data é
claramente fixada pelo “1902” estampado ao final dopróprio
trabalho (ver em [1]).
O seguinte resumo cronológico, baseado nos dados fornecidos
no relato do caso clínico,
talvez facilite ao leitor acompanhar os acontecimentos da
narrativa:
1882 Nascimento de Dora.
1888 (Et. 6) Pai tuberculoso.
Família muda-se para B
1889 (Et. 7) Enurese noturna.
1890 (Et. 8) Dispnéia.
1892 (Et. 10) Deslocamento da
retina do pai.
1894 (Et. 12) Crise confusional
do pai. Visita dele a Freud. Enxaqueca e tosse nervosa.
1896 (Et. 14) Cena do beijo.
1898 (Et. 16) (Princípios do
verão:) Primeira visita de Dora a Freud. (Fins de junho:) Cena
junto ao lago. (Inverno:) Morte
da tia. Dora em Viena.
1899 (Et. 17) (Março:)
Apendicite. (Outono:) A família deixa B e se muda para a cidade
onde ficava a fábrica.
1900 (Et. 18) A família se muda
para Viena. Ameaça de suicídio. (Outubro a dezembro:)
Tratamento com Freud.
1901 (Janeiro:) Redação do caso
clínico.
1902 (Abril:) Última visita de
Dora aFreud.
1905 Publicação do caso clínico.
NOTAS PRELIMINARES
Em 1895 e 1896 formulei algumas teses sobre a patogênese dos
sintomas histéricos e
sobre os processos psíquicos que ocorrem na histeria. E
agora que, passados muitos anos,
proponho-me fundamentá-las mediante o relato pormenorizado
de um caso clínico e de seu
tratamento, não posso furtar-me a algumas observações
preliminares, com o propósito, em parte,
de justificar por vários ângulos meu procedimento e, em
parte, de reduzir a proporções moderadas
as expectativas que isso possa despertar.
Foi sem dúvida incômodo para mim ter de publicar
osresultados de minhas investigações,
aliás de natureza surpreendente e pouco gratificante, sem
que meus colegas tivessem
possibilidade de testá-los e verificá-los. Não menos
embaraçoso, porém, é começar agora a expor
ao juízo público parte do material em que se basearam
aqueles resultados. Não deixarei de ser
censurado por isso. Só que, se antes fui acusado denão
comunicar nada sobre meus pacientes,
agora dirão que forneço sobre eles informações que não deveriam ser comunicadas. Espero
apenas que sejam as mesmas pessoas a mudarem assim de
pretexto para suas censuras e, desse
modo, renuncio antecipadamente a qualquer possibilidade de
algum dia eliminar suas objeções.
Contudo, mesmo que eu não dê importância a esses críticos
estreitos e malévolos, a
publicação de meus casos clínicos continua a ser para mim um
problema de difícil solução. As
dificuldades são, em parte, de natureza técnica, mas em
parte se devem à índole das próprias
circunstâncias. Se é verdade que a causação das enfermidades
histéricas se encontra nas
intimidades da vida psicossexual dos pacientes, e que os
sintomas histéricos são a expressão de
seus mais secretos desejos recalcados, a elucidaçãocompleta
de um caso de histeria estará
fadada a revelar essas intimidades e denunciar esses
segredos. É certo que os doentes nunca
falariam se lhes ocorresse que suas confissões teriam a
possibilidade de ser utilizadas
cientificamente, e é igualmente certo que seria totalmente
inútil pedir-lhes que eles mesmos
autorizassem a publicação do caso. Nessas circunstâncias, as
pessoas delicadas, bem como as
meramente tímidas, dariam primazia ao dever do sigilo médico
e lamentariam não poder prestar
nenhum esclarecimento à ciência. Em minha opinião,
entretanto, o médico assume deveres não só
em relação a cada paciente, mas também em relação àciência;
seus deveres para com a ciência,
em última análise, não significam outra coisa senãoseus
deveres para com os muitos outros
pacientes que sofrem ou sofrerão um dia do mesmo mal. Assim,
a comunicação do que se acredita
saber sobre a causação e a estrutura da histeria converte-se
num dever, e é uma vergonhosa
covardia omiti-la quando se pode evitar um dano pessoal
direto ao paciente em questão. Creio ter
feito tudo para impedir que minha paciente sofra qualquer
dano dessa ordem. Escolhi uma pessoa
cujas peripécias não tiveram Viena por cenário, masantes uma
cidadezinha distante de província,
e cujas circunstâncias pessoais devem, portanto, ser
praticamente desconhecidas em Viena.
Desde o início, guardei com tal cuidado o sigilo
dotratamento que apenas outro colega médico,
digno de minha total confiança, pode saber que essamoça foi
minha paciente. Desde o término do
tratamento, esperei ainda quatro anos para sua publicação,
até tomar conhecimento de que na
vida da paciente sobreveio uma modificação de tal ordem que
me permite supor que seu próprio
interesse nos acontecimentos e processos anímicos aserem
aqui relatados terá desaparecido.
Como é evidente, não conservei nenhum nome que pudesse
colocar na pista algum leitor dos
círculos leigos; além disso, a publicação do caso numa
revista especializada e estritamente
científica servirá como garantia contra esses leitores não
habilitados. Naturalmente, não posso
impedir que a própria paciente sofra uma impressão penosa, caso a história de sua própria doença
venha a cair acidentalmente em suas mãos. Mas ela não saberá
por este relato nada de que já não
tenha conhecimento, e poderá perguntar a si mesma quem, além
dela, poderia descobrir que é ela
o objeto deste trabalho.
Sei que existem - ao menos nesta cidade - muitos médicos que
(por revoltante que possa
parecer) preferem ler um caso clínico como este, não como
uma contribuição à psicopatologia das
neuroses, mas como um roman
à clefdestinado a seu deleite particular. A esse gênero de leitores
posso assegurar que todos os casos clínicos que eu venha a publicar no futuro serão protegidos
contra sua perspicácia por garantias semelhantes desigilo,
muito embora este propósito imponha
restrições extraordinárias a minha disponibilidade do
material.
Nesta história clínica - a única que até agora consegui
fazer romper as limitações impostas
pelo sigilo médico e por circunstâncias desfavoráveis - os
aspectos sexuais são discutidos com
toda a franqueza possível, os órgãos e funções da vida
sexual são chamados por seus nomes
exatos, e o leitor pudico poderá convencer-se, por minha descrição, de que não hesitei em
conversar sobre tais assuntos nessa linguagem mesmocom uma
jovem. Acaso devo defender-me
também dessa censura? Reclamei para mim simplesmente os
direitos do ginecologista - ou
melhor, direitos muito mais modestos - e acrescentarei que
seria um sinal de singular e perversa
lascívia supor que essas conversas possam ser um bom meio
para excitar ou satisfazer os apetites
sexuais. De resto, sinto-me inclinado a expressar minha
opinião a esse respeito com algumas
palavras tomadas de empréstimo.
“É deplorável ter de dar lugar a tais protestos e declarações
num trabalho científico, mas
que ninguém recrimine a mim por isso; acuse-se, antes, o
espírito da época, em virtude do qual
chegamos a um estado de coisas em que nenhum livro sério pode estar seguro de sobreviver.”
(Schmidt, 1902, Prefácio).
Passo agora a comunicar o modo como superei as dificuldades
técnicas da elaboração do
relatório deste caso clínico. Essas dificuldades são muito
consideráveis para o médico que tem de
realizar cotidianamente seis ou oito desses tratamentos
psicoterapêuticos e não pode tomar notas
durante a própria sessão com o paciente, pois isso
despertaria a desconfiança dele e perturbaria a
apreensão do material a ser recebido por parte do médico.
Além disso, ainda é para mim um
problema não resolvido o modo como devo registrar para
publicação a história de um tratamento
mais prolongado. No presente caso, duas circunstâncias
vieram em meu auxílio: primeiro, a
duração do tratamento não ultrapassou três meses, esegundo,
os esclarecimentos do caso se
agruparam em torno de dois sonhos (um relatado no meio do
tratamento e outro no fim) cujo
enunciado foi registrado imediatamente após a sessão, assim
proporcionando um ponto de apoio
seguro para a teia de interpretações e lembranças deles
decorrente. Quanto à própria história
clínica, só a redigi de memória após terminado o tratamento,
enquanto minha lembrança do caso
ainda estava fresca e aguçada por meu interesse em sua publicação. Por isso o registro não é
absolutamente - fonograficamente - fiel, mas pode-se
atribuir-lhe alto grau de fidedignidade. Nada
de essencial foi alterado nele, embora em vários trechos,
para maior coerência expositiva, a
seqüência das explicações tenha sido modificada.
Passo agora a salientar o que será encontrado nesterelato e
o que falta nele. O trabalho
levava originalmente o título de “Sonhos e Histeria”, que me
parecia peculiarmente apto a mostrar
como a interpretação dos sonhos se entrelaça na história de
um tratamento e como, com sua
ajuda, podem preencher-se as amnésias e elucidarem-se os
sintomas. Não foi sem boas razões
que, no ano de 1910, dei a um laborioso e exaustivoestudo
sobre o sonho (A Interpretação dos
Sonhos) precedência sobre as publicações que tencionava fazer
acerca da psicologia das
neuroses. Aliás, pude verificar por sua acolhida quão
insuficiente é o grau de compreensão com
que tais esforços são ainda hoje recebidos pelos colegas. E
nesse caso, não era válida a objeção
de que o material em que eu baseara minhas assertivas fora
retido, sendo, portanto, impossível
promover-se uma convicção de sua veracidade fundamentada em
verificações. Ocorre que
qualquer um pode submeter seus próprios sonhos ao exame
analítico, e a técnica de interpretação
dos sonhos é facilmente assimilável pelas instruções e
exemplos que ali forneci. Hoje, como
naquela época, devo insistir em que o aprofundamento nos
problemas do sonho é um pré-requisito
indispensável para a compreensão dos processos psíquicos da
histeria e das outras
psiconeuroses, e que ninguém que pretenda furtar-sea esse
trabalho preparatório tem a menor
perspectiva de avançar um único passo nesse campo. Portanto,
como este caso clínico pressupõe
o conhecimento da interpretação dos sonhos, sua leitura
parecerá extremamente insatisfatória
àqueles que não atenderem a esse pressuposto. Em vez do
esclarecimento buscado, eles só
encontrarão motivos de perplexidade nestas páginas,e
certamente se inclinarão a projetar a causa
dessa perplexidade no autor e a declará-lo fantasioso. Na
realidade, essa perplexidade está ligada
aos fenômenos da própria neurose; sua presença ali só é
ocultada por nossa familiaridade médica
com os fatos, e ressurge a cada tentativa de explicá-los. Só
seria possível eliminá-la por completo
se conseguíssemos rastrear cada elemento da neuroseaté
fatores com que já estivéssemos
familiarizados. Mas tudo indica, ao contrário, que seremos levados pelo estudo das neuroses a
fazer muitas novas suposições, que depois se converterão
pouco a pouco em objeto de um
conhecimento mais seguro. O novo sempre despertou
perplexidade e resistência.
Todavia, seria errôneo supor que os sonhos e sua
interpretação ocupam em todas as
psicanálises uma posição tão destacada quanto nesteexemplo.
Se o presente caso clínico parece tão privilegiado no que tange à utilização dos sonhos,
em outros aspectos se revelou mais precário do que eu teria desejado. Mas suas deficiências
prendem-se justamente às circunstâncias que possibilitaram
sua publicação. Como já disse, eu
não teria sabido como lidar com o material do relato de um
tratamento que se tivesse estendido por
um ano inteiro. Este relato, que cobre apenas três meses, pôde ser rememorado e revisto, mas
seus resultados permanecem incompletos em mais de um
aspecto. O tratamento não prosseguiu
até alcançar a meta prevista, tendo sido interrompido por
vontade da própria paciente depois de
chegar a certo ponto. Nessa ocasião, alguns dos enigmas do
caso não tinham sequer sido
abordados, e outros se haviam esclarecido de maneira
incompleta, ao passo que, se o trabalho
tivesse prosseguido, teríamos sem dúvida avançado em todos
os pontos até o mais completo
esclarecimento possível. Assim só posso oferecer aqui um
fragmento de análise.
Os leitores familiarizados com a técnica de análiseexposta
nos Estudos sobre a Histeria
[Breuer e Freud, 1895] talvez fiquem surpresos por não ter
sido possível, em três meses, encontrar
uma solução completa ao menos para os sintomas abordados.
Isso se tornará compreensível
mediante minha explicação de que, desde os Estudos, a técnica psicanalítica sofreu uma
revolução radical. Naquela época, o trabalho [de análise]
partia dos sintomas e visava a esclarecê-los um após outro. Desde então,
abandonei essa técnica por achá-la totalmente inadequada para
lidar com a estrutura mais fina da neurose. Agora deixo que
o próprio paciente determine o tema
do trabalho cotidiano, e assim parto da superfície que seu inconsciente ofereça a sua atenção
naquele momento. Mas desse modo, tudo o que se relaciona com
a solução de determinado
sintoma emerge em fragmentos, entremeado com várioscontextos
e distribuído por épocas
amplamente dispersas. Apesar dessa aparente desvantagem, a
nova técnica é muito superior à
antiga, e é incontestavelmente a única possível.
Ante o caráter incompleto de meus resultados analíticos, não
me restou senão seguir o
exemplo daqueles descobridores que têm a felicidadede trazer
à luz do dia, após longo
sepultamento, as inestimáveis embora mutiladas relíquias da
antigüidade. Restaurei o que faltava
segundo os melhores modelos que me eram conhecidos de outras análises, mas, como um
arqueólogo consciencioso, não deixei de assinalar em cada
caso o ponto onde minha construção
se superpõe ao que é autêntico.
Há outra espécie de deficiência que eu mesmo introduzi
intencionalmente. É que, em
geral, não reproduzi o trabalho interpretativo a que as
associações e comunicações da paciente
tiveram de ser submetidas, expondo apenas seus resultados. À
parte os sonhos, portanto, a
técnica do trabalho analítico só foi revelada em muito
poucos pontos. Ocorre que meu objetivo
neste caso clínico era demonstrar a estrutura íntima da
doença neurótica e o determinismo de seus
sintomas; só levaria a uma inextricável confusão seeu
tentasse, ao mesmo tempo, cumprir
também a outra tarefa. Para a fundamentação das regras
técnicas, a maioria das quais foi
descoberta de maneira empírica, seria preciso coligir
material de muitos casos clínicos. Contudo,
não se deve imaginar que foi particularmente grandea
abreviação produzida pela omissão da
técnica neste caso. Justamente a parte mais difícildo
trabalho técnico nunca entrou em jogo com
essa paciente, pois o fator da “transferência”, considerado
no final do caso clínico (ver a partir de
[1]), não foi abordado durante o curto tratamento.
De uma terceira espécie de deficiência neste relato, nem a
paciente nem o autor têm
culpa. Ao contrário, é óbvio que um único caso clínico,
ainda que fosse completo e não desse
margem a nenhuma dúvida, não poderia dar resposta atodas as
questões levantadas pelo
problema da histeria. Não pode dar-nos conhecimentode todos
os tipos dessa doença, nem de
todas as formas da estrutura interna da neurose, nem de
todas as espécies possíveis de relação
entre o psíquico e o somático encontradas na histeria. Não é
justo esperar de um único caso mais
do que ele pode oferecer. E quanto aos que até agora não
quiseram acreditar na validade
universal e sem exceções da etiologia psicossexual da histeria, eles dificilmente ficarão
convencidos disso tomando conhecimento de um único caso clínico. Melhor fariam em adiar seu
julgamento até adquirirem por seu próprio trabalho o direito
de ter uma convicção.
O QUADRO CLÍNICO
Tendo demonstrado em
A Interpretação dos Sonhos, publicada em 1900, que os sonhos
em geral podem ser interpretados e que, uma vez concluído o
trabalho de interpretação, podem
ser substituídos por pensamentos impecavelmente construídos,
passíveis de ser inseridos num
ponto reconhecível no encadeamento anímico, gostaria de dar
nas páginas seguintes um exemplo
da única aplicação prática que a arte de interpretar sonhos
parece admitir. Já mencionei em meu
livrocomo foi que deparei com o problema dos sonhos.
Encontrei-o em meu caminho quando me
empenhava em curar as psiconeuroses por meio de determinado
método psicoterapêutico, pois,
entre outros eventos de sua vida anímica, meus pacientes
também me contavam sonhos que
pareciam reclamar inserção na longa trama de relações tecida
entre um sintoma da doença e uma
idéia patogênica. Nessa época, aprendi a traduzir alinguagem
dos sonhos em formas de
expressão de nossa própria linguagem do
pensamento,compreensíveis sem maior auxílio. Esse
conhecimento, posso asseverar, é imprescindível para o
psicanalista, pois o sonho é um dos
caminhos pelos quais pode aceder à consciência o material
psíquico que, em virtude da oposição
criada por seu conteúdo, foi bloqueado da consciência,
recalcado, e assim se tornou patogênico. O
sonho é, em suma, um dos
desvios por onde se pode fugir ao recalcamento, um dos principais
recursos do que se conhece como modo indireto de
representação no psíquico. O presente
fragmento da história do tratamento de uma jovem histérica
destina-se a mostrar de que forma a
interpretação dos sonhos se insere no trabalho de análise.
Ao mesmo tempo, dar-me-á uma
primeira oportunidade de trazer a público, com extensão
suficiente para evitar outros mal-
entendidos, parte de minhas concepções sobre os processos
psíquicos e condições orgânicas da
histeria. Não mais preciso desculpar-me pela extensão, já que
agora se admite que as severas
exigências que a histeria faz ao médico e ao investigador só
podem ser satisfeitas pelo mais
dedicado aprofundamento, e não por uma atitude de
superioridade e desprezo. Decerto,
Nicht Kunst
und Wissenschaft allein,
Geduld will
bei dem Werkesein!
Se eu começasse por apresentar um relato clínico integral e
acabado, isso colocaria o
leitor em condições muito diferentes das do observador
médico. As informações dos parentes do
enfermo - neste caso, do pai da moça de dezoito anos - em
geral fornecem um quadro muito
desfigurado do curso da doença. Na verdade, começo o tratamento solicitando que me seja
narrada toda a biografia do paciente e a história de sua
doença, mas, ainda assim, as informações
que recebo nunca bastam para me orientar. Esse primeiro
relato se compara a um rio não
navegável cujo leito é ora bloqueado por massas rochosas,
ora dividido entre baixios e bancos de
areia. Não posso deixar de me surpreender com a maneira como
os autores conseguem
apresentar relatos clínicos tão acabados e precisosdos casos
de histeria. Na realidade, os
pacientes são incapazes de fornecer tais relatos a seu próprio respeito. De fato, podem dar ao
médico muitas informações coerentes sobre este ou aquele
período de suas vidas, mas logo se
segue outro período em relação ao qual suas comunicações
escasseiam, deixando lacunas e
enigmas; e em outras ocasiões fica-se diante de novos
períodos de total obscuridade, não
iluminados por urna única informação que tenha serventia. As
ligações, inclusive as aparentes, são
em sua maioria desconexas, e a seqüência dos diferentes
acontecimentos é incerta. Durante o
próprio relato, os pacientes corrigem repetidamenteum
pormenor ou uma data, talvez para
retornar, depois de muita hesitação, a sua versão inicial. A
incapacidade dos doentes desfazerem
uma exposição ordenada de sua biografia no que ela coincide
com a história de sua doença não é
característica apenas da neurose, mas tem também grande
importância teórica. Essa deficiência
tem os seguintes fundamentos: em primeiro lugar, ospacientes
retêm consciente e
intencionalmente parte do que lhes é perfeitamente conhecido e que deveriam contar, por não
terem ainda superado seus sentimentos de timidez e vergonha (ou discrição, quando há outras
pessoas em jogo); esta seria a contribuição da falta conscientede franqueza. Em segundo lugar,
parte do conhecimento amnésico de que o paciente dispõe em
outras ocasiões não lhe ocorre
enquanto ele narra sua história, sem que ele tenha nenhuma intenção de retê-la: é a contribuição
da insinceridade
inconsciente. Em terceiro lugar, nunca faltam as amnésias verdadeiras -
lacunas
da memória em que caíram não apenas lembranças antigas como
até mesmo recordações bem
recentes - e as ilusões de memória [paramnésias], formadas
secundariamente para preencher
essas lacunas. Quando os fatos em si são guardados na
memória, opropósito subjacente às
amnésias pode ser cumprido com igual segurança destruindo-se
uma ligação, e a maneira mais
certa de desfazer uma ligação é alterar a ordem cronológica
dos acontecimentos. Esta última
sempre se revela o elemento mais vulnerável do acervo da
memória e o mais facilmente sujeito ao
recalcamento. Muitas lembranças são encontradas, por assim
dizer, num primeiro estágio de
recalcamento, apresentando-se cercadas de dúvidas. Decorrido algum tempo, essas dúvidas
seriam substituídas por um esquecimento ou por uma
falsificação da memória.
A existência desse estado de coisas no tocante às lembranças
ligadas à história da doença
é o correlato
necessário e teoricamente indispensável dos sintomas patológicos. Depois, no
decorrer do tratamento, o paciente fornece os fatosque,
embora sempre fossem de seu
conhecimento, tinham sido retidos por ele ou não lhe haviam
ocorrido. As ilusões de memória se
revelam insustentáveis e as lacunas são preenchidas. Só
quando o tratamento se aproxima do seu
término é que temos diante de nós uma história clínica
inteligível, coerente e sem lacunas. Se o
objetivo prático do tratamento é eliminar todos os sintomas possíveis e substituí-los por
pensamentos conscientes, podemos considerar como segundo
objetivo, de cunho teórico, reparar
todos os danos à memória do paciente. Esses dois objetivos
são coincidentes: quando se alcança
um, também o outro é atingido; um mesmo caminho conduz a
ambos.
Pela natureza das coisas que compõem o material da psicanálise, compete-nos o dever,
em nossos casos clínicos, de prestar tanta atenção às circunstâncias puramente humanas e
sociais dos enfermos quanto aos dados somáticos e aos
sintomas patológicos. Acima de tudo,
nosso interesse se dirigirá para as circunstâncias familiares do paciente - e isso, como se verá
mais adiante, não apenas com o objetivo de investigar a
hereditariedade, mas também em função
de outros vínculos.
O círculo familiar de nossa paciente de dezoito anos
incluía, além dela própria, seus pais e
um irmão um ano e meio mais velho que ela. O pai era a
pessoa dominante desse círculo, tanto
por sua inteligência e seus traços de caráter como pelas circunstâncias de sua vida, que
forneceram o suporte sobre o qual se erigiu a história
infantil e patológica da paciente. Na época
em que aceitei a jovem em tratamento, seu pai já beirava os
cinqüenta anos e era um homem de
atividade e talento bastante incomuns, um grande industrial
com situação econômica muito
cômoda. A filha era muito carinhosamente apegada a ele e, por essa razão, seu senso crítico
precocemente despertado escandalizava-se ainda maiscom
muitos dos atos e peculiaridades do
pai.
Essa ternura por ele era ainda aumentada em virtudedas
muitas e graves doenças de que
padecera o pai desde que ela contava seis anos de idade.
Nessa época ele ficara tuberculoso, e
isso ocasionara a mudança da família para uma cidadezinha de
clima propício, situada numa de
nossas províncias do sul; ali a afecção pulmonar teve uma
rápida melhora, mas em virtude das
precauções ainda consideradas necessárias, esse lugar, que chamarei
de B , continuou a ser nos
dez anos seguintes a residência principal tanto dospais
quanto dos filhos. Quando o pai já estava
bem de saúde, costumava ausentar-se temporariamentepara
visitar suas fábricas; na época mais
quente do verão, a família mudava-se para uma estação de
águas nas montanhas.
Quando a menina tinha cerca de dez anos, o pai tevede
submeter-se a tratamento em
quarto escuro por causa de um descolamento de retina. Em
conseqüência desse infortúnio, sua
visão ficou permanentemente reduzida. A doença maisgrave
ocorreu cerca de dois anos depois;
consistiu numa crise confusional, seguida de sintomas de
paralisia e ligeiras perturbações
psíquicas. Um amigo dele, de cujo papel ainda nos ocuparemos
mais adiante (ver em [1]),
convenceu-o, mal tendo seu estado melhorado um pouco, a
viajar para Viena com seu médico e
consultar-se comigo. Hesitei por algum tempo, sem saber se
deveria supor a existência de uma
paralisia tabética, mas finalmente me decidi por umdiagnóstico
de afecção vascular difusa; e como
o paciente admitiu ter tido uma infecção específicaantes do
casamento, receitei-lhe um tratamento
antiluético enérgico, em conseqüência do qual cederam todos
os distúrbios que ainda persistiam.
Foi sem dúvida graças a essa minha feliz intervenção que,
quatro anos depois, ele me apresentou
sua filha, que nesse meio-tempo ficara inequivocamente
neurótica, e passados mais dois anos
entregou-a a mim para tratamento psicoterápico.
Entrementes, eu também conhecera em Viena uma irmã um pouco mais velha dele, em
quem reconheci uma forma grave de psiconeurose sem nenhum
dos sintomas caracteristicamente
histéricos. Depois de uma vida acabrunhada por um casamento
infeliz, essa mulher morreu de um
marasmo que progrediu rapidamente e cujos sintomas,aliás,
nunca foram totalmente esclarecidos.
Um irmão mais velho do pai de minha paciente, a quem tive
oportunidade de conhecer, era
um solteirão hipocondríaco.
As simpatias da própria moça, que, como disse, tornou-se
minha paciente aos dezoito
anos, sempre penderam para o lado paterno da família e,
depois de adoecer, ela tomara como
modelo a tia que acabei de mencionar. Tampouco me era
duvidoso que fora dessa família que ela
derivara não só seus dotes e sua precocidade intelectual,
como também a predisposição à doença.
Não cheguei a conhecer sua mãe. Pelas comunicações do pai e
da moça, fui levado a imaginá-la
como uma mulher inculta e acima de tudo fútil, que,a partir
da doença e do conseqüente
distanciamento de seu marido, concentrara todos os seus interesses nos assuntos domésticos, e
assim apresentava o quadro do que se poderia chamarde
“psicose da dona-de-casa”. Sem
nenhuma compreensão pelos interesses mais ativos dos filhos,
ocupava o dia todo em limpar e
manter limpos a casa, os móveis e os utensílios, a tal ponto
que se tornava quase impossível usá-los ou desfrutar deles. Esse estado, do
qual se encontram indícios com bastante freqüência nas
donas-de-casa normais, não pode deixar de ser comparado com
as formas de lavagem obsessiva
e outras obsessões pela limpeza. Mas tais mulheres,como
acontecia no caso da mãe de nossa
paciente, desconhecem por completo sua doença,
faltando-lhes, portanto, uma característica
essencial da “neurose obsessiva”. As relações entremãe e
filha eram muito inamistosas havia
vários anos. A filha menosprezavaa mãe, criticava-aduramente
e se subtraíra por completo de sua
influência.
Em épocas anteriores, o único irmão da moca, um anoe meio
mais velho, fora o modelo
que ela ambicionara seguir. Nos últimos anos, porém, as
relações entre ambos se haviam tornado
mais distantes. O rapaz procurava afastar-se o máximo
possível das discussões da família, mas,
quando se via obrigado a tomar partido, apoiava a mãe.
Assim, a costumeira atração sexual
aproximara pai e filha, de um lado, e mãe e filho, de outro.
Nossa paciente, a quem doravante darei o nome de “Dora”, já
aos oito anos começara a
apresentar sintomas neuróticos. Nessa época, passoua sofrer
de uma dispnéia crônica com
acessos ocasionais muito mais agudos, o primeiro dos quais
ocorreu após uma pequena excursão
pelas montanhas, sendo por isso atribuído ao esforço
excessivo. No curso de seis meses, graças
ao repouso e aos cuidados com que foi tratada, esseestado
cedeu gradativamente. O médico da
família parece não ter hesitado nem por um momento em
diagnosticar o distúrbio como puramente
nervoso e excluir qualquer causa orgânica para a dispnéia,
mas é evidente que considerou esse
diagnóstico compatível com a etiologia do esforço excessivo.
A menina passou pelas doenças infecciosas habituaisda
infância sem sofrer qualquer
dano permanente. Segundo ela própria me contou (comintenção
mais simbolizante!) (ver em [1]),
seu irmão costumava ser o primeiro a contrair a doença em
forma branda, seguindo-se então ela
com manifestações mais graves. Por volta dos doze anos ela
começou a sofrer de dores de
cabeça unilaterais do tipo de enxaquecas, bem como de acessos de tosse nervosa. A princípio
esses dois sintomas sempre apareciam juntos, mas depois se
separaram e tiveram
desdobramentos diferentes. A enxaqueca tornou-se mais rara
e, por volta dos dezesseis anos,
desapareceu completamente. Mas os acessos de tussis nervosa, que sem dúvida tinham
começado com uma gripe comum, continuaram por todo o tempo. Quando, aos dezoito anos, ela
entrou em tratamento comigo, tossia novamente de maneira
característica. O número desses
acessos não pôde ser determinado, mas sua duração era de
três a cinco semanas, e numa
ocasião se estendeu por vários meses. O sintoma mais
incômodo durante a primeira metade de
uma dessas crises, pelo menos nos últimos anos, costumava
ser a perda completa da voz. O
diagnóstico de que mais uma vez se tratava de nervosismo
fora estabelecido desde longa data,
mas os vários métodos de tratamento usuais, inclusive
hidroterapia e aplicação local de
eletricidade, não haviam produzido nenhum resultado. Foi
nessas circunstâncias que a criança
transformou-se numa jovem madura, de juízo muito
independente, que se acostumou a rir dos
esforços dos médicos e acabou por renunciar inteiramente à
assistência deles. Além disso, ela
sempre se opusera a procurar orientação médica, embora não
fizesse nenhuma objeção à pessoa
de seu médico de família. Qualquer proposta de consultar um
novo médico despertava sua
resistência, e também a mim ela só veio movida
pelaautoridade do pai.
Vi-a pela primeira vez no início do verão, quando estava com
dezesseis anos, sofrendo de
tosse e rouquidão, e já nessa época propus um tratamento
psíquico, que não foi adotado porque
também essa crise, que durara mais do que as outras,
desapareceu espontaneamente. No inverno
seguinte, após a morte de sua amada tia, ela esteveem Viena
na casa do tio e das filhas dele, e
aqui adoeceu com um quadro febril então diagnosticado como
apendicite. No outono seguinte,
como a saúde do pai parecia justificar essa medida,a família
deixou definitivamente a estação de
B , mudando-se a princípio para a cidade onde ficava a
fábrica do pai e, depois, decorrido pouco
menos de um ano, fixando residência permanente em Viena.
Entrementes Dora havia crescido e se transformara numa moça
em flor, com feições
inteligentes e agradáveis, mas que era fonte de sér ias
preocupações para seus pais. O desânimo e
uma alteração do caráter se tinham tornado agora
osprincipais traços de sua doença. Era evidente
que não estava satisfeita consigo mesma nem com a família,
tinha uma atitude inamistosa em
relação ao pai e se dava muito mal com a mãe, que estava
determinada a fazê-la participar das
tarefas domésticas. Dora procurava evitar os contactos
sociais; quando a fadiga e a falta de
concentração de que se queixava o permitiam, ocupava-se em
ouvir conferências para mulheres e
se dedicava a estudos mais sérios. Um dia, seus pais ficaram
muito alarmados ao encontrarem,
dentro ou sobre a escrivaninha da moça, uma carta em que ela
se despedia deles porque não
podia mais suportar a vida. É verdade que o pai, homem de
bastante discernimento, calculou que a
moça não tinha intenções sérias de suicídio, mas, mesmo
assim, ficou muito abalado; e quando um
dia, após uma ligeira troca de palavras entre ele ea filha,
esta teve um primeiro ataque de perda
da consciência- acontecimento também posteriormente
encoberto por uma amnésia -, ficou
decidido, apesar de sua relutância, que ela deveriatratar-se
comigo.
Sem dúvida este caso clínico, tal como o esbocei até agora,
não parece em seu conjunto
digno de ser comunicado. Trata-se de uma “petite hystérie”
com os mais comuns de todos os
sintomas somáticos e psíquicos: dispnéia, tussis nervosa, afonia e possivelmente
enxaquecas,
junto com depressão, insociabilidade histérica e um taediumvitae que provavelmente não era
muito levado a sério. Sem dúvida já se publicaram casos mais
interessantes de histeria, amiúde
registrados com maior cuidado, pois nas páginas quese seguem
nada se encontrará sobre
estigmas de sensibilidade cutânea, limitação do campo visual
ou coisas semelhantes. Permito-me
observar, contudo, que todas essas coleções de estranhos e
assombrosos fenômenos da histeria
não nos fizeram avançar grande coisa em nosso conhecimento
dessa moléstia, que ainda continua
a ser enigmática. O que nos falta é justamente a elucidação
dos casos mais comuns e de seus
sintomas mais freqüentes e típicos. Eu me daria
porsatisfeito se as circunstâncias me tivessem
permitido dar um esclarecimento completo deste casode
pequena histeria. Segundo minhas
experiências com outros pacientes, não tenho nenhuma dúvida
de que meu método analítico me
teria bastado para fazê-lo.
Em 1896, pouco depois da publicação de meus Estudos sobre a
Histeria, em colaboração
com o Dr. J. Breuer [1895], pedi a um eminente colega sua
opinião sobre a teoria psicológica da
histeria ali defendida. Ele respondeu sem rodeios que a
considerava uma generalização
injustificável de conclusões que poderiam ser corretas para
uns poucos casos. Desde então tenho
visto inúmeros casos de histeria, ocupando-me de cada um por
vários dias, semanas ou anos, e
em nenhum deles deixei de descobrir as condições psíquicas
postuladas nos Estudos, ou seja, o
trauma psíquico, o conflito dos afetos e, como acrescentei
em publicações posteriores, a comoção
na esfera sexual. Quando se trata de coisas que se tornaram patogênicas por seu afã de
ocultar-se, decerto não se deve esperar que o doente vá ao encontro do médico exibi-las, nem tampouco
deve este contentar-se com o primeiro “Não” que se oponha às
investigações.
No caso de Dora, graças à já tão salientada inteligência do
pai, não foi preciso que eu
mesmo procurasse os pontos de referência vitais, pelo menos
no tocante à conformação mais
recente de sua doença. Contou-me o pai que ele e a família
tinham feito uma amizade íntima em B
com um casal ali radicado já há muitos anos. A Sra.K.
cuidara dele durante sua longa
enfermidade, tendo assim feito jus à sua eterna gratidão. O
Sr. K. sempre fora extremamente
amável com sua filha Dora, levando-a a passear com ele quando estava em B e dando-lhe
pequenos presentes, mas ninguém via nenhum mal nisso. Dora
tratava com o mais extremo
cuidado os dois filhinhos dos K., dedicando-lhes uma atenção
quase maternal. Quando pai e filha
vieram consultar-me dois anos antes, no verão, estavam
justamente prestes a viajar para ir ao
encontro do Sr. e Sra. K., que passavam o verão numde nossos
lagos nos Alpes. Dora deveria
passar várias semanas na casa dos K., enquanto seu pai pretendia regressar dentro de poucos
dias. Durante esse período, também o Sr. K. estivera lá. Mas
quando o pai se preparava para
partir, a moça de repente declarou com extrema firmeza que
iria com ele, e de fato assim fez. Só
depois de alguns dias esclareceu seu estranho comportamento,
contando à mãe, para que esta
por sua vez o transmitisse ao pai, que o Sr. K. tivera a
audácia de lhe fazer uma proposta amorosa,
durante uma caminhada depois de um passeio pelo lago.
Chamado a prestar contas de seu
comportamento ao pai e ao tio da moça quando do encontro
seguinte entre eles, o acusado negou
do modo mais enfático qualquer atitude de sua parteque
pudesse ter dado margem a essa
interpretação, e começou a lançar suspeitas sobre amoça,
que, segundo soubera pela Sra. K., só
mostrava interesse pelos assuntos sexuais, e que até na
própria casa dele junto ao lago lera a
Fisiologia do Amor, de Mantegazza, e livros semelhantes.
Provavelmente, excitada por tais leituras,
ela teria “imaginado” toda a cena que descrevera.
“Não tenho dúvida”, disse o pai, “de que esse incidente é
responsável pelo abatimento,
irritabilidade e idéias suicidas de Dora. Ela vive insistindo em que eu rompa relações com o Sr.
K.,
e em particular com a Sra. K., a quem antes positivamente
venerava. Mas não posso fazer isso,
primeiro porque eu mesmo acredito que a história deDora
sobre a impertinência imoral do homem
é uma fantasia que se impôs a ela, e segundo porqueestou
ligado à Sra. K. por laços de honrosa
amizade e não quero magoá-la. A pobre mulher já é muito
infeliz com o marido, a quem, por sinal,
não tenho em grande conceito; ela mesma já sofreu muito dos
nervos e tem em mim seu único
apoio. Considerando meu estado de saúde, não preciso
assegurar-lhe que não há nada de ilícito
por trás de nossas relações. Somos apenas dois pobres
coitados que consolamos um ao outro
como podemos através de um interesse amistoso. O senhor bem
sabe que não tenho nada disso
com minha própria mulher. Mas Dora, que herdou minha
obstinação, é inabalável em seu ódio
pelos K. Seu último ataque ocorreu depois de uma conversa em
que ela tornou a me fazer a
mesma exigência [de romper com os K.]. Por favor, tente
agora colocá-la no bom caminho.”
Não se harmonizava muito com essas declarações o fato de que
o pai, em outras
conversas, procurava atribuir a culpa maior pelo
comportamento insuportável de Dora à mãe, cujas
peculiaridades tiravam todo o gosto pela vida doméstica. Mas
eu resolvera desde longa data
suspender meu juízo sobre o verdadeiro estado de coisas até
que tivesse ouvido também o outro
lado.
A experiência de Dora com o Sr. K. - suas propostasamorosas
a ela e a conseqüente
afronta a sua honra - parece fornecer, no caso de nossa
paciente, o trauma psíquico que Breuer e
eu declaramos, no devido tempo, ser a condição prévia
indispensável para a gênesede um estado
patológico histérico. Mas este novo caso também mostra todas
as dificuldades que depois me
fizeram ir além dessa teoria, acrescidas de uma nova
dificuldade de cunho mais especial. Como
é
tão freqüente nos casos clínicos de histeria, o trauma que
sabemos ter ocorrido na vida do
paciente não basta para esclarecer a especificidadedo
sintoma, para determiná-lo; entenderíamos
tanto ou tão pouco de toda a história se, em vez de tussis nervosa, afonia, abatimento e taedium
vitae, outros sintomas tivessem resultado do trauma. Mashá
ainda a consideração de que alguns
desses sintomas (a tosse e a perda da voz) tinham sido
produzidos pela paciente anos antes do
trauma, e que suas primeiras manifestações remontavam à
infância, pois tinham ocorrido no oitavo
ano de vida. Portanto, se não queremos abandonar a teoria do trauma, devemos retroceder até a
infância da moça e buscar ali influências ou impressões que
pudessem ter surtido efeito análogo
ao de um trauma.Além disso, é digno de nota que, mesmo na
investigação de casos em que os
primeiros sintomas não se tinham instalado na infância, fui
levado a reconstituir a biografiados
pacientes até seus primeiros anos de vida.
Superadas as primeiras dificuldades do tratamento, Dora comunicou-me uma experiência
anterior com o Sr. K., mais bem talhada ainda para operar como um trauma sexual. Estava então
com quatorze anos. O Sr. K. combinara com ela e comsua
mulher para que, à tarde, elas fossem
encontrá-lo em sua loja comercial, na praça principal de B ,
para dali assistirem a um festival
religioso. Mas ele induziu sua mulher a ficar em casa,
despachou os empregados e estava sozinho
quando a moça entrou na loja. Ao se aproximar a hora da
procissão, pediu à moça que o
aguardasse na porta que dava para a escada que levava ao
andar superior, enquanto ele abaixava
as portas corrediças externas. Em seguida voltou e,ao invés
de sair pela porta aberta, estreitou
subitamente a moça contra si e depôs-lhe um beijo nos
lábios. Era justamente a situação que,
numa mocinha virgem de quatorze anos, despertaria uma nítida
sensação de excitação sexual.
Mas Dora sentiu naquele momento uma violenta repugnância,
livrou-se do homem e passou
correndo por ele em direção à escada, daí alcançando a porta
da rua. Mesmo assim, as relações
com o Sr. K. prosseguiram; nenhum dos dois jamais mencionou
essa pequena cena, e Dora afirma
tê-la guardado em segredo até sua confissão duranteo
tratamento. Por algum tempo depois disso,
ela evitou ficar a sós com o Sr. K. Por essa época,os K.
tinham combinado fazer uma excursão de
alguns dias, da qual Dora também deveria participar. Depois
da cena do beijo na loja, ela se
recusou a acompanhá-los, sem dar nenhuma razão.
Nessa cena - a segunda da seqüência, mas a primeirana ordem
temporal -, o
comportamento dessa menina de quatorze anos já era total e
completamente histérico. Eu tomaria
por histérica, sem hesitação, qualquer pessoa em quem uma
oportunidade de excitação sexual
despertasse sentimentos preponderante ou exclusivamente
desprazerosos, fosse ela ou não capaz
de produzir sintomas somáticos. Esclarecer o mecanismo
dessa inversão do afetoé uma das
tarefas mais importantes e, ao mesmo tempo, uma dasmais
difíceis da psicologia das neuroses.
Em minha própria opinião, ainda estou bem longe de alcançar essa meta, e no contexto desta
comunicação posso também acrescentar que até do quesei só me
será possível apresentar uma
parte.
O caso de nossa paciente Dora ainda não fica suficientemente
caracterizado acentuando-se apenas a inversão do afeto; é preciso dizer, além
disso, que houve aqui um deslocamentoda
sensação. Ao invés da sensação genital que uma jovem sadia
não teria deixado de sentir em tais
circunstâncias, Dora foi tomada da sensação de desprazer
própria da membrana mucosa da
entrada do tubo digestivo - isto é, pela repugnância. A
estimulação de seus lábios pelo beijo foi
sem dúvida importante para localizar a sensação nesse ponto
específico, mas creio reconhecer
também o efeito de outro fator.
A repugnância que Dora sentiu nessa ocasião não se tornou um sintoma permanente, e
mesmo na época do tratamento existia apenas potencialmente,
por assim dizer. Ela se alimentava
mal e confessou certa aversão pelos alimentos. Por outro
lado, a cena deixara outra conseqüência,
sob a forma de uma alucinação sensorial que ocorriade tempos
em tempos e chegou a se verificar
enquanto ela a relatou a mim. Disse continuar sentindo na
parte superior do corpo a pressão
daquele abraço. Segundo certas regras da formação de
sintomas que vim a conhecer, e ao mesmo
tempo levando em conta algumas outras particularidades da
paciente, que de outra forma seriam
inexplicáveis - por exemplo, não queria passar por nenhum homem a quem visse em conversa
animada ou terna com uma mulher -, formei para mim mesmo a seguinte reconstrução da cena.
Creio que, durante o abraço apaixonado, ela sentiu não só o
beijo em seus lábios, mas também a
pressão do membro ereto contra seu ventre. Essa percepção
revoltante para ela foi eliminada de
sua memória, recalcada e substituída pela sensação inocente de pressão sobre o tórax, que
extraía de sua fonte recalcada uma intensidade excessiva.
Uma vez mais, portanto, vemos um
deslocamentoda parte inferior para a parte superior do
corpo. Por outro lado, a compulsão em seu
comportamento construía-se como se proviesse da lembrança
inalterada da cena: ela não gostava
de passar por nenhum homem a quem julgasse em estado de
excitação sexual porque não queria
voltar a ver o sinal somático desse estado.
Vale ressaltar que, aqui, três sintomas - a repugnância, a
sensação de pressão na parte
superior do corpo e a evitação dos homens em conversa
afetuosa - provinham de uma mesma
experiência, e somente levando em conta a inter-relação
desses três signos é que se torna
possível compreender o processo de formação dos sintomas. O
nojo corresponde ao sintoma do
recalcamento da zona erógena dos lábios(mimada demais em
Dora, como veremos (em [1]), pelo
sugar infantil). A pressão do membro ereto provavelmente
levou a uma alteração análoga no órgão
feminino correspondente, o clitóris, e a excitação dessa segunda zona erógena foi fixada no
tórax
por deslocamento para a sensação simultânea de pressão. O
horror aos homens que pudessem
achar-se em estado de excitação sexual obedece ao mecanismo
de uma fobia destinada a dar
proteção contra o reavivamento da percepção recalcada.
Para evidenciar a possibilidade dessa complementação da
história, perguntei à paciente
com extrema cautela se ela conhecia o sinal corporal da
excitação no corpo do homem. Sua
resposta foi “Sim” quanto ao momento atual, mas, notocante
àquela época, ela achava que não.
Desde o início tive com esta paciente o máximo cuidado de
não lhe fornecer nenhum novo
conhecimento na esfera da vida sexual, não por
escrupulosidade, mas porque queria submeter
meus pressupostos a uma prova rigorosa neste caso. Por isso, só chamava uma coisa por seu
nome quando as alusões dela se tinham tornado tão claras que
parecia haver muito pouco risco
em traduzi-las para a linguagem direta. Sua resposta sempre
pronta e franca era que ela já sabia
disso,mas de
ondevinha esse conhecimento era um enigma que suas lembranças não
permitiam
resolver. Ela esquecera a fonte de todos esses
conhecimentos.
Se me é lícito representar dessa maneira a cena do beijo ocorrido na loja, chego à
seguinte derivação para a repugnância. A sensação de nojo
parece ser, originalmente, umareação
ao cheiro (e depois também à visão) dos excrementos. Mas os
órgãos genitais, e em especial o
membro masculino, podem lembrar as funções excretoras,
porque aqui o órgão, além de
desempenhar a função sexual, serve também à da micção. Na
verdade, esta é a primeira das duas
a ser conhecida, e é a única conhecida durante o período
pré-sexual. É assim que a repugnância
se inclui nas manifestações afetivas da vida sexual. É o
“inter urinas et faeces nascimur” dos
Padres da Igreja, que adere à vida sexual e dela não pode
desprender-se, a despeito de todos os
esforços de idealização. Gostaria, contudo, de enfatizar
expressamente minha opinião de que o
problema não fica resolvido pela simples indicação dessa via associativa. O fato de que essa
associaçãopode ser evocada ainda não explica que ela de
fatoo seja. E não o é, em
circunstâncias normais. O conhecimento das vias nãotorna
dispensável o conhecimento das
forças que por elas transitam.
Não me era fácil, além disso, dirigir a atenção de minha
paciente para suas relações com o
Sr. K. Ela afirmava ter rompido com essa pessoa. A camada mais superficial de todas as suas
associações durante as sessões, e tudo aquilo de que se
conscientizava com facilidade e que era
conscientemente lembrado da véspera sempre se relacionava
com o pai. Era bem verdade que ela
não podia perdoá-lo por continuar a manter relaçõescom o Sr.
K. e, mais particularmente, com a
Sra. K. Mas encarava essas relações de maneira muito
diferente da que o pai queria deixar
transparecer. Para ela não havia nenhuma dúvida de que o que ligava seu pai àquela mulher
jovem e bonita era um relacionamento amoroso corriqueiro.
Nada que pudesse contribuir para
corroborar essa tese escapava à sua percepção, que nesse sentido era implacavelmente aguda;
aqui não havia nenhuma lacuna em sua memória. O
relacionamento com os K. tinha começado
antes da doença grave do pai, mas só se tornou íntimo
quando, no curso dessa enfermidade, a
jovem senhora assumiu oficialmente a posição de enfermeira,
enquanto a mãe de Dora se
mantinha afastada do leito do doente. Nas primeirasférias de
verão após a recuperação do pai,
aconteceram coisas que deveriam ter aberto os olhosde todos
para a verdadeira natureza daquela
“amizade”. As duas famílias tinham alugado um conjunto de
aposentos em comum no hotel, e um
belo dia a Sra. K. anunciou que não podia continuarno quarto
que até então partilhara com um de
seus filhos; poucos dias depois, o pai de Dora deixou seu
próprio quarto e ambos se mudaram
para outros - os quartos da extremidade, separados apenas
pelo corredor-, enquanto os aposentos
que haviam abandonado não ofereciam tal garantia contra
interferências. Mais tarde, sempre que
Dora repreendia o pai por causa da Sra. K., ele costumava
dizer que não podia entender sua
hostilidade e que, ao contrário, seus filhos tinhamtodas as
razões para serem gratos a ela. A mãe,
a quem Dora foi pedir uma explicação sobre esse misterioso
comentário, disse-lhe que, naquela
época, papai estava tão triste que quisera suicidar-se nos
bosques; a Sra. K., suspeitando disso,
fora atrás dele e o persuadira com suas súplicas a se preservar para os seus. Naturalmente, Dora
não acreditava nisso; sem dúvida, os dois tinham sido vistos
juntos no bosque e papai inventara a
história do suicídiopara justificar o encontro deles.
Quando retornaram a B , o pai visitava todos os dias a Sra.
K. em determinados horários,
enquanto o marido dela estava na loja. Todo mundo comentara
isso e as pessoas interrogavam
Dora de maneira significativa a esse respeito. O próprio Sr.
K. muitas vezes se queixara
amargamente à mãe de Dora, embora poupasse a filha de
qualquer alusão ao assunto - o que ela
parecia atribuir a uma delicadeza da parte dele. Nos
passeios de todos em comum, seu pai e a
Sra. K. sempre sabiam arranjar as coisas de modo a ficarem a sós. Não havia dúvida alguma de
que ela aceitava dinheiro dele, pois fazia gastos que seria
impossível sustentar com seus recursos
ou com os do marido. O pai começara também a dar grandes
presentes à Sra. K. e, para disfarçá-los, tornou-se ao mesmo tempo
particularmente generoso com a mãe de Dora e com ela própria. E
a Sra. K., até então doentia, ela mesma obrigada a passar meses num sanatório para doentes
nervosos por não poder andar, tornara-se agora uma mulher
sadia e cheia de vida.
Mesmo depois de deixarem B [mudando-se para a cidade onde
ficava a fábrica], esse
relacionamento de anos prosseguiu, pois de tempos em tempos
o pai declarava não suportar o
rigor do clima e ter de fazer algo por sua saúde; começava a
tossir e a se queixar, até que de
repente partia para B de onde escrevia as mais alegres
cartas. Todas essas doenças não
passavam de pretextos para que ele revisse sua amiga.
Depois, um belo dia, ficou decidido que
eles se mudariam para Viena, e Dora começou a suspeitar de
uma combinação. E de fato, mal se
haviam passado três semanas desde que estavam em Viena, ela
soube que também os K. se
tinham transferido para lá. No momento, contou-me ela,
continuavam em Viena, e era freqüente
ela topar com o pai na rua em companhia da Sra. K. Também encontrava amiúde o Sr. K.; ele
sempre a acompanhava com o olhar e, certa feita, quando a
encontrou sozinha, seguiu-a por um
longo trecho para ver aonde ela ia e se não estariaindo a um
encontro.
O pai era insincero, havia um traço de falsidade emseu
caráter, só pensava em sua
própria satisfação e tinha o dom de arranjar as coisas da
maneira que mais lhe conviesse: tais
foram as críticas mais freqüentes que ouvi de Dora um dia, quando o pai tornou a sentir que seu
estado havia piorado e viajou para B por várias semanas, ao
que a arguta Dora prontamente se
inteirou de que também a Sra. K. fizera uma viagem para a mesma cidade para fazer uma visita a
seus parentes.
Não pude contestar de maneira geral essa caracterização do
pai; também era fácil ver por
qual recriminação particular Dora estava justificada. Quando
ficava com o ânimo mais exasperado,
impunha-se a ela a concepção de ter sido entregue ao Sr. K.
como prêmio pela tolerância dele
para com as relações entre sua mulher e o pai de Dora; e por
trás da ternura desta pelo pai podia-se pressentir sua fúria por ser usada
dessa maneira. Noutras ocasiões, ela sabia muito bem que
era culpada de exagero ao falar assim. Naturalmente, os dois
homens nunca haviam firmado um
pacto formal de que ela fosse tratada como objeto de troca,
tanto mais que seu pai teria recuado
horrorizado ante tal insinuação. Mas ele era um desses
homens que sabem como fugir a um
conflito falseando seu julgamento sobre uma das alternativas
em oposição. Se lhe tivessem
chamado a atenção para a possibilidade de que uma
adolescente corresse perigo na companhia
constante e não vigiada de um homem insatisfeito com sua
própria mulher, ele certamente teria
respondido que podia confiar na filha, que um homemcomo K.
jamais poderia ser perigoso para
ela e que seu amigo era incapaz de tais intenções. Ou então: que Dora ainda era uma criança e
era tratada como criança por K. Mas, na realidade, ocorre que cada um dos dois homens evitava
extrair da conduta do outro qualquer conseqüência que
pudesse ser inconveniente para suas
próprias pretensões. Assim, o Sr. K. pôde enviar flores a
Dora todos os dias por um ano inteiro
enquanto esteve por perto, aproveitar todas as oportunidades
de dar-lhe presentes valiosos e
passar todo o seu tempo livre na companhia dela, sem que os
pais da moça discernissem nesse
comportamento o caráter de uma corte amorosa.
Quando surge no tratamento psicanalítico uma seqüência
correta, fundamentada e
incontestável de pensamentos, isso bem pode representar um
momento de embaraço para o
médico, do qual o paciente se aproveita para perguntar:
“Tudo isso é perfeitamente verdadeiro e
correto, não é? Que quer o Sr. modificar, agora quelhe
contei?” Mas logo se evidencia que o
paciente está usando tais pensamentos inatacáveis pela
análise para acobertar outros que se
querem subtrair da crítica e da consciência. Um rosário de
censuras a outras pessoas leva-nos a
suspeitar da existência de um rosário de autocensuras de
conteúdo idêntico. Basta que se volte
cada censura isolada para a própria pessoa do falante. Há
algo de inegavelmente automático
nessa maneira de defender-se de uma autocensura dirigindo a
mesma censura contra outrem.
Encontra-se um modelo disso nos argumentos tu quoquedas crianças; quando uma delas é
acusada de mentirosa, retruca sem hesitar: “Você é que é.”
Um adulto empenhado em revidar um
insulto procuraria um ponto fraco real de seu oponente e não
poria a ênfase principal na repetição
do mesmo conteúdo. Na paranóia, essa projeção da censura em
outrem sem qualquer alteração
do conteúdo, e portanto, sem nenhum apoio na realidade,
torna-se manifesta como processo de
formação do delírio.
Também as censuras de Dora a seu pai estavam assim “forradas” ou “revestidas” de
autocensuras de conteúdo idêntico, quase sem exceção, como
se verá em detalhe. Tinha razão
em achar que seu pai não queria esclarecer o comportamento
do Sr. K. em relação a ela para não
ser molestado em seu próprio relacionamento com a Sra. K.
Mas Dora fizera precisamente a
mesma coisa. Tornara-se cúmplice desse relacionamento e
repudiara todos os sinais que
pudessem mostrar sua verdadeira natureza. Só da aventura no
lago (ver em [1]) é que datavam
sua visão clara do assunto e suas exigências ao pai. Durante
todos os anos anteriores ela fizera o
possível para favorecer as relações do pai com a Sra. K.
Nunca ia vê-la quando suspeitava de que
seu pai estivesse lá. Sabia que, nesse caso, as crianças
seriam afastadas, e rumava pelo caminho
em que estava certa de encontrá-las, indo passear com elas.
Na casa de Dora tinha havido uma
pessoa que cedo quis abrir-lhe os olhos para as relações do
pai com a Sra. K. e induzi-la a tomar
partido contra essa mulher. Fora sua última governanta, uma
moça solteira e mais velha, muito lida
e de opiniões avançadas. Mestra e aluna se deram
esplendidamente por algum tempo, até que, de
repente, Dora se desentendeu com ela e insistiu em sua dispensa. Enquanto a governanta teve
alguma influência, usou-a para acirrar os ânimos contra a
Sra. K. Disse à mãe de Dora que era
incompatível com sua dignidade tolerar tal intimidade entre
seu marido e uma estranha e chamou a
atenção de Dora para tudo o que saltava aos olhos naquele
relacionamento. Mas seus esforços
foram em vão, pois Dora continuava ternamente ligada à Sra.
K. e não queria saber de nenhum
motivo que fizesse as relações do pai com ela parecerem
indecentes. Por outro lado, percebia
muito bem os motivos que impeliam sua governanta. Cega num
sentido, Dora tinha a percepção
bem aguçada no outro. Notou que a governanta
estavaapaixonada por seu pai. Quando ele estava
em casa, ela parecia uma pessoa completamente diferente,
podendo ser divertida e obsequiosa.
Na época em que a família morava na cidade industrial e a
Sra. K. não estava no horizonte, sua
animosidade se voltava contra a mãe de Dora, que era então
sua rival mais imediata. Mas Dora
ainda não levava nada disso a mal. Só se zangou ao observar que ela própria era totalmente
indiferente para a governanta, cuja afeição demonstrada por
ela de fato era dirigida a seu pai.
Enquanto o pai estava ausente da cidade industrial,a moça
não tinha tempo para ela, não queria
passear com ela e não se interessava por seus estudos. Mal o
pai voltava de B , ela tornava a se
mostrar prestimosa em toda sorte de serviço e ajuda. Por
isso Dora a deixou de lado.
A pobre mulher elucidara com clareza indesejada umaparte do
comportamento de Dora. O
que a governanta às vezes era para Dora, esta fora para os filhos do Sr. K. Fora uma mãe para
eles, instruindo-os, passeando com eles e lhes oferecendo um
substituto completo para o escasso
interesse que a verdadeira mãe lhes demonstrava. O Sr. e a Sra. K. freqüentemente falavam em
divórcio, que nunca se concretizou porque o Sr. K.,que era
um pai afetuoso, não queria abrir mão
de nenhum dos dois filhos. O interesse comum pelos filhos
fora desde o início um elo entre o Sr. K.
e Dora. Evidentemente, ocupar-se de crianças era para Dora
um disfarce destinado a ocultar dela
mesma e dos outros alguma outra coisa.
De seu comportamento para com as crianças, considerado à luz
da conduta da governanta
com ela própria, extraía-se a mesma conclusão que de sua
tácita aquiescência às relações do pai
com a Sra. K., a saber, que em todos aqueles anos ela
estivera apaixonada pelo Sr. K. Quando
formulei essa conclusão, não obtive dela nenhum
assentimento. É verdade que me disse de
imediato que também outras pessoas (por exemplo, uma prima
que passara algum tempo com eles
em B ) lhe tinham dito: “Ora, você é simplesmente louca por
este homem!” Mas ela própria não
queria lembrar-se de nenhum sentimento dessa ordem.Mais
tarde, quando a abundância do
material surgido tornou-lhe difícil persistir na negativa,
ela admitiu que poderia ter estado
enamorada do Sr. K. em B , mas declarou que desde acena do
lago isso havia acabado. De
qualquer forma, era certo que a censura, por fazer ouvidos
de mercador aos chamados imperativos
do dever e por arranjar as coisas da maneira mais
conveniente do ponto de vista do próprio
enamoramento, ou seja, a censura que ela fazia contra o pai
recaía sobre sua própria pessoa.
A outra censura, de que as doenças do pai eram criadas como
um pretexto e exploradas
em proveito próprio, coincide também com todo um fragmento
de sua própria história secreta. Um
dia, Dora queixou-se de um sintoma supostamente novo, que
consistia em dores de estômago
dilacerantes, e acertei em cheio ao perguntar: “A quem você
está copiando nisso?” No dia anterior
ela fora visitar as primas, filhas da tia que morrera. A
mais jovem ficara noiva e com isso a mais
velha adoecera com umas dores de estômago,sendo mandada para
Semering. Dora achava que
era apenas inveja por parte da mais velha, pois elasempre
adoecia quando queria alguma coisa, e
o que queria agora era afastar-se de casa para não ter de assistir à felicidade da irmã. Mas
suas
próprias dores de estômagodiziam que Dora se identificara
com a prima, assimdeclarada
simuladora, fosse porque ela também invejava o amorda moça
mais afortunada, fosse porque via
sua própria história refletida na da irmã mais velha, que
tivera recentemente um caso amoroso de
final infeliz. Mas Dora também aprendera, observando a Sra.
K., quanto proveito se podia tirar das
doenças. O Sr. K. passava parte do ano viajando; sempre que
voltava, encontrava sua mulher
adoentada, embora, como Dora sabia, ela tivesse gozado de boa
saúde até o dia anterior. Dora
compreendeu que era a presença do marido que fazia a mulher
adoecer, e que esta considerava a
doença bem-vinda para escapar aos deveres conjugaisque tanto
detestava. Nesse ponto inseriu-se uma observação repentina de Dora sobre suas
próprias alternações entre doença e saúde nos
primeiros anos de sua infância em B , e assim fui levado a
suspeitar de que seus próprios estados
de saúde dependiam de alguma outra coisa, tal como os da Sra. K. É que na técnica da
psicanálise existe uma regra de que uma conexão interna
ainda não revelada se anuncia pela
contigüidade, pela proximidade temporal entre as
associações, exatamente como, na escrita, um a
e um b postos lado a lado significam que se pretendeu formar
com eles a sílaba ab. Dora tivera um
grande número de acessos de tosse acompanhados de perda da
voz. Teria a presença ou
ausência do homem amado exercido alguma influência sobre o aparecimento e desaparecimento
dos sintomas patológicos? Se assim fosse, em algum ponto se deveria revelar uma coincidência
denunciadora. Perguntei-lhe qual tinha sido a duração média
desses ataques. “Três a seis
semanas, talvez.” Quanto tempo duravam as ausênciasdo Sr.
K.? “Três a seis semanas, também”,
teve ela de admitir. Com suas doenças, portanto, ela
demonstrava seu amor por K., tal como a
mulher dele demonstrava sua aversão. Bastava supor que seu
comportamento fora o oposto do da
Sra. K.: enferma quando ele estava ausente e sadia quando
ele voltava. Isso realmente parece ter
acontecido pelo menos durante o primeiro período dos
ataques. Em épocas posteriores, sem
dúvida, tornou-se necessário obscurecer a coincidência entre
seus ataques de doença e a
ausência do homem secretamente amado,para que a constância
dessa coincidência não traísse
seu segredo. A duração dos acessos permaneceria, depois,
como uma marca de seu sentido
originário.
Lembrei-me de ter visto e ouvido tempos atrás, na clínica de
Charcot [1885-6], que nas
pessoas que sofrem de mutismo histérico a escrita funcionava
vicariamente em lugar da fala. Elas
escreviam com maior fluência, mais depressa e melhor do que
as outras ou elas mesmas
anteriormente. O mesmo acontecera com Dora. Nos primeiros
dias de suas crises de afonia “a
escrita sempre lhe fluía da mão com especial facilidade”.
Essa peculiaridade, como expressão de
uma função fisiológica substitutiva criada pela necessidade,
na verdade não requeria
esclarecimento psicológico, mas era notável a facilidade com
que este era encontrado. O Sr. K. lhe
escrevia profusamente quando em viagem, e lhe mandava
cartões-postais; houve ocasiões em
que só ela estava a par da data de seu regresso, enquanto
este apanhava sua mulher de surpresa.
Além disso, corresponder-se com um ausente com quemnão se
pode falar não é mais
compreensível do que, tendo perdido a voz, tentar fazer-se
entender pela escrita. A afonia de Dora,
portanto, admitia a seguinte interpretação simbólica: quando
o amado estava longe, ela renunciava
à fala; esta perdia seu valor, já que não podia falar com
ele. Por outro lado, a escrita ganhava
importância como único meio de se manter em relaçãocom o
ausente.
Devo, então, afirmar que em todos os casos em que há crises
periódicas de afonia
devemos diagnosticar a existência de um amado que se ausenta
temporariamente? Por certo não
é esta minha intenção. A determinação do sintoma nocaso de
Dora é por demais específica para
que se possa pensar na repetição freqüente dessa mesma
etiologia acidental. Mas, que valor tem
então o esclarecimento da afonia em nosso caso? Nãonos
teremos simplesmente deixado
enganar por um jeu
d’esprit? Creio que não. Aqui convém lembrar a questão tão freqüentemente
levantada de saber se os sintomas da histeria são de origem
psíquica ou somática ou, admitindo-se o primeiro caso, se todos têm
necessariamente umcondicionamento psíquico. Esta pergunta,
como tantas outras a que os investigadores têm voltado
repetidamente sem sucesso, não é
adequada. As alternativas nelas expostas não cobrema
essência real dos fatos. Até onde posso
ver, todo sintoma histérico requer a participação de ambos
os lados. Não pode ocorrer sem a
presença de uma certa complacência somáticafornecida por
algum processo normal ou patológico
no interior de um órgão do corpo ou com ele relacionado.
Porém não se produz mais de uma vez -
e é do caráter do sintoma histérico a capacidade dese
repetir - a menos que tenha uma
significação psíquica, um sentido. O sintoma histérico não
traz em si esse sentido, mas este lhe é
emprestado, soldado a ele, por assim dizer, e em cada caso
pode ser diferente, segundo a
natureza dos pensamentos suprimidos que lutam por se
expressar. Todavia, há uma série de
fatores que operam para tornar menos arbitrárias asrelações entre
os pensamentos inconscientes
e os processos somáticos de que estes dispõem como meio de expressão, assim como para
aproximá-las de algumas formas típicas. Para a terapia, os
determinantes mais importantes são os
fornecidos pelo material psíquico acidental; os sintomas são
dissolvidos buscando-se sua
significação psíquica. Uma vez removido tudo o que se pode eliminar pela psicanálise, fica-se em
condições de formar toda sorte de conjecturas, provavelmente
acertadas, sobre as bases
somáticas dos sintomas, que em geral são constitucionais e
orgânicas. Tampouco no caso dos
acessos de tosse e afonia de Dora nos contentaremoscom uma
interpretação psicanalítica, mas
indicaremos por trás dela o fator orgânico de que partiu a
“complacência somática” que lhe
possibilitou expressar sua afeição por um amado
temporariamente ausente. E se neste caso a
conexão entre a expressão sintomática e o conteúdo dos pensamentos inconscientes nos parecer
fruto de um habilidoso e impressionante artifício, ficaremos reconfortados em saber que ela cria
a
mesma impressão em todos os outros casos e em todosos outros
exemplos.
Estou pronto a ouvir, nesta altura, que não há grande
vantagem em sermos informados,
graças à psicanálise, de que não mais precisamos buscar a
chave do problema da histeria numa
“labilidade peculiar das moléculas nervosas” ou numa
suscetibilidade aos “estados hipnóides”, mas
numa “complacência somática”. Em resposta a essa observação,
quero frisar que dessa maneira o
enigma não só recuou um pouco, mas também se tornouum pouco
menor. Já não temos de lidar
com o enigma inteiro, mas apenas da parte dele em que se
inclui a característica particular da
histeria que a
diferenciadas outras psiconeuroses. Os processos psíquicos em todas as
psiconeuroses são os mesmos durante um extenso percurso, até
que entre em cena a
“complacência somática” que proporciona aos processos
psíquicos inconscientes uma saída no
corporal. Quando esse fator não se faz presente, surge da
situação total algo diferente de um
sintoma histérico, mas ainda de natureza afim: uma fobia, talvez, ou uma idéia obsessiva - em
suma, um sintoma psíquico.
Volto agora à censura pela “simulação” de doença que Dora
fez ao pai. Logo se evidenciou
que a ela correspondiam não só autocensuras concernentes a
estados patológicos anteriores, mas
também outras relativas à época atual. Nesse ponto,cabe
comumente ao médico a tarefa de
adivinhar e complementar aquilo que a análise lhe oferece
apenas sob a forma de alusões. Tive de
assinalar à paciente que seu atual estado de saúde era tão determinado por motivos e tão
tendencioso quanto fora a doença da Sra. K., que ela
entendera tão bem. Não havia nenhuma
dúvida, disse eu, de que ela visava a um objetivo que
esperava alcançar através de sua doença.
Este não podia ser outro senão o de fazer seu pai afastar-se
da Sra. K. Mediante súplicas ou
argumentos ela não conseguia; talvez esperasse ter êxito assustando o pai (vide a carta de
despedida), despertando sua compaixão (por meio dosataques
de desmaios) (ver em [1]), ou se
tudo isso fosse em vão, pelo menos se vingaria dele. Ela
sabia muito bem, prossegui, o quanto ele
lhe era apegado e que seus olhos se enchiam de lágrimas
quando lhe perguntavam pelo estado da
filha. Eu estava plenamente convencido de que ela se
recuperaria imediatamente se o pai lhe
dissesse que tinha sacrificado a Sra. K, em prol dasaúde
dela. Mas, acrescentei, eu esperava que
ele não se deixasse persuadir a fazê-lo, pois entãoela
ficaria conhecendo a poderosa arma que
tinha nas mãos e por certo não deixaria de servir-se em
todas as ocasiões futuras de sua
possibilidade de adoecer. Se o pai não cedesse, porém, eu
deveria estar preparado para isto: ela
não renunciaria tão facilmente a sua doença.
Omito os detalhes que mostraram quão plenamente correto era
tudo isso, preferindo
acrescentar algumas observações gerais sobre o papel
desempenhado na histeria pelos motivos
da doença. Os motivos do adoecimento devem ser nitidamente
distinguidos, enquanto conceito,
das possibilidades de adoecer - do material de que se formam os sintomas. Eles não têm
participação alguma na formação de sintomas e nem sequer
estão presentes no início da doença.
Só aparecem secundariamente, mas é apenas com seu advento
que se constitui plenamente a
enfermidade. Pode-se contar com sua existência em todos os
casos em que haja um sofrimento
real e de longa data. A princípio, o sintoma é paraa vida
psíquica um hóspede indesejável: tudo
está contra ele, e é por isso que pode dissipar-se com tanta facilidade, aparentemente por si
só,
sob a influência do tempo. No início, não tem nenhum emprego
útil na economia doméstica
psíquica, porém com muita freqüência encontra serventia
secundariamente. Uma ou outra corrente
psíquica acha cômodo servir-se do sintoma, que assim adquire
uma função secundáriae fica como
que ancorado na vida anímica. Aquele que pretende curar o
doente tropeça então, para seu
assombro, numa grande resistência, que lhe ensina que a
intenção do paciente de se livrar de
seus males não é nem tão cabal nem tão séria quantoparecia.
Imaginemos um trabalhador, um
pedreiro, digamos, que tenha caído de uma construção e
ficado aleijado, e que agora ganhe a vida
mendigando nas esquinas. Chega um milagreiro e promete
endireitar-lhe a perna torta e devolver-lhe a marcha. Não se deve esperar, acho
eu, ver umaexpressão de particular contentamento em
seu rosto. Sem dúvida, na época em que sofreu a lesão, ele
há de ter-se sentido extremamente
infeliz, ao compreender que nunca mais poderia voltar a
trabalhar e teria de passar fome ou viver
de esmolas. Desde então, porém, o que antes o deixara sem
seu ganha-pão tornou-se sua fonte
de renda: ele vive de sua invalidez. Se esta lhe for tirada,
talvez ele fique totalmente desamparado;
nesse meio tempo, ele esqueceu seu ofício, perdeu seus
hábitos de trabalho e se acostumou à
indolência, e talvez também à bebida.
Os motivos para adoecer muitas vezes começam a se fazer
sentir já na infância. A menina
sedenta de amor, que a contragosto partilha com seus irmãos
a afeição dos pais, percebe que toda
esta volta a afluir-lhe quando seu adoecimento desperta a
preocupação deles. Agora ela conhece
um meio de atrair o amor dos pais, e se valerá deletão logo
disponha do material psíquico para
produzir uma doença. Quando essa menina se transforma em
mulher e, em total contradição com
as exigências de sua infância, casa-se com um homempouco
atencioso que sufoca sua vontade,
explora impiedosamente sua capacidade de trabalho enão lhe
dá nem ternura nem dinheiro, a
doença é a única arma que lhe resta para afirmar-sena vida.
Ela lhe proporciona a ansiada
consideração, força o marido a fazer sacrifícios pecuniários
e a demonstrar-lhe um respeito que
não teria se ela estivesse com saúde, e o obriga a tratá-la com prudência caso ela se recupere,
pois do contrário poderá haver uma recaída. O caráter
aparentemente objetivo e involuntário de
seu estado patológico, que o médico encarregado de tratá-la por certo defenderá, possibilita
esse
uso oportuno, sem autocensuras conscientes, de um meio que
ela constatara ser eficaz na
infância.
E ainda assim essas doenças são obra da intenção! Em geral,
esses estados patológicos
se destinam a uma determinada pessoa, de modo que
desaparecem quando ela se afasta. As
opiniões mais rudes e banais sobre a natureza dos distúrbios
histéricos, como as que se ouvem de
parentes incultos e de enfermeiras, de certa forma são corretas. É verdade que a mulher que jaz
paralisada na cama se levantaria de um salto se irrompesse
um incêndio em seu quarto, e que a
esposa excessivamente mimada esqueceria todos os seus
sofrimentos se um filho seu adoecesse
com risco de vida ou se alguma catástrofe ameaçassea
situação do lar. Todos os que assim falam
dos pacientes estão certos, a não ser num único ponto:
desconsideram a distinção psicológica
entre consciente e inconsciente, o que talvez seja permissível quando se trata de crianças, mas
com adultos já não tem cabimento. Por isso é que denada
servem todas essas afirmações de que
é “apenas uma questão de vontade” e todas as exortações e
insultos dirigidos ao doente. Primeiro
é preciso tentar, pelas vias indiretas da análise, fazer com
que a pessoa convença a si mesma da
existência dessa intenção de adoecer.
Na histeria, é no combate aos motivos da doença quereside,
de modo bastante geral, o
ponto fraco para qualquer terapia, inclusive a psicanálise.
Para o destino as coisas são mais fáceis:
ele não precisa atacar a constituição ou o
materialpatogênico do enfermo; basta-lhe eliminar o
motivo de adoecimento para que o doente fique temporária ou
até permanentemente livre de seu
mal. Quão menor seria o número de curas milagrosas e desaparecimentos espontâneos dos
sintomas que nós, os médicos, teríamos de admitir na
histeria, se nos fosse dado conhecer mais
amiúde os interesses vitais que os doentes nos ocultam! Ora
um prazo se esgotou, ora
desapareceu a consideração por alguma outra pessoa,ora uma
situação foi fundamentalmente
alterada por algum acontecimento externo, e eis quetodo
distúrbio até então pertinaz desaparece
de um só golpe, de modo aparentemente espontâneo, mas, na
verdade, por ter sido privado de
seu motivo mais poderoso - um dos usos que tinha navida do
enfermo.
Em todos os casos plenamente desenvolvidos é provável que se
encontrem motivos que
sustentam a condição do doente. Mas há casos com motivos
puramente internos, como, por
exemplo, a autopunição, ou seja, o arrependimento ea
penitência. Neles, verifica-se que a tarefa
terapêuticaé mais fácil de solucionar do que nos casos em
quea doença se relaciona com a
consecução de algum objetivo externo. No caso de Dora, esse
objetivo era claramente o de
sensibilizar o pai e afastá-lo da Sra. K.
Nenhum dos atos do pai parecia irritá-la tanto quanto sua
presteza em tomar a cena do
lago como produto da fantasia dela. Dora ficava fora de si
ante a idéia de se pensar que ela
simplesmente imaginara algo naquela ocasião. Durante muito
tempo fiquei em apuros para
adivinhar que autocensura se ocultaria por trás de sua recusa apaixonada dessa explicação. Era
justificável suspeitar de que houvesse algo oculto,pois uma
censura que não acerta o alvo
tampouco ofende em termos duradouros. Por outro lado,
cheguei à conclusão de que o relato de
Dora devia corresponder à verdade em todos os aspectos. Mal
ela percebera a intenção do Sr. K.,
não deixara que ele terminasse de falar, esbofeteara-o no
rosto e se afastara às carreiras. Seu
comportamento, depois que ela se foi, deve ter parecido tão
incompreensível para o homem
quanto para nós, pois ele já deveria ter depreendido desde
muito antes, por pequenos indícios, que
tinha assegurada a afeição da moça. Na discussão dosegundo
sonho encontraremos tanto a
solução desse enigma quanto a autocensura em vão buscada no
começo (ver a partir de [1]).
Como as acusações contra o pai se repetiam com cansativa
monotonia e ao mesmo tempo
sua tosse continuava, fui levado a achar que esse sintoma
poderia ter algum significado
relacionado com o pai. Além disso, as exigências que costumo
fazer à explicação de um sintoma
estavam longe de ser satisfeitas. Segundo uma regraque eu
pudera confirmar repetidamente pela
experiência mas que ainda não me atrevera a consolidar num
princípio geral, o sintoma significa a
representação - a realização - de uma fantasia de conteúdo
sexual, isto é, uma situação sexual.
Melhor dizendo, pelo menos umdos significados de um sintoma
corresponde à representação de
uma fantasia sexual, enquanto para os outros significados
não se impõe tal limitação do conteúdo.
Quando se empreende o trabalho psicanalítico, logo se
constata que os sintomas têm mais de um
significado e servem para representar simultaneamente
diversos cursos inconscientes de
pensamento. E eu acrescentaria que, na minha opinião, um
único curso de pensamento ou
fantasia inconsciente dificilmente bastará para a produção
de um sintoma.
Logo surgiu uma oportunidade de atribuir à tosse nervosa de
Dora uma interpretação
desse tipo, mediante uma situação sexual fantasiada. Quando
ela insistiu mais uma vez em que a
Sra. K. só amava seu pai porque ele era “ein vermögender
Mann” [“um homem de posses”], certos
pormenores da maneira como se expressou (que omito aqui, como a maioria dos aspectos
puramente técnicos da análise) levaram-me a notar que por
trás dessa frase se ocultava seu
oposto, ou seja, que o seu pai era “ein unvermögender Mann”
[“um homem sem recursos”]. Isso só
poderia ser entendido num sentido sexual - que seu pai, como homem, era sem recursos, era
impotente. Depois que Dora confirmou essa interpretação
com base em seu conhecimento
consciente, assinalei a contradição em que ela caíaquando,
por um lado, continuava a insistir em
que as relações do pai com a Sra. K. eram um caso amoroso
corriqueiro e, por outro, asseverava
que o pai era impotente e, portanto, incapaz de tirar
proveito de tal relacionamento. Sua resposta
mostrou que ela não precisava reconhecer a contradição. Ela
sabia muito bem, disse, que há mais
de uma maneira de se obter satisfação sexual. A fonte desse
conhecimento, aliás, novamente lhe
era inidentificável. Como lhe perguntei se ela se estava
referindo ao uso de outros órgãos que não
os genitais na relação sexual e ela respondeu
afirmativamente, pude prosseguir dizendo que,
nesse caso, ela devia estar pensando precisamente nas partes
do corpo que nela se achavam em
estado de irritação - a garganta e a cavidade bucal.
Obviamente, ela não queria saber de seus
pensamentos a tal ponto, e de fato, se era isso
quepossibilitava o sintoma, não poderia mesmo
ser-lhe inteiramente claro. Mas era irrecusável a
complementação de que, com sua tosse
espasmódica - que, como de hábito, tinha por estímulo uma
sensação de cócega na garganta -, ela
representava uma cena de satisfação sexual per osentre as
duas pessoas cuja ligação amorosa a
ocupava tão incessantemente. Muito pouco tempo depois de ela
aceitar em silêncio essa
explicação, a tosse desapareceu - o que se afinava muito bem com minha visão; mas não quero
atribuir um valor excessivo a essa mudança, visto que ela já
se produzira tantas vezes
espontaneamente.
Caso esse trechinho da análise tenha despertado no leitor médico, além do ceticismo a
que ele tem direito, também estranheza, e horror, estou
disposto a averiguar, neste ponto, se
essas duas reações são justificáveis. A estranheza,penso eu,
é motivada por minha ousadia em
falar sobre coisas tão delicadas e desagradáveis com uma
jovem - ou, de modo geral, com
qualquer mulher sexualmente ativa. O horror sem dúvida
concerne à possibilidade de que uma
moça virgem possa conhecer semelhantes práticas e ocupar-se
delas em sua fantasia. Em ambos
os pontos eu recomendaria moderação e prudência. Não há
motivos para indignação em nenhum
dos dois casos. Pode-se falar com moças e muIheres sobre toda sorte de assuntos sexuais sem
causar-lhes qualquer prejuízo e sem acarretar suspeitas
sobre si mesmo, desde que, em primeiro
lugar, adote-se uma certa maneira de fazê-lo, e, emsegundo,
consiga-se despertar nelas a
convicção de que isso é inevitável. Afinal, nessas mesmas condições, o ginecologista se permite
submetê-las a todos os desnudamentos possíveis. A melhor
maneira de falar sobre tais coisas é
ser seco e direto; e ela é, ao mesmo tempo, a que mais se
afasta da lascívia com que os mesmos
temas são tratados na “sociedade”, com a qual as moças e
mulheres estão plenamente
acostumadas. Dou aos órgãos e funções do corpo seusnomes
técnicos, e os comunico - refiro-me
aos nomes - quando por acaso são ignorados. J’apelle un chat un chat. Certamente
já ouvi falar de
pessoas - médicos e leigos - que se escandalizam com uma
terapia em que ocorrem tais
conversas, e que parecem invejar a mim ou a meus pacientes
pela excitação que, segundo suas
expectativas, tal método deve proporcionar. Mas conheço
demasiadamente bem o decoro desses
senhores para me irritar com eles. Resistirei à tentação de
escrever uma sátira a seu respeito. Mas
há uma coisa que quero dizer: muitas vezes, depois de tratar por algum tempo de uma paciente
para quem, de início, não foi fácil a franqueza nasquestões
sexuais, tive a satisfação de ouvi-la
exclamar: “Ora, afinal, seu tratamento é muito maisdecente
do que a conversa do Sr. X!”
Antes de se empreender o tratamento de um caso de histeria,
é preciso estar convencido
da impossibilidade de evitar a menção de temas sexuais, ou
pelo menos estar disposto a se deixar
convencer pela experiência. A atitude correta é: “pour faire
une omelette il faut casser des oeufs”.
Os próprios pacientes são fáceis de convencer, e háinúmeras
oportunidades para isso no decorrer
do tratamento. Não há por que recriminar-se por falar com
eles sobre os fatos da vida sexual
normal ou anormal. Com um pouco de cautela, não se faz mais do que traduzir em idéias
conscientes o que já se sabia no inconsciente, e toda a
eficácia do tratamento se baseia em nosso
conhecimento de que a ação do afeto ligado a uma idéia
inconsciente é mais intensa e, como ele
não pode ser inibido, mais prejudicial que a do afeto ligado
a uma idéia consciente. Nunca se corre
qualquer perigo de corromper uma jovem inexperiente; quando
não há no inconsciente nenhum
conhecimento sobre os processos sexuais, tampouco surge
qualquer sintoma histérico. Quando se
constata uma histeria, não há como falar em “inocência dos
pensamentos” no sentido usado pelos
pais e educadores. Nas crianças de dez, doze ou quatorze
anos, sejam elas meninos ou meninas,
pude convencer-me da confiabilidade desta afirmação, sem
exceções.
Quanto à segunda reação emocional, que já não se dirige a
mim e sim a minha paciente -
supondo-se que minha visão dela esteja correta -, eque
considera horrível o caráter perverso de
suas fantasias, cabe-me frisar que não compete ao médico tal
condenação apaixonada. Entre
outras coisas, considero despropositado que um médico, ao
escrever sobre as aberrações das
pulsões sexuais, sirva-se de cada oportunidade
paraintercalar no texto expressões de sua
repugnância pessoal ante coisas tão revoltantes. Estamos
diante de um fato, e é de se esperar que
nos acostumemos a ele pondo de lado nossos própriosgostos.
Precisamos aprender a falar sem
indignação sobre o que chamamos de perversões sexuais -
essas transgressões da função sexual
tanto na esfera do corpo quanto na do objeto sexual. Já a
indefinição dos limites do que se deve
chamar de vida sexual normal nas diferentes raças eépocas
deveria arrefecer tal ardor fanático.
Tampouco nos devemos esquecer de que a perversão que nos é
mais repelente, o amor sensual
de um homem por outro, não só era tolerada num
povoculturalmente tão superior a nós quanto os
gregos, como também lhe eram atribuídas entre eles importantes funções sociais. Na vida sexual
de cada um de nós, ora aqui, ora ali, todos transgredimos um
pouquinho os estreitos limites do que
se considera normal. As perversões não são bestialidades nem
degenerações no sentido patético
dessas palavras. São o desenvolvimento de germes contidos,
em sua totalidade, na disposição
sexual indiferenciada da criança, e cuja supressão ou redirecionamento para objetivos assexuais
mais elevados - sua “sublimação” - destina-se a fornecer a
energia para um grande número de
nossas realizações culturais. Portanto, quando alguém se tornagrosseira e manifestamente
pervertido, seria mais correto dizer que permaneceucomo tal, pois exemplifica um
estágio de
inibição do desenvolvimento. Todos os psiconeuróticos são
pessoas de inclinações perversas
fortemente acentuadas, mas recalcadas e tornadas
inconscientes no curso de seu
desenvolvimento. Por isso suas fantasias inconscientes
exibem um conteúdo idêntico ao das
ações documentadas nos perversos, mesmo que eles não tenham
lido a Psychopathia Sexualisde
Krafft-Ebing, livro a que as pessoas ingênuas atribuem uma
parcela tão grande de culpa na gênese
das tendências perversas. As psiconeuroses são, porassim
dizer, o negativo das perversões. Nos
neuróticos, a constituição sexual, na qual está contida a
expressão da hereditariedade, atua em
combinação com as influências acidentais de sua vida que
possam perturbar o desenvolvimento da
sexualidade normal. O curso d’água que encontra um obstáculo em seu leito reflui para leitos
antigos que antes pareciam destinados a permanecer secos. As forças impulsoras da formação
dos sintomas histéricos não provêm apenas da
sexualidade normalrecalcada, mas também
das
moções perversasinconscientes.
As menos chocantes dentre as chamadas perversões sexuais são
amplamente difundidas
por toda a população, como sabe todo o mundo, exceto os
médicos que escrevem sobre o
assunto. Ou melhor, esses autores também sabem, só que se empenham em esquecê-lo no
momento em que tomam da pena para escrever a respeito.
Portanto, não surpreende que nossa
histérica de quasedezenove anos soubesse da existência desse
tipo derelação sexual (sucção do
órgão masculino), criasse uma fantasia inconscientedessa
natureza e a expressasse através da
sensação de cócega na garganta e da tosse. Tampoucoseria
assombroso que ela chegasse a tal
fantasia mesmo sem contar com qualquer esclarecimento
externo, como pude comprovar com
certeza em outras pacientes. É que, no caso dela, um fato
digno de nota proporcionava a
precondição somática para tal criação independente de uma fantasia que coincide com a prática
dos perversos. Ela lembrava muito bem de ter sido, na infância, uma “chupadora de dedo”. O pai
também se recordava de tê-la feito abandonar esse hábito,
que persistira até os quatro ou cinco
anos de idade. A própria Dora tinha clara na memória a
imagem de uma cena de sua tenra infância
em que, sentada num canto do assoalho, ela chupava o polegar esquerdo, enquanto com a mão
direita puxava o lóbulo da orelha do irmão, sentadoquieto a
seu lado. Essa é a forma completa da
autogratificação pelo ato de chupar, tal como também me foi
descrita por outras pacientes que
depois se tornaram anestésicas e histéricas.
Uma dessas pacientes deu-me uma informação que esclarece
perfeitamente a origem
desse estranho hábito. Essa jovem senhora, que nunca deixara
o hábito de chupar o dedo, via-se
numa lembrança de infância, supostamente da primeira metade
de seu segundo ano de vida,
mamando no seio de sua ama e, ao mesmo tempo, puxando-lhe
ritmicamente o lóbulo da orelha.
Ninguém há de contestar, penso eu, que a membrana mucosa dos
lábios e da boca pode ser
considerada como umazona erógenaprimária, já que parte dessa
significação é ainda preservada
no beijo tido como normal. A intensa atividade dessa zona
erógena em idade precoce constitui,
portanto, a condição para a complacência somática posterior
do trato da membrana mucosa que
começa nos lábios. Se depois, numa época em que já se conhece o objeto sexual propriamente
dito, o membro masculino, surgem circunstâncias quetornam a
aumentar a excitação da zona da
boca, que preservou seu caráter erógeno, não é preciso um
grande dispêndio de força criadora
para substituir, na situação de satisfação, o mamilo
originário e o dedo que fazia as vezes dele
pelo objeto sexual atual, o pênis. Assim, essa fantasia
perversa e sumamente escandalosa de
chupar o pênis tem a mais inocente das origens; é anova
versão do que se pode chamar de
impressão pré-histórica de sugar o seio da mãe ou da ama -
uma impressão comumente revivida
no contato com crianças que estejam sendo amamentadas. Na
maioria das vezes, o úbere da vaca
serve de representação intermediária adequada entreo mamilo
e o pênis.
A recém-mencionada interpretação do sintoma da garganta de
Dora também pode dar
margem a outra observação. Pode-se perguntar de quemodo essa
situação sexual fantasiada se
harmoniza com nossa outra explicação, a saber, a deque o
aparecimento e desaparecimento das
manifestações patológicas refletia a presença e ausência do
homem amado, e, portanto, no
tocante à conduta da Sra. K., expressava o
seguintepensamento: “Se eufosse mulher
dele, eu o
amaria de maneira muito diferente; adoeceria (de saudade,
digamos) quando ele estivesse fora e
ficaria curada (de alegria) quando voltasse para casa.” A
isso devo responder, por minha
experiência na resolução dos sintomas histéricos, que não é
necessário que os diversos
significados de um sintoma sejam compatíveis entre si, ou seja, que se complementem num todo
articulado. Basta que a interarticulação seja constituída
pelo tema que deu origem às diversas
fantasias. Em nosso caso, além disso, tal compatibilidade
não está excluída; um dos dois
significados se relaciona mais com a tosse, e o outro, com a
afonia e o caráter cíclico do distúrbio.
Uma análise mais acurada provavelmente permitiria reconhecer
um número muito maior de
elementos anímicos nos pormenores da enfermidade.
Já constatamos que, com bastante regularidade, um sintoma
corresponde
simultaneamentea diversos significados; acrescentemos agora
que também pode expressar
diversos significados sucessivamente. No decorrer dos anos,
um sintoma pode alterar um de seus
significados ou seu sentido principal, ou então o papel
principal pode passar de um significado para
outro. Há como que um traço conservador no caráter das
neuroses: uma vez formado, se possível,
o sintoma é preservado, mesmo que o pensamento inconsciente
que nele encontrou expressão
tenha perdido seu significado. Mas também é fácil explicar
mecanicamente essa tendência à
conservação do sintoma: é tão difícil a produção deum sintoma
dessa natureza, são tantas as
condições favorecedoras necessárias à transposição de uma
excitação puramente psíquica para o
corporal - isso que denominei de “conversão” -, e é tão raro
dispor-se da complacência somática
necessária à conversão, que o impulso para a descarga da
excitação vinda do inconsciente utiliza,
tanto quanto possível, qualquer via de descarga já transitável. Muito mais fácil do que criar
uma
nova conversão parece ser a produção de vínculos
associativos entre um novo pensamento
carente de descarga e o antigo, que já não precisa dela. Pela via assim facilitada flui a
excitação
da nova fonte excitante para o antigo ponto de descarga, e o
sintoma se assemelha, segundo as
palavras do Evangelho, a um odre velho repleto de vinho novo.
Por estas observações, a parte
somática do sintoma histérico parece ser a mais estável e a
mais difícil de substituir, enquanto a
psíquica se afigura como o elemento mais variável emais
facilmente substituível. Todavia, não se
deve pretender inferir dessa relação nenhuma hierarquia
entre os dois elementos. Para a terapia
psíquica, a parte psíquica é sempre a mais significativa.
No caso de Dora, a incessante repetição dos mesmos pensamentos sobre as relações
entre seu pai e a Sra. K. possibilitou extrair da análise um
outro material ainda mais importante.
Uma seqüência de pensamentos como essa pode ser descrita
como hiperintensa, ou
melhor, reforçada ou hipervalente[“überwertig”] na acepção
de Wernicke [1900, 140]. Ela mostra
seu caráter patológico, a despeito do conteúdo aparentemente
correto, pela peculiaridade singular
de que, por maiores que sejam os esforços de pensamento
conscientes e voluntários da pessoa,
não se pode dissipá-la ou eliminá-la. Uma seqüêncianormal de
pensamentos, por mais intensa
que seja, acaba podendo ser eliminada. Dora achava,com toda
razão, que seus pensamentos
sobre o pai reclamavam um julgamento especial. “Nãoconsigo
pensar em outra coisa”, queixava-se ela repetidamente. “Meu irmão me diz que
nós, osfilhos, não temos o direito de criticar esses
atos do papai, que não nos devemos preocupar com isso, e que
talvez devamos até alegrar-nos
por ele ter encontrado uma mulher a quem pode se afeiçoar,
já que mamãe o compreende tão
pouco. Também vejo isso, e gostaria de pensar como meu irmão, mas não posso. Não posso
perdoá-lo.”
Ora, que fazer diante de tal pensamento hipervalente, depois
de se tomar conhecimento de
sua fundamentação consciente, bem como dos protestos
ineficazes feitos contra ele? Diz-se que
essa seqüência
hiperintensa de pensamentos deve seu reforço ao inconsciente. Ela é impossível
de resolver pelo trabalho do pensamento, seja porque suas
raízes chegam até o material
inconsciente, recalcado, seja porque outro pensamento
inconsciente se oculta por trás dela. Este
último é, na maioria das vezes, seu oposto direto. Os opostos sempre estão estreitamente
interligados e, muitas vezes, separam-se em duplas de tal maneira, que um pensamento é
consciente com hiperintensidade, enquanto sua contrapartida
é recalcada e inconsciente. Essa
relação entre os dois pensamentos é um efeito do processo de
recalcamento. Com efeito, o
recalcamento muitas vezes se efetua por meio de um reforço excessivo do oposto do pensamento
a ser recalcado. A esse processo chamo reforço reativo, e designo por pensamento reativoo
pensamento que se afirma na consciência com hiperintensidade
e que, à maneira de um
preconceito, mostra-se indestrutível. Os dois pensamentos
comportam-se então entre si como as
duas agulhas de um galvanômetro estático. O pensamento
reativo mantém o pensamento
objetável sob recalcamento por meio de um certo excesso de
intensidade, mas, em vista disso, ele
próprio fica “amortecido” e invulnerável aos esforços
conscientes do pensamento. Portanto, a
maneira de retirar o reforço do pensamento
hiperintensificadoconsiste em tornar consciente seu
oposto recalcado.
Não devemos excluir a expectativa de encontrar casos que não
apresentam apenas um
desses fundamentos da hipervalência, mas sim a concorrência
de ambos. Podem ainda surgir
outras complicações, mas é fácil articulá-las com oesquema
geral.
Apliquemos agora nossa teoria ao exemplo fornecido pelo caso de Dora. Começaremos
pela primeira hipótese, ou seja, de que a raiz de sua
preocupação obsessiva com as relações entre
seu pai e a Sra. K. lhe era desconhecida por situar-se no
inconsciente. Não é difícil adivinhar a
natureza dessa raiz a partir da situação e das manifestações
de Dora. Seu comportamento
obviamente ia muito além da esfera de interesse de uma
filha; ela se sentia e agia mais como uma
esposa ciumenta, como se consideraria compreensívelem sua
mãe. Por sua exigência ao pai (“ou
ela ou eu”), pelas cenas que costumava criar e pelaameaça de
suicídio que deixou entrever, é
evidente que ela se estava colocando no lugar da mãe. E se
adivinhamos com acerto a fantasia de
situação sexual subjacente a sua tosse, nessa fantasia ela
deveria estar-se colocando no lugar da
Sra. K. Portanto, identificava-se com as duas mulheres, a
que o pai amara um dia e a que amava
agora. É óbvia a conclusão que sua inclinação pelo pai era
muito maior do que ela sabia ou estava
disposta a admitir, ou seja, que estava apaixonada por ele.
Aprendi a ver nessas relações amorosas inconscientes entre
pai e filha ou entre mãe e
filho, conhecidas por suas conseqüências anormais, uma revivificação de germes dos sentimentos
infantis. Expus em outros lugaresem que tenra idade a
atração sexual se faz sentir entre pais
e
filhos, e mostrei que a lenda de Édipo provavelmente deve
ser considerada como a elaboração
poética do que há de típico nessas relações. É provável que
se encontre na maioria dos seres
humanos um traço nítido dessa inclinação precoce dafilha
pelo pai e do filho pela mãe, e deve-se
presumir que ela seja mais intensa, já desde o início, no
caso das crianças constitucionalmente
destinadas à neurose, que têm amadurecimento precoce e são
famintas de amor. Entram então
em jogo certas influências que não abordaremos aquie que
levam à fixação desse impulso
amoroso rudimentar, ou que o reforçam de tal modo que ele se
transforma, ainda na infância ou,
no máximo, na puberdade, em algo equiparável a uma inclinação sexual e que, como esta, tem a
libido a seu dispor. As circunstâncias externas de nossa
paciente não eram nada desfavoráveis a
tal suposição. Sua predisposição sempre a atraíra para o
pai, e as numerosas doenças deste hão
de ter forçosamente aumentado sua ternura por ele. Em muitas dessas doenças, ele não permitia
que ninguém senão ela lhe prestasse os pequenos serviços que
seu tratamento requeria;
orgulhoso do desenvolvimento precoce da inteligência dela,
ele a tornara, ainda criança, sua
confidente. Com o aparecimento da Sra. K., na verdade não
foi a mãe, e sim ela, que foi
desalojada de mais de uma posição.
Quando comuniquei a Dora que só me era possível supor que
sua inclinação pelo pai, já
em época precoce, deveria ter tido o caráter de um completo enamoramento, é verdade que ela
me deu sua resposta corriqueira: “Não me lembro disso.” Logo
em seguida, porém, contou-me algo
análogo sobre uma prima de sete anos (por parte da mãe), em quem ela freqüentemente julgava
ver uma espécie de reflexo de sua própria infância.Essa
menina tornara a testemunhar uma
discussão acalorada entre os pais e sussurrou no ouvido de
Dora, que acabava de chegar para
uma visita: “Você não pode imaginar como odeio essapessoa!”
(apontando para a mãe) “E um dia,
quando ela morrer, vou me casar com papai.” Costumover
nessas associações, que trazem à tona
algo que concorda com o conteúdo de uma afirmação minha, uma
confirmação vinda do
inconsciente. Nenhuma outra espécie de “sim” pode ser
extraída do inconsciente; não existe, em
absoluto, um “não” inconsciente.
Por anos a fio Dora não externalizara essa paixão pelo pai;
ao contrário, manteve-se por
muito tempo na mais cordial harmonia com a mulher que a
suplantara junto a ele e, como sabemos
através de suas autocensuras, ainda facilitou as relações
dessa mulher com seu pai. Esse amor
pelo pai, portanto, fora recentemente reavivado e, sendo
esse o caso, podemos perguntar-nos com
que finalidade isso ocorreu. Obviamente, como sintoma
reativo para suprimir alguma outra coisa
que, por conseguinte, ainda era poderosa no inconsciente.
Considerando a situação, não pude
deixar de supor, em primeiro lugar, que o suprimidoera seu
amor pelo Sr. K. Foi-me forçoso
presumir que ela ainda estava apaixonada por ele, mas que
desde a cena do lago, por motivos
desconhecidos, seu amor tropeçava numa violenta resistência,
que a moça retomara e reforçara
sua velha afeição pelo pai para não ter de notar nada em sua
consciência sobre esse amor dos
primeiros anos de sua adolescência, que agora se tornara
penoso para ela. Assim pude também
discernir um conflito que muito se prestava para
desorganizar a vida anímica da moça. Por um
lado, muito a consternava ter de rejeitar a proposta desse
homem e ela sentia muita saudade da
pessoa dele e de todos os pequenos sinais de sua afeição;
por outro lado, esses impulsos de
ternura e saudade eram combatidos por motivos poderosos,
dentre os quais era fácil perceber seu
orgulho. Desse modo, ela conseguiu convencer-se de que havia
rompido com o Sr. K. - era esse o
lucro que retirava desse processo típico de recalcamento -,
mas, ainda assim, era obrigada a
recorrer a sua afeição infantil pelo pai e a exagerá-la,
para se proteger do enamoramento que
assediava constantemente sua consciência. O fato deela ser
quase incessantemente dominada
pelo mais amargo ciúme parecia ainda admitir mais uma
determinação.
Não trouxe nenhum desapontamento para minhas expectativas
que essa exposição dos
fatos provocasse em Dora a mais enfática negativa. O “não” ouvido do paciente depois de se
apresentar pela primeira vez um pensamento recalcado à sua
percepção consciente não faz senão
constatar a existência de um recalcamento e sua firmeza;
serve, por assim dizer, para medir a
força deste. Quando esse “não”, em vez de ser considerado
como expressão de um juízo imparcial
(do qual, por certo, o doente não é capaz), é ignorado,
dando-se prosseguimento ao trabalho, logo
aparecem as primeiras provas de que, nesses casos, o “não” significa o desejado “sim”. Dora
admitiu que não conseguia ficar tão zangada com o Sr. K.
quanto ele merecia. Contou-me que um
dia o encontrara na rua quando estava em companhia de uma
prima que não o conhecia. A prima
exclamara repentinamente: “Dora, o que há com você?Você
ficou pálida como um cadáver!” Ela
própria não sentira nada dessa alteração, mas expliquei-lhe
que a fisionomia e a expressão dos
afetosobedecem mais ao inconsciente do que ao conscientee
são traiçoeiras para o primeiro. De
outra feita, Dora apareceu-me no pior mau humor, depois de
vários dias em que estivera sempre
no melhor dos ânimos. Não soube explicá-lo; estava muito contrariada, declarou; era aniversário
de seu tio e ela não se animava a cumprimentá-lo, não sabia
por quê. Minha arte interpretativa
estava embotada nesse dia; deixei que ela continuasse
falando e, de repente, ela se lembrou de
que era também aniversário do Sr. K., fato este quenão
deixei de aproveitar contra ela. Já então
não foi difícil explicar por que os lindos presentes que ela
ganhara em seu aniversário, alguns dias
antes, não lhe trouxeram nenhuma alegria. É que faltava um
presente, o do Sr. K., que obviamente
fora antes o mais precioso de todos.
Não obstante, Dora continuou por algum tempo a negar minha
afirmação, até que, próximo
do término da análise, a prova conclusiva de sua exatidão
veio à tona (ver em [1]).
Devo agora considerar uma outra complicação a que certamente
não daria espaço, fosse
eu um escritor empenhado na criação de um espaço anímico
desse tipo para um conto, e não um
médico empenhado em sua dissecação. O elemento que apontarei agora só serve para turvar e
confundir a beleza e a poesia do conflito que pudemos supor
em Dora; ele é justificadamente
sacrificado pela censura do escritor, que sem dúvida
simplifica e abstrai quando faz as vezes de
psicólogo. Mas no fundo da realidade, que me esforço por
retratar aqui, a regra é a complicação
dos motivos, a acumulação e a combinação das moçõesanímicas
- em suma, a
sobredeterminação. Por trás da seqüência hipervalente de
pensamentos que se ocupavam com as
relações entre o pai de Dora e a Sra. K. ocultava-se, de
fato, um impulso de ciúme cujo objeto era
essa mulher - ou seja, um impulso que só se poderiafundamentar
numa inclinação para o mesmo
sexo. Há muito se sabe e já se tem assinalado que, na puberdade, com freqüência, tanto os
meninos quanto as meninas, mesmo nos casos normais,mostram
claros indícios da existência de
uma inclinação para pessoas do mesmo sexo. A amizade
entusiástica por uma colega de escola,
acompanhada de juras, beijos, promessas de correspondência
eterna e toda a sensibilidade do
ciúme, é o precursor comum da primeira paixão intensa de uma
moça por um homem. Em
circunstâncias favoráveis, a corrente homossexual amiúde
seca por completo, mas, quando não se
é feliz no amor por um homem, ela torna a ser despertada
pela libido nos anos posteriores e é
aumentada em maior ou menor intensidade. Se nas pessoas
sadias isso pode ser confirmado sem
esforço e se levarmos em conta nossas observações anteriores
(ver em [1] e [2]) sobre o maior
desenvolvimento, nos neuróticos, dos germes normaisda
perversão, devemos também esperar, na
constituição destes, uma predisposição homossexual mais forte. E deve ser assim, pois até hoje
nunca passei por uma só psicanálise de um homem ou de uma
mulher sem ter de levar em conta
uma corrente homossexual bastante significativa. Nas
mulheres e moças histéricas cuja libido
sexual voltada para o homem é energicamente suprimida,
constata-se com regularidade que a
libido dirigida para as mulheres é vicariamente reforçada e
até parcialmente consciente.
Não continuarei abordando aqui esse importante tema,
particularmente indispensável ao
entendimento da histeria masculina, porque a análise de Dora
terminou antes que pudesse lançar
luz sobre essas circunstâncias. Mas convém lembrar a já
citada governanta (ver em [1]) com quem,
a princípio, Dora conviveu na mais íntima troca de idéias até descobrir que ela não a apreciava
nem a tratava bem por sua própria causa, e sim por causa de
seu pai, e então obrigá-la a deixar a
casa. Dora também costumava repisar com notável freqüência e
com ênfase peculiar a história de
uma outra desavença que até mesmo a ela parecia
inexplicável. Sempre se dera particularmente
bem com sua segunda prima, a mesma que depois ficounoiva
(ver em [1]), partilhando com ela
toda sorte de segredos. Na primeira vez em que o pai voltou
a B depois do passeio interrompido
no lago, e Dora naturalmente se recusou a acompanhá-lo,
pediram a essa prima que viajasse com
ele, e ela aceitou. Daí em diante, Dora sentira frieza em
relação a ela, e se surpreendia, ela
própria, ao verificar o quanto a outra lhe era agora
indiferente, por mais que, como admitia, não
pudesse fazer à prima nenhuma grande censura.
Essassusceptibilidades levaram-me a perguntar
quais tinham sido suas relações com a Sra. K. até aépoca do
rompimento. Inteirei-me, então, de
que a jovem mulher e a menina apenas adolescente tinham
vivido durante anos na mais estreita
intimidade. Quando Dora se hospedava com os K., costumava
partilhar o quarto com a Sra. K.,
sendo o marido desalojado. Dora era a confidente e conselheira da mulher em todas as
dificuldades de sua vida conjugal; não havia nada de que não
conversassem. Medéia ficou muito
contente em ver Creusa tornar-se amiga de seus doisfilhos, e
também não fez nada para estorvar
o relacionamento entre a moça e o pai das crianças.Como foi
que Dora conseguiu apaixonar-se
pelo homem sobre quem sua adorada amiga tinha tantas coisas
ruins a dizer constitui um
interessante problema psicológico, sem dúvida solucionável
quando compreendermos que, no
inconsciente, os pensamentos vivem muito comodamente lado a
lado, e até os opostos se toleram
sem antagonismo - um estado de coisas que, com bastante
freqüência, persiste até mesmo no
consciente.
Quando Dora falava sobre a Sra. K., costumava elogiar seu
“adorável corpo alvo” num tom
mais apropriado a um amante do que a uma rival derrotada.
Noutra ocasião, mais triste do que
com raiva, ela me disse estar convencida de que os presentes que o pai lhe oferecia eram
escolhidos pela Sra. K., pois reconhecia seu gosto.De outra
feita ainda, ela assinalou que a
haviam presenteado, evidentemente por intervenção da Sra.
K., com algumas jóias que eram
exatamente idênticas às que vira na casa dela, expressando
então em voz alta o desejo de possuí-las. Na verdade, devo dizer que nunca ouvi
dela umasó palavra áspera ou irada sobre essa
mulher, embora, do ponto de vista de seus pensamentos
hipervalentes, devesse ver nela a
principal causadora de suas desventuras. Dora parecia
comportar-se de maneira
inconseqüente,mas sua aparente inconseqüência era justamente
a expressão de uma corrente
complicadora de sentimentos. De fato, como se comportara
para com Dora essa amiga tão
entusiasticamente amada? Depois que Dora formulou sua
acusação contra o Sr. K e seu pai
escreveu para ele pedindo-lhe uma explicação, o Sr.K.
respondeu, inicialmente, protestando a
mais alta estima por ela e se oferecendo para ir até a
cidade industrial a fim de esclarecer todos os
mal-entendidos. Passadas algumas semanas, quando o pai de Dora
falou com ele em B , já não se
tocou mais na estima. Ao contrário, o Sr. K. depreciou a
moça e jogou seu trunfo: uma moça que
lia tais livros e se interessava por aquelas coisasnão podia
ter nenhuma pretensão ao respeito de
um homem. A Sra. K., portanto, a havia traído e caluniado,
pois somente com ela é que Dora falara
sobre Mantegazza e sobre temas proibidos. Era uma repetição
do que acontecera com a
governanta: a Sra. K. também não a amara por ela mesma, e
sim por causa do pai. Ela a havia
sacrificado sem um momento de hesitação para que seu
relacionamento com o pai de Dora não
fosse perturbado. Essa ofensa talvez a tenha tocadomais de
perto e tido maior efeito patogênico
do que a outra com que ela tentou encobri-la, ou seja, a de
ter sido sacrificada pelo pai. Acaso a
amnésia tão obstinadamente perseverante a respeito das
fontes de seu conhecimento proibido (ver
em [1] e [2]) não apontaria diretamente para o valor
emocional da acusação que lhe foi feita e, por
conseguinte, para sua traição pela amiga?
Creio não estar errado, portanto, em supor que a seqüência
hipervalente de pensamentos
de Dora, que a fazia ocupar-se das relações entre seu pai e
a Sra. K., destinava-se não apenas a
suprimir seu amor pelo Sr. K., que antes fora consciente, mas
também a ocultar o amor pela Sra.
K., que era inconsciente num sentido mais profundo.A
seqüência hipervalente de pensamentos
era diretamente oposta a esta última corrente. Doradizia a
si mesma incessantemente que seu pai
a sacrificara a essa mulher, fazia demonstrações ruidosas de
que a invejava pela posse do pai e,
dessa maneira, ocultava de si mesma o oposto que: invejava o
pai pelo amor da Sra. K. e que não
perdoava à mulher amada a desilusão que ela lhe causara com
sua traição. A moção de ciúme
feminino estava ligada, no inconsciente, ao ciúme que um
homem sentiria. Essas correntes de
sentimentos masculinos, ou, melhor dizendo, ginecofílicos,
devem ser consideradas típicas da vida
amorosa inconsciente das moças histéricas.
O PRIMEIRO SONHO
Justamente no momento em que havia perspectivas de esclarecer um ponto obscuro da
infância de Dora através do material que se impunhaà
análise, ela me informou que, algumas
noites antes, voltara a ter um sonho que já lhe ocorrera
repetidas vezes exatamente da mesma
maneira. Um sonho periodicamente repetido, já por essa
simples característica, estava fadado a
despertar minha curiosidade; e de fato, era justificável, no
interesse do tratamento, considerar o
entrelaçamento desse sonho na trama da análise. Resolvi,
portanto, proceder a uma investigação
particularmente cuidadosa.
Eis o sonho, tal como Dora o relatou: “Uma casa estava em
chamas. Papai estava ao lado
da minha cama e me acordou. Vesti-me rapidamente. Mamãe
ainda queria salvar sua caixa de
jóias, mas papai disse: `Não quero que eu e meus dois filhos
nos queimemos por causa da sua
caixa de jóias.’ Descemos a escada às pressas e, logo que me
vi do lado de fora, acordei.”
Como se tratava de um sonho recorrente, naturalmente lhe
perguntei quando o tivera pela
primeira vez. Não sabia dizer. Mas se recordava de ter tido
o sonhotrês noites sucessivas em L (o
lugar no lago onde ocorrera a cena com o Sr. K.), eagora
voltara a tê-lo algumas noites atrás, aqui
[em Viena]. Naturalmente, a ligação assim estabelecida entre
o sonho e os acontecimentos de L
aumentou minhas expectativas a respeito de sua solução. Mas
primeiro eu queria descobrir qual
fora o motivo de sua recente repetição, e, por conseguinte, pedi
a Dora, que por alguns pequenos
exemplos antes analisados já estava instruída na
interpretação dos sonhos, que decompusesse o
sonho e me comunicasse o que lhe ocorria a propósito dele.
- “Ocorre-me uma coisa”, disse ela, “mas não pode ter
nenhuma relação com isso, porque
é muito recente, ao passo que sem dúvida eu já tivera o
sonho antes.”
- Não tem importância, vá em frente - respondi; -
éjustamente a última coisa que se
adequa ao sonho.
- “Está bem; nesses últimos dias papai teve uma discussão com
mamãe porque ela tranca
a sala de jantar à noite. É que o quarto de meu irmão não
tem entrada independente, e só se pode
chegar a ele pela sala de jantar. Papai não quer que meu
irmão fique trancado assim à noite. Diz
ele que isso não é bom; pode acontecer alguma coisadurante a
noite que torne necessário sair.”
- E isso a fez pensar no risco de um incêndio?
- “Sim”.
- Bem, peço-lhe que preste muita atenção a suas próprias
expressões. Talvez precisemos
delas. Você disse que “pode acontecer alguma coisadurante a
noite que torne necessário sair.”
Dora, porém, descobrira agora o vínculo entre a causa
recente e a causa original do
sonho, pois prosseguiu:
- “Quando chegamos a L naquela ocasião, papai e eu, ele
manifestou abertamente sua
angústia diante da possibilidade de um incêndio. Chegamos em
meio a uma violenta tempestade e
vimos que a casinha de madeira não tinha pára-raios. Logo, a
angústia era muito natural.”
Cabia-me agora estabelecer a relação entre os acontecimentos
em L e os sonhos do
mesmo teor que ela tivera nessa época. Assim, perguntei:
Você teve o sonho nas primeiras noites
em L ou nas últimas, antes de sua partida? Quer dizer, antes
ou depois da conhecida cena no
bosque? (De fato, eu sabia que a cena não ocorrera logo no primeiro dia, e que depois disso ela
ainda permanecera alguns dias em L sem deixar transparecer
nenhum indício do incidente.)
Sua primeira resposta foi “Não sei”, mas, passados alguns momentos, acrescentou: “Mas
creio que foi depois.”
Portanto, agora eu sabia que o sonho fora uma reação àquela
experiência. Mas por que se
repetira ali três vezes? Continuei perguntando: Quanto tempo
você ainda ficou em L depois da
cena?
- “Mais quatro dias, e no quinto fui embora com papai.”
- Agora tenho certeza de que o sonho foi o efeito imediato
de sua experiência com o Sr. K.
Foi em L que você teve o sonho pela primeira vez, e não
antes. Você introduziu essa incerteza na
lembrançaapenas para obliterar em si mesma a ligação. Mas
para mim, os números ainda não se
ajustam muito. Se você ainda ficou em L mais quatro noites,
poderia ter tido o sonho mais quatro
vezes. Será que foi isso?
Ela não contradisse mais minha afirmação, porém, aoinvés de
responder a minha
pergunta, prosseguiu: “Na tarde seguinte ao nosso passeio
pelo lago, doqual o Sr. K. e eu
voltamos ao meio-dia, eu tinha-me recostado no sofádo
quarto, como de costume, para dormir um
pouco. De repente, acordei e vi o Sr. K. parado em frente a
mim…”
- Quer dizer, tal como você viu seu pai no sonho aolado de
sua cama?
- “Foi. Mandei que ele explicasse o que estava procurando
ali. Como resposta, ele disse
que não ia deixar de entrar no seu próprio quarto quando
quisesse; além disso, queria apanhar
alguma coisa. Com isso, fiquei prevenida, pergunteià Sra. K.
se não havia uma chave do quarto e,
na manhã seguinte (no segundo dia), tranquei-me enquanto
fazia minha toalete. À tarde, quando
quis me trancar para deitar de novo no sofá, a chave tinha
sumido. Estou convencida de que o Sr.
K. a havia retirado.”
Aí está, portanto, o tema de trancar ou não o quarto, que
surgiu na primeira associação ao
sonhoe que, casualmente, também desempenhou um papel nacausa
recente do sonho.
Pertenceria também a esse contexto a frase “Vestia-me
rapidamente”?
- “Foi então que resolvi não ficar mais na casa dosK. na
ausência do papai. Nas manhãs
seguintes, eu não podia deixar de temer que o Sr. K. me
surpreendesse enquanto fazia minha
toalete, e por isso
sempre me vestiamuito rapidamente. É que papai ficava no hotel, e a Sra. K.
sempre saía cedo para fazer alguma excursão com ele. Mas o
Sr. K. não voltou a me importunar.”
- Compreendo. Na tarde do segundo dia, você formou o propósito de escapar dessas
perseguições, e então, na segunda, terceira e quarta noites
depois da cena no bosque, teve tempo
de repetir esse propósito enquanto dormia. (Já na segunda
tarde - antes do sonho, portanto, - você
sabia que na manhã seguinte, a terceira, não teria a chave para se trancar enquanto se vestia, e
pôde então formar o propósito de se vestir o mais depressa
possível.) Mas seu sonho se repetia
todas as noites justamente por corresponder a um propósito.
O propósito persiste até ser realizado.
Você como que disse a si mesma: “Não terei tranqüilidade,
não poderei ter um sono tranqüilo
enquanto não estiver fora desta casa.” É o inverso disso que você diz no sonho: “Logo que me vi
do lado de fora, acordei.”
lnterrompo aqui o relato da análise para comparar esse
pequeno fragmento de
interpretação dos sonhos com minhas teses gerais sobre o
mecanismo da formação dos sonhos.
Em meu livro A
Interpretação dos Sonhos(1900a), afirmei que todo sonho é um desejo que se
representa como realizado, que a representação é encobridora
quando se trata de um desejo
recalcado, que pertence ao inconsciente, e que, salvo no
caso dos sonhos das crianças, só o
desejo inconsciente ou um desejo que chegue até o
inconsciente possui a força para formar um
sonho. Creio que minha teoria conseguiria com mais certeza obter aceitação geral se eu me
tivesse contentado com a afirmação de que todo sonho tem um
sentido possível de ser descoberto
mediante um certo processo de interpretação. Uma vez
completa a interpretação, poder-se-ia
substituir o sonho por pensamentos que se enquadrariam na
vida anímica de vigília num ponto
facilmente reconhecível. E teria então podido prosseguir
dizendo que esse sentido do sonho é tão
diversificado quanto os processos de pensamento da vigília. Numa ocasião se trataria de um
desejo realizado, noutra, de um temor realizado, noutra
ainda, de uma reflexão prosseguida
durante o sono, ou de um propósito (como no sonho de Dora),
de um fragmento de produção
mental durante o sono etc. Essa exposição sem dúvida teria
sido atraente por sua simplicidade, e
poderia ter-se apoiado num grande número de exemplos bem
interpretados, como no caso do
sonho aqui analisado.
Em vez disso, formulei uma tese geral que restringeo sentido
dos sonhos a uma única
forma de pensamento - a representação de desejos -,e assim
provoquei a inclinação universal à
discordância. Devo dizer, porém, que não me achei no direito
ou no dever de simplificar um
processo psicológico para torná-lo mais agradável aos
leitores, quando minha investigação
mostrava nele uma complicação cuja solução, para ser
homogênea, teria primeiro de ser
encontrada em outro lugar. Por isso, tem para mim um valor
especial demonstrar que as aparentes
exceções, como esse sonho de Dora, que a princípio se afigurou como a continuação de um
propósito diurno durante o sono, não fazem senão corroborar
novamente a regra contestada. (Ver
a partir de [1])
Certamente, temos ainda uma grande parte do sonho por
interpretar. Minhas perguntas
prosseguiram:
- Como é isso da caixa de jóias que sua mãe queria salvar?
- “Mamãe gosta muito de jóias e ganhou várias do papai.”
- E você?
- “Eu também gostava muito de jóias antes; desde a doença não tenho usado nenhuma.
Um dia, faz uns quatro anos (um ano antes do sonho), houve
uma grande discussão entre papai e
mamãe por causa de uma jóia. Mamãe queria para ela algo especial, umas gotas de pérolas
[Tropfen von Perlen] para usar como pingentes nas orelhas.
Mas papai não gostava disso e, em
vez das gotas, trouxe-lhe uma pulseira. Ela ficou furiosa e
disse que, já que ele tinha gasto tanto
dinheiro num presente de que ela não gostava, melhor seria
que o desse a outra pessoa.”
- E você terá pensado que o aceitaria com prazer?
- “Não sei, não tenho a menor idéia de como mamãe entra no
sonho; ela não estava
conosco em L nessa época.”
- Depois lhe explicarei isso. Não lhe ocorre nada mais sobre
a caixa de jóias
[Schrmuckkästchen]? Até agora, você só falou sobre as jóias
[Schmuck], e nada sobre a caixinha
[Kästchen].
- “Sim, o Sr. K. me presenteara pouco tempo antes com uma
caixinha de jóias
dispendiosa.”
- Então seria muito apropriado retribuir o presente. Talvez
você não saiba que “caixa de
jóias” é uma expressão muito apreciada para a mesmacoisa a
que você aludiu, não faz muito
tempo, com a bolsinhaque estava usando: os genitais
femininos.
- “Sabia que o senhor ia dizer isso.”
- Ou seja, você
sabiadisso… Agora o sentido do sonho está ficando aindamais claro.
Você disse a si mesma: esse homem está me perseguindo; quer
forçar a entrada em meu quarto,
minha “caixa de jóias” está em perigo e, se acontecer alguma
desgraça, a culpa é do papai. Foi por
isso que escolheu, no sonho, uma situação que expressa o
oposto, um perigo de que seu pai a
salva. Nessa parte do sonho, em geral, tudo está
transformado em seu oposto; você logo saberá
por quê. O mistério certamente reside em sua mãe. Como é que
a mamãe entra no sonho? Ela é,
como você sabe, sua rival anterior nos favores de seu pai.
No episódio da pulseira, você teria
aceito de bom grado o que sua mãe rejeitou. Agora, vamos
substituir “aceitar” por “dar” e “rejeitar”
por “recusar”. Isso quer dizer, então, que você estaria
disposta a dar a seu pai o que sua mãe lhe
recusava, e a coisa que se trata teria a ver com uma jóia.
Pois bem, lembre-se agora da caixa de
jóias que o Sr. K. lhe deu. Você tem aí o ponto de partida para uma seqüência paralela de
pensamentos, na qual seu pai deve ser substituído pelo Sr.
K., tal como aconteceu na situação de
ele estar em frente a sua cama. Ele lhe deu uma caixa de
jóias e, portanto, você tem de presenteá-lo com sua caixa de jóias; por isso
falei há pouco em “retribuição do
presente”. Nessa seqüência
de pensamentos, sua mãe deve ser substituída pela Sra. K.,
que estava presente, ela sim, naquela
ocasião. Logo, você está disposta a dar ao Sr. K. oque a
mulher dele lhe recusa. Aí está o
pensamento que você teve de recalcar com tanto esforço e que
tornou necessária a transformação
de todos os elementos em seu oposto. O sonho torna a
corroborar o que eu já lhe tinha dito antes
de você sonhá-lo: que você está evocando seu antigoamor por
seu pai para se proteger de seu
amor pelo Sr. K. Mas, o que mostram todos esses esforços?
Não só que você temeu o Sr. K., mas
que temeu ainda mais a si mesma, temeu ceder à tentação
dele. Confirmam também, portanto,
quão intenso era seu amor por ele.
Naturalmente, Dora não quis acompanhar-me nessa parte da
interpretação. Mas eu
conseguira dar um passo adiante na interpretação dosonho,
que parecia indispensável tanto para
a anamnese do caso quanto para a teoria dos sonhos.Prometi
comunicar isso a Dora na sessão
seguinte.
O fato é que eu não podia esquecer a indicação que parecia
brotar das já citadas palavras
ambíguas (pode acontecer uma desgraça durante a noite que
torne necessário sair). A isso se
acrescentou o fato de que o esclarecimento do sonhome
pareceria incompleto enquanto não se
satisfizesse um certo requisito, que certamente nãoquero
estabelecer como universal, mas cuja
satisfação procuro buscar. Um sonho de formação regular
apóia-se, por assim dizer, em duas
pernas, uma das quais está em contato com a causa atual
essencial, e a outra, com algum
acontecimento relevante da infância. Entre esses dois
fatores, a experiência infantil e a atual, o
sonho estabelece uma ligação esforçando-se por remodelar o
presente segundo o modelo do
passado mais remoto. É que o desejo que cria o sonho sempre
provém da infância e sempre tenta
retransformá-la em realidade, corrigir o presente segundo a
infância. Eu acreditava já poder
discernir claramente, no conteúdo do sonho de Dora,os
elementos passíveis de se combinarem
numa alusão a um acontecimento da infância.
Iniciei sua elucidação com um pequeno experimento que, como
de hábito, teve êxito.
Casualmente, havia sobre a mesa uma grande caixa defósforos.
Pedi a Dora que olhasse em
volta para ver se notava sobre a mesma algo de especial que
não costumasse estar ali. Não viu
nada. Perguntei-lhe então se sabia por que as crianças eram
proibidas de brincar com fósforos.
- “Sim, é por causa do perigo de incêndio. Os filhos de meu
tio gostam muito de brincar
com fósforos.”
- Não é só por isso. Elas são advertidas de “não brincar com
fogo”, e isso é acompanhado
de uma certa crença.
Dora nada sabia a respeito. - Pois bem, teme-se queelas
molhem a cama. A antítese entre
águae fogopor certo
se encontra na base disso. Talvez elas sonhem com fogo e depois tentem
apagá-lo com água. Não sei dizer com exatidão. Mas vejo que a oposição entre água e fogo no
sonho presta a você extraordinários serviços. Sua mãe queria
salvar a caixa de jóias para que ela
não fosse queimada;
nos pensamentos do sonho, em contrapartida, trata-se de que a “caixa de
jóias” não fique molhada. Mas fogo não é empregado apenas
como oposto de água; serve também
como representação direta do amor, de estar enamorado,
ardendo de paixão. Portanto, de “fogo”
parte uma via que, passando por esse sentido simbólico,
chega aos pensamentos amorosos,
enquanto que a outra via, por intermédio do oposto “água” e
depois de fazer uma ramificação que
estabelece outro vínculo com “amor” (pois também este deixa
as coisas molhadas), leva a outra
direção. Mas, para onde? Pense em sua própria expressão: à
noite, pode acontecer uma desgraça
que torne forçoso sair. Não significaria isso uma
necessidade física? E, se você
transpuser essa
desgraça para a infância, que outra coisa ela poderia ser
senão molhar a cama? E o que é que se
costuma fazer para evitar que as crianças molhem a cama? Não são elas despertadas do sono
durante a noite,
exatamente como seu pai acordou você no sonho? Esse seria, portanto, o
acontecimento real que lhe permitiu substituir o Sr. K., que
realmente a despertou do sono, por seu
pai. Devo então inferir que você continuou a molhara cama
por mais tempo do que costuma
acontecer com as crianças. O mesmo deve ter ocorrido com seu
irmão, pois seu pai disse: “Não
quero que meus dois filhos… pereçam. Seu irmão nada tem a
ver com a situação atual dos K.,
nem tampouco foi a L . Que dizem suas lembranças sobre isso?
- “Quanto a mim, não sei nada” - respondeu ela -, “mas meu
irmão molhava a cama até os
seis ou sete anos, e muitas vezes isso lhe aconteceu até de
dia.”
Eu estava a ponto de lhe fazer uma observação sobrecomo é
mais fácil recordar uma
coisa assim a respeito de um irmão do que de si mesmo,
quando ela prosseguiu, com a memória
recuperada:
- “Sim, isso também me aconteceu por algum tempo, mas só no
sétimo ou oitavo ano.
Deve ter sido grave, porque agora me lembro que o médico foi
consultado. Durou até pouco antes
de minha asma nervosa” (ver em [1]).
- Que disse o médicoa respeito?
- “Explicou que era uma debilidade nervosa; passaria logo,
achou ele; e receitou um
tônico.”
A interpretação do sonho agora me parecia completa. No dia
seguinte, porém, Dora ainda
me trouxe um aditamento. Esquecera de contar que todas as vezes,
depois de acordar, sentia
cheiro de fumaça. A fumaça, é claro, combinava bem com o
fogo, mas indicava, além disso, que o
sonho tinha uma relação especial comigo, pois, quando ela
afirmava que por trás disto ou daquilo
não havia nada escondido, eu costumava retrucar: “onde há
fumaça há fogo.” Mas Dora fez a essa
interpretação puramente pessoal a objeção de que o Sr. K. e seu pai eram fumantes apaixonados,
como eu também, aliás. Ela mesma fumara durante suaestada no
lago, e o Sr. K. acabara de
enrolar-lhe um cigarro pouco antes de iniciar sua lastimável
corte. Ela também acreditava lembrar
com certeza que o cheiro de fumaça não aparecera pela
primeira vez apenas na ocasião do último
reaparecimento do sonho, mas também nas três vezes em que ele ocorreu em L . Posto que se
recusasse a fornecer-me outras informações, coube amim
determinar como inserir esse
aditamento na trama dos pensamentos do sonho. Como ponto de referência, pude servir-me do
fato de que a sensação da fumaça só havia surgido como um
acréscimo ao sonho, ou seja, deveria
ter tido que superar um esforço especial do recalcamento.
Por conseguinte, provavelmente se
relacionava com o pensamento mais obscuramente representado
e mais bem recalcado no sonho,
ou seja, a tentação de se mostrar disposta a ceder ao homem. Sendo assim, dificilmente poderia
significar outra coisa senão a ânsia de um beijo, que,
trocado com um fumante, necessariamente
cheiraria a fumo; mas tinha havido um beijo entre eles cerca
de dois anosantes, e por certo ter-se-ia repetido mais de uma vez se a moça
tivesse cedido ao galanteio. Os pensamentos ligados à
tentação, portanto, pareciam ter remontado à cena anterior e
revivido a lembrança do beijo contra
cuja atração sedutora a pequena “chupadora de dedo”se
protegera, a seu tempo, por meio do
asco. Por fim, considerando os indícios de uma transferência
para mim, posto que também sou
fumante, cheguei à conclusão de que um dia, duranteuma
sessão, provavelmente lhe ocorrera
que ela desejaria ser beijada por mim. Esse teria sido o
pretexto que a levou a repetir o sonho de
advertência e a formar a intenção de interromper o
tratamento. Tudo se encaixa muito bem dessa
maneira, mas, devido às particularidades da “transferência”,
fica privado de comprovação. (ver em
[1])
Agora eu poderia hesitar entre considerar primeiramente o
partido a ser tirado desse sonho
para a história clínica do caso, ou começar por abordar a
objeção que, com base nele, pode-se
fazer a teoria dos sonhos. Opto pela primeira alternativa.
Vale a pena examinar detidamente a significação da enurese para a história primitiva do
neurótico. A bem da clareza, limito-me a destacar que o caso
de Dora, no aspecto de molhar a
cama, não era o habitual. Essa perturbação não apenas
persistira além da época admitida como
normal, mas também, segundo o depoimento explícito de Dora, primeiro desaparecera e depois
tornara a surgir em época relativamente tardia, após o sexto
ano de vida (ver em [1]). Ao que eu
saiba, esse tipo de enurese não tem outra causa mais
provável do que a masturbação, a qual, na
etiologia da enurese em geral, desempenha um papel que ainda
não foi suficientemente apreciado.
Em minha experiência, as próprias crianças tiveram um dia um conhecimento muito claro dessa
ligação, e daí decorrem todas as suas
conseqüênciaspsíquicas, como se elas nunca a tivessem
esquecido. Ora, na época em que Dora relatou o sonho,
estávamos empenhados numa linha de
investigação que levava diretamente à admissão de que ela se
masturbara na infância. Pouco
antes, ela havia perguntado exatamente por que havia
adoecido, e, antes que eu lhe desse uma
resposta, pusera a culpa no pai. A justificação disso não
provinha de seus pensamentos
inconscientes, mas de um conhecimento consciente. Ajovem
sabia, para minha surpresa, qual
tinha sido a natureza da doença de seu pai. Depois de ele
regressar de meu consultório (ver em [1]
e [2]), ela entreouvira uma conversa em que o nome da doença
fora mencionado. Em época ainda
anterior, na ocasião do descolamento da retina (verem [1]),
um oculista consultado deve ter
aludido à etiologia luética, pois a menina curiosa e preocupada, dessa vez, ouvira uma tia idosa
dizer a sua mãe: “Ele já era doente antes do casamento”, e
acrescentar algo que lhe fora
incompreensível, mas que, posteriormente, ela interpretara
para si mesma como ligado a coisas
indecorosas.
Portanto, o pai adoecera por levar uma vida leviana, e ela
supunha que lhe tivesse
transmitido o estado doentio por hereditariedade. Tive o
cuidado de não lhe dizer que, como já
afirmei (em [1]), também eu sou de opinião que os
descendentes dosluéticos são muito
particularmente predispostos a graves neuropsicoses. Esse
curso de pensamento acusatório ao
pai prosseguiu através do material inconsciente. Por um
período de vários dias ela se identificou
com a mãe através de pequenos sintomas e peculiaridades, o
que lhe deu oportunidade de
produzir alguns comportamentos realmente insuportáveis;
deu-me então a entender que estava
pensando numa temporada que passara em Franzensbad, que ela
visitara em companhia da mãe -
já não sei em que ano. A mãe sofria de dores no baixo ventre
e de uma secreção (catarro) que
tornaram necessário um tratamento em Franzensbad. Dora era
de opinião - mais uma vez,
provavelmente justificada - que essa doença era devida a seu
pai, que assim teria transmitido sua
doença venérea à mãe dela. Era muito compreensível que, ao
extrair essa conclusão, ela, como a
maioria dos leigos, confundisse gonorréia com sífilis, e
também o hereditário com o transmissível
pelo contato. Sua persistência nessa identificação [com a
mãe] quase me forçou a perguntar-lhe se
ela também tinha alguma doença venérea, e foi entãoque me inteirei
de que ela estava com um
catarro (fluor albus) de cujo início não conseguia
lembrar-se.
Compreendi então que, por trás da seqüência de pensamentos
que acusava
expressamente o pai, ocultava-se, como de hábito, uma
autoacusação. Fui em direção a ela
assegurando-lhe que, a meu ver, a leucorréia das mocinhas
apontava primordialmente para a
masturbação, e que todas as outras causas
comumenteatribuídas a essa queixa eram relegadas
para segundo plano pela masturbação. Assim, ela estava em
vias de responder a sua própria
pergunta sobre exatamente por que havia adoecido mediante a
confissão de que se havia
masturbado, provavelmente na infância. Ela negou
terminantemente lembrar-se de qualquer coisa
assim. Passados alguns dias, porém, fez algo que tive de
considerar como mais um passo a
aproximá-la da confissão. Ocorre que, nesse dia, ela trazia
na cintura uma bolsinha porta-moedas
do formato que havia entrado em voga (coisa que nunca fizera
antes e nem faria depois) e,
enquanto falava estendida no divã, pôs-se a brincarcom ela:
abria-a, introduzia um dedo, tornava
a fechá-la, etc. olhei-a por algum tempo e depois lhe
expliquei o que vem a ser um ato sintomático.
Chamo de atos sintomáticos as funções que as pessoas
executam, como se costuma dizer, de
maneira automática e inconsciente, sem reparar nelas, como
que brincando, querendo negar-lhes
qualquer significação e, se inquiridas, explicando-as como
indiferentes e casuais. A observação
mais cuidadosa, porém, mostra que tais ações, das quais a consciência
nada sabe ou nada quer
saber, expressam pensamentos e impulsos inconscientes,
sendo, portanto, valiosas e instrutivas
enquanto manifestações permitidas do inconsciente. Há dois modos de conduta consciente frente
aos atos sintomáticos. Quando se pode atribuir-lhesuma
motivação irrelevante, toma-se
conhecimento deles; quando falta à consciência um pretexto
dessa ordem, em geral não se
observa em absoluto que estão sendo executados. No caso de Dora, a motivação era fácil: “Por
que não usaria eu uma bolsinha dessas, já que agoraestá na
moda?” Mas tal justificativa não
descarta a possibilidade de que o referido ato tenha uma
origem inconsciente. Por outro lado, nem
essa origem nem o sentido atribuído ao ato podem ser
comprovados de maneira concludente.
Temos de contentar-nos em constatar que tal sentidose ajusta
excepcionalmente bem à trama da
situação em pauta, à ordem do dia do inconsciente.
Em outra oportunidade apresentarei uma coletânea desses atos
sintomáticos, tal como
podem ser observados nas pessoas sadias e nos neuróticos.
Suas interpretações são amiúde
muito fáceis. A bolsinha de dupla abertura de Dora não
passava de uma representação dos órgãos
genitais, e sua maneira de brincar com ela, abrindo-a e ali
inserindo seu dedo, era uma
comunicação pantomímica bastante desembaraçada,
masinconfundível, do que gostaria de fazer:
masturbar-se. Faz pouco tempo ocorreu-me um caso similar,
muito divertido. Em meio à sessão,
uma paciente mais velha apanhou uma caixinha de marfim,
pretensamente para se refrescar com
um bombom, esforçou-se por abri-la e depois a entregou a
mim, para que eu me convencesse de
como era difícil fazê-lo. Externei minha suspeita de que
essa caixinha deveria significar algo
especial, pois era a primeira vez que eu a via, embora sua
dona me viesse consultando há mais de
um ano. Retrucou então a dama vivamente: “Sempre trago essa
caixinha comigo, carrego-a para
onde quer que vá!” Só se acalmou depois que a fiz notar,
rindo, quão bem suas palavras se
adequavam a um outro sentido. A caixa - Dose[em alemão], πυξιζ- , assim como a bolsinha e a
caixa de jóias, mais uma vez não era outra coisa senão um
substituto para a concha de Vênus,
para a genitália feminina!
Há na vida muito desse simbolismo, que comumente nos passa
despercebido. Quando me
propus a tarefa de trazer à luz o que os seres humanos
guardam escondido, não mediante a
compulsão da hipnose, mas a partir do que eles dizem e mostram,
julguei que tal tarefa fosse mais
difícil do que realmente é. Quem tem olhos para vere ouvidos
para ouvir fica convencido de que os
mortais não conseguem guardar nenhum segredo. Aqueles cujos
lábios calam denunciam-se com
as pontas dos dedos; a denúncia lhes sai por todos os poros. Por isso, a tarefa de tornar
consciente o que há de mais secreto no anímico é
perfeitamente exeqüível.
O ato sintomático de Dora com a bolsinha não foi o precursor
imediato do sonho. A sessão
que nos levou ao relato do sonho começou por outro ato
sintomático. Quando entrei na sala onde
ela me aguardava, ela escondeu às pressas uma cartaque
estava lendo. Naturalmente, perguntei-lhe de quem era, e a princípio ela se
recusou a dizer-me. Surgiu então algo que era extremamente
irrelevante e não tinha nenhuma relação com nosso
tratamento. Tratava-se de uma carta de sua
avó em que esta a exortava a escrever-lhe com mais freqüência. Creio que Dora queria apenas
brincar de “segredo” comigo e indicar que estava prestes a
deixar que seu segredo fosse
arrancado pelo médico. Expliquei então a mim mesmo sua
antipatia por qualquer novo médico por
sua angústia de que, fosse ao examiná-la (pelo catarro),
fosse ao fazer-lhe perguntas (pela
comunicação do hábito de urinar na cama), ele pudesse
adivinhar a razão de seu sofrimento: a
masturbação. Mais tarde, ela sempre falava com muito
desprezo dos médicos a quem, antes,
obviamente superestimara. (ver em [1])
Acusações ao pai por tê-la feito adoecer, e mais a
auto-acusação por trás disso; leucorréia,
brincadeira com a bolsinha; enurese depois dos seisanos; e
um segredo que não se queria deixar
arrancar pelos médicos: considero estabelecida sem nenhuma lacuna a prova circunstancial da
masturbação infantil. No caso de Dora, eu começara a
suspeitar da masturbação quando ela me
falou sobre as dores estomacais da prima (ver em [1]) e em
seguida se identificou com ela,
queixando-se por dias a fio de sensações dolorosas similares. É sabido que, com freqüência, as
dores gástricas surgem justamente nos masturbadores. Segundo
uma comunicação pessoal que
me foi feita por Wilhelm Fliess, são precisamente essas as
gastralgias passíveis de ser
interrompidas mediante a aplicação de cocaína no “ponto
gástrico” por ele descoberto no nariz, e
curadas mediante sua cauterização. Dora me confirmou ter
consciência de duas coisas:de que ela
mesma sofrera muitas vezes de espasmos gástricos e de que
tinha boas razões para considerar
sua prima uma masturbadora. É muito comum os pacientes
reconhecerem em outros uma relação
que suas resistências emocionais os impossibilitam de reconhecer em sua própria pessoa. Dora
não mais negou essa relação, embora ainda não se lembrasse
de nada. Até mesmo a cronologia
da enurese, durando “até pouco antes do surgimento da asma nervosa” (ver em [1]), parece-me
clinicamente valorizável. Os sintomas histéricos quase nunca
se apresentam enquanto as crianças
se masturbam, mas só depois, na abstinência; constituem um
substituto de satisfação
masturbatória, que continua a ser desejada no inconsciente
até que surja alguma outra satisfação
mais normal, caso esta ainda seja possível. Dessa última
condição depende a possibilidade de
cura da histeria pelo casamento e pelas relações sexuais
normais. Caso a satisfação no
casamento volte a ser interrompida - por exemplo, devido ao
coito interrompido, ao distanciamento
psíquico etc. -, a libido torna a refluir para seu antigo curso e se manifesta mais uma vez nos
sintomas histéricos.
Gostaria de acrescentar infomações precisas sobre quando e
mediante que influência
especial a masturbação de Dora foi suprimida, mas
aincompletude da análise obriga-me a
apresentar aqui um material cheio de lacunas. Tive
conhecimento de que ela urinava na cama até
pouco antes de adoecer pela primeira vez com dispnéia. Ora,
o único esclarecimento que pôde
prestar sobre esse primeiro ataque foi que, nessa ocasião,
seu pai saíra em viagem pela primeira
vez desde que melhorara de saúde. Nesse pequeno fragmento de
lembrança preservado deve
haver uma relação alusiva à etiologia da dispnéia. Os atos sintomáticos e outros sinais de Dora
forneceram-me boas razões para supor que a menina, cujo quarto era contíguo ao dos pais, teria
entreouvido uma visita noturna do pai a sua mulher e escutado a respiração ofegante do homem
(aliás, habitualmente entrecortada) durante o coito. As
crianças, nesses casos, pressentem o
sexual nesse ruído insólito. A rigor, os
movimentosexpressivos da excitação sexual já se acham
prontos nelas como mecanismos inatos. Indiquei, anos atrás,
que a dispnéia e as palpitações da
histeria e da neurose de angústia são apenas fragmentos
isolados do ato do coito, e em muitos
casos, como no de Dora, pude reconduzir o sintoma da
dispnéia, da asma nervosa, à mesma
origem casual: ao som entreouvido da relação sexualentre
adultos. Sob a influência da excitação
concomitante experimentada nessa ocasião, é perfeitamente
possível que tenha sobrevindo uma
reviravolta na sexualidade da menina, substituindo sua inclinação para a masturbação por uma
inclinação para a angústia. Tempos depois, estando o pai
ausente e a menina enamorada a pensar
nele com saudade, repetiu-se a impressão então havida, sob a
forma de um ataque de asma. Pela
lembrança preservada do que ensejou esse súbito adoecimento,
pode-se ainda conjecturar a
seqüência angustiada de pensamentos que acompanhou o ataque. Este lhe surgiu pela primeira
vez depois de ela se haver extenuado numa excursão pelas montanhas (ver em [1]), na qual
provavelmente sentira um pouco de dispnéia real. A isto somou-se a idéia de que seu pai estava
proibido de escalar montanhas, de que não podia extenuar-se
por ter o fôlego curto; seguiu-se a
lembrança de quanto ele se havia extenuado com a mãe naquela
noite (acaso isso não o teria
prejudicado?); depois veio a preocupação de saber se ela
mesma não se haveria esforçado
demais na masturbação, que levava igualmente ao orgasmo
sexual acompanhado de uma ligeira
dispnéia; e por fim houve o retorno intensificado da
dispnéia como sintoma. Parte desse material
ainda me foi possível deduzir da análise, mas a outra eu
mesmo tive de complementar. Pelo modo
como se constatou a masturbação, já pudemos ver queo
material concernente a um determinado
tema só pode ser coligido fragmento por fragmento, em
diferentes épocas e contextos.
Surge agora uma série de perguntas da máxima importância
sobre a etiologia da histeria:
será lícito considerar o caso de Dora como típico no tocante
à etiologia? Será que ele representa o
único tipo de causação? etc. No entanto, creio estar no
caminho certo ao adiar minha resposta a
essas perguntas para depois da comunicação de um número mais
amplo de casos similares
analisados. Além disso, eu deveria começar por retificar a
formulação das perguntas. Em vez de
me pronunciar por um “sim” ou um “não” a propósito de se dever buscar a etiologia desse caso
patológico na masturbação infantil, eu teria de discutir
primeiramente o conceito de etiologianas
psiconeuroses. O ponto de vista desde o qual eu poderia
responder mostrar-se-ia então
sensivelmente distante do ponto de vista desde o qual a
pergunta me é formulada. No tocante a
este caso, basta chegarmos à convicção de que a masturbação
infantilé demonstrável e não é
nada acidental nem irrelevante para a conformação do quadro
patológico.
O exame da significação do fluor albusconfessado por Dora
acena com uma compreensão
ainda maior dos sintomas. A palavra “catarro”, com a qual
ela aprendeu a designar sua afecção na
época em que uma queixa similar forçou sua mãe a visitar
Franzensbad (ver em [1]), não passa de
outra “reviravolta no sentido” (ver em [1]) através do qual
toda a série de pensamentos sobrea
culpa de seu pai pela doença obteve acesso à manifestação no
sintoma da tosse. Essa tosse, sem
dúvida originariamente surgida de um diminuto catarro real,
era ainda uma imitação do pai, cujos
pulmões estavam afetados, e pôde expressar sua compaixão e
inquietação por ele. Além disso,
porém, também proclamava ao mundo, por assim dizer,algo que
talvez ainda não se tivesse
tornado consciente para ela: “Sou a filha de papai.Tal como
ele, tenho um catarro. Ele me fez
adoecer, assim como fez mamãe adoecer. Tenho dele as paixões
pérfidas que são castigadas pela
doença.”
Podemos agora fazer uma tentativa de reunir os diversos
determinantes que encontramos
para os ataques de tosse e rouquidão. Na camada mais
inferior da estratificação devemos
presumir a presença de uma irritação real e organicamente
condicionada da garganta, ou seja, o
grão de areia em torno do qual a ostra forma a pérola. Esse
estímulo era passível de fixação por
dizer respeito a uma região do corpo que, na menina,
conservava em alto grau a significação de
uma zona erógena. Por conseguinte, estava apto a dar
expressão à libido excitada. Ficou fixado
através do que foi, provavelmente, seu primeiro revestimento
psíquico - a imitação compassiva do
pai enfermo - e, depois, através das auto-acusaçõespor causa
do “catarro”. Esse mesmo grupo de
sintomas, além disso, mostrou-se passível de representar as
relações dela com o Sr. K., seu pesar
pela ausência dele e o desejo de ser para ele uma esposa
melhor. Depois que uma parte da libido
voltou-se novamente para o pai, o sintoma obteve o que talvez seja sua significação última:
representar a relação sexual com o pai pela identificação de
Dora com a Sra. K. Gostaria de
afiançar, em contrapartida, que esta série de modo algum está completa. Infelizmente, a análise
incompleta não nos permite seguir a cronologia das reviravoltas no sentido, nem esclarecer a
sucessão e a coexistência dos diversos significados. Só de
uma análise completa é lícito esperar o
cumprimento dessas exigências.
Não posso agora deixar de tocar em algumas
relaçõesadicionais entre o catarro genital e
os sintomas histéricos de Dora. No tempo em que ainda se
estava muito longe de chegar a um
esclarecimento psíquico da histeria, eu costumava ouvir de
colegas mais velhos e experientes a
afirmação de que, nas pacientes histéricas que apresentavam
leucorréia, o agravamento do
catarro era regularmente seguido pela agudização dos
achaques histéricos, em particular a perda
de apetite e os vômitos. Ninguém tinha um conhecimento claro
da relação aí indicada, mas creio
que se tendia a adotar a visão dos ginecologistas, que, como é sabido, supõem em ampla escala
uma influência perturbadora direta e orgânica das afecções
genitais sobre as funções nervosas,
embora a comprovação terapêutica dessa teoria seja a conta certa para deixar a maioria de nós
desamparados. Dado o estado atual de nossos conhecimentos,
tampouco se pode dar por
excluída tal influência direta e orgânica, porém, em todo
caso, seu revestimento psíquico é mais
facilmente demonstrável. Entre nossas mulheres, o orgulho
pela configuração dos órgãos genitais
é uma parte muito especial de sua vaidade; as afecções
deles, consideradas capazes de inspirar
repugnância ou mesmo asco, atuam incrivelmente no sentido de
melindrá-las, rebaixar sua auto-estima e torná-las irritadiças, suscetíveis e
desconfiadas. A secreção anormal da mucosa da
vagina é vista como fonte de repugnância.
Lembremo-nos de que em Dora, depois do beijo do Sr.K., houve
uma viva sensação de
asco, e de que encontramos razões para complementaro relato
que ela nos fez dessa cena
conjecturando que, durante o abraço, ela sentira a pressão do membro ereto do homem em seu
ventre (ver a partir de [1]). Sabemos agora, além disso, que
a mesma governanta que ela fez ser
despedida por sua infidelidade lhe dissera, por suaprópria
experiência de vida, que todos os
homens eram frívolos e indignos de confiança. Para Dora, isso devia significar que todos os
homens eram como seu pai. Mas ela considerava que opai
sofria de uma doença venérea, e que
teria transmitido essa doença a ela e a sua mãe. Foi-lhe
então possível imaginar que todos os
homens sofriam de doenças venéreas, e sua concepçãodestas se
formara, naturalmente, a partir
de sua experiência única e pessoal com elas. Sofrerde uma
doença venérea, por conseguinte,
significava para ela estar acometida de uma secreção
enojante. Não seria essa uma outra
motivação do asco por ela sentido no momento do abraço? Esse
asco, transferido para o contato
com o homem, seria então um sentimento projetado segundo o
mecanismo primitivo mencionado
anteriormente (ver em [1]) e estaria referido, em última
instância, a sua própria leucorréia.
Suspeito estarmos tratando aqui de cursos inconscientes de
pensamento urdidos sobre
uma trama orgânica pré-estruturada, tal como uma grinalda
sobre a armação de arame, de sorte
que, numa outra ocasião, pode-se encontrar outras vias de
pensamento intercaladas entre os
mesmos pontos de partida e de chegada. Mas o conhecimento
dos vínculos de pensamento que
se mostraram eficazes em cada indivíduo é de valor
insubstituível para a resolução dos sintomas.
Unicamente por força da interrupção prematura da análise é
que tivemos de recorrer, no caso de
Dora, a conjecturas e complementações. O que aqui apresento
para preencher as lacunas apóia-se inteiramente em outros casos analisados a
fundo.
O sonho mediante cuja análise obtivemos as informações
precedentes corresponde, como
vimos, a um propósito que Dora levou consigo para osono. Por
isso se repetiu todas as noites, até
que o propósito fosse realizado, e reapareceu anos depois, ao surgir uma ocasião para que ela
formasse um propósito análogo. O propósito poderia expressar-se conscientemente da seguinte
maneira: “Preciso afastar-me dessa casa, na qual, como vi,
minha virgindade corre perigo; partirei
com papai e, pela manhã, ao fazer minha toalete, tomarei
minhas precauções para não ser
surpreendida.” Esses pensamentos encontram nítida expressão
no sonho; pertencem a uma
corrente [psíquica] que, na vida de vigília, chegouà
consciência e se tornou dominante. Por trás
deles se pode discernir uma cadeia mais obscura de pensamentos substitutos que correspondia à
corrente contrária e, por isso mesmo, foi suprimida. Essa
segunda cadeia de pensamentos
culminava na tentação de entregar-se ao homem, em
agradecimento pelo amor e pela ternura que
ele lhe demonstrara nos últimos anos, e talvez tenha
invocado a lembrança do único beijo que até
então Dora recebera dele. Contudo, segundo a
teoriadesenvolvida em meu livro A
Interpretação
dos Sonhos, tais elementos não bastam para a formação de um
sonho. O sonho não é um
propósito que se representa como executado, mas um desejo
que se representa como realizado e
precisamente, além disso, um desejo proveniente da vida infantil. Temos a obrigação de verificar
se essa tese não é contradita por nosso sonho.
O sonho contém, de fato, um material infantil que não guarda
relação alguma, à primeira
vista, com o propósito de Dora de escapar da casa do Sr. K.
e da tentação de sua presença. Para
que emergiria a lembrança de quando ela urinava na cama, em
criança, e do trabalho que seu pai
então tivera para habituá-la à limpeza? Pode-se dara isso a
resposta de que somente com a ajuda
dessa cadeia de pensamentos era possível suprimir os
intensos pensamentos de tentação e fazer
prevalecer o propósito formado contra eles. A menina
decidira fugir como pai; na realidade, estava
fugindo parao pai, em
função da angústia frente ao homem que aassediava; convocou uma
inclinação infantil pelo pai para que esta a protegesse de
sua inclinação recente por um estranho.
O próprio pai era culpado pelo perigo atual, pois ahavia
entregue a esse estranho, movido por
seus próprios interesses amorosos. Quão mais belo tinha sido
quando esse mesmo pai não amava
a ninguém mais do que a ela, e se empenhara em salvá-la dos
perigos que então a ameaçavam! O
desejo infantil e hoje inconsciente de colocar o pai no
lugar do estranho é uma potência formadora
de sonhos. Havendo uma situação passada semelhante a uma situação presente, embora tendo
por diferença essa substituição de pessoas, ela passa a ser
a situação principal do sonho. E tal
situação de fato existiu; justamente como fizera o Sr. K. na véspera, seu pai estivera um dia em
frente à cama dela e a acordara; quem sabe com um beijo,
como talvez o Sr. K. tivesse pretendido
fazer. Portanto, o propósito de fugir da casa, por si só, não seria formador de um sonho, mas
transformou-se nisso ao se associar com outro propósito
fundamentado num desejo infantil. O
desejo de substituir o Sr. K. pelo pai forneceu a força
impulsora [pulsional] para o sonho. Relembro
aqui a interpretação a que me compeliu, em Dora, a cadeia reforçada de pensamentos sobre as
relações de seu pai com a Sra. K.: a de que uma inclinação
infantil pelo pai fora invocada para que
fosse possível manter sob recalcamento o amor recalcado pelo
Sr. K. (ver a partir de [1]). Essa
reviravolta na vida anímica de Dora é o que o sonhoespelha.
No tocante à relação entre os pensamentos de vigília que têm
prosseguimento durante o
sono - os restos diurnos - e o desejo inconsciente formador do sonho, fiz em A Interpreração dos
Sonhosalgumas observações que aqui cito inalteradas, porque
nada tenho a acrescentar-lhes e
porque a análise desse sonho de Dora torna a provarque não é
outra a relação existente:
“Estou pronto a admitir que há toda uma classe de sonhos
cuja instigaçãoprovém
principalmente, ou até de maneira exclusiva, dos restos da
vida diurna; e penso que até meu
desejo de enfim tornar-me Professor Extraordinário poderia ter-me deixado dormir em paz aquela
noite, se a preocupação com a saúde de meu amigo não
houvesse persistido desde o dia anterior.
Mas a preocupação, por si só, não teria formado um sonho.
A força impulsorarequerida pelo
sonho tinha de ser suprida por um desejo; cabia à
preocupação apoderar-se de um desejo que
atuasse como força propulsora do sonho.
“A situação pode ser explicada por uma analogia. O pensamento diurno pode
perfeitamente desempenhar o papel de empresáriodo sonho; mas o empresário, que,
como se
costuma dizer, tem a idéia e a iniciativa para executá-la,
não pode fazer nada sem o capital;
precisa de um capitalista que possa arcar com o gasto, e
capitalista que fornece o desembolso
psíquico para o sonho é, invariável e indiscutivelmente,
sejam quais forem os pensamentos do dia
anterior, um desejo oriundo do inconsciente.”
Quem tiver aprendido a conhecer a delicadeza da estrutura
dessas formações que são os
sonhos não ficará surpreso com o fato de que esse desejo de
Dora, de que seu pai tomasse o
lugar do homem tentador, não tenha trazido à memória um
material infantil qualquer, mas
justamente um material que mantinha as mais íntimasrelações
com a supressão dessa tentação. É
que, se Dora se sentia incapaz de ceder ao amor poresse homem,
se recalcava esse amor em vez
de entregar-se a ele, a nenhum outro fator essa decisão se
prendia mais intimamente do que a seu
gozo sexual prematuro e as conseqüências dele - a enurese, o
catarro e o asco. Tal história
primitiva, conforme o somatório dos determinantes
constitucionais, pode constituir o fundamento
para dois tipos de conduta frente às exigências do amor na maturidade: ou uma entrega plena à
sexualidade, sem nenhuma resistência e beirando a perversão,
ou, por reação, o repúdio da
sexualidade no adoecimento neurótico. Em nossa paciente, a
constituição e o nível de sua
educação intelectual e moral decidiram em favor da segunda
alternativa.
Quero ainda chamar especial atenção para o fato de que, a
partir da análise desse sonho,
tivemos acesso a detalhes de vivências patogenicamente
ativas que, de outro modo, teriam sido
inacessíveis à memória ou, pelo menos, à reprodução. A
lembrança do urinar na cama durante a
infância, como vimos, já fora recalcada. Quanto aosdetalhes
do assédio por parte do Sr. K., Dora
nunca os mencionara, pois não lhe ocorriam.
Acrescento ainda algumas observações sobre a síntesedesse
sonho. O trabalho do sonho
começa na tarde do segundo dia após a cena no bosque, depois
que Dora notou que já não
poderia trancar a porta de seu quarto (ver em [1]).Foi então
que disse a si mesma: “Corro sério
perigo aqui”, e formou o propósito de não ficar sozinba na
casa, mas sim partir com o pai. Esse
propósito tornou-se passível de formar um sonho porter
encontrado prosseguimento no
inconsciente. Seu equivalente ali foi a invocação do amor
infantil pelo pai como proteção contra a
tentação atual. A virada assim ocorrida nela fixou-se e a
levou para a postura representada por sua
cadeia hipervalentede
pensamentos (ciúme da Sra. K. por causa do pai,como se estivesse
apaixonada por ele). Lutavam nela a tentação de ceder ao
homem que a cortejava e uma oposição
composta a fazê-lo. Esta se compunha de motivos de decoro e prudência, de impulsos hostis
causados pela revelação da governanta (ciúme e orgulho
ferido, como veremos adiante em [1]), e
de um elemento neurótico - a aversão à sexualidade a que
estava predisposta e que se enraizava
em sua história infantil. O amor pelo pai, invocadopara
protegê-la da tentação, provinha dessa
mesma história infantil.
O sonho transforma o propósito de fugir para o
pai,entranhado no inconsciente, numa
situação que mostra realizado o desejo de que o paia
salvasse do perigo. Para isso foi preciso pôr
de lado um pensamento que constituía um obstáculo -o de que
justamente o pai a expusera a
esse perigo. Quanto à moção hostil contra o pai (propensão à
vingança), aqui suprimida, dela
tomaremos conhecimento como um dos motores do segundo sonho
(ver a partir de [1]).
De acordo com as condições da formação dos sonhos, a situação fantasiada é escolhida
de modo a reproduzir uma situação infantil. É um triunfo
especial conseguir-se transformar uma
situação recente, justamente a que ocasionou o sonho, numa
situação infantil. Em nosso caso,
isso foi conseguido por uma mera casualidade do material.
Tal como o Sr. K. postou-se diante do
sofá e a acordou, o pai muitas vezes a acordara na infância. Toda a mudança pôde simbolizar-se
de maneira muito oportuna substituindo-se o Sr. K. pelo pai
nessa situação.
Mas o pai costumava acordá-la, naquela época, para que ela
não molhasse a cama. Esse
“molhar” tornou-se decisivo para o restante do conteúdo do
sonho, apesar de ser nele
representado apenas por uma alusão distante e por seu
oposto.
O oposto de “molhado” e “água” pode facilmente ser “ardente”
e “fogo”. A casualidade de o
pai, ao chegarem àquele lugar [L ], ter expressado angústia ante o perigo de fogo (ver em [1])
contribuiu para decidir que o perigo do qual o pai deveria
salvá-la seria um incêndio. Nesse acaso
e na oposição a “molhar” baseou-se a situação escolhida para
a imagem onírica: havia um
incêndio e o pai estava em frente a sua cama para
despertá-la. O enunciado fortuito do pai não
teria alcançado essa importância no sonho se não
seharmonizasse tão esplendidamente com a
corrente de sentimentos dominante, que queria ver nele a
qualquer preço o protetor e salvador.
“Ele pressentiu o perigo logo depois de nossa chegada, e
tinha razão!” (Na realidade, ele é que
havia exposto a moça a esse perigo.)
Nos pensamentos oníricos, cabe ao “molhar”, por ligações
muito fáceis de estabelecer, o
papel de ponto nodal entre vários círculos de
representações. “Molhar” pertencia não só ao molhar
a cama, mas também ao círculo de pensamentos de tentação
sexual suprimidos por trás desse
conteúdo onírico. Dora sabia haver também um molhar-se na
relação sexual, sabia que, no coito, o
homem oferece à mulher algo líquido em forma de gotas. Sabia ainda que o perigo
reside
justamente nisso, e que era tarefa sua proteger suagenitália
para que não fosse molhada.
Com “molhar” e “gotas” abre-se ao mesmo tempo outrocírculo
de associações: o do
catarro enojante que, em seus anos mais maduros, sem dúvida
tinha para ela o mesmo significado
do molhar a cama na infância. “Molhado” tem aqui o mesmo
sentido de “sujo”. Os órgãos genitais,
que deveriam manter-se limpos, já se haviam sujado com o catarro, e além disso o mesmo
ocorrera com a mãe dela (ver em [1]). Dora parecia entender a mania de limpeza da mãe como
uma reação contra essa imundície.
Os dois círculos se reúnem num só: “Mamãe recebeu as duas
coisas de papai, o
umedecimento sexual e a secreção que suja.” O ciúmesentido
pela mãe era inseparável do círculo
de pensamentos ligados ao amor infantil pelo pai, aqui
invocado para dar proteção. Mas esse
material ainda não era passível de representação. No
entanto, encontrando-se uma lembrança que
mantivesse com os dois círculos do “molhar” uma relação
similarmente boa, mas que evitasse o
chocante, esta poderia assumir a representação do material
no conteúdo do sonho.
Tal lembrança foi encontrada no episódio das “gotas”
[Tropfen] como jóia desejada pela
mãe (ver em [1]). Aparentemente, a ligação dessa
reminiscência com os dois círculos, o do
umedecimento sexual e o de ficar suja, era externa e superficial, mediada pelas palavras, pois
“gotas” foi usada como uma “reviravolta” (ver em [1]), uma
palavra de duplo sentido, enquanto
“jóia” [“Schmuck”], no lugar de “limpo”, é um oposto um
tanto forçado para “sujo”. Na realidade,
porém, é possível demonstrar as mais firmes ligações em
termos do conteúdo. A lembrança
proveio do material do ciúme de Dora pela mãe, que se enraizava na infância mas persistiu por
muito mais tempo. Através dessas duas pontes verbais foi
possível transferir para uma única
reminiscência, a das “gotas-jóia” [Schmucktropfen], todo o
sentido preso às representações da
relação sexual entre os pais, do adoecimento pela secreção e
da incômoda mania de limpeza da
mãe.
Contudo, faltava ainda mais uma transposição para que isso
pudesse entrar no conteúdo
do sonho. Neste, não foram as “gotas”, mais próximas do
“molhar” originário, e sim “jóia”, mais
distante, que chegou a obter ingresso. “Assim, ao se inserir
esse elemento na situação onírica já
fixada anteriormente, foi possível dizer: “Mamãe ainda
queria salvar suas jóias.” Na nova alteração
para “caixinha de jóias” [Schmuckkästchen] fez-se então
sentir, a posteriori, a influência de
elementos do círculo subjacente, relativo à tentação vinda
do Sr. K. Este não a presenteara com
jóias, mas sim com uma “caixinha” para elas (ver em[1]) - o
substituto de todas as distinções e
mostras de ternura pelas quais ela deveria agora mostrar-se
agradecida. E o composto assim
formado, “caixa de jóias”, tinha ainda um valor especial
como substituto. Acaso “caixinha de jóias”
[Schmuckkästchen] não é uma imagem corriqueira para designar
a genitália feminina imaculada e
intacta? E não é, por outro lado, uma palavra inocente e,
portanto, primorosamente apropriada
tanto para ocultar quanto para aludir aos pensamentos
sexuais por trás do sonho?
Assim, diz-se em dois lugares do conteúdo do sonho “caixa de jóias da mamãe”, e esse
elemento substitui a menção ao ciúme infantil de Dora, às
gotas (ou seja, ao umedecimento
sexual), ao sujar-se com a secreção e, por outro lado, aos
pensamentos de tentação atuais que
pressionam pela retribuição do amor e retratam a situação
sexual iminente - ansiada e
ameaçadora. O elemento “caixa de jóias”, mais do que
qualquer outro, foi um produto da
condensação e do deslocamento, e um compromisso entre
correntes opostas. Sua origem múltipla
- em fontes infantis e atuais - é certamente apontada por
seu duplo aparecimento no conteúdo do
sonho.
O sonho foi a reação a uma nova vivência de efeito
excitante, que deve necessariamente
ter despertado a lembrança da única vivência de anos
anteriores análoga a ela. Trata-se da cena
do beijo na loja do. Sr. K., durante a qual surgiu a
repugnância (ver em [1]). Mas essa mesma cena
era associativamente acessível, partindo-se de outras
direções: do círculo de pensamentos ligados
ao catarro (ver em [1]) e da tentação atual. Portanto, ela
trouxe uma contribuição própria para o
conteúdo do sonho, a qual teve de adaptar-se à situação
onírica pré-formada. “Havia um
incêndio…” - o beijo sem dúvida tinha gosto de fumaça
[fumo], e por isso no sonho sente-se o
cheiro de fumaça, que persiste até depois de Dora acordar
(ver em [1]).
Por inadvertência, deixei lamentavelmente uma lacuna na
análise desse sonho. Atribui-se
ao pai o dito “Não quero que meus dois filhos…
(“emconseqüência da masturbação”, cabe sem
dúvida acrescentar aqui, partindo dos pensamentos oníricos)
pereçam”. Tais ditos oníricossão
usualmente compostos de fragmentos de ditos reais, proferidos ou ouvidos. Eu deveria ter-me
informado sobre a origem real desse dito. O resultado dessa
investigação teria por certo tornado
mais complicada a estrutura do sonho, mas teria também
permitido conhecê-lo com maior
transparência.
Acaso se deve supor que esse sonho, ao ocorrer em L, teve
exatamente o mesmo
conteúdo que em sua repetição durante o tratamento?Não
parece necessário. A experiência
mostra que as pessoas amiúde afirmam ter tido o mesmo sonho,
quando, na verdade, as
aparições isoladas do sonho recorrente se diferenciam por
numerosos detalhes e outras alterações
de considerável importância. Assim, uma de minhas pacientes
me informou ter tido novamente na
noite anterior, e da mesma maneira, seu sonho favorito e
recorrente: estava nadando no mar azul,
sentindo prazer em furar as ondas etc. A investigação mais
atenta mostrou que sobre a base
comum surgia ora este detalhe, ora aquele; numa ocasião,
inclusive, ela estava nadando num mar
gelado e cercada por
icebergs. Outros sonhos que a paciente não procurava apresentar como
idênticos revelaram-se intimamente ligados ao
sonhorecorrente. Uma vez, por exemplo, ela viu
numa fotografia em tamanho natural, ao mesmo tempo,as partes
superior e inferior da ilha de
Helgoland; no mar havia um barco onde se achavam duas
pessoas a quem ela conhecera na
juventude etc.
É certo que o sonho de Dora ocorrido durante o tratamento
havia adquirido um novo
sentido atual, talvez sem modificar seu conteúdo manifesto.
Entre seus pensamentos oníricos ele
incluiu uma referência a meu tratamento e correspondeu a uma
renovação do antigo propósito de
escapar de um perigo. Se não estava em jogo nenhumailusão de
memória por parte de Dora
quando ela declarou que já em L percebera a fumaçadepois de
acordar, cabe reconhecer que
meu provérbio “onde há fumaça há fogo” (ver em [1])foi
introduzido com muita habilidade na forma
acabada do sonho, onde parece ter servido para
sobredeterminar o último elemento.
Inegavelmente, foi mera casualidade que o pretexto mais recente do sonho - o trancamento da
sala de jantar pela mãe, com o que o irmão ficava encerrado
em seu quarto (ver em [1]) - trouxesse
um vínculo com a perseguição do Sr. K. em L , onde Dora amadureceu sua decisão ao descobrir
que não poderia trancar-se no quarto. Talvez o irmão não
tivesse aparecido no sonho nas ocasiões
anteriores, de modo que o dito “meus dois filhos” só entrou
em seu conteúdo depois da última
ocasião que o ensejou.
O SEGUNDO SONHO
Algumas semanas depois do primeiro sonho ocorreu o segundo, com cuja resolução
interrompeu-se a análise. Não se pode torná-lo tão transparente quanto o primeiro, mas ele
possibilitou uma confirmação desejada de uma posição que se
tornara necessária sobre o estado
anímico da paciente (ver em [1]), preencheu uma lacuna de
sua memória (ver em [1]) e permitiu
obter um profundo conhecimento da gênese de outro de seus
sintomas (ver em [1]).
Narrou Dora: “Eu estava passeando por uma cidade que não
conhecia, vendo ruas e
praçasque me eram estranhas. Cheguei então a uma casa onde
eu morava, fui até meu quarto e
ali encontrei uma carta de mamãe. Dizia que, como eu saíra
de casa sem o conhecimento de meus
pais, ela não quisera escrever-me que papai estava doente. `Agora ele morreu e, se quiser, você
pode vir.’ Fui então para a estação[Bahnhof] e perguntei
umas cem vezes: `Onde fica a estação?’
Recebia sempre a resposta: `Cinco minutos.’ Vi depois à
minha frente um bosque espesso no qual
penetrei, e ali fiz a pergunta a um homem que encontrei.
Disse-me: `Mais duas horas e meia.’
Pediu-me que o deixasse acompanhar-me. Recusei e fui
sozinha. Vi a estação à minha frente e
não conseguia alcancá-la. Aí me veio o sentimento habitual
de angústia de quando, nos sonhos,
não se consegue ir adiante. Depois, eu estava em casa; nesse
meio tempo, tinha de ter viajado,
mas nada sei sobre isso. Dirigi-me à portaria e perguntei ao
porteiro por nossa casa. A criada abriu
para mim e respondeu: `A mamãe e os outros já estão no
cemitério [Friedhof]’.”
A interpretação desse sonho não prosseguiu sem alguma
dificuldade. Devido às
circunstâncias peculiares - ligadas a seu conteúdo - em que
interrompemos a análise, nem todo o
sonho ficou esclarecido, e também a isso se prende que minha memória não tenha conservado,
com igual segurança em todos os pontos, a ordem em que as deduções foram feitas. Começarei
por mencionar o tema sobre o qual versava a análiseem curso
quando se deu a interferência do
sonho. Desde algum tempo, a própria Dora vinha formulando
perguntas sobre a ligação entre suas
ações e os motivos presumíveis delas. Uma dessas perguntas
era: “Por que foi que, nos primeiros
dias depois da cena do lago, eu nada disse sobre ela?”
Segunda pergunta: “Por que, então, de
repente contei isso a meus pais?” Eu considerava que, de
modo geral, ainda era preciso explicar o
que a levara a sentir-se tão gravemente melindrada pela proposta do Sr. K., tanto mais que eu
começava a me aperceber de que, para o Sr. K., a proposta a
Dora não significara nenhuma
tentativa leviana de sedução. Quanto a ela ter
dadoconhecimento do episódio a seus pais, eu o
encarava como um ato já praticado sob a influência de uma
sede doentia de vingança. Uma jovem
normal, penso eu, lidaria sozinha com essas questões.
Portanto, apresentarei o material surgido na análise desse
sonho na ordem bastante
confusa em que se oferece à minha reprodução.
Ela vagava sozinha por uma cidade estranha e via ruas e
praças. Assegurou-me que
certamente não era B , em que eu pensara primeiro, mas uma cidade em que nunca estivera.
Como era natural, prossegui: ela poderia ter visto quadros ou fotografias das quais retirara as
imagens do sonho. Depois dessa observação veio o adendo
sobre o monumento numa das praças
e, logo a seguir, o reconhecimento de sua fonte. Nas festas
de Nataltinham-lhe enviado um álbum
com paisagens de uma estação de águas alemã, e justamente na
véspera ela o procurara para
mostrá-lo a alguns parentes que estavam hospedados em sua casa. Ele estava numa caixa de
fotografias que não se conseguia encontrar, e Dora perguntou à mãe: “Onde estáa caixa?”. Uma
das paisagens mostrava uma praça com um monumento. Mas o autor do presente era um jovem
engenheiro com quem Dora travara rápido conhecimento na
cidade fabril. O rapaz aceitara um
posto na Alemanha para chegar mais depressa a sua autonomia,
aproveitava todas as
oportunidades para fazer-se lembrar a Dora, e era fácil
adivinhar que tencionava, a seu tempo,
quando sua posição melhorasse, apresentar-se a Doracomo pretendente.
Mas ainda não era
chegado o momento, havia de esperar.
A perambulação pela cidade estranha estava sobredeterminada.
Levou a um dos ensejos
oferecidos durante o dia. Nas festas chegara a visita de um
priminho a quem Dora teve de mostrar
a cidade de Viena. Essa causa diurna decerto lhe fora
sumamente indiferente. Mas o primo lhe
trouxe à lembrança sua breve estada em Dresden pelaprimeira
vez. Naquela ocasião, ela
perambulara como uma estranha, embora não
deixasse,naturalmente, de visitar a famosa galeria.
Um outro primo, que estivera com eles e conhecia Dresden,
quisera servir de guia no percurso pela
galeria. Mas ela o recusara e seguira sozinha, detendo-se
diante dos quadros que lhe agradavam.
Diante da Madona Sistina deixou-se ficar duas horas, sonhadoramente perdida em
silenciosa
admiração. Ante a pergunta sobre o que tanto lhe agradara no
quadro, não soube dar nenhuma
resposta clara. Finalmente, disse: “A Madona.”
É indubitável que essas associações realmente pertençam ao
material formador do sonho.
Incluem componentes que reencontramos inalterados no
conteúdo do sonho (“ela recusou e foi
sozinha” e “duas horas”). Ressalto desde já que as “imagens” são um ponto nodal na trama dos
pensamentos do sonho (as paisagens do álbum, os quadros em
Dresden). Destacaria também,
para investigação posterior, o tema da Madona, da mãe virgem. Mas o que veio acima
de tudo é
que, nessa primeira parte do sonho, ela se identifica com um
rapaz. Ele vagueia por terras
estrangeiras, esforça-se por atingir uma meta, mas é retido,
precisa de paciência, tem de esperar.
Se Dora tinha em mente o engenheiro, seria muito condizente
que essa meta fosse a posse de
uma mulher, da própria pessoa dela. Em vez disso, era… uma
estação, que aliás, pela relação
entre a pergunta do sonho e a perguntarealmente formulada,
nos é lícito substituir por caixa. Uma
caixa e uma mulher: isso já começa a combinar melhor.
Ela perguntou umas cem vezes… Isso levou a outra causa do
sonho, essa menos
indiferente. Na noite da véspera, em meio a uma reunião
doméstica, o pai lhe pedira que fosse
buscar o conhaque; não dormia sem antes beber conhaque. Dora
pediu à mãe a chave do bufê,
mas ela estava absorta na conversa e não lhe deu resposta
alguma, até que, com o exagero da
impaciência, Dora exclamou: “Já lhe perguntei umas cemvezes onde está a chave.” Na realidade,
ela naturalmente só repetira a pergunta umas cinco vezes.
“Onde está a chave?”
parece-me ser o equivalente masculino da pergunta “Onde está a
caixa?”. Portanto, são perguntas… pelos órgãos genitais.
Nessa mesma reunião familiar, alguém fizera um brinde ao pai
de Dora, expressando a
esperança de que por muito tempo ainda ele gozasse da melhor
saúde etc. Nisso, uma expressão
singular toldou o rosto cansado do pai, e ela compreendeu os
pensamentos que ele teve de
sufocar. Pobre enfermo! Quem poderia saber quanto tempo de
vida ainda lhe restava?
Com isso chegamos ao
conteúdo da cartano sonho. O pai estava morto e ela saíra de
casa por seu próprio arbítrio. A partir dessa carta,
relembrei prontamente a Dora a carta de
despedida que ela escrevera aos pais, ou que pelo menos fora
composta para eles (ver em [1]).
Essa carta se destinava a dar um susto no pai para que ele
desistisse da Sra. K., ou pelo menos a
se vingar dele, caso não fosse possível induzi-lo aisso.
Estamos diante do tema da morte dela ou
da morte do pai (cf.
cemitério, mais adiante no sonho). Acaso estaremos no caminho errado ao
supor que a situação constitutiva da fachada do sonho
correspondia a uma fantasia de vingança
contra o pai? Os pensamentos compassivos do dia anterior se
harmonizariam muito bem com isso.
Ora, a fantasia rezava que ela saía de casa, indo para o
estrangeiro, e que com isso o pai ficava
com o coração partido pelo desgosto e pela saudade dela. Então estaria vingada. Dora
compreendia muito bem de que é que o pai sentia falta, não
podendo agora dormirsem o
conhaque. Assinalemos
a sede de vingançacomo um novo elemento para uma síntese posterior
dos pensamentos do sonho.
Mas o conteúdo da carta deve ser passível de uma
determinação adicional. De onde
proviria a frase “se você quiser”? A propósito disso ocorreu
a Dora o adendo de que, depois da
palavra “quiser”, havia um ponto de interrogação, ecom isso
ela também reconheceu essas
palavras como uma citação extraída da carta da Sra.K. que
contivera o convite para L (o lugar
junto ao lago). De maneira estranhíssima, após a
intercalação “se você quiser vir”, havia nessa
carta um ponto de interrogação colocado bem no meioda frase.
Assim, estamos outra vez de volta à cena do lago (ver em
[1]) e aos enigmas ligados a ela.
Pedi a Dora que me descrevesse essa cena minuciosamente. A
princípio, ela não revelou grandes
novidades. O Sr. K. fizera uma introdução razoavelmente
séria, mas ela não o deixara terminar.
Mal compreendeu do que se tratava, deu-lhe uma bofetada no
rosto e se afastou às pressas. Eu
queria saber que palavras ele empregara, mas Dora só se
lembrou de uma de suas alegações:
“Sabe, não tenho nada com minha mulher.” Naquele momento,
para não tornar a encontrá-lo, ela
quisera voltar para L contornando o lago a pé, e perguntou a
um homem com quem cruzou a que
distância ficava. Ante a resposta “duas horas e meia”,
desistiu dessa intenção e voltou em busca
do barco, que partiu logo depois. O Sr. K. também estava lá
novamente, aproximou-se dela e lhe
pediu que o desculpasse e não contasse nada sobre
oincidente. Mas ela não lhe deu resposta
alguma… É mesmo, o bosque do sonho era muito parecido com o
bosque na orla do lago, no qual
se desenrolara a cena que ela acabava de me descrever mais
uma vez. Justamente esse mesmo
bosque denso é que ela vira na véspera, num quadro de exposiçãosecessionista. Ao fundo do
quadroviam-se ninfas.
Nesse ponto, uma suspeita transformou-se em certezapara
mim. Bahnhof[“estação”;
literalmente, “pátio de ferrovia”] e Friedhof[“cemitério”; literalmente, “pátio de
paz”], em lugar da
genitália feminina, já eram bastante inusitados, mas guiaram
minha atenção já aguçada para uma
palavra de formação similar, “Vorhof” [“vestíbulo”;
literalmente, “pátio anterior”], termo anatômico
para designar uma região específica da genitália feminina.
Mas isso poderia ser um equívoco por
excesso de engenho. Agora, porém, com o acréscimo das
“ninfas” que se viam ao fundo do
“bosque denso”, já não podia haver dúvidas. Era umageografia
simbólica do sexo! “Ninfas”, como
é sabido pelos médicos, embora não pelos leigos (embora
mesmo entre os primeiros não seja
muito usual), é como se chamam os pequenos lábios que ficam
no fundo do “bosque denso” dos
pêlos pubianos. Mas quem usa termos técnicos como
“vestíbulo” e “ninfas” há de ter extraído seu
conhecimento dos livros, e justamente não de livrospopulares,
mas de manuais de anatomia ou de
alguma enciclopédia, refúgio habitual dos jovens devorados
pela curiosidade sexual. Portanto, se
essa interpretação estava certa, ocultava-se por trás da
primeira situação do sonho uma fantasia
de defloração, como quando um homem se esforça por penetrar
na genitália feminina.
Partilhei minhas conclusões com Dora. A impressão causada
deve ter sido imperiosa, pois
emergiu imediatamente um pequenino fragmento esquecido do
sonho: que ela foi calmamente
para seu quarto e pôs-se a ler um livro grande que estava
sobre sua escrivaninha. A ênfase recai
aqui sobre dois detalhes: “calmamente” e “grande”,
relacionado com o livro. Perguntei: “Ele tinha o
formato de uma enciclopédia?” Dora disse que sim. Ora, as
crianças nunca lêem calmamente
sobre matérias proibidas numa enciclopédia. Fazem-no
tremendo de medo e espiam inquietas
para ver se alguém vem vindo. Os pais estorvam muito essas
leituras. Mas a força realizadora de
desejos que é própria do sonho melhorara radicalmente essa
situação incômoda. O pai estava
morto e os demais já tinham ido para o cemitério. Ela podia
ler calmamente o que bem lhe
aprouvesse. Não significaria isso que uma de suas razões
para a vingança era também a revolta
contra a coerção exercida pelos pais? Se seu pai estivesse
morto, ela poderia ler ou amar como
quisesse.
A princípio, ela se recusou a lembrar-se de algum dia ter
lido uma enciclopédia, e depois
admitiu que uma lembrança dessa ordem emergira nela, embora
de conteúdo inocente. Na época
em que a tia a quem tanto amava estivera gravementeenferma e
já se havia decidido a viagem de
Dora a Viena, chegou de outro tio uma cartaanunciando que
eles não poderiam ir a Viena, já que
um filho dele, primo de Dora, portanto, adoecera
perigosamente de uma apendicite. Na ocasião,
ela consultou uma enciclopédia para saber quais eram os
sintomas da apendicite. Do que leu
então ela ainda recorda a dor característica localizada no
abdômen.
Lembrei-me então de que, pouco depois da morte da tia, Dora
sofrera em Viena de uma
suposta apendicite (ver em [1]). Até esse momento, eu não me
atrevera a incluir essa doença entre
suas produções histéricas. Contou-me ela que, nos primeiros
dias, teve febre alta e sentiu no baixo
ventre a mesma dor sobre a qual lera na enciclopédia.
Puseram-lhe compressas frias, mas ela não
conseguiu suportá-las; no segundo dia, em meio a violentas
dores, chegou sua menstruação, que
desde seu adoecimento tornara-se muito irregular. Nessa
época, ela sofria constantemente de
constipação intestinal.
Não parecia correto conceber esse estado como puramente
histérico. Se indubitavelmente
ocorre a febre histérica, parecia arbitrário, por outro
lado, atribuir a febre dessa doença
questionável à histeria, e não a uma causa orgânicaatuante
na ocasião. Eu estava a ponto de
abandonar essa pista quando a própria Dora veio em meu auxílio, trazendo seu último adendo ao
sonho: “ela se via com singular nitidez subindo as escadas.”
Naturalmente, eu exigia para isso um determinante especial.
Dora objetou que, afinal, tinha
de subir a escada se pretendia chegar a seu apartamento, que
ficava num andar alto. Foi-me fácil
repelir essa objeção, levantada talvez não muito a sério, assinalando que, se no sonho ela
pudera
viajar da cidade estranha até Viena omitindo o percurso de
trem, também poderia ter deixado de
fora a subida da escada. Ela prosseguiu então no relato:
depois da apendicite, tivera dificuldade
em caminhar, pois arrastava o pé direito. Isso persistira
por muito tempo, e portanto de bom grado
ela evitava as escadas. Até hoje, o pé ainda se arrastava
muitas vezes. Os médicos por ela
consultados a pedido do pai muito se haviam admirado com
essa seqüela extremamente incomum
de uma apendicite, sobretudo porque a dor abdominalnão
voltou a aparecer e de modo algum
acompanhava o arrastar do pé.
Tratava-se, portanto, de um autêntico sintoma histérico. Por
mais que a febre da época
fosse considerada orgânica - talvez por um dos ataques tão
freqüentes de influenza sem
localização particular -, estava agora comprovado que a
neurose se apoderara desse evento
fortuito e se valera dele para uma de suas manifestações.
Assim, Dora havia arranjado para si uma
doença sobre a qual lera na enciclopédia, punindo-se por
essa leitura; e teve de reconhecer que o
castigo não podia, em absoluto, referir-se à leitura do
artigo inocente, mas que se deu mediante
um deslocamento, depois que a essa leitura seguiu-se uma
outra, mais carregada de culpa, que
hoje se ocultava na lembrança por trásda leitura inocente
contemporânea. Talvez ainda fosse
possível investigar sobre que temas ela lera naquela
ocasião.
Que significava, então, aquele estado que pretendiaimitar
uma peritiflite? A seqüela da
afecção - o arrastar de uma perna - era inteiramente
incompatível com uma peritiflite, e por certo
deveria adequar-se melhor ao sentido secreto, e talvez
sexual, do quadro patológico; se fosse
possível esclarecê-lo, ele poderia lançar luz sobreo sentido
buscado. Tentei encontrar uma via de
acesso para esse enigma. Tinha havido indicações temporais
no sonho, e o tempo nunca é
indiferente no acontecer biológico. Assim, perguntei quando
ocorrera a apendicite, se antes ou
depois da cena do lago. A resposta imediata, que solucionou
de um só golpe todas as dificuldades,
foi: nove meses depois. Esse intervalo é bem característico.
A suposta apendicite realizara,
portanto, com os modestos recursos à disposição da paciente (as dores e o fluxo menstrual), a
fantasia de um parto.
Naturalmente, Dora conhecia o significado desse prazo, e não pôde
desmentir a probabilidade de ter lido na enciclopédia,
naquela ocasião, a respeito da gravidez e do
parto. Mas o que tinha isso a ver com o arrastar daperna? Eu
podia agora arriscar uma conjectura.
É assim que se anda quando se torce o pé. Portanto,ela dera
um “passo em falso” e era
perfeitamente correto que desse à luz nove meses depois da
cena junto ao lago. Mas ainda me
cabia colocar uma outra exigência. Tais sintomas sóse
formam, segundo minha convicção,
quando se tem um modelo
infantilpara eles. Por minhas experiências feitas até agora, devo
sustentar firmemente que as lembranças que se tem de épocas
posteriores não dispõem da força
necessária para se impor como sintomas. Eu não ousava
esperar que Dora me fornecesse o
material infantil desejado, posto que ainda não posso
afirmar a validade universal da tese acima,
por mais que me agradasse fazê-lo. Aqui, porém, a
confirmação veio de imediato. Sim, quando
pequena, ela torcera certa vez esse mesmo pé; estava em B e,
ao descer as escadas,
escorregara num degrau; o pé, justamente o mesmo que ela
arrastava depois, inchara e tivera de
ser enfaixado, deixando-a em repouso por algumas semanas.
Isso foi pouco tempo antes da asma
nervosa que lhe sobreveio no oitavo ano de vida (ver em
[1]).
Agora era preciso tirar proveito da comprovação dessa
fantasia: “Se você passou por um
parto nove meses depois da cena do lago, e se até hoje arca
com as conseqüências do passo em
falso, isso prova que, no inconsciente, você lamentou o
desfecho da cena. Assim, em seu
pensamento inconsciente, tratou de corrigi-lo. A premissa de
sua fantasiade parto é que, de fato,
algo aconteceu naquela ocasião, que você vivenciou e
experimentou então tudo o que, mais tarde,
teve de extrair da enciclopédia. Como vê, seu amor pelo Sr. K. não terminou com aquela cena,
mas, como afirmei, persistiu até o dia de hoje, embora em
seu inconsciente.” Dora não mais o
contradisse.
Esses trabalhos para esclarecer o segundo sonho haviam
requerido duas sessões.
Quando, ao término da segunda, expressei minha satisfação
ante o conseguido, ela respondeu em
tom desdenhoso: “ - Ora, será que apareceu tanta coisa
assim?” E com isso preparei-me para a
chegada de outras revelações.
Dora iniciou a terceira sessão com estas palavras:
“ - O senhor sabe, doutor, que hoje estou aqui pela última
vez?”
- Não posso saber, pois você não me disse nada a esse
respeito.
“ - É, eu me propusera agüentar até o Ano Novo, mas não
quero esperar mais pela cura.”
- Você sabe que tem sempre a liberdade de se retirar. Mas
hoje ainda vamos continuar
trabalhando. Quando foi que tomou essa decisão?
“ - Faz uns quatorze dias, creio.”
- Isso soa como uma empregada ou uma governanta: umaviso
prévio de quatorze dias.
“ - Havia também uma governanta que deu aviso prévio na casa
dos K. quando os visitei
em L , no lago.”
- É mesmo? Você nunca me contou nada sobre ela. Conte-me,
por favor.
“- Bem, havia uma mocinha na casa, como governanta das crianças, que exibia um
comportamento estranhíssimo em relação ao Sr. K. Não o
cumprimentava, não lhe dava nenhuma
resposta, nunca lhe entregava nada à mesa quando ele lhe
pedia, em suma, tratava-o como se
fosse vento. Aliás, ele também não era muito mais cortês com
ela. Um ou dois dias antes da cena
do lago, a moça me chamou à parte; tinha algo a me comunicar. Contou-me então que o Sr. K.,
numa época em que sua mulher estivera ausente por várias semanas,
tinha-se aproximado dela,
fizera-lhe um assédio insistente e lhe pedira que fosse
solícita com ele, dizendo que não tinha
nada com sua mulher etc.”
- Ora, são as mesmas palavras que ele usou ao fazer-lhe sua
proposta, e em função das
quais você lhe deu a bofetada no rosto.
“- É. Ela cedeu, mas em pouco tempo ele já não lhe dava importância, e desde então ela
passou a odiá-lo.”
- E essa governanta deu um aviso prévio?
“- Não, estava pretendendo fazê-lo. Disse-me que, tão logo
se sentiu abandonada, contou
o acontecido a seus pais, que são gente decente quemora em
algum lugar da Alemanha. Os pais
lhe exigiram que abandonasse a casa imediatamente e, como
isso não foi feito, escreveram
dizendo que não queriam mais saber dela, que ela nunca mais
poderia voltar para casa.”
- E por que ela não foi embora?
“- Disse que ainda queria esperar um pouco para verse o Sr.
K. não se modificaria. Não
suportava viver daquela maneira. Se não visse nenhuma
mudança, daria o aviso prévio e sairia.”
- E o que aconteceu com a moça?
“- Só sei que foi embora.”
- Não teve nenhum filho dessa aventura?
“- Não.”
Em meio à análise, portanto - aliás, em perfeito acordo com
as regras -, ali vinha à luz um
fragmento de material efetivo que ajudava a solucionar problemas
previamente levantados. Pude
dizer a Dora:
- Agora conheço o motivo daquela bofetada com que você
respondeu à proposta do Sr. K.
Não foi a afronta pela impertinência dele, mas uma vingança por ciúme. Quando a mocinha lhe
contou sua história, você ainda pôde valer-se de sua arte de
pôr de lado tudo o que não convinha a
seus sentimentos. Mas no momento em que o Sr. K. usou as
palavras “Não tenho nada com minha
mulher”, que ele também dissera à senhorita, novas emoções foram despertadas em você e
fizeram pender a balança. Você disse a si mesma: “Como se
atreve ele a me tratar cono uma
governanta, uma serviçal?” A esse orgulho ferido somaram-se
o ciúme e os motivos de prudência
conscientes: definitivamente, era demais. Para provar o
quanto você ficou impressionada coma
história da governanta, relembro suas repetidas
identificações com ela no sonho e em sua própria
conduta. Você contou a seus pais, o que até aqui não
havíamos compreendido, tal como a moça
escreveu aos pais dela. Está-se despedíndo de mim como uma
governanta, com um aviso prévio
de quatorze dias. A carta do sonho, que lhe permitevoltar
para casa, é a contrapartida da carta
dos pais da moça, em que ela é proibida de fazê-lo.
“ - E por que, então, não contei a meus pais imediatamente?”
- Quanto tempo deixou passar?
“ - A cena ocorreu no último dia de junho; em 14 dejulho
contei-a a mamãe.”
- Outra vez, portanto, quatorze dias, o prazo característico
para uma criada! Agora posso
responder à sua pergunta. Você compreendeu muito bem a pobre
moça. Ela não queria ir-se de
imediato porque ainda tinha esperanças, porque esperava que
o Sr. K. voltasse a lhe dar sua
ternura. Esse deve ter sido também o seu motivo. Você
aguardou esse prazo para ver se ele
renovaria suas propostas; daí teria concluído que ele estava
agindo a sério, e que não queria
brincar com você como fizera com a governanta.
“ - Nos primeiros dias depois da partida ele ainda me mandou
um cartão-postal.”
- Sim, mas como não veio nada mais, você deu livre curso a sua vingança. Posso até
imaginar que, nessa época, ainda havia lugar para aintenção
colateral, mediante a acusação, de
induzi-lo a viajar até o local onde você morava.
“ - … Que foi, aliás, o que ele primeiro se ofereceu a
fazer”, interrompeu ela.
- Então sua saudade dele ter-se-ia apaziguado - aqui, ela
assentiu com a cabeça, coisa
que eu não havia esperado - e ele poderia ter-lhe dado a
satisfação que você reclamava.
“ - Que satisfação?”
- É que estou começando a suspeitar de que você levou a
questão com o Sr. K. muito mais
a sério do que quis revelar até agora. Não havia entre os K.
conversas freqüentes sobre divórcio?
“ - Certamente; primeiro ela não queria, por causa dos
filhos, e agora ela quer, mas ele não
quer mais.”
- Será que não pensou que ele queria divorciar-se da mulher
para se casar com você? E
que agora já não quer fazê-lo, por não ter nenhuma substituta? Há dois anos, sem dúvida, você
era muito jovem, mas você mesma me contou que sua mãe ficou
noiva aos dezessete anos, e
depois esperou dois anos pelo marido. A história amorosa da
mãe costuma ser um modelo para a
filha. Por isso, você também queria esperar, e achou que ele
estava apenas aguardando que você
amadurecesse o bastante para se tornar mulher dele.Imagino
que esse tenha sido um projeto de
vida muito sério para você. E não tem sequer o direito de
afirmar que essa intenção estivesse
excluída para o Sr. K., pois você me contou sobre ele o
bastante para apontar diretamente para
esse propósito. Tampouco a conduta dele em L contradiz isso.
Você não o deixou terminar sua
fala e não sabe o que ele queria dizer-lhe. Aliás, o projeto não seria tão impossível de
realizar. As
relações entre seu pai e a Sra. K., que provavelmente você
só apoiou por tanto tempo por causa
disso, davam-lhe a certeza de que se conseguiria o consentimento da mulher para o divórcio, e
com seu pai você consegue o que quer. Na verdade, se a
tentação em L houvesse tido outro
desfecho, essa teria sido a única solução possível para todas as partes. Penso também que por
isso você lamentou tanto o outro desenlace e o corrigiu na
fantasia que se apresentou como uma
apendicite. Assim, deve ter sido uma grande decepção para
você que, em vez de uma proposta
renovada, suas acusações tenham tido como resultadoas
negativas e as calúnias do Sr. K. Você
admite que nada a enfurece mais do que acreditarem que você imaginou a cena do lago (ver em
[1]). Agora sei do que é que não quer ser lembrada:é de ter
imaginado que a proposta estava
sendo feita a sério e que o Sr. K. não desistiria até que
você se casasse com ele.
Dora me escutara sem me contradizer como de costume. Parecia
emocionada; despediu-se da maneira mais amável, com votos calorosos parao
Ano-Novo, e… nunca mais voltou. O pai,
que ainda me visitou algumas vezes, garantiu que ela
voltaria; notava-se, dizia, que ela estava
ansiosa pela continuação do tratamento. Mas ele nãoera
totalmente sincero. Havia apoiado o
tratamento enquanto lhe fora possível esperar que eu
“dissuadisse” Dora da idéia de que entre ele
e a Sra. K. havia algo além de uma amizade. Seu interesse
desvaneceu-se ao notar que não era
minha intenção promover esse resultado. Eu sabia que ela não
retornaria. Foi um indubitável ato
de vingança que, no momento em que minhas esperanças de um
término feliz do tratamento
estavam no auge, ela partisse de maneira tão inesperada e
aniquilasse essas esperanças.
Também sua tendência a prejudicar a si mesma beneficiou-se
desse procedimento. Quem, como
eu, invoca os mais maléficos e maldomados demônios que habitam o peito humano, com eles
travando combate, deve estar preparado para não sair ileso
dessa luta. Será que eu poderia ter
conservado a moça em tratamento, se tivesse eu mesmo
representado um papel, se exagerasse o
valor de sua permanência para mim e lhe mostrasse um
interesse caloroso que, mesmo atenuado
por minha posição de médico, teria equivalido a um
substituto da ternura por que ela ansiava? Não
sei. Já que em todos os casos parte dos fatores encontrados
sob a forma de resistência
permanecem desconhecidos, sempre evitei desempenharpapéis e
me contentei com uma arte
psicológica mais modesta. A despeito de todo o interesse
teórico e de todo o empenho médico de
curar, tenho muito presente que a influência psíquica
necessariamente tem limites, e respeito como
tais também a vontade e a compreensão do paciente.
Tampouco sei se o Sr. K. teria logrado mais se lhe fosse revelado
que aquela botetada no
rosto de modo algum significara um “não” definitivode Dora,
mas que expressara o ciúme recém-despertado nela, enquanto as moções mais
intensas de sua vida anímica ainda tomavam o partido
dele. Se ele não tivesse dado ouvidos a esse primeiro “não”
e houvesse persistido em sua
proposta com uma paixão mais convincente, o resultado bem
poderia ter sido um triunfo da afeição
da moça sobre todas as suas dificuldades internas. Mas creio
que, talvez com a mesma facilidade,
isso poderia tê-la apenas provocado a satisfazer nele, com
intensidade ainda maior, sua sede de
vingança. Nunca se pode calcular para que lado penderá a
decisão no conflito entre os motivos, se
para a eliminação ou o reforço do recalcamento. A
incapacidade para o atendimento de uma
demanda amorosa realé
um dos traços mais essenciais da neurose; os doentes são dominados
pela oposição entre a realidade e a fantasia. Aquilo por que
mais intensamente anseiam em suas
fantasias é justamente aquilo de que fogem quando lhes é
apresentado pela realidade, e com
maior gosto se entregam a suas fantasias quando já não precisam temer a realização delas. A
barreira levantada pelo recalcamento, no entanto, pode cair
sob o assalto de excitações violentas
de causa real; a neurose ainda pode ser derrotada pela
realidade. Mas não podemos avaliar
genericamente em quem e de que maneira essa cura seria
possível.
POSFÁCIO
É verdade que anunciei esta comunicação como um fragmento de
análise; mas hão de tê-la achado incompleta em proporções muito maiores doque
seu título levaria a esperar. Convém,
portanto, que eu tente indicar os motivos dessas omissões
nada acidentais.
Falta uma série de resultados da análise, em parte porque, quando da interrupção do
trabalho, eles não estavam suficientemente reconhecidos, e
em parte porque teriam requerido um
prosseguimento para se chegar a alguma conclusão geral.
Noutros pontos, onde me pareceu
admissível, apontei o rumo provável em que cada solução
seria encontrada. Além disso, omiti por
completo a técnica, que nada tem de óbvia e unicamente
através da qual se pode extrair da
matéria-prima das associações do enfermo o metal puro dos
valiosos pensamentos inconscientes.
Isso traz a desvantagem de o leitor não poder confirmar,
nesta exposição, o acerto de meu
procedimento. Contudo, pareceu-me totalmente impraticável
lidar ao mesmo tempo com a técnica
da análise e com a estrutura interna de um caso de histeria;
para mim, isso seria uma tarefa quase
impossível, e a leitura seria certamente intragávelpara o
leitor. A técnica exige uma exposição
totalmente separada, que a esclareça mediante numerosos
exemplos extraídos dos mais diversos
casos e possa prescindir do resultado obtido em cada um
deles. Tampouco tentei fundamentar
aqui as premissas psicológicas vislumbradas em minhas
descrições dos fenômenos psíquicos.
Nada se produziria com uma fundamentação descuidada, e uma
que fosse minuciosa constituiria
uma obra por si só. Posso apenas assegurar que abordei o
estudo dos fenômenos revelados pela
observação dos psiconeuróticos sem estar comprometido com
nenhum sistema psicológico
definido, e que depois modifiquei vez após outra minhas
opiniões, até me parecerem adequadas
para dar conta da trama das observações efetuadas. Não me orgulho por ter evitado a
especulação, porém o material para estas hipóteses foi
obtido mediante a mais ampla e laboriosa
observação. Em particular, é possível que a firmezade meu
ponto de vista na questão do
inconsciente seja chocante, uma vez que opero com
representações, cursos de pensamento e
moções inconscientes como se fossem objetos da psicologia
tão bons e incontestáveis quanto todo
o consciente; mas de uma coisa estou certo: quem quer que
empreenda a investigação desse
mesmo campo de fenômenos com o mesmo método não poderá
deixar de situar-se no mesmo
ponto de vista, apesar de todas as dissuasões dos filósofos.
Os colegas que consideram puramente psicológica minha teoria
da histeria, e que por isso
a qualificam de antemão como incapaz de solucionar um problema patológico, deduzirão deste
ensaio que sua objeção transfere injustificadamentepara a
teoria o que constitui uma característica
da técnica. Apenas a técnica terapêutica é puramente
psicológica; a teoria de modo algum deixa
de apontar para as bases orgânicas da neurose, muito embora
não as procure em alguma
alteração anatomopatológica e substitua provisoriamente pela
função orgânica a alteração química
esperada, mas ainda impossível de conceber atualmente.
Ninguém há de querer negar o caráter
de fator orgânico da função sexual, na qual vejo a
fundamentação da histeria e das psiconeuroses
em geral. Suspeito que nenhuma teoria da vida sexual possa
evitar a hipótese da existência de
determinadas substâncias sexuais de ação excitante.De fato,
dentre todos os quadros patológicos
de que tomamos conhecimento na clínica, as intoxicações e a
abstinência quando do uso crônico
de certos venenos são os que mais se aproximam das autênticas
psiconeuroses.
Tampouco me estendi neste ensaio, entretanto, acerca do que
hoje se pode dizer sobre a
“complacência somática”, os germes infantis da perversão, as
zonas erógenas e a predisposição
para a bissexualidade; apenas destaquei os pontos em que a
análise tropeça nesses fundamentos
orgânicos dos sintomas. Mais não se poderia fazer com um
caso isolado, e tive as mesmas razões
antes apontadas para evitar uma discussão passageira desses
fatores. Há aqui uma oportunidade
abundante para trabalhos posteriores, baseados num grande
número de análises.
Com esta publicação tão incompleta, eu quis alcançar duas
coisas. Em primeiro lugar,
como um complemento a meu livro sobre a interpretação dos
sonhos, mostrar como essa arte, que
de outro modo seria inútil, pode ser proveitosa para a
descoberta do oculto e do recalcado na vida
anímica; aliás, na análise dos dois sonhos aqui comunicados,
levou-se em consideração a técnica
da interpretação dos sonhos, semelhante à técnica
psicanalítica. Em segundo lugar, quis despertar
interesse numa série de situações que a ciência ainda hoje
desconhece por completo, já que
somente a aplicação desse procedimento específico permite
desvendá-las. Ninguém podia ter uma
noção exata da complicação dos processos psíquicos na histeria, da justaposição das mais
diversas moções, do vínculo recíproco entre os opostos, dos
recalques e deslocamentos etc. A
ênfase de Janet na
idée fixe, que se converte no sintoma, não significa nada além de uma
esquematização realmente precária. Não se pode evitar a
suposição de que certas excitações
cujas respectivas representações não são passíveis de se conscientizar atuam diferentemente
umas sobre as outras, têm cursos diferentes e levama
manifestações diversas das que chamamos
“normais”, cujo conteúdo de representação torna-se
consciente para nós. Uma vez esclarecidas as
coisas até esse ponto, nada mais poderá estorvar a
compreensão de uma terapia que suprime os
sintomas neuróticos transformando as representaçõesdo
primeiro tipo em representações
normais.
Empenhava-me também em mostrar que a sexualidade não
intervém simplesmente como
um deus ex machinaque
se apresentasse uma única vez em algum ponto da engrenagem dos
processos característicos da histeria, mas que fornece a
força impulsora para cada sintoma
singular e para cada manifestação singular de um sintoma. Os
fenômenos patológicos são, dito de
maneira franca, a
atividade sexual do doente. Um caso isolado nunca permitirá demonstrar uma
tese tão geral, mas só posso repetir vez após outra, pois
jamais constato outra coisa, que a
sexualidade é a chave do problema das psiconeuroses, bem
como das neuroses em geral. Quem
a desprezar nunca será capaz de abrir essa porta. Ainda
aguardo as investigações capazes de
refutar ou restringir essa tese. O que tenho ouvidoaté agora
não passam de manifestações de
desagrado pessoal ou de incredulidade, às quais basta
contrapor o dito de Charcot: “Ça
n’empêche pas d’exister.”
O caso de cuja história clínica e terapêutica aqui publiquei um fragmento tampouco é
apropriado para situar em sua justa luz o valor da terapia
psicanalítica. Não apenas a brevidade do
tratamento, que mal chegou a três meses, como também outro
fator, inerente ao próprio caso,
impediram que a cura se concluísse com a melhora obtenível
em outros casos, uma melhora
admitida pelo enfermo e por seus parentes, que maisou menos
se aproxima de uma recuperação
completa. Obtém-se tal resultado satisfatório quando as
manifestações patológicas são
exclusivamente sustentadas pelo conflito interno entre as
moções concernentes à sexualidade.
Nesses casos, vê-se melhorar o estado do doente à medida
que, traduzindo o material patogênico
em material normal, contribui-se para o solucionamento de
seus problemas psíquicos. O rumo
tomado é diverso quando os sintomas se colocam a serviço de
motivos vitais externos, como
acontecera com Dora nos últimos dois anos. Fica-se surpreso, e pode-se facilmente errar o
caminho, quando se toma conhecimento de que o estado do
doente não dá sinal de se modificar
nem mesmo depois de o trabalho ter progredido muito. Na
realidade, porém, as coisas não são tão
ruins; é certo que os sintomas não desaparecem enquanto o
trabalho prossegue, e sim algum
tempo depois, uma vez dissolvidos os vínculos com omédico. O
adiamento da cura ou da melhora
só é realmente causado pela pessoa do médico.
Devo estender-me um pouco mais para tornar essa questão
inteligível. Durante o
tratamento psicanalítico, pode-se dizer com segurança que
uma nova formação de sintomas fica
regularmente sustada. A produtividade da neurose, porém, de
modo algum se extingue, mas se
exerce na criação de um gênero especial de formações de
pensamento, em sua maioria
inconscientes, às quais se pode dar o nome de
“transferências”.
O que são as transferências? São reedições, reproduções das
moções e fantasias que,
durante o avanço da análise, soem despertar-se e tornar-se
conscientes, mas com a característica
(própria do gênero) de substituir uma pessoa anterior pela
pessoa do médico. Dito de outra
maneira: toda uma série de experiências psíquicas prévia é
revivida, não como algo passado, mas
como um vínculo atual com a pessoa do médico. Algumas dessas
transferências em nada se
diferenciam de seu modelo, no tocante ao conteúdo, senão por essa substituição. São, portanto,
para prosseguir na metáfora, simples reimpressões, reedições inalteradas. Outras se fazem com
mais arte: passam por uma moderação de seu conteúdo,
uma sublimação, como costumo dizer,
podendo até tornar-se conscientes ao se apoiarem emalguma
particularidade real habilmente
aproveitada da pessoa ou das circunstâncias do médico. São,
portanto, edições revistas, e não
mais reimpressões.
Quando se penetra na teoria da técnica analítica, chega-se à
concepção de que a
transferência é uma exigência indispensável. Na prática,
pelo menos, fica-se convencido de que
não há nenhum meio de evitá-la, e de que essa última criação
da doença deve ser combatida
como todas as anteriores. Ocorre que essa parte do trabalho é de longe a mais difícil.
Interpretar
os sonhos, extrair das associações do enfermo os pensamentos
e lembranças inconscientes, e
outras artes similares de tradução são fáceis de aprender: o
próprio doente sempre fornece o texto
para elas. Somente a transferência é que se tem de apurar
quase que independentemente, a partir
de indícios ínfimos e sem incorrer em arbitrariedades. Mas
ela é incontornável, já que é utilizada
para produzir todos os empecilhos que tornam o material
inacessível ao tratamento, e já que só
depois de resolvida a transferência é que surge no enfermo o sentimento de convicção sobre o
acerto das ligações construídas [durante a análise].
Tender-se-á a considerar uma séria desvantagem desse
procedimento, aliás nada
cômodo, que ele próprio multiplique o trabalho do médico,
criando uma nova espécie de produtos
psíquicos patológicos, e talvez se queira até inferir da
existência das transferências algum prejuízo
para o doente através do tratamento analítico. Ambas as
suposições estariam erradas. O trabalho
do médico não é multiplicado pela transferência; defato,
é-lhe indiferente ter de superar a
respectiva moção do enfermo ligada a sua pessoa ou a alguma
outra. Mas o tratamento tampouco
obriga o doente, com a transferência, a qualquer nova tarefa
que de outro modo ele não
executasse. Se também se produzem curas da neurose em instituições das quais o tratamento
psicanalítico está excluído, se é possível dizer que a
histeria não é curada pelo método, e sim pelo
médico, e se é freqüente obter-se como resultado uma espécie
de dependência cega e de cativeiro
permanente do enfermo perante o médico que o livroude seus
sintomas através da sugestão
hipnótica, a explicação científica de tudo isso há de ser
vista nas “transferências” que o doente faz
regularmente para a pessoa do médico. O tratamento psicanalítico não cria a transferência, mas
simplesmente a revela, como a tantas outras coisas ocultas na vida anímica. A única diferença
manifesta-se em que, espontaneamente, o enfermo só evoca transferências ternas e amistosas
que contribuam para sua cura; não podendo ser esse o caso, ele
se afasta o mais rápido possível,
sem ser influenciado pelo médico que não lhe é “simpático”.
Na psicanálise, por outro lado, de
acordo com sua colocação diferenciada dos motivos,
despertam-se todas as moções [do paciente],
inclusive as hostis; mediante sua conscientização elas são
aproveitadas para fins de análise, e
com isso a transferência é repetidamente aniquilada. A
transferência, destinada a constituir o maior
obstáculo à psicanálise, converte-se em sua mais poderosa
aliada quando se consegue detectá-la
a cada surgimento e traduzi-la para o paciente.
Fui obrigado a falar da transferência porque somente através
desse fator pude esclarecer
as particularidades da análise de Dora. O que constitui seu
grande mérito e que a fez parecer
adequada para uma primeira publicação introdutória,a saber,
sua transparência incomum, está
intimamente ligado a seu grande defeito, que levou a sua interrupção prematura. Não consegui
dominar a tempo a transferência; graças à solicitude com que
Dora punha à minha disposição no
tratamento uma parte do material patogênico, esqueci a
precaução de estar atento aos primeiros
sinais da transferência que se preparava com outra parte do mesmo material, ainda ignorada por
mim. Desde o início ficou claro que em sua fantasiaeu
substituía seu pai, o que era fácil de
compreender em vista de nossa diferença de idade. Dora
chegou até a me comparar com ele
conscientemente, buscando, angustiada, assegurar-sede minha
completa sinceridade para com
ela, já que seu pai “preferia sempre o segredo e osrodeios
tortuosos”. Depois, ao surgir o primeiro
sonho, no qual ela se alertava a abandonar o tratamento tal
como antes deixara a casa do Sr. K.,
eu mesmo deveria ter-me precavido, dizendo-lhe: “Agora você
fez uma transferência do Sr. K. para
mim. Acaso terá notado algo que a leve a suspeitar de más intenções semelhantes às do Sr. K.
(diretamente ou por meio de alguma sublimação)? Ou será que
algo em mim chamou sua atenção,
ou que você soube de alguma coisa a meu respeito que me fez
cair em suas graças, como lhe
ocorreu antes com o Sr. K.?” Então a atenção dela ter-se-ia
voltado para algum detalhe de nosso
relacionamento, em minha pessoa ou nas minhas condições, por
trás do qual se esconderia algo
análogo, mas incomparavelmente mais importante, a respeito
do Sr. K.; e mediante a resolução
dessa transferência a análise teria obtido acesso aum novo
material mnêmico, provavelmente
ligado a fatos reais. Mas fiquei surdo a essa primeira
advertência, pensando haver tempo, de
sobra, já que não se apresentavam outros estágios da
transferência e ainda não se esgotara o
material para análise. Assim, fui surpreendido
pelatransferênciae, por causa desse “x” que me
fazia lembrar-lhe o Sr. K., ela se vingou de mim como queria
vingar-se dele, e me abandonou como
se acreditara enganada e abandonada por ele. Assim, atuouuma parte essencial de suas
lembranças e fantasias, em vez de reproduzi-las no tratamento. Naturalmente, não sei dizer qual
era esse “x”: desconfio que se relacionasse com dinheiro, ou
com ciúmes de uma outra paciente
que, uma vez curada, continuara a manter relações com minha
família. Quando as transferências
se deixam abarcar precocemente na análise, o curso desta é opacificado e retardado, mas sua
existência fica mais assegurada contra as resistências
repentinas e insuperáveis.
No segundo sonho de Dora, a transferência é substituída por
diversas alusões claras.
Quando ela o narrou, eu ainda não sabia (só fiquei sabendo
dois dias depois) que só nos restavam
duas horasde trabalho, o mesmo tempo que ela passara em
frente à Madona Sistina (ver em [1]) e
também, introduzindo uma correção (duas horas em vez de duas
horas e meia), o que lhe fora
indicado como a extensão do trajeto ao redor do lago, que
ela nãoseguira (ver em [1]). As
aspirações e a espera no sonho, relacionadas com o rapaz na
Alemanha e provenientes da espera
de que o Sr. K. pudesse casar-se com ela, já se haviam
expressado na transferência dias antes: o
tratamento se prolongava muito e ela não tinha paciência de
esperar tanto, muito embora, nas
primeiras semanas, houvesse demonstrado discernimento
suficiente para escutar, sem fazer tais
objeções, meu anúncio de que seu pleno restabelecimento
talvez requeresse um ano. A recusa a
ser acompanhada e a preferência por ir sozinha, manifestas
no sonho e igualmente originárias da
visita à galeria de Dresden, eram algo que eu próprio
deveria experimentar no dia marcado.
Tinham sem dúvida esse sentido: “Já que todos os homens são
tão detestáveis, prefiro não me
casar. Esta é minha vingança.”
Quando, no decorrer do tratamento, as moções de crueldade e
os motivos de vingança já
usados na vida do paciente para sustentar seus sintomas
transferem-se para o médico, antes que
ele tenha tido tempo de afastá-los de sua pessoa
reconduzindo-os a suas origens, não surpreende
que o estado do enfermo não exiba a influência de seu
empenho terapêutico. De que maneira
pode o doente vingar-se com mais eficácia do que
demonstrando, em sua própria pessoa, quão
impotente e incapaz é o médico? Ainda assim, não meinclino a
subestimar o valor terapêutico nem
mesmo de tratamentos tão fragmentários quanto foi ode Dora.
Só depois de decorridos quinze meses do término do
tratamento e da redação deste texto
recebi notícias do estado de minha paciente e, por conseguinte, dos resultados da terapia. Numa
data nada indiferente, o dia 1º de abril - sabemos que as indicações temporais nunca foram
desprovidas de sentido para ela -, Dora apresentou-se diante
de mim para concluir sua história e
pedir-me ajuda novamente, mas uma olhadela para suaexpressão
revelou-me que ela não levava
a sério esse pedido. Nas quatro ou cinco semanas após deixar
o tratamento ela andou numa
“atrapalhação”, segundo disse. Sobreveio então uma grande melhora: os ataques rarearam e seu
estado de ânimo se elevou. Em maio daquele ano morreu um dos
filhos do casal K., que sempre
fora doentio. Ela aproveitou a oportunidade dessa perda para
fazer-lhes uma visita de
condolências, e os K. a receberam como se nada houvesse
acontecido naqueles últimos três anos.
Nessa ocasião, ela se reconciliou com eles, vingou-se deles
e levou seu assunto a uma conclusão
que lhe foi satisfatória. À mulher, disse: “Sei quevocê tem
um relacionamento com papai”, e esta
não o negou. Quanto ao marido, provocou-o a confessar a cena
do lago antes contestada por ele,
e levou ao pai essa notícia justificatória. Desde então não
retomou seu relacionamento com essa
família.
Depois disso, ela foi muito bem até meados de outubro, época
em que lhe sobreveio outro
ataque de afonia que perdurou três semanas. Surpreso diante
dessa comunicação, perguntei-lhe
se tinha havido algo que ensejasse isso e soube queo ataque
se seguira a um susto violento. Ela
vira alguém ser atropelado por uma carruagem. Por fim,
saiu-se com a informação de que o
acidente não atingira outra pessoa senão o Sr. K. Deparara
com ele na rua um dia, num lugar de
tráfego intenso; ele se quedara diante dela, como que
desconcertado, e nesse estado de distração
fora derrubado por uma carruagem. A propósito, ela se convencera de que ele havia escapado
sem nenhum dano considerável. Ainda lhe causava umaligeira
emoção ouvir falar no
relacionamento de seu pai com a Sra. K., mas ela jánão se
imiscuía nisso. Estava dedicada a
seus estudos e não pensava em se casar.
Viera buscar minha ajuda por causa de uma nevralgiafacial do
lado direito, que agora
persistia dia e noite. - Desde quando? perguntei-lhe.
“Exatamente há quatorze dias.” Não pude
deixar de sorrir, pois foi-me possível demonstrar-lhe que
justamente quatorze dias antes ela lera
uma notíciareferente a mim nos jornais, o que ela confirmou
(isso foi em 1902).
A suposta nevralgia facial correspondia, portanto, a uma autopunição, ao remorso pela
bofetada que ela dera naquele dia no Sr. K. e pela
transferência vingativa daí feita para mim. Não
sei que tipo de auxílio ela queria pedir-me, mas prometi
perdoá-la por ter-me privado da satisfação
de livrá-la muito mais radicalmente de seus padecimentos.
Passaram-se novamente vários anos desde sua visita.A moça se
casou, e por certo com
aquele rapaz que, se todos os indícios não me enganam, fora
mencionado em suas associações
no início da análise do segundo sonho. Tal como o primeiro
sonho significara o afastamento do
homem amado em direção ao pai, ou seja, a fuga da vida para
a doença, esse segundo sonho
anunciou que ela se desprenderia do pai e ficaria recuperada
para a vida.