A história do movimento psicanalítico, artigos sobre
metapsicologia e outros trabalhos
VOLUME XIV
(1914-1916)
Dr. Sigmund Freud
A HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO (1914)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ZUR GESCHICHTE DER PSYCHOANALYTUSCHEN BEWEGUNG
(a)EDIÇÕES ALEMÃS:
1914 Jb. Psychoan., 6, 207-260.
1918 S.K.S.N., 4, 1-77. (1922, 2ª ed.)
1924 G.S., 4, 411-480.
1924 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler
Psychoanalytischer Verlag. Pág. 72.
1946 G.W., 10, 44-113.
(b)
TRADUÇÕES INGLESAS:
“The
History of the Psychoanalytic Movement”
1916
Psychoan. Rev., 3, 406-454. (Trad. A. A. Brill.)
1917 Nova Iorque: Nervous & Mental Disease
Publishing Co. (Série de
Monografias Nº 25). Pág. 58. (Mesmo
tradutor.)
1938
Em The Basic Writings of Sigmund Freud. Nova Iorque: Modern Librar. Págs. 933-977. (Mesmo tradutor.)
“On
the History of the Psycho-Analytic Movement”
1924
C.P., 1, 287-359. (Trad. Joan Riviere.)
A presente tradução é uma versão modificada da
publicada em 1924.
Nas edições alemãs anteriores a 1924 a data
‘fevereiro de 1914’ aparece no final da obra. Parece de fato ter sido escrita
em janeiro e fevereiro daquele ano. Algumas alterações de menor importância
foram feitas na edição de 1924, tendo-se acrescentado a longa nota de rodapé
nas págs. 33-4. Esta somente agora está sendo publicada em inglês.
Um relato completo da situação que levou Freud
a escrever esta obra é apresentado no Capítulo V do segundo volume de sua
biografia escrita por Ernest Jones (1955, 142 e seg.) Aqui basta fazer um
pequeno resumo da situação. As discordâncias de Adler quanto aos pontos de
vista de Freud culminaram em 1910, e as de Jung uns três anos depois. Apesar
das divergências que os afastaram de Freud, ambos persistiam, entretanto, em
descrever suas teorias como “psicanálise”. A finalidade do presente artigo foi
estabelecer claramente os postulados e hipóteses fundamentais da psicanálise,
demonstrar que as teorias de Adler e Jung eram totalmente incompatíveis com
eles, e inferir que só levaria à confusão conjuntos de pontos de vista
contraditórios receberem todos a mesma designação. E embora por muitos anos a
opinião popular continuasse a insistir em que havia “três escolas de
psicanálise”, o argumento de Freud finalmente prevaleceu. Adler já escolhera a
designação de “Psicologia Individual” para as suas teorias e logo depois Jung
adotou a de “Psicologia Analítica” para as suas.
A fim de tornar os princípios essenciais da
psicanálise perfeitamente simples, Freud traçou a história do seu
desenvolvimento desde os primórdios pré-analíticos. A primeira seção do artigo
abrange o período em que ele próprio foi a única pessoa interessada - isto é,
até cerca de 1902. A segunda seção continua a história até mais ou menos 1910
-, época em que os pontos de vista psicanalíticos começaram a se estender a
círculos mais amplos. Só na terceira seção é que Freud chega ao exame dos
pontos de vista dissidentes, primeiro de Adler e a seguir Jung, e assinala os
pontos fundamentais em que eles se afastam das descobertas da psicanálise.
Nessa última seção e também de uma certa maneira no restante do artigo,
encontramos Freud adotando um tom muito mais beligerante do que em qualquer
outro dos seus trabalhos. E, tendo em vista suas experiências nos três ou
quatro anos anteriores, esse estado de humor diferente não pode ser considerado
surpreendente.
Debates sobre os pontos de vista de Adler e
Jung encontram-se em duas outras obras de Freud contemporâneas à presente. No
artigo sobre “Narcisismo” (1914c), que vinha sendo elaborado quase na mesma
época que a “História”, alguns parágrafos de discordância de Jung aparecem no
final da Seção I (S.E., 14, págs. 79 e segs.) e um trecho semelhante sobre
Adler no início da Seção III (pág. 92). A anamnese do “Homem Lobo” (1918b),
escrita sobretudo no fim de 1914, embora somente publicada (com trechos
adicionais) em 1918, destinou-se em grande parte a uma refutação empírica de
Adler e Jung, e encerra muitos ataques contra as suas teorias. Nas obras ulteriores
de Freud existem muitas referências esparsas a essas controvérsias
(principalmente em trabalhos expositivos ou semi-autobiográficos), mas estes
são sempre em tom mais seco e nunca muito extensos. Menção especial,
entretanto, deve ser feita a uma discussão rigorosamente argumentada dos pontos
de vista de Adler sobre as forças motoras conducentes à repressão na seção
final do artigo de Freud sobre as fantasias de espancamento (1919e), S. E., 17,
págs. 201 segs.
Quanto aos aspectos puramente históricos e
autobiográficos da obra, deve-se observar que Freud repetiu mais ou menos o que
se encontra em seu Estudo Autobiográfico (1925d), embora o Estudo
suplemente este trabalho em alguns pontos. Para uma abordagem bem mais ampla do
assunto, o leitor deve procurar a biografia de Freud, em três volumes, escrita
por Ernest Jones. Nas notas de rodapé à presente tradução não se tentou seguir
o mesmo caminho trilhado por aquela obra.
FLUCTUAT NEC MERGITUR (NO BRASÃO
DA CIDADE DE PARIS)
I
Não é de se estranhar o caráter subjetivo desta
contribuição que me proponho trazer à história do movimento psicanalítico, nem
deve causar surpresa o papel que nela desempenho, pois a psicanálise é criação
minha; durante dez anos fui a única pessoa que se interessou por ela, e todo o
desagrado que o novo fenômeno despertou em meus contemporâneos desabafou sobre
a minha cabeça em forma de críticas. Embora de muito tempo para cá eu tenha
deixado de ser o único psicanalista existente, acho justo continuar afirmando
que ainda hoje ninguém pode saber melhor do que eu o que é a psicanálise, em
que ela difere de outras formas de investigação da vida mental, o que deve
precisamente ser denominado de psicanálise e o que seria melhor chamar de outro
nome qualquer. Ao repudiar assim o que me parece nada menos que uma usurpação,
estou indiretamente levando ao conhecimento dos leitores deste Jahrbuch
os fatos que provocaram modificações em sua editoria e formato.
Em 1909, no salão de conferências de uma
universidade norte-americana, tive a primeira oportunidade de falar em público
sobre a psicanálise. A ocasião foi de grande importância para a minha obra, e
movido por este pensamento declarei então que não havia sido eu quem criara a
psicanálise: o mérito cabia a Joseph Breuer, cuja obra tinha sido realizada
numa época em que eu era apenas um aluno preocupado em passar nos exames
(1880-2). Depois que fiz aquelas conferências, entretanto, alguns amigos bem
intencionados suscitaram em mim uma dúvida: não teria eu, naquela oportunidade,
manifestado minha gratidão de uma maneira exagerada? Na opinião deles, devia
ter feito o que já estava acostumado a fazer: encarado o “método catártico” de
Breuer como um estágio preliminar da psicanálise, e a psicanálise em si como
tendo tido início quando deixei de usar a técnica hipnótica e introduzi as
associações livres. Seja como for, não tem grande importância que a história da
psicanálise seja considerada como tendo início com o método catártico ou com a
modificação que nele introduzi; menciono esse detalhe pouco interessante
simplesmente porque certos adversários de psicanálise têm o hábito de lembrar
vez por outra que, afinal de contas, a arte da psicanálise não foi invenção
minha e sim de Breuer. Isto só acontece, naturalmente, quando seus pontos de
vista permitem que eles vejam na psicanálise algo merecedor de atenção, pois,
quando há uma rejeição absoluta, nem se discute que a psicanálise é obra
somente minha. Que eu saiba, a grande participação que teve Breuer na criação
da psicanálise jamais fez cair sobre ele o equivalente em críticas e injúrias.
Como há muito já reconheci que provocar oposição e despertar rancor é o destino
inevitável da psicanálise, cheguei à conclusão de que devo ser eu o verdadeiro
criador do que lhe é mais característico. Alegra-me poder acrescentar que
nenhuma dessas tentativas de minimizar meu papel na criação desta tão difamada
psicanálise jamais partiu de Breuer, nem contou sequer com seu apoio.
As descobertas de Breuer já foram descritas
tantas vezes que posso dispensar um exame detalhado das mesmas aqui. O
fundamental delas era o fato de que os sintomas de pacientes histéricos
baseiam-se em cenas do seu passado que lhes causaram grande impressão mas foram
esquecidas (traumas); a terapêutica, nisto apoiada, que consistia em fazê-los
lembrar e reproduzir essas experiências num estado de hipnose (catarse); e o
fragmento de teoria disto inferido, segundo o qual esses sintomas representavam
um emprego anormal de doses de excitação que não haviam sido descarregadas
(conversão). Sempre que Breuer, em sua contribuição teórica aos Estudos
Sobre a Histeria (1895), referia-se a esse processo de conversão,
acrescentava meu nome entre parênteses, como se coubesse a mim a prioridade
desta primeira tentativa de avaliação teórica. Creio que, na realidade, esta
distinção só se aplica ao termo, e que a concepção nos ocorreu simultaneamente
e em conjunto.
É sabido também que depois de Breuer ter feito
sua primeira descoberta do método catártico deixou-o de lado durante anos e só
veio a retomá-lo por instigação minha, quando de volta dos meus estudos com
Charcot. Breuer tinha uma grande clientela que exigia muito dele; quanto a mim,
apenas assumira a contragosto a profissão médica, mas tinha naquela época um
forte motivo para ajudar as pessoas que sofriam de afecções nervosas ou pelo
menos para desejar compreender algo sobre o estado delas. Adotei a
fisioterapia, e me senti completamente desanimado com os resultados
desapontadores do meu estudo da Elektrotherapie de Erb [1882], que
apresentava tantas indicações e recomendações. Se na época não cheguei por
conta própria à conclusão que Moebius estabeleceu depois - de que os êxitos do
tratamento elétrico em doentes nervosos são efeito de sugestão -, foi, sem
dúvida alguma, apenas por causa da total ausência desses prometidos êxitos. O
tratamento pela sugestão durante a hipnose profunda, que aprendi através das
impressionantes demonstrações de Liébeault e Bernheim, pareciam então oferecer um
substituto satisfatório para o malogrado tratamento elétrico. Mas a prática de investigar
pacientes em estado hipnótico, com a qual me familiarizou Breuer - prática que
combinava um modo de agir automático com a satisfação da curiosidade científica
- era, sem dúvida, incomparavelmente mais atraente do que as proibições
monótonas e forçadas usadas no tratamento pela sugestão, proibições que criavam
um obstáculo a qualquer pesquisa.
Há pouco tempo nos foi dada uma sugestão - que
se propunha representar um dos mais recentes desenvolvimentos da psicanálise -,
no sentido de que o conflito do momento e o fator desencadeante da doença devem
ser trazidos para o primeiro plano na análise. Ora, isto era exatamente o que
Breuer e eu fazíamos quando começamos a trabalhar com o método catártico.
Conduzíamos a atenção do paciente diretamente para a cena traumática na qual o
sintoma surgira e nos esforçávamos por descobrir o conflito mental envolvido
naquela cena, e por liberar a emoção nela reprimida. Ao longo deste trabalho,
descobrimos o processo mental, característico das neuroses, que chamei depois
de “regressão”. As associações do paciente retrocediam, a partir da cena que
tentávamos elucidar, até as experiências mais antigas, e compeliam a análise,
que tencionava corrigir o presente, a ocupar-se do passado. Esta regressão nos
foi conduzindo cada vez mais para trás; a princípio parecia nos levar
regularmente até a puberdade; em seguida, fracassos e pontos que continuavam
inexplicáveis levaram o trabalho analítico ainda mais para trás, até os anos da
infância que até então permaneciam inacessíveis a qualquer espécie de
exploração. Essa direção regressiva tornou-se uma característica importante da
análise. Era como se a psicanálise não pudesse explicar nenhum aspecto do
presente sem se referir a algo do passado; mais ainda, que toda experiência
patogênica implicava uma experiência prévia que, embora não patogênica em si,
havia, não obstante, dotado esta última de sua qualidade patogênica.
Entretanto, a tentação de limitar a atenção ao fator desencadeante conhecido,
do momento, era tão forte que, mesmo em análises posteriores, cedi a ela. Na
análise da paciente a quem dei o nome de “Dora” [1905e], realizada em 1899,
tive conhecimento da cena que ocasionou a irrupção da doença daquele momento.
Tentei inúmeras vezes submeter essa experiência à análise, mas nem mesmo
exigências diretas conseguiram da paciente mais que a mesma descrição pobre e
incompleta. Só depois de ter sido feito um longo desvio, que a levou de volta à
mais tenra infância, surgiu um sonho que, ao ser analisado, lhe trouxe à mente
detalhes daquela cena, até então esquecidos, e assim uma compreensão e solução
do conflito do momento tornaram-se possíveis.
Este único exemplo mostra quanto desacerto
havia na sugestão acima referida e que grau de regressão científica
representaria o abandono, por ela proposto, da regressão na técnica analítica.
Minha primeira divergência com Breuer surgiu de
uma questão relativa ao mecanismo psíquico mais apurado da histeria. Ele dava
preferência a uma teoria que, se poderia dizer, ainda era até certo ponto
fisiológica; tentava explicar a divisão mental nos pacientes histéricos pela
ausência de comunicação entre vários estados mentais (“estados de consciência”,
como os chamávamos naquela época), e construiu então a teoria dos “estados
hipnóides” cujos produtos se supunham penetrar na “consciência desperta” como
corpos estranhos não assimilados. Eu via a questão de forma menos científica;
parecia discernir por toda parte tendências e motivos análogos aos da vida
cotidiana, e encarava a própria divisão psíquica como o efeito de um processo
de repulsão que naquela época denominei de “defesa”, e depois de “repressão”.
Fiz uma tentativa efêmera de permitir que os dois mecanismos existissem lado a
lado separados um do outro, mas como a observação me mostrava sempre uma única
e mesma coisa, dentro de pouco tempo minha teoria da “defesa” passou a se opor
à teoria “hipnóide” de Breuer.
Estou bem certo, contudo, de que esta oposição
entre os nossos pontos de vista nada teve que ver com o rompimento de nossas
relações que se seguiu pouco depois. Este teve causas mais profundas, mas
ocorreu de forma tal que de início não o compreendi; só depois é que, através de
claras indicações, pude interpretá-lo. Como se sabe, Breuer disse de sua
primeira e famosa paciente que o elemento de sexualidade estava
surpreendentemente não desenvolvido nela e que em nada contribuíra para o
riquíssimo quadro clínico do caso. Sempre fiquei a imaginar por que os críticos
não citam com mais freqüência esta afirmação de Breuer como argumento contra
minha alegação referente à etiologia sexual das neuroses, e até hoje não sei se
devo considerar a omissão como prova de tato ou de descuido da parte deles.
Quem quer que leia agora a história do caso de Breuer à luz dos conhecimentos
adquiridos nos últimos vinte anos, perceberá, de imediato, o simbolismo nele
existente - as cobras, o enrijecimento, a paralisia do braço - e, levando em
conta a situação da jovem à cabeceira do pai enfermo, facilmente chegará à
verdadeira interpretação dos sintomas; a opinião do leitor sobre o papel
desempenhado pela sexualidade na vida mental da paciente será, portanto, bem
diferente daquela do seu médico. No tratamento desse caso, Breuer usou, para
com a paciente, de um rapport sugestivo muito intenso, que nos poderá
servir como um perfeito protótipo do que chamamos hoje de “transferência”.
Tenho agora fortes razões para suspeitar que, depois de ter aliviado todos os
sintomas de sua cliente, Breuer deve ter descoberto por outros indícios a
motivação sexual dessa transferência, mas que a natureza universal deste
fenômeno inesperado lhe escapou, resultando daí que, como se tivesse sido
surpreendido por um “fato inconveniente”, ele tenha interrompido qualquer
investigação subseqüente. Breuer nunca me falou isso assim, mas me disse o
bastante em diferentes ocasiões para justificar esta minha reconstituição do
acontecido. Quando depois comecei, cada vez com mais persistência, a chamar a
atenção para a significação da sexualidade na etiologia das neuroses, ele foi o
primeiro a manifestar a reação de desagrado e repúdio que posteriormente iria
tornar-se tão familiar a mim, mas que naquela ocasião eu não tinha ainda
aprendido a reconhecer como meu destino inexorável.
O surgimento da transferência sob forma
francamente sexual - seja de afeição ou de hostilidade -, no tratamento das
neuroses, apesar de não ser desejado ou induzido pelo médico nem pelo paciente,
sempre me pareceu a prova mais irrefutável de que a origem das forças
impulsionadoras da neurose está na vida sexual. A este argumento nunca foi dado
o grau de atenção que ele merece, pois se isso tivesse acontecido, as pesquisas
neste campo não deixariam nenhuma outra conclusão em aberto. No que me diz
respeito, este argumento continua a ser decisivo, mas decisivo mesmo do que
qualquer das descobertas mais específicas do trabalho analítico.
O consolo que tive em face da reação negativa
provocada, mesmo no meu círculo de amigos mais íntimos, pelo meu ponto de vista
de uma etiologia sexual nas neuroses - pois formou-se rapidamente um vácuo em
torno de mim -, foi o pensamento de que estava assumindo a luta por uma idéia
nova e original. Mas, um belo dia, vieram-me à mente certas lembranças que
perturbaram esta idéia agradável, mas que, por outro lado, me proporcionaram
uma percepção (insight) valiosa dos processos da atividade criativa
humana e da natureza dos conhecimentos humanos. A idéia pela qual eu estava me
tornando responsável de modo algum se originou em mim. Fora-me comunicada por
três pessoas cujos pontos de vista tinham merecido meu mais profundo respeito -
o próprio Breuer, Charcot e Chrobak, o ginecologista da universidade, talvez o
mais eminente de todos os nossos médicos de Viena. Esses três homens me tinham
transmitido um conhecimento que, rigorosamente falando, eles próprios não
possuíam. Dois deles, mais tarde, negaram tê-lo feito quando lhes lembrei o
fato; o terceiro (o grande Charcot) provavelmente teria feito o mesmo se me
tivesse sido dado vê-lo novamente. Mas essas três opiniões idênticas, que
ouvira sem compreender, tinham ficado adormecidas em minha mente durante anos,
até que um dia despertaram sob a forma de uma descoberta aparentemente
original.
Um dia, quando eu era ainda um jovem médico
residente, passeava com Breuer pela cidade, quando se aproximou de nós um homem
que evidentemente desejava falar-lhe com urgência. Deixei-me ficar para trás.
Logo que Breuer ficou livre, contou-me com seu jeito amistoso e instrutivo que
aquele homem era marido de uma paciente sua e que lhe trouxera algumas notícias
a respeito dela. A esposa, acrescentou, comportava-se de maneira tão peculiar
em sociedade que lhe fora levada para tratamento como um caso de doença nervosa.
Concluiu ele: “Estas coisas são sempre “secrets d’alcôve!” Perguntei-lhe
assombrado o que queria dizer e respondeu explicando-me o termo alcôve
(“leito conjugal”), pois não se deu conta de quão extraordinário o assunto de
sua declaração me parecia.
Alguns anos depois, numa recepção em casa de
Charcot, aconteceu-me estar de pé perto do grande mestre no momento em que ele
parecia estar contando a Brouardel uma história muito interessante sobre algo
que me ocorrera durante o trabalho do dia. Mal ouvi o início, mas pouco a pouco
minha atenção foi-se prendendo ao que ele dizia: um jovem casal de um país
distante do Oriente - a mulher, um caso de doença grave, o homem impotente ou
excessivamente desajeitado. “Tâchez donc”, ouvi Charcot repetindo, “jê
vous assure, vous y arriverez”. Brouardel, que falava mais baixo, deve ter
externado o seu espanto de que sintomas como os da esposa pudessem ter sido
produzidos por tais circunstâncias, pois Charcot de súbito irrompeu com grande
animação: “Mais, dans des cas pareils, c’est toujours la chose génitale,
toujours… toujours… toujours”; e cruzou os braços sobre o estômago,
abraçando-se a si mesmo e pulando para cima e para baixo na ponta dos pés
várias vezes com a animação que lhe era característica. Sei que por um momento fiquei
quase paralisado de assombro e disse para mim mesmo: “Mas se ele sabe disso,
por que não diz nunca?”. Mas a impressão logo foi esquecida; a anatomia do
cérebro e a indução experimental de paralisias histéricas absorviam todo o meu
interesse.
Um ano depois, iniciara a minha carreira médica
em Viena como professor-adjunto de doenças nervosas, e em relação a tudo o que
dizia respeito à etiologia das neuroses ainda era tão ignorante e inocente
quanto se poderia esperar de um aluno promissor recém-saído de uma
universidade. Certo dia, recebi um recado simpático de Chrobak, pedindo-me que
visse uma cliente sua a quem não podia dedicar o tempo necessário, por causa de
sua recente nomeação para o cargo de professor universitário. Cheguei à casa da
cliente antes dele e verifiquei que ela sofria de acessos de ansiedade sem
sentido, e só conseguia se acalmar com informações precisas de onde se
encontrava o seu médico a cada momento do dia. Quando Chrobak chegou, levou-me
a um canto e me disse que a ansiedade da paciente era devida ao fato de que,
embora estivesse casada há dezoito anos, ainda era virgo intacta. O
marido era absolutamente impotente. Nesses casos, disse ele, o médico nada
podia fazer a não ser resguardar esta infelicidade doméstica com sua própria reputação,
e resignar-se quando as pessoas dessem de ombros e dissessem dele: “Não vale
nada se não pode curá-la depois de tantos anos”. A única receita para essa
doença acrescentou, nos é bastante familiar, mas não podemos prescrevê-la. É a
seguinte:
“R. Penis
normalis dosim repetatur!”
Jamais ouvira tal receita, e tive vontade de
fazer ver ao meu protetor que eu reprovava o seu cinismo.
Não revelei a paternidade ilustre desta idéia
escandalosa com o intuito de atribuir a outros a responsabilidade dela. Dou-me
conta muito bem de que uma coisa é externar uma idéia uma ou duas vezes sob a
forma de um aperçu passageiro, e outra bem diferente é levá-la a sério, tomá-la
ao pé da letra e persistir nela, apesar dos detalhes contraditórios, até
conquistar-lhe um lugar entre as verdades aceitas.
É a diferença entre um flerte fortuito e um
casamento legal com todos os seus deveres e dificuldades. “Épouser les idées
de…” não é uma figura de linguagem pouco comum, pelo menos em francês.
Entre os outros novos fatores que foram
acrescentados ao processo catártico como resultado de meu trabalho e que o
transformou em psicanálise, posso mencionar em particular a teoria da repressão
e da resistência, o reconhecimento da sexuaidade infantil e a interpretação e
exploração de sonhos como fonte de conhecimento do inconsciente.
A teoria da repressão sem dúvida alguma
ocorreu-me independentemente de qualquer outra fonte; não sei de nenhuma
impressão externa que me pudesse tê-la sugerido, e por muito tempo imaginei que
fosse inteiramente original, até que Otto Rank (1911a) nos mostrou um trecho da
obra de Schopenhauer World as Will and Idea na qual o filósofo procura
dar uma explicação da loucura. O que ele diz sobre a luta contra a aceitação da
parte dolorosa da realidade coincide tão exatamente com o meu conceito de
repressão que, mais uma vez, devo a chance de fazer uma descoberta ao fato de
não ser uma pessoa muito lida. Entretanto, outros leram o trecho e passaram por
ele sem fazer essa descoberta e talvez o mesmo tivesse acontecido a mim se na
juventude tivesse tido mais gosto pela leitura de obras filosóficas. Em anos
posteriores, neguei a mim mesmo o enorme prazer da leitura das obras de
Nietzsche, com o propósito deliberado de não prejudicar, com qualquer espécie
de idéias antecipatórias, a elaboração das impressões recebidas na psicanálise.
Tive, portanto, de me preparar - e com satisfação - para renunciar a qualquer
pretensão de prioridade nos muitos casos em que a investigação psicanalítica laboriosa
pode apenas confirmar as verdades que o filósofo reconheceu por intuição.
A teoria da repressão é a pedra angular sobre a
qual repousa toda a estrutura da psicanálise. É a parte mais essencial dela e
todavia nada mais é senão a formulação teórica de um fenômeno que pode ser
observado quantas vezes se desejar se se empreende a análise de um neurótico
sem recorrer a hipnose. Em tais casos encontra-se uma resistência que se opõe
ao trabalho da análise e, a fim de frustrá-lo, alega falha de memória. O uso da
hipnose ocultava essa resistência; por conseguinte, a história da psicanálise
propriamente dita só começa com a nova técnica que dispensa a hipnose. A
consideração teórica, decorrente da coincidência dessa resistência com uma
amnésia, conduz inevitavelmente ao princípio da atividade mental inconsciente,
peculiar à psicanálise, e que também a distingue muito nitidamente das
especulações filosóficas em torno do inconsciente. Assim talvez se possa dizer
que a teoria da psicanálise é uma tentativa de explicar dois fatos
surpreendentes e inesperados que se observam sempre que se tenta remontar os
sintomas de um neurótico a suas fontes no passado: a transferência e a
resistência. Qualquer linha de investigação que reconheça esses dois fatos e os
tome como ponto de partida de seu trabalho tem o direito de chamar-se
psicanálise, mesmo que chegue a resultados diferentes dos meus. Mas quem quer
que aborde outros aspectos do problema, evitando essas duas hipóteses,
dificilmente poderá escapar à acusação de apropriação indébita por tentativa de
imitação, se insistir em chamar-se a si próprio de psicanalista. Eu me oporia
com maior ênfase a quem procurasse colocar a teoria da repressão e da
resistência entre as premissas da psicanálise em vez de colocá-las entre
as suas descobertas. Essas premissas, de natureza psicológica e
biológica geral, na verdade existem e seria útil considerá-las em outra
ocasião; mas a teoria da repressão é um produto do trabalho psicanalítico, uma
inferência teórica legitimamente extraída de inúmeras observações.
Outro produto dessa espécie foi a hipótese da
sexualidade infantil. Isto, porém, foi feito numa data muito ulterior. Nos
primeiros dias da investigação experimental pela análise, não se pensou em tal
coisa. De início, observou-se apenas que os efeitos das experiências presentes
tinham de ser remontados a algo no passado. Mas os investigadores geralmente
encontram mais do que procuram. Fomos puxados cada vez mais para o passado;
esperávamos poder parar na puberdade, período ao qual se atribui
tradicionalmente o despertar dos impulsos sexuais. Mas em vão; as pistas
conduziam ainda mais para trás, à infância e aos seus primeiros anos. No
caminho, tivemos de superar uma idéia errada que poderia ter sido quase fatal
para a nova ciência. Influenciados pelo ponto de vista de Charcot quanto à
origem traumática da histeria, estávamos de pronto inclinados a aceitar como
verdadeiras e etiologicamente importantes as declarações dos pacientes em que
atribuíam seus sintomas a experiências sexuais passivas nos primeiros anos da
infância - em outras palavras, à sedução. Quando essa etiologia se desmoronou
sob o peso de sua própria improbabilidade e contradição em circunstâncias
definitivamente verificáveis, ficamos, de início, desnorteados. A análise nos
tinha levado até esses traumas sexuais infantis pelo caminho certo e, no
entanto, eles não eram verdadeiros. Deixamos de pisar em terra firme. Nessa
época, estive a ponto de desistir por completo do trabalho, exatamente como meu
estimado antecessor, Joseph Breuer, quando fez sua descoberta indesejável.
Talvez tenha perseverado apenas porque já não tinha outra escolha e não podia
então começar uma outra coisa. Por fim, veio a reflexão de que, afinal de
contas, não se tem o direito de desesperar por não ver confirmadas as próprias
expectativas; deve-se fazer uma revisão dessas expectativas. Se os pacientes
histéricos remontam seus sintomas e traumas que são fictícios, então o fato
novo que surge é precisamente que eles criam tais cenas na fantasia, e
essa realidade psíquica precisa ser levada em conta ao lado da realidade
prática. Essa reflexão foi logo seguida pela descoberta de que essas fantasias
destinavam-se a encobrir a atividade auto-erótica dos primeiros anos de
infância, embelezá-la e elevá-la a um plano mais alto. E agora, de detrás das
fantasias, toda a gama da vida sexual da criança vinha à luz.
Com a atividade sexual dos primeiros anos de
infância também foi reconhecida a constituição herdada do indivíduo. A
disposição e a experiência estão aqui ligadas numa unidade etiológica
indissolúvel, pois a disposição exagera impressões - que de outra forma
teriam sido inteiramente comuns e não teriam nenhum efeito -, de modo a
transformá-las em traumas que dão margem a estímulos e fixações; por outro
lado, as experiências despertam fatores na disposição que, sem elas,
poderiam ter ficado adormecidos por muito tempo e talvez nunca se
desenvolvessem. Abraham (1907) deu a última palavra sobre a questão da
etiologia traumática quando ressaltou que a constituição sexual peculiar às
crianças é calculada precisamente para provocar experiências sexuais de uma
natureza particular, ou seja, traumas.
No começo, minhas declarações sobre a
sexualidade infantil basearam-se quase exclusivamente nos achados, da análise
de adultos, que remontavam ao passado. Não tive nenhuma oportunidade de fazer
observações diretas em crianças. Foi, portanto, uma grande vitória quando, anos
depois, tornou-se possível confirmar quase todas as minhas deduções através da
observação direta e da análise de crianças muito pequenas - vitória que foi
perdendo a sua magnitude à medida que pouco a pouco compreendíamos que a
natureza da descoberta era tal que na realidade deveríamos envergonhar-nos de
ter tido de fazê-la. Quanto mais se levassem adiante as observações em
crianças, mais evidentes os fatos se tornavam; porém o mais surpreendente de
tudo era constatar que tivesse havido tanta preocupação em menosprezá-los.
Essa convicção da existência e da importância
da sexualidade infantil, entretanto, só pode ser obtida, pelo método da
análise, partindo-se dos sintomas e peculiaridades dos neuróticos e
acompanhando-os até suas fontes últimas, cuja descoberta então explica o que há
nelas de explicável e permite que se modifique o que há de modificável.
Compreendo que se possa chegar a resultados
diferentes se, como fez recentemente C. G. Jung, se forma primeiro uma
concepção teórica da natureza do instinto sexual e procura-se então explicar a
vida das crianças a partir dessa base. Uma concepção dessa natureza será
forçosamente uma escolha arbitrária ou dependente de considerações
irrelevantes, e corre o risco de evidenciar-se inadequada ao campo a que se
está procurando aplicá-la. É verdade que também o método analítico leva a
certas dificuldades e obscuridades finais no tocante à sexualidade e à sua
relação com a vida total do indivíduo. Mas esses problemas não podem ser
eliminados pela especulação; devem aguardar solução através de outras
observações ou mediante observações em outros campos.
Pouco preciso dizer sobre a interpretação de
sonhos. Surgiu como os prenúncios da inovação técnica que eu adotara quando,
após um vago pressentimento, resolvi substituir a hipnose pela livre
associação. Minha busca de conhecimentos não se dirigira, de início, para a compreensão
dos sonhos. Não sei de nenhuma influência externa que tivesse atraído meu
interesse para esse assunto ou que me tivesse inspirado qualquer expectativa
valiosa. Antes de Breuer e eu nos separarmos, apenas tinha tido tempo de
comunicar-lhe, e numa única frase, que eu, àquela altura, estava sabendo como
traduzir os sonhos. Visto ter sido assim a descoberta, conclui-se que o simbolismo
na linguagem dos sonhos foi quase a última coisa a tornar-se acessível a mim,
pois as associações da pessoa que sonha nos ajudam muito pouco a compreender
símbolos. Como tenho o hábito de estudar sempre as próprias coisas antes de
procurar informações sobre elas em livros, pude chegar eu mesmo ao simbolismo
dos sonhos antes de ser a ele levado pela obra de Scherner sobre o assunto
[1861]. Só depois é que vim a apreciar em sua plena extensão essa modalidade de
expressão dos sonhos. Isso ocorreu em parte por influência das obras de Stekel,
cujos primeiros trabalhos têm muito mérito, mas que depois se desencaminhou
totalmente. A estreita ligação entre a interpretação psicanalítica dos sonhos e
a arte de interpretá-los segundo a prática tida em tão alta conta na
antigüidade, só tornou-se clara para mim muito depois. Mais tarde, descobri a
característica essencial e a parte mais importante da minha teoria dos sonhos,
ou seja, que a distorção dos sonhos é conseqüência de um conflito interno, uma
espécie de desonestidade interna - num autor que embora ignorando a medicina,
não ignorava a filosofia, o famoso engenheiro J. Popper, que publicou sua Phantasien
einer Realisten [1899] sob o nome de Lynkeys.
A interpretação de sonhos foi para mim um
alívio e um apoio naqueles árduos primeiros anos da análise, quando tive de
dominar a técnica, os fenômenos clínicos e a terapêutica das neuroses, tudo ao
mesmo tempo. Naquele período fiquei completamente isolado e, no emaranhado de
problemas e acúmulo de dificuldades, muitas vezes tive medo de me desorientar e
de perder a confiança em mim mesmo. A comprovação de minha hipótese de que uma
neurose tinha de tornar-se inteligível através da análise se arrastava, em
muitos pacientes, por um período de tempo desesperador; mas os sonhos desses
pacientes, que poderiam ser considerados análogos aos seus sintomas, quase
sempre confirmavam a hipótese.
Foi o meu êxito nessa direção que me permitiu
perseverar. Vem dessa época o hábito que adquiri de aferir a medida da
compreensão de um psicólogo pela sua atitude em face da interpretação de
sonhos; e tenho observado com satisfação que a maior parte dos adversários da
psicanálise evitam esse campo por completo, ou então, revelam uma flagrante
inabilidade quando tentam lidar com ele. Além do mais; logo me dei conta da
necessidade de levar a efeito uma auto-análise, e o fiz com a ajuda de uma
série de meus próprios sonhos que me conduziram de volta a todos os fatos da
minha infância, sendo ainda hoje de opinião que essa espécie de análise talvez
seja o suficiente para uma pessoa que sonhe com freqüência e não seja muito
anormal.
Com este relato da história do desenvolvimento
da psicanálise creio ter mostrado, melhor do que com uma descrição sistemática,
o que ela é. De início não percebi a natureza peculiar do que descobrira. Sem
hesitar, sacrifiquei minha crescente popularidade como médico, e restringi o
número de clientes nas minhas horas de consulta, para poder proceder a uma
investigação sistemática dos fatores sexuais em jogo na causação das neuroses
de meus pacientes; e isso me trouxe um grande número de fatos novos que
finalmente confirmavam minha convicção quanto à importância prática do fator
sexual. Ingenuamente dirigi-me a uma reunião da Sociedade de Psiquiatria e
Neurologia de Viena, presidida então por Krafft-Ebing (cf. Freud, 1896c), na
esperança de que as perdas materiais que voluntariamente sofri fossem
compensadas pelo interesse e reconhecimento dos meus colegas. Considerava
minhas descobertas contribuições normais à ciência e esperava que fossem
recebidas com esse mesmo espírito. Mas o silêncio provocado pelas minhas
comunicações, o vazio que se formou em torno de mim, as insinuações que me
foram dirigidas, pouco a pouco me fizeram compreender que as afirmações sobre o
papel da sexualidade na etiologia das neuroses não podem contar com o mesmo
tipo de tratamento dado ao comum das comunicações. Compreendi que daquele
momento em diante eu passara a fazer parte do grupo daqueles que “perturbaram o
sono do mundo”, como diz Hebbel e que não poderia contar com objetividade e
tolerância. Entretanto, desde que minha convicção quanto à exatidão geral de
minhas observações e conclusões era cada vez maior, e que a confiança no meu
próprio julgamento e minha coragem moral não era exatamente o que se pode
chamar de pequena, o resultado da situação não poderia ser posto em dúvida.
Dispus-me a acreditar que tinha tido a sorte de descobrir fatos e ligações
particularmente importantes, e resolvi aceitar o destino que às vezes acompanha
essas descobertas.
Imaginei o futuro da seguinte forma: - o êxito
terapêutico do novo método provavelmente garantiria a minha subsistência, mas a
ciência me ignoraria por completo enquanto eu vivesse; décadas depois, alguém
infalivelmente chegaria aos mesmos resultados - para os quais não era ainda
chegada a hora -, conseguiria que eles fossem reconhecidos e me honraria como
um precursor cujo fracasso fora inevitável. Enquanto isso, como Robinson
Crusoé, eu me instalava com o maior conforto possível em minha ilha deserta.
Quando lanço um olhar retrospectivo àqueles anos solitários, longe das pressões
e confusões de hoje, parece-me uma gloriosa época de heroísmo. Meu “splendid
isolation” não deixou de ter suas vantagens e encantos. Não tinha obrigação de
ler publicações nem de ouvir adversários mal informados; não estava sujeito à
influência de qualquer setor; não havia nada a me apressar. Aprendi a controlar
as tendências especulativas e a seguir o conselho não esquecido de meu mestre,
Charcot: olhar as mesmas coisas repetidas vezes até que elas comecem a falar
por si mesmas. Minhas publicações, para as quais encontrei editor, não sem um
pouco de dificuldade, sempre podiam não somente atrasar-me muito em relação aos
meus conhecimentos mas também serem adiadas quando eu quisesse, desde que não
havia nenhuma “prioridade” duvidosa a ser defendida. A Interpretação de
Sonhos, por exemplo, foi concluída, no essencial, no início de 1896 mas só
foi escrita em definitivo no verão de 1899. A análise de “Dora” terminou no fim
de 1899 [1900]; a história clínica foi escrita nas duas semanas seguintes, mas
só foi publicada em 1905. Enquanto isso, minhas obras não constavam das
resenhas críticas das revistas médicas, ou, quando excepcionalmente constavam,
era para serem rechaçadas com expressões desdenhosas ou de superioridade
compassiva. Ocasionalmente, um colega fazia referência a mim em uma de suas
publicações - sempre muito curta e nunca lisonjeira - em que eram usadas
palavras como “excêntrico”, “extremista”, ou “muito estranho”. Uma vez, um
assistente da clínica de Viena, em cuja Universidade eu dava ciclos de
conferências pediu-me permissão para freqüentar o curso. Prestava muita
atenção, mas não dizia nada; depois da última conferência, ofereceu-se para
acompanhar-me. Enquanto caminhávamos, disse-me que, com o conhecimento de seu
chefe, escrevera um livro combatendo os meus pontos de vista; lamentava muito,
contudo, não haver antes se informado melhor acerca dos mesmos através de
minhas conferências, pois nesse caso teria escrito o livro de maneira bem
diferente. Chegara a perguntar na clínica se não seria melhor ler antes A
Interpretação de Sonhos, mas aconselharam-no a não fazê-lo - não valia o
esforço. Então ele próprio comparou a estrutura da minha teoria, até onde a
compreendia, com a da Igreja Católica no tocante à consistência interna. No
interesse da salvação de sua alma, acredito que essa observação implicava certa
dose de simpatia. Mas ele concluiu dizendo que era tarde demais para alterar
qualquer coisa no livro, visto que já se achava no prelo. Não julgou necessário
fazer posteriormente nenhuma confissão pública da mudança de seus pontos de
vista em relação à psicanálise; preferiu, na qualidade de crítico regular de
uma revista médica, acompanhar o desenvolvimento desse assunto com comentários
irreverentes.
Minha suscetibilidade pessoal tornou-se
embotada, durante esses anos, para vantagem minha. Só não me tornei uma pessoa
amargurada por uma circunstância que nem sempre está presente para ajudar os
descobridores solitários. Eles são, em geral, atormentados pela necessidade de
explicar a falta de simpatia ou a aversão de seus contemporâneos e sentem essa
atitude como uma contradição angustiante à segurança de suas próprias
convicções. Eu não precisava me sentir assim, pois a teoria psicanalítica me
capacitava a compreender a atitude de meus contemporâneos e vê-la como uma
conseqüência natural das premissas analíticas fundamentais. Se era verdade que
o conjunto de fatos que eu descobri foram mantidos fora do conhecimento dos
próprios pacientes por resistências internas de natureza emocional, então essas
resistências forçosamente apareceriam também em pessoas sadias logo que alguma
fonte externa as levasse a um confronto com o que fora reprimido. Não era de
surpreender que fossem capazes de justificar essa rejeição de minhas idéias com
razões intelectuais, embora a razão fosse, de fato, de origem emocional. A
mesma coisa aconteceu seguidamente com pacientes; os argumentos que
apresentavam eram os mesmos e não muito brilhantes. Nas palavras de Falstaff,
os argumentos são “tão abundantes quanto as amoras silvestres.” A única
diferença era que com pacientes estávamos em condições de pressioná-los a fim
de induzi-los a perceber (insight) suas resistências e superá-las, ao
passo que lidando com pessoas pretensamente sadias não contávamos com essa
vantagem. Como compelir essas pessoas sadias a examinarem o assunto com
espírito frio e cientificamente objetivo constituía um problema insolúvel que
era melhor deixar que o tempo elucidasse. Na história da ciência, podemos ver
claramente que, com freqüência, proposições que de início só provocam
contradição, posteriormente vêm a ser aceitas, embora não tenham sido
apresentadas novas provas das mesmas.
Entretanto, ninguém poderia esperar que,
durante os anos em que eu sozinho representava a psicanálise, pudesse ter
desenvolvido um respeito especial pela opinião do mundo ou qualquer tendência à
acomodação intelectual.
II
A partir do ano de 1902, certo número de jovens
médicos reuniu-se em torno de mim com a intenção expressa de aprender, praticar
e difundir o conhecimento da psicanálise. O estímulo proveio de um colega que
experimentara, ele próprio, os efeitos benéficos da terapêutica analítica.
Reuniões regulares realizavam-se à noite em minha casa, travavam-se debates de
acordo com certas normas, e os participantes se esforçavam por encontrar sua
orientação nesse novo e estranho campo de pesquisa, e de despertar em outros o
interesse por ele. Um belo dia um jovem que fora aprovado numa escola de ensino
técnico apresentou-se com um manuscrito que indicava compreensão fora do comum.
Persuadimo-lo a cursar o Gymnasium [escola secundária] e a Universidade
e a dedicar-se ao aspecto não-médico da psicanálise. A pequena sociedade
adquiriu nele um secretário zeloso e digno de confiança e eu ganhei em Otto
Rank um auxiliar e colaborador dos mais fiéis.
O pequeno círculo logo se ampliou e no
transcorrer dos cinco anos seguintes muitas vezes mudou de composição. De um
modo geral, podia dizer a mim mesmo que quase não era inferior, em riqueza e
variedade de talento, à equipe de qualquer professor de clínica. Incluía, desde
o início, os que mais tarde viriam a desempenhar papel considerável, embora nem
sempre aceitável, na história do movimento psicanalítico. Naquela época, entretanto,
não se poderia ainda prever esses desenvolvimentos. Eu tinha todos os motivos
para estar satisfeito, e penso que fiz o possível para transmitir meu
conhecimento e experiência aos outros. Houve apenas duas circunstâncias
inauspiciosas que terminaram por me afastar internamente do grupo. Não consegui
estabelecer entre os seus membros as relações amistosas que devem prevalecer
entre homens que se acham empenhados no mesmo trabalho difícil, nem consegui
evitar a competição pela prioridade a que dá margem, com tanta freqüência, esse
tipo de trabalho em equipe. As dificuldades particularmente grandes ligadas ao
ensino da prática da psicanálise - responsáveis por grande parte das dissenções
havidas - eram patentes nessa Sociedade Psicanalítica de Viena, de caráter
particular. Eu mesmo não me aventurei a expor uma técnica e teoria ainda
inacabadas e em formação, com a autoridade que provavelmente teria capacitado
os outros a evitar certos desvios e suas conseqüências desastrosas. A
autoconfiança de trabalhadores intelectuais, sua independência prematura do
mestre, é sempre gratificante de um ponto de vista psicológico, mas só traz
vantagens para a ciência se esses trabalhadores preencherem certas condições
pessoais que não são, de maneira nenhuma, comuns. Para a psicanálise, em
particular, uma longa e severa disciplina, além de treinamento na
autodisciplina, teria sido necessária. Em vista da coragem revelada pela
devoção a um assunto olhado com tanta reserva, e tão pobre de perspectivas,
estava disposto a tolerar dos membros do grupo muita coisa que não devia
tolerar numa situação diferente. Além de médicos, o círculo incluía outras
pessoas - homens instruídos que haviam reconhecido algo importante na
psicanálise; escritores, pintores etc. Minha Interpretação de Sonhos e
meu livro sobre chistes, entre outros, mostraram desde o início que as teorias
da psicanálise não podem ficar restritas ao campo médico, mas são passíveis de
aplicação a várias outras ciências mentais.
Em 1907, contra todas as expectativas, a situação
mudou de repente. Parecia que a psicanálise havia discretamente despertado
interesse e angariado adeptos e que havia até mesmo alguns cientistas que
estavam prontos a reconhecê-la. Uma comunicação de Bleuler me informara antes
disso que minhas obras tinham sido estudadas e aplicadas no Burghölzli. Em
janeiro de 1907, pela primeira vez veio a Viena um membro da clínica de Zurique
- o Dr. Eitingon. Outras visitas se seguiram, que levaram a uma animada troca
de idéias. Finalmente, a convite de C.G.Jung, naquela época ainda médico
assistente de Burghölzli, realizou-se uma primeira reunião em Salzburg na
primavera de 1908, que congregou adeptos da psicanálise de Viena, Zurique e
outros lugares. Um dos primeiros resultados desse primeiro Congresso Psicanalítico
foi a fundação de um periódico intitulado Jahrbuch für psychoanalytische und
psycho-pathologische Forschungen sob a direção de Bleuler e Freud e editado
por Jung, que apareceu pela primeira vez em 1909. Essa publicação expressava a
estreita cooperação entre Viena e Zurique.
Repetidas vezes reconheci com gratidão os
grandes serviços prestados pela Escola de Psiquiatria de Zurique na difusão da
psicanálise, em particular por Bleuler e Jung, e não hesito em fazê-lo ainda
hoje, quando as circunstâncias mudaram tanto. Na verdade, não foi o apoio da
Escola de Zurique que fez despertar a atenção do mundo científico para a
psicanálise naquela época. O que acontecera foi que o período de latência tinha
terminado e por toda parte a psicanálise se tornava objeto de interesse cada
vez maior. Mas em todos os outros lugares, esse aumento de interesse de início
não produziu senão um vivo repúdio, quase sempre apaixonado, ao passo que em
Zurique, pelo contrário, um acordo em linhas gerais foi a nota dominante. Além
disso, em nenhum outro lugar havia um grupo tão coeso de partidários, nem uma
clínica pública posta a serviço das pesquisas psicanalíticas, nem um professor
de clínica que incluísse as teorias psicanalíticas como parte integrante de seu
curso de psiquiatria. O grupo de Zurique tornou-se assim o núcleo de pequena
associação que lutava pelo reconhecimento da análise. A única oportunidade de
aprender a nova arte e de nela trabalhar estava ali. A maior parte dos meus
seguidores e colaboradores de hoje chegou a mim via Zurique, mesmo aqueles que
se encontravam geograficamente muito mais perto de Viena do que da Suíça. Em
relação à Europa ocidental, onde estão os grandes centros de nossa cultura,
Viena ocupa uma posição marginal; e seu prestígio tem sido afetado, há muitos
anos, por fortes preconceitos. Os representantes das nações mais importantes se
reúnem na Suíça, onde a atividade intelectual é tão vívida; um foco de infecção
ali estava destinado a ser de grande importância para a difusão da “epidemia
psíquica”, como Hoche de Freiburg a denominou.
Segundo o testemunho de um colega que
presenciou acontecimentos no Burghölzli, parece que a psicanálise despertou
interesse ali muito cedo. Na obra de Jung sobre fenômenos ocultos, publicada em
1902, já havia alusão ao meu livro sobre a interpretação de sonhos. A partir de
1903 ou 1904, a psicanálise ocupava o primeiro plano de interesse. Depois de
estabelecidas relações pessoais entre Viena e Zurique, uma sociedade informal
foi também iniciada, em meados de 1907, no Burghölzli, onde os problemas da
psicanálise eram debatidos em reuniões regulares. Na aliança entre as escolas
de Viena e Zurique, os suíços não eram de modo algum meros recipientes. Já
haviam produzido trabalhos científicos de grande mérito, cujos resultados foram
úteis à psicanálise. As experiências de associação iniciadas pela Escola de
Wundt tinham sido interpretadas por eles num sentido psicanalítico e revelaram
possibilidades de aplicação inesperadas. Através delas, tornara-se possível
chegar a uma rápida confirmação experimental das observações psicanalíticas e a
demonstrar diretamente a estudantes conexões a respeito das quais um analista
poderia apenas falhar-lhes. A primeira ponte ligando a psicologia experimental
à psicanálise fora levantada.
No tratamento psicanalítico, os experimentos de
associação permitem uma análise provisória qualitativa do caso, mas não
proporcionam nenhuma contribuição essencial à técnica, podendo-se prescindir
deles na prática analítica. Mais importante, contudo, foi outra realização da
Escola de Zurique, ou de seus líderes, Bleuler e Jung. O primeiro mostrou que
se poderia esclarecer grande número de casos, puramente psiquiátricos,
reconhecendo neles os mesmos processos reconhecidos pela psicanálise como
presentes nos sonhos e nas neuroses (mecanismos freudianos); e Jung [1907]
aplicou com êxito o método analítico de interpretação às manifestações mais
estranhas e obscuras da demência precoce (esquizofrenia), de modo a trazer à
luz suas fontes presentes na história da vida e nos interesses do paciente.
Depois disso, foi impossível aos psiquiatras ignorar por mais tempo a
psicanálise. A grande obra de Bleuler sobre a esquizofrenia (1911), na qual o
ponto de vista psicanalítico foi colocado em pé de igualdade com o
clínico-sistemático, completou esse sucesso.
Não deixarei de ressaltar uma divergência que
já se podia observar naquela época entre os rumos seguidos pelo trabalho das
duas escolas. Já em 1897 eu publicara a análise de um caso de esquizofrenia, o
qual, contudo, era de natureza paranóide, de modo que a solução do mesmo não
podia ser influenciada pela impressão causada pelas análises de Jung. Mas para
mim o ponto importante fora não tanto a possibilidade de interpretar os
sintomas, mas o mecanismo psíquico da doença e, acima de tudo, a concordância
desse mecanismo com o da histeria, que já fora descoberto. Naquela época,
nenhuma luz fora lançada sobre as diferenças entre os dois mecanismos, pois eu
ainda visava a uma teoria da libido nas neuroses, que iria explicar todos os fenômenos
neuróticos e psicóticos como procedentes de vicissitudes anormais da libido,
isto é, como desvios do seu emprego normal. Este ponto de vista escapou aos
pesquisadores suíços. Que eu saiba, até hoje Bleuler defende o ponto de vista
de que as várias formas de demência precoce têm uma causação orgânica; e no
Congresso de Salzburg, em 1908, Jung, cujo livro sobre essa doença surgira em
1907, apoiou a teoria tóxica de sua causação, que não leva em conta a teoria da
libido, embora, é verdade, não a exclua. Posteriormente (1912), foi desastrado
nesse mesmo ponto, dando demasiada importância ao material que antes se
recusara a utilizar.
Há uma terceira contribuição feita pela Escola
Suíça, a ser talvez atribuída totalmente a Jung, à qual eu não dou tanto valor
quanto outros, menos ligados a esses assuntos do que eu. Refiro-me à teoria dos
“complexos” que decorreu dos Diagnostische Assoziationsstudien [Estudos
sobre Associação de Palavras] (1906). Nem ela em si mesma produziu uma
teoria psicológica, nem mostrou-se capaz de fácil incorporação ao contexto da
teoria psicanalítica. O termo “complexo”, por outro lado, foi naturalizado, por
assim dizer, pela linguagem psicanalítica; é um termo conveniente e muitas
vezes indispensável para resumir um estado psicológico de maneira descritiva.
Nenhuma das outras palavras inventadas pela psicanálise para atender às suas
próprias necessidades alcançou uma popularidade tão generalizada ou foi tão mal
aplicada em prejuízo da formação de conceitos mais claros. Os analistas começaram
a falar entre si de “retorno de um complexo” quando queriam dizer um “retorno
do reprimido”, ou adquiriram o hábito de dizer “tenho um complexo contra ele”,
quando a expressão correta seria “uma resistência contra ele”.
A partir de 1907, quando as Escolas de Viena e
Zurique se uniram, a psicanálise tomou o extraordinário impulso cujo ímpeto
ainda hoje se sente; isto é indicado tanto pela difusão da literatura
psicanalítica e pelo constante aumento do número de médicos que a praticam ou
estudam, como pela freqüência com que é atacada em congressos e associações
eruditas. Penetrou nas terras mais distantes e por toda a parte não somente
deixou perplexos os psiquiatras, como dominou a atenção do público culto e de
investigadores de outros campos da ciência. Havelock Ellis, que tem acompanhado
seu desenvolvimento com simpatia, embora sem jamais se intitular um adepto,
escreveu em 1911 num relatório para o Congresso Médico de Australásia: “A
psicanálise de Freud é agora defendida e praticada não somente na Áustria e na
Suíça, como também nos Estados Unidos, Inglaterra, Índia, Canadá, e, não
duvido, na Australásia. Um médico do Chile (provavelmente alemão) falou no
Congresso Internacional de Buenos Aires, em 1910, em favor da existência da
sexualidade infantil e exaltou os efeitos da terapêutica psicanalítica sobre os
sintomas obsessivos. Um neurologista inglês da Índia Central (Berkeley-Hill)
informou-me, através de um ilustre colega que visitava a Europa, que as
análises de indianos muçulmanos por ele feitas demonstraram que a etiologia de
suas neuroses não era diferente das que encontramos em nossos pacientes
europeus.
A introdução da psicanálise na América do Norte
foi acompanhada de homenagens muito especiais. No outono de 1909, Stanley Hall,
Presidente da Clark University, de Worcester, Massachusetts, convidou a Jung e
a mim para participarmos das comemorações do vigésimo aniversário da fundação
da Universidade, pronunciando uma série de conferências em alemão. Para nossa
grande surpresa, verificamos que os membros daquela Universidade, especializada
em educação e filosofia, pequena mas muito prestigiada, eram tão desprovidos de
preconceitos, que estavam familiarizados com toda a literatura psicanalítica e
a haviam incluído em suas aulas. Na América tão puritana foi possível, pelo
menos nos círculos acadêmicos, debater livre e cientificamente tudo o que na
vida comum é considerado censurável. As cinco conferências que improvisei em
Worcester apareceram numa tradução inglesa no Americam Journal of Psychology
[1910a], e foram pouco depois publicadas em alemão sob o título Uber
Psychoanalyse. Jung leu um trabalho sobre experiências de associação no
diagnóstico e outro sobre os conflitos da mente da criança. Fomos agraciados
com o título honorário de Doutor em Leis. Durante aquela semana de comemorações
em Worcester, a psicanálise foi representada por cinco pessoas: além de Jung e
de mim, lá estava Ferenczi, que me acompanhou na viagem, Ernest Jones, então na
Universidade de Toronto (Canadá) e agora em Londres, e A.A. Brill, que já
exercia a psicanálise em Nova Iorque.
A relação pessoal mais importante que resultou
da reunião em Worcester foi com James J. Putnam, Professor de Neuropatologia na
Universidade de Harvard. Anos antes, revelara um ponto de vista desfavorável à
psicanálise, mas tendo naquela ocasião se reconciliado rapidamente com ela
passou a recomendá-la aos seus compatriotas e colegas numa série de
conferências que eram tão ricas de conteúdo quanto brilhantes na forma. O
prestígio que tinha em toda a América graças ao seu elevado caráter moral e
inflexível amor à verdade, foi de grande valia para a psicanálise e a protegeu
das denúncias, que muito provavelmente a teriam de outra forma aniquilado. Mais
tarde, entregando-se demais à acentuada inclinação ética e filosófica de sua
natureza, Putnam fez o que se me afigura uma exigência impossível - esperava
que a psicanálise se colocasse a serviço de uma concepção filosófico-moral
particular do Universo - mas continua a ser a coluna mestra da psicanálise em sua
terra natal.
A difusão posterior do movimento deve muito a
Brill e a Jones: em suas publicações chamaram a atenção de seus compatriotas,
com incansável persistência, para os fatos fundamentais facilmente observáveis
da vida cotidiana, dos sonhos e da neurose. Brill reforçou essa contribuição
com sua atividade médica e com as traduções de minhas obras, e Jones com suas
conferências instrutivas e seu talento para o debate nos congressos dos Estados
Unidos. A ausência de uma tradição científica profundamente enraizada e a menor
rigidez da autoridade oficial nos Estados Unidos foram uma vantagem decisiva
para o impulso dado por Stanley Hall. Aquele país caracterizou-se, desde o
início, pelo fato de diretores e superintendentes de hospitais de doentes
mentais demonstrarem tanto interesse pela análise quanto os clínicos
independentes. Mas, por isso mesmo, é evidente que teria de ser nos velhos
centros de cultura, onde maior resistência foi revelada, que se iria travar a
luta decisiva em favor da psicanálise.
Entre os países europeus, a França se tem
mostrado até agora o menos receptivo à psicanálise, embora um trabalho de
mérito em francês, de autoria de A. Maeder de Zurique, tenha facilitado o
acesso às teorias psicanalíticas. Os primeiros sinais de simpatia partiram das
províncias: Morichau-Beauchant (Pointers) foi o primeiro francês a aderir
publicamente à psicanálise. Régis e Hesnard (Bordéus) recentemente [1914]
tentaram diluir os preconceitos dos seus compatriotas contra as novas idéias
com uma minuciosa exposição, a qual, entretanto, nem sempre denota compreensão,
sobretudo no tocante ao simbolismo. Na própria Paris, ainda parece reinar a
convicção (à qual o próprio Janet deu eloqüente expressão no Congresso de
Londres em 1913) de que tudo de bom na psicanálise é repetição dos pontos de
vista de Janet com insignificantes modificações, e o mais não presta. Nesse
Congresso, na verdade, Janet teve de submeter-se a uma série de retificações
feitas por Ernest Jones, que pôde assim fazê-lo ver seu conhecimento insuficiente
do assunto . Mesmo discordando de suas pretensões, não podemos, entretanto,
esquecer o valor de sua contribuição na psicologia das neuroses.
Na Itália, depois de inícios promissores, não
surgiu nenhum interesse real. Quanto à Holanda, a análise logo teve ali o
acesso facilitado pelas ligações pessoais com: Van Emden, Van Ophuijsen, Van
Renterghem (Freud en zijn School) [1913] e os dois Stärckes que lá
trabalham ativamente, ocupados tanto com a prática como com a teoria. Nos
círculos científicos da Inglaterra o interesse pela psicanálise vem-se
desenvolvendo muito lentamente, mas tudo leva a crer que o sentido prático dos
ingleses e seu grande amor à justiça lhe assegurarão (à psicanálise) um
brilhante futuro.
Na Suécia, P. Bjerre, sucessor da clínica de
Wetterstrand, abandonou a sugestão hipnótica, pelo menos por algum tempo, em
favor do tratamento analítico. R. Vogt (Cristânia) já havia demonstrado
simpatia pela psicanálise em seu Psykiatriens grundtraek, publicado em
1907, de modo que o primeiro livro didático de psiquiatria a fazer referência à
psicanálise foi escrito na Noruega. Na Rússia, a psicanálise tornou-se bastante
conhecida e amplamente difundida; quase todas as minhas obras, assim como as de
outros adeptos da análise, foram traduzidas para o russo. Mas uma compreensão
verdadeiramente profunda das teorias analíticas ainda não se revelou na Rússia,
de modo que as contribuicões de médicos russos até o momento não são muito
importantes. O único médico com formação analítica naquele país é M. Wulff, que exerce a clínica em Odessa. A
introdução da psicanálise nos círculos
científicos e literários poloneses deve-se, sobretudo, a L. Jekels. Da Hungria,
geograficamente tão perto da Áustria, e cientificamente tão distante, surgiu um
único colaborador, S. Ferenczi, mas que, em compensação, vale por uma sociedade
inteira.
Da posição da psicanálise na Alemanha, o que se
pode dizer é que ela ocupa o ponto central dos debates científicos e provoca as
mais enfáticas expressões de discordância tanto entre médicos como entre
leigos; essas discussões ainda não terminaram, ao contrário, estão
constantemente irrompendo de novo, por vezes, com intensidade ainda maior. Lá
nenhuma instituição educacional reconheceu até agora a psicanálise. Clínicos
bem-sucedidos que a empregam são poucos; só algumas instituições, como as de
Binswanger em Kreuzlingen (solo suíço) e a de Marcinowski, no Holstein, lhe
abriram as portas. Um dos mais ilustres representantes da análise, Karl
Abraham, ex-assistente de Bleuler, afirma-se na atmosfera crítica de Berlim.
Pode parecer estranho que esse estado de coisas continue inalterado por tantos
anos se não se levar em conta que o relato aqui apresentado só representa os
aspectos exteriores. Não se deve atribuir demasiada importância à rejeição dos
representantes oficiais da ciência, e dos chefes de instituições e suas equipes
de colaboradores. É natural que os adversários da psicanálise manifestem com
veemência seus pontos de vista, enquanto seus adeptos intimidados mantêm
silêncio. Alguns desses últimos, cujas primeiras contribuições à análise
criaram expectativas favoráveis, ultimamente se retiraram do movimento sob a
pressão das circunstâncias. O próprio movimento avança com segurança, embora em
silêncio; vem constantemente ganhando novos adeptos entre psiquiatras e leigos,
atrai um número cada vez maior de novos leitores para a literatura
psicanalítica e, exatamente por esse motivo, obriga os adversários a esforços
defensivos cada vez mais violentos. Pelo menos uma dúzia de vezes durante os
últimos anos li em relatórios de congressos e de órgãos científicos, ou em
resenhas críticas de certas publicações, que agora a psicanálise está morta,
derrotada e eliminada de uma vez por todas. A melhor resposta a isso seria nos
termos do telegrama de Mark Twain ao jornalista que publicou a notícia falsa de
sua morte: “Informação sobre minha morte muito exagerada”. Depois de cada um
desses obituários a psicanálise ganhava novos adeptos e colaboradores ou
adquiria novos canais de publicidade. Afinal de contas, ser declarado morto é
melhor do que ser enterrado em silêncio.
Passo a passo com a expansão da psicanálise no
espaço processou-se uma expansão no seu conteúdo; estendeu-se do campo das
neuroses e da psiquiatria a outros campos do conhecimento. Não vou entrar em
detalhes sobre esse aspecto de seu desenvolvimento visto que isso já foi muito
bem feito por Rank e Sachs [1913] num volume (um dos Grenzfragen de
Löwenfeld) que aborda, em minúcias, precisamente esse aspecto da pesquisa
analítica. Além do mais, esse desenvolvimento está ainda na infância; pouco
trabalho foi feito e ele consiste, em sua maior parte, em experiências apenas
iniciadas e, de resto, em nada mais que planos. Nenhuma pessoa sensata verá
nisso motivo de censura. Uma enorme massa de trabalho se apresenta a um pequeno
número de trabalhadores, a maioria dos quais tem como ocupação principal outro
tipo de atividade e só pode apresentar as qualificações de um amador em relação
aos problemas técnicos dessas áreas da ciência, que desconhecem. Esses
trabalhadores, procedentes da psicanálise, não fazem nenhum segredo de ser
amadorismo. Sua finalidade é aenas servir de sinaleiros e de substitutos
provisórios dos especialistas e pôr à disposição deles a técnica e os
princípios analíticos até a época em que possam, os próprios especialistas,
tomar a si o trabalho. Que os resultados alcançados não tenham deixado, apesar
de tudo, de ser consideráveis, deve-se em parte à fertilidade do método
analítico e, em parte, à circunstância de que já existem alguns pesquisadores
não-médicos que fizeram da aplicação da psicanálise às ciências mentais sua
profissão na vida.
A maior parte dessas aplicações da análise
remonta, sem dúvida, a uma sugestão feita em minhas primeiras obras analíticas.
O exame analítico de pessoas neuróticas e os sintomas neuróticos de pessoas
normais me levaram a supor a existência de condições psicológicas que haveriam
de ultrapassar a área do conhecimento na qual tinham sido descobertos. Sendo
assim, a análise nos proporcionou não somente a explicação de manifestações
patológicas, como revelou sua conexão com a vida mental normal e desvendou
relações insuspeitadas entre a psiquiatria e as demais ciências que lidam com
as atividades da mente. Certos sonhos típicos, por exemplo, ofereceram a
explicação de alguns mitos e contos de fada. Riklin [1908] e Abraham [1909]
seguiram essa pista e iniciaram as pesquisas dos mitos, que foram completadas
de forma a atender às exigências, mesmo de padrões técnicos, nas obras de Rank
sobre mitologia [p. ex. 1909, 1911b]. Investigações posteriores sobre o
simbolismo dos sonhos levaram ao âmago dos problemas da mitologia, do folclore
(Jones [p. ex. 1910 e 1912] e Storfer [1914]) e às abstrações da religião.
Causou profunda impressão à audiência de um dos Congressos psicanalíticos a
demonstração feita por um discípulo de Jung, da correspondência entre as
fantasias esquizofrênicas e as cosmogonias dos tempos e raças primitivos. O
material mitológico recebeu depois ulterior elaboração (que, embora discutível,
não deixou de ser muito interessante) por parte de Jung, em obras que tentavam
correlacionar as neuroses com fantasias religiosas e mitológicas.
A partir da investigação dos sonhos, uma outra
pista nos levou à análise de obras de imaginação e por fim à análise de seus
criadores - os escritores e artistas. Ainda numa fase inicial, descobriu-se que
os sonhos inventados por escritores muitas vezes prestam-se à análise da mesma
forma que os sonhos verdadeiros (cf. Gradiva [1907a]). A concepção da atividade
mental inconsciente possibilitou fazer-se uma idéia preliminar da natureza da
atividade criadora na literatura de imaginação, e a compreensão, adquirida no
estudo dos neuróticos, do papel desempenhado pelos impulsos instintivos nos
permitiu descobrir as fontes da produção artística e nos colocou face a dois
problemas: como o artista reage a essa instigação e quais os meios que ele
emprega para disfarçar suas reações. A maioria dos analistas que têm interesses
gerais já contribuíram com algo para a solução desses problemas, que são os
mais fascinantes das aplicações possíveis da psicanálise. Naturalmente, aqui
também não faltou a hostilidade da parte de pessoas que nada sabiam da
psicanálise, apresentando as mesmas manifestações que ocorreram no campo
original da pesquisa psicanalítica - as mesmas concepções errôneas e rejeições
veementes. Era de esperar-se desde o início que, quaisquer que fossem as
regiões em que a psicanálise penetrasse, ela teria inevitavelmente de enfrentar
as mesmas lutas com os donos do campo. Alguns setores, entretanto, ainda não
tiveram sua atenção despertada para essas tentativas de invasão que os aguardam
no futuro. Entre as aplicações rigorosamente científicas da análise à
literatura, o exaustivo trabalho de Rank sobre o tema do incesto [1912] é
certamente o mais importante. O assunto está fadado a despertar a maior
impopularidade. Até agora tem sido pouco o trabalho de aplicação da psicanálise
às ciências da linguagem e da história. Eu próprio me aventurei a abordar pela
primeira vez os problemas colocados pela psicologia da religião traçando um
paralelo entre o ritual religioso e os cerimoniais dos neuróticos (1907b). O
Dr. Pfister, pastor em Zurique, remontou a origem do fanatismo religioso às
perversões eróticas, em seu livro sobre a devoção do Conde von Zinzendorf
[1910], bem como em outras contribuições. Nas últimas obras da escola de
Zurique, entretanto, constatamos a presença de idéias religiosas na análise em
lugar do resultado oposto que estivera em vista.
Nos quatro ensaios intitulados Totem e Tabu
[1912-13] tentei examinar os problemas de antropologia social à luz da
psicanálise; esta linha de investigação leva diretamente às origens das
instituições mais importantes de nossa civilização - da estrutura do Estado, da
moralidade e da religião - e, além disso, da proibição contra o incesto e da
consciência. Sem dúvida, ainda é muito cedo para saber até que ponto essas
conclusões poderão resistir à crítica.
O primeiro exemplo de uma aplicação da
modalidade analítica de pensamento aos problemas da estética estava contido em
meu livro sobre chistes [1905c]. Afora isso, tudo está ainda aguardando
trabalhadores, que podem esperar uma colheita particularmente rica neste campo.
Ressentimo-nos da ausência absoluta de colaboradores especializados em todos
esses ramos do conhecimento, e com o fim de atraí-los, Hanns Sachs fundou, em
1912, o periódico Imago editado por ele e Rank. Hitschmann e von
Winterstein deram um primeiro passo, examinando sob o ângulo psicanalítico
sistemas filosóficos e a personalidade de seus autores: nesse campo há grande
necessidade de uma investigação mais ampla e profunda.
As descobertas revolucionárias da psicanálise
no tocante à vida mental das crianças - o papel nela desempenhado pelos
impulsos sexuais (von Hug-Hellmuth [1913]) e o destino daqueles componentes da
sexualidade inúteis para a reprodução - necessariamente cedo fariam a atenção
voltar-se para a educação e promoveriam tentativas de colocar os pontos de
vista analíticos na vanguarda desse campo de trabalho. Deve-se ao Dr. Pfister
ter iniciado, com verdadeiro entusiasmo, a aplicação da psicanálise nessa
direção e ter chamado para ela as atenções de clérigos e de interessados em
educação. (Cf. The Psycho-Analytic Method, 1913). Conseguiu granjear a
simpatia e a participação de grande número de professores suíços. Diz-se que
outros colegas de profissão compartilham de seus pontos de vista mas preferem
manter-se cautelosamente em segundo plano. Uma parte dos psicanalistas de Viena
que se afastaram da psicanálise parece ter chegado a uma espécie de combinação
de medicina com educação.
Com este esboço incompleto tentei dar uma idéia
da riqueza ainda incalculável de conexões que surgiram entre a psicanálise
médica e outros campos da ciência. Existe aí material de trabalho para uma
geração de pesquisadores, e não duvido de que ele será realizado tão logo as
resistências contra a psicanálise sejam superadas em seu campo de origem.
Escrever a história dessas resistências seria,
creio eu, infrutífero e inoportuno, no momento. A história não é muito
lisonjeira para os homens de ciência dos nossos dias. Mas devo logo acrescentar
que jamais me ocorreu menosprezar os adversários da psicanálise simplesmente
por serem adversários - exceção feita aos poucos indivíduos indignos, aos
aventureiros e aproveitadores, que sempre aparecem em ambos os lados nos tempos
de guerra. Sabia muito bem como explicar o comportamento desses antagonistas e,
além disso, aprendera que a psicanálise traz à tona o que há de pior nas
pessoas. Mas resolvera não dar resposta aos meus adversários e, na medida de
minha influência, evitar que outros se envolvessem em polêmicas. Tendo em vista
a peculiaridade da controvérsia sobre a psicanálise, pareceu-me bem pouco
provável que o debate público ou por escrito levasse a alguma coisa; já sabia o
caminho a ser seguido pela maioria em congressos e reuniões e nunca fiz muita
fé na razoabilidade e educação dos cavalheiros que a mim se opunham. A
experiência demonstra que apenas pouquíssimas pessoas conseguem manter a linha
- para não falar na objetividade - numa discussão científica, e a impressão que
me causam essas brigas científicas sempre foi odiosa. Essa minha atitude talvez
tenha sido mal interpretada; talvez me tenham julgado de tão boa natureza ou
tão facilmente intimidável que não havia necessidade de se ter consideração por
mim. Isso era um engano; posso insultar e me enfurecer tanto quanto qualquer
um; mas não tenho a arte de expressar essas emoções subjacentes de forma
publicável e, por isso, prefiro abster-me por completo.
Sob certos aspectos talvez tivesse sido melhor
que eu houvesse dado livre curso a minhas próprias paixões e às dos que me
cercavam. Todos já ouvimos falar da interessante tentativa de explicar a
psicanálise como um produto do ambiente de Viena. Janet não se acanhou de
utilizar esse argumento, já agora em 1913, embora ele próprio com certeza se
orgulhe de ser parisiense, e Paris não possa ser considerada uma cidade de
moral mais rigorosa que Viena. Segundo essa teoria, a psicanálise, e em
particular a idéia de que as neuroses decorrem de perturbações da vida sexual,
só poderia ter surgido numa cidade como Viena - de uma atmosfera de
sensualidade e imoralidades estranhas a outras cidades - não passando de um
reflexo, uma projeção teórica por assim dizer, dessas condições peculiares a
Viena. Ora, não sou nenhum bairrista; mas essa teoria, me parece de um absurdo
fora do comum - tão absurda mesmo, que às vezes me sinto inclinado a supor que
me acusarem de ser vienense é apenas um substitutivo eufemístico de outra
acusação que ninguém ousa fazer abertamente. Se as premissas nas quais se
baseia o argumento fossem o oposto do que são, então talvez valesse a pena
dar-lhes ouvido. Se houvesse uma cidade na qual os habitantes se impusessem
restrições excepcionais no tocante à satisfação sexual, e ao mesmo tempo
revelassem acentuada tendência a graves perturbações neuróticas, essa cidade
poderia por certo dar margem, na mente de um observador, à idéia de que as duas
circunstâncias tinham alguma relação entre si, e que uma dependia da outra. Mas
nenhuma dessas duas circunstâncias se aplica a Viena. Os vienenses não são mais
abstinentes nem mais neuróticos do que os habitantes de qualquer outra capital.
Existe um pouco menos de constrangimento - menos pudicícia - em relação a sexo
do que nas cidades do oeste e do norte que tanto se orgulham de sua castidade.
Essas características peculiares de Viena serviriam mais provavelmente para
desorientar o observador do que para esclarecê-lo quanto à acusação das neuroses.
No entanto, Viena tem feito o possível para
negar sua participação na gênese da psicanálise. Em nenhum outro lugar, a
indiferença hostil da parte erudita e educada da população para com o analista
é tão evidente como em Viena.
Pode ser que minha política de evitar ampla
publicidade seja, em parte, responsável por isso. Se eu tivesse incentivado ou
permitido tempestuosos debates com as sociedades médicas de Viena sobre a
psicanálise, talvez eles tivessem servido para descarregar todas as paixões e
para dar livre curso a todas as injúrias e ofensas que estavam na língua ou no
coração dos nossos adversários - daí, talvez, o anátema contra a psicanálise
tivesse sido superado e ela agora não fosse mais uma estranha em sua cidade natal.
Aliás, o poeta deve estar com a razão quando faz Wallestein dizer:
Doch das vergeben mir die Wiener nicht,
dass ich um ein
Spektakel sie betrog.
A tarefa que estava acima da minha capacidade
de fazer ver os adversários da psicanálise suaviter in modo sua
injustiça e arbitrariedade - foi realizada com grande habilidade por Bleuler
num artigo escrito em 1910, “A Psicanálise de Freud: Uma Defesa e Algumas
Observações Críticas”. Seria mais do que natural meu elogio a esse trabalho
(que faz críticas a ambos os lados); por isso apresso-me em apontar nele as
coisas das quais discordo. Acho que ainda é parcial, ou seja, complacente
demais com os defeitos dos inimigos da psicanálise e muito rigoroso com as
falhas de seus partidários. Essa característica do artigo talvez explique por
que o parecer público de um psiquiatra de tamanha reputação, de capacidade e
independência tão indiscutíveis, não teve uma influência maior sobre seus colegas.
Não deveria surpreender ao autor de Affectivit (Afetividade) (1906) que
a influência de uma obra seja determinada não pelo peso dos argumentos, mas
pelo tom emocional da obra. Outra parte de sua influência - esta sobre os
seguidores da psicanálise - foi destruída posteriormente pelo próprio Bleuler,
quando em 1913 mostrou o lado oposto de sua atitude para com a psicanálise no
seu “Criticism of the Freudian Theory” (“Crítica da Teoria Freudiana”). Nesse
artigo, ele abala tanto a estrutura da teoria psicanalítica que nossos
adversários devem ter ficado satisfeitos com a ajuda que lhes foi dada por esse
defensor da psicanálise. Esses julgamentos contrários de Bleuler, entretanto,
não se baseiam em novos argumentos ou melhores observações e sim na insuficiência
de seus próprios conhecimentos, a qual ele não mais admite, como o fez em suas
primeiras obras. Parecia, portanto, que uma perda quase irreparável ameaçava a
psicanálise. Mas em sua última publicação, “Criticisms of my Schizophrenia”
(“Críticas ao meu livro Esquizofrenia”) (1914), Bleuler reúne suas
forças em face dos ataques feitos contra ele por haver introduzido a
psicanálise em seu livro sobre esquizofrenia, e faz o que ele próprio denomina
de uma “afirmação pretensiosa”. “Mas agora farei uma afirmação pretensiosa:
considero que até o momento as várias escolas de psicologia contribuíram muito
pouco para a explicação da natureza das doenças e sintomas psicogênicos, mas
que a psicologia profunda tem algo a oferecer a uma psicologia ainda por nascer,
da qual precisam os médicos para poderem compreender seus pacientes e curá-los
racionalmente; e creio mesmo que em minha Schizophrenia dei um passo,
ainda que muito pequeno, no sentido dessa compreensão. As duas primeiras
afirmações por certo são corretas; a última talvez esteja errada.”
Visto que por “psicologia profunda” ele não
quer dizer outra coisa senão psicanálise, podemos por enquanto contentar-nos
com esse reconhecimento.
lII
Mach
es kurz!
Am
Jüngsten Tag ist’s nur ein Furz!
GOETHE
Dois anos depois do primeiro Congresso privado
de psicanálise, realizou-se o segundo, dessa vez em Nuremberg, em março de
1910. No intervalo entre os dois, influenciado em parte pela boa receptividade
obtida nos Estados Unidos, pela hostilidade cada vez maior nos países de língua
alemã e pelo inesperado apoio da escola de Zurique, fiz um projeto que, com a
ajuda de meu amigo Ferenczi, realizei nesse segundo Congresso. O que tinha em
mente era organizar o movimento psicanalítico, transferir o seu centro para
Zurique e dotá-lo de um chefe que cuidasse de seu futuro. Como esse esquema
encontrou muita oposição entre os partidários da psicanálise, apresentarei, em
detalhes, os motivos que me levaram a formulá-lo. Espero que esses motivos me
justifiquem, muito embora reconheça que o que fiz não foi, na verdade, muito
prudente.
Achava que a localização do novo movimento em
Viena longe de servir-lhe de recomendação, muito pelo contrário, o comprometia.
Um lugar como Zurique, no coração da Europa, onde um professor universitário
havia aberto as portas de sua instituição à psicanálise, parecia-me muito mais
promissor. Via também uma segunda desvantagem em minha própria pessoa, sobre a
qual era difícil formar uma opinião por causa das manifestações de admiração e
de ódio provenientes das diferentes facções: ou era um comparado a Colombo
Darwin e Kepler ou taxado de PGP (paralisia geral progressiva). Desejei,
portanto, retirar para o segundo plano tanto a mim como à cidade onde nasceu a
psicanálise. Além disso, eu já não era jovem; vi que havia uma longa estrada à
frente, e me oprimia a idéia de que o dever de ser um líder tivesse recaído em
mim tão tarde na vida. Sentia, porém, que deveria haver alguém na liderança.
Conhecia muito bem as armadilhas que aguardam quem quer que comece a exercer a
psicanálise e esperava poder evitá-las delegando poderes a uma autoridade que
estivesse preparada para aconselhar e orientar. Essa posição, que fora de
início ocupada por mim, dado o meu acerto de quinze anos de experiências, devia
ser agora transferida para um homem mais jovem, que então, naturalmente,
ocuparia meu lugar após a minha morte. Esse homem só poderia ser C. G. Jung,
uma vez que Bleuler era de minha própria geração; tinha a seu favor dotes
excepcionais, as contribuições que já prestara à psicanálise, sua posição
independente e a impressão de firme energia que sua personalidade transmitia.
Além disso, parecia estar disposto a entrar num bom relacionamento pessoal
comigo e, em consideração a mim, a abrir mão de certos preconceitos raciais que
alimentara anteriormente. Eu não tinha, na ocasião, a menor idéia de que apesar
de todas essas vantagens a escolha era a mais infeliz possível, que eu havia
escolhido uma pessoa incapaz de tolerar a autoridade de outra, mais incapaz
ainda de exercê-la ele próprio, e cujas energias se voltavam inteiramente para
a promoção de seus próprios interesses.
Julguei necessário formar uma associação
oficial porque temia os abusos a que a psicanálise estaria sujeita logo que se
tornasse popular. Deveria haver alguma sede cuja função seria declarar: “Todas
essas tolices nada têm que ver com a análise; isto não é psicanálise”. Nas
sessões dos grupos locais (que reunidos constituíram a associação
internacional) seria ensinada a prática da psicanálise e seriam preparados
médicos, cujas atividades recebiam assim uma espécie de garantia. Além disso,
visto que a ciência oficial lançara um anátema solene contra a psicanálise e
tinha declarado um boicote contra médicos e instituições que a praticassem,
achei que seria conveniente os partidários da psicanálise se reunirem para uma
troca de idéias amistosa, e para apoio mútuo.
Isso, e nada mais, foi o que esperava alcançar
com a fundação da “Associação Psicanalítica Internacional”. Mas tudo leva a
crer que era querer demais. Do mesmo modo que os meus adversários iriam
descobrir que não era possível lutar contra a corrente do novo movimento, assim
também eu acabaria percebendo que este não seguiria a direção que eu desejava
vê-lo seguir. As propostas feitas por Ferenczi em Nuremberg foram adotadas, é
verdade; Jung foi eleito presidente e escolheu Riklin para seu Secretário;
concordou-se quanto à publicação de um boletim que devia ligar a Central
Executiva com os grupos locais. Declarou-se que o objetivo da Associação era
“promover e apoiar a ciência da psicanálise fundada por Freud, tanto como
psicologia pura como em sua aplicação à medicina e às ciências mentais e
cultivar o apoio mútuo entre os seus membros para que fossem desenvolvidos
todos os esforços no sentido da aquisição e difusão de conhecimentos
psicanalíticos”. Só o grupo de Viena opôs-se vivamente ao projeto. Adler
afirmou, com grande agitação, temer que se pretendesse exercer a “censura e
restrições sobre a liberdade científica”. Finalmente, os vienenses cederam,
depois de se haverem assegurado de que a sede da Associação não seria sempre
Zurique, e sim o local de residência do Presidente que seria eleito por dois
anos.
Nesse Congresso, três grupos locais foram
constituídos: um em Berlim, sob a presidência de Abraham; outro em Zurique,
cujo chefe se tornara o Presidente de toda a Associação; e outro em Viena, cuja
direção confiei a Adler. Um quarto grupo, em Budapeste, só pôde ser formado
depois. Bleuler não participara do Congresso por motivo de doença, e depois
mostrou certa hesitação em fazer parte da Associação, por motivos de ordem
geral; deixou-se persuadir, depois de uma conversa pessoal comigo, mas logo
afastou-se novamente em conseqüência de discordâncias havidas em Zurique. Isto
cortou a ligação entre o grupo de Zurique e a Instituição de Burghölzli.
Um dos resultados do Congresso de Nuremberg foi
a fundação da Zentralblatt für Psychoanalyse [Revista Central de
Psicanálise], para a qual se uniram Adler e Stekel. O propósito original era,
claramente, representar a Oposição: tinha como objetivo reconquistar para Viena
a hegemonia ameaçada pela eleição de Jung. Mas quando os dois fundadores da
revista, em meio às dificuldades de encontrar um editor, me garantiram suas
intenções pacíficas, e como prova de sua sinceridade me deram o direito de
veto, aceitei a direção da mesma e trabalhei com energia para o novo órgão,
havendo o seu primeiro número aparecido em setembro de 1910.
Prosseguirei agora com a história dos Congressos
Psicanalíticos. O terceiro Congresso realizou-se em setembro de 1911, em
Weimar, e foi ainda mais bem-sucedido do que os anteriores quanto à atmosfera
geral e ao interesse científico. J. J. Putnam, que estava presente nessa
ocasião, declarou depois nos Estados Unidos o grande prazer que a reunião lhe
proporcionou e externou seu respeito pela “atitude mental” dos participantes,
citando algumas palavras que, disseram, eu havia empregado com referência a
eles: “Aprenderam a suportar um pouco de verdade.” (Putnam 1912). De fato,
ninguém que já houvesse comparecido a outros congressos científicos poderia
deixar de levar a uma impressão favorável da Associação Psicanalítica. Eu
próprio tinha presidido os dois primeiros Congressos e permitira a cada orador tempo
suficiente para expor seu trabalho, deixando que os debates se processassem
depois em caráter particular entre os membros. Jung, como Presidente, assumiu a
direção em Weimar e voltou a adotar debates formais depois de cada trabalho, o
que, entretanto, não trouxe nenhum problema.
Mas as coisas se passaram de forma bem
diferente no quarto Congresso realizado em Munique dois anos depois, em
setembro de 1913. Todos os que a ele estiveram presentes ainda o trazem bem
vivo na memória. Foi dirigido por Jung de maneira desagradável e incorreta; os
oradores tiveram seu tempo de exposição limitado e os debates sufocaram os
trabalhos apresentados. Por uma infeliz coincidência aconteceu que aquele gênio
do mau, Hoche, se instalara no mesmo prédio onde se realizavam as sessões.
Diante do comportamento dos analistas, Hoche não deve ter tido dificuldade em
perceber quanto se enganara ao descrevê-los como membros de uma seita fanática
que obedeciam cegamente ao seu líder. Os debates cansativos e nada construtivos
terminaram com a reeleição de Jung para a Presidência da Associação
Psicanalítica Internacional, que ele aceitou, embora dois quintos dos presentes
lhe negassem apoio. Dispersamo-nos sem nenhuma vontade de nos reunirmos outra
vez.
Mais ou menos na época desse Congresso o estado
da Associação Psicanalítica Internacional era o seguinte: os grupos locais de
Viena, Berlim e Zurique já estavam formados desde o Congresso de Nuremberg, em
1910. Em maio de 1911, surgiu o grupo de Munique, sob a presidência do Dr. L.
Seif. No mesmo ano, formou-se o primeiro grupo local norte-americano sob a
presidência de A. A. Brill, com o nome de “The New York Psychoanalytic
Society”. No Congresso de Weimar foi autorizada a fundação de um segundo grupo
norte-americano que começou a funcionar no ano seguinte sob a denominação de
“The American Psychoanalytic Association”, e compreendia membros do Canadá e de
todos os Estados Unidos; Putnam foi eleito Presidente e Ernest Jones,
Secretário. Pouco antes do Congresso de Munique, de 1913, formou-se o grupo
local de Budapeste sob a presidência de Ferenczi. Logo depois, foi constituído
o primeiro grupo inglês por Ernest Jones, que havia retornado a Londres. O
quadro social desses grupos locais, oito ao todo, não pode, naturalmente,
servir de base para calcular-se o número de estudantes e adeptos não
organizados da psicanálise.
É necessário também dizer algumas palavras
sobre o desenvolvimento dos periódicos a serviço da psicanálise. O primeiro
deles foi uma série de monografias intitulada Schriften zur angewandsten
Seelenkunde [“Artigos sobre Ciência Mental Aplicada”] que apareceram
irregularmente desde 1907 e agora ai o número de quinze exemplares. (O editor
pretendia começar com Heller em Viena e depois F. Deuticke.) Incluem obras de
Freud (Nos. 1 e 7), Riklin, Jung, Abraham (Nos. 4 e 11), Rank (Nos. 5 e 13),
Sadger, Pfister, Max Graf, Jones (Nos. 10 e 14), Storfer e von Hug-Hellmuth.
Com a fundação da revista Imago, esse gênero de publicação perdeu parte de sua
importância. Após a reunião de Salzburg, em 1908, fundou-se o Jahrbuch für
psychoanalytische und psychopathologische Forschungen [Anuário de Pesquisas
Psicanalíticas e Psicopatológicas], o qual veio a lume durante cinco anos sob a
diretoria de Jung e que agora ressurgiu, com dois novos redatores e com ligeira
alteração no título - passou a chamar-se Jahrbuch der Psyuchoanalyse [Anuário
da Psicanálise.] Não mais se destina a ser, como o foi em anos recentes, um
simples repositório para publicação de obras autônomas. Em vez disso, seus
editores se empenharão em cumprir a finalidade de registrar todos os trabalhos
realizados e todos os progressos alcançados no campo da psicanálise. A
Zentrablatt für Psychoanalyse, que, como já disse, foi lançada por Adler e
Stekel após a fundação da Associação Psicanalítica Internacional em Nuremberg,
1910, teve uma existência breve e tumultuada. Já no décimo número do primeiro
volume [julho de 1911] apareceu um aviso na página de frontispício comunicando
que, por motivo de divergências científicas de opinião com o diretor, o Dr.
Alfred Adler resolvera afastar-se voluntariamente da editoria. Depois disso, o
Dr. Stekel continuou o único redator (a partir do verão de 1911). No Congresso
de Weimar [setembro de 1911] a Zentralblatt foi elevada à posição de
órgão oficial da Associação Internacional e passou a ser remetida a todos os
sócios mediante um aumento da contribuição anual. A partir do terceiro número
do segundo volume (inverno [dezembro], 1912), Stekel tornou-se o único
responsável pelo seu conteúdo. Seu comportamento, do qual é impossível publicar
um relato, me obrigou a exonerar-me de sua direção e a criar, às pressas, um
novo órgão para a psicanálise - a Internationale Zeitschrift für ärztliche
Psychoanalyse [Revista International de Psicanálise Médica]. Os esforços
conjuntos de quase todos os nossos colaboradores e de Hugo Heller, o novo
editor, resultaram no surgimento do primeiro número, em janeiro de 1913,
havendo logo tomado o lugar da Zentralblatt como órgão oficial da
Associação Psicanalítica Internacional.
Enquanto isso, no início de 1912, um novo
periódico, Imago (publicado por Heller), destinado exclusivamente à
aplicação da psicanálise às ciências mentais, foi fundado pelo Dr. Hanns Sachs
e pelo Dr. Otto Rank. Imago encontra-se agora na metade de seu terceiro
volume, sendo lida com interesse por um número sempre crescente de assinantes,
alguns deles com pouca ligação com a análise médica.
Afora essas quatro publicações periódicas (Schriften
zur angewandten Seelenkunde, Jahrbuch, Zeitschrift e Imago), outros
periódicos alemães e estrangeiros publicam trabalhos que merecem um lugar na
literatura psicanalítica. The Journal of Abnormal Psychology, dirigido
por Morton Prince, costuma publicar tantas e tão boas contribuições analíticas
que deve ser considerado como o principal representante da literatura analítica
nos Estados Unidos. No inverno de 1913, White e Jellife em Nova Iorque lançaram
um novo periódico (The Psychoanalytic Review) dedicado exclusivamente à
psicanálise, sem dúvida levando em conta o fato de que para a maioria dos
médicos americanos interessados na psicanálise, a língua alemã é um obstáculo.
Devo agora mencionar duas deserções que houve
entre os partidários da psicanálise; a primeira ocorreu entre a fundação da
Associação em 1910 e o Congresso de Weimar em 1911; a segunda verificou-se após
esse Congresso e evidenciou-se em Munique em 1913. O desapontamento que me
causaram talvez tivesse sido evitado se eu tivesse prestado mais atenção às
reações de pacientes sob tratamento analítico. Sabia muito bem, naturalmente,
que qualquer pessoa, ao primeiro contato com as realidades desagradáveis da
análise, pode reagir fugindo; eu próprio sempre havia sustentado que na
compreensão da análise, cada indivíduo é limitado por suas próprias repressões
(ou antes, pelas resistências que as sustentam) de modo que não pode ir além de
um certo ponto em sua relação com a análise. Mas eu não esperava que alguém que
houvesse alcançado certa profundidade na compreensão da análise pudesse
renunciar a essa compreensão e perdê-la. E, no entanto, a experiência cotidiana
com pacientes havia demonstrado que a rejeição total do conhecimento analítico
pode ocorrer sempre que surge uma resistência especialmente forte em qualquer
profundidade da mente. Às vezes conseguimos, depois de muito trabalho, fazer
com que um paciente aprenda algumas partes do conhecimento analítico e possa
lidar com elas como posses suas, e mesmo assim podemos vê-lo, sob o domínio da
própria resistência seguinte, lançar tudo o que aprendeu às urtigas e ficar na
defensiva como o fez nos dias em que era um principiante despreocupado. Tive de
aprender que a mesmíssima coisa pode acontecer tanto com psicanalistas como com
pacientes em análise.
Não constitui tarefa fácil nem invejável
escrever a história dessas duas deserções, em parte porque estou desprovido de
qualquer motivo pessoal forte para fazê-lo - não esperava gratidão nem sou
particularmente vingativo - e em parte porque sei que agindo assim ficarei ao
sabor das ofensas de meus adversários, nada escrupulosos, e vou oferecer aos
inimigos da psicanálise o espetáculo que eles tão ardentemente desejam - “os
psicanalistas se degladiando entre si”. Depois de tanto autodomínio para não
entrar em choque com adversários fora da análise, vejo-me agora forçado a pegar
em armas contra os seus ex-seguidores ou pessoas que ainda denominam a si
próprias de seguidores. Não tenho escolha, porém: se ficasse calado seria por
indolência ou covardia, e o silêncio seria mais prejudicial à psicanálise do
que uma exposição franca dos danos já causados. Quem quer que tenha acompanhado
o desenvolvimento de outros movimentos científicos sabe que as mesmas
convulsões e divergências ocorrem neles com freqüência. Pode ser que se tenham
preocupado mais em ocultá-los; mas a psicanálise, que repudia tantas idéias
convencionais, também nessa questão é mais honesta.
Outro problema muito sério é que não posso
abster-me inteiramente de utilizar os conhecimentos psicanalíticos no exame
desses dois movimentos de oposição. A análise, entretanto, não se presta a uso
polêmico; pressupõe o consentimento da pessoa que está sendo analisada e uma
situação na qual existam um superior e um subordinado. Daí, quem quer que
empreenda uma análise com fins polêmicos pode esperar que a pessoa analisada
utilize, por sua vez, a análise contra ela, de modo que a discussão atingirá um
ponto que exclui inteiramente a possibilidade de convencer qualquer outra
pessoa imparcial. Restringirei, portanto, a um mínimo o uso do conhecimento
analítico, e, com ele, a indiscrição e a agressividade contra meus adversários;
devo também ressaltar que não estou me baseando nesse terreno para nenhuma
crítica de caráter científico. Não estou interessado na verdade que possa estar
contida nas teorias que venho rejeitando, nem tentarei refutá-las. Deixarei
essa tarefa a outros trabalhadores qualificados no campo da psicanálise, tendo
sido ela, na verdade, já em parte realizada. Desejo apenas mostrar que essas
teorias contrariam os princípios fundamentais da psicanálise (e em que pontos
os contrariam) e que por essa razão não devem ser conhecidas pelo nome de
psicanálise. Assim vou-me valer da psicanálise apenas para explicar como essas
divergências dela podem surgir entre os analistas. Entretanto, quando toco os
pontos nos quais as divergências ocorreram, não posso deixar de defender os
justos direitos da psicanálise com algumas observações de natureza puramente
crítica.
A primeira tarefa com que se defrontou a
psicanálise foi a de explicar as neuroses; utilizou a resistência e a transferência
como pontos de partida e, levando em consideração a amnésia, explicou os três
fatos com as teorias da repressão, das forças sexuais motivadoras da neurose e
do inconsciente. A psicanálise jamais pretendeu oferecer uma teoria completa da
atividade mental humana em geral, mas esperava apenas que o que ela oferecia
pudesse ser aplicado para suplementar e corrigir o conhecimento adquirido por
outros meios. A teoria de Adler, entretanto, vai muito além disso, procurando
de um só golpe explicar o comportamento e o caráter dos seres humanos bem como
de suas doenças neuróticas e psicóticas. Na realidade, presta-se mais a
qualquer outro campo do que ao da neurose, embora por motivos ligados à
história do seu desenvolvimento ainda situe isso no primeiro plano. Por muitos
anos, tive oportunidade de estudar o Dr. Adler e jamais me recusei a reconhecer
sua rara capacidade, associada a uma inclinação particularmente especulativa.
Como exemplo da “perseguição” a que, ele afirma, eu o submeti, posso lembrar do
fato de ter-lhe passado a liderança do grupo de Viena após a fundação da
Associação. Só depois de insistentes reclamações feitas por todos os membros da
sociedade é que me deixei persuadir a ocupar novamente a presidência nas suas
reuniões científicas. Quando percebi quão pouco dotado era Adler para o
julgamento de material inconsciente, mudei minha opinião para uma esperança de
que ele conseguisse descobrir as ligações da psicanálise com a psicologia e com
os fundamentos biológicos dos processos instintivos - esperança justificada, em
certo sentido, pelo seu valioso trabalho sobre “a inferioridade dos órgãos”. E
ele, na verdade, realizou algo nesse gênero, mas seu trabalho transmite uma
impressão “como se” - para empregar seu próprio “jargão” - destinada a provar que
a psicanálise estava errada em tudo e que atribuíra tanta importância às forças
sexuais motivadoras, por causa de sua facilidade em acreditar nas afirmações
dos neuróticos. Posso até mesmo falar publicamente da motivação de ordem
pessoal do seu trabalho, desde que ele próprio a anunciou na presença de um
pequeno círculo de membros do grupo de Viena: - “O Senhor pensa que é um grande
prazer para mim ficar a vida inteira à sua sombra?” Naturalmente, não acho nada
condenável que um homem mais jovem admita francamente sua ambição - o que já
era evidente ser um dos incentivos do seu trabalho. Mas mesmo uma pessoa
dominada por um motivo desses, deve saber evitar ser o que os ingleses, com seu
requintado tato social, chamam de “unfair” (desleal) - que em alemão só pode
ser dito com uma palavra muito mais grosseira. Quão pouco Adler foi
bem-sucedido nisso é indicado pela profusão de mesquinhas explosões de
malevolência que desfiguram suas obras e pelos indícios que refletem um anseio
desenfreado de prioridade. Na Sociedade Psicanalítica de Viena ouvimo-lo uma
vez reivindicar para si a prioridade do conceito da “unidade das neuroses” e do
“ponto de vista dinâmico” delas. Isso foi para mim uma grande surpresa, pois
sempre pensei que esses dois princípios tivessem sido por mim enunciados antes
de ter conhecido Adler.
Essa luta de Adler por um lugar ao sol teve, no
entanto, um resultado que está destinado a ser benéfico à psicanálise. Quando
divergências científicas inconciliáveis me obrigaram a fazer Adler demitir-se da
direção de Zentralblatt, ele abandonou também a sociedade de Viena, e
fundou uma nova que, de início, teve o nome curioso de “Sociedade de
Psicanálise Livre” [“Verein für freie Psychoanalyse”]. Mas pessoas de
fora, que não estão ligadas à psicanálise, são tão incapazes de perceber as
diferenças entre os pontos de vista de dois psicanalistas quanto os europeus de
fazer distinção entre as caras de dois chineses. A psicanálise “livre”
permaneceu à sombra da psicanálise “oficial”, “ortodoxa”, e foi tratada simplesmente
como um apêndice dela. Adler então tomou uma atitude pela qual lhe somos
gratos; cortou todas as ligações com a psicanálise, e deu a sua teoria o nome
de “Psicologia Individual”. Há bastante espaço nesse mundo de Deus, e todos têm
o direito de perambular nele sem serem impedidos; mas não é conveniente que
pessoas que deixaram de se compreender e que se tornaram incompatíveis
permaneçam sob o mesmo teto. A “Psicologia Individual” de Adler é agora uma das
numerosas escolas de psicologia contrárias à psicanálise e o seu ulterior
desenvolvimento já não nos diz respeito.
A teoria adleriana foi desde o começo um
“sistema” - que a psicanálise teve o cuidado de evitar vir a ser. É também um
exemplo notável de “revisão secundária”, tal como ocorre, por exemplo, no
processo ao qual o pensamento desperto submete o material dos sonhos. No caso
de Adler, substitui-se o material dos sonhos pelo novo material obtido através
de estudos psicanalíticos; este é então encarado puramente do ponto de vista do
ego, reduzido a categorias com as quais o ego está familiarizado, traduzido,
distorcido e - exatamente como acontece na formação dos sonhos - mal
compreendido. Além disso, a teoria adleriana caracteriza-se menos pelo que
afirma do que pelo que nega, de modo que consiste em três espécies de elementos
de valor bem desigual: contribuições úteis à psicologia do ego, traduções
supérfluas, porém admissíveis, dos fatos analíticos para o novo “jargão”, e
distorções e inversões desses fatos quando não obedecem às exigências do ego.
Os elementos do primeiro tipo nunca foram
ignorados pela psicanálise, embora não merecessem dela nenhuma atenção
especial; estava mais interessada em demonstrar que toda tendência do ego
encerra componentes libidinais. A teoria adleriana dá ênfase à contrapartida
disso, ou seja, o constituinte egoístico dos impulsos instintivos da libido.
Isso teria sido uma aquisição apreciável se Adler não tivesse utilizado essa
observação em todas as ocasiões para negar os impulsos libidinais em favor de
seus componentes instintivos egoísticos. Sua teoria se comporta como todo
paciente e como nosso pensamento consciente, ou seja, faz uso de uma racionalização,
como Jones [1908] a denominou, para ocultar o motivo inconsciente. Adler é tão
coerente nisso que chega a considerar que a força motivadora mais poderosa no
ato sexual é a intenção do homem de afirmar-se como senhor da mulher - de estar
“por cima“. Não sei se ele expressou essas idéias monstruosas em suas obras.
A psicanálise cedo reconheceu que todo sintoma
neurótico deve sua possibilidade de existência a uma transação. Todo sintoma
deve, portanto, de alguma forma obedecer às exigências do ego, o qual manipula
a repressão; deve oferecer alguma vantagem, ter alguma aplicação proveitosa, ou
haveria de ter o mesmo destino que o próprio impulso instintivo original que
foi desviado. A expressão “vantagem da doença” levou isso em conta; é até
justificável que se queira fazer distinção entre a vantagem “primária” do ego,
que deve estar atuante na ocasião da gênese do sintoma, e uma parte
“secundária”, que sobrevém ligada a outras finalidades do ego, a fim de que o
sintoma persista. De há muito se sabe que a eliminação dessa vantagem da
doença, ou seu desaparecimento em conseqüência da modificação de circunstâncias
externas reais, constitui um dos mecanismos da cura de um sintoma. Na doutrina
adleriana, a ênfase principal recai sobre essas ligações facilmente
verificáveis e claramente inteligíveis, enquanto se menospreza inteiramente o
fato de que em inúmeras ocasiões o ego está apenas transformando em virtude a
necessidade de submeter-se (por causa de sua utilidade) ao sintoma muito
desagradável que lhe é imposto - por exemplo, ao aceitar a ansiedade como um
meio de segurança. O ego está aí desempenhando o papel ridículo de um palhaço
de circo que, pelos gestos, tenta convencer a platéia de que toda mudança no
picadeiro está sendo executada por ordem sua. Mas só as crianças se deixam
enganar por ele.
A psicanálise vê-se obrigada a apoiar o segundo
constituinte da teoria de Adler como o faria a algo seu que aquele autor
extraiu de fontes abertas a todos durante dez anos de trabalho em comum e que
agora rotulou como descoberta sua, através de uma simples mudança de
nomenclatura. Eu mesmo considero “reasseguramento [Sicherung]”, por
exemplo, um termo melhor do que “medida protetora [schutzmassregel]”,
empregado por mim, mas não posso descobrir nenhuma diferença no significado de
ambos. Além disso, encontramos um grande número de características familiares
nas proposições de Adler quando ele restaura termos mais antigos como
“fantasiado” e “fantasia” no lugar de “fingido” [fingiert], “fictício” e
“ficção”. A psicanálise insistiria que esses termos são idênticos, mesmo se o
seu autor não houvesse tomado parte em nosso trabalho comum por um período de
muitos anos.
A terceira parte da teoria adleriana, as
interpretações deturpadas e as distorções dos fatos desagradáveis revelados
pela análise, são o que separa definitivamente a “Psicologia Individual”, como
agora deve ser denominada, da psicanálise. Como sabemos, o princípio do sistema
de Adler é que o propósito de auto-afirmação do indivíduo, sua “vontade de
poder”, é o que, sob a forma de um “protesto masculino”, desempenha papel
dominante na sua conduta, na formação do caráter e na neurose. Entretanto, esse
“protesto masculino”, a força motivadora adleriana, nada mais é senão a
repressão desligada do seu mecanismo psicológico e, além do mais, sexualizada -
o que está bem pouco de acordo com a tão apregoada expulsão da sexualidade do
seu lugar na vida mental. O “protesto masculino” sem dúvida existe, mas se for
transformado na [única] força motivadora da vida mental estamos menosprezando
os fatos observados como se abandonássemos um trampolim depois de o havermos
utilizado para o salto. Consideremos uma das situações fundamentais em que se
sente desejo na infância: a de uma criança que observa o ato sexual entre
adultos. A análise demonstra, no caso de pessoas cuja vida o médico estudará
depois, que, nesses momentos, dois impulsos se apoderam do espectador imaturo.
Nos meninos, um é o impulso de colocar-se no lugar do homem ativo, e o outro, a
contracorrente, é o impulso de identificar-se com a mulher passiva. O conflito
entre esses dois impulsos esgota as possibilidades de prazer da situação.
Somente o primeiro pode ser classificado como protesto masculino, se quisermos
dar um sentido a esse conceito. O segundo, entretanto, cujo curso ulterior
Adler não leva na devida consideração ou desconhece inteiramente, é o que se
tornará mais importante na neurose subseqüente. Adler foi absorvido de tal
forma pela estreiteza ciumenta do ego que leva em conta apenas os impulsos
instintivos agradáveis ao ego e por ele estimulados; a situação neurótica, na
qual os impulsos se opõem ao ego, é precisamente aquela que fica além do
horizonte de Adler.
É em relação à tentativa - que a psicanálise
tornou necessária - de correlacionar o princípio fundamental de sua teoria com
a vida mental das crianças, que Adler apresenta os desvios mais sérios da
observação real e a confusão mais fundamental de seus conceitos. Os
significados biológico, social e psicológico de “masculino” e “feminino” estão
aqui irremediavelmente confundidos. É impossível, e negado pela observação, que
uma criança, quer do sexo masculino, quer feminino, baseie seu plano de vida
numa depreciação original do sexo feminino e faça do desejo de ser um homem
verdadeiro sua “diretriz”. Para começar, as crianças não fazem nenhuma idéia da
importância da distinção entre os sexos; pelo contrário, partem da suposição de
que ambos possuem o mesmo órgão genital (o masculino); não iniciam suas
pesquisas sexuais com o problema da distinção entre os sexos, e a depreciação social
das mulheres lhes é completamente estranha. Há mulheres em cuja neurose o
desejo de ser homem não desempenhou nenhum papel. O que houve de protesto
masculino pode-se facilmente remontar a uma perturbação do narcisismo primário
devido a ameaças de castração ou às primeiras coerções das atividades sexuais.
Todas as controvérsias sobre a psicogênese das neuroses terminarão sempre por
ser resolvidas no campo das neuroses da infância. A dissecção cuidadosa de uma
neurose na mais tenra infância põe termo a todos os equívocos sobre a etiologia
das neuroses e a todas as dúvidas sobre o papel que os instintos sexuais nela
desempenham. Eis por que, em sua crítica ao trabalho de Jung, “Conflitos na
Mente da Criança” [1910c], Adler [1911a] foi obrigado a recorrer ao argumento
de que os fatos do caso haviam sido ordenados unilateralmente, “sem dúvida pelo
pai” [da criança].
Não me estenderei mais sobre o aspecto
biológico da teoria adleriana nem discutirei se é a “inferioridade do órgão”
real [ver em [1]] ou o sentimento subjetivo do mesmo - não se sabe qual - que
pode, na verdade, servir de fundamento ao sistema de Adler. Limitar-me-ei a
comentar de passagem que, se fosse assim, a neurose seria um subproduto de toda
espécie de decrepitude física, ao passo que a observação mostra que uma grande
maioria de pessoas feias, deformadas, aleijadas e infelizes deixam de reagir a
seus defeitos através da neurose. Tampouco abordarei a interessante afirmação
segundo a qual a inferioridade deve ser remontada ao sentimento de ser um
criança, que revela o disfarce sob o qual o fator do infantilismo, a que a
psicanálise deu tanta ênfase, reaparece na “Psicologia Individual”. Por outro
lado, devo frisar como todas as aquisições psicológicas da psicanálise foram
jogadas fora por Adler. Em seu livro Über den nervösen Charakter [1912]
o inconsciente ainda aparece como uma peculiaridade psicológica, sem,
entretanto, qualquer relação com seu sistema. Posteriormente, ele declarou
repetidas vezes que é uma questão indiferente para ele se uma idéia é
consciente ou inconsciente. Para começar, Adler nunca deu o menor sinal de ter
compreendido o que é a repressão. No resumo de um trabalho lido por ele na
Sociedade de Viena (fevereiro de 1911) escreveu que se deve ressaltar que, num
caso específico, ficou demonstrado que o paciente nunca havia reprimido sua
libido, mas vinha continuamente “reassegurando-se” dela. Pouco depois, num
debate na Sociedade de Viena, disse: “Se perguntarmos de onde vem a repressão,
nos respondem, ‘da civilização’, mas se perguntarmos depois de onde vem a
civilização, nos dizem, ‘da repressão’. Como vêem, é simplesmente um jogo de
palavras.” Uma parte mínima da agudeza e engenhosidade que Adler usou para
desmascarar os dispositivos defensivos do “caráter nervoso” teria sido
suficiente para indicar-lhe a saída desse argumento capcioso. O que se quer
dizer é simplesmente que a civilização se baseia nas repressões efetuadas por
gerações anteriores, e que se exige de cada nova geração que mantenha essa
civilização efetuando as mesmas repressões. Certa vez ouvi falar de uma criança
que julgava que as pessoas zombavam dela, e começou a chorar, porque quando
perguntou de onde vêm os ovos disseram-lhe que “das galinhas”, e quando
perguntou novamente de onde vinham as galinhas responderam-lhe “dos ovos”. Mas
não estavam fazendo um jogo de palavras; pelo contrário, estavam dizendo-lhe a
verdade.
Tudo que Adler tem a dizer sobre sonhos, a
pedra de toque da psicanálise, é igualmente vazio e destituído de sentido.
Inicialmente, ele considerava os sonhos como um desvio da linha feminina para a
masculina - o que é simplesmente uma tradução da teoria da realização de
desejos dos sonhos para a linguagem do “protesto masculino”. Depois descobriu
que a essência dos sonhos está em permitir que os homens realizem
inconscientemente o que lhes é negado conscientemente. Cabe também a Adler
[1911b, 215n.] o mérito da prioridade no confundir sonhos com pensamentos
oníricos latentes - confusão na qual se baseia a descoberta de sua “tendência
prospectiva”. Maeder [1912] seguiu-lhe o exemplo em relação a isso posteriormente.
Aqui se menospreza totalmente o fato de que toda interpretação de um sonho que
é incompreensível em sua forma manifesta se baseia precisamente no próprio
método de interpretação de sonhos cujas premissas e conclusões são objeto de
controvérsia. No tocante à resistência, Adler nos informa que ela serve à
finalidade de pôr um vigor a oposição do paciente ao médico. Isso por certo é
verdade; vale tanto quanto dizer que ela serve à finalidade da resistência. De
onde provém, contudo, ou como acontece que suas manifestações fiquem à
disposição do paciente, não é objeto de ulterior indagação, como sendo de
nenhum interesse para o ego. O mecanismo pormenorizado dos sintomas e
manifestações de doenças, a explicação da múltipla variedade dessas doenças e suas
formas de expressão, são negligenciados in toto; pois tudo é igualmente
posto a serviço do protesto masculino, da auto-afirmação e do enaltecimento da
personalidade. O sistema está completo; produzi-lo custou enorme volume de
trabalho de reformulação de interpretação, ao passo que ele próprio não
forneceu uma única observação nova. Creio ter deixado claro que ele nada tem
que ver com a psicanálise.
A visão da vida refletida no sistema adleriano
fundamenta-se exclusivamente no instinto agressivo; nele não há lugar para o
amor. Talvez nos surpreenda que essa Weltanschauung tão melancólica
tenha merecido alguma atenção, mas não devemos esquecer que os seres humanos,
vergados sob o fardo de suas necessidades sexuais, estão prontos a aceitar
qualquer coisa se pelo menos a “superação da sexualidade” lhes for oferecida
como isca.
A deserção de Adler ocorreu antes do Congresso
de Weimar em 1911; depois dessa data teve início a dos suíços. Os primeiros
sinais dela, o que é bastante curioso, foram certas observações de Riklin em
uns artigos populares aparecidos em publicações suíças, de modo que o grande
público soube, antes do que aqueles mais intimamente ligados ao assunto, que a
psicanálise havia superado alguns erros lamentáveis que anteriormente a haviam
desacreditado. Em 1912, Jung vangloriou-se, numa carta procedente dos Estados
Unidos, de que suas modificações da psicanálise haviam vencido as resistências
de muitas pessoas que até então não queriam nada com ela. Repliquei que aquilo
não constituía nenhum motivo de vanglória, e que quanto mais ele sacrificasse
as verdades da psicanálise conquistadas arduamente, mais veria as resistências
desaparecendo. Essa modificação, da qual os suíços tanto se orgulharam, mais
uma vez nada mais era do que impelir para o segundo plano o fator sexual na
teoria psicanalítica. Confesso que desde o começo considerei esse “avanço” como
um ajustamento muito exagerado às exigências da realidade.
Esses dois movimentos de afastamento da
psicanálise, que eu agora devo comparar um com o outro, assinalam outro ponto
em comum: ambos cortejam uma opinião favorável mediante a formulação de certas
idéias elevadas, que encaram as coisas, por assim dizer, sub specie
aeternitatis. Em Adler, esse papel é desempenhado pela relatividade de todo
conhecimento e pelo direito da personalidade de basear uma interpretação
artificial nos dados de conhecimento de acordo com o gosto individual; em Jung,
faz-se apelo ao direito histórico da juventude de romper os grilhões com os
quais a tirania dos mais velhos e seus pontos de vista tacanhos procuram
aprisioná-la. Algumas palavras devem ser dedicadas ao esclarecimento da falácia
dessas idéias.
A relatividade do nosso conhecimento é uma
consideração que pode ser formulada contra todas as outras ciências, do mesmo
modo que contra a psicanálise. Origina-se de conhecidas correntes reacionárias
do pensamento atual hostis à ciência, e pretende o surgimento de uma
superioridade a que ninguém pode aspirar. Nenhum de nós pode adivinhar qual
será o julgamento final da humanidade sobre nossos esforços teóricos. Existem
exemplos em que a rejeição das três primeiras gerações foi corrigida pela
seguinte e transformada em reconhecimento. Depois de se ter ouvido com cuidado
a voz da autocrítica e de haver prestado certa atenção às críticas dos
adversários, não resta mais nada a fazer senão sustentar, com todas as forças,
as próprias convicções baseadas na experiência. A pessoa deve contentar-se em
agir com o máximo de honestidade, não devendo assumir o papel de juiz,
reservado ao futuro remoto. Dar ênfase a opiniões pessoais arbitrárias, em
assuntos científicos, é mau; constitui claramente uma tentativa de questionar o
direito da psicanálise de ser considerada uma ciência - aliás, depois de já ter
sido esse valor depreciado pelo que foi dito antes [sobre a natureza relativa
de todo o conhecimento]. Quem quer que dê grande valor ao pensamento científico
procurará, antes, todos os meios e métodos possíveis para limitar o fator
predileções pessoais fantasiosas tanto quanto possível, onde quer que ele
desempenhe papel grande demais. Além disso, vale a pena lembrar que não tem
cabimento o excessivo zelo em defendermos a nós mesmos. Esses argumentos de
Adler não têm intenção séria. Destinam-se apenas a ser utilizados contra seus
adversários; não se referem às suas próprias teorias, nem impediram seus
seguidores de aclamá-lo como o Messias, para cujo advento a humanidade ansiosa
foi preparada por grande número de precursores. O Messias certamente não é
nenhum fenômeno relativo.
O argumento ad captandam benevolentiam
de Jung repousa na suposição demasiado otimista de que o progresso da raça
humana, da civilização e do conhecimento sempre seguiu uma linha ininterrupta,
como se não tivesse havido períodos de decadência, reações e restaurações após
cada revolução, e gerações não tivessem dado um passo para trás e abandonado as
vantagens de seus antecessores. Sua abordagem do ponto de vista das massas, sua
renúncia a uma inovação que foi mal recebida, tornam a priori pouco
provável que a versão jungiana da psicanálise possa com justiça pretender ser
uma atitude jovem de liberação. Afinal de contas, não é a idade do autor que
decide isso, mas o caráter da ação.
Dos dois movimentos em discussão, o de Adler é,
sem dúvida alguma, o mais importante; embora radicalmente falso, apresenta
consistência e coerência. Além disso, se baseia, apesar de tudo, numa teoria
dos instintos. A modificação de Jung, por outro lado, afrouxa a conexão dos
fenômenos com a vida instintiva; e além disso, conforme seus críticos (p. ex.
Abraham, Ferenczi e Jones) ressaltaram, é tão obscura, ininteligível e confusa
a ponto de se tornar difícil assumir uma posição em relação a ela. Quando se
pensa que se entendeu alguma coisa, pode-se ficar preparado para ouvir dizer
que não se entendeu e não se pode saber como tirar uma conclusão correta. Tudo
é formulado de uma maneira particularmente vacilante, ora como “uma divergência
sutil que não justifica o escarcéu que se fez em torno dela” (Jung), ora como
uma nova mensagem de salvação que irá iniciar uma nova era para a psicanálise,
e mais ainda, uma nova Weltanschauung para todos.
Quando se pensa nas várias incoerências
reveladas em diversos pronunciamentos públicos e privados feitos pelo movimento
jungiano, somos levados a perguntar quanto disso se deve à falta de clareza e
quanto à falta de sinceridade. Deve-se admitir, contudo, que os expoentes da
nova teoria se encontram numa posição difícil. Combatem agora coisas que
anteriormente defendiam, e o fazem, além disso, não baseados em novas
observações que lhes poderiam ter ensinado algo mais, mas em conseqüência de
novas interpretações que fazem com que as coisas que vêem lhes pareçam
diferentes do que viam antes. Por esse motivo não estão dispostos a abrir mão
da ligação com a psicanálise, como representantes da qual se tornaram
conhecidos perante o mundo, e preferem anunciar que a psicanálise mudou. No
Congresso de Munique achei necessário esclarecer essa confusão, e o fiz
declarando que não reconhecia as inovações dos suíços como continuações
legítimas e desenvolvimentos ulteriores da psicanálise que se originou comigo.
Críticos alheios ao movimento psicanalítico (como Furtmüller) já haviam
observado isso antes, e Abraham tem razão em dizer que Jung se afastou
inteiramente da psicanálise. É claro que sou perfeitamente capaz de admitir que
cada um tem o direito de pensar e escrever o que quiser, mas não tem o direito
de apresentá-lo como uma coisa que não é.
Da mesma forma que a investigação de Adler
trouxe algo de novo à psicanálise - uma contribuição à psicologia do ego - e
cobrou por esse presente um preço demasiado alto jogando fora todas as teorias
fundamentais da análise, assim também Jung e seus seguidores prepararam o
caminho para a sua luta contra a psicanálise presenteando-a com uma nova
aquisição. Investigaram em detalhes (como Pfister fizera antes deles) o caminho
através do qual o material das idéias sexuais pertencentes ao complexo de
família e à escolha de objeto incestuoso é utilizado na representação dos
interesses éticos e religiosos mais elevados do homem, isto é, aclarando assim
um importante exemplo de sublimação das forças eróticas instintivas e de sua
transformação em tendências que não podem mais ser chamadas de eróticas. Isso
concordava perfeitamente com todas as expectativas da psicanálise e poderia
harmonizar-se muito bem com a idéia segundo a qual nos sonhos e neuroses uma
dissolução regressiva dessa sublimação, como de todas as outras, se torna
visível. Mas o mundo inteiro teria protestado indignado contra a sexualização
da ética e da religião. Pelo menos dessa vez não consigo deixar de pensar
teologicamente e concluir que esses descobridores não tinham condições de
enfrentar essa tormenta de indignação, talvez mesmo presente no íntimo deles
próprios.
A pré-história teológica de tantos suíços não
explica sua atitude para com a psicanálise mais do que a pré-história
socialista de Adler explica o desenvolvimento de sua psicologia. Isso nos faz
lembrar a famosa história de Mark Twain sobre as coisas que aconteceram a seu relógio,
e suas palavras conclusivas: “E ele ficava imaginando que fim tinham levado os
funileiros, e armeiros, e sapateiros, e ferreiros fracassados; mas ninguém
sabia dizer.”
Suponhamos - para fazer uma comparação - que
num determinado grupo social vive um parvenu (aventureiro) que se
vangloria de ser descendente de uma família nobre que reside em outro lugar. Um
dia se descobre que seus pais moram na vizinhança, e são pessoas muito
modestas. Só há uma maneira de contornar essa dificuldade e ele se agarra a
ela. Já não pode repudiar os pais, mas insiste em que são de linhagem nobre e
que simplesmente perderam sua posição social
no mundo; e consegue uma árvore genealógica de alguma fonte oficial
complacente. Parece-me que os suíços foram obrigados a se comportar da mesma
maneira. Se não se permitiu que a ética e a religião fossem sexualizadas porque
tinham de ser algo de origem mais “elevada” e se, não obstante, as idéias nelas
contidas pareciam ter-se, inegavelmente, originado do complexo de Édipo e do complexo
familiar, só podia haver uma saída; que esses complexos não tenham o sentido
que aparentam, mas contenham um elevado sentido “anagógico” (como Silberer o
denomina) que tenha tornado possível o seu emprego nas abstratas seqüências de
pensamento da ética e do misticismo religioso.
Não será surpresa para mim ouvir dizer
novamente que não compreendi a substância e objetivo da teoria neozuriquiana;
mas o que me interessa é protestar antecipadamente contra pontos de vista
contrários às minhas teorias que possam ser encontrados nas publicações daquela
escola sendo atribuídos a mim e não a eles. Não vejo outro meio de tornar
inteligível a mim próprio o conjunto de inovações de Jung, e de apreender todas
as suas implicações. As modificações que Jung propôs que se fizessem na
psicanálise decorrem todas de sua intenção de eliminar o lado reprovável dos
complexos familiares para não voltar a encontrá-lo na religião e na ética. A
libido sexual foi substituída por um conceito abstrato, sobre o qual se pode
dizer com segurança que continua tão enigmático e incompreensível para os
entendidos quanto para os leigos. O complexo de Édipo tem um significado
meramente “simbólico”: a mãe, nele, representa o inacessível, a que se tem de
renunciar no interesse da civilização; o pai que é assassinado no mito de Édipo
é o pai “interior”, de quem nos devemos libertar a fim de nos tornarmos
independentes. Outras partes do material das idéias sexuais serão, por certo,
submetidas a reinterpretações semelhantes no decorrer do tempo. Em lugar de um
conflito entre as tendências eróticas ego-distônicas e as autopreservadoras,
surge um conflito entre as “tarefas da vida” e a “inércia psíquica”; o
sentimento de culpa do neurótico corresponde a sua auto-recriminação por não
cumprir adequadamente seu “trabalho de viver”. Dessa forma, criou-se um novo
sistema ético-religioso, que, tal qual o sistema adleriano, estava destinado a
reinterpretar, distorcer ou alijar os achados efetivos da análise. A verdade é
que essas pessoas detectaram algumas nuanças culturais da sinfonia da vida e
mais uma vez não deram ouvidos à poderosa e primordial melodia dos instintos.
A fim de preservar intacto esse sistema, foi
necessário afastar-se inteiramente da observação e da técnica da psicanálise.
Vez por outra, o entusiasmo pela causa deu margem até mesmo à inobservância da
lógica científica - quando Jung acha, por exemplo, que o complexo de Édipo não
é bastante “específico” para a etiologia das neuroses, e passa a atribuir essa
qualidade específica à inércia, a característica mais universal de toda
matéria, animada e inanimada! Deve-se notar, a propósito, que o “complexo de
Édipo” representa apenas um tópico com o qual as forças mentais do indivíduo
têm de lidar, e não é, em si próprio, uma força, como a “inércia psíquica”. O
estudo dos indivíduos tinha demonstrado (e sempre demonstrará) que os complexos
sexuais em seu sentido original estão vivos neles. Em conseqüência disso, a
investigação de indivíduos foi relegada a segundo plano [nas novas teorias] e
substituída por conclusões baseadas em provas oriundas da pesquisa
antropológica. O maior risco de defrontar-se com o sentido original e sem
disfarces desses complexos reinterpretados seria na tenra infância de cada
indivíduo; em conseqüência, na terapia estabeleceu-se a injunção de que essa
história passada deve ser resolvida o mínimo possível e a ênfase principal
posta no conflito do presente, no qual, além do mais, a coisa essencial de modo
algum deveria ser o que era acidental e pessoal, mas o que era geral - de fato,
a não-realização das tarefas da vida. Como sabemos, no entanto, o conflito de
um neurótico torna-se compreensível e admite solução somente quando é remontado
à sua pré-história, quando uma pessoa volta atrás ao longo do caminho que sua
libido seguiu quando ela adoeceu.
A forma assumida pela terapêutica neozuriquiana
sob essas influências pode ser expressa nas palavras de um paciente que
vivenciou isso pessoalmente: “Dessa vez nenhum vestígio de atenção foi dado ao
passado ou à transferência. Onde quer que eu pensava haver apreendido esta
última, diziam-me tratar-se de um puro símbolo libidinal. Os ensinamentos
morais eram muito bonitos e eu os seguia fielmente, mas não avancei um passo.
Isso era, naturalmente, muito mais incômodo para mim do que para ele, mas como
poderia evitá-lo?… Em vez de libertar-me pela análise, cada dia fazia-me novas
e tremendas exigências, que tinham de ser cumpridas se se quisesse que a
neurose fosse dominada - por exemplo: concentração interior através da
introversão, meditação religiosa, nova vida em comum com uma mulher com amor e
dedicação etc. Isso estava quase além das forças de qualquer um; visava a uma
radical transformação de toda a minha natureza interna. Deixei a análise como
um pobre pecador, com intensos sentimentos de arrependimento e as melhores
intenções, mas ao mesmo tempo totalmente desanimado. Qualquer sacerdote teria
aconselhado o que ele recomendava, mas onde iria eu encontrar forças para
isso?” O paciente chegou mesmo a lembrar ter ouvido falar que a análise do
passado e da transferência deveria ser compreendida primeiramente, mas lhe
haviam dito que disso ele já tivera o bastante. Desde que essa primeira espécie
de análise não o havia ajudado mais, parece-me justificada a conclusão de que o
paciente não tivera dela o bastante. Por certo, o tratamento subseqüente, que
já não podia pretender chamar-se de psicanálise, não melhorou as coisas. É
impressionante que os membros da escola de Zurique tivessem de fazer uma volta
tão longa e passar por Viena para chegar à vizinha cidade de Berna, onde Dubois
cura as neuroses por meio de incentivos morais, de uma maneira mais sensata.
A incompatibilidade total desse novo movimento
com a psicanálise também se revela na maneira de Jung encarar a repressão, que
quase já não é mencionada em suas obras, na má compreensão dos sonhos - como
Adler [ver em [1]], Jung confunde sonhos com pensamentos oníricos latentes, sem
levar em consideração a psicologia dos sonhos - e na perda de toda a
compreensão do inconsciente; em suma, em todos os pontos que devo considerar
como a essência da psicanálise. Quando Jung nos diz que o complexo de incesto é
meramente “simbólico”, que apesar de tudo não possui existência “real”, que
afinal de contas um selvagem não sente nenhum desejo por uma mulher velha,
prefere uma jovem e bonita, somos tentados a concluir que “simbólico” e “sem
existência real” simplesmente significam algo que, em virtude de suas
manifestações e efeitos patogênicos, é descrito pela psicanálise como
“existindo inconscientemente” - descrição que elimina a contradição aparente.
Se se tiver em mente que os sonhos são algo
diferente dos pensamentos oníricos latentes que eles elaboram, não há nada de
surpreendente em que os pacientes sonhem com coisas com as quais suas mentes
tenham estado repletas durante o tratamento, sejam elas as “tarefas da vida”,
“ficar por cima” ou “por baixo”. Não há a menor dúvidade que os sonhos de
pessoas em análise podem ser dirigidos, da mesma maneira que o são por
estímulos produzidos com fins experimentais. Pode-se determinar uma parte do
material que aparece num sonho; nada da essência ou do mecanismo dos sonhos é
alterado por isso. Também não acredito que os sonhos “biográficos”, como são
chamados, ocorram fora da análise. Se, por outro lado, se analisam sonhos tidos
antes do tratamento, ou se se consideram os próprios acréscimos do sonhador ao
que lhe tem sido sugerido no tratamento, ou se se evita atribuir-lhe qualquer
tarefa dessa natureza, então é fácil convencer-se como está longe da finalidade
de um sonho produzir tentativas de solução para as tarefas da vida. Os sonhos
são apenas uma forma de pensar; jamais se pode alcançar uma compreensão dessa
forma tomando como ponto de referência o conteúdo dos pensamentos; somente uma
apreciação do trabalho dos sonhos nos levará a essa compreensão.
Não é difícil refutar com argumentos concretos
as concepções errôneas de Jung sobre a psicanálise e os desvios dela. Toda
análise conduzida de maneira adequada, e em particular toda análise de criança,
fortalece as convicções sobre as quais se fundamenta a teoria da psicanálise,
negando as reinterpretações feitas tanto pelos sistemas de Jung como de Adler.
Nos dias que antecederam sua iluminação, o próprio Jung [1910b, v. pág. 40]
levou a efeito e publicou uma análise dessa espécie, de uma criança; resta ver
se ele empreenderá uma nova interpretação dos resultados dessa análise com a
ajuda de um diferente “arranjo unilateral dos fatos”, para utilizar a expressão
empregada por Adler nesse sentido (ver em [1] e [2]).
O ponto de vista de que a representação sexual
de pensamentos “mais elevados” nos sonhos e na neurose nada mais é senão uma
modalidade arcaica de expressão, é, naturalmente, inconciliável com o fato de
que na neurose esses complexos sexuais provam ser os portadores das quantidades
de libido subtraídas à utilização na vida real. Se isso fosse apenas uma
questão de “jargão” sexual, não alteraria de maneira nenhuma a economia da
libido. O próprio Jung admite isso no seu Darstellung der psychoanalytischen
Theorie [1913] e formula a tarefa da terapia como o desligamento das
catexias libidinais desses complexos. Entranto, isso jamais pode ser realizado
desviando-se o paciente delas e concitando-o a sublimar, e sim através do exame
exaustivo das mesmas que as torne plena e completamente conscientes. O primeiro
item de realidade com o qual o paciente deve lidar é a sua doença. Esforços no
sentido de poupar-lhe essa tarefa indicam incapacidade do médico em ajudá-lo a
superar suas resistências, ou então o medo que tem o médico dos resultados do
seu trabalho.
Por último, pode-se dizer que com sua
“modificação” da psicanálise Jung nos oferece um equivalente da famosa faca de
Lichtenberg. Mudou o cabo e botou uma lâmina nova, e porque gravou nela o mesmo
nome espera que seja considerada como o instrumento original.
Creio ter deixado claro que, pelo contrário, a
nova teoria que visa a substituir a psicanálise significa um abandono da
análise e uma deserção da mesma. Algumas pessoas podem ser inclinadas a temer
que essa deserção esteja fadada a ter conseqüências mais graves para a análise
do que outras, devido ao fato de ter sido iniciada por homens que desempenharam
um papel tão grande no movimento e contribuíram tanto para o seu avanço. Eu não
compartilho dessa apreensão.
Os homens são fortes enquanto representam uma
idéia forte; se enfraquecem quando se opõem a ela. A psicanálise sobreviverá a
essa perda e a compensará com a conquista de novos partidários. Para concluir,
quero expressar o desejo de que a sorte proporcione um caminho de elevação
muito agradável a todos aqueles que acharam a estada no submundo da psicanálise
desagradável demais para o seu gosto. E possamos nós, os que ficamos,
desenvolver até o fim, sem atropelos, nosso trabalho nas profundezas.
Fevereiro de 1914.
SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO (1914)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ZUR EINFÜHRUNG DES NARIZSSMUS
(a)EDIÇÕES ALEMÃS:
1914 Jb. Psychoan., 6, 1-24.
1918
S.K.S.N., 4, 78-112. (1922, 2ª ed.)
1924
Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. Pág. 35.
1925
G.S. 6, 155-187.
1931
Theoretische Schriften, 25-57.
1946 G.W., 10, 138-170.
(b)TRADUÇÃO INGLESA:
‘On
Narcissism: an Introduction’
1925C.P.,
4, 30-59. (Trad.
C. M. Baines.)
A presente tradução inglesa baseia-se na que
foi publicada em 1925.
A tradução mais literal do título deste artigo
seria ‘Sobre a Introdução do Conceito de Narcisismo’. Freud já vinha empregando
o termo há muitos anos. Sabemos por Ernest Jones (1955, 388) que numa reunião
da Sociedade Psicanalítica de Viena, a 10 de novembro de 1909, Freud havia
declarado que o narcisismo era uma fase intermediária necessária entre o
auto-erotismo e o amor objetal. Mais ou menos na mesma época, ele preparava a
segunda edição dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905d)
para o prelo (o prefácio traz a data de ‘dezembro de 1909’), e parece provável
que a primeira menção pública do novo termo se encontra numa nota de rodapé
acrescentada àquela edição (Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág.
144-5 n, IMAGO Editora, 1972), presumindo-se, vale dizer, que a nova edição
tenha aparecido no início de 1910, pois no fim de maio do mesmo ano apareceu o
livro de Freud sobre Leonardo (1910c), no qual se faz referência consideravelmente
mais extensa ao narcisismo (Edição Standard Brasileira, Vol. XI, pág.
92, IMAGO Editora, 1970). Um artigo de Rank sobre o assunto, mencionado por
Freud no início do presente estudo, foi publicado em 1911, e outras referências
do próprio Freud logo se seguiram: por exemplo, na Seção III da análise de
Schreber (1911c) e em Totem e Tabu (1912-13), Edição Standard
Brasileira, Vol. XIII, págs. 111-13, IMAGO Editora, 1974.
A idéia de escrever o presente artigo surgiu
nas cartas de Freud pela primeira vez em junho de 1913, tendo ele concluído uma
primeira minuta do mesmo no correr de umas férias que passara em Roma na
terceira semana de setembro do mesmo ano. Somente no fim de fevereiro de 1914 é
que foi começada a versão final, concluída um mês depois.
Trata-se de um dos mais importantes trabalhos
de Freud, podendo ser considerado como um dos fatores centrais na evolução de
seus conceitos. Resume suas primeiras discussões sobre o tema do narcisismo e
considera o lugar ocupado pelo narcisismo no desenvolvimento sexual, indo,
porém, além disso, pois penetra nos problemas mais profundos das relações entre
o ego e os objetos externos, traçando a nova distinção entre ‘libido do ego’ e
‘libido objetal’. Outrossim - e talvez seja este o ponto mais importante -,
introduz os conceitos do ‘ideal do ego’ e do agente auto-observador a ele
relacionado, que constituíram a base do que, finalmente, veio a ser descrito
como o ‘superego’ em The Ego and the Id (1923b). E, além disso tudo, em
duas passagens do artigo - no final da primeira seção e no início da terceira -
aborda as controvérsias com Adler e Jung, que foram o principal tema da
‘História do Movimento Psicanalítico’, escrita mais ou menos simultaneamente ao
presente trabalho durante os primeiros meses de 1914. Na realidade, um dos
motivos de Freud para escrever esse artigo foi, sem dúvida, demonstrar que o
conceito de narcisismo oferece uma alternativa à ‘libido’ não-sexual de Jung e
ao ‘protesto masculino’ de Adler.
Estes estão longe de ser os únicos tópicos
levantados no artigo, e por isso mesmo não causa surpresa sua aparência
inusitada de ser supercondensado - sua estrutura prestes a estourar pela
quantidade de material que contém. O próprio Freud parece ter sentido algo
semelhante. Conta-nos Ernest Jones (1955-340) que ‘ele ficou muito insatisfeito
com o resultado’ e escreveu a Abraham: ‘O “Narcisismo” teve um parto difícil e
traz todas as marcas de uma deformação correspondente’.
Por mais que isso possa ser assim, o artigo
exige e recompensa um estudo prolongado, tendo sido o ponto de partida de
muitas linhas de raciocínio ulteriores. Algumas destas, por exemplo, foram
desenvolvidas em ‘Luto e Melancolia’ (1917e [1915]), pág. 249 mais adiante, e
nos Capítulos VIII e XI de Group Psychology (1921c). O tema do
narcisismo, pode-se acrescentar, ocupa a maior parte da Conferência XXVI das Introductory
Lectures (1916-17). O ulterior desenvolvimento dos novos conceitos sobre a
estrutura da mente, que já começam a se tornar evidentes no presente artigo,
levou Freud a reavaliar algumas das afirmações feitas aqui, mormente no tocante
ao funcionamento do ego. Nesse sentido, deve-se ressaltar que o significado que
Freud atribuiu a ‘das Ich‘ (quase invariavelmente traduzido por o ‘ego’
nesta edição) passou por gradativas modificações. De início, ele empregou a
expressão sem grande precisão, tal como poderíamos falar de ‘o eu’; mas em seus
últimos escritos deu-lhe um significado muito mais definido e restrito. O
presente artigo ocupa um ponto de transição nesse desenvolvimento. O tópico, em
sua totalidade, é examinado mais amplamente na Introdução do Editor Inglês a The
Ego and the Id (1923b).
Trechos da tradução desse artigo publicados em
1925 foram incluídos em A General Selection from the Works of Sigmund Freud,
de Rickman (1937, 118-41).
SOBRE O NARCISISMO: UMA
INTRODUÇÃO
I
O termo narcisismo deriva da descrição clínica
e foi escolhido por Paul Näcke em 1899 para denotar a atitude de uma pessoa que
trata seu próprio corpo da mesma forma pela qual o c.orpo de um objeto sexual é
comumente tratado - que o contempla, vale dizer, o afaga e o acaricia até obter
satisfação completa através dessas atividades. Desenvolvido até esse grau, o
narcisismo passa a significar uma perversão que absorveu a totalidade da vida
sexual do indivíduo, exibindo, conseqüentemente, as características que
esperamos encontrar no estudo de todas as perversões.
Observadores psicanalíticos foram
subseqüentemente surpreendidos pelo fato de que aspectos individuais da atitude
narcisista são encontrados em muitas pessoas que sofrem de outras perturbações
- por exemplo, conforme Sadger ressaltou, em homossexuais -, e finalmente
afigurou-se provável que uma localização da libido que merecesse ser descrita
como narcisismo talvez estivesse presente em muito maior extensão, podendo
mesmo reivindicar um lugar no curso regular do desenvolvimento sexual humano.
Dificuldades do trabalho psicanalítico em neuróticos conduziram à mesma
suposição, pois parecia que, neles, essa espécie de atitude narcisista
constituía um dos limites à sua susceptibilidade à influência. O narcisismo
nesse sentido não seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo
do instinto de autopreservação, que, em certa medida, pode justificavelmente
ser atribuído a toda criatura viva.
Um motivo premente para nos ocuparmos com a
concepção de um narcisismo primário e normal surgiu quando se fez a tentativa
de incluir o que conhecemos da demência precoce (Kraepelin) ou da esquizofrenia
(Bleuler) na hipótese da teoria da libido. Esse tipo de pacientes, que eu
propus fossem denominados de parafrênicos, exibem duas características
fundamentais: megalomania e desvios de seu interesse do mundo externo - de
pessoas e coisas. Em conseqüência da segunda modificação, tornam-se
inacessíveis à influência da psicanálise e não podem ser curados por nossos
esforços. Mas o afastamento do parafrênico do mundo externo necessita ser mais
precisamente caracterizado. Um paciente que sofre de histeria ou de neurose
obsessiva, enquanto sua doença persiste, também desiste de sua relação com a
realidade. Mas a análise demonstra que ele de modo algum corta suas relações
eróticas com as pessoas e as coisas. Ainda as retém na fantasia, isto é, ele
substitui, por um lado, os objetos imaginários de sua memória por objetos
reais, ou mistura os primeiros com os segundos, e, por outro, renuncia à
iniciação das atividades motoras para a obtenção de seus objetivos relacionados
àqueles objetos. Essa é a única condição da libido a que podemos legitimamente
aplicar o termo ‘introversão’ da libido, empregado por Jung
indiscriminadamente. Com o parafrênico a situação é diferente. Ele parece
realmente ter retirado sua libido de pessoas e coisas do mundo externo, sem
substituí-las por outras na fantasia. Quando realmente as substitui, o
processo parece ser secundário e constituir parte de uma tentativa de
recuperação, destinada a conduzir a libido de volta a objetos.
Surge a questão: Que acontece à libido que foi
afastada dos objetos externos na esquizofrenia? A megalomania característica
desses estados aponta o caminho. Essa megalomania, sem dúvida, surge a expensas
da libido objetal. A libido afastada do mundo externo é dirigida para o ego e
assim dá margem a uma atitude que pode ser denominada de narcisismo. Mas a
própria megalomania não constitui uma criação nova; pelo contrário, é, como
sabemos, ampliação e manifestação mais clara de uma condição que já existia
previamente. Isso nos leva a considerar o narcisismo que surge através da
indução de catexias objetais como sendo secundário, superposto a um narcisismo
primário que é obscurecido por diversas influências diferentes.
Desejo ressaltar que não me proponho aqui
explicar ou penetrar ainda mais no problema da esquizofrenia, limitando-me
meramente a reunir o que já foi dito em outras ocasiões, a fim de justificar a
introdução do conceito de narcisismo.
Essa extensão da teoria da libido - em minha
opinião, legítima - recebe reforço de um terceiro setor, a saber, de nossas
observações e conceitos sobre a vida mental das crianças e dos povos
primitivos. Nos segundos, encontramos características que, se ocorressem
isoladamente, poderiam ser atribuídas à megalomania: uma superestima do poder
de seus desejos e atos mentais, a ‘onipotência de pensamentos’, uma crença na
força taumatúrgica das palavras, e uma técnica para lidar com o mundo externo -
‘mágica’ - que parece ser uma aplicação lógica dessas premissas grandiosas. Nas
crianças de hoje, cujo desenvolvimento é muito mais obscuro para nós, esperamos
encontrar uma atitude exatamente análoga em relação ao mundo externo. Assim,
formamos a idéia de que há uma catexia libidinal original do ego, parte da qual
é posteriormente transmitida a objetos, mas que fundamentalmente persiste e
está relacionada com as catexias objetais, assim como o corpo de uma ameba está
relacionado com os pseudópodes que produz. Em nossas pesquisas, tomando, como
se tomou, os sintomas neuróticos como ponto de partida, essa parte da
localização da libido permaneceu necessariamente oculta para nós no início.
Tudo que observamos foram emanações dessa libido - as catexias objetais, que
podem ser transmitidas e retiradas novamente. Também vemos, em linhas gerais,
um antítese entre a libido do ego e a libido objetal. Quanto mais uma é
empregada, mais a outra se esvazia. A libido objetal atinge sua fase mais
elevada de desenvolvimento no caso de uma pessoa apaixonada, quando o indivíduo
parece desistir de sua própria personalidade em favor de uma catexia objetal,
ao passo que temos a condição oposta na fantasia do paranóico (ou
autopercepção) do ‘fim do mundo’. Finalmente, no tocante à diferenciação das
energias psíquicas, somos levados à conclusão de que, para começar, durante o
estado de narcisismo, elas existem em conjunto, sendo nossa análise
demasiadamente tosca para estabelecer uma distinção entre elas. Somente quando
há catexia objetal é que é possível discriminar uma energia sexual - a libido -
de uma energia dos instintos do ego.
Antes de prosseguir, devo tocar em duas
questões que nos levam ao âmago das dificuldades de nosso assunto. Em primeiro
lugar, qual a relação entre o narcisismo de que tratamos e o auto-erotismo, que
descrevemos como um estado inicial da libido? Em segundo, se concedemos ao ego
uma catexia primária da libido, por que há necessidade de distinguir ainda uma
libido sexual de uma energia não-sexual dos instintos do ego? A postulação de
uma única espécie de energia psíquica não nos pouparia de todas as dificuldades
que residem em diferenciar uma energia dos instintos do ego da libido do ego, e
a libido do ego da libido objetal?
No tocante à primeira questão, posso ressaltar
que estamos destinados a supor que uma unidade comparável ao ego não pode
existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. Os
instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo,
portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo - uma nova ação
psíquica - a fim de provocar o narcisismo.
Provocaremos uma inquietação perceptível em
qualquer analista de quem se exija uma resposta definitiva à segunda questão.
Não é agradável a idéia de abandonar a observação pela controvérsia teórica
estéril, mas nem por isso nos devemos esquivar de uma tentativa de elucidação.
É verdade que noções tais como a de uma libido do ego, uma energia dos
instintos do ego, e assim por diante, não são particularmente fáceis de
apreender, nem suficientemente ricas de conteúdo; uma teoria especulativa das
relações em questão deveria começar por buscar como base um conceito
nitidamente definido. Mas sou da opinião de que é exatamente nisso que consiste
a diferença entre uma teoria especulativa e uma ciência erigida a partir da
interpretação empírica. Esta última não invejará a especulação por seu
privilégio de ter um fundamento suave, logicamente inatacável, contentando-se,
de bom grado, com conceitos básicos nebulosos mal imagináveis, que espera
apreender mais claramente no decorrer de seu desenvolvimento, ou que está até
mesmo preparada para substituir por outros, pois essas idéias não são o
fundamento da ciência, no qual tudo repousa: esse fundamento é tão- somente a
observação. Não são a base, mas o topo de toda a estrutura, e podem ser substituídas
e eliminadas sem prejudicá-la. Em nossos dias, a mesma coisa vem acontecendo na
ciência da física, cujas noções básicas no tocante a matéria, centros de força,
atração etc. são quase tão discutíveis quanto as noções correspondentes em
psicanálise.
O valor dos conceitos ‘libido do ego’ e ‘libido
do objeto’ reside no fato de que se originam do estudo das características
íntimas dos processos neuróticos e psicóticos. A diferenciação da libido numa
espécie que é adequada ao ego e numa outra que está ligada a objetos é o
corolário inevitável de uma hipótese original que estabelecia distinção entre
os instintos sexuais e os instintos do ego. Seja como for, a análise das
neuroses de pura transferência (neurose de histeria e obsessiva) compeliu-me a
fazer essa distinção, e sei apenas que todas as tentativas para explicar esses
fenômenos por outros meios foram inteiramente infrutíferas.
Na ausência total de qualquer teoria dos
instintos que nos ajude a encontrar nossa orientação, podemos permitir-nos, ou
antes, cabe-nos começar por elaborar alguma hipótese para a sua conclusão
lógica, até que ela ou se desintegre ou seja confirmada. Existem vários pontos
a favor da hipótese de ter havido desde o início uma separação entre os
instintos sexuais e os outros instintos do ego, além da utilidade de tal
hipótese na análise das neuroses de transferência. Admito que somente essa
segunda consideração não seria destituída de ambigüidade, porquanto poderia
tratar-se de uma energia psíquica indiferente que só se torna libido através do
ato de catexização de um objeto. Mas, em primeiro lugar, a distinção feita
nesse conceito corresponde à distinção popular comum entre a fome e o amor. Em
segundo lugar, há considerações biológicas a seu favor. O indivíduo leva
realmente uma existência dúplice: uma para servir as suas próprias finalidades
e a outra como um elo numa corrente, que ele serve contra sua vontade ou pelo
menos involuntariamente. O indivíduo considera a sexualidade como um dos seus
próprios fins, ao passo que, de outro ponto de vista, ele é um apêndice de seu
germoplasma, a cuja disposição põe suas energias em troca de uma retribuição de
prazer. Ele é o veículo mortal de uma substância (possivelmente) imortal - como
o herdeiro de uma propriedade inalienável, que é o único dono temporário de um
patrimônio que lhe sobrevive. A separação dos instintos sexuais dos instintos
do ego simplesmente refletiria essa função dúplice do indivíduo. Em terceiro
lugar, devemos recordar que todas as nossas idéias provisórias em psicologia
presumivelmente algum dia se basearão numa subestrutura orgânica. Isso torna
provável que as substâncias especiais e os processos químicos sejam os
responsáveis pela realização das operações da sexualidade, garantindo a
extensão da vida individual na da espécie. Estamos levando essa probabilidade
em conta ao substituirmos as substâncias químicas especiais por forças
psíquicas especiais.
Tento em geral manter a psicologia isenta de
tudo que lhe seja diferente em natureza, inclusive das linhas biológicas de
pensamento. Por essa mesma razão, gostaria, nessa altura, de admitir
expressamente que a hipótese de instintos do ego e instintos sexuais separados
(isto é, a teoria da libido) está longe de repousar, inteiramente, numa base
psicológica, extraindo seu principal apoio da biologia. Mas serei
suficientemente coerente [com minha norma geral] para abandonar essa hipótese,
se o próprio trabalho psicanalítico vier a produzir alguma outra hipótese mais
útil sobre os instintos. Até agora, isso não aconteceu. Pode ocorrer que, com
mais fundamento e numa visão de maior alcance, a energia sexual - a libido -
seja apenas o produto de uma diferenciação na energia que atua
generalizadamente na mente. Mas tal assertiva não tem qualquer relevância.
Relaciona-se com assuntos que se acham tão afastados dos problemas de nossa
observação, e a respeito dos quais conhecemos tão pouco, que é igualmente
ocioso contestá-la ou afirmá-la; essa identidade primordial talvez tenha tão
pouco que ver com nossos interesses analíticos quanto o parentesco primordial
de todas as raças da humanidade tem que ver com a prova de parentesco exigida a
fim de se estabelecer um direito legal de herança. Todas essas especulações não
nos levam a parte alguma. Visto não podermos esperar que outra ciência nos
apresente as conclusões finais sobre a teoria dos instintos, é muito mais
objetivo tentar ver que luz pode ser lançada sobre esse problema básico da
biologia por uma síntese dos fenômenos psicológicos. Enfrentemos a
possibilidade de erro, mas não nos deixemos dissuadir de buscar as implicações
lógicas da hipótese, que em primeiro lugar adotamos, de uma antítese entre os
instintos do ego e os instintos sexuais (hipótese à qual fomos forçosamente
conduzidos pela análise das neuroses de transferência), e de verificar se ela
se mostra destituída de contradições e se é profícua, e se pode ser aplicada
também a outras perturbações, como a esquizofrenia.
Seria, naturalmente, uma questão diferente se
se provasse que a teoria da libido já fracassou na tentativa de explicar essa
segunda doença. Isso foi asseverado por C. G. Jung (1912) e é por causa disso
que me vi obrigado a entrar nessa última discussão, da qual gostaria de ter
sido poupado. Teria preferido seguir até o fim o caminho trilhado na análise do
caso Schreber sem qualquer discussão de suas premissas. Mas a asserção de Jung
é, para dizer o mínimo, prematura. Os fundamentos que apresenta para ela são
deficientes. Em primeiro lugar, recorre a uma confissão, que eu teria feito, de
que fora obrigado, devido às dificuldades da análise de Schreber, a estender o
conceito de libido (isto é, a desistir de seu conteúdo sexual) e a identificar
a libido com o interesse psíquico em geral. Ferenczi (1913b), numa crítica
exaustiva à obra de Jung, já disse tudo o que é necessário a título de correção
dessa interpretação errônea. Posso apenas corroborar sua crítica e repetir que
jamais fiz tal retratação no tocante à teoria da libido. Outro argumento de
Jung, a saber, que não podemos supor que a retirada da libido seja em si mesma
suficiente para acarretar a perda da função normal da realidade, não é um
argumento, mas um ditame. ‘Incorre em petição de princípio’ e poupa discussão,
pois se e como isso é possível era precisamente o ponto que devia estar sob
investigação. Em sua grande obra seguinte, Jung (1913 [339-40]) simplesmente
falha na solução que eu havia indicado: ‘Ao mesmo tempo’, escreve, ‘ainda há o
seguinte a ser levado em consideração (um ponto ao qual, incidentalmente, Freud
se refere em sua obra sobre o caso Schreber [1911c]) - que a introversão da libido
sexualis conduz a uma catexia do “ego”, e que possivelmente é isso que
produz o resultado de uma perda da realidade. É realmente uma possibilidade
tentadora explicar a psicologia da perda da realidade dessa maneira’. Mas Jung
não vai muito além no exame dessa possibilidade. Algumas linhas adiante ele a
põe de lado com a observação de que essa determinante ‘resultaria na psicologia
de um anacoreta ascético, não em demência precoce’. Quão pouco essa analogia
inadequada pode ajudar-nos a resolver a questão fica claro pela consideração de
que um anacoreta dessa espécie, que ‘tenta erradicar todos os traços de
interesse sexual’ (mas só no sentido popular da palavra ‘sexual’), nem sequer
necessariamente exibe qualquer localização patogênica da libido. Ele pode ter
desviado inteiramente seu interesse sexual dos seres humanos; contudo, pode
tê-lo sublimado num interesse elevado pelo divino, pela natureza, ou pelo reino
animal, sem que sua libido tenha sofrido introversão até suas fantasias ou
retorno a seu ego. Essa analogia pareceria excluir por antecipação a
possibilidade de se estabelecer uma diferenciação entre o interesse que emana
de fontes eróticas e os outros. Recordemos, além disso, que as pesquisas da
escola suíça, por mais valiosas que sejam, elucidaram apenas duas facetas do
quadro da demência precoce - a presença nele de complexos que conhecemos tanto
em indivíduos saudáveis como em neuróticos e a similaridade das fantasias que
nele ocorrem com mitos populares -, mas não puderam lançar mais luz alguma
sobre o mecanismo da doença. Podemos, então, repudiar a asserção de Jung,
segundo a qual a teoria da libido não só malogrou na tentativa de explicar a
demência precoce, como também, portanto, é eliminada em relação às outras
neuroses.
II
Parece-me que certas dificuldades especiais
perturbam o estudo direto do narcisismo. Nosso principal meio de acesso a ele
continuará a ser provavelmente a análise das parafrenias. Assim como as
neuroses de transferência nos permitiram traçar os impulsos instintuais
libidinais, também a demência precoce e a paranóia nos fornecerão uma
compreensão interna (insight) da psicologia do ego. Mais uma vez, a fim
de chegar à compreensão do que parece tão simples em fenômenos normais, teremos
de recorrer ao campo da patologia com suas distorções e exageros. Ao mesmo
tempo, outros meios de abordagem nos permanecem acessíveis, e através deles
podemos obter um conhecimento melhor do narcisismo. Passarei a examiná-los
agora, na seguinte ordem: o estudo da doença orgânica, da hipocondria e da vida
erótica dos sexos.
Ao avaliar a influência da doença orgânica
sobre a distribuição da libido, sigo uma sugestão que me foi feita verbalmente
por Sándor Ferenczi. É do conhecimento de todos, e eu o aceito como coisa
natural, que uma pessoa atormentada por dor e mal-estar orgânico deixa de se
interessar pelas coisas do mundo externo, na medida em que não dizem respeito a
seu sofrimento. Uma observação mais detida nos ensina que ela também retira o
interesse libidinal de seus objetos amorosos: enquanto sofre, deixa de
amar. A banalidade desse fato não justifica que deixemos de traduzi-lo nos
termos da teoria da libido. Devemos então dizer: o homem enfermo retira suas
catexias libidinais de volta para seu próprio ego, e as põe para fora novamente
quando se recupera. ‘Concentrada está a sua alma’, diz Wilhelm Busch a respeito
do poeta que sofre de dor de dentes, ‘no estreito orifício do molar’.
Aqui a libido e o interesse do ego partilham do
mesmo destino e são mais uma vez indistiguíveis entre si. O egoísmo familiar do
enfermo abrange os dois. Achamos isso tão natural porque estamos certos de que,
na mesma situação, nosso comportamento seria idêntico. A maneira pela qual os
sentimentos de quem ama, por mais fortes que sejam, são banidos pelos males
corpóreos, e de súbito substituídos por uma indiferença completa, constitui um
tema que tem sido consideravelmente explorado por escritores humorísticos.
A condição do sono também se assemelha à
doença, por acarretar uma retirada narcisista das posições da libido até o
próprio eu do indivíduo, ou, mais precisamente, até o desejo único de dormir. O
egoísmo dos sonhos ajusta-se muito bem nesse contexto. [ver em [1]]. Em ambos
os estados temos, pelo menos, exemplos de alterações na distribuição da libido
que são resultantes de uma modificação no ego.
A hipocondria, da mesma forma que a doença
orgânica, manifesta-se em sensações corpóreas aflitivas e penosas, tendo sobre
a distribuição da libido o mesmo efeito que a doença orgânica. O hipocondríaco
retira tanto o interesse quanto a libido - a segunda de forma especialmente
acentuada - dos objetos do mundo externo, concentrando ambos no órgão que lhe
prende a atenção. Torna-se agora evidente uma diferença entre a hipocondria e a
doença orgânica: na segunda, as sensações aflitivas baseiam-se em mudanças
demonstráveis [orgânicas]; na primeira, isso não ocorre. Mas estaria
inteiramente de acordo com nossa concepção geral dos processos de neurose, se
resolvêssemos dizer que a hipocondria deve estar certa: deve-se supor que as
modificações orgânicas também estão presentes nela.
Mas o que seriam essas mudanças?
Deixar-nos-emos guiar, nessa altura, por nossa experiência, a qual mostra que
as sensações corpóreas de natureza desagradável, comparáveis às da hipocondria,
ocorrem também nas outras neuroses. Já tive ocasião de dizer que me inclino a
classificar a hipocondria, juntamente com a neurastenia e a neurose de angústia,
como uma terceira neurose ‘real’ Provavelmente não seria ir muito longe supor
que, no caso das outras neuroses, uma pequena dose de hipocondria também se
forma regularmente ao mesmo tempo. Temos o melhor exemplo disso, creio eu, na
neurose de angústia com sua superestrutura de histeria. Ora, o protótipo
familiar de um órgão que é dolorosamente delicado, que de alguma forma é
alterado e que, contudo, não está doente no sentido comum do termo, é o órgão
genital em seus estados de excitação. Nessa condição, ele fica congestionado de
sangue, intumescido e umectado, sendo a sede de uma multiplicidade de
sensações. Descrevamos agora, tomando qualquer parte do corpo, sua atividade de
enviar estímulos sexualmente excitantes à mente, como sendo sua ‘erogenicidade’,
e reflitamos, ainda, que as considerações nas quais se baseou nossa teoria da
sexualidade de há muito nos habituou à idéia de que certas outras partes do
corpo - as zonas ‘erógenas’ - podem atuar como substitutos dos órgãos genitais
e se comportarem analogamente a eles. Temos então apenas mais um passo a dar.
Podemos decidir considerar a erogenicidade como uma característica geral de
todos os órgãos e, então, podemos falar de um aumento ou diminuição dela numa
parte específica do corpo. Para cada uma das modificações na erogenicidade dos
órgãos poderia, então, verificar-se uma modificação paralela da catexia
libidinal no ego. Tais fatores constituíram aquilo que acreditamos estar
subjacente à hipocondria e aquilo que pode exercer o mesmo efeito sobre a
distribuição da libido tal como produzida por uma doença material dos órgãos.
Vemos que, se acompanharmos essa linha de
raciocínio, nos defrontaremos não só com o problema da hipocondria, mas também
com o das outras neuroses ‘reais’ - a neurastenia e a neurose de angústia.
Paremos, portanto, nesse ponto. Não pertence ao âmbito de uma indagação
puramente psicológica penetrar tanto nas fronteiras da pesquisa fisiológica.
Mencionarei simplesmente que, a partir desse ponto de vista, podemos suspeitar
que a relação da hipocondria com a parafrenia é semelhante à das outras
neuroses ‘reais’ com a histeria e a neurose obsessiva: podemos desconfiar, vale
dizer, que ela está na dependência da libido do ego, assim como as outras estão
na da libido objetal, e que a ansiedade hipocondríaca é a contrapartida,
enquanto provém da libido do ego, da ansiedade neurótica. Além disso, visto já
estarmos familiarizados com a idéia de que o mecanismo do adoecer e da formação
de sintomas nas neuroses de transferência - o caminho da introversão para a
regressão - deve ficar vinculado a um represamento da libido objetal, podemos
também ficar mais perto da idéia de um represamento da libido do ego, e podemos
estabelecer uma relação dessa idéia com os fenômenos da hipocondria e da parafrenia.
Nesse ponto, nossa curiosidade naturalmente
perguntará por que esse represamento da libido no ego teria de ser
experimentado como desagradável. Contentar-me-ei com a reposta de que o
desprazer é sempre a expressão de um grau mais elevado de tensão, e que,
portanto, o que ocorre é que uma quantidade no campo dos acontecimentos
materiais é transformada, aqui como em outros lugares, na qualidade psíquica do
desprazer. Não obstante, talvez o fator decisivo para a geração do desprazer
não seja a magnitude absoluta do acontecimento material, mas antes alguma
função específica dessa magnitude absoluta. Aqui podemos até mesmo
aventurar-nos a abordar a questão de saber o que torna absolutamente necessário
para a nossa vida mental ultrapassar os limites do narcisismo e ligar a libido
a objetos. A resposta decorrente de nossa linha de raciocínio mais uma vez
seria a de que essa necessidade surge quando a catexia do ego com a libido
excede certa quantidade. Um egoísmo forte constitui uma proteção contra o
adoecer, mas, num último recurso, devemos começar a amar a fim de não
adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se, em conseqüência da
frustração, formos incapazes de amar. Isso acompanha mais ou menos os versos do
quadro que Heine traça sobre a psicogênese da Criação:
Krankheit ist wohl der letzte GrundDes ganzen
Schöpferdrangs gewesen;Erschaffend konnte ich genesen,Erschaffend wurde ich
gesund.
Reconhecemos nosso aparelho mental como sendo,
acima de tudo, um dispositivo destinado a dominar as excitações que de outra
forma seriam sentidas como aflitivas ou teriam efeitos patogênicos. Sua
elaboração na mente auxilia de forma marcante um escoamento das excitações que
são incapazes de descarga direta para fora, ou para as quais tal descarga é, no
momento, indesejável. No primeiro caso, contudo, é indiferente que esse
processo interno de elaboração seja efetuado em objetos reais ou imaginários. A
diferença não surge senão depois - caso a transferência da libido para objetos
irreais (introversão) tenha ocasionado seu represamento. Nos parafrênicos, a
megalomania permite uma semelhante elaboração interna da libido que voltou ao
ego; talvez apenas quando a megalomania falhe, o represamento da libido no ego
se torne patogênico e inicie o processo de recuperação que nos dá a impressão
de ser uma doença.
Tentarei aqui penetrar um pouco mais no
mecanismo da parafrenia e reunirei os conceitos que já me pareçam merecedores
de consideração. A diferença entre as afecções parafrênicas e as neuroses de
transferência parecem-me estar na circunstância de que, nas primeiras, a libido
liberada pela frustração não permanece ligada a objetos na fantasia, mas se
retira para o ego. A megalomania corresponderia, por conseguinte, ao domínio
psíquico dessa última quantidade de libido, e seria assim a contrapartida da
introversão para as fantasias que é encontrada nas neuroses de transferência;
uma falha dessa função psíquica dá margem à hipocondria da parafrenia, e isso é
homólogo à ansiedade das neuroses de transferência. Sabemos que essa ansiedade
pode ser transformada por uma elaboração psíquica ulterior, isto é, por
conversão, formação de reação ou construção de proteções (fobias). O processo
correspondente nos parafrênicos consiste numa tentativa de restauração, à qual
se devem as surpreendentes manifestações da doença. De uma vez que a parafrenia
com freqüência, se não geralmente, acarreta apenas um desligamento parcial
da libido dos objetos, podemos distinguir três grupos de fenômenos no quadro
clínico: (1) os que representam o que resta de um estado normal de neurose
(fenômenos residuais); (2) os que representam o processo mórbido (afastamento
da libido dos seus objetos e, além disso, megalomania, hipocondria,
perturbações afetivas e todo tipo de regressão); (3) os que representam a restauração,
nos quais a libido é mais uma vez ligada a objetos, como uma histeria (na
demência precoce ou na parafrenia propriamente dita), ou como numa neurose
obsessiva (na paranóia). Essa nova catexia libidinal difere da primária por
partir de outro nível e sob outras condições. A diferença entre as neuroses de
transferência que ocorrem no caso de nova espécie de catexia libidinal e as
formações correspondentes onde o ego é normal devem ser capazes de nos
proporcionar a compreensão interna (insight) mais profunda da estrutura
de nosso aparelho mental.
Uma terceira maneira pela qual podemos abordar
o estudo do narcisismo é através da observação da vida erótica dos seres
humanos, com suas várias espécies de diferenciação no homem e na mulher. Assim
como a libido objetal inicialmente ocultava de nossa observação a libido do
ego, também em relação à escolha de objeto nas crianças de tenra idade (e nas
crianças em crescimento) o que primeiro notamos foi que elas derivavam seus
objetos sexuais de suas experiências de satisfação. As primeiras satisfações
sexuais auto-eróticas são experimentadas em relação com funções vitais que
servem à finalidade de autopreservação. Os instintos sexuais estão, de início,
ligados à satisfação dos instintos do ego; somente depois é que eles se tornam
independentes destes, e mesmo então encontramos uma indicação dessa vinculação
original no fato de que os primeiros objetos sexuais de uma criança são as
pessoas que se preocupam com sua alimentação, cuidados e proteção: isto é, no
primeiro caso, sua mãe ou quem quer que a substitua. Lado a lado, contudo, com
esse tipo e fonte de escolha objetal, que pode ser denominado o tipo
‘anaclítico’, ou de ‘ligação’, a pesquisa da psicanálise revelou um segundo
tipo, que não estávamos preparados para encontrar. Descobrimos, de modo
especialmente claro, em pessoas cujo desenvolvimento libidinal sofreu alguma
perturbação, tais como pervertidos e homossexuais, que em sua escolha ulterior
dos objetos amorosos elas adotaram como modelo não sua mãe mas seus próprios
eus. Procuram inequivocamente a si mesmas como um objeto amoroso, e exibem um
tipo de escolha objetal que deve ser denominado ‘narcisista’. Nessa observação,
temos o mais forte dos motivos que nos levaram a adotar a hipótese do
narcisismo.
Não concluímos, contudo, que os seres humanos
se acham divididos em dois grupos acentuadamente diferenciados, conforme sua
escolha objetal se coadune com o tipo anaclítico ou o narcisista; pelo
contrário, presumimos que ambos os tipos de escolha objetal estão abertos a
cada indivíduo, embora ele possa mostrar preferência por um ou por outro.
Dizemos que um ser humano tem originalmente dois objetos sexuais - ele próprio
e a mulher que cuida dele - e ao fazê-lo estamos postulando a existência de um
narcisismo primário em todos, o qual, em alguns casos, pode manifestar-se de
forma dominante em sua escolha objetal.
Uma comparação entre os sexos masculino e
feminino indica então que existem diferenças fundamentais entre eles no tocante
a seu tipo de escolha objetal, embora essas diferenças naturalmente não sejam
universais. O amor objetal completo do tipo de ligação é, propriamente falando,
característico do indivíduo do sexo masculino. Ele exibe a acentuada
supervalorização sexual que se origina, sem dúvida, do narcisismo original da
criança, correspondendo assim a uma transferência desse narcisismo para o
objeto sexual. Essa supervalorização sexual é a origem do estado peculiar de
uma pessoa apaixonada, um estado que sugere uma compulsão neurótica, cuja
origem pode, portanto, ser encontrada num empobrecimento do ego em relação à
libido em favor do objeto amoroso. Já com o tipo feminino mais freqüentemente
encontrado, provavelmente o mais puro e o mais verdadeiro, o mesmo não ocorre.
Com o começo da puberdade, o amadurecimento dos órgãos sexuais femininos, até
então em estado de latência, parece ocasionar a intensificação do narcisismo
original, e isso é desfavorável para o desenvolvimento de uma verdadeira
escolha objetal com a concomitante supervalorização sexual. As mulheres,
especialmente se forem belas ao crescerem, desenvolvem certo autocontentamento
que as compensa pelas restrições sociais que lhes são impostas em sua escolha
objetal. Rigorosamente falando, tais mulheres amam apenas a si mesmas, com uma
intensidade comparável à do amor do homem por elas. Sua necessidade não se acha
na direção de amar, mas de serem amadas; e o homem que preencher essa condição
cairá em suas boas graças. A importância desse tipo de mulher para a vida
erótica da humanidade deve ser levada em grande consideração. Tais mulheres
exercem o maior fascínio sobre os homens, não apenas por motivos estéticos,
visto que em geral são as mais belas, mas também por uma combinação de
interessantes fatores psicológicos, pois parece muito evidente que o narcisismo
de outra pessoa exerce grande atração sobre aqueles que renunciaram a uma parte
de seu próprio narcisismo e estão em busca do amor objetal. O encanto de uma
criança reside em grande medida em seu narcisismo, seu autocontentamento e
inacessibilidade, assim como também o encanto de certos animais que parecem não
se preocupar conosco, tais como os gatos e os grandes animais carniceiros.
Realmente, mesmo os grandes criminosos e os humoristas, conforme representados
na literatura, atraem nosso interesse pela coerência narcisista com que
conseguem afastar do ego qualquer coisa que o diminua. É como se os
invejássemos por manterem um bem-aventurado estado de espírito - uma posição
libidinal inatacável que nós próprios já abandonamos. O grande encanto das
mulheres narcisistas tem, contudo, o seu reverso; grande parte da insatisfação
daquele que ama, de suas dúvidas quanto ao amor da mulher, de suas queixas
quanto à natureza enigmática da mulher, tem suas raízes nessa incongruência
entre os tipos de escolha de objeto.
Talvez não seja fora de propósito apresentar
aqui a certeza de que essa descrição da forma feminina de vida erótica não se
deve a qualquer desejo tendencioso de minha parte no sentido de depreciar as
mulheres. Afora o fato de essa tendenciosidade ser inteiramente estranha a mim,
sei que essas diferentes linhas de desenvolvimento correspondem à diferenciação
de funções num todo biológico altamente complicado; além disso, estou pronto a
admitir que existe um número bem grande de mulheres que amam de acordo com os
moldes do tipo masculino e que também desenvolvem a supervalorização sexual
própria àquele tipo.
Mesmo para as mulheres narcisistas, cuja
atitude para com os homens permanece fria, há um caminho que eleva ao amor
objetal completo. Na criança que geram, uma parte de seu próprio corpo as
confronta como um objeto estranho, ao qual, partindo de seu próprio narcisismo,
podem então dar um amor objetal completo. Existem ainda outras mulheres que não
têm de esperar por um filho a fim de darem um passo no desenvolvimento do
narcisismo (secundário) para o amor objetal. Antes da puberdade, sentem-se
masculinas e se desenvolvem de alguma forma ao longo de linhas masculinas;
depois de essa tendência ter sido interrompida de repente ao alcançarem a maturidade
feminina, ainda retêm a capacidade de anseio por um ideal masculino - ideal que
é de fato uma sobrevivência da natureza de menino que outrora possuíram.
O que eu disse até agora à guisa de indicação
pode ser concluído por um breve sumário dos caminhos que levam à escolha de um
objeto.
Uma pessoa pode amar:
(1)Em conformidade com o tipo narcisista:
(a) o que ela própria é (isto é, ela mesma),
(b) o que ela própria foi,
(c) o que ela própria gostaria de ser,
(d) alguém que foi uma vez parte dela mesma.
(2)Em conformidade com o tipo anaclítico (de
ligação):
(a) a mulher que a alimenta,
(b) o homem que a protege,
e a sucessão de substitutos que tomam o seu
lugar. A inclusão do caso (c) do primeiro tipo não pode ser justificada até uma
etapa posterior deste exame. [ver em [1]]
A significância da escolha objetal narcisista
para a homossexualidade nos homens deve ser considerada em relação a outra
coisa.
O narcisismo primário das crianças por nós
pressuposto e que forma um dos postulados de nossas teorias da libido é menos
fácil de apreender pela observação direta do que de confirmar por alguma outra
inferência. Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os
filhos, temos de reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu
próprio narcisismo, que de há muito abandonaram. O indicador digno de confiança
constituído pela supervalorização, que já reconhecemos como um estigma
narcisista no caso da escolha objetal, domina, como todos nós sabemos, sua
atitude emocional. Assim eles se acham sob a compulsão de atribuir todas as
perfeições ao filho - o que uma observação sóbria não permitiria - e de ocultar
e esquecer todas as deficiências dele. (Incidentalmente, a negação da
sexualidade nas crianças está relacionada a isso.) Além disso, sentem-se
inclinados a suspender, em favor da criança, o funcionamento de todas as
aquisições culturais que seu próprio narcisismo foi forçado a respeitar, e a
renovar em nome dela as reivindicações aos privilégios de há muito por eles
próprios abandonados. A criança terá mais divertimentos que seus pais; ela não
ficará sujeita às necessidades que eles reconheceram como supremas na vida. A
doença, a morte, a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a
atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão ab-rogadas em seu favor;
ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação - ‘Sua Majestade
o Bebê’, como outrora nós mesmos nos imaginávamos. A criança concretizará os
sonhos dourados que os pais jamais realizaram - o menino se tornará um grande
homem e um herói em lugar do pai, e a menina se casará com um príncipe como
compensação para sua mãe. No ponto mais sensível do sistema narcisista, a
imortalidade do ego, tão oprimida pela realidade, a segurança é alcançada por
meio do refúgio na criança. O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão
infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual,
transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior.
III
Os distúrbios aos quais o narcisismo original
de uma criança se acha exposto, as reações com que ela procura proteger-se
deles e os caminhos aos quais fica sujeita ao fazê-lo - tais são os temas que
proponho deixar de lado, como importante campo de trabalho ainda por explorar.
Sua parte mais importante, contudo, pode ser isolada sob a forma do ‘complexo
de castração’ (nos meninos, a ansiedade em relação ao pênis; nas meninas, a
inveja do pênis) e tratada em conexão com o efeito da coerção inicial da
atividade sexual. A pesquisa psicanalítica em geral nos permite reconstituir as
vicissitudes sofridas pelos instintos libidinais quando estes, isolados dos
instintos do ego, ficam em oposição a eles; mas no campo específico do complexo
de castração, ela nos permite inferir a existência de uma época e de uma
situação psíquica nas quais os dois grupos de instintos, ainda atuando em
uníssono e inseparavelmente mesclados, surgem como interesses narcisistas. Foi
desse contexto que Adler [1910] extraiu seu conceito de ‘protesto masculino’,
quase elevando-o à posição de única força motora na formação tanto do caráter
quanto da neurose, e baseando-o não numa tendência narcisista, e portanto ainda
libidinal, mas numa valorização social. A pesquisa psicanalítica reconheceu,
desde o início, a existência e a importância do ‘protesto masculino’ mas o tem
considerado, contrariamente a Adler, como sendo narcisista em sua natureza e
oriundo do complexo de castração. O ‘protesto masculino’ está relacionado à
formação do caráter, em cuja gênese penetra juntamente com muitos outros
fatores, sendo, contudo, inteiramente inadequado para explicar os problemas das
neuroses, no tocante às quais Adler nada leva em conta, a não ser a maneira
pela qual elas servem aos instintos do ego. Acho inteiramente impossível situar
a gênese da neurose na estreita base do complexo de castração, por mais
poderosamente que, nos homens, esse complexo ocupe o primeiro plano entre suas
resistências à cura de uma neurose. Incidentalmente, conheço casos de neuroses
em que o ‘protesto masculino’ ou, como o encaramos, o complexo de castração,
não desempenha qualquer papel patogênico, nem sequer chegando a aparecer.
A observação de adultos normais revela que sua
megalomania antiga foi arrefecida e que as características psíquicas a partir
das quais inferimos seu narcisismo infantil foram apagadas. Que aconteceu à
libido do ego? Devemos supor que toda ela se converteu em catexias objetais?
Essa possibilidade é claramente contrária ao encaminhamento de nossa
argumentação; podemos, porém, encontrar uma sugestão em outra resposta para a
pergunta na psicologia da repressão.
Sabemos que os impulsos instintuais libidinais
sofrem a vicissitude da repressão patogênica se entram em conflito com as
idéias culturais e éticas do indivíduo. Com isso, nunca queremos dizer que o
indivíduo em questão dispõe de um conhecimento meramente intelectual da
existência de tais idéias; sempre queremos dizer que ele as reconhece como um
padrão para si próprio, submetendo-se às exigências que elas lhe fazem. A
repressão, como dissemos, provém do ego; poderíamos dizer com maior exatidão
que provém do amor-próprio do ego. As mesmas impressões, experiências, impulsos
e desejos aos quais um homem se entrega, ou que pelo menos elabora conscientemente,
serão rejeitados com a maior indignação por outro, ou mesmo abafados antes que
entrem na consciência. A diferença entre os dois, que encerra o fator
condicionante da repressão, pode ser facilmente expressa em termos que permitem
seja ela explicada pela teoria da libido. Podemos dizer que o primeiro homem
fixou um ideal em si mesmo, pelo qual mede seu ego real, ao passo que o outro
não formou qualquer ideal desse tipo. Para o ego, a formação de um ideal
seria o fator condicionante da repressão.
Esse ego ideal é agora o alvo do amor de si
mesmo (self-love) desfrutado na infância pelo ego real. O narcisismo do
indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal, o qual, como o ego
infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor. Como acontece sempre que
a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se mostra incapaz de abrir
mão de uma satisfação de que outrora desfrutou. Ele não está disposto a
renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando, ao crescer, se vê
perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio
julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela perfeição, procura
recuperá-la sob a nova forma de um ego ideal. O que ele projeta diante de si
como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na
qual ele era o seu próprio ideal.
Somos naturalmente levados a examinar a relação
entre essa formação de um ideal e a sublimação. A sublimação é um processo que
diz respeito à libido objetal e consiste no fato de o instinto se dirigir no
sentido de uma finalidade diferente e afastada da finalidade da satisfação
sexual; nesse processo, a tônica recai na deflexão da sexualidade. A
idealização é um processo que diz respeito ao objeto; por ela, esse
objeto, sem qualquer alteração em sua natureza, é engrandecido e exaltado na
mente do indivíduo. A idealização é possível tanto na esfera da libido do ego
quanto na da libido objetal. Por exemplo, a supervalorização sexual de um
objeto é uma idealização do mesmo. Na medida em que a sublimação descreve algo
que tem que ver com o instinto, e a idealização, algo que tem que ver com o
objeto, os dois conceitos devem ser distinguidos um do outro.
A formação de um ideal do ego é muitas vezes
confundida com a sublimação do instinto, em detrimento de nossa compreensão dos
fatos. Um homem que tenha trocado seu narcisismo para abrigar um ideal elevado
do ego, nem por isso foi necessariamente bem-sucedido em sublimar seus
instintos libidinais. É verdade que o ideal do ego exige tal sublimação, mas
não pode fortalecê-la; a sublimação continua a ser um processo especial que
pode ser estimulado pelo ideal, mas cuja execução é inteiramente independente
de tal estímulo. É precisamente nos neuróticos que encontramos as mais
acentuadas diferenças de potencial entre o desenvolvimento de seu ideal do ego
e a dose de sublimação de seus instintos libidinais primitivos; e em geral é
muito mais difícil convencer um idealista a respeito da localização
inconveniente de sua libido do que um homem simples, cujas pretensões
permaneceram mais moderadas. Além disso, a formação de um ideal do ego e a
sublimação se acham relacionadas, de forma bem diferente, à causação da
neurose. Como vimos, a formação de um ideal aumenta as exigências do ego,
constituindo o fator mais poderoso a favor da repressão; a sublimação é uma
saída, uma maneira pela qual essas exigências podem ser atendidas sem envolver
repressão.
Não nos surpreenderíamos se encontrássemos um
agente psíquico especial que realizasse a tarefa de assegurar a satisfação
narcisista proveniente do ideal do ego, e que, com essa finalidade em vista,
observasse constantemente o ego real, medindo-o por aquele ideal. Admitindo-se
que esse agente de fato exista, de forma alguma seria possível chegar a ele
como se fosse uma descoberta - podemos tão-somente reconhecê-lo,
pois podemos supor que aquilo que chamamos de nossa ‘consciência’ possui as
características exigidas. O reconhecimento desse agente nos permite compreender
os chamados ‘delírios de sermos notados’ ou, mais corretamente, de sermos vigiados,
que constituem sintomas tão marcantes nas doenças paranóides, podendo também
ocorrer como uma forma isolada de doença, ou intercalados numa neurose de
transferência. Pacientes desse tipo queixam-se de que todos os seus pensamentos
são conhecidos e suas ações vigiadas e supervisionadas; eles são informados
sobre o funcionamento desse agente por vozes que caracteristicamente lhes falam
na terceira pessoa (‘Agora ela está pensando nisso de novo’, ‘Agora ele está
saindo’). Essa queixa é justificada; ela descreve a verdade. Um poder dessa
espécie, que vigia, que descobre e que critica todas as nossas intenções,
existe realmente. Na realidade, existe em cada um de nós em nossa vida normal.
Os delírios de estar sendo vigiado apresentam
esse poder numa forma regressiva, revelando assim sua gênese e a razão por que
o paciente fica revoltado contra ele, pois o que induziu o indivíduo a formar
um ideal do ego, em nome do qual sua consciência atua como vigia, surgiu da
influência crítica de seus pais (transmitida a ele por intermédio da voz), aos
quais vieram juntar-se, à medida que o tempo passou, aqueles que o educaram e
lhe ensinaram, a inumerável e indefinível coorte de todas as outras pessoas de
seu ambiente - seus semelhantes - e a opinião pública.
Dessa forma, grandes quantidades de libido de
natureza essencialmente homossexual são introduzidas na formação do ideal do
ego narcisista, encontrando assim um escoadouro e satisfação em conservá-lo. A
instituição da consciência foi, no fundo, uma personificação, primeiro da
crítica dos pais, e, subseqüentemente, da sociedade - processo que se repete
quando uma tendência à repressão se desenvolve de uma proibição ou obstáculo
que proveio, no primeiro caso, de fora. As vozes, bem como a multidão
indefinida, são reconduzidas ao primeiro plano pela doença, e assim a evolução
da consciência se reproduz de forma regressiva. Mas a revolta contra esse
‘agente de censura’ brota não só do desejo, por parte do indivíduo (de acordo
com o caráter fundamental de sua doença), de libertar-se de todas essas
influências, a começar pela dos pais, mas também do fato de retirar sua libido
homossexual delas. A consciência do paciente então se confronta com ele de
maneira regressiva, como sendo uma influência hostil vinda de fora.
As queixas feitas pelos paranóicos também
revelam que, no fundo, a autocrítica da consciência coincide com a
auto-observação na qual ela se baseia. Assim, a atividade da mente que assumiu
a função da consciência também se coloca a serviço da pesquisa interna, que
proporciona à filosofia o material para as suas operações intelectuais. Isso
pode ter certa relação com a tendência, característica dos paranóicos, de
formar sistemas especulativos.
Por certo será de grande importância para nós
encontrar provas da atividade desse agente criticamente observador - que se
torna elevada na consciência e na introspecção filosófica - também em outros
campos. Mencionarei aqui o que Herbert Silberer denominou de ‘fenômeno
funcional’, um dos poucos acréscimos indiscutivelmente valiosos à teoria dos
sonhos. Silberer, como sabemos, demonstrou que em estados entre o sono e a
vigília podemos observar diretamente a tradução dos pensamentos em imagens
visuais, mas que, nessas circunstâncias, com freqüência temos a representação,
não de um conteúdo do pensamento, mas do estado real (disposição, fadiga etc.)
da pessoa que luta contra o sono. De forma semelhante, revelou que as
conclusões de alguns sonhos ou de algumas divisões de seu conteúdo significam
meramente a própria percepção, por parte daquele que sonha, do seu estado de
sono ou de vigília. Silberer demonstrou assim o papel desempenhado pela
observação - no sentido dos delírios do paranóico quanto a estar sendo vigiado
- na formação dos sonhos. Esse papel não é constante. Provavelmente,
desprezei-o por não desempenhar um papel relevante em meus próprios sonhos; nas
pessoas filosoficamente dotadas e habituadas à introspecção ele pode tornar-se
bastante evidente.
Lembremo-nos aqui de já termos verificado que a
formação de sonhos ocorre sob o domínio de uma censura que força a distorção
dos pensamentos oníricos. Não figuramos, contudo, essa censura como tendo um
poder especial, mas escolhemos o termo para designar uma faceta das tendências
repressivas que regem o ego, a saber, a faceta que está voltada para os
pensamentos oníricos. Se penetrarmos ainda mais na estrutura do ego, também
poderemos reconhecer, no ideal do ego e nas expressões orais dinâmicas da
consciência, o censor dos sonhos. Se esse censor estiver, até
certo ponto, alerta, mesmo durante o sono, poderemos compreender como sua
atividade sugerida de auto-observação e de autocrítica - com pensamentos tais
como ‘agora ele está com muito sono para pensar’, ‘agora ele está despertando’
- presta uma contribuição ao conteúdo do sonho.
Nessa altura, podemos tentar um exame da
atitude de auto-estima nas pessoas normais e nos neuróticos.
Em primeiro lugar, parece-nos que a auto-estima
expressa o tamanho do ego; os vários elementos que irão determinar esse tamanho
são aqui irrelevantes. Tudo o que uma pessoa possui ou realiza, todo
remanescente do sentimento primitivo de onipotência que sua experiência tenha
confirmado, ajuda-a a aumentar sua auto-estima.
Aplicando nossa distinção entre os instintos
sexuais e os do ego, devemos reconhecer que a auto-estima depende intimamente
da libido narcisista. Aqui somos apoiados por dois fatos fundamentais: o de
que, nos parafrênicos, a auto-estima aumenta, enquanto que nas neuroses de
transferência ela se reduz; e o de que, nas relações amorosas, o fato de não
ser amado reduz os sentimentos de auto-estima, enquanto que o de ser amado os
aumenta. Como já tivemos ocasião de assinalar, a finalid-ade e satisfação em
uma escolha objetal narcisista consiste em ser amado.
Além disso, é fácil observar que a catexia
objetal libidinal não eleva a auto-estima. A dependência ao objeto amado tem
como efeito a redução daquele sentimento: uma pessoa apaixonada é humilde. Um
indivíduo que ama priva-se, por assim dizer, de uma parte de seu narcisismo,
que só pode ser substituída pelo amor de outra pessoa por ele. Sob todos esses
aspectos, a auto-estima parece ficar relacionada com o elemento narcisista do
amor.
A compreensão da impotência, da própria
incapacidade de amar, em conseqüência de perturbação física ou mental, exerce
um efeito extremamente diminuidor sobre a auto-estima. Aqui, em minha opinião,
devemos procurar uma das fontes dos sentimentos de inferioridade experimentados
por pacientes que sofrem de neuroses de transferência, sentimentos que esses
pacientes estão prontos a relatar. A principal fonte desses sentimentos é,
contudo, o empobrecimento do ego, por causa das enormes catexias libidinais
dele retiradas - por causa, vale dizer, do dano sofrido pelo ego em função de
tendências sexuais que já não estão sujeitas a controle.
Adler [1907] tem razão quando sustenta que,
quando uma pessoa dotada de vida mental ativa reconhece uma inferioridade em um
de seus órgãos, isso age como estímulo, provocando nessa pessoa um nível mais
elevado de realização mediante supercompensação. Mas, definitivamente,
incorreríamos em exagero se, seguindo o exemplo de Adler, procurássemos
atribuir toda realização bem-sucedida a essa inferioridade original de um
órgão. Nem todos os pintores são desfavorecidos por uma visão deficiente, e nem
todos os oradores foram originariamente gagos. E existem numerosos exemplos de
excelentes realizações que brotam de propriedades orgânicas superiores.
Na etiologia das neuroses, a inferioridade orgânica e o desenvolvimento imperfeito
desempenham papel insignificante - semelhante ao desempenhado por material
perceptual geralmente ativo na formação dos sonhos. As neuroses fazem uso de
tais inferioridades como um pretexto, assim como o fazem em relação a qualquer
outro fator que se preste a isso. Somos tentados a acreditar numa paciente
neurótica quando ela nos diz que era inevitável adoecer, visto que, por ser
feia, deformada ou carente de encantos, ninguém poderia amá-la; logo, porém,
outra neurótica nos prestará melhores esclarecimentos - pois persiste em sua
neurose e em sua aversão à sexualidade, embora pareça mais desejável, e seja,
de fato, mais desejada, do que a mulher comum. Em sua maioria, as mulheres
histéricas são representantes atraentes e mesmo belas de seu sexo, ao passo
que, por outro lado, a freqüência da fealdade, de defeitos orgânicos e de
enfermidades nas classes inferiores da sociedade não aumenta a incidência da
doença neurótica entre elas.
As relações entre auto-estima e erotismo - isto
é, catexias objetais libidinais - podem ser expressas concisamente da seguinte
forma. Devemos distinguir dois casos, conforme as catexias eróticas sejam
ego-sintônicas, ou, pelo contrário, tenham sofrido repressão. No primeiro caso
(onde o uso feito da libido é ego-sintônico), o amor é avaliado como qualquer
outra atividade do ego. O amar em si, na medida em que envolva anelo e
privação, reduz a auto-estima, ao passo que ser amado, ser correspondido no
amor, e possuir o objeto amado, eleva-a mais uma vez. Quando a libido é reprimida,
sente-se a catexia erótica como grave esgotamento do ego; a satisfação do amor
é impossível e o reenriquecimento do ego só pode ser efetuado por uma retirada
da libido de seus objetos. A volta da libido objetal ao ego e sua transformação
no narcisismo representa, por assim dizer, um novo amor feliz; e, por outro
lado, também é verdade que um verdadeiro amor feliz corresponde à condição
primeira na qual a libido objetal e a libido do ego não podem ser distinguidas.
A importância e o grau de extensão dos tópicos
constituem minha justificativa para acrescentar algumas poucas observações de
concatenação algo desconexa.
O desenvolvimento do ego consiste num
afastamento do narcisismo primário e dá margem a uma vigorosa tentativa de
recuperação desse estado. Esse afastamento é ocasionado pelo deslocamento da
libido em direção a um ideal do ego imposto de fora, sendo a satisfação
provocada pela realização desse ideal.
Ao mesmo tempo, o ego emite as catexias
objetais libidinais. Torna-se empobrecido em benefício dessas catexias, do
mesmo modo que o faz em benefício do ideal do ego, e se enriquece mais uma vez
a partir de suas satisfações no tocante ao objeto, do mesmo modo que o faz,
realizando seu ideal.
Uma parte da auto-estima é primária - o resíduo
do narcisismo infantil; outra parte decorre da onipotência que é corroborada
pela experiência (a realização do ideal do ego), enquanto uma terceira parte
provém da satisfação da libido-objetal.
O ideal do ego impõe severas condições à
satisfação da libido por meio de objetos, pois ele faz com que alguns deles
sejam rejeitados por seu censor como sendo incompatíveis onde não se formou tal
ideal, a tendência sexual em questão aparece inalterada na personalidade sob a
forma de uma perversão. Tornar a ser seu próprio ideal, como na infância, no
que diz respeito às tendências sexuais não menos do que às outras - isso é o
que as pessoas se esforçam por atingir como sendo sua felicidade.
O estar apaixonado consiste num fluir da libido
do ego em direção ao objeto. Tem o poder de remover as repressões e de
reinstalar as perversões. Exalta o objeto sexual transformando-o num ideal
sexual. Visto que, com o tipo objetal (ou tipo de ligação), o estar apaixonado
ocorre em virtude da realização das condições infantis para amar, podemos dizer
que qualquer coisa que satisfaça essa condição é idealizada.
O ideal sexual pode fazer parte de uma
interessante relação auxiliar com o ideal do ego. Ele pode ser empregado para
satisfação substitutiva onde a satisfação narcisista encontra reais entraves.
Nesse caso, uma pessoa amará segundo o tipo narcisista de escolha objetal:
amará o que foi outrora e não é mais, ou então o que possui as excelências que
ela jamais teve (cf. (c) [ver em [1]]). A fórmula paralela à que se acaba de
mencionar diz o seguinte: o que possui a excelência que falta ao ego para
torná-lo ideal é amado. Esse expediente é de especial importância para o
neurótico, que, por causa de suas excessivas catexias objetais, é empobrecido
em seu ego, sendo incapaz de realizar seu ideal do ego. Ele procura então
retornar, de seu pródigo dispêndio da libido em objetos, ao narcisismo,
escolhendo um ideal sexual segundo o tipo narcisista que possui as excelências
que ele não pode atingir. Isso é a cura pelo amor, que ele geralmente prefere à
cura pela análise. Na realidade, ele não pode crer em outro mecanismo de cura;
em geral traz para o tratamento expectativas dessa espécie, dirigindo-as à
pessoa do médico. A incapacidade de amar do paciente, resultante de suas
repressões extensivas, naturalmente atrapalha um plano terapêutico dessa
natureza. Muitas vezes, se nos depara um resultado não pretendido quando, por
meio do tratamento, o paciente é parcialmente liberado de suas repressões: ele
suspende o tratamento a fim de escolher um objeto amoroso, deixando que sua
cura continue a se processar por uma vida em comum com quem ele ama. Poderíamos
ficar satisfeitos com esse resultado, se ele não trouxesse consigo todos os
perigos de uma dependência mutiladora em relação àquele que o ajuda.
O ideal do ego desvenda um importante panorama
para a compreensão da psicologia de grupo. Além do seu aspecto individual, esse
ideal tem seu aspecto social; constitui também o ideal comum de uma família,
uma classe ou uma nação. Ele vincula não somente a libido narcisista de uma
pessoa, mas também uma quantidade considerável de sua libido homossexual,, que
dessa forma retorna ao ego. A falta de satisfação que brota da não realização
desse ideal libera a libido homossexual, sendo esta transformada em sentimento de
culpa (ansiedade social). Originalmente esse sentimento de culpa era o temor de
punição pelos pais, ou, mais corretamente, o medo de perder o seu amor; mais
tarde, os pais são substituídos por um número indefinido de pessoas. A
freqüente causação da paranóia por um dano ao ego, por uma frustração da
satisfação dentro da esfera do ideal do ego, é tornada assim mais inteligível,
bem como a convergência da formação do ideal e da sublimação no ideal do ego, e
ainda a involução das sublimações e a possível transformação de ideais em
perturbações parafrênicas.
ARTIGOS SOBRE METAPSICOLOGIA
INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS
Freud publicou o primeiro relato ampliado de
seus conceitos sobre teoria psicológica no sétimo capítulo de A Interpretação
de Sonhos (1900a) (Edição Standard Brasileira, Vols. IV-V, IMAGO
Editora, 1972), que incorpora, de forma transmudada, parte da substância de seu
‘Projeto’ anterior e inédito (1950a [1895]). Afora breves apreciações
ocasionais, como a do Capítulo VI de seu livro sobre chistes (1905c), dez anos
se passaram antes que ele tornasse a penetrar profundamente nos problemas
teóricos. A um artigo exploratório sobre ‘The Two Principles of Mental
Functioning’ (1911b) seguiram-se outras abordagens mais ou menos experimentais
- na Parte III de sua análise de Schreber (1911c), em seu artigo em inglês
sobre o inconsciente (1912g), e na longa discussão sobre o narcisismo (1914c).
Finalmente, na primavera e no verão de 1915, ele mais uma vez empreendeu uma
exposição completa e sistemática de suas teorias psicológicas.
Os cinco artigos que se seguem formam uma série
interligada. Conforme sabemos por uma nota de rodapé ao quarto desses artigos
(ver em [1]), fazem parte de uma coletânea que Freud havia originalmente
planejado publicar em forma de livro sob o título Zur Verbereitung einer
Metapsychologie (Preliminares a uma Metapsicologia). Ele acrescenta que a
intenção da série era proporcionar um fundamento teórico estável à psicanálise.
Embora os três primeiros desses artigos tivessem
sido publicados em 1915 e os dois últimos em 1917, sabemos pelo Dr. Ernest
Jones (1955, 208) que de fato todos foram escritos num período de cerca de sete
semanas entre 15 de março e 4 de maio de 1915. Também sabemos pelo Dr. Jones
(ibid., 209) que mais sete artigos foram acrescentados à série durante os três
meses seguintes, tendo sido toda a coletânea de doze concluída em 9 de agosto.
Esses outros sete artigos, contudo, nunca foram publicados por Freud, parecendo
provável que numa data posterior ele os tenha destruído, uma vez que não se
encontrou vestígio algum dos mesmos. Na realidade, sua própria existência
permaneceu desconhecida ou esquecida até que o Dr. Jones veio a examinar as
cartas de Freud. Na época em que escrevia, em 1915, manteve seus
correspondentes (Abraham, Ferenczi e Jones) informados do seu andamento, mas
parece existir apenas uma única referência aos mesmos depois, numa carta a
Abraham, em novembro de 1917. Esta deve ter sido escrita mais ou menos na mesma
época da publicação dos dois últimos artigos vindo a lume, e parece dar a
entender que os sete outros ainda existiam e que ele ainda pretendia
publicá-los, embora sentisse que o momento oportuno não havia chegado.
Temos conhecimento dos assuntos tratados por
cinco dos últimos sete artigos: Consciência, Ansiedade, Histeria de Conversão,
Neurose Obsessiva e as Neuroses de Transferência em Geral, e podemos descobrir
possíveis referências aos mesmos nos artigos remanescentes. Podemos até mesmo
adivinhar os assuntos que talvez tenham sido abordados pelos dois artigos não
especificados - a saber, Sublimação e Projeção (ou Paranóia) -, pois há alusões
mais ou menos claras a eles. A coletânea dos doze artigos teria sido assim
abrangente, tratando dos processos subjacentes na maioria das principais
neuroses e psicoses (histeria de conversão, histeria de angústia, neurose
obsessiva, insanidade maníaco-depressiva e paranóia) bem como nos sonhos, com
os mecanismos mentais de repressão, sublimação, introjeção e projeção, e com os
dois sistemas mentais da consciência e o inconsciente.
É difícil exagerar o que perdemos com o
desaparecimento desses artigos. Havia uma conjunção sui generis de fatores
favoráveis na época em que Freud os escreveu. Seu principal trabalho teórico (o
sétimo capítulo de A Interpretação de Sonhos) fora escrito quinze anos
antes, numa etapa relativamente inicial de seus estudos psicológicos. Agora,
contudo, ele contava com cerca de vinte e cinco anos de experiência
psicanalítica em que basear suas construções teóricas, estando no ápice de sua
capacidade intelectual. E foi nessa época que a circunstância acidental da
redução de sua clínica, devida à irrupção da Primeira Guerra Mundial, lhe deu o
necessário lazer durante cinco meses, nos quais pôde levar a cabo seu projeto. Uma
tentativa de consolo reside, sem dúvida, na reflexão de que grande parte do
conteúdo dos artigos desaparecidos deve ter chegado aos escritos ulteriores de
Freud. Mas muito daríamos para possuir apreciações conexas sobre assuntos tais
como consciência ou sublimação, em lugar das alusões dispersas e relativamente
escassas com as quais temos, de fato, de nos contentar.
Em vista da importância especial dessa série de
artigos, a fidelidade de seu raciocínio e a ocasional obscuridade dos tópicos
de que tratam, foram enviados esforços extraordinários para exprimi-los com
exatidão. A tradução em todos os seus pormenores (e especialmente onde há
trechos duvidosos) acompanhou tão de perto o texto alemão quanto possível,
mesmo correndo o risco de tornar árida a sua leitura. (Termos não-ingleses
como, por exemplo, ‘o reprimido’ e ‘o mental’ foram empregados com o máximo de
liberdade.) Embora a versão publicada em 1925 tenha servido de base, a que se
segue é uma tradução inteiramente nova. Também se afigurou razoável incluir
mais do que a quantidade comum de material introdutório, anotar o texto com o
máximo de liberdade e, em particular, apresentar amplas referências a outras
partes dos escritos de Freud que possam lançar luz sobre quaisquer
obscuridades. Uma relação dos seus trabalhos teóricos mais importantes será
encontrada num apêndice, no fim da série (ver em [1]).
Trechos das traduções publicadas em 1925 de ‘Os
Instintos e suas Vicissitudes’, ‘Repressão’ e ‘Luto e Melancolia’ foram
incluídos em A General Selection from the Works of Sigmund Freud, de
Rickman (1937, 79-98, 99-110 e 142-161).
OS INSTINTOS E SUAS VICISSITUDES (1915)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
TRIEBE UND TRIEBSCHICKSALE
(a)EDIÇÕES ALEMÃS:
1915 Int. Z. Psychoanal., 3 (2), 84-100.
1918
S.K.S.N., 4, 252-278. (1922, 2.ª ed.)
1924
G.S., 5, 443-465.
1924
Techinik und Metapsychol., 165-187.
1931
Theoretische Schriften, 58-82.
1946
G.W., 10, 210-232.
(b)TRADUÇÃO
INGLESA:
‘Instincts
and their Vicissitudes’
1925
C.P., 4, 69-83. (Trad. C.M. Baines.)
A presente tradução inglesa, embora baseada na
de 1925, foi amplamente reescrita.
Freud começou a escrever o presente artigo em
15 de março de 1915; este e o seguinte (‘Repressão’) foram concluídos em 4 de
abril.
Deve-se observar, à guisa de prefácio, que aqui
(e através de toda a Standard Edition) o termo inglês ‘instinct‘
representa o alemão ‘Trieb‘. A escolha desse equivalente inglês de
preferência a possíveis alternativas tais como drive (‘impulso’) ou urge
(‘ânsia’) vem examinada na Introdução Geral ao primeiro volume da edição. A
palavra ‘instinto’, de qualquer maneira, não é empregada aqui no sentido que
parece no momento ser o mais corrente entre os biólogos. Mas Freud assinala, no
decorrer desse artigo, o significado que atribui à palavra assim traduzida.
Inicialmente, ver em [1] adiante, no artigo ‘O Inconsciente’, ele próprio
utiliza o termo alemão ‘Instikt‘, embora possivelmente em sentido bem
diferente.
Verifica-se, contudo, uma ambigüidade no uso,
por Freud, do termo ‘Trieb‘ (‘instinto’) e ‘Triebrepräsentanz‘
(‘representante instintual’), para a qual se deve chamar a atenção, com o fito
de assegurar uma melhor compreensão. Em [1] e [2] ele descreve instinto como
sendo ‘um conceito situado na fronteira entre o material e o somático,… o
representante psíquico dos estímulos que se origne dentro do organismo e
alcançam a mente.’ Em duas ocasiões anteriores ele já havia apresentado
descrições quase com as mesmas palavras. Alguns anos antes, perto do final da
Seção III de seu exame do caso Schreber (1911c), descreveu o instinto como
sendo ‘o conceito na fronteira entre o somático e o mental…, o representante
psíquico das forças orgânicas’. E, novamente, num trecho provavelmente escrito
alguns meses antes do presente artigo, e acrescentado à terceira edição
(publicada em 1915, mas com prefácio datado de ‘Outubro de 1914’) de seus Três
Ensaios (1905d), Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág. 171,
IMAGO Editora, 1972, descreveu o instinto como sendo ‘o representante psíquico
de uma fonte de estímulo endossomática, continuamente a fluir… um conceito que
se acha na fronteira entre o mental e o físico’. Essas três descrições parecem
tornar claro que Freud não estabelecia qualquer distinção entre um instinto e
seu ‘representante psíquico’. Aparentemente considerava o próprio instinto como
sendo o representante psíquico de forças somáticas. Se agora, contudo,
passarmos aos artigos ulteriores dessa série, teremos a impressão de que Freud
traça uma distinção muito acentuada entre o instinto e seu representante psíquico.
Isso talvez seja indicado com o máximo de clareza num trecho de ‘O
Inconsciente’ (ver em [1]): ‘Um instinto jamais pode tornar-se um objeto da
consciência - somente a idéia [Vorstellung] que representa o instinto é
que pode. Mesmo no inconsciente, além disso, um instinto não pode ser
representado de outra forma senão por uma idéia… Quando, não obstante, falamos
de um impulso instintual inconsciente ou de um impulso instintual reprimido…
referimo-nos apenas a um impulso instintual cujo representante ideacional é
inconsciente’. Esse mesmo conceito aparece em muitos outros trechos. Por
exemplo em ‘Repressão’ (ver em [1]) Freud refere-se ao ‘representante
(ideacional) psíquico do instinto’ e prossegue: ‘…o representante em questão
persiste inalterado e o instinto permanece ligado a ele’; e de novo, no mesmo
artigo (ver em [1]), escreve sobre o representante instintual como sendo ‘uma
idéia’, ou grupo de idéias, que é catexizada com uma quota definida de energia
psíquica (libido, interesse) proveniente de um instinto’, e continua, dizendo
que ‘além da idéia, algum outro elemento que representa o instinto tem de ser
levado em conta’. Nesse segundo grupo de citações, portanto, o instinto não é
mais considerado como sendo o representante psíquico de impulsos somáticos, mas
antes como sendo ele próprio algo não-psíquico. Esses dois conceitos,
aparentemente divergentes, da natureza de um instinto encontram-se em diversas
passagens dos escritos subseqüentes de Freud, embora o segundo predomine. Pode
ser, contudo, que a contradição seja mais aparente do que real, e que sua
solução esteja precisamente na ambigüidade do próprio conceito - um conceito de
fronteira entre o físico e o mental.
Num grande número de trechos, Freud expressou
sua insatisfação diante do estado do conhecimento psicológico sobre os
instintos. Não muito antes, por exemplo, em seu artigo sobre narcisismo (1914c,
pág. 85 acima), ele se queixava da ausência total de qualquer teoria dos
instintos que nos ajude ‘a encontrar nossa orientação’. Também depois, em Beyond
the Pleasure Principle (1920g), Standard Ed., 18, 34, descreveu os
instintos como ‘o elemento ao mesmo tempo mais importante e mais obscuro da
pesquisa psicológica’; em seu artigo na Encyclopaedia Britannica (1926f
) confessou que ‘também para a psicanálise a teoria dos instintos é uma região
obscura’. O presente artigo é uma tentativa relativamente antiga de lidar com o
assunto de maneira abrangente. Seus muitos sucessores corrigiram-no e
suplementaram-no em vários pontos; não obstante, esse artigo permanece invicto
como o relato mais claro da visão que Freud tinha dos instintos e da forma
segundo a qual ele pensava que atuavam. Uma reflexão subseqüente, é verdade,
levou-o a alterar seus conceitos sobre a classificação dos instintos, bem como sobre
suas determinantes mais profundas, mas esse artigo constitui base indispensável
para a compreensão dos desenvolvimentos que se seguiriam.
O curso das alterações pelas quais passaram as
opiniões de Freud sobre a classificação dos instintos talvez possa ser
apropriadamente resumido aqui. É surpreendente que os instintos apareçam
explicitamente num ponto relativamente tardio da seqüência de seus escritos. O
termo ‘instinto’ quase não é encontrado nas obras do período de Breuer, ou na
correspondência com Fliess, ou mesmo em A Interpretação de Sonhos
(1900a). Só a partir dos Três Ensaios (1905d) é que o ‘instinto sexual’
é livremente mencionado como tal; os ‘impulsos instintuais’, que iriam
tornar-se um dos termos mais comuns de Freud, parecem não ter aparecido antes
do artigo sobre ‘Obsessive Actions and Religions Practices’ (1907b). Mas isso é
primordialmente apenas um aspecto verbal: os instintos apareciam,
naturalmente, sob outro nome. Empregavam-se amplamente em seu lugar expressões
como ‘excitações’, ‘idéias afetivas’, ‘impulsos anelantes’, ‘estímulos
endógenos’, e assim por diante. Por exemplo, traça-se adiante (ver em [1]) uma
distinção entre um ‘estímulo’, que atua como uma força geradora de um impacto
isolado, e um ‘instinto’, que sempre atua como constante. Essa distinção
precisa fora traçada por Freud vinte anos antes com palavras quase idênticas,
salvo que, em vez de ‘estímulo’ e ‘instinto’, ele se referiu a excitações
‘endógenas’ e ‘exógenas’. De forma semelhante, Freud ressalta adiante (ver em [1])
que o organismo primitivo não pode atuar de forma evasiva contra as
necessidades instintuais como o faz contra estímulos externos. Também nesse
caso ele previra a idéia vinte anos antes, embora mais uma vez a expressão
empregada fosse ‘estímulos endógenos’. Esse segundo trecho, na Seção 1da Parte
I do ‘Projeto’ (1950a [1895]), continua dizendo que esses estímulos endógenos
‘têm sua origem nas células do corpo e dão lugar às necessidades principais:
fome, respiração e sexualidade’, mas em nenhuma parte aparece o termo
‘instinto’.
O conflito subjacente às psiconeuroses foi,
nesse período inicial, às vezes descrito como situado entre ‘o ego’ e a
‘sexualidade’, e embora o termo ‘libido’ fosse com freqüência empregado, o
conceito era o de uma manifestação de ‘tensão sexual somática’, que por sua vez
era considerada como um evento químico. Somente nos Três Ensaios foi a
libido explicitamente estabelecida como sendo uma expressão de instinto sexual.
O outro elemento do conflito, ‘o ego’, permaneceu indefinido por muito tempo.
Foi examinado principalmente em relação a suas funções - em particular a
‘repressão’, a ‘resistência’, e o ‘teste da realidade’ -, mas (à parte uma
tentativa muito antiga na Seção 14 da Parte I do ‘Projeto’) pouco se disse quer
da sua estrutura, quer da sua dinâmica. Quase nunca fez referência aos
instintos ‘autopreservativos’, salvo indiretamente em relação à teoria de que a
libido se ligara a eles nas fases iniciais de seu desenvolvimento; e parecia
não haver razão óbvia para estabelecer uma conexão entre eles e o papel
desempenhado pelo ego enquanto agente repressivo em conflitos neuróticos.
Então, de modo aparentemente repentino, num breve artigo sobre perturbações
psicogênicas da visão (1910i), Freud introduziu a expressão ‘instintos do ego’,
identificando-os, por um lado, com os instintos autopreservativos, e, por
outro, com a função repressiva. A partir dessa época, o conflito foi
regularmente representado como estando entre dois conjuntos de instintos - os
instintos da libido e os instintos do ego.
A introdução do conceito de ‘narcisismo’,
contudo, originou uma complicação. Em seu artigo sobre aquela teoria (1914c),
Freud apresentou a idéia da ‘libido do ego’ (ou ‘libido narcisista’) que
catexiza o ego, em contraste com a ‘libido objetal’ que catexiza objetos (ver
em [1] acima). Um trecho desse artigo (loc. cit.), bem como uma observação no
presente artigo (ver em [1]), já revelam uma inquietação de sua parte quanto à
possibilidade de sua classificação ‘dualista’ dos instintos perdurar. É verdade
que na análise de Schreber (1911c) ele insistia na diferença entre ‘catexias do
ego’ e ‘libido’, e entre ‘interesse que emana de fontes eróticas’ e ‘interesse
em geral’ - distinção que reaparece na réplica a Jung no artigo sobre
narcisismo (págs. 87-8) acima. O termo ‘interesse’ é empregado novamente no
presente artigo (pág. 140); e na Conferência XXVI das Introductory Lectures
(1916-17) ‘interesse do ego’ ou simplesmente ‘interesse’ é em geral posto em
contraste com ‘libido’. Não obstante, a natureza exata desses instintos não
libidinais era obscura. O ponto crucial da classificação dos instintos feita
por Freud foi alcançado em Beyond the Pleasure Principle (1920g). No
Capítulo VI daquela obra ele reconheceu francamente a dificuldade da posição que
fora alcançada, declarando explicitamente que a ‘libido narcisista era, sem
dúvida, uma manifestação da força do instinto sexual’ e que ‘tinha de ser
identificada com os “instintos autopreservativos.”’ (Standard Ed., 18,
pág. 50 e segs.) Ainda sustentava, contudo, que havia instintos do ego e
instintos objetais que não eram libidinais; e foi aqui que, ainda vinculado a
um ponto de vista dualista, introduziu sua hipótese do instinto de morte. Um
relato do desenvolvimento de seus conceitos sobre a classificação dos instintos
até aquele ponto foi apresentado na longa nota de rodapé no final do Capítulo
VI de Beyond the Pleasure Principle, Standard Ed., 18, 60-1, e
uma ulterior discussão do assunto, à luz de seu quadro recém-concluído da
estrutura da mente, ocupou o Capítulo IV de The Ego and the Id (1923b).
Percorreu todo o terreno mais uma vez com grandes detalhes no Capítulo VI de O
Mal-Estar na Civilização (1930a) (Edição Standard Brasileira, Vol. XXI,
IMAGO Editora, 1974), dispensando ali, pela primeira vez, especial consideração
aos instintos agressivos e destrutivos. Antes prestara pouca atenção a eles,
exceto onde (como no sadismo e no masoquismo) se achavam fundidos com elementos
libidinais, mas agora os examinava em sua forma pura e os explicava como
derivados do instinto de morte. Uma revisão ainda ulterior do assunto será
encontrada na segunda metade da Conferência XXXII das New Introductory
Lectures (1933a) e num resumo final, no Capítulo II, da obra póstuma Esboço
de Psicanálise (1940a [1938]) (Edição Standard Brasileira, Vol.
XXIII, IMAGO Editora, 1974.)
OS INSTINTOS E SUAS VICISSITUDES
Ouvimos com freqüência a afirmação de que as
ciências devem ser estruturadas em conceitos básicos claros e bem definidos. De
fato, nenhuma ciência, nem mesmo a mais exata, começa com tais definições. O
verdadeiro início da atividade científica consiste antes na descrição dos
fenômenos, passando então a seu agrupamento, sua classificação e sua correlação.
Mesmo na fase de descrição não é possível evitar que se apliquem certas idéias
abstratas ao material manipulado, idéias provenientes daqui e dali, mas por
certo não apenas das novas observações. Tais idéias - que depois se tornarão os
conceitos básicos da ciência - são ainda mais indispensáveis à medida que o
material se torna mais elaborado. Devem, de início, possuir necessariamente
certo grau de indefinição; não pode haver dúvida quanto a qualquer delimitação
nítida de seu conteúdo. Enquanto permanecem nessa condição, chegamos a uma
compreensão acerca de seu significado por meio de repetidas referências ao
material de observação do qual parecem ter provindo, mas ao qual, de fato,
foram impostas. Assim, rigorosamente falando, elas são da natureza das
convenções - embora tudo dependa de não serem arbitrariamente escolhidas mas
determinadas por terem relações significativas com o material empírico,
relações que parecemos sentir antes de podermos reconhecê-las e determiná-las
claramente. Só depois de uma investigação mais completa do campo de observação,
somos capazes de formular seus conceitos científicos básicos com exatidão
progressivamente maior, modificando-os de forma a se tornarem úteis e coerentes
numa vasta área. Então, na realidade, talvez tenha chegado o momento de
confiná-los em definições. O avanço do conhecimento, contudo, não tolera
qualquer rigidez, inclusive em se tratando de definições. A física proporciona
excelente ilustração da forma pela qual mesmo ‘conceitos básicos’, que tenham sido
estabelecidos sob a forma de definições, estão sendo constantemente alterados
em seu conteúdo.
Um conceito básico convencional dessa espécie,
que no momento ainda é algo obscuro, mas que nos é indispensável na psicologia,
é o de um ‘instinto’. Tentemos dar-lhe um conteúdo, abordando-o de diferentes
ângulos.
Em primeiro lugar, do ângulo da fisiologia.
Isso nos forneceu o conceito de um ‘estímulo’ e o modelo do arco reflexo,
segundo o qual um estímulo aplicado ao tecido vivo (substância nervosa) a
partir de fora é descarregado por ação para fora. Essa ação é
conveniente na medida em que, afastando a substância estimulada da influência
do estímulo, remove-a de seu raio de atuação.
Qual a relação do ‘instinto’ com o ‘estímulo’?
Nada existe que nos impeça de subordinar o conceito de ‘instinto’ ao de
‘estímulo’ e de afirmar que um instinto é um estímulo aplicado à mente. Mas de
imediato ficamos prevenidos contra igualar instinto e estímulo mental.
Existem evidentemente outros estímulos à mente, além daqueles de natureza
instintual, estímulos que se comportam muito mais como fisiológicos. Por
exemplo, a luz forte que incide sobre a vista não é um estímulo instintual; já
a secura da membrana mucosa da faringe ou a irritação da membrana mucosa do
estômago o são.
Obtivemos agora o material necessário para
traçarmos uma distinção entre os estímulos instintuais e outros estímulos
(fisiológicos) que atuam na mente. Em primeiro lugar, um estímulo instintual
não surge do mundo exterior, mas de dentro do próprio organismo. Por esse
motivo ele atua diferentemente sobre a mente, e diferentes ações se tornam
necessárias para removê-lo. Além disso, tudo que é essencial num estímulo fica
encoberto, se presumimos que ele atua com um impacto único, podendo ser
removido por uma única ação conveniente. Um exemplo típico disso é a fuga
motora proveniente da fonte de estimulação. Esses impactos podem, como é
natural, ser repetidos e acrescidos, mas isso em nada modifica nossa noção a
respeito do processo e as condições para a eliminação do estímulo. Um instinto,
por outro lado, jamais atua como uma força que imprime um impacto momentâneo,
mas sempre como um impacto constante. Além disso, visto que ele incide
não a partir de fora mas de dentro do organismo, não há como fugir dele. O melhor
termo para caracterizar um estímulo instintual seria ‘necessidade’. O que
elimina uma necessidade é a ‘satisfação’. Isso pode ser alcançado apenas por
uma alteração apropriada (‘adequada’) da fonte interna de estimulação.
Imaginemo-nos na situação de um organismo vivo
quase inteiramente inerme, até então sem orientação no mundo, que esteja
recebendo estímulos em sua substância nervosa. Esse organismo muito em breve
estará em condições de fazer uma primeira distinção e uma primeira orientação.
Por um lado, estará cônscio de estímulos que podem ser evitados pela ação
muscular (fuga); estes, ele os atribui a um mundo externo. Por outro, também
estará cônscio de estímulos contra os quais tal ação não tem qualquer valia e
cujo caráter de constante pressão persiste apesar dela; esses estímulos são os
sinais de um mundo interno, a prova de necessidadess instintuais. A substância
perceptual do organismo vivo terá assim encontrado, na eficácia de sua
atividade muscular, uma base para distinguir entre um ‘de fora’ e um ‘de
dentro’.
Chegamos assim à natureza essencial dos
instintos, considerando em primeiro lugar suas principais características - sua
origem em fontes de estimulação dentro do organismo e seu aparecimento como uma
força constante - e disso deduzimos uma de suas outras características, a
saber, que nenhuma ação de fuga prevalece contra eles. No decorrer do presente
exame, contudo, não podemos deixar de nos surpreender com alguma coisa que nos
obriga a admitir algo mais. Para nossa orientação, ao lidarmos com o campo de
fenômenos psicológicos não nos limitamos a aplicar ao nosso material empírico
certas convenções à guisa de conceitos básicos; também empregamos um bom
número de postulados complicados. Já fizemos alusão ao mais importante
destes, bastando-nos agora enunciá-lo expressamente. Esse postulado é de
natureza biológica e utiliza o conceito de ‘finalidade’ (ou talvez de
conveniência), podendo ser enunciado da seguinte maneira: o sistema nervoso é
um aparelho que tem por função livrar-se dos estímulos que lhe chegam, ou
reduzi-los ao nível mais baixo possível; ou que, caso isso fosse viável, se
manteria numa condição inteiramente não-estimulada. Não façamos objeção por
enquanto à indefinição dessa idéia e atribuamos ao sistema nervoso a tarefa -
falando em termos gerais - de dominar estímulos. Vemos então até que
ponto o modelo simples do reflexo fisiológico se complica com a introdução dos
instintos. Os estímulos externos impõem uma única tarefa: a de afastamento;
isso é realizado por movimentos musculares, um dos quais finalmente atinge esse
objetivo e, sendo o movimento conveniente, torna-se a partir daí uma disposição
hereditária. Não podemos aplicar esse mecanismo ao estímulos instintuais, que
se originam de dentro do organismo. Estes exigem muito mais do sistema nervoso,
fazendo com que ele empreenda atividades complexas e interligadas, pelas quais
o mundo externo se modifica de forma a proporcionar satisfação à fonte interna
de estimulação. Acima de tudo, obrigam o sistema nervoso a renunciar à sua
intenção ideal de afastar os estímulos, pois mantêm um fluxo incessante e
inevitável de estimulação. Podemos, portanto, concluir que os instintos, e não
os estímulos externos, constituem as verdadeiras forças motrizes por detrás dos
progressos que conduziram o sistema nervoso, com sua capacidade ilimitada, a
seu alto nível de desenvolvimento atual. Naturalmente, nada existe que nos
impeça de supor que os próprios instintos sejam, pelo menos em parte,
precipitados dos efeitos da estimulação externa, que no decorrer da filogênese
ocasionaram modificações na substância viva.
Quando ainda verificamos que até mesmo a
atividade do aparelho mental mais desenvolvido está sujeita ao princípio de
prazer, isto é, que ela é automaticamente regulada por sentimentos pertencentes
à série prazer-desprazer, quase não podemos rejeitar a hipótese ulterior,
segundo a qual esses sentimentos refletem a maneira pela qual o processo de
dominação de estímulos se verifica - certamente no sentido de que os
sentimentos desagradáveis estão ligados a um aumento e os sentimentos
agradáveis a uma diminuição do estímulo. Preservaremos cuidadosamente, contudo,
essa suposição em sua atual forma altamente indefinida, até conseguirmos, caso
possível, descobrir que espécie de relação existe entre o prazer e o desprazer,
por um lado, e flutuações nas quantidades de estímulo que afetam a vida mental,
por outro. É certo que grande número de várias relações dessa espécie, e
relações não muito simples, são possíveis.
Se agora nos dedicarmos a considerar a vida
mental de um ponto de vista biológico, um ‘instinto’ nos aparecerá como sendo
um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o
representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e
alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de
trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo.
Estamos agora em condições de examinar certos
termos utilizados com referência ao conceito de instinto - por exemplo, sua
‘pressão’, sua ‘finalidade’, seu ‘objeto’ e sua ‘fonte’.
Por pressão [Drang] de um instinto
compreendemos seu fator motor, a quantidade de força ou a medida da exigência
de trabalho que ela representa. A característica de exercer pressão é comum a
todos os instintos; é, de fato, sua própria essência. Todo instinto é uma
parcela de atividade; se falarmos em termos gerais de instintos passivos,
podemos apenas querer dizer instintos cuja finalidade é passiva.
A finalidade [Ziel] de um instinto é
sempre satisfação, que só pode ser obtida eliminando-se o estado de estimulação
na fonte do instinto. Mas, embora a finalidade última de cada instinto
permaneça imutável, poderá ainda haver diferentes caminhos conducentes à mesma
finalidade última, de modo que se pode verificar que um instinto possui várias
finalidades mais próximas ou intermediárias, que são combinadas ou
intercambiadas umas com as outras. A experiência nos permite também falar de
instintos que são ‘inibidos em sua finalidade’, no caso de processos aos quais
se permite progredir no sentido da satisfação instintual, sendo então inibidos
ou defletidos. Podemos supor que mesmo processos dessa espécie envolvem uma
satisfação parcial.
O objeto [Objekt] de um instinto é a
coisa em relação à qual ou através da qual o instinto é capaz de atingir sua
finalidade. É o que há de mais variável num instinto e, originalmente, não está
ligado a ele, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar
possível a satisfação. O objeto não é necessariamente algo estranho: poderá
igualmente ser uma parte do próprio corpo do indivíduo. Pode ser modificado
quantas vezes for necessário no decorrer das vicissitudes que o instinto sofre
durante sua existência, sendo que esse deslocamento do instinto desempenha
papéis altamente importantes. Pode acontecer que o mesmo objeto sirva para a
satisfação de vários instintos simultaneamente, um fenômeno que Adler [1908]
denominou de ‘confluência’ de instintos [Triebverschränkung]. Uma
ligação particularmente estreita do instinto com seu objeto se distingue pelo
termo ‘fixação’. Isso freqüentemente ocorre em períodos muito iniciais do
desenvolvimento de um instinto, pondo fim à sua modalidade por meio de sua
intensa oposição ao desligamento.
Por fonte [Quelle] de um instinto
entendemos o processo somático que ocorre num órgão ou parte do corpo, e cujo
estímulo é representado na vida mental por um instinto. Não sabemos se esse
processo é invariavelmente de natureza química ou se pode também corresponder à
liberação de outras forças, por exemplo, forças mecânicas. O estudo das fontes
dos instintos está fora do âmbito da psicologia. Embora os instintos sejam
inteiramente determinados por sua origem numa fonte somática, na vida mental
nós os conhecemos apenas por suas finalidades. O conhecimento exato das fontes
de um instinto não é invariavelmente necessário para fins de investigação
psicológica; por vezes sua fonte pode ser inferida de sua finalidade.
Devemos supor que os diferentes instintos que
se originam no corpo e atuam na mente são também distinguidos por qualidades
diferentes, e que por isso se comportam de formas qualitativamente diferentes
na vida mental? Essa suposição não parece ser justificada; é muito mais
provável que achemos suficiente a suposição mais simples - a de que todos os
instintos são qualitativamente semelhantes e devem o efeito que causam somente
à quantidade de excitação que trazem em si, ou talvez, além disso, a certas
funções dessa quantidade. O que distingue uns dos outros os efeitos mentais
produzidos pelos vários instintos, pode ser encontrado a partir da diferença em
suas fontes. Seja como for, só numa relação ulterior seremos capazes de
esclarecer o que significa o problema da qualidade dos instintos.
Que instintos devemos supor que existem, e
quantos? É óbvio que isso dá ampla margem a escolhas arbitrárias. Não se pode
objetar a que qualquer pessoa empregue o conceito de um instinto lúdico ou de
destruição ou de estado gregário, quando o assunto o exige e as limitações da
análise psicológica o permitem. Não obstante, não devemos deixar de nos
perguntar se motivos instintuais como esses, tão altamente especializados, por
um lado, não permitem ulterior dissecação de acordo com as fontes do
instinto, de modo que somente os instintos primordiais - os que não podem ser
ulteriormente dissecados - podem reivindicar importância.
Propus que se distingam dois grupos de tais
instintos primordiais: os instintos do ego, ou autopreservativos, e os
instintos sexuais. Mas essa suposição não tem status de postulado necessário,
como tem, por exemplo, nossa suposição sobre a finalidade biológica do aparelho
mental (ver em [1] e [2]); ela não passa de uma hipótese de trabalho, a ser
conservada apenas enquanto se mostrar útil, e pouca diferença fará aos
resultados do nosso trabalho de descrição e classificação se for substituída
por outra. A ocasião para essa hipótese surgiu no decurso da evolução da
psicanálise, que foi empregada pela primeira vez nas psiconeuroses, ou, mais
precisamente, no grupo descrito como ‘neuroses de transferência’ (histeria e
neurose obsessiva); estas revelaram que, na raiz de todas as afecções desse
tipo, se encontra um conflito entre as exigências da sexualidade e as do ego. É
sempre possível que um estudo exaustivo das outras afecções neuróticas (em
especial das psiconeuroses narcisistas, das esquizofrenias) possa obrigar-nos a
alterar essa fórmula e proceder a uma diferente classificação dos instintos
primordiais. Mas, por enquanto, não conhecemos essa fórmula, nem encontramos
qualquer argumento desfavorável para traçar esse contraste entre os instintos
sexuais e os do ego.
Tenho as maiores dúvidas de que se possa chegar
a indicadores decisivos para a diferenciação e classificação dos instintos a
partir da elaboração do material psicológico. Essa própria elaboração parece
exigir, até certo ponto, a aplicação de suposições definidas, concernentes à
vida instintual, àquele material, e seria desejável que essas suposições
pudessem ser extraídas de algum outro ramo de conhecimento e levadas para a
psicologia. Aqui, a contribuição da biologia por certo não vai de encontro à
distinção entre os instintos sexuais e os do ego. A biologia ensina que a
sexualidade não deve ser colocada em pé de igualdade com outras funções do
indivíduo, pois suas finalidades ultrapassam o indivíduo e têm como seu
conteúdo a produção de novos indivíduos - isto é, a preservação da espécie. Ela
mostra, ainda, que dois conceitos, ao que tudo indica igualmente bem
fundamentados, podem ser adotados quanto à relação entre o ego e a sexualidade.
De um ponto de vista, o indivíduo é a coisa principal, sendo a sexualidade uma
das suas atividades e a satisfação sexual uma de suas necessidades; ao passo
que, de outro ponto de vista, o indivíduo é um apêndice temporário e passageiro
do idioplasma quase imortal, que é confiado a ele pelo processo de geração. A
hipótese de que a função sexual difere de outros processos corpóreos em virtude
de uma química especial também é, creio eu, um postulado da escola de pesquisa
biológica de Ehrlich.
Visto que um estudo da vida instintual a partir
da direção da consciência apresenta dificuldades quase insuperáveis, a
principal fonte de nossos conhecimentos continua a ser a investigação
psicanalítica das perturbações mentais. A psicanálise, contudo, em conseqüência
do curso tomado pelo seu desenvolvimento, até agora só tem sido capaz de nos
proporcionar informações de natureza razoavelmente satisfatória acerca dos instintos
sexuais, pois este é precisamente o único grupo que pode ser observado
isoladamente, por assim dizer, nas psiconeuroses. Com a extensão da psicanálise
às outras afecções neuróticas, sem dúvida, encontraremos também uma base para o
nosso conhecimento dos instintos do ego, embora seja temerário esperar
condições de observação igualmente favoráveis nesse outro campo de pesquisa.
Isso é tudo que pode ser dito à guisa de uma
caracterização geral dos instintos sexuais. São numerosos, emanam de grande
variedade de fontes orgânicas, atuam em princípio independentemente um do outro
e só alcançam uma síntese mais ou menos completa numa etapa posterior. A
finalidade pela qual cada um deles luta é a consecução do ‘prazer do órgão’,
somente quando a síntese é alcançada é que eles entram a serviço da função
reprodutora, tornando-se então identificáveis, de modo geral, como instintos
sexuais. Logo que surgem, estão ligados aos instintos da autopreservação, dos
quais só gradativamente se separam; também na sua escolha objetal, seguem os
caminhos indicados pelos instintos do ego. Parte deles permanece associada aos
instintos do ego pela vida inteira, fornecendo-lhes componentes libidinais,
que, no funcionamento normal, escapam à observação com facilidade, só sendo
revelados de maneira clara no início da doença. Distinguem-se por possuírem em
ampla medida a capacidade de agir vicariamente uns pelos outros, e por serem
capazes de mudar prontamente de objetos. Em conseqüência dessas últimas
propriedades, são capazes de funções que se acham muito distantes de suas ações
intencionais originais - isto é, capazes de ‘sublimação’.
Nossa investigação sobre as várias vicissitudes
pelas quais passam os instintos no processo de desenvolvimento e no decorrer da
vida deve ficar confinada aos instintos sexuais, que nos são mais familiares. A
observação nos mostra que um instinto pode passar pelas seguintes vicissitudes:
Reversão a seu oposto.
Retorno em direção ao próprio eu (self)
do indivíduo.
Repressão.
Sublimação.
Visto que não pretendo tratar aqui da
sublimação e que a repressão exige um capítulo especial [cf. o artigo
seguinte,ver em [1]], resta-nos apenas descrever e examinar os dois primeiros
pontos. Tendo em mente a existência de forças motoras que impedem que um
instinto seja elevado até o fim de forma não modificada, também podemos considerar
essas vicissitudes como modalidades de defesa contra os instintos.
A reversão de um instinto a seu oposto
transforma-se, mediante um exame mais detido, em dois processos diferentes: uma
mudança da atividade para a passividade e uma reversão de seu conteúdo. Os dois
processos, sendo diferentes em sua natureza, devem ser tratados separadamente.
Encontram-se exemplos do primeiro processo nos
dois pares de opostos: sadismo-masoquismo e escopofilia-exibicionismo. A
reversão afeta apenas as finalidades dos instintos. A finalidade ativa
(torturar, olhar), é substituída pela finalidade passiva (ser torturado, ser
olhado). A reversão do conteúdo encontra-se no exemplo isolado da
transformação do amor em ódio.
O retorno de um instinto em direção ao próprio
eu (self) do indivíduo se torna plausível pela reflexão de que o
masoquismo é, na realidade, o sadismo que retorna em direção ao próprio ego do
indivíduo, e de que o exibicionismo abrange o olhar para o seu próprio corpo. A
observação analítica, realmente, não nos deixa duvidar de que o masoquista
partilha da fruição do assalto a que é submetido e de que o exibicionista
partilha da fruição de [a visão de] sua exibição. A essência do processo é,
assim, a mudança do objeto, ao passo que a finalidade permanece inalterada.
Não podemos deixar de observar, contudo, que, nesses exemplos, o retorno em
direção ao eu do indivíduo e a transformação da atividade em passividade
convergem ou coincidem.
Para elucidar a situação, faz-se essencial uma
investigação mais completa.
No caso do par de opostos sadismo-masoquismo, o
processo pode ser representado da seguinte maneira:
(a) O sadismo consiste no exercício de
violência ou poder sobre uma outra pessoa como objeto.
(b) Esse objeto é abandonado e substituído pelo
eu do indivíduo. Com o retorno em direção ao eu, efetua-se também a mudança de
uma finalidade instintual ativa para uma passiva.
(c) Uma pessoa estranha é mais uma vez
procurada como objeto; essa pessoa, em conseqüência da alteração que ocorreu na
finalidade instintual, tem de assumir o papel do sujeito.
O caso (c) é o que comumente se denomina de
masoquismo. Também aqui a satisfação segue o caminho do sadismo original,
voltando o ego passivo, em fantasia, ao seu papel inicial, que foi agora, de
fato, assumido pelo sujeito estranho. Se existe, além disso, uma satisfação
masoquista mais direta, é muito duvidoso. Um masoquismo primário, não derivado
do sadismo na forma que descrevi, não parece ser encontrado. Veremos que não é
supérfluo presumir a existência da fase (b) pelo comportamento do instinto
sádico na neurose obsessiva. Ali existe um retorno em direção ao eu do sujeito
sem uma atitude de passividade para com outra pessoa: a modificação só vai até
a fase (b). O desejo de torturar transforma-se em autotortura e autopunição,
não em masoquismo. A voz ativa muda, não para a passiva, mas para a voz
reflexiva média.
Nosso conceito de sadismo fica ainda mais
prejudicado pela circunstância de que esse instinto, lado a lado com sua
finalidade geral (ou talvez, de preferência, dentro dela) parece esforçar-se
pela realização de uma finalidade bem especial - não só humilhar e dominar,
como também, além disso, infligir dor. A psicanálise pareceria demonstrar que
infligir dor não desempenha um papel entre as ações intencionais originais do
instinto. Uma criança sádica não se apercebe de que inflige dor ou não, nem
pretende fazê-lo. Mas, uma vez ocorrida a transformação em masoquismo, a dor é
muito apropriada para proporcionar uma finalidade masoquista passiva, pois
temos todos os motivos para acreditar que as sensações de dor, assim como
outras sensações desagradáveis, beiram a excitação sexual e produzem uma
condição agradável, em nome da qual o sujeito, inclusive, experimentará de boa
vontade o desprazer da dor. Uma vez que sentir dor se transforme numa
finalidade masoquista, a finalidade sádica de causar dor também pode
surgir, retrogressivamente, pois, enquanto essas dores estão sendo infligidas a
outras pessoas, são fruídas masoquisticamente pelo sujeito através da
identificação dele com o objeto sofredor. Em ambos os casos, naturalmente, não
é a dor em si que é fruída, mas a excitação sexual concomitante - de modo que
isso pode ser feito de uma maneira especialmente conveniente a partir da
posição sádica. A fruição da dor seria, assim, uma finalidade originalmente
masoquista, que só pôde tornar-se uma finalidade instintual em alguém que era
originalmente sádico.
A bem da inteireza, posso acrescentar que os
sentimentos de piedade não podem ser descritos como sendo o resultado de uma
transformação do instinto que ocorre no sadismo, mas carecem da idéia de uma formação
de reação contra esse instinto. (Quanto à diferença, ver adiante.)
Achados bem mais simples e diferentes são
proporcionados pela investigação de outro par de opostos - os instintos cuja
finalidade respectiva é olhar e exibir-se (escopofilia e exibicionismo, na
linguagem das perversões). Aqui novamente podemos postular as mesmas fases como
no exemplo anterior: - (a) O olhar como uma atividade dirigida para um
objeto estranho. (b) O desistir do objeto e dirigir o instinto escopofílico
para uma parte do próprio corpo do sujeito; com isso, transformação no sentido
de passividade e o estabelecimento de uma nova finalidade - a de ser olhado.
(c) Introdução de um novo sujeito diante do qual a pessoa se exibe a fim de ser
olhada por ele. Também aqui dificilmente se pode duvidar de que a finalidade
ativa surge antes da passiva, de que o olhar precede o ser olhado. Mas existe
uma importante divergência com respeito ao que acontece no caso do sadismo,
pelo fato de que podemos reconhecer no caso do instinto escopofílico uma fase
ainda mais anterior à descrita em (a). Para o início de sua atividade, o
instinto escopofílico é auto-erótico; ele possui na realidade um objeto, mas
esse objeto é parte do próprio corpo do sujeito. Só mais tarde é que o instinto
é levado, por um processo de comparação, a trocar esse objeto por uma parte
análoga do corpo de outrem - fase (a). Essa fase preliminar é interessante
porque constitui a fonte de ambas as situações representadas no par de opostos
resultante, uma ou outra dependendo do elemento modificado na situação
original. O que se segue poderia servir de quadro diagramático do instinto
escopofílico:
() Alguém olhando para um órgão sexual
= Um órgão sexual sendo olhado por alguém
() Alguém olhando para um objeto estranho
(escopofilia ativa)
() Um objeto que é alguém ou parte de alguém
sendo olhado por uma pessoa estranha (exibicionismo)
Esse tipo de fase preliminar se acha ausente no
sadismo, que desde o começo é dirigido para um objeto estranho, embora talvez
não fosse inteiramente absurdo compor tal fase a partir dos esforços da criança
para obter controle sobre seus próprios membros.
No tocante a ambos os instintos que acabamos de
tomar como exemplos, deve-se observar que sua transformação por uma reversão da
atividade para a passividade e por um retorno em direção ao sujeito nunca
implica, de fato, toda a quota do impulso instintual. A direção ativa anterior
do instinto persiste, em certa medida, lado a lado com sua direção passiva
ulterior, mesmo quando o processo de sua transformação tenha sido muito
extenso. A única afirmação correta a fazer sobre o instinto escopofílico seria
a de que todas as fases de seu desenvolvimento, tanto sua fase preliminar
auto-erótica quanto sua forma ativa ou passiva final, coexistem lado a lado; e
a verdade disso se tornará evidente se basearmos nossa opinião, não nas ações
às quais o instinto conduz, mas no mecanismo de sua satisfação. Talvez,
contudo, seja admissível encarar o assunto e representá-lo ainda de outra
forma. Podemos dividir a vida de cada instinto numa série de ondas sucessivas
isoladas, cada uma delas homogênea durante o período de tempo que possa vir a
durar, qualquer que seja ele, e cuja relação de umas com as outras é comparável
à de sucessivas erupções de lava. Podemos então talvez figurar a primeira
erupção original do instinto como se processando de forma inalterada, sem
experimentar qualquer desenvolvimento. A onda seguinte seria modificada desde o
início - sendo transformada, por exemplo, de ativa em passiva -, e seria então,
com essa nova característica, acrescentada à onda anterior, e assim por diante.
Se fôssemos então proceder a um levantamento do impulso instintual desde seu
começo até um determinado ponto, a sucessão de ondas que descrevemos
inevitavelmente apresentaria o quadro de um desenvolvimento definido do
instinto.
O fato de que, nesse período ulterior de
desenvolvimento de um impulso instintual, seu oposto (passivo) possa ser observado
ao lado dele merece ser assinalado pelo termo bem adequado introduzido por
Bleuler - ‘ambivalência’. Essa referência à história do desenvolvimento dos
instintos e a permanência de suas fases intermediárias deve tornar o
desenvolvimento dos instintos razoavelmente inteligível para nós. A experiência
mostra que a quantidade de ambivalência demonstrável varia muito entre
indivíduos, grupos e raças. A acentuada ambivalência instintual num ser humano
que vive nos dias atuais pode ser considerada como uma herança arcaica, pois
temos motivos para supor que o papel desempenhado na vida instintual pelos
impulsos ativos em sua forma inalterada foi maior nos tempos primevos do que é
em média hoje em dia.
Ficamos habituados a denominar a fase inicial
do desenvolvimento do ego, durante a qual seus instintos sexuais encontram
satisfação auto-erótica, de ‘narcisismo’, sem de imediato travarmos um debate
sobre a relação entre o auto-erotismo e o narcisismo. Segue-se que a fase
preliminar do instinto escopofílico, na qual o próprio corpo do sujeito é o
objeto da escopofilia, deve ser classificada sob o narcisismo, e que devemos
descrevê-la como uma formação narcisista. O instinto escopofílico ativo
desenvolve-se a partir daí, deixando o narcisismo para trás. O instinto escopofílico
passivo, pelo contrário, aferra-se ao objeto narcisista. De maneira semelhante,
a transformação do sadismo em masoquismo acarreta um retorno ao objeto
narcisista. E em ambos esses casos [isto é, na escopofilia passiva e no
masoquismo] o sujeito narcisista é, através da identificação,
substituído por outro ego, estranho. Se levarmos em conta a fase do sadismo
preliminar e narcisista que construímos, estaremos aproximando-nos de uma
compreensão mais geral - a saber, que as vicissitudes instintuais, que
consistem no fato de o instinto retornar em direção ao próprio ego do sujeito e
sofrer reversão da atividade para a passividade, se acham na dependência da
organização narcisista do ego e trazem o cunho dessa fase. Correspondem talvez
às tentativas de defesa que, em fases mais elevadas do desenvolvimento do ego,
são efetuadas por outros meios. [Ver acima, em [1] e [2].]
Nesse ponto podemos recordar que até agora
consideramos apenas dois pares de instintos opostos: sadismo-masoquismo e
escopofilia-exibicionismo. Estes são os instintos sexuais mais conhecidos que
aparecem de maneira ambivalente. Os outros componentes da função sexual
ulterior não são ainda suficientemente acessíveis à análise para que possamos
examiná-los de maneira semelhante. Em geral, podemos assegurar, em relação a
eles, que suas atividades são auto-eróticas; isto é, seu objeto é
insignificante em comparação com o órgão que lhes serve de fonte, via de regra
coincidindo com esse órgão. O objeto do instinto escopofílico, contudo, embora
também a princípio seja parte do próprio corpo do sujeito, não é o olho em si;
e no sadismo a fonte orgânica, que é provavelmente o aparelho muscular com sua
capacidade para a ação, aponta inequivocamente para outro objeto que não ele
próprio, muito embora esse objeto seja parte do próprio corpo do sujeito. Nos
instintos auto-eróticos, o papel desempenhado pela fonte orgânica é tão
decisivo que, de acordo com uma sugestão plausível de Federn (1913) e Jekels
(1913), a forma e a função do órgão determinam a atividade ou a passividade da
finalidade instintual.
A mudança do conteúdo [ver em [1]] de um
instinto em seu oposto só é observada num exemplo isolado - a transformação do amor
em ódio. Visto ser particularmente comum encontrar ambos dirigidos
simultaneamente para o mesmo objeto, sua coexistência oferece o exemplo mais
importante de ambivalência de sentimento. [Ver em [1]]
O caso de amor e ódio adquire especial
interesse pela circunstância de que se recusa a ajustar-se a nosso esquema dos
instintos. É impossível duvidar de que exista a mais íntima das relações entre
esses dois sentimentos opostos e a vida sexual, mas naturalmente relutamos em
pensar no amor como sendo uma espécie de instinto componente específico da
sexualidade, da mesma forma que os outros que vimos examinando. Preferiríamos
considerar o amor como sendo a expressão de toda a corrente sexual de
sentimento, mas essa idéia não elucida nossas dificuldades e não podemos ver que
significado poderia ser atribuído a um conteúdo oposto dessa corrente.
O amor não admite apenas um, mas três opostos.
Além da antítese ‘amar-odiar’, existe a outra de ‘amar-ser amado’; além destas,
o amar e o odiar considerados em conjunto são o oposto da condição de
desinteresse ou indiferença. A segunda dessas três antíteses, amar-ser amado,
corresponde exatamente à transformação da atividade em passividade e pode
remontar a uma situação subjacente, da mesma forma que no caso do instinto
escopofílico. Essa situação é a de amar-se a si próprio, que
consideramos como sendo o traço característico do narcisismo. Então, conforme o
objeto ou o sujeito seja substituído por um estranho, o que resulta é a
finalidade ativa de amar ou a passiva de ser amado - ficando a segunda perto do
narcisismo.
Talvez cheguemos a uma melhor compreensão dos
vários opostos do amar, se refletirmos que nossa vida mental como um todo se
rege por três polaridades, as antíteses
Sujeito (ego) - Objeto (mundo externo),
Prazer - Desprazer, e
Ativo - Passivo.
A antítese ego-não-ego (externo), isto é,
sujeito-objeto, é, como já tivemos oportunidade de dizer [ver em [1]], lançada
sobre o organismo individual numa fase inicial, pela experiência de que pode
silenciar os estímulos externos por meio de ação muscular, mas é inerme
contra estímulos instintuais. Essa antítese permanece, acima de tudo,
soberana em nossa atividade intelectual e cria para a pesquisa a situação
básica que esforço algum pode alterar. A polaridade do prazer-desprazer está ligada
a uma escala de sentimentos, cuja importância suprema na determinação de nossas
ações (nossa vontade) já foi ressaltada [ver em [1] e [2]]. A antítese
ativo-passivo não deve ser confundida com a antítese sujeito do ego-objeto do
mundo externo. A relação do ego com o mundo externo é passiva na medida em que
o primeiro recebe estímulos do segundo, e ativa quando reage a eles. Ela é
forçada por seus instintos a um grau bem especial de atividade para com o mundo
externo, de modo que talvez pudéssemos ressaltar o ponto essencial se
disséssemos que o sujeito do ego é passivo no tocante aos estímulos externos,
mas ativo através de seus próprios instintos. A antítese ativo-passivo funde-se
depois com a antítese masculino-feminino, a qual, até que isso tenha ocorrido,
não possui qualquer significado psicológico. A junção da atividade com a
masculinidade e da passividade com a feminilidade nos defronta, na realidade,
com um fato biológico, mas não é de forma alguma tão invariavelmente completa e
exclusiva como tendemos a presumir.
As três polaridades da mente estão ligadas umas
às outras de várias maneiras altamente significativas. Existe uma situação
psíquica primordial na qual duas delas coincidem. Originalmente, no próprio
começo da vida mental, o ego é catexizado com os instintos, sendo, até certo
ponto, capaz de satisfazê-los em si mesmo. Denominamos essa condição de
‘narcisismo’, e essa forma de obter satisfação, de ‘auto-erótica’. Nessa
ocasião, o mundo externo não é catexizado com interesse (num sentido geral),
sendo indiferente aos propósitos de satisfação. Durante esse período, portanto,
o sujeito do ego coincide com o que é agradável, e o mundo externo, com o que é
indiferente (ou possivelmente desagradável, como sendo uma fonte de
estimulação). Se por enquanto definimos o amar como a relação do ego com suas
fontes de prazer, a situação na qual o ego ama somente a si próprio e é
indiferente ao mundo externo, ilustra o primeiro dos opostos que encontramos
para ‘o amor’.
Na medida em que o ego é auto-erótico, não
necessita do mundo externo, mas, em conseqüência das experiências sofridas
pelos instintos de autopreservação, ele adquire objetos daquele mundo, e,
apesar de tudo, não pode evitar sentir como desagradáveis, por algum tempo,
estímulos instintuais internos. Sob o domínio do princípio de prazer ocorre
agora um desenvolvimento ulterior no ego. Na medida em que os objetos que lhe
são apresentados constituem fontes de prazer, ele os toma para si próprio, os
‘introjeta’ (para empregar o termo de Ferenczi [1909]); e, por outro lado,
expele o que quer que dentro de si mesmo se torne uma causa de desprazer. (Ver
adiante [ver em [1] e [2]] o mecanismo da projeção).
Assim, o ‘ego da realidade’, original, que
distinguiu o interno e o externo por meio de um sólido critério objetivo se
transforma num ‘ego do prazer’ purificado, que coloca a característica do
prazer acima de todas as outras. Para o ego do prazer, o mundo externo está
dividido numa parte que é agradável, que ele incorporou a si mesmo, e num
remanescente que lhe é estranho. Isolou uma parte do seu próprio eu, que
projeta no mundo externo e sente como hostil. Após esse novo arranjo, as duas
polaridades coincidem mais uma vez: o sujeito do ego coincide com o prazer, e o
mundo externo com o desprazer (com o que anteriormente era indiferente).
Quando, durante a fase do narcisismo primário,
o objeto faz a sua aparição, o segundo oposto ao amar, a saber, o odiar, atinge
seu desenvolvimento.
Como já vimos, o objeto é levado do mundo
externo para o ego, a princípio, pelos instintos de autopreservação; não se
pode negar que também o odiar, originalmente, caracterizou a relação entre o
ego e o mundo externo alheio com os estímulos que introduz. A indiferença se
enquadra como um caso especial de ódio ou desagrado, após ter aparecido
inicialmente como sendo seu precursor. Logo no começo, ao que parece, o mundo
externo, objetos e o que é odiado são idênticos. Se depois um objeto b\vem a
ser uma fonte de prazer, ele é amado, mas é também incorporado ao ego, de modo
que para o ego do prazer purificado mais uma vez os objetos coincidem com o que
é estranho e odiado.
Agora, contudo, podemos notar que da mesma
forma que o par de opostos amor-indiferença reflete a polaridade ego-mundo
externo, assim também a segunda antítese amor-ódio reproduz a polaridade
prazer-desprazer, que está ligada à primeira polaridade. Quando a fase
puramente narcisista cede lugar à fase objetal, o prazer e o desprazer
significam relações entre o ego e o objeto. Se o objeto se torna uma fonte de
sensações agradáveis, estabelece-se uma ânsia (urge) motora que procura
trazer o objeto para mais perto do ego e incorporá-lo ao ego. Falamos da
‘atração’ exercida pelo objeto proporcionador de prazer, e dizemos que ‘amamos’
esse objeto. Inversamente, se o objeto for uma fonte de sensações
desagradáveis, há uma ânsia (urge) que se esforça por aumentar a
distância entre o objeto e o ego, e a repetir em relação ao objeto a tentativa
original de fuga do mundo externo com sua emissão de estímulos. Sentimos a
‘repulsão’ do objeto, e o odiamos; esse ódio pode depois intensificar-se ao
ponto de uma inclinação agressiva contra o objeto - uma intenção de destruí-lo.
Poderíamos, num caso de emergência, dizer que
um instinto ‘ama’ o objeto no sentido do qual ele luta por propósitos de
satisfação, mas dizer que um instinto ‘odeia’ um objeto, nos parece estranho.
Assim, tornamo-nos cônscios de que as atitudes de amor e ódio não podem ser
utilizadas para as relações entre os instintos e seus objetos, mas estão
reservadas para as relações entre o ego total e os objetos. Mas, se
considerarmos o uso lingüístico, que por certo não é destituído de
significação, veremos que há outra limitação ao significado do amor e do ódio.
Não costumamos dizer que amamos os objetos que servem aos interesses da
autopreservação; ressaltamos o fato de que necessitamos deles, e talvez
expressemos uma espécie de relação adicional diferente para com eles,
utilizando-nos de palavras que detonam um grau muito reduzido de amor - tais
como, por exemplo, ‘ser afeiçoado a’, ‘gostar’ ou ‘achar agradável’.
Assim, a palavra ‘amar’ desloca-se cada vez
mais para a esfera da pura relação de prazer entre o ego e o objeto, e
finalmente se fixa a objetos sexuais no sentido mais estrito e àqueles que satisfazem
as necessidades dos instintos sexuais sublimados. A distinção entre os
instintos do ego e os instintos sexuais que impusemos à nossa psicologia é
dessa forma encarada como estando em conformidade com o espírito de nossa
língua. O fato de não termos o hábito de dizer que um instinto sexual isolado
ama o seu objeto, mas considerarmos a relação entre o ego e seu objeto sexual
como o caso mais apropriado no qual empregar a palavra ‘amor’ - esse fato nos
ensina que a palavra só pode começar a ser aplicada nesse sentido após ter
havido uma síntese de todos os instintos componentes da sexualidade sob a
primazia dos órgãos genitais e a serviço da função reprodutora.
É digno de nota que no uso da palavra ‘ódio’
não aparece essa conexão íntima com o prazer sexual e a função sexual. A
relação de desprazer parece ser a única decisiva. O ego odeia, abomina e
persegue, com intenção de destruir, todos os objetos que constituem uma fonte
de sensação desagradável para ele, sem levar em conta que significam uma frustração
quer da satisfação sexual, quer da satisfação das necessidades
autopreservativas. Realmente, pode-se asseverar que os verdadeiros protótipos
da relação de ódio se originam não da vida sexual, mas da luta do ego para
preservar-se e manter-se.
Vemos, assim, que o amor e o ódio, que se nos
apresentam como opostos completos em seu conteúdo, afinal de contas não mantêm
entre si uma relação simples. Não surgiram da cisão de uma entidade
originalmente comum, mas brotaram de fontes diferentes, tendo cada um deles se
desenvolvido antes que a influência da relação prazer-desprazer os
transformasse em opostos.
Resta-nos agora reunir o que sabemos da gênese
do amor e do ódio. O amor deriva da capacidade do ego de satisfazer
auto-eroticamente alguns dos seus impulsos instintuais pela obtenção do prazer
do órgão. É originalmente narcisista, passando então para objetos, que foram
incorporados ao ego ampliado, e expressando os esforços motores do ego em
direção a esses objetos como fontes de prazer. Tornar-se intimamente vinculado
à atividade dos instintos sexuais ulteriores e, quando estes são inteiramente
sintetizados, coincide com o impulso sexual como um todo. As fases preliminares
do amor surgem como finalidades sexuais provisórias enquanto os instintos
sexuais passam por seu complicado desenvolvimento. Reconhecemos a fase de
incorporação ou devoramento como sendo a primeira dessas finalidades - um tipo
de amor que é compatível com a abolição da existência separada do objeto e que,
portanto, pode ser descrito como ambivalente. Na fase mais elevada da
organização sádico-anal pré-genital, a luta pelo objeto aparece sob a forma de
uma ânsia (urge) de dominar, para a qual o dano ou o aniquilamento do
objeto é indiferente. O amor nessa forma e nessa fase preliminar quase não se
distingue do ódio em sua atitude para com o objeto. Só depois de estabelecida a
organização genital é que o amor se torna o oposto do ódio.
O ódio, enquanto relação com objetos, é mais
antigo que o amor. Provém do repúdio primordial do ego narcisista ao mundo
externo com seu extravasamento de estímulos. Enquanto expressão da reação do
desprazer evocado por objetos, sempre permanece numa relação íntima com os
instintos autopreservativos, de modo que os instintos sexuais e os do ego
possam prontamente desenvolver uma antítese que repete a do amor e do ódio.
Quando os instintos do ego dominam a função sexual, como é o caso na fase da
organização anal-sádica, eles transmitem as qualidades de ódio também à
finalidade instintual.
A história das origens e relações do amor nos
permite compreender como é que o amor com tanta freqüência se manifesta como
‘ambivalente’ - isto é, acompanhado de impulsos de ódio contra o mesmo objeto.
O ódio que se mescla ao amor provém em parte das fases preliminares do amar não
inteiramente superadas; baseia-se também em parte nas reações de repúdio aos
instintos do ego, os quais, em vista dos freqüentes conflitos entre os
interesses do ego e os do amor, podem encontrar fundamentos em motivos reais e
contemporâneos. Em ambos os casos, portanto, o ódio mesclado tem como sua fonte
os instintos auto-preservativos. Se uma relação de amor com um dado objeto for
rompida, freqüentemente o ódio surgirá em seu lugar, de modo que temos a
impressão de uma transformação do amor em ódio. Esse relato do que acontece
leva ao conceito de que o ódio, que tem seus motivos reais, é aqui reforçado
por uma regressão do amor à fase preliminar sádica, de modo que o ódio adquire
um caráter erótico, ficando assegurada a continuidade de uma relação de amor.
A terceira antítese do amar, a transformação do
amar em ser amado, corresponde à atuação da polaridade da atividade e da
passividade, devendo ser julgada da mesma maneira que os casos de escopofilia e
sadismo.
Podemos resumir dizendo que o traço essencial das
vicissitudes sofridas pelos instintos está na sujeição dos impulsos
instintuais às influências das três grandes polaridades que dominam a vida
mental. Dessas três polaridades podemos descrever a da
atividade-passividade como a biológica, a do ego-mundo externo como a real,
e finalmente a do prazer-desprazer como a polaridade econômica.
A vicissitude instintual da repressão
constituirá assunto de uma indagação que se segue [no artigo seguinte].
REPRESSÃO (1915)
NOTA DO EDITOR INGLÊS DIE
VERDRÏNGUNG
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1915 Int. Z. Psychoanal., 3 (3), 129-38.
1918
S.K.S.N., 4, 279-93. (1922, 2ª ed.)
1924
G.S., 5, 466-79.
1924
Techinik und Metapsychol., 188-201.
1931 Theoretische Schriften, 83-97.
1946 G.W., 10, 248-61.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Repression’
1925 C.P., 4, 84-97. (Trad. C. M. Baines.)
A presente tradução inglesa, embora baseada na
de 1925, foi amplamente reescrita.
Em sua ‘História do Movimento Psicanalítico’
(1914d), Freud declarou que ‘a teoria da repressão é pedra angular sobre a qual
repousa toda a estrutura da psicanálise’ (ver em [1] acima); e no presente
ensaio, juntamente com a Seção IV do artigo sobre ‘O Inconsciente’ que a ela se
segue (ver em [1] e segs.), oferece-nos sua formulação mais elaborada dessa
teoria.
O conceito de repressão remonta historicamente
aos primórdios da psicanálise. A primeira referência a ele que foi publicada,
consta da ‘Comunicação Preliminar’ de Breuer e Freud (Edição Standard
Brasileira, Vol. II, pág. 51, IMAGO Editora, 1974). O termo ‘Verdrängung‘
fora empregado pelo psicólogo Herbart, no início do século XIX, e possivelmente
chegou ao conhecimento de Freud através de seu mestre Meynert, que tinha sido
admirador de Herbart. Mas, como o próprio Freud insistiu no trecho da ‘História’
já citado (pág. acima), ‘a teoria da repressão, sem dúvida alguma, ocorreu-me
independentemente de qualquer outra fonte’. ‘Foi uma novidade’, escreveu em seu
Autobiographical Study (1925d), ‘e nada semelhante havia sido
reconhecido anteriormente na vida mental.’ Existem, nos escritos de Freud,
vários relatos de como ocorreu a descoberta: por exemplo, nos Estudos sobre
a Histeria (1895d), Edição Standard Brasileira, Vol. II, págs.
324-6, IMAGO Editora, 1974, e novamente na ‘História’, pág. 36 acima. Todos
esses relatos são unânimes em ressaltar o fato de que o conceito de repressão
foi inevitavelmente sugerido pelo fenômeno clínico da resistência, que por sua
vez foi trazido à luz por uma inovação técnica - a saber, o abandono da hipnose
no tratamento catártico da histeria.
Notar-se-á que no relato feito nos Estudos
o termo realmente empregado para descrever o processo não é ‘repressão’ mas
‘defesa’. Nesse período inicial, os dois termos foram utilizados por Freud
indiretamente, quase como equivalentes, embora ‘defesa’ fosse talvez o mais
comum. Logo, contudo, como observou em seu artigo sobre a sexualidade nas
neuroses (1960a), Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág. 288,
anamnese do ‘Homem dos Ratos’ (1909d) Freud examinou o mecanismo de ‘repressão’
na neurose obsessiva - isto é, o deslocamento da catexia emocional da idéia
objetável, em contraste com a expulsão completa da idéia da consciência, na
histeria - e referiu-se a ‘duas espécies de repressão’ (Standard Ed.,
10, 196). De fato, é nesse sentido mais amplo que o termo é utilizado no
presente artigo, como fica demonstrado pela discussão, que aparece quase no
final, sobre os diferentes mecanismos de repressão nas várias formas da
psiconeurose. Parece bastante claro, todavia, que a forma da repressão que
Freud tinha em mente, aqui, era sobretudo a que ocorre na histeria; e muito
mais adiante, no Capítulo XI, Seção A (c), de Inhibitions, Symptons and
Anxiety (1926d), ele propôs restringir o termo ‘repressão’ a esse único
mecanismo particular, e reviver ‘defesa’ como ‘uma designação geral para todas
as técnicas empregadas pelo ego em conflitos que possam levar a uma neurose’. A
importância de estabelecer essa distinção foi depois ilustrada por ele na Seção
V de ‘Analysis Terminable and Interminable’ (1937c).
O problema especial da natureza da força
motora, que permite à repressão operar, constitui uma fonte constante de
preocupação para Freud, embora quase não seja abordado no presente artigo. Em
particular, havia a questão da relação entre a repressão e o sexo, em relação à
qual Freud, inicialmente, não tinha uma posição definida, como se pode ver em
muitos pontos da correspondência de Fliess (1950a). Subseqüentemente, contudo,
ele rejeitou com firmeza qualquer tentativa de ‘sexualizar’ a repressão. Um exame
completo dessa questão (com particular referência aos conceitos de Adler) será
encontrado na última seção de “A Child is Being Beaten”, (1919e), Standard
Ed., 17, 200 e segs. Mais tarde ainda, em Inhibitions Symptons and
Anxiety (1926d), especialmente no Capítulo IV, e na parte inicial da
Conferência XXXII das New Introductory Lectures (1933a), ele lançou nova
luz sobre o assunto argumentando que a ansiedade não era, como sustentara
anteriormente e como afirma no artigo que se segue, por exemplo nas págs. 157 e
159, uma conseqüência da repressão, mas uma das principais forças
motoras conducentes à mesma.
REPRESSÃO
Uma das vicissitudes que um impulso instintual
pode sofrer é encontrar resistências que procuram torná-lo inoperante. Em
certas condições, que logo investigaremos mais detidamente, o impulso passa
então para o estado de ‘repressão’ [‘Verdrängung‘]. Se o que estava em
questão era o funcionamento de um estímulo externo, obviamente se deveria
adotar a fuga como método apropriado; para o instinto, a fuga não tem qualquer
valia, pois o ego não pode escapar de si próprio. Em dado período ulterior, se
verificará que a rejeição baseada no julgamento (condenação) constituirá
um bom método a ser adotado contra um impulso instintual. A repressão é uma etapa
preliminar da condenação, algo entre a fuga e a condenação; trata-se de um
conceito que não poderia ter sido formulado antes da época dos estudos
psicanalíticos.
Não é fácil deduzir em teoria a possibilidade
de algo como a repressão. Por que deve um impulso instintual sofrer uma
vicissitude como essa? Condição necessária para que ela ocorra deve ser, sem
dúvida, que a consecução, pelo instinto, de sua finalidade produza desprazer em
vez de prazer. Contudo, não podemos imaginar facilmente tal eventualidade. Não
existem tais instintos: a satisfação de um instinto é sempre agradável.
Teríamos de supor a existência de certas circunstâncias peculiares, alguma
espécie de processo através do qual o prazer da satisfação se transforma em
desprazer.
A fim de melhor determinar a repressão,
examinemos algumas outras situações instintuais. Pode acontecer que um estímulo
externo seja internalizado - corroendo e destruindo, por exemplo, algum órgão
corpóreo -, de modo que surja uma nova fonte de excitação constante e de
aumento de tensão. Assim, o estímulo adquire uma similaridade de longo alcance
com um instinto. Sabemos que um caso desse tipo é experimentado por nós como dor.
A finalidade desse pseudo-instinto, no entanto, consiste simplesmente na
cessação da mudança no órgão e do desprazer que lhe é concomitante. Não há
outro prazer direto a ser alcançado pela cessação da dor. Além disso, a dor é
imperativa; as únicas coisas diante das quais ela pode ceder são a eliminação
por algum agente tóxico ou a influência da distração mental.
O caso da dor é por demais obscuro para nos
servir de ajuda em nossos propósitos. Tomemos o caso em que um estímulo
instintual como a fome permanece insatisfeito. Ele se torna então imperativo e
só pode ser aliviado pela ação que o satisfaz, mantendo uma constante tensão de
necessidade. Nesse caso, nada da natureza de uma repressão, sequer remotamente,
parece estar em questão.
Assim, por certo, a repressão não surge nos
casos em que a tensão produzida pela falta de satisfação de um impulso instintual
é elevada a um grau insuportável. Os métodos de defesa acessíveis ao organismo
contra essa situação devem ser examinados em outra conexão.
Limitemo-nos, portanto, à experiência clínica,
tal como encontrada na prática psicanalítica. Aprendemos então que a satisfação
de um instinto que se acha sob repressão seria bastante possível, e, além
disso, que tal satisfação seria invariavelmente agradável em si mesma, embora
irreconciliável com outras reivindicações e intenções. Ela causaria, por
conseguinte, prazer num lugar e desprazer em outro. Em conseqüência disso,
torna-se condição para repressão que a força motora do desprazer adquira mais
vigor do que o prazer obtido da satisfação. Ademais, a observação psicanalítica
das neuroses de transferência leva-nos a concluir que a repressão não é um
mecanismo defensivo que esteja presente desde o início; que ela só pode surgir
quando tiver ocorrido uma cisão marcante entre a atividade mental consciente e
a inconsciente; e que a essência da repressão consiste simplesmente em
afastar determinada coisa do consciente, mantendo-a à distância. Esse
conceito de repressão ficaria mais completo se supuséssemos que, antes de a
organização mental alcançar essa fase, a tarefa de rechaçar os impulsos
instintuais cabia às outras vicissitudes, às quais os instintos podem estar
sujeitos - por exemplo, a reversão no oposto ou o retorno em direção ao próprio
eu (self) do sujeito [ver em [1]].
Afigura-se-nos agora que, em vista da grande
extensão da correlação entre repressão e o que é inconsciente, devemos adiar o
exame mais aprofundado da natureza da repressão até que tenhamos aprendido mais
sobre a estrutura da sucessão de agentes psíquicos e sobre a diferenciação
entre o que é inconsciente e consciente. [Ver o artigo seguinte em [1] e segs.]
Até então, tudo o que podemos fazer é reunir de maneira puramente descritiva
algumas características da repressão que tenham sido observadas clinicamente,
ainda que corramos o risco de ter de repetir, sem modificação, muito do que já
foi dito em outros lugares.
Temos motivos suficientes para supor que existe
uma repressão primeva, uma primeira fase de repressão, que consiste em
negar entrada no consciente ao representante psíquico (ideacional) do instinto.
Com isso, estabelece-se uma fixação; a partir de então, o representante em
questão continua inalterado, e o instinto permanece ligado a ele. Isso se deve
às propriedades dos processos inconscientes, de que falaremos depois [ver em
[1]].
A segunda fase da repressão, a repressão
propriamente dita, afeta os derivados mentais do representante reprimido,
ou sucessões de pensamento que, originando-se em outra parte, tenham entrado em
ligação associativa com ele. Por causa dessa associação, essas idéias sofrem o
mesmo destino daquilo que foi primevamente reprimido. Na realidade, portanto, a
repressão propriamente dita é uma pressão posterior Além disso, é errado dar
ênfase apenas à repulsão que atua a partir da direção do consciente sobre o que
deve ser reprimido; igualmente importante é a atração exercida por aquilo que
foi primevamente repelido sobre tudo aquilo com que ele possa estabelecer uma
ligação. Provavelmente, a tendência no sentido da repressão falharia em seu
propósito, caso essas duas forças não cooperassem, caso não existisse algo previamente
reprimido pronto para receber aquilo que é repelido pelo consciente.
Sob a influência do estudo das psiconeuroses,
que coloca diante de nós os importantes efeitos da repressão, inclinamo-nos a
supervalorizar sua dimensão psicológica e a esquecer, demasiado depressa, o
fato de que a repressão não impede que o representante instintual continue a
existir no inconsciente, se organize ainda mais, dê origem a derivados, e
estabeleça ligações. Na verdade, a repressão só interfere na relação do
representante instintual com um único sistema psíquico, a saber, o do
consciente.
A psicanálise também é capaz de nos revelar
outras coisas importantes para a compreensão dos efeitos da repressão nas
psiconeuroses. Mostra-nos, por exemplo, que o representante instintual se
desenvolverá com menos interferência e mais profusamente, se for retirado da
influência consciente pela expressão. Ele prolifera no escuro, por assim dizer,
e assume formas extremas de expressão, que uma vez traduzidas e apresentadas ao
neurótico irão não só lhe parecer estranhas mas também assustá-lo,
mostrando-lhe o quadro de uma extraordinária e perigosa força do instinto. Essa
força falaz do instinto resulta de um desenvolvimento desinibido da fantasia e
do represamento ocasionado pela satisfação frustrada. O fato de esse último
resultado estar vinculado à repressão indica a direção em que a verdadeira
importância da repressão deve ser procurada.
Voltando, porém, mais uma vez ao aspecto oposto
da repressão, deixemos claro que tampouco é correto supor que a repressão
retira do consciente todos os derivados daquilo que foi primevamente reprimido.
Se esses derivados se tornarem suficientemente afastados do representante
reprimido - quer devido à adoção de distorções, quer por causa do grande número
de elos intermediários inseridos -, eles terão livre acesso ao consciente. Tudo
se passa como se a resistência do consciente contra eles constituísse uma
função da distância existente entre eles e aquilo que foi originalmente
reprimido. Ao executarmos a técnica da psicanálise, continuamos exigindo que o
paciente produza, de tal forma, derivados do reprimido, que, em conseqüência de
sua distância no tempo, ou de sua distorção, eles possam passar pela censura do
consciente. Na realidade, as associações que exigimos que o paciente faça sem
sofrer a influência de qualquer idéia intencional consciente ou de qualquer
crítica, e a partir das quais reconstituímos uma tradução consciente do
representante reprimido - essas associações nada mais são do que derivados
remotos e distorcidos desse tipo. No correr desse processo, observamos que o
paciente pode continuar a desfiar sua meada de associações, até ser levado de
encontro a um pensamento, cuja relação com o reprimido fique tão óbvia, que o
force a repetir sua tentativa de repressão. Também os sintomas neuróticos devem
satisfazer a essa mesma condição, já que são derivados do reprimido, o qual,
por intermédio deles, finalmente teve acesso à consciência, acesso este que
anteriormente lhe era negado.
Não podemos formular uma regra geral sobre o
grau de distorção e de distância no tempo necessário para a eliminação da
resistência por parte do consciente. Ocorre aqui um delicado equilíbrio, cujo
jogo não nos é revelado; no entanto, sua modalidade de atuação nos permite
inferir que se trata de pôr um paradeiro à catexia do inconsciente quando esta
alcança certa intensidade - intensidade além da qual o inconsciente venceria as
resistências, chegando à satisfação. A repressão atua, portanto, de uma forma altamente
individual. Cada derivado isolado do reprimido pode ter sua própria
vicissitude especial; um pouco mais ou um pouco menos de distorção altera
totalmente o resultado. Nesse sentido, podemos compreender a razão por que os
objetos mais preferidos pelos homens, isto é, seus ideais, procedem das mesmas
percepções e experiências que os objetos mais abominados por eles, e porque,
originalmente, eles só se distinguiam um dos outros através de ligeiras
modificações. [ver em [1]] Realmente, tal como verificamos ao remontarmos à
origem do fetiche, o representante instintual original pode ser dividido em
duas partes: uma que sofre repressão, ao passo que a restante, precisamente por
causa dessa ligação íntima, passa pela idealização.
O mesmo resultado oriundo de um aumento ou de uma
diminuição do grau de distorção também pode ser alcançado na outra extremidade
do aparelho, por assim dizer, por uma modificação da condição de produção de
prazer e desprazer. Desenvolveram-se técnicas especiais, com o propósito de
provocar tais mudanças no jogo das forças mentais, que aquilo que de outra
forma daria lugar ao desprazer, pudesse, nessa ocasião, resultar em prazer; e,
sempre que um dispositivo técnico desse tipo entra em funcionamento, elimina-se
a repressão de um representante instintual que, de outro modo, seria repudiado.
Até agora, apenas no que se refere aos chistes, essas técnicas foram estudadas
com algum detalhe. Via de regra, a repressão só é removida temporariamente,
reinstalando-se imediatamente.
Observações como esta, contudo, permitem-nos
notar outras características da repressão. Ela é não só individual em
seu funcionamento, conforme acabamos de assinalar, como também é extremamente móbil.
O processo de repressão não deve ser encarado como um fato que acontece uma
vez, produzindo resultados permanentes, tal como, por exemplo, se mata um ser
vivo que, a partir de então, está morto; a repressão exige um dispêndio
persistente de força, e se esta viesse a cessar, o êxito da repressão correria
perigo, tornando necessário um novo ato de repressão. Podemos supor que o
reprimido exerce uma pressão contínua em direção ao consciente, de forma que
essa pressão pode ser equilibrada por uma contrapressão incessante. Assim, a
manutenção de uma repressão acarreta ininterrupto dispêndio de força, ao passo
que sua eliminação, encarada de um ponto de vista econômico, resulta numa
poupança. Incidentalmente, a mobilidade da repressão também encontra expressão
nas características psíquicas do estado do sono, o único a tornar possível a
formação de sonhos. Com o retorno à vida de vigília, as catexias repressivas
absorvidas são mais uma vez expulsas.
Finalmente, não nos devemos esquecer de que, na
verdade, ao se estabelecer que um impulso instintual é reprimido, muito pouco
se disse a respeito dele. Tal impulso pode ocorrer em estados amplamente
diferentes, sem prejuízo para sua repressão. Pode ser inativo, isto é, só muito
levemente catexizado com energia mental; ou pode ser catexizado em graus
variáveis, permitindo-se-lhe, assim, que seja ativo. É verdade que sua ativação
não resultará numa eliminação direta da repressão, mas porá em movimento todos
os processos que terminam na penetração do impulso na consciência por caminhos
indiretos. Com derivados não reprimidos do inconsciente, o destino de uma idéia
específica é, com freqüência, decidido pelo grau de sua atividade ou catexia.
Enquanto esse derivado representa apenas uma pequena quantidade de energia,
quase sempre permanece não reprimido, embora pudesse calcular que seu conteúdo
entrasse em conflito com o que é dominante na consciência. O fator quantitativo
torna-se decisivo para esse conflito: tão logo a idéia basicamente detestável
ultrapassa certo grau de força, o conflito se torna real, e é precisamente essa
ativação que leva à repressão. Assim, no tocante à repressão, um aumento da
catexia energética atua no mesmo sentido que uma abordagem ao inconsciente, ao
passo que uma diminuição dessa catexia atua no mesmo sentido que o caráter
remoto do inconsciente ou da distorção. Vemos que as tendências repressivas
podem encontrar um substituto para a repressão num enfraquecimento do que é
detestável.
Até esse momento, em nosso exame, tratamos da
repressão de um representante instintual, entendendo por este último uma idéia,
ou grupo de idéias, catexizadas com uma quota definida de energia psíquica
(libido ou interesse) proveniente de um instinto. Agora, a observação clínica
nos obriga a dividir aquilo que até o presente consideramos como sendo uma
entidade única, de uma vez que essa observação nos indica que, além da idéia,
outro elemento representativo do instinto tem de ser levado em consideração, e
que esse outro elemento passa por vicissitudes de repressão que podem ser bem
diferentes das experimentadas pela idéia. Geralmente, a expressão quota de
afeto tem sido adotada para designar esse outro elemento do representante
psíquico. Corresponde ao instinto na medida em que este se afasta da idéia e
encontra expressão, proporcional à sua quantidade, em processos que são
sentidos como afetos. A partir desse ponto, ao descrevermos um caso de
repressão, teremos de acompanhar separadamente aquilo que acontece à idéia
como resultado da repressão e aquilo que acontece à energia instintual
vinculada a ela.
Gostaríamos de fazer algumas afirmações
genéricas a respeito das vicissitudes de ambos, coisa que, depois de nos
situarmos, será efetivamente possível. A idéia que representa o instinto
passa por uma vicissitude geral que consiste em desaparecer do consciente, caso
fosse previamente consciente, ou em ser afastada da consciência, caso estivesse
prestes a se tornar consciente. Essa diferença não é importante, correspondendo
à mesma coisa que a diferença entre ordenar a um hóspede indesejável que saia
da minha sala de visitas (ou do meu hall de entrada), e impedir, após
reconhecê-lo, que cruze a soleira de minha porta. O fator quantitativo
do representante instintual possui três vicissitudes possíveis, tal como
podemos verificar pelo breve exame das observações feitas pela psicanálise: ou
o instinto é inteiramente suprimido, de modo que não se encontra qualquer
vestígio dele, ou aparece como um afeto que de uma maneira ou de outra é
qualitativamente colorido, ou transformado em ansiedade. As duas últimas
possibilidades nos apontam a tarefa de levar em conta, como sendo uma
vicissitude instintual ulterior, a transformação em afetos, e
especialmente em ansiedade, das energias psíquicas dos instintos.
Recordamos o fato de que o motivo e o propósito
da repressão nada mais eram do que a fuga ao desprazer. Depreende-se disso que
a vicissitude da quota de afeto pertencente ao representante é muito mais
importante do que a vicissitude da idéia, sendo esse fato decisivo para nossa
avaliação do processo da repressão. Se uma repressão não conseguir impedir que
surjam sentimentos de desprazer ou de ansiedade, podemos dizer que falhou,
ainda que possa ter alcançado seu propósito no tocante à parcela ideacional.
Evidentemente, as repressões que falharam exercerão maior influência sobre
nosso interesse do que qualquer outra que possa ter sido bem-sucedida, já que
esta, na maioria das vezes, escapará ao nosso exame.
Agora, devemos tentar obter uma compreensão
interna (insight) do mecanismo do processo de repressão. Em
particular, desejamos saber se existe apenas um mecanismo isolado, ou mais de
um, e se cada uma das psiconeuroses se distingue por um mecanismo de repressão
que lhe é peculiar. Contudo já no início dessa indagação nos defrontamos com
complicações. O mecanismo de uma repressão só nos será acessível se deduzirmos
esse mecanismo a partir do resultado da repressão. Limitando nossas
observações ao efeito da repressão sobre a parcela ideacional do representante,
descobrimos que, via de regra, ele cria uma formação substitutiva. Qual
é o mecanismo através do qual esse substituto é formado? Ou será que devemos,
também aqui, distinguir vários mecanismos? Além disso, sabemos que a repressão
deixa sintomas em seu rastro. Podemos então supor que a formação de substitutos
e a formação de sintomas coincidem, e, admitindo que isso aconteça de um modo
geral, será o mecanismo formador de sintomas o mesmo que o da repressão? A
probabilidade geral pareceria ser a de que os dois são amplamente diferentes, e
a de que não é a própria repressão que produz formações substitutivas e
sintomas, mas que estes últimos são indicações de um retorno do reprimido
e devem sua existência a processos inteiramente outros. Seria também
aconselhável examinar os mecanismos através dos quais se formam os substitutos
e os sintomas, antes de considerarmos os mecanismos de repressão.
Obviamente não se trata de um assunto para
especulação ulterior. O lugar dessa especulação deve ser assumido por uma
análise cuidadosa dos resultados da repressão observáveis nas diferentes
neuroses. Sugiro, porém, que também adiemos essa tarefa até que tenhamos
formado concepções dignas de confiança a respeito da relação entre o consciente
e o inconsciente. Mas, a fim de que o presente exame não seja de todo
infrutífero, direi de antemão que (1) o mecanismo de repressão de fato não
coincide com o mecanismo ou mecanismos da formação de substitutos, (2) existem
numerosos e diferentes mecanismos de formação de substitutos e (3) os
mecanismos de repressão têm pelo menos uma coisa em comum: uma retirada da
catexia de energia (ou da libido, quando lidamos com os instintos
sexuais).
Além disso, restringindo-me às três formas mais
conhecidas da psiconeurose, mostrarei por meio de alguns exemplos como os
conceitos aqui introduzidos se aplicam ao estudo da repressão.
No campo da histeria da ansiedade
escolherei um exemplo bem analisado de uma fobia animal. Aqui, o impulso
instintual sujeito à repressão é uma atitude libidinal para com o pai, aliado
ao medo dele. Após a repressão, esse impulso desaparece da consciência: o pai
não aparece nela como um objeto da libido. Substituindo o pai, encontramos num
lugar correspondente um animal que se presta, de modo mais ou menos adequado, a
ser um objeto de ansiedade. A formação do substituto para a parcela ideacional
[do representante instintual] ocorreu por deslocamento ao longo de uma
cadeia de conexões determinada de maneira particular. A parcela quantitativa
não desapareceu, mas foi transformada em ansiedade. O resultado é o medo de um
lobo, em vez de uma exigência, de amor feita aos pais. As categorias empregadas
aqui não bastam, naturalmente, para explicar de forma adequada nem mesmo o caso
mais simples de psiconeurose: há sempre outras considerações a levar em conta.
Deve-se descrever uma repressão, tal como a que ocorre numa fobia animal, como
sendo radicalmente destituída de êxito. Ela apenas remove e substitui a idéia,
falhando inteiramente em poupar o desprazer. É também por esse motivo que o
trabalho da neurose não cessa. Prossegue até uma segunda fase, a fim de atingir
seu mais importante e imediato propósito. O que se segue é uma tentativa de
fuga - a formação da fobia propriamente dita, de um grande número de
evitações destinadas a impedir a liberação da ansiedade. Uma pesquisa mais
especializada permite-nos compreender o mecanismo pelo qual a fobia alcança sua
finalidade. [Ver em [1] e segs. adiante.]
Somos obrigados a adotar um conceito
inteiramente distinto a respeito do processo de repressão, quando consideramos
o quadro de uma verdadeira histeria de conversão. Aqui, o ponto relevante
reside em que é possível provocar um desaparecimento total da quota de afeto.
Quando isso ocorre, o paciente exibe, em relação a seus sintomas, aquilo que
Charcot denominava de ‘la belle indifférence des hystériques‘. Em outros
casos, essa supressão não se mostra tão bem-sucedida: sensações aflitivas podem
ligar-se aos próprios sintomas, ou talvez venha a ser impossível impedir certa
liberação de ansiedade, que por sua vez põe em ação o mecanismo de formação de
uma fobia. O conteúdo ideacional do representante instintual é totalmente
retirado da consciência; como um substituto - e ao mesmo tempo como um sintoma
- temos uma inervação surperforte (em casos típicos, uma inervação somática),
às vezes de natureza sensorial, às vezes, motora, quer como uma excitação, quer
como uma inibição. Num exame mais detido, a área superinervada revela-se como
sendo parte do próprio representante instintual reprimido, parte que - como se
isso se verificasse através de um processo de condensação, atrai toda a
catexia para si própria. Evidentemente, essas observações não trazem à luz o
mecanismo completo de uma histeria de conversão; o fator regressão, em
especial, a ser considerado em outra conexão, também tem de ser levado em
conta. Na medida em que a repressão na histeria [de conversão] só se torna
possível pela extensa formação de substitutos, ela pode ser julgada
inteiramente destituída de êxito; contudo, ao lidar com a quota de afeto - a
verdadeira tarefa da repressão -, ela geralmente significa um êxito total. Na
histeria de conversão, o processo de repressão é completado pela formação do
sintoma, e não precisa, como na histeria de ansiedade, continuar até uma
segunda fase - ou antes, rigorosamente falando, continuar interminavelmente.
Um quadro totalmente diferente da repressão se
revela, mais uma vez, na terceira perturbação, que consideraremos para os
propósitos de nossa ilustração - na neurose obsessiva. Aqui ficamos
inicialmente em dúvida quanto ao que devemos considerar como sendo o
representante instintual sujeito à repressão - se se trata de uma tendência
libidinal ou hostil. Essa incerteza surge porque a neurose obsessiva tem por
base uma regressão devido à qual uma tendência sádica foi substituída por uma
afetiva. É esse impulso hostil contra alguém que é amado, que se acha sujeito à
repressão. O efeito, numa fase inicial, do trabalho da repressão é bem
diferente do que se verifica numa posterior. De início, a repressão é
inteiramente cercada de êxito; o conteúdo ideacional é rejeitado, fazendo com
que o afeto desapareça. Como formação substitutiva, surge no ego uma alteração
sob a forma de maior consciência, quase não se podendo dar a isso o nome de
sintoma. Aqui, substituto e sintoma não coincidem. Com isso, aprendemos também
alguma coisa sobre o mecanismo da repressão. Nesse exemplo, como em todos os
outros, a repressão ocasionou um afastamento da libido; aqui, porém, ela fez
uso da formação da reação para atingir esse propósito, intensificando um
oposto. Assim, nesse caso, a formação de um substituto tem o mesmo mecanismo
que a repressão e, no fundo, coincide com ela, ao passo que cronologicamente,
tanto quanto conceptualmente, é diferente da formação de um sintoma. É bastante
provável que todo esse processo se torne possível pela relação ambivalente na
qual o impulso sádico a ser reprimido é introduzido. No entanto, a repressão,
que foi de início bem-sucedida, não se firma; no decorrer dos acontecimentos,
seu fracasso se torna cada vez mais acentuado. A ambivalência que permitiu que
a repressão ocorresse através da formação de reação, constitui também o ponto
em que o reprimido consegue retornar. A emoção desaparecida retorna, em sua
forma transformada, como ansiedade social, ansiedade moral e autocensura
ilimitadas; a idéia rejeitada é substituída por um substituto por
deslocamento, freqüentemente um deslocamento para algo muito pequeno ou
indiferente. Uma tendência no sentido de um restabelecimento completo da idéia
reprimida acha-se, em geral, inegavelmente presente. O fracasso na repressão do
fator quantitativo afetivo põe em jogo o mesmo mecanismo de fuga, por meio de
evitação e proibições, tal como vimos em funcionamento na formação de fobias
histéricas. A rejeição da idéia oriunda do consciente é, contudo,
obstinadamente mantida, porque provoca a abstenção oriunda da ação, um
aprisionamento motor do impulso. Assim, na neurose obsessiva, o trabalho da
repressão se prolonga numa luta estéril e interminável.
A curta série de comparações apresentada aqui
pode facilmente convencer-nos de que se fazem necessárias pesquisas mais
abrangentes, antes que possamos esperar compreender inteiramente os processos
ligados à repressão e à formação de sintomas neuróticos. A extraordinária
complexidade de todos os fatores a serem levados em consideração nos permite
apenas uma maneira de apresentá-los. Devemos selecionar primeiro um e, depois,
outro ponto de vista, e acompanhá-lo através do material enquanto sua aplicação
pareça proporcionar resultados. Cada abordagem isolada do assunto será
incompleta em si mesma, não podendo deixar de haver obscuridades sempre que ela
se defrontar com material ainda não examinado; no entanto, podemos esperar que
uma síntese final conduza a uma compreensão adequada.
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