RESUMO
É
chegado o momento de ensaiarmos um resumo. Partimos das aberrações da pulsão
sexual com respeito a seu objeto e seu alvo, e deparamos com a questão de saber
se elas provêm de uma disposição inata ou são adquiridas como resultado das
influências da vida. A resposta a essa pergunta nos veio da compreensão,
mediante a investigação psicanalítica, das condições da pulsão sexual nos
psiconeuróticos, um grupo humano numeroso que não fica longe dos sadios. Assim,
descobrimos que, nessas pessoas, a inclinação para todas as perversões é
demonstrável na qualidade de forças inconscientes e se denuncia como formadora
de sintomas, e pudemos dizer que a neurose é como que o negativo da perversões.
Diante da ampla disseminação das tendências perversas, agora reconhecidas,
fomos impelidos ao ponto de vista de que a disposição para as perversões é a
disposição originária universal da pulsão sexual humana, e de que a partir
dela, em conseqüência de modificações orgânicas e inibições psíquicas no
decorrer da maturação, desenvolve-se o comportamento sexual normal. Alimentamos
a esperança de poder apontar na infância essa disposição originária; entre as
forças que restringem a orientação da pulsão sexual destacamos a vergonha, o
asco, a compaixão e as construções sociais da moral e da autoridade. Assim,
tivemos de ver em cada aberração fixa da vida sexual normal um fragmento de
inibição do desenvolvimento e infantilismo. Embora tenha sido necessário situar
em primeiro plano a importância das variações da disposição originária, tivemos
de supor entre elas e as influências da vida uma relação de cooperação, e não
de antagonismo. Por outro lado, já que a disposição originária é
necessariamente complexa, pareceu-nos que a própria pulsão sexual seria algo
composto de diversos fatores e que, nas perversões, como que se desfaria em
seus componentes. Com isso, as perversões se revelaram, de um lado, como
inibições do desenvolvimento normal, e de outro, como dissociações dele. Essas
duas concepções foram reunidas na hipótese de que a pulsão sexual do adulto
nasce mediante a conjugação de diversas moções da vida infantil numa unidade,
numa aspiração com um alvo único.
Juntamos
a isso o esclarecimento da preponderância das inclinações perversas nos
psiconeuróticos, na medida em que a reconhecemos como o enchimento colateral de
canais secundários em função do bloqueio do leito principal [da corrente
sexual] pelo “recalcamento”, e passamos então ao exame da vida sexual na
infância. Pareceu-nos lamentável que se negasse a existência da pulsão sexual
na infância e que as manifestações sexuais não raro observadas nas crianças
fossem descritas como acontecimentos que fogem à regra. Pareceu-nos, ao
contrário, que a criança traz consigo ao mundo germes de atividade sexual e
que, já ao se alimentar, goza de uma satisfação sexual que então busca
reiteradamente proporcionar-se através da conhecida atividade de “chuchar”.
Todavia, a atividade sexual da criança não se desenvolve no mesmo passo que as
demais funções, mas sim, após um breve período de florescência entre os dois e
os cinco anos, entra no chamado período de latência. Neste, a produção de
excitação sexual de modo algum é suspensa, mas continua e oferece uma provisão
de energia que é empregada, em sua maior parte, para outras finalidades que não
as sexuais, ou seja, de um lado, para contribuir com os componentes sexuais para
os sentimentos sociais, e de outro (através do relacionamento e da formação
reativa), para construir as barreiras posteriores contra a sexualidade. Assim
se construiriam na infância, à custa de grande parte das moções sexuais
perversas e com a ajuda da educação, as forças destinadas a manter a pulsão
sexual em certos rumos. Outra parte das moções sexuais infantis escapa a esses
empregos e consegue expressar-se como atividade sexual. Pudemos então verificar
que a excitação sexual da criança provém de uma multiplicidade de fontes. A
satisfação surge, acima de tudo, mediante a excitação sensorial apropriada das
chamadas zonas erógenas, e provavelmente podem funcionar como tal qualquer
ponto da pele e qualquer órgão dos sentidos - provavelmente qualquer órgão -,
embora existam certas zonas erógenas destacadas cuja excitação estaria
assegurada, desde o começo, por certos dispositivos orgânicos. Além disso, a
excitação sexual parece surgir como um subproduto, por assim dizer, de um
grande número de processos que ocorrem no organismo, tão logo eles alcançam
certa intensidade, e muito especialmente, de todas as comoções mais fortes,
ainda que de natureza penosa. As excitações de todas essas fontes ainda não
estão conjugadas, cada qual seguindo separadamente seu alvo, que é meramente a
obtenção de certo prazer. Na infância, portanto, a pulsão sexual não está
centrada e é, a princípio, desprovida de objeto, ou seja, auto-erótica.
Ainda
durante a infância começa a fazer-se notar a zona erógena da genitália, seja
porque, como qualquer outra zona erógena, ela produz satisfação mediante a
estimulação sensorial apropriada, seja porque, de um modo não inteiramente
inteligível, havendo uma satisfação proveniente de outras fontes, produz-se ao
mesmo tempo uma excitação sexual que mantém uma relação particular com a zona
genital. Temos de admitir com pesar que não se chegou a um esclarecimento
suficiente das relações entre a satisfação sexual e a excitação sexual, como
também entre a atividade da zona genital e a das demais fontes da sexualidade.
Pelo
estudo dos distúrbios neuróticos, observamos que é possível identificar na vida
sexual infantil, desde seus primórdios, os rudimentos de uma organização dos
componentes sexuais da pulsão. Numa primeira fase, muito precoce, o erotismo
oral fica em primeiro plano; uma segunda dessas organizações “pré-genitais”
caracteriza-se pela predominância do sadismo e do erotismo anal; somente
numa terceira fase (desenvolvida na criança apenas até a primazia do falo) é
que a vida sexual passa a ser determinada pela contribuição das zonas genitais
propriamente ditas.
Tivemos
então de registrar, como uma de nossas mais surpreendentes descobertas, que
essa eflorescência precoce da vida sexual infantil (dos dois aos cinco anos)
também acarreta uma escolha objetal, com toda a riqueza das realizações
anímicas que isso implica, de modo que a fase correspondente e ligada a ela,
apesar da falta de síntese entre os componentes pulsionais isolados e da
incerteza do alvo sexual, deve ser apreciada como uma importante precursora da
posterior organização sexual definitiva.
A instauração
bitemporal do desenvolvimento sexual nos seres humanos, ou seja, sua
interrupção pelo período de latência, pareceu-nos digna de uma atenção
especial. Ela se afigura como uma das condições da aptidão do homem para o
desenvolvimento de uma cultura superior, mas também de sua tendência à neurose.
Ao que saibamos, nada de análogo é demonstrável entre os parentes animais do
homem. A origem dessa peculiaridade humana deveria ser buscada na
proto-história da espécie.
Não
pudemos dizer que medida de atividade sexual na infância poderia ainda ser
descrita como normal, como não perniciosa para o desenvolvimento ulterior. O
caráter dessas manifestações sexuais revelou-se predominantemente masturbatório.
A experiência permitiu-nos ainda comprovar que as influências externas da
sedução podem provocar rompimentos prematuros da latência e até a supressão
dela, e que, nesse aspecto, a pulsão sexual da criança comprova ser, de fato,
perverso-polimorfa; comprovamos ainda que tal atividade sexual prematura
prejudica a educabilidade da criança.
Apesar
das lacunas em nossos conhecimentos da vida sexual infantil, foi-nos então
preciso fazer uma tentativa de estudar as transformações sobrevindas com a chegada
da puberdade. Destacamos duas delas como decisivas: a subordinação de todas as
outras fontes de excitação sexual ao primado das zonas genitais e o processo do
encontro do objeto. Ambos já estão prefigurados na vida infantil. A primeira
consuma-se pelo mecanismo de exploração do pré-prazer: os atos sexuais outrora
autônomos, ligados ao prazer e à excitação, convertem-se em atos preparatórios
do novo alvo sexual (a descarga dos produtos sexuais), cuja consecução,
acompanhada de enorme prazer, põe termo à excitação sexual. Nesse aspecto,
havíamos levado em conta a diferenciação dos seres sexuados em masculino e
feminino e descobrimos que, no tornar-se mulher, faz-se necessário um novo
recalcamento, que suprime parte da masculinidade infantil e prepara a mulher
para a troca da zona genital dominante. Por fim, descobrimos que a escolha
objetal é guiada pelos indícios infantis, renovados na puberdade, da inclinação
sexual da criança pelos pais e por outras pessoas que cuidam dela, e que,
desviada dessas pessoas pela barreira do incesto erigida nesse meio-tempo,
orienta-se para outras que se assemelhem a elas. Cabe ainda acrescentar, por
último, que durante o período de transição da puberdade os processos de
desenvolvimento somático e psíquico prosseguem por algum tempo sem ligação
entre si, até que a irrupção de uma intensa moção anímica de amor, levando à
inervação dos genitais, produz a unidade da função amorosa exigida pela
normalidade.
FATORES
QUE PERTURBAM O DESENVOLVIMENTO
Cada
passo nesse longo percurso de desenvolvimento pode transformar-se num ponto de
fixação, cada ponto de articulação nessa complexa montagem pode ensejar a
dissociação da pulsão sexual, como já discutimos em diversos exemplos.
Resta-nos ainda fornecer um panorama dos diversos fatores internos e externos
que perturbam o desenvolvimento, e indicar o lugar do mecanismo afetado pela
perturbação proveniente deles. É claro que os fatores mencionados numa mesma
série podem não ter o mesmo valor, e devemos estar preparados para encontrar
dificuldades na devida avaliação de cada um deles.
CONSTITUIÇÃO
E HEREDITARIEDADE
Em
primeiro lugar, cabe mencionar aqui a diversidade inata da constituição
sexual, em que provavelmente recai o peso principal, mas que, como é compreensível,
só pode ser deduzida de suas manifestações posteriores e, mesmo assim, nem
sempre com grande certeza. Concebemos essa diversidade como uma preponderância
desta ou daquela das múltiplas fontes de excitação sexual, e cremos que tal
diferença entre as disposições deve expressar-se de alguma maneira no resultado
final, mesmo que este se mantenha dentro das fronteiras da normalidade. Sem
dúvida é concebível que haja também variações na disposição originária que
levem necessariamente, e sem a ajuda de outros fatores, à configuração de uma
vida sexual anormal. Poder-se-ia descrevê-los como “degenerativos” e
considerá-los como a expressão de uma deterioração hereditária. Nesse contexto,
tenho um fato notável a relatar. Em mais da metade dos casos de histeria,
neurose obsessiva etc. que tive em tratamento psicoterapêutico, pude demonstrar
com certeza que o pai sofrera de sífilis antes do casamento, quer se tratasse
de tabes ou paralisia progressiva, quer a doença luética fosse indicada de
algum outro modo pela anamnese. Quero observar expressamente que as crianças
posteriormente neuróticas não traziam em si nenhum sinal físico de sífilis
hereditária, de modo que justamente sua constituição sexual anormal é que devia
ser considerada como a última ramificação de sua herança sifilítica. Embora eu
esteja longe de afirmar que a descendência de pais sifilíticos é a condição
etiológica invariável ou imprescindível da constituição neuropática, não creio
que a coincidência por mim observada seja acidental ou sem importância.
As
condições hereditárias dos perversos positivos são menos conhecidas, pois eles
sabem furtar-se à investigação. Ainda assim, há boas razões para supor que o
que é válido para as neuroses também o seja para as perversões. E que não raro
se encontram numa mesma família a perversão e a psiconeurose, distribuídas de
tal modo entre os dois sexos que os membros masculinos, ou um deles, são
perversos positivos, enquanto os membros femininos, em consonância com a
tendência de seu sexo ao recalcamento, são perversos negativos, ou seja,
histéricos - uma boa prova das relações essenciais por nós descobertas entre os
dois distúrbios.
ELABORAÇÃO
ULTERIOR
Por
outro lado, não se pode defender o ponto de vista de que a conformação da vida
sexual ficaria inequivocamente determinada com a instauração dos diversos
componentes da constituição sexual. Ao contrário, o processo de determinação
prossegue e surgem outras possibilidades, conforme as vicissitudes por que
passam as correntes tributárias das sexualidades provenientes das diversas
fontes. Obviamente, é essa elaboração ulterior que decide em termos
definitivos, enquanto o que se poderia descrever como uma constituição idêntica
pode levar a três desfechos diferentes:
[1]
Quando todas as disposições se mantêm em sua proporção relativa, considerada
anormal, e são reforçadas com o amadurecimento, o desfecho só pode ser uma vida
sexual perversa. A análise dessas disposições constitucionais anormais ainda
não foi devidamente empreendida, mas já conhecemos casos facilmente explicáveis
mediante tais hipóteses. Os autores opinam, por exemplo (ver em [1]), que toda
uma série de perversões por fixação teria como precondição necessária uma
debilidade inata da pulsão sexual. Expressa nessa forma, tal colocação me
parece insustentável, mas ela passa a fazer sentido quando se pensa numa
debilidade constitucional de determinado fator da pulsão sexual, qual seja, a
zona genital, zona esta que assume posteriormente a função de conjugar num todo
cada uma das atividades sexuais isoladas, tendo por alvo a reprodução. [Quando
a zona genital é fraca,] essa conjugação exigida na puberdade está fadada a
fracassar, e o mais forte dentre os demais componentes da sexualidade impõe sua
prática como uma perversão.
RECALCAMENTO
[2]
Produz-se um desfecho diferente quando, no curso do desenvolvimento, alguns
componentes que tinham força excessiva na disposição passam pelo processo de
recalcamento, sobre o qual devemos insistir em que não é equivalente a uma
supressão. Nesse caso, as excitações correspondentes continuam a ser produzidas
como antes, mas são impedidas por um obstáculo psíquico de atingir seu alvo e
empurradas para muitos outros caminhos, até que se consigam expressar como
sintomas. O resultado pode aproximar-se de uma vida sexual normal - restrita,
na maioria das vezes -, mas complementada pela doença psiconeurótica. São
justamente esses os casos que se tornaram familiares para nós através da
investigação psicanalítica dos neuróticos. A vida sexual dessas pessoas começa
como a dos perversos, e toda uma parte de sua infância é ocupada por uma
atividade sexual perversa, que ocasionalmente se estende para além da
maturidade. Produz-se então, por causas internas - em geral antes da puberdade,
mas vez por outra até mesmo depois dela -, uma reversão devida ao recalcamento,
e a partir daí a neurose toma o lugar da perversão, sem que se extingam os
antigos impulsos. Isso faz lembrar o provérbio “Junge Hure, alte Betschwester”,
só que, nesse caso, a juventude foi curta demais. Essa substituição da
perversão pela neurose na vida de uma mesma pessoa, assim como a já mencionada
distribuição da perversão e da neurose entre os diferentes membros de uma mesma
família, é coerente com a concepção de que a neurose é o negativo da perversão.
SUBLIMAÇÃO
[3] O
terceiro desfecho da disposição constitucional anormal é possibilitado pelo
processo de “sublimação”, no qual as excitações hiperintensas
provenientes das diversas fontes da sexualidade encontram escoamento e emprego
em outros campos, de modo que de uma disposição em si perigosa resulta um
aumento nada insignificante da eficiência psíquica. Aí encontramos uma das
fontes da atividade artística, e, conforme tal sublimação seja mais ou menos
completa, a análise caracterológica de pessoas altamente dotadas, sobretudo as
de disposição artística, revela uma mescla, em diferentes proporções, de
eficiência, perversão e neurose. Uma subvariedade da sublimação talvez seja a
supressão por formação reativa, que, como descobrimos, começa no período
de latência da criança e, nos casos favoráveis, prossegue por toda a vida.
Aquilo a que chamamos “caráter” de um homem constrói-se, numa boa medida, a
partir do material das excitações sexuais, e se compõe de pulsões fixadas desde
a infância, de outras obtidas por sublimação, e de construções destinadas ao
refreamento eficaz de moções perversas reconhecidas como inutilizáveis. Por
conseguinte, a disposição sexual universalmente perversa da infância pode ser
considerada como a fonte de uma série de nossas virtudes, na medida em que,
através da formação reativa, impulsiona a criação delas.
EXPERIÊNCIAS
ACIDENTAIS
Comparadas
às descargas sexuais, às ondas de recalcamento e às sublimações (sendo
inteiramente desconhecidas para nós as condições internas destes dois últimos processos),
todas as outras influências parecem bem menos importantes. Quem incluir os
recalcamentos e sublimações na disposição constitucional e encará-los como
manifestações vitais desta poderá afirmar, justificadamente, que a conformação
final da vida sexual resulta, acima de tudo, da constituição inata. Mas ninguém
com algum discernimento contestará o fato de que, em tal cooperação de fatores,
há também espaço para as influências modificadoras do que foi acidentalmente
vivenciado na infância e depois. Não é fácil avaliar a eficácia dos fatores
constitucionais e acidentais em sua relação recíproca. Na teoria, sempre se
tende a superestimar os primeiros; a prática terapêutica destaca a importância
dos últimos. Mas em nenhum caso se deve esquecer que existe entre ambos uma
relação de cooperação, e não de exclusão. O fator constitucional tem de
aguardar experiências que o ponham em vigor; o acidental precisa apoiar-se na
constituição para ter efeito. Na maioria dos casos, pode-se imaginar o que se
tem chamado de “série complementar”, na qual as intensidades decrescentes de um
fator são compensadas pelas intensidades crescentes de outro, mas não há razão
alguma para negar a existência de casos extremos nos dois limites da série.
Harmoniza-se
ainda melhor com a investigação psicanalítica dar um lugar de destaque, entre
os fatores acidentais, às experiências da primeira infância. A série etiológica
única decompõe-se então em duas, que podem ser chamadas de disposicional
e definitiva. Na primeira, a constituição e as vivências acidentais da
infância interagem da mesma maneira que, na segunda, a disposição e as
vivências traumáticas posteriores. Todos os fatores nocivos ao desenvolvimento
sexual externam seu efeito promovendo uma regressão, um retorno a uma fase anterior
do desenvolvimento.
Prossigamos
agora em nossa tarefa de enumerar os fatores que verificamos serem influentes
no desenvolvimento sexual, quer representem forças eficazes ou meras
manifestações delas.
PRECOCIDADE
Um
desses fatores é a precocidade sexual espontânea, demonstrável com
certeza pelo menos na etiologia das neuroses, muito embora, tal como outros
fatores, não seja por si só uma causa suficiente. Manifesta-se na interrupção,
encurtamento ou encerramento do período infantil de latência, c converte-se em
causa de perturbações por ocasionar manifestações sexuais que, pelo estado
incompleto das inibições sexuais, de um lado, e por ainda não estar
desenvolvido o sistema genital, de outro, só podem trazer em si o caráter de
perversões. Essas tendências à perversão podem então permanecer como tais ou,
instaurado o recalcamento, transformar-se em forças propulsoras de sintomas
neuróticos. De qualquer modo, a precocidade sexual dificulta o desejável
domínio posterior da pulsão sexual pelas instâncias anímicas superiores, e
aumenta o caráter compulsivo que, à parte isso, os substitutos [Vertretungen]
psíquicos da pulsão reivindicam para si. A precocidade sexual amiúde corre
paralela ao desenvolvimento intelectual prematuro, e como tal é encontrada na história
infantil dos indivíduos mais eminentes e capazes; em tais condições, não parece
tornar-se tão patogênica como quando surge isoladamente.
FATORES
TEMPORAIS
Da mesma
forma, exigem consideração outros fatores que, ao lado da precocidade, podem
ser reunidos sob a designação de “temporais”. A ordem em que são
ativadas as diversas moções pulsionais, bem como o lapso de tempo em que podem
manifestar-se antes de sucumbir a influência de uma nova moção pulsional
emergente, ou a algum recalcamento típico, parecem filogeneticamente
determinados. Todavia, tanto nessa seqüência temporal quanto nessa duração
parece haver variações que devem exercer uma influência dominante no resultado
final. Não é indiferente que uma dada corrente emerja antes ou depois de sua
corrente contraída, pois o efeito de um recalcamento não pode ser desfeito:
cada desvio temporal na montagem dos componentes produz invariavelmente uma
alteração no resultado. Por outro lado, as moções pulsionais que emergem com
intensidade especial têm, com freqüência, um decurso assombrantemente rápido,
como, por exemplo, o vínculo heterossexual dos que depois se tornam
homossexuais manifestos. Não há justificativa para o medo de que as tendências
estabelecidas com mais violência na infância dominem permanentemente o caráter
adulto; é igualmente esperável que elas venham a desaparecer, cedendo lugar a
seu oposto. (“Gestrenge Herren regieren nicht lange.”)
Não
estamos sequer em condições de fornecer indícios das causas dessas complicações
temporais dos processos de desenvolvimento. Abre-se aqui o panorama de uma
densa falange de problemas biológicos, e talvez também históricos, dos quais
nem ao menos nos aproximamos o bastante para travar batalha com eles.
ADESIVIDADE
A
importância de todas as manifestações sexuais precoces é aumentada por um fator
psíquico de origem desconhecida, que por ora decerto só pode ser apresentado
como uma hipótese psicológica provisória. Refiro-me à elevada adesividade
[Haftbarkeit] ou fixabilidade dessas impressões da vida sexual,
que é preciso admitir, para a complementação dos fatos, nas pessoas que depois
se tornarão neuróticas ou perversas, já que as mesmas manifestações sexuais
prematuras em outras pessoas não conseguem gravar-se de maneira tão profunda, a
ponto de produzirem uma repetição convulsiva e poderem prescrever por toda a
vida os caminhos da pulsão sexual. Parte da explicação dessa adesividade talvez
resida num outro fator psíquico que não podemos negligenciar na causação das
neuroses, a saber, a preponderância que cabe na vida anímica aos traços
mnêmicos, em comparação com as impressões recentes. Esse fator é obviamente
dependente da formação intelectual e aumenta conforme a elevação da cultura
pessoal. Em contraste com isso, o selvagem tem sido caracterizado como “das
unglückselige Kind des Augenblickes”. Em decorrência da relação inversa
entre a cultura e o livre desenvolvimento da sexualidade, cujas conseqüências
podem ser seguidas muito de perto na conformação de nossa vida, a importância
do rumo tomado pela vida sexual da criança para a vida posterior é muito
pequena nos níveis cultural ou social mais baixos e muito grande nos mais
elevados.
FIXAÇÃO
O
terreno preparado pelos fatores psíquicos que acabamos de mencionar é favorável
aos estímulos acidentalmente vivenciados da sexualidade infantil. Estes últimos
(sobretudo a sedução por outras crianças ou por adultos) fornecem o material
que, com a ajuda dos primeiros, pode fixar-se como um distúrbio permanente. Boa
parte dos desvios da vida sexual normal posteriormente observados tanto nos
neuróticos quanto nos perversos é estabelecida, desde o começo, pelas
impressões do período infantil, supostamente desprovido de sexualidade. De sua
causação participam a complacência constitucional, a precocidade, a característica
da adesividade elevada e a estimulação fortuita da pulsão sexual por
influências estranhas.
Todavia,
a conclusão insatisfatória que emerge dessas investigações das perturbações da
vida sexual provém de não sabermos, sobre os processos biológicos que constituem
a essência da sexualidade, o bastante para formar, com base em nossos
conhecimentos isolados, uma teoria suficiente para compreendermos tanto o
normal quanto o patológico.
APÊNDICE:
LISTA DOS ESCRITOS DE FREUD QUE VERSAM PREDOMINANTEMENTE OU EM GRANDE PARTE
SOBRE A SEXUALIDADE
Claro
está que as referências à sexualidade são encontradas na grande maioria dos
escritos de Freud. A lista que se segue compreende aqueles que versam mais
diretamente sobre o assunto. A data indicada no início de cada item corresponde
ao ano de publicação. Os detalhes mais completos sobre cada obra serão
encontrados na bibliografia ao final deste volume.
1898a “A Sexualidade na Etiologia das Neuroses”.
1905d Três Ensaios sobre a Teoria da
Sexualidade.
1906a “Minhas Teses sobre o Papel da Sexualidade
na Etiologia das Neuroses”.
1907c “O Esclarecimento Sexual da Criança”.
1908b “Caráter e Erotismo Anal”.
1908c “Sobre as Teorias Sexuais Infantis”.
1908d “Moral Sexual `Civilizada’ e Doença Nervosa
Moderna”.
1910a Cinco Lições de Psicanálise,
Conferência IV.
1910c Uma Lembrança Infantil de Leonardo da
Vinci, Capítulo III.
1910h “Um Tipo Especial de Escolha de Objeto no
Homem”.
1912d “Sobre a Degradação mais Generalizada da
Vida Amorosa”.
1912f “Contribuições para um Debate sobre a
Masturbação”.
1913I “A Predisposição à Neurose Obsessiva”.
1913j “O Interesse pela Psicanálise”, Parte II
(C).
1913k
Prefácio a Scatologic Rites of All Nations, de Bourke.
1914c “Sobre o Narcisismo: Introdução”.
1916-17 Conferências Introdutórias sobre
Psicanálise, Conferências XX, XXI, XXII e XXVI.
1917c “Sobre as Transformações da Pulsão,
particularmente o Erotismo Anal”.
1918a “O Tabu da Virgindade”.
1919e “ `Espanca-se uma Criança’ ”.
1920a “Sobre a Psicogênese de um Caso de
Homossexualismo Feminino”.
1922b “Alguns Mecanismos Neuróticos no Ciúme, na
Paranóia e no Homossexualismo”, Seção C.
1923a Dois Verbetes de Enciclopédia: (2) “A Teoria
da Libido”.
1923e “A Organização Genital Infantil”.
1924c “O Problema Econômico do Masoquismo”.
1924d “O Naufrágio do Complexo de Édipo”.
1925j “Algumas Conseqüências Psíquicas da
Diferença Anatômica entre os Sexos”.
1927e “Fetichismo”.
1931a “Tipos Libidinais”.
193lb “Sexualidade Feminina”
1933a Novas Conferências Introdutórias sobre
Psicanálise, Conferências XXXII e XXXIII.
1940a [1938] Um Esboço de Psicanálise,
Capítulos III e VII.
1940e [1938] “A Cisão do Ego no Processo de
Defesa”.
O MÉTODO
PSICANALÍTICO DE FREUD
O
singular método psicoterápico que Freud pratica e designa de psicanálise é
proveniente do chamado procedimento catártico, sobre o qual ele forneceu as
devidas informações nos Estudos sobre a Histeria, de 1895, escritos em
colaboração com Joseph Breuer. A terapia catártica foi uma descoberta de
Breuer, que, cerca de dez anos antes, curara com sua ajuda uma paciente histérica
e obtivera, nesse processo, uma compreensão da patogênese de seus sintomas.
Graças a uma sugestão pessoal de Breuer, Freud retomou o procedimento e o pôs à
prova num número maior de enfermos.
O
procedimento catártico pressupunha que o paciente fosse hipnotizável e se
baseava na ampliação da consciência que ocorre na hipnose. Tinha por alvo a
eliminação dos sintomas patológicos e chegava a isso levando o paciente a
retroceder ao estado psíquico em que o sintoma surgira pela primeira vez. Feito
isso, emergiam no doente hipnotizado lembranças, pensamentos e impulsos até
então excluídos de sua consciência; e mal ele comunicava ao médico esses seus
processos anímicos, em meio a intensas expressões afetivas, o sintoma era
superado e se impedia seu retorno. Os dois autores, em seu trabalho conjunto,
explicaram essa experiência regularmente repetida, afirmando que o sintoma toma
o lugar de processos psíquicos suprimidos que não chegam à consciência, ou
seja, que ele representa uma transformação (“conversão”) de tais processos. A
eficácia terapêutica de seu procedimento foi explicada em função da descarga do
afeto, até ali como que “estrangulado”, preso às ações anímicas suprimidas
(“ab-reação”). Mas esse esquema simples da intervenção terapêutica complicava-se
em quase todos os casos, pois viu-se que participavam da gênese do sintoma, não
uma única impressão (“traumática”), porém, na maioria dos casos, uma série
delas, difícil de abarcar.
Assim, a
principal característica do método catártico, em contraste com todos os outros
procedimentos da psicoterapia, reside em que, nele, a eficácia terapêutica não
se transfere para uma proibição médica veiculada por sugestão. Espera-se,
antes, que os sintomas desapareçam por si, tão logo a intervenção, baseada em
certas premissas sobre o mecanismo psíquico, tenha êxito em fazer com que os
processos anímicos passem para um curso diferente do que até então desembocava
na formação do sintoma.
As
alterações que Freud introduziu no metódo catártico de Breuer foram, a
princípio, mudanças da técnica; estas, porém, levaram a novos resultados e, em
seguida, exigiram uma concepção diferente do trabalho terapêutico, embora não
contraditória à anterior.
O método
catártico já havia renunciado à sugestão, e Freud deu o passo seguinte, abandonando
também a hipnose. Atualmente, trata seus enfermos da seguinte maneira: sem
exercer nenhum outro tipo de influência, convida-os a se deitarem de costas num
sofá, comodamente, enquanto ele próprio senta-se numa cadeira por trás deles,
fora de seu campo visual. Tampouco exige que fechem os olhos e evita qualquer
contato, bem como qualquer outro procedimento que possa fazer lembrar a
hipnose. Assim a sessão prossegue como uma conversa entre duas pessoas
igualmente despertas, uma das quais é poupada de qualquer esforço muscular e de
qualquer impressão sensorial passível de distraí-la e de perturbar-lhe a
concentração da atenção em sua própria atividade anímica.
Como a
hipnotizabilidade, por mais habilidoso que seja o médico, reside sabidamente no
arbítrio do paciente, e como um grande número de pessoas neuróticas não pode
ser colocado em estado de hipnose através de procedimento algum, ficou
assegurada, através da renúncia à hipnose, a aplicabilidade do método a um
número irrestrito de enfermos. Por outro lado, perdeu-se a ampliação da
consciência que proporcionava ao médico justamente o material psíquico de
lembranças e representações com a ajuda do qual se podia realizar a
transformação dos sintomas e a liberação dos afetos. Caso não fosse encontrado
nenhum substituto para essa perda, seria impossível falar em alguma influência
terapêutica.
Freud
encontrou um substituto dessa ordem, plenamente satisfatório, nas associações
dos enfermos, ou seja, nos pensamentos involuntários - quase sempre sentidos
como perturbadores e por isso comumente postos de lado - que costumam cruzar a
trama da exposição intencional.
Para
apoderar-se dessas idéias incidentes, ele exorta os pacientes a se deixarem
levar em suas comunicações, “mais ou menos como se faz numa conversa a esmo,
passando de um assunto a outro”. Antes de exortá-los a um relato pormenorizado
de sua história clínica, ele os instiga a dizerem tudo o que lhes passar pela
cabeça, mesmo o que julgarem sem importância, ou irrelevante, ou disparatado.
Ao contrário, pede com especial insistência que não excluam de suas
comunicações nenhum pensamento ou idéia pelo fato de serem embaraçosos ou
penosos. No empenho de compilar esse material costumeiramente desdenhado, Freud
fez as observações que se tornaram decisivas para toda a sua concepção. Já no
relato da história clínica surgem lacunas na memória do doente, ou seja,
esquecem-se acontecimentos reais, confundem-se as relações de tempo ou se
rompem as conexões causais, daí resultando efeitos incompreensíveis. Não há
nenhuma história clínica de neurose sem algum tipo de amnésia. Quando o
paciente é instado a preencher essas lacunas de sua memória através de um
trabalho redobrado de atenção, verifica-se que as idéias que lhe ocorrem a esse
respeito são repelidas por ele com todos os recursos da crítica, até que ele
sente um franco mal-estar quando a lembrança realmente se instala. Dessa
experiência Freud concluiu que as amnésias são o resultado de um processo ao
qual ele chama recalcamento e cuja motivação é identificada no sentido
de desprazer. As forças psíquicas que deram origem a esse recalcamento
estariam, segundo ele, na resistência que se opõe à restauração [das
lembranças].
O fator
da resistência tornou-se um dos fundamentos de sua teoria. Quanto às idéias
postas de lado sob toda sorte de pretextos (como as enumeradas na fórmula
acima), Freud as encara como derivados das formações psíquicas recalcadas
(pensamentos e moções), como deturpações delas provocadas pela resistência a
sua reprodução.
Quanto
maior a resistência, mais profusa é essa distorção. O valor das idéias
inintencionais para a técnica terapêutica reside nessa relação delas com o
material psíquico recalcado. Quando se dispõe de um procedimento que permite
avançar das associações até o recalcado, das distorções até o distorcido,
pode-se também tornar acessível à consciência o que era antes inconsciente na
vida anímica, mesmo sem a hipnose.
Com base
nisso, Freud desenvolveu uma arte de interpretação à qual compete a
tarefa, por assim dizer, de extrair do minério bruto das associações
inintencionais o metal puro dos pensamentos recalcados. São objeto desse
trabalho interpretativo não apenas as idéias que ocorrem ao doente, mas também
seus sonhos, que abrem a via de acesso mais direta para o conhecimento do
inconsciente, suas ações inintencionais e desprovidas de planos (atos
sintomáticos), e os erros que ele comete na vida cotidiana (lapsos da fala,
equívocos na ação etc.). Os detalhes dessa técnica de interpretação ou tradução
ainda não foram publicados por Freud. Segundo suas indicações, trata-se de uma
série de regras empiricamente adquiridas para construir o material inconsciente
a partir das ocorrências de idéias, de instituições sobre como é preciso
entender a situação em que deixam de ocorrer idéias ao paciente, e de
experiências sobre as resistências típicas mais importantes que surgem no
decorrer desses tratamentos. Um volumoso livro sobre A Interpretação dos
Sonhos, publicado por Freud em 1900, deve ser visto como o precursor de tal
introdução à técnica.
Dessas
indicações sobre a técnica do método psicanalítico poder-se-ia concluir que seu
inventor deu-se um trabalho desnecessário e fez mal em abandonar o procedimento
hipnótico, menos complicado. De um lado, porém, a técnica da psicanálise, uma
vez aprendida, é muito mais fácil de praticar do que indicaria qualquer
descrição dela, e de outro, nenhum caminho alternativo leva à meta desejada,
donde o caminho trabalhoso é ainda o mais curto. A hipnose é censurável por
ocultar a resistência e por ter assim impedido ao médico o conhecimento do jogo
das forças psíquicas. E não elimina a resistência; apenas a evade, com o que
fornece tão-somente dados incompletos e resultados passageiros.
A tarefa
que o método psicanalítico se empenha em resolver pode expressar-se em
diferentes fórmulas, que em essência, no entanto, são equivalentes. Pode-se
dizer: a tarefa do tratamento é eliminar as amnésias. Preenchidas todas as
lacunas da memória, esclarecidos todos os efeitos enigmáticos da vida psíquica,
tornam-se impossíveis a continuação e mesmo a reprodução da doença. Pode-se
ainda conceber a condição para isso da seguinte maneira: todos os recalcamentos
devem ser desfeitos; o estado psíquico passa então a ser idêntico àquele em que
todas as amnésias foram preenchidas. De alcance ainda maior é outra formulação:
trata-se de tornar o inconsciente acessível à consciência, o que se consegue
mediante a superação das resistências. Mas não se deve esquecer que tal estado
tampouco se apresenta no ser humano normal, e que só raramente fica-se em
condições de levar o tratamento a um ponto que se aproxime disso. Assim como a
saúde e a doença não se diferenciam em princípio, estando apenas separadas por
fronteiras quantitativas determináveis na prática, não se pode estabelecer como
meta de tratamento outra coisa senão o restabelecimento prático do enfermo, a
restauração de sua capacidade de rendimento e de gozo. Num tratamento
incompleto ou havendo um resultado imperfeito, obtém-se sobretudo uma
significativa melhora do estado psíquico geral, enquanto os sintomas, embora
com uma importância diminuída para o paciente, podem persistir, sem que a
pessoa seja rotulada de enferma.
O
procedimento terapêutico, abstraídas algumas modificações insignificantes,
mantém-se o mesmo para todos os quadros sintomáticos da histeria, com suas
múltiplas formas, e para todas as configurações da neurose obsessiva. Mas isso
não implica que sua aplicabilidade seja irrestrita. A natureza do método
psicanalítico envolve indicações e contra-indicações, tanto em relação às
pessoas a serem tratadas quanto com respeito ao quadro patológico. Os mais
favoráveis para psicanálise são os casos crônicos de psiconeurose com poucos
sintomas violentos ou perigosos, e portanto, em primeiro lugar, todas as espécies
de neurose obsessiva, pensamento e ação obsessivos, e os casos de histeria em
que as fobias e abulias desempenham o papel principal; e ainda todas as
expressões somáticas da histeria, desde que a pronta eliminação dos sintomas
não seja a tarefa primordial do médico, como na anorexia. Nos casos agudos de
histeria, é preciso aguardar a chegada de uma fase mais calma; em todos os
casos em que o esgotamento nervoso domina o quadro clínico, deve-se evitar um
procedimento que por si só requer esforço, traz apenas progressos lentos e, por
algum tempo, não pode levar em consideração a persistência dos sintomas.
Para que
uma pessoa se submeta com proveito a psicanálise, são muitos os requisitos
exigidos. Em primeiro lugar, ela deve ser capaz de um estado psíquico normal;
durante os períodos de confusão ou de depressão melancólica, não se consegue
nada nem mesmo num caso de histeria. Cabe ainda exigir dela certo grau de
inteligência natural e de desenvolvimento ético; com pessoas sem nenhum valor,
o médico logo perde o interesse que lhe permite aprofundar-se na vida anímica
do doente. As malformações de caráter acentuadas, traços de uma constituição
realmente degenerada, externam-se no tratamento como fontes de uma resistência
difícil de superar. Nesse aspecto, a constituição estabelece um limite geral
para a capacidade curativa da psicoterapia. Também a faixa etária próxima dos
cinqüenta anos cria condições desfavoráveis para a psicanálise. Nesse caso, já
não é possível dominar a massa do material psíquico, o tempo exigido para a
cura torna-se longo demais e a capacidade para desfazer processos psíquicos
começa a enfraquecer.
Apesar
de todas essas limitações, é extraordinariamente grande o número de pessoas
aptas para a psicanálise, e a extensão trazida a nossos poderes terapêuticos
por esse procedimento é, segundo Freud, muito considerável. Para um tratamento
eficaz, Freud requer períodos longos, de seis meses a três anos; contudo,
informa que até agora, em vista de diversas circunstâncias fáceis de imaginar, só
esteve em condições de testar seu tratamento, na maioria das vezes, em casos
muito graves: em pessoas enfermas desde longa data e totalmente incapacidadas,
que, frustradas por toda sorte de tratamentos, foram buscar como que um último
recurso em seu procedimento novo e recebido com muitas dúvidas. Nos casos de
doença mais branda, a duração do tratamento poderia encurtar-se muito,
obtendo-se em ganho extraordinário em termos de prevenção para o futuro.
NOTA DO EDITOR INGLÊS
“DIE
FREUDSCHE PSYCHOANALYTISCHE METHODE”
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
(1903
Data provável de redação.)
1904
Em L. Loewenfeld, Die psychischen Zwangserscheinungen, 545-551
(Wiesbaden: Bergmann).
1906 S.K.S.N. I, 218-224. (1911, 2ª ed.,
213-219; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
1924 Technick und Metapsychol., 3-10.
1925 G.S.,
6, 3-10.
1942 G.W., 5, 3-10
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
“Freud’s Psycho-Analytic Method”
1924 C.P.,
1, 264-271. (Trad. de J.
Bernays.)
Esta
tradução [inglesa], com um novo título, “Freud’s Psycho-Analytic Procedure”, é
uma versão consideravelmente alterada da que se publicou em 1924.
O livro
de Loewenfeld sobre os fenômenos obsessivos, para o qual esse artigo constituiu
originalmente uma contribuição, é mencionado por Freud em seu caso clínico do
“Homem dos Ratos” (1909d, nota de rodapé no início da Parte II) como o
“manual padrão” sobre a neurose obsessiva. Loewenfeld esclarece ter convencido
Freud a fazer essa contribuição em vista das grandes modificações por que
passara sua técnica desde que fora descrita nos Estudos sobre a Histeria
(1895d). O prefácio de Loewenfeld traz a data de “novembro de 1903”,
sendo portanto presumível que o artigo de Freud tenha sido redigido naquele
mesmo ano, um pouco mais cedo.
Essa
exposição mostra que o único vestígio remanescente do método hipnótico original
era a solicitação de Freud de que o paciente se deitasse. Quanto aos aspectos
externos, sua técnica permaneceu inalterada desde então. O livro de Loewenfeld
foi resenhado pelo próprio Freud, conforme a descoberta do Prof. Saul
Rosenzweig, da Universidade Washington, em St. Louis. A resenha foi publicada
no Journal für Psychologie und Neurologie, 3 (1904), pp. 190-1. (Freud,
1904f.)
SOBRE A
PSICOTERAPIA (1905 [1904])
Senhores:
são decorridos cerca de oito anos desde que, a convite de seu saudoso
presidente, o Professor von Reder, tive a oportunidade de falar aqui sobre o
tema da histeria. Pouco antes (1895), em colaboração com o Dr. Josef Breuer, eu
publicara os Estudos sobre a Histeria, onde, com base no novo
conhecimento que devemos a esse investigador, tentara introduzir um novo modo
de tratamento das neuroses. Alegra-me poder dizer que os esforços feitos em
nossos Estudos tiveram êxito; as idéias ali defendidas sobre os efeitos
dos traumas psíquicos através da retenção do afeto, bem como a concepção dos
sintomas histéricos como o resultado de uma excitação transposta do anímico
para o corporal, idéias estas para as quais criamos os termos “ab-reação” e
“conversão”, são hoje universalmente conhecidas e compreendidas. Não há - pelo
menos nos países de língua alemã - nenhuma representação da histeria que não as
leve em conta em certa medida, e não há nenhum colega que não siga ao menos um
pouco essa doutrina. E no entanto, estas teses e estes termos, enquanto eram
ainda novos, devem ter soado bastante estranhos!
Não
posso dizer o mesmo do procedimento terapêutico proposto a nossos colegas
simultaneamente a nossa doutrina. Este luta ainda por seu reconhecimento.
Talvez se possam invocar razões especiais para isso. Naquela época, a técnica
do procedimento ainda não fora desenvolvida, era-me impossível fornecer ao
leitor médico do livro as instruções que o teriam habilitado a conduzir tal
tratamento em sua íntegra. Mas decerto também concorreram para isso algumas
razões de natureza geral. Ainda hoje, a psicoterapia se afigura a muitos
médicos como um produto do misticismo moderno, e, comparada a nossos recursos
terapêuticos físico-químicos, cuja aplicação se baseia em conhecimentos fisiológicos,
parece francamente acientífica e indigna do interesse de um investigador da
natureza. Permitam-me, pois, defender ante os senhores a causa da psicoterapia
e destacar o que pode ser qualificado de injusto ou errôneo nessa condenação.
Em
primeiro lugar, permitam-me lembrar-lhes que a psicoterapia de modo algum é um
procedimento terapêutico moderno. Ao contrário, é a mais antiga terapia de que
se serviu a medicina. Na instrutiva obra de Loewenfeld, Lehrbuch der
gesamten Psychotherapie [1897], os senhores podem verificar quais eram os
métodos da medicina primitiva e da medicina da Antigüidade. A maioria deles
deve ser classificada de psicoterapia; induzia-se nos doentes, com vistas à
cura, um estado de “expectativa crédula” que ainda hoje nos presta idêntico
serviço. Mesmo depois que os médicos descobriram outros meios terapêuticos, os
esforços psicoterápicos desta ou daquela espécie nunca desapareceram da
medicina.
Em
segundo lugar, deixem-me chamar-lhes a atenção para o fato de que nós, médicos,
não podemos renunciar à psicoterapia, que mais não seja porque uma outra parte
muito interessada no processo terapêutico - a saber, o doente - não tem nenhuma
intenção de abandoná-la. Os senhores sabem das elucidações que devemos, nesse
aspecto, à escola de Nancy (a Liébault, a Bernheim). Um fator que depende da
disposição psíquica do doente contribui, sem que tenhamos essa intenção, para o
resultado de qualquer procedimento terapêutico introduzido pelo médico, quase
sempre num sentido favorável, mas também com freqüência num sentido inibitório.
Aprendemos a usar para esse fato a palavra “sugestão”, e Moebius nos ensinou
que a falta de contabilidade que deploramos em tantos de nossos métodos
terapêuticos remonta justamente à influência perturbadora desse poderoso fator.
Nós, médicos - inclusive todos os senhores - , portanto, praticamos
constantemente a psicoterapia, mesmo que não o saibamos nem tenhamos essa
intenção; só que constitui uma desvantagem deixar tão completamente entregue
aos enfermos o fator psíquico da influência que os senhores exercem sobre eles.
Dessa maneira, ele se torna incontrolável, impossível de dosar ou de
intensificar. Assim, não será um esforço legítimo o do médico dominar esse
fator, servir-se dele intencionalmente, norteá-lo e reforçá-lo? É isso, e nada
mais, o que a psicoterapia científica lhes propõe.
Em
terceiro lugar, senhores colegas, quero remetê-los à experiência já há muito
conhecida de que certas doenças, e muito particularmente as psiconeuroses, são
muito mais acessíveis às influências anímicas do que a qualquer outra
medicação. Não é um ditado moderno, e sim uma antiga máxima dos médicos, que
essas doenças não são curadas pelo medicamento, mas pelo médico, ou seja, pela
personalidade do médico, na medida em que através dela ele exerce uma
influência psíquica. Bem sei, senhores colegas, que muito lhes agrada a visão a
que o esteta Fischer deu expressão clássica em sua paródia do Fausto:
Ich weiss, das Physikalische
Wirkt öfters aufs Moralische.
Porém não
seria mais adequado, e mais freqüentemente acertado, dizer que se pode influir
sobre o lado moral de um homem com meios morais, ou seja, psíquicos?
Há
muitas espécies de psicoterapia e muitos meios de praticá-la. Todos os que
levam à meta da recuperação são bons. Nosso consolo corriqueiro, que tão
liberalmente dispensamos aos enfermos - “Você logo ficará bom de novo!” - ,
corresponde a um dos métodos psicoterapêuticos; mas agora que temos um
discernimento mais profundo da natureza da neurose, não somos obrigados a ficar
restritos a esse consolo. Desenvolvemos a técnica da sugestão hipnótica, a
psicoterapia através da distração, do exercício e da provocação de afetos mais
oportunos. Não menosprezo nenhuma delas e utilizaria todas em condições
apropriadas. Se realmente me restringi a um único procedimento terapêutico, ao
método que Breuer chamou “catártico”, mas que prefiro chamar de “analítico”,
foram apenas motivos subjetivos que me decidiram a fazê-lo. Em decorrência de
minha participação na criação dessa terapia, sinto-me pessoalmente obrigado a
me dedicar a explorá-la e a construir sua técnica. Posso asseverar que o método
analítico de psicoterapia é o mais penetrante, o que chega mais longe, aquele
pelo qual se consegue a transformação mais ampla do doente. Abandonando por um
momento o ponto de vista terapêutico, posso acrescentar em favor desse método
que ele é o mais interessante, o único que nos ensina algo sobre a gênese e a
interação dos fenômenos patológicos. Graças ao discernimento do mecanismo das
doenças anímicas que ele nos faculta somente ele deve ser capaz de ultrapassar
a si mesmo e de nos apontar o caminho para outras formas de influência
terapêutica.
No
tocante a esse método catártico ou analítico de psicoterapia, permitam-me agora
corrigir alguns erros e fornecer alguns esclarecimentos.
(a) Observo que esse método é muito amiúde
confundido com o tratamento hipnótico por sugestão; e reparei nisso porque, com
relativa freqüência, colegas de quem aliás não sou o homem de confiança
enviam-me pacientes - doentes refratários, é claro - com o pedido de que eu os
hipnotize. Ora, ocorre que há uns seis anos já não tenho usado a hipnose para
fins terapêuticos (salvo em algumas experiências isoladas), de modo que costumo
mandar esses encaminhamentos de volta com o conselho de que quem confia na
hipnose deve praticá-la pessoalmente. Na verdade, há entre a técnica sugestiva
e a analítica a maior antítese possível, aquela que o grande Leonardo da Vinci
resumiu, com relação às artes, nas fórmulas per via di porre e per
via di levare. A pintura, diz Leonardo, trabalha per via di porre,
pois deposita sobre a tela incolor partículas coloridas que antes não estavam
ali; já a escultura, ao contrário, funciona per via di levare, pois
retira da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida. De
maneira muito semelhante, senhores, a técnica da sugestão busca operar per
via di porre; não se importa com a origem, a força e o sentido dos sintomas
patológicos, mas antes deposita algo - a sugestão - que ela espera ser forte o
bastante para impedir a expressão da idéia patogênica. A terapia analítica, em
contrapartida, não pretende acrescentar nem introduzir nada de novo, mas antes
tirar, trazer algo para fora, e para esse fim preocupa-se com a gênese dos sintomas
patológicos e com a trama psíquica da idéia patogênica, cuja eliminação é sua
meta. Por esse caminho de investigação é que ela faz avançar tão
significativamente nossos conhecimentos. Se abandonei tão cedo a técnica da
sugestão, e com ela, a hipnose, foi porque não tinha esperança de tornar a
sugestão tão forte e sólida quanto seria necessário para obter a cura
permanente. Em todos os casos graves, vi a sugestão introduzida voltar a
desmoronar, e então reaparecia a doença ou um substituto dela. Além disso,
censuro essa técnica por ocultar de nós o entendimento do jogo de forças
psíquico; ela não nos permite, por exemplo, identificar a resistência
com que os doentes se aferram a sua doença, chegando em função disso a lutar
contra sua própria recuperação; e é somente a resistência que nos possibilita
compreender seu comportamento na vida.
(b) Parece-me haver entre os colegas o erro
muito difundido de supor que a técnica de investigar as origens da doença e de
eliminar suas manifestações através dessa exploração é fácil e evidente. Infiro
isso do fato de que nenhum dentre os muitos que se interessaram por minha
terapia e formularam juízos firmes sobre ela jamais me perguntou como realmente
procedo. Só pode haver uma razão para isso: eles acham que não há nada a
perguntar, que a coisa é perfeitamente inteligível por si só. E vez por outra,
inteiro-me também, com assombro, de que neste ou naquele setor de um hospital
um jovem médico recebeu de seu chefe a incumbência de empreender uma
“psicanálise” num paciente histérico. Tenho certeza de que não deixariam a
cargo dele o exame de um tumor extirpado, sem que se houvessem assegurado de
que ele conhecia a fundo a técnica histológica. Da mesma forma, chegam-me
notícias de que tal ou qual colega marcou consultas com um paciente para fazer
com ele um tratamento psíquico, embora eu tenha certeza de que ele não conhece
a técnica de tal tratamento. Deve estar esperando, portanto, que o paciente o
presenteie com seus segredos, ou talvez esteja buscando a cura em alguma
espécie de confissão ou confidência. Não me surpreenderia que um paciente assim
tratado extraísse disso mais prejuízos do que benefícios. É que o instrumento
anímico não é assim tão fácil de tocar. Nessas ocasiões, não posso deixar de
pensar nas palavras de um neurótico mundialmente famoso, que decerto nunca
esteve em tratamento com um médico, pois viveu apenas na fantasia de um poeta.
Refiro-me a Hamlet, Príncipe da Dinamarca. O Rei enviara dois cortesãos,
Rosenkranz e Guildenstern, para sondá-lo e arrancar dele o segredo de seu
desgosto. Ele os repele; aparecem então algumas flautas no palco. Tomando uma
delas, Hamlet pede a um de seus algozes que a toque, o que seria tão fácil
quanto mentir. O cortesão se recusa, pois não conhece o manejo do instrumento,
e, não conseguindo persuadi-lo a tentar, Hamlet finalmente explode: “Pois vede
agora em que mísera coisa me transformais! Quereis tocar-me; (…) quereis
arrancar o cerne de meu mistério; pretendeis extrair-me sons, de minha nota
mais grave até o topo de meu diapasão; e embora haja muita música, excelente
voz neste pequenino instrumento, não podeis fazê-lo falar. Pelo sangue de
Cristo, julgais que sou mais fácil de tocar do que uma flauta? Chamai-me do
instrumento que quiserdes, pois se podeis desafinar-me, ainda assim não me
podeis tocar.” (Ato III, Cena 2.)
(c) Por algumas de minhas observações, os
senhores terão calculado que o tratamento analítico tem muitas peculiaridades
que o distanciam do ideal de uma terapia. Tutu, cito, jucunde; a
investigação e a busca não apontam para a rapidez dos resultados, e a menção da
resistência deve prepará-los para esperar por vários transtornos. Sem dúvida, o
tratamento psicanalítico faz grandes exigências tanto ao doente quanto ao
médico; do primeiro reclama o sacrifício da sinceridade total, mostrando-se
demorado e, por isso mesmo, também custoso; para o médico, é igualmente
demorado, e em vista da técnica que ele tem de aprender e praticar, é bastante
trabalhoso. Por isso, considero perfeitamente justificável que se recorra a
métodos terapêuticos mais cômodos, desde que haja uma perspectiva de conseguir
algo através deles. Esse é, afinal, o único ponto decisivo; se, com o
procedimento mais trabalhoso e prolongado, consegue-se mais do que com o método
breve e fácil, justifica-se o uso do primeiro, apesar de tudo. Pensem,
senhores, em quão mais incômoda e custosa é a terapia de Finsen para o lúpus do
que o método antes empregado de cauterização e raspagem; não obstante, o uso do
primeiro significa um grande avanço, simplesmente porque rende mais; promove
uma cura radical. Ora, não quero impor essa comparação, mas o método
psicanalítico pode reclamar para si um privilégio similar. Na realidade, só
pude elaborar e testar meu método terapêutico em casos graves ou gravíssimos; a
princípio, meu material compôs-se unicamente de enfermos que tudo haviam
tentado sem êxito e que tinham passado anos em instituições. Mal pude reunir
experiência suficiente para dizer-lhes como se comporta minha terapia nas
doenças mais leves, de surgimento episódico, e que vemos curar-se sob as mais
diversificadas influências e até de maneira espontânea. A terapia psicanalítica
foi criada com base em doentes permanentemente incapacitados para a existência
a eles destinada, e seu triunfo consiste em ter tornado um número satisfatório
destes permanentemente aptos para a vida. Frente a esse resultado, todos os
esforços despendidos parecem insignificantes. Não podemos dissimular de nós
mesmos o que, perante o enfermo, estamos acostumados a negar: que a neurose
grave, para o indivíduo que dela padece, não tem menor importância do que
qualquer caquexia, qualquer das temidas grandes enfermidades.
(d) As indicações e contra-indicações desse
tratamento, em decorrência das muitas restrições de ordem prática que têm
afetado minhas atividades, ainda não podem ser fornecidas de maneira
definitiva. Mesmo assim, quero ensaiar a discussão de alguns pontos com os
senhores:
(1)
Afora a doença, deve-se reparar no valor da pessoa em outros aspectos e recusar
os pacientes que não possuam certo grau de formação e um caráter razoavelmente
digno de confiança. Não se deve esquecer que há também pessoas sadias que não
prestam para nada, e que com excessiva facilidade, em se tratando desses
indivíduos de valor reduzido, tende-se a atribuir à doença tudo o que os
incapacita para a existência, quando lhes ocorre mostrar algum laivo de
neurose. Sustento o ponto de vista de que a neurose de modo algum imprime em
seu portador o rótulo de dégénéré, embora seja encontrada num mesmo
indivíduo, com bastante freqüência, associada a sinais de degeneração. Ora, a
psicoterapia analítica não é um procedimento para tratar a degeneração
neuropática, encontrando nesta, ao contrário, sua limitação. Tampouco é
aplicável às pessoas que não sejam levadas à terapia por seu próprio
sofrimento, mas antes submetem-se a ela apenas pela ordem autoritária de seus
familiares. Quanto à propriedade que interessa à adequação para o tratamento
psicanalítico, ou seja, a educabilidade do paciente, ainda teremos de
apreciá-la segundo um outro ponto de vista.
(2)
Quando se quer trabalhar em segurança, deve-se restringir a escolha a pessoas
que tenham um estado normal, pois é neste que nos apoiamos, no procedimento
psicanalítico, para nos apropriarmos do patológico. As psicoses, os estados
confusionais e a depressão profundamente arraigada (tóxica, eu poderia dizer),
por conseguinte, são impróprios para a psicanálise, ao menos tal como tem sido
praticada até o momento. Não considero nada impossível que, mediante uma
modificação apropriada do método, possamos superar essa contra-indicação e
assim empreender a psicoterapia das psicoses.
(3) A
idade dos pacientes desempenha um papel na escolha para tratamento
psicanalítico, posto que, nas pessoas próximas ou acima dos cinqüenta anos,
costuma faltar, de um lado, a plasticidade dos processos anímicos de que
depende a terapia - as pessoas idosas já não são educáveis - , e, por outro
lado, o material a ser elaborado prolongaria indefinidamente a duração do
tratamento. O limite etário inferior só pode ser determinado individualmente;
as pessoas jovens que ainda não chegaram à puberdade são, muitas vezes,
esplendidamente influenciáveis.
(4) Não
se deve recorrer à psicanálise quando se trata de eliminar com rapidez
fenômenos perigosos, como, por exemplo, na anorexia histérica.
A essa
altura, os senhores devem estar com a impressão de que o campo de aplicação da
psicoterapia analítica é muito restrito, já que de fato nada ouviram de mim
além de contra-indicações. Mas sobram casos e formas patológicas suficientes em
que esta terapia pode ser posta à prova: todas as formas crônicas de histeria
com fenômenos residuais, o vasto campo dos estados obsessivos, as abulias e
similares.
É
gratificante que assim se possa levar ajuda, antes de mais nada, justamente às
pessoas mais valiosas e mais altamente desenvolvidas. E podemos consolar-nos
com a afirmação de que, nos casos em que a psicoterapia analítica só conseguiu
muito pouco, qualquer outro tratamento decerto nada teria realizado.
(e) Os senhores certamente hão de querer
perguntar-me sobre a possibilidade de que o emprego da psicanálise traga
prejuízos. Quanto a isso, posso responder-lhes que, se estiverem dispostos a
julgar esse procedimento imparcialmente, a manifestar-lhe a mesma benevolência
crítica que têm dispensado a nossos outros métodos terapêuticos, terão de
concordar com minha opinião de que, num tratamento analítico realizado com
compreensão, não se pode temer dano algum para o paciente. Talvez formule um
juízo diferente quem, como o leigo, estiver acostumado a atribuir ao tratamento
tudo o que acontece no decorrer de um caso patológico. Não faz muito tempo,
nossas instituições de hidroterapia enfrentavam um preconceito similar. Muitos
dos que eram aconselhados a buscar uma dessas instituições ficavam hesitantes,
pois tinham algum conhecido que entrara no sanatório como doente nervoso e ali
enlouquecera. Tratava-se, como os senhores devem adivinhar, de casos
incipientes de paralisia geral, que em seu estágio inicial ainda podiam ser
enviados para um estabelecimento hedropático, e que ali prosseguiam em sua
marcha irrefreável para a perturbação mental manifesta; para os leigos, a água
era a culpada e a causadora dessa triste modificação. Quando se trata de novas
formas de terapia, nem mesmo os médicos estão sempre isentos de tais erros de
julgamento. Lembro-me de que, certa vez, fiz uma tentativa de psicoterapia com
uma mulher que passara boa parte de sua existência numa alternância entre mania
e melancolia . Aceitei o caso ao final de um período de melancolia; durante
duas semanas, tudo parecia correr bem; na terceira, já estávamos no início de
um novo ataque de mania. Era, sem dúvida, uma transformação espontânea do
quadro patológico, já que duas semanas não constituem um prazo em que a
psicoterapia analítica possa realizar coisa alguma; entretanto, o eminente
médico (já falecido) que examinava a doente comigo não conseguiu abster-se da
observação de que a psicoterapia seria a culpada dessa “recaída”. Estou
plenamente convencido de que, em outras circunstâncias, ele teria demonstrado
maior juízo crítico.
(f) Para concluir, senhores colegas, devo
admitir que não é justo monopolizar sua atenção por tanto tempo, em favor da
psicoterapia analítica, sem lhes dizer em que consiste esse tratamento e em que
está fundamentado. Ainda assim, posto que tenha de ser breve, só posso
fazer-lhes um esboço. Essa terapia baseia-se, pois, na concepção de que as
representações inconscientes - ou melhor, a inconsciência de certos processos
anímicos - são a causa imediata dos sintomas patológicos. Partilhamos dessa
convicção com a escola francesa (Janet), que aliás, numa esquematização
excessiva, atribui a origem do sintoma histérico a uma idée fixe
inconsciente. Mas não temam os senhores que isso nos precipite nas profundezas
da mais obscura filosofia. Nosso inconsciente não é de modo algum idêntico ao
dos filósofos, e além disso, a maioria destes nada quer saber sobre algo
“psíquico inconsciente”. Entretanto, caso os senhores se situem em nosso ponto
de vista, compreenderão que a transformação desse inconsciente da vida anímica
do enfermo num material consciente só pode ter como resultado a correção de seu
desvio da normalidade, bem como a eliminação da compulsão a que sua vida
anímica estivera sujeita. É que a vontade consciente estende-se apenas aos
processos psíquicos conscientes, e toda compulsão psíquica é fundamentada pelo
inconsciente. Tampouco devem os senhores temer que o enfermo sofra algum dano
em função do abalo trazido pela entrada do inconsciente em sua consciência,
pois podem explicar a si mesmos, teoricamente, que o efeito somático e afetivo
da moção que se tornou consciente nunca pode ser tão grande quanto o da moção
inconsciente. Só dominamos todas as nossas moções por dirigirmos para elas
nossas mais elevadas funções anímicas, que estão ligadas à consciência.
Mas
também lhes é possível escolher outro ponto de vista para compreender o
tratamento psicanalítico. O desvendamento e a tradução do inconsciente
realizam-se sob uma resistência contínua por parte do enfermo. O
afloramento desse inconsciente está vinculado ao desprazer, e é por causa desse
desprazer que o doente o rejeita vez após outra. É nesse conflito na vida
anímica do paciente que os senhores intervêm; se conseguirem levá-lo a aceitar,
motivado por uma compreensão melhor, algo que até então rejeitara (recalcara)
em conseqüência dessa regulação automática do desprazer, terão realizado com
ele parte de um trabalho educativo. Já constitui educação, quando um homem não
deixa a cama de bom grado de manhã cedo, movê-lo a fazer isso ainda assim.
Portanto, de modo muito geral, os senhores podem conceber o tratamento
psicanalítico como essa espécie de pós-educação para superar as resistências
internas. Mas em nenhum ponto essa pós-educação é mais necessária, nos
doentes nervosos, do que no tocante ao elemento anímico de sua vida sexual. É
que em parte alguma a cultura e a educação causaram danos tão grandes quanto
justamente aí, e é também aí, como lhes mostrará a experiência, que se
encontrarão as etiologias das neuroses passíveis de ser dominadas; quanto ao
outro elemento etiológico, a contribuição constitucional, ele nos é dado como
algo inalterável. Mas daí decorre uma importante exigência a ser feita ao
médico. Não apenas ele próprio tem de ser de caráter íntegro - “Quanto à moral,
nem é preciso falar”, como costumava dizer o personagem principal de Auch
Einer, de Vischer - , como também deve ter superado, em sua própria pessoa,
a mescla de concupiscência e puritanismo com que, lamentavelmente, tantos
outros estão habituados a enfrentar os problemas sexuais.
Talvez
seja este o lugar para fazer outra observação. Sei que minha ênfase no papel do
sexual na formação das psiconeuroses tornou-se conhecida em amplos círculos.
Mas sei também que as ressalvas e as particularizações precisas são de pouca
serventia para o grande público; a multidão tem pouco espaço em sua memória e
retém de uma tese apenas o núcleo bruto, dela criando para si uma versão extremada
e fácil de gravar. É possível também que muitos médicos tenham feito uma vaga
idéia de que, como conteúdo de minha doutrina, eu atribuiria a neurose, em
última análise, à privação sexual. E esta não falta nas condições de vida de
nossa sociedade. Quão fácil seria, com base nessa premissa, evitar o tortuoso e
cansativo caminho do tratamento psíquico e aspirar diretamente à cura,
recomendando como meio terapêutico a atividade sexual! Pois bem, não conheço
nada que me pudesse induzir a sufocar essa conclusão, caso ela fosse
justificada. Mas as coisas são diferentes. A necessidade e a privação sexuais
são meramente um fator que entra em jogo no mecanismo da neurose; se houvesse
apenas esse, o resultado não seria a doença, mas a devassidão. O outro fator, igualmente
indispensável, mas esquecido com demasiada presteza, é a aversão do neurótico à
sexualidade, sua incapacidade de amar, esse traço psíquico a que chamei
“recalcamento”. Somente a partir do conflito entre as duas tendências é que
irrompe a doença neurótica e, portanto, só raramente se pode descrever a
recomendação da atividade sexual nas psiconeuroses como um bom conselho.
Permitam-me
concluir com essa observação defensiva. Esperemos que seu interesse pela
psicoterapia, uma vez depurado de quaisquer preconceitos hostis, venha
apoiar-nos em nosso empenho de realizar de maneira satisfatória também o
tratamento dos casos graves de psiconeurose.
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ÜBER
PSYCHOTHERAPIE
(a) EDIÇÕES EM ALEMÃO
(l904 12 de dezembro: pronunciada como conferência
perante o Wiener medizinisches Doktorenkollegium.)
1905 Wien.
med. Presse, 1º de janeiro, pp. 9-16.
1906 S.K.S.N.
I, pp. 205-217. (1911, 2ª ed., pp. 201-212; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
1924 Technik und Metapsychol., pp. 11-24.
1925 G.S., 6, pp. 11-24.
1942 G.W.,
5, pp. 13-26.
(b) TRADUÇÕES EM INGLÊS:
“On Psychotherapy”
1909
S.P.H., pp. 175-185. (Trad. de A.A. Brill.) (1912, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.)
1924 C.P., 1, pp. 249-263. (Trad. de J.
Bernays.)
A
presente tradução [inglesa] é uma versão consideravelmente modificada da que se
publicou em 1924.
Esta
parece ter sido a última conferência a ser proferida por Freud perante uma
platéia exclusivamente médica. (Cf. Jones, 1955, p. 13.)
MINHAS TESES SOBRE O PAPEL DA SEXUALIDADE NA ETIOLOGIA DAS NEUROSES
Sou de
opinião que a melhor maneira de apreciar minha teoria sobre a importância
etiológica do fator sexual para as neuroses é acompanhar seu desenvolvimento. É
que de modo algum tenho a pretensão de negar que ela passou por um
desenvolvimento e se modificou no decorrer dele. Meus colegas podem encontrar
nessa confissão a garantia de que esta teoria não é nada além do precipitado de
experiências ininterruptas e mais aprofundadas. O que nasce da especulação, ao
contrário, pode facilmente surgir completo de um só golpe, e a partir de então
manter-se imutável.
Originalmente,
a teoria referia-se apenas aos quadros patológicos reunidos sob a denominação
de “neurastenia”, dentre os quais reparei em dois tipos que às vezes se
apresentam puros e que descrevi como “neurastenia propriamente dita” e“neurose
de angústia”. Sempre se soube que os fatores sexuais poderiam desempenhar
um papel na causação dessas formas [de doença], mas não se constatava sua
atuação invariavelmente, nem se pensava em conferir-lhes precedência sobre
outras influências etiológicas. Fiquei surpreso, a princípio, com a freqüência
das grandes perturbações na vita sexualis dos pacientes nervosos; e
quanto mais me empenhava em procurar essas perturbações - no que me apercebia
de que todos os seres humanos ocultam a verdade nos assuntos sexuais -, quanto
mais hábil me tornava para levar esse exame adiante, apesar de uma negação
inicial, com maior regularidade descobria tais fatores patogênicos na vida
sexual, até que me pareceu faltar pouco para presumir seu caráter universal.
Mas era preciso aceitar de antemão que tais irregularidades sexuais ocorreriam
com freqüência similar em nossa sociedade, sob a pressão das relações sociais, persistindo
uma dúvida quanto ao grau de desvio do funcionamento sexual normal que se
deveria considerar patogênico. Por isso, tive que dar menos valor à comprovação
invariável das patologias sexuais do que a uma segunda constatação, que me
pareceu menos ambígua. Viu-se que a forma da doença, fosse ela neurastenia ou
neurose de angústia, mostrava uma relação constante com a natureza do prejuízo
sexual. Nos casos típicos de neurastenia, tratava-se, em geral, de masturbação
ou poluções freqüentes, enquanto, na neurose de angústia, havia fatores como o coitus
interruptus, a “excitação frustrada” e outros, passíveis de demonstrar, nos
quais o fator da descarga insuficiente da libido produzida parecia ser o
elemento comum. Somente depois dessa experiência, fácil de fazer e corroborável
com a freqüência que se desejasse, tive a coragem de reivindicar uma posição
privilegiada para as influências sexuais na etiologia das neuroses. Além disso,
nas formas mistas tão freqüentes de neurastenia e neurose de angústia, foi possível
indicar a conjugação das etiologias supostas em cada uma das formas puras; e
mais, tal bipartição na forma de manifestação da neurose parecia harmonizar-se
bem com o caráter polar da sexualidade (o masculino e o feminino).
Nessa
mesma época, enquanto atribuía à sexualidade essa importância para a gênese das
neuroses simples, eu continuava a cultivar, no tocante às psiconeuroses
(histeria e representações obsessivas), uma teoria psicológica pura em que o
fator sexual só interessava como uma dentre várias fontes emocionais. Em
colaboração com Josef Breuer, e com base em observações feitas por ele numa
paciente histérica mais de dez anos antes, eu estudara o mecanismo da geração
dos sintomas histéricos por meio da suscitação de lembranças durante o estado
de hipnose; e assim chegamos a concluções que nos permitiram estabelecer a
ponte entre a histeria traumática de Charcot e a histeria comum, não-traumática
(Breuer e Freud, 1895). Fomos levados à concepção de que os sintomas histéricos
eram efeitos persistentes de traumas psíquicos, e de que, por circunstâncias
especiais, as somas de afeto a eles correspondentes tinham sido desviadas da
elaboração consciente, com isso facilitando para si um caminho anormal para a
inervação somática. Os termos “afeto estrangulado”, “conversão” e “ab-reação”
resumem os marcos característicos dessa concepção.
Entretanto,
considerando as estreitas ligações entre as psiconeuroses e as neuroses
simples, tão extensas que a diferenciação diagnóstica nem sempre é fácil para
as pessoas sem prática, os conhecimentos adquiridos num dos campos não poderiam
demorar a se propagar também para o outro. Ademais, mesmo prescindindo dessa
consideração, também o aprofundamento no mecanismo psíquico dos sintomas
histéricos levou ao mesmo resultado. É que, seguindo cada vez mais o rastro dos
traumas psíquicos de que derivavam os sintomas histéricos, através do
procedimento “catártico” introduzido por Breuer e eu, acabava-se chegando a
vivências pertencentes à infância do enfermo e relacionadas com sua vida
sexual, inclusive nos casos em que uma emoção banal, de natureza não sexual,
ocasionara a irrupção da doença. Sem levar em conta esses traumas da infância,
era impossível elucidar os sintomas, cuja determinação eles tornavam
compreensível, ou prevenir seu ressurgimento. Com isso, a incomparável
importância das vivências sexuais para a etiologia das psiconeuroses parecia
indubitavelmente estabelecida, e esse fato permanece até hoje como um dos
pilares da teoria.
Quando
se descreve essa teoria afirmando que a causa da neurose histérica, que
persiste pela vida afora, reside em vivências sexuais da primeira infância, em
sua maioria insignificantes em si mesmas, ela por certo soa bastante estranha.
Mas quando se leva em conta o desenvolvimento histórico da doutrina, situando
sua essência na tese de que a histeria é a expressão de um comportamento
particular da função sexual do indivíduo, e de que esse comportamento já foi
decisivamente determinado pelas primeiras influências e vivências atuantes na
infância, fica-se com um paradoxo a menos, mas ganha-se um motivo para voltar a
atenção para as repercussões das impressões infantis, que são sumamente
importantes, apesar de terrivelmente negligenciadas até aqui.
Reservo
para mais adiante a abordagem pormenorizada da questão de devermos ver nas
vivências sexuais da infância a etiologia da histeria (e da neurose obsessiva),
e retorno agora à forma adotada pela teoria em algumas pequenas publicações
provisórias dos anos de 1895 e 1896 (Freud, 1896b e 1896c). A ênfase
nos supostos fatores etiológicos permitiu, naquela época, confrontar as
neuroses comuns, enquanto distúrbios com etiologia contemporânea, com as
psiconeuroses, cuja etiologia deveria ser buscada principalmente nas vivências
sexuais do passado. A doutrina culminou nesta tese: na vita sexualis
normal, a neurose é impossível.
Embora
ainda hoje eu não considere essas teses incorretas, não surpreende que, em dez
anos de esforço contínuo para chegar ao conhecimento dessas relações, tenha
ultrapassado em boa medida meus pontos de vista de então e me acredite agora em
condições de corrigir, através da experiência aprofundada, as insuficiências,
os deslocamentos e os mal-entendidos de que a doutrina padecia na época. O
material ainda escasso dessa ocasião me havia trazido, por força do acaso, um
número desproporcionalmente grande de casos em que a sedução por algum adulto
ou por crianças mais velhas desempenhara o papel principal na história infantil
do doente. Superestimei a freqüência desses acontecimentos (aliás impossíveis
de pôr em dúvida), ainda mais que, naquele tempo, não era capaz de estabelecer
com segurança a distinção entre as ilusões de memória dos histéricos sobre sua
infância e os vestígios de eventos reais. Desde então, aprendi a decifrar
muitas fantasias de sedução como tentativas de rechaçar lembranças da atividade
sexual do próprio indivíduo (masturbação infantil). Esclarecido esse ponto,
caiu por terra a insistência no elemento “traumático” presente nas vivências
sexuais infantis, restando o entendimento de que a atividade sexual infantil
(seja ela espontânea ou provocada) prescreve o rumo a ser tomado pela vida
sexual posterior após a maturidade. Esse mesmo esclarecimento, que corrigiu o
mais importante de meus erros iniciais, também tomou necessário modificar a
concepção do mecanismo dos sintomas histéricos. Estes já não apareciam como
derivados diretos das lembranças recalcadas das experiências infantis, havendo
antes, entre os sintomas e as impressões infantis, a interposição das fantasias
(ficções mnêmicas) do paciente (produzidas, em sua maior parte, durante os anos
da puberdade), que, de um lado, tinham-se construído a partir das lembranças
infantis e com base nelas, e, de outro, eram diretamente transformadas nos
sintomas. Somente com a introdução do elemento das fantasias histéricas é que
se tornaram inteligíveis a textura da neurose e seu vínculo com a vida do
enfermo; evidenciou-se também uma analogia realmente espantosa entre essas
fantasias inconscientes dos histéricos e as criações imaginárias que, na
paranóia, tornam-se conscientes como delírios.
Depois
dessa correção, os “traumas sexuais infantis” foram substituídos, em certo
sentido, pelo “infantilismo da sexualidade”. Não estava longe uma segunda
modificação da teoria original. Juntamente com a suposta freqüência da sedução
na infância, caiu também por terra a ênfase exagerada nas influências acidentais
sobre a sexualidade, às quais eu pretendera atribuir o papel principal na
acusação da doença, embora nem por isso negasse os fatores constitucionais e
hereditários. Chegara até mesmo a ter esperança de solucionar o problema da
escolha da neurose (a decisão sobre a forma de psiconeurose a que o doente
deveria sucumbir) através das particularidades das vivências sexuais infantis.
E nessa época, embora com reservas, achava que a conduta passiva nessas cenas
produzia a disposição específica para a histeria, ao passo que a conduta ativa
predispunha à neurose obsessiva. Mais tarde, tive de abandonar por completo
essa concepção, embora muitos fatos exigissem manter de algum modo a correlação
pressentida entre passividade e histeria, atividade e neurose obsessiva. Com o
recuo das influências acidentais da experiência para o segundo plano, os
fatores da constituição e da hereditariedade voltaram necessariamente a
predominar, porém com a diferença de que em minha teoria, ao contrário da visão
que prevalece em outras áreas, a “constituição sexual’’ tomou o lugar da
disposição neuropática geral. Em meus recém-publicados Três Ensaios sobre a
Teoria da Sexualidade (1905d , ver em [1]), tentei descrever as
múltiplas variedades dessa constituição sexual, bem como a composição interna
da pulsão sexual como um todo e sua derivação das diferentes fontes do
organismo que contribuem para originá-la.
Ainda no
contexto da concepção modificada dos “traumas sexuais infantis’’, a teoria
desenvolveu-se um pouco mais numa direção já anunciada nas publicações dos anos
de 1894 a 1896. Já nessa época, e antes mesmo que se atribuísse à sexualidade
seu devido lugar na etiologia, eu havia indicado, como condição da eficácia
patogênica de uma experiência, que ela precisava parecer intolerável ao ego e
provocar um esforço defensivo (Freud, 1894a). A essa defesa eu remetera
a cisão psíquica (ou, como dizíamos na época, cisão da consciência) que ocorre
na histeria. Sendo a defesa bem-sucedida, a vivência intolerável e suas
conseqüências afetivas eram expulsas da consciência e da memória do ego; em
certas circunstâncias, porém, o expelido desdobrava sua eficácia como algo
agora inconsciente e retornava à consciência por meio dos sintomas e dos afetos
presos a eles, de sorte que o adoecimento correspondia a um fracasso da defesa.
Essa concepção tinha o mérito de penetrar no jogo das forças psíquicas e, com
isso, aproximar os processos anímicos da histeria dos processos normais, em vez
de situar a característica da neurose num distúrbio enigmático e não
susceptível de análise ulterior.
Novas
informações então obtidas com pessoas que haviam permanecido normais
proporcionaram a inesperada descoberta de que sua história sexual infantil não
diferia necessariamente, em essência, da vida infantil dos neuróticos e, em
especial, o papel da sedução era o mesmo em ambos os casos. Assim, as
influências acidentais recuaram ainda mais em contraste com o “recalcamento”
(como comecei a dizer em lugar de “defesa”). Não importavam, portanto, as
excitações sexuais que um indivíduo tivesse experimentado em sua infância, mas
antes, acima de tudo, sua reação a essas vivências - se respondera ou não a
essas impressões com o “recalcamento”. Viu-se que, no curso do desenvolvimento,
a atividade sexual infantil era amiúde interrompida por um ato de recalcamento.
Assim, o indivíduo neurótico sexualmente maduro geralmente trazia consigo, da
infância, uma dose de “recalcamento sexual” que se exteriorizava ante as
exigências da vida real, e as psicanálises de histéricos mostraram que seu
adoecimento era conseqüência do conflito entre a libido e o recalcamento
sexual, e que seus sintomas tinham o valor de compromissos entre as duas
correntes anímicas.
Sem uma
discussão minuciosa de minhas concepções do recalcamento eu não poderia
esclarecer melhor essa parte da teoria. Basta remeter aqui a meus Três
Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905d), onde tentei lançar
alguma luz, por parca que seja, nos processos somáticos em que se deve buscar a
natureza da sexualidade. Ali expus o fato de que a disposição sexual
constitucional da criança é incomparavelmente mais variada do que se poderia
esperar, que merece ser chamada de “perversa polimorfa”, e que o chamado
comportamento normal da função sexual brota dessa disposição mediante o
recalcamento de certos componentes. Através da referência aos caracteres
infantis da sexualidade pude estabelecer um vínculo simples entre a saúde, a
perversão e a neurose. A normalidade mostrou ser fruto do recalcamento
de certas pulsões parciais e certos componentes das disposições infantis, bem
como da subordinação dos demais à primazia das zonas genitais a serviço da
função reprodutora; as perversões correspondem a perturbações dessa
síntese através do desenvolvimento preponderante e compulsivo de algumas das
pulsões parciais, e a neurose remonta a um recalcamento excessivo das
aspirações libidinais. Visto que quase todas as pulsões perversas da disposição
infantil são comprováveis como forças formadoras de sintomas na neurose, embora
se encontrem nela em estado de recalcamento, pude descrever a neurose como o
“negativo” da perversão. (ver em [1])
Considero
valioso enfatizar que, em minhas concepções sobre a etiologia das
psiconeuroses, a despeito de todas as modificações, houve dois pontos de vista
que nunca reneguei ou abandonei: a importância da sexualidade e do infantilismo.
Afora isso, em lugar das influências acidentais coloquei fatores
constitucionais, e a “defesa”, no sentido puramente psicológico, foi
substituída pelo “recalcamento sexual” orgânico. Agora, se alguém perguntasse
onde se há de encontrar uma prova mais concludente da suposta importância etiológica
dos fatores sexuais nas psiconeuroses, já que se vê a irrupção dessas doenças
em resposta às comoções mais banais e até mesmo a causas precipitantes
somáticas, e já que foi preciso renunciar a uma etiologia específica sob a
forma de vivências infantis particulares, eu nomearia a investigação
psicanalítica dos neuróticos como a fonte de que brota minha convicção assim
contestada. Quando nos servimos desse insubstituível método de investigação,
inteiramo-nos de que os sintomas representam a atividade sexual do doente
(na totalidade ou em parte) oriunda das fontes das pulsões parciais normais ou
perversas da sexualidade. (ver em [1] e [2]) Não só uma boa parte da
sintomatologia histérica deriva diretamente das expressões do estado de
excitação sexual, e não só uma série de zonas erógenas eleva-se, na neurose, ao
sentido de órgãos genitais, graças ao reforço de propriedades infantis, como
também os mais complexos sintomas revelam-se como representações “convertidas”
de fantasias que têm por conteúdo uma situação sexual. Quem sabe interpretar a
linguagem da histeria pode perceber que a neurose só diz respeito à sexualidade
recalcada do doente. Para isso, basta compreender a função sexual em sua devida
extensão, circunscrita pela disposição infantil. Nos casos em que se precisa
incluir uma emoção banal na causação do adoecimento, a análise mostra
regularmente que o efeito patogênico foi produzido pelos infalíveis componentes
sexuais da vivência traumática.
Passamos
inadvertidamente da questão da causação das psiconeuroses para o problema de
sua natureza essencial. Havendo uma disposição de levar em conta o que foi
aprendido através da psicanálise, só se pode dizer que a essência dessas
doenças reside em perturbações dos processos sexuais, ou seja, os processos que
determinam no organismo a formação e a utilização da libido sexual. É muito
difícil deixar de imaginar esses processos como sendo, em última análise, de
natureza química, de modo que nas chamadas neuroses atuais devemos reconhecer
os efeitos somáticos das perturbações do metabolismo sexual, e nas
psiconeuroses, além deles, os efeitos psíquicos dessas perturbações. A
semelhança das neuroses com os fenômenos de intoxicação por certos alcalóides e
os fenômenos de abstinência deles, e também com a doença de Basedow e a de
Addison, impõe-se de imediato clinicamente; e assim como estas duas últimas
doenças já não podem ser descritas como ``doenças nervosas”, também as
``neuroses” propriamente ditas, apesar de sua denominação, logo terão de ser
excluídas dessa classe.
Por
conseguinte, pertence à etiologia das neuroses tudo o que pode atuar
prejudicialmente sobre os processos que servem à função sexual. Assim, vêm em
primeiro lugar os males que afetam a própria função sexual, na medida em que
estes, variando conforme a cultura e a educação, são considerados nocivos à
constituição sexual. Em segundo lugar vem toda sorte de outros males e traumas
que, através do prejuízo generalizado do organismo, podem prejudicar
secundariamente seus processos sexuais. Mas não se deve esquecer que o problema
etiológico é pelo menos tão complicado nas neuroses quanto o é a causação em
qualquer outra doença. Quase nunca basta uma única influência patogênica; na
grande maioria dos casos exige-se uma multiplicidade de fatores etiológicos que
apóiam uns aos outros e que, portanto, não devem ser colocados em oposição.
Também por isso, o estado neurótico não pode ser nitidamente distinguido da
saúde. O adoecimento é resultado de uma soma, e esse total de determinantes
etiológicos pode ser completado por qualquer lado. Buscar a etiologia das
neuroses exclusivamente na hereditariedade ou na constituição seria tão
unilateral quanto pretender atribuir essa etiologia unicamente às influências
acidentais que atuam sobre a sexualidade durante a vida, quando o discernimento
mostra que a essência dessas situações de adoecimento reside apenas numa
perturbação dos processos sexuais no organismo.
Viena,
junho de 1905.
NOTA DO EDITOR INGLÊS
MEINE ANSICHTEN ÜBER DIE ROLLE DER SEXUALITÄT IN DER ÄTIOLOGIE
DER NEUROSEN
(a) EDIÇÕES EM ALEMÃO:
(1905
Junho. Data do manuscrito.)
1906 Em E. Loewenfeld, Sexualleben und
Nervenleiden, 4ª ed. (1914, 5ª ed., pp. 313-322), Wiesbaden: Bergmann.
1906 S.K.S.N.,
I, pp. 225-234. (1911, 2ª ed., pp. 220-229; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.).
1924 G.S.,
5, pp. 123- 133.
1942 G.W.,
5, pp. 149-159.
(b) TRADUÇÕES EM INGLÊS:
“My Views on the Rôle of Sexuality in the Etiology of
the Neuroses”
1909 S.P.H.,
pp. 186-193. (Trad. de A.A. Brill.) (1912, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.)
“My Views
on the Part Played by Sexuality in the Aetiology of the Neuroses”
1924 C.P.
1, pp. 272-283. (Trad. de J. Bernays.)
A
presente tradução [inglesa] é nova, da autoria de James Strachey.
As
edições anteriores do livro de Loewenfeld haviam incluído discussões sobre as
teses de Freud; para a quarta edição, porem, Loewenfeld convenceu Freud a
redigir esse artigo. Freud concordou em revisá-lo para a quinta edição, mas, na
verdade, fez apenas uma única alteração trivial.
O traço
mais notável desse artigo é que ele contém a primeira revogação cabal da crença
de Freud na etiologia traumática da histeria, bem como sua primeira insistência
na importância das fantasias (opiniões que ele comunicara a Fliess em
particular muitos anos antes). Ver a partir de [1] e em [2].
TRATAMENTO
PSÍQUICO (OU ANÍMICO) (1905)
“Psyche”
é uma palavra grega e se concebe, na tradução alemã, como alma.
Tratamento psíquico significa, portanto, tratamento anímico. Assim,
poder-se-ia pensar que o significado subjacente é: tratamento dos fenômenos
patológicos da vida anímica. Mas não é este o sentido dessas palavras.
“Tratamento psíquico’’ quer dizer, antes, tratamento que parte da alma,
tratamento - seja de perturbações anímicas ou físicas - por meios que atuam, em
primeiro lugar e de maneira direta, sobre o que é anímico no ser humano.
Um
desses meios e sobretudo a palavra, e as palavras são também a ferramenta
essencial do tratamento anímico. O leigo por certo achara difícil compreender
que as perturbações patológicas do corpo e da alma possam ser eliminadas
através de “meras” palavras. Achará que lhe estão pedindo para acreditar em
bruxarias. E não estará tão errado assim: as palavras de nossa fala cotidiana
não passam de magia mais atenuada. Mas será preciso tomarmos um caminho
indireto para tornar compreensível o modo como a ciência é empregada para
restituir às palavras pelo menos parte de seu antigo poder mágico.
Só em
época recente, além disso, os médicos de formação científica aprenderam a
apreciar o valor do tratamento anímico. Isso se esclarece facilmente ao
pensarmos no curso de desenvolvimento da medicina neste último meio século.
Após um período bastante infrutífero de dependência da chamada filosofia da natureza,
a medicina, sob a influência propícia das ciências naturais, fez seus maiores
progressos, tanto na qualidade de ciência como na de arte: desvendou a
composição do organismo a partir de unidades microscopicamente pequenas (as
células), aprendeu a compreender física e quimicamente cada um dos processos
(funções) vitais, distinguiu as modificações visáveis e palpáveis das partes do
corpo em conseqüência dos diferentes processos patológicos, e descobriu, por
outro lado, os indícios pelos quais se revelam os processos patológicos
entranhados a fundo no organismo vivo; desvendou ainda um grande número dos
micróbios patogênicos e, com a ajuda dos conhecimentos recém-adquiridos,
reduziu extraordinariamente os perigos das intervenções cirúrgicas mais graves.
Todos esses progressos e descobertas diziam respeito ao aspecto físico do ser
humano, e assim, em conseqüência de uma linha de raciocínio incorreta, mas
facilmente compreensível, os médicos passaram a restringir seu interesse ao
corporal e de bom grado deixaram aos filósofos, a quem menosprezavam, a tarefa
de se ocuparem do anímico.
É
verdade que a medicina moderna tinha motivos suficientes para estudar o
incontestável vínculo existente entre o físico e o anímico, mas nunca deixou de
representar o anímico como determinado pelo físico e dependente deste. Assim,
enfatizou-se que o funcionamento intelectual estaria ligado à existência de um
cérebro normalmente desenvolvido e suficientemente nutrido, e que qualquer
adoecimento desse órgão faria com que se incorresse em perturbações; que a
introdução de substâncias tóxicas na circulação poderia produzir certos estados
de doença mental, ou, em pequena escala, que os sonhos do sujeito adormecido
seriam modificáveis conforme os estímulos que se fizesse atuar sobre ele para
fins experimentais.
A
relação entre o físico e o anímico (tanto nos animais quanto no ser humano) é
recíproca, mas o outro lado dessa relação, o efeito do anímico no corpo,
encontrou pouca aceitação aos olhos dos médicos em épocas anteriores. Eles
pareciam temerosos de conceder uma certa autonomia à vida anímica, como se com
isso fossem abandonar o terreno da cientificidade.
Essa
orientação unilateral da medicina para o aspecto físico passou, na última
década e meia, por uma modificação gradual diretamente oriunda da prática
médica. Ocorre que há um grande número de doentes de maior ou menor gravidade
que, por seus distúrbios e queixas, fazem grandes exigências à habilidade do
médico, mas em quem não se encontram sinais visíveis e palpáveis do processo
patológico, seja durante a vida ou depois da morte, apesar de todos os
progressos dos métodos de investigação da medicina científica. Um grupo desses
doentes destaca-se pela abundância e pela variedade multiforme do quadro
patológico; não podem fazer nenhum trabalho intelectual, em conseqüência de
dores de cabeça ou insuficiência da atenção, seus olhos doem durante a leitura,
suas pernas se cansam ao andar, ficando pesadas, doloridas ou dormentes, sua
digestão é perturbada por sensações dolorosas, eructações ou espasmos
gástricos, a defecação não se dá sem a ajuda de laxativos, o sono é abolido
etc. Eles podem ter todos esses males simultaneamente ou em sucessão, ou sofrer
apenas de uma seleção deles; na totalidade dos casos, trata-se obviamente da
mesma doença. Apesar disso, os sinais da doença são amiúde mais variáveis,
revezando-se entre si e substituindo uns aos outros; um mesmo doente, até então
incapaz de trabalhar por causa das dores de cabeça, mas com uma digestão
bastante boa, pode no dia seguinte desfrutar de uma cabeça desembaraçada, mas a
partir daí suportar mal a maioria dos alimentos. Da mesma forma, seus
padecimentos o abandonam subitamente ao sobrevir uma modificação em suas
condições de vida; numa viagem, pode sentir-se perfeitamente bem e saborear sem
prejuízo a mais diversificada dieta, mas, de volta a casa, talvez tenha de
restringir-se novamente à coalhada. Em alguns desses doentes, a perturbação -
seja ela uma dor ou uma fraqueza nos moldes de uma paralisia - pode até trocar
repentinamente de lado no corpo, passando da direita para a área correspondente
no lado esquerdo. Em todos, porém, é possível observar que os sinais de
padecimento estão muito claramente sob a influência das excitações, comoções,
preocupações etc., e também que desaparecem, podendo dar lugar a uma saúde
plena, sem deixar nenhum vestígio, nem mesmo após uma longa permanência.
A
investigação médica finalmente mostrou que essas pessoas não devem ser
consideradas nem tratadas como doentes gástricos, doentes dos olhos ou similares,
mas que, nelas, trata-se de uma doença do sistema nervoso como um todo. Até
aqui, entretanto, a investigação do cérebro e dos nervos desses doentes não
permitiu encontrar nenhuma modificação palpável, e alguns dos aspectos do
quadro patológico chegam até a proibir a expectativa de que um dia se possa
apontar, com meios de investigação mais apurados, modificações de tal ordem que
sejam capazes de esclarecer a doença. Tem-se conferido a esse estado o nome de
nervosismo (neurastenia, histeria), qualificando-o como uma doença meramente
“funcional” do sistema nervoso. Aliás, também em muitas doenças nervosas mais
duradouras, e naquelas que produzem apenas sinais patológicos anímicos (as
chamadas idéias obsessivas, idéias delirantes, demência), o exame pormenorizado
do cérebro (após a morte do doente) não trouxe nenhum resultado.
Coube
assim aos médicos investigar a natureza e a origem das manifestações
patológicas desses doentes nervosos ou neuróticos. Nesse processo, fez-se então
a descoberta de que, pelo menos numa parcela desses enfermos, os sinais da
doença não provinham de outra coisa senão uma influência modificada da vida
anímica sobre seu corpo, devendo-se portanto buscar no anímico a causa
imediata da perturbação. Quais são as causas remotas de cada distúrbio pelo
qual o anímico é afetado (o que, por sua vez, tem uma atuação perturbadora
sobre o físico) constitui uma outra questão, que bem podemos deixar de
considerar aqui. Mas a ciência médica encontrou nisso a oportunidade de voltar
plenamente sua atenção para o lado até então negligenciado da relação recíproca
entre o corpo e a alma.
Só
depois de estudar o patológico é que se compreende a normalidade. Muito do que
sempre se soube acerca da influência do anímico sobre o corpo só então se
desloca para sua perspectiva correta. O exemplo mais corriqueiro de atuação
anímica sobre o corpo, observado regularmente e em todas as pessoas, é
fornecido pela chamada “expressão das emoções”. Quase todos os estados
anímicos de um homem exteriorizam-se nas tensões e relaxamentos de seus
músculos faciais, na focalização de seus olhos, no afluxo de sangue para sua
pele, no emprego [variável] de seu aparelho vocal e na postura de seus membros,
sobretudo as mãos. Essas modificações físicas concomitantes em geral não trazem
nenhum benefício à pessoa em questão, mas, ao contrário, são amiúde obstáculos
a suas intenções, quando ela quer ocultar dos outros seus processos anímicos;
para esses outros, no entanto, servem como sinais fidedignos pelos quais é
possível inferir os processos anímicos, e nos quais se deposita maior confiança
do que em qualquer das expressões intencionais feitas simultaneamente em
palavras. Quando se tem possibilidade de submeter alguém a um exame mais
rigoroso durante uma dada atividade anímica, outras conseqüências físicas dessa
atividade são encontradas nas modificações de seu funcionamento cardíaco, nas
alterações da distribuição de sangue em seu corpo, e coisas similares.
Em
certos estados anímicos chamados de “afetos”, a participação do corpo é
tão evidente e intensa que alguns estudiosos da alma chegaram até a pensar que
a essência do afeto consistiria apenas nessas suas exteriorizações físicas. São
genericamente conhecidas as extraordinárias mudanças na expressão facial, na
circulação sangüínea, nas secreções e nos estados de excitação da musculatura
voluntária sob a influência, por exemplo, do medo, da cólera, da dor psíquica e
do deleite sexual. Menos conhecidos, embora estabelecidos com plena certeza,
são outros efeitos físicos dos afetos que já não são próprios da expressão
deles. Os estados afetivos persistentes de natureza penosa, ou, como se costuma
dizer, “depressiva”, tais como desgosto, a preocupação e a tristeza, abatem a
nutrição do corpo como um todo, causam o embranquecimento dos cabelos, fazem a
gordura desaparecer e provocam alterações patológicas nas paredes dos vasos
sangüíneos. Inversamente, sob a influência de excitações mais alegres, da
“felicidade”, vê-se o corpo inteiro desabrochar e a pessoa recuperar muitos
sinais de juventude. Evidentemente, os grandes afetos têm muito a ver com a
capacidade de resistência às doenças infecciosas; um bom exemplo disso é a
observação médica de que a propensão a contrair tifo e disenteria é muito mais
significativa nos membros de um exército derrotado do que na situação de
vitória. Ademais, os afetos - embora quase que exclusivamente os depressivos -
muitas vezes bastam por si mesmos para ocasionar doenças, tanto no tocante aos
males do sistema nervoso com alterações anatômicas demonstráveis quanto no que
concerne às doenças de outros órgãos, situação na qual temos de supor que a
pessoa em causa já tinha uma predisposição para tal doença, até ali inoperante.
Os
estados patológicos já formados podem ser sumamente influenciados pelos afetos
tempestuosos, quase sempre no sentido de um agravamento, mas tampouco faltam
exemplos em que um grande choque ou um desgosto súbito, mediante uma alteração
peculiar no tono do organismo, tem uma influência salutar sobre um estado
patológico bem consolidado ou chega mesmo a aboli-lo. Por fim, não há dúvida
alguma de que a duração da vida pode ser consideravelmente abreviada pelos
afetos depressivos, do mesmo modo que um choque mais violento, uma “injúria”
contundente ou uma humilhação podem dar um fim repentino à vida; o curioso é
que, vez por outra, este último efeito é também observado como conseqüência de
uma grande e inesperada alegria.
Os
afetos, num sentido mais estrito, distinguem-se por um vínculo muito especial
com os processos físicos, mas, a rigor, todos os estados anímicos, inclusive
aqueles que estamos acostumados a considerar como “processos de pensamento” são
“afetivos” numa certa medida, e nenhum deles carece de manifestações
físicas e da capacidade de modificar os processos corporais. Mesmo enquanto se
está tranqüilamente pensando por meio de “representações”, correspondem ao
conteúdo dessas representações várias excitações constantes, desviadas para os
músculos lisos e estriados; estas, mediante o reforço apropriado, podem
tornar-se claras e fornecer a elucidação de muitos fenômenos estranhos e até
supostamente “sobrenaturais”. Assim, por exemplo, a chamada “advinhação do
pensamento” [Gedanken erraten] se esclarece por pequeninos
movimentos musculares involuntários executados pelo “médium” quando se
faz uma experiência com ele - algo como um deixar-se guiar por ele para
encontrar um objeto escondido. O fenômeno inteiro merece, antes, o nome de traição
do pensamento [Gedanken verraten].
Os
processos de volição e atenção também são capazes de influenciar profundamente
os processos físicos e de desempenhar, nas doenças somáticas, um grande papel
fomentador ou inibidor. Um grande médico inglês relatou que consegue provocar,
em qualquer parte do corpo para a qual queira dirigir sua atenção, uma multiplicidade
de sensações e dores, e a maioria dos seres humanos parece comportar-se de
maneira parecida. Ao formar um juízo sobre as dores, que se costuma considerar
como fenômenos físicos, em geral cabe levar em conta sua claríssima dependência
das condições anímicas. Os leigos, que de bom grado reúnem tais influências
anímicas sob o nome de ``imaginação’’, costumam ter pouco respeito pelas dores
decorrentes da imaginação, em contraste com as que são causadas por lesões,
doenças ou inflamações. Mas isso e evidentemente injusto: qualquer que seja sua
causa, inclusive a imaginação, as dores em si nem por isso são menos reais ou
menos violentas.
Assim
como as dores são produzidas ou intensificadas em se voltando a atenção para
elas, também desaparecem pelo desvio da atenção. Essa experiência pode ser
utilizada com todas as crianças para acalmá-las; os soldados adultos não sentem
a dor da ferida no entusiasmo febril da batalha; é muito provável que os
mártires, no ardor desmedido de seu sentimento religioso e voltando todos os
seus pensamentos para as recompensas com que lhes acena o paraíso, fiquem
perfeitamente insensíveis às dores de sua tortura. É menos fácil comprovar
através de exemplos a influência da volição nos processos patológicos do
corpo, mas é muito possível que a determinação de curar-se ou a vontade de
morrer não sejam desprovidas de importância nem mesmo para o desfecho dos casos
mais graves e mais duvidosos de doença.
Tem
extremo direito a nosso interesse o estado anímico da expectativa, por
meio do qual pode ser mobilizada uma série de forças anímicas de suma eficácia
para a instauração e a cura das doenças físicas. A expectativa angustiada
por certo não deixa de influenciar o resultado; seria importante saber com
certeza se ela contribui tanto para o adoecimento quanto se acredita, se é
verdade, por exemplo, que em meio a uma epidemia correm maior perigo aqueles
que têm medo de adoecer. O estado inverso - a expectativa confiante e
esperançosa - é uma força atuante com que temos de contar, a rigor, em todas as
nossas tentativas de tratamento e cura. De outro modo, não poderíamos explicar
a peculiaridade dos efeitos observados dos medicamentos e intervenções
terapêuticas. Dentre os mais palpáveis está a influência da expectativa
confiante nas chamadas curas miraculosas, ainda hoje efetuadas diante de
nossos olhos sem a colaboração de nenhuma habilidade médica. As curas
milagrosas típicas realizam-se nos crentes sob a influência de cerimônias
próprias para intensificar os sentimentos religiosos, ou seja, em lugares onde
se adora uma imagem milagrosa, ou onde uma figura santa ou divina revelou-se
aos homens e lhes prometeu alívio como recompensa por sua adoração, ou onde as
relíquias de um santo são preservadas como um tesouro. Não parece fácil à fé
religiosa, por si só, suprimir a doença pelo caminho da expectativa, pois, em
geral, há ainda o concurso de outras coisas nas curas milagrosas. As ocasiões
em que se busca a clemência divina têm de ser indicadas por condições
especiais; o esforço físico que o doente se impõe, as dores e sacrifícios da
peregrinação devem torná-lo digno dessa regra especial.
Seria
conveniente, mas muito equivocado, simplesmente recusar crédito a essas curas
milagrosas e pretender explicar os relatos feitos sobre elas através de uma combinação
de engodo devoto e observação inexata. Por mais que essa tentativa de
explicação possa amiúde justificar-se, ainda assim não tem o poder de descartar
por completo o fato das curas miraculosas. Elas realmente ocorrem, deram-se em
todas as épocas e dizem respeito não só às doenças de origem anímica, ou seja,
àquelas que se fundamentam na “imaginação” e podem justamente ser afetadas de
maneira especial pelas circunstâncias da romaria, mas também aos estados
patológicos fundamentados no “orgânico” e até então resistentes a todos os
esforços médicos.
Mas não
há nenhuma necessidade de recorrer a outra coisa senão os poderes anímicos para
esclarecer as curas milagrosas. Nem mesmo nessas condições manifestam-se
efeitos que possamos considerar inconcebíveis para nossa cognição. Tudo se
passa naturalmente; de fato, o poder da fé religiosa recebe aí um reforço de
muitas forças pulsionais tipicamente humanas. A crença religiosa de cada um é
intensificada pelo entusiasmo da multidão em meio à qual ele costuma aproximar-se
do local sagrado. Todas as moções anímicas de cada ser humano podem ser
imensamente ampliadas por esse efeito das massas. Quando alguém vai sozinho em
busca da cura no lugar miraculoso, são a fama e o prestígio do lugar que
substituem a influência da multidão, e portanto, mais uma vez, é apenas o poder
da multidão que exerce seu efeito. Essa influência também se faz sentir de mais
outra maneira. Sabe-se que a misericórdia divina mostra-se apenas a alguns
dentre os muitos que a ela recorrem, e cada qual gostaria de estar entre os
distinguidos e eleitos; a ambição que dormita em cada um vem em socorro da fé
religiosa. Quando tantas forças poderosas colaboram, não nos deve surpreender
que, vez por outra, a meta seja realmente alcançada.
Tampouco
os que não têm crença religiosa precisam renunciar às curas milagrosas. Para
eles, o prestígio e o efeito das massas substituem completamente a crença
religiosa. Há em todas as épocas tratamentos da moda e médicos da moda, que
exercem um domínio especial na alta sociedade, onde as forcas pulsionais
anímicas mais poderosas são representadas pelo esforço de exceder uns aos
outros e imitar os mais aristocráticos. Tais tratamentos da moda ostentam
efeitos terapêuticos que estão fora de seu alcance, e um mesmo procedimento
rende muito mais nas mãos de um médico da moda, que talvez se tenha tornado
conhecido por assistir alguma personalidade de destaque, do que pode render nas
de outro médico. Assim, tanto há milagreiros humanos quanto divinos, só que os
homens que se servem desses favores da moda e da imitação para galgar uma
posição de prestígio perdem-na rapidamente, como e da natureza das forças que
atuaram para consegui-la.
A
compreensível insatisfação com a ajuda amiúde insuficiente da arte medicinal, e
talvez também a rebeldia interna contra o rigor do pensamento científico, que
reflete para os homens a inexorabilidade da natureza, criaram em todas as
épocas, e novamente em nossos dias, uma curiosa condição para o poder curativo
das pessoas e dos procedimentos. A expectativa confiante só se produz quando
aquele que presta assistência não é médico e pode vangloriar-se de não entender
nada da fundamentação científica da terapêutica, e quando o procedimento não
foi comprovado por um teste rigoroso, mas é recomendado por alguma preferência
popular. Daí a profusão de terapias naturais e terapeutas naturais que ainda
hoje fazem concorrência aos médicos no exercício de sua profissão, e dos quais
podemos ao menos dizer, com alguma certeza, que com muito mais freqüência trazem
prejuízos do que benefícios aos que buscam a cura. Se temos nisso uma base para
censurar a expectativa confiante dos doentes, ainda assim não devemos ser tão
ingratos a ponto de esquecer que essa mesma força apóia continuamente nossos
próprios esforços médicos. É provável que o efeito de cada procedimento
prescrito pelo médico, de cada intervenção feita por ele, componha-se de duas
partes. E uma delas, ora maior, ora menor, mas que nunca deve ser de todo
desprezada, é fornecida pela conduta anímica do doente. A expectativa confiante
com que ele vai ao encontro da influência direta de uma providência médica
depende, de um lado, da extensão de sua própria ânsia de cura, e, de outro, de
sua confiança em ter dado o passo certo para isso, ou seja, de seu respeito
pela arte médica em geral; depende ainda do poder que ele atribui à pessoa do
médico, e até mesmo da simpatia puramente humana que este desperta nele. Há
médicos cuja capacidade de conquistar a confiança dos doentes tem um grau mais
elevado que em outros; nesses casos, é freqüente o enfermo já sentir um alívio
ao ver o médico entrar em seu quarto.
Os
médicos têm praticado o tratamento anímico desde sempre, ainda mais
abundantemente em épocas remotas do que hoje em dia. Quando entendemos por
tratamento psíquico o esforço de provocar no doente os estados e condições
anímicos mais propícios para a cura, vemos que esse tipo de tratamento médico
é, historicamente, o mais antigo. Os povos da antigüidade mal dispunham de
outra coisa senão o tratamento psíquico; e nunca deixavam de apoiar o efeito
das poções curativas e das medidas terapêuticas mediante um tratamento anímico
insistente. Os conhecidos usos de fórmulas mágicas, banhos purificadores e
invocação de sonhos oraculares dormindo no salão do templo, entre outros, só
podem ter-se tornado curativos por via psíquica. A própria personalidade do
médico adquiria prestígio por derivar diretamente do poder divino, já que, em
seus primórdios, a arte curativa estava nas mãos dos sacerdotes. Assim, tanto
naquela época quanto hoje, a pessoa do médico era uma das condições principais
para promover no doente o estado psíquico propício a cura.
Agora
começamos também a compreender a “magia” das palavras. É que as palavras são o
mediador mais importante da influência que um homem pretende exercer sobre o
outro; as palavras são um bom meio de provocar modificações anímicas naquele a
quem são dirigidas, e por isso já não soa enigmático afirmar que a magia das
palavras pode eliminar os sintomas patológicos, sobretudo aqueles que se
baseiam justamente nos estados psíquicos.
Todas as
influências anímicas que se revelaram eficazes na eliminação das doenças têm
algo de incerto. Os afetos, a concentração da vontade, o desvio da atenção, a
expectativa confiante, todas essas forças, que ocasionalmente eliminam a
doença, deixam de fazê-lo em outros casos sem que se possa responsabilizar a
natureza da doença pelo resultado diferente. Evidentemente, é o caráter
autocrático das personalidades psiquicamente tão diversas que estorva a regularidade
dos resultados terapêuticos. Desde que os médicos reconheceram com clareza a
importância do estado anímico para a cura, ocorreu-lhes, naturalmente, fazer
uma tentativa de não mais deixar a critério do enfermo o tanto de boa vontade
psíquica que nele se produziria, mas forçar energicamente o estado anímico
propício por meios adequados. Foi nesse esforço que teve origem o moderno tratamento
anímico.
Assim se
produziu toda uma quantidade de modos de tratamento, alguns bastante evidentes,
outros somente acessíveis à compreensão depois de hipóteses complexas. É
evidente, por exemplo, que o médico, já não podendo hoje inspirar admiração
como sacerdote ou como possuidor de um saber secreto, há de usar sua
personalidade de modo a poder ganhar a confiança e uma parcela da simpatia de
seu paciente. Já atenderá a uma distribuição conveniente que ele consiga esse
resultado apenas com um número restrito de enfermos, enquanto outros, por seu
grau de formação e suas inclinações, serão atraídos para a pessoa de outros médicos.
Entretanto, com a abolição da livre escolha do médico, aniquila-se uma
importante precondição para influenciar o doente em termos anímicos.
Há toda
uma série de meios psíquicos muito eficazes de que o médico deve privar-se. Ou
não tem o poder, ou não pode arrogar-se o direito de invocá-los. Isso se aplica
sobretudo à provocação dos afetos mais intensos e, portanto, aos meios mais
importantes pelos quais o anímico atua sobre o físico. O destino muitas vezes
cura as doenças através das grandes emoções de alegria, da satisfação das
necessidades e da realização dos desejos, com os quais o médico, amiúde
impotente fora de sua arte, não pode rivalizar. Estaria antes em seu poder
provocar medo e terror para fins curativos, mas, exceto no caso de crianças, ele
deve ponderar muito sobre o recurso a essas medidas perigosas. Por outro lado,
o médico deve romper todas as relações com os doentes que estejam ligadas a
sentimentos de ternura, por causa da significação vital desses estados
anímicos. E assim, seu poder de promover modificações anímicas em seus doentes
parece tão reduzido desde o início que o tratamento anímico deliberadamente
intensificado não prometeria nenhuma vantagem sobre o método anterior.
O médico
pode tentar dirigir algo da função volitiva e da atenção do doente, e em
diversos estados patológicos tem bons motivos para isso. Quando obriga
persistentemente alguém que se crê paralítico a fazer os movimentos que
supostamente lhe são impossíveis, ou ao recusar um exame a um paciente nervoso
que insiste em ser examinado por uma doença que certamente não existe, o médico
estará seguindo o rumo de tratamento correto, mas esses casos isolados
dificilmente justificariam situarmos o tratamento anímico como um procedimento
terapêutico especial. Em contrapartida, existe um caminho singular e imprevisto
que oferece ao médico a possibilidade de exercer uma influência profunda, se
bem que transitória, sobre a vida anímica de seus pacientes, e de utilizá-la
para fins terapêuticos.
Sabe-se
há muito tempo, embora somente nas últimas décadas isso tenha-se elevado acima
de qualquer dúvida, que é possível, mediante certas ações suaves, transportar
as pessoas para um estado anímico totalmente peculiar, que tem muita semelhança
com o sono e por isso é chamado de hipnose. À primeira vista, os
procedimentos para produzir a hipnose não têm muita coisa em comum. Pode-se
hipnotizar alguém fazendo-o olhar fixamente para um objeto brilhante por alguns
minutos, ou segurando um relógio pelo mesmo espaço de tempo junto ao ouvido do
sujeito experimental, ou ainda passando repetidamente as mãos espalmadas, a uma
pequena distância, sobre seu rosto e membros. Mas também se pode chegar a esse
mesmo resultado avisando a pessoa a quem se pretende hipnotizar, com tranqüila
segurança, sobre a chegada do estado hipnótico e suas particularidades, ou
seja, “fazendo-a crer” na hipnose. Também é possível vincular esses dois
procedimentos. Deixa-se a pessoa sentar, ergue-se um dedo diante de seus olhos,
ordenando-lhe que o encare fixamente, e então diz-se a ela: “Você está-se
sentindo cansada. Seus olhos já estão fechando, você não consegue mantê-los
abertos. Seus membros estão pesados, você já não consegue movimentá-los. Está
adormecendo…” etc. Observe-se ainda que todos esses procedimentos têm em comum
a fixidez da atenção; nos primeiros a ser mencionados, trata-se de fatigar a
atenção mediante estímulos sensoriais fracos e uniformes. Ainda não está
satisfatoriamente esclarecido o modo como a mera conversa provoca exatamente o
mesmo estado que os demais procedimentos. Os hipnotizadores habilidosos afirmam
que a partir desses meios consegue-se uma clara modificação hipnótica em cerca
de oitenta por cento dos sujeitos experimentais. Mas não há nenhum indício pelo
qual se possa saber de antemão quais as pessoas hipnotizáveis e quais as que
não o são. O estado patológico de modo algum faz parte das precondições da
hipnose: as pessoas normais costumam deixar-se hipnotizar com especial
facilidade, enquanto os neuróticos são muito mais difíceis de hipnotizar e os
doentes mentais são completamente rebeldes. O estado hipnótico tem muitas
gradações diferentes; no grau mais leve, o hipnotizado sente apenas algo como
uma ligeira insensibilidade, enquanto o grau mais elevado e marcado por
curiosidades especiais é chamado de sonambulismo, por sua semelhança com
o fenômeno natural observável de andar durante o sono. Mas a hipnose de modo
algum é como nosso sono noturno ou como o sono provocado por soporíferos. Nela
ocorrem mudanças e se conservam funções anímicas que faltam ao sono normal.
Muitos
dos fenômenos da hipnose, como as alterações da atividade muscular, têm apenas
um interesse científico. Mas a marca mais significativa da hipnose, e para nós
a mais importante, reside na atitude do hipnotizado perante seu hipnotizador.
Enquanto o hipnotizado comporta-se perante o mundo externo como se estivesse
adormecido, com todos os seus sentidos desviados dele, está desperto
para a pessoa que o hipnotizou: vê e ouve apenas a ela, compreende-a e lhe dá
respostas. Esse fenômeno, chamado de rapport na hipnose, encontra um
paralelo na maneira como algumas pessoas dormem - por exemplo, a mãe que está
amamentando um filho. Trata-se de algo tão curioso que há de facilitar nosso
entendimento da relação entre o hipnotizado e o hipnotizador.
Mas o
fato de o mundo do hipnotizado estar como que restrito ao hipnotizador não é
tudo. Ocorre ainda que o primeiro torna-se completamente dócil perante o
segundo, ficando obediente e crédulo, e de um modo quase ilimitado na
hipnose profunda. Na maneira como se dão essa obediência e essa credulidade
mostra-se então, como característica do estado de hipnose, que a influência da
vida anímica sobre o físico aumenta extraordinariamente no hipnotizado. Se o
hipnotizador diz “Você não pode movimentar seu braço”, o braço cai inerte; é
óbvio que o hipnotizado se empenha com todas as suas forças, mas não consegue
movê-lo. Se o hipnotizador diz “Seu braço está se mexendo sozinho, e você não
consegue detê-lo”, lá está o braço a se movimentar, e vemos o hipnotizado fazer
esforços inúteis para mantê-lo quieto. A representação que o hipnotizador
forneceu ao hipnotizado através da palavra provocou nele precisamente a relação
anímico-física correspondente ao conteúdo da representação. Existe nisso, de um
lado, a obediência, mas de outro há um aumento da influência física de uma
idéia. A palavra, nesse caso, volta realmente a tornar-se magia.
O mesmo
se dá no campo das percepções sensoriais. Diz o hipnotizador: “Você está vendo
uma cobra, está cheirando uma rosa, está ouvindo a mais linda música”, e o
hipnotizado vê, cheira e ouve o que dele exige a representação que lhe é
fornecida. E como sabemos que ele realmente tem essas percepções? Poder-se-ia
pensar que está apenas fingindo, mas não há razão alguma para duvidar disso, já
que ele se comporta exatamente como se de fato as tivesse: expressa os afetos
pertinentes a elas e pode também, em algumas circunstâncias, descrever depois
da hipnose suas percepções e vivências imaginárias. Percebe-se então que ele
viu e ouviu tal como vemos e ouvimos nos sonhos, ou seja, que alucinou.
Obviamente, é tão crédulo perante o hipnotizador que está convencido de
que devia haver uma cobra a ser vista quando o hipnotizador lhe anunciou isso;
e essa convicção teve um efeito tão intenso no corpo que ele realmente viu a
cobra, coisa que, aliás, pode acontecer também com pessoas que não estão
hipnotizadas.
Observe-se,
de passagem, que uma credulidade como a que é demonstrada pelo hipnotizado
perante o hipnotizador, fora da hipnose e na vida real, só é encontrada nos
filhos perante os pais amados, e que uma adaptação semelhante da própria
vida anímica à de outra pessoa, com uma submissão análoga, encontra um paralelo
único, mas integral, em algumas relações amorosas plenas de dedicação. A
combinação da estima exclusiva com a obediência crédula costuma estar entre as
marcas distintivas do amor.
Há ainda
alguns pontos a relatar sobre o estado hipnótico. A fala do hipnotizador, que
exibe os efeitos mágicos anteriormente descritos, é chamada de sugestão,
e acostumamo-nos a empregar esse termo também quando há, em princípio,
meramente a intenção de provocar um efeito semelhante. Tal como o movimento e a
sensação, todas as outras atividades anímicas do hipnotizado obedecem a essa
sugestão, ao passo que ele não costuma tomar nenhuma iniciativa
espontaneamente. Pode-se explorar a obediência hipnótica para fazer uma série
de experimentos sumamente curiosos, que proporcionam um profundo conhecimento
do mecanismo anímico e produzem no observador uma convicção inextirpável do
insuspeitado poder do anímico sobre o físico. Tal como o hipnotizado pode ser
forçado a ver o que não está ali, pode também ser proibido de ver algo que está
presente e que pretende impor-se a seus sentidos, como, por exemplo,
determinada pessoa (a chamada “alucinação negativa”); essa pessoa descobre
então ser impossível fazer-se notar pelo hipnotizado através de qualquer tipo
de estimulação; é tratada por ele “como se fosse feita de vento”. Pode-se
sugerir ao hipnotizado que pratique certa acão determinado tempo depois de
despertar da hipnose (a “sugestão pós-hipnótica’’), e ele observa esse prazo e
executa a ação sugerida em seu estado desperto, sem que possa fornecer nenhuma
razão para ela. Indagado sobre por que fez o que fez, ou se referirá a um
impulso obscuro a que não pôde resistir, ou inventará algum pretexto óbvio e
precário, sem se lembrar da verdadeira razão - a sugestão que lhe foi feita.
O
despertar da hipnose decorre sem esforço da intervenção imperiosa do
hipnotizador: “Acorde!” Depois da hipnose mais profunda, não há lembrança de
nada do que nela foi vivenciado sob a influência do hipnotizador. Esse trecho
da vida anímica [do sujeito] fica como que isolado do restante. Outros
hipnotizados guardam uma lembrança de caráter onírico, e outros ainda
lembram-se de tudo, mas relatam ter estado sob uma compulsão psíquica à qual
não puderam opor nenhuma resistência.
É
impossível exagerar o ganho científico trazido aos médicos e psicólogos pela
familiarização com os fatos do hipnotismo. Entretanto, para avaliar a
importância prática desses novos conhecimentos, é preciso colocar o médico no
lugar do hipnotizador e o doente no lugar do hipnotizado. Acaso a hipnose não
parece apta a satisfazer todas as necessidades do médico, na medida em que ele
pretende proceder perante o doente como “médico da alma”? A hipnose dota o
médico de uma autoridade da qual os sacerdotes ou os milagreiros provavelmente
nunca foram possuidores, pois concentra todos os interesses anímicos do
hipnotizado na pessoa do médico; abole no doente a arbitrariedade da vida
anímica, na qual identificamos um entrave obstinado à exteriorização da
influência anímica no corpo; em princípio, produz um aumento do domínio do
anímico sobre o físico, aumento esse que só se costuma observar sob o efeito
dos mais intensos afetos; e ainda, graças à possibilidade de que as instruções
dadas ao doente durante a hipnose só se manifestem posteriormente, no estado normal
(sugestão pós-hipnótica), ela coloca nas mãos do médico o meio de utilizar o
grande poder de que desfruta durante a hipnose para promover alterações no
doente quando desperto. Surgiria assim um padrão simples para o tipo de cura
mediante tratamento anímico: o médico poria o doente em estado hipnótico,
far-lhe-ia a sugestão, modificada conforme as circunstâncias, de que ele não
estava doente, ou de que não sentiria mais seus sintomas ao acordar, depois o
acordaria e confiaria na expectativa de que a sugestão cumprisse seu dever
contra a doença. E se uma única aplicação desse procedimento não fosse
suficiente, ele seria repetido tantas vezes quantas fossem necessárias.
Uma só
consideração poderia impedir o médico e o paciente de empregarem um
procedimento terapêutico tão promissor, a saber, caso se revelasse que o
benefício da hipnose seria contrabalançado por algum prejuízo - por exemplo, se
ela deixasse um distúrbio ou fraqueza permanentes na vida anímica do
hipnotizado. Mas as experiências feitas até agora já bastam para afastar essas
dúvidas; as hipnoses isoladas são totalmente inofensivas, e não causam dano
algum mesmo sendo freqüentemente repetidas. Há que destacar apenas um ponto:
quando as circunstâncias tornam necessário o uso prolongado do hipnotismo,
estabelece-se um hábito de hipnose [no doente] e uma dependência do médico
hipnotizador, o que não pode fazer parte do propósito do procedimento
terapêutico.
O
tratamento hipnótico realmente significa hoje uma grande ampliação do alcance
da medicina e, por conseguinte, um avanço na arte de curar. Pode-se aconselhar
cada enfermo a entregar-se a ele em confiança, desde que seja praticado por um
médico experiente e digno de crédito. Entretanto, é preciso servir-se da
hipnose de um modo diferente do que é hoje habitual. Comumente, só se recorre a
esse tipo de tratamento depois que todos os outros recursos fracassam, quando o
doente já está desanimado e de má vontade. Tem então de abandonar seu médico,
que não sabe hipnotizar ou não emprega a hipnose, e voltar-se para um médico
estranho, que em geral não usa ou não pode usar nada além do hipnotismo. Ambas
as situações são desvantajosas para o enfermo. O próprio médico da família deve
conhecer a fundo o método hipnótico de terapia e aplicá-lo desde o início, tão
logo considere o caso e a pessoa apropriados para isso. Sempre que considerada
útil, a hipnose deve estar em posição equivalente a dos outros procedimentos
terapêuticos, e não ser encarada como um último recurso ou mesmo uma queda da
cientificidade para o embuste. É que o hipnotismo é útil não apenas em todos os
estados de nervosismo e nos distúrbios devidos à “imaginação”, mas também para
romper hábitos patológicos (como alcoolismo, vício em morfina, aberrações
sexuais) e ainda em muitas doenças orgânicas, inclusive inflamatórias, nas
quais se tem uma perspectiva, mesmo persistindo o distúrbio subjacente, de
eliminar os sintomas incômodos para o enfermo, tais como as dores, inibições do
movimento etc. A escolha dos casos para aplicação do procedimento hipnótico
depende quase sempre da decisão do médico.
Mas
agora é chegado o momento de desfazer a impressão de que, com o recurso da
hipnose, teria despontado para o médico uma época mais cômoda de taumaturgia.
Ainda e preciso levar em conta diversas circunstâncias aptas a reduzir
consideravelmente nossas pretensões em relação à terapia hipnótica e a
restituir a sua justa medida as esperanças talvez despertadas nos doentes.
Antes de mais nada, verifica-se que uma premissa básica é insustentável, qual
seja, a de que se conseguiria, através da hipnose, retirar dos doentes a
arbitrariedade que é perturbadora em sua conduta anímica. Eles a conservam e já
a evidenciam em sua postura perante a tentativa de hipnotizá-los. Quando se
disse acima que cerca de oitenta por cento das pessoas são hipnotizáveis, esse
número elevado só pôde ser atingido computando-se entre os casos positivos
todos aqueles que mostravam algum indício de serem influenciáveis. Na
realidade, as hipnoses profundas e com plena docilidade, como as escolhidas
para servir de modelo nas descrições, são efetivamente raras ou, em todo caso,
não tão freqüentes quanto seria desejável no interesse da cura. Mas a impressão
causada por esse fato pode novamente atenuar-se, na medida em que acentuemos o
fato de que a profundidade da hipnose e a docilidade diante das sugestões não
caminham pari passu, de modo que, muitas vezes, ainda é possível
observar um bom efeito da sugestão onde há apenas uma ligeira insensibilidade
hipnótica. Entretanto, mesmo considerando isoladamente a docilidade hipnótica
como o aspecto mais essencial desse estado, convém admitir que cada pessoa
mostra sua particularidade nesse aspecto, deixando-se influenciar apenas até
determinado grau de docilidade e detendo-se aí. Isoladamente, portanto, as
pessoas mostram graus muito diferentes de adequação para a terapia hipnótica.
Se fosse possível descobrir um meio pelo qual todos esses graus particulares do
estado hipnótico pudessem ser intensificados até a hipnose completa, as
peculiaridades dos enfermos seriam novamente eliminadas, atingindo-se o ideal
do tratamento anímico. Mas esse progresso não foi obtido até agora; o grau de
docilidade com que a sugestão será recebida ainda depende muito mais do doente
que do médico, ou seja, reside, por sua vez, no arbítrio do enfermo.
Ainda
mais importante é um outro ponto de vista. Quando se descreve o resultado
sumamente notável da sugestão no estado hipnótico, esquece-se com muita
facilidade que aqui, como em todas as atividades anímicas, trata-se também de uma
proporção ou de uma relação de forças. Ao colocarmos uma pessoa sadia em
hipnose profunda e lhe ordenarmos que morda uma batata apresentada a ela como
uma pêra, ou se lhe dissermos que está vendo um conhecido e deve
cumprimentá-lo, será fácil constatar uma docilidade completa, pois não há no
hipnotizado nenhuma razão grave para que se oponha à sugestão. Mas diante de
outras ordens - por exemplo, ao exigirmos que uma moça muito pudica se dispa,
ou que um homem honesto se apodere de um objeto valioso furtando-o -, é
possível observar no hipnotizado uma resistência que pode ir a ponto de ele se
recusar a obedecer à sugestão. Com isso aprendemos que, mesmo na melhor das
hipnoses, a sugestão não exerce um poder ilimitado, mas apenas um poder com
determinada força. Pequenos sacrifícios o hipnotizado pode fazer, mas diante
dos grandes ele se detém, exatamente como quando está desperto. Assim, quando
lidamos com um doente e o impelimos, através da sugestão, a renunciar a sua
doença, notamos que isso significa para ele um grande sacrifício, e não uma
pequena oferenda. O poder da sugestão confronta-se aqui com a força que criou e
mantém os fenômenos patológicos, e a experiência mostra que esta é de uma ordem
de grandeza muito diferente da que caracteriza a influência hipnótica. O mesmo
doente que se resigna com perfeita docilidade em qualquer situação onírica que
lhe seja sugerida, desde que não seja francamente escandalosa, pode ficar
completamente rebelde a uma sugestão que o prive, digamos, de sua paralisia
imaginária. Acresce ainda que, na clínica, justamente os pacientes neuróticos,
em sua maioria, e que são difíceis de hipnotizar, de modo que a luta contra as
forças poderosas com que a doença se consolidou na vida anímica tem de ser
travada, não com a totalidade da influência hipnótica, mas apenas com um
fragmento dela.
A
sugestão, portanto, não constitui de antemão a certeza de uma vitória sobre a
doença tão logo se consiga a hipnose, ou mesmo a hipnose profunda. Falta ainda
travar uma outra batalha, cujo desfecho e amiúde muito incerto. Por isso é que
uma única hipnose não surte nenhum efeito contra as perturbações graves de
origem anímica. Com a repetição, porém, a hipnose perde a impressão de milagre
que o doente talvez tenha concebido. Sucedendo-se as hipnoses, e possível
conseguir que se torne cada vez mais clara a influência que a princípio faltou
sobre a doença, até que se alcance um resultado satisfatório. Mas tal
tratamento hipnótico pode decorrer de maneira tão cansativa e morosa quanto
qualquer outra terapia.
Outro
aspecto que trai a relativa fraqueza da sugestão, comparada às doenças a ser
combatidas, é que de fato ela traz a suspensão dos sintomas patológicos, mas
apenas por um curto período. Ao término desse intervalo, eles retornam e têm de
ser novamente eliminados pela hipnose e sugestão renovadas. Repetindo-se essa
evolução com freqüência suficiente, é comum esgotar-se a paciência tanto do
enfermo quanto do médico, tendo por conseqüência o abandono do tratamento
hipnótico. São também esses os casos em que costumam instalar-se no doente a
dependência do médico e uma espécie de vício na hipnose.
É bom
que os doentes conheçam essas deficiências do método de terapia hipnótico, bem
como as possibilidades de desapontamento em sua utilização. O poder curativo da
sugestão hipnótica é algo de factual e dispensa recomendações exageradas. Por
outro lado, é fácil compreender que os médicos, a quem o tratamento anímico por
hipnose prometera muito mais do que pôde cumprir, não se cansem de buscar
outros procedimentos que possibilitem exercer uma influência mais profunda ou
menos incerta sobre a psique do doente. Podemos antecipar a expectativa segura
de que o moderno tratamento anímico sistemático, que representa uma
revivescência inteiramente nova de antigos métodos terapêuticos, venha a
colocar nas mãos dos médicos armas ainda muito mais fortes para lutar contra a
doença. Um discernimento mais profundo dos processos da vida anímica, cujas
origens primordiais repousam justamente em vivências hipnóticas, há de apontar
os meios e modos de chegarmos a isso.
NOTA DO EDITOR INGLÊS
PSYCHISCHE
BEHANDLUNG (SEELENBEHANDLUNG)
(a) EDIÇÕES EM ALEMÃO:
1890 Em Die Gesundheit, org. de
R. Kossmann e J. Weiss, lª ed., 1, pp. 368-384, Stuttgart, Berlim e Leipzig:
Union Deutsche Verlagsgesellschaft. (1900, 2ª ed.; 1905, 3ª ed.)
1937 Z. Psychoan. Päd., 11, pp. 133-147.
1942 G.W., 5, pp. 289-315.
(b) TRADUÇÃO EM INGLÊS:
“Psychical
(or Mental) Treatment”
Esta
tradução [inglesa], de autoria de James Strachey, surge agora pela primeira vez
e, ao que se saiba, é a primeira a ser publicada.
Die
Gesundheit foi uma obra
coletiva de caráter semipopular sobre a medicina, em dois volumes, tendo um
grande número de colaboradores. Numa carta enviada a Pfister em 17 de junho de
1910 (1963a), diz Freud: “O livro que estou colocando nas mãos de meus
filhos é uma obra popular de medicina, Die Gesundheit, para a qual eu
mesmo contribuí. É bem seco e factual.” O texto foi reimpresso sem alterações
na segunda e terceira edições do trabalho, ocupando no primeiro volume as
mesmas páginas em que constara na primeira edição.
Até
1966, afirmava-se invariavelmente que esse artigo datava de 1905 (recebera na
Ed. Standard a data de 1905b.), uma vez que só se examinara a
edição de 1905 de Die Gesundheit. Sabe-se agora que, na verdade, essa
fora a terceira edição, embora os organizadores do trabalho tenham deixado de
fornecer tal indicação. Cf. algumas informações e comentários adicionais sobre
essa descoberta na introdução do editor [inglês] ao grupo de ensaios de Freud
sobre o hipnotismo e a sugestão, ao qual pertence mais apropriadamente o
presente artigo (ver em [1] e [2]).
PERSONAGENS
PSICOPÁTICOS NO PALCO (1942 [1905 ou 1906])
Se a
finalidade do drama, como se supõe desde os tempos de Aristóteles, consiste em
despertar “terror e comiseração”, em produzir uma “purgação dos afetos”,
pode-se descrever esse propósito de maneira bem mais detalhada dizendo que se
trata de abrir fontes de prazer ou gozo em nossa vida afetiva, assim como, no
trabalho intelectual, o chiste ou o cômico abrem fontes similares, muitas das
quais essa atividade tornara inacessíveis. Para tal finalidade, o fator
primordial é, indubitavelmente, o desabafo dos afetos do espectador; o
gozo daí resultante corresponde, de um lado, ao alívio proporcionado por uma
descarga ampla, e de outro, sem dúvida, à excitação sexual concomitante que,
como se pode supor, aparece como um subproduto todas as vezes que um afeto é
despertado, e confere ao homem o tão desejado sentimento de uma tensão
crescente que eleva seu nível psíquico. Ser espectador participante do jogo
dramático significa, para o adulto, o que representa o brincar para a criança,
que assim gratifica suas expectativas hesitantes de se igualar aos adultos. O
espectador vivencia muito pouco, sentindo-se como “um pobre coitado com quem
não acontece nada”; faz tempo que amorteceu seu orgulho, que situava seu eu no
centro da fábrica do universo, ou, melhor dizendo, viu-se obrigado a
deslocá-lo: anseia por sentir, agir e criar tudo a seu bel-prazer - em suma,
por ser um herói. E o autor-ator do drama lhe possibilita isso, permitindo-lhe
a identificação com um herói. Ao fazê-lo, poupa-o também de algo, pois o
espectador sabe que essa promoção de sua pessoa ao heroísmo seria impossível
sem dores, sofrimentos e graves tribulações, que quase anulariam o gozo. Ele
sabe perfeitamente que tem apenas uma vida, e que poderia perdê-la num único
desses combates contra a adversidade. Por conseguinte, seu gozo tem por
premissa a ilusão, ou seja, seu sofrimento é mitigado pela certeza de que, em
primeiro lugar, é um outro que está ali atuando e sofrendo no palco, e em
segundo, trata-se apenas de um jogo teatral, que não ameaça sua segurança
pessoal com nenhum perigo. Nessas circunstâncias, ele pode deleitar-se como um
“grande homem”, entregar-se sem temor a seus impulsos sufocados, como a ânsia
de liberdade nos âmbitos religioso, político, social e sexual, e desabafar em
todos os sentidos em cada uma das cenas grandiosas da vida representada no
palco.
Mas
essas precondições de gozo são comuns a diversas outras formas de criação
literária. A poesia lírica presta-se sobretudo a dar vazão a uma sensibilidade
intensa e variada, como acontece também com a dança; a poesia épica visa
principalmente a possibilitar o gozo do grande personagem heróico em seu
momento de triunfo, enquanto o drama explora a fundo as possibilidades
afetivas, modela em gozo até os próprios presságios de infortúnio e por isso
retrata o herói derrotado em sua luta, com uma satisfação quase masoquista.
Poder-se-ia caracterizar o drama por essa relação com o sofrimento e o
infortúnio, quer apenas a inquietação seja despertada e depois aplacada,
como na comédia, quer o sofrimento realmente se concretize, como na tragédia. O
fato de o drama ter-se originado nos ritos sacrificiais do culto dos deuses
(cf. o bode do sacrifício e o bode expiatório) não pode deixar de relacionar-se
com esse sentido do drama; ele como que apazigua a revolta incipiente contra a
ordem divina do universo, que instaurou o sofrimento. Os heróis são, acima de
tudo, rebeldes que se voltaram contra Deus ou contra alguma divindade, e o
sentimento de infortúnio que assalta o mais fraco diante da potência divina
está fadado a gerar prazer, tanto pela satisfação masoquista quanto pelo gozo
direto de um personagem cuja grandeza, apesar de tudo, é destacada. Eis aí,
portanto, o prometeísmo humano, só que apequenado pela disposição de se deixar
acalmar temporariamente por uma satisfação momentânea.
São tema
do drama, portanto, todos os tipos de sofrimento, e deles o espectador tem que
extrair algum prazer; daí resulta a primeira condição dessa forma de criação
artística: ela não deve causar sofrimento ao espectador, mas saber compensar a
comiseração que desperta mediante as satisfações que daí possam ser extraídas -
uma regra que os autores modernos têm infringido com particular freqüência. Mas
esse sofrimento restringe-se desde logo ao anímico, pois o sofrimento físico
não é desejado por ninguém que saiba quão depressa a sensibilidade física assim
alterada põe termo a todo o gozo da psique. Quem está enfermo tem apenas um
desejo: sarar, livrar-se de seu estado; que venham o médico e os medicamentos,
para que se elimine a inibição do jogo da fantasia, que nos mimou a ponto de
fazer-nos extrair um gozo até de nosso próprio sofrimento. Se o espectador se
coloca no lugar de alguém que sofre de um mal físico, não encontra aí nenhum gozo
e nenhuma produtividade psíquica. Por isso, o indivíduo corporalmente enfermo
só pode figurar no palco como um requisito dramático, e não como herói, a menos
que determinados aspectos físicos de seu estado possibilitem o trabalho
psíquico - por exemplo, o desamparo do doente em Filoctetes ou a
desesperança dos enfermos nas peças que giram em tomo dos tísicos.
Mas as
pessoas têm conhecimento do sofrimento anímico principalmente em conexão com as
circunstancias que o provocam; por isso o drama precisa de uma ação que
engendre o sofrimento, e começa por introduzir-nos nela. Não passam de exceções
aparentes as peças que nos apresentam sofrimentos anímicos já estabelecidos,
como Ajax ou Filoctetes; é que no drama grego, por ser seu tema
muito conhecido, a cortina sobe como que no meio da peça. É fácil expor
exaustivamente as condições que regem a ação mencionada: ela tem que pôr em
jogo um conflito e incluir um esforço da vontade e uma situação adversa. A luta
contra os deuses representou o primeiro e mais grandioso cumprimento dessa
condição. Já dissemos que essa é uma tragédia de rebelião, e nela o dramaturgo
e a platéia tomam o partido dos rebeldes. Depois, à medida que se vai descrendo
da divindade, mais importante se torna a ordenação humana, que o
discernimento crescente passa a responsabilizar pelo sofrimento. Assim, a luta
seguinte do herói é contra a sociedade dos homens: temos aí a tragédia
social. Outro cumprimento [da precondição mencionada] encontra-se na luta
entre os seres humanos: é a tragédia de caracteres; que exibe todas as
excitações do agon [, conflito] e se desenrola com mais proveito
entre personalidades destacadas, libertas da servidão das instituições humanas
- ou seja, ela tem de apresentar dois heróis. Decerto são admissíveis as
fusões dessas duas últimas categorias, exibindo a luta do herói contra
instituições encarnadas em personagens fortes. Falta à tragédia de caracteres,
em sua forma pura, a rebeldia como fonte de gozo, mas esta ressurge, sem menor
força do que nas tragédias históricas dos clássicos gregos, nos dramas sociais
- por exemplo, em Ibsen.
Se o
drama religioso, o drama social e o drama de caracteres
diferem essencialmente pelo terreno em que se desenrola a ação geradora do
sofrimento, já agora o drama nos leva para um novo terreno em que se torna
totalmente psicológico. Aqui, é na própria alma do herói que se trava a
luta geradora do sofrimento: são os impulsos desencontrados que se combatem,
numa luta que não culmina na derrota do herói, mas na extinção de um de seus impulsos:
tem que terminar na renúncia a um deles. Claro está que são possíveis todas as
combinações entre essa precondição e as que regem a tragédia social e a de
caracteres; assim, as próprias instituições podem ser a causa do conflito
interno. É aí que entram as tragédias do amor, pois o sufocamento do amor pela
cultura social, pelas convenções humanas, ou o conflito entre “amor e dever”,
tão notório na ópera, são ponto de partida de uma variedade quase infinita de
situações de conflito - tão infinita quanto os devaneios eróticos dos seres
humanos.
Mas a
série de possibilidades se amplia, e o drama psicológico se converte em
psicopatológico, quando a fonte de sofrimento de que deveríamos participar e
extrair prazer já não é o conflito entre duas moções dotadas de consciência
quase igual, mas entre um impulso consciente e uma moção recalcada. Aqui, a
condição do gozo é que o espectador também seja neurótico. É que só ao
neurótico pode advir prazer, e não simples repugnância, da revelação e do
reconhecimento mais ou menos consciente da moção recalcada; no não-neurótico,
esse reconhecimento deparará apenas com uma repugnância e o predisporá
prontamente a repetir o ato de recalcamento [antes aplicado à moção]. É que,
nessas pessoas, esse ato se fez com êxito, e um único dispêndio de recalcamento
bastou para neutralizar completamente a moção recalcada. No neurótico, em
contrapartida, o recalcamento está sempre à beira do fracasso; é instável e
requer um gasto constantemente renovado - justamente o gasto que lhe é poupado
pelo reconhecimento da moção. Somente no neurótico persiste uma luta como a que
pode ser tema desse tipo de drama; nem mesmo nele, porém, o dramaturgo
provocará apenas um gozo pela liberação, mas despertará também uma resistência.
O
primeiro desses dramas modernos é Hamlet. Seu tema é a maneira como um
homem até então normal torna-se neurótico devido à natureza particular da
tarefa com que se defronta, ou seja, um homem em quem uma moção até ali
recalcada com êxito esforça-se por se impor. Hamlet distingue-se por
três características que parecem importantes para a questão de que estamos
tratando: (1) O herói não é um psicopata, transformando-se em tal apenas no
decorrer da ação. (2) A moção recalcada figura entre as que são igualmente
recalcadas em todos nós; seu recalcamento faz parte das bases de nosso
desenvolvimento pessoal, e é justamente ele que a situação [da peça] vem
contestar. Essas duas características facilitam que nos reconheçamos no herói;
somos susceptíveis ao mesmo conflito que ele, pois “quem não perde a razão em
certas circunstâncias não tem nenhuma razão a perder”. (3) Mas parece
precondição desse modelo artístico que a moção que luta por chegar à
consciência, por mais notória que se revele, não seja chamada por seu próprio
nome; assim, o processo consuma-se de novo no espectador, com sua atenção
distraída, e ele se torna presa de sentimentos, em vez de se aperceber do que
está acontecendo. Poupa-se desse modo, sem dúvida, uma certa dose de
resistência, tal como a que encontramos no trabalho analítico, onde os retornos
do recalcado, por provocarem uma resistência menor, chegam à consciência, ao
passo que o próprio recalcado não consegue fazê-lo. Em Hamlet,de fato, o
conflito está tão oculto que coube a mim desvendá-lo.
É possível
que, por se desconsiderarem essas três precondições, muitos outros personagens
psicopáticos sejam tão sem serventia no palco quanto o são na vida real. De
fato, não podemos penetrar no conflito do neurótico quando este já o traz
plenamente firmado dentro de si. Inversamente, quando reconhecemos esse
conflito, esquecemos que se trata de um doente, da mesma forma que ele, ao
tomar conhecimento de seu conflito, deixa de ser doente. A tarefa do autor
seria colocar-nos nessa mesma doença, e a melhor maneira de consegui-lo é fazer
com que sigamos o curso de seu desenvolvimento junto com aquele que adoece.
Isso é particularmente necessário nos casos em que o recalcamento não está já
dentro de nós, mas precisa primeiro ser instaurado, isso significa dar um passo
além de Hamlet na utilização da neurose no palco. Ao sermos confrontados
com uma neurose desconhecida e acabada, tendemosa chamar o médico (como na vida
real) e a julgar que o personagem é inadequado para uma encenação teatral.
Esse
erro parece ocorrer em Die Andere, de Bahr, além de um outro implícito
no problema da peça: não nos é possível ter a convicção solidária de que
somente determinada pessoa tem o privilégio de satisfazer a moça plenamente.
Por isso não podemos colocar-nos no lugar dela. E a isso vem acrescentar-se um
terceiro defeito: nada nos é deixado para descobrirmos por nós mesmos, e toda a
nossa resistência é mobilizada contra esse condicionamento prévio do amor, que
nos é inaceitável. Dentre as três condições formais que vimos discutindo, a
mais importante me parece ser o desvio da atenção.
Talvez
se possa dizer, de modo geral, que a labilidade neurótica do público e a
habilidade do autor de evitar as resistências e propocionar um pré-prazer sejam
o único determinante dos limites impostos ao emprego de personagens anormais
[no palco].
NOTA DO EDITOR INGLÊS
PSYCHOPATHISCHE
PERSONEN AUF DER BÜHNE
(a) EDIÇÕES EM ALEMÃO:
(1905 ou
1906 Data provável da redação.)
1962 Neue
Rundschau, 73, pp. 53-57.
(b) TRADUÇÃO PARA O INGLÊS:
“Psychophathic Characters on the Stage”
1942 Psychoanal. Quart., 11 (4),
outubro, pp. 459-464. (Trat. de H.A. Bunker.)
Esta é
uma nova tradução [inglesa] de James Strachey.
Num
artigo publicado no Psychoanal. Quart., 11 (1942), p. 465, o Dr. Max
Graf relata que este ensaio foi redigido por Freud em 1904 e entregue a ele
pelo autor. Nunca foi publicado pelo próprio Freud. Entretanto, deve haver um
erro cm relação a essa data (o manuscrito não está datado), já que a peça Die
Andere, de Hermann Bahr, discutida na p. 326, foi encenada pela primeira
vez (em Munique e Leipzig) no início de novembro de 1905, tendo sua primeira
apresentação em Viena no dia 25 do mesmo mês. Só foi publicada sob a forma de
livro em 1906. É provável, portanto, que o presente ensaio tenha sido escrito
no final de 1905 ou início de 1906. Somos gratos ao Dr. Raymond Gosselin,
editor do Psychoanalytic Quarterly, por fornecer-nos uma cópia
fotostática do manuscrito original de Freud. Em alguns pontos, a grafia é
difícil de decifrar, o que explica algumas divergências entre as duas traduções
inglesas.