Freud - Obras Completas VII (parte 2)

Continuação da parte 1




RESUMO


É chegado o momento de ensaiarmos um resumo. Partimos das aberrações da pulsão sexual com respeito a seu objeto e seu alvo, e deparamos com a questão de saber se elas provêm de uma disposição inata ou são adquiridas como resultado das influências da vida. A resposta a essa pergunta nos veio da compreensão, mediante a investigação psicanalítica, das condições da pulsão sexual nos psiconeuróticos, um grupo humano numeroso que não fica longe dos sadios. Assim, descobrimos que, nessas pessoas, a inclinação para todas as perversões é demonstrável na qualidade de forças inconscientes e se denuncia como formadora de sintomas, e pudemos dizer que a neurose é como que o negativo da perversões. Diante da ampla disseminação das tendências perversas, agora reconhecidas, fomos impelidos ao ponto de vista de que a disposição para as perversões é a disposição originária universal da pulsão sexual humana, e de que a partir dela, em conseqüência de modificações orgânicas e inibições psíquicas no decorrer da maturação, desenvolve-se o comportamento sexual normal. Alimentamos a esperança de poder apontar na infância essa disposição originária; entre as forças que restringem a orientação da pulsão sexual destacamos a vergonha, o asco, a compaixão e as construções sociais da moral e da autoridade. Assim, tivemos de ver em cada aberração fixa da vida sexual normal um fragmento de inibição do desenvolvimento e infantilismo. Embora tenha sido necessário situar em primeiro plano a importância das variações da disposição originária, tivemos de supor entre elas e as influências da vida uma relação de cooperação, e não de antagonismo. Por outro lado, já que a disposição originária é necessariamente complexa, pareceu-nos que a própria pulsão sexual seria algo composto de diversos fatores e que, nas perversões, como que se desfaria em seus componentes. Com isso, as perversões se revelaram, de um lado, como inibições do desenvolvimento normal, e de outro, como dissociações dele. Essas duas concepções foram reunidas na hipótese de que a pulsão sexual do adulto nasce mediante a conjugação de diversas moções da vida infantil numa unidade, numa aspiração com um alvo único.

Juntamos a isso o esclarecimento da preponderância das inclinações perversas nos psiconeuróticos, na medida em que a reconhecemos como o enchimento colateral de canais secundários em função do bloqueio do leito principal [da corrente sexual] pelo “recalcamento”, e passamos então ao exame da vida sexual na infância. Pareceu-nos lamentável que se negasse a existência da pulsão sexual na infância e que as manifestações sexuais não raro observadas nas crianças fossem descritas como acontecimentos que fogem à regra. Pareceu-nos, ao contrário, que a criança traz consigo ao mundo germes de atividade sexual e que, já ao se alimentar, goza de uma satisfação sexual que então busca reiteradamente proporcionar-se através da conhecida atividade de “chuchar”. Todavia, a atividade sexual da criança não se desenvolve no mesmo passo que as demais funções, mas sim, após um breve período de florescência entre os dois e os cinco anos, entra no chamado período de latência. Neste, a produção de excitação sexual de modo algum é suspensa, mas continua e oferece uma provisão de energia que é empregada, em sua maior parte, para outras finalidades que não as sexuais, ou seja, de um lado, para contribuir com os componentes sexuais para os sentimentos sociais, e de outro (através do relacionamento e da formação reativa), para construir as barreiras posteriores contra a sexualidade. Assim se construiriam na infância, à custa de grande parte das moções sexuais perversas e com a ajuda da educação, as forças destinadas a manter a pulsão sexual em certos rumos. Outra parte das moções sexuais infantis escapa a esses empregos e consegue expressar-se como atividade sexual. Pudemos então verificar que a excitação sexual da criança provém de uma multiplicidade de fontes. A satisfação surge, acima de tudo, mediante a excitação sensorial apropriada das chamadas zonas erógenas, e provavelmente podem funcionar como tal qualquer ponto da pele e qualquer órgão dos sentidos - provavelmente qualquer órgão -, embora existam certas zonas erógenas destacadas cuja excitação estaria assegurada, desde o começo, por certos dispositivos orgânicos. Além disso, a excitação sexual parece surgir como um subproduto, por assim dizer, de um grande número de processos que ocorrem no organismo, tão logo eles alcançam certa intensidade, e muito especialmente, de todas as comoções mais fortes, ainda que de natureza penosa. As excitações de todas essas fontes ainda não estão conjugadas, cada qual seguindo separadamente seu alvo, que é meramente a obtenção de certo prazer. Na infância, portanto, a pulsão sexual não está centrada e é, a princípio, desprovida de objeto, ou seja, auto-erótica.

Ainda durante a infância começa a fazer-se notar a zona erógena da genitália, seja porque, como qualquer outra zona erógena, ela produz satisfação mediante a estimulação sensorial apropriada, seja porque, de um modo não inteiramente inteligível, havendo uma satisfação proveniente de outras fontes, produz-se ao mesmo tempo uma excitação sexual que mantém uma relação particular com a zona genital. Temos de admitir com pesar que não se chegou a um esclarecimento suficiente das relações entre a satisfação sexual e a excitação sexual, como também entre a atividade da zona genital e a das demais fontes da sexualidade.

Pelo estudo dos distúrbios neuróticos, observamos que é possível identificar na vida sexual infantil, desde seus primórdios, os rudimentos de uma organização dos componentes sexuais da pulsão. Numa primeira fase, muito precoce, o erotismo oral fica em primeiro plano; uma segunda dessas organizações “pré-genitais” caracteriza-se pela predominância do sadismo e do erotismo anal; somente numa terceira fase (desenvolvida na criança apenas até a primazia do falo) é que a vida sexual passa a ser determinada pela contribuição das zonas genitais propriamente ditas.

Tivemos então de registrar, como uma de nossas mais surpreendentes descobertas, que essa eflorescência precoce da vida sexual infantil (dos dois aos cinco anos) também acarreta uma escolha objetal, com toda a riqueza das realizações anímicas que isso implica, de modo que a fase correspondente e ligada a ela, apesar da falta de síntese entre os componentes pulsionais isolados e da incerteza do alvo sexual, deve ser apreciada como uma importante precursora da posterior organização sexual definitiva.

A instauração bitemporal do desenvolvimento sexual nos seres humanos, ou seja, sua interrupção pelo período de latência, pareceu-nos digna de uma atenção especial. Ela se afigura como uma das condições da aptidão do homem para o desenvolvimento de uma cultura superior, mas também de sua tendência à neurose. Ao que saibamos, nada de análogo é demonstrável entre os parentes animais do homem. A origem dessa peculiaridade humana deveria ser buscada na proto-história da espécie.

Não pudemos dizer que medida de atividade sexual na infância poderia ainda ser descrita como normal, como não perniciosa para o desenvolvimento ulterior. O caráter dessas manifestações sexuais revelou-se predominantemente masturbatório. A experiência permitiu-nos ainda comprovar que as influências externas da sedução podem provocar rompimentos prematuros da latência e até a supressão dela, e que, nesse aspecto, a pulsão sexual da criança comprova ser, de fato, perverso-polimorfa; comprovamos ainda que tal atividade sexual prematura prejudica a educabilidade da criança.

Apesar das lacunas em nossos conhecimentos da vida sexual infantil, foi-nos então preciso fazer uma tentativa de estudar as transformações sobrevindas com a chegada da puberdade. Destacamos duas delas como decisivas: a subordinação de todas as outras fontes de excitação sexual ao primado das zonas genitais e o processo do encontro do objeto. Ambos já estão prefigurados na vida infantil. A primeira consuma-se pelo mecanismo de exploração do pré-prazer: os atos sexuais outrora autônomos, ligados ao prazer e à excitação, convertem-se em atos preparatórios do novo alvo sexual (a descarga dos produtos sexuais), cuja consecução, acompanhada de enorme prazer, põe termo à excitação sexual. Nesse aspecto, havíamos levado em conta a diferenciação dos seres sexuados em masculino e feminino e descobrimos que, no tornar-se mulher, faz-se necessário um novo recalcamento, que suprime parte da masculinidade infantil e prepara a mulher para a troca da zona genital dominante. Por fim, descobrimos que a escolha objetal é guiada pelos indícios infantis, renovados na puberdade, da inclinação sexual da criança pelos pais e por outras pessoas que cuidam dela, e que, desviada dessas pessoas pela barreira do incesto erigida nesse meio-tempo, orienta-se para outras que se assemelhem a elas. Cabe ainda acrescentar, por último, que durante o período de transição da puberdade os processos de desenvolvimento somático e psíquico prosseguem por algum tempo sem ligação entre si, até que a irrupção de uma intensa moção anímica de amor, levando à inervação dos genitais, produz a unidade da função amorosa exigida pela normalidade.

FATORES QUE PERTURBAM O DESENVOLVIMENTO

Cada passo nesse longo percurso de desenvolvimento pode transformar-se num ponto de fixação, cada ponto de articulação nessa complexa montagem pode ensejar a dissociação da pulsão sexual, como já discutimos em diversos exemplos. Resta-nos ainda fornecer um panorama dos diversos fatores internos e externos que perturbam o desenvolvimento, e indicar o lugar do mecanismo afetado pela perturbação proveniente deles. É claro que os fatores mencionados numa mesma série podem não ter o mesmo valor, e devemos estar preparados para encontrar dificuldades na devida avaliação de cada um deles.

CONSTITUIÇÃO E HEREDITARIEDADE

Em primeiro lugar, cabe mencionar aqui a diversidade inata da constituição sexual, em que provavelmente recai o peso principal, mas que, como é compreensível, só pode ser deduzida de suas manifestações posteriores e, mesmo assim, nem sempre com grande certeza. Concebemos essa diversidade como uma preponderância desta ou daquela das múltiplas fontes de excitação sexual, e cremos que tal diferença entre as disposições deve expressar-se de alguma maneira no resultado final, mesmo que este se mantenha dentro das fronteiras da normalidade. Sem dúvida é concebível que haja também variações na disposição originária que levem necessariamente, e sem a ajuda de outros fatores, à configuração de uma vida sexual anormal. Poder-se-ia descrevê-los como “degenerativos” e considerá-los como a expressão de uma deterioração hereditária. Nesse contexto, tenho um fato notável a relatar. Em mais da metade dos casos de histeria, neurose obsessiva etc. que tive em tratamento psicoterapêutico, pude demonstrar com certeza que o pai sofrera de sífilis antes do casamento, quer se tratasse de tabes ou paralisia progressiva, quer a doença luética fosse indicada de algum outro modo pela anamnese. Quero observar expressamente que as crianças posteriormente neuróticas não traziam em si nenhum sinal físico de sífilis hereditária, de modo que justamente sua constituição sexual anormal é que devia ser considerada como a última ramificação de sua herança sifilítica. Embora eu esteja longe de afirmar que a descendência de pais sifilíticos é a condição etiológica invariável ou imprescindível da constituição neuropática, não creio que a coincidência por mim observada seja acidental ou sem importância.

As condições hereditárias dos perversos positivos são menos conhecidas, pois eles sabem furtar-se à investigação. Ainda assim, há boas razões para supor que o que é válido para as neuroses também o seja para as perversões. E que não raro se encontram numa mesma família a perversão e a psiconeurose, distribuídas de tal modo entre os dois sexos que os membros masculinos, ou um deles, são perversos positivos, enquanto os membros femininos, em consonância com a tendência de seu sexo ao recalcamento, são perversos negativos, ou seja, histéricos - uma boa prova das relações essenciais por nós descobertas entre os dois distúrbios.

ELABORAÇÃO ULTERIOR

Por outro lado, não se pode defender o ponto de vista de que a conformação da vida sexual ficaria inequivocamente determinada com a instauração dos diversos componentes da constituição sexual. Ao contrário, o processo de determinação prossegue e surgem outras possibilidades, conforme as vicissitudes por que passam as correntes tributárias das sexualidades provenientes das diversas fontes. Obviamente, é essa elaboração ulterior que decide em termos definitivos, enquanto o que se poderia descrever como uma constituição idêntica pode levar a três desfechos diferentes:

[1] Quando todas as disposições se mantêm em sua proporção relativa, considerada anormal, e são reforçadas com o amadurecimento, o desfecho só pode ser uma vida sexual perversa. A análise dessas disposições constitucionais anormais ainda não foi devidamente empreendida, mas já conhecemos casos facilmente explicáveis mediante tais hipóteses. Os autores opinam, por exemplo (ver em [1]), que toda uma série de perversões por fixação teria como precondição necessária uma debilidade inata da pulsão sexual. Expressa nessa forma, tal colocação me parece insustentável, mas ela passa a fazer sentido quando se pensa numa debilidade constitucional de determinado fator da pulsão sexual, qual seja, a zona genital, zona esta que assume posteriormente a função de conjugar num todo cada uma das atividades sexuais isoladas, tendo por alvo a reprodução. [Quando a zona genital é fraca,] essa conjugação exigida na puberdade está fadada a fracassar, e o mais forte dentre os demais componentes da sexualidade impõe sua prática como uma perversão.

RECALCAMENTO

[2] Produz-se um desfecho diferente quando, no curso do desenvolvimento, alguns componentes que tinham força excessiva na disposição passam pelo processo de recalcamento, sobre o qual devemos insistir em que não é equivalente a uma supressão. Nesse caso, as excitações correspondentes continuam a ser produzidas como antes, mas são impedidas por um obstáculo psíquico de atingir seu alvo e empurradas para muitos outros caminhos, até que se consigam expressar como sintomas. O resultado pode aproximar-se de uma vida sexual normal - restrita, na maioria das vezes -, mas complementada pela doença psiconeurótica. São justamente esses os casos que se tornaram familiares para nós através da investigação psicanalítica dos neuróticos. A vida sexual dessas pessoas começa como a dos perversos, e toda uma parte de sua infância é ocupada por uma atividade sexual perversa, que ocasionalmente se estende para além da maturidade. Produz-se então, por causas internas - em geral antes da puberdade, mas vez por outra até mesmo depois dela -, uma reversão devida ao recalcamento, e a partir daí a neurose toma o lugar da perversão, sem que se extingam os antigos impulsos. Isso faz lembrar o provérbio “Junge Hure, alte Betschwester”, só que, nesse caso, a juventude foi curta demais. Essa substituição da perversão pela neurose na vida de uma mesma pessoa, assim como a já mencionada distribuição da perversão e da neurose entre os diferentes membros de uma mesma família, é coerente com a concepção de que a neurose é o negativo da perversão.

SUBLIMAÇÃO

[3] O terceiro desfecho da disposição constitucional anormal é possibilitado pelo processo de “sublimação”, no qual as excitações hiperintensas provenientes das diversas fontes da sexualidade encontram escoamento e emprego em outros campos, de modo que de uma disposição em si perigosa resulta um aumento nada insignificante da eficiência psíquica. Aí encontramos uma das fontes da atividade artística, e, conforme tal sublimação seja mais ou menos completa, a análise caracterológica de pessoas altamente dotadas, sobretudo as de disposição artística, revela uma mescla, em diferentes proporções, de eficiência, perversão e neurose. Uma subvariedade da sublimação talvez seja a supressão por formação reativa, que, como descobrimos, começa no período de latência da criança e, nos casos favoráveis, prossegue por toda a vida. Aquilo a que chamamos “caráter” de um homem constrói-se, numa boa medida, a partir do material das excitações sexuais, e se compõe de pulsões fixadas desde a infância, de outras obtidas por sublimação, e de construções destinadas ao refreamento eficaz de moções perversas reconhecidas como inutilizáveis. Por conseguinte, a disposição sexual universalmente perversa da infância pode ser considerada como a fonte de uma série de nossas virtudes, na medida em que, através da formação reativa, impulsiona a criação delas.

EXPERIÊNCIAS ACIDENTAIS

Comparadas às descargas sexuais, às ondas de recalcamento e às sublimações (sendo inteiramente desconhecidas para nós as condições internas destes dois últimos processos), todas as outras influências parecem bem menos importantes. Quem incluir os recalcamentos e sublimações na disposição constitucional e encará-los como manifestações vitais desta poderá afirmar, justificadamente, que a conformação final da vida sexual resulta, acima de tudo, da constituição inata. Mas ninguém com algum discernimento contestará o fato de que, em tal cooperação de fatores, há também espaço para as influências modificadoras do que foi acidentalmente vivenciado na infância e depois. Não é fácil avaliar a eficácia dos fatores constitucionais e acidentais em sua relação recíproca. Na teoria, sempre se tende a superestimar os primeiros; a prática terapêutica destaca a importância dos últimos. Mas em nenhum caso se deve esquecer que existe entre ambos uma relação de cooperação, e não de exclusão. O fator constitucional tem de aguardar experiências que o ponham em vigor; o acidental precisa apoiar-se na constituição para ter efeito. Na maioria dos casos, pode-se imaginar o que se tem chamado de “série complementar”, na qual as intensidades decrescentes de um fator são compensadas pelas intensidades crescentes de outro, mas não há razão alguma para negar a existência de casos extremos nos dois limites da série.

Harmoniza-se ainda melhor com a investigação psicanalítica dar um lugar de destaque, entre os fatores acidentais, às experiências da primeira infância. A série etiológica única decompõe-se então em duas, que podem ser chamadas de disposicional e definitiva. Na primeira, a constituição e as vivências acidentais da infância interagem da mesma maneira que, na segunda, a disposição e as vivências traumáticas posteriores. Todos os fatores nocivos ao desenvolvimento sexual externam seu efeito promovendo uma regressão, um retorno a uma fase anterior do desenvolvimento.

Prossigamos agora em nossa tarefa de enumerar os fatores que verificamos serem influentes no desenvolvimento sexual, quer representem forças eficazes ou meras manifestações delas.

PRECOCIDADE

Um desses fatores é a precocidade sexual espontânea, demonstrável com certeza pelo menos na etiologia das neuroses, muito embora, tal como outros fatores, não seja por si só uma causa suficiente. Manifesta-se na interrupção, encurtamento ou encerramento do período infantil de latência, c converte-se em causa de perturbações por ocasionar manifestações sexuais que, pelo estado incompleto das inibições sexuais, de um lado, e por ainda não estar desenvolvido o sistema genital, de outro, só podem trazer em si o caráter de perversões. Essas tendências à perversão podem então permanecer como tais ou, instaurado o recalcamento, transformar-se em forças propulsoras de sintomas neuróticos. De qualquer modo, a precocidade sexual dificulta o desejável domínio posterior da pulsão sexual pelas instâncias anímicas superiores, e aumenta o caráter compulsivo que, à parte isso, os substitutos [Vertretungen] psíquicos da pulsão reivindicam para si. A precocidade sexual amiúde corre paralela ao desenvolvimento intelectual prematuro, e como tal é encontrada na história infantil dos indivíduos mais eminentes e capazes; em tais condições, não parece tornar-se tão patogênica como quando surge isoladamente.

FATORES TEMPORAIS

Da mesma forma, exigem consideração outros fatores que, ao lado da precocidade, podem ser reunidos sob a designação de “temporais”. A ordem em que são ativadas as diversas moções pulsionais, bem como o lapso de tempo em que podem manifestar-se antes de sucumbir a influência de uma nova moção pulsional emergente, ou a algum recalcamento típico, parecem filogeneticamente determinados. Todavia, tanto nessa seqüência temporal quanto nessa duração parece haver variações que devem exercer uma influência dominante no resultado final. Não é indiferente que uma dada corrente emerja antes ou depois de sua corrente contraída, pois o efeito de um recalcamento não pode ser desfeito: cada desvio temporal na montagem dos componentes produz invariavelmente uma alteração no resultado. Por outro lado, as moções pulsionais que emergem com intensidade especial têm, com freqüência, um decurso assombrantemente rápido, como, por exemplo, o vínculo heterossexual dos que depois se tornam homossexuais manifestos. Não há justificativa para o medo de que as tendências estabelecidas com mais violência na infância dominem permanentemente o caráter adulto; é igualmente esperável que elas venham a desaparecer, cedendo lugar a seu oposto. (“Gestrenge Herren regieren nicht lange.”)

Não estamos sequer em condições de fornecer indícios das causas dessas complicações temporais dos processos de desenvolvimento. Abre-se aqui o panorama de uma densa falange de problemas biológicos, e talvez também históricos, dos quais nem ao menos nos aproximamos o bastante para travar batalha com eles.

ADESIVIDADE

A importância de todas as manifestações sexuais precoces é aumentada por um fator psíquico de origem desconhecida, que por ora decerto só pode ser apresentado como uma hipótese psicológica provisória. Refiro-me à elevada adesividade [Haftbarkeit] ou fixabilidade dessas impressões da vida sexual, que é preciso admitir, para a complementação dos fatos, nas pessoas que depois se tornarão neuróticas ou perversas, já que as mesmas manifestações sexuais prematuras em outras pessoas não conseguem gravar-se de maneira tão profunda, a ponto de produzirem uma repetição convulsiva e poderem prescrever por toda a vida os caminhos da pulsão sexual. Parte da explicação dessa adesividade talvez resida num outro fator psíquico que não podemos negligenciar na causação das neuroses, a saber, a preponderância que cabe na vida anímica aos traços mnêmicos, em comparação com as impressões recentes. Esse fator é obviamente dependente da formação intelectual e aumenta conforme a elevação da cultura pessoal. Em contraste com isso, o selvagem tem sido caracterizado como “das unglückselige Kind des Augenblickes”. Em decorrência da relação inversa entre a cultura e o livre desenvolvimento da sexualidade, cujas conseqüências podem ser seguidas muito de perto na conformação de nossa vida, a importância do rumo tomado pela vida sexual da criança para a vida posterior é muito pequena nos níveis cultural ou social mais baixos e muito grande nos mais elevados.

FIXAÇÃO

O terreno preparado pelos fatores psíquicos que acabamos de mencionar é favorável aos estímulos acidentalmente vivenciados da sexualidade infantil. Estes últimos (sobretudo a sedução por outras crianças ou por adultos) fornecem o material que, com a ajuda dos primeiros, pode fixar-se como um distúrbio permanente. Boa parte dos desvios da vida sexual normal posteriormente observados tanto nos neuróticos quanto nos perversos é estabelecida, desde o começo, pelas impressões do período infantil, supostamente desprovido de sexualidade. De sua causação participam a complacência constitucional, a precocidade, a característica da adesividade elevada e a estimulação fortuita da pulsão sexual por influências estranhas.

Todavia, a conclusão insatisfatória que emerge dessas investigações das perturbações da vida sexual provém de não sabermos, sobre os processos biológicos que constituem a essência da sexualidade, o bastante para formar, com base em nossos conhecimentos isolados, uma teoria suficiente para compreendermos tanto o normal quanto o patológico.






































APÊNDICE: LISTA DOS ESCRITOS DE FREUD QUE VERSAM PREDOMINANTEMENTE OU EM GRANDE PARTE SOBRE A SEXUALIDADE

Claro está que as referências à sexualidade são encontradas na grande maioria dos escritos de Freud. A lista que se segue compreende aqueles que versam mais diretamente sobre o assunto. A data indicada no início de cada item corresponde ao ano de publicação. Os detalhes mais completos sobre cada obra serão encontrados na bibliografia ao final deste volume.

1898a   “A Sexualidade na Etiologia das Neuroses”.
1905d   Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade.
1906a   “Minhas Teses sobre o Papel da Sexualidade na Etiologia das Neuroses”.
1907c   “O Esclarecimento Sexual da Criança”.
1908b   “Caráter e Erotismo Anal”.
1908c   “Sobre as Teorias Sexuais Infantis”.
1908d   “Moral Sexual `Civilizada’ e Doença Nervosa Moderna”.
1910a   Cinco Lições de Psicanálise, Conferência IV.
1910c   Uma Lembrança Infantil de Leonardo da Vinci, Capítulo III.
1910h   “Um Tipo Especial de Escolha de Objeto no Homem”.
1912d   “Sobre a Degradação mais Generalizada da Vida Amorosa”.
1912f   “Contribuições para um Debate sobre a Masturbação”.
1913I   “A Predisposição à Neurose Obsessiva”.
1913j   “O Interesse pela Psicanálise”, Parte II (C).
1913k   Prefácio a Scatologic Rites of All Nations, de Bourke.
1914c   “Sobre o Narcisismo: Introdução”.
1916-17  Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Conferências XX, XXI, XXII e XXVI.
1917c   “Sobre as Transformações da Pulsão, particularmente o Erotismo Anal”.
1918a   “O Tabu da Virgindade”.
1919e   “ `Espanca-se uma Criança’ ”.
1920a   “Sobre a Psicogênese de um Caso de Homossexualismo Feminino”.
1922b   “Alguns Mecanismos Neuróticos no Ciúme, na Paranóia e no Homossexualismo”, Seção C.

1923a   Dois Verbetes de Enciclopédia: (2) “A Teoria da Libido”.
1923e   “A Organização Genital Infantil”.
1924c   “O Problema Econômico do Masoquismo”.
1924d   “O Naufrágio do Complexo de Édipo”.
1925j    “Algumas Conseqüências Psíquicas da Diferença Anatômica entre os Sexos”.
1927e   “Fetichismo”.
1931a   “Tipos Libidinais”.
193lb   “Sexualidade Feminina”
1933a   Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Conferências XXXII e XXXIII.
1940a   [1938] Um Esboço de Psicanálise, Capítulos III e VII.
1940e   [1938] “A Cisão do Ego no Processo de Defesa”.





































O MÉTODO PSICANALÍTICO DE FREUD

O singular método psicoterápico que Freud pratica e designa de psicanálise é proveniente do chamado procedimento catártico, sobre o qual ele forneceu as devidas informações nos Estudos sobre a Histeria, de 1895, escritos em colaboração com Joseph Breuer. A terapia catártica foi uma descoberta de Breuer, que, cerca de dez anos antes, curara com sua ajuda uma paciente histérica e obtivera, nesse processo, uma compreensão da patogênese de seus sintomas. Graças a uma sugestão pessoal de Breuer, Freud retomou o procedimento e o pôs à prova num número maior de enfermos.

O procedimento catártico pressupunha que o paciente fosse hipnotizável e se baseava na ampliação da consciência que ocorre na hipnose. Tinha por alvo a eliminação dos sintomas patológicos e chegava a isso levando o paciente a retroceder ao estado psíquico em que o sintoma surgira pela primeira vez. Feito isso, emergiam no doente hipnotizado lembranças, pensamentos e impulsos até então excluídos de sua consciência; e mal ele comunicava ao médico esses seus processos anímicos, em meio a intensas expressões afetivas, o sintoma era superado e se impedia seu retorno. Os dois autores, em seu trabalho conjunto, explicaram essa experiência regularmente repetida, afirmando que o sintoma toma o lugar de processos psíquicos suprimidos que não chegam à consciência, ou seja, que ele representa uma transformação (“conversão”) de tais processos. A eficácia terapêutica de seu procedimento foi explicada em função da descarga do afeto, até ali como que “estrangulado”, preso às ações anímicas suprimidas (“ab-reação”). Mas esse esquema simples da intervenção terapêutica complicava-se em quase todos os casos, pois viu-se que participavam da gênese do sintoma, não uma única impressão (“traumática”), porém, na maioria dos casos, uma série delas, difícil de abarcar.

Assim, a principal característica do método catártico, em contraste com todos os outros procedimentos da psicoterapia, reside em que, nele, a eficácia terapêutica não se transfere para uma proibição médica veiculada por sugestão. Espera-se, antes, que os sintomas desapareçam por si, tão logo a intervenção, baseada em certas premissas sobre o mecanismo psíquico, tenha êxito em fazer com que os processos anímicos passem para um curso diferente do que até então desembocava na formação do sintoma.

As alterações que Freud introduziu no metódo catártico de Breuer foram, a princípio, mudanças da técnica; estas, porém, levaram a novos resultados e, em seguida, exigiram uma concepção diferente do trabalho terapêutico, embora não contraditória à anterior.

O método catártico já havia renunciado à sugestão, e Freud deu o passo seguinte, abandonando também a hipnose. Atualmente, trata seus enfermos da seguinte maneira: sem exercer nenhum outro tipo de influência, convida-os a se deitarem de costas num sofá, comodamente, enquanto ele próprio senta-se numa cadeira por trás deles, fora de seu campo visual. Tampouco exige que fechem os olhos e evita qualquer contato, bem como qualquer outro procedimento que possa fazer lembrar a hipnose. Assim a sessão prossegue como uma conversa entre duas pessoas igualmente despertas, uma das quais é poupada de qualquer esforço muscular e de qualquer impressão sensorial passível de distraí-la e de perturbar-lhe a concentração da atenção em sua própria atividade anímica.

Como a hipnotizabilidade, por mais habilidoso que seja o médico, reside sabidamente no arbítrio do paciente, e como um grande número de pessoas neuróticas não pode ser colocado em estado de hipnose através de procedimento algum, ficou assegurada, através da renúncia à hipnose, a aplicabilidade do método a um número irrestrito de enfermos. Por outro lado, perdeu-se a ampliação da consciência que proporcionava ao médico justamente o material psíquico de lembranças e representações com a ajuda do qual se podia realizar a transformação dos sintomas e a liberação dos afetos. Caso não fosse encontrado nenhum substituto para essa perda, seria impossível falar em alguma influência terapêutica.

Freud encontrou um substituto dessa ordem, plenamente satisfatório, nas associações dos enfermos, ou seja, nos pensamentos involuntários - quase sempre sentidos como perturbadores e por isso comumente postos de lado - que costumam cruzar a trama da exposição intencional.

Para apoderar-se dessas idéias incidentes, ele exorta os pacientes a se deixarem levar em suas comunicações, “mais ou menos como se faz numa conversa a esmo, passando de um assunto a outro”. Antes de exortá-los a um relato pormenorizado de sua história clínica, ele os instiga a dizerem tudo o que lhes passar pela cabeça, mesmo o que julgarem sem importância, ou irrelevante, ou disparatado. Ao contrário, pede com especial insistência que não excluam de suas comunicações nenhum pensamento ou idéia pelo fato de serem embaraçosos ou penosos. No empenho de compilar esse material costumeiramente desdenhado, Freud fez as observações que se tornaram decisivas para toda a sua concepção. Já no relato da história clínica surgem lacunas na memória do doente, ou seja, esquecem-se acontecimentos reais, confundem-se as relações de tempo ou se rompem as conexões causais, daí resultando efeitos incompreensíveis. Não há nenhuma história clínica de neurose sem algum tipo de amnésia. Quando o paciente é instado a preencher essas lacunas de sua memória através de um trabalho redobrado de atenção, verifica-se que as idéias que lhe ocorrem a esse respeito são repelidas por ele com todos os recursos da crítica, até que ele sente um franco mal-estar quando a lembrança realmente se instala. Dessa experiência Freud concluiu que as amnésias são o resultado de um processo ao qual ele chama recalcamento e cuja motivação é identificada no sentido de desprazer. As forças psíquicas que deram origem a esse recalcamento estariam, segundo ele, na resistência que se opõe à restauração [das lembranças].

O fator da resistência tornou-se um dos fundamentos de sua teoria. Quanto às idéias postas de lado sob toda sorte de pretextos (como as enumeradas na fórmula acima), Freud as encara como derivados das formações psíquicas recalcadas (pensamentos e moções), como deturpações delas provocadas pela resistência a sua reprodução.

Quanto maior a resistência, mais profusa é essa distorção. O valor das idéias inintencionais para a técnica terapêutica reside nessa relação delas com o material psíquico recalcado. Quando se dispõe de um procedimento que permite avançar das associações até o recalcado, das distorções até o distorcido, pode-se também tornar acessível à consciência o que era antes inconsciente na vida anímica, mesmo sem a hipnose.

Com base nisso, Freud desenvolveu uma arte de interpretação à qual compete a tarefa, por assim dizer, de extrair do minério bruto das associações inintencionais o metal puro dos pensamentos recalcados. São objeto desse trabalho interpretativo não apenas as idéias que ocorrem ao doente, mas também seus sonhos, que abrem a via de acesso mais direta para o conhecimento do inconsciente, suas ações inintencionais e desprovidas de planos (atos sintomáticos), e os erros que ele comete na vida cotidiana (lapsos da fala, equívocos na ação etc.). Os detalhes dessa técnica de interpretação ou tradução ainda não foram publicados por Freud. Segundo suas indicações, trata-se de uma série de regras empiricamente adquiridas para construir o material inconsciente a partir das ocorrências de idéias, de instituições sobre como é preciso entender a situação em que deixam de ocorrer idéias ao paciente, e de experiências sobre as resistências típicas mais importantes que surgem no decorrer desses tratamentos. Um volumoso livro sobre A Interpretação dos Sonhos, publicado por Freud em 1900, deve ser visto como o precursor de tal introdução à técnica.

Dessas indicações sobre a técnica do método psicanalítico poder-se-ia concluir que seu inventor deu-se um trabalho desnecessário e fez mal em abandonar o procedimento hipnótico, menos complicado. De um lado, porém, a técnica da psicanálise, uma vez aprendida, é muito mais fácil de praticar do que indicaria qualquer descrição dela, e de outro, nenhum caminho alternativo leva à meta desejada, donde o caminho trabalhoso é ainda o mais curto. A hipnose é censurável por ocultar a resistência e por ter assim impedido ao médico o conhecimento do jogo das forças psíquicas. E não elimina a resistência; apenas a evade, com o que fornece tão-somente dados incompletos e resultados passageiros.

A tarefa que o método psicanalítico se empenha em resolver pode expressar-se em diferentes fórmulas, que em essência, no entanto, são equivalentes. Pode-se dizer: a tarefa do tratamento é eliminar as amnésias. Preenchidas todas as lacunas da memória, esclarecidos todos os efeitos enigmáticos da vida psíquica, tornam-se impossíveis a continuação e mesmo a reprodução da doença. Pode-se ainda conceber a condição para isso da seguinte maneira: todos os recalcamentos devem ser desfeitos; o estado psíquico passa então a ser idêntico àquele em que todas as amnésias foram preenchidas. De alcance ainda maior é outra formulação: trata-se de tornar o inconsciente acessível à consciência, o que se consegue mediante a superação das resistências. Mas não se deve esquecer que tal estado tampouco se apresenta no ser humano normal, e que só raramente fica-se em condições de levar o tratamento a um ponto que se aproxime disso. Assim como a saúde e a doença não se diferenciam em princípio, estando apenas separadas por fronteiras quantitativas determináveis na prática, não se pode estabelecer como meta de tratamento outra coisa senão o restabelecimento prático do enfermo, a restauração de sua capacidade de rendimento e de gozo. Num tratamento incompleto ou havendo um resultado imperfeito, obtém-se sobretudo uma significativa melhora do estado psíquico geral, enquanto os sintomas, embora com uma importância diminuída para o paciente, podem persistir, sem que a pessoa seja rotulada de enferma.

O procedimento terapêutico, abstraídas algumas modificações insignificantes, mantém-se o mesmo para todos os quadros sintomáticos da histeria, com suas múltiplas formas, e para todas as configurações da neurose obsessiva. Mas isso não implica que sua aplicabilidade seja irrestrita. A natureza do método psicanalítico envolve indicações e contra-indicações, tanto em relação às pessoas a serem tratadas quanto com respeito ao quadro patológico. Os mais favoráveis para psicanálise são os casos crônicos de psiconeurose com poucos sintomas violentos ou perigosos, e portanto, em primeiro lugar, todas as espécies de neurose obsessiva, pensamento e ação obsessivos, e os casos de histeria em que as fobias e abulias desempenham o papel principal; e ainda todas as expressões somáticas da histeria, desde que a pronta eliminação dos sintomas não seja a tarefa primordial do médico, como na anorexia. Nos casos agudos de histeria, é preciso aguardar a chegada de uma fase mais calma; em todos os casos em que o esgotamento nervoso domina o quadro clínico, deve-se evitar um procedimento que por si só requer esforço, traz apenas progressos lentos e, por algum tempo, não pode levar em consideração a persistência dos sintomas.

Para que uma pessoa se submeta com proveito a psicanálise, são muitos os requisitos exigidos. Em primeiro lugar, ela deve ser capaz de um estado psíquico normal; durante os períodos de confusão ou de depressão melancólica, não se consegue nada nem mesmo num caso de histeria. Cabe ainda exigir dela certo grau de inteligência natural e de desenvolvimento ético; com pessoas sem nenhum valor, o médico logo perde o interesse que lhe permite aprofundar-se na vida anímica do doente. As malformações de caráter acentuadas, traços de uma constituição realmente degenerada, externam-se no tratamento como fontes de uma resistência difícil de superar. Nesse aspecto, a constituição estabelece um limite geral para a capacidade curativa da psicoterapia. Também a faixa etária próxima dos cinqüenta anos cria condições desfavoráveis para a psicanálise. Nesse caso, já não é possível dominar a massa do material psíquico, o tempo exigido para a cura torna-se longo demais e a capacidade para desfazer processos psíquicos começa a enfraquecer.

Apesar de todas essas limitações, é extraordinariamente grande o número de pessoas aptas para a psicanálise, e a extensão trazida a nossos poderes terapêuticos por esse procedimento é, segundo Freud, muito considerável. Para um tratamento eficaz, Freud requer períodos longos, de seis meses a três anos; contudo, informa que até agora, em vista de diversas circunstâncias fáceis de imaginar, só esteve em condições de testar seu tratamento, na maioria das vezes, em casos muito graves: em pessoas enfermas desde longa data e totalmente incapacidadas, que, frustradas por toda sorte de tratamentos, foram buscar como que um último recurso em seu procedimento novo e recebido com muitas dúvidas. Nos casos de doença mais branda, a duração do tratamento poderia encurtar-se muito, obtendo-se em ganho extraordinário em termos de prevenção para o futuro.

NOTA DO EDITOR INGLÊS

“DIE FREUDSCHE PSYCHOANALYTISCHE METHODE”

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
(1903 Data provável de redação.)
1904 Em L. Loewenfeld, Die psychischen Zwangserscheinungen, 545-551 (Wiesbaden: Bergmann).
1906 S.K.S.N. I, 218-224. (1911, 2ª ed., 213-219; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
1924 Technick und Metapsychol., 3-10.
1925   G.S., 6, 3-10.
1942   G.W., 5, 3-10

(b) TRADUÇÃO INGLESA:
“Freud’s Psycho-Analytic Method”
1924   C.P., 1, 264-271. (Trad. de J. Bernays.)

Esta tradução [inglesa], com um novo título, “Freud’s Psycho-Analytic Procedure”, é uma versão consideravelmente alterada da que se publicou em 1924.

O livro de Loewenfeld sobre os fenômenos obsessivos, para o qual esse artigo constituiu originalmente uma contribuição, é mencionado por Freud em seu caso clínico do “Homem dos Ratos” (1909d, nota de rodapé no início da Parte II) como o “manual padrão” sobre a neurose obsessiva. Loewenfeld esclarece ter convencido Freud a fazer essa contribuição em vista das grandes modificações por que passara sua técnica desde que fora descrita nos Estudos sobre a Histeria (1895d). O prefácio de Loewenfeld traz a data de “novembro de 1903”, sendo portanto presumível que o artigo de Freud tenha sido redigido naquele mesmo ano, um pouco mais cedo.

Essa exposição mostra que o único vestígio remanescente do método hipnótico original era a solicitação de Freud de que o paciente se deitasse. Quanto aos aspectos externos, sua técnica permaneceu inalterada desde então. O livro de Loewenfeld foi resenhado pelo próprio Freud, conforme a descoberta do Prof. Saul Rosenzweig, da Universidade Washington, em St. Louis. A resenha foi publicada no Journal für Psychologie und Neurologie, 3 (1904), pp. 190-1. (Freud, 1904f.)

















SOBRE A PSICOTERAPIA (1905 [1904])


Senhores: são decorridos cerca de oito anos desde que, a convite de seu saudoso presidente, o Professor von Reder, tive a oportunidade de falar aqui sobre o tema da histeria. Pouco antes (1895), em colaboração com o Dr. Josef Breuer, eu publicara os Estudos sobre a Histeria, onde, com base no novo conhecimento que devemos a esse investigador, tentara introduzir um novo modo de tratamento das neuroses. Alegra-me poder dizer que os esforços feitos em nossos Estudos tiveram êxito; as idéias ali defendidas sobre os efeitos dos traumas psíquicos através da retenção do afeto, bem como a concepção dos sintomas histéricos como o resultado de uma excitação transposta do anímico para o corporal, idéias estas para as quais criamos os termos “ab-reação” e “conversão”, são hoje universalmente conhecidas e compreendidas. Não há - pelo menos nos países de língua alemã - nenhuma representação da histeria que não as leve em conta em certa medida, e não há nenhum colega que não siga ao menos um pouco essa doutrina. E no entanto, estas teses e estes termos, enquanto eram ainda novos, devem ter soado bastante estranhos!

Não posso dizer o mesmo do procedimento terapêutico proposto a nossos colegas simultaneamente a nossa doutrina. Este luta ainda por seu reconhecimento. Talvez se possam invocar razões especiais para isso. Naquela época, a técnica do procedimento ainda não fora desenvolvida, era-me impossível fornecer ao leitor médico do livro as instruções que o teriam habilitado a conduzir tal tratamento em sua íntegra. Mas decerto também concorreram para isso algumas razões de natureza geral. Ainda hoje, a psicoterapia se afigura a muitos médicos como um produto do misticismo moderno, e, comparada a nossos recursos terapêuticos físico-químicos, cuja aplicação se baseia em conhecimentos fisiológicos, parece francamente acientífica e indigna do interesse de um investigador da natureza. Permitam-me, pois, defender ante os senhores a causa da psicoterapia e destacar o que pode ser qualificado de injusto ou errôneo nessa condenação.

Em primeiro lugar, permitam-me lembrar-lhes que a psicoterapia de modo algum é um procedimento terapêutico moderno. Ao contrário, é a mais antiga terapia de que se serviu a medicina. Na instrutiva obra de Loewenfeld, Lehrbuch der gesamten Psychotherapie [1897], os senhores podem verificar quais eram os métodos da medicina primitiva e da medicina da Antigüidade. A maioria deles deve ser classificada de psicoterapia; induzia-se nos doentes, com vistas à cura, um estado de “expectativa crédula” que ainda hoje nos presta idêntico serviço. Mesmo depois que os médicos descobriram outros meios terapêuticos, os esforços psicoterápicos desta ou daquela espécie nunca desapareceram da medicina.

Em segundo lugar, deixem-me chamar-lhes a atenção para o fato de que nós, médicos, não podemos renunciar à psicoterapia, que mais não seja porque uma outra parte muito interessada no processo terapêutico - a saber, o doente - não tem nenhuma intenção de abandoná-la. Os senhores sabem das elucidações que devemos, nesse aspecto, à escola de Nancy (a Liébault, a Bernheim). Um fator que depende da disposição psíquica do doente contribui, sem que tenhamos essa intenção, para o resultado de qualquer procedimento terapêutico introduzido pelo médico, quase sempre num sentido favorável, mas também com freqüência num sentido inibitório. Aprendemos a usar para esse fato a palavra “sugestão”, e Moebius nos ensinou que a falta de contabilidade que deploramos em tantos de nossos métodos terapêuticos remonta justamente à influência perturbadora desse poderoso fator. Nós, médicos - inclusive todos os senhores - , portanto, praticamos constantemente a psicoterapia, mesmo que não o saibamos nem tenhamos essa intenção; só que constitui uma desvantagem deixar tão completamente entregue aos enfermos o fator psíquico da influência que os senhores exercem sobre eles. Dessa maneira, ele se torna incontrolável, impossível de dosar ou de intensificar. Assim, não será um esforço legítimo o do médico dominar esse fator, servir-se dele intencionalmente, norteá-lo e reforçá-lo? É isso, e nada mais, o que a psicoterapia científica lhes propõe.

Em terceiro lugar, senhores colegas, quero remetê-los à experiência já há muito conhecida de que certas doenças, e muito particularmente as psiconeuroses, são muito mais acessíveis às influências anímicas do que a qualquer outra medicação. Não é um ditado moderno, e sim uma antiga máxima dos médicos, que essas doenças não são curadas pelo medicamento, mas pelo médico, ou seja, pela personalidade do médico, na medida em que através dela ele exerce uma influência psíquica. Bem sei, senhores colegas, que muito lhes agrada a visão a que o esteta Fischer deu expressão clássica em sua paródia do Fausto:

Ich weiss, das Physikalische
Wirkt öfters aufs Moralische.

Porém não seria mais adequado, e mais freqüentemente acertado, dizer que se pode influir sobre o lado moral de um homem com meios morais, ou seja, psíquicos?

Há muitas espécies de psicoterapia e muitos meios de praticá-la. Todos os que levam à meta da recuperação são bons. Nosso consolo corriqueiro, que tão liberalmente dispensamos aos enfermos - “Você logo ficará bom de novo!” - , corresponde a um dos métodos psicoterapêuticos; mas agora que temos um discernimento mais profundo da natureza da neurose, não somos obrigados a ficar restritos a esse consolo. Desenvolvemos a técnica da sugestão hipnótica, a psicoterapia através da distração, do exercício e da provocação de afetos mais oportunos. Não menosprezo nenhuma delas e utilizaria todas em condições apropriadas. Se realmente me restringi a um único procedimento terapêutico, ao método que Breuer chamou “catártico”, mas que prefiro chamar de “analítico”, foram apenas motivos subjetivos que me decidiram a fazê-lo. Em decorrência de minha participação na criação dessa terapia, sinto-me pessoalmente obrigado a me dedicar a explorá-la e a construir sua técnica. Posso asseverar que o método analítico de psicoterapia é o mais penetrante, o que chega mais longe, aquele pelo qual se consegue a transformação mais ampla do doente. Abandonando por um momento o ponto de vista terapêutico, posso acrescentar em favor desse método que ele é o mais interessante, o único que nos ensina algo sobre a gênese e a interação dos fenômenos patológicos. Graças ao discernimento do mecanismo das doenças anímicas que ele nos faculta somente ele deve ser capaz de ultrapassar a si mesmo e de nos apontar o caminho para outras formas de influência terapêutica.

No tocante a esse método catártico ou analítico de psicoterapia, permitam-me agora corrigir alguns erros e fornecer alguns esclarecimentos.

(a) Observo que esse método é muito amiúde confundido com o tratamento hipnótico por sugestão; e reparei nisso porque, com relativa freqüência, colegas de quem aliás não sou o homem de confiança enviam-me pacientes - doentes refratários, é claro - com o pedido de que eu os hipnotize. Ora, ocorre que há uns seis anos já não tenho usado a hipnose para fins terapêuticos (salvo em algumas experiências isoladas), de modo que costumo mandar esses encaminhamentos de volta com o conselho de que quem confia na hipnose deve praticá-la pessoalmente. Na verdade, há entre a técnica sugestiva e a analítica a maior antítese possível, aquela que o grande Leonardo da Vinci resumiu, com relação às artes, nas fórmulas per via di porre e per via di levare. A pintura, diz Leonardo, trabalha per via di porre, pois deposita sobre a tela incolor partículas coloridas que antes não estavam ali; já a escultura, ao contrário, funciona per via di levare, pois retira da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida. De maneira muito semelhante, senhores, a técnica da sugestão busca operar per via di porre; não se importa com a origem, a força e o sentido dos sintomas patológicos, mas antes deposita algo - a sugestão - que ela espera ser forte o bastante para impedir a expressão da idéia patogênica. A terapia analítica, em contrapartida, não pretende acrescentar nem introduzir nada de novo, mas antes tirar, trazer algo para fora, e para esse fim preocupa-se com a gênese dos sintomas patológicos e com a trama psíquica da idéia patogênica, cuja eliminação é sua meta. Por esse caminho de investigação é que ela faz avançar tão significativamente nossos conhecimentos. Se abandonei tão cedo a técnica da sugestão, e com ela, a hipnose, foi porque não tinha esperança de tornar a sugestão tão forte e sólida quanto seria necessário para obter a cura permanente. Em todos os casos graves, vi a sugestão introduzida voltar a desmoronar, e então reaparecia a doença ou um substituto dela. Além disso, censuro essa técnica por ocultar de nós o entendimento do jogo de forças psíquico; ela não nos permite, por exemplo, identificar a resistência com que os doentes se aferram a sua doença, chegando em função disso a lutar contra sua própria recuperação; e é somente a resistência que nos possibilita compreender seu comportamento na vida.

(b) Parece-me haver entre os colegas o erro muito difundido de supor que a técnica de investigar as origens da doença e de eliminar suas manifestações através dessa exploração é fácil e evidente. Infiro isso do fato de que nenhum dentre os muitos que se interessaram por minha terapia e formularam juízos firmes sobre ela jamais me perguntou como realmente procedo. Só pode haver uma razão para isso: eles acham que não há nada a perguntar, que a coisa é perfeitamente inteligível por si só. E vez por outra, inteiro-me também, com assombro, de que neste ou naquele setor de um hospital um jovem médico recebeu de seu chefe a incumbência de empreender uma “psicanálise” num paciente histérico. Tenho certeza de que não deixariam a cargo dele o exame de um tumor extirpado, sem que se houvessem assegurado de que ele conhecia a fundo a técnica histológica. Da mesma forma, chegam-me notícias de que tal ou qual colega marcou consultas com um paciente para fazer com ele um tratamento psíquico, embora eu tenha certeza de que ele não conhece a técnica de tal tratamento. Deve estar esperando, portanto, que o paciente o presenteie com seus segredos, ou talvez esteja buscando a cura em alguma espécie de confissão ou confidência. Não me surpreenderia que um paciente assim tratado extraísse disso mais prejuízos do que benefícios. É que o instrumento anímico não é assim tão fácil de tocar. Nessas ocasiões, não posso deixar de pensar nas palavras de um neurótico mundialmente famoso, que decerto nunca esteve em tratamento com um médico, pois viveu apenas na fantasia de um poeta. Refiro-me a Hamlet, Príncipe da Dinamarca. O Rei enviara dois cortesãos, Rosenkranz e Guildenstern, para sondá-lo e arrancar dele o segredo de seu desgosto. Ele os repele; aparecem então algumas flautas no palco. Tomando uma delas, Hamlet pede a um de seus algozes que a toque, o que seria tão fácil quanto mentir. O cortesão se recusa, pois não conhece o manejo do instrumento, e, não conseguindo persuadi-lo a tentar, Hamlet finalmente explode: “Pois vede agora em que mísera coisa me transformais! Quereis tocar-me; (…) quereis arrancar o cerne de meu mistério; pretendeis extrair-me sons, de minha nota mais grave até o topo de meu diapasão; e embora haja muita música, excelente voz neste pequenino instrumento, não podeis fazê-lo falar. Pelo sangue de Cristo, julgais que sou mais fácil de tocar do que uma flauta? Chamai-me do instrumento que quiserdes, pois se podeis desafinar-me, ainda assim não me podeis tocar.” (Ato III, Cena 2.)

(c) Por algumas de minhas observações, os senhores terão calculado que o tratamento analítico tem muitas peculiaridades que o distanciam do ideal de uma terapia. Tutu, cito, jucunde; a investigação e a busca não apontam para a rapidez dos resultados, e a menção da resistência deve prepará-los para esperar por vários transtornos. Sem dúvida, o tratamento psicanalítico faz grandes exigências tanto ao doente quanto ao médico; do primeiro reclama o sacrifício da sinceridade total, mostrando-se demorado e, por isso mesmo, também custoso; para o médico, é igualmente demorado, e em vista da técnica que ele tem de aprender e praticar, é bastante trabalhoso. Por isso, considero perfeitamente justificável que se recorra a métodos terapêuticos mais cômodos, desde que haja uma perspectiva de conseguir algo através deles. Esse é, afinal, o único ponto decisivo; se, com o procedimento mais trabalhoso e prolongado, consegue-se mais do que com o método breve e fácil, justifica-se o uso do primeiro, apesar de tudo. Pensem, senhores, em quão mais incômoda e custosa é a terapia de Finsen para o lúpus do que o método antes empregado de cauterização e raspagem; não obstante, o uso do primeiro significa um grande avanço, simplesmente porque rende mais; promove uma cura radical. Ora, não quero impor essa comparação, mas o método psicanalítico pode reclamar para si um privilégio similar. Na realidade, só pude elaborar e testar meu método terapêutico em casos graves ou gravíssimos; a princípio, meu material compôs-se unicamente de enfermos que tudo haviam tentado sem êxito e que tinham passado anos em instituições. Mal pude reunir experiência suficiente para dizer-lhes como se comporta minha terapia nas doenças mais leves, de surgimento episódico, e que vemos curar-se sob as mais diversificadas influências e até de maneira espontânea. A terapia psicanalítica foi criada com base em doentes permanentemente incapacitados para a existência a eles destinada, e seu triunfo consiste em ter tornado um número satisfatório destes permanentemente aptos para a vida. Frente a esse resultado, todos os esforços despendidos parecem insignificantes. Não podemos dissimular de nós mesmos o que, perante o enfermo, estamos acostumados a negar: que a neurose grave, para o indivíduo que dela padece, não tem menor importância do que qualquer caquexia, qualquer das temidas grandes enfermidades.

(d) As indicações e contra-indicações desse tratamento, em decorrência das muitas restrições de ordem prática que têm afetado minhas atividades, ainda não podem ser fornecidas de maneira definitiva. Mesmo assim, quero ensaiar a discussão de alguns pontos com os senhores:

(1) Afora a doença, deve-se reparar no valor da pessoa em outros aspectos e recusar os pacientes que não possuam certo grau de formação e um caráter razoavelmente digno de confiança. Não se deve esquecer que há também pessoas sadias que não prestam para nada, e que com excessiva facilidade, em se tratando desses indivíduos de valor reduzido, tende-se a atribuir à doença tudo o que os incapacita para a existência, quando lhes ocorre mostrar algum laivo de neurose. Sustento o ponto de vista de que a neurose de modo algum imprime em seu portador o rótulo de dégénéré, embora seja encontrada num mesmo indivíduo, com bastante freqüência, associada a sinais de degeneração. Ora, a psicoterapia analítica não é um procedimento para tratar a degeneração neuropática, encontrando nesta, ao contrário, sua limitação. Tampouco é aplicável às pessoas que não sejam levadas à terapia por seu próprio sofrimento, mas antes submetem-se a ela apenas pela ordem autoritária de seus familiares. Quanto à propriedade que interessa à adequação para o tratamento psicanalítico, ou seja, a educabilidade do paciente, ainda teremos de apreciá-la segundo um outro ponto de vista.

(2) Quando se quer trabalhar em segurança, deve-se restringir a escolha a pessoas que tenham um estado normal, pois é neste que nos apoiamos, no procedimento psicanalítico, para nos apropriarmos do patológico. As psicoses, os estados confusionais e a depressão profundamente arraigada (tóxica, eu poderia dizer), por conseguinte, são impróprios para a psicanálise, ao menos tal como tem sido praticada até o momento. Não considero nada impossível que, mediante uma modificação apropriada do método, possamos superar essa contra-indicação e assim empreender a psicoterapia das psicoses.

(3) A idade dos pacientes desempenha um papel na escolha para tratamento psicanalítico, posto que, nas pessoas próximas ou acima dos cinqüenta anos, costuma faltar, de um lado, a plasticidade dos processos anímicos de que depende a terapia - as pessoas idosas já não são educáveis - , e, por outro lado, o material a ser elaborado prolongaria indefinidamente a duração do tratamento. O limite etário inferior só pode ser determinado individualmente; as pessoas jovens que ainda não chegaram à puberdade são, muitas vezes, esplendidamente influenciáveis.

(4) Não se deve recorrer à psicanálise quando se trata de eliminar com rapidez fenômenos perigosos, como, por exemplo, na anorexia histérica.

A essa altura, os senhores devem estar com a impressão de que o campo de aplicação da psicoterapia analítica é muito restrito, já que de fato nada ouviram de mim além de contra-indicações. Mas sobram casos e formas patológicas suficientes em que esta terapia pode ser posta à prova: todas as formas crônicas de histeria com fenômenos residuais, o vasto campo dos estados obsessivos, as abulias e similares.

É gratificante que assim se possa levar ajuda, antes de mais nada, justamente às pessoas mais valiosas e mais altamente desenvolvidas. E podemos consolar-nos com a afirmação de que, nos casos em que a psicoterapia analítica só conseguiu muito pouco, qualquer outro tratamento decerto nada teria realizado.

(e) Os senhores certamente hão de querer perguntar-me sobre a possibilidade de que o emprego da psicanálise traga prejuízos. Quanto a isso, posso responder-lhes que, se estiverem dispostos a julgar esse procedimento imparcialmente, a manifestar-lhe a mesma benevolência crítica que têm dispensado a nossos outros métodos terapêuticos, terão de concordar com minha opinião de que, num tratamento analítico realizado com compreensão, não se pode temer dano algum para o paciente. Talvez formule um juízo diferente quem, como o leigo, estiver acostumado a atribuir ao tratamento tudo o que acontece no decorrer de um caso patológico. Não faz muito tempo, nossas instituições de hidroterapia enfrentavam um preconceito similar. Muitos dos que eram aconselhados a buscar uma dessas instituições ficavam hesitantes, pois tinham algum conhecido que entrara no sanatório como doente nervoso e ali enlouquecera. Tratava-se, como os senhores devem adivinhar, de casos incipientes de paralisia geral, que em seu estágio inicial ainda podiam ser enviados para um estabelecimento hedropático, e que ali prosseguiam em sua marcha irrefreável para a perturbação mental manifesta; para os leigos, a água era a culpada e a causadora dessa triste modificação. Quando se trata de novas formas de terapia, nem mesmo os médicos estão sempre isentos de tais erros de julgamento. Lembro-me de que, certa vez, fiz uma tentativa de psicoterapia com uma mulher que passara boa parte de sua existência numa alternância entre mania e melancolia . Aceitei o caso ao final de um período de melancolia; durante duas semanas, tudo parecia correr bem; na terceira, já estávamos no início de um novo ataque de mania. Era, sem dúvida, uma transformação espontânea do quadro patológico, já que duas semanas não constituem um prazo em que a psicoterapia analítica possa realizar coisa alguma; entretanto, o eminente médico (já falecido) que examinava a doente comigo não conseguiu abster-se da observação de que a psicoterapia seria a culpada dessa “recaída”. Estou plenamente convencido de que, em outras circunstâncias, ele teria demonstrado maior juízo crítico.

(f) Para concluir, senhores colegas, devo admitir que não é justo monopolizar sua atenção por tanto tempo, em favor da psicoterapia analítica, sem lhes dizer em que consiste esse tratamento e em que está fundamentado. Ainda assim, posto que tenha de ser breve, só posso fazer-lhes um esboço. Essa terapia baseia-se, pois, na concepção de que as representações inconscientes - ou melhor, a inconsciência de certos processos anímicos - são a causa imediata dos sintomas patológicos. Partilhamos dessa convicção com a escola francesa (Janet), que aliás, numa esquematização excessiva, atribui a origem do sintoma histérico a uma idée fixe inconsciente. Mas não temam os senhores que isso nos precipite nas profundezas da mais obscura filosofia. Nosso inconsciente não é de modo algum idêntico ao dos filósofos, e além disso, a maioria destes nada quer saber sobre algo “psíquico inconsciente”. Entretanto, caso os senhores se situem em nosso ponto de vista, compreenderão que a transformação desse inconsciente da vida anímica do enfermo num material consciente só pode ter como resultado a correção de seu desvio da normalidade, bem como a eliminação da compulsão a que sua vida anímica estivera sujeita. É que a vontade consciente estende-se apenas aos processos psíquicos conscientes, e toda compulsão psíquica é fundamentada pelo inconsciente. Tampouco devem os senhores temer que o enfermo sofra algum dano em função do abalo trazido pela entrada do inconsciente em sua consciência, pois podem explicar a si mesmos, teoricamente, que o efeito somático e afetivo da moção que se tornou consciente nunca pode ser tão grande quanto o da moção inconsciente. Só dominamos todas as nossas moções por dirigirmos para elas nossas mais elevadas funções anímicas, que estão ligadas à consciência.

Mas também lhes é possível escolher outro ponto de vista para compreender o tratamento psicanalítico. O desvendamento e a tradução do inconsciente realizam-se sob uma resistência contínua por parte do enfermo. O afloramento desse inconsciente está vinculado ao desprazer, e é por causa desse desprazer que o doente o rejeita vez após outra. É nesse conflito na vida anímica do paciente que os senhores intervêm; se conseguirem levá-lo a aceitar, motivado por uma compreensão melhor, algo que até então rejeitara (recalcara) em conseqüência dessa regulação automática do desprazer, terão realizado com ele parte de um trabalho educativo. Já constitui educação, quando um homem não deixa a cama de bom grado de manhã cedo, movê-lo a fazer isso ainda assim. Portanto, de modo muito geral, os senhores podem conceber o tratamento psicanalítico como essa espécie de pós-educação para superar as resistências internas. Mas em nenhum ponto essa pós-educação é mais necessária, nos doentes nervosos, do que no tocante ao elemento anímico de sua vida sexual. É que em parte alguma a cultura e a educação causaram danos tão grandes quanto justamente aí, e é também aí, como lhes mostrará a experiência, que se encontrarão as etiologias das neuroses passíveis de ser dominadas; quanto ao outro elemento etiológico, a contribuição constitucional, ele nos é dado como algo inalterável. Mas daí decorre uma importante exigência a ser feita ao médico. Não apenas ele próprio tem de ser de caráter íntegro - “Quanto à moral, nem é preciso falar”, como costumava dizer o personagem principal de Auch Einer, de Vischer - , como também deve ter superado, em sua própria pessoa, a mescla de concupiscência e puritanismo com que, lamentavelmente, tantos outros estão habituados a enfrentar os problemas sexuais.

Talvez seja este o lugar para fazer outra observação. Sei que minha ênfase no papel do sexual na formação das psiconeuroses tornou-se conhecida em amplos círculos. Mas sei também que as ressalvas e as particularizações precisas são de pouca serventia para o grande público; a multidão tem pouco espaço em sua memória e retém de uma tese apenas o núcleo bruto, dela criando para si uma versão extremada e fácil de gravar. É possível também que muitos médicos tenham feito uma vaga idéia de que, como conteúdo de minha doutrina, eu atribuiria a neurose, em última análise, à privação sexual. E esta não falta nas condições de vida de nossa sociedade. Quão fácil seria, com base nessa premissa, evitar o tortuoso e cansativo caminho do tratamento psíquico e aspirar diretamente à cura, recomendando como meio terapêutico a atividade sexual! Pois bem, não conheço nada que me pudesse induzir a sufocar essa conclusão, caso ela fosse justificada. Mas as coisas são diferentes. A necessidade e a privação sexuais são meramente um fator que entra em jogo no mecanismo da neurose; se houvesse apenas esse, o resultado não seria a doença, mas a devassidão. O outro fator, igualmente indispensável, mas esquecido com demasiada presteza, é a aversão do neurótico à sexualidade, sua incapacidade de amar, esse traço psíquico a que chamei “recalcamento”. Somente a partir do conflito entre as duas tendências é que irrompe a doença neurótica e, portanto, só raramente se pode descrever a recomendação da atividade sexual nas psiconeuroses como um bom conselho.

Permitam-me concluir com essa observação defensiva. Esperemos que seu interesse pela psicoterapia, uma vez depurado de quaisquer preconceitos hostis, venha apoiar-nos em nosso empenho de realizar de maneira satisfatória também o tratamento dos casos graves de psiconeurose.



NOTA DO EDITOR INGLÊS

ÜBER PSYCHOTHERAPIE

(a) EDIÇÕES EM ALEMÃO
(l904 12 de dezembro: pronunciada como conferência perante o Wiener medizinisches Doktorenkollegium.)
1905 Wien. med. Presse, 1º de janeiro, pp. 9-16.
1906 S.K.S.N. I, pp. 205-217. (1911, 2ª ed., pp. 201-212; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
1924 Technik und Metapsychol., pp. 11-24.
1925 G.S., 6, pp. 11-24.
1942 G.W., 5, pp. 13-26.

(b) TRADUÇÕES EM INGLÊS:
“On Psychotherapy”
1909 S.P.H., pp. 175-185. (Trad. de A.A. Brill.) (1912, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.)
1924   C.P., 1, pp. 249-263. (Trad. de J. Bernays.)

A presente tradução [inglesa] é uma versão consideravelmente modificada da que se publicou em 1924.

Esta parece ter sido a última conferência a ser proferida por Freud perante uma platéia exclusivamente médica. (Cf. Jones, 1955, p. 13.)


















MINHAS TESES SOBRE O PAPEL DA SEXUALIDADE NA ETIOLOGIA DAS NEUROSES


Sou de opinião que a melhor maneira de apreciar minha teoria sobre a importância etiológica do fator sexual para as neuroses é acompanhar seu desenvolvimento. É que de modo algum tenho a pretensão de negar que ela passou por um desenvolvimento e se modificou no decorrer dele. Meus colegas podem encontrar nessa confissão a garantia de que esta teoria não é nada além do precipitado de experiências ininterruptas e mais aprofundadas. O que nasce da especulação, ao contrário, pode facilmente surgir completo de um só golpe, e a partir de então manter-se imutável.
Originalmente, a teoria referia-se apenas aos quadros patológicos reunidos sob a denominação de “neurastenia”, dentre os quais reparei em dois tipos que às vezes se apresentam puros e que descrevi como “neurastenia propriamente dita” e“neurose de angústia”. Sempre se soube que os fatores sexuais poderiam desempenhar um papel na causação dessas formas [de doença], mas não se constatava sua atuação invariavelmente, nem se pensava em conferir-lhes precedência sobre outras influências etiológicas. Fiquei surpreso, a princípio, com a freqüência das grandes perturbações na vita sexualis dos pacientes nervosos; e quanto mais me empenhava em procurar essas perturbações - no que me apercebia de que todos os seres humanos ocultam a verdade nos assuntos sexuais -, quanto mais hábil me tornava para levar esse exame adiante, apesar de uma negação inicial, com maior regularidade descobria tais fatores patogênicos na vida sexual, até que me pareceu faltar pouco para presumir seu caráter universal. Mas era preciso aceitar de antemão que tais irregularidades sexuais ocorreriam com freqüência similar em nossa sociedade, sob a pressão das relações sociais, persistindo uma dúvida quanto ao grau de desvio do funcionamento sexual normal que se deveria considerar patogênico. Por isso, tive que dar menos valor à comprovação invariável das patologias sexuais do que a uma segunda constatação, que me pareceu menos ambígua. Viu-se que a forma da doença, fosse ela neurastenia ou neurose de angústia, mostrava uma relação constante com a natureza do prejuízo sexual. Nos casos típicos de neurastenia, tratava-se, em geral, de masturbação ou poluções freqüentes, enquanto, na neurose de angústia, havia fatores como o coitus interruptus, a “excitação frustrada” e outros, passíveis de demonstrar, nos quais o fator da descarga insuficiente da libido produzida parecia ser o elemento comum. Somente depois dessa experiência, fácil de fazer e corroborável com a freqüência que se desejasse, tive a coragem de reivindicar uma posição privilegiada para as influências sexuais na etiologia das neuroses. Além disso, nas formas mistas tão freqüentes de neurastenia e neurose de angústia, foi possível indicar a conjugação das etiologias supostas em cada uma das formas puras; e mais, tal bipartição na forma de manifestação da neurose parecia harmonizar-se bem com o caráter polar da sexualidade (o masculino e o feminino).
Nessa mesma época, enquanto atribuía à sexualidade essa importância para a gênese das neuroses simples, eu continuava a cultivar, no tocante às psiconeuroses (histeria e representações obsessivas), uma teoria psicológica pura em que o fator sexual só interessava como uma dentre várias fontes emocionais. Em colaboração com Josef Breuer, e com base em observações feitas por ele numa paciente histérica mais de dez anos antes, eu estudara o mecanismo da geração dos sintomas histéricos por meio da suscitação de lembranças durante o estado de hipnose; e assim chegamos a concluções que nos permitiram estabelecer a ponte entre a histeria traumática de Charcot e a histeria comum, não-traumática (Breuer e Freud, 1895). Fomos levados à concepção de que os sintomas histéricos eram efeitos persistentes de traumas psíquicos, e de que, por circunstâncias especiais, as somas de afeto a eles correspondentes tinham sido desviadas da elaboração consciente, com isso facilitando para si um caminho anormal para a inervação somática. Os termos “afeto estrangulado”, “conversão” e “ab-reação” resumem os marcos característicos dessa concepção.
Entretanto, considerando as estreitas ligações entre as psiconeuroses e as neuroses simples, tão extensas que a diferenciação diagnóstica nem sempre é fácil para as pessoas sem prática, os conhecimentos adquiridos num dos campos não poderiam demorar a se propagar também para o outro. Ademais, mesmo prescindindo dessa consideração, também o aprofundamento no mecanismo psíquico dos sintomas histéricos levou ao mesmo resultado. É que, seguindo cada vez mais o rastro dos traumas psíquicos de que derivavam os sintomas histéricos, através do procedimento “catártico” introduzido por Breuer e eu, acabava-se chegando a vivências pertencentes à infância do enfermo e relacionadas com sua vida sexual, inclusive nos casos em que uma emoção banal, de natureza não sexual, ocasionara a irrupção da doença. Sem levar em conta esses traumas da infância, era impossível elucidar os sintomas, cuja determinação eles tornavam compreensível, ou prevenir seu ressurgimento. Com isso, a incomparável importância das vivências sexuais para a etiologia das psiconeuroses parecia indubitavelmente estabelecida, e esse fato permanece até hoje como um dos pilares da teoria.
Quando se descreve essa teoria afirmando que a causa da neurose histérica, que persiste pela vida afora, reside em vivências sexuais da primeira infância, em sua maioria insignificantes em si mesmas, ela por certo soa bastante estranha. Mas quando se leva em conta o desenvolvimento histórico da doutrina, situando sua essência na tese de que a histeria é a expressão de um comportamento particular da função sexual do indivíduo, e de que esse comportamento já foi decisivamente determinado pelas primeiras influências e vivências atuantes na infância, fica-se com um paradoxo a menos, mas ganha-se um motivo para voltar a atenção para as repercussões das impressões infantis, que são sumamente importantes, apesar de terrivelmente negligenciadas até aqui.
Reservo para mais adiante a abordagem pormenorizada da questão de devermos ver nas vivências sexuais da infância a etiologia da histeria (e da neurose obsessiva), e retorno agora à forma adotada pela teoria em algumas pequenas publicações provisórias dos anos de 1895 e 1896 (Freud, 1896b e 1896c). A ênfase nos supostos fatores etiológicos permitiu, naquela época, confrontar as neuroses comuns, enquanto distúrbios com etiologia contemporânea, com as psiconeuroses, cuja etiologia deveria ser buscada principalmente nas vivências sexuais do passado. A doutrina culminou nesta tese: na vita sexualis normal, a neurose é impossível.
Embora ainda hoje eu não considere essas teses incorretas, não surpreende que, em dez anos de esforço contínuo para chegar ao conhecimento dessas relações, tenha ultrapassado em boa medida meus pontos de vista de então e me acredite agora em condições de corrigir, através da experiência aprofundada, as insuficiências, os deslocamentos e os mal-entendidos de que a doutrina padecia na época. O material ainda escasso dessa ocasião me havia trazido, por força do acaso, um número desproporcionalmente grande de casos em que a sedução por algum adulto ou por crianças mais velhas desempenhara o papel principal na história infantil do doente. Superestimei a freqüência desses acontecimentos (aliás impossíveis de pôr em dúvida), ainda mais que, naquele tempo, não era capaz de estabelecer com segurança a distinção entre as ilusões de memória dos histéricos sobre sua infância e os vestígios de eventos reais. Desde então, aprendi a decifrar muitas fantasias de sedução como tentativas de rechaçar lembranças da atividade sexual do próprio indivíduo (masturbação infantil). Esclarecido esse ponto, caiu por terra a insistência no elemento “traumático” presente nas vivências sexuais infantis, restando o entendimento de que a atividade sexual infantil (seja ela espontânea ou provocada) prescreve o rumo a ser tomado pela vida sexual posterior após a maturidade. Esse mesmo esclarecimento, que corrigiu o mais importante de meus erros iniciais, também tomou necessário modificar a concepção do mecanismo dos sintomas histéricos. Estes já não apareciam como derivados diretos das lembranças recalcadas das experiências infantis, havendo antes, entre os sintomas e as impressões infantis, a interposição das fantasias (ficções mnêmicas) do paciente (produzidas, em sua maior parte, durante os anos da puberdade), que, de um lado, tinham-se construído a partir das lembranças infantis e com base nelas, e, de outro, eram diretamente transformadas nos sintomas. Somente com a introdução do elemento das fantasias histéricas é que se tornaram inteligíveis a textura da neurose e seu vínculo com a vida do enfermo; evidenciou-se também uma analogia realmente espantosa entre essas fantasias inconscientes dos histéricos e as criações imaginárias que, na paranóia, tornam-se conscientes como delírios.
Depois dessa correção, os “traumas sexuais infantis” foram substituídos, em certo sentido, pelo “infantilismo da sexualidade”. Não estava longe uma segunda modificação da teoria original. Juntamente com a suposta freqüência da sedução na infância, caiu também por terra a ênfase exagerada nas influências acidentais sobre a sexualidade, às quais eu pretendera atribuir o papel principal na acusação da doença, embora nem por isso negasse os fatores constitucionais e hereditários. Chegara até mesmo a ter esperança de solucionar o problema da escolha da neurose (a decisão sobre a forma de psiconeurose a que o doente deveria sucumbir) através das particularidades das vivências sexuais infantis. E nessa época, embora com reservas, achava que a conduta passiva nessas cenas produzia a disposição específica para a histeria, ao passo que a conduta ativa predispunha à neurose obsessiva. Mais tarde, tive de abandonar por completo essa concepção, embora muitos fatos exigissem manter de algum modo a correlação pressentida entre passividade e histeria, atividade e neurose obsessiva. Com o recuo das influências acidentais da experiência para o segundo plano, os fatores da constituição e da hereditariedade voltaram necessariamente a predominar, porém com a diferença de que em minha teoria, ao contrário da visão que prevalece em outras áreas, a “constituição sexual’’ tomou o lugar da disposição neuropática geral. Em meus recém-publicados Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905d , ver em [1]), tentei descrever as múltiplas variedades dessa constituição sexual, bem como a composição interna da pulsão sexual como um todo e sua derivação das diferentes fontes do organismo que contribuem para originá-la.
Ainda no contexto da concepção modificada dos “traumas sexuais infantis’’, a teoria desenvolveu-se um pouco mais numa direção já anunciada nas publicações dos anos de 1894 a 1896. Já nessa época, e antes mesmo que se atribuísse à sexualidade seu devido lugar na etiologia, eu havia indicado, como condição da eficácia patogênica de uma experiência, que ela precisava parecer intolerável ao ego e provocar um esforço defensivo (Freud, 1894a). A essa defesa eu remetera a cisão psíquica (ou, como dizíamos na época, cisão da consciência) que ocorre na histeria. Sendo a defesa bem-sucedida, a vivência intolerável e suas conseqüências afetivas eram expulsas da consciência e da memória do ego; em certas circunstâncias, porém, o expelido desdobrava sua eficácia como algo agora inconsciente e retornava à consciência por meio dos sintomas e dos afetos presos a eles, de sorte que o adoecimento correspondia a um fracasso da defesa. Essa concepção tinha o mérito de penetrar no jogo das forças psíquicas e, com isso, aproximar os processos anímicos da histeria dos processos normais, em vez de situar a característica da neurose num distúrbio enigmático e não susceptível de análise ulterior.
Novas informações então obtidas com pessoas que haviam permanecido normais proporcionaram a inesperada descoberta de que sua história sexual infantil não diferia necessariamente, em essência, da vida infantil dos neuróticos e, em especial, o papel da sedução era o mesmo em ambos os casos. Assim, as influências acidentais recuaram ainda mais em contraste com o “recalcamento” (como comecei a dizer em lugar de “defesa”). Não importavam, portanto, as excitações sexuais que um indivíduo tivesse experimentado em sua infância, mas antes, acima de tudo, sua reação a essas vivências - se respondera ou não a essas impressões com o “recalcamento”. Viu-se que, no curso do desenvolvimento, a atividade sexual infantil era amiúde interrompida por um ato de recalcamento. Assim, o indivíduo neurótico sexualmente maduro geralmente trazia consigo, da infância, uma dose de “recalcamento sexual” que se exteriorizava ante as exigências da vida real, e as psicanálises de histéricos mostraram que seu adoecimento era conseqüência do conflito entre a libido e o recalcamento sexual, e que seus sintomas tinham o valor de compromissos entre as duas correntes anímicas.
Sem uma discussão minuciosa de minhas concepções do recalcamento eu não poderia esclarecer melhor essa parte da teoria. Basta remeter aqui a meus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905d), onde tentei lançar alguma luz, por parca que seja, nos processos somáticos em que se deve buscar a natureza da sexualidade. Ali expus o fato de que a disposição sexual constitucional da criança é incomparavelmente mais variada do que se poderia esperar, que merece ser chamada de “perversa polimorfa”, e que o chamado comportamento normal da função sexual brota dessa disposição mediante o recalcamento de certos componentes. Através da referência aos caracteres infantis da sexualidade pude estabelecer um vínculo simples entre a saúde, a perversão e a neurose. A normalidade mostrou ser fruto do recalcamento de certas pulsões parciais e certos componentes das disposições infantis, bem como da subordinação dos demais à primazia das zonas genitais a serviço da função reprodutora; as perversões correspondem a perturbações dessa síntese através do desenvolvimento preponderante e compulsivo de algumas das pulsões parciais, e a neurose remonta a um recalcamento excessivo das aspirações libidinais. Visto que quase todas as pulsões perversas da disposição infantil são comprováveis como forças formadoras de sintomas na neurose, embora se encontrem nela em estado de recalcamento, pude descrever a neurose como o “negativo” da perversão. (ver em [1])

Considero valioso enfatizar que, em minhas concepções sobre a etiologia das psiconeuroses, a despeito de todas as modificações, houve dois pontos de vista que nunca reneguei ou abandonei: a importância da sexualidade e do infantilismo. Afora isso, em lugar das influências acidentais coloquei fatores constitucionais, e a “defesa”, no sentido puramente psicológico, foi substituída pelo “recalcamento sexual” orgânico. Agora, se alguém perguntasse onde se há de encontrar uma prova mais concludente da suposta importância etiológica dos fatores sexuais nas psiconeuroses, já que se vê a irrupção dessas doenças em resposta às comoções mais banais e até mesmo a causas precipitantes somáticas, e já que foi preciso renunciar a uma etiologia específica sob a forma de vivências infantis particulares, eu nomearia a investigação psicanalítica dos neuróticos como a fonte de que brota minha convicção assim contestada. Quando nos servimos desse insubstituível método de investigação, inteiramo-nos de que os sintomas representam a atividade sexual do doente (na totalidade ou em parte) oriunda das fontes das pulsões parciais normais ou perversas da sexualidade. (ver em [1] e [2]) Não só uma boa parte da sintomatologia histérica deriva diretamente das expressões do estado de excitação sexual, e não só uma série de zonas erógenas eleva-se, na neurose, ao sentido de órgãos genitais, graças ao reforço de propriedades infantis, como também os mais complexos sintomas revelam-se como representações “convertidas” de fantasias que têm por conteúdo uma situação sexual. Quem sabe interpretar a linguagem da histeria pode perceber que a neurose só diz respeito à sexualidade recalcada do doente. Para isso, basta compreender a função sexual em sua devida extensão, circunscrita pela disposição infantil. Nos casos em que se precisa incluir uma emoção banal na causação do adoecimento, a análise mostra regularmente que o efeito patogênico foi produzido pelos infalíveis componentes sexuais da vivência traumática.
Passamos inadvertidamente da questão da causação das psiconeuroses para o problema de sua natureza essencial. Havendo uma disposição de levar em conta o que foi aprendido através da psicanálise, só se pode dizer que a essência dessas doenças reside em perturbações dos processos sexuais, ou seja, os processos que determinam no organismo a formação e a utilização da libido sexual. É muito difícil deixar de imaginar esses processos como sendo, em última análise, de natureza química, de modo que nas chamadas neuroses atuais devemos reconhecer os efeitos somáticos das perturbações do metabolismo sexual, e nas psiconeuroses, além deles, os efeitos psíquicos dessas perturbações. A semelhança das neuroses com os fenômenos de intoxicação por certos alcalóides e os fenômenos de abstinência deles, e também com a doença de Basedow e a de Addison, impõe-se de imediato clinicamente; e assim como estas duas últimas doenças já não podem ser descritas como ``doenças nervosas”, também as ``neuroses” propriamente ditas, apesar de sua denominação, logo terão de ser excluídas dessa classe.
Por conseguinte, pertence à etiologia das neuroses tudo o que pode atuar prejudicialmente sobre os processos que servem à função sexual. Assim, vêm em primeiro lugar os males que afetam a própria função sexual, na medida em que estes, variando conforme a cultura e a educação, são considerados nocivos à constituição sexual. Em segundo lugar vem toda sorte de outros males e traumas que, através do prejuízo generalizado do organismo, podem prejudicar secundariamente seus processos sexuais. Mas não se deve esquecer que o problema etiológico é pelo menos tão complicado nas neuroses quanto o é a causação em qualquer outra doença. Quase nunca basta uma única influência patogênica; na grande maioria dos casos exige-se uma multiplicidade de fatores etiológicos que apóiam uns aos outros e que, portanto, não devem ser colocados em oposição. Também por isso, o estado neurótico não pode ser nitidamente distinguido da saúde. O adoecimento é resultado de uma soma, e esse total de determinantes etiológicos pode ser completado por qualquer lado. Buscar a etiologia das neuroses exclusivamente na hereditariedade ou na constituição seria tão unilateral quanto pretender atribuir essa etiologia unicamente às influências acidentais que atuam sobre a sexualidade durante a vida, quando o discernimento mostra que a essência dessas situações de adoecimento reside apenas numa perturbação dos processos sexuais no organismo.
Viena, junho de 1905.

NOTA DO EDITOR INGLÊS

MEINE ANSICHTEN ÜBER DIE ROLLE DER SEXUALITÄT IN DER ÄTIOLOGIE DER NEUROSEN

(a) EDIÇÕES EM ALEMÃO:
(1905 Junho. Data do manuscrito.)
 1906 Em E. Loewenfeld, Sexualleben und Nervenleiden, 4ª ed. (1914, 5ª ed., pp. 313-322), Wiesbaden: Bergmann.
1906 S.K.S.N., I, pp. 225-234. (1911, 2ª ed., pp. 220-229; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.).
1924 G.S., 5, pp. 123- 133.
1942 G.W., 5, pp. 149-159.

(b) TRADUÇÕES EM INGLÊS:

“My Views on the Rôle of Sexuality in the Etiology of the Neuroses”
1909 S.P.H., pp. 186-193. (Trad. de A.A. Brill.) (1912, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.)

“My Views on the Part Played by Sexuality in the Aetiology of the Neuroses”
1924 C.P. 1, pp. 272-283. (Trad. de J. Bernays.)

A presente tradução [inglesa] é nova, da autoria de James Strachey.

As edições anteriores do livro de Loewenfeld haviam incluído discussões sobre as teses de Freud; para a quarta edição, porem, Loewenfeld convenceu Freud a redigir esse artigo. Freud concordou em revisá-lo para a quinta edição, mas, na verdade, fez apenas uma única alteração trivial.
O traço mais notável desse artigo é que ele contém a primeira revogação cabal da crença de Freud na etiologia traumática da histeria, bem como sua primeira insistência na importância das fantasias (opiniões que ele comunicara a Fliess em particular muitos anos antes). Ver a partir de [1] e em [2].



















TRATAMENTO PSÍQUICO (OU ANÍMICO) (1905)


“Psyche” é uma palavra grega e se concebe, na tradução alemã, como alma. Tratamento psíquico significa, portanto, tratamento anímico. Assim, poder-se-ia pensar que o significado subjacente é: tratamento dos fenômenos patológicos da vida anímica. Mas não é este o sentido dessas palavras. “Tratamento psíquico’’ quer dizer, antes, tratamento que parte da alma, tratamento - seja de perturbações anímicas ou físicas - por meios que atuam, em primeiro lugar e de maneira direta, sobre o que é anímico no ser humano.
Um desses meios e sobretudo a palavra, e as palavras são também a ferramenta essencial do tratamento anímico. O leigo por certo achara difícil compreender que as perturbações patológicas do corpo e da alma possam ser eliminadas através de “meras” palavras. Achará que lhe estão pedindo para acreditar em bruxarias. E não estará tão errado assim: as palavras de nossa fala cotidiana não passam de magia mais atenuada. Mas será preciso tomarmos um caminho indireto para tornar compreensível o modo como a ciência é empregada para restituir às palavras pelo menos parte de seu antigo poder mágico.
Só em época recente, além disso, os médicos de formação científica aprenderam a apreciar o valor do tratamento anímico. Isso se esclarece facilmente ao pensarmos no curso de desenvolvimento da medicina neste último meio século. Após um período bastante infrutífero de dependência da chamada filosofia da natureza, a medicina, sob a influência propícia das ciências naturais, fez seus maiores progressos, tanto na qualidade de ciência como na de arte: desvendou a composição do organismo a partir de unidades microscopicamente pequenas (as células), aprendeu a compreender física e quimicamente cada um dos processos (funções) vitais, distinguiu as modificações visáveis e palpáveis das partes do corpo em conseqüência dos diferentes processos patológicos, e descobriu, por outro lado, os indícios pelos quais se revelam os processos patológicos entranhados a fundo no organismo vivo; desvendou ainda um grande número dos micróbios patogênicos e, com a ajuda dos conhecimentos recém-adquiridos, reduziu extraordinariamente os perigos das intervenções cirúrgicas mais graves. Todos esses progressos e descobertas diziam respeito ao aspecto físico do ser humano, e assim, em conseqüência de uma linha de raciocínio incorreta, mas facilmente compreensível, os médicos passaram a restringir seu interesse ao corporal e de bom grado deixaram aos filósofos, a quem menosprezavam, a tarefa de se ocuparem do anímico.
É verdade que a medicina moderna tinha motivos suficientes para estudar o incontestável vínculo existente entre o físico e o anímico, mas nunca deixou de representar o anímico como determinado pelo físico e dependente deste. Assim, enfatizou-se que o funcionamento intelectual estaria ligado à existência de um cérebro normalmente desenvolvido e suficientemente nutrido, e que qualquer adoecimento desse órgão faria com que se incorresse em perturbações; que a introdução de substâncias tóxicas na circulação poderia produzir certos estados de doença mental, ou, em pequena escala, que os sonhos do sujeito adormecido seriam modificáveis conforme os estímulos que se fizesse atuar sobre ele para fins experimentais.
A relação entre o físico e o anímico (tanto nos animais quanto no ser humano) é recíproca, mas o outro lado dessa relação, o efeito do anímico no corpo, encontrou pouca aceitação aos olhos dos médicos em épocas anteriores. Eles pareciam temerosos de conceder uma certa autonomia à vida anímica, como se com isso fossem abandonar o terreno da cientificidade.
Essa orientação unilateral da medicina para o aspecto físico passou, na última década e meia, por uma modificação gradual diretamente oriunda da prática médica. Ocorre que há um grande número de doentes de maior ou menor gravidade que, por seus distúrbios e queixas, fazem grandes exigências à habilidade do médico, mas em quem não se encontram sinais visíveis e palpáveis do processo patológico, seja durante a vida ou depois da morte, apesar de todos os progressos dos métodos de investigação da medicina científica. Um grupo desses doentes destaca-se pela abundância e pela variedade multiforme do quadro patológico; não podem fazer nenhum trabalho intelectual, em conseqüência de dores de cabeça ou insuficiência da atenção, seus olhos doem durante a leitura, suas pernas se cansam ao andar, ficando pesadas, doloridas ou dormentes, sua digestão é perturbada por sensações dolorosas, eructações ou espasmos gástricos, a defecação não se dá sem a ajuda de laxativos, o sono é abolido etc. Eles podem ter todos esses males simultaneamente ou em sucessão, ou sofrer apenas de uma seleção deles; na totalidade dos casos, trata-se obviamente da mesma doença. Apesar disso, os sinais da doença são amiúde mais variáveis, revezando-se entre si e substituindo uns aos outros; um mesmo doente, até então incapaz de trabalhar por causa das dores de cabeça, mas com uma digestão bastante boa, pode no dia seguinte desfrutar de uma cabeça desembaraçada, mas a partir daí suportar mal a maioria dos alimentos. Da mesma forma, seus padecimentos o abandonam subitamente ao sobrevir uma modificação em suas condições de vida; numa viagem, pode sentir-se perfeitamente bem e saborear sem prejuízo a mais diversificada dieta, mas, de volta a casa, talvez tenha de restringir-se novamente à coalhada. Em alguns desses doentes, a perturbação - seja ela uma dor ou uma fraqueza nos moldes de uma paralisia - pode até trocar repentinamente de lado no corpo, passando da direita para a área correspondente no lado esquerdo. Em todos, porém, é possível observar que os sinais de padecimento estão muito claramente sob a influência das excitações, comoções, preocupações etc., e também que desaparecem, podendo dar lugar a uma saúde plena, sem deixar nenhum vestígio, nem mesmo após uma longa permanência.
A investigação médica finalmente mostrou que essas pessoas não devem ser consideradas nem tratadas como doentes gástricos, doentes dos olhos ou similares, mas que, nelas, trata-se de uma doença do sistema nervoso como um todo. Até aqui, entretanto, a investigação do cérebro e dos nervos desses doentes não permitiu encontrar nenhuma modificação palpável, e alguns dos aspectos do quadro patológico chegam até a proibir a expectativa de que um dia se possa apontar, com meios de investigação mais apurados, modificações de tal ordem que sejam capazes de esclarecer a doença. Tem-se conferido a esse estado o nome de nervosismo (neurastenia, histeria), qualificando-o como uma doença meramente “funcional” do sistema nervoso. Aliás, também em muitas doenças nervosas mais duradouras, e naquelas que produzem apenas sinais patológicos anímicos (as chamadas idéias obsessivas, idéias delirantes, demência), o exame pormenorizado do cérebro (após a morte do doente) não trouxe nenhum resultado.
Coube assim aos médicos investigar a natureza e a origem das manifestações patológicas desses doentes nervosos ou neuróticos. Nesse processo, fez-se então a descoberta de que, pelo menos numa parcela desses enfermos, os sinais da doença não provinham de outra coisa senão uma influência modificada da vida anímica sobre seu corpo, devendo-se portanto buscar no anímico a causa imediata da perturbação. Quais são as causas remotas de cada distúrbio pelo qual o anímico é afetado (o que, por sua vez, tem uma atuação perturbadora sobre o físico) constitui uma outra questão, que bem podemos deixar de considerar aqui. Mas a ciência médica encontrou nisso a oportunidade de voltar plenamente sua atenção para o lado até então negligenciado da relação recíproca entre o corpo e a alma.
Só depois de estudar o patológico é que se compreende a normalidade. Muito do que sempre se soube acerca da influência do anímico sobre o corpo só então se desloca para sua perspectiva correta. O exemplo mais corriqueiro de atuação anímica sobre o corpo, observado regularmente e em todas as pessoas, é fornecido pela chamada “expressão das emoções”. Quase todos os estados anímicos de um homem exteriorizam-se nas tensões e relaxamentos de seus músculos faciais, na focalização de seus olhos, no afluxo de sangue para sua pele, no emprego [variável] de seu aparelho vocal e na postura de seus membros, sobretudo as mãos. Essas modificações físicas concomitantes em geral não trazem nenhum benefício à pessoa em questão, mas, ao contrário, são amiúde obstáculos a suas intenções, quando ela quer ocultar dos outros seus processos anímicos; para esses outros, no entanto, servem como sinais fidedignos pelos quais é possível inferir os processos anímicos, e nos quais se deposita maior confiança do que em qualquer das expressões intencionais feitas simultaneamente em palavras. Quando se tem possibilidade de submeter alguém a um exame mais rigoroso durante uma dada atividade anímica, outras conseqüências físicas dessa atividade são encontradas nas modificações de seu funcionamento cardíaco, nas alterações da distribuição de sangue em seu corpo, e coisas similares.
Em certos estados anímicos chamados de “afetos”, a participação do corpo é tão evidente e intensa que alguns estudiosos da alma chegaram até a pensar que a essência do afeto consistiria apenas nessas suas exteriorizações físicas. São genericamente conhecidas as extraordinárias mudanças na expressão facial, na circulação sangüínea, nas secreções e nos estados de excitação da musculatura voluntária sob a influência, por exemplo, do medo, da cólera, da dor psíquica e do deleite sexual. Menos conhecidos, embora estabelecidos com plena certeza, são outros efeitos físicos dos afetos que já não são próprios da expressão deles. Os estados afetivos persistentes de natureza penosa, ou, como se costuma dizer, “depressiva”, tais como desgosto, a preocupação e a tristeza, abatem a nutrição do corpo como um todo, causam o embranquecimento dos cabelos, fazem a gordura desaparecer e provocam alterações patológicas nas paredes dos vasos sangüíneos. Inversamente, sob a influência de excitações mais alegres, da “felicidade”, vê-se o corpo inteiro desabrochar e a pessoa recuperar muitos sinais de juventude. Evidentemente, os grandes afetos têm muito a ver com a capacidade de resistência às doenças infecciosas; um bom exemplo disso é a observação médica de que a propensão a contrair tifo e disenteria é muito mais significativa nos membros de um exército derrotado do que na situação de vitória. Ademais, os afetos - embora quase que exclusivamente os depressivos - muitas vezes bastam por si mesmos para ocasionar doenças, tanto no tocante aos males do sistema nervoso com alterações anatômicas demonstráveis quanto no que concerne às doenças de outros órgãos, situação na qual temos de supor que a pessoa em causa já tinha uma predisposição para tal doença, até ali inoperante.
Os estados patológicos já formados podem ser sumamente influenciados pelos afetos tempestuosos, quase sempre no sentido de um agravamento, mas tampouco faltam exemplos em que um grande choque ou um desgosto súbito, mediante uma alteração peculiar no tono do organismo, tem uma influência salutar sobre um estado patológico bem consolidado ou chega mesmo a aboli-lo. Por fim, não há dúvida alguma de que a duração da vida pode ser consideravelmente abreviada pelos afetos depressivos, do mesmo modo que um choque mais violento, uma “injúria” contundente ou uma humilhação podem dar um fim repentino à vida; o curioso é que, vez por outra, este último efeito é também observado como conseqüência de uma grande e inesperada alegria.
Os afetos, num sentido mais estrito, distinguem-se por um vínculo muito especial com os processos físicos, mas, a rigor, todos os estados anímicos, inclusive aqueles que estamos acostumados a considerar como “processos de pensamento” são “afetivos” numa certa medida, e nenhum deles carece de manifestações físicas e da capacidade de modificar os processos corporais. Mesmo enquanto se está tranqüilamente pensando por meio de “representações”, correspondem ao conteúdo dessas representações várias excitações constantes, desviadas para os músculos lisos e estriados; estas, mediante o reforço apropriado, podem tornar-se claras e fornecer a elucidação de muitos fenômenos estranhos e até supostamente “sobrenaturais”. Assim, por exemplo, a chamada “advinhação do pensamento” [Gedanken erraten] se esclarece por pequeninos movimentos musculares involuntários executados pelo “médium” quando se faz uma experiência com ele - algo como um deixar-se guiar por ele para encontrar um objeto escondido. O fenômeno inteiro merece, antes, o nome de traição do pensamento [Gedanken verraten].
Os processos de volição e atenção também são capazes de influenciar profundamente os processos físicos e de desempenhar, nas doenças somáticas, um grande papel fomentador ou inibidor. Um grande médico inglês relatou que consegue provocar, em qualquer parte do corpo para a qual queira dirigir sua atenção, uma multiplicidade de sensações e dores, e a maioria dos seres humanos parece comportar-se de maneira parecida. Ao formar um juízo sobre as dores, que se costuma considerar como fenômenos físicos, em geral cabe levar em conta sua claríssima dependência das condições anímicas. Os leigos, que de bom grado reúnem tais influências anímicas sob o nome de ``imaginação’’, costumam ter pouco respeito pelas dores decorrentes da imaginação, em contraste com as que são causadas por lesões, doenças ou inflamações. Mas isso e evidentemente injusto: qualquer que seja sua causa, inclusive a imaginação, as dores em si nem por isso são menos reais ou menos violentas.
Assim como as dores são produzidas ou intensificadas em se voltando a atenção para elas, também desaparecem pelo desvio da atenção. Essa experiência pode ser utilizada com todas as crianças para acalmá-las; os soldados adultos não sentem a dor da ferida no entusiasmo febril da batalha; é muito provável que os mártires, no ardor desmedido de seu sentimento religioso e voltando todos os seus pensamentos para as recompensas com que lhes acena o paraíso, fiquem perfeitamente insensíveis às dores de sua tortura. É menos fácil comprovar através de exemplos a influência da volição nos processos patológicos do corpo, mas é muito possível que a determinação de curar-se ou a vontade de morrer não sejam desprovidas de importância nem mesmo para o desfecho dos casos mais graves e mais duvidosos de doença.
Tem extremo direito a nosso interesse o estado anímico da expectativa, por meio do qual pode ser mobilizada uma série de forças anímicas de suma eficácia para a instauração e a cura das doenças físicas. A expectativa angustiada por certo não deixa de influenciar o resultado; seria importante saber com certeza se ela contribui tanto para o adoecimento quanto se acredita, se é verdade, por exemplo, que em meio a uma epidemia correm maior perigo aqueles que têm medo de adoecer. O estado inverso - a expectativa confiante e esperançosa - é uma força atuante com que temos de contar, a rigor, em todas as nossas tentativas de tratamento e cura. De outro modo, não poderíamos explicar a peculiaridade dos efeitos observados dos medicamentos e intervenções terapêuticas. Dentre os mais palpáveis está a influência da expectativa confiante nas chamadas curas miraculosas, ainda hoje efetuadas diante de nossos olhos sem a colaboração de nenhuma habilidade médica. As curas milagrosas típicas realizam-se nos crentes sob a influência de cerimônias próprias para intensificar os sentimentos religiosos, ou seja, em lugares onde se adora uma imagem milagrosa, ou onde uma figura santa ou divina revelou-se aos homens e lhes prometeu alívio como recompensa por sua adoração, ou onde as relíquias de um santo são preservadas como um tesouro. Não parece fácil à fé religiosa, por si só, suprimir a doença pelo caminho da expectativa, pois, em geral, há ainda o concurso de outras coisas nas curas milagrosas. As ocasiões em que se busca a clemência divina têm de ser indicadas por condições especiais; o esforço físico que o doente se impõe, as dores e sacrifícios da peregrinação devem torná-lo digno dessa regra especial.
Seria conveniente, mas muito equivocado, simplesmente recusar crédito a essas curas milagrosas e pretender explicar os relatos feitos sobre elas através de uma combinação de engodo devoto e observação inexata. Por mais que essa tentativa de explicação possa amiúde justificar-se, ainda assim não tem o poder de descartar por completo o fato das curas miraculosas. Elas realmente ocorrem, deram-se em todas as épocas e dizem respeito não só às doenças de origem anímica, ou seja, àquelas que se fundamentam na “imaginação” e podem justamente ser afetadas de maneira especial pelas circunstâncias da romaria, mas também aos estados patológicos fundamentados no “orgânico” e até então resistentes a todos os esforços médicos.
Mas não há nenhuma necessidade de recorrer a outra coisa senão os poderes anímicos para esclarecer as curas milagrosas. Nem mesmo nessas condições manifestam-se efeitos que possamos considerar inconcebíveis para nossa cognição. Tudo se passa naturalmente; de fato, o poder da fé religiosa recebe aí um reforço de muitas forças pulsionais tipicamente humanas. A crença religiosa de cada um é intensificada pelo entusiasmo da multidão em meio à qual ele costuma aproximar-se do local sagrado. Todas as moções anímicas de cada ser humano podem ser imensamente ampliadas por esse efeito das massas. Quando alguém vai sozinho em busca da cura no lugar miraculoso, são a fama e o prestígio do lugar que substituem a influência da multidão, e portanto, mais uma vez, é apenas o poder da multidão que exerce seu efeito. Essa influência também se faz sentir de mais outra maneira. Sabe-se que a misericórdia divina mostra-se apenas a alguns dentre os muitos que a ela recorrem, e cada qual gostaria de estar entre os distinguidos e eleitos; a ambição que dormita em cada um vem em socorro da fé religiosa. Quando tantas forças poderosas colaboram, não nos deve surpreender que, vez por outra, a meta seja realmente alcançada.
Tampouco os que não têm crença religiosa precisam renunciar às curas milagrosas. Para eles, o prestígio e o efeito das massas substituem completamente a crença religiosa. Há em todas as épocas tratamentos da moda e médicos da moda, que exercem um domínio especial na alta sociedade, onde as forcas pulsionais anímicas mais poderosas são representadas pelo esforço de exceder uns aos outros e imitar os mais aristocráticos. Tais tratamentos da moda ostentam efeitos terapêuticos que estão fora de seu alcance, e um mesmo procedimento rende muito mais nas mãos de um médico da moda, que talvez se tenha tornado conhecido por assistir alguma personalidade de destaque, do que pode render nas de outro médico. Assim, tanto há milagreiros humanos quanto divinos, só que os homens que se servem desses favores da moda e da imitação para galgar uma posição de prestígio perdem-na rapidamente, como e da natureza das forças que atuaram para consegui-la.
A compreensível insatisfação com a ajuda amiúde insuficiente da arte medicinal, e talvez também a rebeldia interna contra o rigor do pensamento científico, que reflete para os homens a inexorabilidade da natureza, criaram em todas as épocas, e novamente em nossos dias, uma curiosa condição para o poder curativo das pessoas e dos procedimentos. A expectativa confiante só se produz quando aquele que presta assistência não é médico e pode vangloriar-se de não entender nada da fundamentação científica da terapêutica, e quando o procedimento não foi comprovado por um teste rigoroso, mas é recomendado por alguma preferência popular. Daí a profusão de terapias naturais e terapeutas naturais que ainda hoje fazem concorrência aos médicos no exercício de sua profissão, e dos quais podemos ao menos dizer, com alguma certeza, que com muito mais freqüência trazem prejuízos do que benefícios aos que buscam a cura. Se temos nisso uma base para censurar a expectativa confiante dos doentes, ainda assim não devemos ser tão ingratos a ponto de esquecer que essa mesma força apóia continuamente nossos próprios esforços médicos. É provável que o efeito de cada procedimento prescrito pelo médico, de cada intervenção feita por ele, componha-se de duas partes. E uma delas, ora maior, ora menor, mas que nunca deve ser de todo desprezada, é fornecida pela conduta anímica do doente. A expectativa confiante com que ele vai ao encontro da influência direta de uma providência médica depende, de um lado, da extensão de sua própria ânsia de cura, e, de outro, de sua confiança em ter dado o passo certo para isso, ou seja, de seu respeito pela arte médica em geral; depende ainda do poder que ele atribui à pessoa do médico, e até mesmo da simpatia puramente humana que este desperta nele. Há médicos cuja capacidade de conquistar a confiança dos doentes tem um grau mais elevado que em outros; nesses casos, é freqüente o enfermo já sentir um alívio ao ver o médico entrar em seu quarto.
Os médicos têm praticado o tratamento anímico desde sempre, ainda mais abundantemente em épocas remotas do que hoje em dia. Quando entendemos por tratamento psíquico o esforço de provocar no doente os estados e condições anímicos mais propícios para a cura, vemos que esse tipo de tratamento médico é, historicamente, o mais antigo. Os povos da antigüidade mal dispunham de outra coisa senão o tratamento psíquico; e nunca deixavam de apoiar o efeito das poções curativas e das medidas terapêuticas mediante um tratamento anímico insistente. Os conhecidos usos de fórmulas mágicas, banhos purificadores e invocação de sonhos oraculares dormindo no salão do templo, entre outros, só podem ter-se tornado curativos por via psíquica. A própria personalidade do médico adquiria prestígio por derivar diretamente do poder divino, já que, em seus primórdios, a arte curativa estava nas mãos dos sacerdotes. Assim, tanto naquela época quanto hoje, a pessoa do médico era uma das condições principais para promover no doente o estado psíquico propício a cura.
Agora começamos também a compreender a “magia” das palavras. É que as palavras são o mediador mais importante da influência que um homem pretende exercer sobre o outro; as palavras são um bom meio de provocar modificações anímicas naquele a quem são dirigidas, e por isso já não soa enigmático afirmar que a magia das palavras pode eliminar os sintomas patológicos, sobretudo aqueles que se baseiam justamente nos estados psíquicos.
Todas as influências anímicas que se revelaram eficazes na eliminação das doenças têm algo de incerto. Os afetos, a concentração da vontade, o desvio da atenção, a expectativa confiante, todas essas forças, que ocasionalmente eliminam a doença, deixam de fazê-lo em outros casos sem que se possa responsabilizar a natureza da doença pelo resultado diferente. Evidentemente, é o caráter autocrático das personalidades psiquicamente tão diversas que estorva a regularidade dos resultados terapêuticos. Desde que os médicos reconheceram com clareza a importância do estado anímico para a cura, ocorreu-lhes, naturalmente, fazer uma tentativa de não mais deixar a critério do enfermo o tanto de boa vontade psíquica que nele se produziria, mas forçar energicamente o estado anímico propício por meios adequados. Foi nesse esforço que teve origem o moderno tratamento anímico.
Assim se produziu toda uma quantidade de modos de tratamento, alguns bastante evidentes, outros somente acessíveis à compreensão depois de hipóteses complexas. É evidente, por exemplo, que o médico, já não podendo hoje inspirar admiração como sacerdote ou como possuidor de um saber secreto, há de usar sua personalidade de modo a poder ganhar a confiança e uma parcela da simpatia de seu paciente. Já atenderá a uma distribuição conveniente que ele consiga esse resultado apenas com um número restrito de enfermos, enquanto outros, por seu grau de formação e suas inclinações, serão atraídos para a pessoa de outros médicos. Entretanto, com a abolição da livre escolha do médico, aniquila-se uma importante precondição para influenciar o doente em termos anímicos.
Há toda uma série de meios psíquicos muito eficazes de que o médico deve privar-se. Ou não tem o poder, ou não pode arrogar-se o direito de invocá-los. Isso se aplica sobretudo à provocação dos afetos mais intensos e, portanto, aos meios mais importantes pelos quais o anímico atua sobre o físico. O destino muitas vezes cura as doenças através das grandes emoções de alegria, da satisfação das necessidades e da realização dos desejos, com os quais o médico, amiúde impotente fora de sua arte, não pode rivalizar. Estaria antes em seu poder provocar medo e terror para fins curativos, mas, exceto no caso de crianças, ele deve ponderar muito sobre o recurso a essas medidas perigosas. Por outro lado, o médico deve romper todas as relações com os doentes que estejam ligadas a sentimentos de ternura, por causa da significação vital desses estados anímicos. E assim, seu poder de promover modificações anímicas em seus doentes parece tão reduzido desde o início que o tratamento anímico deliberadamente intensificado não prometeria nenhuma vantagem sobre o método anterior.
O médico pode tentar dirigir algo da função volitiva e da atenção do doente, e em diversos estados patológicos tem bons motivos para isso. Quando obriga persistentemente alguém que se crê paralítico a fazer os movimentos que supostamente lhe são impossíveis, ou ao recusar um exame a um paciente nervoso que insiste em ser examinado por uma doença que certamente não existe, o médico estará seguindo o rumo de tratamento correto, mas esses casos isolados dificilmente justificariam situarmos o tratamento anímico como um procedimento terapêutico especial. Em contrapartida, existe um caminho singular e imprevisto que oferece ao médico a possibilidade de exercer uma influência profunda, se bem que transitória, sobre a vida anímica de seus pacientes, e de utilizá-la para fins terapêuticos.
Sabe-se há muito tempo, embora somente nas últimas décadas isso tenha-se elevado acima de qualquer dúvida, que é possível, mediante certas ações suaves, transportar as pessoas para um estado anímico totalmente peculiar, que tem muita semelhança com o sono e por isso é chamado de hipnose. À primeira vista, os procedimentos para produzir a hipnose não têm muita coisa em comum. Pode-se hipnotizar alguém fazendo-o olhar fixamente para um objeto brilhante por alguns minutos, ou segurando um relógio pelo mesmo espaço de tempo junto ao ouvido do sujeito experimental, ou ainda passando repetidamente as mãos espalmadas, a uma pequena distância, sobre seu rosto e membros. Mas também se pode chegar a esse mesmo resultado avisando a pessoa a quem se pretende hipnotizar, com tranqüila segurança, sobre a chegada do estado hipnótico e suas particularidades, ou seja, “fazendo-a crer” na hipnose. Também é possível vincular esses dois procedimentos. Deixa-se a pessoa sentar, ergue-se um dedo diante de seus olhos, ordenando-lhe que o encare fixamente, e então diz-se a ela: “Você está-se sentindo cansada. Seus olhos já estão fechando, você não consegue mantê-los abertos. Seus membros estão pesados, você já não consegue movimentá-los. Está adormecendo…” etc. Observe-se ainda que todos esses procedimentos têm em comum a fixidez da atenção; nos primeiros a ser mencionados, trata-se de fatigar a atenção mediante estímulos sensoriais fracos e uniformes. Ainda não está satisfatoriamente esclarecido o modo como a mera conversa provoca exatamente o mesmo estado que os demais procedimentos. Os hipnotizadores habilidosos afirmam que a partir desses meios consegue-se uma clara modificação hipnótica em cerca de oitenta por cento dos sujeitos experimentais. Mas não há nenhum indício pelo qual se possa saber de antemão quais as pessoas hipnotizáveis e quais as que não o são. O estado patológico de modo algum faz parte das precondições da hipnose: as pessoas normais costumam deixar-se hipnotizar com especial facilidade, enquanto os neuróticos são muito mais difíceis de hipnotizar e os doentes mentais são completamente rebeldes. O estado hipnótico tem muitas gradações diferentes; no grau mais leve, o hipnotizado sente apenas algo como uma ligeira insensibilidade, enquanto o grau mais elevado e marcado por curiosidades especiais é chamado de sonambulismo, por sua semelhança com o fenômeno natural observável de andar durante o sono. Mas a hipnose de modo algum é como nosso sono noturno ou como o sono provocado por soporíferos. Nela ocorrem mudanças e se conservam funções anímicas que faltam ao sono normal.
Muitos dos fenômenos da hipnose, como as alterações da atividade muscular, têm apenas um interesse científico. Mas a marca mais significativa da hipnose, e para nós a mais importante, reside na atitude do hipnotizado perante seu hipnotizador. Enquanto o hipnotizado comporta-se perante o mundo externo como se estivesse adormecido, com todos os seus sentidos desviados dele, está desperto para a pessoa que o hipnotizou: vê e ouve apenas a ela, compreende-a e lhe dá respostas. Esse fenômeno, chamado de rapport na hipnose, encontra um paralelo na maneira como algumas pessoas dormem - por exemplo, a mãe que está amamentando um filho. Trata-se de algo tão curioso que há de facilitar nosso entendimento da relação entre o hipnotizado e o hipnotizador.
Mas o fato de o mundo do hipnotizado estar como que restrito ao hipnotizador não é tudo. Ocorre ainda que o primeiro torna-se completamente dócil perante o segundo, ficando obediente e crédulo, e de um modo quase ilimitado na hipnose profunda. Na maneira como se dão essa obediência e essa credulidade mostra-se então, como característica do estado de hipnose, que a influência da vida anímica sobre o físico aumenta extraordinariamente no hipnotizado. Se o hipnotizador diz “Você não pode movimentar seu braço”, o braço cai inerte; é óbvio que o hipnotizado se empenha com todas as suas forças, mas não consegue movê-lo. Se o hipnotizador diz “Seu braço está se mexendo sozinho, e você não consegue detê-lo”, lá está o braço a se movimentar, e vemos o hipnotizado fazer esforços inúteis para mantê-lo quieto. A representação que o hipnotizador forneceu ao hipnotizado através da palavra provocou nele precisamente a relação anímico-física correspondente ao conteúdo da representação. Existe nisso, de um lado, a obediência, mas de outro há um aumento da influência física de uma idéia. A palavra, nesse caso, volta realmente a tornar-se magia.
O mesmo se dá no campo das percepções sensoriais. Diz o hipnotizador: “Você está vendo uma cobra, está cheirando uma rosa, está ouvindo a mais linda música”, e o hipnotizado vê, cheira e ouve o que dele exige a representação que lhe é fornecida. E como sabemos que ele realmente tem essas percepções? Poder-se-ia pensar que está apenas fingindo, mas não há razão alguma para duvidar disso, já que ele se comporta exatamente como se de fato as tivesse: expressa os afetos pertinentes a elas e pode também, em algumas circunstâncias, descrever depois da hipnose suas percepções e vivências imaginárias. Percebe-se então que ele viu e ouviu tal como vemos e ouvimos nos sonhos, ou seja, que alucinou. Obviamente, é tão crédulo perante o hipnotizador que está convencido de que devia haver uma cobra a ser vista quando o hipnotizador lhe anunciou isso; e essa convicção teve um efeito tão intenso no corpo que ele realmente viu a cobra, coisa que, aliás, pode acontecer também com pessoas que não estão hipnotizadas.
Observe-se, de passagem, que uma credulidade como a que é demonstrada pelo hipnotizado perante o hipnotizador, fora da hipnose e na vida real, só é encontrada nos filhos perante os pais amados, e que uma adaptação semelhante da própria vida anímica à de outra pessoa, com uma submissão análoga, encontra um paralelo único, mas integral, em algumas relações amorosas plenas de dedicação. A combinação da estima exclusiva com a obediência crédula costuma estar entre as marcas distintivas do amor.
Há ainda alguns pontos a relatar sobre o estado hipnótico. A fala do hipnotizador, que exibe os efeitos mágicos anteriormente descritos, é chamada de sugestão, e acostumamo-nos a empregar esse termo também quando há, em princípio, meramente a intenção de provocar um efeito semelhante. Tal como o movimento e a sensação, todas as outras atividades anímicas do hipnotizado obedecem a essa sugestão, ao passo que ele não costuma tomar nenhuma iniciativa espontaneamente. Pode-se explorar a obediência hipnótica para fazer uma série de experimentos sumamente curiosos, que proporcionam um profundo conhecimento do mecanismo anímico e produzem no observador uma convicção inextirpável do insuspeitado poder do anímico sobre o físico. Tal como o hipnotizado pode ser forçado a ver o que não está ali, pode também ser proibido de ver algo que está presente e que pretende impor-se a seus sentidos, como, por exemplo, determinada pessoa (a chamada “alucinação negativa”); essa pessoa descobre então ser impossível fazer-se notar pelo hipnotizado através de qualquer tipo de estimulação; é tratada por ele “como se fosse feita de vento”. Pode-se sugerir ao hipnotizado que pratique certa acão determinado tempo depois de despertar da hipnose (a “sugestão pós-hipnótica’’), e ele observa esse prazo e executa a ação sugerida em seu estado desperto, sem que possa fornecer nenhuma razão para ela. Indagado sobre por que fez o que fez, ou se referirá a um impulso obscuro a que não pôde resistir, ou inventará algum pretexto óbvio e precário, sem se lembrar da verdadeira razão - a sugestão que lhe foi feita.
O despertar da hipnose decorre sem esforço da intervenção imperiosa do hipnotizador: “Acorde!” Depois da hipnose mais profunda, não há lembrança de nada do que nela foi vivenciado sob a influência do hipnotizador. Esse trecho da vida anímica [do sujeito] fica como que isolado do restante. Outros hipnotizados guardam uma lembrança de caráter onírico, e outros ainda lembram-se de tudo, mas relatam ter estado sob uma compulsão psíquica à qual não puderam opor nenhuma resistência.
É impossível exagerar o ganho científico trazido aos médicos e psicólogos pela familiarização com os fatos do hipnotismo. Entretanto, para avaliar a importância prática desses novos conhecimentos, é preciso colocar o médico no lugar do hipnotizador e o doente no lugar do hipnotizado. Acaso a hipnose não parece apta a satisfazer todas as necessidades do médico, na medida em que ele pretende proceder perante o doente como “médico da alma”? A hipnose dota o médico de uma autoridade da qual os sacerdotes ou os milagreiros provavelmente nunca foram possuidores, pois concentra todos os interesses anímicos do hipnotizado na pessoa do médico; abole no doente a arbitrariedade da vida anímica, na qual identificamos um entrave obstinado à exteriorização da influência anímica no corpo; em princípio, produz um aumento do domínio do anímico sobre o físico, aumento esse que só se costuma observar sob o efeito dos mais intensos afetos; e ainda, graças à possibilidade de que as instruções dadas ao doente durante a hipnose só se manifestem posteriormente, no estado normal (sugestão pós-hipnótica), ela coloca nas mãos do médico o meio de utilizar o grande poder de que desfruta durante a hipnose para promover alterações no doente quando desperto. Surgiria assim um padrão simples para o tipo de cura mediante tratamento anímico: o médico poria o doente em estado hipnótico, far-lhe-ia a sugestão, modificada conforme as circunstâncias, de que ele não estava doente, ou de que não sentiria mais seus sintomas ao acordar, depois o acordaria e confiaria na expectativa de que a sugestão cumprisse seu dever contra a doença. E se uma única aplicação desse procedimento não fosse suficiente, ele seria repetido tantas vezes quantas fossem necessárias.

Uma só consideração poderia impedir o médico e o paciente de empregarem um procedimento terapêutico tão promissor, a saber, caso se revelasse que o benefício da hipnose seria contrabalançado por algum prejuízo - por exemplo, se ela deixasse um distúrbio ou fraqueza permanentes na vida anímica do hipnotizado. Mas as experiências feitas até agora já bastam para afastar essas dúvidas; as hipnoses isoladas são totalmente inofensivas, e não causam dano algum mesmo sendo freqüentemente repetidas. Há que destacar apenas um ponto: quando as circunstâncias tornam necessário o uso prolongado do hipnotismo, estabelece-se um hábito de hipnose [no doente] e uma dependência do médico hipnotizador, o que não pode fazer parte do propósito do procedimento terapêutico.
O tratamento hipnótico realmente significa hoje uma grande ampliação do alcance da medicina e, por conseguinte, um avanço na arte de curar. Pode-se aconselhar cada enfermo a entregar-se a ele em confiança, desde que seja praticado por um médico experiente e digno de crédito. Entretanto, é preciso servir-se da hipnose de um modo diferente do que é hoje habitual. Comumente, só se recorre a esse tipo de tratamento depois que todos os outros recursos fracassam, quando o doente já está desanimado e de má vontade. Tem então de abandonar seu médico, que não sabe hipnotizar ou não emprega a hipnose, e voltar-se para um médico estranho, que em geral não usa ou não pode usar nada além do hipnotismo. Ambas as situações são desvantajosas para o enfermo. O próprio médico da família deve conhecer a fundo o método hipnótico de terapia e aplicá-lo desde o início, tão logo considere o caso e a pessoa apropriados para isso. Sempre que considerada útil, a hipnose deve estar em posição equivalente a dos outros procedimentos terapêuticos, e não ser encarada como um último recurso ou mesmo uma queda da cientificidade para o embuste. É que o hipnotismo é útil não apenas em todos os estados de nervosismo e nos distúrbios devidos à “imaginação”, mas também para romper hábitos patológicos (como alcoolismo, vício em morfina, aberrações sexuais) e ainda em muitas doenças orgânicas, inclusive inflamatórias, nas quais se tem uma perspectiva, mesmo persistindo o distúrbio subjacente, de eliminar os sintomas incômodos para o enfermo, tais como as dores, inibições do movimento etc. A escolha dos casos para aplicação do procedimento hipnótico depende quase sempre da decisão do médico.
Mas agora é chegado o momento de desfazer a impressão de que, com o recurso da hipnose, teria despontado para o médico uma época mais cômoda de taumaturgia. Ainda e preciso levar em conta diversas circunstâncias aptas a reduzir consideravelmente nossas pretensões em relação à terapia hipnótica e a restituir a sua justa medida as esperanças talvez despertadas nos doentes. Antes de mais nada, verifica-se que uma premissa básica é insustentável, qual seja, a de que se conseguiria, através da hipnose, retirar dos doentes a arbitrariedade que é perturbadora em sua conduta anímica. Eles a conservam e já a evidenciam em sua postura perante a tentativa de hipnotizá-los. Quando se disse acima que cerca de oitenta por cento das pessoas são hipnotizáveis, esse número elevado só pôde ser atingido computando-se entre os casos positivos todos aqueles que mostravam algum indício de serem influenciáveis. Na realidade, as hipnoses profundas e com plena docilidade, como as escolhidas para servir de modelo nas descrições, são efetivamente raras ou, em todo caso, não tão freqüentes quanto seria desejável no interesse da cura. Mas a impressão causada por esse fato pode novamente atenuar-se, na medida em que acentuemos o fato de que a profundidade da hipnose e a docilidade diante das sugestões não caminham pari passu, de modo que, muitas vezes, ainda é possível observar um bom efeito da sugestão onde há apenas uma ligeira insensibilidade hipnótica. Entretanto, mesmo considerando isoladamente a docilidade hipnótica como o aspecto mais essencial desse estado, convém admitir que cada pessoa mostra sua particularidade nesse aspecto, deixando-se influenciar apenas até determinado grau de docilidade e detendo-se aí. Isoladamente, portanto, as pessoas mostram graus muito diferentes de adequação para a terapia hipnótica. Se fosse possível descobrir um meio pelo qual todos esses graus particulares do estado hipnótico pudessem ser intensificados até a hipnose completa, as peculiaridades dos enfermos seriam novamente eliminadas, atingindo-se o ideal do tratamento anímico. Mas esse progresso não foi obtido até agora; o grau de docilidade com que a sugestão será recebida ainda depende muito mais do doente que do médico, ou seja, reside, por sua vez, no arbítrio do enfermo.
Ainda mais importante é um outro ponto de vista. Quando se descreve o resultado sumamente notável da sugestão no estado hipnótico, esquece-se com muita facilidade que aqui, como em todas as atividades anímicas, trata-se também de uma proporção ou de uma relação de forças. Ao colocarmos uma pessoa sadia em hipnose profunda e lhe ordenarmos que morda uma batata apresentada a ela como uma pêra, ou se lhe dissermos que está vendo um conhecido e deve cumprimentá-lo, será fácil constatar uma docilidade completa, pois não há no hipnotizado nenhuma razão grave para que se oponha à sugestão. Mas diante de outras ordens - por exemplo, ao exigirmos que uma moça muito pudica se dispa, ou que um homem honesto se apodere de um objeto valioso furtando-o -, é possível observar no hipnotizado uma resistência que pode ir a ponto de ele se recusar a obedecer à sugestão. Com isso aprendemos que, mesmo na melhor das hipnoses, a sugestão não exerce um poder ilimitado, mas apenas um poder com determinada força. Pequenos sacrifícios o hipnotizado pode fazer, mas diante dos grandes ele se detém, exatamente como quando está desperto. Assim, quando lidamos com um doente e o impelimos, através da sugestão, a renunciar a sua doença, notamos que isso significa para ele um grande sacrifício, e não uma pequena oferenda. O poder da sugestão confronta-se aqui com a força que criou e mantém os fenômenos patológicos, e a experiência mostra que esta é de uma ordem de grandeza muito diferente da que caracteriza a influência hipnótica. O mesmo doente que se resigna com perfeita docilidade em qualquer situação onírica que lhe seja sugerida, desde que não seja francamente escandalosa, pode ficar completamente rebelde a uma sugestão que o prive, digamos, de sua paralisia imaginária. Acresce ainda que, na clínica, justamente os pacientes neuróticos, em sua maioria, e que são difíceis de hipnotizar, de modo que a luta contra as forças poderosas com que a doença se consolidou na vida anímica tem de ser travada, não com a totalidade da influência hipnótica, mas apenas com um fragmento dela.
A sugestão, portanto, não constitui de antemão a certeza de uma vitória sobre a doença tão logo se consiga a hipnose, ou mesmo a hipnose profunda. Falta ainda travar uma outra batalha, cujo desfecho e amiúde muito incerto. Por isso é que uma única hipnose não surte nenhum efeito contra as perturbações graves de origem anímica. Com a repetição, porém, a hipnose perde a impressão de milagre que o doente talvez tenha concebido. Sucedendo-se as hipnoses, e possível conseguir que se torne cada vez mais clara a influência que a princípio faltou sobre a doença, até que se alcance um resultado satisfatório. Mas tal tratamento hipnótico pode decorrer de maneira tão cansativa e morosa quanto qualquer outra terapia.
Outro aspecto que trai a relativa fraqueza da sugestão, comparada às doenças a ser combatidas, é que de fato ela traz a suspensão dos sintomas patológicos, mas apenas por um curto período. Ao término desse intervalo, eles retornam e têm de ser novamente eliminados pela hipnose e sugestão renovadas. Repetindo-se essa evolução com freqüência suficiente, é comum esgotar-se a paciência tanto do enfermo quanto do médico, tendo por conseqüência o abandono do tratamento hipnótico. São também esses os casos em que costumam instalar-se no doente a dependência do médico e uma espécie de vício na hipnose.
É bom que os doentes conheçam essas deficiências do método de terapia hipnótico, bem como as possibilidades de desapontamento em sua utilização. O poder curativo da sugestão hipnótica é algo de factual e dispensa recomendações exageradas. Por outro lado, é fácil compreender que os médicos, a quem o tratamento anímico por hipnose prometera muito mais do que pôde cumprir, não se cansem de buscar outros procedimentos que possibilitem exercer uma influência mais profunda ou menos incerta sobre a psique do doente. Podemos antecipar a expectativa segura de que o moderno tratamento anímico sistemático, que representa uma revivescência inteiramente nova de antigos métodos terapêuticos, venha a colocar nas mãos dos médicos armas ainda muito mais fortes para lutar contra a doença. Um discernimento mais profundo dos processos da vida anímica, cujas origens primordiais repousam justamente em vivências hipnóticas, há de apontar os meios e modos de chegarmos a isso.

NOTA DO EDITOR INGLÊS

PSYCHISCHE BEHANDLUNG (SEELENBEHANDLUNG)

(a) EDIÇÕES EM ALEMÃO:
1890 Em Die Gesundheit, org. de R. Kossmann e J. Weiss, lª ed., 1, pp. 368-384, Stuttgart, Berlim e Leipzig: Union Deutsche Verlagsgesellschaft. (1900, 2ª ed.; 1905, 3ª ed.)
1937 Z. Psychoan. Päd., 11, pp. 133-147.
1942 G.W., 5, pp. 289-315.

(b) TRADUÇÃO EM INGLÊS:
“Psychical (or Mental) Treatment”

Esta tradução [inglesa], de autoria de James Strachey, surge agora pela primeira vez e, ao que se saiba, é a primeira a ser publicada.

Die Gesundheit foi uma obra coletiva de caráter semipopular sobre a medicina, em dois volumes, tendo um grande número de colaboradores. Numa carta enviada a Pfister em 17 de junho de 1910 (1963a), diz Freud: “O livro que estou colocando nas mãos de meus filhos é uma obra popular de medicina, Die Gesundheit, para a qual eu mesmo contribuí. É bem seco e factual.” O texto foi reimpresso sem alterações na segunda e terceira edições do trabalho, ocupando no primeiro volume as mesmas páginas em que constara na primeira edição.

Até 1966, afirmava-se invariavelmente que esse artigo datava de 1905 (recebera na Ed. Standard a data de 1905b.), uma vez que só se examinara a edição de 1905 de Die Gesundheit. Sabe-se agora que, na verdade, essa fora a terceira edição, embora os organizadores do trabalho tenham deixado de fornecer tal indicação. Cf. algumas informações e comentários adicionais sobre essa descoberta na introdução do editor [inglês] ao grupo de ensaios de Freud sobre o hipnotismo e a sugestão, ao qual pertence mais apropriadamente o presente artigo (ver em [1] e [2]).



































PERSONAGENS PSICOPÁTICOS NO PALCO (1942 [1905 ou 1906])


Se a finalidade do drama, como se supõe desde os tempos de Aristóteles, consiste em despertar “terror e comiseração”, em produzir uma “purgação dos afetos”, pode-se descrever esse propósito de maneira bem mais detalhada dizendo que se trata de abrir fontes de prazer ou gozo em nossa vida afetiva, assim como, no trabalho intelectual, o chiste ou o cômico abrem fontes similares, muitas das quais essa atividade tornara inacessíveis. Para tal finalidade, o fator primordial é, indubitavelmente, o desabafo dos afetos do espectador; o gozo daí resultante corresponde, de um lado, ao alívio proporcionado por uma descarga ampla, e de outro, sem dúvida, à excitação sexual concomitante que, como se pode supor, aparece como um subproduto todas as vezes que um afeto é despertado, e confere ao homem o tão desejado sentimento de uma tensão crescente que eleva seu nível psíquico. Ser espectador participante do jogo dramático significa, para o adulto, o que representa o brincar para a criança, que assim gratifica suas expectativas hesitantes de se igualar aos adultos. O espectador vivencia muito pouco, sentindo-se como “um pobre coitado com quem não acontece nada”; faz tempo que amorteceu seu orgulho, que situava seu eu no centro da fábrica do universo, ou, melhor dizendo, viu-se obrigado a deslocá-lo: anseia por sentir, agir e criar tudo a seu bel-prazer - em suma, por ser um herói. E o autor-ator do drama lhe possibilita isso, permitindo-lhe a identificação com um herói. Ao fazê-lo, poupa-o também de algo, pois o espectador sabe que essa promoção de sua pessoa ao heroísmo seria impossível sem dores, sofrimentos e graves tribulações, que quase anulariam o gozo. Ele sabe perfeitamente que tem apenas uma vida, e que poderia perdê-la num único desses combates contra a adversidade. Por conseguinte, seu gozo tem por premissa a ilusão, ou seja, seu sofrimento é mitigado pela certeza de que, em primeiro lugar, é um outro que está ali atuando e sofrendo no palco, e em segundo, trata-se apenas de um jogo teatral, que não ameaça sua segurança pessoal com nenhum perigo. Nessas circunstâncias, ele pode deleitar-se como um “grande homem”, entregar-se sem temor a seus impulsos sufocados, como a ânsia de liberdade nos âmbitos religioso, político, social e sexual, e desabafar em todos os sentidos em cada uma das cenas grandiosas da vida representada no palco.
Mas essas precondições de gozo são comuns a diversas outras formas de criação literária. A poesia lírica presta-se sobretudo a dar vazão a uma sensibilidade intensa e variada, como acontece também com a dança; a poesia épica visa principalmente a possibilitar o gozo do grande personagem heróico em seu momento de triunfo, enquanto o drama explora a fundo as possibilidades afetivas, modela em gozo até os próprios presságios de infortúnio e por isso retrata o herói derrotado em sua luta, com uma satisfação quase masoquista. Poder-se-ia caracterizar o drama por essa relação com o sofrimento e o infortúnio, quer apenas a inquietação seja despertada e depois aplacada, como na comédia, quer o sofrimento realmente se concretize, como na tragédia. O fato de o drama ter-se originado nos ritos sacrificiais do culto dos deuses (cf. o bode do sacrifício e o bode expiatório) não pode deixar de relacionar-se com esse sentido do drama; ele como que apazigua a revolta incipiente contra a ordem divina do universo, que instaurou o sofrimento. Os heróis são, acima de tudo, rebeldes que se voltaram contra Deus ou contra alguma divindade, e o sentimento de infortúnio que assalta o mais fraco diante da potência divina está fadado a gerar prazer, tanto pela satisfação masoquista quanto pelo gozo direto de um personagem cuja grandeza, apesar de tudo, é destacada. Eis aí, portanto, o prometeísmo humano, só que apequenado pela disposição de se deixar acalmar temporariamente por uma satisfação momentânea.
São tema do drama, portanto, todos os tipos de sofrimento, e deles o espectador tem que extrair algum prazer; daí resulta a primeira condição dessa forma de criação artística: ela não deve causar sofrimento ao espectador, mas saber compensar a comiseração que desperta mediante as satisfações que daí possam ser extraídas - uma regra que os autores modernos têm infringido com particular freqüência. Mas esse sofrimento restringe-se desde logo ao anímico, pois o sofrimento físico não é desejado por ninguém que saiba quão depressa a sensibilidade física assim alterada põe termo a todo o gozo da psique. Quem está enfermo tem apenas um desejo: sarar, livrar-se de seu estado; que venham o médico e os medicamentos, para que se elimine a inibição do jogo da fantasia, que nos mimou a ponto de fazer-nos extrair um gozo até de nosso próprio sofrimento. Se o espectador se coloca no lugar de alguém que sofre de um mal físico, não encontra aí nenhum gozo e nenhuma produtividade psíquica. Por isso, o indivíduo corporalmente enfermo só pode figurar no palco como um requisito dramático, e não como herói, a menos que determinados aspectos físicos de seu estado possibilitem o trabalho psíquico - por exemplo, o desamparo do doente em Filoctetes ou a desesperança dos enfermos nas peças que giram em tomo dos tísicos.
Mas as pessoas têm conhecimento do sofrimento anímico principalmente em conexão com as circunstancias que o provocam; por isso o drama precisa de uma ação que engendre o sofrimento, e começa por introduzir-nos nela. Não passam de exceções aparentes as peças que nos apresentam sofrimentos anímicos já estabelecidos, como Ajax ou Filoctetes; é que no drama grego, por ser seu tema muito conhecido, a cortina sobe como que no meio da peça. É fácil expor exaustivamente as condições que regem a ação mencionada: ela tem que pôr em jogo um conflito e incluir um esforço da vontade e uma situação adversa. A luta contra os deuses representou o primeiro e mais grandioso cumprimento dessa condição. Já dissemos que essa é uma tragédia de rebelião, e nela o dramaturgo e a platéia tomam o partido dos rebeldes. Depois, à medida que se vai descrendo da divindade, mais importante se torna a ordenação humana, que o discernimento crescente passa a responsabilizar pelo sofrimento. Assim, a luta seguinte do herói é contra a sociedade dos homens: temos aí a tragédia social. Outro cumprimento [da precondição mencionada] encontra-se na luta entre os seres humanos: é a tragédia de caracteres; que exibe todas as excitações do agon [, conflito] e se desenrola com mais proveito entre personalidades destacadas, libertas da servidão das instituições humanas - ou seja, ela tem de apresentar dois heróis. Decerto são admissíveis as fusões dessas duas últimas categorias, exibindo a luta do herói contra instituições encarnadas em personagens fortes. Falta à tragédia de caracteres, em sua forma pura, a rebeldia como fonte de gozo, mas esta ressurge, sem menor força do que nas tragédias históricas dos clássicos gregos, nos dramas sociais - por exemplo, em Ibsen.
Se o drama religioso, o drama social e o drama de caracteres diferem essencialmente pelo terreno em que se desenrola a ação geradora do sofrimento, já agora o drama nos leva para um novo terreno em que se torna totalmente psicológico. Aqui, é na própria alma do herói que se trava a luta geradora do sofrimento: são os impulsos desencontrados que se combatem, numa luta que não culmina na derrota do herói, mas na extinção de um de seus impulsos: tem que terminar na renúncia a um deles. Claro está que são possíveis todas as combinações entre essa precondição e as que regem a tragédia social e a de caracteres; assim, as próprias instituições podem ser a causa do conflito interno. É aí que entram as tragédias do amor, pois o sufocamento do amor pela cultura social, pelas convenções humanas, ou o conflito entre “amor e dever”, tão notório na ópera, são ponto de partida de uma variedade quase infinita de situações de conflito - tão infinita quanto os devaneios eróticos dos seres humanos.
Mas a série de possibilidades se amplia, e o drama psicológico se converte em psicopatológico, quando a fonte de sofrimento de que deveríamos participar e extrair prazer já não é o conflito entre duas moções dotadas de consciência quase igual, mas entre um impulso consciente e uma moção recalcada. Aqui, a condição do gozo é que o espectador também seja neurótico. É que só ao neurótico pode advir prazer, e não simples repugnância, da revelação e do reconhecimento mais ou menos consciente da moção recalcada; no não-neurótico, esse reconhecimento deparará apenas com uma repugnância e o predisporá prontamente a repetir o ato de recalcamento [antes aplicado à moção]. É que, nessas pessoas, esse ato se fez com êxito, e um único dispêndio de recalcamento bastou para neutralizar completamente a moção recalcada. No neurótico, em contrapartida, o recalcamento está sempre à beira do fracasso; é instável e requer um gasto constantemente renovado - justamente o gasto que lhe é poupado pelo reconhecimento da moção. Somente no neurótico persiste uma luta como a que pode ser tema desse tipo de drama; nem mesmo nele, porém, o dramaturgo provocará apenas um gozo pela liberação, mas despertará também uma resistência.
O primeiro desses dramas modernos é Hamlet. Seu tema é a maneira como um homem até então normal torna-se neurótico devido à natureza particular da tarefa com que se defronta, ou seja, um homem em quem uma moção até ali recalcada com êxito esforça-se por se impor. Hamlet distingue-se por três características que parecem importantes para a questão de que estamos tratando: (1) O herói não é um psicopata, transformando-se em tal apenas no decorrer da ação. (2) A moção recalcada figura entre as que são igualmente recalcadas em todos nós; seu recalcamento faz parte das bases de nosso desenvolvimento pessoal, e é justamente ele que a situação [da peça] vem contestar. Essas duas características facilitam que nos reconheçamos no herói; somos susceptíveis ao mesmo conflito que ele, pois “quem não perde a razão em certas circunstâncias não tem nenhuma razão a perder”. (3) Mas parece precondição desse modelo artístico que a moção que luta por chegar à consciência, por mais notória que se revele, não seja chamada por seu próprio nome; assim, o processo consuma-se de novo no espectador, com sua atenção distraída, e ele se torna presa de sentimentos, em vez de se aperceber do que está acontecendo. Poupa-se desse modo, sem dúvida, uma certa dose de resistência, tal como a que encontramos no trabalho analítico, onde os retornos do recalcado, por provocarem uma resistência menor, chegam à consciência, ao passo que o próprio recalcado não consegue fazê-lo. Em Hamlet,de fato, o conflito está tão oculto que coube a mim desvendá-lo.
É possível que, por se desconsiderarem essas três precondições, muitos outros personagens psicopáticos sejam tão sem serventia no palco quanto o são na vida real. De fato, não podemos penetrar no conflito do neurótico quando este já o traz plenamente firmado dentro de si. Inversamente, quando reconhecemos esse conflito, esquecemos que se trata de um doente, da mesma forma que ele, ao tomar conhecimento de seu conflito, deixa de ser doente. A tarefa do autor seria colocar-nos nessa mesma doença, e a melhor maneira de consegui-lo é fazer com que sigamos o curso de seu desenvolvimento junto com aquele que adoece. Isso é particularmente necessário nos casos em que o recalcamento não está já dentro de nós, mas precisa primeiro ser instaurado, isso significa dar um passo além de Hamlet na utilização da neurose no palco. Ao sermos confrontados com uma neurose desconhecida e acabada, tendemosa chamar o médico (como na vida real) e a julgar que o personagem é inadequado para uma encenação teatral.
Esse erro parece ocorrer em Die Andere, de Bahr, além de um outro implícito no problema da peça: não nos é possível ter a convicção solidária de que somente determinada pessoa tem o privilégio de satisfazer a moça plenamente. Por isso não podemos colocar-nos no lugar dela. E a isso vem acrescentar-se um terceiro defeito: nada nos é deixado para descobrirmos por nós mesmos, e toda a nossa resistência é mobilizada contra esse condicionamento prévio do amor, que nos é inaceitável. Dentre as três condições formais que vimos discutindo, a mais importante me parece ser o desvio da atenção.
Talvez se possa dizer, de modo geral, que a labilidade neurótica do público e a habilidade do autor de evitar as resistências e propocionar um pré-prazer sejam o único determinante dos limites impostos ao emprego de personagens anormais [no palco].

NOTA DO EDITOR INGLÊS

PSYCHOPATHISCHE PERSONEN AUF DER BÜHNE

(a) EDIÇÕES EM ALEMÃO:
(1905 ou 1906 Data provável da redação.)
1962 Neue Rundschau, 73, pp. 53-57.

(b) TRADUÇÃO PARA O INGLÊS:
“Psychophathic Characters on the Stage”

1942 Psychoanal. Quart., 11 (4), outubro, pp. 459-464. (Trat. de H.A. Bunker.)

Esta é uma nova tradução [inglesa] de James Strachey.

Num artigo publicado no Psychoanal. Quart., 11 (1942), p. 465, o Dr. Max Graf relata que este ensaio foi redigido por Freud em 1904 e entregue a ele pelo autor. Nunca foi publicado pelo próprio Freud. Entretanto, deve haver um erro cm relação a essa data (o manuscrito não está datado), já que a peça Die Andere, de Hermann Bahr, discutida na p. 326, foi encenada pela primeira vez (em Munique e Leipzig) no início de novembro de 1905, tendo sua primeira apresentação em Viena no dia 25 do mesmo mês. Só foi publicada sob a forma de livro em 1906. É provável, portanto, que o presente ensaio tenha sido escrito no final de 1905 ou início de 1906. Somos gratos ao Dr. Raymond Gosselin, editor do Psychoanalytic Quarterly, por fornecer-nos uma cópia fotostática do manuscrito original de Freud. Em alguns pontos, a grafia é difícil de decifrar, o que explica algumas divergências entre as duas traduções inglesas.