Freu - Obras Completas I (parte2)

Continuação da Parte 1
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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA UM ESTUDO COMPARATIVO DAS PARALISIAS MOTORAS ORGÂNICAS E HISTÉRICAS (1893 [1888-1893)]


NOTA DO EDITOR INGLES

QUELQUES CONSIDÉRATIONS POUR UNE ÉTUDE COMPARATIVE DES PARALYSIES MOTRICES ORGANIQUES ET HYSTÉRIQUES

(a) EDIÇÕES FRANCESAS:
1893 Arch. Neurol., 26 (77), 29-43. (Julho.)
1906 S. K. N .S., 1, 30-44ª (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
1925 G. S., 1, 273-89.
1952 G.W., 1, 39-55.

(b)TRADUÇÃO INGLESA:“Some Points in a Comparative Study of Organic and Hysterical Paralyses”
1924 C. P., 1, 42-58. (Tad. de M. Meyer.)

Incluído (Nº XXVIII) no sumário dos primeiros trabalhos de Freud organizado por ele próprio (1897b). O original foi escrito em francês. A presente tradução inglesa é uma nova tradução, com título modificado, feita por James Strachey.

Esse artigo tem toda uma longa história atrás de si, narrada em detalhes por Ernest Jones (1953, 255-7). Aparentemente, o tema da presente investigação foi sugerido por Charcot a Freud, em fevereiro de 1886, pouco antes de este partir de Paris. No seu “Relatório sobre Meus Estudos em Paris e Berlim” (1956a) escrito em abril de 1886, imediatamente após o regresso a Viena, Freud escreve que suas conversas com Charcot “levaram-me a preparar um artigo que está por ser publicado nos Archives de Neurologie e que tem como título ‘Vergleichung der hysterischen mit der organischen Symptomatologie”’ [“Comparação entre a Sintomatologia Histérica e a Orgânica”]. (Ver em [1]) Assim, parece que o artigo já estava escrito naquela época; porém, mais de dois anos após, em carta a Fliess de 28 de maio de 1888, ele escreve: “O primeiro rascunho das ‘paralisias histéricas’ está agora concluído; não sei quando concluirei o segundo”. (Freud, 1950a, Carta 4.) Três meses depois, escreve novamente, em 29 de agosto: “Agora estou justamente terminando as paralisias histéricas e orgânicas o que me deixa mesmo muito satisfeito” (ibid., Carta 5). Ademais, em seu prefácio (que também leva a data “agosto de 1888”) à tradução do livro sobre a sugestão de Bernheim (Freud, 1888-9), ele se refere ao presente assunto e fala de um trabalho “que está por ser publicado em breve” (em [1]). Seguem-se então cinco anos de completo silêncio, rompido mais uma vez por uma carta a Fliess, em 30 de maio de 1893 (ibid., Carta 12): “O livro que hoje estou lhe remetendo não é muito interessante. O outro trabalho, sobre paralisias histéricas, menor e mais interessante, vai surgir no começo de junho”. A 10 de julho (ibid., Carta 13): “As paralisias histéricas deveriam ter sido publicadas há muito tempo; provavelmente aparecerão no número de agosto. É um artigo muito curto… Talvez você possa estar lembrado de que eu já me ocupava dessa questão quando você era meu aluno, e que, naquela época, proferi uma de minhas conferências na Universidade sobre esse assunto”. Isto se teria passado no outono de 1887, quando Fliess assistiu a algumas das conferências de Freud em Viena. E, por fim, numa outra carta (não publicada) a Fliess, de 24 de julho de 1893: “Enfim, foram publicadas as paralisias histéricas”.
Não existe nada que mostre qual a natureza dos “motivos fortuitos e pessoais a que Freud se refere aqui (em [1]) para explicar o atraso de cinco anos na publicação do rascunho original, aparentemente concluído. (Cf. também em [1]) Não sabemos dizer se também este foi escrito em francês; porém, apesar do título em alemão, que lhe foi dado em seu “Relatório de Paris’’ (em [1]), atrás, parece provável que tenha sido escrito em francês, pois, conforme vimos, à época de seus entendimentos iniciais, parece que Charcot prometeu publicar o resultado da pesquisa de Freud nos Archives de Neurologie, e o fez sete anos depois - somente cerca de duas semanas antes de sua morte inesperada.

No entanto, talvez haja uma explicação para o atraso, que está relacionado com a posição que esse artigo ocupa no divisor de águas entre os escritos neurológicos e psicológicos de Freud. As três primeiras partes do trabalho são inteiramente sobre neurologia e, sem dúvida, foram escritas em 1888, se não em 1886. Mas a quarta parte deve datar de 1893, quando menos porque cita a “Comunicação Preliminar”, de Breuer e Freud, que surgira no início desse ano. A totalidade dessa última parte, na verdade, baseia-se inteiramente nas novas idéias com que Breuer e Freud tinham começado a operar - recalcamento, ab-reação, princípio de constância -, todas elas aí implícitas, quando não nomeadas explicitamente. O contacto direto de Freud com essas idéias tinha começado por volta de 1887 e, nos anos seguintes, ele se deixou absorver cada vez mais por elas. Parece não ser impossível que, ao concluir o primeiro esboço desse artigo, ele houvesse começado a ter alguma vaga idéia de uma explicação dos atos contidos nele, explicação esta que envolvia novas idéias, e, por esse motivo, ele pode ter suspendido a publicação até penetrar mais profundamente na questão.
Por fim, pode-se comentar um ponto menos importante, mas que tem interesse por ser um sinal das coisas que estavam por vir: no fim do artigo há um parágrafo que talvez seja a primeira incursão breve e pública de Freud na antropologia social.



Na época em que, em 1885 e 1886, fui aluno de M. Charcot, ele teve a grande amabilidade de me confiar a tarefa de efetuar um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas, baseado nas observações do Salpêtrière, na esperança de que tal estudo pudesse revelar algumas características gerais da neurose e proporcionar melhor visão da sua natureza. Por motivos fortuitos e pessoais, durante muito tempo me vi impedido de realizar a incumbência que ele me dera; e mesmo agora estou apresentando somente alguns dos resultados de minhas pesquisas, deixando de lado os detalhes necessários a uma completa formulação de minhas opiniões.
I
Devo começar apresentando algumas observações acerca das paralisias motoras orgânicas, observações que, aliás, são de aceitação geral. A neurologia clínica reconhece dois tipos de paralisia motora - paralisia periférico-medular ou (bulbar) e paralisia cerebral. Essa distinção condiz inteiramente com os achados da anatomia do sistema nervoso, que mostra que o trajeto das fibras condutoras da motricidade se divide em apenas dois segmentos: o primeiro segmento estende-se da periferia até as células do corno anterior da medula espinhal, onde começa o segundo segmento, que vai até o córtex cerebral. A histologia moderna do sistema nervoso, fundamentada no trabalho de Golgi, Ramón y Cajal, Kölliker etc., exprime esses fatos com a afirmação de que “o trajeto das fibras da condução da motricidade é constituído por dois neurônios (unidades neurais célulo-fibrilares), que se acham em conexão e se relacionam entre si no nível das células conhecidas como células motoras do corno anterior”. A diferença essencial entre essas espécies de paralisia, em termos clínicos, é a seguinte: a paralisia periférico-medular é uma paralisia “détaillée”, a paralisia cerebral é uma paralisia “en masse”.
O tipo da primeira é a paralisia facial na paralisia de Bell, a paralisia da poliomielite infantil aguda etc. Nessas doenças, cada músculo - poder-se-ia dizer, cada fibra muscular - pode estar paralisado individualmente, isoladamente. O que acontece depende da localização e da extensão da lesão nervosa; não há regra fixa segundo a qual um elemento periférico possa escapar da paralisia, enquanto outro é afetado por ela permanentemente.
A paralisia cerebral, pelo contrário, é sempre um distúrbio que acomete uma parte extensa da periferia, um membro, um segmento de uma extremidade, ou um aparelho motor complexo. Nunca afeta um único músculo - por exemplo, o bíceps no braço ou o tribial, isoladamente; e se existem evidentes exceções a essa regra (por exemplo, a ptose cortical), podemos constatar claramente que o que está em questão são músculos que executam por si mesmos uma função da qual constituem o único instrumento.
Nas paralisias cerebrais dos membros pode-se observar que os segmentos distais sempre estão mais comprometidos do que os proximais; por exemplo, a mão está mais paralisada do que o ombro. Pelo que sei, não existe, por exemplo, uma paralisia cerebral do ombro, isoladamente, com a mão conservando sua motilidade, ao passo que o contrário constitui regra nas paralisias que não são completas.
No estudo crítico da afasia, publicado em 1891, procurei mostrar que a causa dessa importante diferença entre as paralisias periférico-medulares e cerebrais deve ser investigada na estrutura do sistema nervoso. Cada elemento da periferia corresponde a um elemento da massa cinzenta da medula, que, conforme disse Charcot, é sua terminação nervosa; a periferia, por assim dizer, é projetada sobre a massa cinzenta da medula, ponto por ponto, elemento por elemento. Propus dar à paralisia periférico-medular détaillée o nome de paralisia em projeção. Mas o mesmo não se aplica às relações entre os elementos da medula e os do córtex. O número de fibras condutoras já não seria suficiente para dar uma segunda projeção da periferia sobre o córtex. Devemos supor que as fibras que se estendem da medula até o córtex não representam mais, cada uma em separado, um elemento único da periferia, e sim um grupo de elementos periféricos, e que até mesmo, por outro lado, um elemento da periferia pode corresponder a diversas fibras condutoras medulo-corticais. O fato é que há uma modificação no ordenamento das fibras no ponto de conexão entre os dois segmentos do sistema motor. Sustento, pois, que a reprodução da periferia no córtex não é mais uma reprodução fiel, ponto por ponto; que não é mais uma projeção verdadeira. É uma relação por meio do que se pode chamar de fibras representativas, e para a paralisia cerebral proponho o nome de paralisia em representação.

Naturalmente, quando a paralisia em projeção é total e muito extensa, também ela é uma paralisia en masse e sua característica principal é eliminada. Por outro lado, a paralisia cortical, que se distingue dentre as paralisias cerebrais por sua maior tendência à dissociação, sempre apresenta, ainda assim, o caráter de uma paralisia em representação.
As outras diferenças entre paralisias em projeção e paralisias em representação são bem conhecidas. Posso citar, como exemplos de tais diferenças, a nutrição normal e a integridade das reações à eletricidade [nas partes afetadas] que estão associadas à última. Embora sejam muito importantes sob o aspecto clínico, esses sinais não possuem a importância teórica que se costuma atribuir à primeira característica diferencial que mencionamos - paralisia détaillée e paralisia en masse.
Com muita freqüência tem-se atribuído à histeria a capacidade de simular as mais diferentes doenças nervosas orgânicas. Surge a questão de saber se, mais precisamente, ela simula as características dos dois tipos de paralisias orgânicas, se existem paralisias histéricas em projeção e paralisias histéricas em representação, tal como as que encontramos na sintomatologia orgânica. Nesse ponto emerge um aspecto importante. A histeria nunca simula paralisias periférico-medulares ou paralisias em projeção; as paralisias histéricas somente compartilham as características das paralisias orgânicas em representação. Este é um dado muito interessante, pois a paralisia de Bell, a paralisia radial etc. estão entre os distúrbios mais comuns do sistema nervoso.
Convém assinalar aqui, com a finalidade de evitar qualquer confusão, que estou tratando somente das paralisias histéricas flácidas, e não das contraturas histéricas. Parece impossível aplicar as mesmas regras às paralisias histéricas e às contraturas histéricas. Pode-se afirmar que é típico das paralisias histéricas flácidas não afetarem músculos isolados (exceto onde o músculo em questão é o único instrumento de uma função), serem sempre paralisias en masse e, nesse aspecto, corresponderem às paralisias em representação ou paralisias cerebrais orgânicas. Além disso, no que tange à nutrição das partes paralisadas e às suas reações à eletricidade, as paralisias histéricas apresentam as mesmas características que as paralisias cerebrais orgânicas.
Se a paralisia histérica está assim correlacionada com a paralisia cerebral e, em especial, com a paralisia cortical, que apresenta maior tendência à dissociação, por outro lado delas se distingue por importantes características. Em primeiro lugar, não obedece à regra, que se aplica regularmente às paralisias cerebrais orgânicas, segundo a qual o segmento distal sempre está mais afetado do que o segmento proximal. Na histeria, o ombro ou a coxa podem estar mais paralisados do que a mão ou o pé. Podem surgir movimentos dos dedos enquanto o segmento proximal ainda está absolutamente inerte. Não existe a menor dificuldade em produzir artificialmente uma paralisia isolada da coxa, da perna etc., e, clinicamente, podem-se encontrar com muita freqüência essas paralisias isoladas, contrariando as regras da paralisia cerebral orgânica.
Quanto a esse importante aspecto, a paralisia histérica é, por assim dizer, intermediária entre a paralisia em projeção e a paralisia orgânica em representação. Se não possui todas as características de dissociação e delimitação próprias da primeira, está longe de ver-se submetida às leis estritas que regem a segunda - a paralisia cerebral. Tendo em conta tais restrições, pode-se afirmar que a paralisia histérica também é paralisia em representação, mas com um tipo especial de representação cujas características permanecem como um assunto a ser desvendado.
II
Como um passo nessa direção, proponho estudar as demais características que fazem a distinção entre a paralisia histérica e a paralisia cortical, o tipo mais acabado de paralisia cerebral orgânica. Já mencionamos a primeira dessas características - o fato de que a paralisia histérica pode estar mais dissociada, mais sistematizada do que a paralisia cerebral. Na histeria, os sintomas da paralisia orgânica aparecem como que fracionados. Dos sintomas da hemiplegia orgânica comum (paralisia dos membros superiores e inferiores e da parte inferior da face), a histeria reproduz somente a paralisia dos membros, e até mesmo dissocia, com muita freqüência e com a maior facilidade, as paralisias do braço e da perna, sob a forma de monoplegias. Da síndrome da afasia orgânica ela copia a afasia motora, isoladamente; e -algo não existente na afasia orgânica - ela pode criar a afasia total (motora e sensitiva) para um determinado idioma, sem causar a menor interferência na capacidade de compreender e de articular um outro idioma. (Observei isto em alguns casos não publicados.) Esse mesmo poder de dissociação manifesta-se nas paralisias isoladas de um segmento de um membro, ao passo que outras partes do mesmo membro permanecem totalmente indenes, ou então na total abolição de uma função (por exemplo, na abasia e na astasia), enquanto outra função executada pelo mesmos órgãos permanece intacta. Essa dissociação é, sem dúvida, surpreendente quando a função que não foi prejudicada é a função mais complexa. Na sintomatologia orgânica, se existe um debilitamento desigual de diversas funções, é sempre a função mais complexa, a que foi adquirida mais recentemente, a que fica mais afetada em conseqüência da paralisia.
Além do mais, a paralisia histérica exibe uma outra característica que, por assim dizer, é o sinal identificador da neurose e que surge como acréscimo ao primeiro. A histeria, conforme ouvi M. Charcot dizer, é realmente uma doença com excessivas manifestações; tende a produzir seus sintomas com a máxima intensidade possível. Essa característica evidencia-se não só nas suas paralisias, mas também nas suas contraturas e anestesias. Sabemos em que grau de distorção podem efetuar-se as contraturas histéricas - grau praticamente não igualado na sintomatologia orgânica. Também sabemos com que freqüência ocorrem na histeria as anestesias profundas, absolutas, das quais as lesões orgânicas só conseguem reproduzir um pálido esboço. O mesmo se dá com as paralisias. Freqüentemente, são absolutas no grau mais extremo. O afásico não articula uma só palavra, ao passo que o afásico orgânico quase sempre conserva algumas palavras, “sim” ou “não”, uma exclamação etc.; o braço paralisado fica completamente inerte - e assim por diante. Essa característica é por demais conhecida para que se insista nela. Contrastando com isso, sabemos que, na paralisia orgânica, a paresia é sempre mais comum do que a paralisia absoluta.
A paralisia histérica se caracteriza, pois, pela delimitação precisa e pela intensidade excessiva; possui essas duas qualidades ao mesmo tempo, e é nisso que manifesta o maior contraste em relação à paralisia cerebral orgânica, na qual regularmente se constata que essas duas características não se associam entre si. Existem monoplegias na sintomatologia orgânica, mas quase sempre são monoplegias a priori e sem delimitação precisa. Se o braço está paralisado em conseqüência de uma lesão cortical orgânica, há quase sempre um comprometimento concomitante, menor, na face e na perna; e se essa complicação não é visível num dado momento, certamente terá existido no início da doença. A verdade é que uma monoplegia cortical é sempre uma hemiplegia da qual um ou outro componente está mais ou menos apagado, porém, mesmo assim, ainda é reconhecível. Prosseguindo um pouco mais, suponhamos que a paralisia não tenha atingido nenhuma outra parte a não ser o braço e que se trate apenas de uma monoplegia cortical; nesse caso se verificará que a paralisia tem uma intensidade moderada. Tão logo essa monoplegia aumenta de intensidade e se torna uma paralisia absoluta, ela perde seu caráter de monoplegia simples e é acompanhada por distúrbios motores da perna ou da face. Não consegue ao mesmo tempo tornar-se absoluta e conservar sua delimitação.
Isso, pelo contrário, é o que consegue realizar com facilidade uma paralisia histérica, como nos demonstra todos os dias a experiência clínica. Por exemplo, afeta um braço, exclusivamente, sem que possamos encontrar um vestígio seu na perna ou na face. Ademais, no nível do braço, essa paralisia histérica é tão grave quanto pode ser uma paralisia, e nisso vemos uma nítida diferença em relação a uma paralisia orgânica - uma diferença que nos oferece redobrados motivos para reflexão.
Naturalmente, há casos de paralisias histéricas em que a intensidade não é excessiva e em que a dissociação não é de modo algum notável. Tais casos podem ser reconhecidos por outras características; são, contudo, casos que não apresentam a marca típica da neurose e que, visto não nos ensinarem nada acerca de sua natureza, não se revestem de nenhum interesse, do nosso atual ponto de vista.
Acrescentarei alguns comentários, que são de importância secundária e que até mesmo se situam um tanto fora dos limites de nosso tema.
Em primeiro lugar, quero assinalar que as paralisias histéricas, muito mais freqüentemente do que as paralisias orgânicas, se acompanham de distúrbios de sensibilidade. Tais distúrbios geralmente são mais profundos e mais freqüentes nas neuroses do que na sintomatologia orgânica. Nada é mais comum do que a anestesia ou a analgesia histéricas. Por outro lado, recorde-se com que tenacidade persiste a sensibilidade onde há uma lesão neural. Quando um nervo periférico é lesado, a anestesia é menor em extensão e intensidade do que seria de esperar. Se uma lesão inflamatória atinge os nervos espinhais ou os centros medulares, sempre verificamos que a motilidade é a primeira coisa a ser enfraquecida, de vez que aqui e ali sempre subsistem elementos neurais que não foram totalmente destruídos. Onde há uma lesão cerebral, já conhecemos bem a freqüência e a duração da hemiplegia motora, ao mesmo tempo que a hemianestesia concomitante é indistinta e transitória e não está presente em todos os casos. São apenas algumas localizações muito especiais da lesão que conseguem produzir uma perturbação intensa e persistente da sensibilidade (confluência de trajetos sensitivos), e, assim mesmo, esse caso é passível de dúvidas.
Esse comportamento da sensibilidade, que é diferente nas lesões orgânicas e na histeria, dificilmente pode ser explicado na atualidade. Parece que aqui temos um problema cuja solução talvez possa projetar alguma luz sobre a natureza íntima dos fenômenos.
Outro ponto que julgo deva ser mencionado é que, na histeria, como de resto nas paralisias periférico-medulares em projeção, não se encontram certas formas de paralisia cerebral. É o que se passa, de modo especial, com a paralisia da metade inferior da face, que é a manifestação mais freqüente de uma doença orgânica do cérebro, e (se me permitem passar, por um momento, às paralisias sensoriais) com a hemianopsia lateral homônima. Estou consciente de que é quase arriscar-se a um desafio afirmar que esse ou aquele sintoma não é encontrado na histeria, quando as pesquisas de M. Charcot e seus discípulos encontram nela - poder-se-ia dizer, a cada dia - sintomas novos, dos quais antes não se suspeitara. Mas devo considerar as coisas tal como são no momento. A ocorrência de paralisia facial histérica é firmemente rejeitada por M. Charcot e, mesmo que acreditemos que isso possa ocorrer, trata-se de um fenômeno muito raro. Na histeria, a hemianopsia ainda não foi observada, e penso que jamais o será.
Como é, portanto, que as paralisias histéricas, conquanto estreitamente assemelhadas às paralisias corticais, divergem destas pelas características diferenciais que tentei destacar? E qual é a característica genética do tipo especial de representação com o qual devem estar associadas? A resposta a essa questão incluiria uma parte extensa e importante da teoria da neurose.
III
Não existe a mais leve dúvida quanto às condições que regem a sintomatologia da paralisia cerebral. Tais condições são constituídas pelos fatos da anatomia - a estruturação do sistema nervoso e a distribuição de seus vasos - e a relação entre essas duas séries de fatos e as circunstâncias da lesão. Assinalamos que o número menor de fibras que vêm da medula até o córtex, em comparação com o menor número de fibras que vêm da periferia até a medula, é a base da diferença entre a paralisia em projeção e a paralisia em representação. Da mesma forma, cada detalhe clínico da paralisia em representação pode ser explicado por algum detalhe da estrutura cerebral; e, inversamente, a partir das características clínicas das paralisias podemos deduzir a estrutura do cérebro. Penso que existe um completo paralelismo entre essas duas séries.
Assim, se não há grande facilidade para a dissociação na paralisia cerebral comum, isto se dá porque as fibras motoras percorrem tão unidas um longo trecho do seu trajeto intracerebral que não podem ser lesadas individualmente. Se a paralisia cortical mostra maior tendência a ser monoplégica, isso ocorre porque o diâmetro dos feixes condutores (braquial, crural etc.) aumenta no sentido do córtex. Se a paralisia da mão é a mais completa de todas as paralisias corticais, isso se deve, segundo pensamos, ao fato de que a relação cruzada entre o hemisfério cerebral e a periferia é mais atingida por uma paralisia do que o segmento proximal; supomos que as fibras representativas do segmento distal sejam muito mais numerosas do que as do segmento proximal, de modo que a influência cortical se torna mais importante para a parte distal do que para a proximal. Quando as lesões muito extensas do córtex não conseguem produzir monoplegias puras, inferimos que os centros motores no córtex estão nitidamente separados uns dos outros por território neutro, ou inferimos que existem fatores operando à distância (Fernwirkungen), que pareceriam anular o efeito de uma separação precisa entre os centros.
De igual maneira, se, na afasia orgânica, sempre há uma mistura de distúrbios de diferentes funções, isso pode ser explicado pelo fato de que os ramos da mesma artéria irrigam todos os centros da fala, ou, se for aceita a opinião expressada no meu estudo crítico da afasia [Freud, 1891b], pelo fato de que não estamos tratando de centros separados, mas de uma área contínua de associação. Seja como for, sempre se pode encontrar uma explicação baseada na anatomia.
As notáveis associações com tanta freqüência observadas clinicamente nas paralisias corticais (afasia motora e hemiplegia à direita, alexia e hemianopsia à direita) são explicadas pela proximidade dos centros lesados.A hemianopsia como tal, sintoma muito curioso e estranho para uma mente não-científica, só é explicável pelo cruzamento das fibras do nervo óptico no quiasma; é a expressão clínica desse cruzamento, assim como todo detalhe das paralisias cerebrais é a expressão clínica de um fato da anatomia.
De vez que só pode haver uma única anatomia cerebral verdadeira, de vez que ela se expressa nas características clínicas das paralisias cerebrais, evidentemente é impossível que essa anatomia constitua explicação dos aspectos diferenciais das paralisias histéricas. Por essa razão, não devemos, com base na sintomatologia dessas paralisias histéricas, tirar conclusões sobre a anatomia cerebral.
A fim de explicar esse difícil problema, por certo devemos considerar a natureza da lesão em estudo. Nas paralisias orgânicas, a natureza da lesão desempenha um papel secundário; ao contrário, são a extensão e a localização da lesão que, em determinadas condições estruturais do sistema nervoso, produzem as características da paralisia orgânica que indicamos. Qual poderia ser a natureza da lesão, na paralisia histérica, que define a situação sem respeitar a localização ou a extensão da lesão ou da anatomia do sistema nervoso?
Em diversas ocasiões ouvimos M. Charcot dizer que se trata de uma lesão cortical, mas uma lesão puramente dinâmica ou funcional. Esta é uma tese cujo aspecto negativo podemos entender facilmente: equivale a afirmar que nenhuma modificação tecidual detectável será encontrada post mortem. Mas, no seu aspecto positivo, sua interpretação está longe de ser inequívoca. Afinal, o que é uma lesão dinâmica? Tenho bastante certeza de que muitos daqueles que leram as obras de M. Charcot acreditam que uma lesão dinâmica é realmente uma lesão, contudo uma lesão da qual, após a morte, não se encontra nenhum vestígio, tal como um edema, uma anemia ou uma hiperemia ativa. Contudo, esses sinais, embora não necessariamente possam persistir após a morte, são lesões orgânicas verdadeiras, mesmo que sejam mínimas e transitórias. As paralisias partilhariam das características das paralisias orgânicas. Nem o edema nem a anemia, não menos do que a hemorragia ou o amolecimento, poderiam produzir a dissociação e a intensidade das paralisias histéricas. A única diferença estaria em que a paralisia devida a edema, por constrição vascular etc. seria menos duradoura do que a paralisia devida à destruição do tecido nervoso. Elas têm em comum todas as outras condições, e a anatomia do sistema nervoso determinará as propriedades da paralisia, tanto no caso de uma anemia transitória, como no caso de uma anemia que é permanente e final.
Estes comentários não me parecem totalmente prescindíveis. Se alguém ler que “deve haver uma lesão histérica” nesse ou naquele centro, o mesmo centro no qual uma lesão orgânica produziria uma correspondente síndrome orgânica, e recordar que se está acostumado a localizar uma lesão dinâmica histérica da mesma forma que uma lesão orgânica, será levado a crer que por trás da expressão “lesão dinâmica” está oculta a idéia de uma lesão como edema ou anemia, que são, de fato, afecções orgânicas transitórias. Eu, pelo contrário, afirmo que a lesão nas paralisias histéricas deve ser completamente independente da anatomia do sistema nervoso, pois, nas suas paralisias e em outras manifestações, a histeria se comporta como se a anatomia não existisse, ou como se não tivesse conhecimento desta.
E, de fato, um bom número de características das paralisias histéricas justifica essa afirmação. A histeria ignora a distribuição dos nervos, e é por isso que não simula paralisias periférico-medulares ou paralisias em projeção. Ela não conhece o quiasma óptico e, por conseguinte, não produz hemianopsia. Ela toma os órgãos pelo sentido comum, popular, dos nomes que eles têm: a perna é a perna até sua inserção no quadril, o braço é o membro superior tal como aparece visível sob a roupa. Não há motivo para acrescentar à paralisia do braço a paralisia da face. Um histérico que não consegue falar não tem motivo para esquecer que compreende a fala, de vez que a afasia motora e a surdez para a palavra não estão correlacionadas entre si na concepção popular, e assim por diante. Só posso concordar inteiramente com as opiniões expressas por M. Janet em números recentes dos Archives de Neurologie; elas são confirmadas tanto pelas paralisias histéricas como pela anestesia e pelos sintomas psíquicos.
IV
Por fim, procurarei indicar como poderia ser essa lesão causadora das paralisias histéricas. Não digo que mostrarei que tipo de lesão é; pretendo simplesmente indicar uma linha de pensamento, a qual poderia levar a uma concepção que não contraria as propriedades da paralisia histérica, na medida em que esta difere da paralisia cerebral orgânica.
Tomarei a expressão “lesão funcional ou dinâmica” no seu sentido próprio, isto é, “modificação na função ou na dinâmica” - modificação de uma propriedade funcional. Exemplos de modificação dessa espécie seria numa diminuição na excitabilidade ou numa qualidade fisiológica que normalmente permanece constante ou varia dentro de limites fixos.
Mas, objeta-se, a modificação funcional não é uma coisa diferente da modificação orgânica, é simplesmente o outro lado desta. Suponhamos que o tecido nervoso esteja num estado de anemia transitória; nesse caso, essa circunstância diminui sua excitabilidade. É impossível, com esse expediente, deixar de levar em conta as lesões orgânicas.
Tentarei mostrar que pode haver modificação funcional sem lesão orgânica concomitante - ou, ao menos, sem lesão nitidamente perceptível até a mais minuciosa análise. Em outras palavras, darei um exemplo adequado de modificação de uma função primitiva; e, com essa finalidade, somente peço permissão para passar à área da psicologia - que dificilmente se pode evitar, em se tratando de histeria.
Estou de acordo com M. Janet quando diz que, na paralisia histérica, assim como na anestesia etc., o que está em questão é a concepção corrente, popular, dos órgãos e do corpo em geral. Essa concepção não se fundamenta num conhecimento profundo de neuroanatomia, mas nas nossas percepções tácteis e, principalmente, visuais. Se é isso o que determina as características da paralisia histérica, esta, naturalmente, deve mostrar-se ignorante e independente de qualquer noção da anatomia do sistema nervoso. Portanto, na paralisia histérica, a lesão será uma modificação da concepção, da idéia de braço, por exemplo. Mas que espécie de modificação será essa, capaz de produzir a paralisia?
Considerada do ponto de vista psicológico, a paralisia do braço consiste no fato de que a concepção do braço não consegue entrar em associação com as outras idéias constituintes do ego, das quais o corpo da pessoa é parte importante. A lesão, portanto, seria a abolição da acessibilidade associativa da concepção do braço. O braço comporta-se como se não existisse para as operações das associações. Não há dúvida de que, se as condições materiais correspondentes à concepção do braço estão profundamente modificadas, a concepção também será prejudicada. Mas tenho de demonstrar que esta consegue estar inacessível sem estar destruída e sem estar lesado o seu substrato material (o tecido nervoso da região correspondente do córtex).
Começarei mostrando alguns exemplos extraídos da vida social. Uma história cômica narra que um homem de grande lealdade não queria lavar a mão porque seu soberano a tinha tocado. A relação dessa mão com a imagem do rei parecia tão importante para a vida do homem que ele se recusava a deixar que a mão entrasse em qualquer outra relação. Estamos obedecendo ao mesmo impulso quando quebramos a taça em que bebemos à saúde de um par recém-casado. Na Antiguidade, as tribos selvagens que queimavam o cavalo do seu chefe morto, suas armas e até mesmo suas esposas, juntamente com seu corpo morto, estavam obedecendo à concepção segundo a qual ninguém jamais deveria tocá-los. A força de todas essas ações é evidente. A quantidade de afeto que devotamos à primeira associação de um objeto oferece resistência a que ela entre numa nova associação com outro objeto e, por conseguinte, torna a idéia do [primeiro] objeto inacessível à associação.
Não se trata de uma simples comparação; é quase a mesma coisa, quando passamos à esfera da psicologia das concepções. Se, numa associação, a concepção do braço está envolvida com uma grande quantidade de afeto, essa concepção será inacessível ao livre jogo das outras associações. O braço estará paralisado em proporção com a persistência dessa quantidade de afeto ou com a diminuição através de meios psíquicos apropriados. Esta é a solução do problema que levantamos, pois em todos os casos de paralisia histérica verificamos que o órgão paralisado ou a função abolida estão envolvidos numa associação subconsciente que é revestida de uma grande carga de afeto, e pode ser demonstrado que o braço tem seus movimentos liberados tão logo essa quantidade de afeto seja eliminada. Por conseguinte, a concepção do braço existe no substrato material, mas não está acessível às associações e impulsos conscientes, porque a totalidade de sua afinidade associativa está, por assim dizer, impregnada de uma associação subconsciente com a lembrança do evento, o trauma, que produziu a paralisia.
M. Charcot foi o primeiro a nos ensinar que, para explicar a neurose histérica, devemos concentrar-nos na psicologia. Breuer e eu seguimos seu exemplo numa comunicação preliminar (1893a) “Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos”. Nesse artigo, mostramos que os sintomas permanentes da histeria que são descritos como “não-traumáticos” são explicados (com exceção dos estigmas) pelo mesmo mecanismo que Charcot identificou nas paralisias traumáticas. Mas também mostramos o motivo que explica a persistência desses sintomas e mostramos por que eles podem ser curados por um método especial de psicoterapia hipnótica. Todo evento, toda impressão psíquica é revestida de uma determinada carga de afeto (Affektbetrag) da qual o ego se desfaz, seja por meio de uma reação motora, seja pela atividade psíquica associativa. Se a pessoa é incapaz de eliminar esse afeto excedente ou se mostra relutante em fazê-lo, a lembrança da impressão passa a ter a importância de um trauma e se torna causa de sintomas histéricos permanentes.
A impossibilidade de eliminação torna-se evidente quando a impressão permanece no subconsciente. Denominamos a essa teoria “Das Abreagieren der Reizzuwächse”.
Para resumir, penso que está em completo acordo com nossa opinião geral acerca da histeria, já que conseguimos moldá-la segundo o ensinamento de M. Charcot, supor que a lesão, nas paralisias histéricas, não consiste senão na incapacidade do órgão ou função em exame de ter acesso às associações do ego consciente; que essa modificação puramente funcional (mesmo não estando afetada a concepção) é causada pela fixação dessa concepção numa associação subconsciente com a lembrança do trauma; e que essa concepção não fica liberada e acessível enquanto a carga de afeto do trauma psíquico não é eliminada por uma reação motora adequada ou pela atividade psíquica consciente. Mas, mesmo que não ocorra esse mecanismo, se uma idéia auto-sugestiva direta sempre é necessária para haver uma paralisia histérica, como se depreende dos casos clínicos de traumas de M. Charcot, conseguimos demonstrar qual teria de ser a natureza da lesão, ou melhor, da modificação, na paralisia histérica, a fim de explicar as diferenças entre esta e a paralisia cerebral orgânica.






EXTRATOS DOS DOCUMENTOS DIRIGIDOS A FLIESS (1950 [1892-1899])


NOTA DO EDITOR INGLÊS


(a) EDIÇÃO ALEMÃ:
1950 Em Aus den Anfängen der Psychoanalyse, editado por Marie Bonaparte, Anna Freud e Ernst Kris. Londres: Imago Publishing Co.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:
1954 Em The Origins of Psycho-Analysis, editado como acima. Londres: Imago Publishing Co.; Nova Iorque: Basic Books. (Trad. de Eric Mosbacher e James Strachey.)

A presente tradução inglesa, baseada na de 1954, foi inteiramente revista.

A história do relacionamento de Freud com Wilhelm Fliess (1858-1928) está narrada com detalhes no Capítulo XIII do primeiro volume da biografia de Freud por Ernest Jones (1953) e na introdução que Ernst Kris escreveu para os livros da bibliografia acima. Aqui basta explicar que Fliess, dois anos mais novo do que Freud, era médico especialista em nariz e garganta e residia em Berlim; com ele Freud manteve uma correspondência volumosa e íntima, entre 1887 e 1902. Fliess era um homem de grande capacidade, com interesses muito amplos em biologia geral; mas, nessa área, adotou teorias que atualmente são consideradas excêntricas e praticamente indefensáveis. Contudo, era mais acessível às idéias de Freud do que qualquer outro contemporâneo. Por conseguinte, Freud lhe comunicava seus pensamentos com a máxima liberdade, e o fazia não apenas em suas cartas, como também numa série de documentos (“Rascunhos”, como os chamamos aqui) que representavam relatos organizados de suas idéias em evolução e que, em alguns casos, são os primeiros esboços de obras posteriormente publicadas. O mais importante deles é o extenso documento - com umas quarenta mil palavras - a que demos o título de Projeto para uma Psicologia Científica. Mas toda a série de documentos, escritos durante os anos de formação das teorias psicanalíticas de Freud, que culminam com A Interpretação dos Sonhos, merece o mais atento estudo.
Esses documentos, e mesmo o fato da sua existência, eram totalmente desconhecidos até a época da Segunda Guerra Mundial. A melodramática história de sua descoberta e seu salvamento também foi narrada por Ernest Jones no mesmo capítulo de sua biografia. Nossa dívida principal em todo esse assunto é para com a Princesa Marie Bonaparte (Princesa George, da Grécia), que não só adquiriu os documentos imediatamente, como teve a extraordinária coragem de resistir aos intentos do autor deles, e seu mestre, de destruí-los.
Até agora, foi publicada somente uma seleção desses documentos (editada nos livros citados no cabeçalho desta nota). Para a Edição Standard, fizemos uma outra seleção a partir daquela seleção. Escolhemos (a) o Projeto para uma Psicologia Científica, (b) todos os “Rascunhos”, menos um deles, e (c) as partes das cartas que parecem ter uma conexão significativa com a história da psicanálise e a evolução dos pontos de vista de Freud. O leitor deverá ter em mente que o material desses rascunhos e cartas não foi projetado por seu autor para ser considerado uma expressão acabada de suas opiniões e que, muitas vezes, o material será articulado numa forma altamente condensada. Portanto, não há por que surpreender-se com a presença ocasional de incoerências e obscuridades.
A presente tradução inglesa baseia-se na versão alemã publicada nos Anfänge. Contudo, foi comparada com o manuscrito original e, nas passagens em que foram constatadas divergências significativas, estas foram corrigidas, sempre com uma nota explicativa. Para simplificar as referências, manteve-se a designação com letras e números dos rascunhos e cartas adotada nos Anfänge e nas Origins. Seguimos o critério dos organizadores dos Anfänge (por motivos que explicamos em [1]), ao destacar o Projeto do restante da correspondência e editá-lo no fim do volume.

RASCUNHO A

PROBLEMAS

(1) Será a angústia das neuroses de angústia derivada da inibição da função sexual ou da angústia ligada à etiologia dessas neuroses?
(2) Até que ponto uma pessoa sadia reage aos traumas sexuais posteriores de modo diferente de alguém predisposto pela masturbação? Apenas quantitativamente? Ou qualitativamente?
(3) Será o coitus reservatus simples (condom) um fator nocivo?
(4) Existirá uma neurastenia inata, com fraqueza sexual inata, ou será ela sempre adquirida na juventude? (Por meio das babás, da masturbação praticada por outra pessoa.)
(5) Será a hereditariedade algo mais que um multiplicador?
(6) O que é que participa da etiologia da depressão periódica?
(7) Será a anestesia sexual nas mulheres outra coisa que não um resultado da impotência? Poderá ela, por si mesma, provocar neuroses?

TESES
(1) Não existe nenhuma neurastenia ou neurose análoga sem distúrbio da função sexual.
(2) Este tem um efeito causal imediato, ou então atua como uma disposição para outros fatores, mas sempre de tal modo que, sem ele, os demais fatores não podem causar neurastenia.
(3) A neurastenia nos homens, dada sua etiologia, é acompanhada de relativa impotência.
(4) A neurastenia nas mulheres é uma conseqüência direta da neurastenia nos homens, por meio da redução da potência deles.
(5) A depressão periódica é uma forma de neurose de angústia, que, fora desta, manifesta-se em fobias e ataques de angústia.
(6) A neurose de angústia é, em parte, uma conseqüência da inibição da função sexual.
(7) O excesso simples e a sobrecarga de trabalho não são fatores etiológicos.
(8) A histeria, nas neuroses neurastênicas, indica a repressão dos afetos concomitantes.
GRUPOS [PARA OBSERVAÇÃO]
(1) Homens e mulheres que permaneceram sadios.
(2) Mulheres estéreis em que há ausência de traumas pela prevenção da gravidez no casamento.
(3) Mulheres infectadas por gonorréia.
(4) Homens de vida promíscua que têm gonorréia e que, por esse motivo, estão protegidos em todos os sentidos, tendo conhecimento de sua hipospermia.
(5) Membros que permaneceram sadios em famílias gravemente afetadas.
(6) Observações de países em que são endêmicas certas anormalidades sexuais específicas.

FATORES ETIOLÓGICOS
(1) Esgotamento devido a [formas de] satisfação anormais.
(2) Inibição da função sexual.
(3) Afetos concomitantes a essas práticas.
(4) Traumas sexuais anteriores ao início da idade da compreensão.

RASCUNHO B A ETIOLOGIA DAS NEUROSES

Estou escrevendo tudo uma segunda vez para você, meu caro amigo, e em prol de nossos trabalhos em comum. Naturalmente, você manterá este rascunho longe de sua jovem esposa.
I. Pode-se tomar como fato reconhecido que a neurastenia é uma conseqüência freqüente da vida sexual anormal. Contudo, a afirmação que quero fazer e comprovar por minhas observações é que a neurastenia é sempre apenas uma neurose sexual.
Adotei uma opinião semelhante (juntamente com Breuer) com relação à histeria. A histeria traumática era bem conhecida; o que afirmamos, além disso, foi que toda histeria que não é hereditária é traumática. Do mesmo modo, afirmo agora que toda neurastenia é sexual.
Por ora, deixaremos de lado a questão de saber se a disposição hereditária e, secundariamente, as influências tóxicas conseguem produzir a neurastenia verdadeira, ou se aquilo que parece ser neurastenia hereditária também remonta a um esgotamento sexual precoce. Se existe algo que se possa chamar neurastenia hereditária, cabe indagar se o status nervosus dos casos hereditários não deveria ser diferençado da neurastenia; que relações ela tem, afinal, com os sintomas correspondentes na infância, e assim por diante.
Portanto, em primeiro lugar, minha argumentação se restringirá à neurastenia adquirida. Por conseguinte, o que afirmo pode ser formulado da seguinte maneira. Na etiologia de uma afecção nervosa, devemos distinguir (1) a precondição necessária sem a qual o estado não pode surgir em absoluto e (2) os fatores desencadeantes. A relação entre esses dois elementos pode ser assim retratada: quando a precondição necessária atua de modo suficiente, a afecção se instala como conseqüência inevitável; quando não atua de modo suficiente, o resultado de sua atuação é, em primeiro lugar, uma disposição para a afecção, que deixa de ser latente tão logo sobrevém uma quantidade suficiente de um dos fatores secundários. Assim, o que falta para o efeito integral na etiologia primária pode ser substituído pela etiologia de segunda ordem; esta, contudo, é dispensável, ao passo que a de primeira ordem é imprescindível.
Se essa fórmula etiológica for aplicada a nosso caso atual, chegaremos à seguinte conclusão: apenas o esgotamento sexual pode, por si só, provocar neurastenia. Quando não consegue esse resultado por si mesmo, tem um efeito tal sobre a disposição do sistema nervoso que a doença física, os afetos depressivos e o excesso de trabalho (influências tóxicas) não mais podem ser tolerados sem [levar à] neurastenia. Sem o esgotamento sexual, porém, todos esses fatores são incapazes de gerar neurastenia. Acarretam fadiga normal, tristeza normal e fraqueza física normal, mas continuam apenas a evidenciar quanto “dessas influências prejudiciais uma pessoa normal consegue tolerar”.
Examinarei separadamente a neurastenia nos homens e nas mulheres.
neurastenia masculina é adquirida na puberdade e se manifesta quando o paciente atinge a casa dos vinte anos. Sua origem é a masturbação, cuja freqüência tem completa correlação com a freqüência da neurastenia masculina. Podemos observar, no círculo de nossas relações (ao menos nas populações urbanas), que os indivíduos que foram seduzidos por mulheres em idade precoce escapam à neurastenia. Quando esse fator nocivo atua por um período prolongado e com intensidade, ele transforma a pessoa em questão num neurastênico sexual cuja potência fica igualmente prejudicada; a intensidade da causa tem correlação com a persistência desse estado por toda a vida. Uma prova adicional da conexão causal está no fato de que um neurastênico sexual sempre é, ao mesmo tempo, um neurastênico geral.
Se o fator nocivo não foi suficientemente intenso, ele terá (de acordo com a fórmula dada acima) um efeito sobre a disposição do paciente; desse modo, se, posteriormente, intervierem fatores precipitantes, ele provocará neurastenia, que esses fatores isoladamente não teriam produzido. Trabalho intelectual - neurastenia cerebral; atividade sexual normal - neurastenia medular etc.
Nos casos intermediários, encontramos a neurastenia da juventude, que tipicamente começa e segue sua evolução acompanhada de dispepsia etc., e que cessa com o casamento.
O segundo fator nocivo, que afeta homens em idade mais avançada, exerce seu impacto sobre um sistema nervoso que ou está intacto ou foi predisposto à neurastenia pela masturbação. A questão é saber se esse fator pode acarretar resultados prejudiciais mesmo no primeiro caso; é provável que sim. Seu efeito é patente no segundo caso, em que ele revive a neurastenia da juventude e cria novos sintomas. Esse segundo fator nocivo é o onanismus conjugalis - o coito incompleto, com a finalidade de evitar a gravidez. Quanto aos homens, todos os métodos utilizados para conseguir isso parecem equivaler-se: atuam com intensidade variável, conforme a disposição prévia da pessoa, mas, de fato, não diferem qualitativamente. Mesmo o coito normal não é tolerado pelos que têm uma disposição intensa ou pelos neurastênicos crônicos; e, além disso, a intolerância ao condom, ao coito extravaginal e ao coitus interruptus cobra seu tributo. Um homem sadio tolerará todos esses métodos por longo tempo, mas não indefinidamente. Depois de certo tempo, comporta-se como o indivíduo portador de uma predisposição. Sua única vantagem em relação ao masturbador é o privilégio de uma latência mais prolongada, ou o fato de que, em cada ocasião, ele necessita de uma causa precipitante. Nisso o coitus interruptus prova ser o principal fator nocivo e produz seu efeito característico mesmo em indivíduos não-predispostos.

Neurastenia feminina. Normalmente, as meninas são sadias e não-neurastênicas; e isto é também para as jovens mulheres casadas, apesar de todos os traumas sexuais desse período da vida. Em casos relativamente raros, a neurastenia em sua forma pura surge em mulheres casadas e em mulheres não-casadas de mais idade; deve-se então pensar que surgiu espontaneamente e do mesmo modo [? que nos homens]. Com muito maior freqüência, a neurastenia numa mulher casada decorre da neurastenia existente no homem, ou é produzida simultaneamente. Nesse caso, quase sempre há uma mistura de histeria, e temos então a neurose mista comum da mulheres.
neurose mista das mulheres decorre da neurastenia existente nos homens, em todos os casos não raros em que o homem, sendo neurastênico sexual, sofre de limitações na sua potência. A mistura com a histeria resulta diretamente do refreamento da excitação do ato. Quanto mais reduzida a potência do homem, mais predominante é a histeria da mulher; assim, um homem sexualmente neurastênico torna sua mulher não tanto neurastênica, mas histérica.
Essa neurose surge, juntamente com a neurastenia dos homens, durante o segundo impacto dos fatores nocivos sexuais, que é de significação maior para a mulher, supondo-se que seja sadia. Assim, encontramos muito mais homens neuróticos durante a primeira década da puberdade e muito mais mulheres neuróticas durante a segunda. No caso das mulheres, isso resulta dos fatores nocivos devidos à evitação da gravidez. Não é fácil classificá-los e, de modo geral, nenhum deles deve ser considerado inteiramente inócuo para as mulheres; de modo que, mesmo nos casos mais favoráveis (condom), as mulheres, sendo parceiros sexuais mais escrupulosos, dificilmente escaparão de neurastenia discreta. Evidentemente, muita coisa dependerá das duas predisposições: se (1) a mulher era neurastênica antes do casamento ou se (2) tornou-se histérico-neurastênica durante o período de relações sexuais livres [sem preservativos].
II. Neurose de angústia. Todos os casos de neurastenia caracterizam-se, indubitavelmente, por uma certa diminuição da autoconfiança, uma expectativa pessimista e uma inclinação para idéias antitéticas aflitivas. Contudo, a questão é saber se o surgimento proeminente desse fator [angústia], sem estarem os outros sintomas especialmente desenvolvidos, não deveria ser destacado como uma “neurose de angústia” independente, particularmente tendo em conta que esta pode ser encontrada não menos freqüentemente na histeria do que na neurastenia.
A neurose de angústia surge sob duas formas: como um estado crônico e como um ataque de angústia. As duas formas podem combinar-se facilmente; e um ataque de angústia nunca ocorre sem sintomas crônicos. Os ataques de angústia são mais comuns nas formas ligadas à histeria - são, portanto, mais freqüentes em mulheres. Os sintomas crônicos são mais comuns em homens neurastênicos. Os sintomas crônicos são: (1) angústia relacionada com o corpo (hipocondria); (2) angústia em relação ao funcionamento do corpo (agorafobia, claustrofobia, vertigem em lugares altos); (3) angústia relacionada com as decisões e a memória - isto é, as fantasias de alguém a respeito de seu próprio funcionamento psíquico (folie de doute, ruminações obsessivas etc.). Até este momento, não tive nenhuma razão para não tratar desses sintomas como sendo equivalentes. De resto, a questão é a seguinte: (1) em que medida esse estado emerge nos casos hereditários, sem qualquer fator nocivo sexual, (2) se ele é desencadeado, no casos hereditários, por algum fator nocivo sexual, (3) se ele se acrescenta, sob a forma de intensificação, à neurastenia comum. Não há dúvida de que é adquirido, e especialmente por homens e mulheres casados, durante o segundo período de fatores nocivos sexuais, através do coitus interruptus. Não penso que, para isso, seja necessária uma predisposição devida a uma neurastenia anterior; mas, quando falta a predisposição, a latência é maior. A fórmula causal é a mesma da neurastenia [em [1]].
Os casos mais raros de neurose de angústia fora do casamento são encontrados especialmente nos homens. No final, revelam-se como casos de congressus interruptus em que o homem se envolve psiquicamente de forma intensa com mulheres cujo bem-estar constitui, para ele, tema de preocupação. Esse procedimento, em tais condições, é um fator nocivo de maior importância para o homem do que o coitus interruptus no casamento, de vez que este é e freqüentemente corrigido, por assim dizer, pelo coito normal fora do casamento.

Devo examinar a depressão periódica, um ataque de angústia com duração de semanas ou meses, como uma terceira forma de neurose de angústia. Essa forma de depressão, em contraste com a melancolia propriamente dita, quase sempre tem uma conexão aparentemente racional com um trauma psíquico. Este, no entanto, é apenas a causa precipitante. Ademais, essa depressão periódica não é acompanhada por anestesia [sexual] psíquica, que é característica da melancolia [em [1]].
Tive a possibilidade de estabelecer como causa de numerosos casos dessa espécie o coitus interruptus; seu início era tardio, durante o casamento, depois do nascimento do último filho. Num caso de uma torturante neurastenia que começou na puberdade, pude comprovar a existência de uma violência sexual no oitavo ano de vida. Um outro caso, que durava desde a infância, veio a revelar-se como reação histérica a uma violência sexual sob a forma de masturbação. Assim, não posso dizer se, nesses casos, estamos diante de formas verdadeiramente hereditárias sem uma causa sexual; e, por outro lado, não sei dizer se o coitus interruptus, por si mesmo, pode ser incriminado nesses casos, nem se a disposição hereditária é sempre prescindível.
Omitirei as neuroses ocupacionais, pois, como lhe disse, nelas foram demonstradas modificações nos componentes musculares.
CONCLUSÕES
Depreende-se do que eu disse que as neuroses são inteiramente evitáveis como também inteiramente incuráveis. A tarefa do médico desloca-se totalmente para a profilaxia.
A primeira parte dessa tarefa, a prevenção do fator nocivo sexual do primeiro período, coincide com profilaxia contra a sífilis e a gonorréia, pois estes são os fatores nocivos que ameaçam todo aquele que abandona a masturbação. A única alternativa seriam as relações sexuais livres entre rapazes e moças respeitáveis; isto, contudo, só poderia ser adotado se houvesse métodos inócuos de evitar a gravidez. Não sendo assim, as alternativas são: masturbação, neurastenia masculina e histero-neurastenia na mulher, ou então sífilis no homem, sífilis na geração seguinte, gonorréia no homem, gonorréia e esterilidade na mulher.

O mesmo problema - um meio inócuo de controlar a concepção - é trazido pelo trauma sexual do segundo período, pois o condom não proporciona uma solução segura nem aceitável para quem já é neurastênico.
Na ausência de tal solução, a sociedade parece condenada a cair vítima de neuroses incuráveis, que reduzem a um mínimo o gozo da vida, destroem a relação conjugal e trazem a ruína hereditária a toda a geração seguinte. As camadas inferiores da sociedade nada sabem do malthusianismo, mas estão em plena procura e, do jeito que as coisas vão, atingirão o mesmo ponto e serão vitimadas pela mesma fatalidade.
Assim, o médico se defronta com um problema cuja solução merece todo o seu empenho.

CARTA 14

…As coisas se complicam cada vez mais, à medida que chega a confirmação. Ontem, por exemplo, vi quatro casos novos cuja etiologia, como evidenciado pelos dados cronológicos, só poderia ser o coitus interruptus. Talvez eu possa mantê-lo interessado, fazendo um breve relato desses casos. Eles estão longe de ser uniformes.
(1) Mulher, 41 anos; filhos, com 16, 14, 11 e 7 anos. Problemas nervosos nos últimos 12 anos; passou bem nos períodos de gravidez; recaída, posteriormente; não piorou com a última gravidez. Ataques de vertigem com sensação de fraqueza, agorafobia, expectativa ansiosa, nenhum indício de neurastenia, histeria pouca. Etiologia confirmada: [neurose de angústia] simples.
(2) Mulher, 24 anos; filhos de 4 e 2 anos. Desde a primavera de ‘93, ataques de dor (nas costas até o esterno) à noite, com insônia; quanto ao mais, nada de especial; durante o dia, bem. Marido, caixeiro-viajante; esteve em casa por algum tempo na primavera e agora. No verão, enquanto o marido estava fora, sentia-se muito bem. Coitus interruptus e muito receio de ter filhos. Histeria, portanto.

(3) Homem, 42 anos: filhos de 17, 16 e 13 anos. Esteve bem até há seis anos. Aí, com a morte do pai, súbito ataque de angústia com palpitações, temores hipocondríacos de câncer da língua; vários meses depois, um segundo ataque, com cianose, pulso intermitente, medo de morrer etc.; a partir de então, fraqueza, vertigem, agorafobia, alguma dispepsia. Este é um caso de neurose de angústia pura, acompanhado de sintomas cardíacos subseqüentes a uma emoção; contudo, o coitus interruptus foi aparentemente tolerado com facilidade durante dez anos. [1]
(4) Homem, 34 anos. Perda do apetite nos últimos três anos; dispepsia há um ano, com perda de 20 quilos, constipação. Quando esses sintomas cessaram, passou a sentir violenta pressão intracraniana nas ocasiões em que soprava o siroco; ataques de fraqueza com sensações correlatas e espasmos clônicos histeriformes. Nesse caso, portanto, predomina a histeria. Tem um filho de cinco anos de idade. Desde então, coitus interruptus devido a uma doença da mulher. Mais ou menos na mesma época em que se recuperou da dispepsia, foram reiniciadas as relações sexuais normais.
Em vista dessas reações aos mesmos fatores nocivos, é preciso coragem para insistir na natureza específica dos seus efeitos, tal como a concebo. E, no entanto, deve ser assim; há determinados pontos que ligam todos esses quatro casos (neurose de angústia simples - histeria simples - neurastenia com histeria).
Em (1), uma mulher muito inteligente, não havia receio de ter filhos; ela tem uma neurose de angústia simples.
Em (2), uma mulher jovem, agradável e obtusa, a angústia era muito intensa; depois de breve período, teve histeria pela primeira vez.
O caso (3), com neurose de angústia e sintomas cardíacos, era um homem muito potente e fumante inveterado.
O caso (4), pelo contrário, era (sem se ter masturbado) apenas moderadamente potente - frígido.

RASCUNHO D: SOBRE A ETIOLOGIA E A TEORIA DAS PRINCIPAIS NEUROSES

I. CLASSIFICAÇÃO
Introdução. Histórico. Diferenciação gradual das neuroses. O curso de evolução dos meus próprios pontos de vista.
A. Morfologia das Neuroses.
(1) Neurastenia e as pseudoneurastenias.
(2) Neurose de angústia.
(3) Neurose obsessiva.
(4)Histeria.
(5) Melancolia, Mania.
(6) As neuroses mistas.
(7) Ramificações das neuroses e transições para o normal.

B. Etiologia das Neuroses (provisoriamente restrita às neuroses adquiridas).
(1) Etiologia da neurastenia - Tipo de neurastenia congênita.
(2) Etiologia da neurose de angústia.
(3) da neurose obsessiva e da histeria.
(4) da melancolia.
(5) da neuroses mistas.
(6) A fórmula etiológica básica [em [1], atrás]. - A tese da especificidade [da etiologia]; a análise do conjunto das neuroses.
(7) Os fatores sexuais em sua significação etiológica.
(8) Exame dos pacientes.
(9) Objeções e Provas.
(10) Conduta das pessoas assexuais.

C. Etiologia e Hereditariedade.
Os tipos hereditários. - Relação da etiologia com a degeneração, com as psicoses e com a predisposição.
II. TEORIA
D. Pontos de Contacto com a Teoria da Constância.
Aumento interno e externo do estímulo; excitação constante e passageira. - Soma, uma característica da excitação interna. Reação específica. - Formulação e exposição da teoria da constância. - Interposição do ego, com acumulação da excitação.
E. O Processo Sexual à Luz da Teoria da Constância.
A via seguida pela excitação no processo sexual masculino e feminino. - A via seguida pela excitação na presença de fatores sexuais nocivos etiologicamente operantes. - Teoria de uma substância sexual. - O diagrama esquemático sexual.
F. Mecanismo das Neuroses.
As neuroses como perturbações do equilíbrio devidas ao aumento da dificuldade de descarga. - Tentativas de ajustamento, limitadas em sua eficácia. - Mecanismo das diferentes neuroses em relação à sua etiologia sexual. - Afetos e neuroses.
G. Paralelo entre as neuroses da sexualidade e a fome.
H. Resumo da teoria da constância e da teoria da sexualidade e das neuroses.
Lugar das neuroses na patologia; fatores a que elas estão sujeitas; leis que regem sua combinação. - Inadequação psíquica, desenvolvimento, degeneração etc.

CARTA 18

…Existe ainda uma centena de lacunas, grandes e pequenas, em minhas idéias a respeito das neuroses. Mas estou-me aproximando de um ponto de vista abrangente e de alguns critérios gerais de abordagem. Conheço três mecanismos: transformações do afeto (histeria de conversão), deslocamento do afeto (obsessões) e (3) troca de afeto (neurose de angústia e melancolia). Em todos os casos, é a excitação sexual que parece sofrer essas alterações, mas o estímulo para elas não é, em todos os casos, algo sexual. Ou seja, em todos os casos em que as neuroses são adquiridas, elas o são devido a perturbações na vida sexual; mas existem pessoas nas quais o comportamento de seus afetos sexuais é perturbado hereditariamente, e elas desenvolvem as formas correspondentes de neuroses hereditárias. Os aspectos mais gerais a partir dos quais posso classificar as neuroses são os seguintes:
(1) Degeneração.
(2) Senilidade. E o que significa isto?
(3) Conflito
(4) Conflagração.
Degeneração: significa o comportamento inatamente anormal dos afetos sexuais; desse modo, os processos da conversão, do deslocamento e da transformação em angústia ocorrem na proporção em que os afetos sexuais desempenham um papel no decurso da vida.
Senilidade: é evidente. Por assim dizer, é uma degeneração normalmente adquirida na velhice.
Conflito: coincide com minha concepção de defesa [rechaço]; compreende os casos de neurose adquirida em pessoas que não são hereditariamente anormais. O que é rechaçado é sempre a sexualidade.
Conflagração: é uma concepção nova. Significa o que se pode chamar de degeneração aguda (por exemplo, nas intoxicações graves, nas febres, no estágio inicial da paralisia geral) - ou seja, catástrofes em que há perturbações dos afetos sexuais sem causas desencadeantes sexuais. Talvez as neuroses traumáticas pudessem ser abordadas sob esse enfoque.
Naturalmente, o ponto central e principal de todo esse assunto continua sendo o fato de que, em conseqüência de determinados fatores nocivos sexuais, até mesmo as pessoas sadias podem adquirir as diferentes formas de neurose. O acesso a uma visão mais ampla é proporcionado pelo fato de que, nos casos em que uma neurose se desenvolve sem um fator nocivo, pode-se demonstrar a presença, desde o início, de uma perturbação similar dos afetos sexuais. “Afeto sexual”, naturalmente, é tomado no seu sentido mais amplo, como uma excitação de quantidade definida.
Posso apresentar-lhe o meu mais recente exemplo para apoiar essa tese:
Um homem de 42 anos, forte e elegante, de repente desenvolveu uma dispepsia neurastênica, aos 30 anos, perdendo uns 25 quilos de peso, e a partir daí viveu uma vida limitada e neurastênica. Na época em que isso aconteceu, aliás, ele tinha combinado seu casamento e estava emocionalmente abalado pela doença da noiva. Salvo esse aspecto, porém, não havia fatores sexuais nocivos. Ele se masturbou mais ou menos por um ano, dos 16 anos aos 17 anos; dos 17 em diante, passou a ter relações sexuais normais; muito raramente, coitus interruptus; nenhum excesso, nenhuma abstinência. Ele próprio atribui a causa à sobrecarga a que submeteu sua constituição até a idade de 30 anos: trabalhava, bebia e fumava muito, levava uma vida irregular. Mas esse homem vigoroso, sujeito [apenas] a fatores nocivos corriqueiros, nunca (nunca, entre os 17 e os 30 anos) foi propriamente potente: jamais conseguiu praticar mais de um coito em cada ocasião; sempre ejaculava rapidamente, nunca fez pleno uso de seu sucesso [inicial] junto às mulheres, nunca conseguiu penetrar com facilidade a vagina. Qual era a origem de sua limitação? Não sei dizer. O interessante, todavia, é que isso estava presente justamente nele. Aliás, tratei de duas de suas irmãs, portadoras de neuroses; uma delas está entre as minhas mais bem-sucedidas curas de dispepsia neurastênica.

RASCUNHO E: COMO SE ORIGINA A ANGÚSTIA

Com mão certeira você tocou na questão que penso ser o ponto fraco. Tudo o que sei a respeito é o seguinte:
Logo ficou claro para mim que a angústia de meus pacientes neuróticos tinha muito a ver com a sexualidade; e me chamou especialmente a atenção a certeza com que o coitus interruptus praticado numa mulher conduz à neurose de angústia. Comecei, então, a seguir diversas pistas falsas. Achei que a angústia de que sofrem os pacientes devia ser considerada um prolongamento da angústia experimentada durante o ato sexual - ou seja, que era, na realidade, um sintoma histérico. Na verdade, são por demais evidentes as conexões entre a neurose de angústia e a histeria. Duas coisas poderiam originar o sentimento de angústia no coitus interruptus: na mulher, o receio de ficar grávida e, no homem, a preocupação de seu artifício [preventivo] poder falhar. A partir de uma série de casos, convenci-me de que a neurose de angústia também surgia em situações em que, para as duas pessoas envolvidas, a eventualidade de virem a ter um filho basicamente não representava uma questão de maior importância. Assim, a angústia da neurose de angústia não era continuada, relembrada, histérica.
Um segundo ponto, extremamente importante, ficou definido para mim a partir da seguinte observação. A neurose de angústia afeta tanto as mulheres que são frígidas no coito como as que têm sensibilidade. Esse aspecto é interessante, e só pode significar que a origem da angústia não deve ser buscada na esfera psíquica. Por conseguinte, deve estar radicada na esfera física: é um fator físico da vida sexual que produz a angústia. Mas que fator?

Tendo em mira esse ponto, reuni os casos em que encontrei a angústia originando-se de uma causa sexual. Em princípio, eles me pareceram muito heterogêneos:
(1) Angústia das pessoas virgens (observações e informações sexuais, prenúncios da vida sexual); confirmada por numerosos exemplos, em ambos os sexos, predominantemente no sexo feminino. Não raro, existe um indício de uma ligação intermediária - uma sensação semelhante à ereção, que aparece nos genitais.
(2) Angústia das pessoas voluntariamente abstinentes, das beatas (um tipo de neuropata), de homens e mulheres que se caracterizam pelo rigor excessivo e por uma paixão pela limpeza, que consideram horrível tudo o que é sexual. As mesmas pessoas tendem a transformar sua ansiedade em fobias, atos obsessivos, folie de doute.
(3) Angústia da pessoas obrigatoriamente abstinentes: mulheres que são esquecidas por seus maridos ou não são satisfeitas devido à falta de potência. Essa forma de neurose de angústia certamente pode ser adquirida e, devido a circunstâncias concomitantes, combina-se muitas vezes com a neurastenia.
(4) Angústia das mulheres que vivem a prática do coitus interrruptus ou, o que é parecido, das mulheres cujos maridos sofrem de ejaculação precoce - portanto, pessoas em que a estimulação física não é satisfeita.
(5) Angústia dos homens que praticam o coitus interruptus e mesmo dos homens que se excitam de diferentes maneiras e não empregam sua ereção para o coito.
(6) Angústia dos homens que vão além do seu desejo ou da sua força, pessoas de mais idade cuja potência está diminuindo, mas que, ainda assim, se impõem a prática do coito.
(7) Angústia das pessoas que se abstêm ocasionalmente: homens jovens que se casaram com mulheres de mais idade, por quem na verdade sentem repulsa; ou neurastênicos que foram desviados da masturbação pelo trabalho intelectual, sem compensá-la através do coito; ou homens cuja potência começa a enfraquecer e que, no casamento, abstêm-se das relações sexuais por causa de sensações post coitum [cf. em [1]].
Nos demais casos, não ficou evidenciada a ligação entre a angústia e a vida sexual. (Poderia ser estabelecida teoricamente.)

Como juntar todos esses casos separados? O que há de comum neles, com maior freqüência, é a abstinência. Depois de constatar o fato de que mesmo as mulheres frígidas estão sujeitas à angústia após o coitus interruptus, somos levados a dizer que se trata de uma questão de acumulação física de excitação - isto é, uma acumulação de tensão sexual física. A acumulação ocorre como conseqüência de ter sido evitada a descarga. Assim a neurose de angústia é uma neurose de represamento, como a histeria; daí a sua semelhança. E visto que absolutamente nenhuma angústia está contida no que é acumulado, a situação se define dizendo-se que a angústia surge por transformação a partir da tensão sexual acumulada.
Aqui se pode intercalar algum conhecimento que nesse meio tempo se obteve acerca do mecanismo da melancolia. Com freqüência muito especial verifica-se que os melancólicos são anestéticos. Não têm necessidade de relação sexual (e não têm a sensação correlata). Mas têm um grande anseio pelo amor em sua forma psíquica - uma tensão erótica psíquica, poder-se-ia dizer. Nos casos em que esta se acumula e permanece insatisfeita, desenvolve-se a melancolia. Aqui, pois, poderíamos ter a contrapartida da neurose de angústia. Onde se acumula tensão sexual física - neurose de angústia. Onde se acumula tensão sexual psíquica - melancolia.
Mas por que ocorre essa transformação em angústia quando há uma acumulação? Nesse ponto devemos examinar o mecanismo normal para lidar com a tensão acumulada. O que nos interessa aqui é o segundo caso - o caso da excitação endógena. As coisas são mais simples no caso da excitação exógena. A fonte da excitação situa-se externamente e envia para dentro da psique um acréscimo de excitação que é manejado de acordo com sua quantidade. Para esse propósito, basta qualquer reação que reduza em igual quantidade a excitação psíquica. [Cf. em [1].]

Mas as coisas se passam de modo diverso no caso da tensão endógena, cuja fonte se situa dentro do corpo do indivíduo (fome, sede, pulsão sexual). Nesse caso, só têm utilidade as reações específicas - reações que evitem novo surgimento de excitação nos órgãos terminais em questão, sejam essas reações exeqüíveis com maior ou menor gasto [de energia]. Aqui podemos supor que a tensão endógena cresce contínua ou descontinuamente, mas, de qualquer modo, só é percebida quando atinge um determinado limiar. É somente acima desse limiar que a tensão passa a ter significação psíquica, que entra em contacto com determinados grupos de idéias que, com isso, passam a buscar soluções. Assim, a tensão sexual física acima de certo nível desperta a libido psíquica, que então induz ao coito etc. Quando a reação específica deixa de se realizar, a tensão físico-psíquica (o afeto sexual) aumenta desmedidamente. Torna-se uma perturbação, mas ainda não há base para sua transformação. Contudo, na neurose de angústia, essa transformação de fato ocorre, o que sugere a idéia de que, nessa neurose, as coisas se desvirtuam da seguinte maneira: a tensão física aumenta, atinge o nível do limiar em que consegue despertar afeto psíquico, mas, por algum motivo, a conexão psíquica que lhe é oferecida permanece insuficiente: um afeto sexual não pode ser formado, porque falta algo nos fatores psíquicos. Por conseguinte, a tensão física, não sendo psiquicamente ligada, é transformada em - angústia.
Se aceitarmos a teoria até esse ponto, teremos de insistir em que deve haver, na neurose de angústia, um déficit constatável de afeto sexual na libido psíquica. E isso se confirma pela observação. Quando essa correlação é posta diante de alguma paciente, ela sempre se indigna e declara que, pelo contrário, agora já não tem nenhum desejo etc. Os pacientes do sexo masculino muitas vezes confirmam, como fato observado, que, após passarem a sofrer de angústia, não sentiram nenhum desejo sexual.

Vejamos agora se esse mecanismo concorda com os diferentes casos enumerados acima.
(1) Angústia das pessoas virgens. Nesse caso, o conjunto de idéias que deve captar a tensão física ainda não está presente, ou está presente apenas de maneira insuficiente; e, além disso, existe uma recusa psíquica que é um resultado secundário da educação. Esse exemplo se enquadra muito bem.
(2) Angústia das pessoas excessivamente pudicas. Nesse caso, o que existe é a defesa - uma completa rejeição psíquica que impossibilita qualquer transformação da tensão sexual. É também nesses casos que encontramos numerosas obsessões. Outro exemplo muito adequado.
(3) Angústia nos casos de abstinência forçosa. É essencialmente a mesma, pois a maioria das mulheres desse tipo cria uma rejeição psíquica destinada a evitar a tentação. Nesse caso, a rejeição é uma contingência; em (2) trata-se de algo fundamental.
(4) Angústia das mulheres, decorrente de coitus interruptus. Nesse caso, o mecanismo é mais simples. Trata-se de excitação endógena que não se origina [espontaneamente], mas é induzida, embora não em quantidade suficiente para que seja capaz de despertar afeto psíquico. Efetua-se artificialmente um alheamento entre o ato físico-sexual e sua transformação psíquica. Quando, depois disso, a tensão endógena aumenta ainda mais por sua própria conta, ela não consegue ser transformada e gera angústia. Nesse caso, a libido pode estar presente, mas não ao mesmo tempo que a angústia. Desse modo, aqui, a rejeição psíquica é seguida de alheamento psíquico; a tensão de origem endógena é acompanhada por uma tensão induzida.
(5) Angústia dos homens em decorrência do coitus interruptus ou do coitus reservatus. O caso do coitus reservatus é mais claro; o coitus interruptus pode ser considerado, em parte, subordinado a ele. Também nesse caso, trata-se de um afastamento psíquico, pois a atenção é voltada para um outro objetivo e mantida afastada da transformação da tensão física. Contudo, provavelmente há que aprimorar a explicação para o coitus interruptus.
(6) Angústia que acompanha a diminuição da potência ou a libido insuficiente. De vez que, nesses casos, não ocorre a transformação da tensão física em angústia, por causa da senilidade, a explicação estaria no fato de que é insuficiente o desejo psíquico que pode ser concentrado para o ato em questão.
(7)Angústia dos homens em conseqüência de aversão, ou dos neurastênicos abstinentes. O primeiro caso não requer uma explicação nova; o outro, dos neurastênios abstinentes, talvez seja uma forma atenuada de neurose de angústia, pois em geral isso só acontece propriamente em homens potentes. Pode ser que o sistema nervoso neurastênico não consiga tolerar uma acumulação de tensão física, pois a masturbação implica o habituar-se a uma freqüente e completa ausência de tensão.
No seu todo, a concordância não é tão precária assim. Nos casos em que há um considerável desenvolvimento da tensão sexual física, mas esta não pode ser convertida em afeto pela transformação psíquica - por causa do desenvolvimento insuficiente da sexualidade psíquica, ou por causa da tentativa de suprimi-la (defesa), ou por causa do declínio da mesma, ou por causa do alheamento habitual entre sexualidade física e psíquica -, a tensão sexual se transforma em angústia. Assim, nisso desempenham um papel a acumulação de tensão física e a evitação da descarga no sentido psíquico.
Mas por que a transformação se faz precisamente em angústia? Angústia é a sensação de acumulação de um outro estímulo endógeno, o estímulo de respirar, um estímulo que é incapaz de ser psiquicamente elaborado à parte o próprio respirar; portanto, a angústia poderia ser empregada para a tensão física acumulada em geral. Além disso, se examinarmos mais detidamente os sintomas da neurose de angústia, encontraremos nela os componentes separados de um grande ataque de angústia, ou seja, dispnéia isolada, palpitações isoladas, sensação de angústia isolada, ou uma combinação desses elementos. Vistas mais de perto, estas são as vias de inervação que a tensão psicossexual comumente percorre, mesmo quando está por ser transformada psiquicamente. A dispnéia e as palpitações fazem parte do coito; e, conquanto sejam habitualmente utilizadas somente como vias auxiliares de descarga, aqui, por assim dizer, servem como as únicas saídas para a excitação. Na neurose de angústia, existe uma espécie de conversão, tal como ocorre na histeria (mais um exemplo de sua semelhança [em [1]]); contudo, na histeria, é a excitação psíquica que toma um caminho errado, exclusivamente em direção à área somática, ao passo que aqui é uma tensão física,que não consegue penetrar no âmbito psíquico e, portanto, permanece no trajeto físico. As duas se combinam com extrema freqüência.
Foi esse o ponto a que consegui chegar por ora. As lacunas precisam muito ser preenchidas. Penso que tudo isso está incompleto: falta-me algo; mas creio que os fundamentos estão corretos. Naturalmente, tudo isso ainda não está maduro para ser publicado. Sugestões, ampliações e certamente refutações e explicações serão recebidas com a máxima gratidão.

RASCUNHO F: COLEÇÃO III

18 de agosto de 1894.Nº 1.
Neurose de angústia:disp. hered.
Herr K., 27 anos.
Pai em tratamento por melancolia senil; irmã, O., bom caso de neurose de angústia complicada, cuidadosamente analisado; todos os membros da família K. são neuróticos e de constituição geniosa. Primo do Dr. K., em Bordéus. - Boa saúde até há pouco tempo; tem dormindo mal nos últimos nove meses; em fevereiro e março, acordava muitas vezes, com pesadelos e palpitações; excitabilidade geral aumentando gradualmente; remissão dos sintomas devido a manobras militares, que lhe fizeram muito bem. Há três semanas, no início da noite, súbito ataque de angústia, sem razão [aparente], com sensação de congestão desde o peito até a cabeça. Interpretou que isso significava que, necessariamente, algo de terrível estava por acontecer; sem opressão concomitante, apenas discretas palpitações. Posteriormente, ataques semelhantes também durante o dia, na hora da refeição do meio-dia.Há duas semanas, consultou um médico; melhorou com o brometo; o estado ainda continua, mas dorme bem. Também durante as duas últimas semanas, breves ataques de profunda depressão, assemelhando-se a completa apatia, durante apenas alguns minutos. Melhorou somente aqui em R[eichenau]. Além disso, acessos de pressão na parte posterior da cabeça.
Ele próprio tomou a iniciativa de dar informações sobre sua vida sexual. Há um ano, apaixonou-se por uma moça com quem flertava; grande choque ao saber que ela estava noiva de outro. Não está mais apaixonado atualmente. - Atribui pouca importância ao fato. - Prosseguiu: masturbava-se entre os 13 e os 16 ou 17 anos (seduzido no colégio), moderadamente, disse ele. Moderado nas relações sexuais; nos últimos 2 anos e meio, tem feito uso do condom, por medo de infecção; depois de tais relações, muitas vezes se sente fraco. Descreveu esse tipo de relações como forçadas. Verifica que sua libido diminuiu muito durante o último ano. Ficava excitadíssimo sexualmente em seu relacionamento com a moça (sem tocá-la etc.) Seu primeiro ataque, à noite (fevereiro), ocorreu dois dias após uma relação sexual; seu primeiro ataque de angústia se deu após relação sexual, na mesma noite; a partir de então (três semanas), abstinente - um homem tranqüilo, de maneiras afáveis e, afora isso, sadio.
18 de agosto de 1894.Discussão do Nº 1
Ao procurarmos interpretar o caso de K., uma coisa nos chama especialmente a atenção. O homem tem uma disposição hereditária: seu pai sofre de melancolia, talvez melancolia de angústia; a irmã tem uma típica neurose de angústia; conheço intimamente essa neurose, mas, não fosse por isso, eu decerto a descreveria como adquirida. Isso dá motivo para pensar em sua hereditariedade. Na família K., provavelmente existe apenas uma “disposição” (uma tendência a adoecer cada vez com maior gravidade em resposta à etiologia típica), e não uma “degeneração”. Podemos, pois, supor que, no caso de Herr K., a discreta neurose de angústia se desenvolveu a partir de uma etiologia discreta. Onde buscá-la, sem preconceito?
Em primeiro lugar, parece-me tratar-se de um estado de enfraquecimento da sexualidade. A libido desse homem vinha diminuindo há algum tempo; os preparativos para usar um condom são o bastante para que ele sinta que todo o ato é algo que lhe é forçado, e o prazer derivado do ato, algo a que foi induzido. Sem dúvida, esse é o nó de toda essa questão. Após o coito, muitas vezes se sente enfraquecido; como diz, ele percebe isso e então, dois dias depois de um coito, ou, conforme o caso, na mesma noite, tem seus primeiros ataques de angústia.
A confluência do declínio da libido e da neurose de angústia se ajusta sem dificuldade à minha teoria. Há uma debilidade no domínio psíquico da excitação sexual somática. Essa fraqueza tem estado presente há algum tempo e possibilita o aparecimento da angústia quando há um aumento casual da excitação somática.
Como foi adquirido esse enfraquecimento psíquico? Não se poderia esperar maiores conseqüências de sua masturbação na juventude; ela certamente não teria dado esses resultados, especialmente porque não parece ter ultrapassado as medidas habituais. Seu relacionamento com a moça, que muito o excitava sensualmente, parece muito mais apto a ter como efeito uma perturbação nesse sentido; de fato, o caso se assemelha às conhecidas condições das neuroses dos homens durante os noivados prolongados. Acima de tudo, porém, não se pode duvidar de que o temor de infecção e a decisão de usar um condom constituíram o motivo daquilo que descrevi como o fator do alheamento entre o somático e o psíquico [em [1]]. O efeito seria o mesmo do caso do coitus interruptus nos homens. Em resumo, Herr K. desenvolveu uma fraqueza sexual psíquica porque por si mesmo arruinou o coito, e, estando intactas sua saúde física e a produção de estímulos sexuais, a situação deu origem à produção de angústia. Podemos dizer que sua decisão de tomar precauções, em vez de procurar satisfação adequada num relacionamento seguro, mostra que sua sexualidade, já de início, não tinha muito vigor. O homem tinha uma disposição hereditária; a etiologia que pode ser encontrada nesse caso, embora seja qualitativamente importante, seria tolerada sem maiores prejuízos por um homem sadio - isto é, um homem vigoroso.
Um aspecto interessante desse caso é o aparecimento de um estado de espírito tipicamente melancólico em ataques de curta duração. Isso deve ter importância teórica para a neurose de angústia devida ao alheamento; por ora, posso apenas fazer o registro disso.

20 de agosto de 1894. Nº 2.Herr von F., Budapeste, 44 anos.
Homem fisicamente sadio, ele se queixa de que “está perdendo sua vivacidade e o prazer de viver, de uma forma que não é natural num homem da sua idade”. Esse estado - em que tudo lhe parece indiferente, em que considera seu trabalho uma carga pesada e se sente mal-humorado e debilitado - é acompanhado de intensa pressão no alto e também na parte posterior da cabeça. Ademais, esse estado se caracteriza por má digestão - isto é, aversão à comida, flatulência e prisão de ventre. Também parece dormir mal.
No entanto, o estado é evidentemente intermitente. Dura, a cada vez, uns 4 ou 5 dias, e se dissipa lentamente. Pela flatulência, ele percebe que a fraqueza nervosa está chegando. Há intervalos de 12 a 14 dias, e ele chega a passar bem durante várias semanas. Têm ocorrido até mesmo períodos melhores, com duração de meses. Ele insiste em que as coisas têm estado assim nos últimos 25 anos. Como acontece tantas vezes, tem-se de começar a compor o quadro clínico, pois ele fica repetindo monotonamente suas queixas e declara não ter prestado atenção a outros eventos. Assim, os contornos indeterminados dos ataques, bem como sua completa irregularidade no tempo, fazem parte do quadro. Naturalmente, ele atribui a culpa do seu estado à digestão…
Organicamente sadio; sem preocupações ou perturbações emocionais de gravidade. Quanto à sexualidade: masturbação entre os 12 e os 16 anos; depois, relações muito regulares com mulheres; não se sentia muito atraído; casado nos últimos 14 anos, teve somente 2 filhos, o último há 10 anos; nesse intervalo e desde então, somente uso de condom e nenhuma outra técnica. Nos últimos anos, nítida diminuição da potência. Coito a cada 12 ou 14 dias, mais ou menos; muitas vezes, há também longos intervalos. Admite que, após coito com o uso do condom, sente-se enfraquecido e infeliz; mas não logo depois, só dois dias mais tarde - ou, como diz, tem notado que, dois dias depois, tem problemas digestivos. Por que usa condom? Não se deve ter filhos demais! ([Ele tem] 2.)

Discussão.
Um caso benigno, mas muito característico, de depressão periódica, melancolia. Sintomas: apatia, inibição, pressão intracraniana, dispepsia, insônia - o quadro está completo.
Há uma inequívoca semelhança com a neurastenia, e a etiologia é a mesma. Tenho alguns casos bastante parecidos: são masturbadores (Herr A.) e têm também um traço hereditário. Os von F. são reconhecidamente psicopatas. Assim, trata-se de um caso de melancolia neurastênica; deve haver aí um ponto de contato com a teoria da neurastenia.
É bem possível que o ponto de partida de uma melancolia de menor importância, como a que vimos, possa ser sempre o ato do coito: um exagero do ditado da filosofia “omne animal post coitum triste”. Os intervalos de tempo provariam se este é ou não o caso. O homem sente melhoras a cada série de tratamentos, a cada ausência de casa - isto é, em cada período em que se vê livre do coito. Naturalmente, como afirma, ele é fiel à esposa. O uso do condom é uma prova de pouca potência; sendo algo parecido com a masturbação, é uma causa contínua de sua melancolia.



CARTA 21

…Só reuni uns poucos casos esta segunda-feira.
Nº 3.
Dr. Z., médico, 34 anos. Por muitos anos, tem sofrido de sensibilidade orgânica nos olhos: fosfenos [clarões], ofuscação, escotomas etc. Isso tem aumentado consideravelmente, a ponto de impedi-lo de trabalhar nos últimos quatro meses (desde a época de seu casamento). Antecedentes: masturbação desde os 14 anos de idade, aparentemente continuada até esses últimos anos. Casamento não consumado, potência muito reduzida; aliás, tomadas providências para o divórcio.
Caso típico evidente de hipocondria num determinado órgão em um masturbador, em períodos de excitação sexual. É interessante que a formação médica atinja uma profundidade tão rasa.

Nº 4.
Her D., sobrinho de Frau A., que morreu histérica. Família altamente neurótica. Idade, 28 anos. Há algumas semanas tem sofrido de lassidão, pressão intracraniana, pernas bambas, potência reduzida, ejaculação precoce e dos pródromos da perversão: as jovens muito novas o excitam em grau maior do que as de mais idade.
Alega que, desde o início, sua potência foi instável; admite a masturbação, mas não muito prolongada; atualmente, anda numa fase de abstinência. Antes disto, estados de angústia no início da noite.
Será que ele fez uma confissão completa?

RASCUNHO G: MELANCOLIA

I
Os fatos que temos diante de nós parecem ser assim:
(A) Existem notáveis correlações entre a melancolia e a anestesia [sexual]. Isso foi estabelecido (1) pela verificação de que, em muitos melancólicos, houve uma longa história prévia de anestesia, (2) pela descoberta de que tudo o que provoca anestesia favorece o desenvolvimento da melancolia, (3) pela existência de um tipo de mulheres, psiquicamente muito exigentes, nas quais o desejo intenso facilmente se transforma em melancolia, e que são frígidas.
(B)A melancolia se desenvolve como intensificação da neurastenia, através da masturbação.
(C)A melancolia surge numa combinação típica com a angústia intensa.
(D)A forma típica e extrema da melancolia parece ser a forma hereditária periódica ou cíclica.

II
A fim de obtermos algum proveito desse material, precisamos estabelecer alguns pontos de partida fixos. Estes parecem ser proporcionados pelas seguintes considerações:
(a)O afeto correspondente à melancolia é o luto - ou seja, o desejo de recuperar algo que foi perdido. Assim, na melancolia, deve tratar-se de uma perda - uma perda na vida pulsional.
(b)A neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia. A famosa anorexia nervosa das moças jovens, segundo me parece (depois de cuidadosa observação), é uma melancolia em que a sexualidade não se desenvolveu. A paciente afirma que não se alimenta simplesmente porque não tem nenhum apetite; não há qualquer outro motivo. Perda do apetite - em termos sexuais, perda da libido.
Portanto, não seria muito errado partir da idéia de que a melancolia consiste em luto por perda da libido.
Restaria saber se essa fórmula explica a ocorrência e as características dos pacientes melancólicos. Discutirei isso com base no diagrama esquemático da sexualidade.

III

Com base no diagrama esquemático da sexualidade [Fig. 1], de que me tenho utilizado freqüentemente, passarei agora a examinar as condições sob as quais o grupo sexual psíquico (ps. S) sofre uma perda na quantidade de

1. QUADRO ESQUEMÁTICO DA SEXUALIDADE
sua excitação. Aqui, são possíveis dois casos: (1) quando a produção de s. S. (excitação sexual somática) diminuiu ou cessa, e (2) quando a tensão sexual é desviada por ps. S. [grupo sexual psíquico]. O primeiro caso, em que cessa a produção de s. S. [excitação sexual somática], é provavelmente o que caracteriza a melancolia grave comum propriamente dita, que reaparece periodicamente, ou a melancolia cíclica, na qual se alternam períodos de aumento e cessação da produção. Ademais, podemos supor que a masturbação excessiva, que, segundo nossa teoria, conduz a uma excessiva descarga de E. (o órgão efetor) e, com isso, a um baixo nível de estímulo em E. - a masturbação excessiva passa a afetar a produção de s. S. [excitação sexual somática] e a causar uma redução duradoura de s. S., levando, conseqüentemente, a um enfraquecimento do p. S. [grupo sexual psíquico]. Essa é a melancolia neurastênica. O [segundo] caso, no qual a tensão sexual é desviada do p. S. [grupo sexual psíquico], embora a produção de s. S. [excitação sexual somática] não esteja diminuída, pressupõe que a s. S. [excitação sexual somática] é utilizada em outra parte - na fronteira [entre o somático e o psíquico]. Este, contudo, é o fator determinante da angústia; e, por conseguinte, isso coincide com o caso da melancolia de angústia, uma forma mista que reúne neurose de angústia e melancolia.
Assim sendo, nesta discussão estão explicadas as três formas de melancolia, que realmente devem ser diferenciadas.

IV

Como é que a anestesia desempenha esse papel na melancolia?
De acordo com o diagrama esquemático [Fig. 1], existem os tipos de anestesia que se seguem.
A anestesia, realmente, sempre consiste na omissão de V. (a sensação voluptuosa), que deve ser dirigida para o ps. S. [grupo sexual psíquico] após a ação reflexa que descarrega o órgão efetor. A sensação voluptuosa é medida pela quantidade da descarga.
(a)O E. [órgão efetor] não está completamente provido de carga; daí a descarga no coito ser pequena, e a V. [sensação voluptuosa], muito reduzida: o caso da frigidez.
(b)O trajeto desde a sensação até a ação reflexa está prejudicado, de modo que a ação não é suficientemente forte. Nesse caso, também é reduzida a descarga de V.: é o caso da anestesia masturbatória, da anestesia do coitus interruptus etc.

(c)Tudo o mais está em ordem; só que a V. não é admitida no ps. G. [grupo sexual psíquico] por estar vinculada numa outra direção (com a repulsa-defesa): esta é a anestesia histérica, inteiramente análoga à anorexia nervosa (repulsa).
Em que grau, pois, a anestesia favorece a melancolia?
No caso (a), de frigidez, a anestesia não é a causa da melancolia, mas um sinal de predisposição para a melancolia. Isso se coaduna com o Fato A (1), mencionado no começo deste artigo [em [1]]. Em outros casos, a anestesia é a causa da melancolia, pois o ps. G. [grupo sexual psíquico] é intensificado pela introdução de V. e enfraquecido por sua ausência. (Fundamentado em teorias gerais da vinculação da excitação na memória.) O Fato A (2) é assim levado em conta [em [1]].
Disto se conclui que é possível a pessoa sofrer de anestesia sem ser melancólica, pois a melancolia está relacionada com a falta de s. S. [excitação sexual somática], ao passo que a anestesia se relaciona com a ausência de V. No entanto, a anestesia é um sinal ou um pródromo da melancolia, pois o p. S. [grupo sexual psíquico] fica tão enfraquecido pela ausência de V. como pela ausência de s. S. [excitação sexual somática].

V

Torna-se necessário verificar por que a anestesia é tão predominantemente característica das mulheres. Isso tem origem no papel passivo desempenhado por elas. Um homem com anestesia logo deixa de empreender qualquer relação sexual; a mulher não tem escolha. As mulheres tornam-se frígidas mais facilmente porque:
(1)toda a sua educação se faz no sentido de não despertarem s. S.[excitação sexual somática], e sim de transformarem em estímulos psíquicos todas as excitações que de outro modo teriam esse efeito - isto é, de dirigirem a linha pontilhada [no diagrama esquemático, Fig. 1] do objeto sexual inteiramente para o ps. G. [grupo sexual psíquico]. Isso é necessário porque, se houvesse uma vigorosa s. S. [excitação sexual somática], o ps. G. [grupo sexual psíquico] logo adquiriria tal intensidade, intermitentemente, que, como ocorre no caso dos homens, traria o objeto sexual para uma situação favorável, por meio de uma reação específica [em [1]]. Mas das mulheres exige-se que renunciem ao arco da reação específica; em lugar

Figura 2

 
disso, delas se exigem ações específicas que atraiam o homem para a ação específica. A tensão sexual é mantida em nível reduzido, seu acesso ao ps. G. [grupo sexual psíquico], na medida do possível, é vedado, e a força indispensável do ps. G. é suprida de uma outra maneira. Quando o ps G. entra num estado de desejo intenso, então, em vista do reduzido nível [de tensão] no E. [órgão efetor], esse estado é facilmente transformado em melancolia. O ps G., por si mesmo, comporta pouca resistência. Aqui temos o tipo juvenil e imaturo de libido, e as mulheres exigentes e frígidas, mencionadas acima [Fato A (3), em [1]], são simplesmente uma continuação desse tipo.
(2)As mulheres [tornam-se frígidas mais facilmente do que os homens] porque, muitas vezes, chegam ao ato sexual (casam) sem amor - ou seja, com menos s. S. [excitação sexual somática] e tensão em E. Nesse caso, são frígidas e continuam a sê-lo.
O reduzido nível de tensão em E. parece encerrar a principal predisposição à melancolia. Em pessoas desse tipo, toda neurose assume facilmente um cunho melancólico. Assim, enquanto os indivíduos potentes adquirem facilmente neuroses de angústia, os impotentes tendem à melancolia.

VI
E agora, como se explicam os efeitos da melancolia? A melhor descrição dos mesmos: inibição psíquica, com empobrecimento pulsional e o respectivo sofrimento.
Podemos imaginar que, quando o ps. G. [grupo sexual psíquico] se defronta com uma grande perda da quantidade de sua excitação, pode acontecer uma retração para dentro (por assim dizer) na esfera psíquica, que produz um efeito de sucção sobre as quantidades de excitação contíguas. Os neurônios associados são obrigados a desfazer-se de sua excitação, o que produz sofrimento. [Fig. 2.] Desfazer associações é sempre doloroso. Com isso, instala-se um empobrecimento da excitação (no seu depósito livre) - uma hemorragia interna, por assim dizer - que se manifesta nas outras pulsões e funções. Essa retração para dentro atua de forma inibidora, como uma ferida, num modo análogo ao da dor (cf. a teoria da dor física). (Uma contrapartida disso seria apresentada pela mania, na qual o excedente de excitação se comunica a todos os neurônios associados [Fig. 3].)

Figura 3

 
Aqui, pois, há uma semelhança com a neurastenia. Nesta, acontece um empobrecimento muito semelhante, porque é como se, digamos, a excitação escapasse através de um buraco. Mas, nesse caso, o que escapa pelo buraco é s. S. [excitação sexual somática]; na melancolia, o buraco é na esfera psíquica. Contudo, o empobrecimento neurastênico pode estender-se à esfera psíquica. E, realmente, as manifestações são tão parecidas que alguns casos só podem ser diferençados com dificuldade.

RASCUNHO H: PARANÓIA

Na psiquiatria, as idéias delirantes situam-se ao lado das idéias obsessivas como distúrbios puramente intelectuais, e a paranóia situa-se ao lado da loucura obsessiva como um psicose intelectual. Se as obsessões já foram atribuídas a uma perturbação afetiva e se encontrou prova de que elas devem sua força a um conflito, então a mesma opinião deve ser válida para osdelírios, e também estes devem ser conseqüência de distúrbios afetivos, e sua força deve estar radicada num processo psicológico. Os psiquiatras aceitam o contrário desse fato, ao passo que os leigos tendem a atribuir a loucura delirante a eventos mentais desagregadores. “Um homem que não perde a razão diante de determinadas coisas não tem nenhuma razão para perder.”

Ora, sucede que a paranóia, na sua forma clássica, é um modo patológico de defesa, tal como a histeria, a neurose obsessiva e a confusão alucinatória. As pessoas tornam-se paranóicas diante de coisas que não conseguem tolerar, desde que para isso tenham a predisposição psíquica característica.
Em que consiste essa predisposição? Nenhuma tendência para aquilo que representa a caracterização psíquica da paranóia; e esta, nós a estudaremos mediante um exemplo.
Uma mulher solteira, já não muito nova (cerca de trinta anos), morava numa casa com o irmão e a irmã [mais velha]. Pertencia à classe trabalhadora superior; seu irmão trabalhou até tornar-se um pequeno industrial. Nesse meio tempo, alugaram um quarto a um colega de trabalho, um homem muito viajado, um tanto enigmático, muito talentoso e inteligente. Ele morou na companhia deles durante um ano e mantinha [com essa família] um relacionamento muito amável e comunicativo. A seguir, foi-se embora, mas voltou seis meses mais tarde. Dessa vez, ficou morando na casa por um tempo relativamente breve, e então desapareceu definitivamente. As irmãs, muitas vezes, costumavam lamentar sua ausência e não podiam senão falar bem dele. Não obstante, a irmã mais nova contou à mais velha um episódio em que ele fizera uma tentativa de deixá-la em dificuldade. Ela estava fazendo a arrumação dos quartos, enquanto ele ainda estava na cama. Ele a chamou para junto da cama e quando, inadvertidamente, ela obedeceu, ele colocou o pênis na mão dela. A cena não teve seqüência, e bem pouco tempo depois o estranho foi embora.
No decorrer dos anos seguintes, a irmã que tinha tido essa experiência adoeceu. Passou a se queixar e, por fim, desenvolveu delírios inequívocos de estar sendo observada e perseguida, no seguinte sentido: achava que suas vizinhas tinham pena dela por ter sido abandonada pelo pretenso namorado e por ainda estar esperando que o homem voltasse; estavam sempre a lhe dizer insinuações dessa natureza, diziam-lhe todo tipo de coisas a respeito do homem, e assim por diante. Tudo isso, dizia ela, era naturalmente inverídico. A partir daí, a paciente cai nesse estado somente por algumas semanas de cada vez. Sua compreensão interna (insight) retorna temporariamente e ela explica que tudo isso foi conseqüência de se haver excitado; mesmo assim, nos intervalos, padece de uma neurose que pode ser facilmente interpretada como neurose sexual. E logo cai em novo surto de paranóia.
A irmã mais velha ficava surpresa ao verificar que, tão logo a conversa se encaminhava para a cena da sedução, a paciente costumava evitá-la. Breuer ouvir falar no caso, a paciente foi-me encaminhada, e procurei curar sua tendência à paranóia tentando fazê-la reviver a lembrança da cena. Não obtive resultado. Conversei com ela duas vezes e insisti para que me contasse tudo o que se relacionava com o inquilino, em hipnose de “concentração”. Em resposta a minhas perguntas para saber se não teria mesmo acontecido algo de embaraçoso, deparei com a mais resoluta negativa - nunca mais vi a paciente. Ela ainda me enviou um recado, para dizer que aquilo a havia aborrecido demais. Defesa! Isso era óbvio. Ela queria não se lembrar do incidente e, por conseguinte, recalcava-o intencionalmente.
Não podia haver qualquer dúvida a respeito da defesa; mas essa defesa poderia igualmente ter levado a um sintoma histérico ou a uma idéia obsessiva. Qual seria a peculiaridade da defesa paranóica?
Ela estava-se poupando de algo; algo fora recalcado. Podemos entrever o que era. Provavelmente, na realidade, ela ficava excitada com o que viu e com a lembrança do fato. Logo, estava-se poupando da censura de ser uma “mulher depravada”. Daí em diante, passou a ouvir essa mesma censura, agora proveniente de fora. Assim, o tema permanecia inalterado; o que mudava era a localização da coisa. Antes, tratara-se de uma autocensura interna; agora, era uma recriminação vinda de fora. O julgamento a respeito dela fora transposto para fora: as pessoas estavam dizendo aquilo que, de outro modo, ela diria a si mesma. Havia uma vantagem nisso. Ela teria sido obrigada a aceitar o julgamento proveniente de dentro; já o que vinha do exterior, podia rejeitar. Dessa forma, o julgamento, a censura, era mantida afastada de seu ego.

Portanto, o propósito da paranóia é rechaçar uma idéia que é incompatível com o ego, projetando seu conteúdo no mundo externo.
Neste ponto surgem duas questões: [1] Como se efetua uma transposição dessa espécie? [2] Isso se aplica também a outros casos de paranóia?
(1) A transposição se efetua de maneira muito simples. Trata-se do abuso de um mecanismo psíquico muito comumente utilizado na vida normal: a transposição ou projeção. Sempre que ocorre uma modificação interna, temos a opção de supor a existência de uma causa interna ou de uma causa externa. Quando algo nos impede a derivação interna, naturalmente recorremos à externa. E, depois, estamos acostumados a verificar que nossos estados internos se revelam (por uma expressão da emoção) às outras pessoas. Isso responde pelos delírios normais de estar sendo observado e pela projeção normal. Pois são normais na medida em que, nesse processo, permanecemos conscientes de nossa própria mudança interna. Se a esquecermos e se nos ativermos tão-somente a uma das premissas do silogismo, àquela que conduz para o exterior, teremos aí a paranóia, com sua supervalorização daquilo que as pessoas sabem a nosso respeito e daquilo que as pessoas nos fizeram. O que é que as pessoas sabem a nosso respeito, de que nada sabemos e que não podemos admitir? Trata-se, pois, de um abuso do mecanismo da projeção para fins de defesa.
Realmente, algo muito parecido se passa com as idéias obsessivas. O mecanismo de substituição também é um mecanismo normal. Quando uma solteirona idosa se dedica a cuidar de um cão, ou um solteirão idoso coleciona caixas de rapé, aquela está encontrando um sucedâneo para sua necessidade de companhia no casamento, e este, para sua necessidade de - uma infinidade de conquistas. Todo colecionador é substituto de um Don Juan Tenorio, como igualmente o são o montanhista, o desportista, todas essas pessoas. Essas coisas são equivalentes eróticos. As mulheres também as conhecem. O tratamento ginecológico enquadra-se nessa categoria. Há duas espécies de pacientes femininas: umas são tão leais a seus médicos como a seus maridos, e outras mudam de médico com a mesma freqüência com que mudam de amante. Esse mecanismo de substituição, normalmente atuante, é usado em excesso nas idéias obsessivas - e também aí a finalidade é a defesa.

(2) Pois bem, será que esse ponto de vista se aplica também aos outros casos de paranóia? A todos eles, é o que penso. No entanto, passo a mostrar alguns exemplos.
O paranóico litigante não consegue tolerar a idéia de que agiu errado ou de que deve repartir sua propriedade. Portanto, pensa que o julgamento não foi legalmente válido, que ele não está errado etc. Esse caso é por demais claro, mas também não de todo evidente; talvez se possa mostrá-lo em termos mais simples.
A “grande nation” não consegue enfrentar a idéia de ter sido derrotada na guerra. Logo, não foi derrotada; a vitória não conta. Constituiu um exemplo de paranóia de massa e cria o delírio de traição.
O alcoólatra jamais admitirá perante si mesmo que se tornou impotente por causa da bebida. Por mais que consiga tolerar o álcool, não consegue suportar esse conhecimento. Assim, é sua mulher a culpada - delírios de ciúme, e assim por diante.
O hipocondríaco vai se debater, durante muito tempo, até encontrar a chave de suas sensações de estar gravemente enfermo. Não admitirá perante si mesmo que seus sintomas têm origem na sua vida sexual; mas causa-lhe a maior satisfação pensar que seu mal, como diz Moebius, não é endógeno, mas exógeno. Logo, ele está sendo envenenado.
O funcionário que foi preterido na promoção convence-se de que deve haver conspiração contra ele e de que devem estar a espioná-lo em sua sala. Não fosse isso, teria de admitir seu fracasso.
Nem sempre, necessariamente, são delírios de perseguição que se desenvolvem desse modo. Talvez a megalomania até comporte mais capacidade de manter afastada do ego a idéia penosa. Tome-se, por exemplo, uma cozinheira que perdeu seus atrativos e que precisa acostumar-se com a idéia de que está definitivamente excluída da felicidade no amor. É este o momento certo de aparecer o cavalheiro da casa em frente, que, evidentemente, deseja casar-se com ela, que lhe está dando a entender isso de um modo extraordinariamente tímido, mas, mesmo assim, inconfundível.
Em todos os casos a idéia delirante é sustentada com a mesma energia com que uma outra idéia, intoleravelmente penosa, é rechaçada do ego. Assim, essas pessoas amam seus delírios como amam a si mesmas. É esse o segredo.
Pois bem, como é que se compara essa forma de defesa com as formas de defesa que já conhecemos: (1) histeria, (2) idéia obsessiva, (3) confusão alucinatória, (4) paranóia? Temos de levar em conta: afeto, conteúdo da idéia e alucinações. [Cf. resumo na Fig. 4.]
(1) Histeria. A idéia incompatível não tem acesso à associação com o ego. O conteúdo é retido num compartimento separado, está ausente da consciência; seu afeto [é eliminado] por conversão na esfera somática - A psiconeurose é a única [conseqüência].
(2) Idéia obsessiva. Também aqui, a idéia incompatível não tem acesso à associação. O afeto é conservado; o conteúdo é representado por um substituto.
(3) Confusão alucinatória. A totalidade da idéia incompatível - afeto e conteúdo - é mantida afastada do ego; e isto só se torna possível à custa de um desligamento parcial do mundo externo. Resta o recurso às alucinações, que comprazem ao ego e apóiam a defesa.
(4) Paranóia. O conteúdo e o afeto da idéia incompatível são mantidos, em direto contraste com (3); mas são projetados no mundo externo. As alucinações, que surgem em algumas formas da doença, são hostis ao ego, mas apóiam a defesa.
Nas psicoses histéricas, pelo contrário, são justamente as idéias rechaçadas que assumem o domínio. O tipo dessas psicoses é o ataque e o état secondaire. As alucinações são hostis ao ego.
idéia delirante é ou uma cópia da idéia rechaçada, ou o oposto desta (megalomania). A paranóia e a confusão alucinatória são as duas psicoses de desafio ou oposição. A “auto-referência” da paranóia é análoga às alucinações dos estados confusionais, pois estas procuram afirmar exatamente o contrário do fato que foi rechaçado. Assim, a referência a si mesmo sempre tenta provar a correção da projeção.

RESUMO
Figura 4

CARTA 22

…Não tenho nada para lhe contar. Quando muito, uma pequena analogia com a psicose onírica de D, que estudamos juntos.  Rudi Kaufmann, sobrinho muito inteligente de Breuer, e também estudante de medicina, é uma pessoa que custa a levantar da cama. Manda que a empregada o chame, porém sempre reluta muito em obedecer a ela. Certa manhã, ela o despertou uma segunda vez e, como ele não respondesse, chamou-o pelo nome: “Herr Rudi!” Com isso, o dorminhoco teve uma alucinação com um quadro de avisos junto a um leito de hospital (cf. o Rudolfinerhaus), no qual havia o nome “Rudolf Kaufmann”, e disse a si mesmo: “Bom, de qualquer modo o R. K. está no hospital; portanto, não preciso ir até lá”, e continuou a dormir. [1]

RASCUNHO I: ENXAQUECA: ASPECTOS ESTABELECIDOS

(1) Uma questão de soma: Há um intervalo de horas ou dias entre a instigação dos sintomas. Tem-se uma espécie de sensação de que um obstáculo está sendo superado e de que um processo segue então adiante.
(2) Uma questão de soma. Mesmo sem uma instigação, tem-se a impressão de que deve haver um estímulo que se acumula, o qual está presente em quantidade mínima, no início do intervalo, e em quantidade máxima, no fim do mesmo.
(3) Uma questão de soma, na qual a suscetibilidade aos fatores etiológicos está na altura do nível do estímulo já presente.
(4) Uma questão com etiologia complexa. Talvez nos moldes de uma etiologia em cadeia, na qual uma causa próxima pode ser induzida por uma série de fatores, direta e indiretamente, ou nos moldes de uma etiologia em soma, na qual, juntamente com uma causa específica, as causas acumuladas podem agir como substitutos quantitativos. [1]
(5) Uma questão semelhante ao modelo da enxaqueca menstrual e pertencente ao grupo sexual. Provas:
(a) Raríssima em homens sadios.
(b) Restrita ao período sexual da vida: infância e velhice praticamente excluídas.
(c) Se é produzida por soma, também o estímulo sexual é algo que se produz por soma.
(d) A analogia da periodicidade.
(e) Freqüência em pessoas com perturbação da descarga sexual (neurastenia, coitus interruptus).
(6) Certeza de que a enxaqueca pode ser produzida por estímulos químicos: emanações tóxicas humanas, siroco, fadiga, odores. Ora, o estímulo sexual também é um estímulo químico.
(7) Cessação da enxaqueca durante a gravidez, quando a produção talvez esteja voltada para outra parte.
Isto parece mostrar que a enxaqueca é um efeito tóxico produzido pela substância estimulante sexual quando esta não consegue encontrar descarga suficiente. E talvez se deve acrescentar a isto o fato de que está presente uma determinada via (cuja localização precisa ser determinada) que se acha num estado de suscetibilidade especial. A questão implícita nisto é a questão a respeito da localização da enxaqueca.
(8) Com relação a essa via, temos indicações de que as doenças orgânicas do crânio, tumores e supurações (sem ligações tóxicas intermediárias?) produzem enxaqueca, ou algo parecido, além do que a enxaqueca é unilateral, correlaciona-se com o nariz e se liga a fenômenos isolados de paralisias.O primeiro desses sinais não é muito claro. A unilateralidade, a localização acima do olho e a complicação pelas paralisias localizadas são mais importantes.
(9) A dor da enxaqueca só pode sugerir o envolvimento das meninges, pois as afecções da massa cerebral certamente são indolores.
(10) Se, nesse sentido, a enxaqueca se assemelha à nevralgia, isso se coaduna com a soma, a sensibilidade e suas oscilações, a produção de nevralgia mediante estímulos tóxicos. A nevralgia tóxica será, assim, o seu protótipo fisiológico. O couro cabeludo é a sede de sua dor e o trigêmeo é sua via. Como, entretanto, a alteração nevrálgica só pode ser de natureza central, devemos supor que, logicamente, o centro da enxaqueca é um núcleo do trigêmeo cujas fibras inervam a dura-máter.
De vez que, na enxaqueca, a dor tem uma localização parecida com a da nevralgia supra-orbital, esse núcleo dural deve situar-se nas proximidades do núcleo da primeira ramificação. Como os diferentes ramos e núcleos do trigêmeo se influenciam uns aos outros, todas as outras afecções do trigêmeo podem contribuir para a etiologia [da enxaqueca] como fatores convergentes (não como fatores banais).
A sintomatologia e a posição biológica da enxaqueca.
A dor de uma nevralgia geralmente encontra sua descarga através de tensão tônica (ou mesmo de espasmo clônico). Portanto, não é impossível que a enxaqueca possa incluir uma inervação espástica dos músculos dos vasos sangüíneos na esfera reflexa da região dural. Podemos atribuir a essa intervenção a perturbação geral (e, a rigor, a perturbação local) da função, que não difere, sintomatologicamente, de um distúrbio parecido, causado por constrição vascular. (Cf. a semelhança entre a enxaqueca e os ataques de trombose.) Parte da inibição é devida à própria dor. Presumivelmente, é a área vascular do plexo coróide a primeira a ser atingida pelo espasmo da descarga. A relação com o olho e com o nariz é explicada pela sua inervação comum pelo primeiro ramo [do trigêmeo]. [1]

RASCUNHO J
FRAU P. J. (27 ANOS)



[I]

Estava casada havia três meses. Seu marido, caixeiro-viajante, precisara deixá-la por algumas semanas, depois do casamento, e já estava ausente há semanas. Ela sentia muita falta dele e ansiava por sua volta. Tinha sido cantora ou, pelo menos, se formara como cantora. Para passar o tempo, estava [um dia] sentada ao piano, cantando, quando subitamente sentiu-se mal - um mal-estar no abdome e no estômago, com a cabeça rodando, sensações de opressão e angústia e parestesia cardíaca; pensou que estava enlouquecendo. Instantes após, lembrou-se de que, naquela manhã, havia comido ovos e cogumelos e concluiu ter-se envenenado. No entanto, esse estado logo se dissipou. No dia seguinte, a empregada contou-lhe que uma mulher que morara na mesma casa tinha enlouquecido. Desse momento em diante, nunca mais ficou livre da obsessão, acompanhada de angústia, de que também ela estaria por enlouquecer.
Essa é a essência do caso. De início, supus que sua condição tivesse sido um ataque de angústia - uma liberação de sensação sexual que se transformou em angústia. Um ataque desse tipo, segundo pensei, poderia ocorrer sem qualquer processo psíquico concomitante. Ainda assim, eu não queria rejeitar a possibilidade mais favorável de que se pudesse descobrir tal processo; pelo contrário, eu o tomaria como o ponto de partida de meu trabalho. O que eu esperava encontrar era o seguinte. Ela alimentava um desejo intenso pelo marido - isto é, o desejo de ter relações sexuais com ele; com isso, veio-lhe uma idéia que excitou o afeto sexual e, depois, a defesa contra a idéia; a seguir, ela foi assaltada pelo medo e fez uma falsa conexão ou substituição.

Comecei perguntando-lhe acerca das circunstâncias acessórias do ocorrido; algo devia tê-la feito recordar-se do marido. Ela estivera cantando a ária de Carmen “Près des remparts de Séville”. Pedi-lhe que a repetisse para mim; ela nem conseguia lembrar-se exatamente das palavras. - Em que ponto a Srª acha que lhe veio o ataque? - Ela não sabia. - Quando apliquei pressão [em sua fronte], ela disse que tinha sido depois de haver terminado a ária. Isso parecia bem possível: tinha sido uma seqüência de pensamentos, que emergira a partir da letra da ária. - Afirmei então que, antes do ataque, tinha havido nela pensamentos dos quais não conseguia lembrar-se. De fato, não se lembrava de nada, mas a pressão [em sua fronte] fez surgir as palavras “marido” e “desejar”. Diante de minha insistência, esta última palavra foi mais especificada como sendo desejo de carícias sexuais. - “Penso que é isso mesmo. Afinal, seu ataque não passou de um estado de extravasamento amoroso. Pergunto-lhe se conhece a canção do pajem:
Voi che sapete che cosa è amor,Donne vedete s’io l’ho nel cor…
Por certo houve algo além disso: uma sensação na parte inferior do corpo, um desejo convulsivo de urinar.” - Ela então confirmou isso. A insinceridade das mulheres começa quando elas omitem os sintomas sexuais característicos ao descreverem o que sentem. De modo que tinha sido realmente um orgasmo.
-“Bem, a senhora percebe, de qualquer modo, que um estado de desejo como esse, numa mulher jovem que se viu abandonada pelo marido, não é nada de que se deva sentir vergonha.” - Pelo contrário, pensou ela, algo a ser aprovado. - “Muito bem; mas, nesse caso, não consigo ver o motivo do medo. Certamente a senhora não receou ‘marido’ nem ‘desejo’; de modo que devem estar faltando outros pensamentos que são mais próprios para suscitar medo.” - Mas ela apenas acrescentou que sempre temera as dores que lhe causava a relação sexual, mas que seu desejo tinha sido muito mais forte do que o medo das dores. - Nesse ponto, interrompemos.
II
Havia fortes razões para suspeitar de que, na Cena I (estando a paciente ao piano), juntamente com os pensamentos desejantes em relação ao marido (dos quais antes se lembrava), ela havia entrado numa outra seqüência profunda de pensamentos, da qual não tinha recordação, e foram estes os pensamentos que levaram à Cena II. Mas eu ainda não conhecia seu ponto de partida. Hoje, a paciente veio chorando e desesperada, evidentemente sem qualquer esperança de o tratamento ter êxito. De modo que suas resistências já estavam aguçadas, e o progresso se tornou bem mais difícil. O que eu desejava saber, a essa altura, era que pensamentos capazes de assustá-la ainda se encontravam presentes. Ela mencionou todo tipo de coisas que não poderiam ser pertinentes ao caso: o fato de que, por longo tempo, não tinha sido deflorada (o que lhe foi confirmado pelo Prof. Chrobak), de que atribuía seu estado nervoso a isso e, por esse motivo, desejava que o defloramento pudesse ser feito. - Naturalmente, esse pensamento provinha de uma época posterior: até a Cena I ela tivera boa saúde. - Por fim, obtive a informação de que ela já havia experimentado um ataque semelhante, mas muito mais fraco e mais transitório, com as mesmas sensações. (A partir disso, verifiquei ter sido a partir do quadro mnêmico do orgasmo que entrou em jogo a via de acesso que abriu caminho para as camadas mais profundas.) Investigamos a outra cena. Naquela época - há quatro anos passados - ela tivera um compromisso em Ratisbona. Pela manhã, havia cantado num recital e tinha-se saído bem. De tarde, em casa, teve uma “visão” - como se houvesse algo, uma “briga” entre ela e o tenor da companhia e um outro homem, e depois disso teve o ataque, com o medo de estar enlouquecendo.
Aqui estava, pois a Cena II, a que se fizera uma alusão, por associação, na Cena I. No entanto, era evidente que também aqui havia lacunas na memória. Outras idéias deveriam ter estado presentes para explicar o desencadeamento da sensação sexual e do pavor. Indaguei sobre esses elos intermediários e, em lugar destes, foram-me contados os motivos da paciente. Ela se havia desgostado de tudo o que se referia à vida de artista. - “Por quê?” - A rispidez do diretor e o relacionamento dos atores entre si. - Perguntei por detalhes a esse respeito. - Tinha havido uma velha atriz cômica, com quem os atores jovens costumavam gracejar, perguntando-lhe se podiam passar a noite com ela. - “E o que mais, a respeito do tenor?” - Também este a tinha importunado; no recital, tinha colocado a mão no seio dela. - “Na sua roupa, ou diretamente na pele?” - Primeiro, ela disse que fora na pele, mas depois voltou atrás: disse que fora tocada na roupa. - “Bem, e o que mais?” - Todas as características dos relacionamentos daquelas pessoas, todos os abraços e beijos entre os atores tinham-na deixado amedrontada. - “Sim?” - Mais uma vez, fala na rispidez do diretor, embora só tivesse ficado lá alguns dias. - “A investida do tenor aconteceu no mesmo dia do seu ataque?” - Não; ela não sabia se fora antes ou depois. - Minhas perguntas feitas com auxílio da pressão mostraram que a tentativa de sedução ocorrera no quarto dia de sua estada, e o ataque, no sexto.
Interrompido pelo sumiço da paciente.
NOTA
Durante toda a parte final do ano de 1895, Freud esteve muito ocupado com o problema teórico fundamental da relação entre neurologia e psicologia. Suas reflexões finalmente levaram ao trabalho inconcluso a que demos o título de Projeto para uma Psicologia Científica. Este foi escrito em setembro e outubro de 1895 e deveria ser publicado, cronologicamente, nesse ponto dos documentos dirigidos a Fliess. No entanto, ele sobressai tanto dentre esses outros documentos e constitui uma entidade tão extraordinária e autônoma que pareceu aconselhável editá-lo de forma destacada, no final deste volume. Uma das cartas, a de nº 39, escrita em 1º de janeiro de 1896, está tão estreitamente relacionada com o Projeto (sem o qual, aliás, seria ininteligível) que também foi tirada do seu lugar original na correspondência e editada como um apêndice ao Projeto. Que Freud, durante todo esse tempo, tivesse estado interessado também em temas clínicos, fica visivelmente demonstrado pelo fato de que, no mesmo dia em que remeteu essa carta (1º de janeiro de 1896), também remeteu a Fliess o Rascunho K, que se segue aqui e que é, sob muitos aspectos, um esboço preliminar completo de seu segundo artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1896b), concluído logo após.

RASCUNHO K: AS NEUROSES DE DEFESA

(Um Conto de Fadas Natalino)
Há quatro tipos e muitas formas dessas neuroses. Posso apenas traçar uma comparação entre histeria, neurose obsessiva e uma forma de paranóia. Elas têm várias coisas em comum. São aberrações patológicas de estados afetivos psíquicos normais: de conflito (histeria), de autocensura (neurose obsessiva), de mortificação (paranóia), de luto (amência alucinatória aguda). Diferem desses afetos pelo fato de não conduzirem à resolução de coisa alguma, e sim a um permanente prejuízo para o ego. Ocorrem sujeitas às mesmas causas precipitantes dos seus protótipos afetivos, contanto que a causa preencha duas precondições a mais - que seja de natureza sexual e que ocorra durante o período anterior à maturidade sexual (as precondições de sexualidade e infantilismo). Quanto às precondições que se aplicam à pessoa em questão, não tenho novos conhecimentos. Genericamente, diria que a hereditariedade é uma precondição a mais, no sentido de que ela facilita e aumenta o afeto patológico - isto é, a precondição que, predominantemente, torna possíveis as gradações entre o normal e o caso extremo. Não creio que a hereditariedade determine a escolha de uma neurose defensiva especial.
Existe uma tendência normal à defesa - uma aversão contra dirigir a energia psíquica de tal maneira que daí resulte algum desprazer. Essa tendência, que está ligada às condições mais fundamentais do funcionamento psíquico (a lei da constância), não pode ser empregada contra as percepções, pois estas são capazes de se impor à atenção (como é evidenciado pela consciência dessas percepções); tal tendência atua somente contra as lembranças e os pensamentos. É inócua quando se trata de idéias às quais, em alguma época, esteve ligado algum desprazer, mas que, na época atual, não tem possibilidade de originar desprazer (a não ser o desprazer recordado); também em tais casos, essa tendência pode ser implantada pelo interesse psíquico.
A tendência à defesa, porém, torna-se prejudicial quando é dirigida contra idéias também capazes de, sob a forma de lembranças, liberar um novo desprazer - como é o caso das idéias sexuais. É nisso, realmente, que se concretiza a possibilidade de uma lembrança ter, posteriormente, uma capacidade de liberação maior do que a produzida pela experiência correspondente. Somente uma coisa é necessária para isto: que a puberdade se interponha entre a experiência e sua repetição na lembrança - evento que tanto aumenta o efeito da revivescência. O funcionamento psíquico parece despreparado para essa exceção; por esse motivo, para que a pessoa esteja livre da neurose, a precondição necessária é que antes da puberdade não tenha ocorrido nenhuma estimulação sexual de maior significação, embora seja verdade que o efeito de tal experiência deve ser incrementado pela predisposição hereditária, antes de poder atingir um nível capaz de causar doença.
(Aqui surge um problema correlato: como ocorre que, sob condições análogas, em vez da neurose emerjam a perversão ou, simplesmente, a imoralidade?)
Por certo mergulharemos profundamente em enigmas psicológicos, se investigarmos a origem do desprazer que parece ser liberado pela estimulação sexual prematura, e sem o qual, enfim, não é possível explicar um recacalmento. A resposta mais plausível apontará o fato de que a vergonha e a moralidade são as forças recalcadoras, e que a vizinhança em que estão naturalmente situados os órgãos sexuais deve, inevitavelmente, despertar repugnância junto com as experiências sexuais. Onde não existe vergonha (como numa pessoa do sexo masculino), ou onde não entra a moralidade (como nas classes inferiores da sociedade), ou onde a repugnância é embrutecida pelas condições de vida (com nas zonas rurais), também não resultam nem neurose nem recalcamento em decorrência da estimulação sexual na infância. Contudo, temo que essa explicação não resista a um teste mais aprofundado. Não penso que a produção de desprazer durante as experiências sexuais seja conseqüência da mistura ao acaso de determinados fatores desprazerosos. A experiência diária nos mostra que, quando a libido alcança um nível suficiente, a repulsa não é sentida e a moralidade é suplantada; penso que o aparecimento da vergonha se relaciona, por meio de ligações mais profundas, com a experiência sexual. Em minha opinião, a produção de desprazer na vida sexual deve ter uma fonte independente: uma vez que esteja presente essa fonte, ela pode despertar sensações de repulsa, reforçar a moralidade, e assim por adiante. Persisto no modelo da neurose de angústia em adultos, na qual uma quantidade proveniente da vida sexual causa, de modo parecido, um distúrbio na esfera psíquica, embora habitualmente pudesse ter um outro uso no processo sexual. De vez que não existe nenhuma teoria correta do processo sexual, permanece sem resposta a questão da origem do desprazer que atua no recalcamento. [Ver em [1].]
O rumo tomado pela doença nas neuroses de recalcamento é, em geral, sempre o mesmo: (1) a experiência sexual (ou a série de experiências), que é traumática e prematura e deve ser recalcada. (2) Seu recalcamento em alguma ocasião posterior, que desperta a lembrança correspondente; ao mesmo tempo, a formação de um sintoma primário. (3) Um estágio de defesa bem-sucedida, que é equivalente à saúde, exceto quanto à existência do sintoma primário. (4) O estágio em que as idéias recalcadas retornam e em que, durante a luta entre elas e o ego, formam-se novos sintomas, que são os da doença propriamente dita: isto é, uma fase de ajustamento, de ser subjugado, ou de recuperação com uma malformação.
As principais diferenças entre as diversas neuroses são demonstradas na forma como retornam as idéias recalcadas; outras diferenças são evidenciadas na maneira como os sintomas se formam e no rumo tomado pela doença. Mas o caráter específico de uma determinada neurose está no modo como se realiza o recalque.
O curso dos acontecimentos na neurose obsessiva é o mais claro para mim, pois foi o que cheguei a conhecer melhor.

NEUROSE OBSESSIVA
Aqui, a experiência primária foi acompanhada de prazer. Quer tenha sido uma experiência ativa (nos meninos), quer tenha sido uma experiência passiva (nas meninas), ela se realizou sem dor ou qualquer mescla de nojo; e isso, no casos das meninas, implica, em geral, uma idade relativamente maior (cerca de 8 anos). Quando essa experiência é relembrada posteriormente, ela dá origem ao surgimento de desprazer; e, em especial, emerge primeiro uma autocensura, que é consciente. Na verdade, aparentemente, é como se todo o complexo psíquico - lembrança e autocensura - fosse de início consciente. Depois, sem que nada de novo sobrevenha, ambas são recalcadas, e na consciência se forma, em lugar delas, um sintoma antitético, uma nuança de escrupulosidade.
O recalcamento pode processar-se devido ao fato de que a lembrança do prazer, como tal, produz desprazer, quando recordada anos depois; isso deveria ser explicável por uma teoria da sexualidade. Mas as coisas também podem acontecer de modo diferente. Em todos os meus casos de neurose obsessiva, em idade muito precoce, anos antes da experiência de prazer, tinha havido uma experiência puramente passiva; e isso dificilmente se daria por acaso. Assim, podemos supor que é a convergência, posteriormente, dessa experiência passiva com a experiência de prazer que adiciona o desprazer à lembrança prazerosa e possibilita o recalcamento. De modo que uma precondição clínica necessária da neurose obsessiva consistiria em que a experiência passiva deveria ocorrer tão precocemente que não fosse capaz de impedir a ocorrência espontânea da experiência de prazer. A fórmula, portanto, seria esta:
Desprazer - Prazer - Recalcamento.
O fator determinante seriam as relações cronológicas das duas experiências entre si e com a época da maturidade sexual.
No estágio do retorno do recalcado ocorre que a autocensura retorna sem modificação, mas raramente de modo a atrair a atenção para si; durante certo tempo, portanto, emerge simplesmente como um sentimento de culpa sem qualquer conteúdo. Em geral, vem a se ligar a um conteúdo que é distorcido de duas maneiras - no tempo e no conteúdo: distorcido quanto ao tempo na medida em que se refere a uma ação contemporânea ou futura, e distorcido quanto ao conteúdo na medida em que significa não o evento real, mas um sucedâneo escolhido a partir da categoria daquilo que é análogo - uma substituição. Por conseguinte, uma idéia obsessiva é produto de um compromisso, correto quanto ao afeto e à categoria, mas falso devido ao deslocamento cronológico e à substituição por analogia.
O afeto da autocensura pode ser transformado, por diferentes processos psíquicos, em outros afetos, os quais, depois, entram na consciência mais claramente do que o afeto como tal: por exemplo, pode ser transformado em angústia (medo das conseqüências da ação a que se refere a autocensura), hipocondria (medo dos efeitos corporais), delírios de perseguição (medo dos seus efeitos sociais), vergonha (medo de que outras pessoas saibam), e assim por diante.
O ego consciente considera a obsessão como algo que lhe é estranho: não acredita nela, ao que parece, valendo-se da idéia antitética da escrupulosidade, formada muito tempo antes. Mas, nesse estágio, muitas vezes pode acontecer uma subjugação do ego pela obsessão - por exemplo, quando o ego é atingido por uma melancolia transitória. Exceto quanto a isso, a fase de doença é marcada pela luta defensiva do ego contra a obsessão; e isso, por si só, pode produzir novos sintomas - os da defesa secundária. A idéia obsessiva, tal como qualquer outra idéia, é atacada pela lógica, embora sua força compulsiva seja inabalável. Os sintomas secundários são uma intensificação da escrupulosidade e uma compulsão a perscrutar minuciosamente as coisas e acumulá-las. Outros sintomas secundários surgem quando a compulsão é transferida para impulsos motores contra a obsessão - por exemplo, compulsão a ensimesmar-se, compulsão para a bebida (dipsomania), rituais protetores, folie de doute.
Com isto, chegamos à formação de três espécies de sintomas:
(a) o sintoma primário da defesa - escrupulosidade,
(b) os sintomas de compromisso da doença - idéias obsessivas ou afetos obsessivos,
(c) os sintomas secundários da defesa - ensimesmamento obsessivo, acumulação obsessiva de objetos, dipsomania, rituais obsessivos.
Os casos em que o conteúdo da memória não se tornou admissível à consciência através da substituição, mas em que o afeto da autocensura se tornou admissível mediante transformação, dão a impressão de ter ocorrido um deslocamento numa cadeia de inferências: acuso-me por causa de um acontecimento - receio que outras pessoas saibam dele - portanto, sinto vergonha diante de outras pessoas. Tão logo é recalcado o primeiro elo da seqüência, a obsessão passa para o segundo ou terceiro elo e leva a duas formas de delírios de observação que, no entanto, fazem realmente parte da neurose obsessiva. A luta defensiva termina em mania de generalizada dúvida ou no desenvolvimento de uma vida de excêntrico, com um sem-número de sintomas defensivos secundários - isto é, se é que chega mesmo a haver um término.
Ainda permanece em aberto a questão de saber se as idéias recalcadas retornam espontaneamente, sem a ajuda de qualquer força psíquica contemporânea, ou se necessitam desse tipo de ajuda a cada novo movimento de retorno. Minhas experiências indicam esta última alternativa. Parece que os estados de libido insatisfeita contemporânea são o elemento que empresta aforça do seu desprazer para reavivar a autocensura recalcada. Uma vez que tenha ocorrido esse reavivamento e que os sintomas tenham surgido mediante o impacto do recalcado sobre o ego, aí, sem dúvida, o material ideativo recalcado continua a atuar espontaneamente; contudo, dentro das oscilações de potencial quantitativo, sempre permanece dependente da quantidade de tensão libidinal presente no momento. A tensão sexual que, por ter sido satisfeita, não tem oportunidade de se transformar em desprazer, permanece inócua. Os neuróticos obsessivos são pessoas sujeitas ao perigo de que toda a tensão sexual cotidianamente gerada neles acabe por se transformar em autocensura, ou melhor, nos sintomas provenientes da autocensura, embora, nessa ocasião, não reconheçam novamente a autocensura primária.
A neurose obsessiva pode ser curada se desfizermos todas as substituições e transformações afetivas ocorridas, de tal modo que a autocensura primária e a experiência a ela pertinente possam ser desnudadas e colocadas diante do ego consciente para serem julgadas de novo. Ao fazermos isso, temos de trabalhar um número incrível de idéias intermediárias ou de compromisso, que se tornam temporariamente idéias obsessivas. Adquirimos uma convicção muito clara de que, para o ego, é impossível dirigir para o material recalcado a parte da energia psíquica a que o pensamento consciente está vinculado. As idéias recalcadas - ao que devemos crer - estão presentes nas seqüências mais racionais de idéias e nelas penetram sem inibição; e também a lembrança delas é despertada pelas mais insignificantes alusões. A suspeita de que a “moralidade” é apresentada como força recalcadora somente na qualidade de pretexto é confirmada pela experiência segundo a qual a resistência, durante o trabalho terapêutico, se vale de todos os motivos de defesa possíveis.

PARANÓIA
Os determinantes clínicos e as relações cronológicas do prazer e do desprazer na experiência primária ainda me são desconhecidos. O que pude distinguir foram a existência do recalcamento, o sintoma primário e o estágio de doença tal como determinado pelo retorno das idéias recalcadas.
A experiência primária parece ser de natureza semelhante à da neurose obsessiva. O recalque ocorre depois que a respectiva lembrança causou desprazer - não se sabe como. Contudo, nenhuma autocensura se forma, nem é posteriormente recalcada; e o desprazer gerado é atribuído a pessoas que, de algum modo, se relacionam com o paciente, segundo a fórmula psíquica da projeção. O sintoma primário formado é a desconfiança (suscetibilidade a outras pessoas). Nesta, o que se passa é que a pessoa se recusa a crer na autocensura.
Podemos suspeitar da existência de diferentes formas, conforme o caso: quando apenas o afeto é reprimido por projeção, ou quando, juntamente com o afeto, também o conteúdo da experiência é recalcado. Logo, mais uma vez, o que retorna pode ser simplesmente o afeto aflitivo, ou também a lembrança. No segundo caso, que é o que conheço melhor, o conteúdo da experiência retorna sob a forma de um pensamento que ocorre ao paciente como alucinação visual ou sensorial. O afeto reprimido parece retornar invariavelmente nas alucinações auditivas.
As partes das lembranças que retornam sofrem uma distorção ao serem substituídas por imagens análogas, extraídas do momento presente - isto é, são simplesmente distorcidas por uma substituição cronológica, e não pela formação de um substituto. As vozes, igualmente, lembram a autocensura, como sintoma de compromisso, e o fazem, em primeiro lugar, distorcidas em seu enunciado a ponto de se tornarem indefinidas e de se transformarem em ameaças; e, em segundo lugar, relacionadas não com a experiência primária, mas justamente com a desconfiança - isto é, com o sintoma primário.
Como a crença foi separada da autocensura primária, ela assume o comando irrestrito dos sintomas de compromisso. O ego não os considera como estranhos a si mesmo, mas é impelido por eles a fazer tentativas de explicá-los, tentativas que podem ser descritas como delírios assimilatórios.
Nesse ponto, com o retorno do recalcado sob forma distorcida, a defesa fracassa de vez; e os delírios assimilatórios não podem ser interpretados como sintomas de defesa secundária, mas como o início de uma modificação do ego, expressão do fato de ter sido ele subjugado. O processo atinge seu ponto conclusivo ou na melancolia (sentimento de aniquilação do ego), que, de um modo secundário, liga às distorções a crença que foi desvinculada da autocensura primária; ou - o que é mais freqüente e mais grave - nos delírios protetores (megalomania), até o ego ser completamente remodelado.
O elemento determinante da paranóia é o mecanismo da projeção, que envolve a recusa da crença na autocensura. Daí decorrem os aspectos característicos comuns da neurose: a importância das vozes como meio pelo qual as outras pessoas nos afetam, e também dos gestos, que nos revelam a vida mental das outras pessoas; e a importância do tom dos comentários e das alusões das vozes - pois que uma referência direta que ligue o conteúdo dos comentários à lembrança recalcada é inadmissível para a consciência.
Na paranóia, o recalque se dá após um processo de pensamento consciente e complexo (a recusa da crença). Talvez isso seja um indício de que ele se instala, pela primeira vez, em idade relativamente mais avançada do que na neurose obsessiva e na histeria. As precondições do recalcamento são, sem dúvida, as mesmas. Ainda não se sabe se o mecanismo da projeção é inteiramente uma questão de predisposição individual ou se é selecionado por fatores especiais transitórios e fortuitos.
Quatro espécies de sintomas:
(a) sintomas primários de defesa,
(b) sintomas de compromisso do retorno,
(c) sintomas secundários de defesa,
(d) sintomas da subjugação do ego.

HISTERIA
A histeria pressupõe necessariamente uma experiência primária de desprazer - isto é, de natureza passiva. A passividade sexual natural das mulheres explica o fato de elas serem mais propensas à histeria. Nos casos em que encontrei histeria em homens, pude comprovar, em suas anamneses, a presença de acentuada passividade sexual. Uma outra condição da histeria é que a experiência primária de desprazer não ocorra numa idade muito precoce, na qual a produção de desprazer seja ainda muito reduzida e na qual,naturalmente, os eventos causadores de prazer ainda possam ter um prosseguimento independente. De outro modo, o resultado será apenas a formação de obsessões. Por essa razão, muitas vezes encontramos nos homens uma combinação das duas neuroses, ou a substituição de uma histeria inicial por uma neurose obsessiva subseqüente. A histeria começa com a subjugação do ego, que é o ponto a que leva a paranóia. A produção de tensão, na experiência primária de desprazer, é tão grande que o ego não resiste a ela e não forma nenhum sintoma psíquico, mas é obrigado a permitir uma manifestação de descarga - geralmente, uma expressão exagerada de excitação. Esse primeiro estágio da histeria pode ser qualificado como “histeria do susto”; seu sintoma primário é a manifestação de susto, acompanhada por uma lacuna psíquica. Ainda não se sabe até que idade pode ocorrer essa primeira subjugação histérica do ego.
O recalcamento e a formação de sintomas defensivos só ocorrem posteriormente, em conexão com a lembrança; e, daí em diante, defesa e subjugação (isto é, a formação dos sintomas e a irrupção dos ataques) podem estar combinadas em qualquer grau na histeria.
O recalcamento não se dá pela construção de uma idéia antitética excessivamente forte [em [1]], mas sim pela intensificação de uma idéia limítrofe, que, depois, representa a lembrança no fluxo do pensamento. Pode ser chamada de idéia limítrofe porque, de um lado, pertence ao ego e, de outro, forma uma parte não-distorcida da lembrança traumática. Assim, também aqui se trata do resultado de um compromisso; este, contudo, não se manifesta numa substituição com base em alguma categoria de tema, mas num deslocamento da atenção ao longo de uma série de idéias ligadas pela simultaneidade temporal. Quando o evento traumático encontra uma saída para si mesmo através de uma manifestação motora, é esta que se torna a idéia limítrofe e o primeiro símbolo do material recalcado. Assim, não há necessidade de supor que alguma idéia esteja sendo suprimida em cada repetição do ataque primário; trata-se, primordialmente, de uma lacuna na psique.


CARTA 46

…Como fruto de trabalhosas reflexões, envio-lhe a seguinte solução da etiologia das psiconeuroses, que ainda aguarda confirmação de análises individuais. Podem-se distinguir quatro períodos de vida [Fig. 5]:
Figura 5

A e B (desde cerca de 8 a 10 e 13 a 17 anos) são os períodos de transição durante os quais ocorre o recalcamento, na maior parte dos casos.
O despertar, numa época posterior, de uma lembrança sexual de época precedente produz um excesso de sexualidade na psique, o qual atua como uma inibição do pensamento e confere à lembrança e às conseqüências desta um caráter obsessivo - impossibilidade de ser inibido.
O período Ia possui a característica de ser intraduzível, de modo que o despertar de uma cena sexual Ia conduz não a conseqüências psíquicas, mas à conversão. O excesso de sexualidade impede a tradução.
O excesso de sexualidade, isoladamente, não é suficiente para causar recalcamento; faz-se necessária a cooperação da defesa; entretanto, sem um excesso de sexualidade a defesa não produz uma neurose.
As diferentes neuroses têm seus requisitos cronológicos particulares para suas cenas sexuais [Fig. 6].

Figura 6

Isto é, para a histeria, as cenas ocorrem no primeiro período da infância (até os 4 anos), no qual os resíduos mnêmicos não são traduzidos em imagens verbais. É indiferente se essas cenas de Ia são despertadas durante o período posterior à segunda dentição (8 aos 10 anos) ou na fase da puberdade. O resultado é sempre a histeria, e sob a forma de conversão, pois a atuação conjunta da defesa e do excesso de sexualidade impede a tradução.
Para as neuroses obsessivas, as cenas pertencem à Época Ib. Elas dispõem de tradução em palavras e, ao serem despertadas em II ou em III, formam-se os sintomas obsessivos psíquicos.
Quanto à paranóia, as cenas respectivas situam-se no período posterior à segunda dentição, na Época II, e são despertadas em III (maturidade). Nesse caso, a defesa manifesta-se através da desconfiança. Assim, os períodos em que se dá o recalque não têm nenhuma importância para a escolha da neurose, sendo decisivos os períodos em que ocorre o evento. A natureza da cena tem importância na medida em que ela seja capaz de dar origem à defesa. [Cf. em [1].]
O que acontece quando as cenas se estendem por vários períodos? Nesse caso, a época mais precoce é decisiva, ou aparecem formas combinadas, o que deveria ser possível demonstrar. Tal combinação é, na sua maior parte, impossível entre a paranóia e a neurose obsessiva, porque o recalcamento da cena Ib, efetuado durante II, torna impossível novas cenas sexuais. [Cf. Rascunho N. [1].]

A histeria é a única neurose em que os sintomas talvez possam existir mesmo sem defesa, pois mesmo assim a característica da conversão permaneceria. (Histeria somática pura.)
Verifica-se que a paranóia quase não depende dos fatores infantis. É a neurose de defesa par excellence, independente até mesmo da moralidade e da repulsa à sexualidade, que é o que, em A e B, proporciona o motivo para a defesa na neurose obsessiva e na histeria e, por conseguinte, tem incidência mais provável nas classes inferiores. É uma doença da idade adulta. Quando não há cenas em Ia, Ib, ou II, a defesa não pode ter nenhuma conseqüência patológica (recalcamento normal). O excesso de sexualidade preenche as precondições para que haja ataques de angústia durante a idade adulta. Os traços de memória são insuficientes para absorver a quantidade sexual liberada, que deveria transformar-se em libido [psíquica.].
A importância dos intervalos entre as experiências sexuais é evidente. Uma continuação das cenas através de uma faixa limítrofe entre as épocas talvez consiga evitar a possibilidade de recalcamento, pois, nesse caso, não surge nenhum excesso de sexualidade entre a cena e a primeira lembrança significativa da mesma.
A respeito da consciência [isto é, do estar consciente], ou melhor, do tornar-se consciente, devemos supor três coisas:
(1) que, no que tange às lembranças, ela consiste, na maior parte, na consciência verbal relativa a essas lembranças - isto é, no acesso às representações verbais associadas;
(2) que a consciência não está exclusiva e inseparavelmente ligada nem ao chamado inconsciente, nem ao chamado reino consciente, de modo que parece necessário rejeitar esses termos;
(3) que a consciência é influenciada por um compromisso entre as diferentes forças psíquicas que entram em conflito quando ocorrem os recalcamentos.
É necessário examinar minuciosamente essas forças e tirar conclusões acerca dos seus efeitos. Estes são (1) a força quantitativa inerente de uma representação e (2) uma atenção livremente móvel, que é atraída segundo certas regras e repelida de acordo com a regra da defesa. Quase todos os sintomas são estruturas de compromisso. Deve-se fazer uma distinção entre processos psíquicos não-inibidos e inibidos pelo pensamento. É no conflito entre esses dois processos que os sintomas surgem como soluções de compromisso para as quais está aberto o acesso à consciência. Nas neuroses, cada um desses processos é, em si mesmo, racional (o não-inibido é monoideístico, unilateral); o compromisso resultante é irracional, análogo a um erro de pensamento.
Em todos os casos devem ser preenchidas as condições quantitativas, pois, de outro modo, a defesa pelo processo inibido pelo pensamento impedirá a formação do sintoma.
Quando a força dos processos não-inibidos aumenta, surge uma espécie de distúrbio psíquico; uma outra espécie surge quando decresce a força da inibição pelo pensamento. (Melancolia, exaustão - os sonhos como um protótipo.)
O aumento dos processos não-inibidos, a ponto de eles manterem a posse exclusiva do acesso à consciência verbal, produz a psicose.
Não há como separar os dois processos; são somente os critérios relativos ao desprazer que impedem as diversas transições associativas possíveis entre eles.

CARTA 50

…Preciso contar-lhe um sonho interessante que tive na noite após os funerais. Eu me encontrava num local público e li um aviso que havia lá:

Pede-seque você feche os olhos.
Imediatamente reconheci o local como sendo o salão de barbearia a que vou diariamente. No dia do sepultamento, tive de me demorar ali, esperando minha vez, e por isso cheguei à casa funerária um tanto atrasado. Na ocasião, meus familiares estavam aborrecidos comigo porque eu providenciara para que o funeral fosse modesto e simples, com o que depois concordaram, achando isso bastante acertado. Também interpretaram um pouco mal o meu atraso. A frase no quadro de avisos tem um duplo sentido, e em ambos os sentidos significa: “deve-se cumprir a obrigação para com os mortos”. (Uma desculpa, como se eu não a tivesse cumprido e como se minha conduta precisasse ser tolerada, e a obrigação, assumida literalmente.) Assim, o sonho é uma saída para a tendência à autocensura, que costuma estar presente entre os sobreviventes.

CARTA 52

…Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico tenha-se formado por um processo de estratificação: o material presente em forma de traços da memória estaria sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstâncias - a uma retranscrição. Assim, o que há de essencialmente novo a respeito de minha teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de indicações. Postulei a existência de um tipo parecido de rearranjo (Afasia), há algum tempo, para as vias que vão da periferia [do corpo para o córtex]. Não sei dizer quantos desses registros há: três, pelo menos, provavelmente mais. Isto está mostrado na figura esquemática que se segue [Fig. 7], que supõe que os diferentes registros também estejam separados (não necessariamente segundo o aspecto topográfico) de acordo com os neurônios que são seus veículos. Essa suposição talvez não seja necessária, mas é a mais simples e é provisoriamente admissível.

Figura 7

W [Wahrnehmungen (percepções)] são os neurônios em que se originam as percepções, às quais a consciência se liga, mas que, nelas mesmas, não conservam nenhum traço do que aconteceu. Pois a consciência e a memória são mutuamente exclusivas.
Wz [Wahrnehmungszeichen (indicação da percepção)] é o primeiro registro das percepções; é praticamente incapaz de assomar à consciência e se dispõe conforme as associações por simultaneidade.
Ub (Unbewusstsein) [inconsciência] é o segundo registro, disposto de acordo com outras relações (talvez causais). Os traços Ub talvez correspondam a lembranças conceituais; igualmente sem acesso à consciência.
Vb (Vorbewusstsein) [pré-consciência) é a terceira transcrição, ligada às representações verbais e correspondendo ao nosso ego reconhecido como tal. As catexias provenientes de Vb tornam-se conscientes de acordo com determinadas regras; essa consciência secundária do pensamento é posterior no tempo e provavelmente se liga à ativação alucinatória das representações verbais, de modo que os neurônios da consciência seriam também neurônios da percepção e, em si mesmos, destituídos de memória.
Se eu conseguisse dar uma descrição completa das características psicológicas da percepção e dos três registros, teria descrito uma nova psicologia. Disponho de algum material para isso, mas não é esta a minha intenção, por ora.
Gostaria de acentuar o fato de que os sucessivos registros representam a realização psíquica de épocas sucessivas da vida. Na fronteira entre essas épocas deve ocorrer uma tradução do material psíquico. Explico as peculiaridades das psiconeuroses com a suposição de que essa tradução não se fez no caso de uma determinada parte do material, o que provoca determinadas conseqüências. Pois sustento firmemente a crença numa tendência ao ajustamento quantitativo. Cada transcrição subseqüente inibe a anterior e lhe retira o processo de excitação. Quando falta uma transcrição subseqüente, a excitação é manejada segundo as leis psicológicas vigentes no período anterior e consoante as vias abertas nessa época. Assim, persiste um anacronismo: numa determinada região ainda vigoram os “fueros”; estamos em presença de “sobrevivências”.
Uma falha na tradução - isto é o que se conhece clinicamente como “recalcamento”. Seu motivo é sempre a produção de desprazer que seria gerada por uma tradução; é como se esse desprazer provocasse um distúrbio do pensamento que não permitisse o trabalho de tradução.
Dentro de uma mesma fase psíquica e entre os registros da mesma espécie, forma-se uma defesa normal devida à produção do desprazer. Já a defesa patológica somente ocorre contra um traço de memória de uma fase anterior, que ainda não foi traduzido.
Certamente não é por causa da magnitude da produção de desprazer que a defesa consegue efetuar o recalcamento. Muitas vezes, lutamos em vão precisamente contra lembranças que envolvem o máximo de desprazer. Foi por isso que chegamos à seguinte formulação. Se um evento A, quando era atual, despertou uma determinada quantidade de desprazer, então o seu registro mnêmico, A I ou A II, possui um meio de inibir a produção de desprazer quando a lembrança é redespertada. Quanto mais freqüentemente a lembrança retorna, mais inibida se torna, finalmente, a produção de desprazer. Contudo, existe um caso em que a inibição é insuficiente. Se A, quando era atual, produziu determinado desprazer, e se, quando redespertado, produz um novo desprazer, então este não pode ser inibido. Nesse aspecto, a lembrança se comporta como se se tratasse de um evento atual. Esse caso só pode ocorrer com os eventos sexuais, porque as magnitudes das excitações causadas por eles aumentam por si mesmas com o tempo (com o desenvolvimento sexual).
Assim, um evento sexual de uma dada fase atua sobre a fase seguinte como se fosse um evento atual e, por conseguinte, não é passível de inibição. O que determina a defesa patológica (recalcamento), portanto, é a natureza sexual do evento e a sua ocorrência numa fase anterior.
Nem todas as experiências sexuais produzem desprazer; a maioria delas produz prazer. Assim, a maioria delas está ligada a um prazer não passível de inibição. O prazer não passível de inibição dessa espécie constitui uma compulsão. Chegamos, pois, à seguinte formulação. Quando uma experiência sexual é recordada numa fase diferente, a liberação de prazer é acompanhada por uma compulsão e a liberação de desprazer é acompanhada pelo recalcamento. Em ambos os casos, a tradução para as indicações de uma nova fase parece ser inibida (?).
Ora, a experiência clínica nos evidencia três grupos de psiconeuroses sexuais - histeria, neurose obsessiva e paranóia; e nos ensina que as lembranças recalcadas referem-se àquilo que era atual, no caso da histeria, entre as idades de 1 1/2 e 4 anos; no caso da neurose obsessiva, entre os 4 e os 8 anos; e, no caso da paranóia, entre os 8 e os 14 anos. Mas, antes dos 4 anos de idade, ainda não existe recalque, de modo que os períodos psíquicos do desenvolvimento e as fases sexuais não coincidem. [Fig. 8.]

Figura 8
O pequeno diagrama seguinte encaixa-se aqui: [Fig. 9 em [1].]

Figura 9
Pois uma outra conseqüência das experiências sexuais prematuras é a perversão, cuja causa parece consistir em que a defesa ou não ocorreu antes de estar completo o aparelho psíquico, ou não ocorreu nunca.
Basta da superestrutura. Agora, passemos a uma tentativa de situar isso em seus fundamentos orgânicos. O que falta explicar é por que as experiências sexuais, que, na época em que eram atuais, geraram prazer, passam, quando são lembradas numa fase diferente, a gerar desprazer em algumas pessoas e, em outras, a persistir como compulsão. No primeiro caso, é evidente que elas devem estar liberando, numa época posterior, um desprazer que não foi liberado de início.
Também precisamos delinear a derivação das diferentes épocas, psicológicas e sexuais. Você me explicou estas últimas como sendo múltiplos especiais do ciclo feminino de 28 dias.
A fim de explicar por que o resultado [da experiência sexual prematura (ver acima)] às vezes é a perversão e, às vezes, a neurose, valho-me da bissexualidade de todos os seres humanos. Num ser puramente masculino, haveria um excesso de liberação masculina também nas duas barreiras sexuais - isto é, seria gerado prazer e, em conseqüência, perversão; nos seres exclusivamente femininos haveria, nessas ocasiões, um excesso de substâncias causadoras de desprazer. Nas primeiras fases, as liberações seriam paralelas, isto é, produziriam um excesso normal de prazer. Isso explicaria a preferência das pessoas verdadeiramente femininas pelas neuroses de defesa.
Desse modo, a natureza intelectual dos seres humanos masculinos estaria confirmada com base na teoria que você propôs.
Por fim, não posso eliminar uma suspeita de que a indiferença entre neurastenia e neurose de angústia, que detectei clinicamente, esteja correlacionada com a existência das duas substâncias, de 23 dias e 28 dias.
Além dessas duas, sugiro aqui, poderia haver diversas substâncias de cada tipo.
Cada vez mais me parece que o ponto essencial da histeria é que ela resulta de perversão por parte do sedutor, e mais e mais me parece que a hereditariedade é a sedução pelo pai. Assim, surge uma alternância entre as gerações:
1ª geração: Perversão.
2ª geração: Histeria e conseqüente esterilidade. Por vezes, há uma metamorfose dentro de um mesmo indivíduo: pervertido durante a idade do vigor e, depois, passado um período de angústia, histérico. Por conseguinte, histeria não é sexualidade repudiada, mas, antes, perversão repudiada.
Ademais, por trás disso está a idéia das zonas erógenas abandonadas. Isto é, parece que, durante a infância, seria possível obter a liberação sexual a partir de muitas das diferentes partes do corpo, as quais, em época posterior, só são capazes de liberar a substância dos 28 [dias], e não outras. Nessa diferenciação e limitação [estaria, pois,] o progresso na cultura e na moral, assim como no desenvolvimento individual.
O ataque histérico não é uma descarga, mas uma ação; e conserva a característica original de toda ação - ser um meio de reprodução do prazer. (Isso, pelo menos, é o que o ataque é em sua origem; além disso, apresenta todos os tipos de outras razões ao pré-consciente.) Assim, os pacientes aos quais foi feito algo de sexual no sono têm ataques de sono. Irão dormir novamente a fim de experimentar a mesma coisa e, muitas vezes, provocam dessa maneira um desmaio histérico.
Os ataques de vertigem e acessos de choro - tudo isso tem como alvo uma outra pessoa - mas, na sua maior parte, uma outra pessoa pré-histórica, inesquecível, que nunca é igualada por nenhuma outra posterior. Até o sintoma crônico de o indivíduo ser um dorminhoco preguiçoso é explicado da mesma forma. Um dos meus pacientes ainda choraminga durante o sono, como costumava fazer para ser levado para a cama por sua mãe, que morreu quando ele tinha 22 meses de idade. Parece que os ataques nunca ocorrem como uma “expressão intensificada de emoção”.


CARTA 55

…Estou-lhe remetendo duas idéias recentíssimas, que me ocorreram hoje e me parecem viáveis. Baseiam-se, naturalmente, em descobertas analíticas.
(1) O que determina uma psicose (ou seja, amência ou psicose confusional - uma psicose de subjugação, como a denominei anteriormente), em lugar de uma neurose, parece ser o fato de o abuso sexual ocorrer antes do fim do primeiro estágio intelectual - isto é, antes de o aparelho psíquico ter sido completado na sua primeira forma (antes dos 15 a 18 meses). É possível que tal abuso remonte a uma época tão remota que essas experiências permaneçam ocultas atrás de experiências mais recentes e que a elas se possa voltar de tempos em tempos. Penso que a epilepsia remonta ao mesmo período… Tenho de abordar de maneira diferente o tic convulsif, que eu costumava atribuir ao mesmo estágio. Eis como cheguei a essa outra visão. Um de meus pacientes histéricos… levou sua irmã mais velha a uma psicose histérica, que terminou num estado de completa confusão. Agora averigüei qual foi o sedutor dele, um homem de grande capacidade intelectual que, no entanto, tinha tido ataques da mais grave dipsomania a partir dos seus cinqüenta anos. Esses ataques começavam regularmente, com diarréia ou com catarro e rouquidão (o sistema sexual oral!) … isto é, com a reprodução de suas experiências passivas. Ora, até ele próprio sentir-se doente, esse homem tinha sido pervertido e, conseqüentemente, sadio. A dipsomania surgiu através da intensificação - ou melhor, através da substituição do impulso sexual correlato por esse impulso [para a bebida]. (Provavelmente, o mesmo se aplica à mania de jogatina do velho F.) Ocorreram entre esse sedutor e meu paciente, sendo que a irmã deste, que tinha menos de um ano de idade, presenciou algumas delas. Meu paciente, mais tarde, veio a ter relações com ela, que se tornou psicótica na puberdade. Disso se pode depreender como uma neurose se agrava e passa a uma psicose na geração seguinte (o que as pessoas chamam de “degeneração”), simplesmente porque uma pessoa de idade mais tenra é colhida nas malhas de uma situação dessas. Aliás, aqui está a hereditariedade desse caso [Fig. 10]:

Figura 10
Espero poder contar-lhe muito mais coisas importantes a respeito desse caso, que projeta uma luz sobre três formas de doença.
(2) As perversões normalmente levam à zoofilia e têm uma característica animal. São explicadas não pelo funcionamento das zonas erógenas que foram posteriormente abandonadas, mas sim pela atuação de sensações erógenas, que depois perdem essa intensidade. Com relação a isto, convém recordar que o principal órgão dos sentidos nos animais (para fins sexuais, bem como para outros fins) é o sentido do olfato, que perdeu essa posição nos seres humanos. Na medida em que é dominante o olfato (ou o paladar), o cabelo, as fezes e toda a superfície do corpo - e também o sangue - têm um efeito sexualmente excitante. Sem dúvida está em conexão com isso o aumento do sentido do olfato na histeria. O fato de que os grupos de sensações têm muito a ver com a estratificação psicológica parece ser dedutível a partir da distribuição deles nos sonhos e, sem dúvida, têm uma conexão direta com o mecanismo da anestesia histérica.

CARTA 56

…Aliás, que diria você se eu lhe contasse que toda aquela minha história da histeria, história original e novinha em folha, já era conhecida e tinha sido publicada repetidamente uma centena de vezes - há alguns séculos? Você se lembra de que eu sempre disse que a teoria medieval da possessão pelo demônio, sustentada pelos tribunais eclesiásticos, era idêntica à nossa teoria de um corpo estranho e de uma divisão (splitting) da consciência? Mas por que é que o diabo, que se apossava das pobres bruxas, invariavelmente as desonrava, e de forma revoltante? Por que as confissões delas sob tortura tanto se assemelham às comunicações feitas por meus pacientes em tratamento psíquico? Dentro em breve, precisarei pesquisar a bibliografia do assunto. Aliás, as crueldades possibilitam o entendimento de alguns sintomas da histeria, que até agora têm permanecido obscuros. Os alfinetes que aparecem das formas mais surpreendentes, as agulhas que fazem com que as pobres criaturas tenham seus seios operados, e que são invisíveis aos raios X, embora possam ser encontradas na história de sua sedução…
Mais uma vez, os inquisidores espetam agulhas para descobrir os estigmas do demônio, e, numa situação parecida, as vítimas inventam a mesma cruel e velha história (ajudadas, talvez, pelos disfarces do sedutor). Assim, não só as vítimas, mas também os seus algozes, relembram nisso os primórdios de sua adolescência.

CARTA 57

…Ganha força a idéia de trazer à cena as bruxas, e penso que ela vai direto ao alvo. Começam a avolumar-se os detalhes. O seu “vôo” está explicado; o cabo de vassoura em que montam é provavelmente o grande Senhor Pênis. Suas reuniões secretas, com danças e outros divertimentos, podem ser vistas, todos os dias, nas ruas onde há crianças brincando. Outro dia, li que o ouro que o diabo dá a suas vítimas habitualmente se transforma em fezes; e, no dia seguinte, Herr E., que me descreve os delírios de dinheiro de sua antiga babá, de repente (por meio de um circunlóquio, via Cagliostro-alquimista-Dukatenscheisser) diz que o dinheiro de Louise era sempre cocô. Assim, nas histórias de feiticeiras, o dinheiro simplesmente está sendo novamente reduzido à substância da qual surgiu. Se ao menos eu soubesse por que o sêmen do diabo, nas confissões das feiticeiras, é sempre descrito como “frio”! Solicitei um exemplar do Malleus Maleficarum e, agora que fiz o arremate final no meu Kinderlähmungen, estudá-lo-ei com afinco. A história do diabo, o vocabulário dos palavrões populares, as cantigas e hábitos de tenra infância - tudo isso, atualmente, está adquirindo significação para mim. Você poderia, sem maior problema, recomendar-me alguma boa leitura, com base em sua prodigiosa memória? Com relação às danças nas confissões das bruxas, lembre-se das epidemias de dança na Idade Média. A Louise de E. era uma bruxa dançante desse tipo; muito coerentemente, foi no balé que ele se lembrou dela pela primeira vez: daí sua angústia nos teatros.
Paralelamente ao vôo e à flutuação no ar, devemos situar as proezas acrobáticas dos meninos nos ataques histéricos etc.
Em minha mente está-se formando a idéia de que, nas perversões, das quais a histeria é o negativo, podemos ter diante de nós um remanescente de um culto sexual primevo que, no Oriente semítico (Moloch, Astarte), em certa época, foi, e talvez ainda seja, uma religião…
As ações pervertidas, além disso, são sempre as mesmas - têm um significado e são executadas segundo um padrão que há de ser possível compreender.
Portanto, venho sonhando com uma religião demoníaca primeva, cujos ritos são executados secretamente, e compreendo o tratamento severo prescrito pelos juízes das bruxas. Os elos de ligação são abundantes.
Uma outra contribuição para essa corrente de idéias deriva da reflexão de que há uma classe de pessoas que, ainda nestes dias em que vivemos, contam histórias semelhantes às das bruxas e às de meus pacientes; não encontram quem lhes dê crédito, mas, mesmo assim, sua crença nelas não pode ser abalada. Como você deve ter adivinhado, refiro-me aos paranóicos, cujas queixas de que as pessoas põem fezes em sua comida, maltratam-nos à noite da maneira mais abjeta, sexualmente etc., são mero conteúdo da memória. Como você sabe, tenho feito uma diferenciação entre delírios da memória e delírios interpretativos [pág. [1]]. Estes últimos estão relacionados com a indefinição característica que cerca as pessoas que praticam as maldades, pessoas que, naturalmente, estão ocultas pela defesa.
Um detalhe a mais. Nos pacientes histéricos, reconheço o pai por trás de seus elevados padrões referentes ao amor, de sua humildade para com o amante, ou da sua incapacidade de casar, porque seus ideais não são satisfeitos. Naturalmente, o fundamento disso é a altura a partir da qual um pai olha com superioridade para o filho. Compare-se a isso a combinação, existente nos paranóicos, de megalomania com histórias fictícias de filiação ilegítima. Este é o outro lado da medalha.

Ao mesmo tempo, estou tendo menos certeza da idéia, que estive acalentando até há pouco tempo, de que a escolha da neurose é determinada pelo período em que esta se origina; antes, ela parece estar fixada na mais remota infância. Parece, contudo, que a decisão continua a oscilar entre o período em que ela se origina e (o que prefiro atualmente) o período em que ocorre o recalcamento. [Cf em [1].]

CARTA 59

…O aspecto que me escapou na solução da histeria está na descoberta de uma nova fonte a partir da qual surge um novo elemento da produção inconsciente. O que tenho em mente são as fantasias histéricas, que, habitualmente, segundo me parece, remontam a coisas ouvidas pelas crianças em tenra idade e compreendidas somente mais tarde. A idade em que elas captam informações dessa ordem é realmente surpreendente - dois seis ou sete meses em diante!…

CARTA 60

…A noite passada tive um sonho referente a você. Tratava-se de uma mensagem telegráfica sobre o seu paradeiro:
                           Via                                         “(Veneza)             Casa SECERNO”                                                              Villa                       A maneira como escrevi isso mostra o que foi que pareceu obscuro e o que pareceu múltiplo. “Secerno” era o que estava mais claro. Meu sentimento em relação a isso era de aborrecimento por você não ter ido ao lugar que eu lhe recomendara: à Casa Kirsch.
Os motivos do sonho. - A causa desencadeante: acontecimentos do dia anterior. H. esteve aqui e falou a respeito de Nuremberg, dizendo que conhecia muito bem essa cidade e costumava hospedar-se no Preller. Não consegui recordá-lo imediatamente, mas, depois, perguntei: “Fora da cidade, então?” Essa conversa despertou-me a pena que tenho sentido ultimamente por não saber onde você tem estado e não ter notícias suas. Eu queria ter você como meu interlocutor e contar-lhe algo daquilo que andei experimentando e descobrindo em meu trabalho. Mas não tive coragem de enviar minhas anotações para destino ignorado, pois teria desejado pedir-lhe que as guardasse para mim como material de valor. De modo que se tratava da realização do desejo de que você telegrafasse, dando-me seu endereço. Existe todo tipo de coisas por trás do enunciado do telegrama: a lembrança do prazer etimológico que você me proporciona, minha menção a “fora da cidade”, feita a H., mas também coisas sérias que logo acudiram à minha mente. “Como se você sempre tivesse de ter algo de especial!” é o que diz meu aborrecimento. E, depois, o fato de você não gostar nem um pouco da Idade Média. E mais, ainda, minha contínua reação a seu sonho de defesa que tentou colocar um avô no lugar costumeiro do pai. Com referência a isso, minha constante irritação por não saber como lhe posso dar uma pista para descobrir quem era a pessoa que chamava I. F. de “Katzel” [gatinho] quando ela era criança, tal como agora ela trata você. Visto que eu próprio ainda estou em dúvida a respeito das coisas referentes ao pai, minha sensibilidade se torna compreensível. Assim, o sonho enfeixa todo o aborrecimento inconscientemente presente em mim em relação a você.
Além disso, o enunciado significa também:
           Via (ruas de Pompéia, que estou estudando).             
           Villa (a Villa Romana de Böcklin).

E depois, nossas conversas sobre viagem. Secerno me soa parecido com Salerno: napolitano-siciliano. E, por trás disso, sua promessa de um encontro em solo italiano.
A interpretação completa só me ocorreu depois que um feliz acaso, ocorrido esta manhã, trouxe uma nova confirmação da etiologia referente ao pai. Ontem, comecei o tratamento de um caso novo: uma jovem senhora, que, por falta de tempo, eu teria preferido não começar a tratar. Ela teve um irmão que morreu louco; e o sintoma principal dela (insônia) apareceu pela primeira vez depois que ela ouviu afastar-se da porta da frente da casa a carruagem que o levaria para o hospício. Desde então, ela tem sofrido de angústia ao andar de carruagem e vinha tendo a convicção de que haveria um acidente com a carruagem. Anos depois, os cavalos dispararam durante um passeio de carruagem, e ela aproveitou a oportunidade para saltar fora do veículo e quebrar a perna. Hoje, ela veio e relatou ter pensado um bocado no tratamento e ter descoberto um obstáculo. - “E o que foi?” - “Eu posso me imaginar tão má quanto for necessário; mas preciso poupar as outras pessoas. O senhor deve me permitir que eu não cite nomes.” - “Sem dúvida, os nomes não são importantes. A senhora quer se referir aos seus relacionamentos com pessoas. Estes certamente não podem ser silenciados.” - “O que eu quero dizer é que, de qualquer modo, antes eu teria sido mais fácil de tratar do que hoje. Antigamente, eu não tinha suspeitas; mas agora o sentido criminoso de certas coisas se tornou claro para mim, e eu não consigo decidir-me a falar sobre elas.” - “Pelo contrário, eu penso que uma mulher adulta se torna mais tolerante a respeito dos assuntos sexuais.” - “Sim, nisso o senhor tem razão. Quando digo a mim mesma que as pessoas que fazem tais coisas são indubitavelmente de espírito elevado, sou forçada a refletir que se trata de uma doença, uma espécie de loucura, e preciso desculpá-las.” - “Está bem, vamos falar francamente. Em minhas análises, as pessoas culpadas são parentes próximos, um pai ou um irmão.” - “Não há irmão nesse caso.” - “Seu pai, então.”
E aí descobriu-se que o pai, supostamente uma pessoa de mente elevada e respeitável, em outros aspectos, levava-a regularmente para a cama, quando ela estava entre 8 e 12 anos, e abusava dela sexualmente, sem penetração (“molhava-a”, visitas noturnas). Já naquela época, sentia-se angustiada. Uma irmã, seis anos mais velha, contou-lhe, alguns anos mais tarde, que tinha tido as mesmas experiências com o pai de ambas. Uma prima contou-lhe que, quando tinha quinze anos, tivera de rechaçar os abraços do avô. Naturalmente, quando eu lhe disse que coisas parecidas e piores deveriam ter acontecido em sua mais remota infância, ela não achou que isso fosse inacreditável. Em outras palavras, trata-se de um caso bastante comum de histeria, com os sintomas de sempre.
Q. E. D.

CARTA 61

…Como você pode deduzir pelo anexo [Rascunho L], meus progressos estão-se consolidando. Em primeiro lugar, formei uma idéia coerente a respeito da estrutura da histeria. Tudo remonta à reprodução das cenas, a algumas das quais se pode chegar diretamente, enquanto a outras, só por meio de fantasias erigidas à frente delas. As fantasias derivam de coisas que foram ouvidas, mas só compreendidas posteriormente, e todo o seu material, naturalmente, é verídico. São estruturas protetoras, sublimações dos fatos, embelezamentos deles e, ao mesmo tempo, servem como auto-absolvição. Talvez sua origem desencadeante se deva às fantasias de masturbação. Um segundo elemento de compreensão interna (insight) do assunto me diz que as estruturas psíquicas que, na histeria, são afetadas pelo recalcamento não são, na realidade, lembranças - de vez que ninguém se entrega à atividade mnêmica sem um motivo -, mas sim impulsos decorrentes das cenas primevas [ver em [1]]. [1] Percebo, agora, que todas as três neuroses (histeria, neurose obsessiva e paranóia) mostram os mesmos elementos (ao mesmo tempo que mostram a mesma etiologia) - ou seja, fragmentos mnêmicos, impulsos (derivados da lembrança) e ficções protetoras, e percebo que a irrupção na consciência, a formação de compromissos (isto é, sintomas), ocorre nessas neuroses em pontos diferentes. Na histeria, são as lembranças, na neurose obsessiva, os impulsos pervertidos, na paranóia, as ficções protetoras (fantasias) que penetram na vida normal, distorcidos pela formação de compromissos.
Vejo aqui um grande progresso na compreensão (insight). Espero que isso lhe cause o mesmo impacto.

RASCUNHO L [NOTAS I]
A ARQUITETURA DA HISTERIA

O objetivo parece ser o de chegar [retroativamente] às cenas primevas. Em alguns casos, isso é conseguido diretamente, mas, em outros, somente por um caminho indireto, através das fantasias. Pois as fantasias são fachadas psíquicas construídas com a finalidade de obstruir o caminho para essas lembranças. As fantasias servem, ao mesmo tempo, à tendência de aprimorar as lembranças, de sublimá-las. São feitas de coisas que são ouvidas e posteriormente utilizadas; assim, combinam coisas que foram experimentadas e coisas que foram ouvidas, acontecimentos passados (da história dos pais e dos ancestrais) e coisas que a própria pessoa viu. Relacionam-se com coisas ouvidas, assim como os sonhos se relacionam com coisas vistas. Nos sonhos, realmente, não ouvimos nada, nós vemos.

O PAPEL DESEMPENHADO PELAS EMPREGADAS
Uma imensa carga de culpa, com autocensuras (por furto, aborto etc.), torna-se possível [para uma mulher] através da identificação com essas pessoas de baixo padrão moral, que tão freqüentemente são lembradas por ela como mulheres sem valor, sexualmente ligadas com o pai ou o irmão dela. E, como resultado da sublimação dessas empregadas nas fantasias, fazem-se as mais inverossímeis acusações contra outras pessoas nessas fantasias. O temor da prostituição [isto é, de se tornar prostituta] (medo de andar sozinha na rua), o medo de que haja um homem escondido debaixo da cama etc. também apontam na direção das empregadas. Há uma trágica justiça no fato de que a ação do chefe da família, ao descer ao nível de uma empregada, é expiada pela auto degradação de sua filha.
COGUMELOS
No verão passado, houve uma moça que tinha medo de colher uma flor ou mesmo de arrancar um cogumelo, porque isso era contra o mandamento de Deus, que não queria que as sementes vivas fossem destruídas. - Isso provinha de uma lembrança dos provérbios religiosos que sua mãe citava, dirigidos contra as precauções durante o coito, porque estas significavam que se destruíam sementes vivas. As “esponjas” (esponjas de Paris) eram explicitamente mencionadas entre tais precauções. O principal conteúdo da neurose dessa moça era a identificação com a mãe.

DORES
Estas não são a sensação real de uma fixação, mas uma repetição intencional da mesma. A criança choca-se contra uma quina, um móvel etc., e assim realiza um contacto ad genitalia, a fim de repetir uma cena na qual aquilo que agora é o ponto doloroso, e foi então pressionado contra a quina, levou à fixação. [Cf. em [1]]

MULTIPLICIDADE DE PERSONALIDADES PSÍQUICAS
A existência da identificação talvez nos permita tomar literalmente essa expressão.

EMBRULHAR
Continuação da história do cogumelo. A moça insistia em que todos os objetos que lhe eram entregues fossem embrulhados. (Condom.)
EDIÇÕES MÚLTIPLAS DAS FANTASIAS -ESTARÃO TAMBÉM RETROSPECTIVAMENTE VINCULADAS [À EXPERIÊNCIA ORIGINAL]?
Nos casos em que um paciente deseja estar doente e se apega à sua doença, isso acontece, geralmente, porque a doença é considerada uma arma protetora contra sua própria libido - ou seja, porque ele desconfia de si mesmo. Nessa fase, o sintoma mnêmico torna-se um sintoma defensivo: combinam-se as duas correntes atuantes. Nos estágios precedentes, o sintoma era uma conseqüência da libido, um sintoma provocativo: pode ser que, entre os estágios, as fantasias sirvam de defesa.
É possível seguir o caminho, a época e o material da construção das fantasias. Vê-se então, que ela em muito se assemelha à construção dos sonhos. Mas não há regressão na forma [de representação] conferida às fantasias, somente progressão. Observe-se a relação entre sonhos, fantasias e reprodução.

OUTRO SONHO DE REALIZAÇÃO DE DESEJO
“O senhor vai dizer, segundo suponho, que este é um sonho de realização de desejo”, disse E. [em [1]]. “Sonhei que, assim que chegava em casa com uma mulher, eu era preso por um policial, que me mandou entrar numa carruagem. Pedi-lhe tempo, a fim de colocar meus assuntos em ordem, e assim por diante.” - “Mais alguns detalhes.” - “Isso foi de manhã, depois de eu ter passado a noite com essa mulher.” - “Você ficou com medo?” - “Não.” - “Sabe de que era acusado?” - “Sim. De ter matado uma criança.” - “Isso tem alguma conexão com a realidade?” - “Uma vez, fui responsável pelo aborto de uma criança, em decorrência de um caso amoroso. Não gosto de pensar nisso.” - “Bem, não tinha acontecido nada nessa manhã, antes do sonho?” - “Sim, acordei e tive relações sexuais.” - “Mas você tomou precauções?” - “Sim. Eu tirei fora.” - “Então, você estava com medo de ter gerado um filho, e o sonho lhe mostra a realização de seu desejo de que não acontecesse nada e de você ter arrancado o filho pela raiz. Você utilizou, como material para o seu sonho, o sentimento de angústia que surge após uma relação desse tipo.” [1]

RASCUNHO M
[NOTAS II]
A ARQUITETURA DA HISTERIA

Provavelmente, é assim: algumas das cenas são diretamente acessíveis, mas outras o são apenas por intermédio das fantasias erigidas em frente a elas. As cenas são dispostas em ordem crescente de resistência: as que foram recalcadas com menos energia vêm à luz primeiro, porém só incompletamente, devido a sua associação com as que foram duramente recalcadas. O caminho seguido pelo trabalho [analítico] desce primeiro em círculos até as cenas ou suas cercanias; depois, desce de um sintoma até uma profundidade um pouco maior, e depois, novamente a partir de um sintoma, desce ainda mais. Como a maioria das cenas converge para uns poucos sintomas, nosso caminho traça círculos repetidos através dos pensamentos que estão por trás dos mesmos sintomas. [Ver Fig. 11.]

Figura 11
RECALCAMENTO
Pode-se suspeitar que o elemento essencialmente recalcado é sempre o que é feminino. Isso é confirmado pelo fato de que as mulheres, assim como os homens, admitem com maior facilidade as experiências com mulheres do que com homens. O que os homens recalcam essencialmente é o elemento da pederastia.

FANTASIAS
As fantasias originam-se de uma combinação inconsciente, e conforme determinadas tendências, de coisas experimentadas e ouvidas. Essas tendências têm o sentido de tornar inacessível a lembrança da qual emergiram ou poderiam emergir os sintomas. As fantasias são construídas por um processo de amálgama e distorção análogo à decomposição de um corpo químico que está combinado com outro. Pois o primeiro tipo de distorção consiste numa falsificação da memória por um processo de fragmentação, no qual especialmente as relações cronológicas são postas de lado. (As correções cronológicas parecem depender justamente da atividade do sistema da consciência.) Um fragmento da cena visual junta-se, depois, a um fragmento da experiência auditiva e é transformado numa fantasia, enquanto o fragmento restante é ligado a alguma outra coisa. Desse modo, torna-se impossível determinar a conexão original. Em conseqüência da construção de fantasias como esta (em períodos de excitação), os sintomas mnêmicos cessam. Em vez destes, acham-se presentes ficções inconscientes não sujeitas à defesa. Quando a intensidade dessa fantasia aumenta até um ponto em que forçosamente irromperia na consciência, ela é recalcada e cria-se um sintoma mediante uma força que impele para trás, indo desde a fantasia até as lembranças que a constituíram.
Todos os sintomas de angústia (fobias) derivam, assim, de fantasias. Não obstante, isso simplifica os sintomas. Talvez haja um terceiro movimento para a frente e um terceiro método de construir sintomas, derivado da construção dos impulsos.

TIPOS DE DESLOCAMENTO DE COMPROMISSO
Deslocamento por associações: histeria.
Deslocamento por semelhança (conceitual): neurose obsessiva (característica do lugar em que ocorre a defesa e, talvez, também do tempo).
Deslocamento causal: paranóia.

CURSO TÍPICO DOS ACONTECIMENTOS
Bons motivos para suspeitar de que o despertar do recalcado não se dá ao acaso, mas segue as leis do desenvolvimento. Ademais, que o recalcado atua para trás, a partir do que é recente, e afeta primeiro os últimos eventos.

DIFERENÇA ENTRE AS FANTASIAS NA HISTERIA E NA PARANÓIA
As últimas são sistematizadas, todas em harmonia umas com as outras; as primeiras são independentes entre si e contraditórias - isto é, insuladas e, por assim dizer, geradas automaticamente (por um processo químico). Isto e mais a eliminação da característica do tempo é, sem dúvida, essencial para a a diferenciação entre a atividade do pré-consciente e do inconsciente. [Ver em [1]]
RECALCAMENTO NO INCONSCIENTE
Não basta levar em conta o recalcamento entre o pré-consciente e o inconsciente; devemos também atentar para o recalcamento normal dentro do sistema do próprio inconsciente. Muito importante, mas ainda muito obscuro.
Existe uma esperança muito grande de conseguirmos determinar o número e a espécie de fantasias, assim como conseguimos fazer com as cenas. O romance de ilegitimidade (cf. paranóia [em [1]]) é regularmente encontrado e serve como meio para ilegitimar os parentes em questão. A agorafobia parece depender de um romance de prostituição, que, por sua vez, também remonta a esse romance familiar. Assim, uma mulher que não sai sozinha está afirmando a infidelidade de sua mãe.

CARTA 64

… Aqui estão alguns fragmentos lançados à praia na última maré. Venho tomando nota deles somente para você e espero que os guarde para mim. Nada acrescendo à guisa de desculpas ou explicações: sei que são apenas premonições, mas sempre surgiu algo de todas as coisas desse tipo e só tive que voltar atrás no que tentei elaborar em torno do sistema Pcs. [Cf. em [1].] Um outro pressentimento também me diz, como eu já sabia - embora eu de fato não saiba absolutamente nada -, que muito em breve descobrirei a origem da moralidade…

Não faz muito tempo, sonhei que tinha sentimentos supercarinhosos para com Mathilde, só que ela se chamava Hella, e depois vi novamente “Hella” diante de mim, escrito em letras destacadas. Solução: Hella é o nome de uma sobrinha americana cujo retrato nos foi enviado. Mathilde pôde ser chamada Hella porque, ultimamente, tem chorado muito as derrotas dos gregos. Ela tem grande entusiasmo pela mitologia da antiga Hélade e, naturalmente, considera heróis todos os helenos. O sonho, é claro, mostra a realização do meu desejo de encontrar um pai que seja o causador da neurose e, desse modo, pôr fim às dúvidas que ainda persistem em mim sobre esse assunto.
Numa outra ocasião, sonhei que subia uma escadaria, vestido com muito pouca roupa. Eu me movimentava, como o sonho enfatizou, com grande agilidade (meu coração - confiança renovada!). De repente, porém, percebi que uma mulher vinha atrás de mim, e então aconteceu aquela experiência, tão comum nos sonhos, de ficar pregado no mesmo lugar, de estar paralisado. A sensação concomitante não foi de angústia, mas de excitação erótica. Assim, você vê como a sensação de paralisia, característica do sono, foi usada para a realização de um desejo exibicionista. Pouco antes, naquela noite, eu realmente tinha subido a escadaria do nosso apartamento no andar térreo - sem colarinho, pelo menos - e tinha pensado que um de nossos vizinhos poderia estar na escada.

RASCUNHO N
[NOTAS III] IMPULSOS

Os impulsos hostis contra os pais (desejo de que eles morram) também são um elemento integrante das neuroses. Vêm à luz, conscientemente, como idéias obsessivas. Na paranóia, o que há de pior nos delírios de perseguição (desconfiança patológica dos governantes e monarcas) corresponde a esses impulsos. Estes são recalcados nas ocasiões em que é atuante a compaixão pelos pais - nas épocas de doença ou morte deles. Nessas ocasiões, constitui manifestação de luto uma pessoa acusar-se da morte deles (o que se conhece como melancolia) ou punir-se numa forma histérica (por intermédio da idéia de retribuição) com os mesmos estados [de doença] que eles tiveram. A identificação que aí ocorre, como podemos verificar, nada mais é do que um modo de pensar, e não nos exime da necessidade de procurar o motivo.
Parece que esse desejo de morte, no filho, está voltado contra o pai e, na filha, contra a mãe. Uma empregada faz uma transferência disso, desejando que a patroa morra e, desse modo, o patrão possa casar-se com ela. (Cf. o sonho de Lisl a respeito de Martha e de mim.)

RELAÇÃO ENTRE IMPULSOS E FANTASIAS
Parece que as lembranças se bifurcam: parte delas é posta de lado e substituída por fantasias; outra parte, mais acessível, parece conduzir diretamente aos impulsos. Será possível que, posteriormente, os impulsos também decorram das fantasias?
De modo semelhante, a neurose obsessiva e a paranóia derivariam ex aequo [nos mesmos termos] da histeria, o que explicaria a incompatibilidade entre elas.

TRANSPOSIÇÃO DA CRENÇA
A crença (e a dúvida) é um fenômeno que pertence inteiramente ao sistema do ego (o Cs.) e não tem contrapartida no Inc. Nas neuroses, a crença é deslocada: é recusada ao material recalcado, quando ele pressiona no sentido da reprodução, e - como punição, poder-se-ia dizer - é transposta para o material que executa a defesa. Titânia, que se recusa a amar Oberon, seu marido legítimo, é obrigada, em vez disso, a entregar seu amor a Bottom, o asno da fantasia.

POESIA E FINE FRENZY
O mecanismo da poesia [criação literária] é o mesmo das fantasias histéricas. Para compor seu Werther, Goethe combinou algo que havia experimentado (seu amor por Lotte Kästner) e algo que tinha ouvido (o destino do jovem Jerusalém, que se suicidou). Provavelmente, Goethe estava brincando com a idéia de se matar; encontrou nisso um ponto de contato e identificou-se com Jerusalém, de quem tomou emprestado o motivo para sua própria história de amor. Por meio dessa fantasia, protegeu-se das conseqüências de sua experiência.
De modo que Shakespeare tinha razão ao justapor a poesia e a loucura (fine frenzy).

MOTIVOS PARA A CONSTRUÇÃO DOS SINTOMAS
Recordar nunca é um motivo, mas apenas uma maneira, um método. O primeiro motivo para a construção de sintomas é, cronologicamente, a libido. Portanto, os sintomas, como os sonhos, são a realização de um desejo.
Em estágios subseqüentes, a defesa contra a libido conquista seu espaço também no Inc. A realização de desejos deve preencher os requisitos dessa defesa inconsciente. Isso acontece quando o sintoma é capaz de atuar como um auto-impedimento, seja por meio de punição (por um impulso mau) ou a partir da desconfiança. Os motivos da libido e da realização de desejo como punição agem, nesse caso, por soma. Aqui é inequívoca a tendência geral no sentido da ab-reação e da irrupção do recalcado, e a isso se somam os dois outros motivos. O que parece é que, em fases posteriores, por um lado, algumas estruturas psíquicas complexas (impulsos, fantasias, motivos) são deslocadas das lembranças e, por outro lado, a defesa, surgindo do Pcs. (o ego), pareceria abrir caminho para dentro do inconsciente, de modo que a defesa também se torna multilocular.
A construção de sintomas por identificação está ligada às fantasias - isto é, a seu recalcamento no Inc. - numa forma análoga à da modificação do ego na paranóia [em [1]]. Como a irrupção da angústia está ligada a essas fantasias recalcadas, devemos concluir que a transformação da libido em angústia não ocorre por intermédio da defesa atuante entre o ego e o Inc., mas sim no Inc. como tal. Conclui-se, pois, que existe também uma libido Inc.
Parece que o recalcamento dos impulsos produz não angústia, mas talvez depressão - melancolia. Desse modo, as melancolias estão relacionadas com a neurose obsessiva.

DEFINIÇÃO DE “SANTIDADE”
A “santidade” é algo que se baseia no fato de que os seres humanos, em benefício da comunidade maior, sacrificaram uma parte de sua liberdade sexual e de sua liberdade de se entregarem às perversões. O horror ao incesto (como coisa ímpia) baseia-se no fato de que, em conseqüência da comunidade da vida sexual (mesmo na infância), os membros de uma família se mantêm permanentemente unidos e se tornam incapazes de contatos com estranhos. Assim, o incesto é anti-social - a civilização consiste nessa renúncia progressiva. É o contrário do “super-homem”. [1]

CARTA 66

…Ainda não sei o que andou acontecendo comigo. Algo proveniente das mais recônditas profundezas de minha neurose insurgiu-se contra qualquer avanço em minha compreensão das neuroses, e você, de algum modo, esteve envolvido nisso. Isso porque minha paralisia redacional me parece destinada a impedir nossas comunicações. Não estou nada seguro disso; são apenas sentimentos de uma natureza muito obscura. Não lhe aconteceu algo parecido? Nos últimos dias, pareceu-me que se vislumbra uma saída dessa obscuridade. Constato que, nesse ínterim, realizei todo tipo de progressos em meu trabalho, e a cada momento me ocorre mais uma idéia. Para isso concorrem, sem dúvida, o tempo quente e o excesso de trabalho.
Pois bem, vejo que a defesa contra as lembranças não impede que estas dêem origem a estruturas psíquicas superiores, que persistem por algum tempo e, depois, são elas mesmas submetidas à defesa. Esta, porém, é de um tipo específico mais elevado - precisamente como nos sonhos, que contêm in nuce [numa casca de noz] a psicologia das neuroses, muito genericamente. O que temos diante de nós são falsificações da memória e fantasias - estas referentes ao passado ou ao futuro. Conheço mais ou menos as leis segundo as quais se agrupam essas estruturas e os motivos pelos quais são mais fortes do que as lembranças verdadeiras; assim, aprendi coisas novas que ajudam a caracterizar os processos do Inc. Ao lado destes, surgem impulsos pervertidos, e quando, à medida que se torna necessário posteriormente, essas fantasias e impulsos são recalcados, aparecem as determinações superiores dos sintomas, já provenientes das lembranças, e novos motivos para manter a doença. Estou estudando alguns casos típicos de agrupamento dessas fantasias e alguns fatores típicos do surgimento do recalque contra os mesmos. Esse conhecimento ainda não está completo. Minha técnica está começando a preferir um determinado método como sendo o método natural.
Parece-me que a coisa mais indubitável é a explicação dos sonhos, mas ela está cercada de uma quantidade enorme de enigmas obstinados. As questões organológicas esperam de você uma solução: nestas, não fiz nenhum progresso.

Existe um sonho interessante em que o indivíduo vagueia entre pessoas estranhas, total ou parcialmente despido, e com sentimentos de vergonha e angústia. Muito estranhamente, as pessoas nunca reparam nisso - o que devemos atribuir à realização de desejos. Esse material onírico, que tem sua origem no exibicionismo da infância, foi erroneamente compreendido e didaticamente transformado num conhecido conto de fadas. (As roupas imaginárias do rei - “Talismã”.) Habitualmente, o ego interpreta outros sonhos da mesma maneira equivocada.

CARTA 67

…As coisas estão fermentando dentro de mim, mas não concluí nada. Estou mais do que satisfeito com a psicologia: estou atormentado por graves dúvidas sobre minha teoria das neuroses. Minha mente anda muito preguiçosa; aqui neste lugar não consegui acalmar a agitação que há em minha cabeça e meus sentimentos; isso só pode acontecer na Itália.
Depois de ter estado muito satisfeito aqui, estou agora passando por um período de mau humor. O principal paciente que me preocupa sou eu mesmo. Minha leve histeria (muito agravada, porém, pelo trabalho) foi resolvida em mais uma parte: mas o resto ainda está na imobilidade. É principalmente disso que depende o meu humor. A análise é mais difícil do que qualquer outra coisa. É ela também que paralisa minha energia psíquica para descrever e comunicar o que consegui até agora. Mas penso que deve ser feita e que é uma etapa intermediária necessária em meu trabalho.

CARTA 69

…Confiar-lhe-ei de imediato o grande segredo que lentamente comecei a compreender nos últimos meses. Não acredito mais em minha neurotica [teoria das neuroses]. Provavelmente, isso não é compreensível sem uma explicação; afinal, você mesmo considerou crível o que lhe pude dizer. De modo que começarei, historicamente, a partir da questão da origem de meus motivos de descrença. Os contínuos desapontamentos em minhas tentativas de fazer minha análise chegar a uma conclusão real, a debandada das pessoas que, durante algum tempo, eu parecia estar compreendendo com muita segurança, a ausência dos êxitos completos com que eu havia contado, a possibilidade de explicar os êxitos parciais de outras maneiras, segundo critérios comuns - este foi o primeiro grupo [de motivos]. Depois, veio a surpresa diante do fato de que, em todos os casos, o pai, não excluindo o meu, [1] tinha de ser apontado como pervertido - a constatação da inesperada freqüência da histeria, na qual o mesmo fator determinante é invariavelmente estabelecido, embora, afinal, uma dimensão tão difundida da perversão em relação às crianças não seja muito provável. (A perversão teria de ser incomensuravelmente mais freqüente do que a histeria, de vez que a doença só aparece quando há uma acumulação de eventos e quando sobrevém um fator que enfraquece a defesa.) Depois, em terceiro lugar, a descoberta comprovada de que, no inconsciente, não há indicações da realidade, de modo que não se consegue distinguir entre a verdade e a ficção que é catexizada com o afeto. (Assim, permanecia aberta a possibilidade de que a fantasia sexual tivesse invariavelmente os pais como tema.) Em quarto lugar, a reflexão de que, na psicose mais profunda, a lembrança inconsciente não vem à tona, não sendo, pois, revelado o segredo das experiências da infância nem mesmo no delírio mais confuso. Se, dessa forma, verificamos que o inconsciente nunca supera a resistência do consciente, então também abandonamos nossa expectativa de que o inverso aconteça no tratamento, a ponto de o inconsciente ser totalmente domado pelo consciente.
Em tal medida fui influenciado por isso que estava disposto a abandonar duas coisas: a resolução completa de uma neurose e o conhecimento seguro de sua etiologia na infância. Não tenho agora nenhuma idéia do ponto a que cheguei, não obtive uma compreensão teórica do recalcamento e de sua inter-relação de forças. Parece que novamente se tornou discutível se são somente as experiências posteriores que estimulam as fantasias, que então retornam à infância; e, com isso, o fator de uma predisposição hereditária recupera uma esfera de influência da qual eu me incumbira de excluí-lo - com a intenção de elucidar amplamente a neurose.

Se eu tivesse deprimido, confuso ou exausto, as dúvidas desse tipo deveriam, por certo, ser interpretadas como sinais de fraqueza. De vez que estou num estado oposto, devo reconhecê-las como o resultado de um trabalho intelectual honesto e esforçado e devo ter orgulho, depois de ter ido tão a fundo, de ainda ser capaz de tal crítica. Será que essa dúvida simplesmente representa um episódio prenunciador de um novo conhecimento?
Também é digno de nota não ter havido nenhum sentimento de vergonha, para o que, afinal, poderia haver uma justificativa. Certamente, não vou contar isso em Dan nem publicá-lo em Ascalon, na terra dos filisteus. Mas, perante você e perante mim mesmo, tenho mais um sentimento de vitória do que de derrota - e, afinal, isso não está certo.

CARTA 70

…[3 de outubro] Muito pouca coisa ainda está acontecendo comigo externamente; contudo, internamente, ocorre algo interessantíssimo. Isso porque, nos últimos quatro dias, minha auto-análise, que considero indispensável para esclarecer todo o problema, tem prosseguido nos sonhos e me presenteou com as mais valiosas inferências e indicações. Em alguns pontos, tenho a sensação de haver chegado ao término, e até agora, também, sempre tenho sabido onde é que o sonho da próxima noite vai retomar as coisas. Descrever esse fato por escrito é mais difícil do que qualquer outra coisa, e também a descrição seria imprecisa demais. Só posso dizer resumidamente que der Alte [meu pai] não teve papel ativo no meu caso, a partir de mim mesmo; que o “originador primordial” [de meus problemas] foi uma mulher feia e velha, mas esperta, que me contou uma porção de coisas a respeito de Deus todo-poderoso e do inferno e que me deu uma opinião elevada acerca das minhas próprias capacidades; que, mais tarde (entre dois e dois anos e meio de idade), minha libido foi despertada para a matrem, isto é, por ocasião de uma viagem com ela de Leipzig a Viena, durante a qual devemos ter passado a noite juntos e devo ter tido oportunidade de vê-la nudam - você tirou a conclusão disto há muito tempo no tocante a seu próprio filho, num comentário que me revelou; - que saudei o nascimento de meu irmão (que era um ano mais novo do que eu e morreu depois de alguns meses) com desejos hostis e verdadeiro ciúme infantil, e que sua morte deixou em mim a semente das autocensuras. Faz também muito tempo que conheço meu companheiro de travessuras entre um e dois anos de idade. Era meu sobrinho, um ano mais velho do que eu; atualmente vive em Manchester e nos visitou em Viena quando eu tinha quatorze anos. Parece que, algumas vezes, eu e ele nos conduzimos de maneira cruel com minha sobrinha, que era um ano mais nova. Esse sobrinho e esse irmão mais novo determinaram o que há de neurótico, mas também o que há de intenso, em todas as minhas amizades. Você mesmo viu minha angústia diante das viagens em plena atividade.
Ainda não descobri nada a respeito das cenas que subjazem a toda essa história. Se elas vierem à luz e eu conseguir resolver minha própria histeria, serei grato à memória da velha senhora que me proporcionou, em idade tão precoce, os meios de viver e de prosseguir vivendo. Como você vê, minha antiga afeição por ela está reaparecendo. Não posso dar-lhe sequer uma idéia da beleza intelectual do trabalho…
4 de outubro… O sonho de hoje apresentou o que se segue, sob os mais estranhos disfarces.
Ela era minha professora em assuntos de sexo e me repreendia por eu ser desajeitado e não ser capaz de fazer nada. É sempre assim que ocorre a impotência do neurótico; é assim que o medo de ser incapaz na escola adquire seu substrato sexual.) Ao mesmo tempo, eu via o crânio de um pequeno animal e, no sonho, pensei: “Porco!” Na análise, porém, associei isso com o seu desejo, há dois anos, de que eu pudesse encontrar no Lido um crânio para me esclarecer, como fez Goethe certa vez. Mas não o encontrei. De modo que fui um boboca. Todo o sonho estava repleto das mais mortificantes alusões a minha atual impotência como terapeuta. Talvez seja disso que deriva a tendência a acreditar que a histeria é curável. Além disso, ela me banhava numa água avermelhada, na qual ela mesma se havia banhado antes. (A interpretação não é difícil; não encontro nada parecido com isso nas seqüências de minhas lembranças, de modo que considero uma verdadeira descoberta do passado distante.) E ela me fazia furtar “zehners” (moedas de dez kreuzers) e dá-los a ela. Há uma longa seqüência desde esses primeiros zehners de prata até a pilha de notas de dez florins que vi no sonho como o dinheiro de Martha para as despesas da casa. O sonho pode ser resumido como “mau tratamento”. Assim como a velha senhora recebia dinheiro de mim pelo mau tratamento que me dispensava, também eu, atualmente, ganho dinheiro pelo mau tratamento que dou a meus pacientes. Um papel especial foi desempenhado por Frau Qu., cujo comentário você me relatou: eu devia não cobrar nada dela, já que é a esposa de um colega. (Naturalmente, ele fez questão de que eu cobrasse.)
De tudo isso um crítico severo poderia dizer que foi retrospectivamente fantasiado e não determinado progressivamente. Os experimenta crucis [experimentos cruciais] teriam de contradizê-lo. A água avermelhada já seria, parece, um desses experimentos. Onde é que todos os pacientes arranjam terríveis detalhes pervertidos que, muitas vezes, são tão afastados de sua experiência quanto de seu conhecimento?

CARTA 71

…Minha auto-análise é realmente a coisa mais essencial que me ocupa atualmente e promete adquirir o maior valor para mim, se chegar a seu término. A meio caminho, ela subitamente cessou por três dias, e tive a sensação de estar amarrado por dentro, coisa de que tanto se queixam os pacientes; e fiquei realmente inconsolável…
É estranho que minha clínica ainda me permita uma grande quantidade de tempo livre.
Tudo isso é muito valioso para meus propósitos, de vez que consegui encontrar alguns pontos de referência reais para a história. Perguntei a minha mãe se ela ainda se recordava da babá. “Naturalmente”, disse ela, “uma pessoa de idade, muito esperta. Estava sempre levando você à igreja: depois, quando voltava, você costumava pregar sermões e falar-nos a respeito de Deus todo-poderoso. Durante meu resguardo, quando Anna nasceu” (ela é dois anos e meio mais nova do que eu), “descobriu-se que ela era ladra, e todas as moedas novas e reluzentes de kreuzers e zehners e todos os brinquedos que tinham sido dados a você foram encontrados entre os pertences dela. Seu irmão Philipp [ver diante] foi buscar um policial, e ela pegou dez meses de cadeia.” Ora, veja só como isso confirma as conclusões de minha interpretação dos sonhos. Encontrei uma explicação simples para o meu possível engano. Escrevi a você contando que ela me induzia a furtar zehners e dá-los a ela. O sonho realmente quis dizer que ela mesma os roubava. Pois o quadro onírico era uma lembrança de eu estar tomando o dinheiro da mãe de um médico - isto é, indevidamente. A interpretação correta é: Eu = ela, e a mãe de um médico equivale a minha mãe. Tão longe eu estava de saber que ela era uma ladra que fiz interpretação errada.
Também andei indagando a respeito do médico que tínhamos em Freiberg, porque um sonho mostrou uma grande dose de ressentimento contra ele. Na análise da figura existente no sonho, detrás da qual ele estava oculto, pensei também no professor von K., que foi meu professor de história na escola. Ele não parecia encaixar-se absolutamente no caso, de vez que minhas relações com ele eram indiferentes, ou melhor, agradáveis. Minha mãe então me contou que o médico de minha infância tinha um olho só, e, dentre todos os meus professores de escola, também o Professor K. era o único que tinha esse mesmo defeito.
O valor comprobatório dessas coincidências poderia ser invalidado pela objeção de que, em alguma ocasião posterior da minha infância, eu teria ouvido dizer que a babá era ladra e depois o teria esquecido, aparentemente, até que afinal isso emergiu no sonho. Eu mesmo penso que é assim. Mas tenho outra prova inatacável e divertida. Eu disse a mim mesmo que, se a velha senhora desapareceu tão de repente, deveria ser possível averiguar a impressão que esse fato causou em mim. Onde, pois, está essa impressão? Ocorreu-me então uma cena que, nos últimos 29 anos, emergiu algumas vezes em minha memória consciente, sem que eu a compreendesse. Não havia jeito de encontrar minha mãe: eu berrava a plenos pulmões. Meu irmão Philipp, vinte anos mais velho do que eu, mantinha aberto diante de mim um guarda-louça [Kasten], e ao verificar que mamãe não estava dentro dele, comecei a chorar ainda mais, até que, esguia e linda, ela entrou pela porta. Que pode significar isso? Por que estaria meu irmão abrindo o guarda-louça, se sabia que mamãe não estava lá dentro e que aquilo não poderia me tranqüilizar? E então, subitamente, compreendi. Eu pedira a ele que o fizesse. Ao sentir falta de mamãe, temi que ela tivesse desaparecido de mim, tal como acontecera, pouco tempo antes, com a velha babá. Ora, devo ter ouvido dizer que a velha tinha sido trancafiada e, por conseguinte, devo ter pensado que minha mãe também o fora - ou melhor, que tivesse sido “encaixotada” [“eingekastelt”], pois meu irmão Philipp, atualmente com 63 anos, ainda hoje gosta de falar por meio de trocadilhos. O fato de eu ter recorrido a ele, em particular, prova que eu sabia muito bem da sua participação no desaparecimento da babá. [1]
Depois disso, consegui aclarar muitas coisas mais; entretanto, não cheguei ainda a nenhum ponto conclusivo. Comunicar o que está inacabado é tão vago e trabalhoso que espero que você me perdoe por isso e se contente com o conhecimento dos aspectos que estão estabelecidos com certeza. Se a análise contiver aquilo que espero dela, eu o escreverei ordenadamente e o apresentarei a você depois. Até agora, não encontrei nada completamente novo, só complicações, à quais, de resto, estou acostumado. Não é nada fácil. Ser completamente honesto consigo mesmo é uma boa norma. Um único pensamento de valor genérico revelou-se a mim. Verifiquei, também no meu caso, a paixão pela mãe e o ciúme do pai, e agora considero isso como um evento universal do início da infância, mesmo que não tão precoce como nas crianças que se tornaram histéricas. (Algo parecido com o que acontece com o romance da filiação na paranóia - heróis, fundadores de religiões.) Sendo assim, podemos entender a força avassaladora de Oedipus Rex, apesar de todas as objeções levantadas pela razão contra a sua pressuposição do destino; e podemos entender por que os “dramas do destino” posteriores estavam fadados a fracassar lamentavelmente. Nossos sentimentos opõem-se a qualquer compulsão arbitrária e individual [do destino], tal como é pressuposto em Die Ahnfrau [de Grillparzer] etc. Mas a lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa reconhece porque sente sua presença dentro de si mesma. Cada pessoa da platéia foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente um Édipo como esse, e cada qual recua, horrorizada, diante da realização de sonho aqui transposta para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual.
Passou-me pela cabeça uma rápida idéia no sentido de saber se a mesma coisa não estaria também no fundo do Hamlet. Não estou pensando na intenção consciente de Shakespeare, mas acredito, antes, que algum evento real tenha instigado o poeta à sua representação, no sentido de que o inconsciente de Shakespeare compreendeu o inconsciente de seu herói. Como é que o histérico Hamlet consegue justificar suas palavras: “Assim a consciência nos torna a todos covardes”? Como é que ele consegue explicar sua hesitação em vingar o pai assassinado através do seu tio - ele, o homem que, sem nenhum escrúpulo, envia à morte seus cortesãos e efetivamente se precipita ao matar Laertes? De que outro modo poderia ele justificar-se melhor do que mediante o tormento de que padece com a obscura lembrança de que ele próprio planejou perpetrar a mesma ação contra seu pai, por causa da paixão pela mãe - “a se tratar cada homem segundo seu merecimento, quem escapará do açoite?” Sua consciência [moral] é seu sentimento inconsciente de culpa. E não será seu afastamento sexual [em [1]], na conversa com Ofélia, tipicamente histérico? e sua rejeição do instinto que visa a procriar filhos? e, por fim, que dizer de ele ter transferido a ação de seu pai para o de Ofélia? E não faz ele descer sobre si, no final, de modo tão evidente como os meus pacientes histéricos, o castigo, sofrendo o mesmo destino do pai, ao ser envenenado pelo mesmo rival? [1]

CARTA 72

…Uma idéia a respeito da resistência possibilitou-me situar corretamente todos aqueles casos meus que tinham enveredado por graves dificuldades, e reencaminhá-los satisfatoriamente. A resistência, que finalmente causa uma parada no trabalho, não é senão seu caráter passado da criança, degenerado, que (em conseqüência das experiências que se acham conscientemente presentes nos casos ditos degenerados) se desenvolveu ou poderia ter-se desenvolvido, mas que é encoberto pelo recalque. Esse caráter, eu o desencavo com meu trabalho, e ele se debate; e quem, no início do tratamento, era um sujeito excelente e franco, torna-se grosseiro, mentiroso ou obstinado e se finge de doente - até que lhe digo isso e, desse modo, torna-se possível superar esse caráter. Assim, a resistência tornou-se para mim uma coisa real e tangível; desejaria também que, em lugar do conceito de recalcamento, eu já estivesse de posse daquilo que jaz oculto por trás dele.
Essa característica infantil desenvolve-se durante o período de “anseio intenso”, depois que a criança é afastada das experiências sexuais. Ansiar ardentemente é o principal traço de caráter da histeria, assim como a anestesia atual (ainda que apenas potencial) é o seu principal sintoma. Durante esse mesmo período de anseio, as fantasias são construídas e (invariavelmente?) a masturbação é praticada, dando lugar ao recalque, posteriormente. Quando ela não cede, não há histeria; a descarga da excitação sexual retira a possibilidade de haver histeria, na maioria dos casos. Para mim ficou claro que diversos movimentos obsessivos têm o significado de um substituto dos movimentos de masturbação abandonados…

CARTA 73

…Minha análise prossegue e continua sendo o meu interesse principal. Tudo é ainda obscuro, até mesmo os problemas; mas há um sentimento reconfortante de que é necessário tão-somente dar uma busca no depósito para encontrar, mais cedo ou mais tarde, aquilo de que se precisa. O mais desagradável de tudo são os estados de humor, que, com freqüência, ocultam totalmente a realidade. Para alguém como eu, também, a excitação sexual já não tem serventia. Mas ainda estou absolutamente satisfeito com ela. Quanto aos resultados, precisamente agora existe mais uma vez uma calmaria.
Você acha que a fala das crianças durante o sono também pode ser encarada como sonho? Se é assim, posso presenteá-lo com os mais recentes sonhos de realização de desejos: Aninha, um ano e meio de idade. Um dia, em Aussee, ela teve de ficar sem comer porque passou mal de manhã, o que foi atribuído ao fato de ter comido morangos. Durante a noite seguinte, ela recitou um cardápio inteiro no sono: “Molangos, molangos silvestres, omelete, pudim!” Talvez eu já lhe tenha contado isso.

CARTA 75

…“Era o dia 12 de novembro de 1897. O sol estava no quadrante leste; Mercúrio e Vênus estavam em conjunção -” Não, os anúncios de nascimento já não se fazem mais assim. Foi a 12 de novembro, um dia dominado por uma enxaqueca no lado esquerdo, um dia em que, à tarde, Martin sentou-se para escrever um novo poema, e, ao entardecer, Oli perdeu seu segundo dente, um dia em que, após as terríveis dores de parto das últimas semanas, dei à luz um novo conhecimento. Não de todo novo, para dizer a verdade; esse conhecimento tinha-se mostrado repetidas vezes e se havia retraído novamente; [1] mas, dessa vez, permaneceu firme e fitou a luz do dia. Coisa engraçada, costumo ter um pressentimento dessas coisas um bom tempo antes. Por exemplo, certa vez lhe escrevi, no verão [Carta 64, em [1], atrás], que eu estava por encontrar a fonte do recalcamento sexual normal (moralidade, vergonha etc.) e, depois, por longo tempo, não consegui encontrá-la. Antes das férias [Carta 67, em [1]], contei-lhe que o paciente mais importante para mim era eu mesmo; e então, subitamente, depois que voltei das férias, minha auto-análise, da qual até então não havia nenhum sinal, [1] pôs-se em andamento. Há algumas semanas [Carta 72, em [1]], veio-me o desejo de que o recalque pudesse ser substituído pela coisa essencial que jazia por trás dele; e é disso que me ocupo agora.
Muitas vezes suspeitei de que alguma coisa orgânica desempenhava um papel no recalcamento; certa vez, antes disso, disse-lhe que se tratava do abandono de zonas sexuais precedentes [em [1] e [2]] e acrescentei que me agradara encontrar uma idéia parecida em Moll. Privatim [confidencialmente], a ninguém concedo prioridade na idéia; no meu caso, eu ligava essa idéia de recalque à modificação do papel desempenhado pelas sensações do olfato: a adoção da postura ereta, o nariz levantado do chão, ao mesmo tempo que uma série de sensações, que antes despertavam interesse e eram relacionadas à terra, tornaram-se repulsivas - por um processo que ainda me é desconhecido. (Ele levanta o nariz = considera-se especialmente nobre.) Ora, as zonas que não produzem mais uma liberação da sexualidade nos seres humanos normais e maduros certamente são as regiões da boca, do ânus e da garganta. Isto pode ser compreendido de duas maneiras: primeiro, a aparência e a idéia dessas zonas não mais produzem um efeito excitante e, segundo, as sensações internas originárias dessas zonas não proporcionam qualquer contribuição à libido, de modo como fazem os órgãos sexuais propriamente ditos. Nos animais, essas zonas sexuais continuam em vigor, sob ambos aspectos; quando isso persiste também nos seres humanos, o resultado é a perversão. Devemos supor que, na infância, a liberação da sexualidade ainda não é tão localizada como o é posteriormente, de modo que as zonas (e talvez também toda a superfície do corpo) que depois são abandonadas também provocam algo análogo à liberação posterior da sexualidade. A extinção dessas zonas sexuais iniciais teria uma contrapartida na atrofia de determinados órgãos internos, no decurso da evolução. Uma liberação da sexualidade - como você sabe, tenho em mente uma espécie de secreção que é propriamente sentida como o estado interno da libido - ocorre, então, não apenas (1) mediante estímulo periférico sobre os órgãos sexuais, ou (2) mediante as excitações internas que surgem desses órgãos, mas também (3) a partir de idéias - isto é, a partir de traços de memória - portanto, também por via de uma ação postergada. (Você já está familiarizado com essa linha de pensamento.) Se os genitais de uma criança foram excitados por alguém, a lembrança disso, anos depois, produzirá, por efeito retardado, uma liberação de sexualidade muito mais intensa do que na época da excitação, porque o aparelho efetor e a quantidade de secreção terão aumentado nesse meio tempo. Assim, uma ação não-neurótica postergada pode ocorrer normalmente, e esta gera a compulsão. (Nossas outras lembranças atuam habitualmente apenas porque atuaram como experiências.) A ação retardada dessa espécie ocorre também em conexão com as lembranças de excitações das zonas sexuais abandonadas. O resultado, porém, é uma liberação não de libido, mas de desprazer, uma situação interna análoga à repugnância no caso de um objeto.
Dito em termos grosseiros, a lembrança atual cheira mal, assim como um objeto real cheira mal; e assim como afastamos nosso órgão sensorial (cabeça e nariz) com repugnância, também nossa pré-consciência e nosso sentido consciente se afastam da lembrança. Isto é o recalcamento.
O que, então, nos proporciona o recalcamento normal? Algo que, livre, pode levar à angústia, e, psiquicamente ligado, pode produzir rejeição - ou seja, a base afetiva para um sem-número de processos intelectuais de desenvolvimento, tais como a moralidade, a vergonha etc. Assim, tudo isso surge à custa da sexualidade (potencial) extinta. Disso podemos inferir que, com as ondas sucessivas do desenvolvimento de uma criança, esta é sobrecarregada de respeito, vergonha, essas coisas, e vemos como a não-ocorrência dessa extinção das zonas sexuais pode produzir a insanidade moral como uma inibição do desenvolvimento. Essas ondas sucessivas do desenvolvimento provavelmente possuem um ordenamento cronológico diferente nos sexos masculino e feminino. (A repugnância surge mais cedo nas meninas do que nos meninos.) Contudo, a principal diferença entre os sexos emerge na época da puberdade, quando as meninas são acometidas por uma repugnância sexual não-neurótica, e os meninos, pela libido. Pois, nesse período, extingue-se nas adolescentes (total ou parcialmente) mais uma zona sexual, que persiste nos adolescentes masculinos. Estou-me referindo à zona genital masculina, a região do clitóris, na qual, durante a infância, tanto nas meninas como nos meninos, mostra-se concentrada a sensibilidade sexual. Daí a torrente de vergonha que avassala a adolescente nesse período, até ser despertada a nova zona, a zona vaginal, seja espontaneamente, seja por ação reflexa. Daí também resultam, talvez, a anestesia nas mulheres, o papel desempenhado pela masturbação nas crianças predispostas à histeria e a interrupção, no caso de resultar a histeria.
E agora vejamos as neuroses. As experiências ocorridas na infância, quando afetam apenas os genitais, nunca produzem neurose nos homens (ou nas mulheres másculas), mas somente masturbação compulsiva e libido. Entretanto, de vez que, de modo geral, as experiências da infância também afetam as duas outras zonas sexuais, fica aberta, também para os homens, a possibilidade de que o despertar da libido através de uma ação retardada enseje o surgimento do recalque e da neurose. Quando a lembrança reaviva uma experiência correlacionada com os genitais, o que ela produz por ação retardada é a libido. Quando [reaviva uma experiência correlacionada com] o ânus, a boca etc., produz repugnância interna retardada, e o resultado final, por conseguinte, é que uma carga de libido não consegue, como em geral acontece, passar à ação ou à tradução em termos psíquicos [em [1]], mas é obrigada a deslocar-se numa direção regressiva (como acontece nos sonhos). Ao que parece, a libido e a repugnância estariam associativamente vinculadas. À libido devemos o fato de que a lembrança não consegue produzir um desprazer generalizado etc., mas encontra um uso psíquico; e à repugnância devemos o fato de que esse uso só produz sintomas, não produz idéias orientadas para um objetivo. Assim sendo, não deve ser difícil apreender o lado psicológico dessa questão; o fator orgânico existe nela, quer o abandono das zonas sexuais se efetue segundo o tipo masculino ou feminino de desenvolvimento, quer esse abandono absolutamente não ocorra.
É provável, portanto, que a escolha da neurose (a decisão quanto à emergência da histeria, da neurose obsessiva, ou da paranóia) dependa da natureza da onda de desenvolvimento (ou seja, de sua localização cronológica) que possibilita a ocorrência do recalcamento - isto é, que transforma uma fonte de prazer interno em uma fonte de repugnância interna.

Foi esse o ponto a que cheguei - com todas as obscuridades aí envolvidas. Decidi, pois, daqui por diante, considerar como fatores separados o que causa a libido e o que causa a angústia. E também abandonei a idéia de explicar a libido como o fator masculino e o recalcamento como o fator feminino. [Cf. em [1]] De qualquer modo, estas são decisões importantes. A obscuridade está principalmente na natureza da modificação pela qual a sensação interna de necessidade se transforma em sensação de repugnância. Não há por que eu chamar sua atenção para outros pontos obscuros. O valor principal da síntese está no fato de ela unir em um só o processo neurótico e o processo normal. Existe agora, portanto, uma necessidade premente de elucidar prontamente a angústia neurastênica comum.
Minha auto-análise ainda está interrompida, e compreendi qual a razão. Só consigo analisar-me com o auxílio do conhecimento adquirido objetivamente (como um observador externo). A verdadeira auto-análise é impossível; não fosse assim, não haveria nenhuma doença [neurótica]. Visto que ainda encontro alguns enigmas em meus pacientes, eles estão fadados a retardar também a mim em minha auto-análise.

CARTA 79

…Comecei a compreender que a masturbação é o grande hábito, o “vício primário”, e que é somente como sucedâneo e substituto dela que outros vícios - álcool, morfina, tabaco etc. - adquirem existência. O papel desempenhado por esse vício na histeria é imenso, e talvez aí se encontre, no todo ou em parte, o meu grande obstáculo, que ainda resiste. Naturalmente, nisto surge a dúvida de saber se um vício dessa espécie é curável, ou se a análise e a terapia, nesse ponto, sofreriam uma parada e deveriam contentar-se em transformar um caso de histeria em um caso de neurastenia.
No que concerne à neurose obsessiva, está confirmado o fato de que a localização em que o recalcado irrompe é a representação da palavra, e não o conceito vinculado à mesma. (Mais precisamente, a memória verbal.) Por isso é que as coisas mais díspares são prontamente unidas numa idéia obsessiva, sob uma única palavra possuidora de mais de um significado. A tendência à irrupção utiliza-se de uma palavra que tenha essa espécie de ambigüidade com seus di[versos significados] como se se estivessem matando diversas moscas com um só golpe. Veja, por exemplo, o caso que passo a expor. Uma moça, que estava freqüentando uma escola de corte e costura e estava perto da conclusão do seu curso, era atormentada por essa idéia obsessiva: “Não, você não deve ir embora, você ainda não terminou, você deve fazer [machen] mais, precisa aprender muito mais.” Por trás disso estava uma lembrança de cenas de infância em que ela era colocada no urinol, mas queria ir embora e era submetida à mesma compulsão: “Você não pode ir embora, ainda não terminou, precisa fazer [machen] mais. A palavra “machen” [que significa “fazer” possibilitou juntara situação posterior e a situação infantil. As idéias obsessivas, muitas vezes, revestem-se de uma extraordinária imprecisão verbal, a fim de permitir esse emprego múltiplo. Se examinarmos de modo mais atento (consciente) esse exemplo, encontraremos paralelamente a frase “você precisa aprender mais”, que, depois, tornou-se a idéia obsessiva fixa e surgiu através de uma interpretação equivocada desse tipo por parte do consciente.
Isso não é inteiramente arbitrário. A própria palavra “machen” passou por uma transformação análoga em seu significado. Uma antiga fantasia minha, que eu gostaria de recomendar à sua sagacidade lingüística, ocupa-se da derivação de nossos verbos de termos originalmente copro-eróticos como este.
Mal posso enumerar para você todas as coisas que eu (um Midas moderno) transformo em - excremento. Isso se ajusta perfeitamente à teoria do mau cheiro interno [em [1]]. Dinheiro, acima de tudo. Penso que a associação se faz através da palavra “sujo” como sinônimo de “avarento”. Do mesmo modo, tudo o que se relaciona com nascimento, aborto e menstruação remonta a privada, através da palavra “Abort” [“privada, latrina”] (“Abortus”) [“aborto”]. Isso está muito desconjuntado, mas é inteiramente análogo ao processo pelo qual as palavras assumem um significado transferido, tão logo aparecem novos conceitos que exigem designação…
Você viu alguma vez um jornal estrangeiro que tenha passado pela censura russa na fronteira? Palavras, orações e frases inteiras são obliteradas, de modo que o que resta se torna ininteligível. Uma censura russa desse tipo se efetua nas psicoses e produz os delírios aparentemente sem sentido.

CARTA 84

…Não foi uma façanha nada insignificante de sua parte ver o livro dos sonhos concluído diante de você. Ele sofreu uma interrupção novamente, e nesse meio tempo o problema foi aprofundado e ampliado. Parece-me que a teoria da realização de desejos trouxe apenas a solução psicológica, e não a biológica, ou melhor, a metafísica. (Aliás, vou perguntar-lhe com seriedade se posso usar o nome de metapsicologia para minha psicologia que vai além da consciência.) Biologicamente, parece-me que a vida onírica deriva inteiramente dos resíduos do período pré-histórico da vida (entre um e três anos de idade) - o mesmo período que é a fonte do inconsciente e que, sozinho, contém a etiologia de todas as psiconeuroses, o período caracterizado por uma amnésia análoga à amnésia histérica. Parece-me coerente a seguinte fórmula: O que é visto no período pré-histórico produz sonhos; o que é ouvido nesse mesmo período produz fantasias; o que é experimentado sexualmente, ainda no mesmo período, produz as psiconeuroses. A repetição daquilo que foi experimentado nesse período é, em si mesma, a realização de um desejo; um desejo recente só conduz a um sonho quando consegue estar em conexão com material proveniente desse período pré-histórico, quando o desejo recente é um derivado pré-histórico. Ainda resta examinar até que ponto serei capaz de ater-me a essa teoria extremada e até que ponto poderei expô-la no livro dos sonhos.


CARTA 97

…Comecei um caso novo, de modo que o estou abordando sem qualquer conclusão antecipada. De início, como é natural, tudo se ajusta maravilhosamente. Trata-se de um homem jovem, de vinte e cinco anos, que mal consegue caminhar por causa da rigidez das pernas, espasmos, tremores etc. Uma salvaguarda contra qualquer diagnóstico incorreto é proporcionada pela angústia concomitante, que o faz manter-se agarrado às saias da mãe como o bebê que se esconde atrás desse homem. A morte de seu irmão e a morte do pai, portador de uma psicose, precipitaram o início de seu estado, que esteve presente desde a idade de quatorze anos. Sente-se envergonhado diante de qualquer pessoa que o veja caminhando dessa maneira e considera isso natural. Seu modelo é um tio tabético, como qual já se identificava quando tinha treze anos, por causa da etiologia aceita (levar uma vida dissoluta). Aliás, ele tem compleição de um verdadeiro urso.
Por favor, observe que a vergonha está simplesmente apensa aos sintomas e deve relacionar-se com outros fatores desencadeantes. Espontaneamente, ele disse que o tio não se sentia nem um pouco envergonhado de seu modo de andar. A relação entre a vergonha e seu modo de caminhar foi uma relação racional há muitos anos, quando ele teve gonorréia, o que naturalmente era perceptível em seu andar, e também até mesmo alguns anos antes, quando as ereções constantes (sem objetivo) interferiam no seu andar. Além disso, a causa de sua vergonha era mais profunda. Contou-me ele que, no ano passado, quando estavam morando junto ao [rio] Wien (no campo), que de repente começou a subir, ele foi tomado de terrível medo de que a água pudesse chegar até dentro do seu quarto - ou seja, de que seu quarto fosse inundado durante a noite. Observe, por favor, a ambigüidade da expressão: eu sabia que ele sofrera de enurese quando criança. Cinco minutos depois, contou-me espontaneamente que, na época em que freqüentava o curso primário, ele ainda urinava na cama regularmente, que sua mãe o ameaçava de contar isso aos professores e aos outros meninos. Ele sentira uma angústia enorme. De modo que é aí que se situa sua vergonha. Toda a história de sua adolescência, por um lado, tem seu clímax nos sintomas da perna e, por outro, libera o afeto pertencente a essa fase; ambos, afeto esintomas, vinculam-se somente pela sua percepção interna. No espaço entre os dois insere-se toda a história perdida de sua infância.
Ora, uma criança que urinou regularmente na cama até os sete anos de idade (sem ser epiléptica ou algo parecido) deve ter tido experiências sexuais no início da infância. Espontâneas, ou por sedução? Esta é a situação que deve encerrar também os fatores causais mais precisos - relativos a suas pernas.

CARTA 101

…Em primeiro lugar: uma pequena parte de minha auto-análise progrediu e confirmou que as fantasias são produtos de períodos posteriores e são projetadas para o passado, desde o que era então o presente até épocas mais remotas da infância; o modo como isso ocorre também emergiu - mais uma vez, um vínculo verbal.
À pergunta: “O que aconteceu nos primórdios da infância?”, a resposta é “nada”. Mas o embrião de um impulso sexual estava lá. Seria fácil e maravilhoso contar-lhe como é a coisa; mas seria necessária uma meia dúzia de páginas para eu escrever tudo isso por extenso, e por isso vou guardá-lo para nosso encontro na Páscoa, com algumas outras informações a respeito de meus primeiros anos [de vida].
Além disso, encontrei um outro elemento psíquico que considero ter significado geral e ser uma fase preliminar dos sintomas, anterior, mesmo, à fantasia.
(4 de janeiro.) Ontem, fiquei cansado, e hoje, não consigo continuar escrevendo de acordo com o que pretendia, porque a coisa está crescendo. Há qualquer coisa aí. Está começando a despontar. Nos próximos dias, por certo haverá algum acréscimo. Então, quando a coisa ficar aclarada, eu lhe escreverei. Apenas lhe revelarei que o padrão onírico é passível da mais genérica aplicação, e que também compreendo por que, a despeito de todos os meus esforços, ainda não concluí o livro dos sonhos. Se eu esperar um pouco mais, conseguirei descrever o processo mental que ocorre nos sonhos, de tal maneira que ele também inclua o processo que ocorre na formação dos sintomas histéricos. Portanto, esperemos.

CARTA 102

…Algumas outras coisas de menor importância vieram à luz - por exemplo, que as dores de cabeça histéricas baseiam-se numa analogia, na fantasia, que iguala a parte superior com a extremidade inferior do corpo (cabelo em ambos os lugares - bochechas [Backen] e nádegas [Hinterbacken (literalmente, “bochechas de trás”)] - lábios [Lippen] e labia [Schamlippen (literalmente, “lábios da vergonha”)] - boca = vagina, de forma que um ataque de enxaqueca pode ser utilizado para representar um defloramento forçado, embora, ao mesmo tempo, toda a indisposição também represente uma situação de realização de desejo. A ação determinante da sexualidade torna-se sempre mais clara. Em uma paciente (em que determinei exatamente a fantasia) havia constantes estados de desespero, com uma convicção melancólica de que ela não valia nada, era incapaz de fazer qualquer coisa etc. Sempre pensei que, no início de sua infância, ela houvesse testemunhado um estado análogo, uma melancolia verdadeira, em sua mãe. Isso concordava com a teoria anterior, mas dois anos não trouxeram nenhuma confirmação. E agora se verificou que, quando ela era uma adolescente de quatorze anos, descobriu que tinha atresia hymenalis [hímen imperfurado] e ficou desesperada, imaginando que não serviria para esposa: melancolia - isto é, temor da impotência. Outros estados, em que não consegue decidir-se quanto à escolha de um chapéu ou um vestido, originam-se de sua luta na época em que teve de escolher um marido.
Com uma outra paciente, convenci-me de que realmente existe algo a que se pode chamar melancolia histérica e quais são suas manifestações. Também verifiquei como a mesma lembrança aparece nas mais diferentes versões; e ainda obtive um primeiro vislumbre da melancolia que ocorre por soma. Essa paciente, além disso, é totalmente anestésica, como deveriamesmo ser, de conformidade com uma idéia que data do período inicial do meu trabalho referente às neuroses [em [1]]
Sobre uma terceira mulher obtive essa informação interessantíssima. Um homem importante e rico (um diretor de banco), com cerca de sessenta anos de idade, veio ver-me e me entreteve descrevendo as características de uma jovem com quem tem uma liaison. Arrisquei um palpite de que ela seria provavelmente muito frígida. Pelo contrário, ela tem quatro a seis orgasmos durante um só coito. Mas…logo na primeira abordagem, ela é tomada de tremores e, imediatamente depois, cai num estado de sono patológico; enquanto se encontra nesse estado, fala como se estivesse em hipnose, executa sugestões pós-hipnóticas e tem completa amnésia quanto a todo esse estado. Ele está para se casar com ela, e ela certamente será frígida com o marido. Esse cavalheiro idoso, pela possibilidade de ser identificado como o pai imensamente poderoso da infância dela, surte evidentemente o efeito de poder liberar a libido dela, ligada às fantasias. Instrutivo.

CARTA 105

…Minha última generalização mostrou-se válida e parece que tende a crescer até uma dimensão imprevisível. Não só os sonhos são realizações de desejos: os ataques histéricos também o são. Isso se aplica aos sintomas histéricos, mas, provavelmente, também a todos os eventos neuróticos, pois constatei-o há muito tempo na insanidade delirante aguda. Realidade - realização de desejos. É desse par de opostos que brota nossa vida mental. Penso que agora sei o que é que determina a diferença entre os sonhos e os sintomas, que emergem na vida desperta. Para um sonho, é suficiente que ele seja a realização de desejo de um pensamento recalcado, pois os sonhos são mantidos longe da realidade. Mas um sintoma, que está inserido no meio da vida, precisa constituir algo mais, além disso: precisa ser também a realização de desejo do pensamento recalcador. O sintoma surge ali onde o pensamento recalcado e o pensamento recalcador conseguem juntar-se na realização do desejo. Um sintoma é a realização de desejo do pensamento recalcadorquando, por exemplo, o sintoma constitui uma punição, uma autopunição, a substituição final da autogratificação, da masturbação.
Essa chave abre muitas portas. Você sabe, por exemplo, porque X.Y. padece de vômitos histéricos? Porque, na fantasia, ela está grávida, porque ela é tão insaciável que não consegue tolerar o fato de não ter um bebê também de seu último amante em sua fantasia. Mas ela também tem de vomitar porque, nesse caso, passará a fome e ficará magra, perderá sua beleza e não mais será atraente para ninguém. Assim, o sentido do sintoma é um par contraditório de realizações de desejos. [1]
Você sabe por que nosso amigo E., que você conhece, enrubesce e começa a suar assim que vê alguém de uma determinada categoria de conhecidos, especialmente no teatro? Ele sente vergonha. Sem dúvida. Mas de quê? De uma fantasia na qual ele figura como o deflorador de toda pessoa que encontra. Ele transpira porque deflora: trabalho muito pesado o dele. Um eco desse significado encontra expressão nele, tal como o ressentimento de alguém que é derrotado, a cada vez que ele se sente envergonhado diante de uma mulher: “Ora, essa estúpida pensa que tenho vergonha dela. Se eu a tivesse numa cama, ela iria ver como não me sinto nada constrangido com ela!” E a ocasião em que canalizou seus desejos para essa fantasia deixou sua marca no complexo psíquico que produz o sintoma. Foi a aula de latim. O auditório do teatro lembra-lhe a sala de aula; ele sempre procura ocupar o mesmo assento de costume, na fila da frente. O entr’acte é o “recreio” dos tempos de escola e o “suar” significa o “operam dare” [trabalhar] daqueles tempos. Ele teve uma discussão com o professor a respeito dessa expressão. Ademais, não consegue esquecer o fato de que depois, na universidade, foi reprovado em botânica; e prossegue nisso, agora, como “deflorador”. É verdade que ele deve à sua infância a capacidade de lavar-se em suor - à época em que (tendo ele três anos) seu irmão despejou-lhe em cima água do banho e jogou espuma de sabão em seu rosto, quando ele estava no banho - um trauma, embora não trauma sexual. E por que é que em Interlaken, quando tinha quatorze anos, ele se masturbou numa atitude tão especial no W.C.? Foi só para conseguir dar uma espiada no Jungfrau [literalmente, “a virgem”]; e, a partir de então, nunca mais viu uma outra - pelo menos ad genitalia.Evitou isso intencionalmente, é claro; de outro modo, por que só teria casos amorosos com atrizes?

CARTA 125

…Há não muito tempo, tive o que pode ter sido um primeiro vislumbre de alguma coisa nova. Tenho diante de mim o problema da “escolha da neurose”. Quando é que uma pessoa se torna histérica em vez de paranóica? Uma primeira tentativa rudimentar, feita na época em que eu tentava, à força, tomar de assalto a cidadela, deu-me a impressão de que essa escolha dependia da idade em que ocorreram os traumas sexuais - da idade que a pessoa tinha na época da experiência. [Cf. em [1]] Abandonei há muito tempo esse ponto de vista, e fiquei sem meio de solucionar a questão até há poucos dias, quando comecei a compreender um elo da teoria da sexualidade.
A camada sexual mais inferior é o auto-erotismo, que age sem qualquer objetivo psicossexual e exige somente sensações locais de satisfação. Depois dele vem o aloerotismo (homo e heteroerotismo); mas ele certamente também continua a existir como uma corrente separada. A histeria (e sua variante, a neurose obsessiva) é aloerótica: sua via principal é a identificação; restabelece todas as figuras amadas da infância que foram abandonadas (cf. minha exposição sobre os sonhos de exibicionismo) e dissolve o próprio ego em figuras externas. Assim, cheguei a considerar a paranóia como uma irrupção da corrente auto-erótica, como um retorno à posição então prevalente. A perversão correspondente a ela seria o que se conhece como “loucura idiopática”. As relações especiais do auto-erotismo com o “ego” original projetariam viva luz sobre a natureza dessa neurose. Nesse ponto, o fio se interrompe.