Moisés e o monoteísmo, Esboço de psicanálise
e outros trabalhos
VOLUME XXXIII
(1937-1939)
Dr.
Sigmund Freud
MOISÉS E O MONOTEÍSMO TRÊS ENSAIOS (1939[1934-38])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DER
MANN MOSES UND DIE MONOTHEISTISCHE RELIGION:
DREI
ABHANDLUNGEN
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1939
Amsterdan, Verlag Allert de Lange, 241 págs.
1950
G.W., 16, 101-246.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
Moses and Monotheism
1939 Londres, Hogarth Press e Instituto
de Psicanálise, 223 págs. Nova Iorque, Knopf, viii + 218 págs. (Trad. de
Katherine Jones.)
A presente tradução é da autoria de James
Strachey.
Os dois primeiros dos três ensaios que
constituem esta obra apareceram originalmente em 1937, em Imago, 23 (1),
5-13 e (4), 387-419; traduções inglesas de ambos apareceram na Int. J.
Psycho-Anal., 19 (3) (1938), 291-8, e 20 (1) (1939), 1-32. A Seção C da
Parte II do terceiro ensaio foi lida em nome do autor por Anna Freud no
Congresso Psicanalítico Internacional de Paris, a 2 de agosto de 1938, e
posteriormente publicada em separata no Int. Z. Psychoanal. Imago 24
(1/2) (1939), 6-9, sob o título de ‘Der Fortschritt in der Geistigkeit’ (‘O
Avanço da Intelectualidade’). O primeiro ensaio e as três primeiras seções do
segundo foram incluídos no Almanach 1938, 9-43. Apenas pouquíssimas
modificações sem importância foram feitas nessas publicações primitivas, ao
serem incluídas na obra completa. Elas são apontadas na presente edição.
Foi aparentemente durante o verão de 1934 que
Freud completou seu primeiro rascunho deste livro, com o título: O Homem
Moisés, um Romance Histórico (Jones, 1957, 206). Numa longa carta a Arnold
Zweig, de 30 de setembro de 1934 (incluída em Freud, 1960a, Carta 276),
forneceu uma descrição do livro, bem como de suas razões para não publicá-lo.
Estas eram quase as mesmas que as que explica na primeira de suas notas
preambulares ao terceiro ensaio adiante ver em ([1]), a saber: por um lado,
dúvidas quanto a seu arrazoado ter sido suficientemente bem estabelecido, e,
por outro, temores das reações à sua publicação por parte da hierarquia
católico-romana que, na época, era dominante no governo austríaco. A partir da
descrição que então forneceu da própria obra, parece que ela é essencialmente a
mesma que agora possuímos; inclusive sua forma, em três seções independentes,
permaneceu inalterada. Não obstante, mudanças devem ter sido feitas, pois Freud
constantemente expressou sua insatisfação em relação a ela, particularmente com
o terceiro ensaio. Parece que houve uma nova redação geral durante o verão de
1936, embora o que nos é contado sobre o assunto esteja longe de ser claro
(Jones, 1957, 388). De todos os modos, o primeiro ensaio foi publicado no
início do ano seguinte (1937), e o segundo, em seu final. Mas o terceiro ensaio
foi ainda retido e só entregue finalmente à gráfica após a chegada de Freud à
Inglaterra, na primavera de 1938. O livro foi impresso no outono desse ano na
Holanda e a tradução inglesa publicada em março do ano seguinte.
O que talvez tenha probabilidade de
impressionar em primeiro lugar o leitor, a respeito de Moisés e o Monoteísmo,
é certa inortodoxia, ou mesmo excentricidade, em sua construção: três ensaios
de tamanho bastante diferente, dois prefácios, ambos situados no início do
terceiro ensaio, e um terceiro ensaio, e um terceiro prefácio localizado na
metade deste último, recapitulações e repetições constantes. Essas
irregularidades são desconhecidas nos outros trabalhos de Freud, ele próprio as
aponta e por elas se desculpa mais de uma vez. Explicação? Indubitavelmente as
circunstâncias da composição do livro: o longo período - quatro anos ou mais -
durante o qual foi constantemente revisado, e as agudas dificuldades externas
da fase final, com uma sucessão de distúrbios na Áustria que culminaram na
ocupação nazista de Viena e a migração forçada de Freud para a Inglaterra. Que
o resultado dessas influências deveria ser visto apenas no campo restrito e
temporário deste volume isolado é coisa conclusivamente provada pelo trabalho
que imediatamente o seguiu: o Esboço de Psicanálise, um dos mais concisos e bem
organizados textos de Freud.
Mas julgar que a Moisés e o Monoteísmo
falta algo na forma da apresentação não se destina a acarretar uma crítica do
interesse de seu conteúdo ou da força convincente de seus argumentos. Sua base
histórica é sem dúvida questão para o debate dos peritos, mas a engenhosidade
com que os desenvolvimentos psicológicos se ajustam às premissas, tem
probabilidade de persuadir o leitor que não se mostre predisposto. Particularmente
aqueles familiarizados com a psicanálise do indivíduo ficarão fascinados em ver
a mesma sucessão de desenvolvimentos apresentada na análise de um grupo
nacional. A totalidade da obra, naturalmente, deve ser encarada como
continuação dos primeiros estudos de Freud sobre as origens da organização
social humana em Totem e Tabu (1912-13) e Psicologia de Grupo
(1921c). Um exame bem elaborado e informativo do livro poderá ser encontrado no
Capítulo XIII do terceiro volume da biografia escrita por Ernest Jones (1957),
388-401.
NOTA SOBRE A TRANSCRIÇÃO DOS
NOMES PRÓPRIOS
A ocorrência, em Moisés e o Monoteísmo,
de grande número de nomes egípcios e hebraicos apresenta ao tradutor alguns
problemas especiais.
A escrita egípcia em geral não registra as
vogais, de modo que a pronúncia real dos nomes egípcios só pode ser adivinhada
através de um incerto processo de inferências. Diversas interpretações
convencionais, portanto, foram adotadas por várias autoridades. Examinando essa
questão, Gardiner (1927, Apêndice B), por exemplo, cita quatro versões
diferentes do nome do dono de uma tumba bem conhecida em Tebas: Tehutihetep,
Thuthotep, Thothotpou e Dhuthotpe. Outras tantas variantes podem ser
encontradas a partir do nome do ‘rei herético’ que figura tão proeminentemente
aqui, na argumentação de Freud. A escolha parece ser bastante governada pela
nacionalidade. Assim, no passado, os egiptólogos ingleses inclinavam-se por
Akhnaton, os alemães preferiam Echnaton, os americanos (Breasted) escolheram
Ikhnaton e o grande francês (Maspero) decidiu-se por Khouniatonou. Defrontado
por essas alternativas sedutoras, o presente tradutor recaiu na versão trivial
que por muitos anos tem sido adotada pelo Journal of Egyptian Archaelogy
e agora parece ser a que se está tornando mais geralmente aceita, pelo menos
nos países de fala inglesa: Akhenaten. Esta mesma autoridade foi geralmente
seguida na transcrição de todos os outros nomes egípcios.
Com referência aos nomes do Antigo Testamento,
a resposta foi mais simples, e empregaram-se as formas encontradas na Versão
Autorizada Inglesa. Deve-se acrescentar, contudo, que o nome imencionável da
Divindade recebeu aqui a transcrição normalmente encontrada nas obras dos
estudiosos ingleses: Yahweh(Javé ou Iavé).*
I - MOISÉS, UM EGÍPCIO
Privar um povo do homem de quem se orgulha como
o maior de seus filhos não é algo a ser alegre ou descuidadamente empreendido,
e muito menos por alguém que, ele próprio, é um deles. Mas não podemos permitir
que uma reflexão como esta nos induza a pôr de lado a verdade, em favor do que
se supõe serem interesses nacionais; além disso, pode-se esperar que o
esclarecimento de um conjunto de fatos nos traga um ganho em conhecimento.
O varão Moisés, que libertou o povo judeu, que
lhe deu suas leis e fundou sua religião, data de tempos tão remotos que não
podemos fugir a uma indagação preliminar quanto a saber se foi ele personagem
histórico ou criatura de lenda. Se viveu, foi no décimo terceiro - embora possa
ter sido no décimo quarto - século antes de Cristo. Não possuímos informações
sobre ele, exceto as oriundas dos livros sagrados dos judeus e de suas
tradições, tal como registradas por escrito. Embora à decisão sobre o assunto
falte certeza final, uma esmagadora maioria de historiadores pronunciou-se em
favor da opinião de que Moisés foi uma pessoa real e que o Êxodo do Egito a ele
associado realmente aconteceu. Argumenta-se que, se essa premissa não fosse
aceita, a história posterior do povo de Israel seria incompreensível. Na
verdade, a ciência hoje tornou-se em geral muito mais circunspecta, e trata as
tradições de modo muito mais indulgente do que nos primeiros dias da crítica
histórica.
A primeira coisa que atrai nossa atenção a
respeito da figura de Moisés é seu nome, que em hebraico é ‘Mosheh’. ‘Qual é a
sua origem’, podemos perguntar, ‘e o que significa?’ Como sabemos, a descrição
contida no segundo capítulo do Êxodo já fornece uma resposta. É-nos dito aí que
a princesa egípcia que salvou o menininho abandonado no Nilo deu-lhe esse nome,
fornecendo-se um razão etimológica: ‘porque das águas o tenho tirado’. Essa
explicação, contudo, é claramente inadequada. ‘A interpretação bíblica do nome
como “o que foi tirado das águas”’, argumenta um autor no Jüdisches Lexikon,
‘constitui etimologia popular, com a qual, de início, é impossível harmonizar a
forma ativa da palavra hebraica, pois “Mosheh” pode significar, no máximo,
apenas “o que tira fora”. Podemos apoiar essa rejeição por dois outros
argumentos: em primeiro lugar, é absurdo atribuir a uma princesa egípcia uma
derivação do nome a partir do hebraico, e, em segundo, as águas de onde a
criança foi tirada muito provavelmente não foram as do Nilo.
Por outro lado, há muito tempo foi expressa uma
suspeita, em muitas direções diferentes, de que o nome ‘Moisés’ deriva-se do
vocabulário egípcio. Em vez de enumerar todas as autoridades que argumentaram
nesse sentido, citarei a pertinente passagem de um livro comparativamente
recente, The Dawn of Conscience (1934), da autoria de J.H. Breasted,
autor cuja History of Egypt (1906) é considerada obra padrão: ‘É
importante notar que seu nome, Moisés, era egípcio. Ele é simplesmente a
palavra egípcia “mose”, que significa “criança”, e constitui uma abreviação da
forma mais completa de nomes tais como “Amon-mose’, significando
“Amon-uma-criança”, ou “Ptah-mose’, significando “Ptah-uma-criança”, sendo
essas próprias formas, semelhantemente, abreviações da forma completa
“Amon-(deu)-uma-criança” ou “Ptah-(deu)-uma-criança’. A abreviação “criança”
cedo tornou-se uma forma breve e conveniente para designar o complicado nome
completo, e o nome Mós ou Més (Mose), “criança”, não é incomum nos monumentos
egípcios. O pai de Moisés indubitavelmente prefixou ao nome do filho o de um
deus egípcio como Amon ou Ptah, e esse nome divino perdeu-se gradatnivamente no
uso corrente, até que o menino foi chamado “Mose”. (O s fial constitui um
acréscimo tirado da tradução grega do Antigo Testamento. Ele não se acha no
hebraico, que tem “Mosheh”)Repeti essa passagem palavra por palavra e de
maneira alguma estou disposto a partilhar da responsabilidade por seus
pormenores. Fico também bastante surpreso que Breasted tenha deixado de
mencionar precisamente os nomes teóforos que figuram na relação dos reis
egípcios, tais como Ahmose, Toth-mose e Ra-mose.
Ora, deveríamos esperar que uma das muitas
pessoas que reconheceram ser ‘Moisés’ um nome egípcio, houvesse também tirado a
conclusão, ou pelo menos considerado a possibilidade, de que a pessoa que
portava esse nome egípcio fosse ela própria egípcia. Em relação aos tempos
modernos, não hesitamos em tirar mais conclusões, embora atualmente as pessoas
tenham não um nome, mas dois - um nome de família e um nome pessoal - e embora
uma alteração de nome ou a adoção de um semelhante, em circunstâncias novas,
não estejam além das possibilidades. Assim, de modo algum ficamos surpresos por
vermos confirmado que o poeta Chamisso
era francês de nascimento, que Napoleão Bonaparte, por outro lado, era
de origem italiana, e que Benjamim Disraeli era na verdade um judeu italiano,
tal como esperaríamos de seu nome. Em relação a épocas antigas e primitivas,
pensar-se-ia que uma conclusão como essa, quanto à nacionalidade de uma pessoa
baseada em seu nome, pareceria muito mais fidedigna e, na verdade, inatacável.
Não obstante, até onde sei, nenhum historiador tirou essa conclusão no caso de
Moisés, nem mesmo aqueles que, mais uma vez como o próprio Brasted (1934, 354),
estão prontos a supor que ‘Moisés foi instruído em toda a ciência dos egípcios’.
O que os impediu de proceder assim não pode ser
ajuizado com certeza. Possivelmente, sua reverência pela tradição bíblica era
invencível. Possivelmente, a idéia de que o homem Moisés pudesse ter sido outra
coisa que não um hebreu pareceu monstruosa demais. Como quer que seja, surge
que o reconhecimento de o nome de Moisés ser egípcio não foi considerado como
fornecendo prova decisiva de sua origem, e que nenhuma outra conclusão foi
disso tirada. Se a questão da nacionalidade desse grande homem é encarada como
algo importante, pareceria desejável apresentar novos materiais que auxiliassem
no sentido de sua resposta.
É a isso que meu breve artigo visa. Sua
reivindicação a receber lugar nas páginas de Imago repousa no fato de
que a substância do que ele tem a contribuir constitui uma aplicação da
psicanálise. A demonstração a que dessa maneira se chegou sem dúvida
impressionará apenas aquela minoria de leitores que se acha familiarizada com o
pensamento analítico e está capacitada a apreciar suas descobertas. A essa
minoria, contudo, espero eu, ela parecerá significativa.
Em 1909, Otto Rank, que, nessa época, ainda
estava sob minha influência, publicou, seguindo sugestão minha, um livro com o
título de Der Mythus von der Geburt des Helden. Ele trata do fato de que
‘quase todas as nações civilizadas proeminentes começaram, em fase precoce, a
glorificar seus heróis, príncipes e reis legendários, fundadores de religiões,
dinastias, impérios ou cidades, em suma, seus heróis nacionais, numa série de
contos e lendas poéticas. A história do nascimento e da vida primitiva dessas
personalidades veio a ser especialmente recoberta de características
fantásticas, as quais, em povos diferentes, ainda que amplamente separados pelo
espaço e totalmente independentes uns dos outros, apresentam uma semelhança
desconcertante, e em parte, na verdade, uma conformidade literal. Não poucos
investigadores se impressionaram com esse fato, de há muito reconhecido.’ [P.
1.] Se, acompanhando Rank, construirmos (por uma técnica um pouco semelhante à
de Galton) uma ‘lenda média’ que coloque em realce as características
essenciais de todas essas histórias, chegaremos ao quadro seguinte:
‘O herói é filho de pais muito aristocráticos;
geralmente, filho de um rei.
‘Sua
concepção é precedida por dificuldades, tal como a abstinência ou a
esterilidade prolongada, ou seus pais têm de ter relações em segredo, por causa
de proibições ou obstáculos externos. Durante a gravidez, ou mesmo antes, há
uma profecia (sob a forma de sonho ou oráculo) que alerta contra seu
nascimento, que geralmente ameaça perigo para o pai.
‘Como resultado disso, a criança recém-nascida
é condenada à morte ou ao abandono, geralmente por ordem do pai ou de alguém
que o representa; via de regra é abandonada às águas, num cesto.
‘Posteriormente ele é salvo por animais ou por
gente humilde (tais como pastores) e amamentado por uma fêmea de animal
ou por uma mulher humilde.‘Após ter crescido, redescobre seus pais
aristocráticos depois de experiências altamente variadas, vinga-se do pai,
por um lado, é reconhecido, por outro, e alcança grandeza e fama.’Ver em
[[1]].A mais antiga das figuras históricas a quem esse mito de nascimento está
ligado é Sargão de Agade, fundador de Babilônia (por volta de 2800 a.C.) Para
nós, em particular, não deixará de ter interesse citar a descrição desse mito,
atribuída a ele próprio:
‘Sargão, o poderoso Rei, o Rei de Agade, sou
eu. Minha mãe era uma vestal, a meu pai não conheci, ao passo que o
irmão de meu pai morava nas montanhas. Em minha cidade, Azupirani, que fica à
margem do Eufrates, minha mãe, a vestal, concebeu-me. Em segredo ela me
teve. Depositou-me num caixote feito de caniços, tampou a abertura com
piche, e abandonou-me ao rio, que não me afogou. O rio me conduziu até Akki, o
tirador de água. Akki, o tirador de água, na bondade de seu coração, tirou-me
para fora. Akki, o tirador de água,
criou-me como seu próprio filho. Akki, o tirador de água, fez-me seu
jardineiro. Enquanto eu trabalhava como jardineiro, [a deusa] Istar ficou
gostando de mim; tornei-me Rei e, por quarenta e cinco anos, governei
regiamente.’Ver em [[1]]
Os nomes que nos são mais familiares na série
que começa com Sargão de Agade são Moisés, Ciro e Rômulo. Mas, além destes,
Rank reuniu grande número de outras figuras heróicas da poesia ou da lenda, de
quem se conta a mesma história a respeito de sua juventude, quer em sua
totalidade quer em fragmentos facilmente reconhecíveis, incluindo Édipo, Karna,
Páris, Telefos, Perseu, Héracles, Gilgamesh, Anfion e Zetos, e outros.
As pesquisas de Rank familiarizaram-nos com a
fonte e o propósito desse mito. Só preciso referir-me a elas por algumas breves
indicações. O herói é alguém que teve a coragem de rebelar-se contra o pai e,
ao final, sobrepujou-o vitoriosamente. Nosso mito faz essa luta remontar até a
pré-história do indivíduo, já que o representa como nascendo contra a vontade
do pai e salvo apesar das más intenções paternas. O abandono num cesto é uma
representação simbólica inequívoca do nascimento: cesto é o útero, e a água, o
líquido amniótico. O relacionamento genitor-criança é representado, em
incontáveis sonhos, por tirar para fora das águas ou delas salvar. Quando a
imaginação de um povo liga o mito de nascimento que estamos examinando a uma
figura fora do comum, está pretendendo, dessa maneira, reconhecê-la como herói
e anunciar que ela correspondeu ao modelo regular de uma vida de herói. Na
verdade, contudo, a fonte de toda ficção poética é aquilo que é conhecido como
o ‘romance familiar’ de uma criança, no qual o filho reage a uma modificação em
sua relação emocional com os genitores e, em especial, com o pai. Os primeiros
anos de uma criança são dominados por uma enorme supervalorização do pai; em
consonância com isso, rei e rainha nos sonhos e nos contos de fadas invariavelmente
representam os genitores. Mais tarde, sob a influência da rivalidade e do
desapontamento na vida real, a criança começa a desligar-se deles e a adotar
uma atitude crítica para com o pai. Assim, ambas as famílias do mito - a
aristocrática e a humilde - são reflexos da própria família da criança, tal
como lhe apareceram em períodos sucessivos de sua vida.
Podemos dizer com justiça que essas explicações
tornam plenamente inteligível a natureza difundida e uniforme dos mitos de
nascimento de heróis. Por essa razão, é algo ainda mais merecedor de interesse
que a lenda do nascimento e abandono de Moisés ocupe uma posição especial e
que, na verdade, sob um aspecto essencial, contradiga o restante.
Comecemos com as duas famílias entre as quais,
segundo a lenda, o destino da criança é lançado. Segundo a interpretação
analítica, como sabemos, as famílias são uma só e a mesma, apenas
cronologicamente diferenciadas. Na forma típica da lenda, a primeira família,
aquela em que a criança nasceu, é a aristocrática, freqüentemente de categoria
real; a segunda família, aquela em que a criança cresceu, é humilde ou passa
por maus dias. Isso concorda, ademais, com as circunstâncias [do ‘romance
familiar’] a que a interpretação faz a lenda remontar. Apenas na lenda de Édipo
essa diferença se torna indistinta: a criança que foi exposta por uma família
real é recebida por outro casal real. Sente-se que dificilmente pode ser acaso
que exatamente nesse exemplo de identidade original das duas famílias possa ser
vagamente percebida na própria lenda. O contraste social entre duas famílias
proporciona ao mito - que, como sabemos, se destina a acentuar a natureza
heróica de um grande homem - uma segunda função, que adquire significação
especial quando ele é aplicado a personagens históricas, uma vez que o mito
também pode ser utilizado para criar uma patente de nobreza para o herói, para
elevar a sua posição social. Para os medos, Ciro foi um conquistador
estrangeiro, mas, mediante uma lenda de abandono, tornou-se neto de seu rei. A
mesma coisa se aplica a Rômulo. Se tal pessoa existiu, deve ter sido um
aventureiro de origem desconhecida, um adventício; a lenda, contudo, fê-lo
descendente e herdeiro da casa real de Alba Longa.
Com Moisés, as coisas foram inteiramente
diferentes. Em seu caso, a primeira família; em outros casos, a aristocrática,
foi suficientemente modesta. Ele era filho de levitas judeus. Contudo, o lugar
da segunda família, em outros casos a humilde, foi tomado pela casa real do
Egito; a princesa o criou como se fosse seu próprio filho. Esse afastamento do
tipo intrigou a muitas pessoas. Eduard Meyer, e outros que o seguiram,
presumiram que, originalmente, a lenda foi diferente. O faraó, segundo eles,
fora advertido por um sonho profético de que um filho nascido de sua filha
traria perigo para ele e para seu reino. Dessa maneira, fez com que a criança
fosse abandonada no Nilo, depois do nascimento, mas ela foi salva por judeus e
criada como filho deles. Por ‘motivos nacionalistas’ (como diz Rank), a lenda
teria então recebido a forma modificada segundo a qual a conhecemos.
Basta a reflexão de um momento, porém, para
dizer-nos que uma lenda original de Moisés como essa, uma lenda que não mais se
desvie das outras, não pode ter existido, pois seria de origem egípcia ou
judaica. A primeira alternativa está afastada: os egípcios não tinham motivo
para glorificar Moisés, visto este não ser um herói para eles. Temos de supor,
então, que a lenda foi criada entre os judeus, o que equivale a dizer que foi
ligada, em sua forma familiar [isto é, na forma típica de uma lenda de
nascimento], à figura de seu líder. Mas ela era totalmente inapropriada para
esse fim, pois que utilidade poderia ter para um povo uma lenda que
transformava seu grande homem em estrangeiro?
A lenda de Moisés, sob a forma em que hoje a
possuímos, deixa de alcançar, de modo notável, sua intenção secreta. Se o
nascimento de Moisés não era real, a lenda não poderia cunhá-lo como herói; se
o deixava como uma criança judia, nada teria feito para elevar sua posição
social. Apenas um pequeno fragmento de todo o mito permanece eficaz: a certeza
de que a criança sobreviveu perante poderosas forças externas. (Essa
característica reaparece na história da infância de Jesus, na qual o rei
Herodes assume o papel do faraó.) Assim, na verdade, estamos livres para
presumir que algum posterior e canhestro adaptador do material da lenda teve
oportunidade para introduzir na história de seu herói, Moisés, algo que se
assemelhava às clássicas lendas de abandono que assinalam um herói, mas que,
devido às circunstâncias especiais do caso, não era aplicável a Moisés.
Nossas investigações poderiam ter sido
obrigadas a contentar-se com esse inconclusivo e, ademais, incerto resultado, e
poderiam nada ter feito no sentido de responder a questão de saber se Moisés
era egípcio. Há, contudo, outra linha de abordagem, talvez mais esperançosa,
para a avaliação da lenda de abandono.
Retornemos às duas famílias do mito. No nível
da interpretação analítica, elas são, como sabemos, idênticas, ao passo que no
nível do mito são diferenciadas em uma família aristocrática e em outra
humilde. Onde, porém, a figura a quem o mito é ligado é histórica, existe um
terceiro nível: o da realidade. Uma das famílias é a real, na qual a pessoa em
apreço (o grande homem) nasceu e cresceu realmente; a outra é fictícia,
fabricada pelo mito, na perseguição de suas próprias intenções. Via de regra, a
família humilde é a real, e a aristocrática, a fabricada. A situação, no caso
de Moisés, pareceu um tanto diferente. E aqui a nova linha de abordagem talvez
conduza a um esclarecimento: em todos os casos em que foi possível verificá-la,
a primeira família, aquela por quem a criança foi exposta, era a inventada, e a
segunda, na qual ela foi recebida e cresceu, a real. Se tivermos a coragem de
reconhecer essa asserção como universalmente verídica e como aplicável também à
lenda de Moisés, então, imediatamente, veremos as coisas de modo claro: Moisés
era um egípcio - provavelmente um aristocrata - sobre quem a lenda foi
inventada para transformá-lo num judeu. E esta seria a nossa conclusão. O
abandono às águas estava em seu lugar correto na história, mas, a fim de
ajustar-se à nova intenção, seu objetivo teve de ser um tanto violentamente
deformado. De maneira de sacrificar a criança, transformou-se em meio de
salvá-la.
O desvio da lenda de Moisés em relação a todas
as outras de sua espécie pode ser remontado a uma característica especial de
sua história. Ao passo que normalmente um herói, no correr de sua vida, se
eleva acima de seu começo humilde, a vida heróica do homem Moisés começou com
ele descendo de sua posição elevada e baixando ao nível dos Filhos de Israel.
Começamos essa breve investigação na
expectativa de dela derivar um novo argumento em apoio da suspeita de que
Moisés era egípcio. Vimos que o primeiro argumento, baseado em seu nome, levou
muitas pessoas a falharem em produzir convicção. Devemos estar preparados para
descobrir que esse novo argumento, baseado numa análise da lenda do abandono,
pode não ter melhor sucesso. Sem dúvida, objetar-se-á que as circunstâncias de
construção e transformação das lendas são, afinal de contas, obscuras demais
para justificar uma conclusão como a nossa, e que as tradições que rodeiam a figura
heróica de Moisés - com toda sua confusão e contradições, e seus inequívocos
sinais de séculos de revisões e superposições contínuas e tendenciosas - estão
fadadas a baldar todo esforço de trazer à luz o núcleo de verdade histórica que
jaz por trás delas. Não partilho dessa atitude discordante, mas tampouco me
acho em posição de refutá-la.
Se certeza maior do que essa não podia ser
alcançada, por que, poder-se-á perguntar, trouxe eu essa investigação a
público? Lamento dizer que mesmo minha justificação para fazê-lo não pode ir
além de sugestões, pois, se permitirmos ser levados pelos dois argumentos que
apresentei aqui, e se nos dispusermos a tomar a sério a hipótese de que Moisés
era um egípcio aristocrata, perspectivas muito interessantes e de grande alcance
se abrirão. Com o auxílio de algumas suposições não muito remotas, poderemos,
acredito, compreender os motivos que levaram Moisés ao passo fora do comum que
deu, e, intimamente relacionado a isso, poderemos conseguir um domínio da
possível base de uma série de características e peculiaridades das leis e da
religião que ele forneceu ao povo judeu, e, ainda, seremos levados a
importantes considerações relativas à origem das religiões monoteístas em
geral. Tais conclusões ponderáveis não podem, contudo, fundar-se apenas em
probabilidades psicológicas. Mesmo que aceitemos o fato de que Moisés era
egípcio como primeira base histórica, precisaremos dispor pelo menos de um
segundo fato firme, a fim de defender a riqueza de possibilidades emergentes
contra a crítica de que elas não passam de um produto da imaginação e são
afastadas demais da realidade. Provas objetivas do período ao qual a vida de
Moisés e, com ela, o Êxodo do Egito devem ser referidos, teriam atendido,
talvez, a esse requisito. Mas elas não foram obtidas; portanto, será melhor
deixar sem menção quaisquer outras implicações da descoberta de que Moisés era
egípcio.
II - SE MOISÉS FOSSE EGÍPCIO…
Numa contribuição anterior a esse periódico,
tentei trazer à baila um novo argumento em apoio à hipótese de que o homem
Moisés, o libertador e legislador do povo judaico, não era judeu, mas egípcio.
Há muito tempo observou-se que seu nome derivava do vocabulário egípcio, embora
o fato não tenha sido devidamente apreciado. O que acrescentei foi que a interpretação
do mito do abandono vinculado a Moisés conduzia necessariamente à inferência de
que ele fora um egípcio a quem as necessidades de um povo procuraram
transformar em judeu. Observei, no final de meu artigo, que implicações
importantes e de grande alcance decorriam da hipótese de Moisés ser egípcio,
mas que não estava preparado para argüir publicamente em favor dessas
implicações, já que elas se baseavam apenas em probabilidades psicológicas e
lhes faltava qualquer prova objetiva. Quanto maior for a importância das
opiniões a que se chega dessa maneira, mais fortemente se sente a necessidade
de eximir-se de expô-las sem base segura contra os ataques críticos do mundo
que nos cerca - como uma estátua de bronze com os pés de barro. Sequer a
probabilidade mais tentadora constitui proteção contra o erro; mesmo que todas
as partes de um problema pareçam ajustar-se como peças de um quebra-cabeça, há
que refletir que aquilo que é provável não é necessariamente a verdade, e que a
verdade nem sempre é provável. E, por fim, não parece atraente alguém
encontrar-se classificado com os eruditos e talmudistas que se deliciam em
exibir sua engenhosidade, sem considerar quão afastada da realidade sua tese
pode estar.
Apesar dessas hesitações, que para mim pesam
hoje tanto quanto antes, o resultado de meus motivos conflitantes é a decisão
de produzir a presente seqüência à minha primeira comunicação. Mas, ainda uma
vez, esta não é toda a história, nem tampouco a parte mais importante dela.
(1)
Se, então, Moisés foi egípcio, nosso primeiro
proveito dessa hipótese é um novo enigma, um enigma difícil de decifrar. Se um
povo ou uma tribo se dispõe a um grande empreendimento, é de esperar que um de
seus membros assuma o lugar de líder ou seja escolhido para esse posto. Mas não
é fácil imaginar o que poderia ter induzido um egípcio aristocrata - um
príncipe, talvez, ou então um sacerdote ou alto funcionário - a colocar-se à
testa de uma multidão de estrangeiros imigrantes, num nível atrasado de
civilização, e abandonar seu país com eles. O bem conhecido desprezo que os
egípcios sentiam pelos estrangeiros torna particularmente improvável tal
procedimento. Na verdade, eu bem poderia acreditar que foi precisamente por
isso que mesmo naqueles historiadores que reconheceram ser egípcio o nome do
homem, e que lhe atribuíram toda a sabedoria dos egípcios, ver em [[1]], não se
dispuseram a aceitar a possibilidade óbvia de que Moisés era egípcio.
Essa primeira dificuldade é seguida de imediato
por outra. Não devemos esquecer que Moisés foi não apenas o líder político dos
judeus estabelecidos no Egito, mas também seu legislador e educador,
forçando-os a se porem a serviço de uma nova religião, que até o dia de hoje é
conhecida, por sua causa, como a religião mosaica. Mas, é tão fácil a um homem
isolado criar uma nova religião? E se alguém quisesse influenciar a religião de
outra pessoa, mais naturalmente não a converteria ele à sua própria? Decerto,
de uma forma ou de outra, não faltava ao povo judeu no Egito uma religião, e se
Moisés, que lhes forneceu uma nova, era egípcio, não se pode colocar de lado a
suposição de que essa outra nova religião era a egípcia.
Há algo que se coloca no caminho dessa
possibilidade: o fato de haver o mais violento contraste entre a religião
judaica atribuída a Moisés e a religião do Egito. A primeira é um monoteísmo
rígido em grande escala: há apenas um só Deus, ele é o único Deus, onipotente,
inaproximável; seu aspecto é mais do que os olhos humanos podem tolerar,
nenhuma imagem dele deve ser feita, mesmo seu nome não pode ser pronunciado. Na
religião egípcia, há uma quantidade quase inumerável de divindades de dignidade
e origem variáveis: algumas personificações de grandes forças naturais como o
Céu e a Terra, o Sol e a Lua, uma abstração ocasional como Ma’at (Verdade ou
Justiça), ou uma caricatura como Bes, semelhante a um anão. A maioria delas,
porém, são deuses locais, a datar do período em que o país estava dividido em
numerosas províncias, deuses com a forma de animais, como se ainda não tivessem
completado sua evolução a partir dos antigos animais totêmicos, sem distinções
nítidas entre eles, mas diferindo nas funções que lhes eram atribuídas. Os
hinos em honra desses deuses dizem quase as mesmas coisas sobre todos eles e os
identificam decididamente uns com os outros, de maneira desesperadoramente
confusa para nós. Os nomes dos deuses são combinados mutuamente, de modo que um
deles pode ser quase reduzido a um epíteto do outro. Assim, no apogeu do ‘Novo
Reinado’, o principal deus da cidade de Tebas foi chamado de Amen Re’, a
primeira parte desse composto representa o deus de cabeça de carneiro da
cidade, ao passo que Re’ é o nome do deus solar de cabeça de falcão de On
[Heliópolis]. Atos, encantamentos e amuletos mágicos e cerimoniais dominavam o
serviço desses deuses, assim como governavam a vida cotidiana dos egípcios.
Algumas dessas diferenças podem facilmente
derivar-se do contraste fundamental existente entre um monoteísmo estrito e um
politeísmo irrestrito. Outras são evidentemente resultado de uma diferença em
nível espiritual e intelectual, já que uma dessas religiões estava muito
próxima de fases primitivas [de desenvolvimento], ao passo que a outra se
elevou a alturas de abstração sublime. Pode ser devido a esses dois fatores
que, ocasionalmente, se tem a impressão de que o contraste entre as religiões
mosaica e egípcia é deliberado e foi intencionalmente intensificado, tal como
quando, por exemplo, uma delas condena a magia e a feitiçaria nos termos mais
severos, enquanto na outra elas proliferam abundantemente, ou quando o
insaciável apetite dos egípcios por corporificar seus deuses em argila, pedra e
metal (a que nossos museus tanto devem hoje), se confronta com a dura proibição
de fazer imagens de qualquer criatura viva ou imaginada.
Mas ainda existe outro contraste entre as duas
religiões que não é atendido pelas explicações que tentamos. Nenhum outro povo
da Antiguidade fez tanto [como os egípcios] para negar a morte, ou se deu a
tais trabalhos para tornar possível a existência no próximo mundo. Por
conseguinte, Osíris, o deus dos mortos, o soberano desse outro mundo, era o
mais popular e indiscutido de todos os deuses do Egito. Por outro lado, a
antiga religião judaica renunciou inteiramente à imortalidade; a possibilidade
de a existência continuar após a morte em parte alguma jamais é mencionada. E
isso ainda é mais notável por experiências posteriores terem demonstrado que a
crença num após-vida é perfeitamente compatível com uma religião monoteísta.
Era nossa esperança que a possibilidade de Moisés
ser egípcio se mostrasse frutífera e esclarecedora em diversas direções, mas a
primeira conclusão que tiramos dessa hipótese - que a nova religião que ele deu
aos judeus era a sua, egípcia - foi invalidada por nossa compreensão do caráter
diferente e, em verdade, contraditório das duas religiões.
(2)
Outra possibilidade nos é aberta por um
acontecimento marcante na história da religião egípcia, um acontecimento que só
ultimamente foi reconhecido e apreciado. Continua sendo possível que a religião
que Moisés deu a seu povo judeu era, mesmo assim, a sua própria, que era uma
religião egípcia, embora não a religião egípcia.
Na gloriosa XVIII Dinastia, sob a qual o Egito
se tornou uma potência mundial, um jovem faraó subiu ao trono, por volta de
1375 a.C. Inicialmente ele foi chamado, tal como seu pai, Amenófis (IV); mais
tarde, porém, mudou seu nome, e não apenas seu nome. Esse rei dispôs-se a impor
uma religião a seus súditos egípcios, uma religião que ia de encontro às suas
tradições de milênios e a todos os hábitos familiares de suas vidas. Ela era um
monoteísmo escrito, a primeira tentativa dessa espécie, até onde sabemos, na
história do mundo, e, juntamente com a crença num deus único, nasceu
inevitavelmente a intolerância, que anteriormente fora alheia ao mundo antigo e
que por tão longo tempo permaneceu depois dele. O reino de Amenófis, contudo,
durou apenas 17 anos. Logo após sua morte, em 1358 a.C., a nova religião foi
varrida e proscrita a memória do rei herético. O pouco que sabemos dele deriva-se
das ruínas da nova capital real que construiu e dedicou a seu deus, e das
inscrições nas tumbas de pedra adjacentes a ela. Tudo o que pudemos aprender
sobre essa personalidade marcante e, na verdade, única, será merecedor do mais
elevado interesse.
Toda novidade deve ter suas preliminares e
pré-condições em algo anterior. As origens do monoteísmo egípcio podem ser um
pouco remontadas com alguma certeza. Durante um tempo considerável, entre os
sacerdotes do templo do Sol em On (Heliópolis), tinham-se manifestado
tendências no sentido de desenvolver a idéia de um deus universal e de dar
ênfase ao lado ético de sua natureza. Ma’at, a deusa da Verdade, da Ordem e da
Justiça, era filha do deus-Sol Re’. Durante o reinado de Amenófis III, pai e
predecessor do reformador, a adoração do deus-Sol já tinha ganho novo ímpeto,
provavelmente em oposição a Aman de Tebas, que se tornara poderoso demais. Um
nome muito antigo do deus-Sol, Aten ou Atum, foi trazido a nova proeminência, e
o jovem rei encontrou nessa religião de Aten um movimento já pronto, que não
teve de ser o primeiro a inspirar, mas de que podia tornar-se um aderente.
Por esse tempo, as condições políticas do Egito
haviam começado a exercer influência duradoura na religião egípcia. Como
resultado das façanhas militares do grande conquistador, Tutmósis III, o Egito
havia-se tornado uma potência mundial; o império incluía agora a Núbia, ao sul,
a Palestina, a Síria e uma parte da Mesopotâmia, ao norte. Esse imperialismo
refletiu-se na religião como universalismo e monoteísmo. Visto as
responsabilidades do faraó abrangerem agora não apenas o Egito, mas ainda a
Núbia e a Síria, também a divindade foi obrigada a abandonar sua limitação
nacional e, tal como o faraó era o único e irrestrito soberano do mundo conhecido
dos egípcios, isso também teve de aplicar-se à nova deidade destes. Além disso,
com a ampliação das fronteiras do império, era natural que o Egito se tornasse
mais acessível a influências estrangeiras; algumas das princesas reais eram
princesas asiáticas, e é possível que incentivos diretos ao monoteísmo tenham
inclusive aberto caminho desde a Síria.
Amenófis nunca negou sua adesão ao culto solar
de On. Nos dois hinos a Aten que sobreviveram nas tumbas de pedra, e que foram
provavelmente compostos por ele próprio, louva o Sol como criador e preservador
de todas as coisas vivas, tanto dentro quanto fora do Egito, com um ardor que
não se repete senão muitos séculos depois, nos Salmos em honra do deus judeu
Javé. Ele, porém, não se contentou com essa espantosa previsão da descoberta
científica do efeito da radiação solar. Não há dúvida de que ele foi um passo
além, de que não adorou o Sol como um objeto material, mas como símbolo de um
ser divino cuja energia manifestava em seus raios.
Entretanto, não estaríamos fazendo justiça ao
rei se o encarássemos simplesmente como um aderente ou fomentador de uma
religião de Aten já em existência antes de sua época. Sua atividade foi uma
intervenção muito mais enérgica. Ele introduziu algo de novo, que, pela
primeira vez, converteu a doutrina de um deus universal em monoteísmo: o fator
da exclusividade. Em um de seus hinos, ele declara expressamente: ‘Ó tu, único
Deus, ao lado de quem nenhum outro existe!’, E não devemos esquecer que, ao
avaliar uma nova doutrina, não é suficiente o conhecimento de seu conteúdo positivo;
seu lado negativo é quase igualmente importante, ou seja, o conhecimento
daquilo que ela rejeita. Também seria um equívoco supor que a nova religião foi
completada de um só golpe e surgiu em vida completamente armada, tal como Atena
da cabeça de Zeus. Tudo sugere antes que, no correr do reinado de Amenófis, ela
tenha crescido pouco a pouco no sentido de uma clareza, congruência, dureza e
intolerância cada vez maiores. É provável que esse desenvolvimento se tenha
realizado sob a influência da violenta oposição à reforma do rei, surgida entre
os sacerdotes de Amun. No sexto ano do reinado de Amenófis, esse antagonismo
havia atingido um ponto tal, que o rei mudou seu nome, do qual o nome proscrito
do deus Amun fazia parte. Em vez de ‘Amenófis’, denominou-se então
‘Akhenaten’., Mas não foi apenas do próprio nome que ele expungiu o do
detestado deus: apagou-o também de todas as inscrições, inclusive onde aparecia
no nome de seu pai, Amenófis III. Pouco depois de alterar seu nome, Akhenaten
abandonou a cidade de Tebas, dominada por Amun, e construiu para si uma nova
capital real rio abaixo, à qual deu o nome de Akhenaten (o horizonte de Aten).
Seu sítio em ruínas é hoje conhecido como Tell el-’Amarna.,
A perseguição por parte do rei incidiu mais
duramente sobre Amun, mas não só sobre ele. Por todo o reino, foram fechados
templos, proibido o serviço divino, confiscadas as propriedades dos templos. Na
verdade, o zelo do rei chegou ao ponto de fazer examinar os monumentos antigos,
a fim de que a palavra ‘deus’ fosse nele obliterada,quando ocorresse no
plural., Não é de espantar que essas medidas tomadas por Akhenaten provocassem
um estado de ânimo de vingança fanática entre a classe sacerdotal suprimida e o
povo comum insatisfeito, estado que pôde encontrar expressão livre após a morte
do rei. A religião de Aten não se tornara popular; provavelmente permanecera
restrita a um círculo estreito em torno da pessoa do rei. O fim de Akhenaten
permanece envolto em obscuridade. Sabemos de alguns vagos sucessores, de vida
efêmera, de sua própria família. Já seu genro, Tut’ankhaten, foi obrigado a
regressar a Tebas e a substituir, em seu nome, o nome do deus Aten pelo de
Amun.* Seguiu-se um período de anarquia até que, em 1350 a.C., um general,
Haremhab, obteve êxito em restaurar a ordem. A gloriosa XVIII Dinastia estava
no fim e, simultaneamente, suas conquistas na Núbia e na Ásia foram perdidas.
Durante esse sombrio interregno, as antigas religiões do Egito foram
restabelecidas. A religião de Aten foi abolida. A cidade real de Akhenaten foi
destruída e saqueada, e a memória dele proscrita como a de um criminoso.É com
um intuito particular que enfatizaremos agora certos pontos entre as
características negativas da religião de Aten. Em primeiro lugar, tudo
relacionado com mitos, magia e feitiçaria é excluído dela., A seguir, a maneira
pela qual se representava o deus-Sol não era mais, como no passado, através de
uma pequena pirâmide e um falcão,, mas - e isso parece quase prosaico - por um
disco redondo com raios a partir dele, raios que terminam em mãos humanas. A
despeito de toda a exuberante arte do período Amarna, nenhuma outra
representação do deus-Sol - nenhuma imagem pessoal de Aten - foi encontrada, e
pode-se confiantemente dizer que nenhuma o será., Por fim, houve completo
silêncio sobre o deus dos mortos, Osíris, e o reino dos mortos. Nem os hinos
nem as inscrições tumulares tomam qualquer conhecimento do que talvez estivesse
mais perto dos corações dos egípcios. O contraste com a religião popular não
pode ser mais claramente demonstrado.
(3)
ostaria agora de arriscar esta conclusão: se
Moisés era egípcio e se comunicou sua própria religião aos judeus, ela deve ter
sido a de Akhenaten, a religião de Aten.
Já comparei a religião judaica com a religião
popular do Egito e demonstrei a oposição existente entre elas. Devo agora fazer
uma comparação entre as religiões judaica e de Aten, na expectativa de provar
sua identidade original. Isso, estou ciente, não será fácil. Graças à vingatividade
dos sacerdotes de Amun, talvez saibamos muito pouco a respeito da religião
mosaica em sua forma final, tal como foi fixada pela classe sacerdotal judaica,
cerca de oitocentos anos mais tarde, em épocas pós-exílicas. Se, apesar desse
estado desfavorável do material, encontrarmos algumas indicações que favoreçam
nossa hipótese, poderemos atribuir-lhes um alto valor.
Haveria um caminho mais certo para provar nossa
tese de que a religião mosaica outra não era que a de Aten: a saber, se
tivéssemos uma confissão de fé, uma declaração. Mas temo que nos seja dito que
esse caminho está fechado para nós. A confissão judaica de fé, como é bem
sabido, proclama: ‘Schema Jisroel Adonai Elohenu Adonai Echod’, Se não é
simplesmente por acaso que o nome de Aten (ou Atum) egípcio soa como a palavra
hebraica Adonai [Senhor] e o nome da divindade síria Adônis - devendo-se isso,
porém, a um parentesco primevo de fala e significado - então a fórmula judaica
pode ser assim traduzida: ‘Ouve, Israel, nosso deus Aten (Adonai) é o único
deus.’ Infelizmente, sou totalmente incompetente para dar resposta a essa
questão e pouco pude encontrar a respeito dela na leitura sobre o assunto.,Mas,
com toda probabilidade, isso equivale a tornar as coisas fáceis demais para
nós. De qualquer modo, teremos de retornar mais uma vez aos problemas
referentes ao nome do deus.,
a fazer
remontar o que possuem em comum a essa característica Tanto as semelhanças
quanto as diferenças entre as duas religiões são facilmente discerníveis, sem
nos fornecerem muita luz. Ambas foram formas de monoteísmo escrito, e estaremos
inclinados, a priori, fundamental. Sob certos aspectos, o monoteísmo judaico
comportava-se ainda mais duramente do que o egípcio: ao proibir representações
pictóricas de qualquer tipo, por exemplo. A diferença mais essencial (à parte
os nome dos deuses) deve ser vista no fato de a religião judaica ser
inteiramente desprovida de adoração solar, na qual a egípcia ainda encontrava
apoio. Ao fazermos a comparação com a religião popular do Egito, tivemos a
impressão de que, além do contraste fundamental, um fator de contradição
intencional desempenhava papel na diferença entre as duas religiões. Essa
impressão parecerá justificada se, agora, ao fazermos a comparação,
substituirmos a religião judaica pela religião de Aten, que, como sabemos, foi
desenvolvida por Akhenaten em hostilidade deliberada à popular. Com toda razão
ficamos surpresos por descobrir que a religião judaica nada tinha que ver com o
próximo mundo ou com a vida após a morte, embora uma doutrina desse tipo fosse
compatível com o mais estrito monoteísmo. Contudo, a surpresa se desvanece
quando tornamos da religião judaica para a de Aten e imaginamos que essa recusa
foi extraída desta última, de uma vez que, para Akhenaten, ela constituía uma
necessidade em sua luta contra a religião popular, na qual Osíris, o deus dos
mortos, desempenhava um papel maior, talvez, do que qualquer outro deus do
mundo superior. A concordância entre as religiões judaica e de Aten nesse
importante ponto é o primeiro argumento forte em favor de nossa tese. Viremos a
saber que não é o único.
Moisés não apenas forneceu aos judeus uma nova
religião; pode-se afirmar com igual certeza que ele introduziu para eles o
costume da circuncisão. Esse fato é de importância decisiva para nosso problema
e sequer foi levado em consideração. É verdade que o relato bíblico o contradiz
mais de uma vez. Por um lado, faz a circuncisão remontar à era patriarcal, como
sinal de um pacto entre Deus e Abraão; por outro, descreve, em passagem
particularmente obscura, como Deus ficou irado com Moisés por ter negligenciado
um costume que se tornara sagrado,, e procurou matá-lo; a esposa dele, porém,
uma madianita, salvou-o da ira de Deus realizando rapidamente a operação.,
Estas, contudo, são deformações que não nos devem desencaminhar;
posteriormente, descobriremos a razão para elas. Permanece o fato de haver
apenas uma só resposta para a questão de saber de onde os judeus derivaram o
costume da circuncisão - a saber, do Egito. Heródoto, o ‘pai da História’,
conta-nos que o costume da circuncisão por muito tempo fora indígena no Egito,,
e suas afirmações são confirmadas pelas descobertas em múmias e, na verdade,
por pinturas nas paredes dos túmulos. Nenhum outro povo do Mediterrâneo oriental,
até onde sabemos, praticava esse costume, e pode-se com segurança supor que os
semitas, os babilônios e os sumérios não eram circuncidados. A própria história
da Bíblia diz que isso é típico dos habitantes de Canaã; constitui uma premissa
necessária para a aventura da filha de Jacó e o príncipe de Siquém., A
possibilidade de que os judeus tenham adquirido o costume da circuncisão
durante sua estada no Egito por outra maneira, que não a vinculação com o
ensinamento religioso de Moisés, pode ser rejeitada como completamente despida
de fundamento. Ora, tomando como certo que a circuncisão era costume popular e
universal no Egito, adotemos por um momento a hipótese de que Moisés era judeu,
de que buscou libertar da servidão seus compatriotas no Egito e de que os
conduziu a desenvolver uma existência nacional independente e autoconsciente em
outro país - que foi realmente o que aconteceu. Que sentido poderia ter, nesse
caso, o fato de que, ao mesmo tempo, ele lhes tenha imposto um costume
incômodo, que inclusive, até certo ponto, os transformava em egípcios e devia
manter permanentemente viva a lembrança deles em relação ao Egito, ao passo que
os esforços de Moisés só podiam visar à direção oposta, isto é, a tornar alheio
o povo à terra de sua servidão e a superar o anseio pelas ‘panelas de carne’ do
Egito? Não, o fato do qual partimos e a hipótese que lhe acrescentamos são tão
incompatíveis entre si, que podemos atrever-nos a chegar a esta conclusão: se
Moisés deu aos judeus não apenas uma nova religião, como também o mandamento da
circuncisão, ele não foi um judeu mas um egípcio, e, nesse caso, a religião
mosaica foi provavelmente uma religião egípcia, que, em vista de seu contraste
com a religião popular, era a religião de Aten, com a qual a religião judaica
posterior concorda em alguns aspectos marcantes.Já indiquei que minha hipótese
de que Moisés não era judeu, mas egípcio, criou um novo enigma. O
desenvolvimento de sua conduta, que parecia facilmente inteligível num judeu,
era incompreensível num egípcio. Se, contudo, colocarmos Moisés na época de
Akhenaten e o supusermos em contato com esse faraó, o enigma se desfará,
mostrando-se possíveis os motivos que responderão a todas as nossas perguntas.
Comecemos pela suposição de que Moisés era um aristocrata, um homem
proeminente, talvez, na verdade, um membro da casa real, tal como a lenda diz a
seu respeito. Indubitavelmente, estava cônscio de suas grandes capacidades, era
ambicioso e enérgico; pode ter inclusive acalentado a idéia de um dia vir a ser
o líder de seu povo, de se tornar o governante do reino. Achando-se perto do
faraó, era um aderente convicto da nova religião, cujos pensamentos básicos
fizera seus. Quando o rei morreu e a reação se instalou, ele viu destruídas
todas as suas esperanças e projetos; se não estivesse preparado para abjurar de
todas as convicções que lhe eram tão caras, o Egito nada mais teria a lhe
oferecer: ele perdera seu país. Nesse dilema, encontrou uma solução fora do
comum. Akhenaten, o sonhador, afastara de si o povo e deixara seu império
despedaçar-se. A natureza mais enérgica de Moisés sentia-se melhor com o plano
de fundar um novo reino, de encontrar um novo povo, a quem apresentaria, para
adoração, a religião que o Egito desdenhara. Era, como podemos ver, uma
tentativa heróica de combater o destino, de compensar em dois sentidos as
perdas em que a catástrofe de Akhenaten o envolvera. Talvez ele fosse, nessa
época, governador da província da fronteira (Gósen), onde certas tribos semitas
se tinham estabelecido talvez já no período dos hicsos. A elas escolheu para
ser seu novo povo - uma decisão histórica., Chegou a um acordo com elas, pôs-se
à sua testa e realizou o Êxodo ‘com mão forte’., Em total contraste com a
tradição bíblica, podemos supor que o Êxodo realizou-sepacificamente e sem
perseguição. A autoridade de Moisés tornou isso possível e, àquela época, não
havia autoridade central que pudesse ter interferido.
De acordo com essa nossa construção, o Êxodo do
Egito teria ocorrido durante o período que vai de 1358 a 1350 a.C., isto é,
após a morte de Akhenaten e antes do restabelecimento, por Haremhab, da
autoridade estatal., O objetivo da migração só poderia ter sido a terra de
Canaã. Após o colapso da dominação egípcia, hordas de belicosos arameus
irromperam naquela região, conquistando e saqueando, e demonstraram dessa
maneira onde um povo capaz poderia conquistar novas terras para si. Tomamos
conhecimento desses guerreiros pelas cartas encontradas, em 1887, na cidade em
ruínas de Amarna. Nelas, eles são chamados de ‘habiru’, e o nome foi
transferido (não sabemos como) para os invasores judeus posteriores - ‘hebreus’
-, aos quais as cartas de Amarna não podiam referir-se. Ao sul da Palestina
também, em Canaã, viviam as tribos que eram os parentes mais próximos dos
judeus que então abriam caminho para fora do Egito.
Os motivos que descobrimos para o êxodo como um
todo aplicam-se também à introdução da circuncisão. Estamos familiarizados com
a atitude adotada pelas pessoas (tanto em nações, como individualmente) para
com esse costume primevo, o qual mal é compreendido ainda. Aqueles que não
praticam a circuncisão, encaram-na como muito estranha e ficam um pouco
horrorizados com ela, mas os que a adotaram, orgulham-se dela. Sentem-se
exalçados por ela, enobrecidos, por assim dizer, e olham com desprezo para os
outros, a quem consideram sujos. Ainda hoje, inclusive, um turco injuriará um
cristão chamando-o de ‘cão incircunciso’. Pode-se supor que Moisés, o qual,
sendo egípcio, era ele próprio circuncidado, partilhava dessa atitude. Os
judeus com quem partiu de seu país deveriam servir-lhe como um substitutivo
superior aos egípcios que deixara atrás de si. De modo algum os judeus deveriam
ser inferiores a eles. Quis transformá-los num ‘povo santo’, tal como está
expressamente enunciado no texto bíblico,, e, como sinal de sua consagração,
introduziu também entre eles o costume que os tornava, pelo menos, iguais aos
egípcios. E ele só podia acolher bem o fato de que eles fossem isolados por tal
sinal e mantidos separados dos povos estrangeiros entre os quais suas
peregrinações os levassem, tal como os próprios egípcios se tinham mantido
separados de todos os estrangeiros.,
Posteriormente, contudo, a tradição judaica
comportou-se como se tivesse sido posta em desvantagem pela inferência que
estivemos tirando. Caso se admita que a circuncisão foi um costume egípcio
introduzido por Moisés, isso será quase a mesma coisa que reconhecer que a
religião que lhes foi dada por ele, era também uma religião egípcia. Houve bons
motivos para negar esse fato, de maneira que a verdade sobre a circuncisão
também teve de ser contraditadada.
(4)
Nesse ponto, espero defrontar-me com uma
objeção a minha hipótese. Essa hipótese situou Moisés, um egípcio, no período
de Akhenaten. Fez sua decisão de assumir o povo judeu derivar das
circunstâncias políticas do país naquela ocasião, e identificou a religião que
ele apresentou ou impôs a seus protegés como a religião de Aten, que, na
realidade, tinha desmoronado no próprio Egito. Espero que me seja dito que
apresentei essa estrutura de conjecturas com excessiva positividade, para a
qual não existe base alguma no material. Acho que essa objeção não se
justifica. Já dei ênfase ao fator de dúvida em minhas observações
introdutórias; por assim dizer, coloquei esse fator fora dos colchetes e
pode-se permitir que eu me poupe o trabalho de repeti-lo em vinculação a cada
item dentro deles.
Posso continuar o exame com algumas
considerações críticas elaboradas por mim mesmo. O cerne de minha hipótese - a
dependência do monoteísmo judaico do episódio monoteísta na história egípcia -
já fora suspeitado e mencionado por diversos autores. Poupo-me o trabalho de
citar essas opiniões aqui, pois nenhuma delas foi capaz de indicar como essa
influência pode ter entrado em operação. Ainda que, em nossa opinião, a
influência permaneça vinculada à figura de Moisés, devemos também mencionar
algumas outras possibilidades, em acréscimo àquela que preferimos. Não se deve
supor que a queda da religião oficial de Aten tenha imposto uma interrupção
completa à corrente monoteísta no Egito. A classe sacerdotal de On, a partir da
qual ela se iniciou, sobreviveu à catástrofe e pode ter continuado a
influenciar, pela tendência de suas idéias, gerações posteriores a Akhenaten.
Assim, a ação empreendida por Moisés é ainda concebível, mesmo que não tenha
vivido na época de Akhenaten e não tenha caído sob sua influência pessoal, quer
fosse ele apenas um adepto, quer, talvez, um membro da classe sacerdotal de On.
Essa possibilidade adiaria a data do Êxodo e a colocaria mais próxima da data
geralmente adotada (no século XII), mas nada tem a recomendá-la. Nossa
compreensão interna (insight) dos motivos de Moisés se perderia e a facilitação
do Êxodo pela anarquia dominante no país não mais se aplicaria. Os sucessivos
reis da XIX Dinastia estabeleceram um regime forte. Só no período imediatamente
posterior à morte do rei herético, houve uma convergência de todas as
condições, tanto externas quanto internas, favoráveis ao Êxodo.Os judeus
possuem, independentemente da Bíblia, uma copiosa literatura onde podem ser
encontradas as lendas e mitos que se desenvolveram, no decurso dos séculos, em
torno da imponente figura de seu primeiro líder e fundador de sua religião,
lendas e mitos que tanto a iluminaram quanto a obscureceram. Disseminados nesse
material, talvez existam fragmentos de tradição fidedigna para os quais não se
encontrou lugar no Pentateuco. Uma lenda desse tipo fornece uma descrição
atraente de como a ambição do homem Moisés encontrou expressão mesmo em sua infância.
Certa vez, quando o faraó o tomara nos braços e, de brincadeira, suspendera-o
no ar, o menino de três anos apossou-se da coroa que estava na cabeça do rei e
a colocou sobre a sua. Esse augúrio alarmou o rei, que não deixou de consultar
seus conselheiros sobre ele. Existem, em outras partes, histórias de suas ações
militares vitoriosas como general egípcio na Etiópia, e, em vinculação a isso,
de como fugiu do Egito porque tinha motivos para temer a inveja de um partido
na Corte ou do próprio faraó. O próprio relato bíblico atribui a Moisés certas
características, às quais pode-se muito bem dar crédito. Descreve-o como sendo
de natureza irascível, a encolerizar-se facilmente, tal como quando, indignado,
matou o brutal feitor que estava maltratando um trabalhador judeu, ou quando,
em sua ira pela apostasia do povo, quebrou as tábuas da Lei que trouxera do
Monte de Deus [Sinai]; na verdade, o próprio Deus o puniu ao final por um ato
impaciente, mas não nos é dito qual foi esse ato. Como um traço dessa espécie
não constitui algo que sirva para sua glorificação, talvez possa corresponder a
uma verdade histórica. Tampouco se pode excluir a possibilidade de que alguns
dos traços caracterológicos que os judeus incluíram em sua primitiva
representação de seu Deus - descrevendo-o como ciumento, severo e cruel -,
possam ter sido, no fundo, derivados de uma rememoração de Moisés, pois, de
fato, não fora um Deus invisível, mas sim o varão Moisés que os tirara do
Egito.
Outro traço atribuído a Moisés possui direito especial
a nosso interesse. É dito que Moisés era ‘pesado de boca’; ele deve ter sofrido
de uma inibição ou distúrbio da fala. Por conseguinte, em suas supostas
negociações com o faraó,precisou do apoio de Aarão, que é chamado de seu
irmão., Essa, mais uma vez, pode ser uma verdade histórica, e constituiria uma
contribuição bem-vinda à apresentação de um retrato vívido do grande homem.
Contudo, também pode ter outra significação, mais importante. Pode recordar, de
modo ligeiramente deformado, o fato de que Moisés falava outra língua e não
podia comunicar-se com seus neo-egípcios semíticos sem intérprete, pelo menos
no início de suas relações - uma nova confirmação, portanto, da tese de que
Moisés era egípcio.
Agora, porém, ou assim parece, nosso trabalho
chegou a um final provisório. No momento, não podemos tirar outras conclusões
de nossa hipótese de que Moisés era egípcio, tenha ela sido provada ou não.
Nenhum historiador pode encarar a descrição bíblica de Moisés e do Êxodo como
algo mais do que um piedoso fragmento de ficção imaginativa, que moldou uma
tradição remota em benefício de seus próprios intuitos tendenciosos. A forma
original dessa tradição nos é desconhecida; deveríamos contentar-nos em
descobrir quais foram os intuitos deformantes, mas nossa ignorância dos
acontecimentos históricos nos mantém no escuro. O fato de nossa reconstrução
não deixar lugar para uma série de ostentações da história da Bíblia, tais como
as dez pragas, a passagem do Mar Vermelho e a solene entrega das leis no Monte
Sinai, não nos desconcerta. No entanto, não poderemos tratar o assunto como
sendo indiferente se nos encontrarmos em contradição com as descobertas das
sóbrias pesquisas históricas dos dias atuais.
Esses historiadores modernos, dos quais podemos
tomar Eduard Meyer (1906) como representante, concordam com a história bíblica
num ponto decisivo. Também eles acham que as tribos judaicas, que mais tarde se
desenvolveram no povo de Israel, adquiriram uma nova religião num determinado
ponto do tempo. Contudo, segundo eles isso não se realizou no Egito ou ao sopé
de um montanha na Península de Sinai, mas numa certa localidade conhecida como
Meribá-Cades, um oásis distinguido por sua riqueza em fontes e poços, na
extensão de terra ao sul da Palestina, entre a saída oriental da Península de
Sinai e a fronteira ocidental da Arábia. Aí eles assumiram a adoração de um
deus Iavé ou Javé, provavelmente da tribo árabe vizinha dos madianitas. Parece
provável que outras tribos da vizinhança também fossem seguidoras desse deus.
Javé era, indiscutivelmente, um deus vulcânico.
Ora, como é bem sabido, o Egito não possui vulcões e as montanhas da Península
de Sinai nunca foram vulcânicas; por outro lado, existem vulcões que podem ter
sido ativos, até tempos recentes, ao longo da fronteira ocidental da Arábia.
Assim, uma dessas montanhas deve ter sido Sinai-Horeb, considerado a morada de
Javé. Apesar de todas as revisões a que a história bíblica foi submetida, o
retrato original do caráter do deus pode ser reconstruído, segundo Eduard Meyer:
era um demônio sinistro e sedento de sangue, que vagueava pela noite e evitava
a luz do dia.
O mediador entre Deus e o povo, na fundação
dessa religião, chamava-se Moisés. Era o genro do sacerdote madianita Jetro e
cuidava de seus rebanhos quando recebeu a convocação de Deus. Foi também
visitado por Jetro em Cades e recebeu alguns conselhos dele.4
Embora Eduard Meyer diga, é verdade, que nunca
duvidou de que havia certo âmago histórico na versão da estada no Egito e da
catástrofe para os egípcios, evidentemente não sabe como localizar e que uso
fazer desse fato que ele reconhece. A única coisa que se mostra pronto a fazer
derivar do Egito é o costume da circuncisão. Acrescenta duas importantes
indicações, que confirmam nossos argumentos anteriores: primeiro, que Josué
ordenou que o povo fosse circuncidado, a fim de ‘revolver de sobre vós o
opróbrio [a desobediência] do Egito’, e, segundo, uma citação de Heródoto que
diz que ‘os próprios fenícios (sem dúvida os judeus) e os sírios da Palestina
admitem que aprenderam com os egípcios esse costume.Mas ele pouco tem a dizer
em favor de um Moisés egípcio: ‘O Moisés que conhecemos é o ancestral dos
sacerdotes de Cades, isto é, uma figura oriunda de uma lenda genealógica,
colocada em relação a um culto, não uma personalidade histórica. Assim (à parte
aqueles que aceitam as raízes e ramificações da tradição como verdade
histórica), ninguém que o tenha tratado,como figura histórica foi capaz de
dar-lhe qualquer conteúdo, representá-lo como indivíduo concreto ou apontar o
que pode ter feito e qual pode ter sido seu trabalho histórico.
Por outro lado, Meyer não se cansa de insistir
na relação de Moisés com Cades e Madiã: ‘A figura de Moisés, que está
intimamente ligada a Madiã e aos centros de culto no deserto…e ‘Essa figura de
Moisés, portanto, está inseparavelmente vinculada a Cades (Massá e Meribá), e
isso é suplementado por ser ele genro do sacerdote madianita. Seu vínculo com o
Êxodo, pelo contrário, e toda a história de sua juventude são inteiramente
secundários e simplesmente a conseqüência da interpolação de Moisés numa
história legendária encadeada e contínua.Meyer também aponta que todos os temas
incluídos na história da juventude de Moisés foram, sem exceção, abandonados
mais tarde: ‘Moisés em Madiã não é mais um egípcio e neto do faraó, mas um
pastor a quem Javé se revelou. No relato das pragas, não se fala mais em suas
vinculações anteriores, embora um uso eficaz pudesse facilmente ter sido feito
delas, e a ordem de matar os filhos [recém-nascidos] dos israelitas, fosse
completamente esquecida. No Êxodo e na destruição dos egípcios, Moisés não
desempenha papel algum; sequer é mencionado. O caráter heróico que a lenda de
sua infância pressupõe está totalmente ausente do Moisés posterior; ele é
apenas o homem de Deus, um taumaturgo equipado por Javé com poderes
sobrenaturais.
Não podemos discutir a impressão de que esse
Moisés de Cades e Madiã, a quem a tradição podia realmente atribuir o
erguimento de uma serpente de metal como um deus da cura,é alguém inteiramente
diferente do aristocrático egípcio por nós inferido, que apresentou ao povo uma
religião em que toda a magia e todos os encantamentos eram proscritos nos
termos mais estritos. Nosso Moisés egípcio não é menos diferente, talvez, do
Moisés madianita do que o deus universal Aten o é do demônio Javé em sua morada
no Monte de Deus. E se tivermos alguma fé nos pronunciamentos dos historiadores
recentes, teremos de admitir que o fio que tentamos tecer a partir de nossa
hipótese de que Moisés era egípcio rompeu-se pela segunda vez. E dessa vez,
parece, sem esperança de remendo.
(5)
Inesperadamente, uma vez mais um caminho de
fuga apresenta-se aqui. Os esforços para ver em Moisés uma figura que vai além
do sacerdote de Cades, e confirmar a grandeza com que a tradição o glorifica,
não cessaram desde Eduard Meyer. (Cf. Gressmann [1913] e outros.) Em 1922,
Ernest Sellin fez uma descoberta que influenciou decisivamente nosso problema.
Descobriu no profeta Oséias (segunda metade do século VIII a.C.) sinais
inequívocos de uma tradição segundo a qual Moisés, o fundador da religião dos
judeus, encontrou um final violento num levante de seu povo refratário e
obstinado, ao mesmo tempo que a religião por ele introduzida era repudiada.
Essa tradição, contudo, não se restringe a Oséias; reaparece na maioria dos
profetas posteriores, e, na verdade, segundo Sellin, tornou-se a base de todas
as expectativas messiânicas mais tardias. Ao fim do cativeiro babilônico,
surgiu entre o povo judeu a esperança de que o homem que fora tão vergonhosamente
assassinado retornasse dentre os mortos e conduzisse seu povo cheio de remorso,
e talvez não apenas esse povo, para o reino da felicidade duradoura. A
vinculação óbvia disso com o destino do fundador de uma religião mais tardia
não nos interessa aqui.
Mais uma vez, naturalmente, não me acho em
posição de julgar se Sellin interpretou corretamente as passagens tiradas dos
profetas. Se estiver certo, porém, poderemos atribuir credibilidade histórica à
tradição que ele identificou, pois tais coisas não são facilmente inventadas.
Não existe motivo tangível para fazê-lo, mas, se tais coisas realmente
aconteceram, é fácil compreender que as pessoas estavam ansiosas por
esquecê-las. Não precisamos aceitar todos os pormenores da tradição. Na opinião
de Sellin, Shittim, na região a leste do Jordão, deve ser encarada como a cena
do ataque a Moisés. Contudo, logo veremos que essa região não é aceitável para
nossas idéias.
Tomaremos de empréstimo a Sellin sua hipótese
de que o egípcio Moisés foi assassinado pelos judeus e de que a religião que
ele introduziu foi abandonada. Isso nos permite tecer para mais além nossos
fios, sem contradizer as descobertas autênticas da pesquisa histórica. À parte
isso, porém, nos aventuraremos a manter independência em relação às autoridades
e a ‘seguir nosso próprio caminho’. O Êxodo do Egito permanece nosso ponto de
partida. Um número considerável de pessoas deve ter abandonado o país com
Moisés; um pequeno grupo não teria parecido valer a pena a esse homem
ambicioso, com seus grandes objetivos em visita. Os imigrantes provavelmente
viveram no Egito por tempo suficientemente longo para se terem desenvolvido
numa população bastante grande. Mas decerto não estaremos errados se
presumirmos, com a maioria das autoridades, que apenas uma fração daquilo que
posteriormente viria a ser o povo judeu experimentou os acontecimentos do
Egito. Em outras palavras, a tribo que retornou do Egito juntou-se,
posteriormente, na faixa de terra entre o Egito e Canaã, com outras tribos
aparentadas, que aí se tinham estabelecido havia muito tempo. Essa união, da
qual surgiu o povo de Israel, encontrou expressão na adoção de uma nova
religião, comum a todas as tribos, a religião de Javé - acontecimento que,
segundo Eduard Meyer [1906, p. 60 e segs.], se realizou sob a influência
madianita em Cades. Mais tarde, o povo sentiu-se suficientemente forte para
empreender a invasão da terra de Canaã. Não se harmonizaria com o curso dos
eventos supor que a catástrofe ocorrida com Moisés e sua religião aconteceu no
país a leste do Jordão; deve ter acontecido muito antes da união das tribos.
Não pode haver dúvida de que elementos muito
diferentes se uniram na construção do povo judeu, mas o que deve ter causado a
maior diferença entre essas tribos foi o fato de elas terem experimentado ou
não a estada no Egito e aquilo que se seguiu a essa estada. Considerando esse
ponto, podemos dizer que a nação surgiu da união de suas partes componentes, e
a isso se ajusta o fato de, após breve período de unidade política, ela se ter
cindido em dois fragmentos - o reino de Israel e o reino de Judá. A história
gosta de reintegrações como essa, onde uma fusão posterior é desfeita e uma
separação anterior reemerge. O exemplo mais impressivo disso foi fornecido,
como é bem sabido, pela Reforma, a qual, após um intervalo superior a mil anos,
trouxe mais uma vez à luz a fronteira existente entre a Alemanha que fora
outrora romana e a Alemanha que permanecera independente. No caso do povo
judeu, não é possível indicar uma reprodução tão fiel do antigo estado de
coisas; nosso conhecimento daqueles tempos é incerto demais para nos permitir
afirmar que as tribos estabelecidas se reuniram mais uma vez no Reino do Norte,
e que as retornadas do Egito se reuniram no Reino do Sul; contudo, também aqui
a divisão posterior não pode ter ficado sem relação com a reunião anterior. O
número dos ex-egípcios era provavelmente menor do que o dos outros, embora eles
se tenham mostrado culturalmente mais fortes. Exerceram uma influência mais
poderosa sobre a evolução posterior do povo, porque trouxeram consigo uma
tradição que faltava aos outros.
Talvez tenham trazido consigo algo mais
tangível do que uma tradição. Um dos maiores enigmas da pré-história judaica é
o da origem dos levitas. Eles são remontados a uma das doze tribos de Israel -
a de Levi -, mas nenhuma tradição aventurou-se a dizer onde essa tribo estava
originalmente localizada, ou qual a parte da terra conquistada de Canaã que lhe
foi atribuída Os levitas preenchiam os ofícios sacerdotais mais importantes,
mas eram distintos dos sacerdotes. Um levita não é necessariamente um
sacerdote; tampouco é o nome de uma casta. Nossa hipótese sobre a figura de
Moisés sugere uma explicação. É inacreditável que um grande senhor, como
Moisés, o egípcio, se tivesse reunido desacompanhado a esse povo estranho. Sem
dúvida, deve ter trazido com ele um séquito - seus seguidores mais chegados,
escribas, criados domésticos. Estes é que foram originalmente os levitas. A
tradição que alega que Moisés foi um levita parece ser uma deformação clara do
seguinte fato: levitas eram os seguidores de Moisés. Essa solução é apoiada
pelo fato que já mencionei em meu ensaio anterior: é apenas entre os levitas
que os nomes egípcios ocorrem mais tarde., Presume-se que um bom número desses
seguidores de Moisés tenha escapado à catástrofe que desabou sobre ele e a
religião que fundara. Eles se multiplicaram no decorrer das gerações seguintes,
fundiram-se com o povo entre o qual viviam, mas permaneceram fiéis a seu
senhor, preservaram a memória dele e continuaram a tradição de suas doutrinas.
Por ocasião da união com os discípulos de Javé, formavam uma minoria influente,
culturalmente superior ao resto.
Apresento como hipótese provisória que, entre a
queda de Moisés e o estabelecimento da nova religião em Cades, duas gerações,
ou talvez mesmo um século, se passaram. Não vejo meio de decidir se os
neo-egípcios (como gostaria de chamá-los aqui), isto é, aqueles que retornaram
do Egito, encontraram seus parentes tribais após estes já terem adotado a
religião de Javé, ou antes. A segunda possibilidade poderia parecer a mais
provável, mas, no resultado, não haveria diferença. O que aconteceu em Cades
foi uma conciliação, em que a parte assumida pelas tribos de Moisés é
inequívoca.
Aqui, mais uma vez podemos invocar as provas
fornecidas pela circuncisão, a qual repetidamente nos foi de auxílio, tal como,
por assim dizer, um fóssil-chave fundamental. Esse costume tornou-se
obrigatório também na religião de Javé e, uma vez que estava indissoluvelmente
vinculado ao Egito, sua adoção só pode ter sido uma concessão aos seguidores de
Moisés, ou aos levitas entre estes, que não renunciariam a esse sinal de sua
santidade, ver em[[1]]. Pelo menos isso de sua antiga religião eles desejavam
salvar e, em troca, estavam prontos a aceitar a nova divindade e o que os
sacerdotes de Madiã lhes contaram a respeito dela. Talvez tenham conseguido
ainda outras concessões. Já mencionamos que o ritual judaico prescrevia certas
restrições ao emprego do nome de Deus. Em vez de ‘Javé’, a palavra ‘Adonai
[Senhor]’ deve ser pronunciada. É tentador trazer essa prescrição para nosso
contexto, mas é apenas uma conjectura sem qualquer outra base. A proibição
incidente sobre o nome de um deus é, como bem se sabe, um tabu das eras
primevas. Não compreendemos por que ele foi revivido precisamente na Lei
Judaica, e não é impossível que isso tenha acontecido sob a influência de um
novo motivo. Não há necessidade de supor que a proibição era levada a cabo
sistematicamente na construção de nomes pessoais teóforos - ou seja, em
compostos -, o nome do Deus Iavé ou Javé podia ser livremente empregado
(Jochanan, Jaú, Josué, por exemplo.) Havia, contudo, circunstâncias especiais
vinculadas a esse nome. Como sabemos, a pesquisa bíblica crítica supõe que o
Hexateuco teve duas fontes documentárias., Elas são distinguidas como J e E,
porque uma delas utiliza ‘Javé’ como nome de Deus e a outra, ‘Eloim’; ‘Eloim’,
é verdade, não ‘Adonai’. Mas podemos manter em mente a observação feita por uma
de nossas autoridades: ‘Os nomes diferentes constituem clara indicação de dois
deuses originalmente diferentes’.
Trouxemos à baila a retenção da circuncisão
como prova do fato de que fundação da religião em Cades envolvia uma conciliação.
Podemos perceber sua natureza a partir dos relatos concordantes fornecidos por
J e E, que assim retornam, nesse ponto, a uma fonte comum (uma tradição
documentária ou oral). Seu intuito principal era demonstrar a grandeza e o
poder do novo deus Javé. Como os seguidores de Moisés davam tanto valor à sua
experiência do Êxodo do Egito, esse ato de libertação tinha de ser representado
como devido a Javé, e forneceram-se ao evento aperfeiçoamentos que davam prova
da terrificante grandeza do deus vulcânico, tais como a coluna de fumaça
[nuvem] que se transformava à noite numa coluna de fogo e a tempestade que pôs
a nu o leito do mar por algum tempo, de maneira que os perseguidores foram
afogados pelas águas que retornavam., Esse relato aproximou o Êxodo e a
fundação da religião e renegou o longo intervalo ocorrido entre um e outro.
Assim, também, a entrega da lei foi representada como a ocorrer não em Cades,
mas ao sopé do Monte de Deus, assinalada por uma erupção vulcânica. O relato,
contudo, fez grave injustiça à memória do homem Moisés; fora ele e não o deus
vulcânico que libertara do Egito o povo. Desse modo, era-lhe devida uma
compensação, e esta consistiu em o homem Moisés ser transferido para Cades ou
para Sinai-Horeb e colocado no lugar dos sacerdotes madianitas. Descobriremos
mais tarde que essa solução satisfez outro intuito imperativamente premente.
Dessa maneira, chegou-se, por assim dizer, a um acordo mútuo: permitiu-se a
Javé, que vivia numa montanha em Madiã, estender-se até o Egito, e, em troca
disso, a existência e a atividade de Moisés foram estendidas até Cades e o país
a leste do Jordão. Assim, ele foi fundido com a figura do fundador religioso
posterior, o genro do madianita Jetro [[1]],e emprestou-lhe seu nome, Moisés.
Desse segundo Moisés, contudo, não podemos fornecer uma descrição pessoal, tão
completamente foi ele eclipsado pelo primeiro, o egípcio Moisés, a menos que
recolhamos as contradições existentes na descrição bíblica do caráter de
Moisés. Ele é quase sempre representado como prepotente, de temperamento
arrebatado e até mesmo violento, embora também seja descrito como o mais suave
e paciente dos homens.Essas últimas qualidades evidentemente se ajustariam mal
ao Moisés egípcio, que teve de lidar com seu povo em tão grandes e difíceis
assuntos; elas podem ter pertencido ao caráter do outro Moisés, o madianita.
Estamos, penso eu, justificados em separar as duas figuras e em presumir que o
Moisés egípcio nunca esteve em Cades e nunca escutou o nome de Javé, e que o
Moisés madianita nunca esteve no Egito e nada sabia de Aten. A fim de soldar as
duas figuras, a tradição ou a lenda receberam a missão de trazer o Moisés
egípcio a Madiã, e vimos que mais de uma explicação disso era corrente.
(6)
Mais uma
vez, estou preparado para me ver acusado de ter apresentado minha reconstrução
da primitiva história do povo de Israel com certeza demasiadamente grande e
injustificada. Não me sentirei muito severamente atingido por essa crítica,
visto ela encontrar eco em meu próprio julgamento. Eu mesmo sei que minha
estrutura possui seus pontos fracos, mas tem seus pontos fortes também. Em
geral, minha impressão predominante é a de que vale a pena continuar o trabalho
na direção que ele tomou.
A narrativa bíblica que temos perante nós
contém dados históricos preciosos e, na verdade, valiosíssimos, os quais,
contudo, foram deformados pela influência de poderosos intuitos tendenciosos e
embelezados pelos produtos da invenção poética. No decorrer de nossos esforços
até agora, pudemos detectar um desses intuitos deformantes,ver em [[1]].Essa
descoberta nos aponta o caminho posterior. Temos de descobrir outros intuitos
tendenciosos semelhantes. Se contratarmos meios de reconhecer as deformações
produzidas por esses propósitos, traremos à luz novos fragmentos do verdadeiro
estado de coisas que jaz por trás deles.
E começaremos ouvindo o que a pesquisa bíblica
crítica pode dizer-nos sobre a história da origem do Hexateuco, os cinco livros
de Moisés e o livro de Josué, os quais, somente eles, nos interessam aqui. A
mais antiga fonte documentária é aceita como J (o autor javístico ou
iavístico), que, em épocas mais recentes, foi identificado como sendo o
sacerdote Ebiatar (Ebyatar), contemporâneo do Rei Davi. Um pouco mais tarde -
não se sabe quanto -, chegamos ao chamado autor eloístico [E], que pertenceu ao
Reino do Norte.3 Após o colapso desse reino em 722 a.C., um sacerdote judeu
combinou partes de J e E e efetuou alguns acréscimos de sua própria autoria.
Sua compilação é designada como JE. No século VII, o Deuteronômio, o quinto
livro, foi acrescentado a isso. Supõe-se que ele tenha sido encontrado completo
no Templo. No período posterior à destruição do Templo (586 a.C.), durante e
após o Exílio, foi compilada a revisão conhecida como ‘Código Sacerdotal’ e, no
século V, a obra recebeu sua revisão final; desde então não foi alterada em
seus elementos essenciais.A história do Rei Davi e seu período é, mais
provavelmente, obra de um contemporâneo. Trata-se de escrito histórico genuíno,
quinhentos anos antes de Heródoto, o ‘Pai da História’. Torna-se mais fácil
compreender essa realização se, segundo as linhas de nossa hipótese, pensarmos
na influência egípcia. Surge mesmo uma suspeita de que os israelitas daquele
período primitivo - o que equivale a dizer, os escribas de Moisés - podem ter
tido alguma parte na invenção do primeiro alfabeto.Naturalmente, está além de
nosso conhecimento descobrir até onde os relatos sobre tempos anteriores
remontam a registros primitivos ou à tradição oral, e, em casos individuais, qual
a duração do intervalo de tempo existente entre um acontecimento e seu
registro. O texto, contudo, tal como o possuímos hoje, nos dirá bastante sobre
suas próprias vicissitudes. Dois tratamentos mutuamente opostos deixaram suas
marcas nele. Por um lado, foi submetido a revisões que o falsificaram no
sentido de seus objetivos secretos, mutilaram-no e amplificaram-no e, até
mesmo, o transformaram em seu reverso; por outro, uma piedade solícita
dirigiu-o e procurou conservar tudo tal como era, pouco importando se era
coerente ou se se contradizia. Assim, em quase toda parte ocorreram lacunas
observáveis, repetições perturbadoras e contradições óbvias, indicações que nos
revelam coisas que não se destinavam a serem comunicadas. Em suas implicações,
a deformação de um texto assemelha-se a um assassinato: a dificuldade não está
em perpetrar o ato, mas em livrar-se de seus traços. Bem poderíamos emprestar à
palavra ‘Entstellung [deformação]’ o sentido duplo a que tem direito, mas do
qual, hoje em dia, não se faz uso. Ela deveria significar não apenas ‘mudar a
aparência de algo’, mas também ‘pôr algo em outro lugar, deslocar’., Por
conseguinte, em muitos casos de deformação textual, podemos não obstante
esperar descobrir que o que foi suprimido ou renegado está oculto em outro
lugar, embora modificado e despojado de seu contexto. Apenas, nem sempre será
fácil reconhecê-lo.
Os intuitos deformantes que estamos ansiosos
por apreender já deviam ter estado em ação sobre as tradições antes que
qualquer delas fosse registrada por escrito. Já descobrimos um deles, talvez o
mais poderoso de todos. Como dissemos, com o estabelecimento do novo Deus,
Javé, em Cades, tornou-se necessário fazer algo para glorificá-lo. Seria mais
correto dizer: tornou-se necessário ajustá-lo, abrir espaço para ele, apagar os
traços de religiões mais antigas. Isso parece ter sido conseguido com completo
sucesso com referência à religião das tribos residentes: nada mais ouvimos
dela. Com os que retornavam do Egito, isso não foi tão fácil; eles não se
deixariam ser privados do Êxodo, do varão Moisés ou da circuncisão. É verdade
que tinham estado no Egito, mas tinham-no abandonado, e, daí por diante, todo
sinal de influência egípcia deveria ser renegado. Lidou-se com o homem Moisés
deslocando-o para Madiã e Cades, e fundindo-o com o sacerdote de Javé que
fundou a religião. A circuncisão, a indicação mais suspeita de dependência para
com o Egito, teve de ser mantida, mas não se pouparam esforços para desligar o
costume do Egito - toda evidência em contrário. É apenas como negação
deliberada do fato revelador que podemos explicar a passagem enigmática e
incompreensivelmente enunciada no Êxodo [iv, 24-6], segundo a qual, em certa
ocasião, Javé ficou irado com Moisés por ele ter negligenciado a circuncisão, e
sua esposa madianita salvou-lhe a vida executando rapidamente a operação.
Dentro em pouco, nos depararemos com outra invenção destinada a tornar inócua a
desconfortável prova material.
O fato de encontrarmos sinais de esforços
feitos para negar explicitamente que Javé era um novo deus, estrangeiro aos
judeus, mal pode ser descrito como sendo o aparecimento de novo intuito
tendencioso; trata-se, antes, de uma continuação do anterior. Com esse objetivo
em vista, as lendas dos patriarcas do povo - Abraão, Isaac e Jacó - foram
introduzidas. Javé asseverou que ele já era o deus desses antepassados, embora
seja verdade que ele próprio teve de admitir que eles não o tinham adorado sob
esse nome. Não acrescenta, contudo, qual era o outro nome.E aqui estava a oportunidade
para um golpe decisivo contra a origem egípcia do costume da circuncisão: Javé,
foi dito, já insistira nela com Abraão e a introduzira como penhor do pacto
celebrado entre ele e este último. Mas foi uma invenção particularmente inábil.
Como marca destinada a distinguir determinada pessoa das outras e preferir
aquela a estas, escolher-se-ia algo que não pudesse ser encontrado em outro
povo, e não uma coisa que podia ser exibida, da mesma maneira, por milhões de
outras pessoas. Um israelita que se tivesse transplantado para o Egito teria
sido obrigado a reconhecer todo egípcio como irmão no pacto, como irmão em
Javé. É impossível que os israelitas que criaram o texto da Bíblia pudessem
ignorar o fato de a circuncisão ser indígena ao Egito. A passagem em Josué [v,
9] citada por Eduard Meyer,ver em [[1]]admite isso sem discussão, mas, por esse
próprio motivo, tinha de ser renegada a qualquer preço.
Não devemos esperar que as estruturas míticas
da religião dêem demasiada atenção à coerência lógica. De outra maneira, o
sentimento popular, justificadamente, poderia ter-se ofendido contra uma
divindade que fez um pacto com seus antepassados, com obrigações mútuas, e que
depois, por séculos a fio, não mais concedeu atenção a seus sócios humanos, até
que, subitamente, lhe ocorreu manifestar-se de novo a seus descendentes. Ainda
mais enigmática é a noção de um deus que repentinamente ‘escolhe’ um povo, que
o declara como seu e a ele próprio como seu deus. Acredito que este é o único
exemplo desse tipo na história das religiões humanas. Comumente, deus e povo
estão indissoluvelmente vinculados, são um só desde o próprio início das
coisas. Sem dúvida, às vezes ouvimos falar de um povo que adquire um deus
diferente, mas nunca de um deus que busca um povo diferente. Poderemos talvez
entender esse acontecimento único se relembrarmos as relações existentes entre
Moisés e o povo judeu. Moisés abaixara-se até os judeus, fizera-os o seu povo:
eles eram o seu ‘povo escolhido’.A introdução dos patriarcas serviu ainda a
outro propósito. Eles tinham vivido em Canaã e sua lembrança estava ligada a
localidades específicas nesse país. É possível que eles próprios fossem,
originalmente, heróis canaanitas ou divindades locais, sendo depois tomados
pelos israelitas imigrantes para a sua pré-história. Apelando para os
patriarcas, eles estavam, por assim dizer, afirmando seu caráter indígena e
defendendo-se contra o ódio que se liga a um conquistador estrangeiro. Foi uma
torção hábil declarar que o deus Javé estava apenas devolvendo-lhes o que seus
antepassados tinham possuído outrora.
Nas contribuições posteriores ao texto da
Bíblia, colocou-se em efeito a intenção de evitar a menção de Cades. O local em
que a religião fora fundada foi definitivamente fixado como sendo o Monte de
Deus, o Sinai-Horeb. Não é fácil perceber o motivo para isso; talvez as pessoas
não estivessem dispostas a ser lembradas da influência de Madiã. Mas todas as
deformações posteriores, especialmente as do período do Código Sacerdotal,
tinham outro objetivo em vista. Não havia mais necessidade alguma de alterar
descrições de acontecimentos num sentido desejado, pois isso já tinha sido
feito havia muito tempo. Mas tomou-se o cuidado de deslocar de volta ordens e
instituições da época atual para os tempos primitivos, o cuidado de
fundamentá-los, via de regra, na legislação mosaica, de maneira a derivar disso
sua reivindicação a serem sagrados e obrigatórios. Por mais que o retrato do
passado possa ter sido assim falsificado, o procedimento não deixava de ter
certa justificação psicológica. Ele refletia o fato de que, no curso de longas
eras - entre o Êxodo do Egito e a fixação dos textos da Bíblia, sob Ezra e
Neemias, cerca de oitocentos anos haviam transcorrido -, a religião de Javé
tivera sua forma modificada em conformidade, ou talvez até em identidade, com a
religião original de Moisés.
E esse é o resultado essencial, a momentosa
substância, da história da religião judaica.
(7)
De todos os acontecimentos de tempos primitivos
que posteriormente poetas, sacerdotes e historiadores empreenderam elaborar, um
se salienta, cuja supressão foi imposta pelos mais imediatos e melhores motivos
humanos. Trata-se do assassinato de Moisés, o grande líder e libertador,
descoberto por Sellin a partir de alusões nos escritos dos profetas. A hipótese
de Sellin não pode ser chamada de fantástica; é bastante provável. Moisés,
derivando-se da escola de Akhenaten, não empregou métodos diferentes dos que o
rei usara; ele ordenou, forçou sua fé ao povo. A doutrina de Moisés pode ter
sido inclusive mais dura do que a de seu mestre. Ele não tinha necessidade de
manter o deus solar como apoio: a escola de On não possuía significação para
seu povo estrangeiro. Moisés, como Akhenaten, defrontou-se com o mesmo destino
que espera todos os déspotas esclarecidos. O povo judeu, sob Moisés, era tão
capaz de tolerar uma religião tão altamente espiritualizada e encontrar
satisfação de suas necessidades no que ele tinha a oferecer quanto os egípcios
da XVIII Dinastia. Em ambos os casos, aconteceu o mesmo: aqueles que tinham
sido dominados e mantidos em falta levantaram-se e lançaram fora o fardo da
religião que lhes fora imposta. Mas, ao passo que os dóceis egípcios esperaram
até que o destino removesse a figura sagrada de seu faraó, os selvagens semitas
tomaram o destino nas mãos e livraram-se de seu tirano.
Tampouco se pode sustentar que o texto
remanescente da Bíblia não nos dá ciência de um fim desse tipo para Moisés. A
descrição do ‘pastoreio no deserto’, que pode representar o período durante o
qual Moisés governou, descreve uma sucessão de sérias revoltas contra sua
autoridade, as quais também foram, por ordem de Javé, suprimidas mediante
sangrentos castigos. É fácil imaginar que uma dessas rebeliões terminou de
maneira diferente daquela que o texto sugere.A defecção do povo quanto à nova
religião também é descrita no texto, na história do bezerro de ouro. Nesse
episódio, através de uma mudança engenhosa, o rompimento das tábuas da lei (que
deve ser entendido simbolicamente: ‘ele rompeu a lei’) é transposto para o
próprio Moisés, e sua indignação furiosa é atribuída como motivo desse
rompimento.
Chegou um tempo em que o povo começou a
lamentar o assassinato de Moisés e a procurar esquecê-lo. Isso certamente
aconteceu na época da união das duas partes do povo em Cades. Mas, quando o
Êxodo e a fundação da religião no oásis [de Cades] foram aproximados,ver em
[[1]],e Moisés foi representado como relacionado com esta última, em vez de
outro homem [o sacerdote madianita], não apenas as exigências dos seguidores de
Moisés foram satisfeitas, mas também o fato aflitivo de seu fim violento foi
renegado com sucesso. Na realidade, é muito improvável que Moisés pudesse ter
tomado parte nas ações de Cades, ainda que sua vida não houvesse sido
abreviada.
Temos agora de fazer uma tentativa de elucidar
as relações cronológicas desses acontecimentos. Colocamos o Êxodo no período
posterior ao fim da XVIII Dinastia (1350 a.C.). Ele pode ter ocorrido então ou
um pouco depois, já que os cronistas egípcios incluíram os anos supervenientes
de anarquia no reinado de Haremhab, que lhes pôs fim e durou até 1315 a.C. O
ponto fixado seguinte (mas também único) da cronologia é fornecido pela estela
de [o faraó] Merenptah (1225-15 a.C.), que se gaba de sua vitória sobre Isiraal
(Israel) e da dispersão de sua semente (?). O sentido a ser ligado a essa
inscrição é, infelizmente, duvidoso, supondo-se que prove que as tribos
israelitas já estavam, nessa época, estabelecidas em Canaã. Eduard Meyer,
corretamente, conclui a partir dessa estela que Merenptah não pode ter sido o
faraó do Êxodo, como levianamente foi anteriormente presumido. A data do Êxodo
deve ter sido anterior. A questão de saber quem foi o faraó do Êxodo, parece-me
inteiramente ociosa. Não houve faraó do Êxodo, porque este ocorreu durante um
interregno; tampouco a descoberta da estela de Merenptah lança qualquer luz
sobre a possível data da união e fundação da religião em Cades. Tudo o que
podemos dizer com certeza é que ocorreu em alguma ocasião entre 1350 e 1215
a.C. Desconfiamos de que o Êxodo ocorreu bastante perto do início desses cem
anos e os eventos de Cades não muito longe de seu fim. Gostaríamos de
reivindicar a maior parte desse período para o intervalo entre as duas
ocorrências, de uma vez que necessitamos de um tempo comparativamente longo
para que as paixões das tribos que retornavam se esfriassem após o assassinato
de Moisés, e para a influência de seus seguidores, os levitas, se tornasse tão
grande quanto a que está implícita na conciliação de Cades. Duas gerações, sessenta
anos, poderiam aproximadamente bastar para isso, mas trata-se de um acerto
apertado. O que é inferido da estela de Merenptah chega demasiado cedo para nós
e, como reconhecemos que, nessa nossa hipótese, cada suposição se baseia em
outra, temos de admitir que esse exame revela um lado fraco de nossa
construção. É desafortunado que tudo que se relaciona com o estabelecimento do
povo judeu em Canaã seja tão obscuro e confuso. Nossa única saída consiste em
supor que na estela o nome de ‘Israel’ não se relacione às tribos cuja sorte
estamos tentando acompanhar e que, combinadas, formaram o povo posterior de
Israel. Afinal de contas, o nome de ‘habiru’ (hebreus) foi transferido para
essas mesmas pessoas no período Amarna, ver em [[1]].
A união dessas tribos numa nação, através da
adoção da uma religião comum, não importa quando tenha ocorrido, facilmente
poderia ter-se transformado num acontecimento bastante sem importância na
história mundial. A nova religião seria arrastada pela corrente de eventos,
Javé teria tido de ocupar seu lugar na procissão de deuses passados na visão de
Flauberte todas as doze tribos se teriam ‘perdido’, e não apenas as dez que os
anglo-saxões há tanto tempo andam procurando. O deus Javé, a quem o Moisés
madianita então apresentou um novo povo, provavelmente não era, sob aspecto
algum, um ser proeminente. Um deus grosseiro, tacanho, local, violento e
sedento de sangue prometera a seus seguidores dar-lhes ‘uma terra que mana
leite e mel’e os concitara a exterminar seus habitantes de então ‘ao fio da
espada’.É espantoso o quanto resta, apesar de todas as revisões nas narrativas
bíblicas, que nos permita reconhecer a natureza original dele. Sequer é certo
que sua religião fosse um monoteísmo genuíno, que negasse a divindade das
deidades de outros povos. Provavelmente era suficiente que seu povo encarasse
seu próprio deus como mais poderoso do que qualquer deus estrangeiro. Se, não
obstante, subseqüentemente, tudo tomou um curso diferente do que tais
primórdios teriam levado a esperar, a causa só pode ser encontrada num único
fato. O Moisés egípcio dera a uma parte do povo uma noção mais altamente
espiritualizada de deus, a idéia de uma divindade única a abranger o mundo
inteiro, que era não menos amantíssimo do que todo-poderoso, com aversão a todo
cerimonial e magia, e que apresentava aos homens, como seu objetivo mais
elevado, uma vida na verdade e na justiça, pois, por incompletas que sejam as
descrições que temos do lado ético da religião de Aten, não pode constituir
fato sem importância que Akhenaten comumente se referisse a si mesmo, em suas
inscrições, como ‘vivendo em Ma’at’ (Verdade, Justiça). A longo prazo, não fez
diferença que o povo tivesse rejeitado o ensinamento de Moisés (provavelmente
pouco tempo depois) e o tivesse matado. A tradição desse ensinamento permaneceu
e sua influência alcançou (apenas gradativamente, é verdade, no decorrer dos
séculos) aquilo que fora negado ao próprio Moisés. O deus Javé conseguira
honras imerecidas quando, a partir da época de Cades em diante, fora creditado
com o feito da libertação realizada por Moisés, mas teve de pagar pesadamente
por essa usurpação. A sombra do deus cujo lugar ele ocupara tornou-se mais
forte do que ele próprio; ao final do processo de evolução, a natureza do deus
esquecido de Moisés veio à luz por trás da sua própria. Ninguém pode duvidar de
que foi apenas a idéia desse outro deus que capacitou o povo de Israel a
sobreviver a todos os golpes do destino e o manteve vivo até nossos dias.
Não é mais possível avaliar a parte assumida
pelos levitas na vitória final do deus mosaico sobre Javé. Eles haviam tomado o
partido de Moisés no passado, quando o acordo fora alcançado em Cades, numa
lembrança ainda viva do amo de quem haviam sido o séquito e os compatriotas.
Durante os séculos que passaram desde então, fundiram-se com o povo ou com a
classe sacerdotal, e tornou-se função principal dos sacerdotes desenvolver e
supervisionar o ritual, e, ao lado disso, preservar a escritura sagrada e
revisá-la de acordo com seus fins. Mas todo sacrifício e todo cerimonial, no
fundo, não eram somente magia e feitiçaria, tais como haviam sido
incondicionalmente rejeitados pelo antigo ensinamento mosaico? Surgiu então,
dentre o povo, uma sucessão infindável de homens que não eram ligados a Moisés
em sua origem, mas que foram cativados na obscuridade: foram esses homens, os
profetas, que incansavelmente pregaram a antiga doutrina mosaica - a de que a
divindade desdenhava o sacrifício e o cerimonial e pedia apenas fé e uma vida
na Verdade e na Justiça (Ma’at). Os esforços dos profetas alcançaram sucesso
duradouro; as doutrinas com que haviam restabelecido a velhafé tornaram-se o
conteúdo permanente da religião judaica. É honra bastante para o povo judeu que
tenha conseguido preservar tal tradição e produzir homens que lhe deram voz,
ainda que a iniciativa para isso tenha provindo do exterior, de um grande
forasteiro.
Não deveria sentir-me seguro em fornecer essa
descrição, se não pudesse apelar para o julgamento de outros investigadores com
conhecimento especializado, que perceberam a significação de Moisés para a
religião judaica à mesma luz que eu, ainda que não tenham reconhecido sua
origem egípcia. Assim, por exemplo, Sellin (1922, 52) escreve:
‘Conseqüentemente, temos de pintar a verdadeira religião de Moisés - sua crença
num só Deus moral, que ele prega - como sendo, daí por diante, necessariamente
propriedade de um pequeno círculo do povo. Não devemos, necessariamente,
esperar encontrá-la no culto oficial, na religião dos sacerdotes ou nas crenças
do povo. Podemos, necessariamente, apenas calcular encontrar uma faísca
ocasional e emergir, ora aqui, ora ali, da tocha espiritual que ele outrora
ateara, descobrir que suas idéias não pereceram inteiramente, mas estiveram
silentemente em ação, aqui e ali, sobre crenças e costumes, até que, mais cedo
ou mais tarde, mediante o efeito de experiências especiais ou de pessoas
especialmente movidas pelo seu espírito, elas mais uma vez irromperam
intensamente e conquistaram influência sobre massas mais amplas da população. É
a partir desse ponto de vista que a história da antiga religião de Israel deve,
necessariamente, ser encarada. Todo aquele que procurar elaborar a religião
mosaica segundo as linhas da religião que encontramos, segundo as crônicas, na
vida do povo durante seus primeiros quinhentos anos em Canaã, estará cometendo
o mais grave erro metodológico.’ Volz (1907, 64) fala ainda mais claramente:
acredita ele que ‘a obra excelsa de Moisés foi compreendida e levada a cabo, a
princípio apenas débil e esparsamente, até que, no decorrer dos séculos, ela
penetrou cada vez mais, e, por fim, encontrou-se, nos grandes profetas, com
espíritos semelhantes que continuaram a obra do homem solitário.’
E aqui, segundo parece, cheguei à conclusão de
meu estudo, que se dirigiu para o objetivo único de introduzir a figura de um
Moisés egípcio no nexo da história judaica. Nossos achados podem ser assim
expressos na fórmula mais concisa. A história judaica nos é familiar por suas
dualidades: dois grupos de pessoas que se reúnem para formar a nação, dois
reinos em que essa nação se divide, dois nomes de deuses nas fontes
documentárias da Bíblia. A elas, acrescentamos outras duas, novas: a fundação
de duas religiões - a primeira reprimida pela segunda, não obstante emergindo
depois vitoriosamente, por trás dela, e dois fundadores religiosos, ambos
chamados pelo mesmo nome de Moisés e cujas personalidades temos de distinguir
uma da outra. Todas essas dualidades são as conseqüências necessárias da
primeira: o fato de uma parte do povo ter tido uma experiência que tem de ser
considerada como traumática, à qual a outra parte escapou. Mais além disso,
haveria muita coisa a examinar, explicar e asseverar. Somente assim um
interesse em nosso estudo puramente histórico encontraria sua verdadeira
justificação. Em que reside a natureza real de uma tradição, em que repousa seu
poder especial, quão impossível é discutir a influência pessoal, sobre a
história mundial, dos grandes homens tomados individualmente, qual o sacrilégio
que se comete contra a esplêndida diversidade da vida humana se se reconhecerem
apenas os motivos que se originam das necessidades materiais, de que fontes
algumas idéias (e, especificamente, as religiosas) derivam seu poder de
submeter tanto homens quanto povos a seu jogo - estudar tudo isso no caso
especial da história judaica seria tarefa sedutora. Continuar meu trabalho
segundo linhas como essas seria descobrir um vínculo com as afirmativas que
apresentei vinte e cinco anos atrás em Totem e Tabu [1912-13], mas não mais
sinto que possua força para fazê-lo.
III - MOISÉS, O SEU POVO E A
RELIGIÃO MONOTEÍSTA
PARTE I
NOTA PREAMBULAR I
([Viena], antes de março de 1938)
Com a audácia daquele que tem pouco ou nada a
perder, proponho-me pela segunda vez romper uma intenção bem fundada e
acrescentar a meus dois ensaios sobre Moisés aparecidos em Imagoa parte
final que retive. Terminei o último ensaio com a asserção de que sabia que
minhas forças não seriam suficientes para isso. Quis significar, naturalmente,
o debilitamento dos poderes criativos que acompanham a velhice,mas pensava
também em outro obstáculo.
Estamos vivendo num período especialmente
marcante. Descobrimos, para nosso espanto, que o progresso aliou-se à barbárie.
Na Rússia Soviética, dispuseram-se a melhorar as condições de vida de algumas
centenas de milhões de pessoas que eram mantidas firmemente em sujeição. Foram
suficientemente precipitados para retirar-lhes o ‘ópio’ da religião e avisados
o bastante para conceder-lhes uma razoável quantidade de liberdade sexual; ao
mesmo tempo, porém, submeteram-nas à mais cruel coerção e despojaram-nas de
qualquer possibilidade de pensamento. Com violência semelhante, o povo italiano
está sendo treinado na organização e no sentido de dever. Sentimos como um
alívio de uma apreensão opressiva quando vemos, no caso do povo alemão, que uma
recaída numa barbárie quase pré-histórica pode ocorrer também sem estar ligada
a quaisquer idéias progressistas. De qualquer modo, as coisas revelaram-se
tais, que, atualmente, as democracias conservadoras se tornaram as guardiãs do
progresso cultural e, estranho é dizê-lo, é precisamente a instituição da
Igreja Católica que ergue uma defesa poderosa contra a disseminação desse
perigo à civilização - a Igreja que até constituíra o incansável inimigo da
liberdade de pensamento e dos progressos no sentido da descoberta da verdade!
Estamos vivendo aqui, num país católico, sob a
proteção dessa Igreja, incertos quanto ao tempo que essa proteção resistirá.
Mas, enquanto durar, naturalmente hesitamos em fazer algo que estaria sujeito a
despertar a hostilidade da Igreja. Não se trata de covardia, mas de prudência.
O novo inimigo, que desejamos evitar servir, é mais perigoso do que o antigo,
com quem já havíamos aprendido a entrar em acordo. As pesquisas psicanalíticas
que conduzimos são, em todo caso, encaradas com atenção suspeitosa pelo
catolicismo. Não sustentarei que isso seja injusto. Se nosso trabalho nos leva
a uma conclusão que reduz a religião a uma neurose da humanidade e explica seu
enorme poder da mesma maneira que uma compulsão neurótica em nossos pacientes
individuais, podemos estar certos de atrair o ressentimento de nossos poderes
governantes sobre nós. Não que tenha algo a dizer que seja novo ou que não
tenha dito claramente um quarto de século atrás, mas isso foi esquecido nesse
ínterim e não poderia deixar de ter efeito se o repetisse hoje e o ilustrasse
por um exemplo que oferece um padrão para todos os fundamentos religiosos.
Conduziria provavelmente a sermos proibidos de exercer a psicanálise. Métodos
violentos de repressão desse tipo não são, em verdade, de maneira alguma
estranhos à Igreja; o fato é, antes, que ela sente como invasão de seus
privilégios alguém mais fazer uso desses métodos. Mas a psicanálise, que, no
decurso de minha longa vida, foi a todas as partes, ainda não possui um lar que
possa ser mais valioso para ela do que a cidade em que nasceu e se desenvolveu.
Não apenas acho, mas sei que me deixarei
ser dissuadido por esse segundo obstáculo, pelo perigo externo, de publicar a
última parte de meu estudo sobre Moisés. Fiz ainda outra tentativa de afastar
do caminho a dificuldade, dizendo-me que meus temores se baseiam numa
superestimação de minha própria importância pessoal, que provavelmente será
completamente indiferente às autoridades que eu escolha escrever sobre Moisés e
a origem das religiões monoteístas. Mas sinto-me incerto de meu julgamento
sobre isso. Parece-me bem mais possível que a malícia e o sensacionalismo
contrabalancem qualquer falta de reconhecimento de mim no julgamento do mundo
contemporâneo. Assim, não entregarei este trabalho ao público. Mas isso não
precisa impedir-me de escrevê-lo, especialmente se já o pus por escrito no
passado, dois anos atrás,de modo que só tenho de revisá-lo e uni-lo aos dois ensaios
que o precederam. Ele pode então ser preservado às ocultas até que, algum dia,
chegue a hora em que possa aventurar-se à luz sem perigo, ou até que se possa
dizer a alguém que chegue às mesmas conclusões: ‘Houve alguém, em épocas mais
sombrias, que pensou o mesmo que você!’
NOTA PREAMBULAR II
([Londres], junho de 1938)
As dificuldades bastante especiais que pesaram
sobre mim durante a composição deste estudo relacionado à figura de Moisés -
dúvidas internas, assim como obstáculos externos - resultaram no fato de este
terceiro e conclusivo ensaio ser introduzido por dois prefácios diferentes, os
quais se contradizem e, na verdade, se anulam mutuamente, pois, no breve espaço
de tempo existente entre os dois, ocorreu uma mudança fundamental nas circunstâncias
do autor. Na data anterior, eu estava vivendo sob a proteção da Igreja
Católica, e temia que a publicação de meu trabalho resultasse na perda dessa
proteção e conjurasse uma proibição sobre o trabalho dos adeptos e estudiosos
da psicanálise na Áustria. Então, subitamente, veio a invasão alemã e o
catolicismo mostrou ser, para empregar as palavras da Bíblia, ‘uma cana
quebrada’. Na certeza de que seria agora perseguido não apenas por minha linha
de pensamento, mas também por minha ‘raça’, acompanhado por muitos de meus
amigos abandonei a cidade que, desde minha primeira infância, fora meu lar
durante setenta e oito anos.
Encontrei a mais amistosa recepção na
encantadora, livre e magnânima Inglaterra. Aqui vivo agora, hóspede bem-vindo;
posso exalar um suspiro de alívio agora que o peso foi tirado de mim e mais uma
vez posso falar e escrever - quase disse ‘e pensar’ - como quero ou como devo.
Aventuro-me a apresentar ao público a última parte de minha obra.
Não restam obstáculos externos, ou, pelo menos,
nenhum de que se deva ter medo. Nas poucas semanas de minha estada aqui, recebi
incontáveis saudações de amigos que ficaram satisfeitos por minha chegada, e de
estranhos desconhecidos e, na verdade, não envolvidos, que apenas queriam dar
expressão à sua satisfação por eu ter encontrado liberdade e segurança aqui. E,
além disso, chegaram, com uma freqüência surpreendente para um estrangeiro,
comunicações de outro tipo, interessadas no estado de minha alma, apontando-me
o caminho de Cristo e procurando esclarecer-me sobre o futuro de Israel. As
boas pessoas que dessa maneira escrevem não podem ter sabido muito sobre mim,
mas espero que quando este trabalho sobre Moisés se torne conhecido, em
tradução, entre meus novos compatriotas, serei privado em muito da simpatia que
também um certo número de outras pessoas sente agora por mim.Com referência às
dificuldades internas, uma revolução política e uma mudança de domicílio
nada poderiam alterar. Não menos do que antes, sinto-me incerto face a meu
próprio trabalho; falta-me a consciência de unidade e de ser da mesma classe
que deveria existir entre um autor e sua obra. Não é como se houvesse ausência
de convicção na correção de minha conclusão. Adquiri-a um quarto de século
atrás, quando, em 1912, escrevi meu livro sobre Totem e Tabu, e desde
então ela só se tornou mais firme. Desde aquela época nunca duvidei de que os
fenômenos religiosos só podem ser compreendidos segundo o padrão dos sintomas
neuróticos individuais que nos são familiares - como o retorno de acontecimentos
importantes, há muito tempo esquecidos, na história primeva da família humana -
e de que eles têm de agradecer exatamente a essa origem por seu caráter
compulsivo, e de que, por conseguinte, são eficazes sobre os seres humanos por
força da verdade histórica de seu conteúdo. Minha incerteza se instala apenas
quando me pergunto se alcancei sucesso em provar essas teses no exemplo que
aqui escolhi do monoteísmo judaico. A meu senso crítico, este livro, que tem
sua origem no homem Moisés, assemelha-se a uma dançarina a equilibrar-se na
ponta de um dedo do pé. Se não tivesse podido encontrar apoio numa
interpretação analítica do mito e passar daí para a suspeita de Sellin sobre o
fim de Moisés, tudo teria tido de permanecer sem ser escrito. De qualquer modo,
demos agora o mergulho.
A - A PREMISSA HISTÓRICA
Aqui, pois, temos o pano de fundo histórico dos
acontecimentos que absorveram nosso interesse. Em resultado das conquistas da
XVIII Dinastia, o Egito tornou-se um império mundial. O novo imperialismo
refletiu-se no desenvolvimento das idéias religiosas, se não de todo o povo,
pelo menos de seu estrato superior governante e intelectualmente ativo. Sob a
influência dos sacerdotes do deus solar em On (Heliópolis), fortalecida talvez
por impulsos provindos da Ásia, surgiu a idéia de um deus universal Aten, a
quem a restrição a um único país e a um único povo não mais se aplicava. No
jovem Amenófis IV, chegou ao trono um faraó que não tinha interesse mais alto
do que o desenvolvimento dessa idéia de um deus. Ele promoveu a religião de
Aten a religião estatal e, através dele, o deus universal tornou-se o único deus:
tudo o que se contava dos outros deuses era engano e mentira. Com magnífica
inflexibilidade, ele resistiu a toda tentação ao pensamento mágico, e rejeitou
a ilusão, tão cara aos egípcios, especificamente, de uma vida após a morte. Num
espantoso pressentimento de descobertas científicas posteriores, identificou na
energia da radiação solar a fonte de toda a vida sobre a Terra e adorou-a como
símbolo do poder de seu deus. Gabava-se de sua alegria na criação e de sua vida
em Ma’at (Verdade e Justiça).
Esse é o primeiro e talvez o mais claro caso de
uma religião monoteísta na história humana; uma compreensão interna (insight)
mais profunda dos determinantes históricos e psicológicos de sua origem seria
de valor incomensurável. Entretanto, cuidou-se de que informações demasiadas
sobre a religião de Aten não chegassem até nós. Já sob os débeis sucessores de
Akhenaten tudo o que ele havia criada entrou em colapso. A vingança da classe
sacerdotal que ele havia suprimido grassou contra sua memória; a religião de
Aten foi abolida, e a cidade capital do faraó, estigmatizado como um criminoso,
foi destruída e saqueada. Por volta de 1350 a.C., a XVIII Dinastia terminou;
após um período de anarquia, a ordem foi restaurada pelo general Haremhab, que
reinou até 1315 a.C. A reforma de Akhenaten parecia ser um episódio fadado ao
esquecimento.
Até aqui, o que está estabelecido
historicamente; agora, começa nossa seqüência hipotética. Entre os que
compunham o entourage de Akhenaten havia um homem talvez chamado
Tuthmosis, como muitas outras pessoas daquela época; o nome não é de grande
importância, exceto o fato de que seu segundo componente deve ter sido ‘-mose’.
Achava-se ele numa elevada posição e era um adepto convicto da religião de
Aten, mas, em contraste com o rei meditativo, era enérgico e apaixonado. Para
ele, a morte de Akhenaten e a abolição da religião deste significaram o fim de
todas as suas esperanças. Só poderia permanecer no Egito como fora-da-lei ou
como renegado. Talvez, como governador da província da fronteira, tenha entrado
em contato com uma tribo semita que imigrara para ela algumas gerações antes.
Pela necessidade de seu desapontamento e solidão, voltou-se para esses
estrangeiros e neles buscou compensação para suas perdas. Escolheu-os como seu
povo e neles tentou realizar seus ideais. Após ter abandonado o Egito com eles,
acompanhado por seus seguidores, transformou-os em santos pelo sinal da circuncisão,
forneceu-lhe leis e introduziu-os nas doutrinas da religião de Aten, que os
egípcios tinham acabado de rejeitar. Os preceitos que esse varão Moisés deu a
seus judeus podem ter sido ainda mais severos do que os de seu senhor e mestre
Akhenaten, e ele pode também ter abandonado a dependência do deus solar de On,
que Akhenaten continuara a seguir.
Devemos tomar o período do interregno posterior
a 1350 a.C. como a data do Êxodo do Egito. O intervalo de tempo que se seguiu,
até o término da ocupação da terra de Canaã, é particularmente inescrutável. A
pesquisa histórica moderna foi capaz de extrair dois fatos da obscuridade que a
narrativa bíblica deixou, ou melhor, criou, nesse ponto. O primeiro desses
fatos, descobertos por Ernst Sellin é que os judeus, que, mesmo segundo a
descrição da Bíblia, eram obstinados e indisciplinados para com seu legislador
e líder, levantaram-se contra ele um dia, mataram-no e livraram-se da religião
de Aten que lhes fora imposta, tal como os egípcios se tinham livrado dela anteriormente.
O segundo fato, demonstrado por Eduard Meyer, é que esses judeus que tinham
retornado do Egito uniram-se mais tarde com tribos estreitamente relacionadas
na região entre a Palestina, a Península de Sinai e a Arábia, e lá, numa
localidade bem regada por águas, chamada Cades, sob a influência dos madianitas
árabes, assumiram uma nova religião, a adoração do deus vulcânico Javé. Pouco
depois disso, estavam prontos para invadir Canaã como conquistadores.
As relações cronológicas entre esses dois eventos
e entre eles e o Êxodo do Egito são muito incertas. O ponto de referência
histórico mais aproximado é fornecido por uma estela do faraó Merenptah (que
reinou até 1215 a.C.), a qual, no correr de uma descrição de campanhas na Síria
e na Palestina, nomeia ‘Israel’ entre os inimigos derrotados. Se tomarmos a
data dessa estela como um terminus ad quem, ficamos com aproximadamente
um século (desde depois de 1350 até antes de 1215 a.C.) para todo o decorrer
dos acontecimentos, começando com o Êxodo. É possível, contudo, que o nome
‘Israel’ ainda não se relacionasse às tribos cuja sorte estamos acompanhando, e
que, de fato, tenhamos um intervalo mais longo à nossa disposição. O
estabelecimento, em Canaã, do que deveria ser mais tarde o povo judeu certamente
não foi uma conquista rapidamente completada, mas realizou-se em ondas e
durante consideráveis períodos de tempo. Se nos libertarmos da limitação
imposta pela estela de Merenptah, poderemos ainda mais facilmente atribuir uma
geração (trinta anos) ao período de Moisés, e permitir que pelo menos duas
gerações, e provavelmente mais, tenham decorrido até a época da união em Cades.
O intervalo entre Cades e a irrupção em Canaã precisa apenas ser curto. A
tradição judaica, como foi demonstrado no ensaio anterior,ver em [[1]],dispunha
de bons fundamentos para abreviar o intervalo entre o Êxodo e a fundação da
religião em Cades, ao passo que o contrário disso é do interesse de nosso
relato.
Tudo isso, contudo, ainda é história, uma
tentativa de preencher as lacunas em nosso conhecimento histórico e, em parte,
uma repetição de meu segundo ensaio em Imago [Ensaio II, acima]. Nosso
interesse acompanha a sorte de Moisés e de suas doutrinas, às quais o levante
dos judeus apenas aparentemente pôs fim. A partir da descrição fornecida pelo
Javista, assentada por escrito por volta de 1000 a.C., mas sem dúvida baseada
em registros anteriores, descobrimos que a união e a fundação da religião em
Cades foram acompanhadas por um acordo em que os dois lados ainda são
facilmente distinguíveis. Uma das partes ficou interessada apenas em renegar a
novidade e o caráter estrangeiro do deus Javé e em aumentar sua reivindicação à
devoção do povo; a outra estava ansiosa por não sacrificar-lhe preciosas
lembranças da libertação do Egito e da grande figura do líder Moisés. O segundo
lado conseguiu, também, introduzir tanto o fato quanto o homem no novo relato
da pré-história, retendo pelo menos o sinal externo da religião de Moisés - a
circuncisão -, e possivelmente estabelecendo certas restrições ao uso do nome
do novo deus. Como dissemos, os representantes dessas reivindicações foram os
descendentes dos seguidores de Moisés, os levitas, que estavam separados de
seus contemporâneos e compatriotas por apenas algumas gerações, e a que ainda
estavam ligados à lembrança dele por uma recordação viva. A narrativa
poeticamente embelezada que atribuímos ao Javista, e a seu rival posterior, o
Eloísta, era algo como mausoléus sob os quais, afastada do conhecimento de
gerações posteriores, a verdadeira descrição daquelas primeiras coisas - a
natureza da religião mosaica e o final violento do grande homem - deveriam, por
assim dizer, encontrar seu descanso eterno. E se adivinhamos o que aconteceu
corretamente, nada resta a respeito que seja enigmático, mas bem poderia ter
significado o ponto final do episódio de Moisés na história do povo judeu.
O notável, porém, é que não foi esse o caso -
que os efeitos mais poderosos da experiência do povo deveriam vir à luz apenas
mais tarde e abrir caminho para a realidade no decorrer de muitos séculos. É
improvável que Javé diferisse muito em caráter dos deuses dos povos e tribos
circunvizinhos. É verdade que combateu com eles, tal como os próprios povos
lutavam uns com os outros, mas não podemos supor que viesse à cabeça de um
adorador de Javé daqueles dias negar a existência dos deuses de Canaã, Moab ou
Amalek, e assim por diante, mais do que negar a existência dos povos que neles
acreditavam.
A idéia monoteísta, que flamejara com
Akhenaten, mais uma vez escurecera e deveria permanecer nas trevas por longo
tempo vindouro. Descobertas na ilha Elefantina, logo abaixo da Primeira
Catarata do Nilo, forneceram-nos a surpreendente informação de que uma colônia
militar judaica lá estivera estabelecida durante séculos, e em cujo templo,
juntamente com o deus principal Yahu, duas divindades femininas eram adoradas,
uma delas denominada Anat-Yahu. Esses judeus, é verdade, estavam isolados de
sua pátria-mãe e não tinham tomado parte no desenvolvimento religioso dela; o
governo persa do Egito (do século V a.C.) transmitiu-lhes a informação das
novas normas de adoração emitidas porJerusalém. Remontando a tempos anteriores,
podemos dizer que o deus Javé certamente não apresentava semelhança com o deus
mosaico. Aten fora um pacifista como o seu representante na Terra - ou, mais
apropriadamente, como o seu protótipo, o faraó Akhenaten, que ficou
passivamente olhando enquanto o império mundial conquistado por seus ancestrais
se desagregava. Sem dúvida, Javé era mais apropriado a um povo que estava
começando a ocupar novas pátrias pela força. E tudo no deus mosaico que merecia
admiração estava muito além da compreensão das massas primitivas.
Já disse - e, nesse ponto, alegrei-me por ter
podido reivindicar um acordo com outros escritores - que o fato central do
desenvolvimento da religião judaica foi que, com o decorrer do tempo, o deus
Javé perdeu suas próprias características e começou a assemelhar-se cada vez
mais ao antigo deus de Moisés, Aten. É verdade que permaneceram diferenças às
quais se estaria inclinado, à primeira vista, a atribuir grande importância,
mas que podem ser facilmente explicadas.
No Egito, Aten começara a dominar durante um
período afortunado de posse estabelecida, e mesmo quando o império começou a
oscilar, seus seguidores tinham podido voltar as costas à perturbação e
continuar a louvar suas criações e delas desfrutar. O povo judeu estava fadado
a experimentar uma série de graves provas e penosos eventos; seu deus tornou-se
duro e severo e, por assim dizer, envolto em tristeza. Manteve a característica
de ser um deus universal, a reinar sobre todos os países e povos, mas o fato de
sua adoração ter passado dos egípcios para os judeus encontrou expressão na
crença adicional de que estes últimos eram seu povo escolhido, cujas obrigações
especiais acabariam por receber também uma recompensa especial. Pode não ter
sido fácil ao povo reconciliar uma crença em ser preferido por seu deus
onipotente com as tristes experiências de seu infeliz destino. Mas eles não se
deixaram abalar em suas convicções; aumentaram seu próprio sentimento de culpa
a fim de sufocar suas dúvidas a respeito de Deus, e pode ser que, por fim,
tenham apontado para os ‘inescrutáveis desígnios da Providência’, como as
pessoas piedosas fazem até hoje. Se eles se sentiram inclinados a se espantar
por ele ter permitido que um agressor violento após outro surgisse, os
expulsasse e os maltratasse - assírios, babilônios, persas - ainda puderam
reconhecer o poder dele no fato de todos esses perversos inimigos terem sido,
por sua vez, conquistados e seus impérios se terem desvanecido.
Sob três importantes aspectos, o deus posterior
dos judeus tornou-se, ao final, semelhante ao velho deus mosaico. O primeiro e
decisivo ponto é que ele foi verdadeiramente reconhecido como o único deus, ao
lado do qual qualquer outro deus era impensável. O monoteísmo de Akhenaten foi
levado a sério por um povo inteiro; na verdade, esse povo apegou-se tanto a
essa idéia, que ela se tornou o principal conteúdo de sua vida intelectual e
não lhe deixou interesse para outras coisas. Sobre isso, o povo e a classe
sacerdotal que se tinha tornado dominante entre ele estavam acordes. Mas,
enquanto os sacerdotes exauriam esforços em erguer o cerimonial para a sua
adoração, entraram em oposição com intensas correntes dentro do povo, que
buscavam reviver duas outras das doutrinas de Moisés sobre seu deus. As vozes
dos Profetas nunca se cansaram de declarar que Deus desprezava o cerimonial e o
sacrifício, e exigia apenas que as pessoas acreditassem nele e levassem uma
vida de verdade e justiça. E quando louvavam a simplicidade e a santidade da
vida no deserto, estavam certamente sob a influência dos ideais mosaicos.
É hora de levantar a questão de saber se existe
qualquer necessidade de invocar a influência de Moisés como causa da forma
final assumida pela idéia judaica de Deus, ou se não seria suficiente presumir
um desenvolvimento espontâneo para a intelectualidade mais elevada no correr de
uma vida cultural a se estender por centenas de anos. Há duas coisas a serem
ditas sobre essa possível explicação, que colocaria fim a todas as nossas
enigmáticas conjecturas. Em primeiro lugar, ela não explica nada. No caso dos
gregos - indiscutivelmente, um povo altamente dotado -, as mesmas condições não
conduziram ao monoteísmo, mas à desintegração de sua religião politeísta e ao
início do pensamento filosófico. No Egito, até onde podemos compreender, o
monoteísmo cresceu como um subproduto do imperialismo. Deus era um reflexo do
faraó, que era soberano absoluto de um grande império mundial. Com os judeus,
as condições políticas eram altamente desfavoráveis ao desenvolvimento da idéia
de um deus nacional exclusivo para a de um soberano universal do mundo. E onde
foi que essa minúscula e impotente nação achou a arrogância de declarar-se a si
própria filha favorita do grande Senhor? O problema da origem do monoteísmo
entre os judeus permaneceria assim irresolvido, ou teríamos de nos contentar
com a resposta comum segundo a qual o monoteísmo era expressão do gênio
religioso peculiar desse povo. É bem sabido que o gênio é incompreensível e
irresponsável; portanto, não devemos trazê-lo à baila como explicação até que
toda outra solução nos tenha falhado.
Além disso, deparamo-nos com o fato de que os
próprios registros e escritos históricos judaicos nos apontam o caminho,
asseverando bastante definidamente - dessa vez, sem contradizer-se - que a
idéia de um deus único foi trazida ao povo por Moisés. Se há uma objeção à fidedignidade
dessa afirmação, é a de que a revisão sacerdotal do texto que temos perante nós
faz, obviamente, demasiadas coisas remontarem a Moisés. Instituições tais como
as ordenações rituais, que datam inequivocamente de épocas posteriores, são
dadas como mandamentos mosaicos, com a clara intenção de lhes emprestar
autoridade. Isso certamente nos fornece fundamentos para suspeita, mas não o
suficiente para uma rejeição, pois o motivo mais profundo para um exagero desse
tipo é óbvio. A narrativa sacerdotal busca estabelecer uma continuidade entre
seu período contemporâneo e o remoto passado mosaico; busca repudiar exatamente
o que descrevemos como sendo o fato mais notável da história religiosa judaica,
a saber, a existência de uma lacuna hiante entre a legislação de Moisés e a
religião judaica posterior - lacuna que foi, a princípio, preenchida pela
adoração de Javé, e só lentamente remendada depois. Ela discute esse curso de
eventos por todos os modos possíveis, embora sua correção histórica esteja
estabelecida para além de qualquer dúvida, desde que, no tratamento específico
dado ao texto bíblico, provas superabundantes foram deixadas para prová-lo.
Aqui, a revisão sacerdotal tentou algo semelhante à deformação tendenciosa que
transformou o novo deus Javé no deus dos Patriarcas,ver em [[1]].Se levarmos em
consideração esse motivo do Código Sacerdotal, acharemos difícil reter nossa
crença a partir da asserção de que foi realmente o próprio Moisés que forneceu
a idéia monoteísta aos judeus. Estaremos ainda mais prontos a dar assentimento
já que podemos dizer de onde Moisés derivou essa idéia, a qual, certamente, os
sacerdotes judeus não conheciam mais.
E, aqui, alguém poderia perguntar o que
lucramos fazendo remontar o monoteísmo judaico ao egípcio. Isso simplesmente
leva o problema a voltar um pouco mais para trás: não nos diz nada sobre a
gênese da idéia monoteísta. A resposta é que não se trata de questão de lucro,
mas de investigação. Talvez possamos aprender algo a partir dela, se
descobrimos o curso real dos eventos.
B - O PERÍODO DE LATÊNCIA E A
TRADIÇÃO
Confessamos a crença, portanto, de que a idéia
de um deus único, bem como a rejeição do cerimonial magicamente eficaz e a
ênfase dada às exigências éticas feitas em seu nome, foram de fato doutrinas
mosaicas, às quais de início nenhuma atenção foi prestada, mas que, após um
longo intervalo ter transcorrido, entraram em operação e acabaram por tornar-se
permanentemente estabelecidas. Como explicaremos um efeito retardado desse tipo
e onde nos deparamos com um fenômeno semelhante?
Ocorre-nos em seguida que tais coisas não são
infreqüentemente encontradas nas esferas mais variadas e que elas provavelmente
acontecem através de uma série de maneiras que são compreensíveis com maior ou
menor facilidade. Tomemos, por exemplo, a história de uma nova teoria
científica, tal como a teoria da evolução, de Darwin. A princípio, ela
defrontou-se com acerbada rejeição e foi violentamente discutida durante
décadas; contudo, não foi preciso mais de uma geração para ser reconhecida como
um grande passo à frente no sentido da verdade. O próprio Darwin conquistou a
honra de ter uma sepultura ou cenotáfio na Abadia de Westminster. Um caso como
esse deixa-nos pouco a esclarecer. A nova verdade desperta resistências
emocionais; estas encontram expressão em argumentos pelos quais as provas em
favor da teoria impopular não podem ser discutidas; o combate de opiniões toma
um certo período de tempo; desde o princípio, há adeptos e oponentes; tanto o
número quanto o peso dos primeiros continuam a crescer, até que, por fim, levam
a palma; durante todo o tempo de luta, o assunto com que ela se relaciona
jamais é esquecido. Mal nos surpreendemos que o curso inteiro dos
acontecimentos tome uma extensão considerável de tempo, e provavelmente não
apreciamos suficientemente que aquilo em que estamos interessados constitui um
processo de psicologia de grupo.
Não há dificuldade em encontrar, na vida mental
de um indivíduo, uma analogia que corresponde exatamente a esse processo. Tal
seria o caso se uma pessoa aprendesse algo de novo para ela, que, com base em
certas provas, teria de reconhecer como sendo verdadeiro, mas que contradiz
alguns de seus desejos e choca algumas convicções que lhe são preciosas. A
seguir, essa pessoa hesitará, buscará razões que a capacitem a lançar dúvidas
sobre essa coisa nova, e, por algum tempo, ela lutará consigo mesma, até que,
finalmente, admitirá para si: ‘De qualquer modo, é assim, embora não me seja
fácil aceitar, embora me seja aflitivo ter de acreditar. O que a partir disso
aprendemos é simplesmente que leva tempo para a atividade raciocinante do ego
superar as objeções sustentadas por intensas catexias afetivas. A semelhança
entre esse caso e aquele que estamos nos esforçando por compreender não é muito
grande.
O próximo exemplo para o qual nos voltamos
parece ter ainda menos em comum com nosso problema. Pode acontecer que um homem
que experimentou algum acidente assustador - colisão ferroviária, por exemplo,
- deixe a cena desse evento aparentemente incólume. No decorrer das semanas
seguintes, contudo, desenvolve uma série de sintomas psíquicos e motores
graves, os quais só podem ser remontados a seu choque, à concussão, ou ao que
quer que seja. Agora, esse homem tem uma ‘neurose traumática’. Trata-se de um
fato inteiramente ininteligível - o que equivale a dizer: novo. O tempo
decorrido entre o acidente e o primeiro aparecimento dos sintomas é descrito
como sendo o ‘período de incubação’, numa clara alusão à patologia das doenças
infecciosas. Refletindo, deve impressionar-nos que, apesar da diferença
fundamental entre os dois casos - o problema da neurose traumática e do
monoteísmo judaico -, exista, não obstante, um ponto de concordância; a saber:
a característica que poderia ser descrita como ‘latência’. Segundo nossa ousada
hipótese, na história da religião judaica houve, após a defecção em relação à
religião de Moisés, um longo período durante o qual não se detectou sinal algum
da idéia monoteísta, do desprezo pelo cerimonial, ou da grande ênfase dada à
ética. Assim, ficamos preparados para a possibilidade de que a solução de nosso
problema deva ser procurada numa situação psicológica específica.
Já descrevemos repetidamente o que sucedeu em
Cades, quando as duas partes do que mais tarde viria a ser o povo judeu se
reuniram para receber uma nova religião. Naqueles que, por um lado, estiveram
no Egito, as lembranças do Êxodo e da figura de Moisés eram ainda tão fortes e
vívidas, que exigiram sua inclusão numa descrição dos primeiros tempos. Eram
netos, talvez, de pessoas que conheceram o próprio Moisés, e alguns ainda se
sentiam, eles próprios, egípcios, e portavam nomes egípcios. Mas tinham bons
motivos para reprimir a lembrança da sorte que seu líder e legislador
encontrara. O intuito determinante da outra parte do povo era glorificar o novo
deus e discutir sua condição de estrangeiro. Ambas as partes possuíam o mesmo
interesse em repudiar o fato de terem tido uma religião anterior e a natureza
do conteúdo dela. Foi desse modo que ocorreu o primeiro acordo, provavelmente
logo registrado por escrito. O povo oriundo do Egito trouxera consigo a escrita
e o desejo de escrever história; mas longo tempo deveria passar-se antes que a
escrita histórica compreendesse que estava comprometida com uma veracidade
inabalável. Inicialmente, ela não tinha escrúpulos em modelar suas narrativas
segundo as necessidades e os propósitos do momento, como se ainda não tivesse
reconhecido o conceito de falsificação. Em resultado dessas circunstâncias,
pôde desenvolver-se uma discrepância entre o registro escrito e a transmissão
oral do mesmo material - a tradição. O que fora omitido ou alterado no
registro escrito poderia muito bem ter sido preservado intacto na tradição.
Esta constituía não só um suplemento, mas, ao mesmo tempo, uma contradição do
escrito histórico. Estava menos sujeita à influência de intuitos deformantes e
talvez, em certos pontos, inteiramente isenta deles; poderia, portanto, ser
mais verídica do que o relato registrado por escrito. Sua fidedignidade,
contudo, padecia do fato de ser menos estável e menos definida do que a
descrição escrita, e exposta a numerosas mudanças e alterações quando era
transmitida, de uma geração para outra, através da comunicação oral. Uma
tradição dessa espécie poderia defrontar-se com variados tipos de destino. O
que deveríamos esperar mais, seria que ela fosse esmagada pelo relato escrito,
incapacitada de erguer-se contra este, se tornasse cada vez mais esmaecida e,
finalmente, passasse para o esquecimento. Mas ela poderia defrontar-se com outros
destinos: um deles seria o de que a própria tradição terminasse num registro
escrito, e ainda teremos de lidar com outros, à medida que progredimos.
O fenômeno da latência na história da religião
judaica, com o qual estamos lidando, pode ser explicado, portanto, pela
circunstância de que os fatos e as idéias que foram intencionalmente repudiados
pelos que podem ser chamados de historiadores oficiais, nunca se perderam
realmente. Informações sobre eles persistiram em tradições que sobreviveram
entre o povo. Na verdade, como Sellin nos assegura, houve realmente uma
tradição sobre o fim de Moisés que contradizia redondamente a descrição oficial
e que estava muito mais perto da verdade. O mesmo, podemos presumir, também se
aplicou a outras coisas que aparentemente deixaram de existir ao mesmo tempo
que Moisés - a alguns dos conteúdos da religião mosaica que tinham sido
inaceitáveis para a maioria de seus contemporâneos.
O fato marcante com que somos aqui confrontados
é, contudo, que essas tradições, em vez de se tornarem mais fracas com o tempo,
se tornaram cada vez mais poderosas no decorrer dos séculos, impuseram sua
entrada nas revisões posteriores dos relatos oficiais e, finalmente, se
mostraram suficientemente fortes para exercer influência decisiva nos pensamentos
e ações do povo. No momento, é verdade, os determinantes que tornaram possível
esse resultado estão fora de nosso conhecimento.
Esse fato é tão notável, que nos sentimos
justificados em examiná-lo de novo. Nosso problema está abrangido nele. O povo
judeu abandonou a religião de Aten que lhes foi dada por Moisés e voltou-se
para a adoração de outro deus que pouco diferia dos Baalim dos povos vizinhos.
Todos os esforços tendenciosos de épocas posteriores fracassaram em disfarçar
esse fato vergonhoso. Mas a religião mosaica não se desvaneceu sem deixar
traço; algum tipo de lembrança dela manteve-se viva: uma tradição possivelmente
obscurecida e deformada. E foi essa tradição de um grande passado que continuou
a operar (do fundo da cena, por assim dizer), que gradativamente adquiriu cada
vez mais poder sobre as mentes das pessoas e que, ao final, conseguiu
transformar o deus Javé no deus mosaico e redespertar para a vida a religião de
Moisés que fora introduzida e, depois, abandonada havia longos séculos. Que uma
tradição assim mergulhada no olvido exercesse efeito tão poderoso sobre a vida
mental de um povo constitui uma idéia pouco familiar para nós. Aqui,
encontramo-nos no campo da psicologia grupal, onde não nos sentimos à vontade.
Procuramos em volta, em busca de analogias, de fatos que sejam pelo menos de
natureza semelhante, ainda que em campos diferentes. E fatos desse tipo,
acredito, podem ser encontrados.
Durante o período em que, entre os judeus, o
retorno da religião de Moisés estava em preparação, o povo grego descobriu-se
na posse de um acervo excepcionalmente rico de lendas tribais e mitos heróicos.
Acredita-se que o século IX ou VIII a.C. viu a origem das duas epopéias
homéricas, que hauriram seu material nesse círculo de lendas. Com nossa atual
compreensão interna (insight) psicológica, poderíamos, muito antes de
Schliemann e Evans, ter levantado a questão de saber de onde os gregos
conseguiram todo o material legendário elaborado por Homero e os grandes
dramaturgos áticos em suas obras-primas. A resposta teria tido de ser a de que
esse povo provavelmente experimentara em sua pré-história um período de
brilhantismo externo e eflorescência cultural perecido numa catástrofe
histórica, do qual uma obscura tradição sobrevivia nessas lendas. As pesquisas
arqueológicas de nossos dias confirmaram agora essa suspeita, que no passado
certamente teria sido pronunciada como sendo audaciosa demais. Essas pesquisas
revelaram as provas da impressionante civilização minóico-miceniana, que
provavelmente chegou ao fim na Grécia continental antes de 1250 a.C.
Dificilmente uma alusão a ela pode ser encontrada nos historiadores gregos da
época posterior; no máximo, uma observação de que houve um tempo em que os
cretenses exerciam o comando do mar, e o nome do rei Minos e de seu palácio, o
Labirinto. Isso é tudo; além disso nada remanesceu, exceto as tradições de que
os poetas se apossaram.
As epopéias nacionais de outros povos -
alemães, indianos, finlandeses - também vieram à luz. É tarefa dos
historiadores da literatura investigar se podemos presumir em relação à sua
origem os mesmos determinantes que os dos gregos. Uma tal investigação
renderia, acredito, um resultado positivo. Aqui está o determinante que
identificamos: um fragmento de pré-história que, imediatamente depois, estaria
sujeito a parecer rico em conteúdo, importante, esplêndido, e sempre, talvez,
heróico, mas que jaz tão atrás, em tempos tão remotos, que apenas uma tradição
obscura e incompleta informa as gerações posteriores sobre ele. Sentiu-se surpresa
por que a epopéia, como forma artística, se tenha extinguido em épocas
posteriores. A explicação pode ser que sua causa determinante não existe mais.
O velho material foi utilizado e, para todos os eventos posteriores, a escrita
histórica tomou o lugar da tradição. Os maiores feitos heróicos de nossos dias
não foram capazes de inspirar um poema épico, e mesmo Alexandre, o Grande,
tinha direito a se lamentar de não encontrar um Homero.
As eras há muito tempo passadas exercem uma
grande e freqüentemente enigmática atração para a imaginação dos homens. Sempre
que estão insatisfeitos com seu ambiente atual - e isso acontece quase sempre -
se voltam para o passado e esperam ser agora capazes de demonstrar a verdade do
imperecível sonho de uma Idade de Ouro. Provavelmente ainda se encontram sob o
encantamento de sua infância, que lhes é apresentada por sua memória não
imparcial como uma época de ininterrupta felicidade.
Se tudo o que resta do passado são as
incompletas e enevoadas lembranças que chamamos de tradição, isso oferece ao
artista uma atração peculiar, pois, nesse caso, ele fica livre para preencher
as lacunas da memória de acordo com os desejos de sua imaginação e para
retratar o período que quer reproduzir segundo suas intenções. Quase se poderia
dizer que, quanto mais vaga uma tradição, mais útil ela se torna para um poeta.
Não precisamos,portanto, ficar surpresos pela importância da tradição para a
escrita imaginativa, e a analogia com a maneira pela qual as epopéias são
determinadas nos deixará mais inclinados a aceitar a estranha hipótese de que
foi a tradição de Moisés que, para os judeus, alterou a adoração de Javé no
sentido da antiga religião mosaica. Contudo, sob outros aspectos, os dois casos
ainda são muito diferentes. Por um lado, o resultado é um poema; por outro, é
uma religião, e, nesse último caso, presumimos que, sob o acicate da tradição,
ele foi reproduzido com uma fidelidade para a qual o exemplo da epopéia
naturalmente não pode oferecer contrapartida. Por conseguinte, resta muita
coisa de nosso problema para justificar a necessidade de analogias mais
apropriadas.
C - A ANALOGIA
A única analogia satisfatória com o notável
curso de acontecimentos que encontramos na história da religião judaica reside
num campo aparentemente remoto, mas é bastante completa e aproxima-se da
identidade. Nela, mais uma vez nos deparamos com o fenômeno da latência, o
surgimento de manifestações ininteligíveis, a exigir uma explicação, e um
acontecimento precoce, e depois esquecido, como determinante necessário.
Encontramos também a característica da compulsão, que se impõe à mente
juntamente com uma subjugação do pensamento lógico, aspecto que, por exemplo,
não entrou em consideração na gênese do poema épico.
A analogia é encontrada na psicopatologia, na
gênese das neuroses humanas, num campo, equivale a dizer, pertencente à
psicologia dos indivíduos, ao passo que os fenômenos religiosos, naturalmente,
têm de ser considerados como parte da psicologia grupal. Veremos que essa
analogia não é tão surpreendente como a princípio se poderia pensar; na
verdade, ela se assemelha mais a um postulado.
Denominanos traumas aquelas impressões,
cedo experimentadas e mais tarde esquecidas, a que concedemos tão grande
importância na etiologia das neuroses. Podemos deixar de lado a questão de
saber se a etiologia das neuroses em geral pode ser encarada como traumática. A
objeção óbvia a isso é que não é possível, em todos os casos, descobrir um
trauma manifesto na história primitiva do indivíduo neurótico. Com freqüência,
devemos resignar-nos a dizer que tudo o que temos perante nós é uma reação
anormal, fora do comum, a experiências e exigências que afetam a todos, mas são
elaboradas e tratadas por outras pessoas de uma outra maneira, que pode ser
chamada de normal. Quando não temos nada mais à nossa disposição para explicar
uma neurose, exceto disposições hereditárias e constitucionais, ficamos
naturalmente tentados a dizer que ela não foi adquirida, mas desenvolvida.
Quanto a isso, porém, dois pontos devem ser
enfatizados. Em primeiro lugar, a gênese de uma neurose invariavelmente remonta
a impressões muito primitivas da infância. Em segundo, é verdade que existem
casos que se distinguem como ‘traumáticos’ porque seus efeitos remontam
inequivocamente a uma ou mais impressões poderosas nessas épocas primitivas -
impressões que escaparam de ser lidadas normalmente, de maneira que se fica
inclinado a julgar que, se não tivessem ocorrido, tampouco a neurose teria
surgido. Seria bastante para nossos fins se fôssemos obrigados a restringir a
analogia de que estamos à procura a esses casos traumáticos. Mas o hiato entre
os dois grupos [de casos] não parece ser intransponível. É inteiramente
possível unir os dois determinantes etiológicos numa só concepção; trata-se
simplesmente da questão de como definir ‘traumático’. Se presumirmos que a
experiência adquire seu caráter traumático apenas em resultado de um fator
quantitativo - isto é, que em cada caso é um excesso de exigência o responsável
por uma experiência que evoca reações patológicas fora do comum -, então
poderemos facilmente chegar ao expediente de dizer que algo age como um trauma
no caso de determinada constituição, mas, no caso de outra, não teria tal
efeito. Dessa maneira, atingimos o conceito de uma ‘série complementar’
deslizante, tal como é chamada1 na qual dois fatores convergem para o
preenchimento de um requisito etiológico. Uma parte menor de um dos fatores é
equilibrada por uma parte maior do outro via de regra, ambos operam em conjunto
e é somente nas duas extremidades da série que se pode discutir se um motivo
simples está em ação. Após mencionar isso, podemos desprezar, como sendo
irrelevante para a analogia que estamos buscando, a distinção entre etiologias
traumáticas e não-traumáticas.
Apesar do risco de repetição, talvez seja bom
reunir aqui os fatos que abrangem a analogia que nos é significativa. São os
seguintes. Nossas pesquisas demonstraram que aquilo que chamamos de fenômenos
(sintomas) de uma neurose são o resultado de certas experiências e impressões
que, por essa mesma razão, encaramos como traumas etiológicos. Temos agora duas
tarefas perante nós: descobrir (1) características comuns dessas experiências e
(2) as dos sintomas neuróticos, e, assim procedendo, não precisamos evitar
traçar um quadro um tanto esquemático.
(1) (a) Todos esses traumas ocorrem na primeira
infância até aproximadamente o quinto ano de idade. Impressões da época em que
uma criança está começando a falar ressaltam como sendo de particular
interesse; os períodos entre as idades de dois e quatro anos parecem ser os
mais importantes; não se pode determinar com certeza quanto tempo após o
nascimento esse período de receptividade começa. (b) As experiências em apreço
são, via de regra, totalmente esquecidas, não são acessíveis à memória e
incidem dentro do período de amnésia infantil, geralmente interrompida por
alguns resíduos mnêmicos isolados, conhecidos como ‘recordações encobridoras’.
(c) Elas relacionam-se a impressões de natureza sexual e agressiva, e,
indubitavelmente, também a danos precoces ao ego (mortificações narcísicas).
Com relação a isso, deve-se observar que essas crianças de tenra idade não
estabelecem distinção nítida entre atos sexuais e agressivos, como o fazem
posteriormente. (Cf. a má interpretação do ato sexual, num sentido sádico.) O
predomínio do fator sexual é, naturalmente, mais marcante e exige consideração
teórica.
Esses três pontos - o aparecimento bastante
precoce dessas experiências (durante os cinco primeiros anos de vida), o fato
de serem esquecidas, e seu conteúdo sexual-agressivo - estão estreitamente
intervinculados. Os traumas são ou experiências sobre o próprio corpo do
indivíduo ou percepções sensórias, principalmente de algo visto e ouvido, isto
é, experiências ou impressões. A intervinculação desses três pontos é
estabelecida por uma teoria, um produto do trabalho de análise que, apenas ele,
pode provocar um conhecimento das experiências esquecidas, ou, para expressá-lo
do modo mais vivo, embora também mais incorretamente, trazê-las de volta à
memória. A teoria é que, em contraste com a opinião popular, a vida sexual dos
seres humanos (ou o que a ela corresponde mais tarde) apresenta uma
eflorescência precoce que chega ao fim por volta do quinto ano, sendo seguida
pelo que é conhecido como período de latência (até a puberdade), em que não há
desenvolvimento ulterior da sexualidade e, na verdade, o que fora atingido
experimenta uma retrogressão. Essa teoria é confirmada pela investigação
anatômica do crescimento dos órgãos genitais internos; ela nos leva a supor que
a raça humana descende de uma espécie animal que atingiu a maturidade sexual
aos cinco anos e desperta a suspeita de que o adiamento da vida sexual e seu
desencadeamento difásico [em duas ondas] estão intimamente vinculados à função
de hominização. Os seres humanos parecem ser os únicos organismos animais com
um período de latência e um retardamento sexual desse tipo. Investigações
efetuadas em primatas (que, até onde sei, não estão disponíveis) seriam
indispensáveis para a verificação dessa teoria. Não pode ser psicologicamente
indiferente que o período de amnésia infantil coincida com esse período
primitivo da sexualidade. Pode ser que esse estado de coisas forneça o
verdadeiro determinante para a possibilidade da neurose, que é, em certo
sentido, uma prerrogativa humana e, desse ponto de vista, aparece como um
vestígio - um ‘survival’ - de tempos primevos, tal como certas partes de nossa
anatomia corporal.
(2) Dois pontos devem ser acentuados quanto às
características ou peculiaridades comuns dos fenômenos neuróticos: (a) Os
efeitos dos traumas são de dois tipos, positivos e negativos. Os primeiros são
tentativas de pôr o trauma em funcionamento mais uma vez, isto é, recordar a
experiência esquecida ou, melhor ainda, torná-la real, experimentar uma
repetição dela de novo, ou, mesmo que ela seja apenas um relacionamento
emocional primitivo, revivê-la num relacionamento análogo com outra pessoa.
Resumimos esses esforços sob o nome de ‘fixações’ no trauma e como uma
‘compulsão a repetir’. Eles podem ser percebidos no que passa por ser um ego
normal e, como tendências permanentes nele, podem emprestar-lhe traços
caracterológicos inalteráveis, embora, ou melhor, precisamente por causa disso,
sua verdadeira base e origem históricas estejam esquecidas. Assim, um homem que
passou a infância numa ligação excessiva e atualmente esquecida com a mãe pode
passar toda a vida procurando uma esposa de quem possa conseguir ser nutrido e
apoiado. Uma menina que foi tornada objeto de uma sedução sexual na infância
pode orientar sua vida sexual posterior de maneira a constantemente provocar
ataques semelhantes. Pode-se facilmente adivinhar que, a partir de tais
descobertas sobre o problema da neurose, podemos penetrar numa compreensão da
formação do caráter em geral.
As reações negativas seguem o objetivo oposto:
que nada dos traumas esquecidos seja recordado e repetido. Podemos resumi-las
como ‘reações defensivas’. Sua expressão principal constitui aquilo que é
chamado de ‘evitações’, que se podem intensificar em ‘inibições’ e ‘fobias’.
Essas reações negativas também efetuam as contribuições mais poderosas para a
cunhagem do caráter. Fundamentalmente, elas são fixações no trauma, tanto
quanto seus opostos, exceto por serem fixações com intuito contrário. Os
sintomas de neurose, no sentido mais estrito, são conciliações em que ambas as
tendências procedentes dos traumas se reúnem, de maneira que a cota, ora de
uma, ora de outra tendência, encontre nelas expressão preponderante. Essa
oposição entre as reações dá início a conflitos que, no curso comum dos
acontecimentos, não conseguem chegar a qualquer conclusão.
(b) Todos esses fenômenos, tanto os sintomas
quanto as restrições ao ego e as modificações estáveis de caráter, possuem uma
qualidade compulsiva: isso equivale a dizer que têm uma grande
intensidade psíquica e, ao mesmo tempo, apresentam uma independência de grandes
conseqüências quanto à organização dos outros processos mentais, que se ajustam
à exigências do mundo externo real e obedecem às leis do pensamento lógico.
Eles [os fenômenos patológicos] são insuficientemente ou de modo algum
influenciados pela realidade externa, não lhe concedeu atenção ou a seus
representantes psíquicos, de maneira que podem facilmente entrar em oposição
ativa a ambos. São, poder-se-ia dizer, um Estado dentro de um Estado, um
partido inacessível, com o qual a cooperação é impossível, mas que pode
alcançar êxito em dominar o que é conhecido como partido normal e forçá-lo a
seu serviço. Se isso acontecer, acarreta uma dominação, por parte de uma
realidade psíquica interna, sobre a realidade do mundo externo, e está aberto o
caminho para a psicose. Mesmo se as coisas não vão até esse ponto, a inibição
prática dessa situação dificilmente pode ser superestimada. A inibição sobre a
vida daqueles que são dominados por uma neurose e sua incapacidade de viver
constituem fator muito importante numa sociedade humana, e podemos identificar
em seu estado uma expressão direta de sua fixação numa parte primitiva de seu
passado.
E agora investiguemos a latência, que, em vista
da analogia, está fadada a nos interessar especialmente. Um trauma na infância
pode ser imediatamente seguido por um desencadeamento neurótico, uma neurose
infantil, com uma abundância de esforços de defesa, e acompanhada pela formação
de sintomas. Esta neurose pode durar um tempo considerável e provocar
perturbações acentuadas, mas pode também seguir um curso latente e não ser
notada. Via de regra, as defesas levam a palma nisso; seja como for, alterações
do ego, comparáveis a cicatrizes, são deixadas atrás. Só raramente uma neurose
infantil prossegue, sem interrupção, numa neurose adulta. Muito mais
freqüentemente ela é sucedida por um período de desenvolvimento aparentemente
não perturbado - curso de coisas apoiado ou tornado possível pela intervenção
do período fisiológico da latência. Só posteriormente realiza-se a mudança com
que a neurose definitiva se torna manifesta, como um efeito retardado do
trauma. Isso ocorre ou na irrupção da puberdade ou algum tempo depois. No
primeiro caso, isso sucede porque as reações e alterações do ego provocadas
pela defesa se mostram agora um estorvo no lidar com as novas tarefas da vida,
de maneira que graves conflitos surgem entre as exigências do mundo externo
real e o ego, que busca manter a organização a que penosamente chegou em sua
luta defensiva. O fenômeno de uma latência das neuroses entre as primeiras
reações ao trauma e o desencadeamento posterior da doença deve ser considerado
como típico. Essa última doença também pode ser encarada como uma tentativa de
cura - como mais um esforço para reconciliar com o resto aquelas partes do ego
que foram expelidas (split off) pela influência do trauma, e uni-las num
todo poderoso vis-à-vis o mundo externo. Contudo, uma tentativa desse tipo
raramente tem êxito, a menos que o trabalho de análise venha em sua ajuda, e
mesmo então, nem sempre; finda, com bastante freqüência, por uma devastação ou
fragmentação completa do ego, ou por ele ser esmagado pela parte que foi
precocemente expelida e que é dominada pelo trauma.
A fim de convencer o leitor, seria necessário
fornecer relatórios pormenorizados das histórias da vida de numerosos
neuróticos. Entretanto, em vista da difusão e dificuldade do assunto, isso destruiria
completamente o caráter do presente trabalho. Transformá-lo-ia numa monografia
sobre a teoria das neuroses e, ainda assim, provavelmente só teria efeito sobre
aquela minoria de leitores que optaram pelo estudo e a prática da psicanálise
como seu trabalho de vida. Visto que estou dirigindo-me aqui a uma audiência
mais ampla, só posso pedir ao leitor para conceder-me uma certa crença
provisória na descrição abreviada que forneci acima, e isso deve ser
acompanhado por uma admissão de minha parte de que as implicações a que estou
agora conduzindo-o só precisam ser aceitas se as teorias em que se baseiam se
mostrarem corretas.
Não obstante, posso tentar contar a história de
um caso isolado que apresenta com especial clareza algumas das características
de neurose que mencionei. Não devemos esperar, naturalmente, que um único caso
demonstre tudo, e precisaremos não nos sentir desapontados se seu tema geral
estiver muito afastado do tópico para o qual estou buscando uma analogia.
Um menininho que, como tão freqüentemente
acontece nas famílias de classe média, partilhara do quarto de dormir dos pais
durante os primeiros anos de sua vida, tivera repetidas e, na verdade,
regulares oportunidades de observar atos sexuais entre os pais - de ver algumas
coisas e ouvir outras mais - numa idade em que mal aprendera a falar. Em sua
neurose posterior, que irrompeu imediatamente depois de sua primeira emissão
espontânea, o primeiro e mais perturbador dos sintomas foi o distúrbio do sono.
Era extraordinariamente sensível a barulhos à noite e, uma vez acordado, não
conseguia dormir de novo. Esse distúrbio do sono era um verdadeiro sintoma de
conciliação. Por um lado, constituía expressão de sua defesa contra as coisas
que havia experimentado à noite, e, por outro, uma tentativa de restabelecer o
estado de vigília em que pudera escutar aquelas impressões.
A criança foi prematuramente despertada, por
observações desse tipo, a uma masculinidade agressiva e começou a excitar seu
pequeno pênis com a mão e a tentar variados assaltos sexuais à mãe,
identificando-se assim com o pai, em cujo lugar se colocava. Isso prosseguiu
até que, por fim, a mãe proibiu-o de tocar no pênis e ameaçou-o ainda de contar
a seu pai, que o castigaria tirando-lhe fora o órgão pecaminoso. Essa ameaça de
castração exerceu um efeito traumático extraordinariamente poderoso sobre o
menino. Ele abandonou sua atividade sexual e alterou seu caráter. Em vez de se
identificar com o pai, ficou com medo dele, adotou para com ele uma atitude
passiva e, através de travessuras ocasionais, provocava-o à administração de
castigos corporais, que tinham para ele significado sexual, de maneira a assim
poder identificar-se com sua maltratada mãe. Apegou-se à mãe cada vez mais
ansiosamente, como se não pudesse passar sem o amor dela por um só momento,
visto que percebia nele uma proteção contra o perigo de castração que o
ameaçava do lado do pai. Nessa modificação do complexo de Édipo, passou ele seu
período de latência, que foi livre de quaisquer distúrbios acentuados. Tornou-se
um menino exemplar e era muito bem-sucedido na escola.
Até agora, acompanhamos o efeito imediato do
trauma e confirmamos o fato da latência.
A chegada da puberdade trouxe consigo a neurose
manifesta e revelou seu segundo sintoma principal - a impotência sexual.
Perdera a sensibilidade do pênis, não tentava tocá-lo, não se arriscava a
aproximar-se de uma mulher para fins sexuais. Sua atividade sexual permanecia
limitada à masturbação psíquica, acompanhada por fantasia sado-masoquista nas
quais não era difícil identificar ramificações de suas primitivas observações
da relação sexual entre os pais. A onda de masculinidade intensificada que a
puberdade trouxera consigo foi empregada num ódio furioso ao pai e na
insubordinação a ele. Essa relação extremada com o pai, ousada ao ponto de
autodestruição, era responsável tanto por seu fracasso na vida quanto por seus
conflitos com o mundo externo. Ele tinha de ser um fracasso em sua profissão,
porque o pai o forçara a segui-la. Tampouco fazia amigos e nunca esteve em bons
termos com seus superiores.
Quando, onerado por esses sintomas e
incapacidades, ele por fim, depois da morte do pai, encontrou uma esposa,
emergiram nele, como se constituíssem o cerne de seu ser, traços
caracterológicos que tornavam o contato com ele tarefa difícil para aqueles que
o rodeavam. Desenvolveu uma personalidade completamente egoísta, despótica e
brutal, que claramente sentia necessidade de dominar e insultar outras pessoas.
Constituía uma cópia fiel de seu pai, tal como formara uma imagem deste em sua
memória, o que equivale a dizer, uma revivescência da identificação com o pai
que, no passado, ele assumira como rapazinho, por motivos sexuais. Nessa parte
da história, reconhecemos o retorno do reprimido, o qual (juntamente com os
efeitos imediatos do trauma e o fenômeno da latência) descrevemos como estando
situado entre as características essenciais de uma neurose.
D - APLICAÇÃO
Trauma primitivo - defesa - latência -
desencadeamento da doença neurótica - retorno parcial reprimido: tal é a
fórmula que estabelecemos para o desenvolvimento de uma neurose. O leitor é
agora convidado a dar o passo de supor que ocorreu na vida da espécie humana
algo semelhante ao que ocorre na vida dos indivíduos, de supor, isto é, que
também aqui ocorreram eventos de natureza sexualmente agressiva, que deixaram
atrás de si conseqüências permanentes, mas que foram, em sua maioria, desviados
e esquecidos, e que após uma longa latência entraram em vigor e criaram
fenômenos semelhantes a sintomas, em sua estrutura e propósito.
Acreditamos que podemos adivinhar esses eventos
e nos propomos demonstrar que suas conseqüências semelhantes a sintomas são os
fenômenos da religião. Visto que o surgimento da idéia da evolução não mais
deixa lugar para dúvidas de que a raça humana possui uma pré-história, e visto
que esta é desconhecida - isto é, esquecida -, uma conclusão desse tipo carrega
quase o peso de um postulado. Quando aprendemos que, em ambos os casos, os
traumas operantes e esquecidos se referem à vida na família humana, podemos
acolher isso como um prêmio altamente bem-vindo e imprevisto, que não foi
invocado por nossos estudos até esse ponto.
Apresentei essas asserções já um quarto de
século atrás, em meu Totem e Tabu (1912-13), e basta que eu as repita
aqui. Minha construção parte de um enunciado de Darwin (1871, 2, p. 362 e seg.]
e inclui uma hipótese de Atkinson [1903, p. 220 e seg.]. Afirma ela que, em
épocas primevas, o homem primitivo vivia em pequenas hordas cada uma das quais
sob o domínio de um macho poderoso. Nenhuma data pode ser atribuída a isso;
tampouco isso se acha sincronizado às épocas geológicas que nos são conhecidas;
é provável que essas criaturas humanas não tivessem progredido muito no
desenvolvimento da fala. Uma parte essencial da construção é a hipótese de que
os eventos que me disponho a descrever ocorreram a todos os homens primitivos,
isto é, a todos os nossos antepassados. A história é contada sob forma
enormemente condensada, como se tivesse acontecido numa só ocasião, ao passo
que, de fato, ela abrange milhares de anos e se repetiu incontáveis vezes
durante esse longo período. O macho forte era senhor e pai de toda a horda, e
irrestrito em seu poder, que exercia com violência. Todas as fêmeas eram
propriedade sua - esposas e filhas de sua própria horda, e algumas, talvez,
roubadas de outras hordas. A sorte dos filhos era dura: se despertavam o ciúme
do pai, eram mortos, castrados, ou expulsos. Seu único recurso era reunirem-se
em pequenas comunidades, arranjarem esposas para si através do rapto, e, quando
um ou outro deles podia ter êxito nisso, elevarem-se a uma posição semelhante à
do pai, na horda primeva. Por razões naturais, os filhos mais novos ocupavam
uma posição excepcional. Eram protegidos pelo amor de suas mães e podiam tirar
vantagem da idade crescente do pai e sucedê-lo quando de sua morte. Podemos
detectar, em lendas e contos de fadas, ecos tanto da expulsão dos filhos mais
velhos quanto do favorecimento dos mais novos.
O primeiro passo decisivo no sentido de uma
modificação nesse tipo de organização ‘social’ parece ter sido que os irmãos
expulsos, vivendo numa comunidade, uniram-se para derrotar o pai e, como era
costume naqueles dias, devoraram-no cru. Não há necessidade de esquivar-se a
esse canibalismo; ele continuou bem adiante, em épocas posteriores. O ponto
essencial, contudo, é que atribuímos a esses homens primitivos as mesmas
atitudes emocionais que pudemos estabelecer pela investigação analítica nos
primitivos da época atual - em nossos filhos. Isto é, supomos que eles não
apenas odiaram e temeram o pai, mas também o honraram como modelo, e que cada
um deles desejou ocupar seu lugar na realidade. Podemos, se assim for,
compreender o canibalismo como uma tentativa de assegurar uma identificação com
ele, pela incorporação de um pedaço seu.
Deve-se supor que, após o parricídio, um tempo
considerável se passou, durante o qual os irmãos disputaram uns com os outros a
herança do pai, que cada um deles queria para si sozinho. Uma compreensão dos
perigos e da inutilidade dessas lutas, uma rememoração do ato de liberação que
haviam realizado juntos, e os vínculos emocionais mútuos que haviam surgido
durante o período de sua expulsão, conduziram por fim a um acordo entre eles, a
uma espécie de contrato social. A primeira forma de organização social ocorreu
com uma renúncia ao instinto, um reconhecimento das obrigações
mútuas, a introdução de instituições definidas, pronunciadas invioláveis
(sagradas), o que equivale a dizer, os primórdios da moralidade e da
justiça.Cada indivíduo renunciou a seu ideal de adquirir a posição do pai para
si e de possuir a mãe e as irmãs. Assim, surgiram o tabu do incesto e a
injunção à exagomia. Boa parte do poder absoluto liberado pelo
afastamento do pai passou para as mulheres; veio um período de matriarcado.
A recordação do pai persistiu nesse período da ‘aliança fraterna’. Um animal
poderoso - a princípio, talvez, sempre um que também era temido - foi escolhido
como substituto do pai. Uma escolha desse tipo pode parecer estranha, mas o
abismo que os homens estabeleceram mais tarde entre eles próprios e os animais
não existia para os novos primitivos, nem tampouco existe para nossas crianças,
cujas fobias animais podemos compreender como sendo medo do pai. Com relação ao
animal totêmico, a dicotomia original na relação emocional com o pai
(ambivalência) foi inteiramente mantida. Por um lado, o totem era encarado como
ancestral de sangue e espírito protetor do clã, a ser adorado e protegido, e,
por outro, marcava-se um festival em que se lhe achava preparado o mesmo
destino que o pai primevo havia encontrado. Ele era morto e devorado por todos
os membros da tribo, em comum. (A refeição totêmica, segundo Robertson Smith
[1894].) Esse grande festival, na realidade, era uma celebração triunfante da vitória
dos filhos combinados sobre o pai.
Qual é o lugar da religião com relação a isso?
Penso que estamos completamente justificados em encarar o totemismo, com sua
adoração de um substituto paterno, com sua instituição de festivais
comemorativos e de proibições cuja infração era punida pela morte, estamos
justificados, dizia eu, em encarar o totemismo como a primeira forma em que a
religião se manifestou na história humana, e em confirmar o fato de ele ter
sido vinculado, desde o início, aos regulamentos sociais e às obrigações
morais. Aqui, só podemos fornecer o levantamento mais resumido dos outros
desenvolvimentos da religião. Eles, sem dúvida, progrediram paralelamente com
os avanços culturais da raça humana e com as modificações na estrutura das
comunidades humanas.
O primeiro passo para longe do totemismo foi a
humanização do ser que era adorado. Em lugar dos animais, aparecem deuses
humanos, cuja derivação do totem não é escondida. O deus ainda é representado
sob a forma de um animal ou, pelo menos, com um rosto de animal, ou o totem se
torna o companheiro favorito do deus, inseparável dele, ou a lenda nos conta
que o deus matou esse animal exato, que era, afinal de contas, apenas um
estádio preliminar dele próprio. Em certo ponto dessa evolução, que não é
facilmente determinado, aparecem grandes deusas-mães provavelmente antes mesmo
dos deuses masculinos, persistindo após, por longo tempo, ao lado destes. Nesse
meio tempo, uma grande revolução social ocorrera. O matriarcado fora sucedido
pelo restabelecimento de uma ordem patriarcal. Os novos pais, é verdade, jamais
conquistaram a onipotência do pai primevo; havia muitos deles que viviam juntos
em associações maiores do que a horda. Estavam obrigados a se manter em bons
termos uns com os outros, e permaneceram sob as limitações das ordenanças
sociais. É provável que as deusas-mães se tenham originado na época do
cerceamento do matriarcado, como compensação da desatenção às mães. As
divindades masculinas aparecem a princípio com filhos, ao lado das grandes
mães, e só mais tarde assumem claramente as características de figuras
paternas. Esses deuses masculinos do politeísmo refletem as condições
existentes durante a era patriarcal. São numerosos, mutuamente restritivos, e
ocasionalmente subordinados a um deus superior. O passo seguinte, contudo, nos
conduz ao tema que aqui nos interessa: ao retorno de um deus-pai único, de
domínio ilimitado.
Tem-se de admitir que esse levantamento
histórico possui lacunas e é incerto em alguns pontos. Mas todo aquele que
esteja inclinado a pronunciar nossa construção da história primeva como sendo
puramente imaginária estaria subestimando gravemente a riqueza e o valor
probatório do material nela contido. Grandes partes do passado, que aqui foram
reunidas num todo, estão historicamente atestadas: totemismo e as confederações
masculinas, por exemplo. Outras partes sobreviveram em réplicas excelentes.
Assim, as autoridades freqüentemente se impressionaram pela maneira fiel
mediante a qual o sentido e o conteúdo da antiga refeição totêmica são
repetidos no rito da Comunhão Cristã, na qual o crente incorpora o sangue e a
carne de seu deus, em forma simbólica. Numerosas relíquias da era primeva
esquecida sobrevieram nas lendas populares e nos contos de fadas, e o estudo
analítico da vida mental das crianças proporcionou inesperada abundância de
material para preencher as lacunas em nosso conhecimento dos tempos primitivos.
Como contribuições à nossa compreensão da relação do filho com o pai, de tão
grande importância, basta-me apenas apresentar as fobias animais, o medo, que
nos impressiona como tão estranho, de ser comido pelo pai, e a enorme
intensidade do pavor de ser castrado. Nada existe de inteiramente fabricado em
nossa construção, nada que não possa apoiar-se em fundamentos sólidos.
Se nossa descrição da história primeva é aceita
como, em geral, digna de crédito, dois tipos de elementos serão identificados
nas doutrinas e rituais religiosos: por um lado, fixações na história antiga da
família e sobrevivências dela, e, por outro, revivescências do passado e
retornos, após longos intervalos, daquilo que fora esquecido. É essa última
parte, até agora desprezada e, portanto, não compreendida, que vai ser
demonstrada aqui, pelo menos num caso impressivo.
Vale a pena acentuar especialmente o fato de
que cada parte que retorna do olvido afirma-se com força peculiar, exerce uma
influência incomparavelmente poderosa sobre as pessoas na massa, e ergue uma
reivindicação irresistível à verdade, contra a qual as objeções lógicas
permanecem impotentes: uma espécie de ‘credo quia absurdum‘. Essa
característica fora do comum só pode ser compreendida segundo o modelo dos
delírios dos psicóticos. Há muito tempo compreendemos que uma parte de verdade
esquecida jaz oculta nas idéias delirantes, que quando aquela retorna tem de se
apresentar com deformações e más compreensões, e que a convicção compulsiva que
se liga ao delírio surge desse cerne de verdade e se espalha para os erros que
a envolvem. Temos de conceder a existência de um ingrediente como esse, do que
pode ser chamado de verdade histórica, também nos dogmas da religião, os
quais, é verdade, apresentam o caráter de sintomas psicóticos, mas que, como
fenômenos grupais, fogem à maldição do isolamento.
Nenhuma outra parte da história da religião se
nos tornou tão clara quanto a introdução do monoteísmo no judaísmo e sua
continuação no cristianismo, se deixamos de lado o desenvolvimento, que podemos
traçar não menos ininterruptamente, do animal totêmico ao deus humano, com seus
companheiros regulares. (Cada um dos quatro evangelistas cristãos ainda possui
seu próprio animal favorito.) Se provisoriamente aceitarmos o império mundial
dos faraós como causa determinante do surgimento da idéia monoteísta, veremos que
essa idéia, libertada de seu solo nativo e transferida para outro povo, foi,
após longo período de latência, assumida por este, por ele preservada como uma
possessão preciosa, e, por sua vez, ela própria o manteve vivo, por
fornecer-lhe o orgulho de ser um povo escolhido: foi à religião de seu pai
primevo que ligou sua esperança de recompensa, de distinção e, finalmente, de
domínio mundial. Essa última fantasia de desejo, há muito tempo abandonada pelo
povo judeu, ainda sobrevive entre os inimigos desse povo, na crença numa
conspiração por parte dos ‘Velhos de Sion’. Reservamos para exame em páginas
posteriores a maneira pela qual as peculiaridades especiais da religião
monoteísta, tomada de empréstimo ao Egito, afetaram o povo judeu, e como estava
fadada a deixar uma marca permanente em seu caráter, através de sua rejeição da
magia e do misticismo, de seu convite a avanços em intelectualidade, e de seu
incentivo às sublimações; como o povo, extasiado pela posse da verdade,
esmagado pela consciência de ser escolhido, veio a ter uma alta opinião do que
é intelectual e a dar ênfase ao que é moral, e como seus melancólicos destinos
e seus desapontamentos na realidade serviram apenas para intensificar todas
essas tendências. De momento, seguiremos seu desenvolvimento em outra direção.
O restabelecimento do pai primevo em seu
direitos históricos constituiu um grande passo à frente, mas não podia ser o
fim. As outras partes da tragédia pré-histórica insistiam em ser reconhecidas.
Não é fácil discernir o que colocou esse processo em movimento. Parece como se
um crescente sentimento de culpa se tivesse apoderado do povo judeu, ou,
talvez, de todo o mundo civilizado da época, como um precursor de retorno do
material reprimido, até que, por fim, um desses judeus encontrou, ao justificar
um agitador político-religioso, ocasião para desligar do judaísmo uma nova
religião - a cristã. Paulo, um judeu romano de Tarso, apoderou-se desse
sentimento de culpa e o fez remontar corretamente à sua fonte original. Chamou
essa fonte de ‘pecado original’; fora um crime contra Deus, e só podia ser
expiado pela morte. Com o pecado original, a morte apareceu no mundo. Na
verdade, esse crime merecedor de morte fora o assassinato do pai primevo
posteriormente deificado. Mas o assassinato não era recordado; ao invés, havia
uma fantasia de sua expiação, e, por essa razão, essa fantasia podia ser
saudada como uma mensagem de redenção (evangelium). Um filho de Deus se
permitira ser morto sem culpa e assim tomara sobre si próprio a culpa de todos
os homens. Tinha de ser um filho, visto que fora o assassinato de um pai. É
provável que tradições de mistérios orientais e gregos tenham exercido
influência na fantasia da redenção. O essencial nela parece ter sido a própria
contribuição de Paulo. No sentido mais próprio, ele foi um homem de disposição
inatamente religiosa: os traços sombrios do passado espreitavam em sua mente,
prontos a irromperem para suas regiões mais conscientes.
Que o redentor se sacrificara sem culpa era
evidentemente uma deformação tendenciosa, que oferecia dificuldades para a
compreensão lógica, pois como podia alguém sem culpa do ato do assassinato
tomar sobre si a culpa dos assassinos, permitindo-se ser morto? Na realidade
histórica, não havia tal contradição. O ‘redentor’ não podia ser outro senão a
pessoa mais culpada, o cabeça da reunião de irmãos que havia derrotado o pai. A
meu juízo, temos de deixar indecidido se houve esse rebelde principal e cabeça.
É possível, mas temos também de manter em mente que cada um do grupo de irmãos
certamente tinha desejo de cometer o feito por si próprio, sozinho, e criar
assim uma posição excepcional para si e encontrar um substituto para sua
identificação com o pai, que estava tendo de ser abandonada e se estava
fundindo na comunidade. Se não houve tal cabeça, então Cristo foi o herdeiro de
uma fantasia de desejo que permaneceu irrealizada; se houve, então ele foi seu
sucessor e sua reencarnação. Mas não importa que aquilo que temos aqui seja uma
fantasia ou o retorno de uma realidade esquecida; seja como for, a origem do
conceito de um herói deve ser encontrada neste ponto; o herói que sempre se
rebela contra o pai e o mata sob a uma forma outra. Aqui também está a
verdadeira base para a ‘culpa trágica’ do herói do teatro, que, de outra maneira,
é difícil de explicar. Mal se pode duvidar de que o herói e o coro do teatro
grego representem o mesmo herói rebelde e o grupo de irmãos, e não é sem
significância que, na Idade Média, aquilo com que o teatro se iniciou de novo
foi a representação da história da Paixão.
Já dissemos que a cerimônia cristã da Sagrada
Comunhão, na qual o crente incorpora o sangue e a carne do Salvador, repete o
conteúdo da antiga refeição totêmica, indubitavelmente apenas em seu
significado agressivo. A ambivalência que domina a relação com o pai foi
claramente demonstrada,contudo, no desfecho final da inovação religiosa.
Ostensivamente visando a propiciar o deus paterno, termina por ele ser
destronado e por livrar-se dele. O judaísmo fora uma religião do pai; o
cristianismo tornou-se uma religião do filho. O antigo Deus Pai tombou para
trás de Cristo; Cristo, o Filho, tomou seu lugar, tal como todo filho tivera
esperanças de fazê-lo, nos tempos primevos. Paulo, que conduziu o judaísmo à
frente, também o destruiu. Fora de dúvida, ele deveu seu sucesso, no primeiro
caso, ao fato de, através da idéia do redentor, exorcizar o sentimento de culpa
da humanidade, mas deveu-o também à circunstância de ter abandonado o caráter
‘escolhido’ de seu povo e seu sinal visível - a circuncisão -, de maneira que a
nova religião podia ser uma religião universal, a abranger todos os homens.
Ainda que no fato de Paulo dar esse passo um papel possa ter sido desempenhado
por seu desejo pessoal de vingança pela rejeição de sua inovação nos círculos judaicos,
ele, contudo, restaurou também uma característica da antiga religião de Aten;
afastou uma restrição que essa religião havia adquirido quando fora transmitida
a um novo veículo, o povo judeu.
Sob certos aspectos, a nova religião significou
uma regressão cultural, comparada com a mais antiga, a judaica, tal como
regularmente acontece quando uma nova massa de povo, de um nível mais baixo,
consegue ingresso à força ou recebe admissão. A religião cristã não manteve o
alto nível em coisas da mente a que o judaísmo se havia alçado. Não era mais
estritamente monoteísta, tomou numerosos rituais simbólicos de povos
circunvizinhos, restabeleceu a grande deusa-mãe e achou lugar para introduzir
muitas das figuras divinas do politeísmo, apenas ligeiramente veladas, ainda
que em posições subordinadas. Acima de tudo, como a religião de Aten e a
religião mosaica que a seguiu haviam feito, não excluiu o ingresso de elementos
surpersticiosos, mágicos e místicos, que deveriam mostrar-se como uma inibição
grave sobre o desenvolvimento intelectual dos dois mil anos seguintes.
O triunfo do cristianismo foi um novo triunfo
dos sacerdotes de Amun sobre o deus de Akhenaten, após um intervalo de mil e
quinhentos anos e num palco mais amplo. E, contudo, na história da religião -
isto é, com referência ao retorno do reprimido - o cristianismo constituía um
avanço e, a partir dessa época, a religião judaica foi, até certo ponto, um
fóssil.
Valeria pena entender como foi que a idéia
monoteísta causou uma impressão tão profunda exatamente sobre o povo judeu, e
como foram eles capazes de mantê-la tão tenazmente. É possível, penso,
encontrar uma resposta. O destino trouxera o grande feito e o malfeito dos dias
primevos, a morte do pai, para mais perto do povo judeu, fazendo-o repeti-lo na
pessoa de Moisés, uma destacada figura paterna. Tratou-se de um caso de
‘atuação’ (acting out) ao invés de recordação, como sucede tão amiúde
com os neuróticos durante o trabalho de análise. À sugestão de que deviam
recordar, que lhes foi feita pela doutrina de Moisés, reagiram, contudo, pelo
repúdio de sua ação; permaneceram detidos no reconhecimento do grande pai e
bloquearam assim seu acesso ao ponto a partir do qual, mais tarde, Paulo
deveria iniciar sua continuação da história primeva. Dificilmente pode ser
questão indiferente ou fortuita que a morte violenta de outro grande homem se
tenha tornado também o ponto de partida da nova criação religiosa de Paulo.
Tratava-se de um homem a quem um pequeno número de adeptos na Judéia encarava
como sendo o Filho de Deus e o Messias anunciado, e a quem, igualmente, uma
parte da história da infância inventada para Moisés foi posteriormente
transferida ver em[[1]], mas de quem, na verdade, pouco mais conhecemos, com
certeza, do que de Moisés: se ele foi realmente o grande mestre retratado pelos
Evangelhos, ou se, antes, não foram o fato e as circunstâncias de sua morte que
foram decisivos para a importância que sua figura adquiriu. O próprio Paulo,
que se tornou apóstolo, não o conhecera.
A morte de Moisés por seu povo judeu,
identificada por Sellin a partir de traços dela na tradição (e também, estranho
é dizê-lo, aceita pelo jovem Goethe sem qualquer prova), torna-se assim parte
indispensável de nossa construção, um vínculo importante entre o evento
olvidado dos tempos primevos e seu surgimento posterior sob a forma de
religiões monoteístas. É plausível conjecturar que o remorso pelo assassinato
de Moisés forneceu o estímulo para a fantasia de desejo do Messias, que deveria
retornar e conduzir seu povo à redenção e ao prometido domínio mundial. Se
Moisés foi o primeiro Messias, Cristo tornou-se seu substituto e sucessor, e
Paulo poderia exclamar para os povos, com certa justificação histórica: Olhai!
O Messias realmente veio: ele foi assassinado perante vossos olhos!’ Além
disso, também, existe um fragmento de verdade histórica na ressurreição de
Cristo, pois ele foi o Moisés ressurrecto e, por trás deste, o pai primevo
retornado da horda primitiva, transfigurado e, como o filho, colocado no lugar
do pai.O pobre povo judeu, que, com sua obstinação habitual, continuava a
repudiar o assassinato do pai, expiou-o pesadamente no decurso do tempo.
Defrontou-se constantemente com a recriminação: ‘Vocês mataram nosso Deus!’ E
essa censura é verdadeira, se for corretamente traduzida. Colocada em relação
com a história das religiões, ela diz: ‘Vocês não admitem que mataram
Deus (a figura primeva de Deus, o pai primevo, e suas reencarnações
posteriores).’ Deveria haver um acréscimo, declarando-se: ‘Fizemos a mesma
coisa, é verdade, mas o admitimos, e, desde então, fomos absolvidos.’
Nem todas as censuras com que o anti-semitismo persegue os descendentes do povo
judeu podem apelar para justificação semelhante. Um fenômeno de tal intensidade
e permanência como o ódio do povo pelos judeus deve, naturalmente, possuir mais
de um fundamento, alguns deles claramente derivados da realidade, que não
exigem interpretação, e outros a jazer mais profundamente, derivados de fontes
ocultas, que poderiam ser consideradas as razões específicas. Dos primeiros, a
censura por serem estrangeiros é talvez a mais débil, visto que em muitos
lugares hoje dominados pelo anti-semitismo, os judeus estavam entre as partes
mais antigas da população, ou mesmo lá se encontravam antes dos atuais
habitantes. Isso se aplica, por exemplo, à cidade de Colônia, à qual os judeus
chegaram junto com os romanos, antes que fosse ocupada pelos germânicos. Outros
fundamentos para odiar os judeus são mais fortes; assim, as circunstâncias de
eles viverem, em sua maior parte, como minorias entre outros povos, pois o
sentimento comunal dos grupos exige, a fim de completá-lo, a hostilidade para
com alguma minoria externa, e a debilidade numérica dessa minoria excluída
encoraja sua supressão. Há, contudo, duas outras características dos judeus que
são inteiramente imperdoáveis. A primeira é o fato de, sob alguns aspectos,
serem diferentes de suas nações ‘hospedeiras’. Não são fundamentalmente
diferentes, pois não são asiáticos, de uma raça estrangeira, conforme seus
inimigos sustentam, mas compostos, na maioria, de remanescentes dos povos
mediterrâneos e herdeiros da civilização mediterrânea. São, não obstante,
diferentes, com freqüência diferentes de maneira indefinível, especialmente dos
povos nórdicos, e a intolerância dos grupos é quase sempre, de modo bastante
estranho, exibida mais intensamente contrapequenas di ferenças do que contra
diferenças fundamentais. O outro ponto possui um efeito ainda maior: a saber,
que eles desafiam toda opressão, que as perseguições mais cruéis não
conseguiram exterminá-los e que, na verdade, pelo contrário, exibem uma
capacidade de manter o que é seu na vida comercial e, onde são admitidos, de
efetuar contribuições valiosas a todas as formas de atividade cultural.
Os motivos mais profundos do ódio pelos judeus
estão enraizados nas mais remotas eras passadas; operam desde o inconsciente
dos povos, e acho-me preparado para descobrir que, a princípio, não parecerão
críveis. Aventuro-me a asseverar que o ciúme para com o povo que se declarou o
filho primogênito e favorito de Deus Pai ainda hoje não foi superado entre os
outros povos; é como se estes tivessem pensado que havia verdade na
reivindicação. Ademais, entre os costumes pelos quais os judeus se tornam
separados, o da circuncisão causou impressão desagradável e sinistra, que deve
ser explicada, indubitavelmente, por ela relembrar a temida castração e,
juntamente com ela, uma parte do passado primevo que fora alegremente
esquecida. E finalmente, como último motivo dessa série, não devemos esquecer que
todos os povos que hoje sobressaem em seu ódio pelos judeus se tornaram
cristãos apenas em épocas históricas tardias, amiúde impulsionados a isso por
sanguinolenta coerção. Poder-se-ia dizer que todos eles são ‘mal batizados’.
Sobrou-lhes, sob delgado verniz de cristianismo, aquilo que eram seus
ancestrais, que adoravam um politeísmo bárbaro. Ainda não superaram um
ressentimento contra a nova religião que lhes foi imposta, mas deslocaram esse
ressentimento para a fonte de onde o cristianismo os foi buscar. O fato de os
Evangelhos contarem uma história que se desenrola entre judeus e que, na
verdade, trata apenas de judeus, tornou-lhes fácil esse deslocamento. Seu ódio
pelos judeus é, no fundo, um ódio pelos cristãos, e não precisamos
surpreender-nos de que, na revolução nacional-socialista alemã, essa relação
íntima entre as duas religiões monoteístas encontre expressão tão clara no
tratamento hostil que é dado a ambas.
E - DIFICULDADES
Talvez, pelo que disse, tenha tido sucesso em
estabelecer a analogia entre os processos neuróticos e os acontecimentos
religiosos e, assim, em indicar a origem insuspeitada dos últimos. Nessa
transferência da psicologia individual para a de grupo, duas dificuldades
surgem, a diferirem em natureza e importância, para as quais agora nos devemos
voltar.
A primeira delas é que lidamos aqui apenas com
um exemplo isolado da copiosa fenomenologia das religiões, e não lançamos luz
sobre quaisquer outras. Pesarosamente tenho de admitir que sou incapaz de dar
mais do que esse único exemplo e que meu conhecimento técnico é insuficiente
para completar a investigação. A minhas informações limitadas, posso talvez
acrescentar que o caso da fundação da religião maometana me parece
assemelhar-se a uma repetição abreviada da judaica, da qual emergiu como
imitação. Parece, na verdade, que o Profeta pretendia originalmente aceitar o
judaísmo completamente, para si e para seu povo. A retomada do grande e único
pai primevo trouxe aos árabes uma extraordinária exaltação de sua
autoconfiança, que conduziu a grandes sucessos mundiais mas neles exauriu-se.
Alá mostrou-se muito mais grato a seu povo escolhido do que Javé ao seu. Mas o
desenvolvimento interno da nova religião logo se interrompeu, talvez por lhe
faltar a profundidade que, no caso judaico, fora causada pelo assassinato do
fundador de sua religião. As religiões aparentemente racionalistas do Leste
são, em sua essência, veneração dos ancestrais e detiveram-se também num
estádio primitivo da reconstrução do passado. Se é verdade que nos povos
primitivos da atualidade o reconhecimento de um ser supremo é o único conteúdo
de sua religião, só podemos encarar isso como uma atrofia do desenvolvimento
religioso e colocá-la em relação com os incontáveis casos de neuroses
rudimentares que podem ser observadas no outro campo. Por que tanto num caso
quanto no outro as coisas não foram mais além, nosso conhecimento é, em ambos,
insuficiente para dizer-nos. Podemos apenas atribuir a responsabilidade aos
dotes individuais desses povos, à direção tomada por sua atividade e sua
condição social geral. Além disso, é boa regra no trabalho de análise
contentar-se em explicar o que realmente está perante nós e não procurar
explicar o que não aconteceu.
A segunda dificuldade sobre essa transferência
para a psicologia de grupo é muito mais importante, já que coloca um problema
novo, de natureza fundamental. Esse problema levanta a questão de saber sob que
forma a tradição operante na vida do povo se apresenta, questão que não ocorre
com os indivíduos, visto que é solucionada pela existência, no inconsciente, de
traços mnêmicos do passado. Retornemos a nosso exemplo histórico. Atribuímos o
acordo de Cades à sobrevivência de uma tradição poderosa entre aqueles que
tinham retornado do Egito. Esse caso não envolve problema algum. Segundo nossa
teoria, uma tradição desse tipo baseava-se em lembranças conscientes de
comunicações orais que as pessoas então vivas tinham recebido de seus
ancestrais de apenas duas ou três gerações atrás, ancestrais que, eles
próprios, tinham sido participantes e testemunhas oculares dos acontecimentos
em apreço. Mas podemos acreditar na mesma coisa dos séculos posteriores, ou
seja, que a tradição ainda tivesse base num reconhecimento normalmente
transmitido de avô para neto? Não é mais possível dizer, como no primeiro caso,
quais foram as pessoas que preservaram esse conhecimento e o transmitiram
oralmente. Segundo Sellin, a tradição do assassinato de Moisés esteve sempre na
posse dos círculos sacerdotais, até que acabou por encontrar expressão por
escrito, o que, e somente isso, permitiu a Sellin descobri-las. Mas ela só pode
ter sido conhecida de algumas pessoas; não constituía propriedade pública. E
isso é suficiente para explicar seu efeito? É possível atribuir a um
conhecimento como esse, detido por poucas pessoas, o poder de produzir uma
emoção tão duradoura nas massas, ao chegar ao seu conhecimento? Parece antes
que, também nas massas ignorantes, deve ter havido algo que era, de certa
maneira, aparentado ao conhecimento dos poucos, e que foi encontrar esse
conhecimento a meio caminho quando ele foi enunciado.
A decisão é tornada ainda mais difícil quando
nos voltamos para o caso análogo, nos tempos primevos. É bastante certo que, no
decurso de milhares de anos, foi esquecido o fato de que houvera um pai
primevo, com as características que conhecemos, e qual fora a sua sorte;
tampouco podemos supor que existisse qualquer tradição oral disso, como no caso
de Moisés. Em que sentido, então, uma tradição se torna importante? Sob que
forma pode ter estado presente?
A fim de torná-lo mais fácil aos leitores que
não desejam ou não estão preparados para mergulhar num complicado estado de
coisas psicológicas, anteciparei o resultado da investigação que deve
seguir-se. Em minha opinião, existe, a esse respeito, uma conformidade quase
completa entre o indivíduo e o grupo: também no grupo uma impressão do passado
é retida em traços mnêmicos inconscientes. No caso do indivíduo, acreditamos
que podemos ver claramente. O traço mnêmico de sua experiência primitiva foi
nele preservado, mas numa condição psicológica especial. Pode-se dizer que o
indivíduo sempre o conheceu, tal como se conhece a respeito do reprimido. Aqui
formamos idéias, que podem ser confirmadas sem dificuldades através da análise,
de como algo pode ser esquecido e depois reaparecer, após algum tempo. O que é
esquecido não se extingue, mas é apenas ‘reprimido’; seus traços mnêmicos estão
presentes em todo seu frescor, mas isolados por ‘anticatexias.’ Eles não podem
entrar em comunicação com outros processos intelectuais; são inconscientes -
inacessíveis à consciência. Pode ser também que certas partes do reprimido,
havendo escapado ao processo [de repressão], permaneçam acessíveis à lembrança
e ocasionalmente emerjam na consciência, mas, mesmo assim, se encontrem
isoladas, como corpos estranhos sem conexão com o restante. Pode ser assim, mas
não precisa sê-lo; a repressão também pode ser completa e é com essa
alternativa que lidaremos no que se segue.
O reprimido mantém seu impulso ascendente, seu
esforço para abrir caminho até a consciência. Ele consegue seu objetivo em três
condições: (1) se a força da anticatexia é diminuída por processos patológicos
que tomam conta da outra parte [da mente] que chamamos de ego, ou por uma
distribuição diferente das energias catexiais nesse ego, como acontece
normalmente no estado de sono; (2) se os elementos instintuais que se ligam ao
reprimido recebem um reforço especial (do qual o melhor exemplo são os
processos que ocorrem durante a puberdade); e (3) se, em qualquer ocasião na
experiência recente, ocorrem impressões ou vivências que se assemelham tão
estreitamente ao reprimido, que são capazes de despertá-lo. No último caso, a
experiência recente é reforçada pela energia latente do reprimido e este entra
em funcionamento por trás da experiência recente e com a ajuda dela. Em nenhuma
dessas três alternativas, o que até então foi reprimido ingressa na consciência
de modo suave ou inalterado; tem sempre de defrontar-se com deformações que dão
testemunho da influência da resistência (não inteiramente superada) que surge
da anticatexia, da influência modificadora da experiência recente, ou de ambas.
A diferença entre um processo psíquico ser
consciente ou inconsciente serviu-nos como critério e meio de orientação. O reprimido
é inconsciente. Ora, simplificaria agradavelmente as coisas se essa frase
admitisse inversão, isto é, se a diferença entre qualidades de consciente (Cs.)
e inconsciente (Ics.) coincidisse com a distinção existente entre
‘pertencente ao ego’ e ‘reprimido’. O fato de existirem coisas isoladas e
inconscientes como essas em nossa vida mental já seria suficientemente novo e
importante. Na realidade, porém, a posição é mais complicada. É verdade que
tudo que é reprimido é inconsciente, mas não é verdade que tudo que pertença ao
ego seja consciente. Constatamos que a consciência é uma qualidade transitória,
que se liga a um processo psíquico apenas de passagem. Para nossos fins,
portanto, temos de substituir ‘consciente’ por ‘capaz de ser consciente’ e chamamos
essa qualidade de ‘pré-consciente’ (Pcs.). Dizemos, então, de modo mais
correto, que o ego é principalmente pré-consciente (virtualmente consciente),
mas que partes do ego são inconscientes.
O estabelecimento desse último fato nos
demonstra que as qualidades sobre as quais até aqui nos apoiamos são
insuficientes para nos orientar na obscuridade da vida psíquica. Temos de
introduzir uma outra distinção que não é mais qualitativa, mas topográfica
e, o que lhe dá valor especial, simultaneamente genética. Distinguimos,
agora, em nossa vida psíquica (que encaramos como um aparelho composto de
diversas instâncias, distritos ou províncias) uma determinada região que
chamamos de ego propriamente dito e uma outra que denominamos de id. O id
é a mais antiga das duas; o ego desenvolveu-se a partir dele, como uma camada
cortical, através da influência do mundo externo. É no id que todos os nossos
instintos primários estão em ação; todos os processos no id se realizam
inconscientemente. O ego, como já dissemos, coincide com a região do
pré-consciente; inclui partes que normalmente permanecem inconscientes. O curso
dos acontecimentos no id e sua interação mútua são governados por leis
inteiramente diferentes das que prevalecem no ego. Foi, na verdade, a
descoberta dessas diferenças que nos conduziu à nossa visão e que a justifica.
O reprimido deve ser considerado como
pertencente ao id e sujeito aos mesmos mecanismos; distingue-se dele apenas
quanto à sua gênese. A diferenciação se cumpre no mais primitivo período da vida,
enquanto o ego se está desenvolvendo a partir do id. Nessa época, uma parte do
conteúdo do id é absorvida pelo ego e elevada ao estado pré-consciente; outra
parte é afetada por esse traslado e permanece atrás, no id, como o inconsciente
propriamente dito. No curso ulterior da formação do ego, contudo, certas
impressões e processos psíquicos do ego são excluídos [isto é, expelidos] dele
através de um processo defensivo; a característica de serem pré-conscientes é
deles retirada, de modo que são mais uma vez reduzidos a serem partes
componentes do id. Aqui, então, temos o ‘reprimido’ no id. No que concerne à
relação entre as duas províncias mentais, presumimos portanto que, por um lado,
processos inconscientes do id são levados ao nível do pré-consciente e
incorporados ao ego, e que, por outro lado, material pré-consciente do ego pode
seguir o caminho oposto e ser devolvido ao id. O fato de posteriormente uma
região especial - a do ‘superego’ - separar-se do ego está fora de nosso
interesse atual.
Tudo isso pode parecer longe de ser simples,
mas, quando nos reconciliamos com essa visão espacial fora do comum do aparelho
psíquico, ela não pode apresentar dificuldades específicas para a imaginação.
Acrescentarei ainda o comentário de que a topografia psíquica que aqui
desenvolvi nada tem que ver com a anatomia do cérebro, e, na realidade, entra
em contato com ela apenas num ponto. O que é insatisfatório nesse quadro - e
estou ciente disso tão claramente quanto qualquer um - se deve à nossa completa
ignorância da natureza dinâmica dos processos mentais. Dizemo-nos que o que
distingue uma idéia consciente de outra pré-consciente, e esta de uma
inconsciente, só pode ser uma modificação, ou talvez uma distribuição
diferente, de energia psíquica. Falamos de catexias e hipercatexias, mas, além
disso, achamo-nos sem qualquer conhecimento sobre o assunto, ou mesmo sem
qualquer ponto de partida para uma hipótese de trabalho útil. Do fenômeno da
consciência, podemos pelo menos dizer que esteve originalmente ligado à percepção.
Todas as sensações que se originam da percepção de estímulos penosos, tácteis,
auditivos ou visuais, são as mais prontamente conscientes. Os processos de
pensamento, e tudo o que possa ser análogo a eles no id, são, em si próprios,
inconscientes, e obtêm acesso à consciência vinculando-se aos resíduos mnêmicos
de percepções visuais e auditivas ao longo do caminho da função da fala. Nos
animais, aos quais esta falta, as condições devem ser de tipo mais simples.
As impressões dos traumas primitivos, das quais
partimos, não são traduzidas para o pré-consciente ou são rapidamente
devolvidas pela repressão para o estado de id. Seus resíduos mnêmicos, nesse
caso, são inconscientes e operam a partir do id. Acreditamos que podemos
facilmente seguir suas vicissitudes ulteriores, enquanto se trata do que foi
experimentado pelo próprio indivíduo. Mas uma nova compilação surge quando nos
damos conta da probabilidade de que aquilo que pode ser operante na vida
psíquica de um indivíduo pode incluir não apenas o que ele próprio
experimentou, mas também coisas que estão inatamente presentes nele, quando de
seu nascimento, elementos com uma origem filogenética - uma herança arcaica.
Surgem então as questões de saber em que consiste essa herança, o que contém, e
qual é a sua prova.
A resposta imediata e mais certa é que ela
consiste em certas disposições [inatas], características de todos os organismos
vivos: isto é, na capacidade e tendência de ingressar em linhas específicas de
desenvolvimento e de reagir, de maneira específica, a certas excitações,
impressões e estímulos. Visto a experiência demonstrar que, a esse respeito,
existem distinções entre os indivíduos da espécie humana, a herança arcaica
deve incluir essas distinções; elas representam o que identificamos como sendo
o fator constitucional no indivíduo. Ora, desde que todos os seres
humanos, em todos os acontecimentos de seus primeiros dias, têm aproximadamente
as mesmas experiências, eles reagem a elas, também, de maneira semelhante.
Pôde, portanto, surgir uma dúvida sobre se não deveríamos incluir essas
reações, juntamente com suas distinções individuais, na herança arcaica. Essa
dúvida deve ser posta de lado: nosso conhecimento da herança arcaica não é
ampliado pelo fato dessa semelhança.
Não obstante, a pesquisa analítica trouxe-nos
alguns resultados que nos dão motivo para reflexão. Temos, em primeiro lugar, a
universalidade do simbolismo na linguagem. A representação simbólica de
determinado objeto por outro - a mesma coisa aplica-se a ações - é familiar a
todos os nossos filhos e lhes vem, por assim dizer, como coisa natural. Não
podemos demonstrar, em relação a eles, como a aprenderam, e temos de admitir
que, em muitos casos, aprendê-la é impossível. Trata-se de um conhecimento original
que os adultos, posteriormente, esquecem. É verdade que o adulto faz uso dos
mesmos símbolos em sonhos, mas não os compreende a menos que um analista os
interprete para ele, e, mesmo então, fica relutante em acreditar na tradução.
Se ele faz uso de uma das figuras de retórica muito comuns em que esse
simbolismo lhe fugiu completamente. Ademais, o simbolismo despreza as
diferenças de linguagem; investigações provavelmente demonstrariam que ele é
ubíquo - o mesmo para todos os povos. Aqui, então, parecemos ter um exemplo
seguro de uma herança arcaica a datar do período em que a linguagem se
desenvolveu. Mas ainda se poderia tentar outra interpretação. Poder-se-ia dizer
que estamos lidando com vinculações de pensamento entre idéias - vinculações
que foram estabelecidas durante o desenvolvimento da fala e que têm de ser
repetidas agora, toda vez que, num indivíduo, o desenvolvimento da fala tem de
ser percorrido. Seria assim um caso de herança de uma disposição instintual, e,
mais uma vez, não constituiria contribuição para nosso problema.
O trabalho da análise, entretanto, trouxe à luz
algo mais que excede em importância o que até agora consideramos. Quando
estudamos as reações a traumas precoces, ficamos amiúde bastante surpresos por
descobrir que elas não se limitam estritamente ao que o próprio indivíduo
experimentou, mas dele divergem de uma maneira que se ajusta muito melhor ao
modelo de um evento filogenético, e, em geral, só podem ser explicadas por tal
influência. O comportamento de crianças neuróticas para com os pais nos
complexos de Édipo e de castração abunda em tais reações, que parecem
injustificadas no caso individual e só se tornam inteligíveis filogeneticamente
- por sua vinculação com a experiência de gerações anteriores. Valeria bem a pena
apresentar esse material, para o qual posso apelar aqui, perante o público, de
forma reunida. Seu valor probatório parece-me suficientemente forte para que me
aventure a dar um passo à frente e postule a assertiva de que a herança arcaica
dos seres humanos abrange não apenas disposições, mas também um tema geral:
traços de memória da experiência de gerações anteriores. Dessa maneira, tanto a
extensão quanto a importância da herança arcaica seriam significativamente
ampliadas.
Refletindo mais, tenho de admitir que me
comportei, por longo tempo, como se a herança de traços de memória da
experiência de nossos antepassados, independentemente da comunicação direta e
da influência da educação pelo estabelecimento de um exemplo, estivesse
estabelecida para além de discussão. Quando falei da sobrevivência de uma
tradição entre um povo ou da formação do caráter de um povo, tinha
principalmente em mente uma tradição herdada desse tipo, e não uma tradição
transmitida pela comunicação. Ou, pelo menos, não fiz distinção entre as duas e
não me dei claramente conta de minha audácia em negligenciar fazê-lo. Minha
posição, sem dúvida, é tornada mais difícil pela atitude atual da ciência
biológica, que se recusa a ouvir falar na herança dos caracteres adquiridos por
gerações sucessivas. Devo, contudo, com toda modéstia, confessar que, todavia,
não posso passar sem esse fator na evolução biológica. Na verdade, não é a
mesma coisa que está em questão nos dois casos: num, trata-se de caracteres
adquiridos que são difíceis de apreender; no outro, de traços de memória de
acontecimentos externos - algo tangível, por assim dizer. Mas bem pode ser que,
no fundo, não possamos imaginar um sem o outro.
Se presumirmos a sobrevivência desses traços de
memória na herança arcaica, teremos cruzado o abismo existente entre psicologia
individual e de grupo: podemos lidar com povos tal como fazemos com um
indivíduo neurótico. Sendo certo que, atualmente, não temos provas mais fortes
da presença de traços de memória na herança arcaica do que os fenômenos
residuais do trabalho da análise que exigem uma derivação filogenética, ainda
assim essas provas nos parecem suficientemente fortes para postular que esse é
o fato. Se não for, não avançaremos, quer na análise quer na psicologia de
grupo. A audácia não pode ser evitada.
E, mediante essa punição, estamos efetuando
algo mais. Estamos diminuindo o abismo que períodos anteriores de arrogância
humana rasgaram entre a humanidade e os animais. Se se quiser encontrar
qualquer explicação dos chamados instintos dos animais, que permitem que eles
se comportem, desde o início, numa nova situação da vida como se fosse antiga e
conhecida, se se quiser encontrar qualquer explicação dessa vida instintiva dos
animais, ela só pode ser a de que eles trazem consigo as experiências da
espécie para sua própria e nova existência - isto é, que preservaram
recordações do que foi experimentado por seus antepassados. A posição do animal
humano, no fundo, não seria diferente. Sua própria herança arcaica corresponde
aos instintos dos animais, ainda que seja diferente em extensão e conteúdo.Após
esse exame, não hesito em declarar que os homens sempre souberam (dessa maneira
especial) que um dia possuíram um pai primevo e o assassinaram.
Duas outras questões devem agora ser respondidas.
Primeiro, sob que condições uma recordação desse tipo ingressa na herança
arcaica? E, segundo, em que circunstâncias pode ela tornar-se ativa - isto é,
progredir para a consciência a partir de seu estado inconsciente no id, ainda
que sob forma alterada e deformada. A resposta à primeira pergunta é fácil de
formular: a recordação ingressa na herança arcaica se o acontecimento foi
suficientemente importante, repetido com bastante freqüência, ou ambas as
coisas. No caso do parricídio, ambas as condições são atendidas. Da segunda
questão, há que dizer o seguinte. Um grande número de influências pode estar
relacionado, mas nem todas são necessariamente conhecidas. Um desenvolvimento
espontâneo também é concebível, segundo a analogia do que acontece em certas
neuroses. Contudo, o que, certamente, é de importância decisiva é o despertar
do traço da memória esquecido por uma repetição real e recente do
acontecimento. O assassinato de Moisés constituiu uma repetição desse tipo e,
posteriormente, o suposto assassinato judicial de Cristo, de maneira que esses
acontecimentos vêm para o primeiro plano como causas. Parece como se a gênese
do monoteísmo não pudesse passar sem essas ocorrências. Somos lembrados das
palavras do poeta:
Was unsterblich im Gesang soll leben,Mus im
Leben untergehen.
E, por fim, uma observação que traz à baila um
argumento psicológico. Uma tradição que se baseasse unicamente na comunicação
não poderia conduzir ao caráter compulsivo que se liga aos fenômenos
religiosos. Ela seria escutada, julgada e talvez posta de lado, como qualquer
outra informação oriunda do exterior; nunca atingiria o privilégio de ser
liberada da coerção do pensamento lógico. Ela deve ter experimentado a sorte de
ser reprimida, o estado de demorar-se no inconsciente, antes de ser capaz de
apresentar efeitos tão poderosos quando de seu retorno, de colocar as massas
sob seu fascínio, como vimos com espanto, e, até aqui, sem compreensão, no caso
da tradição religiosa. E essa consideração pesa consideravelmente em favor de
acreditarmos que as coisas realmente aconteceram da maneira por que tentamos
retratá-las ou, pelo menos, de algum modo semelhante.
PARTE II - RESUMO E RECAPITULAÇÃO
A parte deste estudo que se segue não pode ser
entregue ao público sem extensas explicações e desculpas, pois ela nada mais é
do que uma repetição fiel (e, quase sempre, palavra por palavra) da primeira
parte [do terceiro Ensaio], abreviada em algumas de suas indagações críticas e
aumentada com acréscimos referentes ao problema de saber como surgiu o caráter
especial do povo judeu. Estou ciente de que um método de exposição como esse é
tão inconveniente quanto pouco artístico, e eu mesmo o deploro sem reservas.
Por que não o evitei? Não me é difícil descobrir a resposta para isso, mas não
é fácil confessar. Descobri-me incapaz de apagar os traços da história da
origem da obra, o que foi, de qualquer modo, fora do comum.
Na realidade, ela foi escrita duas vezes: pela
primeira vez, alguns anos atrás, em Viena, onde não pensei que fosse possível
publicá-la. Decidi abandoná-la, mas ela me atormentou como um fantasma
insepulto e descobri uma saída tornando independentes duas partes suas e
publicando-as em nosso periódico Imago: o ponto de partida psicanalítico
de todo o assunto, ‘Moisés, um Egípcio’ [Ensaio I], e a construção histórica
sobre isso erigida, ‘Se Moisés fosse Egípcio…’ [Ensaio II]. O restante, que
incluía o que estava realmente aberto à objeção e era perigoso - a aplicação
[desses achados] à gênese do monoteísmo e a visão da religião em geral -, eu
retive, para sempre, segundo pensava. Então, em março de 1938, veio a
inesperada invasão alemã, que me forçou a abandonar meu lar, mas também me
libertou da ansiedade de que minha publicação pudesse conjurar uma proibição da
psicanálise num lugar onde ainda era tolerada. Mal chegara à Inglaterra quando
achei irresistível a tentação de tornar acessível ao mundo o conhecimento que
eu havia retido, e comecei a revisar a terceira parte de meu estudo para
acomodá-lo às duas partes que já tinham sido publicadas. Isso, naturalmente,
envolvia uma predisposição parcial do material. Não tive êxito, contudo, em
incluir a totalidade dele em minha segunda versão; por outro lado, não podia
decidir-me a abandonar inteiramente as versões primitivas. E assim aconteceu
que adotei o expediente de ligar, sem modificação, toda uma parte da primeira
apresentação à segunda, o que acarretou a desvantagem de envolver extensa
repetição.
Poderia, contudo, consolar-me com a reflexão de
que as coisas que estou tratando são, seja como for, tão novas e importantes,
independentemente de quanto a minha descrição delas é correta, que não pode
constituir desventura que o público seja obrigado a ler a mesma coisa sobre
elas duas vezes. Há coisas que deveriam ser ditas mais de uma vez e que não
podem ser ditas com freqüência suficiente. Mas o leitor deve decidir, de sua
própria e livre vontade, entre estender-se sobre o assunto ou retornar a ele.
Não deve ser sub-repticiamente levado a ver a mesma coisa apresentada a ele
duas vezes num só livro. Trata-se de uma inépcia cuja culpa deve ser assumida
pelo autor. Infelizmente, o poder criativo de um autor nem sempre obedece à sua
vontade: o trabalho avança como pode e com freqüência se apresenta a ele como
algo independente ou até mesmo estranho.
A - O POVO DE ISRAEL
Se está claro em nossa mente que um
procedimento como o nosso, o de aceitar o que nos parece útil no material que
nos é apresentado, rejeitar o que não nos convém e reunir os diferentes
fragmentos de acordo com a probabilidade psicanalítica, se mantemos claro que
uma técnica desse tipo não pode dar qualquer certeza de que cheguemos à
verdade, então pode-se justamente perguntar por que estamos empreendendo este
trabalho. A resposta constitui um apelo ao resultado do trabalho. Se
abandonarmos grandemente a rigidez dos requisitos que se exigem de uma
investigação histórico-psicológica, talvez seja possível lançar luz sobre
problemas que sempre pareceram merecer atenção e que acontecimentos recentes
impuseram de novo à nossa observação. Como sabemos, de todos os povos que
viveram ao redor da bacia do Mediterrâneo na Antiguidade, o povo judeu é quase
o único que ainda existe em nome e também em substância. Ele enfrentou
infortúnios e maus tratos com uma capacidade sem precedentes de resistência;
desenvolveu sincera antipatia de todos os outros povos. Ficaríamos alegres em
compreender mais a respeito da fonte dessa viabilidade dos judeus e a respeito
de como suas características estão vinculadas à sua história.
Podemos partir de um traço caracterológico dos
judeus que domina sua relação com os outros. Não há dúvida de que eles têm uma
opinião particularmente elevada de si próprios, de que se consideram mais
eminentes, de posição mais alta, superiores a outros povos - dos quais também
se distinguem por muitos de seus costumes. Ao mesmo tempo, são inspirados por
uma confiança peculiar na vida, tal como a que se deriva da posse secreta de
algum bem precioso, uma espécie de otimismo: pessoas idosas chamá-lo-iam de confiança
em Deus.
Conhecemos a razão desse comportamento e qual é
seu tesouro secreto. Eles realmente se consideram o povo escolhido de Deus,
acreditam que estão especialmente próximos dele, e isso os torna orgulhosos e
confiantes. Relatos dignos de fé dizem-nos que se comportavam nos tempos
helenísticos tal como se comportam hoje, de maneira que o judeu completo já
estava lá, e os gregos, entre os quais e junto dos quais viveram, reagiram às
características judaicas do mesmo modo que seus ‘hospedeiros’ de hoje.
Poder-se-ia pensar que reagiram como se eles também acreditassem na
superioridade que o povo de Israel reivindicara para si. Quando se é favorito
declarado do pai temido, não se precisa ficar surpreso com o ciúme dos próprios
irmãos e irmãs, e a lenda judaica de José e seus irmãos mostra muito bem aonde
esse ciúme pode conduzir. O curso da história mundial parecia justificar a
presunção dos judeus, visto que, quando mais tarde agradou a Deus enviar à
humanidade um Messias e redentor, mas uma vez escolheu-o entre o povo judeu. Os
outros povos poderiam então ter tido ocasião para dizer a si próprios: ‘Na
verdade, eles estavam com a razão; eles são o povo escolhido de Deus.’
Ao invés, porém, o que aconteceu foi que a redenção por parte de Jesus Cristo
só intensificou o ódio deles pelos judeus, ao passo que estes últimos, eles
próprios, não obtinham vantagem alguma desse segundo ato de favoritismo, já que
não reconheceram o redentor.
Com base em nossos debates anteriores, podemos
agora asseverar que foi o varão Moisés que imprimiu esse traço - significante
para todo o tempo - no povo judeu. Ele elevou a sua auto-estima,
assegurando-lhe ser o povo escolhido de Deus, prescreveu-lhe a santidade,ver em
[[1]],e comprometeu-o a ser separado dos outros. Não que aos outros povos
faltasse auto-estima. Tal como acontece hoje, também naqueles dias cada nação
se julgava melhor do que qualquer outra. Mas a auto-estima dos judeus recebeu
de Moisés um arrimo religioso: ela tornou-se parte de sua fé religiosa. Devido
à sua relação especialmente íntima com seu Deus, adquiriram uma parcela da
grandeza dele. E visto sabermos que por trás do Deus que escolhera os judeus e
os libertara do Egito ergue-se a figura de Moisés, que fizera precisamente isso
ostensivamente por ordem de Deus, aventuramo-nos a declarar que foi esse homem
Moisés que criou os judeus. É a ele que esse povo deve não só sua tenacidade de
vida, mas também muito da hostilidade que experimentou e ainda experimenta.
B - O GRANDE HOMEM
Como é possível a um homem isolado desenvolver
uma eficácia tão extraordinária para poder formar um povo a partir de
indivíduos e famílias ocasionais, cunhá-los com seu caráter definitivo e
determinar seu destino por milhares de anos? Não constitui uma hipótese como
essa uma recaída na modalidade de pensamento que levou aos mitos de um criador
e à adoração de heróis, em épocas em que a redação da história nada mais era do
que uma relação das façanhas e destinos de indivíduos isolados, de dominadores
ou conquistadores? A tendência moderna é antes no sentido de fazer remontar os
acontecimentos da história humana a fatores mais ocultos, gerais e impessoais,
à influência irresistível das condições econômicas, a alterações em hábitos
alimentares, a avanços no uso de materiais e ferramentas, a migrações
ocasionais provocadas por aumentos de população e mudanças climáticas. Os
indivíduos não têm nisso outro papel a desempenhar que o de expoentes ou
representantes de tendências grupais, que estão fadadas a encontrar expressão,
e a encontram, nesses indivíduos específicos, em grande parte por acaso.
Trata-se de linhas de abordagem perfeitamente
justificáveis, mas elas nos fornecem ocasião de chamar a atenção para uma
importante discrepância entre a atitude assumida por nosso órgão de pensamento
e a disposição das coisas no mundo, as quais se imagina sejam apreendidas por
intermédio de nosso pensamento. É suficiente para nossa necessidade de
descobrir causas (que, com efeito, é imperativa) que cada acontecimento tenha uma
causa desmontável. Mas na realidade que jaz fora de nós, esse dificilmente é o
caso; pelo contrário, cada acontecimento parece ser supradeterminado e prova
ser efeito de diversas causas convergentes. Assustadas pela imensa complicação
dos acontecimentos,nossas investigações tomam o partido de determinada
correlação contra outra e estabelecem contradições que não existem, mas que só
surgiram devido a uma ruptura de relações mais abrangentes. Por conseguinte, se
a investigação de um caso específico nos demonstra a influência transcendente
de uma personalidade isolada, não é preciso que nossa consciência nos censure
por nos termos, através dessa hipótese, precipitado em desafio da doutrina da
importância dos fatores gerais e impessoais. Há lugar, em princípio, para ambas
as coisas. No caso da gênese do monoteísmo, contudo, não podemos apontar para
fator externo, exceto o que já mencionamos - que esse desenvolvimento esteve
vinculado ao estabelecimento de relações mais estreitas entre nações diferentes
e à construção de um grande império.Reservamos assim um lugar para os ‘grandes
homens’ na cadeia, ou melhor, na rede de causas. Mas talvez não seja
inteiramente inútil indagar sob que condições conferimos esse título de honra.
Ficaremos surpresos em descobrir que nunca é muito fácil dar uma resposta a
essa questão. Uma primeira formulação - ‘fazemo-lo se um homem possui em grau
especialmente alto qualidades que valorizamos grandemente’ - claramente erra o
alvo, sob todos os aspectos. A beleza, por exemplo, e a força muscular, por
invejáveis que possam ser, não constituem reivindicações à ‘grandeza’.
Pareceria, então, que as qualidades têm de ser mentais - distinções psíquicas e
intelectuais. Com referências a estas, somos detidos pela consideração de que,
todavia, não descreveríamos sem hesitação alguém como sendo um grande homem
simplesmente porque foi extraordinariamente eficiente em alguma esfera
específica. Certamente não o faríamos no caso de um mestre de xadrez ou de um
virtuoso num instrumento musical, mas não muito facilmente, tampouco, no caso
de um eminente artista ou cientista. Em tais casos, naturalmente e falaríamos
dele como um grande poeta, pintor, matemático ou físico, ou como um pioneiro no
campo desta ou daquela atividade, mas nos abstemos de pronunciá-lo um grande
homem. Se sem hesitação declaramos que, por exemplo, Goethe, Leonardo da Vinci
e Beethoven foram grandes homens, temos de ser levados a isso por algo mais do
que admiração por suas esplêndidas criações. Se precisamente exemplos como
esses não se interpusessem, nos ocorreria provavelmente a idéia de que o nome
de ‘grande homem’ é reservado de preferência para homens de ação -
conquistadores,generais, governantes -, e isso em reconhecimento da grandeza de
suas realizações, da força dos efeitos a que deram origem. Mas também isso é
insatisfatório, sendo inteiramente contraditado por nossa condenação de tantas
figuras inúteis cujos efeitos sobre seu mundo contemporâneo e sobre a
posterioridade não podem, todavia, ser discutidos. Tampouco poderemos escolher
o sucesso como sinal de grandeza, quando refletimos sobre a maioria dos grandes
homens que, ao invés de o alcançarem, pereceram no infortúnio.No momento,
então, estamos inclinados a decidir que não vale a pena procurar uma conotação
do conceito de ‘grande homem’ que não seja ambiguamente determinada. Esse
conceito parece ser apenas um reconhecimento frouxamente empregado e um tanto
arbitrariamente conferido de um desenvolvimento excessivamente grande de certas
qualidades humanas, com alguma aproximação ao sentido original e literal de
‘grandeza’. Temos de lembrar, também, que não estamos interessados tanto na
essência dos grandes homens quanto na questão dos meios pelos quais eles
influenciam seus semelhantes. Manteremos, contudo, essa investigação tão
sucinta quanto possível, visto que ela ameaça conduzir-nos para longe de nosso
objetivo.Permitam-nos, portanto, tomar como certo que um grande homem
influencia seus semelhantes por duas maneiras: por sua personalidade e pela
idéia que ele apresenta. Essa idéia pode acentuar alguma antiga imagem de
desejo das massas, ou apontar um novo objetivo de desejo para elas, ou lançar
de algum outro modo seu encantamento sobre as mesmas. Ocasionalmente - e esse é
indubitavelmente o caso mais primário -, a personalidade funciona por si só e a
idéia desempenha papel bastante trivial. Nem por um só momento nos achamos às
escuras quanto a saber por que um grande homem se torna um dia importante.
Sabemos que na massa humana existe uma poderosa necessidade de uma autoridade
que possa ser admirada, perante quem nos curvemos, por quem sejamos dirigidos
e, talvez, até maltratados. Já aprendemos com a psicologia dos indivíduos qual
é a origem dessa necessidade das massas. Trata-se de um anseio pelo pai que é
sentido por todos, da infância em diante, do mesmo pai a quem o herói da lenda
se gaba de ter derrotado. E pode então começar a raiar em nós que todas as
características com que aparelhamos os grandes homens são características
paternas, e que a essência dos grandes homens, pela qual em vão buscamos,
reside nessa conformidade. A decisão de pensamento, a força de vontade, a
energia da ação fazem parte do retrato de um pai - mas, acima de tudo, a
autonomia e a independência do grande homem, sua indiferença divina que pode
transformar-se em crueldade. Tem-se de admirá-lo, pode-se confiar nele, mas não
se pode deixar de temê-lo, também. Deveríamos ter sidolevados a entender isso
pela própria expressão: quem, senão o pai, pode ter sido o ‘homem grande’ na
infância? Não há dúvida de que foi um poderoso protótipo de um pai que, na
pessoa de Moisés, se curvou até os pobres escravos judeus para lhes assegurar
que eram seus filhos queridos. E não menos esmagador deve ter sido o efeito
sobre eles da idéia de um Deus único, eterno e todo poderoso, para quem não eram
humildes demais para que com eles fizesse um pacto e prometesse cuidar deles se
permanecessem leais à sua adoração. Provavelmente não lhes foi fácil distinguir
a imagem do varão Moisés da de seu Deus e, nisso, o sentimento estava com a
razão, pois Moisés pode ter introduzido traços de sua própria personalidade no
caráter do seu Deus - tais como seu temperamento irado e sua inquietude. E se,
assim sendo, eles mataram um dia seu grande homem, estavam apenas repetindo um
malfeito que em tempos antigos fora cometido, como prescrito pela lei, contra o
Rei Divino e que, como sabemos, remontava a um protótipo ainda mais antigo.
Se, por um lado, vemos assim a figura do grande
homem exalçada a proporções divinas, por outro, contudo, temos de recordar que
também o pai foi outrora uma criança. A grande idéia religiosa que o homem
Moisés representava não era, em nossa opinião, propriedade sua: ele a tomara do
Rei Akhenaten. E este, cuja grandeza como fundador de uma religião está
inequivocamente estabelecida, pode talvez ter seguido sugestões que lhe
chegaram - de partes próximas ou distantes da Ásia - através de sua mãe ou por
outros caminhos.
Não podemos seguir a cadeia de acontecimentos
mais além, mas se identificamos corretamente esses primeiros passos, a idéia
monoteísta retornou como um bumerangue à terra de sua origem. Assim, parece
infrutífero tentar fixar o crédito devido a um indivíduo, em relação a uma nova
idéia. É claro que muitos tiveram parte em seu desenvolvimento e lhe deram
contribuições. E, mais uma vez, seria obviamente injusto interromper
abruptamente a cadeia de causas em Moisés e desprezar o que foi efetuado por
aqueles que o sucederam e levaram à frente suas idéias, os Profetas judaicos. A
semente do monoteísmo fracassou em amadurecer no Egito. A mesma coisa
poderiater acontecido em Israel, após o povo ter-se libertado da religião
onerosa e exigente. Mas constantemente surgiram, no povo judeu, homens que
reviveram a tradição a esmaecer-se, que renovaram as admonições e as exigências
feitas por Moisés, e que não descansaram até que aquilo que estava perdido
fosse mais uma vez estabelecido. No curso de constantes esforços, através dos
séculos, e finalmente devido a duas grandes reformas, uma antes e outra após o
exílio babilônico, efetuou-se a transformação do deus popular Javé no Deus cuja
adoração fora imposta aos judeus por Moisés. E provas da presença de uma
aptidão psíquica peculiar nas massas que se tinham tornado o povo judeu são
reveladas pelo fato de terem sido capazes de produzir tantos indivíduos
preparados para assumir o ônus da religião de Moisés, em troca da recompensa de
ser o povo escolhido e talvez por alguns outros prêmios de grau semelhante.
C - O AVANÇO EM INTELECTUALIDADE
A fim de ocasionar resultados psíquicos
duradouros num povo, é claro que não basta assegurar-lhes que foram escolhidos
pela divindade. O fato também deve ser-lhes provado de alguma maneira,
se é que devem crer nele e tirar conseqüências da crença. Na religião de
Moisés, o Êxodo do Egito serviu como prova; Deus, ou Moisés em seu nome, nunca
se cansava de apelar para essa prova de favor. A festa da Páscoa foi
introduzida a fim de manter a lembrança desse acontecimento, ou, antes,
injetou-se numa festa de antiga criação o conteúdo dessa lembrança: o Êxodo
pertencia a um passado enevoado. No presente, os sinais do favor de Deus eram
decididamente escassos; a história do povo apontava antes para seu desfavor. Os
povos primitivos costumavam depor seus deuses ou até mesmo castigá-los, se
deixavam de cumprir seu dever de assegurar-lhes vitória, felicidade e conforto.
Em todos os períodos, os reis não foram tratados de modo diferente dos deuses;
uma antiga identidade assim se revela: uma origem a partir de uma raiz comum.
Assim, também os povos modernos têm o hábito de expulsar seus reis se a glória
do reinado deles é conspurcada por derrotas e as perdas correspondentes em
território e dinheiro. Por que o povo de Israel, contudo, apegou-se cada vez
mais submissamente a seu Deus quanto pior era tratado por este, é um problema que,
por ora, temos de deixar de lado.
Esse problema pode incentivar-nos a indagar se
a religião de Moisés trouxe ao povo algo mais além de uma acentuação de sua
auto-estima, devida à sua consciência de ter sido escolhido. E, na verdade,
outro fator pode ser facilmente encontrado. Essa religião trouxe também aos
judeus uma concepção muito mais grandiosa de Deus, ou, como poderíamos dizer
mais modestamente, a concepção de um Deus mais grandioso. Todo aquele que
acreditasse nesse Deus possuía algum tipo de parte em sua grandeza, ele próprio
poderia sentir-se exalçado. Para um descrente, isso não é inteiramente
auto-evidente, mas talvez possamos torná-lo mais fácil de compreender se
apontarmos para o senso de superioridade sentido por um britânico num paísestrangeiro
que se tornou inseguro devido a uma insurreição - sentimento completamente
ausente no cidadão de qualquer pequeno Estado continental. Pois o britânico
conta o fato de que seu Government enviará um navio de guerra se um só
dos cabelos de sua cabeça for tocado, e que os rebeldes compreendem isso muito
bem - ao passo que o pequeno Estado não possui navio de guerra algum. Assim, o
orgulho da grandeza do British Empire tem raiz também na consciência da
maior segurança - da proteção - desfrutada pelo indivíduo britânico. Isso pode
assemelhar-se à concepção de um Deus grandioso. E, visto que mal se pode ter o
direito de auxiliar Deus na administração do mundo, o orgulho da grandeza de
Deus se funde com o orgulho de ser escolhido por ele.
Entre os preceitos da religião de Moisés há um
que é de importância maior do que parece inicialmente. Trata-se da proibição
contra fabricar uma imagem de Deus - a compulsão a adorar um Deus que não se
pode ver. Nisso, suspeito eu, Moisés excedia a rigidez da religião de Aten. Talvez
ele simplesmente quisesse ser coerente: seu Deus, nesse caso, não teria nome
nem semblante. Talvez fosse uma nova medida contra abusos mágicos. Mas, se essa
proibição fosse aceita, deveria ter um efeito profundo, pois significava que
uma percepção sensória recebia um lugar secundário quanto ao que poderia ser
chamado de idéia abstrata - um triunfo da intelectualidade sobre a
sensualidade, ou, estritamente falando, uma renúncia instintual, com todas as
suas seqüências psicológicas necessárias.
Isso pode não parecer óbvio à primeira vista,
e, antes que possa proporcionar convicção, temos de recordar outros processos
do mesmo caráter no desenvolvimento da civilização humana. O mais antigo
desses, e talvez o mais importante, está fundido à obscuridade das eras
primevas. Seus assombrosos efeitos compelem-nos a asseverar sua ocorrência. Em
nossos filhos, em adultos que são neuróticos, bem como em povos primitivos,
deparamo-nos com o fenômeno mental que descrevemos como sendo uma crença na
‘onipotência de pensamentos’. Em nosso juízo, esse fenômeno reside numa
superestimação da influência que nossos atos mentais (nesse caso, intelectuais)
podem exercer na alteração do mundo externo. No fundo, toda a magia, precursora
de nossa tecnologia, repousa nessa premissa. Também toda amagia das palavras
encontra aqui seu lugar, e a convicção do poder ligado ao conhecimento e à
pronúncia de um nome. A ‘onipotência de pensamentos’ foi, supomos nós,
expressão do orgulho da humanidade no desenvolvimento da fala, que resultou em
tão extraordinário avanço das atividades intelectuais. Escancarou-se o novo
reino da intelectualidade, no qual idéias, lembranças e inferências se tornaram
decisivas, em contraste com a atividade psíquica inferior que tinha como seu
conteúdo as percepções diretas pelos órgãos sensórios. Esse foi,
indiscutivelmente, um dos mais importantes estádios no caminho da hominização
ver em [[1]].
Podemos muito mais facilmente apreender outro
processo, de data posterior. Sob a influência de fatores externos nos quais não
precisamos ingressar aqui e que também, em parte, são insuficientemente
conhecidos, aconteceu que a ordem social matriarcal foi sucedida pela
patriarcal, o que, naturalmente, acarretou uma revolução nas condições
jurídicas até então predominantes. Um eco dessa revolução parece ainda ser
audível na Oréstia, de Ésquilo. Mas esse afastamento da mãe para o pai
aponta, além disso, para uma vitória da intelectualidade sobre a sensualidade -
isto é, para um avanço em civilização, já que a maternidade é provada pela
evidência dos sentidos, ao passo que a paternidade é uma hipótese, baseada numa
inferência e numa premissa. Tomar partido, dessa maneira, por um processo de
pensamento, de preferência a uma percepção sensória, provou ser um passo
momentoso.
Em algum lugar entre os dois acontecimentos que
mencionei, ocorreu outro que apresenta a máxima afinidade com o que estamos
investigando na história da religião. Os seres humanos viram-se obrigados, em
geral, a reconhecer as forças ‘intelectuais [geistige]’, isto é, forças
que não podem ser apreendidas pelos sentidos (particularmente pela vista), mas
que não obstante produzem efeitos indubitáveis e, na verdade, extremamente
poderosos. Se nos apoiarmos na prova da linguagem, foi o movimento do ar que
proporcionou o protótipo da intelectualidade [Geistigkeit], pois o
intelecto [Geist] deriva seu nome de um sopro de vento - ‘animus‘,
‘spiritus‘, e o hebraico ‘ruach (fôlego)’. Isso conduziu tambémà
descoberta da mente [Seele (alma)] como o princípio intelectual [geistigen]
nos seres individuais. A observação encontrou o movimento do ar mais uma vez na
respiração dos homens, que cessa quando eles morrem. Até o dia de hoje, um
homem moribundo ‘exala o espírito [Selle]’. Agora, contudo, o mundo dos
espíritos [Geisterreich] jaz aberto aos homens. Eles estavam preparados
para atribuir a alma [Seele] que tinham descoberto em si próprios a tudo na
Natureza. O mundo inteiro era animado [beseelt], e a ciência, que surgiu
tão mais tarde, muito teve de fazer para mais uma vez despir parte do mundo de
sua alma; na verdade, mesmo nos dias de hoje, ela não completou essa tarefa.
A proibição mosaica elevou Deus a um grau
superior de intelectualidade; abriu-se então o caminho para novas alterações na
idéia de Deus, as quais ainda temos de descrever. Mas podemos considerar
primeiro outro efeito da proibição. Todos os avanços em intelectualidade desse
tipo têm, como conseqüência, o aumento da auto-estima do indivíduo, tornando-o
orgulhoso, de maneira que se sente superior a outras pessoas que permaneceram
sob o encantamento da sensualidade. Moisés, como sabemos, transmitiu aos judeus
um exaltado sentimento de serem um povo escolhido. A desmaterialização de Deus
trouxe uma nova e valiosa contribuição para o secreto tesouro desse povo. O infortúnio
político da nação ensinou-o a apreciar em seu justo valor a única possessão que
lhe restou - sua literatura. Imediatamente após a destruição do Templo em
Jerusalém por Tito, o rabino Jochanan ben Zakkai solicitou permissão para abrir
a primeira escola de Torá em Jabné. Dessa época em diante, a Escritura Sagrada
e o interesse intelectual por ela mantiveram reunido o povo dispersado.
Tudo isso é geralmente sabido e aceito. Tudo o
que eu quis fazer foi acrescentar que esse desenvolvimento característico da
natureza judaica foi introduzido pela proibição mosaica contra adorar a Deus
numa forma visível.
A permanência concedida aos labores
intelectuais através de cerca de dois mil anos na vida do povo judeu teve,
naturalmente, seu efeito. Ela ajudou a controlar a brutalidade e a tendência à
violência, aptas a aparecer onde odesenvolvimento da força muscular constitui o
ideal popular. A harmonia no cultivo da atividade intelectual e física, tal
como alcançada pelo povo grego, foi negada aos judeus. Nessa dicotomia, a
decisão deles foi pelo menos a favor da alternativa mais digna.
D - A RENÚNCIA AO INSTINTO
Não é óbvio nem imediatamente compreensível por
que um avanço em intelectualidade, um retrocesso da sensualidade, deva elevar a
autoconsideração tanto de um indivíduo quanto de um povo. Esse avanço parece
pressupor a existência de um padrão definido de valor e de alguma outra pessoa
ou instância que o sustente. Para uma explicação, voltemo-nos para um caso
análogo na psicologia individual, caso que chegamos a compreender.
Se o id de um ser humano dá origem a uma
exigência instintual de natureza agressiva ou erótica, o mais simples e natural
é que o ego, que tem o aparelho de pensamento e o aparelho muscular à sua
disposição, satisfaça a exigência através de uma ação. Essa satisfação do
instinto é sentida pelo ego como prazer, tal como sua não satisfação
indubitavelmente se tornaria fonte de desprazer. Ora, pode surgir um caso em
que o ego se abstenha de satisfazer o instinto, por causa de obstáculos externos,
a saber, se percebesse que a ação em apreço provocaria um sério perigo ao ego.
Uma abstenção da satisfação desse tipo, a renúncia a um instinto por causa de
um obstáculo externo - ou, como podemos dizer, em obediência ao princípio da
realidade -, não é agradável em caso algum. A renúncia ao instinto conduziria a
uma tensão duradoura, devida ao desprazer, se não fosse possível reduzir a
intensidade do próprio instinto mediante deslocamentos de energia. A renúncia
instintual, contudo, pode também ser imposta por outras razões, as quais
corretamente descrevemos como internas. No curso do desenvolvimento de
um indivíduo, uma parte das forças inibidoras do mundo externo é internalizada
e constrói-se no ego uma instância que confronta o restante do ego num sentido
observador, crítico e proibidor. Chamamos essa nova instância de superego.
Doravante o ego, antes de colocar em funcionamento as satisfações instintuais
exigidas pelo id, tem de levar em conta não simplesmente os perigos do mundo
externo, mas também as objeções do superego, e terá ainda mais fundamentos para
abster-se de satisfazer o instinto. Mas onde a renúncia instintual, quando se
dá por razões externas, é apenas desprazerosa, quando ela se deve a
razões internas, em obediência ao superego, ela tem um efeito econômico
diferente. Em acréscimo às inevitáveis conseqüências desprazerosas, ela também
traz ao ego um rendimento de prazer - uma satisfação substitutiva, por assim
dizer. O ego se sente elevado; orgulha-se da renúncia instintual, como se ela
constituísse uma realização de valor. Acreditamos quepodemos entender o
mecanismo desse rendimento de prazer. O superego é o sucessor e o representante
dos pais (e educadores) do indivíduo, que lhe supervisionaram as ações no
primeiro período de sua vida; ele continua as funções deles quase sem mudança.
Mantém o ego num permanente estado de dependência e exerce pressão constante
sobre ele. Tal como na infância, o ego fica apreensivo em pôr em risco o amor
de seu senhor supremo; sente sua aprovação como libertação e satisfação, e suas
censuras como tormentos de consciência. Quando o ego traz ao superego o
sacrifício de uma renúncia instintual, ele espera ser recompensado recebendo
mais amor deste último. A consciência de merecer esse amor é sentida por ele
como orgulho. Na época em que a autoridade ainda não fora internalizada como
superego, poderia ter havido a mesma relação entre a ameaça de perda do amor e
as reivindicações do instinto; havia um sentimento de segurança e satisfação
quando se conseguia uma renúncia instintual por amor ao país. Mas esse
sentimento feliz só poderia assumir o peculiar caráter narcísico de orgulho
depois que a própria autoridade se tivesse tornado parte do ego.
Que auxílio essa explicação da satisfação que
surge da renúncia instintual nos dá no sentido de compreendermos os processos
que desejamos estudar - a elevação da autoconsideração quando existem avanços
em intelectualidade? Muito pouco, parece. As circunstâncias são inteiramente
diferentes. Não se trata de qualquer renúncia instintual e não existe segunda
pessoa alguma ou instância por cujo amor o sacrifício é feito. Logo sentiremos
dúvidas sobre essa última asserção. Pode-se dizer que o grande homem é
exatamente a autoridade por cujo amor a realização é levada a cabo; e, visto
que o próprio grande homem opera por virtude de sua semelhança com o pai, não
há necessidade de sentir surpresa se, na psicologia de grupo, o papel de
superego cabe a ele. Desse modo, isso também se aplicaria ao homem Moisés em
relação ao povo judeu. Com referência ao outro ponto, contudo, nenhuma analogia
pode ser estabelecida. Um avanço em intelectualidade consiste em decidir contra
a percepção sensória direta, em favor do que é conhecido como processos
intelectuais superiores - isto é, lembranças, reflexões e inferências.
Consiste, por exemplo, em decidir que a paternidade é mais importante do que a
maternidade, embora não possa, como esta última, ser estabelecida pela prova
dos sentidos, e que, por essa razão, a criança deve usar o nome do pai e ser
herdeira dele. Ou declara que nosso Deus é o maior e o mais poderoso, embora
seja invisível como uma rajada de vento ou como a alma. A rejeição de uma
exigência instintual sexual ou agressiva parece ser algo inteiramente diferente
disso. Ademais, no caso de alguns avanços em intelectualidade - no caso da
vitória do patriarcado, por exemplo -, nãopodemos apontar a autoridade que
estabelece o padrão que deve ser considerado superior. Nesse caso, não pode ser
o pai, visto que ele só é elevado a autoridade pelo próprio avanço. Somos assim
defrontados pelo fenômeno de que, no curso do desenvolvimento da humanidade, a
sensualidade é gradativamente superada pela intelectualidade e que os homens se
sentem orgulhosos e exalçados por cada avanço desse tipo. Contudo, somos
incapazes de dizer por que isso deve ser assim. Acontece ainda, posteriormente,
que a própria intelectualidade é superada pelo fenômeno emocional bastante
enigmático da fé. Aqui, temos o famoso ‘credo quia absurdum‘, e, mais
uma vez, todo aquele que tenha alcançado êxito nisso encara-o como uma
realização suprema. Talvez o elemento comum em todas essas situações
psicológicas seja outra coisa. Talvez os homens simplesmente afirmem que aquilo
que é mais difícil é superior, e seu orgulho seja meramente seu narcisismo
aumentado pela consciência de uma dificuldade vencida.
Essas certamente não são considerações muito
frutíferas, e poder-se-ia pensar que nada têm que ver, de modo algum, com nossa
investigação a respeito do que determinou o caráter do povo judeu. Isso só nos
seria proveitoso, mas uma certa vinculação com nosso problema é não obstante
revelada por um fato que posteriormente nos interessará ainda mais. A religião
que começou com a proibição de fabricar uma imagem de Deus transforma-se cada
vez mais, no decurso dos séculos, numa religião de renúncias instintuais. Não é
que ela exija abstinência sexual; contenta-se com uma acentuada
restrição da liberdade sexual. Deus, contudo, afasta-se inteiramente da
sexualidade e eleva-se para o ideal de perfeição ética. Mas a ética é uma
limitação do instinto. Os profetas nunca se cansaram de asseverar que Deus nada
exige de seu povo senão uma conduta de vida justa e virtuosa - isto é,
abstenção de toda satisfação instintual, que ainda é condenada como impura
também por nossa mortalidade atual. E mesmo a exigência de crença nele parece
ficar em segundo lugar, em comparação com a seriedade desses requisitos éticos.
Dessa maneira, a renúncia instintual parece desempenhar um papel preeminente na
religião, mesmo que não se tivesse salientado nela desde o início.
Aqui é o lugar, contudo, para uma interpelação,
a fim de evitar um mal-entendido. Ainda que possa parecer que a renúncia
instintual e a ética nela fundada não façam parte do conteúdo essencial da religião,
geneticamente, contudo, elas estão bastante intimamente vinculadas à religião.O
totemismo, a forma mais primitiva de religião que identificamos, traz consigo,
como constituintes indispensáveis de seu sistema, uma série de ordens e
proibições que não possuem outra significação, naturalmente, que a de renúncias
instintuais: a adoração do totem, que inclui uma proibição contra danificá-lo
ou matá-lo; a exogamia - isto é, a renúncia às apaixonadamente desejadas mães e
irmãs da horda -, a concessão de direitos iguais a todos os membros da aliança
fraterna - isto é, a restrição da inclinação para a rivalidade violenta entre
eles. Nesses regulamentos, devem ser visto os primórdios de uma ordem moral e
social. Não nos escapa que dois motivos diferentes estão em ação aqui. As duas
primeiras proibições operam do lado do pai, que foi eliminado: dão continuidade
a sua vontade, por assim dizer. A terceira ordem - a concessão de direitos
iguais aos irmãos aliados - despreza essa vontade; justifica-se por um apelo à
necessidade de manter permanentemente a nova ordem que sucedeu ao afastamento
do pai, pois, de outra maneira, uma recaída no estado anterior se tornaria
inevitável. É aqui que as ordens sociais divergem das outras, as quais, como
poderíamos dizer, se derivam diretamente de vinculações religiosas.
A parte essencial desse curso de acontecimentos
repete-se no desenvolvimento abreviado do indivíduo humano. Também aqui é
autoridade dos pais da criança - essencialmente, a de seu pai autocrático, a
ameaçá-la com seu poder de punir - que lhe exige uma renúncia ao instinto e que
por ela decide o que lhe deve ser concedido e proibido. Mais tarde, quando a
Sociedade e o superego assumiram o lugar dos pais, o que na criança era chamado
de ‘bem-comportado’ ou ‘travesso’, é descrito como ‘bom’ e ‘mau’, ou ‘virtuoso’
e ‘vicioso’. Mas ainda é sempre a mesma coisa - renúncia instintual sob a
pressão da autoridade que substitui e prolonga o pai.
Uma nova profundidade é adicionada a essas
descobertas quando examinamos o notável conceito de santidade. O que é que
realmente nos parece ‘santo’ de preferência a outras coisas que valorizamos
altamente e reconhecemos como importantes? Por um lado, a vinculação de
santidade ousacralidade com o religioso é inequívoca. Nela se insiste enfaticamente:
tudo que é religioso é sagrado, ela é o próprio cerne da sacralidade. Por outro
lado, nosso julgamento é perturbado pelas numerosas tentativas de aplicar as
características de sacralidade a tantas outras coisas - pessoas, instituições,
funções - que pouco têm que ver com a religião. Esses esforços servem a
propósito óbvios e tendenciosos. Comecemos pelo caráter proibitivo que está tão
firmemente ligado à sacralidade. O sagrado é obviamente algo em que não se pode
tocar. Uma proibição sagrada possui um tom emocional muito forte, mas, na
realidade, nenhuma base racional. Por que, por exemplo, deveria o incesto com
uma filha ou irmã ser um crime tão especialmente grave - tão pior de que
qualquer outra relação sexual? Se pedirmos uma base racional, certamente nos
será dito que todos os nossos sentimentos se revoltam contra isso. Mas isso
apenas significa que as pessoas encaram a proibição como auto-evidente e não
conhecem base alguma para ela.
É bastante fácil demonstrar a futilidade de tal
explicação. O que é representado como insultante a nossos mais sagrados
sentimentos constituía costume universal - poderíamos chamá-lo de um uso
tornado sagrado - entre as famílias dominantes dos antigos egípcios e de outros
povos primitivos. Era aceito como coisa natural que o faraó tomasse a irmã como
sua primeira e principal esposa, e os sucessores dos faraós, os Ptolomeus
gregos, não hesitaram em seguir esse modelo. Somos compelidos, antes, a uma
compreensão de que o incesto - nesse caso, entre irmão e irmã - constituía um
privilégio retirado dos mortais comuns e reservado aos reis como representantes
dos deuses, tal como, semelhantemente, nenhuma objeção se fazia a relações
incestuosas dessa espécie no mundo das lendas grega e germânica. Pode-se
suspeitar de que a escrupulosa insistência sobre a igualdade de nascimento
entre nossa aristocracia é uma relíquia sobre esse antigo privilégio, e pode-se
estabelecer que, em resultado do cruzamento consangüíneo praticado durante
tantas gerações nos estratos sociais mais elevados, a Europa é hoje governada
por membros de uma única família e de uma segunda.
A evidência do incesto entre deuses, reis e
heróis ajuda-nos também a lidar com outra tentativa, que busca explicar
biologicamente o horror ao incesto e fazê-lo remontar a um obscuro conhecimento
dos danos causados pelo cruzamento consangüíneo. Sequer é certo, entretanto,
que exista algumperigo de danos por causa desse cruzamento, quanto mais
dizer que povos primitivos pudessem tê-lo identificado e contra ele reagido. Do
mesmo modo, a incerteza na definição dos graus permitidos e proibidos de
parentesco pouco argumenta em favor da hipótese de que um ‘sentimento natural’
constitui a base suprema do horror ao incesto.
Nossa construção da pré-história nos força a
outra explicação. A ordem em favor da exogamia, da qual o horror ao incesto é a
expressão negativa, era um produto da vontade do pai e deu continuidade a essa
vontade depois que ele foi afastado. Daí provém a força de seu tom emocional e
a impossibilidade de descobrir uma base racional para ela - isto é, sua
sacralidade. Confiantemente esperamos que uma investigação de todos os outros
casos de proibição sagrada conduza à mesma conclusão que à do horror ao
incesto: que aquilo que é sagrado originalmente nada mais era do que o
prolongamento da vontade do pai primevo. Isso também lançaria luz sobre a
ambivalência até aqui incompreensível das palavras que expressam o conceito de
sacralidade. Trata-se da ambivalência que em geral domina a relação com o pai.
[O latim] ‘sacer‘ significa não apenas ‘sagrado’, ‘consagrado’, mas
também algo que só podemos traduzir por ‘infame’, ‘detestável’, (e.g., ‘auri
sacra fames’).
Mas a
vontade do pai não era apenas algo que não podia ser tocado, que se tinha de
ter em elevado respeito, mas também algo perante o que se tremia, por exigir
uma penosa renúncia instintual. Quando ouvimos que Moisés tornou santo seu
povo,ver em [[1]],pela introdução do costume da circuncisão, compreendemos o
significado profundo dessa asserção. A circuncisão é o substituto simbólico da
castração que o pai primevo outrora infligira aos filhos na plenitude de seu
poder absoluto, e todo aquele que aceitava esse símbolo demonstrava através
disso que estava preparado para submeter-se à vontade do pai, mesmo que esta lhe
impusesse o mais penoso sacrifício.
Retornando à ética, podemos dizer, em
conclusão, que uma parte de seus preceitos se justifica racionalmente pela
necessidade de delimitar os direitos da sociedade contra o indivíduo, os
direitos do indivíduo contra a sociedade, e os dos indivíduos uns contra os
outros. Mas o que nos parece tão grandioso a respeito da ética, tão misterioso
e, de modo místico, tão auto-evidente, deve essas características à sua
vinculação com a religião, à sua origem na vontade do pai.
E - O QUE É VERDADEIRO EM
RELIGIÃO
Quão invejáveis, para aqueles de nós que são
pobres de fé, parecem ser aqueles investigadores que estão convencidos da
existência de um Ser Supremo! Para esse grande Espírito, o mundo não oferece
problemas, pois ele próprio criou todas as suas instituições. Quão amplas,
exaustivas e definitivas são as doutrinas dos crentes, comparadas com as
laboriosas, insignificantes e fragmentárias tentativas de explicação que
constituem o máximo que somos capazes de conseguir! O Espírito divino, que é,
ele próprio, ideal da perfeição ética, plantou nos homens o conhecimento desse
ideal e, ao mesmo tempo, o impulso a assemelhar suas próprias naturezas a ele.
Eles percebem diretamente o que é superior e mais nobre e o que é inferior e
mais vil. Sua vida afetiva se regula de acordo com sua distância do ideal, em
qualquer momento. Quando dele se aproximam - em seu periélio, por assim dizer
-, é-lhes trazida alta satisfação; quando, em seu afélio, se tornam distantes
dele, a punição é o severo desprazer. Tudo isso é estabelecido tão simples e
inabalavelmente. Só podemos lamentar que certas experiências da vida e
observações do mundo nos tornem impossível aceitar a premissa da existência de
tal Ser Supremo. Como se no mundo já não houvesse enigmas suficientes, é-nos
proposto o novo problema de compreender como essas outras pessoas puderam
adquirir sua crença no Ser Divino de onde essa crença obteve seu imenso poder,
que esmaga ‘a razão e a ciência’.
Retornemos ao problema mais modesto que nos
ocupou até aqui. Desejávamos explicar a origem do caráter especial do povo
judeu, caráter que provavelmente tornou possível sua sobrevivência até os dias
presentes. Descobrimos que o homem Moisés imprimiu nesse povo esse caráter
dando-lhes uma religião que aumentou tanto sua auto-estima que ele se julgou
superior a todos os outros povos. Depois disso, sobreviveram mantendo-se
apartados dos outros. Misturas de sangue pouco interferiram nisso, visto que o
que os mantinha unidos era um fator ideal, a posse em comum de certa riqueza
intelectual e emocional. A religião de Moisés conduziu a esse resultado porque
(1) permitiu ao povo participar da grandiosidade de uma nova idéia de Deus, (2)
afirmou que esse povo fora escolhido por esse grandeDeus e destinado a receber
provas de seu favor especial, e (3) impôs ao povo um avanço em intelectualidade
que, bastante importante em si mesmo, lhe abriu o caminho, em acréscimo, à
apreciação do trabalho intelectual e a novas renúncias aos instintos.
Foi a isso que chegamos. E, embora não
queiramos retirar nada, não podemos esconder de nós que, de uma ou outra
maneira, é insatisfatório. A causa, por assim dizer, não combina com o efeito;
o fato que desejamos explicar parece-nos ser de magnitude diferente de tudo
pelo qual o explicamos. Talvez todas as investigações que até aqui fizemos não
tenham revelado a totalidade da motivação, mas apenas certa camada superficial,
e talvez, por trás desta, outro fator muito importante aguarde a descoberta? Em
vista da extraordinária complexidade de toda a causação na vida e na história,
algo dessa espécie era de esperar.
O acesso a essa motivação mais profunda
pareceria ter sido fornecido num ponto específico dos debates anteriores. A
religião de Moisés não produziu seus efeitos de imediato, mas de modo
notavelmente indireto. Isso não quer dizer simplesmente que ela não funcionou
logo em seguida, que levou longos períodos de tempo, centenas de anos, para
desdobrar todo o seu efeito, pois isso é auto-evidente quando se trata de
imprimir o caráter de um povo. A restrição, porém, relaciona-se a um fato que
derivamos da história da religião judaica, ou, se quiserem, nela introduzimos.
Dissemos que, após certo tempo, o povo judeu rejeitou a religião de Moisés mais
uma vez; se o fez completamente ou se reteve alguns de seus preceitos é coisa
que não podemos adivinhar. Se supusermos que, no longo período da tomada de
Canaã e da luta com os povos que a habitavam, a religião de Javé não diferiu
essencialmente da adoração de outros Baalim,ver em[[1]],encontrar-nos-emos em
terreno histórico, apesar de todos os tendenciosos esforços posteriores para
lançar um véu sobre esse envergonhante estado de coisas.
A religião de Moisés, contudo, não desapareceu
sem deixar traço. Uma espécie de lembrança sua sobreviveu, obscurecida e
deformada, apoiada, talvez, entre membros individuais da classe sacerdotal,
mediante antigos registros. E foi essa tradição de um grande passado que
continuou a operar em segundo plano, por assim dizer, que gradativamente
conquistou cada vez mais poder sobre as mentes dos homens, e finalmente
conseguiu transformar o deus Javé no Deus de Moisés e chamar de volta à vida a
religião de Moisés, que se estabelecera e fora depois abandonada, muitos
séculos antes.
Numa parte anterior deste Estudo [ver em[1]],
consideramos qual presunção parecerá inevitável se quisermos achar
compreensível esse feito da tradição.
F - O RETORNO DO REPRIMIDO
Há uma quantidade de processos semelhantes
entre os que a investigação analítica da vida mental nos ensinou a conhecer.
Alguns deles são descritos como patológicos; outros se contam entre a
diversidade dos acontecimentos normais. Mas isso pouco importa, já que as
fronteiras entre os dois [os patológicos e os normais] não estão nitidamente
traçadas, seus mecanismos são em grande parte os mesmos, sendo de muito maior
importância saber se as alterações em apreço se realizam no próprio ego ou se
confrontam com ele como estranhas a ele - caso em que são conhecidas como
sintomas.
Da massa de material, apresentarei primeiramente
alguns casos que se relacionam com o desenvolvimento do caráter. Tome-se, por
exemplo, a moça que atingiu um estado da mais decidida oposição à mãe. Ela
cultivou todas aquelas características que percebeu faltarem à mãe, e evitou
tudo que a lembrasse da mesma. Podemos suplementar isso, dizendo que, em seus
primeiros anos, como toda criança do sexo feminino, adotou uma identificação
com a mãe e agora se rebela energicamente contra ela. Mas quando essa moça se
casa e se torna, ela própria, esposa e mãe, não precisamos surpreender-nos por
descobrir que ela começa a ficar cada vez mais parecida com a mãe a quem tanto
antagonizou, até que finalmente a identificação com esta, identificação que ela
supera, é inequivocamente restabelecida. O mesmo também acontece com os
rapazes; inclusive o grande Goethe, que, no período de seu gênio, decerto
olhava com desprezo para seu inflexível e pedante pai, em sua velhice
desenvolveu traços que faziam parte do caráter deste. O resultado pode
tornar-se ainda mais notável quando o contraste entre as duas personalidades é
mais nítido. Um jovem cujo destino foi crescer ao lado de um pai inútil,
começou por transformar-se, em desafio a ele, numa pessoa capaz, digna de
confiança e honrada. No apogeu da vida, seu caráter se inverteu, e daí por
diante comportou-se como se tivesse tomado aquele mesmo pai como modelo. A fim
de não perdermos a vinculação com nosso tema, devemos manter em mente o fato de
que, no início de tal curso de acontecimentos, há sempre uma identificação com
o pai na primeira infância. Esta é posteriormente repudiada e até mesmo
supercompensada, mas, ao final, mais uma vez se estabelece.
Há muito tempo é do conhecimento comum que as
experiências dos cinco primeiros anos de uma pessoa exercem efeito determinante
sobre suavida, efeito que mais tarde pode enfrentar. Muita coisa que merece ser
sabida poderia ser dita sobre a maneira como essas impressões precoces se
mantêm contra quaisquer influências em períodos mais maduros da vida - mas isso
não seria pertinente aqui. Contudo, pode ser menos conhecido que a influência
compulsiva mais forte surge de impressões que incidem na criança numa época em
que teríamos de encarar seu aparelho psíquico como ainda não completamente
receptivo. O fato, em si, não pode ser posto em dúvida, mas é tão enigmático
que podemos torná-lo mais compreensível comparando-o a uma exposição
fotográfica que pode ser revelada após qualquer intervalo de tempo e
transformada num retrato. Não obstante, fico contente em indicar que essa nossa
incômoda descoberta foi antecipada por um escritor imaginativo, com a audácia
que é permitida aos poetas. E.T.A. Hoffmann costumava fazer remontar a riqueza
das figuras que se lhe punham à disposição para seus escritos criativos a
imagens e impressões mutantes que experimentara durante uma viagem de algumas
semanas, numa carruagem de correio, quando ainda era um bebê ao seio da mãe. O
que as crianças experimentaram na idade de dois anos e não compreenderam, nunca
precisa ser recordado por elas, exceto em sonhos; elas só podem vir a saber
disso através do tratamento psicanalítico. Em alguma época posterior,
entretanto, isso irromperá em sua vida com impulsos obsessivos, governará suas
ações, decidirá de suas simpatias e antipatias e, com muita freqüência,
determinará sua escolha de um objeto amoroso, para a qual quase sempre é
impossível encontrar uma base racional. Não podemos enganar-nos sobre os dois
pontos em que esses fatos fazem aflorar nosso problema.
Em primeiro lugar, há a distância do período em
apreço, que é reconhecido aqui como o verdadeiro determinante - no estado
especial da lembrança que, por exemplo, no caso dessas experiências infantis,
classificamos de ‘inconsciente’. Esperamos encontrar nisso uma analogia com o
estado que estamos procurando atribuir à tradição na vida mental do povo. Não
foi fácil, com efeito, introduzir a idéia do inconsciente na psicologia de
grupo.
[Em segundo lugar], contribuições regulares são
feitas aos fenômenos de que estamos à procura pelos mecanismos que levam à
formação dasneuroses. Aqui, mais uma vez, os acontecimentos determinantes
ocorrem nas primeiras épocas infantis; só que o acento não se coloca sobre o tempo
mas sobre os processos pelos quais o acontecimento é enfrentado, pela reação a
ele. Esquematicamente, podemos descrevê-lo da seguinte maneira. Em resultado da
experiência, surge uma experiência instintual que reclama satisfação. O ego
recusa essa satisfação, seja porque está paralisado pela magnitude da
exigência, seja porque a reconhece como um perigo. O primeiro desses
fundamentos é o mais primário; ambos equivalem à evitação de uma situação de
perigo. O ego desvia o perigo pelo processo da repressão. O impulso instintual
é, de alguma maneira, inibido, e esquecida sua causa precipitante, com suas
percepções e idéias concomitantes. Isso, contudo, não constitui o fim do
processo: o instinto ou reteve suas forças ou as reúne novamente ou é
redespertado por alguma nova causa precipitante. Logo após, ele renova sua
exigência, e, como o caminho à satisfação normal lhe permanece fechado pelo que
podemos chamar de cicatriz da repressão, alhures, em algum ponto fraco, ele
abre para si outro caminho ao que é conhecido como satisfação substitutiva, que
vem à luz como sintoma, sem a aquiescência do ego, mas também sem sua compreensão.
Todos os fenômenos da formação de sintomas podem ser justamente descritos como
o ‘retorno do reprimido’. Sua característica distintiva, contudo, é a
deformação, de grandes conseqüências, a qual o material que retorna foi
submetido, quando comparado com o original. Pensar-se-á talvez que esse último
grupo de fatos nos levou para muito longe da semelhança com a tradição, mas não
devemos lamentar se nos trouxe para mais perto dos problemas da renúncia ao
instinto.
G - VERDADE HISTÓRICA
Empreendemos todos esses desvios psicológicos a
fim de tornar mais crível para nós que a religião de Moisés só transmitiu seu
efeito ao povo judeu como uma tradição. É provável que não tenhamos conseguido
mais do que um certo grau de probabilidade. Suponhamos, contudo, que tivemos
êxito em provar isso completamente. Ainda assim permaneceria a impressão de que
simplesmente satisfizemos o fator qualitativo do que foi exigido, mas
não o fator quantitativo. Há um elemento de grandiosidade a respeito de tudo o
que se relaciona à origem da religião, decerto inclusive à da judaica, e esse
elemento não foi igualado pelas explicações que até aqui fornecemos. Deve estar
envolvido algum outro fator, com o qual há pouco que seja análogo e nada que
seja da mesma espécie, algo único, algo da mesma ordem de magnitude do que dele
surgiu, como a própria religião.Ver em [[1]]
Tentemos abordar o assunto a partir da direção
oposta. Compreendemos como um homem primitivo tem necessidade de um deus como
criador do universo, como chefe de seu clã, como protetor pessoal. Esse deus
assume posição por trás dos pais mortos [do clã], a respeito de quem a tradição
ainda tem algo a dizer. Um homem de dias posteriores, de nossos próprios dias,
comporta-se da mesma maneira. Também ele permanece infantil e tem necessidade
de proteção, inclusive quando adulto; pensa que não pode passar sem o apoio de
seu deus. Tudo isso é indiscutível. Menos fácil, porém, é compreender por que
só pode haver um único deus, por que precisamente o avanço do henoteísmo
ao monoteísmo adquire uma significância esmagadora. Não há dúvida, é verdade,
como já explicamos ver em[[1]e[2]],de que o crente participa da grandeza de seu
deus e, quanto maior este, mais digna de confiança é a proteção que pode
oferecer. Mas o poder de um deus não pressupõe necessariamente que ele seja o
único. Muitos povos encaravam apenas como uma glorificação de seu deus
principal que ele governasse outras divindades que lhe eram inferiores, e não
pensavam que diminuísse sua grandeza a existência de outros deuses além dele.
Indubitavelmente, seesse deus se tornasse universal e tivesse todos os países e
povos como sua preocupação, isso significaria um sacrifício da intimidade,
também. Era como se se partilhasse o próprio deus com os estrangeiros, e havia
que compensar isso pela estipulação de se ser preferido por ele. Podemos ainda
argumentar que a idéia de um único deus significa, em si própria, um avanço em
intelectualidade, mas é impossível considerar esse ponto tão altamente.
Os crentes piedosos, contudo, sabem como
preencher adequadamente essa lacuna óbvia na motivação. Dizem que a idéia de um
deus único produziu um efeito tão esmagador sobre os homens porque se tratava
de uma parte da verdade eterna, a qual, longo tempo oculta, por fim veio
à luz, estando então fadada a conduzir todos consigo. Temos de admitir que um
fator desse tipo é, por fim, algo que iguala a magnitude, tanto do assunto
quanto do seu efeito.
Também nós gostaríamos de aceitar essa solução.
Mas uma dúvida se apresenta a nós. O piedoso argumento repousa numa premissa
otimista e idealista. Não foi possível demonstrar, em relação a outros
assuntos, que o intelecto humano possua um faro particularmente bom para a
verdade, ou que a mente humana demonstre qualquer inclinação especial para
reconhecê-la. Encontramos antes, pelo contrário, que nosso intelecto facilmente
se extravia sem qualquer aviso, e que nada é mais facilmente acreditado por nós
do que aquilo que, sem referência à verdade, vem ao encontro de nossas ilusões
carregadas de desejo. Temos, por esta razão, de acrescentar uma reserva à nossa
concordância. Nós também acreditamos que a solução piedosa contém a verdade -
mas a verdade histórica, não a verdade material. E assumimos o
direito de corrigir uma certa deformação a que essa verdade foi submetida em
seu retorno. Isso equivale a dizer que não acreditamos que exista um único e
grande deus hoje, mas que, em tempos primevos, houve uma pessoa isolada que
estava fadada a parecer imensa nessa época e que, posteriormente, retornou na
memória dos homens, elevada à divindade.
Já presumimos que a religião de Moisés foi,
inicialmente, rejeitada e semi-esquecida, irrompendo posteriormente como uma
tradição. Estamos agora presumindo que esse processo estava sendo repetido pela
segunda vez. Quando Moisés trouxe ao povo a idéia de um deus único, ela não
constituiu uma novidade, mas significou a revivescência de uma experiência das
eras primevas da família humana, a qual havia muito tempo se desvanecera na
memória consciente dos homens. Mas ela fora tão importante e produzira ou
preparara o caminho para mudanças tão profundamente penetrantes na vida dos
homens, que não podemos evitar crer que deixara atrás de si, na mente humana,
alguns traços permanentes, os quais podem ser comparados a uma
tradição.Aprendemos das psicanálises de indivíduos que suas impressões mais
primitivas, recebidas numa época em que a criança mal era capaz de falar,
produzem, numa ou noutra ocasião efeitos de um caráter compulsivo, sem serem,
elas próprias, conscientemente recordadas. Acreditamos que temos o direito de
fazer a mesma presunção sobre as experiências mais primitivas da totalidade da
humanidade. Um desses efeitos seria o surgimento da idéia de um único e grande
deus - idéia que deve ser reconhecida como uma lembrança que foi deformada. Uma
idéia como essa possui um caráter compulsivo: ela deve ser acreditada.
Até o ponto em que é deformada, ela pode ser descrita como um delírio;
na medida em que traz um retorno do passado, deve ser chamada de verdade.
Também os delírios psiquiátricos contêm um pequeno fragmento de verdade e a
convicção do paciente estende-se dessa verdade para seus invólucros delirantes.
O que se segue daqui até o fim, é uma repetição
ligeiramente modificada dos debates da Parte I [do presente (terceiro) ensaio].
Em 1912, tentei, em meu Totem e Tabu,
reconstruir a antiga situação da qual essas conseqüências decorreram. Assim
procedendo, fiz uso de certas idéias teóricas apresentadas por Darwin, Atkinson
e, particularmente, Robertson Smith, e combinei-as com os achados e indicações
derivados da psicanálise. De Darwin tomei de empréstimo a hipótese de que os
seres humanos originalmente viviam em pequenas hordas, cada uma das quais sob o
governodespótico de um macho mais velho que se apropriava de todas as fêmeas e
castigava ou se livrava dos machos mais novos, inclusive os filhos. De
Atkinson, em continuação dessa descrição, tomei a idéia de que esse sistema
patriarcal terminou por uma rebelião por parte dos filhos, que se reuniram em
bando contra o pai, o derrotaram e o devoraram em comum. Baseando-me na teoria
totêmica de Robertson Smith, presumi que, subseqüentemente, a horda paterna
cedeu lugar ao clã fraterno totêmico. A fim de poder viver em paz uns com os
outros, os irmãos vitoriosos renunciaram às mulheres por cuja causa, afinal de
contas, haviam matado o pai, e instituíram a exogamia. O poder dos pais foi
rompido e as famílias se organizaram em matriarcado. A atitude emocional
ambivalente dos filhos para com o pai permaneceu em vigor durante a totalidade
do seu desenvolvimento posterior. Um animal específico foi colocado em lugar do
pai, como totem. Era encarado como ancestral e espírito protetor, e não podia
ser ferido ou morto. Uma vez por ano, toda a comunidade masculina se reunia
numa refeição cerimonial, em que o animal totêmico (adorado em todas as outras
ocasiões) era despedaçado e devorado em comum. Ninguém podia ausentar-se dessa
refeição: ela era a repetição cerimonial da morte do pai, com a qual a ordem
social, as leis morais e a religião haviam iniciado. A conformidade entre a
refeição totêmica de Robertson Smith e a Ceia do Senhor cristã impressionara
certo número de escritores antes de mim.Ver em [ [1][2]].
Até o dia de hoje, atenho-me firmemente a essa
construção. Repetidamente defrontei-me com violentas censuras por não ter
alterado minhas opiniões em edições posteriores de meus livros, apesar do fato
de etnológos mais recentes terem unanimemente rejeitado as hipóteses de
Robertson Smith e em parte apresentado outras teorias, totalmente divergentes.
Posso dizer em resposta que esses avanços ostensivos me são bem conhecidos. Mas
não fui convencido quer da correção dessas inovações, quer dos erros de
Robertson Smith. Uma negação não é uma refutação, uma inovação não é
necessariamente um avanço. Acima de tudo, porém, não sou etnólogo, mas
psicanalista. Tenho o direito de extrair, da literatura etnológica, o que possa
necessitar para o trabalho de análise. Os escritos de Robertson Smith - um
homem de gênio - forneceram-me valiosos pontos de contato com o material
psicológico da análise e indicações para seu emprego. Nunca me encontrei em
campo comum com seus opositores.
H - O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO
Não posso aqui repetir pormenorizadamente o
conteúdo de Totem e Tabu. Mas tenho de tentar preencher a longa extensão
existente entre aquele hipotético período primevo e a vitória do monoteísmo,
nos tempos históricos. Após a instituição da combinação de clã fraterno,
matriarcado, exogamia e totemismo, começou um desenvolvimento que deve ser
descrito como um lento ‘retorno do reprimido’. Aqui, não estou empregando o
termo ‘o reprimido’ em seu sentido próprio. O que está em tela é algo na vida
de um povo que é passado, perdido de vista, relegado, e que nos aventuramos a
comparar com o que é reprimido na vida mental de um indivíduo. Não podemos, à
primeira vista, dizer sob que forma esse passado existiu durante o tempo de seu
eclipse. Não nos é fácil transferir os conceitos da psicologia individual para
a psicologia de grupo, e não acho que ganhemos alguma coisa introduzindo o
conceito de um inconsciente ‘coletivo’. O conteúdo do inconsciente, na verdade,
é, seja lá como for, uma propriedade universal, coletiva, da humanidade. Por
ora, pois, teremos de nos arranjar com o uso de analogias. Os processos da vida
dos povos que estamos estudando aqui são muito semelhantes àqueles que nos são
familiares na psicopatologia; contudo, não são inteiramente os mesmos. Temos de
finalmente decidir-nos por adotar a hipótese de que os precipitados psíquicos
do período primevo se tornaram propriedade herdada, a qual, em cada nova
geração, não exigia aquisição, mas apenas um redespertar. Nisso, temos em mente
o exemplo do que é certamente o simbolismo ‘inato’ que deriva do período do
desenvolvimento da fala, familiar a todas as crianças sem que elas sejam
instruídas, e que é o mesmo entre todos os povos, apesar de suas diferentes
línguas. O que talvez ainda nos possa faltar em certeza aqui é compensado por
outros produtos da pesquisa psicanalítica. Descobrimos que, em certo número de
relações importantes, nossas crianças reagem, não de maneira correspondente às
suas próprias experiências, mas instintivamente, como animais, de um modo que
só é explicável como aquisição filogenética.O retorno do reprimido realizou-se
de modo lento e decerto não espontâneo, mas sob a influência de todas as
mudanças em condições de vida que preenchem a história da civilização humana.
Não posso fornecer aqui um levantamento desses determinantes, não mais do que
uma enumeração fragmentária dos estádios desse retorno. O pai mais uma vez
tornou-se o cabeça da família, mas de modo algum era tão absoluto quanto o pai
da horda primeva o fora. O animal totêmico foi substituído por um deus, numa
série de transições que ainda são muito claras. Inicialmente, o deus em forma
humana ainda portava uma cabeça de animal; mais tarde, transformou-se, de
preferência, nesse animal específico, e, posteriormente, este foi consagrado a
ele e constituiu-se em seu assistente preferido, ou, então, o deus matava o animal
e portava-lhe o nome, como epíteto. Entre o animal totêmico e o deus, surgiu o
herói, amiúde como passo preliminar no sentido de deificação. A idéia de uma
divindade suprema parece ter começado cedo, a princípio apenas de maneira
indistinta sem interferir nos interesses cotidianos dos homens. À medida que
tribos e povos se reuniam em unidades maiores, os deuses também se organizavam
em famílias e hierarquias. Um deles era com freqüência elevado a senhor supremo
sobre deuses e homens. Após isso, deu-se hesitadamente o passo seguinte de
prestar respeito apenas a um só deus, e, finalmente, tomou-se a decisão de
conceder todo poder a um deus único e de não tolerar outros deuses além dele.
Somente assim foi que a supremacia do pai da horda primeva foi restabelecida e
as emoções referentes a ele puderam ser repetidas.
O primeiro efeito de encontrar o ser que por
tanto tempo estivera faltando e pelo qual se ansiara foi esmagador e semelhante
à descrição tradicional da entrega das leis no Monte Sinai. Admiração, temor
respeitoso e agradecimento por ter encontrado graça a seus olhos - a religião
de Moisés não conhecia outros que não fossem esses sentimentos positivos para
com o deus pai. A convicção de sua irresistibilidade, a submissão à sua vontade
não poderiam ter sido mais indiscutidas no desamparado e intimidado filho do
pai da horda - na verdade, esses sentimentos só se tornaram plenamente
inteligíveis quando transpostos para o ambiente primitivo e infantil. Os
impulsos emocionais de uma criança são intensa e inexaurivelmente profundos,
num grau inteiramente diferente dos de um adulto; só o êxtase religioso pode
trazê-los de volta. O enlevo da devoção a Deus foi assim a primeira reação ao
retorno do grande pai.
A direção a ser tomada por essa religião
paterna foi, dessa maneira, estabelecida para todo o tempo. Contudo, isso não
levou seu desenvolvimento a um final. A ambivalência faz parte da essência da
relação com o pai: nodecurso do tempo, também a hostilidade não podia deixar de
despertar, o que mais uma vez impulsionou os filhos a matarem seu admirado e
temido pai. Não havia lugar, na estrutura da religião de Moisés, para uma
expressão direta do ódio assassino pelo pai. Tudo o que podia vir à luz era uma
reação poderosa contra ele - um sentimento de culpa por causa dessa
hostilidade, uma má consciência por ter pecado contra Deus e por não ter
deixado de pecar. Esse sentimento de culpa, que foi ininterruptamente mantido
desperto pelos Profetas, e que cedo constituiu parte essencial do sistema
religioso, possuía ainda outra motivação superficial que habilmente disfarçava
sua verdadeira origem. As coisas estavam indo mal para o povo; as esperanças
que repousavam no favor de Deus não eram comprimidas; não era fácil manter a
ilusão, amada acima de tudo o mais, de ser o povo escolhido de Deus. Se queriam
evitar renunciar a essa felicidade, um sentimento de culpa devido à sua própria
pecaminosidade oferecia um meio bem-vindo de exculpar Deus: não mereciam mais
do que serem punidos por ele, visto não terem obedecido a seus mandamentos. E,
impulsionados pela necessidade de satisfazer esse sentimento de culpa, que era
insaciável e provinha de fontes muito mais profundas, tinham de fazer com que
esses mandamentos se tornassem ainda mais estritos, mais meticulosos e, até mesmo
mais triviais. Num novo arroubo de ascetismo moral, impuseram-se mais e mais
novas renúncias instintuais e por essa maneira atingiram - em doutrina e
preceito, pelo menos - alturas éticas que permaneceram inacessíveis aos outros
povos da Antiguidade. Muitos judeus consideram essa consecução de alturas
éticas como a segunda característica principal e a segunda grande realização de
sua religião. A maneira pela qual ela está vinculada à primeira - a idéia de um
deus único - deveria ficar clara a partir de nossas considerações. Essas idéias
éticas não podem, contudo, renegar sua origem a partir do sentimento de culpa
sentido por causa de uma hostilidade recalcada para com Deus. Elas possuem a
característica - incompleta e incapaz de conclusão - de formações reativas
neuróticas obsessivas; podemos adivinhar também que servem aos propósitos
secretos de punição.
O desenvolvimento ulterior leva-nos para além
do judaísmo. O remanescente do que retornou do trágico drama do pai primevo não
foi mais reconciliável, de maneira alguma, com a religião de Moisés. O
sentimento de culpa daqueles dias estava muito longe de restringir
exclusivamente ao povo judeu; apoderara-se de todos os povos mediterrâneos como
um apático malaise, uma premonição de calamidade para a qual ninguém
podia sugerir uma razão. Os historiadores de nossos dias falam de
envelhecimento da antiga civilização, mas suspeito de que aprenderam apenas
causas acidentaise contribuintes desse humor deprimido dos povos. A elucidação
dessa situação de depressão surgiu do judaísmo. Independentemente de todas as
aproximações e preparações do mundo circunvizinho, foi afinal de contas no
espírito de um judeu, Saulo de Tarso (que, como cidadão romano, chamava-se
Paulo), que a compreensão pela primeira vez emergiu: ‘a razão por que somos tão
infelizes é que matamos Deus, o pai,’ E é inteiramente compreensível que ele só
pudesse apreender esse fragmento de verdade no disfarce delirante da boa
notícia: ‘estamos libertos de toda culpa, uma vez que um de nós sacrificou a vida
para absolver-nos.’ Nessa fórmula, a morte de Deus naturalmente não foi
mencionada, mas um crime que tinha de ser explicado pelo sacrifício de uma
vítima só poderia ter sido um assassinato. E o passo intermediário entre o
delírio e a verdade histórica foi proporcionado pela garantia de que derivou da
fonte da verdade histórica, essa nova fé derrubou todos os obstáculos. O
sentimento bem-aventurado de ser escolhido foi substituído pelo sentimento
liberador da redenção. Mas o fato do parricídio, retornando à memória da
humanidade, teve de superar resistências maiores do que o outro fato, que
constituíra o tema geral do monoteísmo; ele também foi obrigado a submeter-se a
uma deformação mais poderosa. O crime inominável foi substituído pela hipótese
do que deve ser descrito como um indistinto ‘pecado original’.
O pecado original e a redenção pelo sacrifício
de uma vítima tornaram-se as pedras fundamentais de nova religião fundada por
Paulo. Deve permanecer incerto se houve um cabeça e instigador ao crime entre o
bando de irmãos que se rebelou contra o pai primevo, ou se tal figura foi
criada posteriormente pela imaginação de artistas criativos, a fim de se
transformarem em heróis, tendo sido então introduzida na tradição. Após a
doutrina cristã ter queimado a estrutura do judaísmo, recolheu componentes de
muitas outras fontes, renunciou a uma série de características do monoteísmo
puro e adaptou-se, em muitos pormenores, aos rituais de outros povos
mediterrâneos. Foi como se o Egito mais uma vez se vingasse dos herdeiros de
Akhenaten. Vale a pena notar como a nova religião lidou com a antiga
ambivalência na relação com o pai. Seu conteúdo principal foi, é verdade, a
reconciliação com o Deus pai, a expiação pelo crime cometido contra ele, mas o
outro lado da relação emocional mostrava-se no fato de o filho, que tomara a
expiação sobre si, tornar-se um deus, ele próprio, ao lado do pai, e, na
realidade, em lugar deste.O cristianismo, tendo surgido de uma religião
paterna, tornou-se uma religião filial. Não escapou ao destino de ter de
livrar-se do pai.
Apenas uma parte do povo judeu aceitou a nova
doutrina. Aqueles que a recusaram ainda hoje são chamados de judeus. Devido a
essa cisão, tornaram-se ainda mais nitidamente separados dos outros povos do
que antes. Foram obrigados a ouvir a nova comunidade religiosa (que, ao lado de
judeus, incluía egípcios, gregos, sírios, romanos e, por fim, germânicos)
censurá-los por terem matado Deus. Na íntegra, essa censura diria o seguinte:
‘Eles não aceitarão como algo verdadeiro que assassinaram Deus, ao passo que
nós o admitimos e fomos limpos dessa culpa.’ É fácil, portanto, ver quanta
verdade reside por trás da censura. Exigir-se-ia uma investigação especial para
descobrir por que foi impossível aos judeus reunirem-se nesse passo à frente,
que estava implícito, apesar de todas as suas deformações, pela admissão de ter
matado Deus. Em certo sentido, eles, dessa maneira, tomaram uma trágica carga
de culpa sobre si próprios, e viram-se obrigados a pagar uma pesada penitência
por isso.
Talvez nossa investigação tenha alcançado um
pouco de luz sobre a questão de saber como o povo judeu adquiriu as
características que o distinguem. Uma luz menor foi lançada sobre o problema de
saber como foi que puderam reter sua individualidade até o dia de hoje. Mas
respostas exaustivas para tais enigmas não podem, com justiça, ser pedidas ou
esperadas. Uma contribuição, a ser julgada à vista das limitações que mencionei
de início,ver em[[1]],é tudo o que posso oferecer.
ESBOÇO DE PSICANÁLISE (1940 [1938])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ABRISS DER PSYCHOANALYSE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1940 Int. Z. Psychoanal. Imago, 25, (1), 7-67.
1941 G. W., 17, 63-138.
(b)
TRADUÇÃO INGLESA:
An Outline of Psychoanalysis
1940 Int. J. Psycho-Anal., 21, (1) 27-82. (Trad.
de James Strachey.)
1949 Londres, Hogarth Press e Instituto de
Psicanálise. ix + 84 págs. (Reimpressão revista da acima, em forma de livro.)
1949 Nova Iorque, Norton, 127 págs.
(Reimpressão da acima.)
A atual é uma versão consideravelmente revista
da tradução publicada em 1949.
Quando este trabalho foi publicado pela
primeira vez, tanto em alemão quanto em inglês, fez-se acompanhar de dois
resumos do pequeno trabalho escrito por Freud na mesma época, “Some Elementary
Lessons in Psycho-Analysis” (1940b [1938]). Esses resumos apareceram como nota
de rodapé no Capítulo IV da versão alemã e como apêndice na inglesa. O trabalho
do qual foram extraídos no resumo foi publicado na íntegra pouco depois
(aparece na [1]do vol. XXIII da Standard Edition),e a nota de rodapé e o
apêndice foram conseqüentemente omitidos das reimpressões subseqüentes do
presente trabalho.
Por um descuido lamentável, o “Prefácio” do
autor ver em ([1]) foi omitido da reimpressão das G.W. e, assim, só pode ser
encontrado, em alemão, no Zeitschrift. Deve-se observar que o Volume
XVII das Gesammelte Werke, que foi o primeiro de seus volumes a ser
publicado (1941), foi também lançado simultaneamente, com página de rosto e
encadernação diferentes, como Schriften aus dem Nachlass. (Trabalhos
Póstumos).
O manuscrito de todo este trabalho acha-se
redigido de forma inusitadamente abreviada, sobretudo o terceiro capítulo (“O
Desenvolvimento da Função Sexual”,ver em [1])é, em grande parte, muito abreviado,
com a omissão, por exemplo, dos artigos definidos e indefinidos e de muitos
verbos principais- no que poderia ser descrito como um estilo telegráfico. Os
coordenadores alemães, segundo nos informam, ampliaram essas abreviações. O
sentido geral não se acha em dúvida e, embora a editoração seja, em certos
pontos, um pouco livre, pareceu mais simples aceitá-la e traduzir a versão
fornecida pelas Gesammelte Werke.
A Parte I do trabalho não recebeu título por
parte do autor. Os coordenadores alemães adotaram, para esse fim, “Die Natur
des Psychischen” (“A Natureza do Psíquico”), que é subtítulo do pequeno
trabalho escrito na época e já citado aqui, “Some Elementary Lessons in
Psycho-Analysis” ver em ([1] do Vol. XXIII da Standard Edition). Para a
presente edição, imaginou-se um título bastante mais geral.
Há uma certa controvérsia quanto à época em que
Freud começou a escrever o Esboço. Segundo Ernest Jones (1957, 255),
“começou-o durante o tempo de espera em Viena” - o que significaria abril ou
maio de 1938. O manuscrito, contudo, traz em sua página inicial a data de “22
de julho”, o que confirma a opinião dos coordenadores alemães de que o trabalho
foi começado em julho de 1938, equivale a dizer, logo após a chegada de Freud a
Londres, no início de junho. No começo de setembro, ele já havia escrito 63
folhas do Esboço, quando teve de interromper o trabalho para submeter-se
a uma operação muito séria, e não mais retomou-o, embora tivesse começado,
pouco depois, outro trabalho expositivo (“Some Elementary Lessons in
Psycho-Analysis”), que logo foi interrompido também.
Assim, o Esboço deve ser descrito como
inacabado, mas é difícil considerá-lo incompleto. O último capítulo, é verdade,
é mais curto que o resto e bem poderia ter prosseguido com o exame de coisas como
sentimento de culpa, embora isto já houvesse sido aflorado no Capítulo VI. Em
geral, contudo, a questão de até onde e em que direção Freud teria continuado o
livro é intrigante, pois o programa estabelecido pelo autor em seu prefácio
parece ter sido cumprido de maneira bastante satisfatória.
Na longa sucessão dos trabalhos expositivos de
Freud, o Esboço apresenta um caráter único. Os outros, sem exceção,
visam a explicar a Psicanálise a um público estranho a ela, um público com
graus e tipos mais variados de abordagem geral ao tema de Freud, mas, sempre,
um público relativamente ignorante. Não se pode dizer isto do Esboço.
Deve-se entender claramente que não se trata de um livro para principiantes,
sendo algo muito mais semelhante a um “curso de atualização” para estudantes
adiantados. Em todo ele, espera-se que o leitor esteja familiarizado não apenas
com a abordagem geral de Freud à Psicologia, mas também com os pormenores de
seus achados e teoria. Exemplificando, umas duas alusões muito sucintas ao
papel desempenhado pelos traços mnêmicos de impressões sensoriais verbais,ver
em ([1]e[2]),dificilmente seriam inteligíveis a quem não se achasse
familiarizado com certo número de difíceis argumentos do último capítulo de A
Interpretação de Sonhos e da seção final do artigo metapsicológico sobre “O
Inconsciente”. E, ainda, as considerações muito escassas, em dois outros
lugares, sobre a identificação e sua relação com objetos amorosos
abandonados,ver em ([1] e [2]),implicam o conhecimento de, pelo menos, o
Capítulo III de The Ego and the Id. Mas aqueles que já estão
familiarizados com as obras de Freud acharão este Esboço um epílogo
fascinante. Uma nova luz é lançada sobre todos os pontos que ele aborda - as
teorias mais fundamentais ou as observações clínicas mais pormenorizadas - e
tudo é debatido no vocabulário de sua mais recente terminologia. Há mesmo
alusões ocasionais e desenvolvimentos inteiramente novos, sobretudo na parte
final do Capítulo VIII, onde a questão da divisão (splitting) do ego e o
seu repúdio de partes do mundo externo, tal como exemplificada no caso do
fetichismo, recebe consideração ampliada. Tudo isto demonstra que, aos 82 anos
de idade, Freud ainda possuía um dom espantoso de efetuar uma abordagem nova ao
que poderia parecer tópicos muito batidos. Em parte alguma, talvez, atinge o
seu estilo nível mais alto de concisão e lucidez. Todo o trabalho nos dá uma
sensação de liberdade em sua apresentação, o que é talvez de se esperar na
última descrição, por parte de um mestre, das idéias de que foi o criador.
ESBOÇO DE PSICANÁLISE [PREFÁCIO]
O objetivo deste trabalho breve é reunir os
princípios da Psicanálise e enunciá-los, por assim dizer, dogmaticamente, sob a
forma mais concisa e nos termos mais inequívocos. Sua intenção, naturalmente,
não é compelir à crença ou despertar convicção.
Os ensinamentos da Psicanálise baseiam-se em
número incalculável de observações e experiências, e somente alguém que tenha
repetido estas observações em si próprio e em outras pessoas acha-se em posição
de chegar a um julgamento próprio sobre ela.
PARTE I - [A MENTE E O SEU
FUNCIONAMENTO]
CAPÍTULO I - O APARELHO PSÍQUICO
A Psicanálise faz uma suposição básica, cuja
discussão se reserva ao pensamento filosófico, mas a justificação da qual
reside em seus resultados. Conhecemos duas espécie de coisas sobre o que
chamamos nossa psique (ou vida mental): em primeiro lugar, seu órgão corporal e
cena de ação, o cérebro (ou sistema nervoso), e, por outro lado, nossos atos de
consciência, que são dados imediatos e não podem ser mais explicados por nenhum
outro tipo de descrição. Tudo o que jaz entre eles é-nos desconhecido, e os
dados não incluem nenhuma relação direta entre estes dois pontos terminais de
nosso conhecimento. Se existisse, no máximo permitir-nos-ia uma localização
exata dos processos da consciência e não nos forneceria auxílio no sentido de
compreendê-los.Nossas duas hipóteses partem desses fins ou inícios de nosso
conhecimento. A primeira delas está relacionada com a locação. Presumimos que a
vida mental é função de um aparelho ao qual atribuímos as características de
ser extenso no espaço e de ser constituído por diversas partes - ou seja, que
imaginamos como semelhante a um telescópio, microscópio, ou algo desse gênero.
Não obstante algumas tentativas anteriores no mesmo sentido, a elaboração
sistemática de uma concepção como esta constitui uma novidade científica.
Chegamos ao nosso conhecimento deste aparelho
psíquico pelo estudo do desenvolvimento individual dos seres humanos. À mais
antiga destas localidades ou áreas de ação psíquica damos o nome de id.
Ele contém tudo o que é herdado, que se acha presente no nascimento, que está
assente na constituição - acima de tudo, portanto, os instintos, que se
originam da organização somática e que aqui [no id] encontram uma primeira
expressão psíquica, sob formas que nos são desconhecidas.
Sob a influência do mundo externo que nos
cerca, uma porção do id sofreu um desenvolvimento especial. Do que era
originalmente uma camada cortical, equipada com órgãos para receber estímulos e
com disposições para agir como um escudo protetor contra estímulos, surgiu uma
organização especial que, desde então, atua como intermediária entre o id
e o mundo externo. A esta região de nossa mente demos o nome de ego.
São estas as principais características do ego:
em conseqüência da conexão preestabelecida entre a percepção sensorial e a ação
muscular, o ego tem sob seu comando o movimento voluntário. Ele tem a tarefa de
autopreservação. Com referência aos acontecimentos externos, desempenha
essa missão dando-se conta dos estímulos, armazenando experiências sobre eles
(na memória), evitando estímulos excessivamente intensos (mediante a fuga),
lidando com os estímulos moderados (através da adaptação) e, finalmente,
aprendendo a produzir modificações convenientes no mundo externo, em seu
próprio benefício (através da atividade). Com referência aos acontecimentos internos,
em relação ao id, ele desempenha essa missão obtendo controle sobre as
exigências dos instintos, decidindo se elas devem ou não ser satisfeitas,
adiando essa satisfação para ocasiões e circunstâncias favoráveis no mundo
externo ou suprimindo inteiramente as suas excitações. É dirigido, em sua
atividade, pela consideração das tensões produzidas pelos estímulos, estejam
essas tensões nele presentes ou sejam nele introduzidas. A elevação dessas
tensões é, em geral, sentida como desprazer, e o seu abaixamento, como prazer.
É provável, contudo, que aquilo que é sentido como prazer ou desprazer não seja
a altura absoluta dessa tensão, mas sim algo no ritmo das suas
modificações. O ego se esforça pelo prazer e busca evitar o desprazer. Um
aumento de desprazer esperado e previsto é enfrentado por um sinal de
ansiedade; a ocasião de tal aumento, quer ele ameace de fora ou de dentro,
é conhecida como um perigo. De tempos em tempos, o ego abandona sua
conexão com um mundo externo e se retira para o estado de sono, no qual efetua
alterações de grande alcance em sua organização. É de inferir-se do estado de
sono que essa organização consiste numa distribuição específica de energia
mental.
O longo período da infância, durante o qual o
ser humano em crescimento vive na dependência dos pais, deixa atrás de si, como
um precipitado, a formação, no ego, de um agente especial no qual se prolonga a
influência parental. Ele recebeu o nome de superego. Na medida em que
este superego se diferencia do ego ou se lhe opõe, constitui uma terceira força
que o ego tem de levar em conta.
Uma ação por parte do ego é como deve ser se
ela satisfaz simultaneamente as exigências do id, do superego e da realidade -
o que equivale a dizer: se é capaz de conciliar as suas exigências umas com as
outras. Os pormenores da relação entre o ego e o superego tornam-se
completamente inteligíveis quando são remontados à atitude da criança para com
os pais. Esta influência parental, naturalmente, inclui em sua operação não
somente a personalidade dos próprios pais, mas também a família, as tradições
raciais e nacionais por eles transmitidas, bem como as exigências do milieu social
imediato que representam. Da mesma maneira, o superego, ao longo do
desenvolvimento de um indivíduo, recebe contribuições de sucessores e
substitutos posteriores aos pais, tais como professores e modelos, na vida pública,
de ideais sociais admirados. Observar-se-á que, com toda a sua diferença
fundamental, o id e o superego possuem algo comum: ambos representam as
influências do passado - o id, a influência da hereditariedade; o superego, a
influência, essencialmente, do que é retirado de outras pessoas, enquanto o ego
é principalmente determinado pela própria experiência do indivíduo, isto é, por
eventos acidentais e contemporâneos.
Pode-se supor que este quadro esquemático geral
de um aparelho psíquico aplique-se também aos animais superiores que se
assemelham mentalmente ao homem. Temos de presumir que um superego se acha
presente onde quer que, como é o caso do homem, exista um longo período de
dependência na infância. Uma distinção entre o ego e id é uma suposição
inevitável. A Psicologia Animal ainda não tomou a seu cargo o interessante
problema que é aqui apresentado.
CAPÍTULO II - A TEORIA DOS INSTINTOS
O poder do id expressa o verdadeiro propósito
da vida do organismo do indivíduo. Isto consiste na satisfação de suas
necessidades inatas. Nenhum intuito tal como o de manter-se vivo ou de
proteger-se dos perigos por meio da ansiedade pode ser atribuído ao id. Essa é
a tarefa do ego, cuja missão é também descobrir o método mais favorável e menos
perigoso de obter a satisfação, levando em conta o mundo externo. O superego
pode colocar novas necessidades em evidência, mas sua função principal
permanece sendo a limitação das satisfações.
As forças que presumimos existir por trás das
tensões causadas pelas necessidades do id são chamadas de instintos.
Representam as exigências somáticas que são feitas à mente. Embora sejam a
suprema causa de toda atividade, elas são de natureza conservadora; o estado,
seja qual for, que um organismo atingiu dá origem a uma tendência a
restabelecer esse estado assim que ele é abandonado. É assim possível
distinguir um número determinado de instintos, e, na prática comum, isto é
realmente feito. Para nós, contudo, surge a importante questão de saber se não
será possível fazer remontar todos esses numerosos instintos a uns poucos
básicos. Descobrimos que os instintos podem mudar de objetivo (através do
deslocamento) e também que podem substituir-se mutuamente, a energia de um
instinto transferindo-se para outro. Este último processo é ainda
insuficientemente compreendido. Depois de muito hesitar e vacilar, decidimos
presumir a existência de apenas dois instintos básicos, Eros e o instinto
destrutivo. (O contraste entre os instintos de autopreservação e a
preservação da espécie, assim como o contraste entre o amor do ego e o amor
objetal, incidem dentro de Eros.) O objetivo do primeiro desses instintos
básicos é estabelecer unidades cada vez maiores e assim preservá-las - em
resumo, unir; o objetivo do segundo, pelo contrário, é desfazer conexões e,
assim, destruir coisas. No caso do instinto destrutivo, podemos supor que seu
objetivo final é levar o que é vivo a um estado inorgânico. Por essa razão,
chamâmo-lo também de instinto de morte. Se presumirmos que as coisas
vivas apareceram mais tarde que as inanimadas e delas se originaram, então o
instinto de morte se ajusta à fórmula que propusemos, a qual postula que os
instintos tendem a retornar a um estado anterior. No caso de Eros (ou instinto
do amor), não podemos aplicar esta fórmula. Fazê-lo pressuporia que a
substância viva foi outrora uma unidade posteriormente desmembrada e que se
esforça no sentido da reunião.
Nas funções biológicas, os dois instintos
básicos operam um contra o outro ou combinam-se mutuamente. Assim, o ato de
comer é uma destruição do objeto como o objetivo final de incorporá-lo, e o ato
sexual é um ato de regressão com o intuito da mais íntima união. Esta ação
concorrente e mutuamente oposta dos dois instintos fundamentais dá origem a
toda a variedade de fenômenos da vida. A analogia de nossos dois instintos
básicos estende-se da esfera das coisas vivas até o par de forças opostas -
atração e repulsão - que governa o mundo orgânico.
Modificações nas proporções da fusão entre os
instintos apresentam os resultados mais tangíveis. Um excesso de agressividade
sexual transformará um amante num criminoso sexual, enquanto uma nítida
diminuição no fator agressivo torna-lo-á acanhado ou impotente.
Não se pode pensar em restringir um ou outro
dos instintos básicos a uma das regiões da mente. Eles, necessariamente, têm de
ser encontrados em toda parte. Podemos imaginar um estado inicial como sendo o
estado em que a energia total disponível de Eros, a qual, doravante,
mencionaremos como ‘’libido”, acha-se presente no ego-id ainda indiferenciado e
serve para neutralizar as tendências destrutivas que estão simultaneamente
presentes. (Não dispomos de um termo análogo a “libido” para descrever a
energia do instinto destrutivo.) Num estágio posterior, torna-se relativamente
fácil acompanhar as vicissitudes da libido, mas isto é mais difícil com o
instinto destrutivo.
Enquanto esse instinto opera internamente, como
instinto de morte, ele permanece silencioso; só nos chama a atenção quando é
desviado para fora,como instinto de destruição. Parece ser essencial à
preservação do indivíduo que esse desvio ocorra e o aparelho muscular serve a
esse intuito. Quando o superego se estabelece, quantidades consideráveis do
instinto agressivo fixam-se no interior do ego e lá operam autodestrutivamente.
Este é um dos perigos para a saúde com que os seres humanos se defrontam em seu
caminho para o desenvolvimento cultural. Conter a agressividade é, em geral,
nocivo e conduz à doença (à mortificação). Uma pessoa num acesso de raiva com
freqüência demonstra como a transição da agressividade, que foi impedida, para
a autodestrutividade, é ocasionada pelo desvio da agressividade contra si
própria: arrancar os cabelos ou esmurrar a face, embora, evidentemente, tivesse
preferido aplicar esse tratamento a outrem. Uma porção de autodestrutividade
permanece interna, quaisquer que sejam as circunstâncias, até que, por fim,
consegue matar o indivíduo, talvez não antes de sua libido ter sido usada ou
fixada de uma maneira desvantajosa. Assim, é possível suspeitar de que, de uma
maneira geral, o indivíduo morre de seus conflitos internos, mas que a espécie
morre de sua luta malsucedida contra o mundo externo se este mudar a ponto de
as adaptações adquiridas pela espécie não serem suficientes para lidar com as
dificuldades surgidas.
É difícil dizer algo do comportamento da libido
no id e no superego. Tudo o que sabemos sobre ela relaciona-se com o ego, no
qual, a princípio, toda a cota disponível de libido é armazenada. Chamamos a
este estado absoluto de narcisismo primário. Ele perdura até o ego
começar a catexizar as idéias dos objetos com a libido, a transformar a libido
narcísica em libido objetal. Durante toda a vida, o ego permanece sendo o
grande reservatório, do qual as catexias libidinais são enviadas aos objetos e para
o qual elas são também mais uma vez recolhidas, exatamente como uma ameba se
conduz com os seus pseudópodos. É somente quando uma pessoa se acha
completamente apaixonada que a cota principal de libido é transferida para o
objeto e este, até certo ponto, toma o lugar do ego. Uma característica da
libido que é importante na vida é a sua mobilidade, a facilidade com que passa
de um objeto para outro. Isto deve ser contrastado com a fixação da
libido a objetos específicos, a qual freqüentemente persiste durante toda a
vida.Não se pode discutir que a libido tenha fontes somáticas, que ela flua
para o ego de diversos órgãos e partes do corpo. Isto se vê mais claramente no
caso daquela porção da libido que, por seu objetivo instintivo, é descrita como
excitação sexual. As partes mais proeminentes do corpo de que esta libido se
origina são conhecidas pelo nome de “zonas erógenas”, embora, de fato, o
corpo inteiro seja uma zona erógena desse tipo. A maior parte do que conhecemos
sobre Eros - isto é, sobre o seu expoente, a libido - foi obtida de um estudo
da função sexual, que, na verdade, segundo a opinião dominante, ainda que não
segundo a nossa teoria, coincide com Eros. Pudemos formar uma imagem da maneira
como o impulso sexual, que está destinado a exercer uma influência decisiva em
nossa vida, desenvolve-se gradativamente a partir de contribuições sucessivas
de um certo número de instintos componentes que representam zonas erógenas
específicas.
CAPÍTULO III - O DESENVOLVIMENTO DA FUNÇÃO SEXUAL
Segundo a opinião predominante, a vida sexual
humana consiste essencialmente numa busca de colocar o próprio órgão genital em
contato com o de alguém do sexo oposto. A isto acham-se associados, como
fenômenos acessórios e atos introdutórios, beijar esse corpo alheio, olhar para
ele e tocá-lo. Imagina-se que essa busca faça seu aparecimento na puberdade -
isto é, na idade da maturidade sexual - e esteja a serviço da reprodução. Não
obstante, sempre foram conhecidos certos fatos que não se encaixam na estreita
moldura desta visão. (1) Constitui um fato marcante existirem pessoas que só
são atraídas por indivíduos de seu próprio sexo e pelo órgão genital deles. (2)
É igualmente notório existirem pessoas cujos desejos se comportam exatamente
como os sexuais, mas que, ao mesmo tempo, desprezam inteiramente o órgão sexual
ou sua utilização normal; as pessoas deste tipo são conhecidas como
“pervertidas”. (3) E, por fim, é uma coisa notável que algumas crianças (que
são, por causa disso, encaradas como degeneradas) tenham um interesse muito
precoce pelo seu órgão genital e apresentem nele sinais de excitação.
Bem se pode acreditar que a Psicanálise tenha
provocado espanto e oposição quando, em parte com base nesses fatos
negligenciados, contradisse todas as opiniões populares sobre a sexualidade. Os
seus principais achados são os seguintes:
(a) A vida sexual não começa apenas na
puberdade, mas inicia-se, com manifestações claras, logo após o nascimento.
(b) É necessário fazer uma distinção nítida
entre os conceitos de “sexual” e “genital”. O primeiro é o conceito mais amplo
e inclui muitas atividades que nada têm que ver com os órgãos genitais.
(c) A vida sexual inclui a função de obter
prazer das zonas do corpo, função que, subseqüentemente, é colocada a serviço
da reprodução. As duas funções muitas vezes falham em coincidir completamente.
O interesse principal focaliza-se naturalmente
na primeira destas afirmações, a mais inesperada de todas. Descobriu-se que, na
tenra infância, existem sinais de atividade corporal a que somente um antigo
preconceito poderia negar o nome de sexual e que se acha ligada a fenômenos
psíquicos com que nos deparamos mais tarde, na vida erótica adulta - tais como
a fixação a objetos específicos, o ciúme, e assim por diante. Descobriu-se
ainda, entretanto, que esses fenômenos que surgem na tenra infância fazem parte
de um curso ordenado de desenvolvimento, que atravessam um processo regular de
aumento, chegando a um clímax por volta do final do quinto ano de idade, após o
qual segue-se uma acalmia. Durante esta, o progresso se interrompe, muita coisa
é desaprendida e há muito retrocesso. Após o fim deste período de latência,
como é chamado, a vida sexual avança mais uma vez, com a puberdade; poderíamos
dizer que tem uma segunda eflorescência. E aqui deparâmo-nos com o fato de o
início da vida sexual ser difásico, de ele ocorrer em duas ondas - algo
que é desconhecido, exceto no homem, e que, evidentemente, tem uma relação
importante com a hominização. Não é um fato sem importância que os
acontecimentos deste período primitivo, exceto esses poucos resíduos, sejam
vítimas da amnésia infantil. Os nossos pontos de vista sobre a etiologia
das neuroses e a nossa técnica de terapia analítica derivam-se dessas
concepções e nosso rasteio dos processos desenvolvimentais nesse primeiro
período forneceu também provas para outras conclusões mais.
O primeiro órgão a surgir como zona erógena e a
fazer exigências libidinais à mente é, da época do nascimento em diante, a
boca. Inicialmente, toda a atividade psíquica se concentra em fornecer
satisfação às necessidades dessa zona. Primariamente, é natural, essa
satisfação está a serviço da autopreservação, mediante a nutrição; mas a
fisiologia não deve ser confundida com a psicologia. A obstinada persistência
do bebê em sugar dá prova, em estágio precoce, de uma necessidade de satisfação
que, embora se origine da ingestão da nutrição e seja por ela instigada,
esforça-se todavia por obter prazer independentemente da nutrição e, por essa
razão, pode e deve ser denominada de sexual.
Durante esta fase oral, já ocorrem
esporadicamente impulsos sádicos, juntamente com o aparecimento dos dentes. Sua
amplitude é muito maior na segunda fase, que descrevemos como anal-sádica, por
ser a satisfação então procurada na agressão e na função excretória. Nossa
justificativa para incluir na libido os impulsos agressivos baseia-se na
opinião de que o sadismo constitui uma fusão instintiva de impulsos puramente
libidinais e puramente destrutivos, fusão que, doravante, persiste
ininterruptamente.
A terceira fase é conhecida como fálica, que é,
por assim dizer, uma precursora da forma final assumida pela vida sexual e já
se assemelha muito a ela. É de se notar que não são os órgãos genitais de ambos
os sexos que desempenham um papel nesta fase, mas apenas o masculino (o falo).
Os órgãos genitais femininos por muito tempo permanecem desconhecidos; nas
tentativas das crianças de compreender os processos sexuais, elas se rendem à
respeitável teoria da cloaca - teoria que tem justificação genética.
Com a fase fálica, e ao longo dela, a
sexualidade da tenra infância atinge seu apogeu e aproxima-se da sua
dissolução. A partir daí, meninos e meninas têm histórias diferentes. Ambos
começaram a colocar sua atividade intelectual a serviço de pesquisas sexuais; ambos
partem da premissa da presença universal do pênis. Mas agora os caminhos dos
sexos divergem. O menino ingressa na fase edipiana; começa a manipular o pênis
e, simultaneamente, tem fantasias de executar algum tipo de atividade com ele
em relação à sua mãe, até que, devido ao efeito combinado de uma ameaça de
castração e da visão da ausência de pênis nas pessoas do sexo feminino,
vivencia o maior trauma de sua vida e este dá início ao período de latência,
com todas as suas conseqüências. A menina, depois de tentar em vão fazer as
mesmas coisas que o menino, vem a reconhecer sua falta de pênis ou, antes, a
inferioridade de seu clitóris, com efeitos permanentes sobre o desenvolvimento
de seu caráter; como resultado deste primeiro desapontamento em rivalidade, ela
com freqüência começa a voltar as costas inteiramente à vida sexual
Seria um erro supor que essas três fases se
sucedem de forma clara. Uma pode aparecer em aditamento a outra; podem
sobrepor-se e podem estar presentes lado a lado. Nas primeiras fases, os
diferentes componentes dos instintos empenham-se na busca de prazer
independente uns dos outros; na fase fálica, há os primórdios de uma
organização que subordina os outros impulsos à primazia dos órgãos genitais e
determina o começo de uma coordenação do impulso geral em direção ao prazer na
função sexual. A organização completa só se conclui na puberdade, numa quarta
fase, a genital. Estabelece-se então um estado de coisas em que (1) algumas
catexias libidinais primitivas são retidas, (2) outras são incorporadas à
função sexual como atos auxiliares, preparatórios, cuja satisfação produz o que
é conhecido como pré-prazer, e (3) outros impulsos são excluídos da
organização, e são ou suprimidos inteiramente (reprimidos) ou empregados no ego
de outra maneira, formando traços de caráter ou experimentando a sublimação,
com deslocamento de seus objetivos.
Este processo nem sempre é realizado de modo
perfeito. As inibições em seu desenvolvimento manifestam-se como os muitos
tipos de distúrbio da vida sexual. Quando é assim, encontramos fixações da
libido a condições de fases anteriores, cujo impulso, que é independente do
objetivo sexual normal, é descrito como perversão. Uma dessas inibições
do desenvolvimento é, por exemplo, a homossexualidade, quando ela é manifesta.
A análise mostra que em todos os casos um vínculo objetal de caráter
homossexual esteve presente e, na maioria dos casos, persistiu em estado latente.
A situação complica-se porque, via de regra, os processos necessários a um
desfecho normal não se acham completamente presentes ou ausentes, mas parcialmente
presentes, de maneira que o resultado final fica dependente dessas relações quantitativas.
Nessas circunstâncias, a organização genital é, na verdade, obtida, mas
faltam-lhe aquelas porções da libido que não avançaram com o resto e
permaneceram fixadas em objetos e metas pré-genitais. Este enfraquecimento
revela-se numa tendência, se há ausência de satisfação genital ou se existem
dificuldades no mundo externo real, de a libido retornar a suas catexias
pré-genitais anteriores (regressão).
Durante o estudo das funções sexuais, chegamos
a uma certeza preliminar, ou melhor, a uma suspeita, de duas descobertas que
logo mais se verá serem de importância para todo o nosso campo. Em primeiro
lugar, as manifestações normais e anormais por nós observadas (isto é,
fenomenologia do assunto) necessitam ser descritas do ponto de vista de sua
dinâmica e economia (em nosso caso, do ponto de vista da distribuição
quantitativa da libido). E, em segundo, a etiologia dos distúrbios que
estudamos deve ser procurada na história do desenvolvimento do indivíduo - ou
seja, no começo de sua vida.
CAPÍTULO IV - QUALIDADES PSÍQUICAS
Descrevi a estrutura do aparelho psíquico e as
energias ou forças que nele são ativas, e delineei num exemplo notório a
maneira como essas energias (principalmente a libido) organizam-se numa função
fisiológica que serve ao propósito da preservação da espécie. Nada havia, nisso
tudo, que demonstrasse a característica inteiramente peculiar do que é
psíquico, à parte, naturalmente, o fato empírico de que esse aparelho e essas
energias são as bases das funções que descrevemos como nossa vida mental.
Voltar-me-ei agora para algo que é exclusivamente característico do psíquico, e
que, na verdade, de acordo com opinião largamente aceita, coincide com ele, à
exclusão de tudo o mais.
O ponto de partida dessa investigação é um fato
sem paralelo, que desafia toda explicação ou descrição - o fato da consciência.
Não obstante, quando se fala da consciência, sabemos imediatamente, e pela
experiência mais pessoal, o que se quer dizer com isso. Muitas pessoas, tanto
ligadas à ciência [psicológica] quanto estranhas a ela, satisfazem-se com a
suposição de que só a consciência é psíquica; nesse caso a Psicologia não terá
senão de fazer a discriminação entre fenômenos psíquicos, percepções,
sentimentos, processos de pensamento e volições. No entanto, há uma
concordância geral no sentido de que esses processos conscientes não formam
seqüências ininterruptas, completas em si mesmas; assim, não haveria
alternativa para a pressuposição de que existem processos físicos ou somáticos
concomitantes aos psíquicos e que teríamos de reconhecer necessariamente como
mais completos que as seqüências psíquicas, visto que alguns teriam processos
conscientes paralelos a eles, mas outros não. Sendo assim, torna-se plausível
dar ênfase, em Psicologia, a esses processos somáticos, ver neles a
verdadeira essência do psíquico e procurar outra determinação dos processos
conscientes. A maioria dos filósofos, entretanto, assim como muitas outras
pessoas, discute isso e declara que a idéia de algo psíquico ser inconsciente é
autocontraditória.Mas é isso precisamente que a Psicanálise é obrigada a
afirmar, e esta é a sua segunda hipótese fundamental ver em [[1]].Ela explica
os fenômenos concomitantes supostamente somáticos como sendo o que é
verdadeiramente psíquico, e assim, em primeira instância, menospreza a
qualidade da consciência. Não está sozinha ao assim proceder. Alguns pensadores
(como Theodor Lipps por exemplo) afirmaram a mesma coisa nas mesmas palavras e
a insatisfação geral com a visão costumeira do que é psíquico resultou numa
exigência cada vez mais urgente da inclusão, no pensamento psicológico, de um
conceito de inconsciente, embora essa experiência tenha assumido forma tão
indefinida e obscura que não poderia ter nenhuma influência sobre a ciência.
Pode parecer que essa disputa entre Psicanálise
e Filosofia fosse apenas uma frívola questão de definição - se o nome
“psíquico” deve ser aplicado a uma ou outra seqüência de fenômenos. Na
realidade, porém, este passo tornou-se da mais alta significação. Enquanto a
psicologia da consciência nunca foi além das seqüências rompidas que eram
obviamente dependentes de algo mais, a outra visão, que sustenta que o psíquico
é inconsciente em si mesmo, capacitou a Psicologia a assumir seu lugar entre as
ciências naturais como uma ciência. Os processos em que está interessada são,
em si próprios, tão incognoscíveis quanto aqueles de que tratam as outras
ciências, a Química ou a Física, por exemplo; mas é possível estabelecer as
leis a que obedecem e seguir suas relações mútuas e interdependentes
ininterruptas através de longos trechos - em resumo, chegar ao que é descrito
como uma “compreensão” do campo dos fenômenos de novas hipóteses e criação dos
novos conceitos, e estes não devem ser pormenorizados com indício de embaraço
de nossa parte, mas, pelo contrário, merecem ser apreciados como um enriquecimento
da Ciência. Podem pretender, como aproximações, o mesmo valor dos andaimes
intelectuais correspondentes encontrados em outras ciências naturais e
esperamos que sejam modificados, corrigidos e mais precisamente determinados à
medida que uma maior experiência for acumulada e filtrada. Assim, também estará
inteiramente de acordo com nossas expectativas que os conceitos e princípios
básicos da nova ciência (instinto,energia nervosa, etc.) permaneçam por tempo
considerável não menos indeterminados que os das ciências mais antigas (força,
massa, atração, etc.).
Toda ciência se baseia em observações e
experiências a que se chegou através do veículo de nosso aparelho psíquico. Mas
visto que a nossa ciência tem por assunto esse próprio aparelho, a
analogia acaba aqui. Efetuamos nossas observações através do mesmo aparelho
perceptivo, precisamente com o auxílio das rupturas na seqüência de ocorrências
“psíquicas”: preenchemos o que é omitido fazendo deduções plausíveis e
traduzindo-as em material consciente. Desta maneira construímos, por assim
dizer, uma seqüência de ocorrências conscientes que é complementar aos
processos psíquicos inconscientes. A relativa certeza de nossa ciência psíquica
baseia-se na força aglutinante dessas deduções. Quem quer que se aprofunde em
nosso trabalho descobrirá que nossa técnica tem fundamentos para defender-se
contra qualquer crítica.
Ao longo deste trabalho, as distinções que
descrevemos como qualidades psíquicas se impõem à nossa atenção. Não há
necessidade de caracterizar o que chamamos de “consciente”: é o mesmo que a
consciência dos filósofos e do senso comum. Tudo o mais que é psíquico é, em
nosso ponto de vista; “o inconsciente”. Logo somos levados a fazer uma divisão
importante nesse inconsciente. Alguns processos se tornam facilmente
conscientes; podem depois deixar de ser conscientes, mas podem mais uma vez
tornar-se conscientes sem qualquer dificuldade: como as pessoas dizem, podem
ser reproduzidos ou lembrados. Isto nos faz lembrar que a consciência é, em
geral, um estado altamente fugaz. O que é consciente é consciente só por um
momento. Se nossas percepções não confirmaram isto, a contradição é apenas
aparente; explica-se pelo fato de que os estímulos que levam à percepção podem
persistir por consideráveis períodos, de maneira que, entrementes, a percepção
deles pode ser repetida. A posição global torna-se clara em relação à percepção
consciente de nossos processos de pensamento: também estes podem persistir por
algum tempo, mas podem também, da mesma maneira, passar num relâmpago. Tudo o
que for inconsciente e que se comporte desta maneira, que pode assim facilmente
trocar o estado inconsciente pelo consciente, é, portanto, preferivelmente
descrito como “capaz de tornar-se consciente” ou como pré-consciente. A experiência
nos ensinou que é muito difícil um processo psíquico, por complicado que seja,
que não possa ocasionalmente permanecer pré-consciente, ainda que, via de
regra, force o seu caminho para a consciência, como dizemos. Há outros
processos psíquicos e material psíquico que não têm um acesso tão fácil a se
tornarem conscientes, mas têm de ser inferidos, reconhecidos e traduzidos para
forma consciente através da maneira descrita. Para tal material, reservamos o
nome de inconsciente propriamente dito.
Atribuímos, assim, três qualidades aos
processos psíquicos: eles são conscientes, pré-conscientes ou inconscientes. A
divisão entre as três classes de material que possui estas qualidades não é
absoluta nem permanente. O que é pré-consciente se torna consciente, como
vimos, sem qualquer assistência de nossa parte; o que é inconsciente pode,
através de nossos esforços, vir a ser consciente, e, no processo, temos muitas
vezes a impressão de estar superando resistências muito fortes. Quando tentamos
fazer isto com outra pessoa, não devemos esquecer que o preenchimento
consciente das lacunas de percepção - a construção que lhe estamos apresentando
- não significa ainda que tenham conseguido tornar consciente o material
inconsciente em questão. Tudo isso é verdadeiro na medida em que o material se
acha nele presente em dois registros uma vez na reconstrução consciente que foi
fornecida e, além disso, em seu estado inconsciente original. Os nossos
esforços continuados geralmente acabam conseguindo tornar consciente esse material
inconsciente, em conseqüência do que os dois registros são levados a coincidir.
A quantidade de esforços que temos de dispender, pela qual avaliamos a
resistência contra a conscientização do material, varia de magnitude segundo os
casos individuais. Exemplificando, o que ocorre num tratamento analítico como
resultado de nossos esforços pode também ocorrer espontaneamente: um material
que ordinariamente é inconsciente pode se transformar em pré-consciente e,
então, tornar-se consciente - coisa que acontece, em grande escala, nos estados
psicóticos. Disto inferimos que a manutenção de certas resistências internas
constitui um sine qua non da normalidade. Um relaxamento de resistências
como este, com um conseqüente impulsionamento para a frente do material
inconsciente, realiza-se normalmente no estado de sono, e ocasiona assim uma
pré-condição necessária à construção de sonhos. Inversamente, o material
pré-consciente pode tornar-se temporariamente inacessível e bloqueado por
resistências - como acontece quando algo é temporariamente esquecido ou foge à
memória - ou um pensamento pré-consciente pode ser mesmo temporariamente
devolvido ao estado inconsciente, como parece ser uma pré-condição no caso dos
chistes. Veremos que uma transformação semelhante de volta de material ou
processos pré-conscientes ao estado inconsciente desempenha grande papel na
causa dos distúrbios neuróticos.
A teoria das três qualidades do psíquico,
descrita assim de maneira generalizada e simplificada, pode parecer mais uma
fonte de confusão ilimitada do que um auxílio no sentido do esclarecimento. Mas
não se deve esquecer que, de fato, ela não é absolutamente uma teoria, mas sim
um primeiro inventário dos fatos de nossas observações, que se mantém tão preso
a esses fatos quanto possível e não tenta explicá-los. As complicações que ela
revela podem pôr em relevo as dificuldades peculiares que temos de enfrentar em
nossas investigações. É de se esperar, entretanto, que chegaremos a uma
compreensão mais clara desta própria teoria se determinarmos as relações
existentes entre as qualidades psíquicas e as regiões ou agências do aparelho
psíquico que postulamos - embora estas relações também estejam longe de ser
simples.
O processo de algo tornar-se consciente está,
acima de tudo, ligado às percepções que nossos órgãos sensoriais recebem do
mundo externo. Do ponto de vista topográfico, portanto, trata-se de um fenômeno
que se efetua no córtex mais externo do ego. É verdade que também recebemos
informações conscientes do interior do corpo - os sentimentos, que na realidade
exercem em nossa vida mental uma influência mais peremptória do que as
percepções externas; ademais, em certas circunstâncias, os próprios órgãos
sensoriais transmitem sentimentos, sensações de dor, além das percepções que lhes
são específicas. No entanto, desde que essas sensações (como as chamamos, em
contraste com as percepções conscientes) emanam também dos órgãos terminais e
desde que encaramos todas elas como prolongamentos ou ramificações da camada
cortical, continuamos a poder manter a afirmação feita acima [no início deste
parágrafo]. A única distinção seria que, em relação aos órgãos terminais de
sensação e sentimento, o próprio corpo tomaria o lugar do mundo externo.
Processos conscientes na periferia do ego e
tudo o mais no ego inconsciente - esse seria o estado de coisas mais simples
que poderíamos imaginar. E tal pode ser de fato o estado que predomina nos
animais. Nos homens, porém, há uma complicação adicional, através da qual os
processos internos do ego podem adquirir também a qualidade de consciência.
Este o trabalho da função da fala, que leva o material ao ego numa firme
conexão com resíduos mnêmicos de percepções visuais, porém, mais
particularmente, auditivas. Daí por diante, a periferia perceptiva da camada
cortical pode ser excitada em muito maior grau a partir de dentro também,
acontecimentos internos como passagens de idéias e processos de pensamentos
podem tornar-se conscientes, e exige-se um artifício especial para fazer a
distinção entre as duas possibilidades - um artifício conhecido como teste
de realidade. A equação “percepção = realidade (mundo externo)” não mais se
sustenta. Erros, que podem então facilmente surgir e surgem com regularidade
nos sonhos, são chamados de alucinações.
O interior do ego, que encerra, acima de tudo,
os processos de pensamento, possui a qualidade de ser pré-consciente. Esta é
característica do ego e só a ele pertence. Não seria correto, entretanto,
pensar que a vinculação com os resíduos mnêmicos da fala seja uma pré-condição
necessária ao estado pré-consciente. Ao contrário, esse estado independe de uma
vinculação com eles, embora a presença dessa vinculação torne segura a dedução
da natureza pré-consciente de um processo. O estado pré-consciente,
caracterizado, por um lado, pelo acesso à consciência e, por outro, pela
vinculação com os resíduos da fala, é todavia algo peculiar, cuja natureza não
se esgota nessas duas características. Prova disto é o fato de que grandes
porções do ego, e particularmente do superego, a que não se pode negar a
característica de pré-consciência, permanecem, não obstante, em sua maior
parte, inconscientes no sentido fenomenológico da palavra. Não sabemos porque
isto tem de ser assim. Tentaremos, a seguir, atacar o problema da verdadeira
natureza do pré-consciente.
A única qualidade predominante no id é a de ser
inconsciente. Id e inconsciente acham-se tão intimamente ligados quanto ego e
pré-consciente; na verdade, no primeiro caso, a vinculação é ainda mais
exclusiva. Se voltarmos o olhar para a história do desenvolvimento de um
indivíduo e de seu aparelho psíquico, poderemos perceber uma distinção
importante no id. Originalmente, com efeito, tudo era id; o ego desenvolveu-se
a partir dele, através da influência contínua do mundo externo. No decurso
desse lento desenvolvimento, alguns dos conteúdos do id foram transformados no
estado pré-consciente e assim incorporados ao ego; outros de seus conteúdos
permaneceram no id, imutáveis, como o seu núcleo dificilmente acessível.
Durante esse desenvolvimento, entretanto, o jovem e débil ego devolveu ao
estado inconsciente algo do material que havia incorporado, abandonou-o, e
comportou-se da mesma maneira em relação a algumas novas impressões que poderia
ter incorporado, de modo que estas, havendo sido rejeitadas, só podiam
deixar um vestígio no id. Em consideração à sua origem, falamos desta última
parte do id como o reprimido. Pouco importa que não possamos sempre
traçar uma linha nítida entre essas duas categorias de conteúdos do id. Elas
coincidem aproximadamente com a distinção entre o que se achava originalmente
presente, inato, e o que foi adquirido ao longo do desenvolvimento do ego.
Tendo já estabelecido a dissecação topográfica
do aparelho psíquico em um ego e um id, com os quais a diferença de qualidade
entre pré-consciente e inconsciente corre paralela, e havendo concordado em que
esta qualidade deve ser considerada apenas como indicação da diferença e
não como sua essência, uma outra questão se nos apresenta. Se as coisas são
assim, qual é a verdadeira natureza do estado que é revelado no id pela
qualidade de ser inconsciente e, no ego, pela de ser pré-consciente, e em que
consiste a diferença entre eles?
Disso, porém, nada sabemos. E a profunda
obscuridade do pano de fundo de nossa ignorância é escassamente iluminada por
alguns lampejos de percepção interna (insight). Aqui aproximamo-nos do
segredo ainda velado da natureza do psíquico. Presumimos, como as outras
ciências naturais nos levaram a esperar, que na vida mental esteja em ação
alguma espécie de energia, mas não temos nada em que nos basear que nos
capacite a aproximarmo-nos de um conhecimento dela através de analogias com
outras formas de energia. Parecemos reconhecer que a energia nervosa ou
psíquica ocorre de duas formas, uma livremente móvel, e outra, em comparação,
presa; falamos de catexias e hipercatexias do material psíquico, e até mesmo
aventuramo-nos a supor que uma hipercatexia ocasiona uma espécie de síntese de
processos diferentes - uma síntese no curso da qual a energia livre é
transformada em energia presa. Mais longe que isto, ainda não avançamos. De
qualquer modo, atemo-nos firmemente à opinião de que a distinção entre o estado
inconsciente e o pré-consciente reside em relações dinâmicas desse tipo, que
explicariam como é que, espontaneamente ou com a nossa assistência, um pode se
transformar no outro.
Por trás de todas essas incertezas, contudo,
reside um fato novo, cuja descoberta devemos à pesquisa psicanalítica.
Descobrimos que os processos no inconsciente ou no id obedecem a leis
diferentes daqueles do ego pré-consciente. Denominamos essas leis, em sua
totalidade, de processo primário, em contraste com o processo
secundário, que dirige o curso das ocorrências no pré-consciente, no ego.
No cômputo geral, portanto, o estudo das qualidades psíquicas provou, afinal de
contas, não ser infrutífero.
CAPÍTULO V - A INTERPRETAÇÃO DE SONHO COMO ILUSTRAÇÃO
Uma investigação de estados estáveis, normais,
em que as fronteiras do ego são resguardadas contra o id mediante resistências
(anticatexias) e se agüentam firmes, e nos quais o superego não se distingue do
ego, por trabalharem juntos harmoniosamente - uma investigação desse tipo pouco
nos ensinaria. A única coisa que pode ajudar-nos são estados de conflito e
tumulto, quando os conteúdos do id inconsciente têm perspectiva de forçar
caminho para o ego, e a consciência e o ego mais uma vez se põem na defensiva
contra essa invasão. É somente nestas condições que podemos fazer as
observações que confirmarão ou corrigirão nossas afirmações sobre os dois
parceiros. Ora, nosso sono noturno é precisamente um estado desse tipo, e, por
essa razão, a atividade psíquica durante o sono, que percebemos como sonhos, é
o nosso objeto de estudo mais favorável. Dessa maneira, também, evitamos a acusação
costumeira de basearmos nossas construções da vida mental normal em achados
patológicos, pois os sonhos são ocorrências comuns na vida de uma pessoa
normal, por mais que suas características possam diferir das produções de nossa
vida desperta. Os sonhos, como todos sabem, podem ser confusos, ininteligíveis
ou positivamente absurdos, o que dizem pode contradizer tudo o que sabemos da
realidade, e comportamo-nos neles como pessoas insanas, visto que, enquanto
estamos sonhando, atribuímos realidade objetiva ao conteúdo do sonho.
Encontramos nosso caminho para a compreensão
(“interpretação”) de um sonho presumindo que o que lembramos como sendo o sonho
depois de termos acordado não é o verdadeiro processo onírico, mas apenas uma façade
por trás da qual esse processo jaz escondido. Aqui temos a nossa distinção
entre o conteúdo manifesto de um sonho e os pensamentos oníricos
latentes. O processo que produz aquele a partir desse é descrito como elaboração
onírica. O estudo da elaboração onírica nos ensina, através de um exemplo
excelente, a maneira como o material inconsciente oriundo do id (originalmente
inconsciente e da mesma maneira inconsciente reprimido) força seu caminho até o
ego, torna-se pré-consciente e, em conseqüência da oposição do ego, experimenta
as modificações que conhecemos como deformação onírica. Não existem
aspectos de um sonho que não possam ser explicados desta maneira.
É melhor começar ressaltando que a formação de
um sonho pode ser provocada de duas maneiras diferentes. Ou um impulso
instintivo que é comumente suprimido (um desejo inconsciente) encontra durante
o sono força suficiente para fazer-se sentido pelo ego, ou um impulso que
sobrou da vida desperta, uma seqüência pré-consciente de pensamento, com todos
os impulsos conflitantes a ela ligados, recebe reforços, durante o sono, de um
elemento inconsciente. Em resumo, os sonhos podem originar-se do id ou do ego.
O mecanismo da formação de sonhos é em ambos os casos o mesmo e assim também a
pré-condição dinâmica necessária. O ego dá prova de sua derivação original do
id fazendo cessar ocasionalmente suas funções e permitindo uma reversão a um
estado anterior de coisas. Isto é logicamente desencadeado pelo rompimento das
suas relações com o mundo externo e pela retirada de suas catexias dos órgãos
dos sentidos. Justifica-se assim dizermos que surge no nascimento um instinto
de retornar à vida intra-uterina que foi abandonada - um instinto de dormir. O
sono é um retorno desse tipo ao útero. Visto que o ego desperto governa a
motilidade, esta função é paralisada no sono e, por conseguinte, uma boa parte
das inibições impostas ao id inconsciente torna-se supérflua. A retirada ou
redução destas “anticatexias” dá assim ao id o que é agora uma liberdade
inofensiva.
As provas do papel desempenhado pelo id
inconsciente na formação dos sonhos são abundantes e convincentes. (a) A
memória é muito mais ampla nos sonhos que na vida de vigília. Os sonhos trazem
à tona recordações que o sonhador esqueceu, que lhe são inacessíveis quando
está acordado. (b) Os sonhos fazem uso irrestrito de símbolos lingüísticos,
cujos significados são, na maioria, desconhecidos da pessoa que sonha. Nossa
experiência, contudo, permite-nos confirmar o seu sentido. Eles provavelmente
originam-se de fases mais antigas do desenvolvimento da fala. (c) A memória
muito freqüentemente reproduz em sonhos impressões da tenra infância de quem
sonha, das quais podemos definitivamente dizer que foram não apenas esquecidas,
mas que se tornaram inconscientes devido à repressão. Isso explica o auxílio -
geralmente indispensável - que nos é proporcionado pelos sonhos nas tentativas
que fazemos, durante o tratamento analítico das neuroses, de reconstruir o
início da vida do sonhador. (d) Além disso, os sonhos trazem à luz material que
não pode ter-se originado nem da vida adulta de quem sonha nem de sua infância
esquecida. Somos obrigados a considerá-lo parte da herança arcaica que
uma criança traz consigo ao mundo, antes de qualquer experiência própria,
influenciada pelas experiências de seus antepassados. Descobrimos a
contrapartida desse material filogenético nas lendas humanas mais antigas e em
costumes que sobreviveram. Dessa maneira, os sonhos constituem uma fonte da
pré-história humana que não deve ser menosprezada.Mas o que torna os sonhos tão
valiosos para nos dar uma compreensão interna (insight) é a
circunstância de que, quando o material inconsciente abre seu caminho para o
ego, ele traz consigo as suas próprias modalidades de funcionamento. Isto
significa que os pensamentos pré-conscientes em que o material inconsciente
encontrou sua expressão são manejados no curso da elaboração onírica como se
fossem partes inconscientes do id; e, no caso do método alternativo de formação
dos sonhos, os pensamentos pré-conscientes que obtiveram reforço de um impulso
instintivo inconsciente são rebaixados ao estado inconsciente. Somente dessa
maneira é que aprendemos as leis que regulam a passagem de acontecimentos no
inconsciente e os aspectos em que diferem das regras que nos são familiares no
pensamento desperto. Assim, a elaboração onírica é essencialmente um exemplo do
trabalho inconsciente dos processos de pensamento pré-conscientes. Tomando-se
uma analogia da história: conquistadores invasores governam um país conquistado,
não segundo o sistema jurídico que lá encontram em vigor, mas de acordo com o
seu próprio. É entretanto um fato inequívoco que o resultado da elaboração
onírica é uma conciliação. A organização do ego não está todavia paralisada e
sua influência pode ser vista na distorção imposta ao material inconsciente e
naquilo que são freqüentemente tentativas muito ineficazes de dar ao resultado
total uma forma não demasiado inaceitável pelo ego (revisão secundária).
Em nossa analogia, isso seria uma expressão da resistência contínua do povo
derrotado.
As leis que governam a passagem de
acontecimentos no inconsciente, e que assim vêm à luz, são bastante notáveis e
bastam para explicar a maior parte do que nos parece estranho nos sonhos. Acima
de tudo, há uma tendência impressionante à condensação, uma inclinação
para formar novas unidades a partir de elementos que, em nosso pensamento de
vigília, certamente teríamos mantido separados. Em conseqüência disso, um
elemento isolado do sonho manifesto freqüentemente representa um grande número
de pensamentos oníricos latentes, como se fosse uma alusão conjunta a todos
eles; e, em geral, o âmbito do sonho manifesto é extraordinariamente pequeno em
comparação com a riqueza de material de que se originou. Outra peculiaridade da
elaboração onírica, não inteiramente independente da anterior, é a facilidade
com que intensidades psíquicas (catexias) são deslocadas de determinado
elemento para outro de maneira que com freqüência acontece que um elemento que
era de pequena importância nos pensamentos oníricos apareça como o aspecto mais
claro, e, por conseguinte, mais importante do sonho manifesto e vice-versa, que
elementos essenciais dos pensamentos oníricos sejam representados no sonho
manifesto apenas por ligeiras alusões. Ademais, via de regra, a existência de
pontos em comum inteiramente insignificantes entre dois elementos é suficiente
para permitir à elaboração onírica substituir um pelo outro em todas as
operações ulteriores. É fácil imaginar quanto esses mecanismos de condensação e
deslocamento podem aumentar a dificuldade de interpretar um sonho e de revelar
as relações existentes entre o sonho manifesto e os pensamentos oníricos
latentes. Da prova da existência dessas duas tendências à condensação e ao
deslocamento, nossa teoria infere que, no id inconsciente, a energia se acha
num estado livremente móvel e que o id dá mais valor à possibilidade de
descarregar quantidades de excitação do que a qualquer outra consideração; e
nossa teoria faz uso dessas duas peculiaridades ao definir o caráter do
processo primário que atribuímos ao id.
O estudo da elaboração onírica nos ensinou
muitas outras características dos processos do inconsciente que são tão
notáveis quanto importantes, mas só devemos mencionar aqui algumas delas. As regras
que regem a lógica não têm peso no inconsciente; ele poderia ser chamado de
Reino do Ilógico. Impulsos com objetivos contrários coexistem lado a lado no
inconsciente, sem que surja qualquer necessidade de acordo entre eles. Ou não
têm nenhuma influência um sobre o outro, ou, se têm, nenhuma decisão é tomada,
mas acontece um acordo que é absurdo, visto envolver detalhes mutuamente
incompatíveis. A isso está ligado o fato de que os contrários não são mantidos
separados, mas tratados como se fossem idênticos, de maneira que, no sonho
manifesto, qualquer elemento pode também possuir o significado do seu oposto.
Certos filólogos descobriram que o mesmo é válido nas línguas mais antigas e
que contrários tais como “forte-fraco”, “claro-escuro” e “alto-profundo” foram
originalmente expressos pelas mesmas raízes, até que duas modificações
diferentes da palavra primitiva estabeleceram a distinção entre os dois
significados. Resíduos desse duplo significado original parecem ter sobrevivido
mesmo numa língua altamente desenvolvida como o latim, no uso de palavras como
“altus” (“alto” e “profundo”) e “sacer” (“sagrado” e “infame”).
[Cf. Moses and Monotheism, S.E. 21, p. 121.]
Em vista da complicação e ambigüidade das
relações existentes entre o sonho manifesto e o conteúdo latente que jaz por
trás dele, é naturalmente justificável perguntar como afinal de contas é
possível deduzir um a partir do outro e se tudo o que temos para prosseguir não
será apenas um palpite feliz, auxiliado talvez por uma tradução dos símbolos
que ocorrem no sonho manifesto. Pode-se dizer, em resposta, que na grande
maioria dos casos o problema pode ser satisfatoriamente solucionado, mas
somente com a ajuda das associações aos elementos do conteúdo manifesto feitas
pelo próprio sonhador. Qualquer outro procedimento é arbitrário e não pode
produzir resultado certo. Mas as associações do sonhador trazem à luz ligações
intermediárias que podemos inserir na lacuna entre os dois [entre o conteúdo
manifesto e o latente] e com o auxílio dos quais podemos restabelecer o
conteúdo latente do sonho e “interpretá-lo”. Não é de admirar se esse trabalho
de interpretação (atuando numa direção oposta à da elaboração onírica) fracassa
às vezes em chegar a numa certeza completa.
Resta-nos dar uma explicação dinâmica do porquê
de o ego adormecido se dar o trabalho da elaboração onírica. A explicação,
felizmente, é fácil de encontrar. Com a ajuda do inconsciente, todo sonho em
processo de formação faz uma exigência ao ego - a satisfação de um instinto, se
o sonho se origina do id; a solução de um conflito, a remoção de uma dúvida ou
a formação de uma intenção, se o sonho se origina de um resíduo da atividade
pré-consciente na vida de vigília. O ego adormecido, contudo, está focalizado
no desejo de manter o sono; ele sente essa exigência como uma perturbação e
procura livrar-se dela. O ego consegue realizar isto através do que parece ser
um ato de submissão: ele satisfaz a exigência com o que, nas circunstâncias, é
uma realização inofensiva de um desejo e, assim livra-se dele.
Esta substituição da exigência pela realização de um desejo permanece sendo a
função essencial da elaboração onírica. Talvez valha a pena ilustrar isso com
três exemplos simples - um sonho de fome, um sonho de conveniência e um sonho
induzido pelo desejo sexual. Uma necessidade de comida faz-se sentir numa
pessoa que sonha durante o sono; ela sonha com uma refeição deliciosa e
continua a dormir. Naturalmente, estava aberta a essa pessoa a escolha de
despertar e comer algo ou de continuar o sono. Decidiu em favor do último e
satisfez a fome por meio do sonho - por enquanto, pelo menos, pois se a fome
persistisse, teria de acordar, apesar de tudo. Aqui temos o segundo exemplo:
uma pessoa adormecida tinha de acordar para chegar na hora ao seu trabalho no
hospital. Continuou, porém, a dormir, e teve um sonho de que já se achava no
hospital - mas como um paciente, que não tem necessidade de levantar-se. Ou,
ainda, durante a noite tornou-se ativo um desejo de gozo de um objeto sexual
proibido, a esposa de um amigo. Ele sonha então que está tendo relações sexuais
- não, na verdade, com essa pessoa, mas com outra do mesmo nome e que lhe é, de
fato, indiferente; ou a luta contra o desejo pode encontrar expressão na amante
que permanece inteiramente anônima.
Naturalmente, todos os casos não são tão
simples. Sobretudo em sonhos que se originaram de resíduos não tratados do dia
anterior, e que só obtiveram um reforço inconsciente durante o estado de sono,
com freqüência não é tarefa fácil descobrir a força motivadora inconsciente e
sua realização de desejo, mas podemos admitir que sempre estão lá. A tese de
que os sonhos são realizações de desejos facilmente despertará ceticismo,
quando é lembrado quantos sonhos possuem um conteúdo realmente aflitivo ou
chegam até a despertar a pessoa que sonha em ansiedade, inteiramente à parte
dos numerosos sonhos sem qualquer tom de sentimento definido. Mas a objeção
baseada nos sonhos de ansiedade não pode ser sustentada contra a análise. Não
se deve esquecer que os sonhos são invariavelmente o produto de um conflito,
que eles são uma espécie de estrutura de conciliação. Algo que é uma satisfação
para o id inconsciente pode, por essa mesma razão, ser causa de ansiedade para
o ego.
À medida que a elaboração onírica progride, às
vezes o inconsciente pressiona com mais êxito e outras o ego se defende com
maior energia. Os sonhos de ansiedade são muitas vezes aqueles cujo conteúdo
experimentou a menor deformação. Se a exigência feita pelo inconsciente é
grande demais para que o ego adormecido esteja em posição de desviá-la pelos
meios à sua disposição, ele abandona o desejo de dormir e retorna à vida
desperta. Estaremos tomando toda experiência em consideração se dissermos que o
sonho é invariavelmente uma tentativa de livrar-se de uma perturbação do
sono por meio de uma realização de desejo, de maneira que o sonho é um guardião
do sono. A tentativa pode alcançar êxito mais ou menos completo; pode também
fracassar, e, nesse caso, a pessoa acorda, ao que parece, despertada
precisamente pelo sonho. Do mesmo modo, também, existem ocasiões em que aquela
excelente pessoa, o vigia noturno, cuja missão é guardar o sono da cidadezinha,
não tem outra alternativa senão fazer soar o alarma e despertar a população
adormecida.
Encerrarei estas considerações com um
comentário que justificará o tempo que concedi ao problema da interpretação de
sonhos. A experiência mostrou que os mecanismos inconscientes que viemos a
conhecer através do estudo da elaboração onírica e que nos forneceram a
explicação da formação dos sonhos também nos auxiliam a entender os enigmáticos
sintomas que atraem nosso interesse para neuroses e psicoses. Uma semelhança
dessa espécie não pode deixar de despertar grandes esperanças em nós.
PARTE II - O TRABALHO PRÁTICO
CAPÍTULO VI - A TÉCNICA DA PSICANÁLISE
Um sonho, então, é uma psicose, com todos os
absurdos, delírios e ilusões de uma psicose. Uma psicose de curta duração sem
dúvida, inofensiva, até mesmo dotada de uma função útil, introduzida com o
consentimento do indivíduo e concluída por um ato de sua vontade. Ainda assim é
uma psicose e com ela aprendemos que mesmo uma alteração da vida mental tão
profunda como essa pode ser desfeita e dar lugar à função normal. Será então
uma ousadia muito grande pretender que também deve ser possível submeter as
temidas doenças espontâneas da vida mental à nossa influência e promover a sua
cura?
Já conhecemos certo número de coisas
preliminares a esse empreendimento. De acordo com nossa hipótese, é função do
ego enfrentar as exigências levantadas por suas três relações de dependência -
da realidade, do id e do superego - e não obstante, ao mesmo tempo, preservar a
sua própria organização e manter a sua própria autonomia. A pré-condição
necessária aos estados patológicos em debate só pode ser um enfraquecimento
relativo ou absoluto do ego, que torna impossível a realização de suas tarefas.
A exigência mais severa feita ao ego é provavelmente a sujeição das
reivindicações instintivas do id, para o que ele é obrigado a fazer grandes
dispêndios de energia em anticatexias. Mas as exigências feitas pelo superego
também podem tornar-se tão poderosas e inexoráveis que o ego pode ficar
paralisado, por assim dizer, frente às suas outras tarefas. Podemos desconfiar
de que, nos conflitos econômicos que surgem neste ponto, o id e o superego
freqüentemente fazem causa comum contra o ego arduamente pressionado que tenta
apegar-se à realidade a fim de conservar o seu estado normal. Se os outros dois
se tornam fortes demais, conseguem afrouxar e alterar a organização do ego, de
maneira que sua relação correta com a realidade é perturbada ou até mesmo
encerrada. Vimos isto acontecer no sonhar: quando o ego se desliga da realidade
do mundo externo, desliza, sob a influência do mundo interno, para a
psicose.Nosso plano de cura baseia-se nessas descobertas. O ego acha-se
enfraquecido pelo conflito interno e temos de ir em seu auxílio. A posição é
semelhante à de uma guerra civil que tem de ser decidida pela assistência de um
aliado vindo de fora. O médico analista e o ego enfraquecido do paciente,
baseando-se no mundo externo real, têm de reunir-se num partido contra os
inimigos, as exigências instintivas do id e as exigências conscienciosas do
superego. Fazemos um pacto um com o outro. O ego enfermo nos promete a mais
completa sinceridade - isto é, promete colocar à nossa disposição todo o
material que a sua autopercepção lhe fornece; garantimos ao paciente a mais
estrita discrição e colocamos a seu serviço a nossa experiência em interpretar
material influenciado pelo inconsciente. Nosso conhecimento destina-se a
compensar a ignorância do paciente e a devolver a seu ego o domínio sobre
regiões perdidas de sua vida mental. Esse pacto constitui a situação analítica.
Mal acabamos de dar esse passo e um primeiro
desapontamento nos espera, uma primeira advertência contra o excesso de
confiança. Se o ego do paciente vai ser um aliado útil em nosso trabalho comum,
deve - por mais árdua que tenha sido a pressão das forças hostis - ter conservado
uma certa coerência e algum fragmento de compreensão das exigências da
realidade. Mas isto não é de se esperar do ego de um psicótico; ele não pode
cumprir um pacto desse tipo; na verdade, mal poderá engajar-se. Muito cedo
ter-nos-á abandonado, bem como à ajuda que lhe oferecemos, e nos juntado às
partes do mundo externo que não querem dizer mais nada para ele. Assim,
descobrimos que temos de renunciar à idéia de experimentar nosso plano de cura
com os psicóticos - renunciar a ele talvez para sempre ou talvez apenas por
enquanto, até que tenhamos encontrado um outro plano que se lhes adapte melhor.
Existe, entretanto, outra classe de pacientes
psíquicos que visivelmente se assemelha muito de perto aos psicóticos - o vasto
número de pessoas que sofrem de graves neuroses. Os determinantes de sua
doença, bem como seus mecanismos patogênicos, devem ser os mesmos ou, pelo
menos, muito semelhantes. Mas o ego mostrou-se mais resistente e tornou-se
menos desorganizado. Muitos deles, apesar da doença e das inadequações dela
decorrentes, foram capazes de manter-se na vida real. Esses neuróticos podem
mostrar-se prontos a aceitar nosso auxílio. Limitaremos a eles nosso interesse
e veremos até onde e mediante que métodos seremos capazes de “curá-los”.
Com os neuróticos, então, fazemos nosso pacto:
sinceridade completa de um lado e discrição absoluta do outro. Isso soa como se
estivéssemos apenas visando ao posto de um padre confessor. Mas há uma grande
diferença, porque o que desejamos ouvir de nosso paciente não é apenas o que
sabe e esconde de outras pessoas; ele deve dizer-nos também o que não
sabe. Com este fim em vista, fornecemos-lhe uma definição mais detalhada do que
queremos dizer com sinceridade. Fazemo-lo comprometer-se a obedecer à regra
fundamental da análise, que dali em diante deverá dirigir o seu
comportamento para conosco. Deve dizer-nos não apenas o que pode dizer
intencionalmente e de boa vontade, coisa que lhe proporcionará um alívio
semelhante ao de uma confissão, mas também tudo o mais que a sua
auto-observação lhe fornece, tudo o que lhe vem à cabeça, mesmo que lhe seja desagradável
dizê-lo, mesmo que lhe pareça sem importância ou realmente absurdo. Se,
depois dessa injunção, conseguir pôr sua autocrítica fora de ação, nos
apresentará uma massa de material - pensamentos, idéias, lembranças - que já
estão sujeitos à influência do inconsciente, que, muitas vezes, são seus
derivados diretos, e que assim nos colocam em condição de conjeturar sobre o
material inconsciente reprimido do paciente e de ampliar, através das
informações que lhe fornecemos, o conhecimento do ego a respeito do
inconsciente.
Mas o ego está longe de contentar-se em
desempenhar o papel de nos trazer passiva e obedientemente o material que
pedimos e de aceitar nossa tradução do mesmo e nela acreditar. Acontece um
certo número de outras coisas, algumas das quais poderíamos ter previsto, mas
também outras que estão destinadas a surpreender-nos. A mais notável é a
seguinte: o paciente não fica satisfeito de encarar o analista, à luz da
realidade, como um auxiliar e conselheiro que, além do mais, é remunerado pelo
trabalho que executa e que se contentaria com um papel semelhante ao de guia
numa difícil escalada de montanha. Pelo contrário, o paciente vê nele o
retorno, a reencarnação, de alguma importante figura saída de sua infância ou
do passado, e, conseqüentemente, transfere para ele sentimentos e reações que,
indubitavelmente, aplicam-se a esse protótipo. Essa transferência logo
demonstra ser um fator de importância inimaginável, por um lado, instrumento de
insubstituível valor e, por outro, uma fonte de sérios perigos. A transferência
é ambivalente: ela abrange atitudes positivas (de afeição), bem como
atitudes negativas (hostis) para com o analista, que, via de regra, é colocado
no lugar de um ou outro dos pais do paciente, de seu pai ou de sua mãe.
Enquanto é positiva, ela nos serve admiravelmente. Altera toda a situação
analítica; empurra para o lado o objetivo racional que tem o paciente para
ficar sadio e livre de seus achaques. Em lugar disso, surge o objetivo de
agradar o analista e de conquistar o seu aplauso e amor. Este passa a ser a
verdadeira força motivadora da colaboração do paciente; o seu ego fraco
torna-se forte; sob essa influência realiza coisas que, ordinariamente,
estariam além de suas forças; desiste dos sintomas e aparenta ter-se
restabelecido - simplesmente por amor ao analista. Este pode modestamente
admitir para si próprio que se dispôs a uma empresa difícil sem suspeitar
sequer dos extraordinários poderes que estariam sob seu comando.
Ademais, a relação de transferência traz
consigo duas outras vantagens. Se o paciente coloca o analista no lugar do pai
(ou mãe), está também lhe concedendo o poder que o superego exerce sobre o ego,
visto que os pais foram, como sabemos, a origem de seu superego. O novo
superego dispõe agora de uma oportunidade para uma espécie de pós-educação
do neurótico; ele pode corrigir erros pelos quais os pais foram responsáveis ao
educá-lo. A essa altura, cabe uma advertência contra o mau uso dessa nova
influência. Por mais que o analista possa ficar tentado a transformar-se num
professor, modelo e ideal para outras pessoas, e criar homens à sua própria
imagem, não deve esquecer que essa não é a sua tarefa no relacionamento
analítico, e que, na verdade, será desleal a essa tarefa se permitir-se ser
levado por suas inclinações. Se o fizer, estará apenas repetindo um equívoco
dos pais, que esmagaram a independência do filho através de sua influência, e
estará simplesmente substituindo a primitiva dependência do paciente por uma
nova. Em todas as suas tentativas de melhorar e educar o paciente, o analista
deve respeitar a individualidade deste. A influência que possa legitimamente
permitir-se será determinada pelo grau de inibição no desenvolvimento
apresentado pelo paciente. Alguns neuróticos permaneceram tão infantis que,
também na análise, só podem ser tratados como crianças.
Outra vantagem ainda da transferência é que,
nela, o paciente produz perante nós, com clareza plástica, uma parte importante
da história de sua vida, da qual, de outra maneira, ter-nos-ia provavelmente
fornecido apenas um relato insuficiente. Ele a representa diante de nós, por
assim dizer, em vez de apenas nos contar.
E, agora, o outro lado da situação. Uma vez que
a transferência reproduz a relação do paciente com seus pais, ela assume também
a ambivalência dessa relação. Quase inevitavelmente acontece que, um dia, sua
atitude positiva para com o analista se transforma em negativa, hostil. Também
isso, via de regra, é uma repetição do passado. Sua obediência ao pai (se se
tratar do pai), sua corte para obter as simpatias deste, tem raízes num desejo
erótico para ele voltado. Numa ocasião ou noutra, esta exigência pressionará
seu caminho no sentido da transferência e insistirá em ser satisfeita. Na
situação analítica, ela só pode defrontar-se com a frustração. Relações sexuais
reais entre pacientes e analista estão fora de cogitação e mesmo os métodos
mais sutis de satisfação, tais como preferência, intimidade, etc., só são
concedidos parcialmente pelo analista. Uma rejeição desse tipo é tomada como
ocasião para a mudança; provavelmente as coisas aconteceram da mesma maneira na
infância do paciente.
Os sucessos terapêuticos que ocorreram sob a
influência da transferência positiva estão sujeitos à suspeita de serem de
natureza sugestiva. Se a transferência negativa leva a melhor, eles são
soprados como farelo ao vento. Observamos com horror que todo o nosso esforço e
labuta até ali foi em vão. Na verdade, o que poderíamos ter considerado como
ganho intelectual permanente por parte do paciente, a sua compreensão da
Psicanálise e sua confiança na eficácia desta, subitamente se desvanece. Ele se
comporta como uma criança que não tem poder de julgamento próprio, mas que
cegamente acredita em qualquer pessoa que ame e em ninguém que lhe seja
estranho. O perigo desses estados de transferência evidentemente reside em o
paciente não compreender a sua natureza e tomá-los por experiências novas e
reais, em vez de reflexos do passado. Se ele (ou ela) se dá conta do forte
desejo erótico que se acha escondido por trás da transferência muda, sente-se
então insultado e desprezado, odeia o analista como seu inimigo e está pronto a
abandonar a análise. Em ambos esses casos extremos, esqueceu o pacto que fez no
início do tratamento e que se tornou inútil para a continuação do trabalho
comum. É tarefa do analista tirar constantemente o paciente da ilusão que o
ameaça e mostrar-lhe sempre que o que ele toma por uma vida nova e real é um
reflexo do passado. E para que não caia num estado em que fique inacessível a
qualquer prova, o analista toma o cuidado de que nem o amor nem a hostilidade
atinjam um grau extremo. Isto se faz preparando o paciente, em tempo, para
estas possibilidades e não negligenciando os primeiros sinais delas. Um manejo
cuidadoso da transferência, de acordo com essa orientação, é, via de regra,
extremamente compensador. Se conseguimos, como geralmente acontece, esclarecer
o paciente quanto à verdadeira natureza dos fenômenos de transferência, teremos
tirado uma arma poderosa da mão de sua resistência e convertido perigos em
lucros, pois um paciente nunca se esquece novamente do que experimentou sob a
forma de transferência; ela tem uma força de convicção maior do que qualquer
outra coisa que possa adquirir por outros modos.
Achamos muito indesejável que o paciente atue
fora da transferência, em vez de recordar. A conduta ideal para os nossos
fins seria que ele se comportasse tão normalmente quanto possível fora do
tratamento e expressasse suas reações anormais somente na transferência.
O método pelo qual fortalecemos o ego
enfraquecido tem como ponto de partida uma ampliação do autoconhecimento. Isso,
naturalmente, não é toda a história, mas apenas seu primeiro passo. A perda de
tal conhecimento significa, para o ego, uma abdicação de poder e influência; é
o primeiro sinal tangível de que está sendo encurralado e tolhido pelas
exigências do id e do superego. Por conseguinte, a primeira parte do auxílio
que temos a oferecer é um trabalho intelectual de nossa parte e um incentivo ao
paciente para nele colaborar. Esse primeiro tipo de atividade, como sabemos,
destina-se a preparar o caminho para outra tarefa, mais difícil. Não perderemos
de vista o elemento dinâmico nessa tarefa, mesmo durante o seu estágio
preliminar. Coletamos o material para o nosso trabalho de uma variedade de
fontes - do que nos é transmitido pelas informações que nos são dadas pelo
paciente e por suas associações livres, do que ele nos mostra nas transferências,
daquilo a que chegamos pela interpretação de seus sonhos e do que ele revela
através de lapsos ou parapraxias. Todo esse material ajuda-nos a fazer
construções acerca do que lhe aconteceu e foi esquecido, bem como sobre o que
lhe está acontecendo no momento, sem que o compreenda. Nisso tudo, porém, nunca
deixamos de fazer uma distinção rigorosa entre o nosso conhecimento e o
conhecimento dele. Evitamos dizer-lhe imediatamente coisas que muitas
vezes descobrimos num primeiro estágio, e evitamos dizer-lhe a totalidade do
que achamos que descobrimos. Refletimos cuidadosamente a respeito de quando lhe
comunicaremos o conhecimento de uma de nossas construções e esperamos pelo que
nos pareça ser o momento apropriado - o que nem sempre é fácil de decidir. Via
de regra, adiamos falar-lhe de uma construção ou explicação até que ele próprio
tenha chegado tão perto dela que só reste um único passo a ser dado, embora
esse passo seja, de fato, a síntese decisiva. Se procedemos doutra maneira e o
esmagamos com nossas interpretações antes que esteja preparado para elas, nossa
informação ou não produziria efeito algum ou, então, provocaria uma violenta
irrupção da resistência que tornaria o avanço de nosso trabalho mais
difícil ou poderia mesmo ameaçar interrompê-lo por completo. Mas se preparamos
tudo adequadamente, com freqüência acontece que o paciente imediatamente
confirma nossa construção e ele próprio recorda o acontecimento interno ou
externo que esqueceu. Quanto mais exatamente a construção coincidir com os
pormenores do que foi esquecido, mais fácil ser-lhe-á assentir. Nesse assunto
em particular, o nosso conhecimento tornar-se-á, então, também o seu
conhecimento.
Com a menção de resistência, chegamos à segunda
e mais importante parte de nossa tarefa. Já dissemos que o ego se protege
contra a invasão de elementos indesejáveis provenientes do inconsciente e do id
reprimido por meio de anticatexias, que devem permanecer intactas para poderem
funcionar normalmente. Quanto mais premido o ego se sente, mais convulsivamente
se apega (como num susto) a essas anticatexias, a fim de proteger o que resta
de si contra outras irrupções. Mas esse intuito defensivo de maneira alguma
concorda com os objetivos de nosso tratamento. O que desejamos, pelo contrário,
é que o ego, que se tornou afoito pela certeza de nosso auxílio, atreva-se a
tomar a ofensiva, a fim de reconquistar o que foi perdido. E é aqui que nos
damos conta da força dessas anticatexias, sob a forma de resistências ao
nosso trabalho. O ego recua, em alarma, ante tais empreendimentos, que parecem
perigosos e ameaçam com o desprazer; para não nos falhar, tem de ser
constantemente incentivado e apaziguado. Essa resistência, que persiste durante
todo o tratamento e se renova a cada novo período de trabalho, é conhecida, não
muito corretamente, como resistência devida à repressão. Descobriremos
que não é a única com que nos defrontamos. É interessante notar que, nessa
situação, as divisões partidárias são, até certo ponto, invertidas: pois o ego
luta contra o nosso estímulo, enquanto o inconsciente, que comumente é nosso
adversário, vem em nosso auxílio, visto possuir um “impulso ascendente” natural
e não desejar nada melhor que pressionar além de suas fronteiras estabelecidas,
até o ego, e, assim, até a consciência. A luta que se desenvolve, se alcançamos
nosso fim e podemos induzir o ego a superar suas resistências, é realizada sob
nossa direção e com nossa assistência. O seu desfecho é indiferente, quer
resulte na aceitação por parte do ego, após novo exame, de uma exigência
instintiva que até então rejeitara, quer a rejeite de novo, desta vez
definitivamente. Em qualquer desses casos, um perigo permanente foi liquidado,
o âmbito do ego foi ampliado e um dispêndio inútil de energia tornou-se
desnecessário.
A superação das resistências é a parte de nosso
trabalho que exige mais tempo e maior esforço. Ela vale a pena, contudo, pois
ocasiona uma alteração vantajosa do ego, a qual será mantida independentemente
do resultado da transferência e se manterá firme na vida. Trabalhamos também,
simultaneamente, para livrar-nos da alteração do ego que foi ocasionada sob a
influência do inconsciente, pois onde quer que pudemos detectar qualquer de
seus derivados no ego, apontamos-lhes sua origem ilegítima e incentivamos o ego
a rejeitá-los. Será lembrado que foi uma das pré-condições necessárias de nosso
pacto de ajuda que qualquer alteração desse tipo no ego, devida à intrusão de
elementos inconscientes, não deveria ir além de certa medida.
Quanto mais nosso trabalho progride e mais
profundamente a nossa compreensão interna (insight) penetra na vida
mental dos neuróticos, mais claramente se impõem à nossa observação dois novos
fatores, os quais exigem a mais rigorosa atenção, como fontes de resistência.
Ambos são completamente desconhecidos do paciente, nenhum deles poderia ter
sido levado em conta quando o nosso pacto foi feito; tampouco originam-se do
ego do paciente. Ambos podem ser englobados sob a denominação única de
“necessidade de estar doente ou de sofrer”, mas têm origens diferentes, embora,
sob certos aspecto, sejam de natureza aparentada. O primeiro desses dois
fatores é o sentimento de culpa ou consciência de culpa, como é chamado, embora
o paciente não o sinta e não se dê conta dele. Trata-se, evidentemente, da
parte da resistência que é contribuição de um superego particularmente severo e
cruel. O paciente não deve ficar bom, mas tem de permanecer doente, pois não
parece melhorar. Essa resistência não interfere concretamente em nosso trabalho
intelectual, mas torna-o inoperante; na verdade, com freqüência nos permite
remover determinada forma de sofrimento neurótico, mas está imediatamente
pronta a substituí-la por outra, ou, talvez, por alguma doença somática. O
sentimento de culpa explica também a cura ou melhora de graves neuroses que
ocasionalmente observamos depois de infortúnios reais: tudo o que importa é que
o paciente seja desgraçado - de que maneira, não tem importância. A resignação
sem queixas com que essas pessoas freqüentemente se acomodam à sua árdua sorte
é muito notável, mas também reveladora. Para desviar essa resistência, somos
obrigados a restringir-nos a torná-la consciente e a tentar promover a lenta
demolição do superego hostil.
É menos fácil demonstrar a existência da outra
resistência, para a qual os nossos meios de combate são especialmente
inadequados. Existem alguns neuróticos em quem, a julgar por todas as suas
reações, o instinto de autopreservação na realidade foi invertido. Eles parecem
visar a nada mais que à autolesão e à autodestruição. É possível também que as
pessoas que, de fato, terminam por cometer suicídio pertençam a esse grupo. É
de se presumir que, em tais pessoas, efetuaram-se defusões de instinto de
grandes conseqüências, em conseqüência do que houve uma liberação de quantidades
excessivas do instinto destrutivo voltado para dentro. Os pacientes dessa
espécie não podem tolerar o restabelecimento mediante o nosso tratamento e
lutam contra ele com todas as suas forças. Mas temos de confessar que se trata
de caso que ainda não conseguimos explicar completamente.
Lancemos mais um olhar sobre a situação a que
chegamos, em nossa tentativa de trazer auxílio ao ego neurótico do paciente.
Esse ego não é mais capaz de cumprir a tarefa que lhe foi estabelecida pelo
mundo externo (inclusive a sociedade humana). Nem todas as suas experiências se
acham à sua disposição; uma grande parte de seu estoque de lembranças lhe
fugiu. Sua atividade está inibida por rigorosas proibições oriundas do superego
e sua energia é consumida em vãs tentativas de desviar as exigências do id.Além
disso, como resultado de contínuas irrupções por parte do id, sua organização
acha-se danificada, não é mais capaz de qualquer síntese correta, está
dilacerada por impulsos mutuamente opostos, por conflitos não resolvidos e por
dúvidas não solucionadas. Para começar, conseguimos que o ego do paciente assim
enfraquecido participe do trabalho puramente intelectual de interpretação, que
visa a provisoriamente preencher as lacunas em seu patrimônio mental e a
transferir-nos a autoridade de seu superego; incentivâmo-lo a aceitar a luta
contra cada exigência individual feita pelo id e a vencer as resistências que
surgem em conexão com isso. Ao mesmo tempo, restauramos a ordem no ego
detectando o material e os impulsos que forçaram caminho a partir do
inconsciente e expômo-los à crítica, remontando-os à sua origem. Servimos ao
paciente em diversas funções, como autoridade e substituto dos pais, como
professor e educador, e fizemos o melhor por ele se, como analistas, elevamos
os processos mentais de seu ego a um nível normal, transformamos o que se
tornou inconsciente e reprimido em material pré-consciente, e assim
devolvêmo-lo, mais uma vez, à posse de seu ego. Do lado do paciente, alguns
fatores racionais trabalham em nosso favor, tais como a necessidade de
restabelecimento, que tem seu motivo nos sofrimentos dele, e o interesse
intelectual que possamos ter-lhe despertado pelas teorias e revelações da
Psicanálise; de muito maior força, porém, é a transferência positiva com que
ele nos recebe. Lutando contra nós, por outro lado, estão a transferência
negativa, a resistência do ego devido à repressão (isto é, seu desprazer por
ter de abrir-se ao árduo trabalho que lhe é imposto), o sentimento de culpa que
surge de sua relação com o superego e a necessidade dos seus instintos [do
paciente]. A parte ocupada pelos dois últimos fatores decide se o caso deve ser
considerado leve ou grave. Fora esses, pode-se discernir alguns outros fatores
como tendo relação favorável ou desfavorável. Uma certa inércia psíquica, uma
indolência da libido, que não está disposta a abandonar suas fixações, não
podem ser olhadas com bons olhos; a capacidade do paciente de sublimar seus
instintos desempenha um grande papel e assim também a sua capacidade de
elevar-se acima da vida grosseira dos instintos, bem como, ainda, o relativo
poder de suas funções intelectuais.
Não ficaremos desapontados, mas, pelo
contrário, acharemos perfeitamente inteligível, se chegarmos à conclusão de que
o desfecho final da luta em que nos empenhamos depende de relações quantitativas
da cota de energia que podemos mobilizar no paciente, em nosso favor, comparada
à soma de energia das forças que trabalham contra nós. Aqui, mais uma vez, Deus
acha-se do lado dos grandes batalhões. É verdade que nem sempre conseguimos
ganhar, mas, pelo menos, podemos geralmente identificar por que foi que não
vencemos. Aqueles que estiverem acompanhando a nossa exposição apenas por
interesse terapêutico provavelmente se afastarão com desprezo, após esta
admissão. Aqui, porém, estamos interessados na terapia apenas na medida em que
ela funciona através de meios psicológicos e, por enquanto, não possuímos
outra. O futuro pode ensinar-nos a exercer influência direta, através de
substâncias químicas específicas, nas quantidades de energia e na sua
distribuição no aparelho mental. Pode ser que existam outras possibilidades
ainda não imaginadas de terapia. De momento, porém, nada temos de melhor à
nossa disposição do que a técnica da psicanálise, e, por essa razão, apesar de
suas limitações, ela não deve ser menosprezada.
CAPÍTULO VII - UM EXEMPLO DE TRABALHO PSICANALÍTICO
Chegamos a uma familiaridade geral com o
aparelho psíquico, com as partes, órgãos e áreas de ação de que se compõe, com
as forças que nele operam e com as funções atribuídas às partes. As neuroses e
as psicoses são os estados em que se manifestam distúrbios no funcionamento do
aparelho. Escolhemos as neuroses como assunto de nosso estudo porque somente
elas parecem acessíveis aos métodos psicológicos de nossa intervenção. Enquanto
estamos tentando influenciá-las, coligimos observações que nos proporcionam um
quadro de sua origem e da maneira como elas surgem.
Enunciarei antecipadamente um de nossos
principais achados, antes de prosseguir com minha descrição. As neuroses
(diferentemente das moléstias infecciosas, por exemplo) não possuem
determinantes específicos. Seria ocioso buscar nelas excitantes patogênicos.
Elas se transformam gradualmente, através de fáceis transições, no que é descrito
como normal, e, por outro lado, dificilmente existe qualquer estado reconhecido
como normal em que indicações de traços neuróticos não possam ser apontadas. Os
neuróticos possuem aproximadamente as mesmas disposições inatas que as outras
pessoas, têm as mesmas experiências e as mesmas tarefas a desempenhar. Por que
é, então, que vivem de modo tão pior e com tão grande dificuldade, e, no
processo, padecem de mais sentimentos de desprazer, ansiedade e sofrimento?
Não precisamos embaraçar-nos para encontrar uma
resposta a esta pergunta. O que deve ser tido como responsável pela inadequação
e sofrimentos dos neuróticos são desarmonias quantitativas. A causa
determinante de todas as formas assumidas pela vida mental humana deve, na
verdade, ser buscada na ação recíproca entre as disposições inatas e as
experiências acidentais. Ora, um determinado instinto pode ser inatamente forte
ou fraco demais, ou uma determinada capacidade pode ser sustada ou desenvolvida
de modo insuficiente na vida. Por outro lado, as impressões e experiências
externas podem fazer exigências de intensidade diferente a pessoas diferentes e
aquilo que é passível de ser manejado pela constituição de uma pessoa pode ser
uma tarefa impossível para a de outra. Essas diferenças quantitativas determinarão
a variedade dos resultados.
Muito cedo acharemos, contudo, que esta
explicação é insatisfatória: ela é muito geral, explica demasiado. A etiologia
apresentada aplica-se a todos os casos de sofrimento, infelicidade ou
incapacidade mental, mas nem todos os estados desse tipo podem ser denominados
de neuróticos. As neuroses possuem características específicas, são
infelicidades de um tipo determinado. Dessa maneira, temos de, afinal de
contas, esperar encontrar causas específicas para elas. Ou podemos adotar a
suposição de que, entre as tarefas com que a vida mental tem de lidar, há
algumas nas quais se pode muito facilmente fracassar, de modo que a
peculiaridade dos fenômenos da neurose, que quase sempre são tão notáveis,
decorreria disto, sem que necessitássemos retirar nossas asserções anteriores.
Se acreditamos que as neuroses não diferem, em qualquer aspecto essencial, do
normal, o seu estudo promete render valiosas contribuições para o conhecimento
do normal. Pode ser que assim descubramos os “pontos fracos” de uma organização
normal.
A suposição que acabamos de fazer encontra
confirmação. As experiências analíticas nos ensinam que existe, de fato, uma
exigência instintiva para com a qual as tentativas de com ela lidar muito
facilmente fracassam ou conseguem um sucesso insatisfatório, e que há um
período da vida que aparece exclusiva ou predominantemente em conexão com a
geração de uma neurose. Esses dois fatores - a natureza do instinto e o período
de vida relacionado - exigem consideração separada, embora estejam intimamente
ligados.
Podemos falar com um bom grau de certeza sobre
o papel desempenhado pelo período da vida. Parece que as neuroses são
adquiridas somente na tenra infância (até a idade de seis anos), ainda que seus
sintomas possam não aparecer até muito mais tarde. A neurose da infância pode
tornar-se manifesta por um curto tempo ou pode mesmo nem ser notada. Em todo
caso, a doença neurótica posterior se liga ao prelúdio na infância. É possível
que aquelas que são conhecidas como neuroses traumáticas (devido a um susto
excessivo ou graves choques somáticos, tais como desastres ferroviários,
soterramentos, etc.) constituem exceção a isto; suas relações com determinantes
na infância até aqui fugiram à investigação. Não há dificuldade em explicar
esta preferência etiológica pelo primeiro período da infância. As neuroses são,
como sabemos, distúrbios do ego e não é de admirar que o ego, enquanto é débil,
imaturo e incapaz de resistência, fracasse em lidar com tarefas que,
posteriormente, seria capaz de enfrentar com a máxima facilidade. Nessas
circunstâncias, exigências instintivas provenientes do interior, não menos que
excitações oriundas do mundo externo, operam como “traumas”, particularmente se
certas disposições inatas as vão encontrar a meio caminho. O ego desamparado
defende-se delas por meio de tentativas de fuga (repressões), que
posteriormente se mostram ineficazes e que envolvem restrições permanentes ao
futuro desenvolvimento. O dano infligido ao ego por suas primeiras experiências
dá-nos a impressão de ser desproporcionadamente grande, mas podemos fazer uma
analogia com as diferenças dos resultados produzidos pela picada de uma agulha
numa massa de células no ato da divisão celular (como nas experiências de Roux)
e no animal crescido que se desenvolveu a partir delas. Nenhum indivíduo humano
é poupado de tais experiências traumáticas; nenhum escapa às repressões a que
elas dão origem. Essas reações discutíveis por parte do ego podem talvez ser
indispensáveis para a consecução de outro objetivo que é estabelecido para o
mesmo período da vida: no espaço de poucos anos, a pequena criatura primitiva
deve transformar-se num ser humano civilizado; ela tem de atravessar um período
imensamente longo de desenvolvimento cultural humano de uma forma abreviada de
maneira quase misteriosa. Isso se torna possível pela disposição hereditária,
mas quase nunca pode ser conseguido sem o auxílio adicional da educação, da
influência parental, que, como precursora do superego, restringe a atividade do
ego mediante proibições e punições, e incentiva ou força o estabelecimento de
repressões. Não devemos, portanto, esquecer de incluir a influência da
civilização entre os determinantes da neurose. É fácil, como podemos ver, a um
bárbaro ser sadio; para um homem civilizado, a tarefa é árdua. O desejo de um
ego poderoso e desinibido pode parecer-nos inteligível, mas, tal como nos é
ensinado pelos tempos em que vivemos, ele é, no sentido mais profundo, hostil à
civilização. E visto que as exigências da civilização são representadas pela
educação familiar, não devemos esquecer o papel desempenhado por essa
característica biológica da espécie humana - o prolongado período de sua
dependência infantil - na etiologia das neuroses.
Com referência ao outro ponto - o fator instintivo
específico - deparamo-nos com uma discrepância interessante entre a teoria e a
experiência. Teoricamente, não há objeção a supor que qualquer tipo de
exigência instintiva possa ocasionar as mesmas repressões e suas conseqüências,
mas nossa observação demonstra-nos, invariavelmente, até onde podemos julgar,
que as excitações que desempenham esse papel patogênico se originam dos
instintos componentes da vida sexual. Os sintomas das neuroses, poder-se-ia
dizer, são, sem exceção, ou uma satisfação substitutiva de algum impulso sexual
ou medidas para impedir tal satisfação, e, via de regra, são conciliações entre
as duas, do tipo que ocorre em consonância com as leis que operam entre
contrários, no inconsciente. A lacuna em nossa teoria não pode, presentemente,
ser preenchida e nossa decisão torna-se mais difícil pelo fato de a maioria dos
impulsos da vida sexual não ser de natureza puramente erótica, mas surgir de
combinações do instinto erótico com partes do instinto destrutivo. Mas não se
pode duvidar de que os instintos que se manifestam fisiologicamente como
sexualidade desempenham um papel preeminente e inesperadamente grande na
causação das neuroses - se é um papel exclusivo, é o que resta a ser decidido.
Deve-se também ter em mente que, no curso do desenvolvimento cultural, nenhuma
outra função foi tão enérgica e extensamente repudiada como precisamente a
função sexual. A teoria tem de satisfazer-se com algumas alusões que revelam
uma conexão mais profunda: o fato de que o primeiro período da infância,
durante o qual o ego começa a diferenciar-se do id, é também o período da
primeira eflorescência sexual, que chega a um fim com o período de latência; o
de que dificilmente pode ser fortuito que este momentoso período inicial mais
tarde venha a ser vítima da amnésia infantil, e, por fim, o de que as
modificações biológicas na vida sexual (tais como o início difásico da unção
que já mencionamos, o desaparecimento do caráter periódico da excitação sexual
e a transformação na relação entre menstruação feminina e excitação masculina)
- o de que essas inovações na sexualidade devem ter sido de alta importância na
evolução dos animais para o homem. Deixa-se para a ciência do futuro reunir
numa nova compreensão esses dados ainda isolados. Não é na Psicologia, mas na
Biologia, que há uma lacuna aqui. Não estaremos errados, talvez, em dizer que o
ponto fraco na organização do ego parece residir em sua atitude para com a
função sexual, como se a antítese biológica entre autopreservação e preservação
da espécie houvesse encontrado expressão psicológica neste ponto.
A experiência analítica convenceu-nos da
completa verdade da afirmação, ouvida com tanta freqüência, de que a criança
psicologicamente é pai do adulto e de que os acontecimentos de seus primeiros
anos são de importância suprema em toda a sua vida posterior. Terá, assim,
interesse especial para nós algo que possa ser descrito como a experiência
central deste período da infância. Nossa atenção é atraída primeiro pelos
efeitos de certas influências que não se aplicam a todas as crianças, embora
sejam bastante comuns - tais como o abuso sexual de crianças por adultos, sua
sedução por outras crianças (irmãos ou irmãs) ligeiramente mais velhas que elas
e, o que não esperaríamos, ficarem elas profundamente excitadas por ver ou
ouvir, em primeira mão, um comportamento sexual entre adultos (seus pais),
principalmente numa época em que não se pensaria que pudessem interessar-se por
tais impressões ou compreendê-las, ou serem capazes de recordá-las mais tarde.
É fácil confirmar até onde essas experiências despertam a suscetibilidade de
uma criança e forçam os seus próprios impulsos sexuais para certos canais dos
quais depois não se podem safar. Visto essas impressões estarem sujeitas à
repressão, seja em seguida, seja logo que buscam retornar como lembranças,
constituem elas o determinante para a compulsão neurótica que depois tornará
impossível ao ego controlar a função sexual e provavelmente o fará voltar as
costas permanentemente a essa função. Se ocorre esta última reação, o resultado
será uma neurose; se não ocorre, desenvolver-se-á uma variedade de perversões,
ou a função, que é de importância imensa não apenas para a reprodução, mas
também para toda a modelação da vida, tornar-se-á impossível de manejar.
Por mais instrutivos que casos desse tipo
possam ser, um grau ainda mais alto de interesse deve ligar-se à influência de
uma situação pela qual toda criança está destinada a passar e que decorre
inevitavelmente do fato de ser ela cuidada por outras pessoas e viver com os
pais durante um período prolongado. Estou pensando no complexo de Édipo,
assim denominado porque sua substância essencial pode ser encontrada na lenda
grega do rei Édipo, a qual felizmente pôde chegar até nós na versão de um
grande dramaturgo. O herói grego matou o pai e tomou a mãe como esposa. Que
assim tenha procedido inintencionalmente, visto não os conhecer como pais,
constitui um desvio dos fatos analíticos que podemos facilmente compreender e
que, na verdade, reconheceremos como inevitável.
Neste ponto, temos de fazer relatos separados
do desenvolvimento de meninos e meninas (de indivíduos dos sexos masculino e
feminino), pois é agora que a diferença entre os sexos encontra expressão
psicológica pela primeira vez. Defrontamo-nos aqui com o grande enigma do fato
biológico da dualidade dos sexos: trata-se de um fato supremo para o nosso
conhecimento; ele desafia qualquer tentativa de remontá-lo a algo mais. A
Psicanálise não contribuiu em nada para o esclarecimento deste problema, que,
não há dúvida, incide de todo na área da Biologia. Na vida mental, encontramos
apenas reflexos desta grande antítese e sua interpretação torna-se mais difícil
pelo fato, há muito suspeitado, de que ninguém se limita às modalidades de
reação de um único sexo; há sempre lugar para as dos sexo oposto, da mesma
maneira que o corpo carrega, juntamente com os órgãos plenamente desenvolvidos
de determinado sexo, rudimentos atrofiados, e com freqüência inúteis, dos do
outro. Para distinguir entre masculino e feminino, na vida mental, usamos o que
é, sem dúvida alguma, uma equação empírica, convencional e inadequada: chamamos
de masculino tudo o que é forte e ativo, e de feminino tudo o que é fraco e
passivo. Este fato da bissexualidade psicológica dificulta também todas as nossas
investigações sobre o assunto e torna-as mais difíceis de descrever.
O primeiro objeto erótico de uma criança é o
seio da mãe que a alimenta; a origem do amor está ligada à necessidade
satisfeita de nutrição. Não há dúvida de que, inicialmente, a criança não
distingue entre o seio e o seu próprio corpo; quando o seio tem de ser separado
do corpo e deslocado para o “exterior”, porque a criança tão
freqüentemente o encontra ausente, ele carrega consigo, como um “objeto”,
uma parte das catexias libidinais narcísicas originais. Este primeiro objeto é
depois completado na pessoa da mãe da criança, que não apenas a alimenta, mas
também cuida dela e, assim, desperta-lhe um certo número de outras sensações
físicas, agradáveis e desagradáveis. Através dos cuidados com o corpo da
criança, ela se torna seu primeiro sedutor. Nessas duas relações reside a raiz
da importância única, sem paralelo, de uma mãe, estabelecida inalteravelmente
para toda a vida como o primeiro e mais forte objeto amoroso e como protótipo
de todas as relações amorosas posteriores - para ambos os sexos. Em tudo isso,
o fundamento filogenético leva tanto a melhor sobre a experiência acidental da
pessoa, que não faz diferença que uma criança tenha realmente sugado o seio ou
sido criada com mamadeira e nunca desfrutado da ternura do cuidado de uma mãe.
Em ambos os casos, o desenvolvimento da criança toma o mesmo caminho; pode ser
que, no segundo caso, seu anseio posterior torne-se ainda mais forte. E, por
mais tempo que tenha sido amamentada ao seio materno, ficará sempre com a
convicção, depois de ter sido desmamada, de que sua amamentação foi breve e
muito pouca.
Este prefácio não é supérfluo, pois ele pode
elevar nossa compreensão da intensidade do complexo de Édipo. Quando um menino
(a partir da idade de dois ou três anos) ingressou na fase fálica de seu
desenvolvimento libidinal, está sentindo sensações prazerosas em seu órgão
sexual e aprendeu a proporcionar-se essas sensações à vontade, mediante a
estimulação manual, ele se torna o amante da mãe. Quer possuí-la fisicamente,
das maneiras que adivinhou de suas observações e intuições sobre a vida sexual,
e tenta seduzi-la mostrando-lhe o órgão masculino que está orgulhoso de
possuir. Numa palavra, a sua masculinidade, precocemente despertada, procura
ocupar o lugar do pai junto a ela; este, até aqui, seja como for, constituía um
modelo invejado para o menino, devido à força física que nele percebe e à
autoridade de que o acha investido. O pai agora se torna um rival que se
interpõe em seu caminho e de quem gostaria de livrar-se. Se, enquanto o pai
está ausente, é permitido à criança partilhar do leito da mãe e se, quando ele
volta, ela é mais uma vez afastada, a sua satisfação quando o pai desaparece e
o seu desapontamento quando surge novamente são experiências profundamente
sentidas. Este é o tema do complexo de Édipo que a lenda grega traduziu do
mundo da fantasia de uma criança para a suposta realidade. Nas condições de
nossa civilização, ele está invariavelmente fadado a um fim assustador.
A mãe do menino compreende muito bem que a
excitação sexual dele relaciona-se com ela, mais cedo ou mais tarde reflete que
não é correto permitir-lhe continuar. Pensa estar fazendo certo proibindo-lhe
manipular seu órgão genital. Sua proibição tem pouco efeito; no máximo,
ocasiona uma certa modificação em seu método de obter satisfação. Por fim, a
mãe adota medidas mais severas; ameaça tirar fora dele a coisa com que a está
desafiando. Geralmente, a fim de tornar a ameaça mais assustadora e mais
crível, delega a execução ao pai do menino, dizendo que contará a este e que
ele lhe cortará fora o pênis. É estranho dizer que esta ameaça funciona somente
se outra condição foi preenchida antes ou depois dela. Em si própria, parece
inconcebível demais para o menino que tal coisa possa acontecer. Entretanto, se
na ocasião da ameaça ele pode recordar a aparência dos órgãos genitais
femininos ou se pouco depois tem uma visão deles - de órgãos genitais, equivale
a dizer, a que falta realmente essa parte supremamente valorizada, então ele
toma a sério que ouviu e, caindo sob a influência do complexo de castração,
experimenta o trauma mais sério de sua vida em início.
Os resultados da ameaça de castração são
multifários e incalculáveis; afetam a totalidade das relações do menino com o
pai e a mãe e, mais tarde, com os homens e as mulheres em geral. Via de regra,
a masculinidade da criança é incapaz de resistir a este primeiro choque. A fim
de preservar seu órgão sexual, ele renuncia à posse da mãe de modo mais ou menos
completo; sua vida sexual com freqüência fica permanentemente dificultada pela
proibição. Se um forte componente feminino, tal como o chamamos, acha-se
presente nele, a força deste é aumentada por esta intimidação de sua
masculinidade. Ele cai numa atitude passiva para com o pai, tal como a que
atribui à mãe. É verdade que, em conseqüência da ameaça, abandonou a
masturbação, mas não as atividades de sua imaginação que a acompanhavam. Pelo
contrário, visto serem esta agora a única forma de satisfação sexual que lhe
resta, entrega-se a elas mais do que antes e, nessas fantasias, embora ainda
continue a identificar-se com o pai, também se identifica, simultânea e talvez
predominantemente, com a mãe. Derivados e produtos modificados dessas primeiras
fantasias masturbatórias geralmente abrem caminho em seu futuro ego e
desempenham um papel na formação de seu caráter. Independentemente deste
encorajamento de sua feminilidade, o medo e o ódio do pai cresceram muito em
intensidade. A masculinidade do menino se retrai, por assim dizer, numa atitude
desafiadora em relação ao pai, a qual dominará o seu comportamento posterior,
na sociedade humana, de maneira compulsiva. Um resíduo de sua fixação erótica
na mãe com freqüência subsiste sob a forma de uma dependência excessiva dela, e
isto persiste como uma espécie de servidão às mulheres.Ele não mais se aventura
a amar a mãe, mas não pode correr o risco de não ser amado por ela, pois, nesse
caso, ficaria em perigo de ser por ela traído e entregue ao pai para a
castração. A experiência completa, com todos os seus antecedentes e
conseqüências, dos quais minha descrição só pôde dar uma seleção, é submetida a
uma repressão altamente enérgica, e, tal como se torna possível pelas leis que
operam no id inconsciente, todos os impulsos e reações emocionais mutuamente
conflitantes que estão sendo postos em movimento nessa ocasião são preservados
no inconsciente e ficam prontos a perturbar o desenvolvimento posterior do ego,
após a puberdade. Quando o processo somático de maturação sexual dá nova vida
às antigas fixações libidinais que aparentemente haviam sido superadas, a vida
sexual mostrará ser inibida, sem homogeneidade e dividida em impulsos
mutuamente conflitantes.
Está fora de dúvida, é verdade, que o impacto
da ameaça de castração sobre a vida sexual incipiente de um menino nem sempre
tem essas conseqüências temíveis. Dependerá, mais uma vez, das relações quantitativas,
de quanto dano é causado e de quanto é evitado. Toda a ocorrência, que pode
provavelmente ser encarada como a experiência central dos anos de infância,o
maior problema do início da vida e a fonte mais intensa de inadequação
posterior, é tão completamente esquecida que sua reconstrução, durante o
trabalho de análise, se defronta nos adultos com a descrença mais decidida. Na
verdade, a aversão a ela é tão grande que as pessoas tentam silenciar qualquer
menção ao assunto proscrito e os mais óbvios lembretes dele são menosprezados
por uma estranha cegueira intelectual. Pode-se ouvir objetar, por exemplo, que
a lenda do rei Édipo não tem de fato nenhuma conexão com a construção feita
pela análise: os casos são inteiramente diferentes, visto Édipo não saber que o
homem a quem matara era seu pai e a mulher com que casara era sua mãe. O que
não se leva em conta aí é que uma deformação desse tipo é inevitável se se faz
uma tentativa de manejo poético do material, e que não há introdução de
material estranho, mas apenas um emprego hábil dos fatores apresentados pelo
tema. A ignorância de Édipo constitui representação legítima do estado
inconsciente em que, para os adultos, toda a experiência caiu, e a força
coercitiva do oráculo, que torna ou deveria tornar inocente o herói, é um
reconhecimento da inevitabilidade do destino que condenou todo filho a passar
pelo complexo de Édipo. Foi ainda ressaltado, por parte das fileiras
psicanalíticas, quão facilmente o enigma de outro herói dramático, o
procrastinador de Shakespeare, Hamlet, pode ser solucionado tendo como ponto de
referência o complexo de Édipo, desde que o príncipe fracassou na tarefa de
punir outrem pelo que coincidia com a substância de seu próprio desejo edipiano
- em conseqüência do que a falta geral de compreensão por parte do mundo
literário demonstrou quão pronto está o grosso da humanidade a aferrar-se às
suas repressões infantis.Entretanto, mais de um século antes do surgimento da
Psicanálise, o filósofo francês Diderot deu testemunho da importância do
complexo de Édipo, ao expressar a diferença entre os mundos primitivo e
civilizado nesta frase: “Si le peti sauvage était abandonné à lui même, qu’il
conservât toute son imbécilité, et qu’il réunît au peu de raison de l’enfant au
berceau la violence des passions de l’homme de trente ans, il tordrait le col à
son père et coucherait avec sa mère” Aventuro-me a dizer que, se a Psicanálise
não pudesse gabar-se de mais nenhuma realização além da descoberta do complexo
de Édipo reprimido, só isso já lhe daria direito a ser incluída entre as
preciosas nova aquisições da humanidade.
Os efeitos do complexo de castração nas meninas
são mais uniformes e não menos profundos. Uma criança do sexo feminino,
naturalmente, não tem necessidade de recear a perda do pênis; ela reage,
todavia, ao fato de não ter recebido um. Desde o início, inveja nos meninos a
posse dele; pode-se dizer que todo o seu desenvolvimento se realiza à sombra da
inveja do pênis. Ela começa por efetuar vãs tentativas de fazer o mesmo que os
meninos e, mais tarde, com maior sucesso, faz esforços por compensar a sua
falta - esforços que podem conduzir, afinal, a uma atitude feminina normal. Se,
durante a fase fálica, tenta obter prazer com um menino, pela estimulação
manual de seus órgãos genitais, com freqüência acontece fracassar em obter
satisfação suficiente e estende os julgamentos de inferioridade de seu pênis atrofiado
a todo o seu eu (self). Via de regra, cedo desiste da masturbação, visto
não ter desejos de ser lembrada da superioridade de seu irmão ou companheiro de
brincadeiras, e volta as costas completamente à sexualidade.
Se uma menina persiste em seu primeiro desejo -
transformar-se em menino - em casos extremos, acabará homossexual manifesta,
ou, doutra maneira, apresentará traços marcantemente masculinos no
encaminhamento de sua vida futura, escolherá uma vocação masculina, e assim por
diante. O outro caminho é feito através do abandono da mãe que amou: a filha,
sob a influência de sua inveja do pênis, não pode perdoar à mãe havê-la trazido
ao mundo tão insuficientemente aparelhada. Em seu ressentimento por isto,
abandona a mãe e coloca em lugar dela outra pessoa, como objeto de seu amor - o
pai. Se se perdeu um objeto amoroso, a reação mais óbvia é identificar-se com
ele, substituí-lo dentro de si própria, por assim dizer, mediante a
identificação. Este mecanismo vem agora em auxílio da menina. A identificação
com a mãe pode ocupar o lugar da ligação com ela. A filha se põe no lugar da
mãe, como sempre fizera em seus brinquedos; tenta tomar o lugar dela junto ao
pai e começa a odiar a mãe que costumava amar, e isso por dois motivos: por
ciúme e por mortificação pelo pênis que lhe foi negado. Sua nova relação com o
pai pode começar tendo por conteúdo um desejo de ter o pênis dele à sua
disposição, mas culmina noutro desejo - ter um filho dele como um presente. O
desejo de um bebê ocupou assim o lugar do desejo de um pênis, ou, pelo menos,
dele foi dissociado e expelido (split off).
É interessante que a relação entre o complexo
de Édipo e o complexo de castração assuma forma tão diferente - uma forma
oposta, na realidade - no caso das mulheres, quando comparada com a dos homens.
Nos indivíduos do sexo masculino, como vimos, a ameaça de castração dá fim ao
complexo de Édipo; nas mulheres, descobrimos que, ao contrário, é a falta de um
pênis que as impele ao seu complexo de Édipo. Pouco prejuízo é causado a uma
mulher se ela permanece em sua atitude edipiana feminina. (O termo “complexo de
Electra’’ foi proposto para esta.) Nesse caso, escolherá o marido pelas
características paternas dele e estará pronta a reconhecer a sua autoridade. O
seu anseio de possuir um pênis, que é, na realidade, insaciável, pode encontrar
satisfação se ela for bem-sucedida em completar o seu amor pelo órgão
estendendo-o ao portador do órgão, tal como aconteceu anteriormente, quando
progrediu do seio da mãe para a mãe como uma pessoa completa.
Se perguntarmos a um analista o que a sua
experiência demonstrou serem as estruturas mentais menos acessíveis à
influência em seus pacientes, a resposta será: numa mulher, o desejo de um
pênis; num homem, a atitude feminina para com o seu próprio sexo, cuja
pré-condição, naturalmente, seria a perda do pênis.
PARTE III - O RENDIMENTO TEÓRICO
CAPÍTULO VIII - O APARELHO PSÍQUICO E O MUNDO EXTERNO
Todas as descobertas e hípoteses gerais que
apresentei no primeiro capítulo foram feitas através de um pormenorizado
trabalho laborioso e paciente, do tipo de que dei um exemplo no capítulo
anterior. Podemos agora ceder à tentação de fazer um levantamento das
ampliações de conhecimentos que conseguimos através de um trabalho como esse e
considerar quais os caminhos que abrimos para avanços ulteriores. Em relação a
isto, nos impressiona o fato de termos sido obrigados, com tanta freqüência, a
aventurar-nos além das fronteiras da ciência da Psicologia. Os fenômenos de que
estamos tratando não pertencem somente à Psicologia; têm um lado orgânico e
biológico também, e, por conseguinte, no decorrer de nossos esforços para
construir a Psicanálise, fizemos também algumas importantes descobertas
biológicas e não pudemos evitar a estruturação de novas hipóteses biológicas.
Por ora, porém, atenhamo-nos à Psicologia.
Vimos que não é cientificamente viável traçar uma linha de demarcação entre o
que é psiquicamente normal e anormal, de maneira que esta distinção, apesar de
sua importância prática, possui apenas um valor convencional. Estabelecemos
assim um direito a chegar a uma compreensão da vida normal da mente a partir do
estudo de seus distúrbios - o que não seria admissível se esses estados
patológicos, as neuroses e as psicoses, tivessem causas específicas operando à
maneira de corpos estranhos.
O estudo de um distúrbio mental que ocorre
durante o sono, que é passageiro e inofensivo, e que, na verdade, desempenha
uma função útil, nos deu uma chave para a compreensão das doenças mentais, que
são permanentes e prejudiciais à vida. E podemos agora aventurar-nos à
afirmação de que a psicologia da consciência não era mais capaz de compreender
o funcionamento normal da mente do que de compreender os sonhos. Os dados da
autopercepção consciente, os quais, somente eles, se achavam à sua disposição,
mostraram-se sob todos os aspectos inadequados para sondar a profusão e
complexidade dos processos da mente, para revelar as suas interligações e assim
reconhecer os determinantes de suas perturbações.
A hipótese que adotamos, de um aparelho
psíquico que se estende no espaço, convenientemente reunido, desenvolvido pelas
exigências da vida, que dá origem aos fenômenos da consciência somente em um
determinado ponto e sob certas condições - essa hipótese nos colocou em posição
de estabelecer a Psicologia em bases semelhantes às de qualquer outra ciência,
tal como, por exemplo, a Física. Em nossa ciência, tal como nas outras, o
problema é o mesmo: por trás dos atributos (qualidades) do objeto em exame que se
apresenta diretamente à nossa percepção, temos de descobrir algo que é mais
independente da capacidade receptiva particular de nossos órgãos sensoriais e
que se aproxima mais do que se poderia supor ser o estado real das coisas. Não
temos esperança de poder atingir esse estado em si mesmo, visto ser evidente
que tudo de novo que inferimos deve, não obstante, ser traduzido de volta para
a linguagem das nossas percepções, da qual nos é simplesmente impossível
libertar-nos. Mas aqui reside a verdadeira natureza e limitação de nossa
ciência. É como se devêssemos dizer, em Física: “Se pudéssemos ver de modo
bastante claro, descobriríamos que o que parece ser um corpo sólido é
constituído de partículas de tal e qual formato e tamanho, a ocupar tais e
quais posições relativas.” Enquanto isso, tentamos aumentar ao máximo possível
a eficiência de nossos órgãos sensoriais mediante auxílios artificiais, mas
pode-se esperar que todos os esforços desse tipo não conseguirão atingir o
resultado último. A realidade sempre permanecerá sendo “incognoscível”. O
rendimento trazido à luz pelo trabalho científico de nossas percepções
sensoriais primárias consistirá numa compreensão interna (insight) das
ligações e relações dependentes que estão presentes no mundo externo, que podem
de alguma maneira ser fidedignamente reproduzidas ou refletidas no mundo
interno de nosso pensamento, um conhecimento das quais nos capacita a
“compreender” algo no mundo externo, provê-lo e, possivelmente alterá-lo. O
nosso procedimento na Psicanálise é inteiramente semelhante. Descobrimos
métodos técnicos de preencher as lacunas existentes nos fenômenos de nossa
consciência e fazemos uso desse métodos exatamente como um físico faz uso da
experiência. Dessa maneira, inferimos um certo número de processos que são em
si mesmos “incognoscíveis” e os interpolamos naqueles que são conscientes para
nós. E se, por exemplo, dizemos: “Neste ponto, interveio uma lembrança
inconsciente”, o que queremos dizer é: “Neste ponto, ocorreu algo de que nos
achamos totalmente incapazes de formar uma concepção, mas que, se houvesse
penetrado em nossa consciência, só poderia ter sido descrito de tal e qual
maneira.” Nossa justificação por fazer tais inferências e interpolações e o
grau de certeza que a elas se liga naturalmente permanecem abertos à crítica em
cada caso individual, e não se pode negar que com freqüência é extremamente
difícil chegar a uma decisão - fato que encontra expressão na falta de
concordância entre analistas. A novidade do problema é que deve ser culpada por
isto - isto é, uma falta de treinamento. Mas, ao lado disso, há um fator
especial, inerente ao próprio assunto, pois na Psicologia, diferentemente da
Física, não estamos sempre interessados em coisas que só podem despertar um
frio interesse científico. Assim, não ficaremos muito surpresos se uma analista
que não ficou suficientemente convencida da intensidade de seu próprio desejo
de um pênis venha a fracassar também em dar uma importância correta a este
fator em suas pacientes. Mas tais fontes de erro, que se originam da equação
pessoal, não têm grande importância a longo prazo. Se se examinarem antigos
livros didáticos sobre o uso de microscópio, fica-se espantado ao descobrir as
extraordinárias exigências que se faziam à personalidade dos que efetuavam
observações com o instrumento, enquanto a sua técnica ainda era incipiente -
exigências da quais não se fala mais hoje.
Não posso pretender dar aqui um quadro completo
do aparelho psíquico e de suas atividades; eu seria impedido, entre outras
coisas, pela circunstância de que a Psicanálise ainda não teve tempo para
estudar igualmente todas essas funções. Vou-me contentar, portanto, com uma
recapitulação pormenorizada da descrição feita no capítulo inicial.
O âmago de nosso ser é, então, formado, pelo
obscuro id, que não tem comunicação direta com o mundo externo e só é
acessível, mesmo ao nosso conhecimento, mediante outro agente. Dentro de id
operam os instintos orgânicos, que são, eles próprios, compostos de
fusões de duas forças primevas (Eros e destrutividade) em proporções que variam
e se diferenciam umas das outras por sua relação com órgãos ou sistemas de
órgãos. O único e exclusivo impulso destes instintos é no sentido da
satisfação, a qual se espera que surja de certas modificações nos órgãos, com o
auxílio de objetos do mundo externo. Mas a satisfação imediata e desregrada dos
instintos, tal como o id exige, conduziria com freqüência a perigosos
conflitos com o mundo externo e à extinção. O id desconhece a solicitude acerca
da garantia de sobrevivência e desconhece igualmente a ansiedade, ou talvez
fosse mais correto dizer que, embora ele possa gerar os elementos sensoriais da
ansiedade, não pode utilizar-se deles. Os processos que são possíveis nos
supostos elementos psíquicos do id e entre eles (o processo primário)
diferem amplamente daqueles que nos são familiares, através da percepção
consciente, em nossa vida intelectual e emocional; tampouco estão eles sujeitos
às restrições críticas da lógica, que repudia alguns desses processos como
inválidos e busca desfazê-los.
O id, excluído do mundo externo, possui seu
próprio mundo de percepção. Ele detecta com extraordinária agudez certas
modificações em seu interior, especialmente oscilações na tensão de suas
necessidades instintivas, e essas modificações tornam-se conscientes como
sensações na série prazer-desprazer. É difícil dizer, com efeito, por que meios
e com a ajuda de que órgãos sensórios terminais essas percepções ocorrem. Mas é
fato estabelecido que as autopercepções - sensações cenestésicas e sensações de
prazer-desprazer - governam a passagem de acontecimentos no id com força
despótica. O id obedece ao inexorável princípio de prazer. Mas não o id
sozinho. Parece que também a atividade dos outros agentes psíquicos só é capaz
de modificar o princípio de prazer, mas não de anulá-lo, e permanece sendo
questão da mais alta importância teórica, questão que ainda não foi respondida,
quando e como é possível este princípio de prazer ser superado. A consideração
de que o princípio de prazer exige uma redução, no fundo a extinção, talvez,
das tensões das necessidades instintivas (isto é, o Nirvana) leva às
relações ainda não avaliadas entre o princípio de prazer e as duas forças
primevas, Eros e o instinto de morte.
A outra região da mente, que acreditamos
conhecer melhor e na qual nos reconhecemos mais facilmente - a que é conhecida
como ego -, desenvolveu-se a partir da camada cortical do id, que, por ser
adaptada à recepção e exclusão de estímulos, está em contato direto com o mundo
externo (realidade). Partindo da percepção consciente, ela submeteu à
sua influência regiões cada vez maiores e estratos cada vez mais profundos do
id, e, na persistência com que mantém sua dependência do mundo externo, traz a
marca indelével de sua origem (como se fosse “Made in Germany”) Sua função
psicológica consiste em levar a passagem [de acontecimentos] no id a um nível
dinâmico mais alto (talvez pela transformação de energia livremente móvel em
energia ligada, tal como corresponde ao estado pré-consciente); sua função
construtiva consiste em interpolar, entre a exigência feita por um instinto e a
ação que a satisfaz, a atividade de pensamento que, após orientar-se no
presente e avaliar experiências anteriores, se esforça, mediante ações
experimentais, por calcular as conseqüências do curso de ação proposto. Dessa
maneira, o ego chega a uma decisão sobre se a tentativa de obter satisfação
deve ser levada a cabo ou adiada, ou se não será necessário que a exigência do
instinto seja suprimida completamente por ser perigosa. (Temos aqui o princípio
de realidade.) Da mesma maneira que o id é voltado unicamente para a
obtenção de prazer, o ego é governado por considerações de segurança. O ego
estabeleceu-se a tarefa de autopreservação, que o id parece negligenciar. Ele
[o ego] faz uso das sensações de ansiedade como sinal de alerta dos perigos que
ameaçam a sua integridade. Uma vez que os traços anêmicos podem tornar-se
conscientes, tal como as percepções, especialmente mediante sua associação com
resíduos da fala, surge a possibilidade de uma confusão que conduziria a uma má
compreensão da realidade. O ego se guarda contra esta possibilidade pela
instituição do teste de realidade, que se permite cair em inatividade
temporária nos sonhos em virtude das condições predominantes no estado de sono.
O ego, que procura manter-se num meio ambiente de forças mecânicas esmagadoras,
é ameaçado por perigos que provêm, em primeira instância, da realidade externa,
mas perigos não o ameaçam somente daí. O seu próprio id é uma fonte de perigos semelhantes,
e isso por duas razões diferentes. Em primeiro lugar, uma intensidade excessiva
de instinto pode prejudicar o ego de maneira semelhante a um “estímulo”
excessivo proveniente do mundo externo. É verdade que aquela intensidade não
pode destruí-lo, mas pode destruir a sua organização dinâmica característica e
transformar o ego, novamente, numa parte do id. Em segundo lugar, a experiência
pode ter ensinado ao ego que a satisfação de alguma exigência instintiva, que
não seja em si própria insuportável, envolveria perigos no mundo externo, de
maneira que uma exigência instintiva desse tipo torna-se, ela própria, um
perigo. Assim, o ego combate em duas frentes: tem de defender sua existência
contra um mundo externo que o ameaça com a aniquilação, assim como contra um
mundo interno que lhe faz exigências excessivas. Ele adota os mesmos métodos de
defesa contra ambos, mas a sua defesa contra o inimigo interno é
particularmente inadequada. Em conseqüência de haver sido originalmente
idêntico a este último inimigo e de ter vivido com ele, desde então, nos termos
mais íntimos, o ego tem grande dificuldade de escapar aos perigos internos.
Eles persistem como ameaças, mesmo que possam ser temporariamente subjugados.
Já vimos como o fraco e imaturo ego, no primeiro
período da infância, é permanentemente prejudicado pelas tensões a que é
submetido em seus esforços de desviar os perigos que são peculiares a esse
período da vida. As crianças são protegidas contra os perigos que as ameaçam do
mundo externo pela solicitude dos pais; pagam esta segurança com um temor de perda
de amor que as deixaria desamparadas face aos perigos do mundo externo.
Este fator exerce influência decisiva no resultado do conflito quando um menino
se encontra na situação do complexo de Édipo, no qual a ameaça ao seu
narcisismo representada pelo perigo da castração, reforçado desde fontes
primevas, se apossa dele. Impulsionada pela operação combinada dessa duas
influências, o perigo real e presente e o perigo relembrado com sua base
filogenética, a criança embarca em suas tentativas de defesa - repressões - que
são momentaneamente eficazes, mas que, todavia, se tornam psicologicamente
inadequadas quando a reanimação posterior da vida sexual traz reforço às
exigências instintivas que haviam sido repudiada no passado. Se as coisas são
assim, teria de ser dito, de um ponto de vista biológico, que o ego fracassa na
tarefa de dominar as excitações do período sexual primitivo, numa época em que
sua imaturidade o torna incompetente para fazê-lo. É nesse atraso do
desenvolvimento do ego em relação ao desenvolvimento libidinal que vemos a
pré-condição essencial da neurose, e não podemos fugir à conclusão de que as
neuroses poderiam ser evitadas se se poupasse ao ego infantil essa tarefa -
isto é, se à vida sexual da criança fosse concedida liberdade de ação, como
acontece entre muitos povos primitivos. Pode ser que a etiologia das doenças
neuróticas seja mais complicada do que aqui a descrevemos; se assim for, pelo
menos chamamos a atenção para uma parte essencial do complexo etiológico.
Tampouco devemos esquecer as influências filogenéticas, que se acham
representadas de alguma maneira no id, sob formas que ainda não somos capazes
de apreender, e que devem certamente agir sobre o ego mais poderosamente nesse
período primitivo do que mais tarde. Por outro lado, desponta em nós a
compreensão de que essa tentativa precoce de represar o instinto sexual, um
partidarismo tão decidido por parte do incipiente ego em favor do mundo
externo, em oposição ao mundo interno, ocasionado pela proibição da sexualidade
infantil, não pode deixar de ter efeito na disposição posterior do indivíduo
para com a cultura. As exigências instintivas forçadas a afastar-se da
satisfação direta são compelidas a ingressar em novos caminhos que conduzem à
satisfação substituta, e, no curso desses détours, podem tornar-se
dessexualizadas e a sua vinculação com seus objetivos instintivos originais
pode tornar-se mais frouxa. E, neste ponto, podemos antecipar a tese de que
muitos dos bens altamente valorizados de nossa civilização foram adquiridos à
custa da sexualidade e através da restrição das força motivadoras
sexuais.Repetidamente tivemos de insistir no fato de que o ego deve a sua
origem, bem como a mais importante de suas características adquiridas, à sua
relação com o mundo externo real. Estamos assim preparados para presumir que os
estados patológicos do ego, nos quais ele mais se aproxima novamente do id,
fundamentam-se numa cessação ou num afrouxamento dessa relação com o mundo
externo. Isto harmoniza-se muito bem com o que aprendemos da experiência
clínica - a saber, que a causa precipitadora da irrupção de uma psicose é ou
que a realidade tornou-se insuportavelmente penosa ou que os instintos se
tornaram extraordinariamente intensificados - ambas as quais, em vista das
reivindicações rivais feitas ao ego pelo id e pelo mundo externo, devem
conduzir ao mesmo resultado. O problema das psicoses seria simples e claro se o
desligamento do ego em relação à realidade pudesse ser levado a cabo completamente.
Mas isso parece só acontecer raramente ou, talvez, nunca. Mesmo num estado tão
afastado da realidade do mundo externo como o de confusão alucinatória,
aprende-se com os pacientes, após seu restabelecimento, que, na ocasião, em
algum canto da mente (como o dizem) havia uma pessoa normal escondida, a qual,
como um espectador desligado, olhava o tumulto da doença passar por ele. Não
sei se podemos presumir que isso seja assim em geral, mas posso relatar o mesmo
de outras psicoses com um curso menos tempestuoso. Recordo um caso de paranóia
crônica em que, após cada crise de ciúmes, um sonho transmitia ao analista uma
representação correta da causa precipitadora, livre de qualquer delírio. Um
contraste interessante foi assim trazido à luz: embora estejamos acostumados a
descobrir, nos sonhos dos neuróticos, ciúmes que são alheios à vida desperta,
neste caso psicótico o delírio que dominava o paciente durante o dia era
corrigido pelo sonho. Podemos provavelmente tomar como verdadeiro, de modo
geral, que o que ocorre em todos esses casos é uma divisão (split)
psíquica. Duas atitudes psíquicas formaram-se, em vez de uma só - uma delas, a
normal, que leva em conta a realidade, e outra que, sob a influência dos
instintos, desliga o ego da realidade. As duas coexistem lado a lado. O
resultado depende da sua força relativa. Se a segunda é ou se torna a mais
forte, a pré-condição necessária para uma psicose acha-se presente. Se a
relação é invertida, há então uma cura aparente do distúrbio delirante. Na realidade,
ele apenas se retira para o inconsciente - tal como numerosas observações nos
levam a acreditar que o delírio existia, já pronto, muito tempo antes de sua
irrupção manifesta.
O ponto de vista que postula que em todas as
psicoses há uma divisão do ego (splitting of the ego) não poderia chamar
tanta atenção se não se revelasse passível de aplicação a outros estados mais
semelhantes às neuroses e, finalmente, às próprias neuroses. Esta anormalidade,
que pode ser englobada entre as perversões, baseia-se, como é bem sabido, em o
paciente (que é quase sempre do sexo masculino) não reconhecer o fato de que as
mulheres não possuem pênis - fato que lhe é extremamente indesejável, visto
tratar-se de uma prova da possibilidade de ele próprio ser castrado. Nega, portanto,
a sua própria percepção sensorial, que lhe mostrou que falta um pênis aos
genitais femininos, e aferra-se à convicção contrária. A percepção negada,
contudo, não fica inteiramente sem influência, pois, apesar de tudo, ele não
tem a coragem de afirmar que realmente viu um pênis. Em vez disso, o paciente
apodera-se de alguma outra coisa - uma parte do corpo ou algum outro objeto - e
lhe atribui o papel do pênis sem o qual não pode passar. Trata-se geralmente de
algo que ele realmente viu no momento em que viu os genitais femininos, ou
então é algo que pode apropriadamente servir como substituto simbólico do
pênis. Ora, seria incorreto descrever este processo, quando um fetiche é
construído, como divisão do ego; ele é uma conciliação formada com a ajuda do
deslocamento, tal como aquela com que nos familiarizamos nos sonhos. Mas nossas
observações nos revelam ainda mais. A criação do fetiche foi devida a uma
intenção de destruir a prova da possibilidade de castração, de maneira a que o
temor desta possa ser evitado. Se os indivíduos do sexo feminino, como outras
criaturas vivas, possuem um pênis, não há necessidade de temer pela posse
continuada do próprio pênis. Ora, deparamo-nos com fetichistas que
desenvolveram o mesmo temor da castração dos não-fetichistas e reagem da mesma
maneira a ela. O seu comportamento, portanto, expressa simultaneamente duas
premissas contrárias. Por um lado, negam o fato de sua percepção - o fato de
que não viram pênis nos genitais femininos - e, por outro, reconhecem o fato de
que as mulheres não possuem pênis e tiram dele as conclusões corretas. As duas
atitudes persistem lado a lado durante toda a vida, sem se influenciarem
mutuamente. Temos aqui o que pode ser corretamente chamado de divisão do ego.
Esta circunstância também capacita-nos a compreender como é que o fetichismo,
com tanta freqüência, é apenas parcialmente desenvolvido. Ele não governa
exclusivamente a escolha de objeto, mas deixa lugar para um maior ou menor
comportamento sexual normal; às vezes, na verdade, contenta-se com o desempenho
de um papel modesto ou se limita a uma mera alusão. Nos fetichistas, portanto,
o desligamento do ego em relação à realidade do mundo externo nunca alcançou
êxito completo.
Não se deve pensar que o fetichismo apresente
um caso excepcional com referência à divisão do ego; trata-se simplesmente de
um tema particularmente favorável para estudar a questão. Voltemos à nossa tese
de que o ego da criança, sob o domínio do mundo real, livra-se das exigências
instintivas indesejáveis através do que é chamado de repressões.
Suplementaremos agora isto afirmando ainda que, durante o mesmo período da
vida, o ego com bastante freqüência se encontra em posição de desviar alguma
exigência do mundo externo que acha aflitiva e que isto é feito por meio de uma
negação das percepções que trazem ao conhecimento essa exigência oriunda
da realidade. Negações desse tipo ocorrem com muita freqüência e não apenas com
fetichistas e, sempre que nos achamos em posição de estudá-las, revelam ser
meias-medidas, tentativas incompletas de desligamento da realidade. A negação é
sempre suplementada por um reconhecimento: duas atitudes contrárias e
independentes sempre surgem e resultam na situação de haver uma divisão do ego.
Mais uma vez, o resultado depende de qual das duas pode apoderar-se da maior
intensidade.
Os fatos desta divisão do ego, que acabamos de
descrever, não são tão novos nem tão estranhos quanto podem a princípio
parecer. É, na verdade, uma característica universal das neuroses que estejam
presentes na vida mental do indivíduo, em relação a algum comportamento
particular, duas atitudes diferentes, mutuamente contrárias e independentes uma
da outra. No caso das neuroses, entretanto, uma dessas atitudes pertence ao ego
e a contrária, que é reprimida, pertence ao id. A diferença entre este caso e o
outro [examinado no parágrafo anterior] é essencialmente uma diferença
topográfica ou estrutural, e nem sempre é fácil decidir, num caso individual,
com qual das duas possibilidades se está lidando. Elas possuem, contudo, a
seguinte importante característica em comum. Seja o que for que o ego faça em
seus esforços de defesa, procure ele negar uma parte do mundo externo real ou
busque rejeitar uma exigência instintiva oriunda do mundo interno, o seu
sucesso nunca é completo e irrestrito. O resultado sempre reside em duas
atitudes contrárias, das quais a derrotada, a mais fraca, não menos que a
outra, conduz a complicações psíquicas. Para concluir, é necessário apenas
apontar quão pouco de todos estes processos se torna conhecido de nós através
de nossa percepção consciente.
CAPÍTULO IX - O MUNDO INTERNO
Não temos maneira de transmitir o conhecimento
de um conjunto complicado de acontecimentos simultâneos, a não ser
descrevendo-os sucessivamente, e assim acontece que todas as nossas descrições
são falhas, em princípio, devido à simplificação unilateral, e têm de esperar
até que possam ser suplementadas, elaboradas e corrigidas.
A representação de um ego que medeia entre o id
e o mundo externo, que assume as exigências instintivas daquele, a fim de
conduzi-las à satisfação, que deriva percepções do último e utiliza-as como
lembranças, que, concentrado em sua autopreservação, põe-se em defesa contra
reivindicações excessivamente intensas de ambos os lados, e que, ao mesmo
tempo, é guiado em todas as suas decisões pelas injunções de um princípio de
prazer modificado - essa representação, de ato, aplica-se ao ego apenas até o
fim do primeiro período da infância, até aproximadamente a idade de cinco anos.
Por volta dessa época, uma mudança importante se realizou. Uma parte do mundo
externo foi, pelo menos parcialmente, abandonada como objeto e foi, por
identificação, incluída no ego, tornando-se assim parte integrante do mundo
interno. Esse novo agente psíquico continua a efetuar as funções que até então
haviam sido desempenhadas pelas pessoas [os objetos abandonados] do mundo
externo: ele observa o ego, dá-lhe ordens, julga-o e ameaça-o com punições,
exatamente como os pais cujo lugar ocupou. Chamamos este agente de superego
e nos damos conta dele, em suas funções judiciárias, como nossa consciência.
É impressionante que o superego freqüentemente demonstre uma severidade para a
qual nenhum modelo foi fornecido pelos pais reais, e, ademais, que chame o ego
a prestar contas não apenas de suas ações, mas igualmente dos seus pensamentos
e intenções não executadas, das quais o superego parece ter conhecimento. Isso
nos lembra que o herói do mito de Édipo também sentia-se culpado pelas suas
ações e submeteu-se à autopunição, embora a força coercitiva do oráculo devesse
tê-lo isentado de culpa em nosso julgamento e no seu. O superego é, na verdade,
herdeiro do complexo de Édipo e só se estabelece após a pessoa haver-se
libertado desse complexo. Por essa razão, a sua excessiva severidade não segue
um modelo real, mas corresponde à força da defesa utilizada contra a tentação
do complexo de Édipo. Fora de dúvida, uma certa suspeita desse estado de coisas
reside, no fundo, na afirmação feita pelos filósofos e crentes de que o senso
moral não é instalado nos homens pela educação ou por eles adquirido na vida
social, mas lhes é implantado de uma fonte mais alta.
Enquanto o ego trabalha em plena harmonia com o
superego, não é fácil distinguir entre as suas manifestações, mas tensões e
desavenças entre eles fazem-se muito claramente visíveis. Os tormentos causados
pelas censuras da consciência correspondem precisamente ao medo da perda de
amor, por parte de uma criança, medo cujo lugar foi tomado pelo agente moral.
Por outro lado, se o ego resistiu com êxito à tentação de fazer algo que, para
o superego, seria censurável, ele sente-se elevado em sua auto-estima e
fortalecido em seu orgulho, como se houvesse feito alguma preciosa aquisição.
Dessa maneira, o superego continua a desempenhar o papel de um mundo externo
para o ego, embora se tenha tornado uma parte do mundo interno. Durante toda a
vida posterior, ele representa a influência da infância de uma pessoa, do
cuidado e da educação que lhe foram dados pelos pais e de sua dependência
destes - uma infância que é tão grandemente prolongada, nos seres humanos, por
uma vida familiar em comum. E, em tudo isso, não são apenas as qualidades
pessoais desses pais que se fazem sentir, mas também tudo o que teve um efeito
determinante sobre eles próprios, os gostos e padrões da classe social em que
viveram e as disposições e tradições inatas da raça da qual se originaram.
Aqueles que têm gosto por generalizações e distinções nítidas podem dizer que o
mundo externo, no qual o indivíduo se descobre exposto, após desligar-se dos
pais, representa o poder do presente; que o id, com suas tendências herdadas,
representa o passado orgânico, e que o superego, que vem a juntar-se a eles
posteriormente, representa, mais do que qualquer outra coisa, o passado
cultural, que uma criança tem por assim dizer, de repetir como pós-experiência
durante os poucos anos do início de sua vida. É pouco provável que essas
generalizações possam ser universalmente corretas. Alguma parte das aquisições
culturais indubitavelmente deixou um precipitado atrás de si no id; muita coisa
do que é contribuição do superego despertará eco no id; não poucas das novas
experiências da criança serão intensificadas por serem repetições de alguma
primeva vivência filogenética.
“Was du ererbt von deinen Vätern hast,Erwirb
es, um es zu besitzen.”Assim,
o superego assume uma espécie de posição intermediária entre o id e o mundo
externo; ele une em si as influências do presente e do passado. No
estabelecimento do superego, temos diante de nós, por assim dizer, um exemplo
da maneira como o presente se transforma no passado (…)
ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL (1937)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DIE
ENDLICHE UND DIE UNENDLICHE ANALYSE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1937 Int.
Z. Psychoanal., 23 (2), 209-40.
1950 G.
W., 16, 59-99.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Analysis
Terminable and Interminable’
1937 Int.
J. Psycho-Anal., 18 (4), 374-405. (Trad. de Joan Riviere.)
1950 C.P. 5, 316-57. (Reimpressão revista da
anterior.)
A presente tradução é uma versão modificada da
publicada em 1950. Os últimos oito e meio parágrafos da Seção VI do original
alemão foram reimpressos no outono de 1937, no Almanach der Psychoanalyse 1938,
44-50.
Este artigo foi escrito no começo de 1937 e
publicado em junho. Ele e o seguinte, sobre ‘Construções em Análise’ (1937d),
foram os últimos escritos estritamente psicanalíticos de Freud a serem
publicados em sua vida. Quase vinte anos se tinham passado desde que ele
publicara um trabalho puramente técnico, embora, naturalmente, tivesse tratado
de questões de técnica em seus outros escritos.
O principal exame anterior, por parte de Freud,
do funcionamento da terapia psicanalítica fora feito nas Conferências XXVII e
XXVIII das Introductory Lectures (1916-17). Retornara ao assunto, de modo
muitíssimo mais breve, na Conferência XXXIV das New Introductory Lectures
(1933a). Os leitores desses trabalhos anteriores ficam às vezes impressionados
por aquilo que parece constituir diferenças entre o presente artigo e seus
predecessores, e essas divergências aparentes exigem exame.
O artigo, como um todo, dá impressão de
pessimismo quanto à eficácia terapêutica da psicanálise. As limitações desta
são constantemente acentuadas, e insiste-se nas dificuldades do procedimento e
nos obstáculos que se interpõem em seu caminho. Na verdade, essas limitações
constituem seu tema principal. Na realidade, contudo, nada há de revolucionário
nisso. Freud sempre esteve bem ciente das barreiras ao sucesso da análise e
sempre se mostrou pronto a investigá-las. Ademais, sempre esteve ávido por
dirigir a atenção para a importância dos interesses não terapêuticos da
psicanálise, direção em que jaziam suas próprias preferências pessoais,
particularmente no último período de sua vida. Recordar-se-á que no breve
debate sobre a técnica nas New Introductory Lectures (1933a), ele
escrevera que ‘nunca fora um terapeuta entusiasta.’ (Standard Ed., 22,
151.) Assim, nada há de inesperado na fria atitude demonstrada neste artigo
para com as ambições terapêuticas da psicanálise ou na enumeração das
dificuldades com que ela se defronta. O que pode talvez causar mais surpresa
são alguns aspectos do exame, feito por Freud, da natureza e causas subjacentes
dessas dificuldades.
Deve-se notar, em primeiro lugar, que os
fatores para os quais ele chama grandemente a atenção são de natureza
fisiológica e biológica, sendo assim, em geral, insuscetíveis a influências
psicológicas. Desse tipo, por exemplo, são a relativa força ‘constitucional’
dos instintos,ver em ([1]),e a relativa fraqueza do ego, devido a causas
fisiológicas como a puberdade, a menopausa e a doença física ver em([1]).Mas o
fator impeditivo mais poderoso de todos, um fator que está além de qualquer
possibilidade de controle (ao qual algumas páginas do trabalho são dedicadas,ver
em [1],é o instinto de morte. Freud sugere aqui que este não é apenas, como
apontara em trabalhos anteriores, responsável por grande parte da resistência
encontrada na análise, mas que é, realmente, a causa suprema de conflito na
mente,ver em ([1]).Em tudo isso, contudo, mais uma vez nada há de
revolucionário. Freud pode estar dando ênfase maior do que a costumeira aos
fatores constitucionais entre as dificuldades com que a psicanálise se
defronta, mas ele sempre reconheceu sua importância.
Tampouco são novos quaisquer dos três fatores
que Freud seleciona aqui como ‘decisivos’ para o sucesso de nossos esforços
terapêuticos ver em ([1]):o prognóstico mais favorável dos casos de origem
‘traumática’, de preferência aos de ‘origem constitucional’; a importância das
considerações ‘quantitativas’, e a questão de uma ‘alteração do ego’. É sobre
esse terceiro ponto que muita luz nova é lançada no presente artigo. Em
descrições anteriores do processo terapêutico, um lugar essencial era sempre
atribuído a uma alteração no ego que deveria ser ocasionada pelo analista, como
preliminar à anulação das repressões do paciente (ver, por exemplo, a descrição
na Conferência XXVIII das Introductory Lectures, Standard Ed., 16, 455).
Quanto à natureza da alteração, e como ela podia ser efetuada, muito pouco era
sabido. Os recentes avanços na análise do ego, por parte de Freud, tornaram-lhe
agora possível levar a investigação mais adiante. A alteração terapêutica do
ego era agora vista mais como a anulação de alterações já presentes como
resultados do processo defensivo. E vale a pena lembrar que o fato das
alterações do ego ocasionadas por processos defensivos já fora mencionado por
Freud em data muito anterior. O conceito pode ser encontrado em seus estudos
dos delírios, em seu segundo artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1896b), Standard
Ed., 3, 185, e em diversos pontos de seu Rascunho K, ainda mais anterior
(Freud, 1950a), de 1º de janeiro de 1896. Posteriormente, a noção parece ter
ficado temporariamente inativa, a conexão entre anticatexias, formações
reativas e alterações do ego é claramente anunciada pela primeira vez em
Inhibitions, Symptoms and Anxiety (1926d), Standard Ed., 20, 157, 159 e
164. Reaparece nas New Introductory Lectures (1933a), ibid., 22, 90, e,
após longo exame dela no presente artigo, em Moisés e o Monoteísmo
(1939a),ver em [1], e finalmente, no Esboço de Psicanálise (1940a),ver
em [1], acima.
Há um aspecto, contudo, em que as opiniões
expressas por Freud neste trabalho parecem diferir de suas opiniões anteriores,
ou mesmo contradizê-las - a saber, o ceticismo por ele expresso em relação ao
poder profilático da psicanálise. Suas dúvidas estendem-se às perspectivas de
impedir não simplesmente a ocorrência de uma neurose nova e diferente, mas
inclusive o retorno de uma neurose que já foi tratada. A mudança aparente fica
demonstrada se relembramos uma frase da Conferência XXVII, das Introductory
Lectures (1916-17), Standard Ed., 16, 445-5: ‘Uma pessoa que se
tornou normal e livre da operação dos impulsos instintuais reprimidos em sua
relação com o médico permanecerá assim em sua própria vida, depois de o médico
mais uma vez ter-se retirado dela.’ E, novamente, na Conferência XXVIII (ibid.,
451), onde Freud compara os efeitos da sugestão hipnótica e da psicanálise: ‘um
tratamento analítico exige, tanto do médico quanto do paciente, a realização de
um trabalho sério, que é empregado para levantar resistências internas.
Mediante a superação dessa resistências, a vida mental do paciente é
permanentemente modificada, elevada a um nível mais alto de desenvolvimento,
ficando protegida contra novas possibilidades de cair doente.’ Semelhantemente,
nas frases finais da Conferência XXXI, das New Introductory Lectures
(1933a), Freud escreve que a intenção da psicanálise é ‘fortalecer o ego,
ampliar seu campo de percepção e aumentar sua organização, de maneira a que
possa apropriar-se de novas partes do id. Onde era o id, ficará o ego.’ (Standard
Ed., 22, 80.) A teoria que fundamenta essas passagens parece ser a mesma, e
parece diferir, em importantes aspectos, da teoria implícita no presente
trabalho. A base desse aumentado
ceticismo de Freud parece ser uma convicção quanto à impossibilidade de lidar
com um conflito que não é ‘atual’, e quanto às graves objeções a converter um
conflito ‘latente’ num conflito ‘atual’. Essa posição parece implicar uma
modificação de opinião não simplesmente sobre o processo terapêutico, mas
também sobre os eventos mentais, de um modo mais geral. Aqui Freud parece estar
encarando o conflito ‘presentemente ativo’ como algo isolado, algo, por assim
dizer, num compartimento estanque. Mesmo que o ego seja auxiliado a enfrentar este
conflito, sua capacidade de lidar com outro não será afetada. Do mesmo
modo, também as forças instintuais parecem ser pensadas como isoladas: o fato
de sua pressão ter sido relaxada no conflito atual não lança luz sobre seu
comportamento subseqüente. Em contraste, segundo a opinião anterior, o processo
analítico parece ter sido considerado capaz de alterar o ego num sentido mais geral,
um sentido que persistiria após o final da análise, e as forças instintuais
parecem ter sido encaradas como se fizessem derivar sua pressão de um
reservatório indiferenciado de força. Dessa maneira, na proporção em que a
análise foi bem- sucedida, qualquer nova incursão por parte das forças
instintuais teria tido um pouco de sua pressão reduzida pela análise, e seriam
enfrentadas por um ego que a análise tornara mais capaz de lidar com elas.
Assim, não haveria uma segregação absoluta do conflito ‘atual’ em relação aos
conflitos ‘latentes’, e o poder profilático da análise (bem como seu resultado
imediato) dependeria de considerações quantitativas - do relativo aumento
ocasionado por ela na força do ego e da diminuição relativa na força dos instintos.
Pode-se observar que a descrição dos efeitos
terapêuticos da análise, feita por Freud cerca de um ano após o presente
artigo, em seu Esboço de Psicanálise (1940a [1938]), embora em geral
concorde de perto com a descrição aqui fornecida, talvez pareça reverter à sua
opinião anterior sobre a questão específica que estivemos considerando. Por
exemplo, escreve ele naquele trabalho, após comentar o grande esforço envolvido
na superação das resistências: ‘Ela vale a pena, contudo, pois ocasiona uma
alteração vantajosa do ego, a qual será mantida independentemente do resultado
da transferência e se manterá firme na vida.’ Ver em ([1]) Isso pareceria
sugerir uma alteração de um tipo geral.
É de interesse notar que, no próprio começo de
sua clínica, Freud estava preocupado com quase os mesmos problemas que estes,
dos quais se pode dizer que se prolongaram por toda a extensão de seus estudos
analíticos. Aqui temos um extrato de uma carta escrita por ele a Wilhelm Fliess
a 16 de abril de 1900 (Freud, 150a, Carta 133) sobre Herr E., que certamente
estivera em tratamento desde 1897 e, provavelmente, pelo menos desde 1985, e a
cujo caso, em seus altos e baixos, há repetidas referências na correspondência:
‘A carreira de E. como paciente chegou finalmente a um fim, com um convite para
passar uma noite aqui. Seu enigma está quase completamente solucionado,
sua condição é excelente, e todo o seu ser está alterado; no momento, permanece
um resíduo de seus sintomas. Estou começando a entender que a natureza
aparentemente interminável do tratamento é algo determinado por lei e depende
da transferência. Espero que esse resíduo não prejudique o sucesso prático.
Compete apenas a mim decidir se o tratamento deve ser ainda mais prolongado,
mas raiou em mim que tal prolongamento constitui uma conciliação entre estar
doente e estar bom que os próprios pacientes desejam, e na qual, por essa
razão, o médico não deve consentir. A conclusão assintótica do tratamento é
substancialmente indiferente para mim; é mais para os estranhos que ela constitui
um desapontamento. De qualquer modo, manterei um olho no homem…’
ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL
I
A experiência nos ensinou que a terapia
psicanalítica - a libertação de alguém de seus sintomas, inibições e
anormalidades de caráter neuróticas - é um assunto que consome tempo. Daí,
desde o começo, tentativas terem sido feitas para encurtar a duração das
análises. Tais esforços não exigiam justificação; podiam alegar que se baseavam
nas mais fortes considerações de razão e conveniência. Provavelmente, porém,
havia também em ação neles algum traço do desprezo impaciente com que a ciência
médica de dias anteriores encarava as neuroses como conseqüências importunas de
danos invisíveis. Se agora se tornou necessário atendê-las, deveríamos, pelo menos,
livrar-nos delas tão rapidamente quanto possível.
Uma tentativa particularmente enérgica nesse
sentido foi efetuada por Otto Rank, secundando seu livro O Trauma do
Nascimento (1924). Supôs ele que a verdadeira fonte da neurose era o ato do
nascimento, uma vez que este envolvia a possibilidade de a ‘fixação primeva’ de
uma criança à mãe não ser superada, mas persistir como ‘repressão primeva’.
Rank tinha esperança de que, se lidássemos com esse trauma primevo através de
uma análise subseqüente, nos livraríamos de toda a neurose. Assim, esse pequeno
fragmento de trabalho analítico pouparia a necessidade de todo o resto e alguns
meses seriam suficientes para realizá-lo. Não se pode discutir que o argumento
de Rank era audaz e engenhoso, mas não suportou o teste do exame crítico.
Ademais, foi um produto de seu tempo, concebido sob a tensão do contraste entre
a miséria do pós-guerra na Europa e a ‘prosperity’ dos Estados Unidos, e
projetado para adaptar o ritmo da terapia analítica à pressa da vida americana.
Não ouvimos muito sobre o que a colocação em prática do plano de Rank fez pelos
casos de doença. Provavelmente, não fez mais do que faria o Corpo de Bombeiros
se, chamado para socorrer a uma casa que se incendiara por causa de uma lâmpada
a óleo emborcada, se contentasse em retirar a lâmpada do quarto em que o fogo
começara. É fora de dúvida que, por esse meio, seria conseguida uma
considerável diminuição das atividades dos bombeiros. A teoria e a prática do
experimento de Rank são hoje coisas do passado - não menos do que a própria
‘prosperidade’ americana.
Eu mesmo adotei outro modo de acelerar um
tratamento analítico, inclusive antes da guerra. Nessa época, aceitei o caso de
um jovem russo, homem estragado pela opulência, que chegara a Viena em estado
de completo desamparo, acompanhado por um médico particular e um assistente. No
curso de poucos anos, foi possível devolver-lhe grande parte de sua
independência, despertar seu interesse pela vida e ajustar suas relações com as
pessoas que lhe eram mais importantes. Mas aí o progresso se interrompeu. Não
progredimos mais no esclarecimento da neurose de sua infância, em que se
baseava a doença posterior, e era óbvio que o paciente achava sua situação
atual altamente confortável e não desejava dar qualquer passo à frente que o
trouxesse para mais perto do fim do tratamento. Era um caso de tratamento a
inibir-se a si próprio; corria perigo de fracassar em resultado de seu -
parcial - sucesso. Nesse dilema, recorri à medida heróica de fixar um limite de
tempo para a análise. Ao início de um ano de trabalho, informei o paciente de
que o ano vindouro deveria ser o último de seu tratamento, não importando o que
ele conseguisse no tempo que ainda lhe restava. A princípio, não acreditou em
mim, mas, assim que se convenceu de que eu falava absolutamente a sério, a
mudança desejada se estabeleceu. Suas resistências definharam e, nesses últimos
meses de seu tratamento, foi capaz de reproduzir todas as lembranças e
descobrir todas as conexões que pareciam necessárias para compreender sua
neurose primitiva e dominar a atual. Quando me deixou, em meados do verão de
1914, suspeitando tão pouco quanto o restante de nós do que estava tão próximo
à frente, acreditei que sua cura fora radical e permanente.
Numa nota de rodapé acrescentada em 1923 à
história clínica desse paciente, já comunicara que eu estava enganado. Quando,
por volta do fim da guerra, ele retornou a Viena, refugiado e destituído, tive
de ajudá-lo a dominar uma parte da transferência que não fora resolvida. Isso
foi realizado em alguns meses, e pude encerrar minha nota de rodapé com a
declaração de que, ‘desde então, o paciente tem-se sentido normal e se
comportado de modo não excepcional, apesar de a guerra tê-lo despojado de seu
lar, de suas posses e de todos os seus relacionamentos familiares’. Quinze anos
se passaram desde então sem que tenha sido refutada a verdade desse veredicto,
mas certas reservas tornaram-se necessárias. O paciente permanecera em Viena e
mantivera um lugar na sociedade, ainda que humilde. Diversas vezes, porém,
durante esse período, seu bom estado de saúde foi interrompido por crises de
doença que só podiam ser interpretadas como ramificações de sua doença perene.
Graças à perícia de uma de minhas alunas, a Dra. Ruth Mack Brunswick, um breve
tratamento, nessas ocasiões, pôs fim a essas condições. Tenho esperança de que
a própria Dra. Mack Brunswick dentro em breve comunique as circunstâncias.
Algumas dessas crises ainda estavam relacionadas a partes residuais da
transferência, e onde isso assim acontecia, por efêmeras que fossem,
apresentavam caráter distintamente paranóico. Em outras crises, contudo, o
material patogênico consistia em fragmentos da história da infância do
paciente, que não tinham vindo à luz enquanto eu o estava analisando e que
agora se desprendiam - a comparação é inevitável - como suturas após uma
operação ou pequenos fragmentos de osso necrosado. Achei a história do
restabelecimento do paciente pouco menos interessante do que a de sua doença.
Subseqüentemente, empreguei a fixação de um
limite de tempo também em outros casos, e levei ainda em consideração as
experiências de outros analistas. Só pode haver um veredicto sobre o valor
desse artifício de chantagem: é eficaz desde que se acerte com o tempo correto
para ele. Mas não se pode garantir a realização completa da tarefa. Pelo
contrário, podemos estar seguros de que, embora parte do material se torne
acessível sob a pressão da ameaça, outra parte será retida e, assim, ficará
sepultada, por assim dizer, e pedida para nossos esforços terapêuticos, pois,
uma vez que o analista tenha fixado o limite de tempo, não pode ampliá-lo; de
outro modo, o paciente perderia toda a fé nele. A saída mais óbvia seria, para
o paciente, continuar o tratamento com outro analista, embora saibamos que tal
mudança envolveria nova perda de tempo e o abandono dos frutos do trabalho já
realizado. Tampouco se pode estabelecer qualquer regra geral quanto à ocasião
correta para recorrermos a esse artifício técnico compulsório; a decisão deve
ser deixada ao tato do analista. Um erro de cálculo não pode ser retificado. O
ditado de que o leão só salta uma vez deve ser aplicado aqui.
II
A
discussão do problema técnico de saber como acelerar o lento progresso de uma
análise nos conduz a outra questão, mais profundamente interessante: existe
algo que se possa chamar de término de uma análise - há alguma possibilidade de
levar uma análise a tal término? A julgar pela conversa comum dos analistas,
assim pareceria ser, já que freqüentemente os ouvimos dizer, quando deploram ou
desculpam as imperfeições reconhecidas de algum mortal seu colega: ‘Sua análise
não foi terminada’ ou ‘ele nunca se analisou até o fim.’
Temos, primeiro, de decidir o que se quer dizer
pela expressão ambígua ‘o término de uma análise’. De um ponto de vista
prático, é fácil responder. Uma análise termina quando analista e paciente
deixam de encontrar-se para a sessão analítica. Isso acontece quando duas
condições foram aproximadamente preenchidas: em primeiro lugar, que o paciente
não mais esteja sofrendo de seus sintomas e tenha superado suas ansiedades e
inibições; em segundo, que o analista julgue que foi tornado consciente tanto
material reprimido, que foi explicada tanta coisa ininteligível, que foram
vencidas tantas resistências internas, que não há necessidade de temer uma
repetição do processo patológico em apreço. Se se é impedido, por dificuldades
externas, de alcançar esse objetivo, é melhor falar de análise incompleta, de
preferência a análise inacabada.
O outro significado do ‘término’ de uma análise
é muito mais ambicioso. Nesse sentido, o que estamos indagando é se o analista
exerceu uma influência de tão grande conseqüência sobre o paciente, que não se
pode esperar que nenhuma mudança ulterior se realize neste, caso sua análise
venha a ser continuada. É como se fosse possível, por meio da análise, chegar a
um nível de normalidade psíquica absoluta - um nível, ademais, em relação ao
qual pudéssemos confiar em que seria capaz de permanecer estável, tal como se,
talvez, tivéssemos alcançado êxito em solucionar todas as repressões do
paciente e em preencher todas as lacunas em sua lembrança. Podemos primeiro
consultar nossa experiência para indagar se tais coisas de fato acontecem, e
depois nos voltarmos para nossa teoria, a fim de descobrir se há qualquer
possibilidade de elas acontecerem.
Todo analista já terá tratado de alguns casos
que apresentaram esse gratificante desfecho. Ele teve êxito em aclarar o
distúrbio neurótico do paciente, esse distúrbio não retornou, nem foi substituído
por alguma outra perturbação do mesmo tipo. Tampouco nos achamos sem
compreensão interna (insight) dos determinantes desses sucessos. O ego do
paciente não foi notavelmente alterado e a etiologia de seu distúrbio foi
essencialmente traumática. A etiologia de todo distúrbio neurótico é, afinal de
contas, uma etiologia mista. Trata-se de uma questão de os instintos serem
excessivamente fortes - o que equivale a dizer, recalcitrantes ao amansamento
por parte do ego - ou dos efeitos de traumas precoces (isto é, prematuros) que
o ego imaturo foi incapaz de dominar. Via de regra, há uma combinação de ambos
os fatores, o constitucional e o acidental. Quanto mais forte for o fator
constitucional, mais prontamente um trauma conduzirá a uma fixação deixando atrás
de si um distúrbio desenvolvimental; quanto mais forte for o trauma, mais
certamente seus efeitos prejudiciais se tornarão manifestos, mesmo quando a
situação instintual é normal. Não há dúvida de que uma etiologia do tipo
traumático oferece, de longe, o campo mais favorável para a análise. Somente
quando um caso é predominantemente traumático é que a análise alcançará sucesso
em realizar aquilo que é tão superlativamente capaz de fazer; apenas então ela
conseguirá, graças a ter fortalecido o ego do paciente, substituir por uma
solução correta a decisão inadequada tomada em sua vida primitiva. Só em tais
casos pode-se falar de uma análise que foi definitivamente terminada. Neles, a
análise fez tudo o que deveria e não precisa ser continuada. É verdade que, se
o paciente que dessa maneira foi restaurado nunca produz outro distúrbio que
exija análise, não sabemos quanto sua imunidade pode ser devida a um destino
bondoso que lhe poupou provações demasiadamente severas.
Uma força constitucional do instinto e uma
alteração desfavorável do ego, adquirida em sua luta defensiva, no sentido de
ele ser deslocado e restringido, são os fatores prejudiciais à eficácia da
análise e que podem tornar interminável sua duração. Fica-se tentado a tornar o
primeiro fator - força do instinto - responsável também pelo surgimento do
segundo - a alteração do ego -, mas parece que também este último possui sua
própria etiologia. E, na verdade, tem-se de admitir que nosso conhecimento
desses assuntos ainda é insuficiente. Só agora eles se estão tornando matéria
de estudo analítico. Nesse campo, parece-me que o interesse dos analistas está
bastante erradamente dirigido. Em vez de indagar como se dá uma cura pela
análise (assunto que acho ter sido suficientemente elucidado), se deveria perguntar
quais são os obstáculos que se colocam no caminho de tal cura.Isso me conduz a
dois problemas que surgem diretamente da clínica analítica, como espero
demonstrar pelos exemplos que se seguem. Certo homem que, ele próprio,
praticara a análise com grande sucesso, chegou à conclusão de que suas relações
com homens e mulheres - com os homens que eram seus competidores e com as
mulheres que amava - não eram, apesar de tudo, livres de impedimentos
neuróticos e, portanto, fez-se submeter a uma análise por parte de outrem a
quem considerava como superior a si. Essa iluminação crítica de seu próprio eu
(self) teve um resultado totalmente bem-sucedido. Casou-se com a mulher que
amava e transformou-se em amigo e mestre de seus supostos rivais. Muitos anos
se passaram dessa maneira, durante os quais suas relações com o antigo analista
permaneceram também desanuviadas. Mas então, sem qualquer razão externa
atribuível, surgiram problemas. O homem que fora analisado tornou-se
antagonista do analista e censurou-o por ter falhado em lhe proporcionar uma
análise completa. O analista, dizia ele, devia ter sabido e levado em
consideração o fato de uma relação transferencial nunca poder ser puramente
positiva; deveria ter concedido atenção à possibilidade de uma transferência
negativa. O analista defendeu-se dizendo que, à época da análise, não havia
sinal de transferência negativa. Mas, mesmo que tivesse falhado em observar
certos sinais muito débeis dela - o que não estava inteiramente excluído,
considerando o horizonte limitado da análise naqueles primeiros dias -, ainda
era duvidoso, achava o analista, se teria tido o poder de ativar um assunto
(ou, como dizemos, um ‘complexo’) simplesmente por apontá-lo enquanto este não
estivesse presentemente ativo no próprio paciente naquela ocasião. Ativá-lo
teria certamente exigido, na realidade, um comportamento inamistoso por parte
do analista. Ademais, acrescentou, nem toda boa relação entre um analista e seu
paciente, durante e após a análise, devia ser encarada como transferência;
havia também relações amistosas que se baseavam na realidade e que provavam ser
viáveis.
Passo agora a meu segundo exemplo, que levanta
o mesmo problema. Uma mulher solteira, não mais jovem, fora cerceada da vida
desde a puberdade por uma incapacidade de caminhar, devido a severas dores nas
pernas. Seu estado era obviamente de natureza histérica e desafiara muitos
tipos detratamento. Uma análise que durou três quartos de ano removeu o
problema e devolveu à paciente, pessoa excelente e capaz, seu direito a
participar da vida. Nos anos que se seguiram ao restabelecimento, ela foi
sistematicamente desafortunada. Houve desventuras em sua família, perdas
financeiras e, à medida que ficava mais velha, via desvanecer-se toda esperança
de felicidade no amor e casamento. Mas a ex-inválida resistiu a tudo isso
valentemente e constituiu um apoio para a família, nos tempos difíceis. Não
consigo recordar se foi doze ou catorze anos após o fim de sua análise que,
devido a hemorragias profusas, ela foi obrigada a submeter-se a um exame
ginecológico. Encontrou-se um mioma, o que tornava aconselhável uma
histerectomia completa. A partir da ocasião dessa operação, a mulher mais uma
vez caiu doente. Enamorou-se de seu cirurgião, afundou-se em fantasias
masoquistas sobre as temíveis alterações dentro de si - fantasias com que
ocultava seu romance - e mostrou-se inacessível a uma nova tentativa de
análise. Ela permaneceu anormal até o fim da vida. O tratamento analítico
bem-sucedido realizara-se há tanto tempo, que não podíamos esperar muito dele;
ele se processara nos primeiros anos de meu trabalho como analista.
Indubitavelmente, a segunda moléstia da paciente pode ter-se originado da mesma
fonte que a primeira, que fora superada com êxito: pode ter sido uma
manifestação diferente dos mesmos impulsos reprimidos, que só incompletamente
solucionara. Mas estou inclinado a pensar que, não fosse pelo novo trauma, não
teria havido nova irrupção da neurose.
Esses dois exemplos, intencionalmente
selecionados dentre um grande número de outros semelhantes, bastarão para
iniciar um exame dos tópicos que estamos considerando. Os céticos, os otimistas
e os ambiciosos assumirão, quanto a eles, pontos de vista inteiramente
diferentes. Os primeiros dirão que está provado agora que mesmo um tratamento
analítico bem-sucedido não protege o paciente, que numa determinada ocasião foi
curado, de cair doente mais tarde de outra neurose - ou, na verdade, de uma
neurose derivada da mesma raiz instintual -, o que equivale a dizer, de uma
recorrência de seu antigo problema. Os outros considerarão que isso não está
provado. Objetarão que os dois exemplos datam dos primeiros dias da análise,
vinte e trinta anos atrás, respectivamente, e que, desde então, adquirimos uma
compreensão interna (insight) mais profunda e um conhecimento mais amplo, e que
nossa técnica se modificou de acordo com nossas novas descobertas. Hoje, dirão
eles, podemos exigir e esperar que uma cura analítica se mostre permanente, ou,
pelo menos, caso um paciente caia doente de novo, que sua nova doença não
mostre ser uma revivificação de seu primeiro distúrbio instintual a
manifestar-se sob novas formas. Nossa experiência,sustentarão, não nos obriga a
restringir tão materialmente as exigências que podem ser feitas a nosso método
terapêutico.
Minha razão para escolher esses dois exemplos,
é natural, foi precisamente o fato de que eles residiam tão atrás no passado. É
óbvio que quanto mais recente foi o desfecho bem-sucedido de uma análise, menos
utilizável será ele para nosso debate, visto que não dispomos de meios para
predizer qual será a história posterior do restabelecimento. As expectativas
dos otimistas pressupõem claramente uma série de coisas que não são
precisamente auto-evidentes. Presume, de início, que há realmente uma
possibilidade de livrar-se de um conflito instintual (ou, de modo mais correto,
de um conflito entre o ego e um instinto) definitivamente e para todo o sempre;
em segundo, que, enquanto estamos tratando alguém por causa de determinado
conflito instintual, podemos, por assim dizer, vaciná-lo contra a possibilidade
de quaisquer outro conflitos desse tipo; e, em terceiro, que temos o poder,
para fins de profilaxia, de despertar um conflito patogênico dessa espécie que
não se está revelando, na ocasião, por nenhuma indicação, e que é aconselhável
fazê-lo. Lanço essas questões sem me propor respondê-las agora. Talvez
atualmente de modo algum seja possível dar-lhes qualquer resposta certa.
Talvez se possa lançar alguma luz sobre elas
mediante considerações teóricas. Mas outro ponto já se tornou claro: se
quisermos atender às exigências mais rigorosas feitas à terapia analítica,
nossa estrada não nos conduzirá a um abreviamento de sua duração, nem passará
por ele.
III
Uma
experiência analítica que agora se estende por diversas décadas, e uma
modificação que se efetuou na natureza e no modo de minha atividade
incentivaram-me a tentar responder as questões que se nos apresentam. Em dias
passados, tratei um número bastante grande de pacientes, os quais, como era
natural, desejavam ser tratados tão rapidamente quanto possível. Nos últimos
anos, dediquei-me principalmente a análises didáticas; no entanto, um número
relativamente pequeno de casos graves de doença permaneceu comigo para
tratamento contínuo, interrompido, embora, por intervalos mais breves. Com
eles, o objetivo terapêutico já não era o mesmo. Não se tratava mais de
abreviar o tratamento; o intuito era, radicalmente, o de exaurir as
possibilidades de doença neles e ocasionar uma alteração profunda de sua
personalidade.
Dos três fatores que reconhecemos como sendo
decisivos para o sucesso ou não do tratamento analítico - a influência dos
traumas, a força constitucional dos instintos e as alterações do ego -, o que
nos interessa aqui é apenas o segundo, a força dos instintos. Um instante de
reflexão levanta uma dúvida quanto a saber se o uso restritivo do adjetivo
‘constitucional’ (ou ‘congênito’) é essencial. Por verdadeiro que possa ser que
o fator constitucional seja de importância decisiva desde o próprio início, é
concebível que um reforço instintual que chegue tarde na vida possa produzir os
mesmos efeitos. Se assim for, teremos de modificar nossa fórmula e dizer ‘a
força dos instintos na ocasião‘, em vez de ‘a força constitucional dos
instintos’. A primeira de nossas questões,ver em [[1]],foi: ‘É possível,
mediante a terapia analítica, livrar-se de um conflito entre um instinto e o
ego, ou de uma exigência instintual patogênica ao ego, de modo permanente e
definitivo?’ Para evitar a má compreensão é necessário, talvez, explicar mais
exatamente o que se quer dizer por ‘livrar-se permanentemente de uma exigência
instintual’. Certamente não é ‘fazer-se com que a exigência desapareça, de modo
que nada mais se ouça dela novamente’. Isso em geral é impossível, e tampouco,
de modo algum, é de se desejar. Queremos dizer outra coisa, algo que pode ser
grosseiramente descrito como um ‘amansamento’ do instinto. Isso equivale a
dizer que o instinto é colocado completamente emharmonia com o ego, torna-se
acessível a todas as influências das outras tendências neste último e não mais
busca seguir seu independente caminho para a satisfação. Se nos perguntarem por
quais métodos e meios esse resultado é alcançado, não será fácil achar uma
resposta. Podemos apenas dizer: ‘So muss denn doch die Hexe dran!’ - a
Metapsicologia da Feiticeira. Sem especulação e teorização metapsicológica -
quase disse ‘fantasiar’ -, não daremos outro passo à frente. Infelizmente, aqui
como alhures, o que a Feiticeira nos revela não é muito claro nem muito minucioso.
Temos apenas uma única pista para começar - embora seja uma pista do mais alto
valor -, a saber, a antítese entre o processo primário e o secundário, e é para
essa antítese que me voltarei neste ponto.
Se agora retomarmos nossa primeira questão,
descobriremos que nossa nova linha de abordagem nos conduz inevitavelmente a
uma conclusão específica. A questão era a de saber se é possível livrar-se de
modo permanente e definitivo de um conflito instintual - isto é, ‘amansar’
desse modo uma exigência instintual. Formulada nesses termos, a questão não faz
menção alguma à força do instinto, mas é precisamente disso que o resultado
depende. Partamos da presunção de que aquilo que a análise realiza para os
neuróticos nada mais é do que aquilo que as pessoas normais ocasionam para si
próprias sem o auxílio dela. A experiência cotidiana, contudo, nos ensina que,
numa pessoa normal, qualquer solução de um conflito instintual só é válida para
uma força específica de instinto, ou, mais corretamente, só para uma relação específica
entre a força do instinto e a força do ego. Se a força deste diminui, quer pela
doença, quer pela exaustão, ou por alguma causa semelhante, todos os instintos,
que até então haviam sido amansados com êxito, podem renovar suas exigências e
esforçar-se por obter satisfações substitutivas através de maneiras anormais.
Uma prova irrefutável dessa afirmação é fornecida pornossos sonhos noturnos;
eles reagem à atitude de sono assumida pelo ego com um despertar das exigências
instintuais.
O material do outro lado [a força dos
instintos] é igualmente sem ambigüidade. Duas vezes no curso do desenvolvimento
individual certos instintos são consideravelmente reforçados: na puberdade e,
nas mulheres, na menopausa. De modo algum ficamos surpresos se uma pessoa, que
antes não era neurótica, assim se torna nessas ocasiões. Quando seus instintos
não eram tão fortes, ela teve sucesso em amansá-los, mas quando são reforçados,
não mais pode fazê-lo. As repressões comportam-se como represas contra a
pressão da água. Os mesmos efeitos produzidos por esses dois reforços
fisiológicos do instinto podem ser ocasionados, de maneira irregular, por
causas acidentais em qualquer outro período da vida. Tais reforços podem ser
estabelecidos por novos traumas, frustrações forçadas ou a influência colateral
e mútua dos instintos. O resultado é sempre o mesmo, e ele salienta o poder
irresistível do fator quantitativo na causação da doença.
Sinto-me como se devesse estar envergonhado de
tão poderosa exposição, ao ver que tudo o que disse há muito tempo é conhecido
e auto-evidente. É fato que sempre nos comportamos como se soubéssemos de tudo
isso, mas, em sua maioria, nossos conceitos teóricos negligenciaram dar à linha
econômica de abordagem a mesma importância que concederam às linhas dinâmica e
topográfica. Minha desculpa, portanto, é a de que estou chamando a atenção para
essa negligência.
Antes, porém, de decidirmos sobre a resposta a
essa questão, temos de considerar uma objeção cuja força reside no fato de
estarmos provavelmente predispostos em seu favor. Nossos argumentos, dir-se-á,
são todos deduzidos a partir dos processos que se efetuam espontaneamente entre
o ego e os instintos, e pressupõem que a terapia analítica nada pode realizar
que, sob condições favoráveis e normais, não ocorra por si. Mas será isso
realmente assim? Não é precisamente a reivindicação de nossa teoria o fato de
que a análise produz um estado que nunca surge espontaneamente no ego e que
esse estado recentemente criado constitui a diferença essencial entre uma
pessoa que foi analisada e outra que não o foi? Mantenhamos em mente aquilo em
que se baseia essa reivindicação. Todas as repressões se efetuam na primeira
infância; são medidas primitivas de defesa, tomadas pelo ego imaturo, débil.
Nos anos posteriores, não são levadas a cabo novas repressões, mas as antigas
persistem, e seus serviços continuam a ser utilizados pelo ego para o domínio
dos instintos. Livramo-nos de novos conflitos através daquilo que chamamos de
‘repressão ulterior’. Podemos aplicar a essas repressões infantis nossa
afirmação geral de que as repressões dependem absoluta e inteiramente do poder
relativo das forças envolvidas, e que elas não se podem manter contra um
aumento na força dos instintos. A análise, contudo, capacita o ego, que atingiu
maior maturidade e força, a empreender uma revisão dessas antigas repressões;
algumas são demolidas, ao passo que outras são identificadas, mas construídas
de novo, a partir de material mais sólido. O grau de firmeza dessas novas
represas é bastante diferente do das anteriores; podemos confiar em que não
cederão facilmente ante uma maré ascendente da força instintual. Dessa maneira,
a façanha real da terapia analítica seria a subseqüente correção do processo
original de repressão, correção que põe fim à dominância do fator quantitativo.
Até aqui vem nossa teoria, que não podemos
abandonar, exceto sob uma compulsão irresistível. E o que tem nossa experiência
a dizer sobre isso? Talvez ainda não seja suficientemente ampla para que
cheguemos a uma conclusão firmada. Ela confirma nossas expectativas com
bastante freqüência, mas não sempre. Tem-se a impressão de que não se deve
ficar surpreso se, ao final, ela mostrar que a diferença entre uma pessoa que
não foi analisada e o comportamento de uma pessoa após tê-lo sido não é tão
radical como visamos a torná-lo, e como esperamos e sustentamos que seja. Se
assim for, isso significará que a análise às vezes tem êxito em eliminar a
influência de um aumento no instinto, mas não invariavelmente, ou que o efeito
da análise se limita a aumentar o poder de resistência das inibições, de
maneira que se mostram à altura de exigências muito maiores do que antes da
análise ou se nenhuma análise se tivesse efetuado. Realmente não posso
comprometer-me com uma decisão sobre esse ponto, nem tampouco sei se atualmente
é possível uma decisão.
Existe, contudo, outro ângulo a partir do qual
podemos abordar o problema da variabilidade no efeito da análise. Sabemos que o
primeiro passo no sentido de chegar ao domínio intelectual de nosso meio
ambienteé descobrir generalizações, regras e leis que tragam ordem ao caos.
Fazendo isso, simplificamos o mundo dos fenômenos, mas não podemos evitar
falsificá-lo, especialmente se estivermos lidando com processos de
desenvolvimento e mudança. Estamos interessados em discernir uma alteração
qualitativa e, via de regra, assim procedendo, negligenciamos, inicialmente
pelo menos, um fator quantitativo. No mundo real, as transições e estágios
intermediários são muito mais comuns do que estados opostos nitidamente
diferenciados. Ao estudar desenvolvimentos e mudanças, dirigimos nossa atenção
unicamente para o resultado; desprezamos prontamente o fato de que tais
processos são geralmente mais ou menos incompletos, o que equivale a dizer que
são, de fato, apenas alterações parciais. Um arguto satirista da antiga
Áustria, Johann Nestroy disse certa vez: ‘todo passo à frente tem somente a
metade do tamanho que parece ter a princípio.’ É tentador atribuir uma validade
bastante geral a esse ditado malicioso. Há quase sempre fenômenos residuais,
uma pendência parcial. Quando um mecenas generoso nos surpreende com algum
traço isolado de avareza, ou quando uma pessoa que é sistematicamente muito
bondosa súbito se permite uma ação hostil, tais ‘fenômenos residuais’ são
valiosos para a pesquisa genética. Eles nos mostram que essas louváveis e
preciosas qualidades baseiam-se na compensação e na supercompensação, as quais,
como era de esperar, não foram absoluta e completamente bem-sucedidas. Nossa
primeira descrição do desenvolvimento da libido foi a de que uma fase oral
original cedia caminho a uma fase anal-sádica e que esta, por sua vez, era
sucedida por uma fase fálico-genital. A pesquisa posterior não contradisse essa
opinião, mas corrigiu-a acrescentando que essas substituições não se realizam
de modo repentino, mas gradativamente, de maneira que partes da organização
anterior sempre persistem lado a lado da mais recente, e que mesmo no
desenvolvimento normal a transformação nunca é completa e resíduos de fixações libidinais
anteriores ainda podem ser mantidos na configuração final. O mesmo pode ser
visto em muitos outros campos. De todas as errôneas e supersticiosas crenças da
humanidade que foram supostamente superadas não existe uma só cujos resíduos
não perdurem hoje entre nós, nos estratos inferiores dos povos civilizados ou
mesmo nos mais elevados estratos da sociedade cultural. O que um dia veio à
vida, aferra-setenazmente à existência. Fica-se às vezes inclinado a duvidar se
os dragões dos dias primevos estão realmente extintos.
Aplicando essas observações a nosso presente
problema, penso que a resposta à questão de como explicar os resultados
variáveis de nossa terapia analítica, bem poderia ser a de que nós também,
esforçando-nos por substituir repressões, que são inseguras, por controles
egossintônicos dignos de confiança, nem sempre alcançamos nosso objetivo em
toda a sua extensão - isto é, não o alcançamos de modo bastante completo. A
transformação é conseguida, mas, com freqüência, apenas parcialmente: partes
dos antigos mecanismos permanecem intocada pelo trabalho da análise. É difícil
provar que isso é realmente assim, pois não temos outra maneira de ajuizar o
que acontece, exceto pelo resultado que estamos tentando explicar. Não
obstante, as impressões que se recebem durante o trabalho de análise não
contradizem essa pressuposição; na verdade, parecem antes confirmá-la. Contudo
não devemos tomar a clareza de nossa própria compreensão interna (insight) como
medida da convicção que produzimos no paciente. Seria possível dizer que à
convicção dele pode faltar ‘profundidade’; trata-se sempre de uma questão do
fator quantitativo, que é tão facilmente desprezado. Se essa for a resposta
correta à nossa questão, podemos dizer que a análise, ao reivindicar a cura das
neuroses assegurando o controle sobre o instinto, está sempre correta na
teoria, mas nem sempre na prática, e isso porque ela nem sempre obtém êxito em
garantir, em grau suficiente, as fundações sobre as quais um controle do
instinto se baseia. É fácil descobrir a causa de tal fracasso parcial. No
passado, o fator quantitativo da força instintual opôs-se aos esforços
defensivos do ego; por essa razão, convocamos o auxílio do trabalho da análise.
Agora, o mesmo fator estabelece um limite à eficácia desse novo esforço. Se a
força do instinto é excessiva, o ego maduro, apoiado pela análise, fracassa em
sua missão, tal como o ego desamparado anteriormente fracassara. Seu controle
sobre o instinto é melhorado, mas permanece imperfeito porque a transformação no
mecanismo defensivo é apenas incompleta. Nada há de surpreendente nisso, visto
que o poder dos instrumentos com que a análise opera não é ilimitado mas
restrito, e o resultado final depende sempre da força relativa dos agentes
psíquicos que estão lutando entre si.
Sem dúvida, é desejável abreviar a duração do
tratamento analítico, mas só podemos conseguir nosso intuito terapêutico
aumentando o poder da análise em vir em assistência do ego. A influência
hipnótica pareceu ser um instrumento excelente para nossos fins, mas as razões
por que tivemos deabandoná-la são bem conhecidas. Ainda não foi encontrado
substituto algum para a hipnose. Desse ponto de vista, podemos compreender como
um mestre da análise como Ferenczi veio a dedicar os últimos anos de sua vida a
experimentos terapêuticos, os quais, infelizmente, se mostraram vãos.
IV
As duas outras questões - se, enquanto estamos
tratando determinado conflito instintual, podemos proteger o paciente de
futuros conflitos e se é viável e conveniente, para fins profiláticos,
despertar um conflito que não está manifesto na ocasião - devem ser tratadas em
conjunto, pois obviamente a primeira tarefa só pode ser levada a cabo na medida
em que a segunda o é - ou seja, na medida em que um possível conflito futuro se
transforma em conflito concreto e atual, ao qual a influência é então aplicada.
Essa nova maneira de enunciar o problema é, no fundo, apenas uma ampliação da
anterior. Ao passo que, no primeiro caso, estivemos considerando como nos
resguardarmos contra um retorno do mesmo conflito, estamos agora considerando
como nos resguardarmos contra sua possível substituição por outro conflito.
Isso soa como uma proposição muito ambiciosa, mas tudo o que estamos tentando
fazer é tornar claros quais os limites estabelecidos à eficácia da terapia
analítica.
Por muito que nossa ambição terapêutica possa
ficar tentada a empreender tais tarefas, a experiência rejeita categoricamente
a noção. Se um conflito instintual não está presentemente ativo, se não está
manifestando-se, não podemos influenciá-lo, mesmo pela análise. A advertência
de que deixemos repousar os cães a dormir, que com tanta freqüência ouvimos em
relação a nossos esforços por explorar o submundo psíquico, é peculiarmente
despropositada quando aplicada às condições da vida mental, pois, se os
instintos estão provocando distúrbios, isso é prova de que os cães não estão
dormindo, e, se eles realmente parecem estar adormecidos, não está em nosso
poder despertá-los. Essa última afirmação, contudo, não parece ser inteiramente
exata e exige um debate mais pormenorizado. Consideremos quais os meios que
temos à nossa disposição para transformar um conflito instintual que é, no
momento, latente, num outro presentemente ativo. Obviamente, só podemos fazer
duas coisas. Podemos ocasionar situações em que o conflito se torna
presentemente ativo, ou podemos contentar-nos em debatê-lo na análise e apontar
a possibilidade de ele despertar. A primeira dessas duas alternativas pode ser
levada a cabo por duas maneiras: na realidade ou na transferência, em qualquer
dos casos expondo o paciente a certa quantidade de sofrimento real, mediante a
frustração e o represamento da libido. Ora, é verdade que já fazemos uso de uma
técnica desse tipo em nosso procedimento analítico comum, pois qual, de outra
maneira, seria o significado da regra segundo a quala análise deve ser levada a
cabo ‘num estado de frustração’? Mas essa é uma técnica que utilizamos ao
tratar um conflito que já é presentemente ativo. Procuramos levar esse conflito
a um ponto culminante, desenvolvê-lo até seu tom mais alto, a fim de aumentar a
força instintual disponível para sua solução. A experiência analítica
ensinou-nos que o melhor é sempre inimigo do bom e que, em todas as fases do
restabelecimento do paciente, temos de lutar contra sua inércia, que está
pronta a se contentar com uma solução incompleta.
Se, contudo, aquilo a que estivermos visando é
o tratamento profilático de conflitos instintuais que não estão presentemente
ativos, mas são meramente potenciais, não será suficiente regular sofrimentos
que já se acham presentes no paciente e que ele não pode evitar. Teríamos de
decidir provocar-lhe novos sofrimentos, e isso, até aqui, muito corretamente,
deixamos ao destino. Receberíamos admonições de todos os lados contra a
presunção de emular o destino, no que sujeitássemos pobres criaturas humanas a
experimentos tão cruéis. E que tipo de experimentos seriam eles? Poderíamos,
para fins de profilaxia, assumir a responsabilidade de destruir um casamento
satisfatório, ou fazer com que um paciente abandone um cargo do qual depende
sua subsistência? Afortunadamente, nunca nos encontramos na posição de ter de
considerar se tais intervenções na vida real do paciente são justificadas; não
possuímos os plenos poderes que elas teriam tornado necessários, e o objeto de
nosso experimento terapêutico certamente se recusaria a cooperar com isso. Na
prática, então, tal procedimento está virtualmente excluído, mas existem, além
disso, objeções teóricas a ele, pois o trabalho de análise progride melhor se
as experiências patogênicas do paciente pertencem ao passado, de modo que seu
ego possa situar-se a certa distância delas. Em estados de crise aguda, a
análise é, para todos os fins e intuitos, inutilizável. Todo o interesse do ego
é tomado pela realidade penosa, e ele se retrai da análise que está tentando ir
além da superfície e revelar as influências do passado. Assim, criar um novo
conflito só tornaria o trabalho de análise mais prolongado e mais difícil.
Objetar-se-á que essas observações são
inteiramente desnecessárias. Ninguém pensa em, propositadamente, conjurar novas
situações de sofrimento, a fim de tornar possível a um conflito instintual
latente ser tratado. Comofaçanha profilática, não haveria muito, em relação a
isso, de que se gabar. Sabemos, por exemplo, que um paciente que se
restabeleceu de escarlatina está imune a um retorno da mesma doença; no
entanto, jamais ocorre a um médico pegar uma pessoa sadia que tem
possibilidades de adoecer de escarlatina e infectá-la com esta, a fim de
torná-la imune à mesma. A medida protetora não deve produzir a mesma situação
de perigo que é produzida pela própria doença, mas apenas algo muito mais leve,
como é o caso com a vacina contra a varíola e muitos outros procedimentos
semelhantes. Na profilaxia analítica contra conflitos instintuais, portanto, os
únicos métodos que entram em consideração são os outros dois que mencionamos: a
produção artificial de novos conflitos na transferência (conflitos a que,
afinal de contas, falta o caráter de realidade) e o despertar de tais conflitos
na imaginação do paciente, falando-lhe sobre eles e tornando-o familiarizado
com sua possibilidade.
Não sei se podemos asseverar que o primeiro
desses dois procedimentos mais brandos está inteiramente excluído na análise.
Nenhuma experiência foi feita especificamente nessa direção. Mas sugerem-se
logo as dificuldades, as quais não lançam uma luz muito promissora sobre tal
empreendimento. Em primeiro lugar, a escolha de tais situações para a
transferência é muito limitada. Os pacientes não podem, eles próprios, trazer
todos os seus conflitos para a transferência, nem tampouco está o analista
capacitado a invocar todos os possíveis conflitos instintuais deles, a partir
da situação transferencial. Ele pode torná-los ciumentos ou fazê-los
experimentar desapontamentos no amor, mas não se exige nenhum intuito técnico
para ocasionar isso. Seja como for, tais coisas acontecem por si mesmas na
maioria das análises. Em segundo lugar, não devemos desprezar o fato de que
todas as medidas desse tipo obrigariam o analista a se comportar de maneira
inamistosa para com o paciente, e isso teria um efeito prejudicial sobre a
atitude afetuosa - sobre a transferência positiva - que é o motivo mais forte
para o paciente participar do trabalho conjunto da análise. Assim, de modo
algum devemos esperar muito desse procedimento.
Isso, portanto, deixa-nos aberto apenas um
método: aquele que, com toda probabilidade, foi o único originalmente
considerado. Falamos ao paciente sobre as possibilidades de outros conflitos
instintuais e despertamos sua expectativa de que tais conflitos possam ocorrer
nele. O que esperamos é que essa informação e essa advertência tenham o efeito
de ativar nele um dos conflitos que indicamos, em grau modesto, mas suficiente
para o tratamento. Dessa vez, porém, a experiência não fala com voz incerta. O
resultado esperado não ocorre. O paciente escuta nossa mensagem, mas não há
reação. Pode pensar consigo: ‘É muito interessante, mas não sinto traço algum
disso.’Aumentamos seu conhecimento, mas nada mais alteramos nele. A situação é
muito semelhante à que acontece quando as pessoas lêem trabalhos
psicanalíticos. O leitor é ‘estimulado’ apenas por aquelas passagens que sente
se aplicarem a si próprio - isto é, que interessam a conflitos que estão ativos
nele na ocasião. Tudo o mais o deixa frio. Podemos ter experiências análogas,
creio, quando fornecemos às crianças esclarecimentos sexuais. Estou longe de
sustentar que isso é prejudicial ou desnecessário, mas é claro que o efeito
profilático dessa medida liberal tem sido grandemente superestimado. Após tais
esclarecimentos, as crianças sabem algo que não conheciam antes, mas não fazem
uso do novo conhecimento que lhes foi presenteado. Viemos a perceber que sequer
têm grande pressa de sacrificar, a esse novo conhecimento, as teorias sexuais
que poderiam ser descritas como um crescimento natural e que elas construíram
em harmonia com sua organização libidinal imperfeita, e na dependência desta -
teorias sobre o papel desempenhado pela cegonha, sobre a natureza da relação
sexual e sobre o modo como os bebês são feitos. Por longo tempo após receberem
esclarecimentos sexuais, elas se comportam como as raças primitivas que tiveram
o cristianismo enfiado nelas, mas que continuam a adorar em segredo seus
antigos ídolos.
V
Partimos da questão de saber como podemos
abreviar a duração inconvenientemente longa do tratamento analítico e, ainda
com essa questão em mente, passamos a considerar se é possível conseguir uma
cura permanente ou mesmo impedir uma doença futura através do tratamento
profilático. Assim procedendo, descobrimos que os fatores decisivos para o
sucesso de nossos esforços terapêuticos foram a influência da etiologia
traumática, a força relativa dos instintos que têm de ser controlados, e algo
que denominamos de alteração do ego. [Ver em [1]]Apenas o segundo desses
fatores foi pormenorizadamente examinado por nós, e, em conexão com ele,
tivemos ocasião de reconhecer a importância suprema do fator quantitativo e de
acentuar a reivindicação da linha de abordagem metapsicológica a ser levada em
consideração em qualquer tentativa de explicação.
Quanto ao terceiro fator, a alteração do ego,
ainda não dissemos nada. Quando voltamos nossa atenção para ele, a primeira
impressão que recebemos é a de que há muito a perguntar e muito a responder
aqui, e a de que o que temos a dizer sobre ele mostrará ser bastante
inadequado. Essa primeira impressão é confirmada quando ingressamos no
problema. Como é bem sabido, a situação analítica consiste em nos aliarmos com
o ego da pessoa em tratamento, a fim de submeter partes de seu id que não estão
controladas, o que equivale a dizer, incluí-las na síntese de seu ego. O fato
de uma cooperação desse tipo habitualmente fracassar no caso dos psicóticos,
nos fornece uma primeira base sólida para nosso julgamento. O ego, se com ele
quisermos poder efetuar um pacto desse tipo, deve ser um ego normal. Mas um ego
normal dessa espécie é, como a normalidade em geral, uma ficção ideal. O ego
anormal, inútil para nossos fins, infelizmente não é ficção. Na verdade, toda
pessoa normal é apenas normal na média. Seu ego aproxima-se do ego do psicótico
num lugar ou noutro e em maior ou menor extensão, e o grau de seu afastamento
de determinada extremidade da série e de sua proximidade da outra nos fornecerá
uma medida provisória daquilo que tão indefinidamente denominamos de ‘alteração
do ego’.
Se perguntarmos qual a fonte da grande
variedade de tipos e graus de alteração do ego, não poderemos fugir à primeira
alternativa óbvia, ou seja, a de que tais alterações são congênitas ou
adquiridas. Desta, o segundo tipo seria o mais fácil de tratar. Se forem
alterações adquiridas, isso certamente terá acontecido no decurso do
desenvolvimento, a partir dos primeiros anos de vida, pois o ego tem de tentar,
desde o próprio início, desempenhar sua tarefa de mediar entre seu id e o mundo
externo, a serviço do princípio deprazer, e de proteger o id contra os perigos
do mundo externo. Se, no decurso desses esforços, o ego aprende a adotar uma
atitude defensiva também para com seu próprio id, e a tratar as exigências
instintuais deste último como perigos externos, isso acontece, pelo menos em
parte, porque ele compreende que uma satisfação do instinto conduziria a
conflitos com o mundo externo. Posteriormente, sob a influência da educação, o
ego se acostuma a remover a cena da luta de fora para dentro e a dominar o
perigo interno antes que se tenha tornado externo, e, provavelmente, com mais
freqüência, tem razão em assim proceder. Durante essa luta em duas frentes -
posteriormente haverá também uma terceira frente -, o ego faz uso de diversos
procedimentos para desempenhar sua tarefa, que, para exprimi-la em termos
gerais, consiste em evitar o perigo, a ansiedade e o desprazer. Chamamos esses
procedimentos de ‘mecanismos de defesa‘. Nosso conhecimento deles ainda não é
suficientemente completo. O livro de Anna Freud (1936) forneceu-nos uma
primeira compreensão interna (insight) de sua multiplicidade e significação
multilateral.
Foi a partir de um desses mecanismos, a
repressão, que o estudo dos processos neuróticos se iniciou. Nunca houve
qualquer dúvida de que a repressão não era o único procedimento que o ego podia
empregar para seus intuitos. Não obstante, a repressão é algo bastante
peculiar, sendo mais nitidamente diferenciada dos outros mecanismos do que
estes o são entre si. Gostaria de tornar clara essa relação com os outros
mecanismos através de uma analogia, embora saiba que, nestes assuntos, as
analogias nunca nos levam muito longe. Imaginemos o que poderia ter acontecido
a um livro, numa época em que os livros ainda não eram impressos em edições,
mas redigidos individualmente. Suponhamos que um livro desse tipo contivesse
afirmações que, em épocas posteriores, fossem consideradas indesejáveis - tal
como, por exemplo, segundo Robert Eisler (1929), os escritos de Flávio Josefo
devem ter contido passagens sobre Jesus Cristo que foram ofensivas ao
cristianismo posterior. Nos dias de hoje, o único mecanismo defensivo de que a
censura oficial poderia valer-se seria o de confiscar e destruir todos os
exemplares da edição inteira. Naquela época, contudo, diversos métodos eram
utilizados para tornar inócuo o livro. Uma das maneiras seria riscar
cerradamente as passagens ofensivas, de modo a ficarem ilegíveis. Nesse caso,
elas não poderiam ser transcritas, e o copista seguinte do livro produziria um
texto inatacável, mas com lacunas em certas passagens, e, assim,nestas ele
poderia ser ininteligível. Outra maneira, contudo, se as autoridades não se
satisfizessem com isso, mas desejassem ocultar também qualquer indicação de que
o texto fora mutilado, seria, para elas, passar a deformar o texto. Palavras
isoladas seriam deixadas de fora ou substituídas por outras, e novas frases
seriam interpoladas. Melhor do que tudo, toda a passagem seria apagada e
colocadas em seu lugar outras novas dizendo exatamente o oposto. O transcritor
seguinte poderia então produzir um texto que não despertaria suspeita, mas que
seria falsificado. Ele não mais conteria o que o autor desejara dizer, no
sentido da verdade.
Se a analogia não é perseguida estritamente
demais, podemos dizer que a repressão tem com os outros métodos de defesa a
mesma relação que a omissão tem com a deformação do texto, e podemos descobrir,
nas diferentes formas dessa falsificação, paralelos com a variedade de maneiras
pelas quais o ego é alterado. Pode-se tentar levantar a objeção de que a
analogia erra num ponto essencial, pois a deformação de um texto é obra de uma censura
tendenciosa, da qual nenhuma contrapartida se pode encontrar no desenvolvimento
do ego. Mas não é assim, pois um intuito tendencioso desse tipo é, em grande
grau, representado pela força compelativa do princípio de prazer. O aparelho
psíquico não tolera o desprazer; tem de desviá-lo a todo custo, e se a
percepção da realidade acarreta desprazer, essa percepção - isto é, a verdade -
deve ser sacrificada. No que se refere a perigos externos, o indivíduo pode
ajudar-se durante algum tempo através da fuga e evitando a situação de perigo,
até ficar suficientemente forte, mais tarde, para afastar a ameaça alterando
ativamente a realidade. Mas não é possível fugir de si próprio; a fuga não
constitui auxílio contra perigos internos. E, por essa razão, os mecanismos
defensivos do ego estão condenados a falsificar nossa percepção interna e a nos
dar somente uma representação imperfeita e deformada de nosso próprio id. Em
suas relações com o id, portanto, o ego é paralisado por suas restrições ou
cegado por seus erros, e o resultado disso, na esfera dos eventos psíquicos, só
pode ser comparado a caminhar num país que não se conhece, sem dispor de um bom
par de pernas.
Os mecanismos de defesa servem ao propósito de
manter afastados os perigos. Não se pode discutir que são bem-sucedidos nisso,
e é de duvidar que o ego pudesse passar inteiramente sem esses mecanismos
durante seu desenvolvimento. Mas é certo também que eles próprios podem
transformar-se em perigos. Às vezes, se vê que o ego pagou um preço alto demais
pelos serviços que eles lhe prestam. O dispêndio dinâmico necessário para
mantê-los, e as restrições do ego que quase invariavelmente acarretam, mostram
ser um pesado ônus sobre a economia psíquica. Ademais, esses mecanismos nãosão
abandonados após terem assistido o ego durante os anos difíceis de seu
desenvolvimento. Nenhum indivíduo, naturalmente, faz uso de todos os mecanismos
de defesa possíveis. Cada pessoa não utiliza mais do que uma seleção deles, mas
estes se fixam em seu ego. Tornam-se modalidades regulares de reação de seu
caráter, as quais são repetidas durante toda a vida, sempre que ocorre uma
situação semelhante à original. Isso os transforma em infantilismos, e
partilham da sorte de tantas instituições que tentam manter-se em existência
depois que a época de sua utilidade passou. ‘Vernunft wird Unsinn, Wohltat
Plage’, como se queixa o poeta. O ego do adulto, com sua força aumentada,
continua a se defender contra perigos que não mais existem na realidade; na
verdade, vê-se compelido a buscar na realidade as situações que possam servir
como substituto aproximado ao perigo original, de modo a poder justificar, em
relação àquelas, o fato de ele manter suas modalidades habituais de reação.
Assim, podemos facilmente entender como os mecanismos defensivos, por
ocasionarem uma alienação cada vez mais ampla quanto ao mundo externo e um
permanente enfraquecimento do ego, preparam o caminho para o desencadeamento da
neurose e o incentivam.
No momento, contudo, não estamos interessados
no papel patogênico dos mecanismos defensivos. O que estamos tentando descobrir
é qual a influência que a alteração do ego a eles correspondente tem sobre
nossos esforços terapêuticos. O material para a resposta a essa pergunta é
fornecido no volume a que já me referi, da autoria de Anna Freud. O ponto
essencial é que o paciente repete essas modalidades de reação também durante o
trabalho de análise, que as produz diante de nossos olhos, por assim dizer. Na
verdade, é apenas dessa maneira que chegamos a conhecê-las. Isso não significa
que tornem impossível a análise. Pelo contrário, constituem a metade de nossa
tarefa analítica. A outra metade, aquela que a análise primeiro enfrentou em
seus dias iniciais, é a revelação do que está escondido no id. Durante o
tratamento, nosso trabalho terapêutico está constantemente oscilando para trás
e para frente, como um pêndulo, entre um fragmento de análise do id e um
fragmento de análise do ego. Num dos casos, desejamos tornar consciente algo do
id; no outro, queremos corrigir algo no ego. A dificuldade da questão é que os
mecanismos defensivos dirigidos contra um perigo anterior reaparecem no
tratamento como resistências contra o restabelecimento. Disso decorre que o ego
trata o próprio restabelecimento como um novo perigo.O efeito terapêutico
depende de tornar consciente o que está reprimido (no sentido mais amplo da
palavra) no id. Preparamos o caminho para essa conscientização mediante
interpretações e construções, mas interpretamos apenas para nós próprios, não
para o paciente, enquanto o ego se apega a suas defesas primitivas e não
abandona suas resistências. Ora, essas resistências, embora pertençam ao ego,
são inconscientes e, em certo sentido, isoladas dentro do ego. O analista as
identifica mais facilmente do que o faz com o material oculto no id.
Poder-se-ia supor que seria suficiente tratá-las como partes do id e,
tornando-as conscientes, colocá-las em conexão com o restante do ego. Dessa
maneira, suporíamos, metade da tarefa da análise estaria realizada; não devemos
contar com enfrentar uma resistência contra a revelação das resistências.
Contudo, o que acontece é isso. Durante o trabalho sobre as resistências, o ego
se retrai - com maior ou menor grau de seriedade - do acordo em que a situação
analítica se funda. Ele deixa de apoiar nossos esforços para revelar o id;
opõe-se a eles, desobedece a regra fundamental da análise e não permite que
surjam novos derivados do reprimido. Não podemos esperar que o paciente possua
uma forte convicção do poder curativo da análise. Pode ter trazido consigo uma
certa confiança em seu analista, que será fortalecida até um ponto eficaz pelos
fatores de transferência positiva que nele serão despertados. Sob a influência
dos impulsos desprazerosos que sente em resultado da nova ativação de seus
conflitos defensivos, as transferências negativas podem agora levar a melhor e
anular completamente a situação analítica. O paciente agora encara o analista
como não mais do que um estranho que lhe está fazendo exigências desagradáveis,
e comporta-se para com ele exatamente como uma criança que não gosta do
estranho e não acredita em nada do que este diz. Se o analista tenta explicar
ao paciente uma das deformações por este efetuadas para fins de defesa, e
corrigi-la, encontra-o incompreensivo e inacessível a argumentos bem fundados.
Assim, percebemos que há uma resistência contra a revelação das resistências e
que os mecanismos defensivos realmente merecem o nome que lhe demos
originalmente, antes de terem sido examinados mais de perto. Constituem
resistências não apenas à conscientização dos conteúdos do id, mas também à
análise como um todo, e, assim, ao restabelecimento.
O efeito ocasionado no ego pelas defesas pode
ser corretamente descrito como uma ‘alteração do ego’, se por isso entendemos
um desvio quanto à ficção de um ego normal, que garantiria lealdade inabalável
ao trabalho de análise. É fácil, portanto, aceitar o fato, demonstrado pela
experiência cotidiana, de que o resultado de um tratamento analítico depende
essencialmente da força e da profundidade da raiz dessas resistências que
ocasionam uma alteração do ego. Mais uma vez nos confrontamos com a importância
do fator quantitativo e mais uma vez somos lembrados de que a análise só pode
valer-se de quantidades de energia definidas e limitadas que têm de ser medidas
contra as forças hostis. E aparece como se a vitória, de fato, via de regra
esteja do lado dos grandes batalhões.
VI
A
questão seguinte a que chegamos é a de saber se toda alteração do ego - em
nosso sentido do termo - é adquirida durante as lutas defensivas dos primeiros
anos. Não pode haver dúvida sobre a resposta. Não temos razão para discutir a
existência e a importância de características distintivas, originais e inatas
do ego. Isso é certificado pelo ato singular de que cada pessoa faz uma seleção
dos mecanismos possíveis de defesa, de que ela sempre utiliza apenas alguns
deles, sempre os mesmos ver em [[1]].Isso pareceria indicar que cada ego está
dotado, desde o início, com disposições e tendências individuais, embora seja
verdade que não podemos especificar sua natureza ou o que as determina.
Ademais, sabemos que não devemos exagerar a diferença existente entre
caracteres herdados e adquiridos, transformando-a numa antítese; o que foi
adquirido por nossos antepassados decerto forma parte importante do que
herdamos. Quando falamos numa ‘herança arcaica’ geralmente estamos pensando
apenas no id e parecemos presumir que, no começo da vida do indivíduo, ainda
não existe ego algum. Mas não desprezaremos o ato de que id e ego são
originalmente um só; tampouco implica qualquer supervalorização mística da
hereditariedade acharmos crível que, mesmo antes de o ego surgir, as linhas de
desenvolvimento, tendências e reações que posteriormente apresentará, já estão
estabelecidas para ele. As peculiaridades psicológicas de famílias, raças e
nações, inclusive em sua atitude para com a análise, não permitem outra
explicação. Em verdade, mais do que isso: a experiência analítica nos impôs a
convicção de que mesmo conteúdos psíquicos específicos, tais como o simbolismo,
não possuem outras fontes senão a transmissão hereditária, e pesquisas em
diversos campos da antropologia social tornam plausível supor que outros
precipitados, igualmente especializados, deixados pelo primitivo
desenvolvimento humano, também estão presentes na herança arcaica.
Com o reconhecimento de que as propriedades do
ego com que nos defrontamos sob a forma de resistências podem ser tanto
determinadas pela hereditariedade, quanto adquiridas em lutas defensivas, a
distinção topográfica entre o que é ego e o que é id perde muito de seu valor
para nossa investigação. Se avançarmos um passo adiante em nossa experiência
analítica, nos depararemos com resistências de outro tipo, que não mais podemos
localizar e que parecem depender de condições fundamentais do aparelho mental.
Só posso fornecer alguns exemplos desse tipo de resistência; todo o campo de
investigação ainda é desconcertantemente estranho e insuficientemente
explorado. Deparamo-nos com pessoas, por exemplo, a quem estaríamos inclinados
a atribuir uma especial ‘adesividade da libido’ Os processos que o tratamento
coloca em movimento nessas pessoas são muito mais lentos do que em outra,
porque, aparentemente, elas não podem decidir-se a desligar catexias libidinais
de um determinado objeto e deslocá-las para outro, embora não possamos
descobrir nenhuma razão especial para essa lealdade catexial. Encontra-se
também o tipo oposto de pessoa, em quem a libido parece particularmente móvel;
ela ingressa prontamente nas novas catexias sugeridas pela análise, abandonando
as anteriores em troca desta. A diferença entre os dois tipos é comparável à
sentida por um escultor, conforme ele trabalhe na pedra dura ou no gesso macio.
Infelizmente, nesse segundo tipo, os resultados da análise freqüentemente se
mostram muito impermanentes; as novas catexias são logo abandonadas de novo, e
temos a impressão, não de ter trabalhado em gesso, mas de ter escrito na água.
Como diz o provérbio: ‘como vêm, assim vão.’
Em outro grupo de casos, ficamos surpreendidos
por uma atitude de nossos pacientes que só pode ser atribuída a um esgotamento
da plasticidade, da capacidade de modificação e desenvolvimento ulterior, que
comumente esperaríamos encontrar. É verdade que estamos preparados para
encontrar na análise uma certa quantidade de inércia psíquica.Quando o trabalho
da análise descerrou novos caminhos para um impulso instintual, quase
invariavelmente observamos que o impulso não ingressa neles sem uma hesitação
acentuada. Chamamos esse comportamento, talvez não muito corretamente, de
‘resistência oriunda do id.’ Com os pacientes que tenho em mente, porém, todos
os processos mentais, relacionamentos e distribuições de força são imutáveis,
fixos e rígidos. Encontra-se a mesma coisa em pessoas muito idosas, em cujo caso
ela é explicada como sendo devida ao que se descreve como força do hábito ou
exaustão da receptividade - uma espécie de entropia psíquica. Aqui, no entanto,
estamos tratando com pessoas ainda jovens. Nosso conhecimento teórico não
parece adequado para fornecer uma explicação correta de tais tipos.
Provavelmente, estão relacionadas algumas características temporais - certas
alterações de um ritmo de desenvolvimento na vida psíquica que ainda não
apreciamos.
Em outro grupo ainda de casos, as
características distintivas do ego, que devem ser consideradas como fontes de
resistências ao tratamento analítico e obstáculos ao êxito terapêutico, podem
originar-se de raízes diferentes e mais profundas. Estamos lidando aqui com as
coisas supremas que a pesquisa psicológica pode aprender: o comportamento dos
dois instintos primevos, sua distribuição, mistura e defusão - coisas que não
podemos imaginar como confinadas a uma única província do aparelho psíquico, ao
id, ao ego ou ao superego. Impressão alguma mais forte surge das resistências
durante o trabalho de análise do que a de existir uma força que se está
defendendo por todos os meios possíveis contra o restabelecimento e que está
absolutamente decidida a apegar-se à doença e ao sofrimento. Uma parte dessa
força já foi por nós identificada, indubitavelmente com justiça, como
sentimento de culpa e necessidade de punição, e foi por nós localizada na
relação do ego com o superego. Mas essa é apenas a parte dela que, por assim
dizer, está psiquicamente presa pelo superego e assim se torna reconhecível;
outras cotas da mesma força, quer presas, quer livres, podem estar em ação em
outros lugares não especificados. Se tomarmos em consideração o quadro total
formado pelos fenômenos de masoquismo imanentes em tantas pessoas, a reação
terapêutica negativa e o sentimento de culpa encontrados em tantos neuróticos,
não mais poderemos aderir à crença de que os eventos mentais são governados
exclusivamente pelo desejo de prazer. Esses fenômenos constituem indicações
inequívocas da presença de um poder na vida mental que chamamos de instinto de
agressividade ou de destruição, segundo seus objetivos, e que remontamos ao
instinto de morte original da matéria viva. Não se trata de uma antítese entre
uma teoria pessimista da vida e outra otimista. Somente pela ação concorrente
ou mutuamente oposta dos dois instintos primevos - Eros e o instinto de morte
-, e nunca por um ou outro sozinho, podemos explicar a rica multiplicidade dos
fenômenos da vida.
Como partes dessas duas classes de instintos se
combinam para desempenhar as diversas funções vitais, sob que condições tais
combinações se afrouxam ou se rompem, a que distúrbios essas mudanças
correspondem e com que sensações a escala perceptual do princípio de prazer a
elas responde - são problemas cuja elucidação seria a façanha mais gratificante
da pesquisa psicológica. No momento, temos de nos curvar à superioridade das
forças contra as quais vemos nossos esforços redundar em nada. Mesmo exercer
uma influência psíquica sobre o simples masoquismo constitui um ônus muito
severo para nossos poderes.
Ao estudar os fenômenos que dão testemunho da
atividade do instinto destrutivo, não nos confinamos a observações sobre
material patológico. Numerosos fatos da vida mental normal exigem uma
explicação desse tipo, e, quanto mais penetrantes nossos olhos se tornam, mais
copiosamente esses fatos nos impressionam. O assunto é novo e importante demais
para que o trate como um tema lateral desse debate. Contentar-me-ei, portanto,
em selecionar alguns casos exemplificativos.
Aqui temos um exemplo. É bem sabido que em
todos os períodos houve, como ainda há, pessoas que podem tomar como objetos
sexuais membros de seu próprio sexo, bem como do sexo oposto, sem que uma das
inclinações interfira na outra. Chamamos tais pessoas de bissexuais e aceitamos
sua existência sem sentir muita surpresa sobre elas. Viemos a saber, contudo,
que todo ser humano é bissexual nesse sentido e que sua libido se distribui,
quer de maneira manifesta, quer de maneira latente, por objetos de ambos os
sexos. Mas ficamos impressionados pelo ponto seguinte. Ao passo que na primeira
classe de pessoas as duas tendências prosseguem juntas sem se chocarem, na
segunda classe, mais numerosa, elas se encontram num estado de conflito
irreconciliável. A heterossexualidade de um homem não se conformará com nenhuma
homossexualidade e vice-versa. Se a primeira é a mais forte, ela obtém êxito em
manter a segunda latente e em afastá-la, pela força, da satisfação na
realidade. Por outro lado, não existe maior perigo para a função heterossexual
de um homem do que o de ser perturbada por sua homossexualidade latente.
Poderíamos tentar explicar isso dizendo que cada indivíduo só possui à sua
disposição uma certa cota de libido, pela qual as duas inclinações rivais têm
de lutar. Mas não está claro por que as rivais nem sempre dividem a cota
disponível de libido entre si, de acordo com sua força relativa, já que assim
podem fazer em certo número de casos. Somos forçados à conclusão de que a
tendência a um conflito é algo especial, algo recentemente adicionado à
situação, sem considerar a quantidade de libido. Uma tendência ao conflito
desse tipo, a emergir independentemente, dificilmente pode ser atribuída a algo
que não seja a intervenção de um elemento de agressividade livre.
Se reconhecermos o caso que estamos examinando
como expressão do instinto destrutivo ou agressivo, surge imediatamente a
questão de saber se essa visão não deve ser estendida a outros exemplos de
conflito, e, na verdade, de saber se tudo o que conhecemos sobre o conflito
psíquico não deveria ser revisto a partir desse novo ângulo. Afinal de contas,
presumimos que, no decurso do desenvolvimento do homem de um estado primitivo
para um civilizado, sua agressividade experimenta um grau bastante considerável
de internalização ou volta para o interior; se assim for, seus conflitos
internos certamente seriam o equivalente apropriado para as lutas internas que
então cessaram. Estou bem cônscio de que a teoria dualista, segundo a qual um
instinto de morte ou de destruição ou agressão reivindica iguais direitos como
sócio de Eros, tal como este se manifesta na libido, encontrou pouca simpatia e
na realidade não foi aceita, mesmo entre psicanalistas. Isso me deixou ainda
mais satisfeito quando, não muito tempo atrás, me deparei com essa teoria de
minha autoria nos escritos de um dos maiores pensadores da antiga Grécia. Estou
prontíssimo a ceder o prestígio da originalidade em favor de tal confirmação,
em especial porque nunca pode ficar certo, em vista da ampla extensão de minhas
leituras nos primeiros anos, se aquilo que tomei por uma nova criação não
constituía um efeito da criptoamnésia.
Empédocles de Acragas (Girgenti), nascido por
volta de 495 a.C., é uma das maiores e mais notáveis figuras da história da
civilização grega. As atividades de sua personalidade multifacetada seguiram as
mais variadas direções. Ele foi investigador e pensador, profeta e mágico,
político, filantropo e médico com conhecimentos de ciências naturais. Diz-se
que libertou a cidade de Selinunte da malária e seus contemporâneos o
reverenciavam como a um deus. Sua mente parece ter unido os mais agudos
contrastes. Era exato e sóbrio em suas pesquisas físicas e fisiológicas;
contudo, não se retraiu ante as obscuridades do misticismo e construiu
especulações cósmicas de audácia espantosamente imaginativa. Capelle compara-o
ao Dr. Fausto, ‘a quem muitos segredos foram revelados’. Nascido, como foi, numa
época em que o reino da ciência ainda não estava dividido em tantas províncias,
algumas de suas teorias devem inevitavelmente impressionavas coisas pela
mistura dos quatros elementos, a terra, o ar, o fogo e a água. Sustentava que
toda a natureza era animada, e acreditava na transmigração das almas. Mas
também incluiu no corpo teórico do conhecimento idéias modernas, como a
evolução gradual das criaturas vivas, a sobrevivência dos mais aptos e o
reconhecimento do papel desempenhado pelo acaso () nessa evolução.
Mas a teoria de Empédocles que merece
especialmente nosso interesse é uma que se aproxima tanto da teoria
psicanalítica dos instintos, que ficaríamos tentados a sustentar que as duas
são idênticas, não fosse pela diferença de a teoria do filósofo grego ser uma
fantasia cósmica, ao passo que a nossa se contenta em reivindicar validade
biológica. Ao mesmo tempo, o ato de Empédocles atribuir ao universo a mesma
natureza animada que aos organismos individuais despoja essa diferença de
grande parte de sua importância.
O filósofo ensinou que dois princípios dirigem
os eventos na vida do universo e na vida da mente, e que esses princípios estão
perenemente em guerra um com o outro. Chamou-os de (amor) e
(discórdia). Desses dois princípios - que ele concebeu como sendo, no fundo,
‘forças naturais a operar como instintos, e de maneira alguma inteligências com
um intuito consciente’ -, um deles se esforça por aglomerar as partículas
primevas dos quatro elementos numa só unidade, ao passo que o outro, ao
contrário, procura desfazer todas essas fusões e separar umas das outras as
partículas primevas dos elementos. Empédocles imaginou o processo do universo
como uma alternação contínua e incessante de períodos, nos quais uma ou outra
das duas forças fundamentais leva a melhor, de maneira que em determinada
ocasião o amor e noutra a discórdia realizam completamente seu intuito e
dominam o universo, após o que o outro lado, vencido, se afirma e, por sua voz,
derrota seu parceiro.
Os dois princípios fundamentais de Empédocles -
- são, tanto em nome quanto em função, os mesmos que nossos dois
instintos primevos, Eros e destrutividade, dos quais o primeiro se esforça por
combinar o que existe em unidades cada vez maiores, ao passo que o segundo se
esforça por dissolver essas combinações e destruir as estruturas a que elas
deram origem. Não ficaremos surpresos, contudo, em descobrir que, em seu
ressurgimento após dois milênios e meio, essa teoria se alterou em algumas de
suas características. À parte a restrição ao campo biofísico que se nos impõe,
não mais temos como substâncias básicas os quatro elementos de Empédocles: o
que é vivo foi nitidamente diferenciado do que é inanimado, e não mais pensamos
em mistura e separação de partículas de substância, mas na solda e na defusão
dos componentes instintuais. Ademais, fornecemos um certo tipo de fundamento ao
princípio de ‘discórdia’, fazendo nosso instinto de destruição remontar ao
instinto de morte, ao impulso que tem o que é vivo a retornar a um estado
inanimado. Isso não se destina a negar que um instinto análogo já existiu
anteriormente, nem, é natural, a asseverar que um instinto desse tipo só passou
a existir com o surgimento da vida. E ninguém pode prever sob que disfarce o
núcleo de verdade contida na teoria de Empédocles se apresentará à compreensão
posterior.
VII
Em 1927,
Ferenczi leu um instrutivo artigo sobre o problema da terminação das análises.
Ele finda com a confortadora garantia de que ‘a análise não é um processo sem
fim, mas um processo que pode receber um fim natural, com perícia e paciência
suficientes por parte do analista’. O artigo como um todo, contudo, parece-me
ter a natureza de uma advertência a não visar a abreviar a análise, mas a
aprofundá-la. Ferenczi demonstra ainda o importante ponto de que o êxito
depende muito de o analista ter aprendido o suficiente de seus próprios ‘erros
e equívocos’ e de ter levado a melhor sobre ‘os pontos fracos de sua própria
personalidade’. Isso fornece um suplemento importante a nosso tema. Entre os
fatores que influenciam as perspectivas do tratamento analítico e se somam às
suas dificuldades da mesma maneira que as resistências, deve-se levar em conta
não apenas a natureza do ego do paciente, mas também a individualidade do
analista.
Não se pode discutir que analistas, em suas
próprias personalidades, não estiveram invariavelmente à altura do padrão de
normalidade psíquica para o qual desejam educar seus pacientes. Os opositores
da análise quase sempre apontam esse fato com escárnio e o utilizam como
argumento para demonstrar a inutilidade dos esforços analíticos. Poderíamos
rejeitar essa crítica porque faz exigências injustificáveis. Os analistas são
pessoas que aprenderam a praticar uma arte específica; a par disso, pode-se
conceder-lhes que são seres humanos como quaisquer outros. Afinal de contas,
ninguém sustenta que um médico será incapaz de tratar doenças internas se seus
próprios órgãos internos não forem sadios; ao contrário, pode-se argumentar que
há certas vantagens no fato de um homem que foi, ele próprio, ameaçado pela
tuberculose, se especializar no tratamento de pessoas que sofrem dessa doença.
Os casos, porém, não são absolutamente idênticos. Enquanto for capaz de
clinicar, um médico que sofre de uma doença dos pulmões ou do coração não se
acha em desvantagem para diagnosticar ou tratar queixas internas, ao passo que
as condições especiais do trabalho analítico fazem realmente com que os
próprios defeitos do analista interfiram em sua efetivação de uma avaliação
correta do estadode coisas em seu paciente e em sua reação a elas de maneira
útil. É, portanto, razoável esperar de um analista, como parte de suas
qualificações, um grau considerável de normalidade e correção mental. Além
disso, ele deve possuir algum tipo de superioridade, de maneira que, em certas
situações analíticas, possa agir como modelo para seu paciente e, em outras,
como professor. E, finalmente, não devemos esquecer que o relacionamento
analítico se baseia no amor à verdade - isto é, no reconhecimento da realidade
- e que isso exclui qualquer tipo de impostura ou engano.
Detenhamo-nos aqui por um momento para garantir
ao analista que ele conta com nossa sincera simpatia nas exigências muito
rigorosas a que tem de atender no desempenho de suas atividades. Quase parece
como se a análise fosse a terceira daquelas profissões ‘impossíveis’ quanto às
quais de antemão se pode estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios.
As outras duas, conhecidas há muito mais tempo, são a educação e o governo.
Evidentemente, não podemos exigir que o analista em perspectiva seja um ser
perfeito antes que assuma a análise, ou em outras palavras, que somente pessoas
de alta e rara perfeição ingressem na profissão. Mas onde e como pode o pobre
infeliz adquirir as qualificações ideais de que necessitará em sua profissão? A
resposta é: na análise de si mesmo, com a qual começa sua preparação para a
futura atividade. Por razões práticas, essa análise só pode ser breve e
incompleta. Seu objetivo principal é capacitar o professor a fazer um juízo
sobre se o candidato pode ser aceito para formação posterior. Essa análise terá
realizado seu intuito se fornecer àquele que aprende uma convicção firme da
existência do inconsciente, se o capacitar, quando o material reprimido surge,
a perceber em si mesmo coisas que de outra maneira seriam inacreditáveis para
ele, e se lhe mostra um primeiro exemplo da técnica que provou ser a única
eficaz no trabalho analítico. Só isso não bastaria para sua instrução, mas
contamos com que os estímulos que recebeu em sua própria análise não cessem
quando esta termina, com que os processos de remodelamento do ego prossigam
espontaneamente no indivíduo analisado, e com que se faça uso de todas as
experiências subseqüentes nesse recém-adquirido sentido. Isso de fato acontece
e, na medida em que acontece, qualifica o indivíduo analisado para ser, ele
próprio, analista.Infelizmente, algo mais acontece também. Ao tentar
descrevê-lo, só podemos apoiar-nos em impressões. Hostilidade, por um lado, e
partidarismo, por outro, criam uma atmosfera desfavorável à investigação
objetiva. Parece que certo número de analistas aprende a fazer uso de
mecanismos defensivos que lhes permitem desviar de si próprios as implicações e
as exigências da análise (provavelmente dirigindo-as para outras pessoas), de
maneira que eles próprios permanecem como são e podem afastar-se da influência
crítica e corretiva da análise. Tal acontecimento poderia justificar as
palavras do escritor que nos adverte que, quando se dota um homem de poder, é
difícil para ele não utilizá-lo mal. Às vezes, quando tentamos compreender
isso, somos levados a traçar uma analogia desagradável com o efeito dos raios X
nas pessoas que os manejam sem tomar precauções especiais. Não seria de
surpreender que o efeito de uma preocupação constante com todo o material
reprimido que luta por liberdade na mente humana despertasse também no analista
as exigências instintuais que de outra maneira ele é capaz de manter
suprimidas. Também esses são ‘perigos da análise’, embora ameacem não o
parceiro passivo, mas o parceiro ativo da situação analítica, e não deveríamos
negligenciar enfrentá-los. Não pode haver dúvida sobre o modo como isso deve
ser feito. Todo analista deveria periodicamente - com intervalos de
aproximadamente cinco anos - submeter-se mais uma vez à análise, sem se sentir
envergonhado por tomar essa medida. Isso significaria, portanto, que não seria
apenas a análise terapêutica dos pacientes, mas sua própria análise que se
transformaria de tarefa terminável em interminável.
Nesse ponto, contudo, temos de nos resguardar
contra uma concepção equivocada. Não estou pretendendo afirmar que a análise é,
inteiramente, um assunto sem fim. Qualquer que seja nossa atitude teórica para
com a questão, a terminação de uma análise é, penso eu, uma questão prática.
Todo analista experimentado será capaz de recordar uma série de casos em que
deu a seu paciente um adeus definitivo, rebus bene gestis. Nos casos daquilo
que é conhecido como análise de caráter, há uma discrepância muito menor entre
a teoria e a prática. Aqui não é fácil prever um término natural, ainda que se
evitem quaisquer expectativas exageradas e não se estabeleçam para a análise
tarefas excessiva. Nosso objetivo não será dissipar todas as peculiaridadesdo
caráter humano em benefício de uma ‘normalidade’ esquemática, nem tampouco
exigir que a pessoa que foi ‘completamente analisada’ não sinta paixões nem
desenvolva conflitos internos. A missão da análise é garantir as melhores
condições psicológicas possíveis para as funções do ego; com isso, ela se
desincumbiu de sua tarefa.
VIII
Tanto em análises terapêuticas quanto em
análises de caráter, observamos que dois temas vêm a ter preeminência especial
e fornecem ao analista quantidade inusitada de trabalho. Logo se torna evidente
que aqui um princípio geral está em ação. Os dois temas estão ligados à
distinção existente entre os sexos; um deles é tão característico dos homens
quanto o outro o é das mulheres. Apesar da dessemelhança de seu conteúdo, há
uma correspondência óbvia entre eles. Algo que ambos os sexos possuem em comum
foi forçado, pela diferença entre eles, a formas diferentes de expressão.
Os dois temas correspondentes são, na mulher, a
inveja do pênis - um esforço positivo por possuir um órgão genital masculino -
e, no homem, a luta contra sua atitude passiva ou feminina para com outro
homem. O que é comum nos dois temas foi distinguido pela nomenclatura
psicanalítica, em data precoce, como sendo uma atitude para com o complexo de
castração. Subseqüentemente, Alfred Adler colocou o termo ‘protesto masculino’
em uso corrente. Ele se ajusta perfeitamente ao caso dos homens, mas penso que,
desde o início, ‘repúdio da feminilidade’ teria sido a descrição correta dessa
notável característica da vida psíquica dos seres humanos.
Ao tentar introduzir esse fator na estrutura de
nossa teoria, não devemos desprezar o fato de que ele não pode, por sua própria
natureza, ocupar a mesma posição em ambos os sexos. Nos homens, o esforço por
ser masculino é completamente egossintônico desde o início; a atitude passiva,
de uma vez que pressupõe uma aceitação da castração, é energicamente reprimida
e amiúde sua presença só é indicada por supercompensações excessivas. Nas
mulheres, também, o esforço por ser masculino é egossintônico em determinado
período - a saber, na fase fálica, antes que o desenvolvimento para a
feminilidade se tenha estabelecido. Depois, porém, ele sucumbe ao momentoso
processo de repressão cujo desfecho, como tão freqüentemente foi demonstrado,
determina a sorte da feminilidade de uma mulher. Muita coisa depende de que uma
quantidade suficiente de seu complexo de masculinidade escape à repressão e
exerça influência permanente em seu caráter. Normalmente, grandes partes do
complexo se transformam e contribuem para a construção de sua feminilidade; o
desejo apaziguado de um pênis destina-se a ser convertido no desejo de um bebê
e de um marido, que possui um pênis.É estranho, contudo, quão amiúde
descobrimos que o desejo de masculinidade foi retido no inconsciente e que, a partir
de seu estado de repressão, exerce uma influência perturbadora.
Como se verá pelo que eu disse, em ambos os
casos foi a atitude própria ao sexo oposto que sucumbiu à repressão. Já afirmei
em outro lugar que foi Wilhelm Fliess que chamou minha atenção para esse ponto.
Fliess inclinava-se a encarar a antítese entre os sexos como a verdadeira causa
e a força motivadora primeva da repressão. Estou apenas repetindo o que disse
então ao discordar de sua opinião, quando declino de sexualizar a repressão dessa
maneira - isto é, explicá-la em fundamentos biológicos, em vez de puramente
psicológicos.
A importância suprema desses dois temas - nas
mulheres, o desejo de um pênis, e, nos homens, a luta contra a passividade -
não escapou à observação de Ferenczi. No artigo lido por ele em 1927,
transformou num requisito que, em toda análise bem-sucedida, esses dois
complexos tivessem sido dominados. Gostaria de acrescentar que, falando por
minha própria experiência, acho que quanto a isso Ferenczi estava pedindo muito.
Em nenhum ponto de nosso trabalho analítico, se sofre mais da sensação
opressiva de que todos os nossos repetidos esforços foram em vão, e da suspeita
de que estivemos ‘pregando ao vento’, do que quando estamos tentando persuadir
uma mulher a abandonar seu desejo de um pênis, com fundamento de que é
irrealizável, ou quando estamos procurando convencer um homem de que uma
atitude passiva para com homens nem sempre significa castração e que ela é
indispensável em muitos relacionamentos na vida. A supercompensação rebelde do
homem produz uma das mais fortes resistências transferenciais. Ele se recusa a
submeter-se a um substituto paterno, ou a sentir-se em débito para com ele por
qualquer coisa, e, conseqüentemente, se recusa a aceitar do médico seu restabelecimento.
Nenhuma transferência análoga pode surgir do desejo da mulher por um pênis, mas
esse desejo é fonte de irrupções de grave depressão nela, devido à convicção
interna de que a análise não lhe será útil e de que nada pode ser feito para
ajudá-la. E só podemosconcordar que ela está com a razão, quando aprendemos que
seu mais forte motivo para buscar tratamento foi a esperança de que, ao fim de
tudo, ainda poderia obter um órgão masculino, cuja falta lhe era tão penosa.
Mas também aprendemos com isso que não é
importante sob que forma a resistência aparece, seja como transferência ou não.
A coisa decisiva permanece sendo que a resistência impede a ocorrência de
qualquer mudança - tudo fica como era. Freqüentemente temos a impressão de que
o desejo de um pênis e o protesto masculino penetraram através de todos os
estratos psicológicos e alcançaram o fundo, e que, assim, nossas atividades
encontram um fim. Isso é provavelmente verdadeiro, já que, para o campo
psíquico, o campo biológico desempenha realmente o papel de fundo subjacente. O
repúdio da feminilidade pode ser nada mais do que um fato biológico, uma parte
do grande enigma do sexo. Seria difícil dizer se e quando conseguimos êxito em
dominar esse fator num tratamento analítico. Só podemos consolar-nos com a
certeza de que demos à pessoa analisada todo incentivo possível para reexaminar
e alterar sua atitude para com ele.
CONSTRUÇÕES EM ANÁLISE (1937)
KONSTRUKTIONEN IN DER ANALYSE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS
1937 Int. Z. Psychoanal., 23 (4),
459-69.
1950 G. W. 16, 43-56.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Constructions
in Analys7is’
1938 Int.
J. Psycho-Anal., 19 (4), 377-87. (Trad. de James Strachey.)
1950
C. P., 5, 358-71. (Reimpressão revista da anterior.)
A presente tradução é uma reimpressão corrigida
da publicada em 1950.
Este artigo foi publicado em dezembro de 1937.
Embora, como Freud observa, as construções
tenham recebido muito menos atenção do que as interpretações nos debates da
técnica analítica, seus próprios escritos contêm muitas alusões a elas. Há dois
ou três exemplos completos delas em suas histórias clínicas: na análise do ‘Rat
Man’ (1909d), Standard Ed., 10, Pp. 182 e 205, e na análise do ‘Wolf
Man’ (1918b). Todo o último caso gira em torno de uma construção, mas a questão
é especificamente examinada na Seção V (Standard Ed., 17, p. 50 e
segs.). Finalmente, as construções desempenharam grande papel na história
clínica da jovem homossexual (1920a), como fica claro na Seção I (ibid., 18, p.
152).
O artigo termina pelo exame de um assunto em
que Freud estava muito interessado nesse período - a distinção entre o que
descreveu como verdade ‘histórica’ e ‘material’.
CONSTRUÇÕES EM ANÁLISE
Sempre me pareceu ser algo grandemente a
crédito de certo bem-conhecido homem de ciência ter ele tratado a psicanálise
com justiça, numa época em que a maioria das outras pessoas não se sentiam em
tal obrigação. Em determinada ocasião, todavia, expressou ele uma opinião sobre
a técnica analítica que foi, ao mesmo tempo, depreciativa e injusta. Disse que,
ao fornecermos interpretações a um paciente, tratamo-lo segundo o famoso
princípio do ‘Heads I win, tails you lose‘. Isso equivale a dizer que se
o paciente concorda conosco, então a interpretação está certa, mas, se nos
contradiz, isso constitui apenas sinal de sua resistência, o que novamente
demonstra que estamos certos. Desse modo, estamos sempre com a razão contra o
pobre e desamparado infeliz que estamos analisando, não importando como ele
reaja ao que lhe apresentamos. Ora, de uma vez que é realmente verdade que um
‘não’ de nossos pacientes não é, via de regra, suficiente para nos fazer
abandonar uma interpretação como incorreta, uma revelação como essa sobre a
natureza de nossa técnica foi muito bem acolhida pelos opositores da análise.
Vale a pena, portanto, fornecer uma descrição pormenorizada de como estamos
acostumados a chegar a uma avaliação do ‘sim’ ou do ‘não’ de nossos pacientes
durante o tratamento analítico - de sua expressão de concordância ou de
negação. No correr dessa apologia, naturalmente, o analista militante nada
aprenderá que já não saiba.
É terreno familiar que o trabalho da análise
visa a induzir o paciente a abandonar as repressões (empregando a palavra no
sentido mais amplo) própria a seu primitivo desenvolvimento e a substituí-las
por reações de um tipo que corresponda a uma condição psiquicamente madura. Com
esse intuito em vista, ele deve ser levado a recordar certas experiências e os
impulsos afetivos por ela invocados, os quais, presentemente, ele esqueceu.
Sabemos que seus atuais sintomas e inibições são conseqüências de repressões
desse tipo; que constituem um substituto para aquelas coisa que esqueceu. Que
tipo de material põe ele à nossa disposição, de que possamos fazer uso para
colocá-lo no caminho da recuperação das lembranças perdidas? Todos os tipos de
coisa. Fornece-nos fragmentos dessas lembranças em seus sonhos, valiosíssimos
em si mesmos, mas via de regra seriamente deformados por todos os fatores
relacionados à formação dos sonhos. Se ele se entrega à ‘associação livre’,
produz ainda idéias em que podemos descobrir alusões às experiências reprimidas
e derivados dos impulsos afetivos recalcados, bem como das reações contra eles.
Finalmente, há sugestões de repetições dos afetos pertencentes ao material
reprimido que podem ser encontradas em ações desempenhadas pelo paciente,
algumas bastante importantes, outras, triviais, tanto dentro quanto fora da
situação analítica. Nossa experiência demonstrou que a relação de
transferência, que se estabelece com o analista, é especificamente calculada
para favorecer o retorno dessas conexões emocionais. É dessa matéria-prima - se
assim podemos descrevê-la - que temos de reunir aquilo de que estamos à
procura.
Estamos à procura de um quadro dos anos esquecidos
do paciente que seja igualmente digno de confiança e, em todos os aspectos
essenciais, completo. Nesse ponto, porém, somos recordados de que o trabalho de
análise consiste em duas partes inteiramente diferentes, que ele é levado a
cabo em duas localidades separadas, que envolve duas pessoas, a cada uma das
quais é atribuída uma tarefa distinta. Pode, por um momento, parecer estranho
que um fato tão fundamental não tenha sido apontado muito tempo atrás, mas
imediatamente se perceberá que nada estava sendo retido nisso, que se trata de
um fato universalmente conhecido e, por assim dizer, auto-evidente, e que
simplesmente é colocado em relevo aqui e examinado isoladamente para um
propósito específico. Todos nós sabemos que a pessoa que está sendo analisada
tem de ser induzida a recordar algo que foi por ela experimentado e reprimido,
e os determinantes dinâmicos desse processo são tão interessantes que a outra
parte do trabalho, a tarefa desempenhada pelo analista, foi empurrada para o
segundo plano. O analista não experimentou nem reprimiu nada do material em
consideração; sua tarefa não pode ser recordar algo. Qual é, então, sua tarefa?
Sua tarefa é a de completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que
deixou atrás de si ou, mais corretamente, construí-lo. A ocasião e o
modo como transmite suas construções à pessoa que está sendo analisada, bem
como as explicações com que as faz acompanhar, constituem o vínculo entre as
duas partes do trabalho de análise, entre o seu próprio papel e o do paciente.Seu
trabalho de construção, ou, se se preferir, de reconstrução, assemelha-se muito
à escavação, feita por um arqueólogo, de alguma morada que foi destruída e
soterrada, ou de algum antigo edifício. Os dois processos são de fato
idênticos, exceto pelo fato de que o analista trabalha em melhores condições e
tem mais material à sua disposição para ajudá-lo, já que aquilo com que está
tratando não é algo destruído, mas algo que ainda está vivo - e talvez por
outra razão também. Mas assim como o arqueólogo ergue as paredes do prédio a
partir dos alicerces que permaneceram de pé, determina o número e a posição das
colunas pelas depressões no chão e reconstrói as decorações e as pinturas
murais a partir dos restos encontrados nos escombros, assim também o analista
procede quando extrai suas inferências a partir dos fragmentos de lembranças,
das associações e do comportamento do sujeito da análise. Ambos possuem direito
indiscutido a reconstruir por meio da suplementação e da combinação dos restos
que sobreviveram. Ambos, ademais, estão sujeitos a muitas das mesmas
dificuldades e fontes de erro. Um dos mais melindrosos problemas com que se
defronta o arqueólogo é, notoriamente, a determinação da idade relativa de seus
achados, e se um objeto faz seu aparecimento em determinado nível,
freqüentemente resta decidir se ele pertence a esse nível ou se foi carregado
para o mesmo devido a alguma perturbação subseqüente. É fácil imaginar as
dúvidas correspondentes que surgem no caso das construções analíticas.
O analista, como dissemos, trabalha em
condições mais favoráveis do que o arqueólogo, já que dispõe de material que
não pode ter correspondente nas escavações, tal como as repetições de reações
que datam da tenra infância e tudo o que é indicado pela transferência em
conexão com essas repetições. Mas, além disso, há que manter em mente que o
escavador está lidando com objetos destruídos, dos quais grandes e importantes
partes certamente se perderam, pela violência mecânica, pelo fogo ou pelo
saque. Nenhum esforço pode resultar em sua descoberta e levar a que sejam
unidas aos restos que permaneceram. O único curso que se lhe acha aberto é o da
reconstrução, que, por essa razão, com freqüência só pode atingir um certo grau
de probabilidade. Mas, com o objeto psíquico cuja história primitiva o analista
está buscando recuperar, é diferente. Aqui, defrontamo-nos regularmente com uma
situação que, com o objeto arqueológico, ocorre apenas em circunstâncias raras,
tais como as de Pompéia ou da tumba de Tutancâmon. Todos os elementos
essenciais estão preservados; mesmo coisas que parecem completamente esquecidas
estão presentes, de alguma maneira e em algum lugar, e simplesmente foram
enterradas e tornadas inacessíveis ao indivíduo. Na verdade, como sabemos, é
possível duvidar de que alguma estrutura psíquicapossa realmente ser vítima de
destruição total. Depende exclusivamente do trabalho analítico obtermos sucesso
em trazer à luz o que está completamente oculto. Há apenas dois outros fatos
que pesam contra a extraordinária vantagem que assim é desfrutada pelo trabalho
de análise, a saber, que os objetos psíquicos são incomparavelmente mais
complicados do que os objetos materiais do escavador, e que possuímos um
conhecimento insuficiente do que podemos esperar encontrar, uma vez que sua
estrutura mais refinada contém tanta coisa que ainda é misteriosa. Mas nossa
comparação entre as duas formas de trabalho não pode ir além disso, pois a
principal diferença entre elas reside no fato de que, para o arqueólogo, a
reconstrução é o objetivo e o final de seus esforços, ao passo que, para o
analista, a construção constitui apenas um trabalho preliminar.
II
A construção não é, porém, um trabalho
preliminar no sentido de que a totalidade dela deve ser completada antes que o
trabalho seguinte possa começar, tal como, por exemplo, é o caso com a
construção de casas, onde todas as paredes devem estar erguidas e todas as
janelas inseridas antes que a decoração interna das peças possa ser
empreendida. Todo analista sabe que as coisas acontecem de modo diferente no
tratamento analítico e que aí ambos os tipos de trabalho são executados lado a
lado, um deles sempre um pouco à frente e o outro a segui-lo. O analista
completa um fragmento da construção e o comunica ao sujeito da análise, de
maneira a que possa agir sobre ele; constrói então um outro fragmento a partir
do novo material que sobre ele se derrama, lida com este da mesma maneira e prossegue,
desse modo alternado, até o fim. Se nas descrições da técnica analítica se fala
tão pouco sobre ‘construções’, isso se deve ao fato de que, em troca, se fala
nas ‘interpretações’ e em seus efeitos. Mas acho que ‘construção’ é de longe a
descrição mais apropriada. ‘Interpretação’ aplica-se a algo que se faz a algum
elemento isolado do material, tal como uma associação ou uma parapraxia.
Trata-se de uma ‘construção’, porém, quando se põe perante o sujeito da análise
um fragmento de sua história primitiva, que ele esqueceu, aproximadamente da
seguinte maneira: ‘Até os onze anos de idade, você se considerava o único e
ilimitado possuidor de sua mãe; apareceu então um outro bebê e lhe trouxe uma
séria desilusão. Sua mãe abandonou você por algum tempo e, mesmo após o
reaparecimento dela, nunca mais se dedicou exclusivamente a você. Seus
sentimentos para com ela se tornaram ambivalentes, seu pai adquiriu nova
importância para você…’, e assim por diante.
No presente artigo, nossa atenção se voltará
exclusivamente para esse trabalho preliminar desempenhado pelas construções. E
aqui, no próprio início, surge a questão de saber que garantia temos, enquanto
trabalhamos nessas construções, de que não estamos cometendo equívocos e
arriscando o êxito do tratamento pela apresentação de alguma construção
incorreta. Pode parecer que em todos os casos seja impossível dar alguma
resposta a essa questão’; contudo mesmo antes de debatê-la, podemos dar ouvidos
a certa informação confortadora que é fornecida pela experiência analítica, uma
vez que com esta aprendemos que nenhum dano é causado se, ocasionalmente,
cometemos um equívoco e oferecemos ao paciente uma construção errada como sendo
a verdade histórica provável. Acha-se envolvido, é natural, um desperdício de
tempo, e todo aquele que não faça mais do que apresentar ao paciente
combinações falsas, não criará boa impressão nele nem levará o tratamento muito
longe; entretanto um equívoco isolado desse tipo não pode causar prejuízo. O
que realmente ocorre em tal caso é antes o fato de o paciente permanecer
intocado pelo que foi dito e não reagir nem com um ‘sim’ nem com um ‘não’. Isso
tem possibilidade de não significar nada mais senão que sua reação é adiada;
se, porém, nada mais se desenvolve, podemos concluir que cometemos um equívoco,
e admitiremos isso para o paciente em alguma oportunidade apropriada, sem nada
sacrificar de nossa autoridade. Essa oportunidade surgirá quando vier à luz um
novo material que nos permita fazer uma construção melhor e, assim, corrigir
nosso erro. Dessa maneira, a construção falsa é abandonada, como se nunca
tivesse sido feita, e, na verdade, freqüentemente ficamos com a impressão de
que, tomando de empréstimo as palavras de Polônio, nossa isca de falsidade
fisgou uma carpa de verdade.* O perigo de desencaminharmos um paciente por
sugestão, persuadindo-o a aceitar coisa em que nós próprios acreditamos, mas
que ele não deveria aceitar, decerto foi enormemente exagerado. Um analista
teria de se comportar muito incorretamente antes que tal infortúnio pudesse
dominá-lo; acima de tudo, teria de se culpar por não permitir que seus
pacientes tenham oportunidade de falar. Posso garantir, sem me gabar, que um
tal abuso de ‘sugestão’ jamais ocorreu em minha clínica.
Já decorre do que foi dito que de modo algum
estamos inclinados a negligenciar as indicações que podem ser inferidas a
partir da reação do paciente quando lhe oferecemos uma de nossas construções. O
assunto deve ser examinado em pormenor. É verdade que não aceitamos o ‘não’ de
uma pessoa em análise por seu valor nominal; tampouco, porém, permitimos que
seu ‘sim’ seja aceito. Não há justificação para que nos acusem de que
invariavelmente deformamos suas observações, transformando-as em confirmação.
Na realidade, as coisas não são tão simples assim, e não tornamos fácil para
nós próprios chegar a uma conclusão.
Um simples ‘sim’ do paciente de modo algum
deixa de ser ambíguo. Na verdade, pode significar que ele reconhece a correção
da construção que lhe foi apresentada, mas pode também não ter sentido ou mesmo
merecer ser descrito como ‘hipócrita’, uma vez que pode convir à sua
resistência fazer uso de um assentimento de uma verdade que não foi
descoberta.O ‘sim’ não possui valor, a menos que seja seguido por confirmações
indiretas, a menos que o paciente, imediatamente após o ‘sim,’, produza novas
lembranças que completem e ampliem a construção. Apenas em tal caso
consideramos que o ‘sim’ tratou completamente do assunto em debate.
Um ‘não’ provindo de uma pessoa em análise é
tão ambíguo quanto um ‘sim’ e, na verdade, de menor valor ainda. Em alguns
raros casos, ele mostra ser a expressão de uma dissensão legítima. Muito mais
freqüentemente, expressa uma resistência que pode ter sido evocada pelo tema
geral da construção que lhe foi apresentada, mas que, de modo igualmente fácil,
pode ter surgido de algum outro fator da complexa situação analítica. Um ‘não’
de um paciente, portanto, não constitui prova de correção de uma construção,
ainda que seja perfeitamente compatível com ela. Uma vez que toda construção
desse tipo é incompleta, pois abrange apenas um pequeno fragmento dos eventos
esquecidos, estamos livres para supor que o paciente não está de fato
discutindo o que lhe foi dito, mas baseando sua contradição na parte que ainda
não foi revelada. Via de regra, não dará seu assentimento até que tenha sabido
de toda a verdade - a qual amiúde abrange um campo muito grande. Dessa maneira,
a única interpretação segura de seu ‘não’ é que ele aponta para a qualidade de
não ser completo; não se pode haver dúvida de que a construção não lhe disse
tudo.
Parece, portanto, que as elocuções diretas do
paciente, depois que lhe foi oferecida uma construção, fornecem muito poucas
provas sobre a questão de saber se estivemos certos ou errados. É do maior
interesse que existam formas indiretas de confirmação, que são, sob todos os
aspectos, fidedignas. Uma delas é uma forma de expressão utilizada (como que
por consenso) com muito pequena variação pelas mais diferentes pessoas: ‘Nunca
pensei’ (ou ‘Nunca teria pensado’) ‘isso’ (ou ‘nisso’). Isso pode ser
traduzido, sem qualquer hesitação, por: ‘Sim, o senhor está certo dessa vez -
sobre meu inconsciente.’ Infelizmente, essa fórmula, tão bem-vinda ao analista,
chega a seus ouvidos com mais freqüência depois de interpretações isoladas do
que depois de ele ter produzido uma ampla construção. Confirmação igualmente
valiosa está implícita (dessa vez, expressa positivamente) quando o paciente
responde com uma associação que contém algo semelhante ou análogo ao conteúdo
da construção. Em vez de extrair um exemplo disso de uma análise (o que seria
fácil de achar, mas longode relatar), prefiro fornecer um relato de uma pequena
experiência extra-analítica que apresenta uma situação semelhante de modo tão
notável, que produz efeito quase cômico. Essa experiência se relacionou a um de
meus colegas que - há muito tempo atrás - me escolhera como consultor em sua
clínica médica. Certo dia, contudo, trouxe sua jovem esposa para me ver, pois
estava causando problemas para ele. Recusava-se, sob toda a sorte de pretextos,
a ter relações sexuais com ele, e o que ele esperava de mim, evidentemente, era
que expusesse a ela as conseqüências de seu comportamento imprudente. Ingressei
no assunto e expliquei-lhe que sua recusa provavelmente teria resultados
desafortunados para a saúde de seu marido, ou o deixaria exposto a tentações
que poderiam conduzir ao rompimento de seu matrimônio. Nesse ponto, ele
subitamente me interrompeu com a observação: ‘O inglês que você diagnosticou
como sofrendo de um tumor cerebral morreu também.’ A princípio, a observação
pareceu incompreensível; o ‘também’ em sua frase era um mistério, pois não
faláramos de ninguém que tivesse falecido. Pouco tempo depois, porém,
compreendi. Evidentemente o homem estava pretendendo confirmar o que eu
dissera; estava querendo dizer ‘Sim, você certamente tem toda a razão. Seu
diagnóstico foi confirmado no caso do outro paciente também.’ Era um excelente
paralelo às confirmações indiretas que, na análise, obtemos a partir das
associações. Não tentarei negar que, postos de lado por meu colega, também
havia outros pensamentos que tinham sua parte na determinação da observação
dele.
Confirmações indiretas oriundas de associações
que se ajustam ao conteúdo de uma construção - que nos forneceu um ‘também’
como aquele de minha história - proporcionam base valiosa para julgar se a
construção tem probabilidade de ser confirmada no decorrer da análise. É
particularmente notável quando, por meio de uma parapraxia, uma confirmação
desse tipo se insinua numa negação direta. Publiquei outrora, em outro lugar,
um belo exemplo disso. O nome ‘Jauner’ (familiar em Viena) surgira
repetidamente nos sonhos de um de meus pacientes sem que uma explicação
suficiente aparecesse em suas associações. Finalmente, apresentei a
interpretação de que, quando dizia ‘Jauner’, provavelmente queria dizer
‘Gauner’ [velhaco] ao que ele prontamente replicou: ‘Isso me parece “jewagt”
demais [em vez de “gewagt” (ousado, exagerado)]. Ou então, outra vez, quando
sugeri a um paciente que ele considerava determinados honorários muito altos,
ele pretendeu negar a sugestão com as palavras ‘Dez dólares não são nada para
mim’, mas, em vez de dólares, inseriu uma moeda de menor valor e disse ‘dez
xelins’.
Se uma análise é dominada por poderosos fatores
que impõem uma reação terapêutica negativa, tais como sentimento de culpa,
necessidade masoquista de sofrer ou repugnância por receber auxílio do
analista, o comportamento do paciente, depois que lhe foi oferecida uma
construção, freqüentemente torna bastante fácil para nós que cheguemos à
decisão que estamos procurando. Se a construção é errada, não há mudança no
paciente, mas, se é correta ou fornece uma aproximação da verdade, ele reage a
ela com um inequívoco agravamento de seus sintomas e de seu estado geral.
Podemos resumir o assunto afirmando que não há
justificativa para a censura de que negligenciamos ou subestimamos a
importância da atitude assumida pelos que estão em análise para com nossas
construções. Prestamo-lhes atenção e, com freqüência, dela derivamos
informações valiosas. Mas essas reações do paciente raramente deixam de ser
ambíguas, e não dão oportunidade para um julgamento final. Só o curso ulterior
da análise nos capacita a decidir se nossas construções são corretas ou
inúteis. Não pretendemos que uma construção individual seja algo mais do que
uma conjectura que aguarda exame, confirmação ou rejeição. Não reivindicamos
autoridade para ela, não exigimos uma concordância direta do paciente, não
discutimos com ele, caso a princípio a negue. Em suma, conduzimo-nos segundo
modelo de conhecida figura de uma das farsas de Nestroy - o criado que tem nos
lábios uma só resposta para qualquer questão ou objeção: ‘Tudo se tornará claro
no decorrer dos futuros desenvolvimentos.’
III
Como é que isso ocorre no processo da análise -
o modo como uma conjectura nossa se transforma em convicção do paciente - mal
vale a pena ser descrito. Tudo isso é familiar a todo analista, a partir de sua
experiência cotidiana, e é inteligível sem dificuldade. Apenas um ponto exige
investigação e explicação. O caminho que parte da construção do analista
deveria terminar na recordação do paciente, mas nem sempre ele conduz tão
longe. Com bastante freqüência não conseguimos fazer o paciente recordar o que
foi reprimido. Em vez disso, se a análise é corretamente efetuada, produzimos
nele uma convicção segura da verdade da construção, a qual alcança o mesmo
resultado terapêutico que uma lembrança recapturada. O problema de saber quais
as circunstâncias em que isso ocorre e de saber como é possível que aquilo que
parece ser um substituto incompleto produza todavia um resultado completo -
tudo isso constitui assunto para uma investigação posterior.
Concluirei esse breve artigo com algumas
considerações que descerram uma perspectiva mais ampla. Fiquei impressionado
pelo modo como, em certas análises, a comunicação de uma construção obviamente
apropriada evocou nos pacientes um fenômeno surpreendente e, a princípio,
incompreensível. Tiveram evocadas recordações vivas - que eles próprios
descreveram como ‘ultraclaras’ -, mas o que eles recordaram não foi o evento
que era o tema da construção, mas pormenores relativos a esse tema. Por
exemplo, recordaram com anormal nitidez os rostos das pessoas envolvidas na
construção ou as salas em que algo da espécie poderia ter acontecido, ou, um
passo adiante, os móveis dessas salas - sobre os quais, naturalmente, a
construção não tinha possibilidade de ter qualquer conhecimento. Isso ocorreu
tanto em sonhos, imediatamente depois que a construção foi apresentada, quanto
em estados de vigília semelhantes a fantasias. Essas próprias recordações não
conduziram a nada mais e pareceu plausível considerá-las como produto de uma
conciliação. O ‘Impulso ascendente’ do reprimido, colocado em atividade pela
apresentação da construção, se esforçou por conduzir os importantes traços de
memória para a consciência; uma resistência, porém, alcançou êxito - não, é
verdade, em deter esse movimento -, mas em deslocá-lo para objetos adjacentes
de menor significação.
Essas recordações poderiam ser descritas como
alucinações, se uma crença em sua presença concreta se tivesse somado à sua
clareza. A importância dessa analogia pareceu maior quando observei que
alucinações verdadeiras corriam ocasionalmente no caso de outros pacientes que
certamente não eram psicóticos. Minha linha de pensamento progrediu da seguinte
forma: talvez seja uma característica geral das alucinações - à qual uma
atenção suficiente não foi até agora prestada - que, nelas, algo que foi experimentado
na infância e depois esquecido retorne - algo que a criança viu ou ouviu numa
época em que ainda mal podia falar e que agora força o seu caminho à
consciência, provavelmente deformado e deslocado, devido à operação de forças
que se opõem a esse retorno. E, em vista da estreita relação existente entre
alucinações e formas específicas de psicose, nossa linha de pensamento pode ser
levada ainda mais além. Pode ser que os próprios delírios em que essas
alucinações são constantemente incorporadas sejam menos independentes do
impulso ascendente do inconsciente e do retorno do reprimido do que geralmente
presumimos. No mecanismo de um delírio, via de regra, acentuamos apenas dois
fatores: o afastamento do mundo real e suas forças motivadoras, por um lado, e
a influência exercida pela realização de desejo sobre o conteúdo do delírio,
por outro. Mas não poderá acontecer que o processo dinâmico seja antes o ato de
o afastamento da realidade ser explorado pelo impulso ascendente do reprimido,
a fim de forçar seu conteúdo à consciência, enquanto as resistências
despertadas por esse processo e a inclinação à realização de desejo partilham
da responsabilidade pela deformação e pelo deslocamento do que é recordado?
Esse é, afinal de contas, o mecanismo familiar dos sonhos, o qual, desde tempos
imemoriais, a intuição igualou à loucura.
Essa visão dos delírios não é, penso eu,
inteiramente nova; não obstante, dá ênfase a um ponto de vista que geralmente
não é trazido para o primeiro plano. A essência dela é que há não apenas método
na loucura como o poeta já percebera, mas também um fragmento de verdade
histórica, sendo plausível supor que a crença compulsiva que se liga aos
delírios derive sua força exatamente de fontes infantis desse tipo. Tudo o que
posso produzir hoje em apoio dessa teoria são reminiscências, não impressões
novas. Provavelmentevaleria a pena fazer uma tentativa de estudar casos do
distúrbio em apreço com base nas hipóteses que foram aqui apresentadas e também
efetuar seu tratamento segundo essas mesmas linhas. Abandonar-se-ia o vão
esforço de convencer o paciente do erro de seu delírio e de sua contradição da
realidade, e, pelo contrário, o reconhecimento de seu núcleo de verdade
permitiria um campo comum sobre o qual o trabalho terapêutico poderia desenvolver-se.
Esse trabalho consistiria em libertar o fragmento de verdade histórica de suas
deformações e ligações com o dia presente real, e em conduzi-lo de volta para o
ponto do passado a que pertence. A transposição de material do passado
esquecido para o presente, ou para uma expectativa de futuro, é, na verdade,
ocorrência habitual nos neuróticos, não menos do que nos psicóticos. Com
bastante freqüência, quando um neurótico é levado, por um estado de ansiedade,
a esperar a ocorrência de algum acontecimento terrível, ele de fato está
simplesmente sob a influência de uma lembrança reprimida (que está procurando
ingressar na consciência, mas não pode tornar-se consciente) de que algo que
era, naquela ocasião, terrificante, realmente aconteceu. Acredito que
adquiriríamos um grande e valioso conhecimento a partir de um trabalho desse
tipo com psicóticos, mesmo que não conduzisse a nenhum sucesso terapêutico.
Estou ciente de que é de pouca utilidade tratar
um assunto tão importante da maneira apressada que aqui empreguei. Contudo, não
pude resistir à sedução de uma analogia. Os delírios dos pacientes parecem-me
ser os equivalentes das construções que erguemos no decurso de um tratamento
analítico - tentativas de explicação e de cura, embora seja verdade que estas,
sob as condições de uma psicose, não podem fazer mais do que substituir o
fragmento de realidade que está sendo rejeitado no passado remoto. Será tarefa
de cada investigação individual revelar as conexões íntimas existentes entre o
material da rejeição atual e o da repressão original. Tal como nossa construção
só é eficaz porque recupera um fragmento de experiência perdida, assim também o
delírio deve seu poder convincente ao elemento de verdade histórica que ele
insere no lugar da realidade rejeitada. Desse maneira, uma proposição que
originalmente asseverei apenas quanto a histeria se aplicaria também aos
delírios, a saber, que aqueles que lhes são sujeitos, estão sofrendo de suas
próprias reminiscências. Nunca pretendi, através dessa breve fórmula, discutir
a complexidade da causação da doença ou excluir o funcionamento de muitos
outros fatores.
Se considerarmos a humanidade como um todo e
substituirmos o indivíduo humano isolado por ela, descobriremos que também ela
desenvolveu delírios que são inacessíveis à crítica lógica e que contradizem a
realidade. Se, apesar disso, esses delírios são capazes de exercer um poder
extraordinário sobre os homens, a investigação nos conduz à mesma explicação
que no caso do indivíduo isolado. Eles devem seu poder ao elemento de verdade
histórica que trouxeram à tona a partir da repressão do passado esquecido e
primevo.
A DIVISÃO DO EGO NO PROCESSO DE DEFESA (1940 [1938])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DIE ICHSPALTUNG IM ABWEHRVORGANG
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1940 Int. Z. Psychoanal., Imago, 25
(3/4), 241-4.
1941 G. W., 17, 59-62.
(a) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Splitting
of the Ego in the efensive Process’
1941
Int. J. Psycho-Anal., 22 (1), 65-8. (Trad. de James Strachey.)
1950 C. P., 5, 372-5. (Reimpressão da
anterior.)
A presente tradução, com o título alterado, é
versão consideravelmente corrigida da publicada em 1950.
O manuscrito deste importante trabalho
inacabado, publicado postumamente, está datado de 2 de janeiro de 1938 e,
segundo Ernest Jones (1957, 255), foi ‘escrito no Natal de 1937’.
O artigo leva mais além do que antes a
investigação do ego e seu comportamento em circunstâncias difíceis. Dois
tópicos inter-relacionados estão envolvidos, ambos os quais tinham ultimamente
ocupado a mente de Freud: a noção do ato de ‘rejeição’ (‘Verleugnung‘) e
a noção de que esse ato resulta numa ‘divisão’ (splitting) do ego. A
‘rejeição foi geralmente debatida por Freud, como o é aqui, em conexão com o
complexo de castração. Surgiu, por exemplo, no artigo sobre ‘The Infantile
Genital Organization’ (1923e), Standard Ed., 19, p. 143, onde uma nota de
rodapé do Editor Inglês fornece certo número de referências a outros
aparecimentos do termo. Um destes é no breve estudo ‘Fetichismo’ (1927e),
Edição Standard Brasileira Vol. XXI, Pp. 182-3, IMAGO Editora, 1974, do
qual o presente artigo pode ser encarado como seqüência, pois, naquele estudo,
a divisão do ego conseqüente à rejeição foi enfatizada. (Já se aludira a ela em
‘Neurosis and Psychosis’ (1924b), ibid. 19, Pp. 152-3.)
Embora o presente artigo, por alguma razão
inexplicada, tenha sido deixado inacabado por Freud, ele retoma seu tema um
pouco mais tarde, nas duas ou três últimas páginas do Capítulo VIII de seu Esboço
de Psicanálise (1940a [1938]),ver em
[1],[2],[3],[4] acima. Aí, contudo, estende a aplicação da idéiade uma
divisão de ego, para além dos casos de fetichismo e das psicoses, às psicoses,
às neuroses em geral. Dessa maneira, o tópico vincula-se à questão mais ampla
da ‘alteração do ego’, invariavelmente ocasionada pelos processos de defesa.
Isso, mais uma vez, era algo com que Freud lidara recentemente, em seu artigo
técnico sobre ‘Análise Terminável e Interminável’ (1937c, especialmente na
Seção V), mas que nos conduz de volta a tempos bastante iniciais, ao segundo
artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1896b), Standard Ed., 3, p.
185, e o ainda mais inicial Rascunho K da correspondência com Fliess (1950a).
A DIVISÃO DO EGO NO PROCESSO DE
DEFESA
Encontro-me, por um momento, na interessante
posição de não saber se o que tenho a dizer deve ser encarado como há muito
tempo conhecido ou como algo inteiramente novo e enigmático. Estou, porém,
inclinado a pensar que é este último.
Acabei por ficar impressionado pelo fato de que
o ego de uma pessoa a quem conhecemos como paciente em análise, deve, dezenas
de anos atrás quando era jovem, ter-se comportado de maneira notável em certas
situações específicas de pressão. Podemos designar em termos gerais e um tanto
vagos as condições nas quais isso sucede, dizendo que ocorre sob a influência
de um trauma psíquico. Prefiro selecionar um caso especial isolado e
nitidamente definido, ainda que ele, certamente, não abranja todos os modos
possíveis de causação.
Suponhamos, portanto, que o ego de uma criança
se encontra sob a influência de uma poderosa exigência instintual que está
acostumado a satisfazer, e que é subitamente assustado por uma experiência que
lhe ensina que a continuação dessa satisfação resultará num perigo real quase
intolerável. O ego deve então decidir reconhecer o perigo real, ceder-lhe
passagem e renunciar à satisfação instintual, ou rejeitar a realidade e
convencer-se de que não há razão para medo, de maneira a poder conservar a
satisfação. Existe assim um conflito entre a exigência por parte do instinto e
a proibição por parte da realidade. Na verdade, porém, a criança não toma
nenhum desses cursos, ou melhor, toma ambos simultaneamente, o que equivale à
mesma coisa. Ela responde ao conflito por duas reações contrárias, ambas
válidas e eficazes. Por um lado, com o auxílio de certos mecanismos, rejeita a
realidade e recusa-se a aceitar qualquer proibição; por outro, no mesmo alento,
reconhece o perigo da realidade, assume o medo desse perigo como um sintoma
patológico e subseqüentemente tenta desfazer-se do medo. Deve-se confessar que
se trata de uma solução bastante engenhosa da dificuldade. Ambas as partes na
disputa obtêm sua cota: permite-se que o instinto conserve sua satisfação e
mostra-se um respeito apropriado pela realidade. Mas tudo tem de ser pago de
uma maneira ou de outra, e esse sucesso é alcançado ao preço de uma fenda no
ego, a qual nunca se cura, mas aumenta à medida que o tempo passa. As duas
reações contrárias ao conflito persistem como ponto central de uma divisão (splitting)
do ego. Todo esse processo nos parece tão estranho porque tomamos por certa a
natureza sintética dos processos do ego. Quanto aisso, porém, estamos
claramente em falta. A função sintética do ego, embora seja de importância tão
extraordinária, está sujeita a condições particulares e exposta a grande número
de distúrbios.
Será de ajuda que eu introduza uma história
clínica individual nessa dissertação esquemática. Um menino, quando se achava
entre os três e quatro anos de idade, familiarizou-se com os órgãos genitais
femininos mediante a sedução por parte de uma menina mais velha. Depois que
essas relações foram interrompidas, ele prosseguiu a estimulação sexual, posta
em andamento dessa maneira, praticando zelosamente a masturbação manual; cedo,
porém, foi apanhado nela por sua enérgica babá e ameaçado de castração, cuja
realização foi, como de costume, atribuída ao pai. Estavam assim presentes
nesse caso condições calculadas para produzir um tremendo efeito de susto. Em
si mesma, uma ameaça de castração não necessita produzir grande impressão. A
criança se recusará a acreditar nela, pois não pode imaginar facilmente a
possibilidade de perder uma parte tão altamente prezada de seu corpo. A visão
[anterior] dos órgãos genitais femininos poderia ter convencido nossa criança
dessa possibilidade. Mas ela não tirou conclusão alguma disso, já que sua
desinclinação a fazê-lo era grande demais e não havia motivo presente que a
isso o compelisse. Pelo contrário, qualquer apreensão que pudesse ter sentido
foi acalmada pela reflexão de que aquilo que ainda faltava faria seu
aparecimento: ela desenvolveria um [pênis] mais tarde. Todo aquele que tenha
observado meninos bastante pequenos será capaz de recordar que se deparou com
alguma observação desse tipo à visão dos órgãos genitais de uma irmãzinha. Mas
é diferente se ambos os fatores estão presentes em conjunto. Nesse caso, a
ameaça revive a lembrança da percepção que até então fora considerada como
inofensiva, encontrando nessa lembrança uma confirmação temível. O menino agora
pensa compreender por que os órgãos genitais da menina não apresentavam sinais
de pênis, e não mais se arrisca a duvidar de que seus próprios órgãos genitais
possam encontrar o mesmo destino. Daí por diante, ele não pode deixar de
acreditar na realidade do perigo de castração.
O resultado costumeiro do susto da castração,
aquele que passa por normal, é que imediatamente, ou depois de considerável
luta, o menino cede à ameaça e obedece à proibição, integralmente ou pelo menos
emparte (isto é, não mais tocando nos genitais com as mãos). Em outras
palavras, ele abandona, no todo ou em parte, a satisfação do instinto. Estamos
preparados para ouvir, contudo, que nosso paciente atual encontrou outra saída.
Criou um substituto para o pênis de que sentia falta nos indivíduos do sexo
feminino - o que equivale a dizer, um fetiche. Procedendo assim, é verdade que
rejeitou a realidade, mas poupou seu próprio pênis. Enquanto não foi obrigado a
reconhecer que as mulheres tinham perdido o pênis delas, não houve necessidade,
para ele, de acreditar na ameaça que lhe fora feita; não precisava temer por
seu próprio pênis, de modo que prosseguiu imperturbado com sua masturbação.
Esse comportamento por parte de nosso paciente forçosamente nos impressiona
como sendo um afastamento da realidade - procedimento que preferiríamos
reservar para as psicoses. E ele, de fato, não é muito diferente. Contudo,
suspenderemos nosso julgamento, já que, a uma inspeção mais rigorosa,
descobriremos uma distinção não pouco importante. O menino não contradisse
simplesmente suas percepções, e alucinou um pênis onde nada havia a ser visto;
ele não fez mais do que um deslocamento de valor - transferiu a importância do
pênis para outra parte do corpo, procedimento em que foi auxiliado pelo mecanismo
de regressão (de uma maneira que não precisa ser explicada aqui). Esse
deslocamento, é verdade, relacionou-se apenas ao corpo feminino; com referência
a seu próprio pênis, nada se modificou.
Essa maneira de lidar com a realidade, que
quase merece ser descrita como astuta, foi decisiva quanto ao comportamento
prático do menino. Ele continuou com sua masturbação como se esta não
implicasse perigo para seu pênis; ao mesmo tempo, porém, em completa
contradição com sua aparente audácia ou indiferença, desenvolveu um sintoma que
demonstrava que, todavia, reconhecia o perigo. Ele fora ameaçado de ser
castrado pelo pai e, imediatamente após, de modo simultâneo à criação de seu
fetiche, desenvolveu um intenso medo de que o pai o punisse, medo que exigiu
toda a força de sua masculinidade para ser dominado e supercompensado. Também
esse medo do pai silenciava sobre o tema da castração; pela ajuda da regressão
à fase oral, assumia a forma de um medo de ser comido pelo pai. Nesse ponto, é
impossível esquecer um primitivo fragmento da mitologia grega, que nos conta
como Cronos, o velho Deus Pai, engoliu os filhos e procurou engolir seu filho
mais novo, Zeus, tal como os restantes, e como Zeus foi salvo pela habilidade
de sua mãe que, posteriormente, castrou o pai. Contudo, temos de retornar à
nossa história clínica e acrescentar que o menino produziu ainda outro sintoma,
leve embora, o qual ele reteve até o dia de hoje. Tratava-se de uma
suscetibilidade ansiosa contra o fato de qualquer de seus dedinhos do pé ser
tocado, como se, em todo o vaivém entre rejeição e reconhecimento, fosse
todavia a castração que encontrasse a expressão mais clara…
ALGUMAS LIÇÕES ELEMENTARES DE PSICANÁLISE (1940 [1938])
SOME ELEMENTARY LESSONS IN
PSYCHO-ANALYSIS
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1940
Int. Z. Psychoanal., Imago, 25 (1), 21-2. (Em parte.)
1941
G. W. 17, 141-7. (Completo.)
(b)TRADUÇÕES
INGLESAS:
1940
Int. J. Psycho-Anal., 21 (1), 83-4. (Em parte.) (Trad. de James
Strachey.)
1950
C. P., 5, 376-82. (Completo. Mesmo tradutor.)
A presente tradução é reimpressão revista da
que foi publicada em 1950.As publicações parciais originais foram publicadas
como nota de rodapé à primeira edição alemã do Esboço de Psicanálise
(1940 [1938]) e como Apêndice à primeira tradução inglesa dessa obra.
O título do original está em inglês. Foi
escrito em Londres e o manuscrito vem datado de 20 de outubro de 1938.
Permaneceu, porém, como um fragmento. o Esboço fora abandonado em
começos de setembro anterior - também um fragmento, mas muito maior e mais
importante -, e este constituiu uma abordagem nova e diferente do mesmo
problema. Cf. exame mais completo da Nota do Editor Inglês ao Esboço,ver
em [1].
ALGUMAS LIÇÕES ELEMENTARES DE
PSICANÁLISE
Um autor que se dispõe a introduzir algum ramo
do conhecimento - ou, para falar de modo mais modesto, algum ramo da pesquisa -
para um público não instruído tem claramente de fazer sua escolha entre dois
métodos ou técnicas.
É possível partir daquilo que todo leitor sabe
(ou pensa que sabe) e encara como auto-evidente, sem, em primeira instância,
contradizê-lo. Logo ocorrerá oportunidade de chamar a atenção dele para fatos
do mesmo campo que, embora lhe sejam conhecidos, até então negligenciou ou
apreciou de modo insuficiente. Partindo destes, podem-se-lhe apresentar novos
fatos dos quais não tem conhecimento e assim prepará-lo para a
necessidade de ultrapassar seus juízos anteriores, de procurar novos pontos de
vista e de levar em consideração novas hipóteses. Dessa maneira, pode-se
conseguir que ele tome parte na construção de uma nova teoria sobre o assunto,
e lidar com suas objeções para com ela durante o decurso concreto do trabalho
conjunto. Um método desse tipo bem poderia ser chamado de genético. Ele
segue o caminho ao longo do qual o próprio investigador viajou anteriormente.
Apesar de todas as suas vantagens, tem o defeito de não ocasionar um efeito
suficientemente impressivo sobre aquele que aprende. Este não ficará tão
impressionado por algo a que assistiu vir à existência e passar por um lento e
difícil período de crescimento, quanto ficará por algo que lhe é apresentado já
pronto, como um todo aparentemente auto-abrangente.
É exatamente esse último efeito que é produzido
pelo método alternativo de apresentação. O outro método, o dogmático,
começa diretamente pelo enunciado de suas conclusões. Suas premissas fazem
exigências à atenção e à crença da assistência, e muito pouco lhes é aduzido em
apoio. E há ainda o perigo de que um ouvinte crítico balance a cabeça e diga:
‘tudo isso soa muito peculiar; de onde foi que esse sujeito o tirou?’
No que se segue, não me basearei exclusivamente
em nenhum dos dois métodos de apresentação: farei uso ora de um, ora de outro.
Não tenho ilusões sobre a dificuldade de minha tarefa. A psicanálise tem poucas
perspectivas de se tornar apreciada ou popular. Não se trata simplesmente do
fato de que muito do que ela tem a dizer ofende os sentimentos das pessoas. Uma
dificuldade quase igual é criada pelo fato de nossa ciência envolver certo
número de hipóteses - é difícil dizer se elas devem ser encaradas como
postulados ou como produtos de nossa pesquisas - que estão sujeitas a parecerem
muito estranhas às modalidades comuns de pensamento e que contradizem
fundamentalmente opiniões correntes. Mas não há saída para isso. Temos de
começar nosso breve estudo com duas dessas arriscadas hipóteses.
A NATUREZA DO PSÍQUICO
A psicanálise constitui uma parte da ciência
mental da psicologia. Também é descrita como ‘psicologia profunda’; mais tarde,
descobriremos por quê. Se alguém perguntar o que realmente significa ‘o
psíquico’, será fácil responder pela enumeração de seus constituintes: nossas
percepções, idéias, lembranças, sentimentos e atos volitivos - todos fazem
parte do que é psíquico. Mas se o interrogador for mais longe e perguntar se
não existe alguma qualidade comum, possuída por todos esses processos, que
torne possível chegar mais perto da natureza, ou, como as pessoas às
vezes dizem, da essência do psíquico, então será mais difícil fornecer
uma resposta.
Se uma pergunta análoga tivesse sido feita a um
físico (quanto à natureza da eletricidade, por exemplo), a resposta deste, até
muito recentemente, teria sido: ‘Para o fim de explicar certos fenômenos,
presumimos a existência de forças elétricas que estão presentes nas coisas e
que delas emanam. Estudamos esses fenômenos, descobrimos as leis que os
governam e até mesmo colocamo-los em uso prático. Isso nos satisfaz
provisoriamente. Não conhecemos a natureza da eletricidade. Talvez
possamos descobri-la mais tarde, na medida em que nosso trabalho progrida. Há
que admitir que aquilo que dela ignoramos é precisamente a parte mais
importante e interessante de todo o assunto, mas, no momento, isso não nos
preocupa. É simplesmente como as coisas acontecem nas ciências naturais.’
Também a psicologia é uma ciência natural. O
que mais pode ser? Mas seu caso é diferente. Nem todos são bastante audazes
para emitir julgamento sobre assuntos físicos, mas todos - tanto o filósofo
quanto o homem da rua - têm sua opinião sobre questões psicológicas e se
comportam como se fossem, pelo menos, psicólogos amateurs. E agora vem a
coisa notável. Todos - ou quase todos - concordaram que o que é psíquico tem
realmente uma qualidade comum na qual sua essência se expressa, a saber, a
qualidade de ser consciente - única, indescritível, mas sem necessitar
de descrição. tudo o que é consciente, dizem eles, é psíquico, e, inversamente,
tudo o que é psíquico é consciente; isso é auto-evidente e contradizê-lo é
absurdo. Não se pode dizer que essa decisão lance muita luz sobre a natureza do
psíquico,pois a consciência é um dos fatos fundamentais de nossa vida e nossas
pesquisas dão contra ele como contra uma parede lisa, e não podem encontrar
qualquer caminho além. Ademais, a igualação do que é mental ao que é consciente
tem o resultado incômodo de divorciar os processos psíquicos do contexto geral
dos acontecimentos no universo e de colocá-los em completo contraste com todos
os outros. Mas isso não serviria, uma vez que não se pode desprezar por muito
tempo o fato de que os fenômenos psíquicos são em alto grau dependentes das
influências somáticas e o de que, por seu lado, possuem os mais poderosos
efeitos sobre os processos somáticos. Se alguma vez o pensamento humano se
encontrou num impasse, foi aqui. Para descobrir uma saída, os filósofos,
pelo menos, foram obrigados a presumir que havia processos orgânicos paralelos
aos processos psíquicos conscientes, a eles relacionados de uma maneira difícil
de explicar, que atuavam como intermediários nas relações recíprocas entre
‘corpo e mente’, e que serviam para reinserir o psíquico na contextura da vida.
Mas essa solução permaneceu insatisfatória.
A psicanálise escapou a dificuldades como
essas, negando energicamente a igualação entre o que é psíquico e o que é
consciente. Não; ser consciente não pode ser a essência do que é psíquico. É
apenas uma qualidade do que é psíquico, e uma qualidade inconstante -
uma qualidade que está com muito mais freqüência ausente do que presente. O
psíquico, seja qual for sua natureza, é em si mesmo inconsciente e
provavelmente semelhante em espécie a todos os outros processos naturais de que
obtivemos conhecimento.
A psicanálise baseia essa asserção numa série
de fatos, dos quais passarei agora a fornecer uma seleção.
Sabemos o que se quer dizer por idéias que
‘ocorrem’ a alguém - pensamentos que subitamente vêm à consciência sem que se
esteja ciente dos passos que a eles levaram, embora também estes devam ter sido
atos psíquicos. Pode mesmo acontecer que se chegue dessa maneira à solução de
algum difícil problema intelectual, que anteriormente, durante certo tempo,
frustrou nossos esforços. Todos os complicados processos de seleção, rejeição e
decisão que ocuparam o intervalo foram retirados da consciência. Não estaremos
apresentando nenhuma teoria nova se dissermos que eles foram inconscientes e
que talvez, também, assim permaneceram.
Em segundo lugar, colherei um exemplo isolado
para representar uma imensa classe de fenômenos. O presidente de um órgão
público (a CâmaraBaixa do Parlamento Austríaco) em certa ocasião abriu uma
reunião com as seguintes palavras: ‘Constato que um quorum completo de
membros está presente e por isso declaro encerrada a sessão.’ Foi um
lapso verbal, pois não pode haver dúvida de que aquilo que o presidente
pretendia dizer era ‘aberta’. Por que então disse o contrário? Esperaremos que
nos digam que foi um equívoco acidental, uma falha em levar a cabo uma
intenção, tal como pode facilmente acontecer por diversas razões: não teve
significado e, de qualquer modo, os contrários, de modo particular e fácil,
substituem-se uns aos outros. Se, contudo, tivermos em mente a situação em que
o lapso verbal ocorreu, ficaremos inclinados a preferir outra explicação.
Muitas das sessões anteriores da Câmara tinham sido desagradavelmente
tempestuosas e nada haviam produzido, de modo que seria muito natural que o
presidente pensasse, no momento de fazer sua declaração de abertura: ‘Se a
sessão que está apenas começando estivesse acabada! Preferiria muito mais
encerrá-la do que abri-la!’ Quando começou a falar, provavelmente não estava
cônscio desse desejo - não lhe era consciente -, mas ele achava-se certamente
presente e alcançou sucesso em se fazer efetivo, contra a vontade do orador, em
seu aparente equívoco. Um exemplo isolado dificilmente pode capacitar-nos a
decidir entre duas explicações tão diferentes. Mas, e se todos os outros
exemplos de lapsos verbais pudessem ser explicados da mesma maneira, e,
semelhantemente, todos os lapsos de escrita, todos os casos de leitura ou
audição equivocada, e todos os atos falhos? E se em todos esses casos (sem uma
única exceção, poder-se-ia corretamente dizer) fosse possível demonstrar a
presença de um ato psíquico - um pensamento, um desejo ou uma intenção - que
explicasse o equívoco aparente e que fosse inconsciente no momento em que se
tornou efetivo, ainda que anteriormente pudesse ter sido consciente? Se assim
fosse, realmente não seria mais possível discutir o fato de que existem atos
psíquicos que são inconscientes e o de que às vezes eles são mesmo ativos
enquanto se acham inconscientes, e nesse caso podem inclusive, ocasionalmente,
levar a melhor sobre as intenções conscientes. A pessoa envolvida num equívoco
desse tipo pode reagir a ele de diversas maneiras. Pode desprezá-lo
completamente ou notá-lo e ficar embaraçada e envergonhada. Via de regra, não
pode encontrar a explicação dele por si própria, sem auxílio externo, e quase
sempre se recusa - por certo tempo, pelo menos - a aceitar a solução quando
esta lhe é apresentada.
Em terceiro lugar, finalmente, é possível, no
caso de pessoas em estado de hipnose, provar experimentalmente que existem
coisas tais como atos psíquicos inconscientes e que a consciência não constitui
condição indispensável da atividade [psíquica]. Todo aquele que tenha assistido
a uma experiência desse tipo receberá uma impressão inesquecível e uma
convicção que jamais poderá ser abalada. Aqui temos, mais ou menos, o que
acontece. O médico entra na enfermaria do hospital, coloca seu guarda-chuva a
um canto, hipnotiza um dos pacientes e lhe diz: ‘Vou sair agora. Quando eu
entrar de novo, você virá a meu encontro com o guarda-chuva aberto e o segurará
sobre minha cabeça.’ O médico e seus assistentes deixam então a enfermaria.
Assim que retornam, o paciente, que não está mais sob hipnose, executa
exatamente as instruções que lhe foram dadas enquanto hipnotizado. O médico o
interroga: ‘O que é que você está fazendo? Qual é o significado disso tudo?’ O
paciente fica claramente embaraçado. Faz alguma observação desajeitada, tal
como: ‘Como está chovendo lá fora, doutor, achei que o senhor abriria seu
guarda-chuva na sala antes de sair.’ A explicação é evidentemente bastante
inadequada e efetuada impulsivamente, para oferecer algum tipo de motivo para
seu comportamento insensato. É claro para nós, espectadores, que ele ignora seu
motivo real. Nós, contudo, sabemos qual é, pois estávamos presentes quando lhe
foi feita a sugestão que ele está levando a cabo agora, ao passo que ele
próprio nada sabe do fato que se acha em ação nele.
A questão da relação do consciente com o
psíquico pode agora ser considerada resolvida: a consciência é apenas uma qualidade
inconstante. Mas há ainda uma objeção com a qual temos de lidar. Dizem-nos que,
apesar dos fatos mencionados, não há necessidade de abandonar a identidade
entre o que é consciente e o que é psíquico: os chamados processos psíquicos
inconscientes são os processos orgânicos que há muito tempo foram reconhecidos
como correndo paralelos aos mentais. Isso, naturalmente, reduziria nosso
problema a uma questão aparentemente indiferente de definição. Nossa resposta é
que seria injustificável e inconveniente provocar uma brecha na unidade da vida
mental em benefício da sustentação de uma definição, de uma vez que é claro,
seja lá como for, que a consciência só nos pode oferecer uma cadeia incompleta
e rompida de fenômenos. E dificilmente pode ser questão de acaso que só depois
de ter sido efetuada a mudança na definição do psíquico, se tenha tornado
possível construir uma teoria abrangente e coerente da vida mental.Tampouco é
preciso supor que essa visão alternativa do psíquico constitui uma inovação
devida à psicanálise. Um filósofo alemão, Theodor Lipps afirmou muito
explicitamente que o psíquico é em si mesmo inconsciente e que o inconsciente é
o verdadeiro psíquico. O conceito de inconsciente por muito tempo esteve
batendo aos portões da psicologia, pedindo para entrar. A filosofia e a
literatura quase sempre o manipularam distraidamente, mas a ciência não lhe
pôde achar uso. A psicanálise apossou-se do conceito, levou-o a sério e
forneceu-lhe um novo conteúdo. Por suas pesquisas, ela foi conduzida a um
conhecimento das características do inconsciente psíquico que até então não
haviam sido suspeitadas, e descobriu algumas das leis que o governam. Mas nada
disso implica que a qualidade de ser consciente tenha perdido sua importância
para nós. Ela permanece a única luz que ilumina nosso caminho e nos conduz
através das trevas da vida mental. Em conseqüência do caráter especial de nossas
descobertas, nosso trabalho científico em psicologia consistirá em traduzir
processos inconscientes em conscientes, e assim preencher as lacunas da
percepção consciente…
UM COMENTÁRIO SOBRE O ANTI-SEMITISMO (1938)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
EIN WORT ZUM ANTISEMITISMUS
(a) EDIÇÃO ALEMÃ:
1938 Die Zukunft: ein neues Deustschland ein
neues Europa, nº 7, 2. (25 de novembro.)
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘On
Antisemitism’
1938
Como acima. (Tradutor não especificado.)
A presente tradução é da autoria de James
Strachey.
Alguns pormenores do periódico em que este
trabalho apareceu foram fornecidos por Arthur Koestler (1954, p. 406 e segs.),
que o editava na época em que estamos interessados. Era publicado em Paris e
ele o descreveu como ‘um semanário alemão émigré‘. Começou sua
publicação no outono de 1938 e cessou-a cerca de 18 meses mais tarde. O Sr
Koestler esteve encarregado dele durante os primeiros meses de sua existência.
O número específico em que o artigo de Freud apareceu foi um número
‘anglo-alemão’, impresso em ambas as línguas, e o Sr. Koestler relata que veio
até Londres para persuadir Freud a contribuir para o mesmo. O periódico é hoje
difícil de conseguir e ficamos em débito para com o Dr. K. R. Eissler, dos
Arquivos Sigmund Freud, por nos fornecer cópias fotostáticas do manuscrito
original de Freud, do artigo impresso e da tradução contemporânea, anônima e
muito livre.
O artigo, como se verá, consiste quase
integralmente na citação de uma fonte que Freud declara que não mais pode
traçar. Foi sugerido com alguma plausibilidade (cf. Ernest Jones, 1957, p. 256)
que a citação, realmente, é do próprio Freud, que assim escolheu uma maneira
indireta de expressar algumas opiniões bastante antipáticas. Seja como for,
existe um forte parentesco entre muito do que está aqui contido e as opiniões
apresentadas por Freud em outros lugares, particularmente em Moisés e o
Monoteísmo (1939a), que acabara de completar. (Ver, por exemplo, os exames
do caráter judeu na Parte I (D) e Parte II (A) do terceiro ensaio.) E, ainda, o
apelo, feito tão convincentemente aqui, para que os protestos contra a
perseguição aos judeus fossemfeitos por não judeus, aparece também na
carta de Freud a Time and Tide (1938c-3), publicada apenas um dia após o
presente artigo ver em ([1]).
UM COMENTÁRIO SOBRE O
ANTI-SEMITISMO
Examinando as considerações na imprensa e na
literatura provocadas pelas recentes perseguições aos judeus, deparei-me com um
determinado ensaio que me impressionou como sendo tão fora do comum, que dele
fiz um précis para meu próprio uso. O que o autor escreveu foi
aproximadamente o seguinte:
‘A título de prefácio, devo explicar que não
sou judeu e, portanto, não sou levado a fazer estas observações por qualquer
preocupação egoísta. Entretanto, senti um vivo interesse pelos excessos
anti-semitas da atualidade e dirigi minha atenção particular para os protestos
contra eles. Esses protestos provieram de duas direções - a eclesiástica e a
secular -, os primeiros em nome da religião, os últimos a apelar para os
direitos de humanidade. Os primeiros foram escassos e vieram tarde, mas vieram
por fim, e mesmo Sua Santidade, o Papa elevou sua voz. Confesso que houve algo
de que senti falta nas demonstrações provindas de ambos os lados - algo
em seu começo e também em seu fim. Tentarei agora fornecê-lo.
‘Todos esses protestos, penso eu, poderiam ser
precedidos por uma introdução específica, que diria: “bem, é verdade, tampouco
eu gosto de judeus. De certa maneira, eles me parecem estranhos e antipáticos.
Têm muitas qualidades desagradáveis e grandes defeitos. Acho também que a
influência que tiveram sobre nós e nossos assuntos foi predominantemente
nociva. Sua raça, comparada à nossa, é obviamente inferior; todas as suas
atividades argumentaram em favor disso.” E após isso, que é coisa que esses
protestos realmente contêm, poderia seguir-se sem qualquer discrepância:
“Mas nós professamos uma religião de amor. Deveríamos amar inclusive nossos
inimigos como a nós mesmos. Sabemos que o Filho de Deus deu Sua vida na Terra
para redimir todos os homens do fardo do pecado. Ele constitui nosso
modelo e, portanto, é pecar contra a Sua intenção e contra as ordens da
religião cristã consentirmos que os judeus sejam insultados, maltratados,
despojados e mergulhados na desgraça. Deveríamos protestar contra isso,
independentemente de quão muito ou pouco os judeus mereçam esse tratamento.” O
escritores seculares, que acreditam no evangelho da humanidade, protestam em
termos semelhantes.
‘Confesso que não fiquei satisfeito com nenhuma
dessas demonstrações. À parte a religião do amor e da humanidade, há também uma
religião da verdade, e ela tem-se saído muito mal nesses protestos. Mas a
verdade é que, por longos séculos, tratamos o povo judeu injustamente, e que
assim continuamos a proceder por julgá-los injustamente. Quem quer de nós que
não comece por admitir nossa culpa não cumpriu seu dever quanto a isso. Os
judeus não são piores do que nós; eles possuem características um tanto
diferentes e defeitos um tanto diferentes, mas, no total, não temos direito a
olhá-los de cima. Sob alguns aspectos, na verdade, são superiores a nós. Não
necessitam de tanto álcool quanto nós para tornar tolerável a vida; crimes de
brutalidade, assassinato, roubo e violência sexual são raridades entre eles;
sempre concederam alto valor à realização e aos interesses intelectuais; sua
vida familiar é mais íntima; cuidam melhor dos pobres; para eles, a caridade é
um dever sagrado. Tampouco podemos chamá-los, em qualquer sentido, de
inferiores. Desde que permitimos que eles cooperassem em nossas tarefas
culturais, granjearam méritos por contribuições valiosas em todas as esferas da
ciência, arte e tecnologia, e reembolsaram abundantemente nossa tolerância. Assim,
cessemos por fim de lhes conceder favores, quando têm direito à justiça.’
Era natural que um partidarismo tão determinado
oriundo de alguém que não era judeu causasse impressão profunda em mim. Mas
tenho agora de fazer uma confissão notável. Sou homem muito velho e minha
memória já não é o que era. Não consigo mais recordar onde foi que li o ensaio
de que fiz o précis, nem quem era seu autor. Será que algum dos leitores
deste periódico é capaz de vir em minha ajuda?
Acabou de chegar a meus ouvidos um sussurro de
que aquilo que eu provavelmente tinha em mente era o livro do Conde Heinrich
Coudenhove-Kalergi, Das Wesen des Antisemitismus [A Essência do
Anti-Semitismo], que contém precisamente aquilo que o autor de que estou em
busca sentiu falta nos protestos recentes, e outras coisas mais. Conheço o
livro. Apareceu pela primeira vez em 1901 e foi relançado pelo filho (Conde
Richard Coudenhove-Kalergi] em 1929, com uma introdução admirável. Mas não pode
ser esse. Aquilo em que estou pensando é um pronunciamento mais sucinto e de
data muito recente. Ou será que estou inteiramente enganado? Não existe nada
dessa espécie? E o trabalho dos dois Coudenhove não teve qualquer influência em
nossos contemporâneos?
Sigm. Freud
BREVES ESCRITOS (1937-1938)
LOU ANDREAS-SALOMÉ (1937)
A 5 de fevereiro deste ano, Frau Lou
Andreas-Salomé faleceu pacificamente em sua casinha de Göttingen, com quase 76
anos de idade. Durante os últimos 25 anos de sua vida, essa notável mulher
esteve ligada à psicanálise, à qual contribuiu com trabalhos valiosos e que
também praticou. Não estarei dizendo demais se reconhecer que todos nós
sentimos como uma honra quando ela se juntou às fileiras de nossos
colaboradores e companheiros de armas, e, ao mesmo tempo, como uma nova
garantia da verdade das teorias da análise.
Sabia-se que, quando moça, ela manteve intensa
amizade com Friedrich Nietzsche, baseada em sua profunda compreensão das
audazes idéias do filósofo. Esse relacionamento teve um fim abrupto quando ela
recusou a proposta de casamento que ele lhe fez. Era bem sabido, também, que,
muitos anos depois, ela atuou como Musa e mãe protetora para Rainer Maria
Rilke, o grande poeta, que era um pouco desamparado em enfrentar a vida. Além
disso, porém, sua personalidade permaneceu obscura. Sua modéstia e discrição
eram mais do que comuns. Ela nunca falou de suas próprias obras poéticas e
literárias. Claramente sabia onde devem ser procurados os verdadeiros valores
da vida. Aqueles que lhe foram mais íntimos tiveram a mais forte impressão da
genuinidade e da harmonia de sua natureza, e puderam descobrir com espanto que
todas as fraquezas femininas e talvez a maioria das fraquezas humanas lhe eram
estranhas ou tinham sido por ela vencidas no decorrer de sua vida.
Foi em Viena que, há muito tempo atrás, o mais
comovente episódio de seu destino feminino fora representado. Em 1912, ela
retornou a Viena, a fim de ser iniciada na psicanálise. Minha filha, que foi
sua amiga íntima, ouviu-a um dia lamentar não ter conhecido a psicanálise em
sua juventude. Mas, afinal, naqueles dias não existia tal coisa.
Sigm. Freud
Fevereiro de 1937.
ACHADOS, IDÉIAS, PROBLEMAS (1941
[1938])
Londres, junho.
16 de junho. - é interessante que, em conexão com
experiências primitivas, quando contrastadas com experiências posteriores,
todas as variadas reações a elas sobrevivem, naturalmente inclusive as
contraditórias. Em vez de uma decisão, que teria sido o desfecho mais tarde.
Explicação: fraqueza do poder de síntese, retenção da característica dos
processos primários.
12 de julho. - Como um substituto para a inveja do
pênis, identificação com o clitóris: expressão mais nítida de inferioridade,
fonte de todas as inibições. Ao mesmo tempo [no caso X], rejeição da descoberta
de que as outras mulheres também não possuem pênis.
‘Ter’ e ‘ser’ nas crianças. As crianças gostam
de expressar uma relação de objeto por uma identificação: ‘Eu sou o objeto.’
‘Ter’ é o mais tardio dos dois; após a perda do objeto, ele recai para ‘ser’.
Exemplo: o seio. ‘O seio é uma parte de mim, eu sou o seio.’ Só mais tarde: ‘Eu
o tenho’ - isto é, ‘eu não sou ele’…
12 de julho. - Com os neuróticos, é como se
estivéssemos numa paisagem pré-histórica - no Jurássico, por exemplo. Os
grandes sáurios ainda andam por ali; as cavalinhas crescem tanto quanto as
palmeiras (?).
20 de julho. - A hipótese de existirem vestígios
herdados no id altera, por assim dizer, nossos pontos de vista sobre ele.
20 de julho. - O indivíduo perece por seus
conflitos internos; a espécie, em sua luta com o mundo externo ao qual não está
mais adaptada. - Isso merece ser incluído no Moisés.
3 de agosto. - Um sentimento de culpa também se
origina do amor insatisfeito. Como o ódio. De fato, fomos obrigados a derivar
toda coisaconcebível desse material: como Estados economicamente
auto-suficientes com seus ‘produtos Ersatz [Substitutos]’.
3 de agosto. - O fundamento supremo de todas as
inibições intelectuais e de todas as inibições de trabalho parece ser a
inibição da masturbação na infância. Mas talvez isso vá mais fundo; talvez não
seja sua inibição por influências externas, mas sua natureza insatisfatória em
si. Há sempre algo que falta para a descarga e a satisfação completas - en
attendant toujours quelque chose qui ne venalt point - e essa parte que
falta, a reação do orgasmo, manifesta-se em equivalentes em outras esferas, em
absences, acessos de riso, pranto [Xy], e talvez outras maneiras. - Mais uma
vez a sexualidade infantil fixou nisso um modelo.
22 de agosto. - O espaço pode ser a projeção da
extensão do aparelho psíquico. Nenhuma outra derivação é provável. Em vez dos
determinantes a priori, de Kant, de nosso aparelho psíquico. A psique é
estendida; nada sabe a respeito.
22 de agosto. - O misticismo é a obscura
autopercepção do reino exterior ao ego, do id.
ANTI-SEMITISMO NA INGLATERRA
(1938)
20 Maresfield GardensLondres, N. W. 316.11.
1938
Ao Redator-Chefe de Time and Tide.
Cheguei a Viena como uma criança de quatro anos
de idade, vindo de uma cidadezinha da Morávia. Após 78 anos de trabalho
assíduo, tive de abandonar meu lar, vi dissolvida a Sociedade Científica que
fundei, destruídas nossas instituições, tomada pelos invasores nossa Impressora
(‘Verlag’), os livros que publiquei confiscados ou reduzidos a bagaço, meus
filhos expulsos de suas profissões. Não acha que deveria reservar as colunas de
seu número especial para as manifestações de pessoas não judias, menos
pessoalmente envolvidas do que eu próprio?
Com relação a isso, minha mente se apropria de
um velho ditado francês:
Le bruit est pour le fatLa plainte est pour le
sot;L’honnête homme trompéS’en va et ne dit mot.Sinto-me profundamente
abalado pela passagem de sua carta que reconhece ‘um certo crescimento do
anti-semitismo mesmo neste país.’ Não deveria a atual perseguição dar origem
antes a uma onda de simpatia neste país?
Respeitosamente seu,Sigm. Freud